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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI VICTOR MAKOTO OIWA

Filmes e trilhas no cinema negro dos EUA dos anos 1970: Uma análise sobre o ciclo

SÃO PAULO 2011

VICTOR MAKOTO OIWA

Filmes e Trilhas no Cinema Negro dos EUA dos anos 1970: Uma Análise Sobre o Ciclo Blaxploitation

Dissertação apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Laura Loguercio Cánepa

SÃO PAULO 2011

VICTOR MAKOTO OIWA

Filmes e Trilhas no Cinema Negro dos EUA dos anos 1970

Uma Análise Sobre o Ciclo Blaxploitation

Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Profa. Dra. Laura Loguercio Cánepa

Aprovado em ____/____/____

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Em memória de William H. Oiwa, Patric R. Oiwa e Eduardo J. Kitagawa

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus,

Minha família toda, principalmente Yoji, Yoko e Mi pela paciência, ensinamentos e todos os momentos de alegrias e sofrimentos que passamos juntos. Vocês são a razão para eu continuar insistindo em acreditar nos velhos e bons valores.

A minha orientadora Laura Cánepa, que se interessou pela minha pesquisa e me guiou nesta jornada, tornando possível a existência dessa dissertação.

Aos professores Rogério Ferraraz, Maria Ignes e Luiz Vadico, pelo conhecimento.

Ao coordenador Leonardo Vergueiro que propôs que eu fizesse o mestrado e pela oportunidade. Tambem aos colegas de trabalho André Salata, Thomas Gruetz, Cris Merlo, Bruno E., Mauricio de Caro Esposito e Theóphilo Pinto.

Aos amigos do coração Rodrigo Brandão e família, pelas conversas e dicas sobre o tema, Igor Hatanda, Caio Neri, Marcos Koga, Pitzan Oliveira e família, Luana Dias Gomes, Edson Gomes, Fernando Borges, Apo Fousek, Shaw e Carla, Melissa Gomes, Ricardo Gomes, Douglas Okura, Kiko Dinucci, DJ Marco, Max Takahashi, Francisco Bicudo, Marcelo Munari, Marina H. Sousa e todos que me ajudaram de alguma forma nesta pesquisa.

RESUMO

Esta dissertação tem o objetivo de fazer uma análise da relação entre música e cinema nos filmes estadunidenses dos anos 1970 voltados ao público negro (conhecidos genericamente, e por vezes erroneamente, como blaxploitation), buscando observar como se deu a apropriação da cultura afirmativa afroamericana na cultura pop internacional, com seus sucessos, contradições e clichês que ainda são bastante representativos em várias manifestações culturais nos dias de hoje. Para isso, foi feito, primeiro, um apanhado histórico sobre as lutas pelos direitos civis nos anos 1960, o desenvolvimento da música negra nos anos 1950-1970 e a maior participação dos afroamericanos no cinema ao longo dos anos 1960-1970. Depois, foi feita a análise de cinco filmes representativos do período levando em conta sua relação com as trilhas musicais.

Palavras-chave: Análise fílmica. Gêneros cinematográficos. Blaxploitation. Trilhas sonoras. Black music.

ABSTRACT

This thesis discusses the relationship between music and cinema in the 1970’s american filmes aimes at black audiences (known generically, and sometimes erroneously, as Blaxploitation), seeking to observe how was the appropriaton of African American culture in the pop culture, with its sucsesses, contradictions and clichés that are still fairly representative of various cultural events today. For that was done, fist, a historical overview about the civil sirhts struggles in the 1960’s, the developmente of black music in the years 1950-1970’s and greater participation of African Americans in film over the years 1960-1970’s. Then we made a study os five representative films of the period taking into account its relationship with the music soundtracks scores.

Key-words: Film analysis. Film genres. Blaxploitation. Soundtracks. Black music.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11 CAPÍTULO I - A CULTURA NEGRA NOS EUA NOS ANOS 1960 E 1970

1.1 O pano de fundo social ...... 13 1.2 Os movimentos afirmativos ...... 14 1.3 A Transição ...... 18

CAPÍTULO II - MÚSICA E CINEMA NA CULTURA NEGRA DOS ANOS 1960 E 1970

2.1 A nação sob um único groove ...... 20 2.2 Os negros no cinema e o cinema dos negros ...... 31 2.2.1 A imagem do negro no cinema dos EUA nos anos 60 ...... 34 2.2.2 O nascimento de um gênero: o blaxploitation ...... 36

CAPÍTULO III - FILMES E TRILHAS SONORAS

3.1 Sweet Sweetback Baadasssss Song ...... 47 3.2 Shaft ...... 51 3.3 A Máfia Nunca Perdoa ...... 55 3.4 Super Fly ...... 59 3.5 O Chefão do Gueto ...... 63

