MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia ISSN 2318-0811 Volume III, Número 1 (Edição 5) Janeiro-Junho 2015: 215-228

Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

Kaio Felipe*

Resumo: Neste ensaio, busco esclarecer a posição ideológica de José Guilherme Mer- quior: seria ele um liberista (isto é, um liberal com ênfase na liberdade econômica) ou um social-liberal (ou seja, mais preocupado com a participação cívica e com o auto-aperfeiçoamento)? Além disso, pretendo analisar como Merquior se coloca em relação às formulações teóricas e políticas de Friedrich August von Hayek, na medi- da em que este é um dos autores liberais mais citados e discutidos em suas obras da década de 1980. Palavras-Chave: Liberdade, Liberalismo, Liberismo, Democracia, Filosofia Política.

Merquior, a Liberist? A Comparison of the Liberal Thought of José Guilherme Merquior and Friedrich von Hayek

Abstract: In this essay I seek to clarify the ideological viewpoint of José Guilherme Merquior: was he a liberist (i.e., a liberal which emphasizes the economic ) or a social-liberal (i.e., more concerned with civic participation and self-improvement)? In addition, I intend to analyze how Merquior stands in relation to theoretical and political formulations of Friedrich August von Hayek, considering that this is one of the liberal authors most cited and discussed in his works of the 1980s. Keywords: Freedom, , Liberism, Democracy, Political Philosophy.

Classificação JEL: Y80

* Kaio Felipe é doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e em História Social da Cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Cursou a graduação em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB) e o mestrado em Ciência Política no IESP-UERJ. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial em Ciência Política (PET-POL) e participou do programa de estágio-docência ministrando as disciplinas introdutórias de Sociologia para os cursos de graduação da UERJ. Estuda temas relacionados às áreas de Política e Literatura, Sociologia da Literatura e Teoria Política, tendo pesquisado a representação do conceito de Bildung (formação) nas obras do escritor Thomas Mann e, atualmente, se dedicado ao estudo do pensamento de José Guilherme Merquior. É autor de diversos artigos publicados em diferentes periódicos acadêmicos. E-mail: [email protected] 216 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

I - Introdução Se na época venceu o de- bate, quarenta anos depois Einaudi teria uma Na década de 1920, diante das tensões vitória póstuma: o Ocidente viveu um verda- nacionalistas e das dificuldades econômicas deiro “renascimento liberal” nas décadas de 80 após a I Guerra Mundial, os adeptos do libe- e 90. Os êxitos políticos de lideranças conserva- ralismo clássico encontravam cada vez mais doras (mas identificadas com preceitos libera- dificuldade de“manter a crença de que o advento lizantes) como Margaret Thatcher (1925-2013) do capitalismo industrial havia trazido prosperida- e Ronald Reagan (1911-2004) somaram-se à cri- de e liberdade para todos”1. se do Welfare State nos países ocidentais e, prin- Uma das propostas para resolver essa cipalmente, ao colapso do modelo soviético de crise ideológica foi oferecida pelo filósofo socialismo, cujo marco simbólico foi a queda italiano Benedetto Croce (1866-1952), que do Muro de Berlim, em 1989. cunhou o termo liberismo, o qual denotava Foi em meio a tal contexto que o econo- liberdade econômica, para diferenciá-lo do mista Roberto Campos (1917-2001) escreveu liberalismo enquanto preceito ético-político. seu prefácio para o ensaio O Liberalismo: Anti- Enquanto o primeiro conceito teria como co- go e Moderno (1991), a última obra (e, de certa rolário a defesa do capitalismo laissez-faire, o maneira, o testamento intelectual4) do soció- segundo colocaria ênfase maior nas institui- logo e diplomata José Guilherme Merquior ções da democracia liberal. Croce alegou que (1941-1991). Neste prefácio Campos qualifi- resumir o pensamento liberal à sua faceta eco- cou Merquior como um liberista: nomicista seria degradá-lo a um baixo hedo- Em nossas últimas conversas senti que José Guilherme se tornava cada vez mais nismo utilitário2. “liberista”. Neste credo, comungávamos. Pouco após a II Guerra, este filósofo par- O “liberista” é aquele que acredita que, se ticipou de um frutífero debate com o econo- não houver liberdade econômica, as outras mista (1874-1961), presidente liberdades – a civil e a política – desapare- da Itália entre 1948 e 55, o qual acreditava que cem. Na América Latina, a concentração de a liberdade política era indissociável da liber- poder econômico é um exercício liberticida. dade econômica3. Croce, por sua vez, insistia Nosso diagnóstico sobre a moléstia brasi- na necessidade de separar o liberalismo da leira era convergente. Ao Brasil de hoje não ética utilitarista e individualista, acreditando falta liberdade. Falta liberismo5. que esta era uma etapa superada, sendo ne- cessário agora combinar o liberalismo político Roberto Campos considerava que Mer- com o dirigismo econômico, síntese esta que quior era, assim como ele, um liberal clássico geraria o “Estado de bem-estar social” (Welfa- que defendia a incompatibilidade entre liber- re State). dade política e intervencionismo econômico, e, portanto, advogava um modelo de Estado mínimo. A propósito, não apenas Campos, 1 HEYWOOD, Andrew. Ideologias políticas, [v. 1]: do mas também autores à esquerda de Merquior, liberalismo ao fascismo. Trad. Janaína Marcoantonio, como o sociólogo Gilberto Vasconcellos6 ten- Mariane Janikian. São Paulo: Ática, 2010, p. 64.

