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AS FONTES CALIGRÁFICAS DE

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Nikolaus Weichselbaumer Tradução: Augusto Rodrigues

s letras caligráficas, isto é, aquelas que tentam imitar o ductus da escrita manual cursiva, constituíam uma questão marginal na composição tipográfca com chumbo. Em vir- tude de suas formas fligranadas, eram difíceis de produzir, Asensíveis ao manuseio e se apagavam rapidamente na impressão. Além disso, aproximavam-se da escrita caligráfca apenas em casos isolados, como, por exemplo, na English Script, bastante regular também na escrita manual. Entre as fontes caligráfcas menos padronizadas e mais livres, um impresso em que cada letra se repete de maneira idêntica pode imitar o aspecto geral da escrita manual apenas de modo bastante restrito. ¶ Esses obstáculos desapareceram no curso do século xx com o estabelecimento de novas tecnologias de composição. As mudanças no design da letra daí decorrentes serão examinadas neste artigo com base no exemplo das letras caligráfcas do designer de fontes alemão Her- mann Zapf (1918-2015).1 Zapf, com seus mais de cem designs de fontes, fgura entre os mais produtivos e bem-sucedidos desenhistas de letras do século xx. Entre suas criações encontra-se uma série de fontes utilizadas em todo o mundo, como a (1950), a (1958) e a Zapf (1978). ¶ A produção de Zapf estende-se de 1938 até o início do século xxi; desse modo, possibilita uma análise do desenvolvimento das letras de impressão durante a mudança do caractere de chumbo para a fonte do computador. Zapf, habilidoso retocador de fotografas e calí- grafo autodidata, passou de copista de música a designer de fontes. Em vários de seus projetos pode-se observar o desenvolvimento das formas a partir da escrita manual. De fato, as fontes de texto constituem grande

1. O presente artigo baseia-se num estudo mais extenso: Der Typograph Hermann Zapf. Eine Werkbiografe, /, Waltert de Gruyter, 2015. Schriftmedien – Kommu- nikations- und buchwissenschaftliche Perspektiven n. 2.

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1. Palatino redondo com formas especiais e Palatino itálico manual.

2. Optima redondo, itálico e meio-preto.

3. .

parte da obra de Zapf, mas em todas as fases depois – numa versão da sua própria caligra- de sua carreira encontram-se projetos de fa, que tinha usado em 1944 numa cópia das letras caligráfcas. cartas de Hölderlin a Diotima3. Já logo depois da Segunda Guerra Mun- Para transpor para uma letra de impren- dial2 um dos primeiros projetos de fonte de sa, a letra manual feita com uma pena Som- Zapf foi uma letra caligráfica. Em 1948, merville4 teria de sofrer vários ajustes em iniciou com designs de uma letra cursiva elegante: baseava-se – como muitos outros 3. Cf. Hermann Zapf, Alphabetgeschichten. Eine Chronik technischer Entwicklungen, Bad Homburg, 2. As fontes de Zapf que foram publicadas antes e 2007, p. 41. durante a Segunda Guerra Mundial limitavam-se a 4. Trata-se, no caso, de uma pena de ponta muito fna notações de música. e elástica, na qual a espessura do traço é infuenciada

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4. Caligrafa de uma citação de Hans von Weber. Hermann Zapf, 1944.

seu aspecto. A primeira difculdade era o fato de que todos os traços deviam caber no

retângulo que continha a imagem de um 5. A primeira versão de teste da fonte Virtuosa (1951). caractere e de que a junção entre os sinais isolados devia ser feita com ligaturas. Com efeito, eram conhecidas as letras cursivas Após algumas tentativas associadas às em forma de paralelogramo e outras com cursivas inglesas, as quais serviram, em kerning ajustável, porém eram de fabricação parte, de amostras, Zapf adaptou a fonte mais cara e muito sensíveis na composição às necessidades tecnológicas e aplicou ao e na impressão. Eram especialmente fracos eixo da letra uma leve inclinação à direita. os pontos onde os traços fnos se prolonga- Assim, os sinais não entravam em confito vam até a borda da letra. Para seu design com a limitação retangular do corpo da Zapf realizou estudos prévios com a pena e letra. Além disso, nos projetos defnitivos, as formas assim desenvolvidas ele abstraiu abdicou de quase todos os acabamentos com o lápis, antes de executar em aquarela no lado esquerdo. Com isso, o ajuste das a arte-fnal retocada com branco opaco5. ligações entre as letras ficou bastante facilitado, porque agora nenhuma letra precisava terminar à direita com um traço pela variação da pressão que se dá à pena. É usada, principalmente, para traçar o cursivo inglês e tirou exatamente na mesma altura e num ângulo seu nome da firma Sommerville de Birmingham, conveniente. Não obstante, para obter uma um dos fabricantes especializados neste tipo de pena aparência caligráfca da fonte, Zapf dese- para escrita. 5. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, Col. nhou ligaturas para combinações de letras Zapf wal 373, p. 5. que normalmente não eram usadas com

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6. Virtuosa I, II e Virtuosa forte de 14 pontos.

