REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

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REVISTA LITERÁRIA TALARES - NUPEX: Núcleo de Pesquisa Ensino e Extensão /ESMAC ISSN: 2358-7741 - Ananindeua/ESMAC.

Conselho Editorial da REVISTA TALARES Iranilse Pinheiro (Diretora Geral-ESMAC) Drº Marcos Cohen (SEC-DF) Drª Sandra Christina F. dos Santos (UEPA) Drª Lilian Cristina Barros Cohen (UFPA) Msc.Veridiana Valente Pinheiro (ESMAC) Drº Luis Heleno Montoril del Castilo (UFPA) Msc.Ilton Ribeiro Santos (ESMAC) Drº Yurgel Caldas (UNIFAP) Msc.Maria Augusta Neves (SEDUC) MSC. Daniel Leite (ALEPA) Msc. Mário Pinheiro (ESMAC) Msc. Harley Dolzane (ESMAC) Msc.Natalia Evangelista (ESMAC) Msc.Natalia Evangelista (ESMAC) Edney Monteiro (ESMAC) Drª Liliane Goudinho (SEDUC)) Msc Décio Guzman (UFPA) Msc. Jorge Luis Ferreira Pantoja (ESMAC) Msc. Luciana Batista (ESMAC) Msc. Cândida Assumpção (ESMAC) Msc. Regina Costa (ESMAC)

Diretora acadêmica e Coordenador do Instituto Superior de Ensino - ISE SANDRA CHRISTINA F. DOS SANTOS

DIVISÃO DE PESQUISA E EXTENSÃO– ISE/NUPEX Coordenadora de Pesquisa ISE – NUPEX Editor responsável ILTON RIBEIRO DOS SANTOS

Coordenadora de Extensão ISE – NUPEX MARCIA JORGE

Projeto Gráfico da Revista SANDRA CHRISTINA F. DOS SANTOS VERIDIANA VALENTE PINHEIRO

Capa Av. Nazaré - Álbum de Belém - 1902

Revisão JORGE LUIS FERREIRA PANTOJA

Bibliotecária MARIANA ARAÚJO

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Central/ESMAC, Ananindeua/PA

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Semestral. Organizadores: Ilton Ribeiro dos Santos, Sandra Christina F. dos Santos, Veridiana Valente Pinheiro,

Publicado em edição temática; v. 3, n. 3: Ensino Superior. ISSN: 2358-7741 Periódicos brasileiros. I. Escola Superior Madre Celeste. 2. Ananindeua/Pa.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO Sandra Christina F. dos Santos Ilton Ribeiro dos Santos Veridiana Valente Pinheiro ...... 5

DOSSIÊ BELÉM – GRANDE BELÉM - Interdisciplinaridade A Leitura de Belém do Grão-Pará por um leitor amazônida Regina Costa Ilton Ribeiro dos Santos ...... 6 Belém 400 anos: a contribuição de Abguar Bastos às letras de uma cidade Milene de Cássia Pombo Jorge Ferreira Pantoja ...... 18 Galeria de arte de Belém Theodoro Braga: Fluxograma de símbolos nos difíceis dias humanos Ilton Ribeiro dos Santos...... 38 A história do futebol paraense, Paysandu e Remo: primeiras aproximações Murilo Viégas Fernandes Alves Gabriel Pereira Paes Neto Iracildo Pereira Castro Ney Ferreira França...... 44 Violência e esporte: rivalidade e confrontos entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo Murilo Viégas Fernandes Alves Gabriel Pereira Paes Neto Iracildo Pereira Castro Ney Ferreira França...... 55

Uma “cidade do Pará”: classe e cor Belém de 1778-1824 Shirley Maria Silva Nogueira...... 65

ARTIGOS Terceira margem: o diálogo de silêncio entre rosa e leão Harley Farias Dolzane...... 77 A formação continuada frente à prática da interdisciplinaridade no cotidiano do educador Ângela Conceição dos Anjos Pena...... 92

INICIAÇÃO CIENTIFICA Ressonância do modernismo e a literatura de expressão amazônica Dionilson Mendonça da Silva Harley Farias Dolzane (Orientador) ...... 102

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Terceira idade na cidade das mangueiras: variações linguísticas no Centro Social Palácio Bolonha Carla Georgia Travassos Teixeira Pinto Cândida Assumpção Castro (Orientadora) ...... 111

LITERATURA CONTEMPORANEA Caracol Julian Oroz ...... 120 Centella Julian Oroz ...... 121 Alegria Julian Oroz ...... 122 Outra manera Julian Oroz ...... 122 Águas Daniel da Rocha Leite ...... 123 Dentes e sal Renato Torres ...... 132

ARTE

ELA...SOBRE TODAS AS COISAS Artista: Sanchris Santos ...... 134 Série Língua Hispano-lusitana: Palavras que atravessam as ruas Artista: Ilton Ribeiro dos Santos ...... 135 Belém: Água e pedra Artista: Marcelo Roger Penha ...... 137 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

APRESENTAÇÃO

Chegamos ao terceiro número da Revista Talares e coincidiu com os quatrocentos anos de Belém. É apresentado ao público leitor um tributo a esse aniversário da cidade, estendendo também à Grande Belém, ou seja, aos seus arredores, a Região Metropolitana de Belém, formado pelos municípios de: Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Isabel do Pará, Santa Bárbara do Pará e Castanhal. Deste modo entendemos que Belém nesses quatrocentos anos é uma cidade fluxo de outras, cidade sedimento, cidade passagem, cidade processo. Destarte imaginar o capital simbólico local não deixa de ser um processo complexo e resumi-la numa revista é algo completamente inviável, lógico isso jamais seria possível. Exatamente porque existe uma dinâmica de vida muito latente nos fluxos de diálogos, nesse trânsito interno e externo da Grande Belém A Escola Superior Madre Celeste participa e percebe essa dinâmica, no sentido de que tenta ouvir, de que busca interpretar essa teia de sentido que dá significado a vida local. Para terminar esse prólogo, a revista propõe para a festa de aniversário um caminho por temas tão populares como o futebol local à transversalidades como a literatura, educação, história e as artes da Amazônia. Traz convidados de literatos locais, como também do poeta e cantor argentino Julio Oroz. Esperamos que todos se divirtam e saboreiem esse aniversário. Viva! Belém, a Grande Belém.

Ananindeua, Maio/2016 Profa. Dra. Sandra Christina F. dos Santos - Conselho Científico Prof. MSc. Ilton Ribeiro dos Santos Profª MSc. Veridiana Pinheiro – Conselho Editorial Coordenação de Pesquisa - NUPEX

5 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

DOSSIÊ BELÉM – GRANDE BELÉM - Interdisciplinaridade A leitura de Belém do Grão Pará por um leitor amazônida Regina Barbosa da Costa1 Ilton Ribeiro dos Santos2

RESUMO Este texto visa apresentar o leitor-escritor Dalcídio Jurandir (1909-1979) uma conexão literária, no sentido de fazer a associação de suas leituras à escrita. A intenção é mostrar que as leituras do escritor amazônida pesquisadas em documentos pessoais, jornais e revistas, manifestaram-se nos textos engendrados por ele para a ficção. O acervo de leituras do escritor é mostrado de forma ostensiva, a partir do primeiro romance e estendido de forma crítica em Belém do Grão Pará, quarto romance do escritor. Assim, nos escritos dalcidianos encontramos textos que foram resignificados pelo escritor, provando existir uma relação dialógica do produtor com suas leituras. PALAVRAS-CHAVE: leitor; escritor; texto; relações.

INTRODUÇÃO

Na obra inaugural do escritor amazônida Dalcídio Jurandir3 (1909-1979) percebe-se que a leitura do escritor não é ingênua, mas alinha a vivência de leitor à situação enfrentada pelo homem da Amazônia, confirmando que o “texto nunca é transparente, pois tem uma família, um DNA, dissemina-se por vários escritos e os recolhe em suas páginas” (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 17). Além disso, legitima-se a ideia de que este autor paraense vive suas leituras para depois deixá- las invadir seus textos. O escritor Dalcídio Jurandir seguiu um percurso que iniciou com leituras, conforme veremos a seguir, para depois as materializar em textos, como

1 Doutoranda da Área de Estudos Literários (UFPA) Mestra em Estudos Literários (UFPA). Professora da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). E-mail: [email protected] 2 Ilton Ribeiro dos Santos. Mestre em Artes (UFPA). Professor da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). E-mail: [email protected] 3 Dalcídio Jurandir nasceu na Ilha do Marajó (PA), no município de Ponta de Pedras em 1909 e morreu no Rio de Janeiro (RJ), 1979. Além de escritor, foi também jornalista, tendo intensa atuação como redator e colaborador, no Pará em: O Imparcial, Crítica Estado do Pará, Revista Escola, Revista Guajarina, revista Novidade e Revista A Semana; no Rio de Janeiro em: O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, semanário Classe Operária, Para Todos e Problemas. 6 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 constatamos nos livros do ciclo do Extremo Norte4 (1941-1978), por isso valida-se a afirmação de que “os escritores são, antes de tudo, leitores” (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 17), por conseguirem nas linhas dos textos o material necessário para seu trabalho de escritor. Desta forma, Benedito Nunes observou que os textos dalcidianos extrapolam as fronteiras do regional, já que reside no escritor “uma interiorização muito grande, cada vez mais densa [formando] uma espécie de À La recherche...”5. O crítico paraense realiza uma comparação entre os dez volumes do ciclo do Extremo Norte, de Dalcídio Jurandir os sete volumes de La recherche du temps perdu, do francês Marcel Proust. A comparação realizada por Nunes do ciclo dalcidiano à série de Proust acontece por meio de análise da natureza artística e experiência de vida que se encontram para constituírem um texto de valor artístico. Da mesma forma que as paisagens do campo e da cidade são utilizadas como cenário para representação dos dramas familiares, além do papel da memória tratado de forma especial por Benedito Nunes (2003). Nunes analisa os textos de Proust e Dalcídio no que tange a idealização do tipo de produção e a intensidade de significação. Sobre este aspecto analisado pelo filósofo e crítico literário Benedito Nunes, a pesquisadora Marlí Furtado (2010) aponta certa diferença dessa abordagem em comparação às demais críticas que consideram o escritor Dalcídio Jurandir um regionalista. Segundo ela, Nunes vê “os aspectos genuínos da obra dalcidiana, sem cair nas classificações rápidas e generalizantes em que, parece, caíram alguns historiadores de nossa literatura” (FURTADO, 2010, p. 174-175). Assim, este artigo delineará o escritor num atrelamento literário, no sentido de associar suas leituras à escrita, para apontar que as leituras de Jurandir manifestaram-se nos textos engendrados por ele para a ficção. Desta forma, o estudo será elucidado em dois tópicos: o primeiro intitulado “O leitor Amazônida” e o segundo em “A leitura do espaço amazônico: um recorte sobre Belém”, para

4 O ciclo do Extremo Norte, composto de dez romances: Chove nos campos de Cachoeira, (1941), Marajó (1948), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978). 5 Nunes em entrevista a José Castello para o Jornal de Poesia [n.d.] 7 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 exemplificar a relação dialógica do produtor de texto com suas leituras e possíveis ressignificações.

O LEITOR AMAZÔNIDA6

As leituras de Dalcídio Jurandir podem ser observadas de três formas: a primeira, consultando seus acervos e documentos pessoais; a segunda, conhecendo sua participação social em jornais e revistas e a terceira é observada por meio da leitura de seus textos ficcionais. A primeira forma de observar as leituras do escritor é lendo as cartas enviadas por ele à esposa Guiomarina, em 1937, quando esteve preso pela segunda vez em decorrência de suas atividades na política7. No excerto a seguir, retirados de cartas de Dalcídio Jurandir, é possível extrairmos alguns dados sobre o escritor marajoara.

[...] Manda-me o 2º Fausto de Goethe, em francês - capa verde. Se puderes me mandar 2 ovos que sejam frescos. [...]. Parei, estes dias de escrever. Há três dias que não escrevo [...] A carta está mercantil hoje. Muito prosaica. Mas são as coisas reais... Não se esqueça do 2º volume do Fausto - de Goethe. Beijos a Sergio e a você. (NUNES; PEREIRA; PEREIRA, 2006, p. 33).8

Este primeiro fragmento permite perceber que ele, na condição de preso político, não deixou de alavancar sua produção intelectual, haja vista que se mostra ativo nas leituras e produção textual, assinalando inicialmente sua preferência pelas obras da literatura alemã. Além de demonstrar conhecimento do idioma francês, visto que solicitou à esposa um clássico da literatura alemã, Fausto (Faust), de Johann Wolfgang Von Goethe (1806), em francês.

6 Referido em: COSTA, Regina Barbosa da Costa. Imagens de leituras em Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará. Instituto de Letras e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, Belém, 2014. 7 O escritor era envolvido com os ideais comunistas, por este motivo foi preso duas vezes uma em 1900 e em 1937. 8 A carta transcrita apresenta o nome de alguns escritores Russos conforme grafia nas cartas de Dalcídio Jurandir, porém alguns críticos, como Carpeaux, fazem uso de outras grafias: Corumbás (Corumbas), Nicolau Gogol (Nikolai Gógol), Dostoiewsky (Dostoiévski), Nietótchka (Niétotchka Niezvânova). 8 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Nesse sentido, o trecho a seguir mostrará que Dalcídio também admirava a literatura do escritor francês Charles Baudelaire pela referência que faz ao texto O comedor de ópio inscrito em Paraísos Artificiais (1860)9 , sem, contudo, renegar os textos da literatura brasileira.

[...] Vai Mundos mortos – que consegui ler por alto e Mixuangos que não li (...). Vê se achas o Comedor de ópio, deve estar na estante velha. Manda dizer ao Flaviano procurar com Gentil Puget os livros Negro brasileiro e Religiões negras que preciso estudar aqui. Não sei onde está Os Corumbas. Parece que tenho aí. (NUNES; PEREIRA; PEREIRA, 2006, p. 33)

No excerto anterior é possível observar que Jurandir faz referências à produção literária no Brasil, especialmente as que abordavam temática social, dentre os quais evidencia o livro Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, que tem como assunto o deslocamento da família dos Corumbas da zona rural de Sergipe para a capital Aracaju. Vale ressaltar que Fontes não era seguidor de ideologias políticas10, seu romance expressa uma crítica aos diversos grupos da sociedade brasileira, sem que ele, enquanto escritor, estivesse defendendo segmentos ou partidos políticos. Outro livro referenciado por Dalcídio Jurandir foi Mixuangos (1937), de Valdomiro Silveira, porém o escritor deixa claro que ainda não leu este texto, fato que nos permite inferir que ele reunia livros sobre temáticas do contexto brasileiro para, numa oportunidade, poder conhecê-los e assim escrever com mais propriedade sobre o assunto. Mixuangos é um livro que aborda os costumes e a linguagem do caboclo brasileiro. Nele, Silveira indicia que quer preservar a cultura caipira tradicional, para não fragmentá-la e perder as raízes desta ante a presença de imigrantes europeus vindos para trabalhar nas lavouras brasileiras. Jurandir cita, ainda, nas cartas, o livro Mundos mortos (1937)11, de Otávio de Faria que é o primeiro romance do ciclo Tragédia Burguesa: romances que

9 O Comedor de ópio é parte do livro Paraísos artificiais (1860), de Charles Baudelaire. 10 FARIA, Otávio de “Dois Romancistas: Jorge Amado e Amando Fontes”. In: Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, (I, 18) 1933. p. 7- 8. 11 Mundos mortos (1937), de Otávio de Faria é o primeiro romance do ciclo Tragédia Burguesa, que publicou treze livros: I Mundos mortos (1937); II Os caminhos da vida 9 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 comportaria vinte volumes, dos quais foram publicados apenas treze livros. Faria traça, na obra, um cenário da vida fluminense e os problemas sociais decorrentes da classe burguesa, que atingem não só o indivíduo carioca, mas que alcança pessoas de outras partes do mundo. O escritor Dalcídio Jurandir finaliza sua listagem de leituras nas cartas de 1937, citando os livros Religiões Negras (1936), de Edison Carneiro e Negro Brasileiro (1934)12, de Arthur Ramos de Araújo Pereira. Com essas indicações de leitura ele demonstra, mais uma vez, que sua preocupação com os problemas sociais não era superficial, já que procurava pesquisar para então explorar tais assuntos nos seus artigos e romances. Nas cartas, Jurandir demonstra também estar informado sobre a produção literária de escritores pertencentes à Literatura Russa do Século XIX, especialmente Nikolai Gógol, autor de Almas Mortas (1842) e um dos precursores da moderna Literatura Russa. Ele cita, ainda, os escritores do século de ouro na Rússia13, especialmente Leon Tolstói, autor de Guerra e Paz (1869), A morte de Ivan Ilitch (1886) e Ana Karenina (1877), seguido de Fiódor Dostoiévski, criador de Niétotchka Niezvânova (1849), Crime e Castigo (1866), O idiota (1869) e Os Irmãos Karamazov (1880). Dalcídio Jurandir explica em uma das cartas que recebe os livros soviéticos apenas para simples leitura, mas observa-se que esta leitura não é unicamente de deleite; ela é seletiva e crítica. Um exemplo é o comentário que ele realiza sobre a ascendência desses escritores russos e demonstra um interesse especial pelas ideias

(1939); III O lodo das ruas (1942); IV O anjo de pedra (1944); V Os renegados (1947); VI Os loucos (1952); VII O senhor do mundo (1957); VIII O retrato da morte (1961): IX Ângela ou Areias do mundo (1964); X A sombra de Deus (1966); XI O cavaleiro da Virgem (1972); XII O indigno (1976); XIII O pássaro oculto (1979). 12 Nas correspondências de Dalcídio Jurandir observamos que ele cita o livro Negro Brasileiro, no entanto, o título original da obra é Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanalise, de Arthur Ramos de Araújo Pereira. Além disso, Arthur Ramos trocava cartas com Edison Carneiro, com Sigmund Freud e com escritores brasileiros, compondo um acervo em que predominava a temática do negro da Amazônia. 13 Período de intensa produção literária na Rússia, ocorrido no século XIX, em que o romance, o conto e o teatro foram as formas preferidas. Além disso, temáticas que envolvem o homem confuso do período da modernização foram apresentadas nos romances dessa época. 10 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 propostas no livro, a ponto de alinhar Nikolai Gógol, Tolstói, Dostoiévski e Gorki14 em uma classe específica na sua prioridade de leitura. No terceiro fragmento de cartas de 1937, Jurandir explica essa necessidade de estudar os livros que abordassem assuntos de sua época, especialmente os que se referiam às questões sociais, deixando claro que ele procurou fazer da cadeia um gabinete de estudo para os seus textos literários, uma vez que a obra desses escritores, contemporâneos a ele, de certa forma fomentaram ideias sobre a sociedade brasileira e contribuíram decisivamente para a produção literária do escritor. Dalcídio Jurandir reafirma em um de seus manuscritos, observações sobre as questões sociais e a exploração do tema nacional no romance brasileiro: “experimentemos todas as técnicas ou concepções de romance mas, sobretudo, experimentemos em nossos romances este tema virgem, vasto e múltiplo que é o Brasil”. (NUNES; PEREIRA; PEREIRA, 2006, p. 182)15. Neste manuscrito, ele ressalta que o escritor brasileiro deve deixar a marca de seu tempo e para isso é fundamental conhecer a realidade brasileira e explorá-la nos romances por ele produzido, pois considera que no Brasil há uma vastidão de assuntos que estão disponíveis para serem estudados, mas que ainda não foram pesquisados pelos escritores brasileiros. A segunda maneira de conhecer as leituras de Dalcídio Jurandir é sabendo de sua participação social em jornais e revistas, pois de acordo com dados biográficos16, ele recebeu alguns livros emprestados pelo Doutor Raynero Maroja, em 1928, quando o escritor regressava do Rio de Janeiro para Belém. Dos livros referidos no empréstimo incluem-se os seguintes autores: Fialho, Castilho, Augusto dos Anjos, Guerra Junqueira, Cruz e Souza, Balzac. Consta, também, nesta mesma edição do livro de Jurandir, que ele conseguiu levar consigo o livro Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes para a cadeia, quando esteve preso pela primeira vez em 1935, e o leu durante os dois

14 Máximo Gorki foi o criador da literatura proletária e autor de A confissão (1908), porém Jurandir não menciona livros deste autor. 15 Texto manuscrito encontrado no acervo de Dalcídio Jurandir, que constituem um ensaio sobre o papel do escritor. 16 Os dados biográficos constam na quarta edição de Chove nos campos de Cachoeira (1995). 11 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 meses em que ele esteve preso em razão dos seus ideais políticos. No artigo “Nota sobre o centenário de Cervantes”17, Jurandir fala sobre Quixote, herói de um de seus livros preferidos, e também critica o franquismo, regime político aplicado pelo ditador Francisco Franco na Espanha, no período de 1939 a 1975.

A LEITURA DO ESPAÇO AMAZÔNICO: UM RECORTE SOBRE BELÉM

Dalcídio Jurandir também mostrou seu desempenho na leitura do espaço amazônico, aspecto evidenciado nas suas produções textuais que ganha dimensão a partir da focalização da língua cabocla da Amazônia, configurada como uma fala despojada, mas que ao contato com o escritor ganha formato artístico. O professor Luís Bueno, em rápido cotejo a Guimarães Rosa, comenta que “a língua do pobre pode ser tomada com liberdade reinventada no contato com uma tradição intelectual [...], porque o artista é mesmo o único lugar em que essa fusão pode se dar” (BUENO, 2006, p. 25). O escritor paraense encontra na língua marajoara elementos que possibilitam ampliar seu significado, assim como fez Guimarães Rosa, sem, contudo, depreciá- la, mas agregando a ela possibilidades de usos que não ferem o intelectual que se propõe a ler, posto que o artista da palavra trabalha a língua dando a ela novos significados, reinventando-a: “axi que eu uso essas porqueiras! Axi! Axi! Ele quer eu sei o que é...” (JURANDIR, 1941, p. 34). No entanto ele o faz para chegar mais próximo do seu povo. Jurandir demonstrou em seus textos que dispensou seu tempo para a leitura atenta do mundo marajoara, que não se resume apenas no paisagismo, mas que vai além, pois examina pessoas e conflitos sociais. O escritor Vicente Salles, informa da importância dessa leitura de espaço, na contribuição da cultura, afirmando que é impossível escrever a história social paraense sem o conhecimento da obra de Dalcídio Jurandir, pela “soma considerável de informações folclóricas, com interesse etnográfico e antropológico” (SALLES, 2011, p. 19). Isso ocorre por ser o

17 Artigo produzido para revista Literatura17 por ocasião do quarto centenário de Cervantes. Nota sobre o centenário de Cervantes. Literatura, ano 2, n. 5, jul/set. 1947, apud NUNES, Benedito; PEREIRA, Ruy; PEREIRA, Soraia Reolon (Org.). Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia: literatura & memória. Belém: SECULT, [Rio de Janeiro]: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2006, p. 80. 12 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 escritor, antes de tudo, um pesquisador que recolhe as informações e as condensa na literatura. O estudo de Dalcídio Jurandir sobre o cotidiano regional aparece nos romances do ciclo Extremo Norte, no qual são impressas cenas da vida regional, segundo ratificou o próprio escritor, em 1976, em entrevista a Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão.18 Para a caracterização cultural da região, o escritor precisou ficar atento aos movimentos sociais que aconteciam no Brasil e também no mundo. Para tanto, se empenhou em fazer sondagens para que ele pudesse expressar nos romances o ser amazônida ultrapassando os limites regionais. Nesse sentido, o pesquisador Gunter Pressler comenta que “sua narrativa, complexa e moderna estava além do horizonte de expectativa da crítica em meados do século XX, ainda presa a um determinado tipo de regionalismo do romance social” (PRESSLER, 2010, p. 238). Os resultados desta tímida repercussão de Dalcídio Jurandir no cenário literário nacional ainda hoje são sentidos, especialmente por aqueles que o reconhecem como um grande escritor. Jurandir fez parte de um grupo de intelectuais da Amazônia que tiveram acesso aos grandes escritores mundiais. Daí o Modernismo na Amazônia ser singular e ter seguido uma trajetória com sua própria legenda, porque “reside aqui uma história autônoma, em nada subsequente, reflexo ou eco de qualquer outra história forjada em um pretenso centro da nação” (FIGUEIREDO, 2012, p. 20). Esta estética trilhou caminhos que não refletem os moldes do sul do país, por existir na região amazônica um grupo de intelectuais que acompanhava os movimentos artísticos e os intelectuais da Europa de maneira mais próxima. Um dos motivos que impulsionou uma autonomia literária em Belém foi pela ocorrência, na região amazônica, de uma intensa comercialização do látex, conhecido como ciclo da Borracha, que promoveu transformações sociais, econômicas, intelectuais, urbanísticas e políticas, a partir do século XIX, e que

18 JURANDIR, Dalcídio. Um Escritor no Purgatório. Revista Escrita. São Paulo, e, ano 1 n. 6, 1976, p.4. Entrevista a Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão. Disponível em: . Acesso em: 08 maio 2014. 13 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 ocasionou a difusão de hábitos europeus que, por sua vez, se refletiram na literatura que circulava na capital:

Belém vai sofrer alterações que se operaram nas estruturas sociais, ocasionando uma intensificação da vida social e intelectual da cidade, aumento demográfico, maior complexidade das relações sociais e a concentração de fortunas entre os novos setores dominantes (SARGES, 2000, p.17).

Porém, este passado de riquezas não foi contínuo e, após este período, restaram memórias e ilusões, conforme afirmam alguns pesquisadores como Fábio Fonseca que vê que após este ciclo ocorre “um devaneio sobre o passado” (CASTRO, 2010, p. 28) à medida que se configura numa “saudade do desconhecido [...] do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido” (CASTRO, 2010, p. 29). Esse pensamento fáustico sobre a Amazônia é referido por Jurandir em Belém do Grão Pará (1960). Quando Dalcídio Jurandir escreve Belém do Grão Pará ele está vivenciando um cenário brasileiro que sofre modificações realizadas pelo governo de Juscelino Kubistchek, segundo Maia (2016), Kubistchek implantou grande modernização política na sociedade brasileira, fato antagônico ao que é protagonizado na ficção dalcidiana. No romance Belém do Grão Pará, o escritor faz um retorno no tempo para narrar uma Belém que sofre com a decadência do comércio gomífero19 e os conflitos vividos na época. Neste sentido, a cidade de Belém, grande personagem do romance, segundo Furtado (2010) apresentará um clima de ruína em que personagens e objetos alternam o foco para sensibilizar o leitor de que algo ainda mais terrível poderá acontecer. No entanto, entre as personagens, são comuns algumas recordações de um tempo em que se respiravam na Amazônia tropical ares europeus e é neste clima que surge a figura de um político que teve grande expressão em Belém: Antônio Lemos20.

19 O comércio gomífero faz referência ao Ciclo da borracha que ocorreu na Amazônia e trouxe grande riqueza para duas grandes cidades desta região: Manaus e Belém. 20 Antônio Lemos administrou Belém entre final do século XIX e início do XX foi idealizador de um projeto que transformou Belém do Pará e a equiparou a grande cidades europeias. 14 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

As personagens que compõe esse cenário tropical se apresentam completamente falidas tanto no aspecto moral como no financeiro e são elas que apresentam o cenário de ruína no romance, pelo fato de encaminharem as ações e se mostrarem quase que mimetizados em determinadas cenas, pela condição de ruína pessoal e material. É desse modo, que se apresentam os personagens na obra, especialmente os Alcântaras que simbolizam em Belém do Grão Pará, as ruínas do decaído ciclo da borracha, deles um personagem se faz muito representativo que é Virgílio Alcântara, funcionário público federal dominado pela mulher e pela família. Por meio da descrição na narrativa vai-se delineando o caráter da personagem, um ser sem ambições, totalmente manipulado, que acabará por perder o emprego, a casa e mesmo a família que nunca foi sua. Para o personagem Virgílio, o Lemismo21 é uma sombra negra que lhe acompanha, em primeiro lugar por estar falido financeiramente e em segundo, pela desconfiança da traição da esposa d. Inácia, desta forma, “seu Virgílio viverá na narrativa um drama machadiano, [...]isto é, teria ou não d. Inácia o traído durante o Lemismo, quando, segundo as recordações dele, ela cumpria tão meritoriamente o papel que lhe fora designado” (FURTADO, 2010, p. 97). Enfim, é este personagem que gradativamente vai se deteriorando financeiramente até chegar às páginas finais do romance, momento em que começa a acontecer os primeiros sinais de desmoronamento da casa de número 34 na Estrada de Nazaré, restando somente o último exemplar desta fase áurea que era o piano, cuidadosamente dispensado na rua, embaixo da mangueira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Cabe ressaltar, por fim, que o escritor encontrou nas leituras seu suporte para exteriorizar em forma de arte suas observações sobre a região amazônica em consonância com o mundo, já que o excelente leitor de textos também mostrou esta excelência na leitura do espaço social e, por sua atenta observação das leituras e do ambiente real, criou nas narrativas alguns lugares ficcionais para debater com quem,

21 Referência a Antônio Lemos 15 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 leitor como ele, pudesse ser solidário com a sua angústia de ver que os problemas sociais da Amazônia também eram comuns no Brasil e no resto do mundo. As observações do escritor, especialmente as trazidas em um pequeno recorte de Belém do Grão Pará em que pessoas vivem de lembranças deste tempo feliz e próspero, são registrados na descrição memorialística dos personagens, como o Personagem Virgílio Alcântara, símbolo de decadência de um tempo fausto em foram erguidos grandes casarões e importados objetos de luxo e ostentação, mas que permanece apenas como vestígio de uma metrópole amazônida. Assim, Dalcídio Jurandir, representa o leitor que conseguiu obter uma visão holística sobre a Amazônia em especial sobre os lugares onde optou por viver, como Belém do Pará e conseguiu transformá-los em pura arte. REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos Resende. Machado de Assis leitor: uma viagem à roda de livros. Belo Horizonte: UFMG, 2011. CARNEIRO, Edison. Religiões negras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. CASTRO, Fábio Fonseca. A cidade Sebastiana: era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade. Belém: Edições do autor, 2010. CERVANTE Y SAAVEDRA, Miguel de. D. Quixote de La Mancha. Rio de Janeiro: Revan, 2002. COSTA, Regina Barbosa da Costa. Imagens de leituras em Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará. Instituto de Letras e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, Belém, 2014. FARIA, Otávio de. “Dois romancistas: Jorge Amado e Amando Fontes”. In: Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, (I,18) 1933. p. 7-8. FIGUEIREDO. Aldrin Moura de. Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP, 2012. FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado das Letras, 2010. JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão Pará. São Paulo: Livraria Martins, 1960. NUNES, Benedito; PEREIRA, Ruy; PEREIRA, Soraia Reolon (Org.). Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia: literatura & memória. Belém: SECULT, [Rio de Janeiro]: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2006. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2003.

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Belém 400 anos: a contribuição de Abguar Bastos às letras de uma cidade

Prof. MSc. Jorge Pantoja (UFPA/UERJ) Milene de Cássia Pombo

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Dos 400 anos de existência da capital paraense, entre tudo aquilo que se pode classificar como literatura regional ou mesmo a Literatura produzida no Pará, mais especificamente em Belém, além dos consagrados autores Dalcídio Jurandir, Max Martins e Age de Carvalho, dentre tantos outros, um merece especial destaque por singela, mas não menos relevante importância: Abguar Bastos. No que diz respeito à trilha do Modernismo no Pará, parecem surgirem algumas dificuldades para se compreender o mesmo pelo fato de não haver grande quantidade de documentos e fontes acadêmicas que elucidem sua trajetória, premiando-o devidamente, mesmo que com tanto atraso o belo trabalho de mais um grande autor paraense, forjado do fogo vivo de quatro séculos de história de nossa capital, pareceu cair no esquecimento de seus conterrâneos.

Abguar Bastos22 com seus manifestos À Geração que surge (1923) e Flaminaçu (1927) apontou para a necessidade de um movimento renovador nas letras paraenses que convergisse para a elevação de toda uma mentalidade brasileira; dessa forma, o

22 ABGUAR BASTOS nasceu em Belém do Pará. No Estado do Amazonas foi promotor público e tabelião. No Pará foi jornalista. Secretário da Junta Governativa Militar e em seguida Chefe de Gabinete da Interventoria Federal (1930-1931). Titular do Segundo Cartório de Registro Civil da Capital e eleito deputado federal pelo Pará (1936-1937) - primeiro mandato, até o fechamento do Congresso Nacional, pelo Presidente Getúlio Vargas. No Rio de Janeiro foi diretor da Divisão de Expansão Econômica e organizador e primeiro diretor do Departamento Nacional de Registro de Comércio, ambos do Ministério da Indústria e Comércio. Em Brasília foi assessor do ministro do Trabalho Batista Ramos. No Ministério de Indústria e Comércio foi assessor dos ministros Embaixador Otávio Augusto Dias Carneiro, Artur Bernardes Filho e Ulysses Guimarães. Assessor parlamentar do mesmo Ministério. Em São Paulo foi eleito deputado federal, segundo mandato (1955-1959). Adido comercial da Embaixada do Brasil em Varsóvia. Atuou como assessor da Presidência das Faculdades Metropolinas Unidas e da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais, ambos em São Paulo. Organizador e fundador da Frente Parlamentar Nacionalista, durante seu mandato, na Câmara dos Deputados. Ainda no Congresso Nacional, foi presidente da Comissão de Redação e membro de várias comissões. Vice-líder de Partido. Foi co-fundador da União Brasileira de Escritores (UBE), da qual foi presidente entre 1981-1982. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e do Pará. Membro correspondente de três Academias de Letras (Amazonas, Pará e Paraíba). Diplomado como conferencista pela Universidade da Guanabara. Membro honorário da Comissão Brasileira de Folclore. Recebeu menção honrosa do Prêmio de Poesia “Governador do Estado” (São Paulo). O Museu da Imagem e do Som colheu seus depoimentos, em São Paulo. Mais de 160 livros, nacionais e estrangeiros, fazem referências à obra e às atividades políticas e culturais de Abguar Bastos ou, por este, são prefaciadas. Portador de doze láureas concedidas por instituições de cultura e governamentais, recebeu o título de Intelectual do Ano de 1987 (Prêmio Juca Pato). Reconhecido como o verdadeiro desbravador da literatura amazônica por Jorge Amado, bem como pelas qualidades e pela importância de sua obra literária por nomes de primeira grandeza da literatura brasileira, como Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Agripino Grieco, Érico Veríssimo, Ligia Fagundes Telles, entre outros.