2 MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: Antigo 4 Vide: ROCHA, João Cezar de Castro. A visão do e Moderno. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio mundo de José Guilherme Merquior: esta reedição. In: de Janeiro: É Realizações, 2014, p. 174. MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 3 Vide: MERQUIOR, José Guilherme. Algumas 324. Reflexões sobre os Liberalismos Contemporâneos. 5 CAMPOS, Roberto. Merquior, o Liberista. In: Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991, p. 7-11; e MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 29. ZANFARINO, Antonio. Liberalismo e Liberismo. Il Confronto Croce-Einaudi. In: Studi e Note di 6 Vide: VASCONCELLOS, Gilberto. A razão da Economia, No. 2, 1996, p. 7-19. acústica. Folha de São Paulo, 15 de Julho de 2001. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 217 dem a alinhá-lo com o neoliberalismo (tomado tâncias nas quais se encontram8) do que a li- aqui como sinônimo de liberismo) preconiza- berdade positiva (isto é, a autonomia, o poder de do por autores como (1912- satisfazer nossos desejos). 2006) e Friedrich August von Hayek (1899- Hayek não faz sua apologia da liberda- 1992). de a partir de um otimismo antropológico, Considerando que Hayek é justamen- isto é, de uma confiança à moda iluminista no te um dos teóricos liberais mais discutidos potencial da razão humana; pelo contrário, por Merquior em seus ensaios da década de tece duras críticas à mentalidade especulati- 1980, cabe investigar se essa qualificação re- va, “construtivista” e planejadora da tradição almente procede. O propósito deste ensaio racionalista, a qual inclui filósofos franceses é analisar e interpretar o tipo de liberalismo como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e defendido por José Guilherme Merquior. Será Condorcet (1743-1794), mas também possui ele realmente um liberista, um neoliberal? Ou expoentes britânicos como estaria, na verdade, alinhado a um liberalis- (1749-1832). Tal linha de pensamento, segun- mo mais sociopolítico do que econômico, tal do Hayek, visava à “edificação de uma utopia como Croce? que se tentou pôr em prática em numerosas oca- siões, sem jamais se conseguir êxito”9. De fato, é se ancorando em certo ceticismo epistemoló- II - “An Unrepentant Old Whig”: gico, inspirado em David Hume (1711-1776), O Liberismo de Hayek que o austríaco justifica a necessidade de limi- tar o escopo do planejamento governamental Antes de tratar da visão de mundo de sobre a ação humana: Merquior, cabe delinear algumas das idéias A liberdade é essencial para que o imprevi- sível exista; nós a desejamos porque apren- centrais de F. A. Hayek, mais especificamente demos a esperar dela a oportunidade de as apresentadas em suas obras Os Fundamen- realizar a maioria dos nossos objetivos. (...) tos da Liberdade (1960) e Direito, Legislação e Li- Por mais humilhante que seja para o orgu- berdade (1973-1979), na medida em que é sobre lho humano, devemos reconhecer que o ambas que Merquior mais se posiciona. progresso e até a preservação da civilização Em Os Fundamentos da Liberdade, Hayek dependem de um máximo de oportunida- adere a um conceito de liberdade como au- des para que as coisas possam acontecer10. sência de coerção: a propriedade privada e o direito individual de escolha devem ser res- Ainda no segundo capítulo de Os Fun- peitados, não podendo ficar sob controle ar- damentos da Liberdade, F. A. Hayek faz uma bitrário de uma força externa (geralmente o defesa utilitária da liberdade. Primeiro alega Estado). Traduzindo tal posição na dicotomia que “o importante não é o tipo de liberdade que de (1909-1997)7, pode-se dizer eu próprio gostaria de exercer e sim o tipo de li- que Hayek é mais favorável à liberdade nega- berdade de que alguém pode necessitar para bene- tiva (entendida como não-interferência sobre ficiar a sociedade”11. Em seguida afirma que os a forma de os indivíduos usarem as circuns- benefícios da liberdade existem mesmo que

8 HAYEK, Friedrich August von. Os Fundamentos da Liberdade. Trad. Anna Maria Capovilla e José Ítalo Disponível em: . Brasília / Visão, 1983, p. 15. 9 7 Vide: BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. Idem. Ibidem, p. 55. In: Estudos sobre a humanidade: uma antologia 10 Idem. Ibidem, p. 27-28. de ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 226-272. 11 Idem. Ibidem, p. 31. 218 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

ela não seja garantida de forma universal: “é em meados da década de 1950). O termo liber- ainda melhor para todos que alguns sejam livres do tário passou a ser usado nos Estados Unidos que ninguém, e, também, bem melhor que muitos como sinônimo de liberal no sentido clássico, possam gozar de plena liberdade do que todos terem mas Hayek alega que tal rótulo possui um sa- uma liberdade restrita”12. bor excessivamente artificial, de sucedâneo15. Para tratar de sua auto-definição ideo- Em seguida afirma que “whiguismo” seria lógica, Hayek escreveu o epílogo Por que não historicamente o nome correto para as idéias sou um conservador. Inicialmente reconhece em que acredita: “Quanto mais aprendo a respei- que conservadorismo é uma legítima, prova- to da evolução das idéias, mais tenho consciência velmente necessária e certamente difundida de que sou um impenitente Whig da velha guarda atitude de oposição a mudanças drásticas. O [Old Whig]”16 – com ênfase em Old. problema é que, por sua própria natureza re- É interessante notar que essa tentativa ativa, a ideologia conservadora não pode ofe- de Hayek de dizer que não é conservador iro- recer um objetivo alternativo nem se basear nicamente pode ser lida como profissão de fé em princípios, o que a torna menos consisten- num liberal-conservadorismo à moda britâni- te que o liberalismo para oferecer oposição ao ca – tal como, aliás, o de dois pensadores que socialismo; ou seja, em geral os conservadores Hayek elenca entre suas principais influên- simplesmente seguem, dependendo das ten- cias: (1729-1797), que criticou dências existentes, os liberais ou socialistas. a arrogância racionalista da Revolução Fran- Quanto à crítica conservadora à democra- cesa, em nome de uma noção dinâmica de tra- cia, por um lado Hayek admite não considerar dição; e lorde Acton (1834-1902), que mesclou a regra da maioria como um fim, mas apenas seu liberalismo com valores religiosos17. como um método, como a forma de governo Nos anos 1970, Friedrich von Hayek es- menos perversa dentre as disponíveis; por ou- creveu a ambiciosa trilogia Direito, Legislação tro, considera que o conservadorismo exagera e Liberdade (1973-1979). Dentre os vários te- ao atribuir os males de nosso tempo à demo- mas discutidos nessa obra, vale destacar dois cracia, quando na verdade o problema não é discutidos no volume III (A Ordem Política de de regime político, mas sim de limitação dos um Povo Livre) que são decisivos para o posi- poderes – e “os poderes que a democracia moderna cionamento de Merquior sobre o pensamento dispõe seriam ainda mais intoleráveis nas mãos de hayekiano. alguma pequena elite”13. O primeiro deles é a discussão sobre o Na relação triangular dos partidos, o li- abuso do conceito de democracia; este termo beral está numa posição intermediária, pois ao estaria sendo privado de um significado cla- mesmo tempo em que não é contrário à evo- ro, transformando-se “num fetiche verbal usado lução e à mudança (como o conservador), está para envolver com um halo de legitimidade quais- igualmente longe do “racionalismo primitivo do quer exigências de um grupo desejoso de moldar socialista, que pretende reconstruir todas as insti- algum aspecto da sociedade a seu bel prazer”18. tuições de acordo com um padrão prescrito por sua razão individual”14. Segundo Hayek, o liberalismo do século 15 Idem. Ibidem, p. 478. XIX tem pouco a ver com os movimentos po- 16 Idem. Ibidem, p. 479. líticos que usavam tal nome na época em que 17 escreveu Os Fundamentos da Liberdade (ou seja, MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 145. 18 HAYEK, Friedrich August von. Direito, legislação 12 Idem. Ibidem, p. 31. e liberdade: uma nova formulação dos princípios 13 Idem. Ibidem, p. 473. liberais de justiça e economia política, v. 3: A ordem política de um povo livre. Trad. Maria Luiza X. de A. 14 Idem. Ibidem, p. 476. Borges. São Paulo: Visão, 1985, p. 42. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 219