ligaturas, mas que desse modo podiam ser 10 a 48 pontos6. Foi dada uma confgura- construídas de forma mais enfática, como, ção às formas pontiagudas, como no inte- por exemplo, os fnais -ng e -nd de palavras, rior da letra “A”, de modo que não restasse tão comuns na língua alemã, e combina- nenhum canto pontiagudo problemático. ções que, segundo as expectativas, apare- Somente a altura do caractere de 8 pontos ceriam com mais frequência no campo foi cortada à mão. Esse corpo foi pensado, de aplicação da fonte, como ag (sigla de sobretudo, para usá-lo na impressão de car- Aktiengesellschaft, Sociedade Anônima). tões de visita. A combinação de tamanhos Para complementar, desenhou um segun- de fonte relativamente pequenos com gran- do alfabeto em caixa-alta com formas mais des margens, causadas pela impressão em enfáticas, que podia ser usado alternativa- papéis de cartão de visita, tornou necessá- mente e, pelo uso de diversas variantes do rias pequenas modifcações: os traços foram mesmo caractere, devia possibilitar melhor reforçados de forma leve e proporcional de imitação da escrita manual. modo que adquirissem estabilidade, sem Em comparação com muitas fontes ca- com isso causar a impressão visual de um ligráfcas já existentes e também para seu corte espesso. Algumas formas internas das próprio projeto caligráfco, Zapf escolheu letras, sobretudo a depressão do “e”, foram um contraste diminuto do vigor do traço. levemente aumentadas, pois do contrário As linhas relativamente espessas não se par- teriam borrado na impressão7. tiam tão facilmente na impressão e, além Essa fonte foi lançada em 1952/1953 com o disso, eram mais econômicas na produção. nome de Virtuosa8. Para o departamento de Em fontes com linhas extremamente fnas, marketing da casa, Zapf listou três argumen- o arredondamento de cantos pontiagudos tos em prol da comercialização da fonte: as sobressaiu negativamente na produção com um pantógrafo fresador. No entanto, con- 6. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, Col. Zapf wal 264, p. 14. seguiu-se fresar as matrizes dos designs de 7. Cf. Idem, p. 51a. Zapf, a partir de um molde, até a altura de 8. Cf. Idem, p. 14.

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7. Manipulação de um caractere com o auxílio de uma lente Photofex.

linhas dez vezes mais fortes em comparação substituição, nas décadas seguintes, da com- com uma cursiva inglesa; o molde conven- posição tipográfca pela fotocomposição; to- cional, fácil de fundir em tipos normais; e, davia, novas possibilidades também se abri- por fm, o baixo preço para uma letra cur- ram na questão da forma: as fontes deixavam siva9. Embora não se tenham conservado de ser constritas às dimensões de um corpo as listas de preço e os totais de venda, ainda de letra de metal, mas podiam projetar-se assim a Virtuosa foi complementada, em consideravelmente para a direita ou para a 1956, com uma vigorosa variante (ver Fig. esquerda, como, por exemplo, no caso dos 5)10. Na verdade, esta adotou o ductus da es- contornos móveis. Além disso, as fontes de crita, mas dispunha de muitas formas de letra fotocomposição podiam ser deformadas em totalmente independentes, as quais foram re- seguida. Os sistemas de lentes usados nesse desenhadas e não obtidas, como usualmente, processo foram desenvolvidos já nos anos pela adiposidade da fonte existente. Na estei- 1930, sob a direção de Edward Rondthaler ra da Virtuosa surgiram algumas fontes que na Photo-Lettering Inc., uma das empresas adotaram esse princípio básico11. Entre elas, o pioneiras na fotocomposição12. Os sistemas exemplo mais bem-sucedido é talvez a Bou- de lentes possibilitavam, sem grandes custos, levard, dada a público, em 1955, por Günter alargar e estreitar um caractere, assim como Gerhard Lange pela empresa H. Berthold. criar uma letra contorcida e inclinada para Embora a Virtuosa tenha sido uma fon- substituir um caractere itálico que não esta- te itálica de sucesso no fm da era do tipo va disponível em determinados casos. móvel de chumbo, seu campo de aplicação Apesar dessas possibilidades novas, os de- continuou limitado em grande parte aos im- signers não tinham total liberdade para de- pressos comerciais. Além disso, as formas senhar formas na criação de uma fonte para ainda são fortemente marcadas pelas neces- a fotocomposição. Este processo de compo- sidades da composição tipográfca. sição deformava o caractere de modo dife- A fotocomposição, que entrou no circuito rente da composição tipográfca. Enquanto comercial nos anos 1950, ofereceu no caso na impressão tipográfca aparecem bordas outras possibilidades. De fato, a rapidez da (margens) de prensa que mostram a letra um composição, que aumentou de maneira pouco mais espessa, a fotocomposição de- signifcativa, foi o principal motivo para a forma os caracteres por ofuscamento. Com isso, os cantos aparecem levemente arredon- 9. Cf. Idem, Col. Zapf wal 265, p. 58. dados e a imagem da letra geralmente mais 10. Cf. Idem, Col. Zapf wal 264, pp. 58-59. 11. Cf. Hermann Zapf, Über Alphabete. Gedanken und Anmerkungen beim Schriftentwerfen, , 12. Cf. Ed. Rondthaler, Life with Letters as they Turned 1960, p. 47. Photogenic, , 1981.