Disponível em: http://escritorabguarbastos.blogspot.com.br/. Acessado em: 30/03/2016.

18 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 literato tanto convocou os escritores do Norte a aderirem à pratica modernista na região Norte quanto propôs os possíveis passos de como produzir literatura modernista no Norte (SOUZA, 2006). Assim, os manifestos referidos foram representativos, pois fizeram o movimento ampliar o ideal de renovação estética nacional no que concerne à poética, para assim direcionar a preocupação com o regional, especialmente no que concerne ao modernismo paraense, à literatura produzida em Belém.

Por ser extensa a discussão que circunscreve o Modernismo brasileiro, com todas as suas especificidades, faz-se necessário impor um recorte oportuno para melhor compreensão do mesmo: daqui em diante, realizar-se-á uma breve comparação dos ideais de alguns manifestos modernistas da região sudeste (Pau Brasil e Verde Amarelo, por exemplo) e paraenses (À Geração que surge e Flaminaçu), visto que eles tanto articulam o Modernismo enquanto poética, quanto fazem o movimento ampliar o ideal de renovação estática nacional, e assim direcionar a preocupação com o regional, especificamente no que concerne ao Modernismo paraense.

Ainda não vi sublinhado com bastante descaramento e sinceridade esse caráter primitivista de nossa época artística. Somos na realidade uns primitivos. E como todos os primitivos realistas e estilizadores. A realização sincera da matéria afetiva do subconsciente é nosso realismo. Pela imaginação deformadora e sintética somos estilizadores. O problema é juntar num todo equilibrado essas tendências contraditórias. Contradigo-me. Erro. Firo-me. Tombo. Morrerei? É coisa que não me preocupa nem pertuba. Em todos os períodos construtivos é assim. (Mário de Andrade, 1974)

Os movimentos literários, de acordo com o quadro evolutivo da literatura brasileira são etapas de manifestação de um projeto poético brasileiro (SILVA, 1998, p.6). É peculiar no movimento modernista de forma bastante marcante a presença dos manifestos literários, uma vez que, através deles se prepara o aparecimento de uma nova poética, que dá base de articulação para todo um projeto poético, e, inclusive, por meio deles, o movimento extrapola o viés propriamente literário e passa a se projetar como uma questão de ordem nacional. Podemos afirmar que a partir da segunda metade da década de vinte, no Brasil, a questão do nacionalismo cultural e político passou a ser o ponto mais marcante para a maioria dos intelectuais e artistas do período. Para os modernistas cabia a tarefa de determinar a nossa real e autêntica definição cultural. Vários grupos se formaram cada um a seu modo, concebia sua forma de determinar o sentido da cultura brasileira. O debate ideológico existente era determinante para

19 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 formalizar a postura de cada um desses grupos, a politização do movimento moderno era inerente, mesmo que não fosse plenamente assumido por alguns, inevitavelmente alguns se alinhavam à esquerda inspirados pela ala comunista, outros situavam se à direita compactuando com ideais nazi-facistas. Não obstante, a discordância entre os grupos, ambos, mantinham em comum a pauta da brasilidade e do nacionalismo como fatores marcantes. As diversas frentes modernas, representadas pelos manifestos, um tanto, díspares entre si, conscientemente e criticamente ou não, confluíam para um único objetivo: reinventar uma linguagem e uma realidade brasileira poeticamente nacional e autêntica, desatrelando-se da submissão a moldes importados, para desta forma então trilhar uma reflexão crítica no cerne cultural e literário brasileiro. Essa é a interpretação compreensível do processo de ruptura/integração nos manifestos modernistas. Acerca desse processo, Silva em Lírica Modernista e percurso literário brasileiro afirma:

[...] a luta dos manifestos conduzia a um ataque frontal às estruturas poéticas parnasiano – simbolistas, já esgotadas, e a toda uma tradição literária importadas; pela busca de uma linguagem poética livre de influência externa dos movimentos europeus e adequada a traduzir a nova realidade; pela afirmação de uma nova tradição fundamentada na brasilidade e capaz de sustentar a nossa literatura como uma literatura nacional. (SILVA, 1998, p. 38)

Comumente os manifestos literários surgem com o intuito de propalar novas modas e propostas e seus conceitos difundem a própria forma literária que os compõem. Em outras circunstâncias, os manifestos foram ou são publicados em revistas e jornais. São alguns exemplos os seguintes: Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928) de autoria de Oswald de Andrade; o Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo (1929), de Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Alfredo Élis, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho. Sobre a principal intenção dos manifesto, o professor e literato Anazildo Silva enuncia:

“Um manifesto é sempre a conscientização sintomática dum processo de ruptura com um padrão vigente, mediante a proposição de novos princípios estruturadores do fenômeno poético. (...) mas, principalmente, o rompimento com toda uma tradição importada fixada na base mais remota de nossa literatura.” (SILVA, 1998, p.37).

E complementamos por meio dos manifestos se exprimiram poéticas, novas atitudes, temas literários e posturas políticas, sejam esses fatores vistos como de determinada região, sejam como símbolos de cultura nacional. Sobretudo, por meio

20 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 dos manifestos, é estabelecida uma poética mais adequada ao momento presente, é por esse motivo que ocorre a ruptura e se realizam afrontas aos status quo vigente. Podemos ressaltar que há uma similaridade base encontrada em todos os manifestos, e ela centra-se: em pensar a linguagem sob o enfoque da brasilidade; e pensar a realidade, que fará a mentalidade literária se desatrelar dos exotismos e padrões literários importados, para então se fixar no pilar da nacionalidade primordial resgatada – a regionalidade existente no Brasil. Com o propósito maior de divulgar ideários de uma nova época, para assim legitimar um novo estilo literário, os manifestos serão encarados como revolucionários para os padrões e desta forma, inevitavelmente sofreram resistência, fato natural posto frente a frente o tradicional e o novo. Porém, entre os manifestos da geração de 22 a força e a gana de defender seus ideais farão a geração superar o considerado passadista e então traçar os novos parâmetros e se configurar na realidade literária e histórica brasileira. O movimento Pau Brasil, que surge a partir do manifesto da Poesia Pau Brasil publicado em 18 de março de 1924, no Correio da Manhã, liderado por Oswald de Andrade, buscava uma tomada de posição primitivista e assim introduzir a problemática do nacionalismo, almejava-se uma poesia construída ingenuamente, de “descoberta” da terra brasileira: “A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança. (...) Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.” (TELES, 2002, p.203- 208) O manifesto da Poesia Pau Brasil de um lado propõe o desapego com a tradição poética vigente, realizando o ataque à poética parnasiana, visto que a última reflete toda uma tradição importada. Por outro lado, sugestiona novas estruturas poéticas com o objetivo de recuperar a base primordial da nacionalidade e assim estruturar uma nova tradição supostamente mais autêntica. Desta forma o Pau Brasil “articula a relação ruptura/integração na relação poesia de importação/poesia de exportação.” (SILVA, 1998, p.45) O manifesto referido expõe elementos que sintetizariam o produto natural da brasilidade, fazendo isso se confronta com a perspectiva da tradição importada: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.” (TELES, 2002, p. 203-208) Partindo do pressuposto que o mencionado “azul cabralino” é a representação da tradição importada, o autor faz uma longa e detalhada enumeração de acontecimentos que são definidos por ele como “fatos estéticos” que coexistiriam na realidade cultural do Brasil conjuntamente com a tradição sobreposta ainda que ela os negasse.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau- Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. 21 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho. A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária. (TELES, 2002, p. 203-208)

Realiza-se a contraposição de elementos propostos pelo pau-brasil com os da tradição vigente, com o intento de alardear que a poesia brasileira estava se desatrelando das amarras literárias de outrora, inclusive quanto aos aspectos linguísticos de escrita e oralidade, para imprimir em si a perspectiva livre da brasilidade primordial e da liberdade literária.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau- Brasil, ágil e cândida. Como uma criança. [...] A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. (TELES, 2002, p.203-208)

Oswald com o seu manifesto da Poesia Pau Brasil, pretendia, além de definir novos princípios para a poesia, também realizar uma revisão cultural do Brasil, através da valorização do elemento nativo, como o negro e o índio, sendo que o último representava o componente autóctone e primitivo autêntico, pois fazia parte do cotidiano brasileiro. Na afirmação de Maria Eugênia Boaventura: “E como se tratava de um toque de reunir contra a poesia de importação, Oswald apelara para o totem vegetal, nosso primeiro produto exportado.” (BOAVENTURA, 2002, p. 169) Utilizando-se de uma prosa poética que faz uso de frases curtas, o manifesto Pau Brasil se esforça para resolver a questão da dependência cultural, formulada tradicionalmente pelo binômio nacional/cosmopolita, nas palavras de

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BOAVENTURA (2002, p.26) “propunha a deglutição crítica do legado universal prenunciando assim o antropofagismo.”

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época. O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito. O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil (TELES, 2002, p. 203-208)

Surgindo para confrontar os ideais que Oswald propunha para o Modernismo com seus manifestos: da Poesia Pau Brasil e Antropofágico, o grupo intitulado verde-amarelista publicou em 17 de maio de 1929, no Correio Paulistano, O Manifesto do Verde-Amarelismo, ou Nhengaçu Verde Amarelo, assinado por Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Alfredo Élis, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho, esses autores idealizaram uma cultura ultranacionalista. Almejando interpretar o Brasil, basearam-se em mitos, por vezes irreais e a brasilidade que intitularam “tupi” divergia da tomada de posição de Oswald por julgarem que os manifestos do último eram na verdade, de forma mascarada, uma atitude de inspiração francesa. No manifesto Nhengaçu Verde Amarelo se estabelece a rompimento tanto com as origens cabralinas quanto com os elementos que deixaram o lastro no Brasil de opressão e alienação no processo cultural, histórico e literário: “Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forçosamente tupi. Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação.” (TELES, 2002.p.203-208) É perceptível, portanto no manifesto do Verde-Amarelismo: “o processo de ruptura/integração” (SILVA, 1998, p.45). Uma vez que o termo “tapuia” é o termo utilizado no referido manifesto para mencionar todo e qualquer tipo de influência importada alienante, a qual desagregaria a nacionalidade original, nacionalidade

23 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 essa que corporifica a brasilidade, força integradora da nação brasileira, cunhada no manifesto pela denominação “tupi” que representa uma espécie de “renascimento indiano.”

Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade. [...] Foi o índio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as teorias. Criar um sistema em nome dele será substituir a nossa intuição americana e a nossa consciência de homens livres por uma mentalidade de análise e de generalização características dos povos já definidos e cristalizados. (TELES, 2002, p. 233-239)

Elegendo a anta (animal não-carnívoro) como símbolo: “Seu totem não é carnívoro: Anta. É este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.”. O grupo Verde Amarelo propunha em lugar de “comer o estrangeiro”, vê-lo como parte integrante da nossa identidade, exercendo desta forma claramente o contraponto ao manifesto antropofágico (1928) de autoria de Oswald de Andrade. O grupo Verde Amarelo em seu manifesto pauta-se no princípio de que o Brasil é um país multirracial e, portanto com vocação para receber imigrantes. Afirma-se que a nação brasileira é o produto dos agentes históricos que se somaram para compor a amálgama racial que possui hoje, diante dessa realidade. Afirmam que os brasileiros precisam aceitar esses fatores, pois eles são determinantes para compor a nacionalidade brasileira.

A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o holandês, o português, o índio, o francês, os rios, as montanhas, a mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e americana, os oito milhões de quilômetros quadrados… Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da idéia que dela formamos. Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a nenhum. [...] Somos um país de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade por motivos geográficos e econômicos demasiadamente sabidos (TELES, 2002, p.233-239).

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É importante salientar que, tanto o manifesto da Poesia Pau Brasil quanto o do Verde Amarelo, representaram diferentes posturas político-culturais existentes entre os grupos ligados ao Modernismo, porém possuíam o objetivo em comum de espelhar um caráter mais “científico” ou “filosófico” aos ideais de nacionalismo e brasilidade. Nessa época, segunda metade dos anos 20, O Brasil inteiro é sacudido por ideais modernistas que notadamente foram difundidos por manifestos, uns consideráveis números de publicações em vários centros do país ocorreram, congregando grupos e posições, que realizaram a rejeição de toda uma tradição importada em termos de linguagem e realidade, assim como agregaram a integração duma nova perspectiva de linguagem e realidade brasileiras. O Modernismo fora dos grandes centros, Rio de Janeiro e São Paulo, teve sua repercussão influenciada pela situação específica de cada região e de suas diferenças diante dos parâmetros modernistas. A consciência de existir tais diferenças foi o que, sem dúvida, fomentou as peculiaridades que foram atribuídas ao movimento nos outros estados do Brasil. Mesclando cânones consagrados pelos escritores de São Paulo e da então capital federal, com reivindicações e questões ligadas à sua região, formação e indagações político-culturais específicas (que em muitos casos remontavam há muito tempo antes), o Modernismo nos outros estados caracterizou-se justamente por sua relativa heterogeneidade. Em muitos casos, podemos observar uma forma diferente de nacionalismo cultural, muito apegada ao regionalismo, que mostra como esses movimentos não romperam, mas sim rearticularam algumas das posturas regionalistas pré-modernistas (ALAMBERT, 2002, p. 78). Concernente ao que Alambert afirma acima verificamos o ponto de encontro na literatura que se vai realizar no Pará, especificamente, nesse ponto de nossa análise, que é centrado em perceber a realidade lítero-histórica do Norte do Brasil inserida no Modernismo e consolidada por meio dos manifesto À Geração que surge e Flaminaçu, ambos de autoria de Abguar Bastos, escritor paraense que realizou a reivindicação do direito à inclusão do Norte na cultura nacional.

MODERNISMO PARAENSE EM “A GERAÇÃO QUE SURGE” E O “MANIFESTO FLAMINAÇU”

... O que importa para o artista moderno é traduzir nossa época e a sua personalidade. O resto é literatura. (Rubens Borba de Morais)

Passados os primeiros prenúncios do espírito renovador, após a Semana de 1922, em fevereiro, no Sudeste, as concepções modernistas passam a se opor, são

25 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 cada vez mais notórias as divergências, conforme o exposto antes, grupos como o Pau-Brasil e o Verde-Amarelo possuem diferentes concepções do que de fato representaria a autenticidade brasileira. Com a disseminação dos ideais modernistas pelas diversas regiões do Brasil, ao longo da década de 1920, depois da Semana de Arte Moderna, desencadeou-se nos meios intelectualizados, especificamente, na intelectualidade paraense, um processo de organização e difusão da concepção modernista, porém com a preocupação analítica e crítica de se realizar “ajustes” estéticos em determinados pontos bases do movimento para definir e legitimar a realidade regional amazônica. No Pará, os grupos formados não divergem claramente, concentram-se e se reúnem para discutir, avaliar e projetar o ideário com o qual comungavam. Em torno da publicação de revistas, possuíam um meio eficaz de divulgação das novas idéias literárias. A contribuição de tais revistas é que possibilita a reconstrução de um panorama do contexto político, econômico e literário da época. Entre estas revistas, podemos destacar: Guajarina e Belém Nova, como extremamente representativas por traçarem com destaque os rumos iniciais e os problemas enfrentados pelos escritores locais, em relação à movimentação modernista no Pará em sintonia com a fase inicial do Modernismo brasileiro. Seguindo o mesmo formato, a Revista de Cultura do Pará, em suas edições 10 e 11, datadas de janeiro/junho de 1973 estampa um artigo de Joaquim Inojosa que tem o seguinte título: O Movimento Modernista no Norte. O artigo, ao comentar o ideário modernista na região, glorifica o papel da revista Belém Nova e afirma que em torno dela se reuniam os novos no Pará. Inojosa revela ainda que as primeiras idéias modernistas chegaram ao Pará pelo Recife e não pelo Sul:

Em torno da revista “Belém Nova”, iria aglutinar-se a falange dos novos no Pará, em princípio com algumas concessões ao passadismo, depois com colorido agressivo. Chegaram-lhe as notícias dos arreganhos paulistas através de Pernambuco, e não certamente pelo discurso de Graça Aranha, pois ali, desde 1922, começara o movimento em tons iconoclastas. [...] Pode-se indicar “Belém Nova” como o clarim dessa anunciação, uma espécie de “Klaxon” paraense, embora não se houvesse exibido como uma revista modernista no seu início ao contrário de “Klaxon”, em São Paulo, “ Mauricéia”, no Recife, “ Estética”, no Rio, ou “ A Revista”, de Belo Horizonte, criadas com o propósito inicial de divulgar o modernismo. Entretanto, ela se tornaria, meses depois o órgão oficial, não mais dos “ansiados”, porém dos “ Vândalos do Apocalipse”. Teremos de estabelecer, cronologicamente, Belém do Pará, como tendo sido a terceira capital do Brasil, excluído o Rio de Janeiro, a penetrar na campanha do modernismo paulista, cabendo a Belo Horizonte, pelo grupo

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Carlos Drummond de Andrade, em 1925, um 4° lugar (INOJOSA, 1973, p. 142, 144)

Na revista citada acima por Inojosa Belém Nova, atesta-se uma grande recepção do movimento literário modernista nacional. Essa revista paraense teve circulação quinzenal, por quase seis anos, precisamente de 15 de setembro de 1923 a 15 de abril de 1929. Nas páginas dela era expressiva a publicação de reportagens locais, ensaios literários, poesias, crônicas, contos e novelas, além de anúncios diversos de interesse público, que iam de viagens de navios para a Europa até os anúncios de pontos culturais da cidade de Belém do século XIX, que eram bastante freqüentados pela elite local. A literatura em Belém é movimentada, na década de 1920, liderando a revista Belém Nova, Bruno de Menezes, conjuntamente com outros escritores e poetas, fazem publicar nas páginas desse periódico textos com idéias que representavam a nova estética que estava em ebulição no sudeste do país. Para os autores locais, esses textos foram de suma importância para que os mesmos realizassem a compreensão necessária do momento literário, cultural, artístico e político de então no que diz respeito ao Modernismo. Os literatos paraenses inevitavelmente foram influenciados pela revista paulista Klaxon (como atestou Inojosa anteriormente) essa revista almejou divulgar os ideais de renovação estética, literária e cultural. “A revista Klaxon, publicada em São Paulo, foi o primeiro esforço concreto do grupo (Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Rubens de Morais, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira) de sistematizar os ideais estéticos ainda confusamente misturados nas noites barulhentas do Teatro Municipal” (BOSI, 19993, p. 386). Klaxon que teve vida curtíssima, de maio de 1922 a janeiro de 1923, ainda sim serviu como inspiração em um primeiro momento aos literatos locais para lançar Belém Nova. Perceberemos mais adiante, com a análise de dois manifestos: “À Geração que surge” e “Flaminaçu”, ambos de Abguar Bastos, publicados na revista modernista paraense Belém Nova, que a atitude do movimento literário local baseava se em receber e ampliar o ideal de renovação estético nacional, visto que o movimento atual dos literatos paraenses manifestava a preocupação com o regional e o nacional, plenamente conscientes que o “eixo Sul” do país “irradiava novidade” e “ignorava” a “literatura do Norte.” (FIGUEIREDO, 2001, p. 193). A propósito apontamos como principais características da primeira fase modernista as seguintes: acentuada inspiração nacionalista, maior aproximação entre a língua falada e a escrita, valorização do coloquial e do prosaico, liberdade de criação e a conquista do verso livre. (CANDIDO, 1979) Na revista Belém Nova de número 5, em 10 de outubro de 1923 é publicado o manifesto À Geração que surge! de Abguar Bastos. É perceptível no texto pelo tom declamatório, a agitação e efervescência cultural vivida na época, típica do clima da

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“fase heróica” do Modernismo. De forma inflamada o autor aclama em um determinado trecho “o Sul propositadamente, se esquece de nós”. Vejamos abaixo o texto completo do manifesto.

À Geração Que Surge

Mocidade: É chegada para o Norte brasileiro a hora extraordinária de seu levantamento. Ergamo-nos! Seja o Pará o baluarte da liberdade nortista! Cangloremos trompas de ouro para o rebate da ressurreição!Cangloremos! O Sul, propositadamente, se esquece de nós. A Literatura equatorial é uma história de mitologia que se anda a contar nos corredores da Academia Brasileira. O Norte tem poder, tem força, tem filhos guerreiros e filhos altruístas! O Norte tem os seus gênios, os seus estetas, os seus cientistas, os seus filósofos! O Norte é dinâmica! É temperamento! É vibração! É intelectualidade! Ergamo-nos! Criemos a Academia Brasileira do Norte! Façamos os nossos imortais; coroemos os nossos príncipes de Arte; Estabeleçamos concorrência; analisemos os valores! Publiquem-se os livros! Movimentemos as estantes. Que Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Maranhão e Amazonas, se unam, se fraternizem para o apoio da nossa Renascença! Que o intercâmbio entre esses Estados seja um fato Nacional! Mocidade! Tendes uma academia de Direito, uma academia onde o talento fez solidificação! Os mestres serão os Palinuros! Os mestres serão os sacerdotes! Os mestres serão os Medicis! O Norte precisa ser brasileiro! Unamo-nos! A união faz a Força! A Força faz a vontade! A vontade é o predomínio! Libertemo-nos! Mostremos aos anêmicos de iniciativa, de patriotismo, de atividade, que o Norte pode ter a sua literatura! Criemos a Academia Brasileira do Norte! Sagremos e imortalizemos! 28 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Façamos concursos interestaduais. Movimentemos as livrarias! Movimentemos os cenáculos! Cada Estado mostrará para a curiosidade de seus filhos, a efígie de seus patronos. Bahia mostrará Rui Barbosa! Pernambuco mostrará Joaquim Nabuco! Ceará mostrará José de Alencar! Maranhão, Gonçalves Dias. Pará e Amazonas, irmãos siameses, mostrarão, maravilhados e grandes, a História coletiva de seus Homens, homens de letras, homens de combate, homens de gênio! Reunamo-nos. Movimentem-se as sociedades, as escolas, as Academias! Exportemos as obras do estado do Norte. Exportemos! Finquemos as bases da nova Babilônia. A Academia será a nova Semiramis! Batalhemos! Sejamos japoneses no patriotismo! Façamos a literatura do Norte! As Academias do Norte! As Edições do Norte! O intercâmbio do Norte! Mocidade: Amazonas é nosso! Maranhão é nosso! Pernambuco é nosso! São nossos com os nossos ideais! Levantemo-no! ABGUAR BASTOS (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 290-292). In: Belém Nova, n°5, de 10.11.1923.

Observa-se no manifesto acima que, por meio de uma linguagem de estilo objetivo, com o predomínio de frases curtas e exclamativas, o texto alcança um tom vibrante e proclama a “hora extraordinária” de o “Norte” fazer o seu levante, de erguer-se, expandir-se no cenário literário “o Norte precisa ser brasileiro!” demonstrando o seu potencial a despeito de o sul ignorar a literatura realizada no Pará e por esse fato se tornar mais forte e ser resistência. No manifesto Á Geração que surge! é designado ao Pará o status de “baluarte da liberdade nortista”. Bastos manifesta seu apaixonado desejo de conferir ao Norte, no que concerne ao fazer literário, a notoriedade que lhe cabe, já que: “O Norte tem os seus gênios, os seus estetas, os seus cientistas, os seus filósofos! O Norte é dinâmica! É temperamento! É vibração! É intelectualidade!” (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 290-292). Em um dado momento do manifesto referido, Abguar Bastos declara a sua vontade de promover comunicação literária, integração entre os estados brasileiros, especificamente proximidade entre norte nordeste: 29 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

“Que Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Maranhão e Amazonas, se unam, se fraternizem para o apoio da nossa Renascença! (...) Bahia mostrará Rui Barbosa! Pernambuco mostrará Joaquim Nabuco! Ceará mostrará José de Alencar! Maranhão, Gonçalves Dias.” (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 290- 292).

Destacando um literato de cada um dos estados nordestinos e posteriormente dando ênfase ao “Pará e Amazonas” como sendo estados que concentrariam “a História coletiva de seus Homens, homens de letras, homens de combate, homens de gênio!”, Bastos na realidade quer explicitar que indiscutivelmente pelo potencial literário de cada um dos estados citados, os mesmos não podem mais ser ignorados pelo “eixo Sul”, desta forma então, por meio de palavras de ordem efusivas, visto que proclama que a “literatura equatorial” poderia se libertar do Sul delineia em relação ao fazer literário, resistência quanto à atividade intelectual. Em suma no manifesto À Geração que surge! podemos afirmar que as maiores contribuições efetuadas por Abguar Bastos são: a realização de sua primeira convocação à união dos nortistas em prol da renovação literária no norte e a reivindicação fervorosa de espaço, no movimento modernista. Elegendo o Pará como “baluarte da liberdade nortista”, declara ser o norte “intelectualidade” e assim capaz de programar mudança e renovação nos padrões literários paraenses, renovação essa que pode e deve ser feita pelos próprios literatos locais que devem, segundo as palavras de ordem de Bastos, programar “a hora extraordinária de seu levantamento” e dessa forma então por fim ao proposital esquecimento do norte pelos “anêmicos de iniciativa, de patriotismo, de atividade” ao que interpretamos fazer referência tanto aos literatos do Sul quanto os do Pará que ainda estavam arraigados aos padrões cosmopolitas. Convém ressaltarmos nesse ponto do trabalho, que o manifesto À Geração que surge, apesar de relevante para instaurar a aura de renovação e efervescência literária e cultural no âmbito local, não representa dentre os escritos de Abguar Bastos, o manifesto mais representativo da poética de renovação da arte no Norte. Esse papel o autor deixou ao encargo de seu outro manifesto Flaminaçu, que deflagra a tendência regionalista na estética modernista. Publicado na Revista Belém Nova de número 74, em 15 de setembro de 1927, o segundo manifesto de Bastos intitulado originalmente Flami-n’-assú, com o subtítulo Manifesto aos intelectuais paraenses assinala como característica peculiar nortista o fator regional. O texto propõe “o sonho extraordinário de liberdade literária” transposto para o Pará, conferindo assim ao manifesto ênfase à cultura regional valorizando as expressões nativas da língua materna, fato notório a começar pelo “título incisivo”. Segue abaixo o manifesto.

MANIFESTO AOS INTECTUAIS PARAENSES 30 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Não é um apelo de audácia nem de reclamo. É um apelo de necessidade e independência. Como há dois anos atrás, recorro ao meu dundunar de sapopema (22) oriunda – porque eu vos falo da ponta dum planalto amazônico, entre selvas, uiarás e estrelas. Sapopema é o clamor do viajeiro que se perdeu nas matas e apela; não é só isto, pode ser, também, o símbolo da voz da mocidade que teve comigo idêntica maqueira (23) d’oiro para um sonho extraordinário de liberdade literária. Ride ó vós que não atinardes com as minhas palavras, ride- vos, à socapa escondidos nos cipós das intrigas como curupiras de casaca a assoviar feitiços atrás das encruzilhadas. Ride Eu terei a serenidade dos morubixabas heróicos e sorrirei, também, da vossa agonia em me não compreender. OUVI Primeiramente vós, poetas e prosadores divinos da minha geração, depois de vós, prosadores e poetas, apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras – das vossas escaladas às cordilheiras da Ilusão. Àqueles a minha voz vai confiada. A estes ela se intimida. Àqueles ela se recolhe como um zangão à sua colméia. A estes ela recalcitra. Não que os receie no choque, mas, de fato, porque eles não procurarão, sem esforços dolorosos, metê-las em suas sacolas de Arte. Assunto-vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento, cara à cara à que se inicia no sul com esta pele genuína: “Pau-brasil”. Oiço, rascantes, os agudos de serrotão das gargalhadas puristas. E oponho-lhes, seguro, esta verdade: nem um dos garimpeiros desse bando, correu à briga, sem ter uma bagagem de vulto onde toda a gente meteu a mão e trouxe pepitas faiscantes. Eles correram, escoteiros, todas as escolas, acordando, maravilhosos, o ritmo do universo, com a mais intuitiva segurança. E venceram. E glorificaram-se. E entenderam, por fim, que nem uma delas era verdadeira para o espírito nacional. Rasgaram, pois, as redes do passadismo e deixaram passar a piracema da mais alta expressão da independência emocional. Houve balbúrdia, como em chinfrin de tosca, à-toa, mirabolante até, num grande revoar de papagaios arrepiados, papagaios teratológicos, porque tinham dentes de ouro no bico e poleiros de jacarandá. Apesar disso, noto, inflexível, que o repiquete “pau-brasil” ainda não é o próprio volume da nacionalidade.

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Daí a minha idéia com um título incisivo – FLAMI-N’-ASSÚ. É a grande chama, indolatina, daquilo em que eu penso poderem apoiar-se as gerações presente e porvindoiras. FLAMI-N’-ASSÚ é a mais sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações étnicas; exalta a flora e a fauna exclusiva ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem os sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma, a “flor de lótus” pelo “amor dos homens”. Arranca, dos rios as maravilhas ictiológicas; exclui o tédio e dá de tacape, na testa do romantismo; virtualiza o Amor, a Beleza, a Força, a Alegria e o herpes das planícies e dos sertões, e as guerras de independência; canta ruidosa os nossos usos e costumes, dando lhes uma feição de elegância curiosa. E, assim, FLAMI-N’-ASSÚ marchará, selvas a dentro, montanhas acima, conservadora, patriótica, verde-amarela. FLAMI-N’-ASSÚ não é um estorvo aos grandes chamariz (sic) da civilização. Não! Ela admite as transformações evolutivas. O seu fim especialíssimo e intransigente é dar um calço de legenda à grandeza natural do Brasil, do seu povo, das suas possibilidades, da sua história. Entrego aos meus irmãos de Arte o êxito desta iniciativa, lembrando que o Norte precisa eufonizar na amplidão a sua voz poderosa! ABGUAR BASTOS (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 292-294).

Almejando criar um estilo literário que textualize “a índole nacional”, Bastos se utiliza de termos característicos da realidade amazônica, com isso possuí o propósito de excluir por completo qualquer “vestígio transoceânico”, fato que significava não estabelecer mais relações com o mundo europeu em prol de valorizar a cultura local, realizando isso, porém continuava historicamente atrelado ao laço romântico de origem importada européia, pois o ideário de “independência” era na verdade uma transposição do nacionalismo europeu desde o pré-romantismo. Dessa forma atesta-se, não um demérito no manifesto Flaminaçu de Bastos, porém o radicalismo de seu texto e a perpetuação de uma das contradições existentes na primeira fase modernista: a busca de autenticidade no fazer literário e o nacionalismo. Vejamos esse trecho que ilustra nossa constatação.

FLAMI-N’-ASSÚ é mais sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações

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étnicas; exalta a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem os sintomas brasílicos (...) (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 293).