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 67

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 71

LISTA DE FIGURAS

Figura 1,2,3: Martin Luther King, Malcolm X, ...... 15

Figura 4, 5, 6: Cartaz de Emory Douglas, logo dos Panteras Negras, Catleen Cleaver .. 16

Figura 7, 8: revista Jet Magazine, Jackson5 (1970) e Michelle Obama (2010) ...... 19

Figura 9, 10: LPs Sam Cooke (1964) e Marvin Gaye (1971) ...... 22

Figura 11, 12: Colatânea e Lp de James Brown ...... 27

Figura 13, 14: LPs Curtis (1970) e imagem de C. Mayfield se apresentando ...... 29

Figura 15, 16: Cartaz e fotograma de O Nascimento de uma nação (1914) ...... 31

Figura 17, 18: Richard Wildmarke e Poitier e capa de Sangue do meu sangue (1950) ... 33

Figura 19, 20: Jim Brown em Os 12 condenados e Rio Conchos ...... 35

Figura 21, 22: cartazes Halls of Anger e Rififi no Harlem (ambos 1970) ...... 40

Figura 23, 24: DVD Sweetback e cartaz de Shaft (1971) ...... 42

Figura 25, 26, 27: cartazes de Blacula (1972), Black Caesar (1973) e Coffy (1973) ...... 43

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AABB - Above Average Black Band

AIP - American International Pictures

BS - Bobby Seale

DC - Dani Cohn

DJ - Disc Jockey

EUA - Estados Unidos da America

CLOD - Catholic Legion of Decency

CORE - Congress of Racial Equality

GFOS - Godfather of Soul

KKK - Ku Klux Klan

LP - Long Play

MGM - Metro-Goldwyn-Mayer

NAACP - National Association for the Advancement of Colored People

NBA - National Basketball Association

NFL - National Football Association

RAP - Rhythm and Poetry

R&B - Rhythm and Blues

SCLC - Southern Christian Leadership Conference

SNCC - Student Nonviolent Coordinating Comitee

TV - televisão

WB - Warner Brother

INTRODUÇÃO

Este é um trabalho que trata do encontro de gêneros musicais e cinematográficos que ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970, dando início a um processo cultural importantíssimo na segunda metade do século XX, com reflexos diversos notáveis até os dias de hoje: a cultura afirmativa dos negros nascidos nos Estados Unidos da América. Dos movimentos sociais à moda, passando por variadas tendências artísticas, politicas e comportamentais, o movimento negro estadunidense e suas variadas e contraditórias expressões é fundamental para compreendermos uma parte do mundo ocidental até os dias de hoje. Mas, é claro, trata-se de um assunto muito extenso para ser tratado numa dissertação de mestrado. Então, optei por um recorte bem específico desse processo sócio-político-econômico-cultural, examinando a relação entre alguns filmes protagonizados por artistas negros (conhecidos genericamente como blaxploitation, termo que será discutido mais adiante) e algumas músicas de soul e funk compostas e executadas por outros artistas negros dos EUA nos anos 1960 e 1970, que foram trilhas- sonoras desses filmes. Por gostar de rap e da cultura hip-hop, desde criança dançando break e vindo a ser DJ no final da década de 1990, logo me aprofundei nas pesquisas sobre músicas e músicos de jazz e funk, que influenciaram esse gênero contemporâneo e que estão largamente presentes nas trilhas de um importante grupo de filmes nos anos 1970. Também as temáticas abordadas nesses filmes e na cultura hip-hop, tais como racismo, submundo do crime, marginalidade, sexo, drogas e corrupção me chamavam a atenção. Cresci vendo filmes como Wild Style dirigido por Charlie Ahearn e Perigo para a Sociedade (Menace II Society), de John Singleton nos anos 1980 e 1990. Também assistia a vários filmes do diretor Spike Lee e nem imaginava que tudo isso era, em certo sentido, um legado deixado por filmes surgiram no final dos anos 1960 e, com mais de cem títulos representativos que vêm influenciando, desde então, vários diretores e artistas do mundo todo. Assim, como pesquisador de cinema e audiovisual, e também como DJ e professor de música, acredito que posso contribuir com o presente trabalho para o pensamento

11 sobre a relação entre imagem e som em nossa cultura, em particular na cultura afirmativa do movimento negro nos EUA, com influência evidente inclusive no Brasil. O trabalho está dividido da seguinte maneira: no primeiro capítulo, procuro contextualizar a cultura negra nos EUA nos anos 1960 e 1970. No segundo cápitulo, trato da importância da música e o cinema no ambiente do movimento negro nos anos 1960 e 1970. No terceiro capítulo, seleciono alguns filmes suas trilhas musicais para uma análise. A metodologia de análise foi bastante simples: procurei relacionar as letras das canções ao conteúdo dos filmes, buscando encontrar um discurso comum que não era apenas o de fazer sucesso nas paradas, mas construir uma determinada representação da vida das comunidades afrodescendentes nos EUA, com suas contradições e problemas.