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magra. Isso devia ser levado em conta no A Hallmark implantou um sistema de fo- design e foi difcultado pelo fato de que, na tocomposição da empresa Alphatype, que se fotocomposição, por motivos econômicos, destinava ao uso em agências de publicidade foram gerados todos os tamanhos a partir e podia lidar com grandes sobreposições, de um único negativo de fonte. Não era como as que aparecem nas letras caligráfcas. possível fazer ajustes para tamanhos muito No entanto, os tipos de letra constituíam um grandes ou muito pequenos. A forma tinha problema, já que eram bastante limitados de constituir um compromisso. na maioria dos fornecedores de sistemas de Ainda, a maior vantagem, em princípio, fotocomposição. Em especial, não se conse- das fontes de fotocomposição – a possibili- guia encontrar as letras ornamentais de alta dade de fazer superposições – era na prática qualidade e as letras caligráfcas, tais como bastante limitada. As fontes para fotocompo- a Hallmark exigia. Uma vez que os sistemas sitoras da maioria dos fabricantes adotavam a de composição eram incompatíveis entre retícula de 18 pontos [unidades? linhas?], tra- si, não se podiam comprar fontes de outros dicional nas prensas tipográfcas. Com isso, as fornecedores. A Hallmark junto com mem- sobreposições que se podiam realizar efetiva- bros do departamento de lettering, fundou o mente na maioria dos sistemas de composição chamado “Alphabet Group”, com a função limitavam-se a um máximo de 4 unidades. de desenvolver novas fontes para a tipografa Isso era sufciente para fazer sobreposições interna da casa15. como a do f itálico de um tipo romano, mas Nesse contexto, Zapf fez para a Hallmark não para caracteres caligráfcos salientes. o design de uma série de fontes caligráf- As primeiras fontes caligráfcas de Zapf cas. Certamente, no caso, precisou levar para a fotocomposição datam dos anos em conta os fatores técnicos do sistema de 1960. Nessa época, ele trabalhava para a composição, mas gozava de uma liberdade Hallmark, fabricante de cartões de sauda- muito maior no design das fontes do que seus ções, a princípio como consultor e professor fornecedores, que eram especializados no do departamento de lettering, e mais tarde mercado de leiautes tipográfcos. O campo como designer de fontes13. No início dos de ação das fontes da Hallmark restringia-se anos 1960, na Hallmark cerca de 90% dos a uma boa impressão num suporte de alta cartões ainda eram escritos a mão e reprodu- qualidade, de modo que se pudesse despre- zidos por litografa junto com a fgura. Em zar as deformações das letras no processo de meados da década, a empresa investiu em impressão. Além disso, os pequenos textos equipamento de fotocomposição e planejou dos cartões de saudação tornavam bastante aumentar fortemente o número dos textos supérfuas as considerações sobre o kerning usados, projeto que o consultor Zapf apoiou das letras, fator dominante nos grandes - e acompanhou14. tos. A primeira dessas fontes, Jeannette, Zapf desenvolveu a partir da caligrafa de Jeannet- 13. Zapf desenhou uma série de fontes para a Hall- te Lee, diretora do departamento de design mark, e algumas que não se incluem no grupo de letras da Hallmark. A ideia lhe veio à cabeça du- caligráfcas estudado aqui. Sobre essas fontes, ver a documentação de Rick Cusick. Rick Cusick & Sum- rante um brunch de domingo na fazenda de ner Stone, What our Lettering Needs. To J. C. Hall, o fundador da empresa16. Sem pre- & at Hallmark Cards; The Contribution of Hermann Zapf, Rochester, ny, 2011. 15. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., p. 36. 14. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, 16. Cf. Rick Cusick, “Kansas City and Hallmark”, em Col. Zapf wbu 126. Knut Erichson & John Dreyfus (orgs.): abc-xyzapf.

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8. Amostra da caligrafa de Jeannette Lee e a fonte Jeannette baseada nela. Hermann Zapf 1966/1967.

paração prévia, Lee escreveu num pedaço a inclinação dos traços principais varia le- de papel umas palavras-teste e o pantograma vemente e o contraste da espessura do tra- “The quick brown fox jumps over the lazy ço não é uniforme na letra toda. Segundo dog”. A partir disso Zapf desenvolveu uma Cusick, no início isso causou muita irri- fonte, na qual isolou as formas das letras tação, porque os gravadores da Hallmark avulsas e as transcreveu com sua própria que deviam transpor os designs de Zapf se caligrafa, imitando a letra de Lee. Enquanto preocupavam com a possibilidade de tais as palavras-teste de Lee exibem pouco con- assimetrias serem atribuídas a erros téc- traste da espessura do traço e foram escritas nicos em seu trabalho18. Além disso, Zapf provavelmente com uma caneta-tinteiro de apostava em variantes e ligaturas. No total, pena fna, Zapf usou uma pena larga, que a Jeannette compreende 160 caracteres, 66 produzia um contraste da espessura do traço dos quais são letras em caixa-alta19. Com visivelmente mais acentuado e uma aparên- efeito, as muitas variantes permitiam uma cia mais caligráfca. boa imitação da escrita manual, mas sua O sistema Alphatype da Hallmark utili- aplicação exigia mais trabalho, uma vez que zava, como muitos outros sistemas de fo- a toda vez o tipógrafo tinha de decidir que tocomposição, uma retícula de 18 pontos, formas alternativas e ligaturas devia usar. à qual se tinha de adaptar as larguras das Em comparação com a Virtuosa, nota-se o letras17. Para preservar a aparência de uma quanto esta era limitada pelo tipo móvel de escrita manual, Zapf executou as artes- chumbo. As letras ascendentes e as descen- -fnais com assimetrias calculadas: assim, dentes parecem na Jeannette, em relação por exemplo, nem todos os caracteres se à altura-x, sensivelmente maiores, o que encontram exatamente na linha de base, corresponde à aparência de uma escrita ma- nual, mas, na aplicação, condiciona o uso Fifty Years in Alphabet Design. Professional and Perso- de um tamanho maior de fonte, visto que nal Contributions Selected for Hermann Zapf, London/ Offenbach/New York, 1989, p. 144. 17. Cf. Hermann Zapf, Ein Arbeitsbericht, / 18. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., p. 40. Hamburg, 1984, p. 74. 19. Cf. Biblioteca Herzog August: 1993b, pp. 15-16.

