Gato Félix e os dispositivos: dos desenhos animados às histórias em quadrinhos

Prof. Dr. Rafael Duarte Oliveira Venancio  Universidade Federal de Uberlândia

Resumo: O presente artigo deseja observar como um protagonista gráfico, notadamente o Gato Félix, se comporta, em sua narrativa, com a tradução dos seus mecanismos diegéticos após a mudança narrativa de dispositivos midiáticos. Utilizando-se o arcabouço teórico de David Bordwell e Jean-Louis Baudry acerca das narrativas visuais, o objetivo aqui é refletir acerca desse exercício de estilo e fórmula, bem como desvelar as estratégias dos dispositivos midiáticos do Desenho Animado e das HQs, que fazem o Gato Félix ser um marco nos primórdios das duas práticas midiáticas . Palavras-chave: Gato Félix; Dispositivo; Narrativa Visual

Abstract: This article wants to observe as a graphic protagonist, notably , behave, in his narrative, with a inter-semiotic translation of its diegetic mechanisms after the narrative change of media devices. Using the theoretical framework of David Bordwell and Jean-Louis Baudry about visual storytelling, the goal here is to reflect on this exercise in style and formula as well as unveiling the strategies of media devices, namely cartoon and comics, turning Felix the Cat in a milestone in the early days of the two media practices.

Introdução uma chance de um rolo de filme Quando se fala de “cinema puro”, no inferno quando se fala do “fluxo visual”, “representação Gato Félix e dos outros desenhos gráfica”, “liberdade do meio animados (PEET apud MALTIN, cinemático” e todas as outras coisas 1987, p. 26). que os que os cultos entusiastas estrangeiros de cinema falam, Desenho Animado e Histórias em nada podem Jannings ou Lubitsch Quadrinhos possuem pioneiros em comum, ou Murnau ou Greta Garbo ou mas nenhum deles tão notório como Winsor Rin Tin Tin ter mais do que McCay. Em 1911, McCay, já famoso pela

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 59 tirinha Little Nemo in Slumberland nos Primeira Guerra Mundial, McCay não jornais resolve enveredar no campo da conseguiu transformar Gertie em uma estrela e, animação ao perceber o sucesso que isso fazia ironicamente, foi vítima da fórmula comercial com o seu filho. Um exímio desenhista, o do desenho animado. Gastando dois anos ao americano tinha pretensões de elevar a arte do fazer o primeiro desenho animado de drama desenho animado, fazendo que ele adotasse as – The Sinking of the Lusitania (1916-8), linhas clássicas do traço que ele utiliza nas suas baseado em fatos reais e seguindo os princípios histórias em quadrinhos. da propaganda de guerra –, McCay se tornou No entanto, a preocupação estética apenas um velho ídolo para aqueles que o de McCay não era a verdadeira fonte de sua superaram no período entre-guerras. fórmula. No mesmo ano de 1911, ele lança a Traído por mostrar um tratamento versão em desenho animado de Little Nemo inovador, “McCay criticava-os [jovens se associando a Blackton (Vitagraph Studios). desenhistas] dizendo que ele desenvolveu e os A história do desenho animado tinha pouco deu uma nova grande forma de arte que eles a ver com a série dos jornais. Era mais uma baratearam e transformaram em uma forma jogada comercial que atrairia os leitores de cruel de negócio de fazer dinheiro realizada Little Nemo aos cinemas para verem seus por artistas de quinta categoria” (WILLIAMS, heróis ganharem vida na telona. 2009, p. 17). O desenho animado, também chamado Muito mais do que a fórmula comercial, Little Nemo, possui apenas 2 de seus 10 Winsor McCay mostrou, através de Little minutos com animação colorida à mão. Os Nemo e Gertie, um existencial central da oito minutos são calcados na figura do próprio linguagem do desenho animado: o personagem McCay, usando sua notoriedade enquanto protagonista. E isso seria obtido poucos anos desenhista de jornal. depois: o Gato Félix. Logo o nome Winsor McCay se A força do Gato Félix seria tamanha tornaria uma marca em desenhos animados. que não só ele se consolidaria enquanto o No ano seguinte, ele lançaria How a Mosquito grande protagonista de desenhos animados Operates, usando o seu traço, mas tentando em sua Era Dourada, bem como ele seria o trilhar o caminho surreal de seus colegas primeiro personagem de animação a ir para pioneiros. os quadrinhos, invertendo o caminho usual. Apesar do sucesso do desenho do Com arcabouço teórico nos estudos mosquito, Winsor McCay percebeu o poder das narrativas visuais, com enfoque em David de um personagem protagonista, bem à moda Bordwell e Jean-Louis Baudry, a reflexão das histórias em quadrinhos tal como o Little aqui se concentrará nas formas gráficas do Nemo, um garotinho que dormia e vivia, em Gato Félix, seja no desenho animado seja nas seus sonhos, as maiores aventuras possíveis. histórias em quadrinhos, em seu primeiro Tendo isso em mente e pensando no passado momento. Como estudo de caso, faremos a vauderville da animação, surge com McCay comparação entre o curta de animação The uma nova realização. Non Stop Fright (1927) com as tirinhas do Denominado Gertie The Dinosaur personagem, distribuídas pela King Features’ (1914), McCay montou um show onde ele Syndicate entre 13 e 16 de maio de 1931. interagia com um dinossauro de desenho Tendo os conceitos de “estilo”, animado chamado Gertie na tela, que obedecia “fórmula” e “dispositivo” enquanto centrais, seus comando de voz. Ele, até mesmo, usando o trabalho fará uma breve reflexão teórica para seus dotes de mágica fazia Gertie comer uma depois proceder com a descrição e as análises maçã de verdade ao jogá-la na tela. Alguns das estratégias promotoras de surrealismo meses depois, essa performance se torou um presentes transmidiaticamente no começo, no filme para que todos vissem Gertie. princípio, das práticas estudadas. No entanto, com o advento da