12 CAPITULO I - A CULTURA NEGRA NOS EUA NOS ANOS 1960 E 1970

1.1 O pano de fundo sócio-cultural

No final dos anos 1950, o mundo viveu grandes transformações sociais e econômicas decorrentes de vários conflitos que sucederam à II Guerra. Nesse período, tiveram início vários acontecimentos marcantes para a humanidade que desembocariam nas grandes insurreições que marcariam os anos 1960: a revolução cubana, a construção do muro de Berlim, a Guerra do Vietnã, a explosão dos movimentos sociais na América Latina etc. Especificamente na produção cultural estadunidense, que teve grande influência nesse período, os poetas e escritores conhecidos como beatniks, como Allan Ginsberg e Jack Kerouak, pregariam a liberdade individual, o amor pelo jazz bepop de Charlie Parker, o uso das drogas como possibilidade de expansão da mente, inspirando depois o movimento hippie, que elegeria o amor livre, a vida na natureza e o rock´n´roll como novas pautas para o movimento; o filósofo e psicanalista Herbert Marcuse defenderia a idéia de que a alienação dos indivíduos vinha do impedimento do gozo, dando força à idéia dos hippies; o canadense Marshal MacLuhan apontaria o poderio dos meios de comunicação de massa como um futuro utópico e inevitável; compositores como Bob Dylan e Joan Baez ensinariam as virtudes das letras engajadas, capazes de mobilizar massas; o movimento feminista faria grandes conquistas e revelaria toda uma nova forma crítica cultural; a cultura e as religiões orientais começariam a ser absorvidas mais intensamente pela cultura ocidental, trazendo um maior relativismo religioso e comportamental. Em meio a tantas manifestações pela liberdade e por mudanças na sociedade, os negros norte-americanos também participariam das mudanças, com a defesa de seus direitos civis.

13 1.2 Os movimentos afirmativos

Desde os anos 1950 até o final dos anos 1960, ocorreu, nos EUA, um grande movimento de luta pela igualdade dos direitos civis dos afrodescendentes. Até esse período, sobretudo no sul dos Estados Unidos (que tinha uma herança cultural mais intensa da escravidão), a segregação racial fazia parte das constituições da maioria dos estados: os serviços oferecidos eram divididos entre as raças, que estavam separadas inclusive geograficamente – e o espaço para os negros sempre era mais precário. Os afroamericanos eram proibidos de se sentar em praças públicas; o espaço no transporte público era separado (os negros eram obrigados a ficar nos fundos); havia bares separados para negros e brancos. No mundo profissional também ocorria a exploração e a discriminação contra os afroamericanos, asiáticos e latinos, que tinham os salários menores e a carga horária maior que a dos brancos. A indignação com esse estado de coisas que ofendia os princípios de liberdade defendida pela própria Constituição dos EUA (a mesma que os alunos afrodescendentes aprendiam nas escolas e viam ser aclamada sistematicamente nos meios de comunicação) levou ao surgimento de várias organizações, tais como a CORE (Congress of Racial Equality), SNCC (Student Nonviolent Coordinating Comittee) e a SCLC (Southern Christian Leadership Conference), todas com o mesmo ideal: igualdade de direitios civis para negros e brancos, e todas importantíssimas para o reconhecimento político da igualdade social, liberdade, dignidade de seu povo. Ao mesmo tempo, seguia em atividade a mais antiga dessas associações, a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People). Em 28 de agosto de 1963, três mil afroamericanos se agruparam em frente ao Lincoln Memorial, onde participaram de um ato público em defesa da liberdade que contou com a participação do líder Martin Luther King, que iniciara sua luta como pastor protestante em 1954. Na ocasião, ele recitou o famoso discurso conhecido como Eu tenho um sonho, que se tornou mundialmente conhecido e é até hoje muito citado por líderes políticos e comunitários. O discurso assim começava:

Cem anos atrás, um grande americano, sob cuja simbólica sombra nos encontramos, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchado nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos

14 depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.1

Figuras 1, 2 e 3: Fotografias de Martin Luther King, Malcom X e Bobby Seale, respectivamente

Também nessa ocasião, Martin Luther King e outros líderes tiveram uma reunião bem sucedida com o presidente John F. Kennedy, na Casa Branca. Mesmo que os votos do congresso não tivessem sido muito claros a respeito das reivindicações, Kennedy se comprometeu a cumprí-las em seu mandato, e em novembro de 1963, mesmo após o seu assassinato, seus compromissos foram seguidos pelo sucessor, Lyndon Johnson. No ano seguinte, Luther King conquistaria o Prêmio Nobel da Paz. Mas, além dos processos políticos de negociação, houve muita violência e revolta nesse período, a ponto de vários líderes do movimento negro terem sido assassinados, entre eles Malcom X, líder mais radical, morto em 1965, e o próprio Martin Luther King, em 1968. Como descreve o historiador Voltaire Shilling, sua morte provocou uma intensa onda de protestos acompanhadas de incêndio em bairros negros em mais de 125 cidades dos EUA (2008, p. 11). Outras revoltas importantes ocorreram, como a de Watts, na Califórnia, em 1965; a de Detroit, em Michigan, em 1967; e Newark, Nova Jersey, no