Exemplo disso seria o fato de os regimes co- Nesse sentido, Hayek critica o marxis- munistas no Leste Europeu se autodenomina- mo e a psicanálise (aliás, cabe notar, duas das rem “democracias populares”. O autor deixa principais bête noire de Merquior!) por insti- explícita sua insatisfação com tal corrupção larem princípios morais problemáticos, sen- da linguagem política ao admitir que, “se a do eles respectivamente: o igualitarismo, que democracia é entendida como governo conduzido elimina o incentivo individual de observação pela vontade irrestrita da maioria, então não sou das regras morais que havia na “estima di- democrata e considero inclusive tal governo perni- ferenciada” perante os semelhantes, além de cioso e, a longo prazo, inexeqüível”19. aumentar consideravelmente o poder de co- Hayek alega ser preciso adotar um novo erção da autoridade ao exigir que se tratem termo para expressar o ideal original de de- “diferentes pessoas de maneira diferenciada com mocracia. A palavra grega kratos (que vem do o objetivo de colocá-las nas mesmas condições verbo kratein) tem uma carga de violência, de materiais”24; e a liberação dos instintos naturais, força bruta, enquanto o verbo archein (do qual selvagens, que estão levando à destruição dos derivam, p.ex., monarquia e oligarquia) parece valores culturais e civilizatórios25. enfatizar melhor o governo segundo normas. A partir desta exposição de alguns as- Logo, demarquia é o termo que mais se apro- pectos da obra hayekiana, é possível perceber xima do princípio da isonomia (lei aplicável que, se formos tomá-lo como expoente má- igualmente para todos)20. ximo do neoliberalismo, então esta doutrina O segundo tema digno de destaque apa- postula algo bem moderado: a retomada do rece em As Três Fontes dos Valores Humanos, o , isto é, do governo limitado. Se- epílogo de Direito, Legislação e Liberdade: refiro- gundo Hayek, as duas únicas funções do go- -me à relação que Hayek traça entre evolução, verno legítimo consistem “em prover uma es- tradição e progresso: “quando se evidencia que trutura para o mercado, e prover serviços que o foi o desenvolvimento de uma tradição o que tornou mercado não pode fornecer”26. possível a civilização, podemos pelo menos afirmar Embora fosse um crítico ácido da “mira- que a evolução espontânea é uma condição necessá- gem da justiça social” que permeava o ideário ria, se não suficiente, do progresso”21. Hayek pos- de social-democratas (dentre eles os liberals tula a tese da ordem espontânea, segundo a qual americanos) e tenha alertado para as conse- “as leis e instituições que tornam possível o processo qüências moralmente deletérias de ideologias social não foram criadas de forma deliberada, sendo pseudo-progressistas (pelo menos segundo o antes de origem evolutiva e consuetudinária, e in- conceito hayekiano de progresso) como o mar- corporando um enorme volume de experiências e in- xismo e a psicanálise, é importante ressaltar formação prática acumulada ao longo de sucessivas que Hayek “não se limitou a retroceder a um gerações”22. A partir desta concepção, rejeita o puro favorecimento do laissez-faire ou ao modelo racionalismo planejador ao ressaltar que são as de Estado vigia noturno”27. boas tradições morais, e não o desígnio intelec- Friedrich von Hayek, portanto, é um tual, “que possibilitaram o progresso no passa- liberista, pois assim como Milton Friedman do, assim como o possibilitarão no futuro”23. acreditava na tese da indivisibilidade da li- berdade: “a menos que se obtenha ou se mantenha 19 Idem. Ibidem, p. 43. a liberdade econômica, as outras liberdades – civil 20 Idem. Ibidem, p. 44. 24 Idem. Ibidem, p. 183. 21 Idem. Ibidem, p. 180. 25 Idem. Ibidem, p. 186-187. 22 DE SOTO, Jesus Huerta. A Escola Austríaca. Trad. André Azevedo Alves. São Paulo: Instituto Ludwig 26 MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. von Mises Brasil, 2010, p. 126. 228. 23 HAYEK. Direito, legislação e liberdade, v. 3, p. 181. 27 Idem. Ibidem, p. 229. 220 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