O manifesto Flaminaçu de forma geral, irá se referir à transformação cultural ocorrida no Norte. É perceptível a busca perseverante de Bastos de configurar as particularidades de uma literatura nortista com ideais modernistas, exercendo a liberdade literária de exaltar as cores locais por meio de expressões de inspiração regionalista. Em realidade, os artifícios de linguagem que o autor lança mão para fundamentar o cenário nortista, tanto nos manifestos quanto posteriormente na narrativa Terra de Icamiaba, entendemos como parte de um projeto de valorização da cultura local, realizada por um grupo de literatos locais ligados ao movimento modernista, em sua primeira fase, que possuíam como característica comum em seus textos as marcas dessa nova tendência literária. Destacam-se entre esses, o grupo de paraenses poetas, escritores e intelectuais como: Paulo de Oliveira, Bruno de Menezes, Edgar de Souza Franco, De Campos Ribeiro, Clóvis Gusmão, Abguar Bastos, dentre outros. Este trecho do manifesto “FLAMI-N’-ASSÚ. É a grande chama, indolatina, daquilo em que eu penso poderem apoiar-se as gerações presentes e porvindoiras”, revela mais uma vez o intento modernista para o norte, merece relevo o detalhe do título de ser um termo indígena, cujo sentido é explicado no próprio documento, “a grande chama”. Mais ainda, “indo-latina”, do que se infere a abrangência da proposta: a de tomar como ponto de partida para a representação literária brasileira o cenário nortista. Ao utilizar palavras e expressões típicas do Norte, Bastos almeja imprimir em seu manifesto o diferencial léxico e semântico desta região e assim estabelecer referenciais nortistas. O termo “dundunar de sapopemas”, por exemplo, é esclarecido por Nunes Pereira em seu livro Moronguêtá, ao qual elucida que a “sapopema” são raízes chatas e triangulares vindas do tronco da árvore Sumaúma. Desta forma, com o emprego do termo referido, Bastos explora a metáfora do costume comum entre os indígenas, de bater no tronco desta grande árvore para favorecer a localização por outros membros do grupo. Fazendo isso o autor alegoricamente sugere o entendimento de que o grito da renovação foi deflagrado para que se efetive a renovação literária de fato e a literatura se desatrele das antigas formas e ideais passadistas. Bastos, ao afirmar em seu manifesto, “Não é um apelo de audácia nem de reclamo. É um apelo de necessidade e independência.” Enfatiza claramente sua ousadia de recorrer ao “dundunar de sapopema”, para reafirmar (posto que já afirmou em seu manifesto À Geração que surge) que o “Norte” possuía todos os atributos necessários à construção do Modernismo paraense. José Ildone, ao analisar o Flaminaçu, conseguiu captar com precisão o que Abguar Bastos pretendia exprimir. Conclui dessa forma o intento proposto no referido manifesto: “clara

33 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 intenção de influir na evolução literária regional, cujas bases, tão provincianas, continuavam bastante emperradas pelos puristas e passadistas, inertes ante as novas perspectivas artísticas, incapazes de estudar para modificar-se e lançar fora a máscara mortuária de uma literatura já superada” (ILDONE, 1990, p. 243). A afirmativa exposta há pouco pode ser ratificada pela seguinte passagem do manifesto: “Entrego aos meus irmãos de Arte o êxito desta iniciativa, lembrando que o Norte precisa eufonizar na amplidão a sua voz poderosa!” (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 294). Ao definir em um trecho do Flaminaçu: “Sapopema é o clamor do viajeiro que se perdeu nas matas e apela; não é só isto, pode ser, também, o símbolo da voz da mocidade que teve comigo idêntica maqueira d’oiro para um sonho extraordinário de liberdade literária.” (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 294). O autor externa metaforicamente o seu clamor de independência da literatura nortista, de revelação do Norte para o Brasil. É recorrente o uso do vocabulário característico de aspectos descritivos e identificadores da região, eles são fundamentais à proposta de reconhecimento dos valores temáticos do ambiente nortista. Expressões como “maqueira d’oiro”, “cipós da intriga”, “curupiras de casaca”, “morubixabas heróicos”, “poleiros de jacarandá” são expressões que conciliam vocábulos regionais com aqueles de uso comum em todo o contexto do Brasil. Há também o emprego daqueles de uso mais freqüente na região, como: “piracema”, “acapu”, “esteira”, “açaí”, “cuia”, “flecha”, “onça”, “garça”, “sumaúma”. Ressalta-se na composição do manifesto o uso de expressões de cunho ofensivo, crítico ou irônico. Estas são compostas por palavras de uso regional nortista, com profundidade metafórica, a exemplo as seguintes expressões: “apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras – das vossas escaladas às cordilheiras da Ilusão” É perceptível nesse trecho a referência aos passadistas. Mais adiante se encontra a menção aos modernistas e seu ideário de renovação metaforizado dessa forma: “rasgaram as redes do passadismo e deixaram passar a piracema.” (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 294). Esse último trecho, em específico, faz referência ao fato dos modernistas não se abalarem diante da descrença dos puristas, de que os primeiros, lançariam uma nova corrente estética e literária que preenchesse novos rumos na literatura brasileira com feições e traços tipicamente brasileiros, e não copiados de modelos exportados como fora outrora. Assim, é criada a imagem metafórica, na qual os modernistas teriam se libertado das ‘redes’, representação dos moldes fixos ao qual estariam presas a literatura brasileira até então, para, a partir daí, despontar a nova literatura com liberdade de criação e pronta para enfrentar sempre novos desafios, na busca incessante de percorrer seu itinerário guiado pelo instinto, tal qual a piracema.

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Galeria de arte de Belém Theodoro Braga: Fluxograma de símbolos nos difíceis dias humanos

Ilton Ribeiro dos Santos

Resumo: Este artigo aborda sobre a criação (1970) da Galeria de arte Theodoro Braga na cidade de Belém, sua importância como espaço deflagrador das transformações estéticas no meio das artes visuais. O texto traça um ligeiro panorama de diversas obras desenvolvidas por artistas locais, analisa a complexidade de interesses temáticos num cenário de transformações sociais e urbanas. As bases teóricas são os estudos sociologia fenomenológica de Fabio CASTRO (2011 & 2012) que procura entender que existe uma moderna tradição amazônica e que a mesma não é uma herança de um passado, como também não é uma recuperação de uma essência, mas, uma invenção do presente e no presente, e também é um sentir coletivo, um refluxo de intersubjetividade

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A década de 1970 é marcada, no que diz respeito às artes plásticas em Belém23, pelo encontro e confronto de duas gerações. A primeira são os remanescentes do Grupo do Utinga, famosos por suas andanças aos arredores da cidade (Belém). A segunda geração é formada pelos novos arquitetos saídos da Universidade Federal do Pará. Os primeiros ainda tinham o gosto de circundar a cidade na captação dos últimos fantasmas que perambulavam pelos prédios, janelas, becos, vidraças, sobrados, palacetes e pela mata saudosa, testemunhadora de uma bela época. Enquanto que os novos serão responsáveis em repensar as modificações da/na cidade, os caminhos entrecortados, a problemática dos materiais, a filosofia do precário e tantas outras tensões que apareceram num cenário complexo de transformações. Isto se confirma principalmente na XI Bienal, de 197124, em São Paulo, quando Branco de Melo e Valdir Sarubbi foram selecionados como representantes da região Norte; aquele construiu sua obra “Lumen” utilizando espelhos retalhados geometricamente e colados sobre uma superfície móvel, provocando no contemplador uma perturbação caleidoscópica e fragmentadora. Sarubbi redimensionou o potencial simbólico amazônico, construindo seu “Xumucuís” como novos intercruzamentos do imaginário artístico local, numa cidade renovada pelo barulho da chuva, e pelo ciclo das águas. É importante mencionar que no ano de 1970, por conta do boicote de alguns países na X Bienal em 1969, foi instituída a primeira Bienal Nacional, chamada Pré- Bienal (1970), organizada no intuito de selecionar uma representação brasileira para XI Bienal Internacional de São Paulo. Importante que se diga que com essa iniciativa se procurou ouvir todas as vozes artísticas das regiões brasileiras.

23 É bem verdade que esse encontro e confronto também são válido para a arte literária. Já se apontam rupturas nos ensaios sobre literatura do Poeta, ensaísta, tradutor, jornalista e crítico Mario Faustino (1930-1962), publicado no Suplemento dominical Poesia Experiência do Jornal do Brasil, na década de 1950 (IANELLI, 2016). Nas traduções e obra poética de Paulo Plínio Abreu (1921-1959). Nos ensaios filosóficos da arte de Benedito Nunes (1929-2011), além de outros. 24 A X Bienal de São Paulo, 1969, teve a participação de paraenses também. João de Jesus Paes Loureiro e Paulo Chaves. As obras eram poemas visuais. Isto é importante notar no sentido de entender a complexidade de uma época e de uma cidade no que diz respeito a percepção do fenômeno estético nas artes (visuais e literárias). 38 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Ainda sobre o boicote da X Bienal de São Paulo, as repercussões de várias irrupções dos militares atravancando expressões artísticas interpretadas por eles como imorais, trouxeram como consequência o boicote à Bienal Internacional de São Paulo, em 1969 (ZAGO, 2006). Segundo a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, “As razões para o boicote têm sua origem em violentos atos de censura, praticados desde a II Bienal da Bahia (dezembro de 1968), contra seus organizadores, incluindo a remoção de obras de arte da mostra e de exposições em Belo Horizonte e Ouro Preto. A atitude mais chocante foi o encerramento, pelo governo, da exposição dos artistas brasileiros selecionados para a Biennale des Jeunes (a ser levada a efeito em Paris), que se realizava no MAM no Rio, devido a certas obras de arte que comportavam o protesto, ou eram de natureza erótica”. (AMARAL, 1983, p. 155)

Naquele período, ditadura militar brasileira, diversos setores de atividade cultural e intelectual tiveram suas programações controladas. As atividades artísticas mais atingidas pela censura militar foram as músicas, os teatros e os cinemas. As artes plásticas, mesmo com um público mais restrito, também sofreram repressões diretas como o fechamento arbitrário de duas exposições: a II Bienal Nacional de Artes Plásticas, realizada em Salvador em 1968, e a mostra dos artistas brasileiros que representariam o Brasil na Bienal de Paris, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1969.

A Galeria Theodoro Braga (GTB) foi fundada em 1977, na ebulição de confluências de discussões estéticas25, localizada primeiramente numa portinhola aos fundos de um teatro de estilo neoclássico, foi posteriormente, em 1986 transferida para um novo espaço, localizado em baixo de uma escadaria, essa transferência sugere mais o aproveitamento de um local inutilizado do que a concepção de uma galeria de arte. Todavia, por ironia das circunstâncias, coube-lhe a metáfora do subterrâneo, das passagens, dos transeuntes que se movimentam por cima, pela frente, pelas laterais ou retaguarda, muitas vezes, sem percebê-la.

25 Os Salões de Arte da UFPA em 1963 e 1965; a I Cultural do Pará 1969, são exemplos de ações que promoveram além das mostras, discussões e debates sobre as novas tendências estéticas. 39 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

A GTB, tal como a década de 70, são marcações de paulatinas transições estéticas. Elas fazem parte de ciclos de discussões que trazem em seu bojo o cheiro da nova composição, mas também da decomposição, da recomposição e da interação de materiais simbólicos que começam a transitar na cidade. As transformações das ideias em Belém perpassam pela saudade do desconhecido, uma saudade angustiante, uma saudade cercada de fantasmas e espectros dos mortos. Desde o fim da suntuosa bela época, a cidade foi invadida por uma atmosfera mórbida, onde se movimentam assombrações que insistiram (ou talvez ainda insistam) em atormentar por várias gerações, trazendo a nostalgia de uma circunstância histórica que não conheceram (CASTRO, 2010). Libânia benzeu-se, se lembrando do que lhe falava a madrinha-mãe sobre os fantasmas de variolosos. Estes, alta noite, costumavam sair do Soledade e rondar o bairro, passeando em caleches, espiando, atrás das mangueiras, o trem do Curro passar, rouco e esfalfado, sangrando sobre os trilhos roídos. (...) E ia falando: - Quem passa perto da grade daquele cemitério, aquela mão lá de dentro tira o chapéu da pessoa. Uma vez, me cutucou no cabelo. (JURANDIR, 2004, pp. 130 e 131) O escritor Dalcídio Jurandir, em seu romance Belém do Grão-Pará (2004)26 registra na cidade as andanças de alguns fantasmas atemorizando os transeuntes da modernidade. Esses fantasmas podem ser interpretados como metáfora das lembranças de uma época, em que muitos moradores do local não conseguem abandonar para viver as novas etapas históricas (inclusive estéticas) abertas no horizonte da história. Entre os 13 artistas que apresentaram seus trabalhos na exposição inaugural da GTB, ainda havia muitos temas voltados para a cidade, ainda havia uma saudade de época, saudade do desconhecido, um peso melancólico. Mas, não se pode negar que também se manifestavam o curso de novas ideias e novos artistas sinalizando um tempo de mudança. Artistas como Osmar Pinheiro, Dina Oliveira, ou até mesmo Ruy Meira, eram portadores dos novos fluxos estéticos, detonadores dos modelos persistentes, destruidores do antigo, antigo como o que se quer, como verdade embalsamada (PINHEIRO, 2009).

26 Romance publicado em 1960. 40 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Ao longo desses mais de trinta e cinco anos de GTB muitas ideias se sedimentaram, sentidos que se formaram por meio de processos diversificados, fundiram-se e multiplicaram-se em novas propostas estéticas. Entre essas novas interações não se poderia esquecer as atuações do Salão Arte Paixão (1987-1991), que sinalizará e firmará novos indícios poéticos. O “Raioqueoparta” (1989), de Branco, Nando Lima, Tadeu Lobato e Nio, que se focalizam no caos urbano, mas se destacam, sobretudo, por apresentarem o primeiro artevideo no cenário artístico de Belém; “Visíveis” (1991), de Acácio Sobral, a primeira individual desse artista, na qual Sobral trabalha a materialidade dos restos, o plástico derretido em cores e formas, provocando uma variedade de pigmentos, solvidos de objetos quebrados. A ideia do solvente foi metafórica para uma época que ainda se atormentava com sua memória-urbana fantasmagórica; “Caixa de Pandora” (1993), de Cláudia Leão, Orlando Maneschy, Mariano Klautau e Flávia Mutran, que redirecionaram as imagens articuladas em fotolitos, espelhos, vidros gastos entre outros materiais, reveladores de novos impactos e vislumbres; “Blog” (2002), de Lúcia Gomes, que descasca a carne interna da GTB, provocando o caos nas linhas retas e seguras do reboco branco, importunando as certezas da regularidade e dos modelos firmados como verdades; “8 solos s/ Superfície” (2003), de João Cirilo, Neuton Chagas, Alan Soares, Claudio Assunção, Keila Sobral, Daniele Fonseca, Flávio Araújo e Daniely Meireles, repensa o solo como topografia dos encontros e desencontros do humano e do urbano, traduzindo esses movimentos em novos potenciais de linhas, de desenhos, de redesenhos, de deslocamentos de cores, de resignificação do corpo e da palavra. Uma coleta cuidadosa de novos diálogos auscultados nos sedimentos simbólicos intersubjetivos das cidades; “Mercado Livre das Almas em Delírios” (2005), de Paulo Pontes Souza, tem suas holográficas personagens espectrais encurraladas nos cantos das antigas cozinhas e/ou banheiros (espaço de se comer e execrar) dos sobrados. Para abandonar essas anotações abertas, cita-se a exposição “Hoximu” (1994), de Klinger de Carvalho, que coloca em cena a festa dos mortos. Após a morte de yanomami, seus objetos são destruídos, seu cão sacrificado, ninguém fala daquele que se foi, no entanto, todos desejam que seu espírito continue a animar a

41 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 terra. Mais tarde, depois de cremado, seus amigos consomem suas cinzas para absorver os dons e as forças. Livrar-se dos objetos de uma época morta, afugentar os fantasmas-modelos inabaláveis, talvez seja uma forma de livrar-se dos espectros que rondaram as práticas artísticas por várias décadas no século passado. Partindo disso, procurar entender que existe uma moderna tradição amazônica e que a mesma não é uma herança de um passado, não é uma recuperação de uma essência, mas, uma invenção do presente e no presente, e também é um sentir coletivo, um refluxo de intersubjetividade (CASTRO, 2011). A GTB, portanto, foi/e é um fluxo de ideias e formações, de encontros e diálogos. Tentar refleti-la é procurar compreender a dinâmica do pensamento artístico local, de como se processaram os encontros e confrontos com as emergências das atualizações estéticas, mas, sobretudo, provocar investigações na potência do material poético-filosófico sedimentado numa cidade amazônica – Belém.

Referências Bibliográficas

AMARAL, Aracy (org.), Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983. CASTRO, Fábio Fonseca. Entre o mito a fronteira. Belém: Labor Editorial, 2011. CASTRO, Fábio Fonseca. A Cidade Sebastiana. Era da borracha. Memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade. Belém: Edições do Autor, 2010. IANELLI, Mariana. O projeto poesia-experiência de Mário Faustino. Disponível em: Acesso: 01 de abril de 2016. JURANDIR. Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Belém: EDUFPA; Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 2004. – (Coleção Ciclo do Norte). PINHEIRO, Luizan. Cidade-obra: Instalação de um corpo sem orgãos. In: Interfaces: desejos e hibridações na arte. Martins, Bene; Vieira, Lia Braga; Maneschy, Orlando (Orgs). Belém: UFPA/ICA, 2009. A Província do Pará, quinta- feira,17 de março de 1977. Mostra paraense entrega Galeria Theodoro Braga. http://oitosolos.blogspot.com.br/ www.polichinello2004.blogger.com.br/2006_02_01_archive.html

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ZAGO. Renata Cristina de Oliveira Maia. As Bienais nacionais de São Paulo: 1970-76. 18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Transversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahia.

A história do futebol paraense, Paysandu e Remo: primeiras aproximações

Murilo Viégas Fernandes Alves Gabriel Pereira Paes Neto Iracildo Pereira Castro Ney Ferreira França

Resumo O presente estudo é oriundo de pesquisa referente ao trabalho de conclusão de curso da graduação em educação física na Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). Trata-se de um estudo inicial, pois pretendemos ampliar as possibilidades da pesquisa em questão. Nossa pesquisa busca responder a seguinte situação problema: quais os principais elementos da história do Paysandu e do Remo? Portanto, o objetivo geral foi analisar os principais elementos da história do Paysandu e do Remo. Os procedimentos técnicos utilizados foram revisão bibliográfica com base em livros, jornais, revistas e artigos científicos específicos referentes às abordagens de ensino da educação física, além dos autores que discutem o universo das abordagens de ensino e suas classificações.

Palavras-Chave: Futebol Paraense. Paysandu. Remo.

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Introdução O presente estudo é oriundo de pesquisa referente ao trabalho de conclusão de curso da graduação em educação física na Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). O tema em questão foi escolhido por sermos pesquisadores interessados em preservar a história do futebol paraense, inclusive dos dois maiores clubes, até então, do nosso futebol. Trata-se de um estudo inicial, pois pretendemos ampliar as possibilidades da pesquisa em questão. Nossa pesquisa busca responder a seguinte situação problema: quais os principais elementos da história do Paysandu e do Remo? Portanto, o objetivo geral foi analisar os principais elementos da história do Paysandu e do Remo. Os procedimentos técnicos utilizados foram revisão bibliográfica com base em livros, jornais, revistas e artigos científicos específicos referentes às abordagens de ensino da educação física, além dos autores que discutem o universo das abordagens de ensino e suas classificações. Realizamos uma pesquisa bibliográfica, com rigor científico para que não haja prejuízo dos resultados. Quanto à forma trata-se de uma abordagem de cunho qualitativo. Os procedimentos técnicos utilizados foram levantamento, organização e análise dos dados, processo dissertativo com base em livros e artigos científicos específicos referentes ao tema. Portanto, após a coleta de dados foi realizada a análise e interpretação dos mesmos, os quais constituem o centro da pesquisa. Segundo Gil (2002), a análise dos dados envolvem diferentes procedimentos, assim como, codificação das respostas e tabulação dos dados.

O futebol no Pará O futebol, tal como conhecemos hoje, nasceu na Inglaterra industrial e capitalista em 1863, e de lá foi exportado para o resto do mundo, inclusive para o Brasil. Quase 150 anos depois de sua criação, tornou-se o maior fenômeno de massas do mundo (...) quando foi criada a Football Association, em 1863, como parte da historia do processo de civilização, numa tentativa de “superação de barbárie”, ou seja, dos jogos anteriores, quase sem regras e quase sem limites para a ação física dos praticantes (MURAD, 2012 p. 65-67).

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Assim, o futebol pode ser entendido como consequência do processo civilizador, que impunha normas e disciplinas, em todos os âmbitos, e também como uma das contribuições a ele, já que regrou uma importante atividade lúdica, com impactos além do campo de jogo (ELIAS, 1897-1990 Apud MURAD, 2012). O futebol chegou ao Brasil em 1894, mais exatamente em São Paulo, trazido por Charles Müller, Brasileiro descendente de Ingleses. Tratava-se de um esporte de elite, para o lazer das mais altas camadas sociais. Era ainda um esporte amador, disputado pelos filhos das famílias ricas, todos brancos, cultos, elegantes e com duplo sobrenome (MURAD, 2012 p. 75). O futebol pode ter sido introduzido no Pará há precisamente há 111 anos, por volta de 1896. Um ano somente após ter chegado em São Paulo, assim como ocorreu em São Paulo, foi de grande importância a contribuição dada pelos Ingleses para que o futebol chegasse no Pará (COSTA, 2007, p. 13). Segundo o pesquisador Alves da Cunha, o futebol foi praticado pela primeira vez, no Pará, em 1892, pelos membros do clube de Esgryma, que realizavam os primeiros bate-bola no Largo de Nazaré, em frente à sede do Club, onde mais tarde foi instalado o Theatro Chalet, e, posteriormente funcionou o cinema moderno (COSTA, 2007 p. 13). Os jornais passaram a ter colunas exclusivas para as notícias sobre futebol e a 17 de dezembro de 1905 saiu no jornal “A Folha do Norte” a primeira escalação de uma equipe, obedecendo à língua inglesa; goal-keeper, full-backs, half-backs, foward (COSTA, 2007 p. 13-14). Os jogadores eram chamados de Sport-man. A primeira entidade fundada para dirigir o futebol no Pará denominava-se Parah foot-ball Association. Essa entidade pretendia colocar em prática calendário igual ao da Inglaterra (...) a disputa teve início, mas houve desavença e o torneio não chegou ao seu final. (...) dia 23 de maio de 1913, à rua da Indústria (atual rua Gaspar Viana) nº 12, no escritório do desportista T.H. White, foi fundada a Liga Paraense de Foot-Ball (COSTA, 2007 p. 14). O Pará foi o quarto estado do Brasil a organizar o futebol e colocar em disputa um campeonato (COSTA, 2007 p. 15); São Paulo (1902), Bahia (1905) e Rio de Janeiro (1906) foram os que antecederam o estado do Pará. O primeiro de futebol foi realizado no ano de 1908, e teve o extinto

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União Esportiva como campeão; somente cinco clubes disputaram aquele campeonato, além do União Esportiva, Aliança, Panther Club, Brazil Sport Club e Sport Club do Pará. O campeonato Paraense, por razões diversas, não foi disputado nos anos 1909, 1911, 1912, 1935 e 1946. Além do União Esportiva, Bi – Campeão (1908 e 1910), os outros Clubes que conquistaram o Campeonato, até 2015, foram Clube do Remo (44 vezes); (45); Tuna Luso Brasileira (10); Independente Atlético Clube (2011); Cametá Sport Club (2012). Sendo os dois últimos clubes do interior e superaram, respectivamente, Paysandu e Remo. O Campeonato Paraense de futebol passou a ser disputado profissionalmente a partir de 1945, tendo o Paysandu Sport Club como primeiro campeão da era profissional, mas o campeonato só ocorreu em 1947, pois o ano de 1946 foi basicamente para ser decidido por clubes e a Federação Paraense de Desportos – FPD como seria o campeonato e acertos de dívidas anteriores e cotas para Clubes e Federação (COSTA, 2007 p. 24-25). Independente e Cametá fizeram a primeira final de turno entre clubes do interior, no ano de 2011. O Independente conquistou o segundo turno do Campeonato sobre o Cametá, e depois venceu o Paysandu (que havia conquistado o primeiro turno, também sobre o Cametá) na grande final. O principal estádio Paraense é o “Mangueirão”, localizado no bairro do Benguí e com o atual nome de Estádio Olímpico jornalista Edgar Proença. O estádio foi inaugurado no ano 1978, com o nome de Alacid Nunes, ex-governador do estado (torcedor do Paysandu). O Clube do Remo conquistou o primeiro título do estádio, vencendo o Parazão daquele ano. Seu maior público ocorreu no mês de Abril de 1979, por ocasião da estreia do craque ex-Seleção Brasileira “Dadá Maravilha” pelo Paysandu, contratado da Ponte Preta (SP) e estava com 33 anos de idade. Dario, o “Dadá Maravilha”, foi Campeão com o Brasil na Copa do Mundo de 1970. Sua estreia foi em um RE-PA, que atraiu ao Mangueirão mais de 64 mil pessoas e o placar foi de 1 a 1, com Dadá marcando para o Papão, enquanto que Bira marcou o gol do Leão. Em 2002 o Mangueirão passou por reformas e sua capacidade passou para 45.007 expectadores sentados e seu nome foi alterado para a nomenclatura atual. O jogo da reabertura foi um RE-PA, disputado na data 05/05/2002 que terminou em 2

46 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 a 2. O primeiro Clube a se sagrar campeão no “novo Mangueirão” foi o Paysandu, vencendo a Tuna Luso Brasileira por 3 a 0 e conquistando o Parazão de 2002 de forma invicta. O estádio recebeu seus maiores públicos após esta reforma em jogos do Paysandu Sport Club. Em 2002, na final da Copa dos Campeões, mais de 53 mil “Bicolores” foram ver a primeira partida da final contra o Cruzeiro Esporte Clube (MG), o Paysandu foi derrotado, mas no jogo da volta, em Fortaleza, conquistou o título. Em 2003, contra o Boca Juniors (ARG), 57.330 torcedores foram ver o último jogo do Paysandu na Taça Libertadores da América. A derrota por 4 a 2 (após vencer na Argentina por 1 a 0) no dia 15 de maio encerrou a estupenda participação do clube no maior campeonato de clubes da América (COSTA, 2010 p. 333). O Remo teve seus maiores públicos desde 2002 nos anos de 2009 e 2005. Em 2009, na partida contra o Clube de Regatas do Flamengo (RJ) pela Copa do Brasil, 43 mil pessoas viram in Loco a derrota azulina por 2 a 0. Já em 18/09/2005, 42.086 torcedores viram o Remo golear o Tocantinópolis (TO) por 4 a 1, e garantir vaga à fase seguinte. No primeiro jogo, o Remo havia perdido por 2 a 0. Depois o Remo eliminou Abaeté (PA), Nacional (AM) e ficou com o título do Campeonato Brasileiro Série ‘C’ de 2005, após um quadrangular contra América Futebol Clube (RN), Ipatinga (MG) e Novo Hamburgo (RS) (COSTA, 2007 p. 163-165). O tradicional confronto entre Paysandu Sport Club e Clube do Remo possui um século de historia, tendo sido disputado pela primeira vez em 14/06/1914, sendo a partida válida pelo Campeonato Paraense de futebol, no estádio da empresa Ferreira & Comandita, atual estádio Leônidas Sodré de Castro, a Curuzú, pertencente ao Paysandu Sport Club desde o mês de julho de 1918 (COSTA, 2010 p. 21). Não existe certeza de quem criou a sigla Re-Pa e nem quando, porém, em seu livro “Re x Pa – Rivalidade gloriosa” o autor Expedito Leal Ribeiro (2013, p. 59), defende a criação da sigla por uma inspiração de Moacir Calandrini, também conhecido como “Mestre Calá”.

A quem atribuir a estreia dessa sigla maior do futebol nortista e uma das mais conhecidas no Brasil? Há quem diga que teria 47 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

sido inspiração de Moacir Calandrini, o saudoso Mestre Calá, sem dúvida o cronista esportivo de maior empatia popular na mídia impressa Paraense (...) é verdade que, timidamente, sem ser usado como manchete de página, o RE-PA aparece sem maiores alardes nos jornais que circulavam naquele tempo (anos 1950 em diante). Meio escondido, aqui e ali, um título às vezes até grafado só com as primeiras letras em caixa alta (maiúsculas), o RE-PA funcionava como realce de um título ou subtítulo de alguma matéria (RIBEIRO, 2013 p. 59).

Apesar de toda esta rivalidade, repleta de histórias, e algumas estórias, ambos os clubes representam a cultura Paraense – para muitos, o RE-PA é a maior demonstração da cultura Paraense. Os estádios são separados por somente um quarteirão, na Av. Almirante Barroso; suas sedes sociais ficam localizadas na mesma rua, a Av. Nossa Senhora de Nazaré, no centro de Belém. O Clássico entre Clube do Remo x Paysandu Sport Club é o confronto que mais ocorreu no futebol mundial, disputado 734 vezes até a data de 25/03/2016, entre campeonatos regionais, nacionais, torneios festivos e amistosos, não só no Pará, como também no exterior, com jogos na Guiana Francesa e Suriname.

O Clube do Remo O Clube do Remo foi fundado em 05/02/1905, na época, com o nome de Grupo do Remo. Como o próprio nome diz, a instituição foi fundada para a prática do remo, ou regata, muito forte em Belém e no restante do Brasil no final do século XIX e início do século XX. Seu primeiro presidente foi Narciso Borges.

O nome surgido para o novo clube partiu de Raul Engelhard que estudara na Europa. Raul lembrou de um Clube europeu, o RowingClub,da Inglaterra e acabou convencendo os seus companheiros, sendo escolhida a denominação de Grupo do Remo (COSTA, 2007 p. 123).

O Remo, só trocou a nomenclatura de Grupo para Clube (na época Club, pois não havia tradução) no ano de 1911, quando passou a praticar o futebol. No princípio, eram os mesmos atletas que praticavam regata e futebol. O ano de 1911 também marcou a primeira conquista do clube no Campeonato Paraense de remo. O Club do Remo jogou seu primeiro campeonato de futebol somente em 1913 e sagrou-se campeão. 48 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

No cenário futebolístico estadual e regional, o Remo sempre se manteve como protagonista nas competições, dividindo os títulos do Campeonato Estadual com o seu grande Rival, Paysandu e a Tuna Luso Brasileira, que até a década de 1980, formou bons times e dificultou várias vezes para Paysandu e Remo. Na década de 1970, o Clube do Remo conquistou o Campeonato Paraense seis vezes, divididos em dois Tri - Campeonatos, de 1973 a 1975 e, 1977 a 1979. Além dos títulos, o Remo teve, na década de 70, seus maiores ídolos, seja no futebol ou em qualquer outra modalidade esportiva, em 110 anos de historia: Alcino, Dico, Rosemiro, Mesquita, Bira, Roberto (o “diabo loro”), Cuca, Neves, Dutra, Robilota, e os irmãos Aderson e Mego. Nas décadas de 70 e 90, além dos títulos, o Remo conseguiu ficar dezenas de jogos em sequência sem perder para o Paysandu, 33 partidas na década 1990, divididas em 21 vitorias e 12 empates, e o Penta - Campeonato no Paraense, de 1993 a 1997, o primeiro a conseguir tal feito na era profissional (iniciada em 1945). Até a primeira metade da primeira década dos anos 2000, o Leão azul, como também é conhecido o Clube do Remo, conseguiu bons resultados em âmbitos estadual e nacional, em especial nos anos 2004 e 2005. Em 2004, o Remo foi campeão 100% do “Parazão”, vencendo todos seus 14 jogos (sendo dois Re-Pa’s), sendo o primeiro clube da era profissional a conseguir tal feito. Já em 2005, o Remo conseguiu seu título mais importante no futebol, o Campeonato Brasileiro da Série ‘C’. Em 2005, a torcida Remista lotou o estádio Mangueirão em praticamente todos os jogos, resultando em uma média de mais de 30 mil torcedores por partida, colocando o Remo, como o Clube que mais levou torcedores ao estádio, em todas as divisões do campeonato nacional de futebol (atualmente são quatro, mas em 2005, eram três divisões), marcando sua torcida como “Fenômeno Azul”. Há até pouco tempo o Clube do Remo encontrava-se fora de competições nacionais – desde 2009. Além de ter ficado sem conquistar títulos de 2009 até 2014 e ter sofrido eliminações para times desconhecidos como Vila Aurora (ES) em 2010 e Mixto (MT) no ano de 2012, ambas, no estádio Olímpico jornalista Edgar Proença, popularmente conhecido como “Mangueirão”. Aliás, foi Proença que deu ao Remo sua alcunha mais conhecida, a de “Leão Azul”, em meados da década de

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40, do século XIX, após uma partida disputada no Baenão, contra a equipe do São Cristóvão (RJ).

A denominação de Leão Azul partiu do jornalista Edgar Proença, que era editor de esportes do extinto jornal “O Estado do Pará”. O time do São Cristóvão veio a Belém, precedido de um status de invencibilidade no de 1943 (...) O jornalista Edgar Proença, ufanista com a vitória de seu time, deu a seguinte manchete nas páginas do seu jornal: COMO UM LEÃO AZUL DE GARRAS ADUNCAS, O CLUBE DO REMO FOI A PRÓPRIA ALMA DA CIDADE. Foi uma vitória simbólica, após o que surgiria a denominação de Leão Azul, que se manteria incorporada à própria história do Clube. (...) Deste então, os torcedores remistas passaram a entoar seu refrão de guerra nos estádios: “leão! leão! leão!” (RIBEIRO, 2013 p. 53-54).

Na temporada de 2014, o Clube do Remo voltou a conquistar o Campeonato Paraense de futebol, fato que não ocorria há 06 anos. Um fato a se destacar desta temporada, foi a quantidade de Clássicos entre Remo e Paysandu, o RE-PA, as equipes se enfrentaram em 10 oportunidades, incluindo o Campeonato Paraense, decidindo os dois turnos e a . Em 2015, finalmente, o clube conseguiu o acesso para a série C do campeonato brasileiro.