1 Fonte: http://www.miranda13.com.br/index.php?view=article&catid=39:gerais&id=64:discurso-de-martin-luther-king-eu- tive-um-sonho&format=pdf

15 mesmo ano. Na maioria das vezes, essas revoltas se iniciavam por causa da brutalidade policial ou de algum ato de racismo. Em outubro de 1966 foi fundado, por Bobby Seale e Huey P. Newton, o Partido dos Panteras Negras ( of Self Defense), uma organização revolucionária afroamericana, que visava promover a defesa pessoal para os afro-americanos e a rejeição da segregação racial. O principal slogan político do grupo era o “black power” e "Panther Power", ou seja, o poder negro. O partido ficou conhecido mundialmente por sua profunda participação na política americana na década de 1960 e 1970, tendo sido um dos maiores movimentos sócio-político-culturais da história do país. Com os punhos cerrados e cabelos afro puffs (que ficariam conhecidos como cabelos “black power” no Brasil), faziam protestos nas ruas gritando frases de autoafirmação tais como "black is beautiful" (negro é bonito) e “freedom now" (liberdade agora). Como observa Shilling (2008, p. 12), a força e a influência dos Panteras Negras aumentou muito após a morte do líder pacifista Luther King.

Figuras 4, 5 e 6: Cartaz de Emory Douglas; logo do Partido dos Panteras Negras; cantora Catleen Cleaver usando o cabelo e o visual “black power”

O Partido dos Panteras Negras existe até os dias de hoje, mas, após os anos 1970, os ideais já não foram mais os mesmos, e a unidade do grupo começou a se dissolver aos poucos. Mas, como se percebe nos trechos desta entrevista de Bobby Seale

16 feita pelo ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit (mais conhecido como Dani Cohn) no ano de 1980, o período em que surgiram os Panteras Negras era mesmo de grandes tensões:

BS: O movimento Black Panther fez mais do que simplesmente mexer com o imaginário dos americanos e do resto do mundo. Conseguiu acabar com o terrorismo da Ku Klux Klan. Hoje em dia, a KKK sabe perfeitamente que, se seus militantes vierem nos agredir, nós temos como defender nossos direitos. Apoiamos inúmeras campanhas políticos de negros em todo país, e conseguimos eleger bom número deles. Nossa militância teve grande importância nesse sentido. Nos anos 50 e 60, nem passava pela cabeça de um negro disputar um mandato. Atualmente, muitos resolveram entrar na política. A estrutura política americana, naquela época, era totalmente racista. Nós, Martin Luther King, os movimentos pelos direitos humanos e o movimento contra a Guerra do Vietnã conseguimos mudar esse estado de coisas.

DC: Você ainda acredita que é necessário defender seu trabalho e suas organizações pelas armas? BS: Eu não incitaria o povo a pegar em armas, pelo menos enquanto ele não for atacado pelo poder racista de Reagan. Agora, se ele resolver atacar, creio que temos o direito de nos defender, defender nossos direitos democráticos.

DC: Então você continua considerando que os Black Panther tiveram razão de se armar na década de 1960? BS: Sim, naquela época o racismo agia de forma tão descarada, que a polícia invadia os guetos, atirava sobre nós, nos brutalizava, matava e ainda batia nos cadáveres. É óbvio que tenhamos sentido a necessidade de nos defender. Existe uma grande diferença entre autodefesa e agressão.

17 1.3 A transição

A tão esperada mudança defendida nos anos 1960 começava a tomar forma no início dos anos 1970 com os negros circulando pelos espaços urbanos com mais liberdade e direitos garantidos. Por outro lado, nos noticiários, via-se, dia após dia, manchetes sobre o crescimento do crime em centros urbanos e também da inflação nos bairros com maioria da população negra. Nesse período de transição, logo ocorreram reações das massas brancas que ainda eram a favor de um país segregado, seguindo uma tendência de reação à democracia racial que já se apresentava desde os anos 1950. Após o final da Segunda Guerra Mundial, muitos brancos que moravam nos centros das grandes cidades vinham se mudando para os subúrbios, fechando-se em novas "comunidades brancas", em resposta ao número grande de afroamericanos que constantemente se mudavam para as cidades em busca de uma vida melhor e começavam a ocupar os bairros centrais, logo desvalorizados economicamente. Esse movimento de guetificação negra das cidades ficou conhecido na história dos EUA como "the white flight" (o vôo branco)2. Mas, no início dos anos 1970, a cultura negra americana, integrada ás grandes cidades e à indústria do consumo, não era mais confinada e segregada como nas décadas passadas. Pelo contrário, era o começo da introdução da cultura afroamericana ao mainstream. Era a época que a Jet Magazine (fig. 7), fazia uma lista de todos os atores/atrizes afrodescencentes que apareciam na TV, semanalmente. A cultura afroamericana começava a ditar algumas regras sobre o que era ser cool na moda, na música etc. Hoje em dia, vivemos em um mundo onde é comum celebridades afroamericanas apresentarem os maiores shows de premiações como o Oscar e o Grammy. Muitos deles também levam para casa prêmios e reconhecimento. Celebridades afroamericanas aparecem regularmente em capas de revistas da elite do mainstream, são investidores dos grandes times esportivos, são donos de gigantescas gravadoras e de algumas das maiores marcas do mercado da moda. O hip hop dominou o mercado e boa parte dos negócios da música no mundo todo. Atletas negros viraram a norma, provendo os padrões de medidas para outros atletas. A linguagem do hip hop entrou num léxico