e política – se desvanecem”28. Além disso, alega francês – principalmente com Lévi-Strauss que a intervenção estatal na economia é nega- (1908-2009) – e com a crítica cultural da Es- tiva “porque faz com que a rede de informações do cola de Frankfurt; o exemplo máximo dessa sistema de preços emita sinais enganadores, além de primeira fase de sua obra é o ensaio Sauda- reduzir o escopo da experimentação econômica”29. des do Carnaval – Introdução à crise da cultura Mesmo assim, este autor está longe de fazer (1972). uma defesa irrestrita ou simplista da liberda- A partir da segunda metade da déca- de econômica e do Estado-mínimo: ele aceita da de 1970, entretanto, Merquior se afastou a interferência governamental na previdência dessas influências: passou a considerar que social, na educação ou mesmo subsidiando tanto estruturalistas e pós-estruturalistas33 “certos desenvolvimentos experimentais”30. quanto o marxismo ocidental34 partiam de Em um trecho bastante lúcido de seu en- dois pressupostos equivocados: “sua Kul- saio sobre o pensador austríaco, Anthony de turkritik pessimista, não baseada em nenhu- Crespigny defende-o da caricatura feita por ma análise concreta, e sua rejeição sumária muitos de seus críticos à esquerda (e também da modernidade e da ciência”35. Anos depois, de alguns de seus pretensos epígonos): escreveu que o marxismo ocidental – e, em Hayek foi descrito como um expoente do De Praga a Paris, esta crítica também se aplica “laisser-faire”, hostil à provisão pública de ao pós-estruturalismo – “foi apenas um episó- serviços sociais, indiferente às necessida- dio na longa história de uma velha patologia do des dos fracos, autoritário, antidemocrático, e assim por diante. No entanto, não se en- contra na obra de Hayek nada que permita “um conjunto de relações abstratas definidas de modo essas assertivas, o que torna difícil compre- formal e subentende um modelo válido para vários ender como críticos presumivelmente es- conteúdos diferentes, sendo estes ditos isomórficos crupulosos chegaram a fazê-las31. exatamente porque compartilham a mesma estrutura.” Vide: MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris. Trad. Ana Maria de Castro Gibson. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 19. III - A Posição de Merquior na 33 O pós-estruturalismo, que abrange autores como Tradição Liberal Michel Foucault (1926-1984) e Jacques Derrida (1930- 2004), critica o paradigma estruturalista a partir de uma perspectiva formalista (que consiste na adoção Ao longo de sua trajetória intelectual, de “análises imanentes” em vez de abordagens José Guilherme Merquior gradualmente mu- mais contextuais) e de uma apropriação niilista e dou sua visão de mundo. Em seus primeiros decadentista do pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900). escritos, simpatizava com o estruturalismo32 34 Vertente do pensamento marxista caracterizada pela epistemologia “humanística” (i.e., abordagem 28 Idem. Ibidem, p. 229. hermenêutica e crítica do naturalismo “cientificista”), pelo forte investimento na crítica cultural (tanto 29 Idem. Ibidem, p. 228. da arte erudita quanto da cultura de massa) e pelo 30 Vide: DOHERTY, Brian. Radicals for : ecletismo conceitual (envolvendo desde a psicanálise a freewheeling history of the modern American até a filosofia hegeliana). Dentre seus principais libertarian movement. New York: Public Affairs, 2007, representantes podem ser citados György Lukács p. 551-552. (1885-1971), Antonio Gramsci (1891-1937), Herbert Marcuse (1898-1979) e Theodor Adorno (1903-1969). 31 CRESPIGNY, Anthony de. F. A. Hayek: Liberdade Vide: MERQUIOR, José Guilherme. O Marxismo para o Progresso. In: Filosofia Política Contemporânea. Ocidental. Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Trad. Yvonne Jean. Brasília: Editora da Universidade Nova Fronteira, 1987, p. 19. de Brasília, 1979, p. 75. 35 ROUANET, Sérgio Paulo. Merquior: obra política, 32 Segundo o próprio Merquior, esta escola de filosófica e literária. In: MERQUIOR. O Liberalismo: pensamento social parte do conceito de estrutura como Antigo e Moderno, p. 363. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 221 pensamento ocidental cujo nome é, e continua a timento individual; , com sua ser, irracionalismo”36. análise da mecânica dos poderes40. Duas figuras foram importantes na tran- O liberalismo clássico (1780 a 1860) inclui sição ideológica de José Guilherme: Roberto pensadores como (1767- Campos, de quem foi conselheiro na embai- 1830), (1805-1859) e xada de Londres, e Ernest Gellner (1925-1995), (1806-1873); a ênfase princi- seu orientador no doutorado em Sociologia pal dessa fase da ideologia liberal foi a pro- pela London School of and Politi- teção da liberdade civil, i.e., o “livre exercício cal Science. privado de agires e fazeres conforme a inclinação Em 1979, pouco após concluir sua tese de cada um”41. de doutorado sobre Rousseau e Weber37, Segundo Merquior, um dos problemas Merquior assumiu uma perspectiva liberal da primeira geração do liberalismo foi con- e “neo-iluminista”, marcada por uma ótica fundir a tendência de superação do milita- mais positiva sobre a modernidade. Em ou- rismo pelo industrialismo com “um ilusório tras palavras, acreditava que permanecia le- perecimento do estado”42. Tocqueville, aliás, gítima a tarefa de “tornar o homem mais livre, foi um dos poucos liberais dessa geração que (...) aumentar sua racionalidade”, e “refinar sua percebeu que “o crescimento da liberdade civil foi sensibilidade artística, num mundo em que a bele- acompanhado, e na realidade pressupôs, uma tre- za seja irmã da razão e inseparável da liberdade”38. menda expansão da regulamentação da sociedade Essa adesão, portanto, transcendeu a discus- (...) pelo estado enquanto foco emissor de direito”43. são político-econômica: para José Guilherme, Ao longo do século XIX, diante dos ex- o liberalismo, além de ser uma doutrina polí- cessos da Revolução Francesa e dos levantes tica, era também “uma cosmovisão, identificada políticos de 1848, consolidou-se a segunda com a crença no progresso”39. geração do pensamento liberal: o liberalismo Dois ensaios que oferecem de forma sin- conservador, formado por um tripé doutriná- tética a perspectiva de Merquior sobre a tra- rio composto por tradicionalismo (crença na dição liberal são O Argumento Liberal (1981) sabedoria das instituições que resistiram ao e O Liberalismo: Antigo e Moderno. Em ambos teste do tempo), organicismo (visão comunita- faz uma história descritiva das idéias liberais, rista e holística da sociedade) e ceticismo polí- mas ainda assim é possível notar juízos de tico (desconfiança das teorias – especialmente valor, tomadas de posição de José Guilherme aquelas com amplos propósitos inovadores – diante das correntes e autores estudados. quando aplicadas à vida pública)44. Embora a (1632-1704) e Montesquieu crítica dos liberais-conservadores ao excessi- (1689-1755), de acordo com o autor, foram vo otimismo da filosofia da história progres- mais ancestrais do que propriamente funda- sista do liberalismo clássico seja pertinente, dores do liberalismo. Ambos legaram o impe- para Merquior o mesmo não se pode dizer de rativo da limitação do poder: Locke, por meio sua desconfiança diante da democracia: auto- da noção de legitimidade baseada no consen- res como (1820-1903), lorde Acton e até mesmo o argentino Juan Bautista