Paysandu Sport Club O Paysandu Sport Club foi fundado em 02/02/1914, com o nome de Paysandu Foot-ball Club, na casa do esportista Hugo Manoel de Abreu Leão, que foi proclamado na fundação do clube como primeiro presidente do Paysandu. O Paysandu surgiu de uma divergência entre integrantes do Norte Clube, conhecido na época como Team-Negra (time negra) pelas cores do uniforme, e a Liga Paraense de Foot-Ball, ainda no ano de 1913. Pois os mesmos sentiram-se prejudicados na partida frente o Guarany, que terminou empatada, dando o título de Campeão Paraense ao Clube do Remo. Hugo Leão era jogador do Norte Clube e o que mais defendia a bandeira da fundação de um novo clube. Hugo chegou a receber convite dos atletas do Remo, mas de imediato recusou a ideia e exclamou sua famosa frase “Vou fundar um Clube para superar o Grupo do Remo!”. O Paysandu começou a disputar o

50 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 campeonato de imediato em 1914, e em seu primeiro ano competindo ficou com o vice-campeonato (COSTA, 2010 p. 11). O primeiro título de Campeão do Paysandu veio em 1920 e de forma invicta. Suíço era o principal jogador do time; até hoje, Antônio Barros Filho, o “Suíço” é o único jogador a ter sido convocado para a Seleção Brasileira atuando em um time Paraense, o fato ocorreu em 1921, mas o craque não pôde jogar na Seleção, pois faleceu jovem (23 anos) em 01/07/1922. Em seus 101 anos de historia, o Paysandu Sport Club ganhou fama nacional e internacional por suas vitórias “inesperadas” como a goleada de 3 a 0 sobre o Peñarol (URU), em 1965, no estádio da Curuzú, quando o time Uruguaio era atual Campeão mundial e Bi-Campeão da Taça Libertadores da América. A vitória de 1 a 0 sobre a seleção da Romênia, em 1968, também na Curuzú. A conquista do Campeonato Paraense de 1971, quando estava perdendo para o Remo por 2 a 0 e conseguiu reverter o placar para 3 a 2. A conquista da Copa dos Campeões do Brasil em 2002, eliminando clubes como Corinthians (SP) e Palmeiras (SP), além de vencer o Cruzeiro (MG) na final, em Fortaleza, capital do estado do Ceará. A mais famosa de todas, o triunfo de 1 a 0 sobre o Boca Juniors (ARG), no estádio La Bombonera, em Buenos Aires, pelas oitavas-de-final da Taça Libertadores da América de 2003. Após todas estas glórias, o Paysandu Sport Club foi rebaixado à segunda divisão do campeonato Nacional, e, na sequência para a terceira divisão. No ano de 2007, o Paysandu terminou o Campeonato Brasileiro da Série “C” (a terceira divisão) na 61º posição de 64 clubes, eliminado ainda na primeira fase com um empate e cinco derrotas. De 2008 até 2011, o Paysandu “morreu na beira da praia” afim de voltar à Série “B” nacional. O acesso veio em 2012 e o Paysandu avançou até a fase semifinal. Vale a pena ressaltar que uma grande quantidade de atletas oriundos das categorias de base do clube foi utilizada no decorrer do ano em todas as competições, com destaque para Yago Pikachu, Pablo, Djalma, Billy, Rafael Oliveira, Neto, Bartola e Paulo Rafael. Sendo os três primeiros ainda atletas do clube e de grande importância desde então. O Paysandu foi rebaixado novamente para a terceira divisão, mas, em 2014, ano de seu centenário, conseguiu voltar para a Série ‘B’, terminando a Série ‘C’

51 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 com o vice – campeonato, devido o critério de “gols fora de casa”. A decisão foi contra o Macaé (RJ), e no jogo no Rio de Janeiro, o placar foi 1 a 1; no Mangueirão, 3 a 3. Mas os Bicolores saíram aplaudidos por seus torcedores. O Paysandu, reconhecidamente por todos, teve, no geral, os melhores atletas de futebol no Pará. Paulo Benedito dos Santos Braga, o Quarentinha, além de ser o maior ídolo do Paysandu, é (reconhecido no ano 2000 por jornalistas esportivos) o maior jogador a ter atuado no Pará em todos os tempos, defendendo o Paysandu de 1955 a 1973, conquistando 12 Campeonatos Paraenses e marcando 86 gols pelo Clube. Por falar em gols, Bené, que veio do Vasco da Gama (RJ) em 1966, é o maior goleador do Pará, com 249 gols marcados jogando no Paysandu. Na temporada de 2015, na Copa do Brasil, o Paysandu eliminou na primeira fase o time chamado Águia Negra (MT) e na segunda fase, passou pelo ABC de Natal (RN), vencendo em Belém por 1 a 0 e na casa do adversário por 2 a 1, de virada. O time de Belém eliminou o E. C. Bahia na terceira fase, e nas oitavas de final foi eliminado pelo Fluminense F. C., que contava com Ronaldinho Gaúcho, Fred e Diego Cavalieri. A partida em Belém entre Paysandu x Fluminense foi assistida por 41 mil torcedores, sendo o maior público nos estádios Paraense neste ano. Está foi a melhor participação do Paysandu na Copa do Brasil e o mosaico feito pela torcida neste jogo foi reverenciado no mundo todo. Quanto a série B de 2015, o início do Campeonato Brasileiro foi conturbado e o Paysandu foi derrotado por Botafogo (RJ) e Bragantino (SP) devido erros escandalosos de arbitragem, favorecendo os clubes do sul/sudeste. A primeira vitória do Paysandu foi sobre o Ceará Sporting, por 2 a 1, no estádio Mangueirão. O Paysandu venceu o próprio Botafogo no Rio de Janeiro, por 3 a 2. O Paysandu terminou o Campeonato Brasileiro da Série B em 7º colocado, indo além das expectativas, comandado pelo técnico Dado Cavalcanti.

Considerações finais Nessas breves considerações, analisamos que nossa pesquisa se insere na perspectiva de preservar a história do futebol paraense, inclusive dos dois maiores clubes, até então, do nosso futebol. Todavia, trata-se de um estudo inicial, pois pretendemos ampliar as possibilidades da pesquisa em questão.

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Utilizamo-nos dos procedimentos técnicos de revisão bibliográfica com base em livros, jornais, revistas e artigos científicos específicos referentes às abordagens de ensino da educação física e com este estudo esperamos ter contribuído como ponto de partida para futuras investigações, pois muitas dúvidas ainda pairam sobre o futebol paraense, sobretudo Paysandu e Remo, e certamente muitas outras ainda virão. Analisamos que a história do nosso futebol e dos nossos clubes é repleta de histórias que precisam ser preservadas e registradas de forma coerente e precisa. É nesse desafio que nos inserimos como pesquisadores do esporte, da educação física e do futebol paraense em específico.

Referências

COSTA, Ferreira da. Almanaque do Papão/ Ferreira da Costa. – Belém: Gráfica Santo Antônio, 2010. 395 p.

COSTA, Ferreira da. A enciclopédia do futebol Paraense Belém: Halley Gráfica e Editora, 2007.

______. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

_____. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1999.

MURAD, Maurício. 1950- A violência no futebol/ Mauricio Murad. – São Paulo: Saraiva, 2012. 240 pp.: 19 cm. (Coleção Para Entender).

RIBEIRO, Expedito Leal. Re-Pa – Rivalidade Gloriosa/ Expedito Leal. – Belém: Meta Editorial & Propaganda Ltda., 2013. 204 p.

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Violência e esporte: rivalidade e confrontos entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo

Murilo Viégas Fernandes Alves Gabriel Pereira Paes Neto Iracildo Pereira Castro Ney Ferreira França

Resumo: Trata-se de investigação realizada com torcedores na cidade de Belém, estado do Pará. O estudo iniciou-se por uma revisão bibliográfica seguida de pesquisa de campo. Buscamos alcançar os seguintes objetivos: o objetivo geral foi analisar as determinações motivação da violência entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo. Assim, a pesquisa busca responder a seguinte situação problema: quais as determinações da violência entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo? Realizamos um breve resgate sobre a história dos dois clubes e do clássico entre as mesmas. Em seguida buscamos analisar como as torcidas organizadas se inserem na questão da violência nos estádios.

Palavras-Chave: Torcidas Organizadas. Violência. Futebol.

Introdução O tema em questão foi escolhido por ser recorrente nos campos de futebol do Brasil, e em particular na cidade de Belém. Sabemos que os estádios de futebol não são mais apenas um ambiente de diversão e lazer, fato que pode ser constatado por

54 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 meio de experiências pessoais, através da mídia local e de dados estatísticos. Verifica-se que a cada encontro entre Paysandu Sport Club e Clube do Remo, há uma grande movimentação dos torcedores na cidade, o que provoca um ambiente diferenciado, assim como alterações nos próprios torcedores, em termos do nível de agressividade. Nossa pesquisa busca responder a seguinte situação problema: quais as determinações da violência entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo? Portanto, o objetivo geral foi analisar as determinações motivação da violência entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo. Em relação à metodologia para realização deste trabalho, a pesquisa empregada foi à pesquisa de campo que “é desenvolvida por meio da observação direta das atividades do grupo estudado e de entrevistas com informantes para capturar suas explicações e interpretações do que ocorre no grupo” (GIL, 2002, p. 53). Segundo Gil (2002) a pesquisa de campo é desenvolvida no local onde ocorrem os fenômenos estudados. Assim, de acordo com o autor os resultados encontrados são mais fidedignos. Realizamos uma pesquisa de cunho qualitativo. Os procedimentos técnicos utilizados foram revisão bibliográfica com base em livros, jornais, revistas e artigos científicos específicos referentes às abordagens de ensino da educação física, além dos autores que discutem o universo das abordagens de ensino e suas classificações. O referencial teórico utilizado auxiliou a análise das entrevistas na pesquisa de campo, visando: “a investigação de um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto real, onde os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente percebidos” (Gil 2002, p. 54). Após a coleta de dados foi realizada a análise e interpretação dos mesmos, os quais constituem o centro da pesquisa. Segundo Gil (1999), a análise dos dados envolvem diferentes procedimentos, assim como, codificação das respostas e tabulação dos dados.

O futebol no Pará O futebol pode ter sido introduzido no Pará há 111 anos, por volta de 1896. Um ano somente após ter chegado a São Paulo, por Charles Müller. Assim como ocorreu em terras paulistanas, foi de grande importância à contribuição dada pelos

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Ingleses para que o futebol chegasse ao Pará e se popularizasse (COSTA, 2007, p. 13). Já segundo o pesquisador F. F. Alves da Cunha, o futebol foi praticado pela primeira vez, no Pará, em 1892, pelos membros do clube de Esgryma, que realizavam os primeiros jogos no Largo de Nazaré, em frente à sede do Club, onde mais tarde foi instalado o Theatro Chalet, e, posteriormente funcionou o cinema moderno (COSTA, 2007 p. 13). Nesse sentido, o Pará foi o quarto estado do Brasil a organizar o futebol e colocar em disputa um campeonato (COSTA, 2007 p. 15). São Paulo (1902), Bahia (1905) e Rio de Janeiro (1906) foram os que antecederam o estado do Pará. O tradicional confronto entre Paysandu Sport Club e Clube do Remo possui pouco menos de um século de historia, tendo sido disputado pela primeira vez em 14/06/1914, sendo a partida válida pelo Campeonato Paraense de futebol, no estádio da empresa Ferreira & Comandita, atual estádio Leônidas Sodré de Castro, a Curuzú, pertencente ao Paysandu Sport Club desde o mês de julho de 1918 (COSTA, 2010 p. 21). Não existe certeza de quem criou a sigla Re-Pa e nem quando, porém, em seu livro “Re x Pa – Rivalidade gloriosa” o autor Expedito Leal Ribeiro (2013, p. 59), defende a criação da sigla por uma inspiração de Moacir Calandrini, também conhecido como “Mestre Calá”. A quem atribuir a estreia dessa sigla maior do futebol nortista e uma das mais conhecidas no Brasil? Há quem diga que teria sido inspiração de Moacir Calandrini, o saudoso Mestre Calá, sem dúvida o cronista esportivo de maior empatia popular na mídia impressa Paraense (...) é verdade que, timidamente, sem ser usado como manchete de página, o RE-PA aparece sem maiores alardes nos jornais que circulavam naquele tempo (anos 1950 em diante). Meio escondido, aqui e ali, um título às vezes até grafado só com as primeiras letras em caixa alta (maiúsculas), o RE-PA funcionava como realce de um título ou subtítulo de alguma matéria (RIBEIRO, 2013 p. 59).

Atualmente, os dois clubes possuem cada um, mais de 2 milhões de torcedores espalhados por todo planeta, gerando boa receita financeira mensal, através da venda de produtos licenciados, ingressos para as partidas e mensalidades dos programas de Sócios-Torcedores. O Paysandu possui mais de 16 mil sócios,

56 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 enquanto o Remo está na faixa de 06 mil sócios, os valores variam de R$ 20,00 até R$ 120,00 dependendo do plano escolhido – o que gera mais de 250 mil reais de renda/mês para a dupla “RE-PA (caso todos sócios estejam adimplentes)”. Em termos de confrontos diretos no futebol, o Clube do Remo leva vantagem tendo até a data 14/06/2015 um total de 255 vitorias; o Paysandu Sport Club superou seu rival em 231 confrontos, porém, ao analisarmos a quantidade de títulos e de massa torcedora, o Paysandu Sport Club reverte o quadro, tendo um total de 49 títulos, sendo 45 estaduais, 01 regional e 03 nacionais (01 Copa dos Campeões do Brasil e 02 Campeonatos Brasileiros da Série ‘B’). O Clube do Remo soma 45 títulos, sendo 44 estaduais e 01 nacional. 247 partidas terminaram empatadas. Um fato muito lembrado pelos Bicolores é a goleada de 7 a 0 sobre o Remo em pleno Baenão (estádio Evandro Almeida, pertencente ao Remo). Tal fato ocorreu em 22/07/1945, em partida válida pelo Campeonato Paraense. Em meio à conquista do Pentacampeonato do “Esquadrão de Aço” (1942 a 1947), que dominou o futebol no Pará do fim da década de 30 e durante toda década de 40, conforme infere Costa (2010). Em contra partida, os simpatizantes do Clube do Remo, o Leão Azul Paraense, sempre que podem, relembram o tabu de 33 partidas consecutivas sem perder para o Paysandu. Tal feito ocorreu entre 1993 e 1997, período glorioso para o Remo. As 33 partidas foram divididas em 21 vitorias do Remo e 12 empates. Na década de 90 o Remo formou grandes times, lembrando os esquadrões da década de 70 (ressaltando que na década de 90 o Remo ficou 33 jogos sem perder para o Paysandu Sport Club), e conquistou os Campeonatos Paraenses de 1990, 1991, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1999. Apesar de toda esta rivalidade, repleta de histórias, e algumas estórias, ambos os clubes representam a cultura Paraense. Os estádios são separados por somente um quarteirão, na Av. Almirante Barroso, suas sedes sociais ficam localizadas na mesma rua, a Av. Nossa Senhora de Nazaré, no centro de Belém. Perante isto, o jornalista esportivo Paraense Expedito Leal Ribeiro (2013) afirma:

São duas grandes torcidas, dividindo a rivalidade em um imenso estado, e repercutindo seus feitos, conquistas e a sua própria historia pelo país. Tanto o Remo como o Paysandu

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(ou vice-versa) enchem de orgulho o vibrante torcedor Paraense, que sabe, sensatamente, que um time não existiria sem a grandeza de seu rival (p. 57).

O Clássico entre Clube do Remo x Paysandu Sport Club é o confronto que mais ocorreu no futebol mundial, disputado 734 vezes até a data de 25/03/2015, entre campeonatos regionais, nacionais, torneios festivos e amistosos, não só no Pará, como também no exterior, com jogos na Guiana Francesa e Suriname. Quarentinha (Paulo Benedito dos Santos Braga) do Paysandu Sport Club disputou 135 Clássicos durante os anos 1955 e 1973, sendo até hoje, o jogador que mais jogou tal partida. Hélio, também do Paysandu Sport Club, é o maior artilheiro do Clássico com 47 gols marcados, distribuídos ao longo da década de 1940 do século passado. O estádio Evandro Almeida, Baenão, foi o palco que mais recebeu jogos entre Papão e Leão.

Violência nos estádios do Pará - o caso do RE X PA e a realidade das torcidas organizadas em Belém

À medida que a população se manifesta eufórica, por outro lado o estado de ansiedade fica alterado, em virtude do que poderá acontecer durante a partida e na dinâmica fora das quatro linhas, visto que as “torcidas organizadas” se desafiam e se insultam, culminando com roubos e atos de vandalismo nos dias de jogos. A violência nos estádios de futebol tem sido uma grande preocupação das autoridades esportivas, policiais e da população em geral, uma vez que as ditas “torcidas organizadas” protagonizam atos de violência tanto dentro como fora dos estádios, sendo que muitos desses atos ocorrem em dias que não há o encontro dos chamados “RE-PA” e em eventos não futebolísticos, como é o caso das outras modalidades esportivas. Em virtude da violência, pouco a pouco o público começa a se ausentar dos campos de futebol, fato que dificulta a entrada de rendas para que as diretorias possam manter em dia suas folhas de pagamento, como se verifica nas punições impostas pelo Tribunal de Justiça Desportiva, obrigando os clubes a jogarem sem a presença de público.

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A violência que vivenciamos dentro e fora dos estádios, não está ligada exclusivamente a diferentes paixões clubistas. A falta de educação, informação e de oportunidade de emprego são fatos sociais que fazem com que, especialmente os jovens, agarrem-se a estas instituições, as Torcidas Organizadas, por elas estarem sempre na mídia. “(...) as práticas de violência mais sérias e que agridem a consciência são de caráter mais geral, são as que ocorrem entre torcidas organizadas, dentro de estádios e mais ainda fora deles” (MURAD, 2012 p. 10). O jornalista paraense Carlos Ferreira (2015) é incisivo ao afirmar que “a violência é um veneno para o esporte, assim como é para qualquer evento cultural”. Todavia, o fenômeno da violência no futebol é bem antigo, mas um fator aumentou ainda mais os riscos que envolvem uma partida. É unanime que o advento das organizadas trouxe novos contornos a essa violência e que as ações em grupo as têm levado a ser comparadas, constantemente, com gangues.

A violência no futebol é uma tradução da violência na sociedade de uma forma geral, a violência está presente em todos setores da sociedade. O futebol tem o componente da paixão e do comportamento de grupo; as pessoas agem pelo sentimento de força em grupo, é como se tem as gangues nas ruas, e o enfrentamento dá-se como oportunidade de mostrar força, chamar atenção (FERREIRA, 2015).

É possível verificar um grande número de faixas, camisas alusivas, bonés, bandeiras e diversos acessórios que se identificam como torcedores “organizados”, principalmente em dias de grandes clássicos, sendo, porém, as principais em destaque, pelo número de participantes e eventos promovidos são conhecidas como Terror Bicolor e Remoçada, sendo ambas extintas pela justiça e, ressuscitadas com novos nomes de Torcida Bicolor e Torcida Remista.

Pesquisa de campo: análises e discussões A pesquisa de campo iniciou com uma entrevista semiestruturada com indivíduos que frequentam os estádios de futebol, em especial, os clássicos entre Paysandu Sport Club X Clube do Remo. Assim, a violência no futebol e como ela afeta o futebol se configuram como o objeto de estudo e, como lócus o estádio

59 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 olímpico jornalista Edgar Proença, conhecido como “Mangueirão”. Os sujeitos são 12 torcedores escolhidos aleatoriamente. Para selecionarmos os entrevistados adotamos o seguinte critério: levamos em consideração a disponibilidade de tempo, interesse e envolvimento com a pesquisa por parte dos sujeitos. Entrevistamos doze sujeitos, na faixa etária de 20 e 60 anos, de ambos os sexos. Os sujeitos receberam nomes fictícios para resguardar a ética na pesquisa. De posse do registro das entrevistas, fizemos recortes que emergiram das falas e significações presentes no diálogo no momento das entrevistas. Quando perguntados sobre a relação das torcidas organizadas com o aumento da violência no futebol, todos responderam afirmativamente, como aparecem nos fragmentos das falas de dois dos sujeitos selecionados: José, 30 anos de idade, servidor público: “sem dúvidas, pois, com o sentimento de grupo, eles tomam mais força e partem pra cima dos inocentes, roubando a batendo nas pessoas de bem”. Já para Carlos, 20 anos, estudante: “acho que eles tornaram o futebol mais violento sim. Eles não têm educação em casa e se juntam só para ficarem cantando coisas ruins e roubando os torcedores em dias de jogos”. Outra questão levantada foi em relação se os entrevistados já deixaram de ir a uma partida de futebol por medo da violência. Todos responderam afirmativamente. Para Vinícius, 45 anos, torcedor comum: “Foi o tempo que podíamos ir aos estádios pra torcer tranquilamente. Hoje, em dia de jogo, mais parece dia de guerra entre torcidas. A violência corre solta, por isso não arrisco ir ao Estádio”. Para Sergio, 32 anos, torcedor comum: “Eles não são torcedores, são vagabundos, marginais que se infiltram nas torcidas pra promover violência e roubalheira. Como sair de casa com esses marginais soltos?” Já para Claudio, 35 anos, jornalista esportivo. “dificilmente vou a campo como torcedor, sem o amparo do microfone. Vou aos estádios para trabalhar, apenas, mas teria medo de ir, pois corremos o risco de atos violentos desse tipo de torcedor”. Em seguida perguntamos se caso tivessem sido vitima de violência, que comentassem: para José, 30 anos. “Vi muitos assaltos, e infelizmente também já fui roubado por alguns desses componentes de torcidas. Foi horrível, porque eles agem com agressividade física e verbal”. Para Érica, 19 anos: “já presenciei agressões,

60 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 mas graças a Deus, nunca sofri nenhuma, seja de “torcidas organizadas” ou em ações da polícia”. Com base nos relatos dos sujeitos, podemos inferir que a violência entre as torcidas organizadas de Paysandu Sport Club e Clube do Remo afasta o público dos estádios, visto que em suas falas foram objetivos em fazer declarações afirmativas, em torno desse fenômeno. É pertinente ressaltar que torcida organizada não é necessariamente sinônimo de vandalismo e espaço para delinquentes extravasarem seus desejos instintuais e selvagens, pois existem torcidas organizadas que não se enquadram nesse modelo, no qual se inserem remoçada e terror bicolor, como é o caso das torcidas Alma Celeste, do Paysandu e Camisa 33 do Clube do Remo, que são grupos de torcedores que “procuram agir no sentido de neutralizar os vândalos, chegando até mesmo a fazer parceiros com forças de segurança” (MURAD, 2012, p. 167). Para o mesmo autor, existe uma grave contradição quando se afirma que o futebol tem importância na cultura, no comportamento, na vida dos brasileiros, ao mesmo tempo que afasta a população dos campos de futebol (MURAD, 2012). Como é notório, os estádios, em todo Brasil, estão recebendo cada vez menos torcedores. Problemas como o precário transporte público, horários inadequados e fraca infraestrutura dentro das praças desportivas afastam o público. Atrelado a isto, a crescente violência que ronda o futebol, seja nos estádios ou nos arredores.

(...) a média de público no Campeonato Brasileiro de 2010 foi, em números redondos, de 15 mil espectadores. A título de comparação, e para mostrar como essa média é baixa, nos Estados Unidos, a média de público nos jogos de futebol – o soccer – não o americano – foi de 17 mil (MURAD, 2012).

Em 2009, a violência foi ratificada como principal causa da falta de público, de acordo com uma investigação do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), 68% dos torcedores apontaram a violência como causa principal da falta de público (MURAD, 2012). No Pará, também não é diferente, está cada vez mais raro Clássicos entre Paysandu Sport Club x Clube do Remo atraírem público superior à 40 mil espectadores, fato que até a primeira década do Século XXI era rotineiro. De acordo

61 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 com pesquisa em jornais e veículos midiáticos em geral, de 2010 até aqui, somente dois, de trinta e dois Clássicos disputados entre tais clubes, tiveram público superior a 40 mil pessoas, ambos no ano de 2013, em confrontos válidos pelo Campeonato Paraense. Diante de todo este cenário violento e hostil, o torcedor fica receoso em dirigir-se ao estádio, com medo de ser vítima de assaltos e arrastões ou até mesmo de perder sua vida, ou ficar deficiente por conta de um tiro de “bala perdida”. Muitos deixam de ir com a camisa de seu clube, ou qualquer acessório alusivo a ele, em especial os que vão andando aos clássicos ou enfrentam os transportes coletivos, por medo de sofrerem agressões das torcidas organizadas do rival, ou até mesmo, serem roubados por delinquentes em geral, às vezes, das torcidas pertencentes a seu clube. Essa violência acaba desequilibrando o quadro de policiais nas ruas. Em cada Clássico RExPA, no mínimo 900 policiais (civis e militares) são deslocados para o estádio Mangueirão e seus arredores, com isso, outras áreas ficam desguarnecidas, o que acaba por envolver toda sociedade Belenense, e região metropolitana, nesta questão da violência entre as chamadas “torcidas organizadas”, ratificando a necessidade de se solucionar o problema ou ao menos amenizá-lo, com prevenção e punição aos envolvidos. Sabe-se, entretanto, que diante da multidão de expectadores dos jogos nos estádios, as torcidas ditas organizadas são minoria, porém conseguem promover os atos mais agravantes de violência urbana. Enquanto torcedores, não lhes caberia esse papel, pois, como afirma Murad (2012):

São responsáveis pela carnavalização do espetáculo, com suas coreografias, cânticos e cores. Motivam os jogadores e ajudam no faturamento dos clubes, além de defenderem o nome deles, seus símbolos e muita de suas decisões, mesmo sem participar delas diretamente (p. 31).

Eis aí o papel do torcedor. Ao contrário do que promovem as organizadas, que são minoria, como infere o mesmo autor. Como é possível perceber, mesmo sendo minoria, continuam agindo dentro e fora dos estádios, num verdadeiro desafio aos poderes constituídos, promovendo pânico e desespero na sociedade e

62 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 torcedores comuns que ainda acreditam nos eventos esportivos como momento de lazer. Para o mesmo autor, existe uma grave contradição quando se afirma que o futebol tem importância na cultura, no comportamento, na vida dos brasileiros, ao mesmo tempo que afasta a população dos campos de futebol (MURAD, 2012). Entendo, diante do que foi exposto, que o futebol tem uma dimensão social muito grande, que vai além de uma partida disputada, pois em seu entorno estão todas as classes sociais, servindo dessa forma, o futebol, como recurso por meio do qual é possível fazer uma leitura do comportamento e das necessidades sociais. De acordo com os fragmentos das falas dos sujeitos e o que inferem os autores, a violência tem causas sociais que vão além dos confrontos das torcidas organizadas, mas, revelam as mazelas da sociedade advindas da instabilidade no emprego, confusões internas, falta de consciência social, cidadania, o descaso das autoridades e a desorganização pessoal de cada indivíduo.

Considerações finais A violência entre torcidas organizadas hoje não pode mais ser vista como uma questão somente do futebol. A violência entre as torcidas organizadas, em especial de Paysandu e Remo, hoje é antes de tudo, uma questão de segurança pública. Foi constatado na pesquisa que o êxodo dos estádios é uma realidade dentro do Estado do Pará, sendo que a violência, para os entrevistados, é a principal causa. Para Murad, tal ausência nos estádios, “fere importantes direitos constitucionais de cidadania, como o direito de ir e vir, o direito à segurança, ao lazer, ao esporte – direitos fundamentais” (2012, p. 24). Contudo, a violência tem causas sociais que vão além dos confrontos das torcidas organizadas, mas, revelam as mazelas sociais. Com este estudo e breves reflexões espero ter contribuído como ponto de partida para futuras investigações, pois muitas dúvidas ainda pairam sobre a violência entre as torcidas organizadas de Paysandu e Remo.

Referências

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Uma “cidade do Pará”27: classe e Cor Belém de 1778-1824

Shirley Maria Silva Nogueira28

Belém fora fundada em 1616. Localiza-se na embocadura do rio Guamá, na baía do Guajará, “distanciada cerca de 17 milhas do mar, sob 1º27’ de latitude sul e 48º30’” de longitude oeste de Greenwich (ADALBERTO, 2002, p.199). Estava dividida entre as freguesias29 da Sé e Santana da Campina. A Sé formou-se junto ao forte do Presépio, criado no momento da fundação da cidade, em frente à baía do Guajará. Nela se organizou a administração da capitania do Grão-Pará, que passaria a pertencer ao Estado do Maranhão em 1621. Somente em 1727 foi criada a freguesia de Santana da Campina. Os dois bairros eram separados pelo igarapé do

27 Belém era conhecida nas primeiras décadas do século XIX como “Cidade do Pará”. SPIX, John Baptist Von; MARTIUS, Carl Friedrich Fhilipp Von. “Estada na Cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará”. In: Viagem pelo Brasil (1817- 1820). Belo Horizonte/Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1981. 3 v..p.23

28 Doutora em história pela Universidade Federal da Bahia e Professor da Escola Superior Madre Celeste 29 Freguesia correspondia à área de jurisdição dos párocos, remetiam para a organização da administrativa da Igreja. Todavia, a administração civil guiou-se pela rede paroquial existente. Ver: SILVA, Ana Cristina Nogueira da. “Tradição e reforma na organização político-administrativa do espaço, Portugal, finais do século XVIII.” In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijí, Fapesp, 2003..p.302

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Piri, dando a impressão de serem duas cidades (VELOSO,1998,p 8-9). Belém tornou-se a sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão criado pelo Marquês de Pombal em 1751. A influência dessa cidade se estenderia as seguintes vilas: Abaetetuba, Bujaru, Capim, Igarapé-Miri, Moju, Vila de Beja, Vila de Conde, Acará, Barcarena, Benfica, São Domingos e Athayde.

Já a partir de 1820, os viajantes e cronistas informaram haver em Belém, 24.500 habitantes, enquanto Baena contou apenas 13.247 habitantes em 1825. De acordo com os números de Baena, a cidade teve um decréscimo 800 pessoas, passando a ter 12.400 indivíduos. A diminuição foi fruto das lutas pela Independência e as epidemias de Sarampo e Bexigas (BAENA, 1969 p.4,21; SPIX; MARTIUS, 1981, 25-26).

Como estava dividida socialmente essa população? Quem eram as classes privilegiadas? Quem eram os grupos subalternos? Somente pertencer à classe dominante garantia o controle do poder? A cor era determinante para assumir algum destaque nessa sociedade? Analisar a divisão de classes e cor é o objetivo desse artigo. A organização da sociedade em classe é uma opção nossa, pois partimos de uma analise materialista da história. Entendemos que a sociedade belemense está divida racialmente mesmo que não existisse ainda o racismo cientifico, pois a cor da pele somada as atribuições de status definia a posição social dos indivíduos.

Divisão de Classes em Belém

Os estudos mais recentes de Euda Veloso e Alanna Cardoso -- baseados no censo de 1778 -- ajudam no entendimento da sua complexidade. Souto e Veloso apontaram como principal indicador de riqueza, o número de escravos. Cardoso utilizou como base para abordar os padrões de posse escrava: “ausência de escravos, 1 a 3 escravos (plantel pequeno), 4 a 10 (plantel médio), 11 a 35 escravos (plantel grande) e mais de 35 (plantel muito grande)”. (CARDOSO, 2008, p.112). A partir do censo de 1778, Veloso identificou, cabeças de família de Belém com padrão de posse muito semelhantes aqueles identificados por Cardoso para sua análise sobre riqueza no Pará: os que possuíam de 0 a 3 escravos eram considerados pobres; 0 a 10 eram remediados (estavam entre os ricos e os pobres) e acima de 10 escravos

65 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 eram ricos ou os segundo mais ricos (denominados no censo como “de possibilidade inteira”). (VELOSO, 1998, p. 19, 23, 24). As referidas autoras afirmam que só o número de cativos não era o suficiente para determinar a riqueza na sociedade paraense no final do século XVIII. É necessário igualmente combinar cor, cargos, ofícios, sexo e o número de agregados (VELOZO, 1998, 18-27; CARDOSO, 2008, 112). Trata-se de critérios importantes para analisar as hierarquias sociais de Belém setecentista. Segundo Veloso, os principais homens ricos ou quase mais ricos possuíam cargos administrativos, patentes militares e constituíam o topo da hierarquia social da cidade de Belém. Os homens de posse correspondiam por 4,9% da população de Belém, que era de 10.070 habitantes em 1778.

O recenseamento definiu os mais ricos a partir da posse de mais de 10 escravos e uma quantidade expressiva de assoldadados e agregados, basicamente mercadores e latifundiários. Dos 21 ricos, dentre os cabeças de famílias de Belém, 11 deles possuíam emprego de oficiais das tropas auxiliares. Entre os segundo mais ricos, 20 eram auxiliares, exercendo cargos de alta patentes dentro do Exército. É dentre os cabeças de famílias de posses do Grão-Pará, que se pode observar melhor os critérios de ocupação de cargos. Entre eles estavam as famílias mais importantes do Pará. Esses dois grupos se perpetuaram por meio de laços econômicos selados e, muitas vezes, por laços familiares. Vamos encontrar algumas famílias que ainda comandavam e disputavam o poder na província, na década de vinte e trinta dos oitocentos. Formavam uma elite composta por proprietários fundiários, militares e comerciantes.

Apesar da valorização da classe mercantil, durante todo o período colonial, a “base da riqueza era a propriedade fundiária transmitida por herança e protegidas pela instituição do morgado” (CARDOSO, 2008, p.41, ACEVEDO MARIN, 1985, p. 155)30. Morgados eram terras de grandes proporções, e seus proprietários eram donatários ou nobres, de grosso trato, cuja preocupação era a manutenção indivisível da casa. Pelo regime do morgado somente o filho primogênito recebia a

30 Durante o governo Pombalino houve a valorização da classe mercantil, que passaram a ter direito a nobreza. Ver: Maria Luiza Tucci Carneiro. Preconceito Racial: Portugal e Brasil-Colônia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 66 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 herança, transformando os outros herdeiros em agregados. Segundo Soares, o morgado representava o monopólio da terra, dos escravos e agregados na medida em que: “imobilizava as tentativas de acesso a terra por parte dos parentes desfavorecidos, além de gerar uma aristocracia rural cada vez mais consolidada. Nesse sentido, a relação dos camponeses com a terra era determinada pela existência do baronato (SOARES, 2002, p. 33)” .