60 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 Estilo, Fórmula e Dispositivo Clássica, Arte, Materialista-Histórica e Para David Bordwell (1997), a narração Paramétrica. Outras divisões do cinema – até visual é formada por três itens em relação: mesmo a de Gilles Deleuze em Imagem- syuzhet, style e fabula. A fabula, que pode Movimento e Imagem-Tempo – utilizam desse ser traduzida como fábula, é a macrohistória mecanismo de pensamento sem citá-lo. propriamente dita, a grande temática. Um Assim, para ressaltar o metapapel exemplo: as histórias de amor impossível entre do syuzhet utilizamos a palavra “fórmula”. dois apaixonados, as histórias de vingança, as Além disso, “fórmula” divide a mesma raiz histórias de sucesso de um self-made man, da palavra “forma”, de crucial aspecto para a entre outras. linha que influenciou Bordwell, os formalistas Ora, para ser apresentada em um russos. Além disso, não podemos acreditar na produto visual, a fábula é articulada pelos originalidade de qualquer fórmula, já que a sua outros dois itens. O style (o estilo) é a forma de gênese sempre terá o caráter de (re)apresentação. apresentação propriamente dita, muitas vez se O mesmo serve para uma receita de bolo: não confundindo com o meio de transmissão. Além a tiramos do nada. disso, eles podem apresentar especificidade. No entanto, para ver os efeitos do Um exemplo: o estilo não é apenas cinema, syuzhet no percurso, precisamos esclarecer mas cinema mudo, cinema falado, cinema um outro conceito. Estamos falando do experimental, cinearte, entre outros. dispositivo. Em poucas palavras, o estilo é a forma A noção de dispositivo foi cunhada por de apresentação, representação e, também, Jean-Louis Baudry (1975) em Le dispositif: reapresentação do mundo da fábula. Para approches métapsychologiques de l’impression isso, ele precisa ficar em extrema conexão de réalité. Em suma, o dispositivo é a visão com o syuzhet. de uma técnica midiática (no caso de Baudry, Esse termo define, normalmente, aquilo o cinema) enquanto “um sistema constituído que chamamos de trama (plot), ou seja, o de três níveis articulados: 1) a tecnologia de arranjo narrativo, o movimento sintagmático produção e exibição (câmera-projetor-tela); da apresentação e da história a ser contada. 2) o efeito psíquico de projeção-identificação Isso faz Bordwell (1997, p. 50) chamá-la de e o ilusionismo; 3) o complexo da Indústria arquitetônica da narrativa. Cultural como instituição social produtora No entanto, a tradução “trama” de um certo imaginário” (apud AUMONT, para syuzhet reduz muito a capacidade 2004, p. 46). metalingüística do termo. O syuzhet não é Muito mais do que dar continuidade apenas uma trama qualquer, ou mesmo, uma ao debate Adorno-Benjamin em seu terceiro trama única de um produto midiático. Ele, ponto, o dispositivo por Baudry dialoga com principalmente se pensamos em produções outros conceitos irmãos que compartilham o seriadas ou em práticas com amplo campo mesmo nome. Na maioria deles, especialmente intertextual (ambas presentes na história em naqueles compatilhados por pós-estruturalistas quadrinhos), ganha o status de receita. e pós-modernos, o dispositivo implica dois Tal como uma receita de bolo, o fatores cruciais para sua operação: uma questão syuzhet precisa de uma ordem definida de de poder (controle, sedução, legitimação) e uma componentes que, em si, podem ser trocados questão de linguagem (discurso, escritura). por outros similares. É como em uma receita de Mas como isso se relaciona à fórmula bolo. Não podemos colocar o fermento depois de uma história em quadrinhos, objeto que a massa foi ao forno, mas podemos trocar do presente trabalho? Ora, antes de partir o chocolate por laranja para mudar seu sabor. para a resposta dessa questão central, seria Isso é o syuzhet e por isso que ele interessante esmiuçar, usando um processo possibilita Bordwell dividir a história do de inter-relação teórica, os três pontos do cinema transversalmente em quatro períodos: dispositivo.