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9: A Firenze da Hallmark, com iniciais ornamentadas.

uma grande quantidade de letras se movem nicas alemãs22 e por considerações sobre a apenas dentro da altura-x e, do contrário, resistência das letras na impressão. seriam demasiado pequenas. Os especialistas da Hallmark modifcaram Após a produção da Jeannette, Zapf de- muitas vezes a Firenze, retocando arabes- senvolveu para a Hallmark, em 1967, uma cos e arcos, uma técnica de trabalho que o itálica humanística, cujas formas se apro- próprio Zapf tinha introduzido na empresa. ximam bastante das itálicas caligráficas, Com isso, e com o auxílio da fonte de com- embora os estudos prévios para o design posição rápida, era possível obter uma im- da fonte tenham sido realizados não com pressão caligráfca. Em 1972, Zapf ampliou a pena larga, mas com uma esferográfca a fonte com o acréscimo de um alfabeto de de ponta fna20. Ele abdicou das ligaturas, maiúsculas ornamentadas. A denominação mas desenhou formas alternativas para uma desse alfabeto complementar não é unifor- série de minúsculas (v. Figura 9). A fonte me. A Hallmark o chama de “Firenze Caps recebeu o nome de Firenze, em referência da Hallmark”, um nome que aparece tam- ao forentino Niccolò Niccoli21, criador da bém em documentos de design23. Contudo, itálica humanística. Zapf, em seus catálogos de fontes, registra Para desenhar a Firenze, Zapf foi buscar o alfabeto como uma fonte versal indepen- estilisticamente formas na Palatino itálica dente com o nome de Arno24. Já que a fonte de composição manual, mas produziu-a de maneira sensivelmente mais caligráfca e 22. As normas técnicas alemãs fxaram as proporções das ascendentes, das descendentes e das letras médias sem as restrições exigidas pelas normas téc- das fontes para composição tipográfica. Isso devia garantir que fontes diferentes de mesmo corpo pu- dessem ser combinadas sem um deslocamento na 20. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., p. 43. linha. Como essa norma foi estipulada com base na 21. 21. Sobre Niccoli ver Berthold Louis Ullman, The letra gótica, as fontes romanas e principalmente as Origin and Development of Humanistic Script, Roma, versões itálicas sempre sofreram com as descendentes 1974 (col. “(Storia e letteratura” 79)e Bernhard Bis- demasiado pequenas. choff, Paläographie des römischen Altertums und des 23. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., p. 42. abendländischen Mittelalters. Berlin, 1979, p p. 188-192 24. Cf. Hermann Zapf, Ein Arbeitsbericht, Darmstadt/ (Grundlagen der Germanistik 24). Hamburg 1984, p. 76.

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10. A Scriptura da Hallmark.

nunca foi dada a público e que, por isso, para fns caligráfcos Zapf ensinava em seus não se precisou de um nome defnitivo para seminários no departamento de lettering da fns comerciais, essa diferença nunca foi re- Hallmark. Com a esferográfca, Zapf imitou solvida. Deve-se dizer que o design de Zapf a aparência de uma letra desenhada com a nada tem em comum com a Arno de Robert pena pontiaguda: uma impressão geral mais Slimbach, lançada em 2007, a não ser o mo- fna, remates em forma de gotas e um en- delo italiano25. grossamento e desengrossamento dos traços, Em 1972, Zapf apresentou à Hallmark o o que não depende do canto onde se apoia a design de uma fonte que, segundo Cusick, ferramenta de escrita28. se tornou uma das fontes favoritas para a im- A Scriptura, além de adotar o espaceja- pressão dos cartões da empresa. A Scriptura mento estreito que Zapf já tinha introduzido baseia-se nas formas de uma letra de chance- na Missouri, usava sobreposições num grau laria italiana. Cusick traça um paralelo com ainda maior. Quase todo caractere que mos- a “cancellarescha testeggiata” de Giovan tra uma ascendente ou uma descendente Francesco Cresci, que, no entender de Paul se projeta no cone de pelo menos um dos Shaw, tem como modelo uma cursiva do caracteres próximos. Existem duas versões mestre de escrita Lucas Materot26. Na verda- completas da Scriptura, uma normal e outra de, não é possível provar que se trata de um feita a partir de contornos móveis [Schwung- modelo direto; quando muito em alguns de- fguren], onde estes, em virtude de suas for- signs de título, que Zapf tinha feito anterior- mas salientes, não são adequados para serem mente em estilo semelhante27. Zapf não fez compostos sozinhos. os desenhos com a pena, como de costume, Na Hallmark, Zapf gozava de grande liber- mas com uma esferográfca, um instrumento dade para trabalhar as fontes. Os contextos de desenho que só no fnal da década de especiais de uso das fontes dispensavam toda 1950 obteve grande divulgação e cujo uso e qualquer consideração sobre a deterioração e a má reprodução das fontes. Velocidades 25. Cf. Mark Simonson, “ Review. Arno”, lentas de composição e mesmo intervenções Typographica. url: http://typographica.org/typeface- manuais em letras isoladas não constituíam -reviews/arno/ [acesso em 20.7.2014]. 26. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., p. 56; problema algum, uma vez que era rara a e Shaw 2012. composição de textos mais longos. No caso 27. Por exemplo, a edição de Die schönsten Ges- de fontes normais de composição, como chichten aus Tausendundeiner Nacht pela Büchergil- de, trad. e intr. de Enno Littmann, Frankfurt/Wien/ Züurich, Büchergilde Gutenberg 1963. 28. Cf. Rick Cusick & Sumner Stone, op. cit., pp. 25-31.