Dentre as famílias proprietárias dos morgados estavam os Chermont, Ayres, Moraes Bittancourt, Rozo Cardoso e Correa de Lacerda e Pombo. Os Chermont, por exemplo, eram de origem francesa e chegaram ao Pará junto com uma das comissões de demarcação, que vieram para o Grão-Pará entre 1750-1777. Os Ayres eram grandes proprietários de terras envolvidos com a produção de arroz. Já os Moraes Bittancourt eram de origem açoriana e estavam no Pará desde 1773, sendo donos de engenho e plantações de cacau. Por sua vez, os Rozo Cardoso encontravam-se no Pará desde o final do XVIII e eram proprietários de fazendas no Marajó; enquanto os Correa de Lacerda eram fazendeiros, possuindo mais de 36.000 cabeças de gado (ACEVEDO MARIN, 1985, 158-159).

Em 1819, sobre o desembargador Ouvidor do Pará, Joaquim Clemente da Silva Pombo, o governador Conde de Vila Flor diria:

Tinha quase 20 anos de serviço nesta cidade, em diferentes cargos portando-se sempre com zelo pelo bem Real Serviço, e inteireza, contribuindo com indígenas para a Conquista de Caiena, dando provas de bom Vassalo em públicas demonstrações e aparentosos festejos, sendo casado, e solidamente estabelecido com abundante bens móveis e de raiz, que lhe constituem uma das primeiras, e mais poderosas casas desta Província, e tratando-se sempre com grande decência e a Lei da Nobreza e por ser Professo da Ordem de Cristo (APEP, Códice 716 apud BARATA, 1975, p.39).

Joaquim Pombo possuía todos os requisitos para ser membro da elite colonial: tinha riqueza para ostentar, vivia conforme a Lei da Nobreza e, 67 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 principalmente, havia recebido mercês, como seus cargos no governo e o hábito da Ordem de Cristo. Em 1830, O filho de Joaquim C. S Pombo era o primeiro membro da nobreza paraense “sob a denominação de Barão de Jaguarari” (ACEVEDO MARIN, 1985 p.158). Muitos dos membros dessas famílias eram militares, mas havia os que – não fazendo parte das famílias já citadas - fizeram fortuna com postos militares adquiridos durante campanhas militares, como o caso do marechal Manuel Marque de Elvas Portugal, que adquiriu seu posto com a conquista de Caiena, o Major Gaspar Leitão da Cunha, o major Antônio Ladislau Monteiro Baena. A fortuna desses militares não vinha do soldo, mas do poder oriundos de seus cargos. Acevedo Marin menciona as riquezas adquiridas por militares com espólios oriundo de ações bélicas, e ainda cita que no caso específico do Pará, Manuel Marques obteve fortuna com a divisão das presas de guerra da tomada de Caiena, além dos comandantes militares utilizarem em benefício próprio a mão-de- obra indígena (ACEVEDO MARIN,1985, p.160).

Enfim, obter qualificação de nobreza era importante dentro da sociedade colonial, para perpetuar a ocupação no topo da pirâmide social. Assim, para se fazer parte desse grupo privilegiado, não bastava ter dinheiro, era necessário obter graças honoríficas, como foros de fidalgo da Casa Real, hábitos das ordens miliares, instituição dos morgados e ocupação de cargos públicos, como postos militares (SILVA, 2005, p. 132). 31 De acordo com Bourdieu, as classes dominantes estabelecem critérios de diferenciação entre eles e as demais classes por meio das hierarquias simbólicas. Essas hierarquias simbólicas caracterizam-se pelas marcas de distinção estabelecidas entre eles e as outras classes. A distinção ou sistemas

31 Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, narra com bom humor a montagem de uma genealogia nobre pelos antepassados de Brás Cubas: “O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro do ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós - dos avós que a minha família sempre confessou -, porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei Conde da Cunha ...... Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto de Damião, que o dito apelido lhe fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros . ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 18 68 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 expressivos consistem na busca de elementos de diferenciação, que separa uma classe da outra. Ela se caracteriza pelo estabelecimento de hábitos e atitudes próprios de um grupo no poder, que funcionam como sistema de inclusão e exclusão dos indivíduos de dentro dos grupos hegemônicos. Assim, os aspectos econômicos são transmutados em ações simbólicas, pois para ser membro das classes hegemônicas no Grão-Pará, era necessário não somente ter dinheiro, mas se comportar como os demais membros do grupo, ocupando cargos públicos, obtendo postos militares ou hábitos das ordens militares e ser branco (BOURDIEU, 1974, p.14-24).

Tal tipificação da elite colonial e pós-colonial e o seu padrão de riqueza podem ser generalizados até a primeira metade do XIX, pois, segundo Sarges, os comerciantes portugueses, proprietários escravistas, oficiais militares e altos funcionários da burocracia portuguesa foram substituídos pelos coronéis da borracha (donos de seringais), financistas, exportadores, depois da segunda metade do XIX (CARDOSO, 2008, p 33). A partir de 1820, com o desenvolvimento do comércio e a integração da economia mercantil, começou uma concorrência entre a riqueza monetária e a fundiária. Com o aumento do prestígio da classe mercantil, desenvolveram-se alianças matrimoniais entre ela e os proprietários fundiários. Foram estas famílias que se envolveram em disputas pelo poder durante o processo de Independência e no período regencial. Segundo Acevedo Marin, nas duas primeiras décadas do século XIX, houve uma concessão de sesmarias às famílias de linhagem inferior, como os Malcher, provocando uma disputa pelo poder entre esses novos proprietários e os antigos. Assim, “entre as mais novas e antigas famílias iria se desenvolver uma acirrada luta na época da Independência e nos anos posteriores” (ACEVEDO MARIN, 1985 p.159), que lutariam por terras e pelo controle da mão- de-obra. Essas disputas só foram contidas pela iminente possibilidade de mudança da estrutura social, provocadas pela atuação das classes oprimidas e marginalizadas (escravos, índios, pardos, cafuzos e mestiços).

Abaixo dos grupos mais ricos de Belém estavam “os remediados”, que se localizavam acima dos considerados pobres. Eram 12,5 % dos habitantes de Belém. Eram plantadores médios de cacau e cana, mas, diferentemente do grupo anterior,

69 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 trabalhavam geralmente com a plantação de mandioca e arroz, e possuíam em média não mais que 10 escravos. De acordo com Veloso, os pobres perfaziam o grosso da população de Belém, somando 82,6% dos moradores. Caracterizavam-se pela ausência quase total de profissões declaradas. Dos 1.124 considerados pobres pelo recenseador, 77,13% não tinham atividades. Muitos deles aparecem como soldados auxiliares e pagos, dos quais alguns declaravam profissão complementar, como sapateiro, canoeiro, carpinteiro, serralheiro, entalhador, ouvires, alfaiate, barbeiro, marceneiro, negociantes e escrivão das armas. Entre eles, o número de proprietários de escravos era pequeno - somente 235 - possuindo nunca mais que 3 escravos.

Divisão de Cor em Belém

As observações dos naturalistas Spix e Martius sobre a hierarquia pela qualidade dos indivíduos da cidade do Pará - como denominavam, nos permitiu pensar numa divisão racial para o Pará, em quatro grupos racialmente qualificados: brancos, mestiços, negros e índios. Spix e Martius declararam: Dessa parte da população, que com mais ou menos razão se denomina branca (e nessa designação ainda faz valer sua origem européia), estes estão mais próximos às famílias de origem mestiça, os cafuzos, na maioria misturada com sangue indígena vivem os mestiços na maioria espalhados pelos arredores das cidades e nas pequenas vilas ao norte da capital, na Ilha do Marajó e nas margens do rio Pará. Formam finalmente a classe mais baixa da população os negros e índios (grifo nosso) (SPIX; MARTIUS,1981 p.25- 26).

Os números do censo de 1778 estavam corretos a respeito da concentração da população branca na região de Belém. Essa região formava o núcleo populacional mais antigo do Grão-Pará e nela se instalaram as primeiras famílias de colonos e lavradores vindos de Portugal e dos Açores. Apesar da concentração nessas localidades, estavam espalhados por toda a capitania, mas em menor número do que os índios. Os brancos estariam no topo da hierarquia social. Todavia, os naturalistas colocavam em dúvida a qualificação desses homens como brancos, ao dizerem que

70 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 eles se denominavam “brancos com mais ou menos razão” (SPIX; MARTIUS,1981 p.25-26).

Os referidos naturalistas alemães, referindo-se aos colonos, provavelmente apoiavam-se na definição européia (homem branco) estabelecida por Carl Linné. De acordo com ela, o europeu “era claro, sanguineo, musculoso, cabelo louro, castanho ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto de vestes justas e governado por leis”. 32 Santos escreve sobre a quase inexistência de diferenças de traços físicos entre as crianças brancas, crioula, parda e claras descritas pelo funcionário da Santa Casa de Misericórdia na Bahia, durante o século XVIII e os primeiros anos do XIX. Essa ausência de oposição física, deixa claro, para o autor, a inscrição social da cor das crianças colocadas nas rodas dos expostos na Bahia dos setecentos e dos oitocentos. Em outras palavras, “o que fornece o tom da caracterização social são menos fenotípicos como o nariz que a cor inscrita no social (SANTOS, 2005, 134-137). Acredita na possibilidade da cor da criança ser definida pela condição social de seus pais. Apesar das crianças serem abandoandas, algumas traziam bilhetes indicativos dos seus prováveis pais (SANTOS, 2005, p.42). Kraay apresenta argumento semelhante ao de Santos ao lembrar que as qualidades atribuídas pelos recenseadores diziam mais sobre a organização social “do que sobre a população enumerada”. Segundo ele, no Exército, homens que tinham a brancura aceita pelo Exército, ingressavam na oficialidade e não tinham nenhum registro com informação racial sobre eles (KRAAY, 2002,p.22-23). Assim, o que os naturalistas não conseguiam compreender era que a cor era inscrita no social. Os mestiços foram colocados pelos alemães em uma qualidade intermediária entre brancos e negros e índios. Santos afirma que, durante o período colonial, os mestiços eram indivíduos oriundos da mistura entre pretos, brancos e índios ou

32 No momento da passagem de Spix e Martius pelo Brasil, o racismo científico não estava elaborado. Ele só se firmaria a partir das últimas décadas do século XIX, mas as adversidades físicas e naturais entre os seres humanos recebiam uma atenção sistemática dos cientistas naturais desde meados do XVII. Os estudos dos naturalistas resultaram no desenvolvimento de uma “série de tipologia baseadas em critérios fenotípicos”. Ver: STOLCKE, Verena. “Sexo está para gênero como raça para etnicidade”. Estudos Afro-Asiáticos, (20): 101-119, junho de 1991. p. 111. Sobre a classificação da raça humana do biólogo naturalista Carl Linné Ver: PRATT, Mary Loiuse. Os olhos do Império: relatos de viagens e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999. p. 68. 71 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 utilizado quando não se podia determinar a origem pelas misturas dos indivíduos. Contudo, Spix e Martius denominaram-nos de cafuzos. Para Santos, os cafuzos eram oriundos de negros com índios. Por sua vez, Baena escreveu que os cafuzos surgiram da união de pardos com índios (BAENA, 1969). De acordo com Viana, a qualificação de pardo podia significar desde a mixagem entre brancos, negros e índios a uma denominação dada aos filhos de africanos nascidos no Brasil (os crioulos), mesmo que não fossem mesclados (VIANA, 2007, p.86). Em 1842, o Príncipe da Prússia diria que, no Pará, entre os mestiços predominavam os cafuzos, “nos quais predomina o sangue índio, de negros e índios mansos, isto é, os habitantes primitivos que se fixaram entre a população branca” (ADALBERTO, 2002, p.213). Deste modo, pode-se afirmar que entre os mestiços, no Pará, predominavam os cafuzos, homens com características fortemente indígenas e negras, por isso mais escuros que os mamelucos. Diante de todas essas classificações sociais e étnicas no Grão-Pará surge, ainda sim, um questionamento: Por que os naturalistas alemães esqueceram de se referir aos mamelucos, mestiços de brancos com índios, que certamente estavam mais próximos dos brancos durante a segunda metade dos setecentos no Pará? Schwatrz estudou os processos de miscigenação da América portuguesa no período colonial. Para ele, há duas fases desse processo. A primeira é justamente marcada pela forte presença de índios vivendo com poucos europeus, surgindo da mistura destes com os mamelucos. A união de brancos e índios foi fortemente incentivada pela política portuguesa, durante toda a segunda metade do século XVIII, como uma forma de garantir o povoamento do Grão-Pará. Nesse período, não haveria grandes diferenças sociais entre os brancos e os mamelucos. Somente durante o século XVII e XVIII, com a progressiva fixação de europeus na América lusa, montar-se-ia uma divisão hierárquica social aos moldes da sociedade europeia, aumentando a diferenciação social entre ambos. Além disso, com a introdução dos negros, haveria a predominância da mestiçagem dos brancos com aqueles. Sendo que essa mixagem seria maior nas cidades costeiras e próximas aos engenhos, enquanto que os mamelucos teriam sua presença acentuada no centro-sul. A tendência, no entanto, seria a assimilação destes últimos pela população mestiça afro-portugueses. Pode-se acrescentar que no Estado do Grão-

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Pará, devido à grande presença de índios até finais do século XVIII, os mamelucos deveriam ser o contingente mais expressivo, além de não haver diferenças tão acentuadas com os europeus. Contudo, a partir de 1755, com a introdução dos escravos deve ter se processado uma mudança nessa configuração, pois já na década de 1820, o número de libertos era expressivo em Belém. (SALLES, 2004, p.33). Assim, quando os viajantes chegaram, observaram uma predominância do contingente dos homens livres de cor circulando pela cidade. Certamente essa mudança deu-se mais nas áreas onde a presença de escravos era maior, como na cidade de Belém. De acordo com Salles (2004), os libertos, em 1793, eram de 1.099 e perfaziam um total de 12,8% da população da cidade do Pará, somando 8.574 indivíduos. Em 1822, o contingente de libertos diminuiu um pouco, mas continuava significativo. Para essa data, Baena (1969) apresenta os dados da população de Belém, recenseando 12.471 habitantes nas duas freguesias da capital, havendo 1.109 libertos, que perfaziam 8,9% da população da capital. De acordo com Kidder (1980), em 1839, os descentes de africanos no Pará eram iguais aos de qualquer lugar do Brasil, mas aqui eram muito numerosos, apesar do predomínio dos indígenas.

Os “negros e indígenas” encontravam-se abaixo de todos os grupos sociais, na classificação de Spix e Martius. Nesse caso, negros eram os escravos crioulos e africanos. Os africanos estavam presentes desde o século XVII, chegando a 15.000, na segunda metade o século XVIII, trazidos pela Companhia do Comércio. Os números de escravos para Belém eram consideráveis. Segundo Gomes, no período de 1757-1780, entraram na cidade 18.679 cativos.

TABELA 2: ESCRAVOS AFRICANOS DESEMBAR- CADOS NA CIDADE DO PARÁ Período Quantidade 1757-1760 2.217 1761-1770 5.547 1772-1780 5.476 1781-1790 4.721

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1791-1800 718 1757-1780 18.679 Fonte: Gomes, 2005, p. 45

Ainda assim, o contingente africano, em Belém, não foi tão numeroso quanto o da cidade de São Luís, que recebeu 40.935 africanos para o mesmo período. Cabe ressaltar, no entanto, que no Pará estavam concentrados na comarca de Belém, principalmente na cidade e na região ao seu entorno (GOMES, 2005, 45; SALLES, 2004, 124-126). A despeito da expressiva entrada de africanos em Belém, indígenas representavam a principal mão-de-obra da cidade. Foram objeto de disputa entre missionários, colonos e Estado desde o século XVII, no Grão-Pará. Em 1820, Spix e Martius os encontraram executando trabalhos domésticos na maioria das casas de Belém. Eram carregadores, pescadores, marinheiros, remeiros e trabalhavam nos estaleiros sob a direção de brancos e mulatos (SPIX; MARTIUS, 1981 p.28). Spix e Martius constataram o fracasso dos projetos criados pelos estadistas portugueses para produzir a elevação social dos índios

Na verdade, para nos convencermos da fraqueza dos projetos humanos e das dificuldades que se opõe frequentemente aos mais justos empreendimentos, consideração alguma é mais acertada do que as inúmeras desgraças que pesam sobre o desenvolvimento da raça desses peles vermelhas. Nem os sentimentos cristãos dos reis nem a bem intencionada disposição dos estadistas, nem a proteção e o poder da Igreja puderam levantar os índios do Grão-Pará do estado selvagem em que foram encontrados, para o benefício da civilização e do bem estar cívico: como dantes, permanece essa raça rebaixada, sofredora, sem significação no conjunto dos outros, joguete dos interesses e da cobiça de particulares, um peso morto para a comunidade, que a má vontade o suporta (grifo nosso) (SPIX; MARTIUS,1981 p.29).

Podemos concluir que a sociedade de Belém no ultimo quartel do século XVIII e as primeiras duas décadas do século XIX é marcada pela divisão de classe e cor. Pertencer a classe dominante não era significava apenas ter dinheiro, mas se comportar como os demais membros do grupo, ocupando cargos públicos, obtendo

74 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 postos militares ou hábitos das ordens militares e ser branco. Os membros da classe subalterna eram representados pelos negros, libertos ou não, e índios. Tinham muita dificuldade de ocupar postos destacados no serviço público, nos postos militares somente ocupavam os cargos subalternos. Essa divisão rígida se acirraria e contribuiria para a revolta conhecida como Cabanagem (1835-1840). Referência ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. “Alianças Matrimoniais na Alta Sociedade Paraense no século XIX”. Estudos Econômicos, Volume 15, n.º especial, 1985, pp. 153-168. ADALBERTO, Príncipe Adalberto da Prússia. Brasil: Amazonas-Xingu. Brasília: Senado Federal, Conselho Federal, 2002. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 1997. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das Eras da Província do Pará. Belém: Universidade Federal do Para, 1969. BOURDIEU, Pierre. “Condição de Classe e Posição de Classe”. In: As economias das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. 1974. pp. 14-24 CARDOSO, Alanna Souto. Apontamentos para a História da Família e Demografia Histórica da Capitania do Grão-Pará (1750-1790). Belém: UFPA, 2008. 151p. Dissertação. (Mestrado em História) Universidade Federal do Pará/UFPA, Belém, 2008. GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no Brasil (séc. XVII-XIX). São Paulo: UNESP/ Pólis, 2005. JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijí, Fapesp, 2003. KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do Norte do Brasil. São Paulo: Itatiaia, 1980. KRAAY, Hendrik. Race, State, And Armed Forces In Independence Era Brazil: Bahia, 1790-1840. Stanford/California: Stanford University, 2002. PRATT, Mary Loiuse. Os olhos do Império: relatos de viagens e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999. SANTOS, Jocélio Teles dos. “De Pardos Disfarçados a “brancos” Poucos Claros: Classificação Racial no Brasil dos séculos XVIII e XIX”. Afro-Ásia, 32 (2005). pp. 134- 137 SALLES, Vicente. O Negro na Formação da Sociedade Paraense. Belém: Paka-Tatu, 2004. SILVA, Ana Cristina Nogueira da. “Tradição e reforma na organização político- administrativa do espaço, Portugal, finais do século XVIII.” In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijí, Fapesp, 2003. SPIX, John Baptist Von; MARTIUS, Carl Friedrich Fhilipp Von. “Estada na Cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará”. In: Viagem pelo Brasil (1817- 1820). Belo Horizonte/Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1981. 3 v. STOLCKE, Verena. “Sexo está para gênero como raça para etnicidade”. Estudos Afro- Asiáticos, v.20, p.101-119, jun.1991. VELOSO, Euda Cristina Alencar. “Estruturas de apropriação de Riqueza em Belém do Grão-Pará através do Recenseamento de 1778”. In: ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. A Escrita da História Paraense. Belém: NAEA/UFPA, 1998. VIANA, Larissa. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. São Paulo: Editora da Unicamp, 2007.

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ARTIGOS TERCEIRA MARGEM: O DIÁLOGO DE SILÊNCIO ENTRE ROSA E LEÃO

Harley Farias DOLZANE33 Doutorando em Estudos Literários / UFPA

RESUMO: A comunicação pretende estabelecer um diálogo entre o ensaio de Emmanuel Carneiro Leão, intitulado “A terceira margem do rio”, e o conto homônimo de Guimarães Rosa, presente na obra Primeiras estórias. O citado ensaio, ao contrário do que o título poderia sugerir, não é uma interpretação do conto, e até por isso ele sequer é mencionado no artigo de Leão. Entretanto, essa ausência se afigura uma profunda presença, e daí se justifica o título do ensaio. Trata-se de um diálogo entre dois pensadores, baseado no silêncio. Podemos dizer que, em verdade, é justamente a partir do silêncio que Leão dialoga com Rosa. O silêncio é que convoca o permanecer como possibilidade criativa nos espaços do grande rio da vida, e é no entorno desse silêncio que Leão e Rosa estruturam as figuras do pensamento artístico e filosófico. Como a imagem do personagem nosso pai, a reflexão de Leão acerca do trabalho, do pensamento e da filosofia, articulados no mistério, desperta a dignidade do homem que se reconhece no vigor da questão de ser. Esta dignidade reside, não somente nos textos de Rosa e Leão, no lançar-se para novas possibilidades existenciais. Na correspondência do silêncio que comungam, Rosa e Leão provocam a reflexão sobre este estado, de constante projetar-se ao desconhecido, reconhecendo que somente nele somos dignos da colheita dos frutos, que garantem nosso sustento real.

Palavras-chave: Carneiro Leão. Guimarães Rosa. Diálogo. Terceira Margem.

INTRODUÇÃO Aqui se pretende estabelecer um diálogo entre o ensaio de Emmanuel Carneiro Leão, intitulado “A terceira margem do rio”, e o conto homônimo de Guimarães Rosa, presente na obra Primeiras estórias. O citado ensaio, ao contrário do que o título poderia sugerir, não é uma interpretação do conto, e até por isso, este sequer é mencionado no texto de Leão. Trata-se de um diálogo entre dois pensadores, baseado no silêncio e podemos dizer que, em verdade, é justamente a partir do e no silêncio que Leão dialoga com Rosa.

33 [email protected] 76 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Mas, então, o que se pretende parece não ter qualquer sentido, pois como é possível estabelecer um diálogo no silêncio? O que vem a ser diálogo? O que é silêncio? E como eles interagem na figuração de uma terceira margem no texto de Rosa e Leão? Certamente são questionamentos complexos e, por isso mesmo, é preciso ter consciência de que aqui se origina um percurso sem termo final, não definitivo, cujo único compromisso é aprofundar o próprio questionar.

DIÁLOGO E SILÊNCIO Diálogo. Comumente entende-se diálogo como o ato de comunicar algo através da palavra escrita ou falada que se dá entre duas ou mais pessoas. O termo de origem grega é formado da justaposição do prefixo dia- com a palavra logos. Enquanto o prefixo remete à ideia de “movimentar-se por entre” ou “através”, a palavra, logos, advinda do radical indo-europeu leg-, está relacionado aos termos lego e legein que comumente são traduzidos por “enunciado”, “palavra”, “verbo”, “discurso”, “dizer” etc. Ocorre que, originalmente, o radical também remete a uma noção de reunião, coleção, o pôr uma coisa ao lado de outra, juntá-las num conjunto, coligir, colher, colheita34, ou ainda, a especificação do local em que os frutos da colheita eram reunidos ou re-colhidos. Este local não é apenas físico, mas metafísico. É um vigorar. “O logos é o vigorar da unidade que reúne as diferenças.” (CASTRO, 2011, p. 70). Parece ter sido nesse sentido que o termo foi tomado por pensadores originários como Heráclito e é assim que ele remonta àquilo que vem a ser a questão filosófica fundamental: o que é esse vigor que reúne o diverso no universo? Se o real está em devir, o que é que perdura no fluxo contínuo de mudanças?

34 Heidegger, após relacionar o termo legein com expressões derivadas na língua alemã – lesen (ler); holz lesen (juntar lenha); die Auslese (seleção); Æhren lesen (colher espigas) – sustenta que “o termo logos mesmo muito tempo depois de significar discurso e enunciação, ainda conservou sua significação originária, indicando ‘a relação de uma coisa com outra’” a reunião de coisas, portanto. Em seguida, demonstra como em Heráclito o termo extrapola o sentido de “palavra” e “discurso”, para significar “a unidade de reunião, i.é, o que, estando reunido, reúne (die gesammenlnde Gesammeltheit), o reunificante originário (das ursprünglich Sammelnde). Logos, portanto, não significa nem sentido, nem palavra, nem doutrina, nem mesmo ‘sentido de uma doutrina’, mas significa a unidade de reunião constante e, em si mesma, imperante, que é a que reúne em sentido originário”. HEIDEGGER, Martim. Introdução à metafísica, apresentação e tradução de Emmanoel Carneiro Leão. 4ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p. 149-158. 77 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Do logos derivam, em português, as palavras “lógica”, “escolha”, “lei”, “legítimo”, “ler”, “leitura”, “língua”, “linguagem” etc.. Mas, ainda que evoquem de algum modo o logos, o vigorar que reúne, nenhuma delas é capaz de esgotar o total sentido que sempre se abre para as diferenças das coisas em sua totalidade, acolhendo-as. O logos, este “isto” que perdura em tudo que muda, realiza-se de diferentes modos nas diferentes coisas que constituem o real. É assim que cada coisa tem sua “língua” – cada coisa “fala” aos nossos sentidos de maneira própria – e esta diversidade é o que permite as diversas escolhas; cada escolha é uma leitura que se faz daquilo que se dá a ser colhido, porém, as diversas leituras e recolhas feitas a partir do logos não dão conta de seu significado que permanece sempre velado, como se se retraísse a cada investida do pensamento: joga-se a rede e a água escorre pelas malhas. Fica algo? O que é que se colhe, afinal? Na fala, o Logos permanece sendo um enorme silêncio: o silêncio de todas as coisas, o silêncio da linguagem doando-se ao homem chamando-o para agir, na procura de sentido para o real, um sentido que o alimente – pois é esse o sentido de toda a colheita – que o alimente, realizando-o. Daí é possível sustentar que, o sentido das coisas é reunido, ou seja, recolhe- se na linguagem, pois na linguagem a diversidade do real é unificada, por exemplo, na palavra. Mas a linguagem, por outro lado, não é apenas a palavra, ou o que se diz de algum jeito, não é o dito, mas, fundamentalmente, o não-dito, pois todo falar se dá sempre na vigência de um silêncio original. O silêncio vigora em todo falar e a fala, para ser legítima, constitui-se na dobra com esse silêncio que alimenta. Portanto, diálogo é, sobretudo, uma dinâmica de desdobramento: mover-se entre e no silêncio vigorante no falar de todas as coisas. Assim, é o não-dito em cada texto que permite, em seu próprio dizer, uma constituição original em meio às mesmas questões. O não-dito irmana todos os dizeres, pois cada fala é reunida no seio de um mesmo e fecundo silêncio. Cada fala só é possível a partir do silêncio. Assim, o silêncio é a condição de possibilidade de todo o diálogo, pois naquele torna-se comum a todos o que é próprio de cada um, para que cada um possa apropriar-se originalmente do todo – e não é este o sentido original de comunicar? Sendo assim, é ele, o silêncio, que também nutre as vozes singulares de

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Leão e Rosa. Pensemos, então, seus textos como esforços de apropriação do que lhe é próprio, a partir de uma procura radical pelo silêncio. Mas o que é, então, silêncio? Seria possível alcançar o não-dito? É realmente possível haver diálogo? Como, afinal, dizer o silêncio? Isso parece ser sem sentido. O silêncio não pode ser dito: se o dissermos, já não se trata mais de silêncio. Não, a fala não diz o silêncio. Mas também parece não haver outra maneira de dizer o silêncio senão dizendo-o, na própria fala. Como isso é possível? Então é somente no dito, na fala, que o silêncio se faz presente? Ou melhor, se presentifica a partir de sua ausência? Se for assim, é capaz de o silêncio vir a ser tanto mais intenso, quanto maior for o falatório. Isso se sustenta?

A FALA A PARTIR DA TERCEIRA MARGEM Talvez caiba aprofundar a questão. Seria todo e qualquer falar capaz de dizer o silêncio intensamente? Heidegger sustenta que, no dito, a fala recolhe35. A fala, retraindo, silencia. Mas é assim em todo e qualquer dito, em todo e qualquer fala? A resposta parece ser sim, mas também, não. Sim, o dito sempre evoca a ausência do que não se disse: o silêncio. Mas isso não parece ocorrer com a mesma intensidade nos diferentes dizeres. Algo que parecer ser essencial é que, no dito, a fala não só recolhe, mas se recolhe. Seria este aspecto capaz de estabelecer uma distinção entre uma fala e um falatório (ou distinguir uma fala de uma falácia?)? Admitamos que sim. Há, por assim dizer, dizeres mais cheios de silêncios que outros, ou seja, neles o silêncio recolhe e se recolhe mais intensamente. Em tais ditos parece haver todo um cuidado comprometido com a abertura de modo que o dito nos aproxima mais e mais do silêncio. Neles não se trata de esclarecer nada, nada respondem, apenas acontecem. Mostram-se e esse mostrar, que é também silêncio acontecendo, questiona o homem. O silêncio é a questão em que se dá o diálogo. E é somente isso o que sabemos, não sabendo. É um mistério onde o “retraimento é acontecimento” (LEÃO, 2010, p. 43). Mas, como se disse, nesse mistério dá-se a convocação do

35 “No dito, a fala recolhe e reúne tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala perdura – seu perdurar, seu vigorar, sua essência”. (HEIDEGGER , A caminho do linguagem. 2003, p. 12) 79 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 humano para o agir fundamental – pois é aquele que nutre. O silêncio, então, é um dom e um chamado, horizonte abrindo-se para que o homem procure e corresponda, nas realizações, ao vigor do que permanece em meio a toda mudança: o próprio, o logos. Convocado, o homem fala. Fala e silêncio, portanto, entretecem, realizam um texto que procura. Essa procura é sem fim e – uma vez que o logos é uma questão originária – extrapola a lógica sem negá-la, porém. Não há nada de ilógico, num diálogo em silêncio, há logos, quer dizer, a sua procura. Como dissemos, é, justamente, no vigor dessa procura que habitam tanto o texto de Rosa, quanto o de Leão. Eles provocam a vigência do silêncio, invocando a sua ausência na fala. Ambos os textos, para além do falatório geral de uma teoria de gêneros textuais (aqui, já não são tomados como “conto” e “ensaio”), constituem evocações, pois “evocar é [justamente] provocar a vigência e invocar a ausência” (HEIDEGGER, 2003, p. 16). Neste sentido é que o profundo silêncio presente nos textos em diálogo convoca à afirmação permanente renovada das possibilidades criativas do ser humano nos espaços de um grande e vigoroso rio, seu fluxo constante e, ao mesmo tempo, deviniente. Essa é a figuração da grande questão que desde sempre nos alimenta e é no entorno do silêncio dessa questão que Leão e Rosa estruturam outras figuras do pensamento artístico e filosófico. Em ambos o pensamento, de algum modo, converge no debruçar-se sobre esta imagem: no grande rio, a terceira margem. Cabe, então, questionar: “E por que a terceira margem? Terceira margem não só remete para uma primeira e uma segunda margem. Não diz apenas a dualidade e separação. Terceira margem diz também e sobretudo o mistério de uma reunião” (LEÃO, 2010, p. 44), diz, portanto, o próprio logos, seu sempre silenciar. E, deste modo, a partir do logos, a questão permanece, reeditada: O que é a terceira margem?

MISTÉRIO, TRABALHO E PENSAMENTO. Leão se pergunta sobre a mútua referência existente entre o homem e a terceira margem. Aponta-a no trabalho, no pensamento, na filosofia, mas,

80 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 sobretudo, no mistério que engloba todas as dimensões anteriores. Essas dimensões são as medidas pela quais, ordinariamente, o homem se toma ao procurar-se. Em Rosa surge a figura de Nosso pai, cumpridor, ordeiro, positivo. E acima de tudo “só quieto”. Essa quietude ressalta o atuar do personagem: nada é dito sobre os motivos que o levaram a fazer o que faz. Mandar fazer uma canoa, não há lógica alguma. Mas, novamente, há logos, pois todo o vigor de Nosso pai, essa extraordinária persona, é extraído, fundamentalmente, do mistério. Melhor dizendo, da procura pelo mistério. O lançar-se em travessia, pôr-se numa canoa de nada no grande rio. De um modo oblíquo, muito embora claro, o que Leão empreende é, também, um percurso em direção ao por vir, ao por saber, ou, melhor dizendo, ao não-saber que há em todo saber. Leão e Rosa deixam-se interrogar pela identidade do mistério. O mistério é uma palavra que fala e se enche, ao falar, da procura pelo silêncio. Diz o mesmo (não o igual): logos. Fazer a canoa não é o que move Nosso pai. A canoa é, por definição, um meio de transporte. Um bem material. Ela funciona e é útil – o que seria de uma canoa que não servisse ao transportar? Que valor tem uma canoa furada? Útil, também, é o trabalho. Mas o trabalho que Nosso pai emprega na feitura da canoa visa, não somente, a realização da canoa. Em que mais se empenha o trabalho? Em nossa época, trabalho é uma palavra bastante falada e pouco pensada. Vivemos uma verdadeira supervalorização do trabalho. O tripalium, por si só, é tomado como direito e dever natural do ser humano. Mas, se pudéssemos por um momento não ouvir o falatório sufocante dessa época voraz, ou melhor, se conseguíssemos auscultar o mistério que fala na quietude (de Nosso Pai), talvez percebêssemos que o homem “não vive para trabalhar. Mas trabalha para viver.” (LEÃO, 2010, p. 43). Seu viver, ou seja, aquilo em que o trabalho deve ser empenhado, é um buscar pelo e no viver. É um caçar constante de si, pescaria diuturna pelo sentido que lhe dá o sustento real36. O homem cuida é de existir.