36 MERQUIOR. O Marxismo Ocidental, p. 277. 40 Idem. O Argumento Liberal. In: Revista Tempo 37 Vide: Idem. Rousseau e Weber: Dois Estudos sobre Brasileiro, nº 65/66, abril-setembro. Rio de Janeiro: a Teoria da Legitimidade. Trad. Margarida Salomão. Tempo Brasileiro, 1981, p. 18-19. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1990. 41 Idem. Ibidem, p. 19. 38 ROUANET. In: MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo 42 Idem. Ibidem, p. 19. e Moderno, p. 370. 43 Idem. Ibidem, p. 19 39 MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 87. 44 Idem. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 141. 222 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

Alberdi (1810-1884) receavam a massificação dual combina-se com a pluralística diversidade em da política e procuraram retardar a demo- prol da originalidade”49. Para entender melhor cratização do liberalismo, defendendo a “am- essa associação entre liberalismo e humanis- pliação cautelosa da inclusão do povo nos direitos mo traçada por Merquior50, este trecho do en- políticos”45. saio de Humboldt sobre a Teoria da formação do Nas últimas décadas do século XIX des- ser humano é elucidativo: pontou o liberalismo social, corrente de autores A tarefa última de nossa existência, qual de viés anti-utilitarista para quem a liberda- seja: conferir, pelos indícios de uma ação de deveria ser vista como “algo a ser desfru- vital efetiva, um conteúdo tão grande pos- tado por todos os membros da sociedade”46. sível ao conceito de humanidade presente Dentre os social-liberais podem ser elencados em nossa pessoa, tanto durante o tempo de nossa vida quanto para além dela mesma – Thomas Hill Green (1836-1882) e Leonard Ho- ora, essa tarefa só se cumpre ao vincular-se bhouse (1864-1929), que buscaram restaurar a o nosso eu ao mundo, a fim de se criar a in- idéia de bem comum, rejeitaram os dogmas teração mais geral, mais intensa e mais livre antiestatistas dos liberalismos clássico e con- possível51. servador, mas não abandonaram a ótica indi- vidualista. Pelo contrário, o liberalismo social É compreensível, então, que em O Libe- muito valoriza a individualidade, isto é, a “re- ralismo: Antigo e Moderno Merquior destaque alização pessoal alcançada por meio da percepção freqüentemente o legado deste pensador libe- da identidade ou das qualidades únicas de um in- ral alemão para uma concepção mais positiva divíduo”, a partir de uma concepção da liber- da liberdade (isto é, que valorize a autono- dade “como uma força construtiva e positiva que mia, o desdobramento do potencial humano), confere aos indivíduos a capacidade (...) de adqui- constituindo assim influência decisiva para o rir autonomia ou alcançar a realização pessoal”47. ideário social-liberal: A propósito, essa preocupação com a perfec- Humboldt exprimiu um tema liberal pro- tibilidade do homem já havia aparecido em fundamente significativo: a preocupação Constant e Stuart Mill; nesse aspecto foram humanista de formação da personalidade muito influenciados pela ética humanista de e aperfeiçoamento pessoal. Educar para a (1767-1835) e seu liberdade, e libertar para educar – esta era “ideal de uma Bildung [formação, auto-cultivo] idéia da Bildung, a contribuição goethiana de Humboldt à filosofia moral. (...) Os novos ao mesmo tempo moralizante e emancipatória”48. liberais queriam implementar o potencial Humboldt, representante máximo do li- para o desenvolvimento do indivíduo que beralismo alemão ao lado de fora caro a Mill em seguimento a Humboldt, (1724-1804), define a liberdade como a possi- bilidade de uma atividade variada e indefini- 49 HUMBOLDT, Wilhelm von. Os Limites da Ação da, sendo indispensável para que o indivíduo do Estado. Trad. Jesualdo Correia. Rio de Janeiro: desenvolva de forma plena as suas capacida- Topbooks, 2004, p. 145-151. des. Este auto-aperfeiçoamento consiste em 50 Esta simpatia de José Guilherme Merquior à idéia permitir que o ser humano “desfrute da mais humanista de “aprimoramento pessoal” aparece absoluta liberdade para desenvolver a si mesmo a também em Algumas Reflexões sobre os Liberalismos partir de suas próprias energias, em sua perfeita Contemporâneos (1986); nela, enfatiza a conexão individualidade”, sendo que “este vigor indivi- entre liberalismo e humanismo, a qual é “permeada pelo tema da excelência, da autoformação”. Vide: MERQUIOR, José Guilherme. Algumas Reflexões 45 Idem, Ibidem, p. 183. sobre os Liberalismos Contemporâneos, p. 15-16. 46 Idem. O Argumento Liberal, p. 20. 51 HUMBOLDT, Wilhelm von. Teoria da formação do 47 HEYWOOD. Ideologias Políticas, v. 1, p. 65. ser humano. Trad. Paulo Astor Soethe. Linguagem, Literatura e Bildung. Werner Heidermann, Markus J. 48 MERQUIOR. O Argumento Liberal, p. 20. Weiniger (orgs.). Florianópolis, UFSC, 2006, p. 217. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 223

