O nascimento da psicanálise de criança – uma história para contar

O nascimento da psicanálise de criança – uma história para contar

Maria do Carmo Camarotti

Resumo Este artigo faz uma volta no tempo, abordando histórias pessoais de pioneiros da psicanálise (Hermine von Hug-Hellmuth, , Melanie Klein), as quais se entrelaçam com a pró- pria história da psicanálise. A partir desse resgate histórico e considerando as evoluções na prá- tica clínica, são levantados questionamentos tais como: existência de uma psicanálise de adultos e de uma psicanálise de crianças; lugar dos pais na análise; limites entre pedagógico e psicanalí- tico; existência ou não de relação transferencial entre criança e analista.

Palavras-chave Psicanálise, História, Transferência, Pais, Criança.

“... Não se é impunemente filho de um grande homem, se já temos tanto trabalho para nos desfazermos de pais ordinários...” (De Emma Jung para S. Freud)

Quando se pensa na história da psi- A psicanálise de criança nasceu de canálise de criança, destacam-se os nomes forma marginal e em busca de legitimida- de Anna Freud e Melanie Klein, já que de e, por que não, de filiação? Deve-se ao Hermine von Hug-Hellmuth, pioneira da fato de ter sido criação de duas mulheres, psicanálise infantil, continua sendo des- Anna Freud e Melanie Klein, ambas pro- conhecida. Seria esse silêncio em torno do tagonizando uma rivalidade fraterna em seu nome consequência da sua trágica busca de um lugar junto ao pai da psica- morte? Hug-Hellmuth foi assassinada em nálise? Ou se deve ao fato de ter surgido 1924 por seu sobrinho Rudolf, a quem em meio a segredos e de forma incestuo- educou seguindo os princípios da pedago- sa, quando sabemos que Anna Freud foi gia e da psicanálise. analisada pelo pai, que Klein analisou o Mas, foi o inquieto e revolucionário próprio filho, que Abraham analisou a sua Sigmund Freud quem deu os primeiros ali- filha Hilda, e Jung a sua “pequena Aga- cerces. Este artigo faz uma volta no tem- thli”? Além de que a primeira análise in- po, abordando histórias pessoais de pio- fantil, a do “pequeno Hans”, foi realizada neiros da psicanálise que se entrelaçam pelo próprio pai, Max Graf. com a história mesma da psicanálise. Poderiam os primórdios da psicanáli- A origem da psicanálise de criança se de criança ser considerados como cons- está ligada à confluência pai-analista, si- trução conjunta entre pais e filhos, já que tuação que Freud considerava como ideal foram as crianças que forneceram inocen- para se empreender a cura analítica de temente material (sonhos, jogos, falas) aos uma criança. seus pais, ávidos em transmitir suas obser-