2 Sobre isso, ver o livro White Flight, de Kevin Michael Kruse (2005), mencionado nas referências bibliográficas deste trabalho.

18 popular, e atletas da NBA definiram o que é ser rico e famoso para uma nação inteira. Para completar, hoje temos também um presidente negro no comando do poder norte- americano.

Figuras 7 e 8: Capas da revista Jet Magazine com o grupo musical Jackson Five nos anos 1970, e com a primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, em 2010.

Há algumas décadas, porém, todas essas coisas eram impossíveis de serem sequer imaginadas. E, para chegarmos até esse ponto, precisamos recordar de uma época do tempo em que as coisas começaram a mudar, e esta época foi justamente a transição da década de 1960 para a década de 1970. De todo o processo que se deu nesses anos em relação à cultura dos negros nos EUA, pretendemos nos debruçar na relação específica entre cinema e música, que nos permite ter alguns insights sobre a importância de ambos para as grandes mudanças sócio-político-culturais muito mais amplas que estava em curso naqueles anos.

19 CAPITULO II - MÚSICA E CINEMA NA CULTURA NEGRA DOS EUA DOS ANOS 1960 E 1970

2.1 Uma nação sob um único groove

A música negra chegou ao sul dos Estados Unidos trazida pelos escravos africanos que chegaram ao longo dos séculos XVII a XIX, sobretudo em estados agrários como Alabama, Mississipi, Geórgia e Louisiana. Lá, os escravos utilizavam seus cantos nas plantações de algodão em forma de lamentos para suas infindáveis e sofridas jornadas de trabalho – e esses cantos posteriormente definiram as bases do blues, um dos mais profícuos estilos da música afroamericana. Além de acompanhar os trabalhadores em suas jornadas, os cantos também serviam para reuni-los após o trabalho, numa espécie de canto de louvor que seria bastante influente na chamada música gospel. Esse blues original passou por várias mudanças, evoluções e transformações ao longo dos séculos, dialogando com a música dos brancos, dos índios e do resto do mundo, dando origem ao Jazz, ao Rock, ao Soul, ao Hip Hop e até mesmo a parte da música eletrônica e todas as ramificações e hibridizações sob influência da música afroamericana. Comparando o caráter rural e nostálgico do blues ao caráter urbano e mais otimista do jazz, disse Martin Luther King abertura do Berlin Jazz Festival, de 1964. "O jazz fala da vida. O blues conta a história das dificuldades da vida - e, se você pensar por um momento, perceberá que eles transformam suas duras realidades em músicas apenas para exprimir esperança ou um senso de triunfo. Nossa música é triunfal"3. A música sempre teve um papel muito importante em relação ao movimento da luta pelos direitos civis dos afroamericanos. Mas, na época em que esses movimentos eclodiram, o povo negro não tinha ainda nenhuma rádio nacional ou programa de TV que o representasse. Era necessário construir ao mesmo tempo veículos de comunicação, produtos e um mercado de consumo.