36 “Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ai propor agora para pescarias e caçadas?” (ROSA, 2005, p. 77). 81 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Se for assim, então o trabalho essencial é o pensar. Pensar é cuidar, pôr-se em direção à cura. Por isso, todo autêntico pensamento é, também, pro-cura, pois promove e conduz à cura. Cura de quê? Qual a nossa enfermidade? E em que mais a humanidade se põe a pensar tão obstinadamente ao longo de sua história senão a morte? A face oculta da Vida, o certo por vir não-sabido, o maior mistério, o drama que Hamlet (outra extraordinária persona) reconhece nas célebres palavras: ser ou não ser. A arte e a filosofia sempre se mostraram como dimensões privilegiadas no percurso dessa fecunda questão e desde a antiguidade o filósofo Aristóteles, no Banquete (Sympósion), apontava a arte como a disputa entre o tó ón (o que é) e o tó mé ón (o que não é). O também filósofo, Martin Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, sustentará que a obra de arte é o por em obra da verdade, onde verdade é tomada no sentido originário do termo grego alétheia (desocultamento, desvelamento), que também traz consigo o jogo do ser e não ser, aquilo que se vela e se esquece em todo revelar e lembrar. Alétheia é logos, o acontece do mistério, do silêncio e é isso que a obra de arte põe em obra: a própria linguagem, morada do Ser.37 Essa questão (ser em não-ser, vida em morte) que está em toda parte, Leão também a reconhece de maneira explicita: “como homem, todo homem vive operativamente por e para pensar, em tudo o que faz ou deixa de fazer, o mistério de ser que, ao mesmo tempo, ele nunca é, nem deixa de ser de todo.” (2010, p. 43). Em Rosa, a questão acontece no ir / não-ir do filho narrador ao encontro de Nosso pai, em fecho melancólico: Sofri o grave frio dos medos, adoeci.[...] Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio

37 “a linguagem é a casa do Ser. Em sua morada habita o homem. Os pensadores e poetas são os guardiões dessa morada. Sua guarda consiste em levar a cabo a manifestação do Ser, na medida em que, mediante seu dizer, eles a levam à linguagem e ali a custodiam”. (HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967)

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abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio. (ROSA, 2005, p. 82) – grifo nosso. A canoinha conduz à pro-cura da boa morte. Pois, uma vez nascidos (ou narrados – lembremo-nos da etimologia que comunica “nascer” à “narrar”), saber a boa morte é só o que nos resta, como bem lembra Sileno ao rei Midas. A canoinha de nada conduz ao não-lugar do lugar de onde estamos, pois como cantou Vinicius de Moraes, “a gente mal nasce, e começa a morrer”. Em verdade “viver é morrer para que morrendo vivamos” e isso implica “uma procura permanente e radical: ser o que não-é, ou seja, ser feliz. Onde ser feliz é ser o não-ser” (CASTRO, 2011, p. 206). Assim é o cuidado no existir, palavra que nos fala, justamente, de um postar-se em direção (ex-) ao não-lugar, ao não- encontrável do lugar em que estamos posicionados (sistere). Nosso pai, então, “não tinha ido a nenhuma parte. [...] se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (ROSA, 2005, p. 78). Pois, cuidadoso, “em sua existência, o homem é o Midas do ser, em cujo pensamento aparece sempre o mistério de tudo o que toca.” (LEÃO, 2010, p. 43) Existir é o mistério. O mistério é o rio “largo, de não poder ver a forma da outra beira”, o grande rio da Vida se doando “calado que sempre” (ROSA, 2005, p. 77), ou seja, “imensidão livre que se doa como horizonte” de toda procura (LEÃO, 2010, p. 43). “e se dá fora das possibilidades de conhecer e fazer”, justamente para sempre proporcionar (portanto, propondo diante de nós) o espaço de novas realizações e possibilidade de permanecer criativamente: existir. Estar no rio, à pro-cura, é a Terceira Margem do pensamento. E dela, enquanto mistério que se pro-põe em todas as nossas posições na instabilidade do rio; dela, deste não-acontecer, ou deste milagroso acontecer do nada38 é que surge todo e qualquer acontecimento, toda e qualquer “estória”. “Esse horizonte de mistério que sempre retrai e, retraindo-se, atrai e se dá como mistério que constitui a terceira margem do pensamento [...] Na terceira margem, o homem, desde quando é homem, já vive sempre inserido de algum modo. Da terceira margem brota a história humana. Retraimento é acontecimento” (LEÃO, 2010, p. 43)

38 “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (do conto “O espelho”, ROSA, 2005, p. 113) 83 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Na procura, “aquilo que não havia, acontecia” (ROSA, 2005, p 78). A procura é o trabalho fundamental de todo homem, seu direto e dever. Somente nela brota, para nós, o alimento que nos motiva, e nos garante “[...] a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro.” (ROSA, 2005, p. 79-80) O trabalho que não seja uma procura não serve à Vida. É um tormento inútil, uma canoa furada. É tripalium, apenas. E que fique claro: a procura, longe de ser um mar de rosas, é tarefa das mais trabalhosas – talvez muito mais árdua que as atividades tradicionalmente tidas como verdadeiro trabalho. Viver é experienciar a travessia da dor (phatos) e neste navegar nós já estamos dispostos, desde sempre. Navegar é preciso, como lembra Fernando Pessoa, mas navegar é, propriamente, criar. Isso quer dizer que o que é necessário ao ser humano, em essência, é o criar39. Assim, toda torturante tormenta enfrentada na auto-procura do pensamento conduz, em si, ao próprio de todo e cada um ser humano. Essa a empresa radical diante de nós.

O PENSAMENTO RADICAL: LANÇAR-SE, ESVAZIAR A CANOA O homem vive para o pensar, mas esse pensar, não se confunde com o pensamento lógico-racional, e sua sede de tudo medir, quantificar, esclarecer e por para funcionar os funcionários, como se o mundo fosse uma enorme e, paradoxalmente, estreita fábrica. A realidade é mais vasta, larga de não poder se ver a outra beira. Ela se dá no trabalho – o trabalho é real. Ela também se dá no pensamento lógico-racional – o pensamento lógico-racional é real. Ela se dá em todas as coisas – a totalidade das coisas é real. Mas o pensamento figurado na “Terceira margem do rio”, em realidade, aponta sempre para o não-saber de todo o saber. A realidade de todo o real. O mistério que nos possibilita. “Brejão de léguas, a escuridão daquele” (ROSA,

39 Referência à nota publicada pela primeira vez na primeira edição do volume Fernando Pessoa - Obra Poética, volume único, Companhia Aguilar Editora. 1965 (organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz)

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2005, p.79) para onde se dirige e de onde nos convoca, em silêncio, Nosso pai, para que tomemos lugar na canoinha do nada. Trata-se de um pensamento radical que nada esclarece, apenas questiona e, questionando, convoca a lançarmo-nos das iluminadas margens ao escuro silencioso do rio, à terceira margem. Neste sentido, mesmo a filosofia, pode não corresponder à terceira margem, ao pensamento radical. Refiro-me à filosofia entendida como sistematização do conhecimento em doutrinas e escolas que apenas se preocupam em afirmar o saber, fechando-se ao não-saber que há em todo saber. Lançar-se é saltar num abismo, ou seja, entregar-se ao sem-fundamento criativo que nos é próprio. No ensaio identidade e diferença, Heidegger nos fala de um comum-pertencer entre pensar e ser, ou entre homem e ser e afirma que “torna- se necessário um salto para se experimentar o comum-pertencer de homem e ser, propriamente” (2009, p. 45). Ao destacar o termo “pertencer”, o filósofo aponta para uma reflexão que possibilita pensar homem e ser, não mais a partir de um fundamento abstrato que os unifica e lhes é comum. Assim o faz a tradição metafísica, petrificando o ser e o homem, amarrando-os aos conceitos e doutrinas sempre à margem do rio-questão. Pensar o homem e o ser como comum-pertencer, implica pensar a referência entre ambos a partir de uma pertença recíproca. Pertencer nos diz uma coisa que é própria, que participa de uma propriedade. Daí diz-se, por exemplo, que “um livro pertence a mim”. Assim, enquanto ente, o homem participa da totalidade do ser (como, também, uma árvore, uma pedra etc.). Porém, enquanto ente que pensa, ele se abre e entrega-se ao ser e o ser, através dele, no pensamento, manifesta-se sendo. Dizemos, então, que, de algum modo, também o ser pertence ao homem (e não é este o fundamento do cogito cartesiano?). Ocorre, todavia, que este último aspecto, não se sobrepõe àquele primeiro, como se crer em nossa época. A pertença é recíproca, porque “o salto é a súbita penetração no âmbito a partir do qual homem e ser desde sempre atingiram juntos a sua essência, porque ambos foram reciprocamente entregues como propriedade a partir de um gesto que dá” (HEIDEGGER, 2009, p. 44).

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Na reciprocidade da pertença chega-se ao comum, não mais claro e estático e morto, mas obscuro e fluido e cheio de vida. E é nesse abismo, “nessa água que não para, de longas beiras [...] rio a baixo, rio a fora, rio a dentro – o rio” (ROSA, 2005, p. 82); é nele que se lança Nosso pai, homem pensador. Ser e não-ser, eis uma questão de qual o pensamento não pode ficar distante, à margem, atado aos conceitos. Quanto a esta discussão e quanto à tarefa do pensador, Leão se posiciona, a partir de Wittgenstein e Hegel: [...] escreve Wittgenstein no Tratactus Logico-philosophicus, “a filosofia não é uma doutrina, é uma atividade”! Que atividade? – a atividade de aprender e ensinar a pensar. A tarefa do pensador não é dar respostas nem formular teorias. É pensar a irrupção das diversas perguntas, das muitas respostas e teorias em seus respectivos pressupostos de sustentação. As diferenças não ameaçam, alimentam a vitalidade do pensamento. Na história do pensamento se faz a experiência saudável de que a verdade de ser e não ser não está nas partes. Para Hegel, as partes são passagens de que necessita a verdade para chegar a si mesma no todo. A verdade é o mistério da totalidade. (LEÃO, 2010, p. 46)

Esse mistério que reúne as partes, como dito outrora, é o logos. O silêncio da linguagem atuando no ser humano como questionamento, que o sustenta. Nesta atividade do pensamento, neste conhecer, é que se percebe o mistério de ser e do nada criativo, pois “todo pensamento, na medida que pensa, apenas percebe o mistério do ser e do nada” (LEÃO, 2010, p. 45). Pelo pensamento radical, nos reconhecemos, a nós mesmos, sendo, ele e nele próprio, o mistério. Deste modo, “O pensamento [radical] reconduz o conhecido subjetiva- objetivamente para o desconhecido.” Ou seja, “pensar não é saber, é não saber” (LEÃO, 2010, p. 45-46). E isso nos soa tão estranho... “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente” (ROSA, 2005, p. 78). E pensemos, agora, no estranho desconforto experimentado pela família de Nosso pai (nossos irmãos e irmãs? Nossa famíla?). Pensemos no seu “estranho salto, que provavelmente nos convencerá que ainda não nos demoramos bastante ali, onde propriamente já estamos” (HEIDEGGER, 2009, p. 45).

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Nosso pai é, então, um louco? Loucos somos nós? Chamem o mestre, o padre, os soldados... nada. Nem os homens de jornal podem tirar retrato. Um retrato não é capaz de mostrar esse absurdo. Como tirar retrato, se ele sai da luz das ideias seguras, seguras margens, para o escuro criativo da terceira margem, por vir, do além? – “Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além.” (ROSA, 2005, p. 82). Sem saber, seu silêncio incômodo nos avisa da necessidade de só se pensar. Mas como ele consegue isso? Como se comunica com os seus se “nunca falou mais palavra, com pessoa alguma” e “Nós, também, não falávamos mais nele”? (ROSA, 2005, p. 80) Não, ele não sabe... Ele é. Perdeu-se o louco... Leão cita um cartão postal de enviado por Nietzsche ao seu amigo Jorge Brandes, para ilustrar a loucura que é lançar-se na radicalidade do pensar. Eis as palavras do cartão: “Depois de me teres descoberto. Não foi difícil me encontrar, a dificuldade agora é me perder!” E Rosa nos lembra, pela imagem do Nosso pai, em travessia – no mesmo sentido de Caeiro ao constatar que os homens impõem pesados fatos ao pensamento40 –, a necessidade constante de esvaziar a canoa: “nosso pai com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal” (ROSA, 2005, p. 80). A canoa precisa estar vazia, se não, o milagre não acontece: não há qualquer possibilidade de haver travessia: há naufrágio, tristes palavras e falimento. Não há o fundamento, o ser prévio e superior, não... Não há, como quer o filho narrador, um pai para quem se possa pedir perdão. A necessidade de esvaziar o pensamento como condição sine qua ao advento do não-pensado, aproxima Leão e Rosa de sabedorias orientais como o Zen e o Tao Teh King. Nelas um percurso radical de plenificação existencial que somente pode ser desempenhado por aquele que se procura é também evocado em diversas figurações. Apenas para citar, sem nos alongar, no Zen temos a figura do Arqueiro, em sua busca por atingir esvaziamento que é o próprio alvo, representado pelo

40 “O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado / Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar./ Procuro despir-me do que aprendi,/ Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,/ Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu”. De O Guardador de Rebanhos. 87 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 círculo vazio.41 Sua arte radical consiste concentrar-se na exata tensão do arco, necessária para que flecha seja capaz de atingir o alvo, sem, no entanto, jamais lança-la. Quanto ao Tao é possível vislumbrar, a título de exemplo, o quão estreito é o diálogo tanto com Rosa quanto com Leão, pelas seguintes passagens do livro do caminho ou livro da vida (tradução possíveis para Tao Teh King): O Tao de que se pode falar não será o Tao eterno. Se pudermos dar-lhe um nome, não será o Nome eterno. [...] Assim, quando estamos sem desejo podemos observar indescritíveis maravilhas; quando estamos demasiado ávidos, não vemos mais que vestígios. Ambos provêm da mesma fonte, Mas trazem nome diferente. Ambos são chamados Misteriosos. O mistério do Misterioso é a porta que dá acesso às maravilhas indescritíveis. [...] O Tao é um vazio, mas, quando dele se faz uso, não se esgota jamais. Ele é tão profundo que parece ser a fonte de todas as coisas. (LAO TSÉ. Tao Teh King.)

41 “O que nos surpreende na prática do tiro com arco e na de outras artes que se cultivam no Japão (e provavelmente também em outros países do Extremo Oriente) é que não tem como objetivo nem resultados práticos, nem o aprimoramento do prazer estético, mas exercitar a consciência, com a finalidade de fazê-la atingir a realidade última. A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo; a espada não é empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, é harmonizar o consciente com o inconsciente. Para ser um autêntico arqueiro, o domínio técnico é insuficiente, E necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente. No tiro com arco, arqueiro e alvo deixam de ser entidades opostas, mas uma única e mesma realidade. O arqueiro não está consciente do seu “eu”, como alguém que esteja empenhado unicamente em acertar o alvo. Mas esse estado de não-consciência só é possível alcançar se o arqueiro estiver desprendido de si próprio, sem, contudo, desprezar a habilidade e o preparo técnico. Dessa maneira, o arqueiro consegue um resultado em tudo diferente do que obtém o esportista, e que não pode ser alcançado simplesmente com o estudo metódico e exaustivo. Esse resultado, que pertence a uma ordem tão diferente da meramente esportista, se chama satóri, cujo significado aproximado é “intuição”, mas que nada tem a ver com o que vulgarmente assim se denomina. Prefiro, por isso, chamá-lo de intuição prájnica. Podemos traduzir prajnâ como sabedoria transcendental, embora essa expressão tampouco reflita os múltiplos e ricos matizes contidos nessa palavra, porquanto se trata de uma intuição especial, que capta simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuição reconhece, sem nenhuma” (SUZUKI, Diasetz T. Nota introdutória. In: HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. Trad. J.C. Ismael. São Paulo: Editora Pensamento, 1975, p. 9-10) 88 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Esvaziar a canoa, lançar-se ao rio, ou como uma flecha, procurar atingir e ser o vazio inesgotável do alvo, pensar o não-saber que vigora em todo saber, dizer o silêncio. São todas figurações da eterna procura humana pelo ilimitado em sua própria limitação. Não há fórmulas ou esquemas prévios, e “não existe método de estudo nem uma filosofia que nos proporcione as condições para uma compreensão criadora dos pensamentos...” (LEÃO, 2010, p. 48). Pois o mistério se doa sempre como o que é: mistério. E por isso, “toda obra criadora pertence à terceira margem do pensamento. Pois esta transcende a própria filosofia, ultrapassa qualquer parâmetro, remetendo- nos para fora e para além de toda posição fundamental em que ela mesma se planta.” (Ibdem). Um homem, para ser, deve despojar-se de suas posições. E já não é estranho que, a esta altura, auscultemos no que se acabou de dizer ecos de judaísmo e do evangelho cristão. É que tudo é um na ausculta do logos.42

DIGNIDADE E TRAVESSIA Um homem há que ter a coragem de deixar sua família, enfrentar o enorme rio e até perder-se para, então, poder se achar. Retornar às origens, saudosa Ítaca de todos nós, navegantes. Nisso, talvez, tenhamos um exemplo digno a ser seguido, pois coloca nosso coração no compasso do mais certo: doar-se, no empenho de existir, sendo o que somos e não somos: Travessia. Assim, como a imagem do personagem Nosso pai – sua atividade na narrativa –, a reflexão de Leão acerca do trabalho, do pensamento e da filosofia, articulados no mistério, desperta a dignidade do homem que se reconhece no vigor da questão de ser. Esta dignidade é evocada não somente nos textos de Rosa e Leão, como se verificou, mas por diversos desempenhos de pensamento que se dispuseram a mergulhar radicalmente nas questões que nos constituem. A dignidade reside, justamente, nesse contínuo esforço do pensamento em lançar-se para novas possibilidades existenciais, realizando fecunda e misteriosamente todo o porvir que

42 “Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio dizer que tudo é um” (HERÁCLITO. Os pensadores originais. Trad. Emanuel Carneiro Leão. Petrópoles: Vozes, 1991. p. 71) 89 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 navegamos a partir do vazio criativo inesgotável que parece ser a fonte de todas as coisas e portal de acesso às maravilhas indescritíveis, milmaravilhosas. Na correspondência do silêncio que comungam, da terceira margem, Rosa e Leão provocam a reflexão sobre este estado próprio ao ser humano de constantemente projetar-se ao novo, ao desconhecido, reconhecendo que somente nele somos dignos da colheita dos frutos, que garantem nosso sustento real.

REFERÊNCIAS ARISTOTELES. Banquete FERRAZ, Antonio Máximo. O pensamento poético em Alberto Caeiro. In: Revista Garrafa n.11, Vol. II. Out/Dez-2006. HEIDEGGER, Martin . A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio e Castro. São Paulo: Edições 70, 2010. ______. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. ______. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução de Emmanoel Carneiro Leão. 4ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. ______. O que é isto – a filosofia? Identidade e diferença. Tradução, apresentação e notas de Ernildo Stein, Petropolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009. HERÁCLITO. Os pensadores originais. Trad. Emanuel Carneiro Leão. Petrópoles: Vozes, 1991. HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. Trad. J.C. Ismael. São Paulo: Editora Pensamento, 1975. LEÃO, Emmanuel Carneiro. A terceira margem do rio. In.: TERCEIRA MARGEM: Revista de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós- Graduação, ano XIV, n. 22, jan-jun. 2010. p. 43-48 PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In.: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 77-82. LAO TSÉ. Tao Teh King.

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A formação continuada frente à prática da interdisciplinaridade no cotidiano do educador

PENA, Ângela Conceição dos Anjos43

RESUMO: O estudo busca entender e reconhecer o quanto à formação continuada é interessante aos profissionais de educação para que o conteúdo a serem ensinados, não se reduza somente a dar aula, e que atualmente todos os professores devem possuir novas competências para lhe dar com diversos públicos. Onde focaliza a profissionalização do professor é muito abrangente, e a pesquisa, as atividades diferenciadas tornam as aulas mais atrativas e interessantes, pois em uma sala de aula se depara com pessoas, atitudes diferenciada própria de cada um. Tendo como objetivo facilitar a aprendizagem continuada, fornecendo subsídios para que ele possa criar e desenvolver um programa de projetos educacionais centrado nas necessidades da sua realidade quer seja, de ordem estrutural, organizacional, intelectual ou comportamental. Entende-se a interdisciplinaridade como busca constante de novos caminhos, outras realidades, e novos desafios, a ousadia da busca e do construir. Desse modo, o estudo parte do pressuposto de que, a escola é o melhor alicerce, ou seja, é a base para uma melhor formação do aluno, a qual conta com a participação do professor pesquisador e assim melhoria nas condições de trabalho e na formação do próprio professor. Ao refletir sobre esses aspectos, consideramos que este estudo pode contribuir para entender a formação continuada, o professor pesquisador é fundamental, mas que precisa ser repensada e trabalhada como compromisso de se ter profissionais que realmente preparem seus alunos para exercer sua cidadania, cabendo a cada profissional da educação novos ensinos e novos conhecimentos e que avalie e dê um olhar crítico ao seu trabalho.

Palavras Chaves: Formação Continuada, Interdisciplinaridade, Cotidiano Escolar, Professor, Educação.

1 INTRODUÇÃO

A intenção é trazer à tona o verdadeiro sentido da prática educativa no contexto interdisciplinar, já que em muitos momentos ela é apenas pronunciada pelos educadores, mas de fato, sentem-se perplexos frente à possibilidade de sua implementação na educação. Essa perplexidade é traduzida por alguns na tentativa da construção de novos projetos para o ensino. No entanto, há a existência da

43 Pedagoga e Professora de Ensino Superior da Escola Superior Madre Celeste – ESMAC, Pós- graduada em Psicopedagogia (UEPA). [email protected]

91 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 insegurança de como se aprende com a interdisciplinaridade que um fato ou solução nunca é isolado, mas sim, consequência de uma inter-relação. É importante mostrar que os educadores estão sendo desafiados a mudar e a inovar. Inovar com o intuito de atender às expectativas da atual sociedade, para adquirir novas técnicas metodológicas capazes de transformar o espaço-escola do aprendiz em algo dinâmico, significativo e participativo, aproximando a teoria da prática com uma postura interdisciplinar. São tantas as exigências atuais que os educadores necessitam de inúmeros recursos, meios, disponibilidade de tempo, destinados a sua educação continuada. Contudo, a realidade demonstra que o educador tem cada vez menos tempo e meios para atualizar-se. Assim, cientes das necessidades e das dificuldades do educador no seu cotidiano escolar, este estudo, visando facilitar a aprendizagem continuada, fornecendo subsídios para que ele possa criar e desenvolver um programa de projetos educacionais centrado nas necessidades da sua realidade quer seja, de ordem estrutural, organizacional, intelectual ou comportamental, pois sabemos que desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do ensino fundamental e médio a palavra “projeto” tornou-se uma ordem. O educador ao realizar a sua formação contínua toma pra si com mais responsabilidade sua atividade em sala e torna-se também um desafio, pois, os governos não possuem leis que a garantam aos diversos níveis de ensino, cabe ao professor se aprimorar cada vez mais. Portanto, a profissionalização do professor é muito abrangente, e a pesquisa, as atividades diferenciadas tornam as aulas mais atrativas e interessantes, pois em uma sala de aula se depara com pessoas, atitudes diferenciada própria de cada um. A interdisciplinaridade é um tema bastante pertinente no seio educacional. É sinônimo de desafios, busca uma totalidade de conhecimentos, permitindo ao educador um embasamento teórico, porém apesar de todo esse suporte, ainda hoje vários educadores sentem dificuldades em trabalhar a interdisciplinaridade no seu cotidiano escolar. 2 REVENDO E CONCEITUANDO A INTERDISCIPLINARIDADE

O conceito de interdisciplinaridade, hoje comum na literatura educacional, tem sido objeto de inúmeras interpretações. O prefixo “inter” nos permite 92 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 interpretar a interdisciplinaridade enquanto envolve relações de interações dinâmicas entre as disciplinas. A interdisciplinaridade para ser exercida coletivamente, requer diálogo aberto através do qual cada um reconhece o que lhe falta e o que deve receber dos demais. A interdisciplinaridade pode ser entendida como um convite à revisão da nossa relação com conhecimento. Para Japiassu (1976) é uma atividade coerente, que supõe uma postura única frente aos fatos, é na opinião crítica do outro que se fundamenta a opinião particular. Somente na intersubjetividade, num regime de copropriedade, de interação, é possível o diálogo, única condição de possibilidade da interdisciplinaridade. Entre tanto, esta integração não pode ser pensada apenas no nível de integração de conteúdos ou métodos, mas basicamente em nível de integração de conhecimentos parciais, específicos, tendo em vista um conhecer global. Para Japiassu (1995). “Pensar a integração como a fusão de conteúdos ou métodos muitas vezes significa deturpa a ideia primeira de interdisciplinaridade”. Estabelecidas as principais diferenças terminológicas entre Inter, multi, pluri e transdisciplinaridade, bem como algumas conotações dos termos disciplinar, acredita-se que exista uma profunda diferença entre integração e interdisciplinaridade. A integração poderia acontecer em aspectos parciais entre as diferentes disciplinas, ao passo que delimitando mais rigorosamente o conceito de interdisciplinaridade, conclui-se que esta seria um passo além dessa integração, ou seja, para que haja interdisciplinaridade deve haver uma sintonia e uma adesão recíproca, uma mudança de atitude frente a um fato a ser conhecido enfim, o nível interdisciplinar exigiria uma transformação, ao passo que o nível de integrar exigiria apenas uma acomodação. Para Fazenda (2011) “exercer a interdisciplinaridade é tecer um ambiente interativo, onde os participantes estão entrelaçados pelos saberes que são capazes de produzir coletivamente”. Fala-se em interdisciplinaridade, como se fosse um trabalho envolvendo várias disciplinas (português, matemática, geografia, história, ciências) em torno um projeto. Na verdade, é algo mais complexo. Existe interdisciplinaridade, quando se trata de mudança de atitude, de dialogo, de parceria, que se constitui exatamente na

93 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 diferença, na especificidade da ação e equipes que querem alcançar objetivos comuns, que participam em posições diferentes num mesmo grupo dedicados a atingir uma meta. Esta ação interdisciplinar reserva um sentido de organicidade, elementos de uma equipe realizam conjunta e harmonicamente uma tarefa, quando isso acontece, surge então à oportunidade de revitalizar as instituições e as pessoas que nelas trabalham. O processo interdisciplinar desempenha papel decisivo para dar estrutura ao desejo de criar de educação à luz da sabedoria, da coragem e da humildade. Para uma compreensão mais pratica entende-se a interdisciplinaridade como busca constante de novos caminhos, outras realidades, e novos desafios, a ousadia da busca e do construir. É ir além da mera observação, mesmo que o cotidiano teime em nos colocar perplexos e inseguros diante do desconhecido ou estimulando a diferença para evitar maiores compromissos. Quando em uma sala de aula todos se encaixam num todo maior, ocorre o envolvimento expresso através do respeito e da responsabilidade, este é o espírito de uma sala de aula interdisciplinar. “No projeto interdisciplinar não se ensina nem se aprende: vive-se, exerce-se” (FAZENDA, 2011). 3 A EDUCAÇÃO COM NOVOS OLHARES O próximo século deve ser encarado como um tempo em que, por toda parte, indivíduos e poderes públicos consideraram o conhecimento não apenas como o meio para alcançar o fim mais como um fim em si mesmo. Todos vão ser encorajados a aproveitar as oportunidades de aprender o que lhes oferecem ao longo da vida e terão possibilidades de fazer: • Esperando sempre do professor de onde lhes será exigido. • Do professor depende da grande parte a concretização das aspirações. A contribuição dos professores é crucial para o preparo dos jovens, não só para encarar o futuro com confiança, mas para contribuí-lo a eles mesmos de maneira determinada e responsável. A importância do papel do professor embate na mudança, transformação favorecendo a compreensão. O professor é um artesão e cientista, ensinar é uma arte, ensinar é uma ciência, mas poucos podem fazer do ensino uma arte. A forte relação estabelecida entre: professores e alunos constituem o cerne de professor de pedagogia.

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Acredita-se que a escola é o melhor alicerce, ou seja, é a base para uma melhor formação do aluno, a qual conta com a participação do professor pesquisador e assim melhoria nas condições de trabalho e na formação do próprio professor. Envolve relações entre as pessoas, projetos e processos que se produzam mutuamente, contraditoriamente embasados em uma visão de homem, mundo e sociedade. As pessoas não nascem educadores, se tornam educadores, quando se educam com o outro, quando produzem a sua existência do outro, em um processo permanente de apropriação, mediação e transformação do conhecimento mediante um projeto existencial e coletivo de construção humana. “Construção de referenciais de analise sobre o tema da formação de professores a partir do estudo da prática educativa e docente de contexto social, politico, econômico e cultural, diante das transformações do mundo de trabalho”. (FELDMANN, 2009). O profissional professor, nesse contexto, passa a ser solicitado a assumir um novo perfil, respondendo às novas dimensões diante dos desafios da sociedade contemporânea. Nesse horizonte, formar professores no mundo atual é defrontar-se com a instabilidade e provisoriedade do conhecimento, pois as verdades científicas perderam seu valor absoluto na compreensão e interpretação de diversos fenômenos. Com bases no aspecto legal a “Formação contínua”, é concebida como um direito a todo o educador de diferentes níveis e modalidades de ensino, cabendo às instituições educacionais, garantir as condições necessárias de materialização da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Nº 9.394/96. Sobretudo não é a lei que garante um processo de formação condizente com as necessidades do educador e do educando, mas a concepção que permeia ação formadora. Dessa forma, cabe às instituições formadoras e instituições de ensinos, um repensar sobre, a concepção de formação inicial e contínua, de forma que interajam no que há de essencial o exercício da docência crítica, reflexiva e comprometida com a aprendizagem necessária ao educando frente aos desafios e problemas do seu cotidiano. 4 A BUSCA DE UM FUTURO MELHOR O professor pesquisador é aquele que é inconformado com o comodismo, mesmice, não aceita passivamente como as coisas se apresentam, ou foram

95 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 colocadas por uma suposta autoridade ou até porque são decorrentes de uma tradição, pois cumprir uma tradição não significa ser mudo ou calar-se, ser cego ou vedar os olhos ou até mesmo ser surdo ou tapar os ouvidos. Tradições são importantes por que nos ajudam nas travessias, mas também carecem de inovações, desafios e ousadias. Como afirma FREIRE, (2001, p.135) Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo o amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo que nosso futuro baseia-se num passado e se corporifica num presente. Temos que saber o que fomos, e o que somos para saber o que seremos.

O professor que não ousa arriscar-se não como um mero jogador, mas como aquele que acredita em seu trabalho coerente, na sua contribuição para o futuro, visto como uma dádiva e oportunidade para o desenvolvimento da consciência, não mudam a si mesmo, não pode sair do lugar: envelhece parado. Já o professor que ousa e arrisca pode transformar: uma aula que seria enfadonha, uma mesmice em algo inesquecível, significativa e enriquecedora no meio que atua. Espera-se que no decorrer da formação contínua, os educadores passem a procurar novos métodos, novas estratégias que viabilizem a aprendizagem em cada situação concreta de ensino, transformando assim os ensinos diferenciados, condizentes com a sociedade em que vivemos. Já que as práticas pedagógicas dependem exclusivamente da vontade e do conhecimento dos docentes que uma vez dominando os métodos e as técnicas desenvolvidas pelas variadas experiências poderão aplicá-los as diferentes realidades. Logo, entendemos que tanto os docentes como os discentes precisarão acompanhar as transformações desse novo tempo, ajudando e sendo participantes na formação de cidadãos capazes de transformar o mundo. A construção de mudanças na escola será entendida em sua totalidade, na vivência de valores éticos, estéticos, no sentido de pertencimento, na diversidade cultural e na inclusão social, na participação democrática e na revisão da concepção do ensinar e do aprender na contemporaneidade.