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vações a Freud? O mesmo Freud que dis- questionando o amor materno inato e fa- se a Emma Jung não ter tempo de analisar lando do bebê como objeto sexual da mãe. os sonhos dos seus filhos, pois precisava Numa época em que o lugar da mu- ganhar dinheiro para que esses continu- lher era o de cuidar das crianças e a pro- assem a sonhar. fissão de médica não era bem aceita para Retomando essa história, voltamos ao o sexo feminino, as ideias de Hilferding ano de 1906, Rua Bergasse, 19, nas co- foram indiscutivelmente revolucionárias. nhecidas “sessões das quartas-feiras à noi- A psicanálise de criança teve início te”. Homens sobriamente vestidos se diri- num período em que a comunidade analí- gem à casa de Freud, compartilham de tica debatia a formação do analista e ten- certa intimidade com o professor e são es- tava institucionalizar essa formação. Nos timulados a falar das observações que fa- anos pós-guerra, a preocupação com o zem dos próprios filhos. Foi esse o modo mau uso da psicanálise e o temor do char- encontrado por Freud para recolher ma- latanismo contribuíram para a polêmica terial e provar que o funcionamento se- sobre a conveniência ou não de autorizar xual começa no início da vida e se mani- os não médicos a este exercício. Uma re- festa de várias formas. Esta sua afirmação solução tomada em 1927 pela Comissão provocou grande reação da sociedade vi- Internacional de Ensino dispensou os psi- enense da época e precisava ser provada, canalistas de criança da formação médica não só pelo material reconstruído na aná- que era exigência de algumas sociedades lise de adultos, mas também pela observa- psicanalíticas quando se tratava de ana- ção direta das crianças. listas de adulto. Max Graf, que entrou na história da Isso imprimiu à psicanálise de criança psicanálise como pai do “pequeno Hans”, uma busca contínua de reconhecimento. descreveu o clima das reuniões: No seio da psicanálise infantil persistiu um debate entre Anna Freud e Melanie Klein “Havia no consultório uma atmosfera de em torno do que é a “verdadeira psicaná- fundação de uma religião. Na cabeceira lise”. Um dos fatores de discordância era da mesa, Freud presidia a reunião, sem- a descrença de Anna Freud quanto à pos- pre examinando seu charuto de Virgínia sibilidade de a criança estabelecer uma que ele fumava com olhar sério. Após transferência, aspecto este defendido por exposição feita por ele ou por um dos Klein e que permaneceu como mais acei- membros, eram servidos doces e café. to entre os analistas. Eram também fartamente consumidos Freud, apesar de situar as causas da cigarros e charutos. Após algum tempo neurose na sexualidade infantil, não se de conversa sobre assuntos mundanos, dedicou à análise de crianças. No início as possíveis discussões se abrandavam” de sua obra, afirmava ser necessário ma- (HILFERDING, PINHEIRO & VI- turidade para alguém se submeter à análi- ANNA, 1991, p.62) se, o que inviabilizava sua aplicação a pes- soas jovens, adultos pouco inteligentes e Oito anos após o início dessas reuni- incultos. ões e com relutância de muitos, Margare- Em 1909, com a “Análise da fobia de te Hilferding pôde participar como mem- um menino de cinco anos”, Freud lançou bro da então Sociedade de Psicanálise de o primeiro modelo de análise infantil e Viena. Como oradora da noite, em 1911, provocou agitação e indignação na épo- apresentou para um público de vinte ho- ca, sendo a psicanálise acusada de roubar mens, provavelmente perplexos, o traba- a inocência dessa criança. Nessa análise, lho “Sobre as Bases do Amor Materno”, o pai de Herbert (nome verdadeiro do “pe-