3 Cf. texto original completo em: http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/626.html

20 Mas, nos anos 1950, os cantos gospel tradicionais e o Rhythm and Blues nos anos 1940 (este último que dera origem ao rock´n´roll entre os jovens brancos) 4 uniram-se para originar a soul music, fusão entre o gospel e do R&B que se tornou extremamente popular entre os negros estadunidenses durante o final dos anos 1950 e início dos 1960, originando um mercado mais amplo para gravadoras, produtoras de shows e artistas. Por outro lado, no Reino Unido durante o final dos anos 1950 e começo dos 1960, o R&B atingiu seu auge de popularidade, criando vida própria e sendo definitivo para influenciar as maiores bandas de rock surgidas no período: The Beatles, Rolling Stones, The Animals e outras. Sem sofrer o mesmo tipo de distinção racial que limitava sua aceitação nos EUA, os grupos musicais britânicos rapidamente adotaram esse estilo de música. Nos EUA, o termo R&B caiu em relativo desuso e foi substituído pelo soul. Como descreve o pesquisador e instrumentista brasileiro Mike Dias (2010), a música soul normalmente apresenta cantores individuais acompanhados por uma banda tradicionalmente composta de uma seção rítmica e de metais. O desenvolvimento da soul music foi acelerado graças a duas tendências: a urbanização do R&B e a secularização do gospel. Artistas como Ben E. King, Ray Charles, Sam Cooke e os Everly Brothers fundiram a paixão dos vocais gospel com a música cativante e rítmica do R&B, formando assim o soul. O sucesso entre o público não negro (brancos e latinos, sobretudo) começou através da audiência de artistas brancos que tocavam R&B e rock, como o latino Richie Valenz, mas o público começou a se interessar pelos artistas negros como Little Richard e músicos de blues como Chuck Berry e Muddy Waters. No fim dos anos 1950, isto fez com que várias gravadoras buscassem versões comerciais (vendáveis) da música soul. Os mais influentes selos de gravadoras eram a Stax, baseada em Memphis, Tennessee, e a Motown, baseada na região de Detroit. Durante os anos 1960, a música soul era popular entre negros nos EUA, e entre muitos ouvintes influentes espalhados pelos EUA e Europa. Como nota Dias (2011),

4 Conhecido também pela sigla R&B, a sigla surgiu nos Estados Unidos no final de 1940 num texto da Revista Billboard. O termo substituiu race music, que era, em língua inglesa um tanto ofensivo. Em suas primeiras manifestações, o chamado rhythm and blues era uma versão negra de um predecessor do rock. Foi fortemente influenciado pelo jazz, particularmente pela chamada jump music (um jazz com predomínio de saxofone e pouca presença de guitarras) assim como pelo gospel. Por sua vez, também influenciou o jazz, dando origem ao chamado hard bop (produto da influência do rhythm and blues, do blues e do gospel sobre o bebop).

21 artistas do chamado "blue eyed soul” ("soul branco"; músicos brancos que tocavam para platéias brancas) tais como os Righteous Brothers alcançaram um grande sucesso em curto prazo, apesar de artistas como Aretha Franklin e James Brown terem provado ser mais duradouros. Outros importantes músicos de soul da época foram Wilson Pickett e Otis Redding – este último uma das maiores estrelas as Stax. Na mesma época, precisamente em março de 1964, James Marshall, também conhecido como Jimi Hendrix, entrava em um estúdio para fazer sua primeira gravação. Na época, Hendrix era um membro da banda Isley Brothers, posteriormente tocou com Little Richard, Ike and Tina Turner e várias outras bandas de grandes nomes. Lançou vários discos solos entre eles o famoso disco psicodélico Are You Experienced, sendo um nome fundamental para o rock´n’roll e transformando-se numa das maiores lendas da música pop – e, sobretudo, retomando para os negros o lugar fundamental também no rock’n’roll, até então um terreno ocupado majoritariamente pelos brancos estadunidenses e ingleses. Mas, muitas vezes, quando discutimos sobre música, esquecemos que ela não existiria no vácuo. A música é um produto de um ambiente existente num período vivido por cada artista que a criou. O período da soul music, por exemplo, definido aproximadamente entre 1955 a 1970, e está claramente pautado pelos movimentos e lutas pelos direitos civis do povo afroamericano. Alguns exemplos vêm a tona como na música A change is gonna come, de Sam Cooke, lançada em 1964 (fig. 9).

Figuras 9 e 10: LPs de Sam Cooke (1964) e Marvin Gaye (1971).

22 Consta que Cooke ficara extremamente comovido após ouvir a música Blowin' in The Wind, de Bob Dylan, em meados de 1963, cuja letra mordaz falava sobre racismo nos EUA. Em A change is gonna come, Cooke reflete sobre os dois incidentes mais importantes de sua vida: a morte de seu filho, Vincent, aos 18 meses, afogado acidentalmente em junho de 1963; a sua prisão quando tentou se hospedar em um hotel "apenas para brancos", em Louisiana. Estes acontecimentos são expressados por uma voz cansada, especialmente no trecho final, que diz: "Houve horas em que eu pensei que não duraria muito / mas agora penso que vou agüentar / Vem sendo um caminhada longa, mas as coisas vão mudar".

A change is gonna come (Sam Cooke)

I was born by the river in a little tent Oh and just like the river I've been running ever since It's been a long, a long time coming But I know a change gonna come, oh yes it will

It's been too hard living but I'm afraid to die Cause I don't know what's up there beyond the sky It's been a long, a long time coming But I know a change gonna come, oh yes it will

I go to the movie and I go downtown Somebody keep telling me don't hang around It's been a long, a long time coming But I know a change gonna come, oh yes it will

Then I go to my brother And I say brother help me please But he winds up knocking me Back down on my knees

Ohhhhhhhhh.....