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11. A fonte Noris Script.

aquelas que de modo geral Zapf desenhava, ponto de vista, as possibilidades teóricas da não existiam essas liberdades. Um exemplo fotocomposição foram limitadas pela codi- dos problemas ligados a isso é a fonte Noris, fcação usada. Graças às características da que Zapf desenvolveu para a Linotype qua- fotocomposição, foi possível fazer de modo se ao mesmo tempo em que desenhava a muito fácil as ligações entre a maioria dos Scriptura. Em 1971, Zapf propôs que, numa caracteres. Estes foram desenhados e espa- nova fonte para o sistema de fotocomposição cejados de tal maneira que os traços que os da Linoflm, fosse empregada uma letra de ligavam cobriam partes do caractere vizinho. chancelaria parcialmente aglutinada, que Desapareceu a necessidade que existia, na ele já usava, entre outras coisas, em designs composição tipográfca, de fazer de uma só de capa. Na fonte Noris Script, assim cha- vez a ligação para todos os caracteres, porque mada em alusão a , cidade natal já não se precisava separar no limite da letra do calígrafo, Zapf voltou a trabalhar com os traços que os unia. ampliações de seus próprios testes manus- A Noris, que foi lançada em 1975, apre- critos. Desta vez, utilizou-as apenas como senta poucas ligaturas, sobretudo em com- estudos preliminares e, com base nelas, fez paração com as fontes da Hallmark. Exis- artes-fnais convencionais, nas quais foram tem f, f, assim como ae e oe, que fazem introduzidas, artifcialmente, anomalias, tais parte da confguração padrão de sistemas como aparecem na escrita em virtude de Linoflm. Ligaturas com motivos estéticos, irregularidades no papel. como as combinações Th e ng divulgadas O desvio que se produz numa letra escrita mais tarde nas itálicas, são usadas tão pou- com pena larga criava um vigoroso contraste co quanto as letras duplas. A razão disso é, na espessura dos traços, uma forte inclinação principalmente, a necessidade de a fonte da letra, como é comum em letras chancele- funcionar num contexto comercial. A má- rescas, mas não era realizável tecnicamente. quina de composição podia codifcar ape- Na verdade, o sistema Linoflm possibilitava nas uma variante de um caractere e apenas sobreposições de 3-4 pontos na retícula de um número bastante restrito de ligaturas. 18 pontos, mas isso não era sufciente para As formas especiais da Hallmark controla- uma letra muito inclinada. Por isso, incli- das parcialmente à mão eram irrealizáveis nou-se o eixo da letra em apenas 4o. Além num contexto de uma fonte eliminada do disso, em virtude da limitação do sistema mercado mundial29. de 18 pontos, a Noris Script não exibe con- Alguns anos mais tarde, Zapf desenvolveu tornos móveis [Schwungfguren] ou formas outra fonte de fotocomposição inspirada na salientes. A largura de um caractere podia escrita manual, sob condições técnicas se- importar em, no máximo, dezoito vezes o tamanho dos caracteres menores, o que, via 29. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, de regra, representa o ponto e vírgula. Desse Col. Zapf wal 345 e wal 235, p. 40.

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melhantes, mas que alcançou um sucesso ção32. Inicialmente, Zapf concebeu a letra muito maior. Desta vez, o cliente não era com traços fnos, mas precisou engrossá-los, a Linotype, mas a International Typeface porque a itc temia que as máquinas de com- Corporation (itc), uma espécie de editora de posição de algumas das empresas licenciadas designers de fontes, que se distinguia pelas não conseguissem reproduzir de maneira condições justas que oferecia aos designers e satisfatória linhas muito fnas33. por uma política de licenciamento bastante Em comparação com a Firenze, Zapf ele- liberal30. Zapf já havia lançado uma fonte vou sensivelmente a altura-x dos caracteres. pela itc e, na época, 1976, trabalhava no aca- Por meio de mais sobreposições e de muitos bamento da Zapf Dingbats, uma fonte que contornos móveis [Schwungfguren], formas depois fcou famosa no mundo inteiro; foi iniciais e formas terminais, Zapf explorou as então que Ed Rondthaler, um dos diretores possibilidades da fotocomposição para imitar da itc, o procurou com uma proposta para tipograficamente a escrita manual. Além produzir uma nova fonte: disso, como Rondthaler havia proposto, construiu a fonte de maneira que os traços I wonder if you’ve ever thought about desig- descendentes de muitas letras se sobrepuses- ning a calligraphic letter – perhaps a chancery sem, num espacejamento normal, à haste – that could be used for text composition. […] do caractere contíguo à direita, o que devia The public is accepting letters that touch each fortalecer ainda mais a aparência de uma other; there is a growing interest in calligraphy; escrita manual34. photo-typesetting can overlap letters with no pro- Como a itc produzia todas as fontes em blem whatsoever. […] But, of course, it must be quatro gradações de negrito com o itálico easily read in small sizes so that it can be used correspondente, isso também devia ser man- commercially for book composition31. tido no caso da Zapf Chancery. Todavia, a Chancery já era basicamente um itálico, o Zapf aceitou a proposta. Para seu projeto que levantava um problema. A solução que recorreu, entre outras coisas, ao repertório Zapf encontrou foi desenhar a fonte básica de formas da Firenze que tinha desenvolvi- com uma leve inclinação e o itálico forte- do para a Hallmark, mas para a nova fonte mente inclinado, sendo que a versão mais adotou um ductus de pena larga muito mais inclinada não constituía explicitamente uma forte. Após estudos preliminares com a pena fonte distinta, mas uma alternativa. Para a larga, Zapf entregou à itc, para efeitos de criação de versões com inclinação ainda teste, rascunhos completos feitos a lápis e maior, Zapf inclinou a versão ereta por meio com esferográfca e, fnalmente, desenhos de distorção ótica e redesenhou as formas as- dos contornos como modelos para reprodu- sim obtidas. Nesse caso, aceitou os caracteres numéricos e extensas partes das minúsculas 30. Outras fundições de fontes, como, por exemplo, sem grandes alterações. Somente os “g”, “k”, a Linotype e a Monotype, eram também fabricantes “v”, “w” e “x” foram basicamente redesenha- de sistemas de composição e consideravam as fontes dos. Ao contrário, as caixas-altas, quase sem um atributo único de seus sistemas de composição. Por isso, mostravam-se extremamente reservadas no exceção, foram redesenhadas como contor- licenciamento de fontes para empresas concorrentes. nos móveis [Schwungfiguren]. Visto que Isso, por outro lado, provocou – em detrimento do designer da fonte – uma avalanche de plágios. 32. Idem, Col. Zapf wal 248. 31. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, Col. 33. Idem, p. 24. Zapf wal 251, p. 4. 34. Idem, Col. Zapf wal 249. 249.