50 Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 60 • p. 49 - 54 • Set. 2010 O nascimento da psicanálise de criança – uma história para contar queno Hans”) observava e registrava fa- rente na análise infantil pela presença real tos e comentários do filho, cabendo a dos pais, opinião defendida por Anna Freud revelar o sentido para que fosse Freud e refutada por Klein. Esta questão é transmitido a Hans. Freud seguiu os prin- ainda hoje discutida entre os que empre- cípios da técnica analítica da época, in- endem a psicanálise infantil, a saber, o lu- terpretando à criança seus desejos edípi- gar dos pais no processo psicanalítico do cos e sua angústia de castração. Este caso filho. lhe possibilitou confirmar sua teoria da No artigo de l909, Freud afirmou que sexualidade infantil e a aplicabilidade da somente a união de pai e terapeuta em análise às crianças. uma única pessoa garantira o tratamento Num pós-escrito de 1922, Freud rela- analítico de Hans. Não incentivou a ge- tou ter recebido a visita de um jovem de neralização e aplicação dessa experiência, 19 anos que se apresentou como o “pe- mas sua crença de que a análise de Hans queno Hans”. Este se tornara um rapaz só fora possível devido à confluência pai- saudável e declarara estar muito bem e não analista provocou grandes repercussões ao sofrer de nenhuma inibição. longo da história da psicanálise de crian- Entre os anos l925 e l930 a questão ça. da profilaxia estava na ordem do dia. Bus- Hermine von Hug-Hellmuth, primei- cava-se a criação de uma sociedade nova. ra analista depois de Freud a aplicar a aná- Era a época da reconstrução e dos sonhos. lise infantil, divergia da ideia da conflu- Freud acreditava que a pedagogia de ins- ência pai-analista, defendida pelo mestre, piração psicanalítica seria um meio de er- argumentando que a criança não confes- radicar as neuroses do adulto. Ao longo sa jamais seus desejos e pensamentos ínti- de sua obra, pouco abordou a aplicabili- mos e profundos aos pais e que a franque- dade da análise à criança e foi nas “Novas za psicanalítica do filho dificilmente seria Conferências”, de 1933, que escreveu so- suportada pelo narcisismo parental. Hug- bre a psicanálise infantil, sua aplicação e Hellmuth buscava conciliar os objetivos relação com a educação. psicanalíticos com os da família, escola e Confessando não ter se ocupado o sociedade, tentando desvendar os segre- suficiente dessa questão, orgulhava-se por dos que a criança ocultava intencional- sua filha Anna ter se dedicado à aplica- mente dos educadores. Propunha que o ção da psicanálise à educação, que ele di- analista de criança não precisava explici- zia ser talvez a mais importante de todas tar os impulsos inconscientes, bastando as atividades da psicanálise. que esses se expressassem em atos simbó- Freud defendia a aplicação da análise licos, sem necessidade de passar pela lin- infantil como medida profilática, argu- guagem falada. O analista deveria ser ao mentando que os resultados são seguros e mesmo tempo terapeuta e educador que duradouros. Propôs modificações na téc- cura. Essa pedagogia curativa se asseme- nica utilizada com o adulto por conside- lha ao que foi defendido por Oskar Pfister rar, dentre outros aspectos, que a associa- e que marcou a obra de Anna Freud. ção livre não tinha razão de ser pelo fato Pfister, interlocutor privilegiado de de a criança não possuir superego. Freud entre os anos 1909 e 1938, defen- Considerando a brincadeira da crian- deu uma pedagogia adaptativa, conside- ça no setting analítico como via régia para rando ser função do analista orientar pa- o inconsciente, Klein atribuía a este brin- cientes para a sublimação. Freud contes- car a equivalência da associação livre. tava mostrando que esse método se cho- Em relação à transferência, Freud sus- cava com a neutralidade analítica, não tentava que esta desempenha papel dife- sendo possível conciliar ciência e religião,