e ao fazê-lo pensaram no direito e no Estado uma reprise do liberalismo clássico, pois her- como instituições habilitadoras. Esta preo- da as deficiências deste último em matéria cupação com a liberdade positiva levou-os a de visão histórica e consciência social. Além 52 ultrapassar o Estado minimalista . disso, acusa a doutrina neoliberal de ser uma “utopia liberal-conservadora”, deficiente em ma- Segundo José Guilherme, esta fase so- téria de visão histórica e consciência social e cial-liberal pode ser colocada entre Stuart Mill incapaz de atender “aos impulsos democratizan- e (1883-1946), sendo tes das sociedades industriais de modelo liberal”, que “este foi seu grande economista, o diagnos- muito menos às “exigências sociais dos países, ticador e terapeuta das insuficiências do laissez- como Brasil, onde a ‘síntese democrático-liberal’ 53 -faire” . Merquior assevera que as idéias de permanece incompleta”56. Sendo assim, lhe “pa- Keynes foram fundamentais para a renova- rece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, ção do capitalismo após a Grande Depressão, uma retomada criadora do social-liberalismo”57. e concorda com a afirmação deste de que o A propósito, esta “síntese democrático- desafio político da humanidade consiste em -liberal” é justamente o que José Guilherme combinar três coisas: eficiência econômica, encontra no pensamento político do sociólogo 54 justiça social e liberdade individual . (1905-1983) e do jurista Nor- A partir da década de 1940, entretanto, berto Bobbio (1909-2004). Ambos permitem começou uma gradual reação a essa verten- ao autor contrapor ao “hedonismo utilitário” te socializante do liberalismo e seu resultado dos neoliberistas um liberalismo democráti- prático, o Welfare State. co, apto a responder à altura os desafios po- (1881-1973) e Hayek, principais economistas líticos colocados pelas transformações sociais da Escola Austríaca, contribuíram para o res- das últimas décadas. surgimento do liberismo, isto é, da ênfase na li- Merquior, assim como Aron, não via a berdade econômica. Nos anos 70, este ideário democracia representativa como entrave para – que ganhou legitimidade acadêmica depois a liberalização econômica, e concorda com a que Hayek (em 1974) e Milton Friedman (em defesa que este sociólogo francês faz de “um 1976) ganharam o Nobel de Economia – se amálgama de direitos civis e políticos tradi- configuraria politicamente no neoliberalismo: cionais com modernos direitos sociais, que a partir da “convicção de que o progresso deriva ele representa como direitos-créditos (droits- automaticamente de uma soma não-planejada de -créances)”58. No que diz respeito a Bobbio, é iniciativas individuais”, propôs-se “um desman- enaltecida a preocupação deste jurista italia- telamento do social-liberalismo, um retorno em re- no em reafirmar a ligação entre o liberalismo 55 gra ao Estado mínimo” . Eis, portanto, a quarta e a democracia, criticando a negligência neo- grande fase do pensamento liberal, que Mer- liberal diante das reivindicações igualitárias59. quior chama de neoliberismo (que será tomado É a partir de abordagens como estas que o au- aqui como sinônimo de neoliberalismo). tor de O Liberalismo: Antigo e Moderno vislum- Em O Argumento Liberal, José Guilherme bra uma potencial quinta fase do pensamento considera o neoliberalismo essencialmente liberal, que seria uma versão atualizada do social-liberalismo. Diante das diversas vertentes do libera- 52 MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. lismo (clássico, conservador, social, neolibe- 56; 200.

53 Idem. O Argumento Liberal, p. 20. 56 Idem. Ibidem, p. 22. 54 Vide: KEYNES, John Maynard. Liberalism and 57 MERQUIOR. O Argumento Liberal, p. 22. Labour. In: Essays in Persuasion. London: Macmillan and Co., 1931, p. 307-312. 58 Idem. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 238. 55 MERQUIOR. O Argumento Liberal, p. 22. 59 Idem. Ibidem, p. 257-259. 224 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

rista e, possivelmente, “neo-social”), percebe- A. Hayek o seu maior profeta: este propunha mos em Merquior, por um lado, uma reserva “quietismo governamental, e simples legalis- em relação aos liberais-conservadores e aos mo no plano político-social”, argumentando neoliberais, pois discorda do temor de ambas que a lei “se caracteriza pela sua neutra ge- correntes diante da democracia e de interven- neralidade, equivalente à ausência de coerção ções estatais que visem a diminuir a desigual- social no sentido de uma opressão de classe62. dade social; por outro, é notável sua predile- Logo em seguida, contudo, Merquior busca ção pelo liberalismo social, alegando seu viés refutar a nomocracia hayekiana (isto é, seu humanista e democrático. José Guilherme apego abstrato à Rule of Law) a partir de Ray- acreditava que “a liberdade política será sempre mond Aron: “a generalidade da lei não elimina precária sem o aperfeiçoamento da igualdade”60. seu aspecto eventualmente impositivo”; para cer- Em entrevista para o jornal Última Hora em tos grupos sociais, em certas circunstâncias, 1982, este autor explica sua adesão a tal ver- “a norma legal pode ser um poder ilegítimo”63. tente liberal: Já no primeiro capítulo de A Natureza O liberalismo moderno é um social-libera- do Processo (1982), José Guilherme demonstra lismo, é um liberalismo que não tem mais afinidade com a teoria da ordem espontânea aquela ingenuidade, aquela inocência dian- de Hayek: concorda com o argumento do aus- te da complexidade do fenômeno social, e tríaco em favor da liberdade enquanto “au- em particular do chamado problema social, sência de controles sociais supérfluos e – do que o liberalismo clássico tinha. O liberalis- ponto de vista do bem comum – contrapro- mo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa vi- ducentes”, assim como com sua crítica à “vá são do liberalismo que eu me filio61. mas nefasta tentativa de submeter todo o processo social a uma prévia determinação, inspirada em nobres ideais”64. IV - Merquior vs. Hayek: Em prol Além disso, adere à noção hayekiana se- gundo a qual progresso é uma contínua adap- da ordem espontânea, contra o tação, envolvendo conhecimento acumulado, Ceticismo político, o Tradicio- prático e implícito, adquirido por e na expe- nalismo e o “Neo-evolucionis- riência. Por fim, admite que “o progresso é um mo” crescimento cumulativo que jamais poderia ter sido totalmente planejado”, e que Hayek está Na seção anterior, argumentei que Mer- certo ao denunciar na impressão contrária “os quior não é um liberista, mas sim um social-li- vícios do racionalismo e do intelectualismo”65. beral. Cabe agora verificar os seus posiciona- No capítulo seguinte, contudo, há um mentos sobre Hayek ao longo de sua produ- trecho em que José Guilherme se afasta da ção ensaística na década de 1980, de forma a filosofia da história individualista e anties- compreender suas afinidades e discordâncias tatista presente em muitos dos liberais do em relação ao autor de Os Fundamentos da Li- século XIX, mas também os novos liberistas: berdade. “Durkheim [1858-1917] mostrou que essa visão Em O Argumento Liberal (1981), ao expor spenceriana da história como apoteose do indivi- os pontos principais da doutrina neoliberal dualismo (visão hoje reeditada por Hayek) era so- (ou neoliberista), José Guilherme considera F.