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12. ITC Zapf Chancery com itálico. 24 pontos.

essas formas não se prestavam à reprodução com essa apresentação expressiva, baseada em negrito, a versão com maior inclinação na linguagem dos quadrinhos, que Lubalin foi oferecida como light e medium apenas concorda em que o campo de aplicação para as duas versões mais leves. da fonte é limitado: “Zapf Chancery has A Zapf Chancery foi dada a público em a multiplicity of applications. But it, too, 1979 e apresentada por Herb Lubalin num can be badly misused in the wrong place extenso artigo publicado na U&lc, no qual at the wrong time for the wrong product estão listados os mais diversos exemplos de or service”37. Depois de publicada, a fonte aplicação, desde certidões de casamento, chamou alguma atenção, tanto pela fama passando por uma página de papel-bíblia de seu designer quanto pelo fato de ter tido até um cardápio35. Chama a atenção uma repercussão a tentativa de produzir uma montagem exibida na primeira página fonte caligráfca. E se alguns resenhistas dupla do artigo, com a qual Lubalin de- criticaram detalhes da fonte, como o “g” e monstra as possibilidades da fonte na pu- o “E”, por terem sido bem realizados este- blicidade (ver Fig. 13). De uma borda da ticamente38, outros a viram como um uso fgura irrompem três palavras compostas bem-vindo da caligrafa na fotocomposição. em Zapf Chancery, num espacejamento Entre estes, a designer , que, estreito: “Pow! Bam! Zapf!”36. Não é apenas com seu elogio, refete o teor dos resenhis-

37. Idem, ibidem. 35. Cf. U&lc 6, 1979, cad. 2, p. 36. 38. Cf. Holmes, Kris, “On Type. itc Zapf Chancery”, 36. Idem, pp. 33-44. em Fine Print 6 (1980), cad. 1, p. 26.

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13. Ilustração para a apresentação da Zapf Chancery na U&lc.

tas positivos: “a vigorous, playful, and ico- fonte caligráfca adotada foi a Zapf Chan- noclastic Chancery, adapted to commerce cery Medium Italic41. Com isso, a partir de rather than the museum”39. 1985, a fonte foi fornecida junto com todos No entanto, a grande divulgação que a os computadores da Apple e todas as impres- fonte obteve a longo prazo não se deveu soras PostScript, o que, em razão de terem nem à apresentação de Lubalin na U&lc, sido oferecidas à Apple condições mais favo- uma publicação de grande alcance, nem às ráveis, signifcou, de fato, um ganho apenas resenhas publicadas em outros veículos. A moderado para a itc e para Zapf, mas deu à razão decisiva foi o fato de, em 1985, a fonte fonte maior divulgação. ter sido fornecida, no chamado Core A última fonte caligráfca de Zapf foi cria- Set, junto com a impressora LaserWriter da com o objetivo de aproveitar as possibi- da Apple. Tratava-se, nesse caso, de uma lidades das fontes de computador, a fm de seleção de apenas dez fontes num total de 35 superar os obstáculos que tinham limitado as variantes40. A pedido de Steve Jobs, a única letras caligráfcas na composição tipográfca e na fotocomposição. Zapf foi um pioneiro 39. Idem, p. 30. no desenvolvimento de fontes digitais e, já 40. Daí surgiram três fontes num total de seis variantes de Zapf. O Core Font Set completo compreendia as no início dos anos 1980, tinha trabalhado fontes Avant Garde Gothic, Bookman, , Hel- com no desenvolvimento da vetica, New Century Schoolbook, Palatino, , Times, Zapf Chancery e Zapf Dingbats. Cf. Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, Col. Zapf wal 349, 41. Cf. Ilene Strizver, Type Rules, Hoboken, New p. 36. Jersey, 2010.

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14. Donald Knuth e Hermann Zapf trabalhando na Metafont, , 14.2.1980.