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nem a prática do inconsciente com as ilu- Dolto quando diz que ser afetado pelo sões de uma pedagogia diretiva. impacto traumático e pela intensidade lú- Foi após a morte de Hug-Hellmuth em dica da criança requer uma grande dispo- 1924, que se levantaram as duas corren- nibilidade psíquica, o que torna a prática tes da psicanálise de criança representa- clínica com crianças, na maioria dos ca- das por Anna Freud e Melanie Klein. sos, mais difícil e delicada do que a psica- Ambas envolvidas pessoalmente com o nálise com adultos.ϕ pensamento de Freud de que só a união de pai e terapeuta numa única pessoa ga- THE BIRTH OF rantiria o tratamento analítico de uma TO CHILD – A STORY TO TELL criança. Mudanças significativas aconteceram Abstract no modo como se concebe a psicanálise This paper proposes a turn back in time, de criança, com as convicções teóricas de addressing personal stories of the pioneers of cada psicanalista influindo na sua prática. psychoanalysis (Hermine von Hug-Hellmu- , discípulo de Klein, th, Anna Freud, Melanie Klein), which are afastou-se desta ao defender a participa- related with the history of psychoanalysis it- ção do ambiente na constituição do indi- self. From this historical point of view and víduo e o papel dos pais no processo de considering developments in clinical practice, maturação da criança. Considerando o some questions are raised: existence of a brincar não apenas uma alternativa sim- psychoanalysis of adults and of a psychoa- bólica, mas um tempo-espaço de criação nalysis of children; parent’s place in the analy- e elaboração da realidade subjetiva e ob- sis of the child; limits between educational and jetiva, se opôs aos que se ocupavam mais psychoanalytic; existence or not of a transfe- de interpretar no setting analítico o con- rential relationship between child and analyst. teúdo da brincadeira. Propôs, assim, o brin- car compartilhado como atividade autôno- Keywords ma de produção de sentido. Psychoanalysis, History, Transference, Pa- , ao considerar que o rents, Children. sintoma da criança corresponde ao sinto- ma familiar, principalmente ao fantasma Bibliografia materno, contribuiu para a nova prática de análise da criança que se desenvolveu FENDRIK, S. Ficção das origens. Porto Alegre: na França com Françoise Dolto, Maud Artes Médicas, 1991. Mannoni, Jenny Aubry, Rosine Lefort e FREUD, A. O tratamento psicanalítico de crianças Robert Lefort. Estes últimos criticavam a (M. A. Moura Matos, trad.). Rio de Janeiro: Ima- prática de redução da psicanálise com cri- go, 1971. (Trabalho original escrito em 1926). anças a uma técnica de jogos e desenhos, FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino defendendo que a criança não deve ser de cinco anos. In Edição Standard Brasileira. Rio abordada apenas a partir do imaginário. de Janeiro: Imago, v.X, 1996, p.15-158. (Trabalho Sustentavam que a criança é um sujeito original publicado em 1909). por inteiro, não havendo diferença entre FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia. In Edi- uma cura de adulto e a análise com uma ção Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v.XVIII, 1996, p.253-280. (Trabalho original pu- criança. blicado em 1923). A psicanálise é uma só, seja da crian- FREUD, S. A questão da análise leiga. In Edição ça ou do adulto, mas não se pode negar a Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v.XX, especificidade do trabalho analítico com 1976, p.209-293. (Trabalho original publicado em crianças. Tomo emprestadas as palavras de 1926).

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FREUD, S. Novas conferências introdutórias so- SOBRE O AUTOR bre psicanálise. In Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v.XXII, 1976, p.167-192. (Tra- balho original publicado em 1932). Maria do Carmo Camarotti Psicóloga. Psicanalista. Mestra em Saúde FREUD, S. Conferência XXXIV: explicações, apli- Materno-Infantil. Professora no Curso de cações e orientações. In Edição Standard Brasilei- ra. Rio de Janeiro: Imago, v.XXII, 1976, p.135-154. Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da (Trabalho original publicado em 1932-1933). Paraíba. Consultora Ad hoc da Revista Brasileira de Saúde Materno-Infantil. Organizadora do livro GEISSMANN, C. & GEISSMANN, P. Histoire de Atendimento ao bebê – uma abordagem interdis- la psychanalyse d’enfants: mouvements, idées, pers- ciplinar. pectives. Paris: Bayard, 1992. HILFERDING, M.; PINHEIRO, T. ; VIANNA, Endereço para correspondência: H.B. As bases do amor materno. São Paulo: Escuta, Av. Agamenom Magalhães, 1500/202 – Torreão 1991. 52030-210 – RECIFE/PE Tel.: + 55 (81)9965-5691 KLEIN, M. A psicanálise de crianças. Rio de Janei- E-mail: [email protected] ro: Imago, 1997. (Trabalho original publicado em 1932). LACAN, J. Nota sobre a criança. In Outros escri- tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369-370. (Trabalho original escrito em 1969). WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Trabalho original publi- cado em 1971). WINNICOTT, D. W. (Org.). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francis- co Alves, 1978. (Trabalho original publicado em 1952).

RECEBIDO EM: 20/05/2010 APROVADO EM: 30/06/2010

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