62 60 ROUANET. In: MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo MERQUIOR. O Argumento Liberal, p. 22. e Moderno, p. 364. 63 Idem. Ibidem, p. 22. 61 Vide: PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. 64 Idem. A Natureza do Processo, p. 35. In: MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond, p. 339-340. 65 Idem. Ibidem, p. 35. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 225 ciologicamente muito ingênua”66. Mais adiante contribuição para o reconhecimento da ne- em A Natureza do Processo, o autor aponta cessidade da liberdade econômica, coroada um problema comum aos neoliberais e a com o Nobel de Economia e o “renascimen- certa esquerda “estadofóbica”, isto é, que to liberal” no último quartel do século XX: demoniza o Estado e mitifica e superestima “Se, hoje em dia, acreditamos que Einaudi tinha a sociedade civil – mas, ainda assim, pou- razão e que Croce estava errado quanto ao libe- pa Hayek de ser reduzido ao que chama de rismo, (...) no plano do pensamento, quem mais “neoliberalismo vulgar”67: nos ajudou a ver isso foi Hayek”69. Hoje em dia, o neoliberalismo – em muita José Guilherme Merquior, entretanto, coisa, um renascimento anacrônico do li- demonstra um afastamento ideológico e beralismo clássico – quer ressuscitar essa epistemológico em relação à obra hayekiana errônea contraposição do estado à socie- dos anos 1970 e 80; não aprecia a combina- dade. Nos neoliberalismos sofisticados, ção que há nela de um conservadorismo à la como o de Hayek, a estadofobia se cinge Burke, segundo o qual “a própria persistên- ao plano econômico, mas reconhece o va- lor do estado como ordenamento jurídico. cia das instituições no tempo contém em si Já no neoliberalismo vulgar, o anátema re- um elemento de sábia superioridade”, com cai sobe toda e qualquer forma de presen- uma teodicéia parecida com a de Gottfried ça do estado68. Wilhelm Leibniz (1646-1716), marcada por uma “visão sempre otimista de uma harmonia Em 1986, durante sua palestra no Insti- universal, misteriosamente conseguida por vias tuto Liberal intitulada Algumas Reflexões so- não intencionais”70. Além disso, compartilha bre os Liberalismos Contemporâneos, Merquior a preocupação de John Gray (1948)71 e Karl faz um longo comentário sobre Friedrich Popper (1902-1994) quanto a uma tardia von Hayek. Primeiro alude à controvérsia guinada neo-evolucionista de Hayek: Croce-Einaudi e elogia o austríaco por sua Hayek estaria escrevendo, cada vez mais, como um Spencer redivivo. Ou seja, um homem que abraça, sempre mais, uma 66 Idem. Ibidem, p. 44. perspectiva evolucionista, a ponto mesmo de diluir, dissolver a perspectiva ética, o 67 José Guilherme Merquior volta a criticar a banalização plano do juízo ético, da avaliação ética, da doutrina neoliberal em Algumas Reflexões sobre os numa visão evolucionista (...) insusten- Liberalismos Contemporâneos: “não devemos confundir, tável. Menciono isso como última pílula enquanto liberais lúcidos e modernos, a nossa legítima daquilo que é, hoje, problemático no de- alergia à expansão imoderada do Estado nos terrenos em que ele não deveria e não precisa expandir-se senvolvimento da obra de Hayek: o fato imoderadamente com uma posição barata, ingênua, de que ele está soando, em tom sempre historicamente ignara, sociologicamente inepta, que mais intenso, como um Spencer sofistica- consistiria numa espécie de rejeição indiscriminada do, numa clara volta às posições básicas da idéia do Estado, das instituições do Estado (...). Pertence, afinal de contas, às próprias entranhas da 69 Idem. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos posição e da doutrina liberais a preocupação com Contemporâneos, p. 11. uma ordem jurídica. (...) Penso eu em Locke, em Montesquieu, (...) ou, em nosso tempo, no próprio 70 Idem. Ibidem, p. 12-13. Hayek, cuja Constitution of possui páginas 71 mostrando a importância de categorias como DIREITO, John Gray alega que o pensamento de Hayek carece ORDEM e vale dizer, ESTADO. (...) Acho lamentável de uma visão mais consistente sobre justiça e direitos que alguns grupos, dizendo valer-se de Hayek, adotando o morais; isso o leva não só a uma problemática combinação que eu chamaria de hayekismo vulgar, invistam contra o teórica de individualismo e tradicionalismo, mas Estado em todos os planos e de todas as maneiras.” Vide: também a se ancorar num ceticismo epistemológico Idem. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos que poderia se voltar justamente contra a ordem social Contemporâneos, p. 18; grifo meu. liberal que ele defende. Vide: GRAY, John. F. A. Hayek on Liberty and Tradition. In: The Journal of Libertarian 68 Idem. A Natureza do Processo, p. 140. Studies, Vol. IV, No. 2 (Spring 1980), p. 133-134. 226 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

do evolucionismo de final do século pas- progressiva”77. José Guilherme argumenta sado72. que a maioria dos Estados de bem-estar social “não se fundaram com base em um planejamento A postura crítica de Merquior sobre o abrangente e consciente”, sendo na verdade o pensamento hayekiano permanece em seu “resultado de muitas evoluções imprevistas”78. último livro, O Liberalismo: Antigo e Moderno As críticas contundentes de Merquior a (escrito em 1989, mas publicado em 91). Pri- Hayek chegam ao ápice quando aquele alega meiro discorda de seu “repúdio quixotesco à de- que o austríaco vê a liberdade apenas como mocracia majoritária (substituída por uma visão instrumento de progresso: “o mérito supremo condicionada, ‘demarquia’)”, insinuando que do indivíduo ‘hayekiano’ é contribuir (incons- este excessivo ceticismo político o coloca na cientemente) para a evolução social”, e tal tese o companhia de liberais-conservadores73. Em- afastaria de um individualismo baseado na bora Hayek não se considere um conserva- idéia de auto-aperfeiçoamento, tal como no dor (como vimos no capítulo II deste ensaio), liberalismo alemão (Humboldt) e no social-li- Merquior aponta a ironia que há na guinada beralismo britânico (Mill e Hobhouse); sendo tradicionalista de seu pensamento sociopo- assim, “o neoliberismo, assim como o neo-evolu- lítico a partir dos anos 1970: seu entusiasmo cionismo, terminar por minar o próprio âmago da cada vez menor pela democracia poderia ser ética liberal”79. interpretado como uma refutação da tese de A propósito, José Guilherme se ampara O Caminho da Servidão, ensaio de 1944 no qual aqui em um comentário feito por Anthony de o austríaco alertara para o risco de o plane- Crespigny anos antes, em F. A. Hayek: Liberda- jamento econômico ser uma ameaça ao regi- de para o Progresso, sobre a defesa instrumen- me democrático. José Guilherme observa que, tal (e relativamente elitista) que Hayek fizera se a democracia desimpedida “milita contra o da liberdade no 2º capítulo de Os Fundamen- mercado, pelo menos ela obviamente sobreviveu, tos da Liberdade. De acordo com Crespigny, o em vez de perecer durante o prolongado crescimen- austríaco restringe as vantagens da liberdade to do Estado social”74. à possibilidade de alcançar progressos civi- Merquior, assim como John Gray75, tam- lizatórios, mas também insinua “ser melhor a bém aponta o abismo que há na obra tardia de liberdade de alguns do que a de ninguém, e a liber- F. A. Hayek entre a “valorização liberal clássica dade total de muitos do que a liberdade limitada de governo limitado, mercados livres e o governo de todos”80. Segundo Crespigny (e Merquior da lei” e a “mística burkiana, que afirma muitas endossa essa crítica), vezes, mais do que prova, a sabedoria oculta das ...parece estranho que um individualista instituições há muito existentes”76. Eis que se re- liberal defenda um tipo de liberdade que vela outra ironia: a partir desse evolucionis- deixa de enfatizar devidamente a inconve- mo burkiano se poderia alegar uma sabedoria niência de obstáculos deliberadamente im- inerente não só ao progresso e ao mercado, postos aos desejos ou atividades efetivas, ou mas também “às instituições há muito exis- possíveis, do indivíduo “qua” indivíduo. (...) Absolutamente não é evidente que em tentes que Hayek tanto detesta, como con- qualquer sociedade dada a liberdade de al- trole de renda, controle de preços e taxação guns seja necessariamente melhor do que a falta de liberdade para todos. Na realidade, 72 MERQUIOR. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos Contemporâneos, p. 14. 77 Idem. Ibidem, p. 231. 73 Idem. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. 230-231. 78 Idem. Ibidem, p. 232. 74 Idem. Ibidem, p. 227. 79 Idem. Ibidem, p. 232-233. 75 Vide nota 71. 80 CRESPIGNY. Filosofia Política Contemporânea. p. 76 Idem. Ibidem, p. 231. 82. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Kaio Felipe 227