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 61 O primeiro deles são as questões de as ideologias do mundo estão neste campo, concretização da prática midiática. Aqui, o que pois elas possibilitam a reprodução material da está em jogo são questões da Arte e da Estética, sociedade. À parcela do mundo regida pela ação o do como fazer e de que forma apresentar. É instrumental, Habermas dá o nome de Sistema. a própria relação do dispositivo com o estilo, Já a ação comunicativa está calcada na conceito mencionado por Bordwell. interação simbolicamente mediada, em poucas Já o segundo, o efeito psíquico de palavras, no cotidiano social. É o campo da projeção-identificação e o ilusionismo, já tradição, da cultura, da fofoca, da família e significa as questões de interação e recepção com do socialmente compartilhado. A validade de o público. São questões da Cultura, do privado, qualquer coisa neste campo depende do acordo do interpessoal, da constituição individual e mútuo proporcionado pela intersubjetividade social da psique. envolvendo intenções e reconhecimento geral Por fim, o terceiro ponto, da Indústria das obrigações. Cultural, está nas questões que chamamos Com isso, a ação comunicativa é “orientada sistêmicas. É a relação do produto midiático não para o entendimento e não para a manipulação só com a Economia, com a Política do seu tempo, de objetos e pessoas no mundo em vista da mas também com as ideologias. reprodução material da vida (como é o caso da Interessante notar que o 2º e o 3º ponto racionalidade instrumental)” (NOBRE, 2004, p. se relacionam com a constituição dual das 56). É o espaço do chamado Mundo da Vida, do formas de agir no mundo – suas racionalidades, vívido cotidiano. seus movimentos de Aufklarung – para Jürgen As duas racionalidades – a ação Habermas. É o jogo entre a ação comunicativa instrumental e a ação comunicativa –, em (par do 2º ponto) e ação instrumental (par do interação, vão desenhando a realidade das relações 3º ponto). sociais contemporâneas. No entanto, há algo cuja Essa racionalidade dupla, onde uma racionalidade normalmente foge do Sistema e legitima/modifica a outra, parte da distinção do Mundo da Vida. Isso, para os críticos de habermasiana, dos conceitos hegelianos do Habermas, é o campo da Arte e suas regras período de Iena, entre trabalho (racionalidade/ próprias. Essa racionalidade artística é o ponto- ação instrumental) e interação (racionalidade/ chave do 1º ponto do dispositivo, utilizando uma ação comunicativa). lógica bem próxima daquela atribuída à palavra A ação instrumental é a racionalidade estética desde a Escola de Wolf e consolidada regida por regras técnicas apoiadas no saber por Hegel. empírico. Isso implica numa teleologia, ou seja, Com isso, ao destrinchar o conceito de em previsões sobre o mundo que implicam dispositivo, ampliando-o, nos deparamos com na escolha de estratégias. São essas estratégias o seguinte quadro, dividindo o dispositivo em analíticas que montam toda a gramática social na longos três ramos onde cada ponto-chave de sua qual vivemos. A Política, o Estado a Economia, definição se relaciona com uma racionalidade e seu campo de ação:

Dessa forma, o conceito de dispositivo relacionadas e cada um desses elos sustenta os mimetiza a própria sociedade em si, mostrando demais. Sem um deles, não há nada, não há a relação intrínseca entre as três racionalidades. mais o nó, não há mais a sociedade. Tal como as três partes de um nó borromeano, Com isso, podemos dizer que a fórmula Sistema, Mundo da Vida e Estética estão inter- tem o dispositivo enquanto seu locus de ação.

62 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 Agindo em um dos ramos do dispositivo, a Considerado a primeira série de desenho fórmula está (re)agindo em um dos elos de animado divulgada comercialmente, o racionalidade do nó borromeano social. protagonista era uma releitura americanizada Esse jogo de agir e reagir ou mesmo do Barão Munchausen. de provocar-evocar-invocar é o grande papel Simultaneamente a McCay, Bray criou de qualquer prática midiática e o dispositivo um desenho animado que, para ser vendável desvela isso. Ora, mas como isso opera no (servindo o lado comercial do dispositivo), Gato Félix? São nesses parâmetros que nossa usava a mesma estilística dos quadrinhos investigação deve acontecer do jornal e evocava elementos do cotidiano, do mundo da vida, tal como a popular Metodologia e Objetivos figura do presidente norte-americano Teddy De maneira geral, a proposta tem, Roosevelt. Heeza Liar seria um concorrente como objetivo principal, observar como um do mandatário, conhecido popularmente protagonista gráfico, notadamente o Gato como um explorador graças ao noticiário Félix, se comporta, em sua narrativa, com popularesco de suas caçadas e expedições pela a tradução dos seus mecanismos diegéticos África após o término de seu mandato. após a mudança narrativa de dispositivos Relembrando o pioneirismo do desenho midiáticos. animado de Little Nemo, Bray e os estúdios do Utilizando-se o arcabouço teórico de magnata Hearst começaram a lançar inúmeros David Bordwell e Jean-Louis Baudry acerca desenhos animados baseados em histórias em das narrativas visuais, o objetivo aqui é refletir quadrinhos para aumentar suas chances de acerca desse exercício de estilo e fórmula, bem rentabilidade. Assim, entre muitos, surgem como desvelar as estratégias dos dispositivos os desenhos animados de Krazy Kat (Gato midiáticos do Desenho Animado e das HQs, Maluco, no Brasil) e Mutt and Jeff, ambos de que fazem o Gato Félix ser um marco nos 1916. As duas séries são, respectivamente, as primórdios das duas práticas midiáticas . maiores em número de filmes lançados em O arcabouço foi descrito nas páginas cinema superando os 300 curtas de animação anteriores, bem como a separação do corpus. cada, número só superado por Popeye se As páginas seguintes demonstra uma pesquisa contarmos as produções de cinema e televisão. exploratória, focada na esteticidade do No entanto, seria apenas com um dispositivo. Assim, após a apresentação do personagem criado para desenhos animados Gato Félix, chocaremos dois exemplares em que o cinema mudo ganharia seu protagonista- comum, visando entender como o personagem mor. Com uma história de criação muito pode ser um exemplo primevo de fórmula misteriosa, o Gato Félix ocuparia esse espaço transmidiática. e se retomaria o desenho animado com uma fórmula autônoma e não enquanto O Gato Félix dos desenhos animados merchandising de história em quadrinhos. Se Carlitos, o personagem vagabundo Pat Sullivan e sempre de Charles Chaplin, surgiu em 1914 e inovou brigaram para decidir quem dera a faísca o cinema, o desenho animado possui também, criadora do Gato Félix. O primeiro, em sua época muda, o seu mito: o Gato Félix. australiano, teria criado (e registrado) o Surgindo no desenho animado Felline Follies personagem em 1917 com o nome de Thomas (1919), Felix the Cat se torna o maior entre (apenas em Felline Follies, Félix não usa todas as estrelas do desenho animado mudo, esse nome, mas sim Master Tom) e é o seu período compreendido entre a Primeira Guerra nome que aparece enquanto autor de todos Mundial e o final da década de 1920 com o os desenhos animados. Além disso, nos anos advento fílmico do som. 2000, pesquisadores de seu país natal afirmam O primeiro deles foi o Coronel que é possível afirmar que a escrita de Sullivan Heeza Liar, criado em 1913 por J. R. Bray. aparece nos desenhos animados de Félix,