There been times that I thought I couldn't last for long But now I think I'm able to carry on It's been a long, a long time coming But I know a change gonna come, oh yes it will5

5 Acredito que com a tradução a música perde um pouco do poder e do sentido, por isso senti a necessidade de citar a letra na forma original.

23 Seu exemplo é lapidar de como a soul music dialogou com as questões sociais de seu tempo, e não apenas com temas como amor e diversão, tantas vezes relacionados a esse gênero musical. No final da década de 1960, o som psicodélico, a contracultura e o predomínio do rock na música pop não poderia deixar de influenciar o soul. No início dos anos 1970, artistas como Marvin Gaye (What's Going On) (fig. 10) e Curtis Mayfield (Superfly) lançaram declarações, em forma de discos, com duras críticas sociais. "Quando a guerra vai terminar? Isto que eu gostaria de saber... A guerra estava dentro da minha alma." Esta era a pergunta que inspirou Marvin Gaye a criar o grandioso album de 1971 com o nome de What's Going On?. Ele poderia ter falado pelo país. Na capa desse disco, Gaye está olhando fixamente para toda uma nação tomada de conflitos (fig. 9), tais como a Guerra do Vietnan e a guerra racial. Após três décadas, nós ainda estamos à procura das respostas para as perguntas de Marvin Gaye. "Mãe, Mãe / muitas de vocês estão chorando /Irmão, Irmão.. / muitos de vocês estão morrendo / Você sabe que nós temos que achar um jeito de trazer mais amor, aqui, hoje / Pai, nós não temos que aumentar a intensidade da guerra / Você verá que guerra não é a resposta / Apenas o amor pode conquistar o ódio / Temos que achar um jeito de trazer mais amor aqui, hoje / Vejo linhas e sinais de piquete / Não me puna com brutalidade / O que está acontecendo? / O que está acontecendo?.." Com este álbum, Marvin Gaye chegou ao segundo lugar nas paradas de sucesso Hot100 da billboard, ficando durante 15 semanas consecutivas com esta música, lembrando que ele já estivera nas paradas pela primeira vez em 1963, e até What's Going On ele já havia alcancado em primeiro lugar em novembro de 1968 com a música Heard It To The Grapevine.

What's Going On (Marvin Gaye)

Mother, mother There's too many of you crying Brother, brother, brother There's far too many of you dying You know we've got to find a way To bring some lovin' here today - Ya

Father, father We don't need to escalate You see, war is not the answer

24 For only love can conquer hate You know we've got to find a way To bring some lovin' here today

Picket lines and picket signs Don't punish me with brutality Talk to me, so you can see Oh, what's going on What's going on Ya, what's going on Ah, what's going on

In the mean time Right on, baby Right on Right on

Father, father, everybody thinks we're wrong Oh, but who are they to judge us Simply because our hair is long Oh, you know we've got to find a way To bring some understanding here today Oh

Picket lines and picket signs Don't punish me with brutality Talk to me So you can see What's going on Ya, what's going on Tell me what's going on I'll tell you what's going on - Uh Right on baby Right on baby6

Mas, como observa Mike Dias (2010), ao mesmo tempo em que Marvin Gaye procurava refletir politicamente sobre o seu tempo, artistas como James Brown conduziram o soul para uma espécie de "jam festival" dançante, resultando nas bandas de funk dos anos 70, como o Funkadelic, The Meters e a banda War. Mas o que era o funk? Segundo o autor Rickey Vincent, que nomeou seu livro justamente com o nome do gênero Funk, trata-se de uma expressão cultural esplêndida: “o funk tem vibrações

6 Acredito que com a tradução a música perde um pouco do poder e do sentido, por isso senti a necessidade de citar a letra na forma original.