uma sociedade onde alguns fossem livres e que, em várias dos ensaios de sua última dé- outros não, poderia ser muito pior do que cada de vida (inclusive o derradeiro deles, O uma sociedade onde todos fossem oprimi- Liberalismo: Antigo e Moderno), Merquior man- dos, e seria pior justamente devido aos efei- teve uma postura ambivalente, mas majori- 81 tos sobre o amor próprio das pessoas . tariamente crítica em relação aos postulados hayekianos. Hayek, portanto, preocupou-se tanto em Ambos convergem em pelo menos três favorecer a liberdade econômica – enquanto pontos: José Guilherme enaltece a reafirma- espontaneidade do mercado – e em restrin- ção da liberdade econômica feita pelo austría- gir a interferência da esfera pública sobre a co; concorda com a teoria da ordem espontâ- privada que teria colocado a própria ética do nea como explicação do progresso das socie- liberalismo (no sentido de uma preocupação dades modernas; compartilha do ceticismo de com o auto-aperfeiçoamento e o pluralismo) Hayek em relação ao racionalismo “construti- em risco. vista” e ao planejamento governamental, na medida em que essa “arrogância fatal” costu- ma resultar em ineficiência econômica e em V - Considerações finais burocratização política. Merquior, contudo, diverge das con- Ao longo deste ensaio procurei argu- clusões epistemológicas e políticas de F. A. mentar, em primeiro lugar, que José Guilher- Hayek. Epistemologicamente, porque não me Merquior não pode ser considerado um concorda com a infusão de tradicionalismo neoliberal ou liberista stricto sensu: embora re- burkiano e neo-evolucionismo spenceriano conheça a importância da liberdade econômi- que marcaria obras hayekianas tardias como ca, as suas afinidades intelectuais e políticas Direito, Legislação e Liberdade, as quais emana- estão com o liberalismo social. Merquior sim- riam uma “cega confiança de Hayek na ciência da patiza com esta vertente da história do pensa- evolução como tradição”82; no âmbito político, mento liberal porque ela, no plano teórico, é pois discorda da redução da democracia à de- uma tentativa de conciliar liberdade e igual- marquia (algo que lhe soa como uma utopia dade, valorizando mais a participação política regressiva), assim como da concepção nomo- do que o liberalismo clássico, o conservador crática de Estado segundo a qual bastaria de- e o neoliberal; a proposta social-liberal tam- finir as regras do jogo, sem se preocupar com bém é um esforço de aproximar o liberalismo reivindicações mais substantivas e igualitá- do ideal da Bildung, isto é, de uma ética hu- rias. manista, uma visão mais nobre da condição Voltando a Roberto Campos, em seu humana (mas, evitando uma filosofia da his- prefácio a O Liberalismo: Antigo e Moderno este tória demasiadamente otimista e “estadofóbi- economista afirma, sem esconder sua discor- ca”). No plano prático, o social-liberalismo de dância, que Merquior teria redigido conside- Merquior consiste em uma adesão limitada ao rações “generosas demais no tocante a Keynes, e livre mercado, pois julga que certas interven- generosas de menos no tocante a Hayek”83. Fal- ções do Estado são importantes não só para tam, no entanto, evidências mais concretas de promover a igualdade de oportunidades, mas que seu amigo de fato estava se tornando um também para estimular a liberdade positiva liberista em seus últimos meses de vida. Es- enquanto virtude cívica. tou mais inclinado a pensar que José Guilher- Em segundo lugar, no que diz respeito à comparação com a filosofia política liberista 82 MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e Moderno, p. de Friedrich von Hayek, busquei demonstrar 232. 83 CAMPOS. In: MERQUIOR. O Liberalismo: Antigo e 81 Idem. Ibidem, p. 82-83. Moderno, p. 28. 228 Merquior, um Liberista? Uma Comparação entre o Pensamento Liberal de José Guilherme Merquior e o de Friedrich von Hayek

me Merquior, mesmo quando se converteu É importante relembrar, contudo, que Mer- ao credo liberal, manteve-se republicano, isto quior reconhece a vitória póstuma de Einaudi é, conservou sua valorização da participação através de Hayek, isto é, a relação indissoci- política e sua crença na capacidade da vida ável entre a liberdade econômica e a política democrática de elevar o caráter dos cidadãos. – ou, nos termos mais amplos de Isaiah Berlin, Nesse aspecto se aproxima um pouco do libe- entre a liberdade negativa e a positiva. ralismo anti-utilitarista de Benedetto Croce.