Redalyc.Réquiem Para Dois Pássaros De Gelo: a Coreografia Da Exclusão Na Patinação Artística Soviética E a Construção D
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Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Vieira de Jesus, Diego Santos Réquiem para dois pássaros de gelo: a coreografia da exclusão na patinação artística soviética e a construção da potência esportiva espor tiva mundial Revista Estudos Feministas, vol. 21, núm. 3, septiembre-diciembre, 2013, pp. 1211-1230 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38129769024 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Diego Santos Vieira de Jesus Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Réquiem para dois pássaros de gelo: a coreografia da exclusão na patinação artística soviética e a construção da potência esportiva mundial ResumResumo: O objetivo é examinar os fatores responsáveis pela construção da hegemonia dos atletas soviéticos da patinação artística de duplas e da dança no gelo nas principais competições internacionais a partir da década de 1960, bem como os efeitos dessa hegemonia na construção da imagem da União Soviética como potência esportiva mundial. O uso do desempenho dos casais em competições era um veículo para a comunicação internacional dos sucessos do regime comunista na preparação técnica de sua população. O aparato criado em torno da patinação artística de duplas e da dança no gelo na União Soviética era imbuído de um viés político heteronormativo, que naturalizava as hierarquias que situavam a mulher numa posição de dependência em relação ao homem e contribuía para a exclusão de práticas que apontavam para o questionamento da ordem patriarcal erguida pelo regime comunista. Palavras-chavePalavras-chave: esporte; relações internacionais; patinação artística no gelo; União Soviética; heteronormatividade. Copyright © 2013 by Revista Desde o início da década de 1960 até seu fim, em Estudos Feministas. 1991, a União Soviética destacou-se em competições interna- cionais de diversas modalidades esportivas. Uma das quais em que o país obteve melhores resultados em Jogos Olímpicos e campeonatos mundiais foi a patinação artística no gelo. Embora também tivesse uma série de destaques nas disputas individuais masculinas e femininas, a União Soviética construiu sua preponderância nas competições de duplas e na dança no gelo. A título de ilustração do desempenho das duplas soviéticas apenas nos Jogos Olímpicos, vale destacar que Oleg Protopopov e Ludmila Belousova foram medalhistas de ouro na competição de duplas nos Jogos Olímpicos de Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013 1211 DIEGO SANTOS VIEIRA DE JESUS Inverno de 1964 e 1968, e Irina Rodnina foi três vezes meda- lhista de ouro nos Jogos de 1972 a 1980 com dois parceiros diferentes: Alexei Ulanov e Alexander Zaitsev. Em 1984, Yelena Valova e Oleg Vassilyev repetiram o feito em Sarajevo, e Yekaterina Gordeeva e Sergei Grinkov venceram em 1988 e novamente em 1994, quando a União Soviética já tinha sido dissolvida. Na dança no gelo, o predomínio soviético deu-se desde a introdução da modalidade nos Jogos Olímpicos de Inverno em 1976. Lyudmila Pakhomova e Aleksandr Gorshkov vence- ram naquele ano; Natalia Linichuk e Gennady Karponosov, 1 SPORTS REFERENCE [s.d.]. em 1980; e Natalia Bestemianova e Andrey Bukin, em 1988.1 O desempenho tecnicamente elevado das duplas soviéticas justificava não apenas as altas notas atribuídas pelos juízes às suas performances, mas a admiração de uma audiência cada vez maior, em particular com as transmissões televisivas desses eventos a partir da década de 1960. Em face do maior alcance da patinação artística no gelo, abria- se a possibilidade de ampliação do uso político desse 2 Nesse caso, o termo “esporte” é esporte2 pelo governo soviético, a fim de demonstrar a utilizado em referência especifica- eficiência do regime no preparo de seus atletas e disseminar mente à patinação artística no valores nos níveis doméstico e internacional. Entre tais valores, gelo. Quando usado neste artigo num sentido mais abrangente, ele enfoco neste trabalho aqueles que remetiam às categorias se refere à extensão de atividades de sexo, gênero e sexualidade. A própria composição das físicas que abarca jogos e educa- duplas da patinação artística no gelo – um homem e uma ção física, suas modalidades com- mulher – trazia condições de possibilidade para a construção petitivas e os eventos nacionais e internacionais em que os indivíduos de aparatos específicos sobre a forma como o relacionamento se engajam em tais práticas. entre ambos os sexos deveria se articular. O objetivo central deste artigo é examinar os fatores responsáveis pela construção da hegemonia