Metafont, uma linguagem de programação fonte para a composição de textos matemá- de fontes para a impressão. ticos e, sobretudo, fórmulas que Zapf tinha Aqui, as formas das letras não foram repro- desenhado a pedido da American Mathe- duzidas como bitmap, como era costumeiro matical Society. na época, nem descritas como Vector-Outli- Siegel, que também era designer de fon- ne, conforme o padrão atual. Em vez disso, tes42, tinha sugerido, já em 1987, isolar carac- a Metafont descreve o caminho de uma teres avulsos de caligrafas de Zapf e, com o pena virtual, aliado à sua rotação, tamanho uso de vários alfabetos paralelos e de várias e forma. Assim, para descrever uma fonte, ligaturas, desenvolver uma fonte caligráfca simula-se o processo da escrita. Com efeito, próxima da escrita manual de Zapf. Com o a Metafont era altamente inovadora, mas se auxílio de um gerador randômico, deviam-se estabeleceu, junto com o programa de com- mesclar os caracteres dos alfabetos parale- posição TeX, de Donald Knuth, sobretudo los e romper a grande regularidade que as para a composição de textos científcos, um fontes mostravam43. Zapf não queria ver sua campo de aplicação não muito próprio para letra imitada na forma de uma colagem, o desenvolvimento de fontes caligráfcas. mas se interessou pela ideia técnica e, assim, Finalmente, o design de Zapf para uma concordou em desenvolver a fonte com Sie- fonte caligráfica digital foi criado como uma outline font convencional. Quem fez 42. A fonte mais bem-sucedida de Siegel é a Tekton, essa sugestão foi David Siegel, que, como que imita a letra feita com o tira-linhas por arquitetos em plantas de construção. assistente de Donald Knuth, participou na 43. Ver Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, implantação técnica da ams Euler, uma Col. Zapf wal 377, p. 1.

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15. Desenho de teste da Zapfno. Hermann Zapf, 1994.

gel44. Depois das primeiras tentativas, o pro- dou a empresa de webdesign, Studio Verso, jeto adormeceu no fnal da década de 1980, e publicou, em 1996, Creating Killer Websi- porque a codifcação se mostrou demasiado tes48, que se tornou um best-seller internacio- complexa45. Em 1993, Siegel apresentou a nal. A constituição de sua empresa exigia de Zapf um lucky chance program, que possibi- tal modo a atenção de Siegel, que ele, pouco litava a utilização aleatória de variantes de tempo depois, passou a digitalização dos de- letras46. Com isso, Zapf e Siegel voltaram a signs de Zapf para seu diretor de criação, desenvolver a fonte, com o nome de trabalho Gino Lee49. O trabalho de Lee, que raramen- Zetina47. De caracteres frequentes, como o te demandava correções nas formas da fonte, “e”, Zapf precisou desenhar até oito versões, causou tamanha impressão em Zapf que ele ao contrário dos caracteres menos requisi- chegou a comparar o designer a August Ro- tados, como o “$” e o “¶”, que deviam ter senberger, que durante toda a vida de Zapf apenas duas variantes. Em 1994, Zapf en- fora o modelo de um bom cortador de fon- viou a Siegel os primeiros desenhos. Nesses, tes50. Em homenagem a Lee, Zapf mudou o Zapf não desenhou caracteres avulsos, como nome para Zapfno, um composto de seus em todas as outras fontes, mas palavras-teste nomes51. Siegel continuou responsável pela inteiras, nas quais os limites dos caracteres implantação do programa randômico e pela eram marcados apenas por linhas inclinadas. distribuição da fonte, cujos lucros seriam di- Paralelamente ao projeto de design de vididos entre Zapf e Siegel. Sobrecarregado fontes com Zapf, Siegel se estabeleceu como com a constituição de sua empresa, Siegel especialista em webdesign, um setor que co- pouco fez. A implantação técnica estagnou. meçara a ganhar relevância. Em 1994, fun- Na verdade, o lucky-chance-program de Sie-

44. A datação de Jerry Kelly, segundo a qual os pri- 48. David Siegel, Creating Killer Websites, Indiana- meiros desenhos para a Zapfno surgiram já em 1977, polis, 1996. não é comprovável. 49. Ver na Biblioteca Herzog August de Wolfenbüt- 45. Ver na Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, tel, Col. Zapf wal 378, p. 3. Sobre Lee, ver Butterick Col. Zapf wal 377, p. 37. 2011. 46. Idem, p. 31. 50. Idem, Col. Zapf wal 317, p. 31. 47. Idem, p. 33. 51. Idem, Col. Zapf wal 379, pp. 51-70.

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16. Amostra da Zapfno Extra de 18 pontos.

gel funcionava nos testes, mas sua integração usuário a possibilidade de usá-la em todo o num arquivo distribuível de fontes mostrou- texto ou de escolher manualmente alternati- -se muito demorada. Em 1996, Siegel e Zapf vas de caracteres avulsos entre outras varian- voltaram a descartar o aspecto randômico e tes de fontes. A fonte contém, no total, mais tentaram vendê-lo como fonte convencional de quarenta ornamentos e muitas ligaturas com diversas variantes substituíveis. Para dar para frequentes combinações de letras, como à fonte mais uma característica única, Zapf “Th” e “nd”, adequadas principalmente para desenhou outros quatro contornos móveis a língua inglesa54. com descendentes extremas para serem usa- De modo geral, a Zapfno obteve uma re- dos na última linha, como é comum em cepção positiva, em especial para a exigente manuscritos caligráfcos52. composição de quatro alfabetos diferentes, A empresa de webdesign de Siegel cresceu mas, ainda assim, substituíveis. Tanto o de- assustadoramente no boom da internet dos partamento de fontes da Apple quanto Steve anos 1990, mas acabou por levá-lo e a Lee Jobs se mostraram impressionados com a a descuidarem do projeto da Zapfno53. A fonte e propuseram a Zapf, no âmbito da correspondência entre Zapf e Siegel de 1996 Zapfest de 2001, licenciá-la como fonte- e 1997 mostra lacunas de diversos meses, sistema, se Zapf a adaptasse ao formato período em que Zapf não recebeu respostas OpenType55. A reformada Zapfno Extra foi de suas cartas. Frustrado com essa situação, lançada em 2003 com o sistema operacional Zapf pôs fm à colaboração com Siegel e os x 10.3. Ao lado de dois alfabetos adicio- submeteu o projeto à Linotype. A fonte foi nais em negrito e uma multiplicidade de aceita e fnalizada com base nos dados de caracteres especiais, essa versão compreen- Lee. Em 1998, a Zapfno foi lançada pela de também um algoritmo que, conforme Linotype em quatro variantes, oferecendo ao o contexto em que figura um caractere, escolhe que forma alternativa será usada56. 52. Idem, Col. Zapf wal 312, pp. 4-7. 53. Em 1999, Siegel vendeu sua empresa por “many millions of dollars” ao grupo de consultoria kpmg. Ver, 54. Idem, Col. Zapf wal 165. na Biblioteca Herzog August de Wolfenbüttel, Col. 55. Idem, Col. Zapf wbu 151. Zapf wal 379, p. 20. 56. Idem, Col. Zapf wal 321.