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 63 especialmente os primeiros. cenário, os momentos de ápice do riso e, No entanto, o americano Messmer, até mesmo, a forma de ficar estático dentro apoiado pelo historiador John Canemaker, do caos do meio. descreve uma criação quase por acidente em Essas características, principalmente meio da febre por animações no estúdio da a última, parecem ser assumidas pelos Paramount após a saída de Bray. Messmer desenhistas de Félix em seu auge no filme (apud MALTIN, 1987, p. 23) relembra o Felix in Hollywood (1923). Félix, em momento da criação do Felline Follies: viagem para conseguir um emprego na Com o estúdio cheio de trabalho, indústria cinematográfica, encontra com Sullivan me pediu para fazer várias personalidades. um desenho animado no meu Ao se deparar com aquele que pode tempo de folga, em casa. Eu fiz contratá-lo (The Boss, uma caricatura de um rápido que mostrava um Will Hays, presidente da MMPPDA, a gato preto sendo superado por atual MPAA), ele pede um emprego e faz um rato. Eu usei diversas gags um teste onde ele apresenta três papéis: o fílmicas. A Paramount gostou e triste, o feliz e o original. No último, ele contratou-o para a Paramount transforma sua cauda em uma bengala, junta Screen Magazine. Fez um grande sua boca e nariz para fazer um pequeno sucesso com o público. Eu o bigode e começa a andar com os pés escrevi e o animei sozinho com apontados cada um para um lado. os assistentes do estúdio. Ele Tudo isso sem perceber que estava aumentou em popularidade e, sendo visto por Chaplin, vestido de Carlitos, com a demanda aumentando, que o disse através de um balão – já que os Sullivan trouxe mais animadores, filmes eram mudos, o desenho animado diversas vezes, para ajudar. aproveitava esse recurso gráfico das histórias em quadrinhos – que ele estava roubando Outra evidência que apóia a versão de sua ideia [stuff]. Félix sai desesperado do Messmer frente à defendida por Sullivan, estúdio e reclama: “Isso arruína minha seu superior na Paramount é que, pouco chance no cinema”, emendando a uma pausa tempo antes, ele foi o animador-chefe de tragicômica. uma série de curta vida estrelando a versão Apesar de fazer um bom uso comercial desenho animado do Carlitos. Isso só reforça e usar referências do cotidiano tal como a o usual paralelo entre as duas superestrelas imagem que as pessoas têm dele junto a do cinema mudo. Carlitos, a fórmula do desenho animado É sabido que os filmes de Chaplin do Gato Félix se baseia na parte estética do foram muito utilizados para treinar, dispositivo. via análise de frames e, mais tarde, via Primeiro estava na questão de fazer rotoscopia, a animação de movimento em um gato preto. Apesar do interessante jogo desenho animado. Walter Lantz foi um dos entre felix (sortudo, em latim), felis (gato, animadores que confessaram esse tipo de em latim) e o mito do azar do gato preto, a treinamento quando começou aos 16 anos escolha foi própria das potencialidades do nos estúdios Hearst. desenho animado. Messmer, em entrevista, Só que a filiação entre Carlitos e afirmou que escolhera a cor preta porque Félix vai além. Ambos parecem utilizar a facilitava o traço, dispensando as bordas, e mesma fórmula do herói errante, quase fazia o movimento rodar mais suave. um ser fora da sociedade, que entra para No entanto, tal como nos filmes subverter comicamente uma ordem definida. de Cohl, a fórmula de Félix se calcava Além disso, a mise en scène dos dois parece especialmente no surrealismo. O gato idêntica, incluindo sua movimentação no manipulava tudo e a todos no espaço cênico.