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5 A FORMAÇÃO DO PROFESSOR COM BASE NA INTERDISCIPLINARIDADE PARA AÇÃO DOCENTE Em Pedagogia do Oprimido (1970), Freire faz uma análise do processo de dominação faz crítica à escola tradicional e a sua preocupação está voltada para o desenvolvimento da educação em países subordinados na ordem mundial. Freire tem uma teorização claramente pedagógica, na medida em que ele não se limita a analisar a educação e a pedagogia existente, mas apresenta uma teoria bastante elaborada de como elas devem ser. A crítica que Freire faz ao currículo existente está sintetizada no conceito de educação bancária (ato de depositar, transferir e transmitir conhecimentos e valores). Não há troca de conhecimento, de experiência, o educador não dá oportunidade para o educando, ele considera o educando um ser passivo, só ouve neste processo ensino aprendizagem as normas disciplinares são rígidas, favorecendo a submissão dos alunos. No relacionamento professor-aluno há uma relação hierárquica, de forma repressora, somente a verdade do professor prevalece. Freire ataca o caráter verbalista, narrativo do currículo tradicional e elabora um conceito de educação problematizadora que busca desenvolver uma concepção que possa se constituir numa alternativa à concepção bancária. E a partir de então se passa a se ter uma compreensão do que significa conhecer, para ele conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa e o ato de conhecer não é um ato isolado, conhecer envolve intercomunicação, intersubjetividade. Na concepção de Freire é através dessa intercomunicação que os homens mutuamente se educam e isto é um ato pedagógico. Ensinar não é transferir conhecimento, o professor deve ser crítico, responsável, predisposto à mudança, à aceitação do novo, do diferente. O professor enquanto ser cultural é inacabado e consciente do inacabamento capaz de ir mais além, deve ter em mente, afinal que sua presença na escola não é a de quem a ela se adapte, mas a de quem nela se insere. Por isso, a educação para a cidadania requer, portanto, que questões sociais sejam apresentadas para a aprendizagem e a reflexão dos alunos.

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Nesse sentido, o papel do educador seria o de acompanhar o aluno, de modo que ambos vivessem a comunicação educacional como uma intersubjetividade, atitude essa que possibilita a troca contínua de experiências. É importante deixar claro, que a prática docente ao adotar a interdisciplinaridade como metodologia no desenvolvimento do currículo escolar, não significa o abandono das disciplinas nem supõe para o professor uma pluri- especialização, bem difícil de imaginar, com o risco do sincretismo e da superficialidade. Para maior consciência da realidade, para que os fenômenos complexos sejam observados, vistos, entendidos e descritos, torna-se cada vez mais importante a confrontação de olhares plurais na observação da situação de aprendizagem. Então há necessidade de um trabalho de equipe realmente pluridisciplinar. Para Fazenda, um fundamento importante para uma prática interdisciplinar consistente é a parceria, que consiste numa tentativa de incitar o diálogo com outras formas de conhecimento que não estamos habituados, e nessa tentativa a possibilidade de interpenetração delas. Acreditamos que o sentido de um trabalho interdisciplinar está exatamente na compreensão e na intencionalidade da efetivação de novas, melhores e mais consistentes parcerias. É, portanto, correto afirmar neste momento, que a interdisciplinaridade é fruto, muito mais, do encontro de indivíduos, parceiros com ideias e disposição para o trabalho, do que de disciplinas. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar a formação de professores é sempre pensar a formação do ser humano e, nessa perspectiva, se vislumbra a construção de mudanças em qualquer que seja o seu espaço de ação. Mudança entendida como aprimoramento da condição humana, como liberdade de expressão e comunicação e como desenho de possibilidades de um mundo melhor, de uma melhor convivência entre as pessoas. Entendemos que os professores, em suas ações educativas, lidam com a apropriação do conhecimento sistematizado, os significados, a cultura, a construção dos próprios saberes escolares e a dinâmica da própria organização do contexto escolar.

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Conforme se procurou demonstrar neste artigo, a interdisciplinaridade pode ser vista como uma nova concepção do saber e do processo de ensinar, ou seja, um novo princípio norteador da reorganização dos diversos objetos de estudo e de reformulação das estruturas pedagógicas. Na prática, para superar a fragmentação do saber decorrente da especialização, a interdisciplinaridade representa uma possibilidade de negociação de pontos de vista, de diálogo e de interação entre as disciplinas. A exigência de objetividade, de discriminação das questões e as restrições impostas por um currículo por disciplinas não se constituem obstáculos insuperáveis para os elaboradores. Ao contrário, a criatividade das bancas tem-se revelado altamente produtiva na elaboração de itens que desafiam o interesse e a curiosidade da maioria dos candidatos que se submetem às nossas provas. Uma das funções da escola é a formação de cidadãos, onde o objeto de trabalho é o conhecer científico produzido pela humanidade e a exigência social da escola é de ter profissionais adequadamente preparados para que se ajuste a esta sociedade. Essa questão sobre a formação continuada, o professor pesquisador é fundamental, mas que precisa ser repensada e trabalhada como compromisso de se ter profissionais que realmente preparem seus alunos para exercer sua cidadania, cabendo a cada profissional da educação novos ensinos e novos conhecimentos e que avalie e dê um olhar crítico ao seu trabalho. É certo que as reflexões acima nos levam a pensar que se chega o momento das instituições escolares e os próprios professores de proporcionar e se proporcionar novo direcionamento para a formação continuada. A formação contínua do professor não deve caminhar inerente à sala de aula, pois precisamos formar cidadãos capazes de analisar e contribuir para a sua formação ética. Como afirma FREIRE (1996, p.29): “Não há ensino sem pesquisa e nem pesquisa sem ensino”. De acordo com Freire, pesquisa e ensino não podem caminhar dissociados, visto que o conhecimento se dá através de interesse e importância que o aluno obtém através da pesquisa, a qual quando utilizada favorece todo o trabalho de busca de conhecimento.

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Os professores, em seu ambiente de trabalho, lidam com questões de natureza ética, afetiva, política, social, ideológica e cultural, logo, dessa forma, em colaboração mútua, podem criar possibilidades de recriar os conhecimentos necessários a uma prática inclusiva, considerando as diversidades e multiculturalidade presentes nos cotidianos escolares. Em síntese: a interdisciplinaridade, enquanto prática de interação entre os componentes do currículo é difícil de ser alcançada, devido aos múltiplos empecilhos que se interpõem no processo educacional, mas permanece como um ponto de excelência a ser perseguido. 7 REFERENCIAS FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro. Loyola, São Paulo – 1993. ______. Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro. Efetividade ou Ideologia. 6ª edição. Edições Loyola, São Paulo – 2011. ______(org), Práticas Interdisciplinaridade na escola. São Paulo, Cortez, 2001. FELDMANN, Marina Graziela (org). Formação de professores e escola contemporaneidade. São Paulo: Editora SENAC, 2009. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do Oprimido. São Paulo, Paz e Terra, 1970. JAPIASSÚ, H. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1976. ______. A Questão da Interdisciplinaridade. Signos. Lajeado: FATES, 1995. p. 7-12. QUEIROZ, Tânia Dias. Pedagogia de Projetos Interdisciplinares: Uma proposta prática de construção dos conhecimentos a partir de projetos. São Paulo, Rideel, 2001

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INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Ressonância do modernismo e a literatura de expressão amazônica

Harley Dolzane Dionilson Mendonça da Silva44

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma contextualização histórico-social da literatura desenvolvida na Amazônia nas décadas de 70/80, sobretudo a de Benedicto Monteiro uma vez que é possível sustentar que o romance Aquele Um apresenta uma vertente de um ideal modernista, que ressoa nos períodos mencionados anteriormente. Embora Monteiro tenha sua produção em um período posterior ao do início do movimento moderno, sua obra apresenta a vida de um amazônida que habita um espaço carregado de símbolos da cultura nacional e muito representativo daquele ideal de brasilidade genuína, que segundo o Modernismo, concentrava em si a diversidade do Brasil em uma só nação.

Palavras – Chave: Literatura. Modernismo. Amazônia. Narrativa

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Fevereiro de 1922, eclode em São Paulo um evento que seria um marco na arte e na cultura brasileira: A Semana de Arte Moderna. O movimento estético conhecido como Modernismo ficou condicionado a este acontecimento. A estética modernista surgiu com uma atitude revolucionária e um inconformismo cultural em que “tudo que se escrevia a partir do signo de 1922 era considerado moderno” (Alfredo Bosi, 2001). Porém, nem tudo que trazia traços modernos seria modernismo, pois o termo “moderno” pode abarcar várias conotações e pode ou não incluir o nuance literário. Nas reflexões de Oswald de Andrade, um dos mentores da Semana, e de Candido Mota Filho, a nova estética configurava em uma liberdade formal e ideal nacionalistas. É possível sustentar que o romance Aquele Um de Benedicto Monteiro apresenta uma vertente desse ideal modernista. Embora Monteiro tenha sua produção em um período posterior ao do início do movimento moderno, sua obra

44 Licenciado pleno em Letras –Português / Espanhol pela Escola Superior Madre Celeste (Esmac). Professor da rede particular de ensino das disciplinas de Literatura, Espanhol e Língua Portuguesa. 101 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 apresenta a vida de um amazônida que habita um espaço carregado de símbolos da cultura nacional e muito representativo daquele ideal de brasilidade genuína, que segundo o Modernismo, concentrava em si a diversidade do Brasil em uma só nação. Não é por acaso que Mário de Andrade mergulha nas raízes brasileiras, sobretudo indígenas e negras, para dar nome e vida ao seu romance, ícone do movimento modernista, Macunaíma, publicado em 1928, pretendendo forjar o arquétipo do brasileiro mestiço nascido na Amazônia. Outro fato importante a ser mencionado é que a partir da década de 1930 houve um interesse pelas realidades regionais, até mesmo como um aprofundamento da procura pela identidade genuinamente nacional. O movimento modernista sai de São Paulo e se estende aos outros Estados brasileiros. No Pará, a estética modernista faz-se sentir por volta da década de 1920 a partir da produção literária de um grupo de intelectuais liderado por Bruno de Menezes e composto por De Campos Ribeiro, Abguar Bastos, e Ernani Vieira, conhecido como “Os vândalos do Apocalipse”. Esses intelectuais passam a orientar suas obras para a construção de uma nova identidade nacional, a exemplo dos intelectuais de São Paulo, porém a partir de uma perspectiva amazônica. Segundo Aldrim Figueiredo (2008), ... os jovens literatos tomaram a dianteira na descoberta do homem mestiço da Amazônia. Já que o passado de belle- époque não havia conseguido branquear e nem domesticar seus hábitos, restou aos modernistas a reabilitação da cultura local, positivando valores antes profundamente detratados. (FIGUEIREDO, 2008, p. 19). Este homem mestiço da Amazônia é em Aquele Um, a personagem Miguel dos Santos Prazeres, homem Cabra-da-Peste, também conhecido como Afilhado- do-diabo que não teve seus hábitos mudados pelo sistema socioeconômico que pretendeu transformar as principais cidades da Amazônia em cópias inteiramente submissas aos centros europeus. Miguel é, nesse entendimento, a representação do espírito revolucionário, inquieto e inconformado do modernismo, “Eu era mesmo assim, seu Major, não parava”. (MONTEIRO, 1985, p. 9). Não senhor, emprego eu não aceito. Posso ficar sendo pescador, mateiro, caçador, mas não quero emprego fixo [...]. Não, não gosto de cidade. Por isso é que não quero emprego.

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Deste mundo todo eu faço a minha vida. (MONTEIRO, 1985, p. 77:78) Marinilce Coelho (2005) afirma que diferentemente dos modernistas do eixo sudeste, no Pará, os escritores lutavam com dificuldades para produzir literatura resistindo heroicamente às dificuldades econômicas vigentes nas décadas de 1930-1940, em plena crise do ciclo da borracha. Aqueles que nesse período escreviam e se reuniam em Cafés, residências e demais lugares públicos, ficaram conhecidos como a “geração do peixe-frito”, expressão criada por Dalcídio Jurandir para designar a geração de 20/30 de Belém, “constituída de rapazes paupérrimos que faziam heroicamente literatura...”. A produção literária desses intelectuais, como Dalcídio Jurandir, carregava a marca da resistência frente a essas dificuldades e a uma inexpressiva ajuda governamental. No decorrer desse período foi criado a Academia dos Novos, outro grupo que se reunia na casa do crítico Literário e Filósofo Benedito Nunes, para discutir os novos rumos da literatura paraense de expressão amazônica. Os jovens iniciantes dessa “Academia” tinham uma “franca demonstração de uma cultura amazônica voltada para a tradição” (COELHO, 2005, p.59). Essa valorização da cultura e da tradição amazônica é percebida em “Aquele Um”: “Eu tinha fabricado fogos de artifício, para queimar na festa de Santo Antônio, eram fogos para nove dias e nove noites, o senhor pensa”? (MONTEIRO, 1985, p.59) A linguagem quer por meio do discurso do narrador, quer nas expressões das personagens, é carregada de marcas da oralidade com um coloquialismo regionalizado, bem como a reafirmação da tradição local quanto aos costumes e demais traços culturais que a obra engendra, é mais uma forma de Monteiro valorizar a tradição amazônica: Bebia cachaça com leite, com manga com açaí, com vinho de pariri, com tarubá, com tucupi, com vinho de tucumã e até com sumo de pimenta malagueta. Eu gostava de cachaça, mas era com vinho de taperebá, com vinho de jenipapo; genipaquina, penipacana, genipaúba. (MONTEIRO, 1985, p.67-68) Nesse trecho, percebemos a preocupação do autor em registrar os costumes do caboclo amazônico por meio de uma tradição gastronômica local,

103 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 mas que, a partir de uma perspectiva regionalista pode nos levar para outros lugares. Como podemos observar, o Modernismo paraense nasce com força. Bruno de Menezes, Ernani Vieira e De Campos Ribeiro, por exemplo, eram conhecidos como o “triangulo d’oiro”, pois, eram vistos como a mais alta representação poética daquele período. Mas foi Abguar Bastos que soltou a voz em seu manifesto FLAMI-N’-AÇU, que segundo ele, era a “grande chama indo-latina”. Nesse manifesto Abguar declara: Exalta a flora e a fauna exclusiva ou adaptável do País, combate os termos que não externem sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garça e sumaúma, a “flor de lotos” pelo “amor de homens” ... (BASTOS apud RIBEIRO, 1973, p.25)

Esse manifesto é na visão de seu idealizador, um apoio, uma referência para as gerações presentes e para as vindouras. Diferentemente do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade que pregava uma adaptação dos ideais que vinham de fora do país, o manifesto de Abguar Bastos era mais radical, pois, pregava a substituição dos elementos estrangeiros pelos da Amazônia brasileira. E Monteiro parece ter seguido esse pensamento e ter inserido em sua narrativa “elementos brasílicos” mostrando seu diálogo com a estética modernista, matizada com certo regionalismo: Os jacarés mais açus, as piraíbas mais gigantes, as arraias mais bojudas e as cobras mais enormes, aparecem logo na flor das águas. Se encontram bicho ou gente, fazem logo as suas embiaras. Se é de noite e o homem é covarde, vira assombração e lenda. (MONTEIRO, 1985, p. 143)

Monteiro mostra-se mergulhado nesse ideal de exibir a fauna e a flora amazônica de forma a exaltar, por meio do discurso de Miguel, toda a exuberância da floresta. E não somente isso, mas apresenta a seus leitores aquilo que a natureza tem de mais belo e saboroso, e que para aqueles que habitam a Amazônia se constitui em um hábito comum: Já estava cansado de comer fruta do mato. Ara, puruí, pichuna, aúna, pajurá, piquiá, jenipapu, pitomba, castanha, 104 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

pupunha, mari, uxi, já estava com minha boca travosa e a barriga embrulhada. Aí defrontei com uma árvore cobertas dessas corujinhas-da-noite. (MONTEIRO, 1985, p.74).

Nesse trecho percebemos claramente a Amazônia sendo desvelada pelos signos que a constituem, as frutas encontradas nesse espaço e que estão no paladar e na cultura do homem amazônico.

ECOS DO MODERNISMO EM BENEDICTO MONTEIRO A tendência regionalista do Modernismo foi aos poucos se enfraquecendo e sendo substituída por uma mais universalista que ganhava forma com a tematização dos dramas humanos. A vida cotidiana passa a ocupar o primeiro plano nas narrativas. O romance segue esse movimento em que desemboca os dramas humanos, mostrando o homem amazônico e seus dilemas frente a todas as transformações sociais, políticas e econômicas, suas preocupações, seu dia-a-dia e seus anseios. A narrativa rompe, assim, com as limitações do regionalismo e mostra, por meio de Miguel, temas universais. Não procuro me aproximar desse meu filho de corpo e alma. Nem sei por que, como lhe diga, talvez por não querer me amarrar na terra. Talvez por não querer me ver de novo fora do meu tempo. Nem recuar nos contrários caminhos da minha existência. (MONTEIRO, 1985, p. 157)

Segundo Bosi (2001), essa mudança de paradigma tem seu limiar a partir da ficção produzida entre os anos 70 e 90, e o que marca a produção desse período, é a “pluralidade das formas”. Para ele, esses narradores fazem das imagens do seu universo regional a sua bússola, o seu norte para a compreensão e interpretação da realidade. Apesar de Bosi (2001) mencionar Milton Hatoum45 como o representante mais expressivo da literatura amazônica desse período, podemos inserir nesse cenário a obra de Benedicto Monteiro, que em certa medida, é precursor da literatura de expressão amazônica. Inclusive, um dos seus expoentes, pois a obra do paraense, segundo Daniel dos Santos Fernandes (2007): ... observa-se o uso da literatura como instrumento de conscientização social, não panfletário, e sim uma mescla de denúncia com visíveis toques de literariedade, poeticidade,

45 Milton Hatoum nasceu em Manaus no ano de 1952. É autor de vários romances como Relato de um certo Oriente, que lhe rendeu alguns prêmios literários além de reconhecimento nacional. 105 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

ousadia, futurismo e transgressão. (FERNANDES, 2007, p.102).

Nesse sentido, diferente de Bosi (2001), Afrânio Coutinho (2003) reconhece Monteiro como uma das grandes vozes da região Norte e da Amazônia. Ele enfatiza o trabalho de Monteiro com a linguagem e o “levantamento problemático dos temas amazônicos”. Porém, Coutinho (2003) insere o autor em uma perspectiva literária pós-moderna, em que o romance assume uma nova fase, a da experimentação. Coutinho (2003) utiliza o termo “pós-moderno” para toda produção literária ocorrida após a década de 50 e 60. Porém, não aprofundaremos essa questão, uma vez que as discussões conceituais sobre ela não são coesas e unânimes. No entanto, é capital afirmarmos que nesse contexto cultural e literário emergem formas descontínuas, alternativas e híbridas. Monteiro escreve a sua produção nos anos 70 e 80, em que a ficção brasileira, segundo Coutinho (2003), é caracterizada por uma “pluralidade de tendências” e pela valorização do cotidiano. Quanto a este último aspecto, destacamos em Aquele Um o seguinte trecho: Me aproximei dos três vaqueiros que conversavam. Fiquei escutando a lorota do caboco misturada com o po-tó-po-tó das patas dos cavalos batendo na água coberta de capim. − É, o negócio é correr terra. Eu não paro numa fazenda nem um mês – disse um deles. (MONTEIRO, 1980, p.8)

Não há dúvida de que o Modernismo foi um movimento com características muito próprias e a produção dos artistas pós 1922, mais precisamente das décadas de 40 e 50, criou um elo entre o Modernismo e o que Coutinho (2003) chama de “Nova Literatura Brasileira”. O fato é que a produção literária desse período fortaleceu a literatura brasileira, e os romancistas engrossaram e revalorizaram a cena literária, não parando nas experimentações vanguardistas, mas por vezes retomaram a “tradição” do moderno. A literatura produzida por Monteiro também se insere nesse contexto, pois ele parte do seu regionalismo para o que é universal, e por meio da linguagem inovadora rememora o enfoque no tema “Amazônia”. Além disso, ele traz inovações na estrutura, na narrativa e utiliza, segundo Coelho (2005), recursos que

106 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 rompe com o realismo convencional, quebrando assim, barreiras, incompatibilidades e limites estabelecidos para os gêneros literários. Ele utiliza o discurso de Miguel dos Santos Prazeres, dando-lhe um aspecto de depoimento, para desvelar o que a Amazônia possui, não por uma ótica externa, mas, pelo relato de um caboclo contador de histórias que narra a sua própria história cheia de casos acontecidos e vividos, de modo que tudo isso, integra-se ao horizonte geográfico e social do mundo amazônico nativo. A ideia inicial de Aquele Um, segundo o próprio Monteiro no posfácio da narrativa, era de descrever um romance em que a personagem fosse configurada pela própria linguagem e refletisse sobre o contexto amazônico, um lugar até então isolado do contexto histórico, político e social do resto da humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise realizada, foi possível perceber que a personagem Miguel está intimamente relacionada à vida e à cultura da região amazônica. Por meio dele é possível compreender a vida do homem amazônico, seus sonhos, suas angústias e seus medos, suas lutas e suas vitórias. Miguel é a Amazônia e a Amazônia é Miguel. Como o próprio Monteiro afirma no posfácio de Aquele Um, Miguel configura um ideal de liberdade, típica do Modernismo, ressoante na literatura produzida nas décadas de 70 e 80. Encerramos afirmando que Benedicto Monteiro encontra-se na primeira linha dos romancistas brasileiros ainda que não reconhecido pelo grande público. O seu estilo é único na Amazônia e, sem dúvida, sua obra é uma das melhores produzidas pela ficção brasileira. Sobretudo, chama à atenção a construção do espaço pela transfiguração da natureza, potência que se impõe diante do homem e do leitor: A natureza aqui, Major, não forma bandido, nem sustenta a guerra de homem contra homem: a natureza aqui é inimiga! A natureza aqui está sempre contra qualquer vivente e esmaga sempre o mais humilde. (MONTEIRO, 1985, p.58)

É esse espaço que se apresenta no romance Aquele Um. Ele envolve o homem em toda sua força, magnitude e maravilha. É ele que molda o homem e que

107 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 por ele é moldado, configurando-se em diversas faces para se esconder e se mostrar em um processo intenso e contínuo de transformações.

Assim, concluímos que Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008) foi, sem dúvida, um dos escritores mais importantes do contexto amazônico e brasileiro, dada a grande expressividade de sua obra, na qual se destaca o seu protagonista, Miguel dos Santos Prazeres, vulgo Afilhado-do-Diabo, também conhecido como Cabra-da-Peste.

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108 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 http://dx.doi.org/10.15603/2176-1078/er.v28n1p87-108. Acessado em 21.09.2015, às 19h06. RIBEIRO, De Campos. Coleção Literatura Paraense. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973. www.unioeste.br/.../A%20NATUREZA%20COMO%20UM%20ELEMENTO. Pdf. Acessado em 13.10.2015, às 19h04.

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Terceira idade na cidade das mangueiras: variações linguísticas no Centro Social Palácio Bolonha46

Carla Georgia Travassos Teixeira Pinto47 Cândida Assumpção Castro48

ResumoEste artigo pretende discutir as variações linguísticas no âmbito da terceira idade com integrantes do Centro Social Palácio Bolonha, levando em consideração que a linguagem é um domínio do ser humano, e é através desta que aprendemos comportamentos, regras de convívio, opiniões, valores reconhecendo o fato que a língua varia no tempo, influência e é influenciada por costumes, iremos analisar as diferentes expressões deste seleto grupo, identificar as transformações e fazer a relação com a linguagem usada por seus parentes, com os quais possuem convivências próximas.

Palavras-chave: Variação Linguística, 3º idade, Preconceito Linguístico, sociolinguística.

1 INTRODUÇÂO

A relação entre língua e sociedade, estrutura e evolução da linguagem estão presentes dentro do contexto social de uma comunidade de fala. Assim, não podemos ignorar dentro da estrutura da língua e evolução linguística que sofrem as diversas gerações de uma sociedade. Mediante tal posicionamento, reconhecer que a língua sofre variação e esta é heterogênea e sistematizada dentro de uma comunidade de falantes é de fato algo que precisamos ter ciência. Mediante o exposto o artigo em questão visa analisar e fazer analogia entre um grupo de senhores (as) da terceira idade, as quais possuem uma experiência de vida, em que muitos já educaram filhos, participaram ativamente na criação de netos e até bisnetos e logicamente a relação entre falantes é algo presente em todo momento. Neste sentido, torna-se instigante e curioso observarmos termos que as referidas senhores (as) usam ou usaram no sentido de sua comunicação em meio familiar e como sofreram modificações no decorrer de gerações. Interessante chamar atenção para este elemento que constitui o relacionamento harmonioso, representa aspectos primordiais na vida dessas pessoas que contribuíram muito na forma moral e material deste que é o berço de costumes, hábitos e valores morais e sociais que servem de base para o processo de socialização, tradições e costumes dentro de uma estrutura ligados por descendência e unidos por múltiplos laços que influenciam gerações que é a instituição família.

46 Título do trabalho apresentado ao Curso de Letras Habilitação em Língua Portuguesa e Língua Inglesa na Escola Superior Madre Celeste. 47 Formada no Curso de Letras, na Escola Superior Madre Celeste. Email – [email protected]. 48 Professora Msc. na Escola Superior Madre Celeste. Email – [email protected]. 110 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

O homem é um ser social [...] observa que o homem é um ser que necessita de coisas e dos outros, sendo por isso, um ser carente e imperfeito, buscando a comunidade para alcançar a completude. E a partir disso, ele deduz que o homem é naturalmente político. Além disso, para Aristóteles, quem vive fora da comunidade organizada (cidade ou pólis), ou é um ser degradado ou um ser sobre- humano (divino).(ARISTÓTELES). Mediante isso a comunicação[...] pode ser definida simplesmente como processo de se passar informações e entendimento de uma pessoa para outra¨ (SCANLAN,1979, p. 142).

Nosso foco é analisar as palavras que eram ou são usadas pelos senhores (as) da terceira idade do Centro Social Palácio Bolonha e como elas percebem as mudanças que as palavras sofreram e como essas interagem dentro desse contexto social com os seus familiares no momento da interação comunicativa. Essas senhoras percebem mudanças, como elas se sentem diante de tal fato, essas palavras ou construções comprometem o mútuo entendimento entre os interlocutores desta relação?

2 MAS, O QUE É O ¨CENTRO SOCIAL PALÁCIO BOLONHA¨?

O Centro Social Palácio Bolonha é uma organização não governamental, sem fins lucrativos é dedicado à promoção social básica e dos direitos dos idosos de Belém com o objetivo de atender um grupo de cidadãos que estariam com mais de cinquenta anos completo e oferecer a esse seleto grupo atividades esportivas e sociais como forma de melhorar a qualidade de vida, proporcionando uma interatividade e justificando que a aposentadoria não é um momento de isolamento e sim uma nova vida, fase de prazer, lazer com qualidade. A relevância deste artigo se encontra no estudo e descrição da realidade da linguagem relacionada a um grupo distinto presente em muitos lares das famílias brasileiras que possuem uma tradição cultural, social. Nesse sentido, avaliar essas relações entre os idosos e os demais grupos etários, avaliando em situações cotidianas, visto que, embora haja a presença de diversos trabalhos relacionados à área da linguagem da pessoa idosa, grande parte se dedica à análise de aspectos relacionados à psicologia e linguística, que buscam identificar transformações e detectar as causas de possíveis mudanças que ocorrem no processo de envelhecimento. No entanto, é de grande necessidade compreender este processo caracterizando a forma dos idosos em utilizar a linguagem, enquanto um grupo social distinto, fazendo analogia com a linguagem dos jovens em especial pessoas que fazem parte do meio familiar. 111 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Desta forma, é importante compreender as mudanças das estruturas semântico-sintático deste seleto grupo a fim que possamos restabelecer a comunicação harmoniosa entre membros das famílias desse núcleo de senhores (as), uma vez que o fator comunicativo é algo que faz parte da convivência humana e faz bem a todos.

3 O QUE É LINGUAGEM HUMANA?

O desenvolvimento do estudo da linguagem humana não é determinado e exclusivo de uma área científica, ao contrário, diferentes perspectivas dentro de outros campos de estudos buscam compreender e explicar essa importante atividade que faz parte do ser humano. Tendo em vista o aumento da população idosa e sendo a comunicação um fator determinante para sua integração social, segundo (MARCUSCHI, 2009, p. 21)

[...] hoje lidamos com práticas diferentes de letramento e oralidade, as variações e manifestações linguísticas correntes são determinadas pelos usos que fazemos da língua e que, a partir dessa premissa o objetivo central de suas investigações será o que fazemos com a linguagem, ou seja, analisará as formas a serviço dos usos.

Segundo o autor a perspectiva da variação entre as gerações sofre diversas mudanças, essa visão remete a concepção sociointeracionista que a língua possui, a língua é um fenômeno interativo e dinâmico, pois, percebemos que a mesma sofre pela falta de explicações dessas mudanças, ou seja, dos fenômenos da língua. Assim, a sociedade e a língua sofrem transformações, o mais instigante é hoje verificarmos que o ser humano é diferente de uma geração para outra, é esse ponto que o torna especial. A fala faz parte da condição humana assim como as variações devem ser estudadas, percebidas e analisadas dentro de um contexto social e não isolada apenas como teorias sistemáticas. Para BORTONI- RICARDO ( 2004, p. 39)

[...] os principais fatores responsáveis pela variação linguística são: Os grupos etários, em uma mesma família de uma mesma região, os avós falam diferentes dos filhos e dos netos, o gênero: as mulheres costumam usar mais diminutivos, e a linguagem dos homens é marcada pelos palavrões ou gírias, os status sócios econômicos, diferenças que representam desigualdades na distribuição de bens materiais que acabam refletindo em diferenças sociolinguísticas, o grau de escolarização, os anos que um indivíduo frequentou a escola interfere diretamente em seu repertório linguístico, e a rede social, indivíduos de uma mesma classe social adotam 112 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

comportamentos semelhantes, inclusive características de seu repertório sociolinguístico.

Analisando a afirmação baseada em estudos e análises da autora BORTONI- RICARDO (2004), podemos afirmar que precisamos ter consciência da existência da variação linguística dentro de uma sociedade, pois não é diferente dentro do nosso meio familiar, perguntar, conhecer e identificar o significado das diversas palavras ás quais, nossos avós, bisavós falam é garantia de que nos tornaremos bons usuários da língua, e com grande flexibilidade em usá-la em inúmeras situações comunicativas. Assim ter essa atitude de diálogos entre entes que tem muito a nos ensinar e reconstruir vivências e experiências pretéritas nos faz perceber e compreender com maior margem de segurança os problemas que envolvem a vida na atualidade. De acordo com Preti (1991) a linguagem do idoso é voltada para a fluência de uma abordagem psicolinguística. Ele descreve marcas características da linguagem dos idosos nos níveis fonético, sintático, lexical, discursivo e conversacional, relacionando-as á ¨algumas transformações que o envelhecimento pode produzir no falante¨, utilizando a análise da conversação e organização do diálogo dentro de uma interação face a face.

[...] é possível afirmar que, em geral, o envelhecimento afeta sua condição de relacionamento social pela linguagem. Assim, as causas de natureza física, decorrentes da idade, que interferem, de maneira às vezes decisiva, nas atividades dos idosos, quer sobre sua vida exterior, quer sobre suas reações psíquicas, seu poder de reflexão e análise, atingem consideravelmente sua capacidade comunicativa e receptiva e, por consequência, a própria habilidade conversacional ( PRETI, 1991,p. 27).

Em relação aos idosos o processamento, recepção e compreensão das informações sofre uma natural lentidão em comparação aos padrões conversacionais dos mais jovens. Estudos mostram que pessoas com idade entre (65 a 90 anos) as pausas tendem a aumentar, enquanto o tempo de articulação tende a decrescer, os aspectos motores, bem como os cognitivos da fala tornam-se enfraquecidos.

[...] É preciso ter em mente, porém, que as marcas linguísticas própria da linguagem de idosos decorrem não só da idade, mas principalmente das relações entre eles e a comunidade em que vivem. Essas marcas podem ser de várias naturezas: prosódicas, sintáticas, léxicas, discursivas ou conversacionais (PRETI, 1991, P. 28).

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Preti (1991) propõe a compreensão de que no que se refere aos aspectos conversacionais, manifesta-se com grande importância fatores que revelam a categoria tempo e presença constante do passado, como ponto de referência constante no discurso, mesmo sendo este (discurso), centrado no tempo presente, as duas realidades a do ontem e do hoje constituem e se articulam à base nessas duas realidades gerando diálogos instáveis, demonstrando insegurança, propiciando um processo de autodesvalorização, de subestima que constitui um dos estereótipos do processo de envelhecimento. Memórias de velhos segundo Ecléa Bosi (1979), a interseção que a autora realiza demonstra a própria realidade social, que articula memória e velhice, o que mais chama atenção no trabalho de Bosi (1979), não é apenas um livro, uma obra, trata-se de um ensaio que puxa outro, impõe a variação antes do tema, como afirma a autora: ¨[...] não pretendi escrever uma obra sobre velhice. Fiquei na interseção dessas realidades: Colhi memórias de velhos. ¨ (BOSI, 1979, p. 63). BOSI (1979) traduz em sua obra a existência escritural da fala, vinculando ação, traduzida à passagem da à escrita, em que o narrador (a própria autora) integram-se os dados narrativos, confundindo as memórias de seus personagens com as suas próprias. BOSI (1979) e PRETI (1991) expõem de maneira ímpar questões que envolvem a marginalização e preconceito ao idoso dando-lhe voz, os autores convidam-lhes a exporem suas lembranças mais antigas e, com elas, recupera um tempo e um modo de viver que, de outra forma estariam perdidos para sempre. São a partir dessas perspectivas que se propôs o estudo, de analisar as expressões, palavras usadas pelos membros integrantes do Centro Social Cultural Palácio Bolonha, ouvindo e dando importância a sua linguagem.