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17. Zapfno Ink.

Embora o alto grau de difusão e o re- livro de Zapf, Alphabetgeschichten57. Toda- conhecido valor da Zapfno tenham, por via, como não foi desenvolvido um padrão algum tempo, desabonado seu uso entre geral para as fotofontes, a Zapfno Ink não designers profssionais, com ela Zapf se tor- foi publicada até hoje. nou o pioneiro no renascimento de fontes caligráfcas que exploravam as possibilidades ¶ Conclusão do OpenType. Mesmo que algumas dessas A fonte caligráfca se distingue das fontes fontes, como a Bickham Script de Richard tipográfcas por uma série de características: Lipton e a Ministry de Alejandro Paul, te- riqueza de variantes, soluções de acordo com nham superado sensivelmente a o contexto e, em parte, por longos contornos em número de alfabetos paralelos, deve-se móveis. Até meados do século xx as limita- encará-la como uma obra pioneira. ções tecnológicas da composição tipográfca Por volta do ano 2000, surgiram as chama- restringiram grandemente a imitação dessas das fotofontes, que, em vez de um contorno letras na impressão. A primeira tentativa de vetorial dos caracteres de fontes, voltavam a Zapf de criar uma fonte caligráfca mostra utilizar gráfcos em pixel. Com isso, foi pos- igualmente essas limitações. Com efeito, a sível defnir transparência, cor e claridade de Virtuosa, fruto dessa tentativa, foi bem-su- diferentes partes de uma letra. Essa técnica cedida como fonte, mas, em sua linguagem foi desenvolvida, originalmente, para gerar formal, distanciou-se enormemente de suas fontes para fns comerciais a partir de foto- origens caligráfcas. No entanto, no número grafas ou de colagens. Com base nessa tec- relativamente alto de ligaturas numa fonte nologia, Zapf desenvolveu com a Linotype para composição tipográfca já se encontra uma versão da Zapfino que, nas formas, o primeiro elemento de que Zapf também combinava integralmente com a fonte exis- se aproveitou em seguida ao realizar formas tente, mas que, em testes de claridade dentro caligráfcas na impressão. dos caracteres, imita a aparência de uma es- Com a fotocomposição, foram soluciona- crita manual de modo mais preciso do que é dos, a princípio, muitos dos obstáculos da possível com uma fonte Outline (contorno) composição tipográfca. No campo especial pura. A fonte foi desenvolvida quase com 57. Hermann Zapf, Alphabetgeschichten. Eine Chro- vista à comercialização e, desde 2002, foi nik technischer Entwicklungen, Bad Homburg, 2007, reproduzida repetidas vezes em revistas e no p. 91.

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do fabricante de cartões de saudação, a Hall- Com o surgimento das fontes digitais, abri- mark, Zapf pôde, assim, experimentar sem ram-se basicamente novas possibilidades. A entraves e apresentou uma série de fontes Zapfno, desenvolvida por sugestão de David bastante livres e próximas da caligrafa, mas Siegel e em conjunto com Gino Lee, é uma cujo aspecto caligráfco criava uma grande das últimas fontes de Hermann Zapf. Explora difculdade para o compositor. No ambiente todas as possibilidades técnicas, disponíveis na da Hallmark, onde, de modo geral, eram virada do milênio, para imitar na impressão compostos apenas breves segmentos de tex- a escrita manual. Com originalmente quatro to, isso não constituía um problema. Além e mais tarde seis alfabetos paralelos que se disso, foram em grande parte adotados os alternam de acordo com o contexto, Zapf sistemas de retícula da máquina de compo- suprime na Zapfno a marcada regularidade sição tipográfca e, com isso, também limites das fontes. Junto com um grande número de estreitos na largura possível dos caracteres, ligaturas e contornos móveis, isso fez com que sobreposições etc. Essas barreiras não foram a Zapfno quase não apresente semelhança superadas totalmente até o fm da fotocom- com a Virtuosa, quase cinquenta anos mais posição, mas, apesar de todas as difculdades, velha, embora ambas as fontes derivem do fontes como a Zapf Chancery mostram as mesmo modelo caligráfco. Por um lado, esse possibilidades disponíveis da fotocomposi- desenvolvimento mostra o amadurecimento ção: o uso de linhas de contorno irregula- de Zapf como designer. No entanto, ilustra res, como uma pena as deixaria num papel acima de tudo o papel que a tecnologia de farpado, e o emprego de sobreposições, que composição representa no desenvolvimento substituiu as sensíveis ligações de fontes ca- do design de fontes, não apenas, mas especial- ligráfcas da composição tipográfca. mente nas fontes caligráfcas.

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