64 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 Além do exemplo da cauda virando bengala, ou cinco pelo que sei –, surfando outros também são dignos de nota. Em na última fronteira do plausível, The Non Stop Fright (1927), Félix irá ler o pequeno gato preto do desenho o seu jornal perto de uma placa que indica animado não se deixa podar por a distância de 478 milhas. Para isso ele usa nenhum dos fatos da vida que o número 4, de ponta-cabeça, como cadeira, poderia preocupar qualquer felino o 7 deitado como um charuto e o 8 na de pelo e garras mais substancial. horizontal como óculos. Alegremente e de maneira Nenhuma das manipulações impertinente, ele se joga no espaço ambientais de Félix era tratada como grandes vazio, se içando em um mundo de feitos. Tudo era fluído e ordinário, fazendo inúmeras e elásticas dimensões e um surreal bem à moda dos incoerentes de possibilidades ilimitadas no qual Cohl e companhia. Essa ação dentro da cada árvore ou pedra não tem racionalidade estética era notada na época apenas uma vida potencial mas tal como artigo de Creighton Peet (apud um jogo completo de emoções. MALTIN, 1987, p. 26) no jornal The New Republic em 1929, cuja citação abre Com essas características de sua o presente trabalho, destaca: fórmula estética, o Gato Félix ia rompendo Quando se fala de “cinema puro”, fronteiras para o desenho animado, “fluxo visual”, “representação conseguindo, inclusive, fazer o caminho gráfica”, “liberdade do meio inverso de muitos protagonistas: ter seus cinemático” e todas as outras desenhos animados adaptados em histórias coisas que os que os cultos em quadrinhos a partir de 1923. Foi, entusiastas estrangeiros de cinema realmente, a sua primeira estrela e poderia falam, nada podem Jannings ou alcançar vôos ainda maiores. Lubitsch ou Murnau ou Greta Garbo ou Rin Tin Tin ter mais Ida para os quadrinhos: Desenho Animado do que um chance de um rolo enquanto storyboard de filme no inferno quando se O principal desafio gráfico da ida fala do Gato Félix e dos outros do Gato Félix para as HQs estava em desenhos animados (...). Sem um elemento crucial da animação em sofrer nenhuma limitação clássica sua Era Dourada: a chamada rubber hose tal como as regras dramáticas ou animation. Boa parte do surrealismo das mesmo nenhuma necessidade animações residia em desenhar apenas os costumeira tal como as leis da personagens enquanto todos de nanquim, gravidade, o desenho animado, sem articulações (por isso o nome rubber no senso comum, é o único meio hose), para que o movimento se ilusionasse artístico já descoberto que é enquanto fluído na tela do cinema. realmente livre. E isso à luz do A estratégia para as primeiras tirinhas fato de que ele é apenas um lance do Gato Félix para a King Feature’s de oito minutos lançado no fim Syndicate foi se calcar totalmente em de um drama romântico durante curtas de sucesso do personagem. Esse é o a mudança de sessão (...). Vivendo caso do nosso corpus de estudo. Vejamos, selvagemente pelas três dimensões primeiramente, os principais planos de duas do espaço – ou até mesmo quatro sequências de The Non Stop Fright (1927): .

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 65 Figura 1 - Desenho Animado The Non Stop Fright – Sequência 1 (0’26’’-1’18’’) file:///C:/Users/usuario/Desktop/DOCUMENTOS/LIVROS/PERI%C3%93DICOS/2015/NONA%20ARTE/IMA- GENS/20150302_MetroSaoPaulo.pdf Acesso em: 2 mar. 2015.