dos atletas so- viéticos da patinação artística de duplas e da dança no gelo nas principais competições internacionais a partir da década de 1960 e seus efeitos na construção da imagem da União Soviética como potência esportiva mundial. O argu- mento central indica que, diante da ênfase nas realizações de grupo sobre as conquistas individuais e da tradição russa no balé e na dança, as autoridades políticas e esportivas da União Soviética dedicaram especial atenção à formação e ao preparo de duplas. Dentre os objetivos fundamentais des- sas lideranças, cabe destacar o uso do desempenho das duplas da patinação artística no gelo em competições como um veículo poderoso para a comunicação dos sucessos do regime comunista na preparação e formação técnica de sua população e na regulação do comportamento desta. Evidenciavam-se, assim, as vantagens comparativas de seu modelo de organização social em relação às demais nações no nível internacional. Na esfera doméstica, tal esporte permi- tia a integração da população soviética com a organização de campeonatos nacionais e o estímulo a valores, atitudes e comportamentos na população mais jovem, como a disci- 1212 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 1211-1230, setembro-dezembro/2013 RÉQUIEM PARA DOIS PÁSSAROS DE GELO plina, o autocontrole, a submissão às autoridades e o patriotis- mo. Buscava-se, assim, a construção da integridade e da co- esão da sociedade soviética em torno de valores e princípios construídos com base nos interesses do Partido Comunista, e se negava a expressão de diferenças que tangenciassem tais valores. A ênfase na imagem dos atletas da patinação artística no gelo como modelos de sucesso que carregavam os valores do regime inseria-se no contexto da busca de “modernização comunista” liderada pela Rússia sobre as demais repúblicas soviéticas e na iniciativa de “limpeza” do corpo social da União Soviética diante de uma preocupação maior com a saúde coletiva em termos também ideológicos e morais. Concebendo comportamentos homossexuais ou bissexuais como “disfunções” e naturalizando a posição objetificada da mulher, o aparato criado em torno da patinação artística de duplas e da dança no gelo na União Soviética vinha imbuído de um viés político heteronormativo, que reificava a heterossexualidade como o parâmetro de organização social, naturalizava as hierarquias que situavam a mulher numa posição de submissão e dependência em relação ao homem e contribuía para a exclusão de práticas socioculturais e políticas que apontavam para o questionamento da ordem patriarcal erguida pelo regime comunista. Nesse sentido, o desempenho das duplas soviéticas evidenciava o sucesso não somente do regime comunista na preparação de seus atletas, mas do modelo de sociedade ideal heteronormativo que se buscava cristalizar em nível nacional e retratar como ideal internacionalmente, modelo no qual há definição clara dos papéis e das relações hierárquicas entre homem e mulher. O esporte e a dinâmica das relações entre homens e mulheres na União Soviética Em face da possibilidade de operar como uma fonte de identificação coletiva, o esporte também serviu como uma expressão da identidade nacional, o que permitiu sua utiliza- ção e manipulação visando à demonstração da superiori- dade ideológica de sistemas políticos ou Estados específicos, ao estímulo à competição internacional e à promoção da coesão interna em torno de interesses, valores e gostos parti- culares de grupos localizados. A União Soviética foi um dos Estados que mais fizeram uso político do esporte, tanto no ní- vel doméstico como no internacional. Como apontam Gilmour 3 3 Julie GILMOUR e Barbara e Clements, os atletas soviéticos eram apresentados à sua CLEMENTS, 2002, p. 210-221. própria sociedade e ao mundo com base na ideia de que a proeminência atingida por eles resultava não do talento natu- ral de cada um, mas do treinamento sistemático oferecido pelo Estado. Dessa forma, qualquer indivíduo soviético subme- Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 1211-1230, setembro-dezembro/2013 1213 DIEGO SANTOS VIEIRA DE JESUS tido a tal preparação poderia atingir resultados semelhantes ou melhores e, assim, contribuir para a exaltação da grandio- sidade da União Soviética e de seu sistema político ao redor do planeta. Os heróis esportivos do país serviriam como exem- plos a serem seguidos pelas gerações mais jovens. Os ho- mens, em particular, deveriam instruir os jovens sobre os aspec- tos básicos da masculinidade e “comportamentos saudáveis” – como o trabalho árduo, o exercício físico e a devoção à na- ção – em oposição ao fumo, à bebida e ao comportamento sexual devasso. O autocontrole, o estudo, a submissão aos