4 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA X PRECONCEITO SOCIAL

A Variação linguística é um fato real da linguagem humana e também objeto de estudo de muitos teóricos renomados que abordam os inúmeros aspectos da heterogeneidade da língua. É um estudo de grande importância no Brasil, já que nosso país apresenta uma realidade social-cultural diversificada que possui traços fortes de uma genealogia marcada por heranças linguísticas de diversas culturas. A importância do estudo em relação a este tema se justifica também para análise e reflexão de um assunto bastante recorrente em nossa sociedade: o preconceito linguístico. Este referido preconceito advém de pessoas que tornam a língua como objeto de exclusão social e/ ou possuem o desejo de impor um limite de linguagem, modificando-a de forma que transformam em elemento rígido, inflexível os quais não combinam com a natureza, isto é essência, menos ainda com a sociedade brasileira que por característica é uma sociedade plural.

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No seio de muitas famílias brasileiras há pessoas que são vitimas de preconceito linguístico e certamente pessoas idosas geralmente com mais de 65 anos de idade. O ato de falar do idoso em muitos lares é estranho e até mesmo, quando comparado a outras expressões são considerados esquisitas, e fora da realidade linguística das pessoas mais novas que fazem parte da vida do idoso neste respectivo lar. O dialeto de muitos idosos ou mais precisamente a forma de se comunicar tendo por hábitos seguir regras gramaticais é motivo de escárnio, principalmente pelos mais jovens, o relacionamento social pela linguagem, as marcas lexicais, a organização do tópico discursivo e a construção das narrativas com indivíduos mais jovens os quais convive cotidianamente como bisnetos, netos, até filhos, caracterizando que o idoso constitui um grupo social discriminado e marginalizado, por vezes sentenciado a reclusão e ao silêncio.

1.5 PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Um dos assuntos mais debatidos na sociedade é o preconceito, de inúmeras ordens: racial, preconceito religioso e a mídia lançando a todo o momento campanhas sobre o ¨não preconceito,¨ em que se afirma que o mesmo é fruto de ignorância e intolerância, e que não deve ser admitido em nossa sociedade, os meios de comunicação são incansáveis em divulgar esse posicionamento, mas não é isso que acontece nos casos de preconceito linguístico. Muito pelo contrário, é o que mais encontra-se presente na sociedade brasileira, gerando cada vez mais insegurança com o seu modo de falar, dizendo que é ¨estranho falar assim¨. Essas atitudes preconceituosas são fruto de uma insegurança linguística, nossa linguagem é uma representação da sociedade em que vivemos, e como toda sociedade a linguagem também é variável, independente da região, cidade ou até do país em que residimos. Cada grupo de pessoas possui uma maneira de se expressar, de se comunicar em suma de falar. Cada grupo social possui uma linguagem que necessita ser respeitada por qualquer pessoa. O que realmente existe são diferentes modos de falar, que foram apreendidos através de um convívio em uma determinada época, em uma determinada sociedade, Marcos Bagno aborda este tema afirmando que: [...]¨preconceito linguístico não existe, o que existe, de fato é um profundo e entranhado preconceito social¨( BAGNO, 2013,p.16). É muito comum em nossa sociedade, pessoas acreditar em que a língua é homogênea. Um fato que comprova esse engano é o do nosso país além de ser amplo em extensão territorial, e ao mesmo tempo ser um país com uma enorme margem de desigualdades sociais e faixas etárias, possuímos formas diferentes de falar que mudam constantemente no tempo e no espaço. Existem vários grupos de status sociais que são falantes das variedades do não- padrão brasileiro, como também vários grupos de faixas etárias diferentes que, como podemos perceber

115 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 apresentam uma diferença considerável no modo de falar ( um adolescente e um idoso, por exemplo), Marcos Bagno em entrevista especial para 9° Bienal da U.N.E, nos diz: [...] como todo preconceito, o linguístico é a manifestação, de fato, de um preconceito social, porque o que está em jogo não é a língua que a pessoa fala, mas a própria pessoa como ser social¨.(BAGNO,2014)49 Em linhas gerais, pode-se afirmar que essa realidade é muito complicada de mudar, contudo, é imprescindível que a nossa sociedade, reconheça esta forma de preconceito e entenda o quanto o sujeito sofre, em muitos casos dentro do seu próprio lar, pois a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sútil forma de intimidação do homem. Para Gilad & Glorig (1979):

[...] ¨entender o envelhecimento é perceber que a pessoa mais velha vive constantemente adaptando mecanismos e estratégias que visam superar suas habilidades em declínio , da melhor maneira possível, afim de manter o equilíbrio entre ela mesma e a sociedade¨.

É imprescindível para o homem e compreender que a linguagem e cognição são elementos que merecem atenção de profissionais que trabalham com idosos, estudos e pesquisas voltadas para a linguagem tem sido motivo de amplas discussões em todo mundo, pois existe atualmente enorme preocupação em preservar a saúde e o bem-estar dessa parcela da população. Nesse contexto, estudos e pesquisas vêm investigando áreas cientificas, entre elas a linguística, verificando as transformações no contexto voltado para a pessoa idosa.

5 DIFICULDADES DE COMUNICAÇÃO NO AMBIENTE FAMILIAR

Outro fator de grande importância é a dificuldade em se comunicar em meio pessoas mais jovens na rotina familiar, estudar a fluência na linguagem dos idosos e detectar que um dos problemas mais importantes são os lapsos de memória, no entanto, quando se trata de acontecimentos ocorridos há mais tempo, a rememoração é mais fácil do que a ¨memória recente¨. Desta forma, os acontecimentos mais antigos são mais facilmente preservados do que mais próximos. Essa característica está presente na linguagem no Centro Social Palácio Bolonha, marcas semânticas são efetivadas nas categorias espaço e tempo na conversação de nossos falantes, contudo, no diálogo com pessoas de faixa etária mais jovens, esses vocábulos, expressões, estruturas formulaicas, formas de

49 www.une.org.br/2014/11.marco-bagno-a-lingua-como-instrumento-de-poder/acesso em 06/03/15. 116 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 tratamento, relacionados com sua época torna incompreensível à audiência mais jovem, ou porque seus vocábulos se arcaizaram ou porque emigraram para fora do ambiente em que vivem os entrevistados.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo possibilitou o conhecimento de uma realidade, até então, não muito explorada: Terceira idade na cidade das mangueiras: Variações linguísticas no Centro Social Palácio Bolonha. Essa investigação ainda possui poucos estudos relacionados, o que possibilita a oportunidade de discussões mais detalhadas quanto ao contexto no âmbito da 3º idade e as relações interacionais comunicativas dentro do âmbito familiar, além da análise dessas variações semânticas serem importantes, esses estudos registram formas de expressões que se não estudadas em tempo irão deixar de ser usadas e esse rico repertório linguístico acabará sendo perdido no tempo, fazendo parte de um grupo de pessoas que conseguiram transitar por duas ou mais gerações, os quais se encontram aptos em participar ativamente na rotina, no dia a dia dentro de uma sociedade em que a maior preocupação é não perder tempo, a informatização tomou espaço do diálogo e lidera a vida na atualidade. Muito além de se levar a esferas mais amplas do que tratadas na Sociolinguística, o estudo da linguagem na 3º idade no âmbito da sociedade brasileira necessita ser compreendido e respeitado já que estes fenômenos variáveis da linguagem que se altera em contextos situacionais e conversacionais, e o condicionamento linguístico são influenciados pela variável faixa etária, sexo e escolaridade o estudo desta relação é de suma importância para a semântica. Em vista do exposto, pode-se concluir que a linguagem usada pela comunidade Grupo 3º idade Centro Social Palácio Bolonha, são variáveis que estão relacionadas entre fatores prováveis e possíveis de significados dependentes do contexto semântico e que deve ser interpretados linguisticamente.

REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. Nada na Língua é por acaso: Por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola editorial, 2007. BORTONI; RICARDO, S.M. Educação em Língua Materna: A sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade- Lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2015. MARCUSCHI, Luis Antônio. Análise da conversação. São Paulo, Ática, 1986. MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de Linguística, (org.). 2. ed., 2º reimpressão - São Paulo: Contexto, 2013. PRETI, Dino. A linguagem dos Idosos. São Paulo: Contexto, 1991.

117 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

SCANLAN, Burt K. Princípios de administração e comportamento organizacional. São Paulo: Atlas, 1979.

LITERATURA CONTEMPORANEA Caracol Julian Oroz50

50 Poeta, músico e cantor argentino. Produziu o álbum “Las cosas que se ven con los ojos cerrados” em Oct 2012, “La Importancia” em Jan 2014 e Centellas, em Jan 2016.

118 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

https://julianoroz.bandcamp.com/ Lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy Lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy Con el amor en la paciencia al dejar mi huella alguien la vera Y aunque parezca una incoherencia Algo va a quedar, algo va a quedar Lento como caracol, lento como caracol Lento tan lento que voy, mira que lejos que estoy Lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy Si voy en bicleta y me tocas bocina, bocina, bocina Si no estoy a la altura de lo que pedían, pedían, pedían Es que no quiero que la vida me pase de golpe, de golpe, de golpe No quiero andar corriendo sin saber a donde, a donde, adonde Y no quiero que, no quiero que Yo no quiero que, no quiero que No quiero que me vengan a apurar Lentoooooooo Cooooomooooo caaaaraaaa col Leeeeento coooomooo caracol Leeeeentoooo, taaaan leeeento que vooooy Meeeeraaaa que lejos que estoy Lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy Pero lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy Lento como caracol, lento como caracol Lento, tan lento que voy, mira que lejos que estoy

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Centellas Me dijiste: no vuelvas, no hay nada aca para vos Me dijiste: no vuelvas, no hay nada aca para vos Mi dijiste: no robes, no hagas otra canción Me dijiste no robes, no hagas de esto Quiero aprender idiomas Dicen que nunca es tiempo perdido Quiero aprender idiomas Para decirle a todos lo mismo Que se haga bola Centellas Me dijiste: no mientas, que la verdad la haces vos Me dijiste: no mientas, que la verdad la haces Quiero aprender idiomas Dicen que nunca es tiempo perdido Quiero aprender idiomas Para decirle a todos lo mismo Que se haga bola Centellas, centellas Centellas Centellas Centellas centellas

Alegría

No hay palabra que te calce mejor

Alegría, alegría

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No hay cantor que no rompa la voz

Alegría, alegría

Recordé el valor del amor

Justo a tiempo, alegría

Podemos hacer tantas cosas

Podemos hacer tantas cosas

Pero no es lo mismo hacerlas solos

Otra manera

Otra manera, otra manera

Debe haber otra manera de andar

Para que sea mas simple continuar

Otra manera, otra manera

Debe haber otra manera de andar

Para que tenga sentido mi cantar

Aunque pidas consejos ya no me quedan mas

No hay nada que sea nuestro no hay nada que agarrar

Creo que solo existo en vos

No hay dolor, hay amor o falta de amor

Otra manera

Debe haber otra manera

Águas

Daniel da Rocha Leite51

51 Escritor paraense Daniel da Rocha Leite é advogado e licenciado pleno em Letras, com habilitação em Língua Alemã. Acredita que a palavra viva escreve imagens. Lança pedras ao rio. E alguém sempre 121 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Agora, era não olhar para trás. Sumir verdadeiramente. Esquecer essa história. Não acreditava em destino, entretanto, neste instante, quando fechava a porta pelo lado de fora, deixando Silvério trancado lá dentro, o sentimento da mesma história voltava e as suas cicatrizes se abriam: ela amava homens errados. Era ela. Estava escrito. – o olho das palavras de Joana. Amava sempre homens errados. Era um destino escrito. Tentava não pensar esse pensamento. Mas ele vinha, sorrateiro, nos ruídos dos seus silêncios. Seria ela, assim, mulher deste destino? Enquanto jogava a chave na vala em frente à sua pequena casa, pensou nisso mais uma última vez. Joana estaria, enfim, com a razão sobre o mundo da sua vida? Tudo estava escrito? Era ela uma escrita marcada? Jamais aceitaria amar homens errados. Era uma forma de excluir a própria culpa e acreditar, outra vez, em destinos. Ela sabia desescrever destinos. Estava ali, fora de casa, chave jogada na vala, Silvério dormindo, trancado dentro, esperando dar 14 horas para ela o acordar, servir o seu café bem forte e ele voltar ao trabalho. Destino é a minha própria escrita. Não haveria mais café bem forte. Nem alguma mão carinhosa que levemente sacudisse seus ombros para acordá-lo, avisando sempre do adiantado das horas. Ele que se virasse, saísse pela janela e imaginasse uma boa mentira para dizer ao seu chefe. Ela havia cansado para sempre. Desistido, outra vez, de mais um homem igual. Homens errados – pensou. Nada se escreve destino, murmurou enquanto começava a andar, afastando-se da casa que havia sido sua nos últimos quatro anos. Deixei mais um. Homens errados não existem – salivava o seu pensamento. Respirou fundo, firmou o passo. Na rua, o céu estava cinza feito fogo queimado. 13 horas. Mormaço servido na panela de pressão, abafado úmido e quente, a náusea das tardes, o corpo outra vez só. O fracasso da voz, a vez das palavras vencidas. Homens errados não existem. Talvez fosse ela, o verbo antes dos homens. Ela amava errado. Teve vontade de chorar. O destino escrito. Sempre ela nesse verbo de erros. No ponto de ônibus, prensou a lágrima. Era ela o erro, o seu verbo mastigado. Ela amava errado. Esse o seu desmundo, a sua revelação mais dolorosa.

espera as marcas da água. Uma história contada. Um contador de histórias. Contos-poemas que transpirem a natureza da condição humana: sua ternura e contradições. 122 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

Homens errados não existem, salivava algo seco. Agora, nesses seus primeiros passos, tinha percebido tudo, a água podre da ferida aberta. Achou o verbo enfim, amar errado. Vencer o verbo, desdizer. Pensou em Joana. Precisava chorar. Eu descobri a saída. Nada se escreve destino. A vontade de morrer iria passar. Eu estou livre, Joana. A vontade de matar iria passar. Entrou no ônibus. Estava exausta. Adormeceu logo que sentou. O caos da tarde nos olhos, sono, cansaço, a fome, o fedor do ônibus. Agarrada à sua sacola, ali, entorpecida pelo barulho do motor, dormiu um profundo minuto. Homens errados não existem. – seca a boca, sonhou. Acordou assustada. Conferiu a sua sacola presa ao corpo. Ela estava lá. Viva e quieta em seus caninos úmidos. Água estava viva. Assim como ela. Viva para um novo mundo. Não matar. Não morrer. Firmar os passos no arame suspenso da vida. Lá fora, o mundo era maior que essa tarde. Destino é a minha mão que escreve. – suor dentro da mão. Ela se escrevia no jornal, escrito o corpo, as possibilidades. Um nome inventado, a cor da pele nas palavras, carícias acesas pelo texto escrito, ela gostava de se escrever. Acompanhante para eventos, educada, olhos negros, noite inesquecível, cabelos longos, corpo pequeno, acesa em tudo, insonhável. Eva. Telefone. Havia sempre três textos que ela trocava conforme as palavras revelassem um cansaço. Rascunhava algo novo, inventava outro nome, uma sílaba aberta, úmida, florida, gostava. Assim vivia. Assim resistia. Aprendeu a se escrever, a se reescrever, a não matar, a não morrer, uma inscrição. Expulsa de casa na cidade pequena do interior. Padrasto bulia com ela nas noites de reza da mãe. Evitava estar em casa nas noites de segunda, quarta e sexta, as tardes de domingo eram as piores, o homem vinha sempre fedido a álcool, as mãos com gordura de carne do churrasco, as unhas com a terra do carvão, cravadas nela, dedos do demônio, ela sabia. A mãe saía para o culto, ele vinha se deitar em cima dela, apertava o seu pescoço até ela revirar os olhos sem ar, dizia que se ela falasse algo para a mãe, matava ela e o irmão pequeno. O menino chorava no berço um choro agudo. Padrasto se servia dela, derramava quente o seu nojo na barriga magra, mandava ela

123 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 tomar banho, preparar um café, aprontar a janta, eu te mato, tu sabes, sempre silêncio, menina. Nem sempre era possível sair de casa nessas horas, fugir, desdobrar-se só, sumir, tudo era tarde. A mãe a deixava tomando conta do irmão no berço. Ela tinha que cuidar. O homem vinha, ela definhava, náusea do cheiro da carne, do café. O menino no berço gritava, o homem derramava no corpo dela a sua borra podre. Numa noite, o pastor passou mal, cancelaram o culto. A mãe veio mais cedo para casa, encontrou o homem arfando em cima da filha. A mulher gritou uma noite inteira, amanheceu com os olhos vidrados, o homem disse que a culpa era da filha, ela era do demônio, tinha o mal nas carnes, seduziu ele, seduzia sempre, ele era fraco, precisava de ajuda, precisava, precisava muito, contou chorando para a mulher. - És uma perdida. – a mãe disse para a filha. Toda a pequena cidade soube. O homem começou a frequentar o culto com a mulher. A filha foi despachada para a capital, trabalhar em casa de família. A mãe acertou tudo com a patroa da cidade, disse a roupa que a filha ia chegar na rodoviária, disse que a filha era boa no trato com crianças, era limpa e calada, não fazia barulho, era obediente e podia lavar e passar também, sabia matar galinha, fazer guisado. Era boa de trabalho, educada, trabalhadeira, a filha, assim como ela, eles podiam confiar. Na casa da capital o inferno foi pior. Eram muitos os demônios, eles vinham pela madrugada, abriam a porta do quartinho dela no porão, buliam, mordiam, penetravam, não havia culto, tudo era silêncio sabido, permitido, ela era calada, sempre calada, não fazia barulho, era boa de arrancar pescoço de galinha, matava bem, colhia o sangue, o homem da casa, demônio dos demônios, gostava de galinha cabidela. Ela via o sangue coalhar, de vermelho virava roxo, negro, talhava, surgia um rio naquele sangue, uma história, rostos, vozes, ela mergulhava naquele sangue, se afogava, caía. Cuida, menina, és lerda, beliscavam a coxa. Em uma tarde, ela avançou com a ponta da faca na barriga do filho do patrão, que tentava aprender a ser demônio na carne dela. Pegou de raspão na barriga do menino. Ela apanhou da mulher da casa, apanhou do senhor da casa, vergonha da casa toda. Ela, como se fosse uma filha, era uma filha, filha deles. Teve que lavar o chão sujo do sangue do

124 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 menino. Lavou primeiro as suas lágrimas, lavou depois, feliz, aquele sangue derramado do pequeno demônio. A água sanitária dissolvia as nódoas de sangue pingadas no chão, cor de vinho, menino sangrado demônio menino, celebração, ela sentia. Já tinha visto muito do próprio sangue pelo chão, sangue pisado, sangue preto, borra de café da menina sangrada sempre. Agora, ajoelhada, era outro o sangue lavado, sangue celebração, sangue lago, lodo, ela submergia lentamente. Destino se escreve com a minha letra, suor do meu corpo. A mulher a despachou para trabalhar na casa de uma comadre. A mesma história, sempre o mesmo sangue, ela, seguia sangrando. Fugiu. Não sabe como envelheceu tanto aos vinte e cinco anos de agora. Serviu outras casas, serviu outros demônios, conheceu navalha, conheceu mentiras, conheceu novas línguas e dentes. Endureceu a carne. Envelheceu. Mundo da rua, vários homens, amava sempre errado, ela sabia, sangrou mais, aprendeu, começou a se escrever. Massagens, discreta, carícias em segredo, atendimento privativo, morena, cabelos longos, negros os olhos, à tarde, corpo pequeno, acesa, Sibele. Telefone. Ele telefonou. Marcaram para um intervalo de almoço. Ele pagou adiantado, desejava somente estar com ela, conversar. Ela nua, ele ser ouvido, escutar, dizer algo. Foi quando ele lhe disse que era muito infeliz no casamento. Estava se separando, estava já separado, mas ainda viviam juntos na mesma casa. Havia a família, as três filhas e a mãe que morava junto com eles. E os papéis do divórcio sempre demoravam, além do que o preço da justiça era um rio de dinheiro. Mas já se sentia separado. Ela não o procurava mais no meio da noite nem nas horas marcadas do vazio de um domingo. Ele também não a procurava mais, entretanto, a queria bem, pois era a boa mãe das suas três filhas. Não viviam mais como marido e mulher, apenas eram pessoas amigas que moravam debaixo do mesmo teto. Mas estava já se separando, separado de fato mesmo já estava. Ia dar entrada nos papéis, o direito. Era somente uma questão de tempo. Já se via como um homem livre. Sentia-se, assim, um homem livre. Pronto para amar mais uma vez. Livre e fora de casa. Pronto para ela e o seu amor.

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Repetiram-se as várias tardes de conversa e escutas. Sempre adiantado o pagamento. Ela nua. Ele falava. Ela começou a falar. Ele desejava saber da vida dela, como era a vida, a vida essa, se ela não tinha vontade de sair, largar tudo, viver. Em uma das tardes, aconteceu. Ele era bom amante, ardente, cuidadoso, atento. - Eu precisava das palavras primeiro. Ele confessou um dia. Ela gostou daquele mundo. Palavras, uma voz, uma vez, uma vida. Ela parou de se escrever, ele pediu. Deixa de te escrever, só o que eu preciso. Alugou uma casa para ela no outro lado da cidade, bem próximo do seu trabalho. Ela deixou o pensionato. Comprou roupas novas para ela, resolveu a dor e o desalinho dos dentes, colocou um aparelho metálico em sua boca, achava engraçada a sua nova voz, mobiliou a casa com os móveis que ela escolheu, marcou pedicura todas as quartas pela tarde, faziam compras no supermercado do bairro nas quintas às 13 horas, nos sempre intervalos do seu almoço de trabalho. Comprava xampus, cremes, máscaras faciais, esmaltes vermelhos e outros agrados. Voltavam para casa, faziam amor e almoçavam sempre juntos. Ele dormia até às 14 horas, quando ela o acordava com um café bem forte, que ele a havia ensinado a fazer, sem queimar a água. Felicidade era ele chegar qualquer minuto antes do meio-dia. Onze horas, visita cancelada de cliente, era motivo de festa. Instantes intensos para ficarem mais tempo juntos. Joana dizia. Esse homem é igual aos outros. Nunca vai se separar. Ela duvidava. Não é, Joana. Ele me trata bem. Já está se separando. Em um desses intervalos de almoço, disse a ele que se sentia muito só. Perguntou do divórcio. Não queria pressioná-lo, apenas queria ele todo para ela, em todos os instantes e não apenas em intervalos de almoço. Ele disse que logo iria dar entrada nos papéis do divórcio, um rio de dinheiro a justiça, era apenas uma questão de tempo e preparar a família para a sua saída de casa. Ela insistiu. Eu me sinto muito só, Silvério. Ele lhe deu um abraço bem apaixonado. Olhou em seus olhos. Prometeu que logo iria resolver, ou diminuir, esse problema da solidão. Não saio de casa porque sei que tu não gostas. Converso com as paredes para acalmar esta solidão. Mundo só, ecoa dentro da gente. Ele lhe

126 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 deu mais um abraço. Beijou seus olhos. Vou acalmar essa tua solidão, tu vais ver. Foi em uma segunda-feira, nas sempre 13 horas, que ele abriu a porta da casa com uma caixa de papelão em seus braços. Era para diminuir a solidão enquanto ele, ainda, não podia vir morar com ela, o direito, a justiça, um rio de dinheiro. Era um presente. Era uma cachorrinha. Para diminuir os instantes de solidão. E o divórcio, Silvério? Quase um sussurro. Mês que vem, sem falta, dou entrada nos papéis, a justiça um mar de dinheiro. Fizeram amor. Ele teve que voltar para o trabalho e para a sua família que, ainda, o aguardava todos os dias, depois do expediente. Ela não esperava, não era costume dele ligar no final da tarde. Neste dia, às 18h, ele telefonou. Disse-lhe para ela não estranhar se a cadela latisse no meio da noite. Era normal, não era sofrimento. Bastavam carinho e atenção que ela sossegava. Pediu que ela escolhesse um nome para ela. Disse que a amava. Desligou. Nessa noite, a cachorrinha latiu a madrugada inteira. Silêncio mesmo só quando ela a colocou na cama para dormir com ela. Deu-lhe, enfim, um nome. Água. Nome assim, simples como quem mata a sede de uma companhia, ela escreveu na parede, Água. Era este mundo, esta escolha, esse o nome. Água. Repetia... repetia o nome. Chamava: Água! Gostou dos sons do nome pela casa. Água...Água. Noutro dia, no intervalo do almoço, Silvério achou muito estranho esse nome, mas não disse nada. Continuou mastigando o seu prato quente de feijão, macarrão, arroz, bife, rodelas de uma banana e um ovo frito; ao lado, uma cerveja. Joana dizia. Esse homem é igual aos outros. Nunca vai se separar. Tu estás envelhecendo. Ela duvidava. Eu conheço o meu homem. Noutro dia, cobrou de Silvério uma resolução. Ele, aos gritos, disse-lhe que ela não o perturbasse, estava com muitos problemas no trabalho para ficar pensando em divórcio. Ela já não o tinha todos os dias, na hora do almoço? Já não tinha uma casa, já não tinha o melhor dele e da sua vida? Não era para ser feliz então? Neste dia, não almoçou. Perdi o apetite. Bateu a porta da casa. Voltou para o trabalho. Ficou uma semana sem aparecer. Apareceu na outra segunda-feira, hora do almoço, debaixo de uma chuva terrível. Deixou o guarda-chuva aberto no meio da sala. Ela não suportava isso,

127 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 lembrava as palavras da mãe, tristeza entra em casa. Calou-se, paz com o seu homem. Problemas de saúde em casa, tudo ruindo, no trabalho ameaças de demissão. Era Silvério, a voz vermelha. Iria, portanto, sair menos nas horas do almoço, almoçaria por lá mesmo, em cima da sua mesa de trabalho um prato feito mandado pedir no térreo do prédio. Prato frio não importava, preciso era marcar presença no trabalho, diligenciar, fazer-se sempre presente. Defender o seu lugar. Assim foi feito. Agouro cumprido. Desaparecia por muitos dias. Andava sumido. Às vezes, vinha só para almoçar e dormir. Não faziam mais amor como antes. Ela fazia um café bem forte, sacudia levemente os seus ombros para acordá-lo, ele ia embora, de volta para o trabalho e para a sua vida. Ficou, nesta última vez, quase um mês sem aparecer. A dona da casa alugada, que morava no outro quarteirão, veio cobrar os aluguéis atrasados. Depois de ouvir todas as ofensas da proprietária, ela tentou ligar para os três telefones de Silvério. Nenhum atendeu. Era proibida por ele de ir até o seu trabalho. Desta feita, era urgente. A dona da casa afirmou que se não recebesse os aluguéis atrasados até depois de amanhã, ela iria ser posta na rua. Assim na rua, no mundo dos olhos. Sabia que ela era uma vadia, disse-lhe, ao fim, gritando com ela. Vadia. Puta. Só não sabia que ele também, além de vadio era um mau pagador, um adúltero de bosta – bateu a porta. Ela arranjou um menino para ir até o trabalho dele com um recado urgente: que ele aparecesse para almoçar no lugar de sempre. Noutro dia, ele estava lá. Não tinha mais a chave. Bateu na porta. Ela veio abrir. Ele entrou. Ela nem teve tempo de dizer quase um mês, Silvério. Assim que abriu a porta, a cachorrinha, louca de saudades do dono, jogou-se aos pés dele, urinando-se e gemendo toda. Sai, Água, sai, passa porra, gritou, chutando-a para longe. Água, aos ganidos, correu para os pés dela. Está aqui o dinheiro dos aluguéis. Jogou sobre a mesa um punhado de dinheiro miúdo preso em uma liga de borracha. Vim almoçar. Cadê a comida? Ela, em silêncio, pôs a mesa. Almoçaram juntos. Calados. Ele, depois de terminar de comer, foi para o pequeno sofá da sala. Tirou a camisa, ligou o ventilador e a televisão. Lembrou a ela do café forte. Pediu que o acordasse às 14 horas. Tinha que voltar às pressas para o trabalho, a vida não está barata e o mundo é cão.

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Ela foi lavar a louça do almoço. Água veio de novo até os seus pés. A cachorra ainda gania bem baixinho, vomitava sangue. O chão marcado de sangue outra vez, a mesma marca. Ela abaixou-se. Água quis deitar-se em suas mãos. Quando deu por si, já estava ficando tarde. Ainda tinha que fazer o café bem forte de Silvério. Água de café não pode ser água queimada. Lembrou das palavras e dos carinhos antigos dele. Lembrou do chute e dos gritos na cachorra. Lembrou da cadela na porta, gemendo e se urinando de saudades. Odiou Silvério. Iria odiá-lo para o resto da sua vida. Teve vontade de matar, vingar o sempre sangue. Ferveu a água o máximo que pôde. Ele dormia no sofá. De uma vez verter a vingança, dentro do ouvido dele água fervida para vingar o sangue, os gritos e o chute na cachorra. De uma só vez, derramar, matar, vingar e não enlouquecer. Fugir dali, sair daquela casa, fugir para sempre, desmorrer. Foi à sala. O homem roncava, um lábio caído. Chegou bem perto da sua cabeça, mirou no ouvido, vergou a panela, viu as borbulhas de água quente arderem ainda mais sedentas, um barulho de morte fervida, água fazendo espuma, vapor, sanguinário silêncio. Era só virar, despejar. Pronto, vingança cumprida, homem morto, desgraçado queimado vivo. No último instante, desistiu. Não teve coragem. Não era uma assassina. Pensou na vida e nas palavras dele. - O mundo é cão. Silvério. Um homem errado. Não seria capaz de matá-lo. Era ela. Ela amava errado. Voltou em silêncio para a cozinha. Teve vontade de morrer. Água estava em seus pés, lambendo os seus tornozelos. Lembrou dela, à porta da casa, gemendo e se urinando de saudades. Ela era ela. Gemendo de saudades, se dissolvendo. Água e ela, um mundo só, uma vida. Águas. Ela sabia desescrever um destino. Amar certo, um dia aprenderia. Recomeço, um remédio amargo. Ir embora era a urgência. Agasalhou Água em uma sacola. Abriu a porta silenciosamente, trancou o cadeado pelo lado de fora. Jogou a chave na vala. Saiu com a roupa do corpo. Não olhar para trás. Esquecer essa história. Pensou em Joana, no mundo daquelas palavras. O destino. Era ela. Estava escrito. Amava errado. Ela amava errado. Olhou para dentro da sacola. A cadela gemia baixinho, machucada, a língua para fora, um cansaço carnívoro. Águas.

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Desescrever um destino o sempre destino, tinha aprendido, gosto de sangue na boca. Destino é a minha mão que escreve, salivava o pensamento. Voltar a se escrever, pelo sangue, uma nova escrita. Acompanhante silenciosa, negra, cabelos fartos, corpo sem palavras, para ter saudades. Pele líquida. Lucila. Telefone. Repetia as palavras para não se esquecer. Destino é a minha escrita. Respirou fundo. Saliva seca. Nunca terminado o texto. Sempre o suor dentro da mão.

Dentes e sal

Renato Torres52

52TORRES, Renato. Perifeérico. Belém..Editora Verve, 2014. 130 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

"resolveu celebrar universários", relia naquele poema enquanto ajeitava-se à roda de uma fogueira - a velha estrada que atravessava, e onde reunia-se continuamente com os desconhecidos de um sonho. a mais nova entre eles surpreendeu-se: "44? mas como, viajante? onde descobres a fonte infante?" respondeu com um meio sorriso, porque naquela tarde específica o calor era terrível e o cansaço amealhava pequenas dores como um ramalhete intermitente.

"não tenho nenhum segredo, a não ser dentes e sal" ela intrigou-se ainda mais: "dentes e sal?" decidiu recostar-se na pedra do caminho, a cabeça encaixada, os olhos estrelados "veja: mesmo nessa tarde solar é possível ver estrelas... elas vagam na retina como protozoários inquietos". a pequena nem considerou a digressão, pertinaz em seu inquérito: "queres dizer dos dentes que usas para comer, do sal da terra que te sustenta o corpo?" dessa vez a olhou cuidadosamente nos olhos (como convém olhar toda criatura que os têm) e lentamente abriu um sorriso completo, que evoluiu até uma levíssima risada. parece ter funcionado, porque ao contágio os olhos dela também riram, e a moça finalmente mostrou os dentes que tinha - e eram belos.

"quanto ao sal", disse a ela "é bom que desperte sempre que o coração sangrar, pela luz do olhar. ele o conservará, não o deixará apodrecer. não há nada pior que um coração apodrecido" nesse momento, a menina se deu conta: estava longe, muito longe de casa,

131 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741 longe daqueles que conhecia e amava, longe do próprio sentido da longa viagem, longe da vigília, longe de si mesma, longe do perdão, e apesar de ter tentado, não conseguiu manter-se longe da própria dor. sorriu desconcertada ao universariante, os olhos afundados na ressaca do mar e chorou.

SUPLEMENTO DE ARTE

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Título da obra ELA...SOBRE TODAS AS COISAS Técnica: Fotografia-instalação Ano: 2016 Artista: Sanchris Santos

Título: Série Língua Hispano-lusitana: Palavras que atravessam as ruas Técnica: fotografia Artista: Ilton Ribeiro dos Santos - Ano:2016 133 REVISTA LITERÁRIA TALARES/ESMAC – V. 3, n.3. 2016 - Ananindeua/PA. ISSN: 2358-7741

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Título: Belém: Água e pedra Técnica: fotografia Artista: Marcelo Roger Penha (aluno do 7º semestre curso de Artes visuais da ESMAC) - Ano:2016

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