66 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 Figura 2 - Desenho Animado The Non Stop Fright – Sequência 2 (1’27’’-2’05’’)

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 67 Agora, as quatro tirinhas mencionadas:

Figura 3 - Tirinhas do Gato Félix – 13 e 16 de maio de 1931

Na tradução interssemiótica entre silencioso do desenho animado, ganha voz desenho animado e HQ, Messmer e Sullivan pela primeira vez nas páginas dos jornais que buscaram usar o desenho animado enquanto eram clientes das tirinhas da King Feature’s guia para ação das tirinhas. No entanto, a Syndicate. ação que é “pura” no desenho animado, se Além disso, toda a pantomima e envereda para a narração ampla com balões surrealismo quase contestador do desenho na história em quadrinhos. Félix, o Carlitos animado, sua principal fórmula, dá espaço

68 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 para um produto derivado que não aproveita músicas sobre o Gato Félix (que não eram o potencial do dispositivo “história em presentes nos filmes, pois era tempos de quadrinhos” para atingir o mesmo fim. A cinema silencioso), bonecos e todo o tipo HQ é apenas uma forma de se lucrar com de merchandising imaginado do começo a notoriedade do Gato Félix. Um primeiro do século XX. esboço de transmidialidade. Algo interessante dentro do enfoque buscado pelo presente artigo é que tanto as Considerações Finais: Félix, uma fórmula animações como as histórias em quadrinhos transmidiática do Gato Félix dividem e compõe um universo diegético em comum. Universo Normalmente considerada apenas diegético esse onde uma fórmula, uma ação um fruto da era da convergência digital, o dentro de um dispositivo, está subordinada transmídia pode ter suas origens traçadas a outra fórmula, uma outra ação dentro do em momentos primervos da Comunicação outro dispositivo. de Massa, sendo o Gato Félix uma das Com isso, a atuação da fórmula de provas claras disso. Não estamos falando Gato Félix no dispositivo, tanto do desenho aqui apenas de desenhos animados e animado como das histórias em quadrinhos HQs, mas também de vinis com singles de é bastante fácil de ser esquematizado:

Tabela 2 - Dispositivo e a Fórmula de Gato Félix

A subordinação das duas fórmulas age principal motivo de sua decadência dentro da no lado sistêmico do dispositivo. Afinal, a própria Era Dourada dos Desenhos Animados. HQ é um produto midiático que serve apenas Perto dos dois protagonistas criados por Walt de reforço de imagem com a comunidade de Disney, Oswald e Mickey, Félix não tinha fãs (fandom) do desenho animado. Não há profundidade para ampliar sua experiência de vontade nem de tentar levar a linguagem do leitura midiática. dispositivo ao limite para imitar o surrealismo O curioso é que, enquanto o desenho original (basta-se a cópia, a reprodução animado entra em decadência nos anos 1940, estática), muito menos traçar um mecanismo as tirinhas continuam até 1954. No entanto, original. Félix não é mais a superestrela, mas apenas Esse tipo de expansão estática de mais um dentro do amplo rol de tirinhas consumo midiático faz a transmidialidade do disponíveis na seção dedicada a isso nos Gato Félix ser falha. Não há novos universos jornais. narrativos, não há expansão diegética de facto, Só foi com o fim das HQs que apenas o culto à reprodução. o personagem pode ter nova chance Talvez, podemos dizer que, no transmidiática. No começo dos anos 1960, o limite, tal “engessamento” dessa primeira personagem se reinventa, criando mecanismos transmidialidade do Gato Félix tenha sido o de surrealismos que podem ser postos em

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 69 vários dispositivos midiáticos, tal como a sua bolsa de truques. Era a correção de rumo na direção de uma experiência diegética mais vindoura. Afinal, não é o Gato Félix “Carlitos”, em preto-e-branco, que reside em nosso imaginário, mas sim o Gato Félix com sua bolsa de truques de cor amarela.

Referências AUMONT, J. O olho interminável. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. BAUDRY, J-L. Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de réalité. Communications, Paris, n. 23, 1975. ______Cinema: Efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983. BORDWELL, D. Narration in the fiction film. London: Routledge, 1997. HABERMAS, J. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Ed. 70, 2001. MALTIN, L. Of mice and magic. New York: Plume, 1987. NOBRE, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. WILLIAMS, R. The animator’s survival kit (expanded ed.). London: Faber and Faber, 2009.

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