25 grosseiras e ao mesmo tempo tem sentimentos doces e sexies" (1996, p. 03). No dicionário, a definição da palavra funk remete a um estilo musical e também a um estado emocional que mistura o pânico e o pavor. Numa clara liberdade poética, Vicent continua sua descrição do funk. Para ele, “suas frequências são altíssimas e também muito baixas, sua essência consiste basicamente nos elementos graves. É uma mistura de todos os extremos: o funk pode ser quente e também frio (cool), é primitivo porém pode ser sofisticado, é uma saída e uma entrada, o Funk está em todos os lugares”. Citando o jornalista do jornal Village Voice, Barry Walters, o autor conclui: "Traduzir o funk em palavras é como se tivesse que descrever o próprio orgasmo. Ambos te levam a um lugar onde as palavras se vão e só ficam sensações" (1996, p. 04). Liberdades poéticas à parte, de fato o funk é um estilo musical intenso e profundamente ligado aos caminhos trilhados pela cultura negra nos EUA durante os anos 1970. Como prossegue Vincent, existem aspectos do funk que estão intimanente ligados ao sistema de valores africanos que foram propagados através da cultura negra desde a África até os EUA. Segundo o autor, “o funk está enraizado profundamente na cosmologia africana” (1996, p. 05). Idéias como a de que as peassoas são criadas em harmonia com os rítmos da natureza, com uma unidade espiritual com o cosmos e ao mesmo tempo com os aspectos corporais e sexuais, estão presentes no funk. No sentido da arte moderna, conclui o autor, esse gênero musical por ser visto como “uma reação deliberada e uma rejeição da predileção dos costumes e tradições ocidentais por formalidade e repressão pessoal”. (1996, p. 05) O principal representante dessa vertente musical nos EUA nessa época foi James Brown, já então conhecido como "GFOS - Godfather of Soul” (padrinho do soul). Ele representava o completo e idealizado homem negro politizado, próspero, sensual – o implacável guerreiro negro. Ele encarnava o “black proud" (orgulho negro), na música que dizia "ready to die on our feet, rather than be livin on our knees" (melhor morrer a viver de joelhos). Brown corporificava, de certa forma, as aspirações do povo afroamericano. Lançou vários hits desde 1958, com "Try Me”, que permaneceu por 48 semanas no topos da paradas. Em 1968, cantava "Say it Loud, I'm Black and I'm Proud" (Diga alto, sou negro e com orgulho), permanecendo durante 10 semanas no topo das paradas da após seu lançamento. Mas o climax de sua carreira se passou mesmo nos anos 1970, com hits como “It's a New Day", de 1970, que ficou no topo das paradas durante 32 semanas;

26 "Make it Funky (part 1)", de 1972, que ficou no topo durante 22 semanas; além da trilha- musical do filme O Chefão do Gueto, de 1973, com a música Down and out of New York City, que ficou no alto das paradas durante 50 semanas no topo da parada7. Sua banda, os JB's (que também utilizavam vários nomes alternativos como Maceo and The Macks, A.A.B.B., The First Family e The Last Word e também acompanhavam cantores como Lyn Collins e Bobby Byrd) contribuía com o R&B e um rítimo primordial com grooves de funk (que dá enfâse no downbeat - o primeiro compasso de uma batida de 4 tempos). A banda passou por várias formações, a fase inicial era constituída por William "Bootsy" Colins (baixista) e seu irmão Phelps "Catfish" Collins (guitarrista) e fundadores da banda The Pacemakers; Bobby Byrd (orgão) e John "Jabo" Starks (bateria) e Clyde Stubblefield (bateria) ambos acompanharam James nos anos 60; mais três metais, Clayton "Chicken" Gunnels, Darryl "Haasan" Jamison e Robert McCollough; e o tocador de conga Jhonny Griggs. Nesta formação James gravou os funks mais intensos de sua carreira como Get Up (I Feel Like Beeing) a Sex Machine, Super Bad, Talking Loud and Saying Nothing. Já na década de 1970, entrou na banda o trombonista Fred Wesley para liderar a banda juntamente com Maceo Parker e St. Clair Pinckney. Os irmãos Collins deixaram os JB's e foram tocar com o Parliament-Funkadelic de George Clinton.

Figuras 11 e 12: LPs de James Brown como padrinho do soul e ícone do funk.

7 Todas as informações sobre os sucessos de James Brown foram baseadas na parada de sucessos HOT 100 da Billboard. Disponivel em: http://www.billboard.com/charts/hot-100

27 O padrinho do soul deu um pontapé inicial para uma nova tendência na música popular americana. James entregava ao povo seus gritos e seus guinchos juntamente com o baixo e a bateria pesadíssimas mais do que convincentes, rapidamente foi considerado o Soul Brother Number 1 (irmão de alma número 1). James Brown é considerado o padrinho do soul, pois começou sua carreira na época da Soul Music, mas com a evolução de sua música passou a ser também um ícone da Funk Music.

Say It Loud, I'm Black And I'm Proud (James Brown)

Now we demand a chance to do things for ourserlf We're tired of beatin' our head against the wall And workin' for someone else We're people, we're just like the birds and the bees We'd rather die on our feet Than be livin' on our knees Say it loud, I'm black and I'm proud

Quando Sly Stone e outros chegaram com novas camadas de guitarras fuzz e o baixo desarraigado com loucuras rítimicas feitas com instrumentos de percussão com influências do reggae, uma nova coisa foi desenvolvida e o mundo da música nunca mais foi o mesmo. Adicionar as súbitas congas africanas virou essencial para as perormances de jazz e soul no mundo inteiro. Gigantes do jazz como Miles Davis, Cannonball Adderley, Herbie Hancock e Donald Byrd e vários artistas da gravadora Blue Note Records inclinaram se ao "jazz moderno" adicionando em seus cardápios os baixos eletricos, pianos eletricos e uma fusão de rítimos focando num conceito de jazz inteiramente novo, devido a bomba lançada por James Brown. A bomba explodiu tomando proporções atômicas, e seu eco pode ser ouvido fortemente nos dias de hoje, iguais aos resquicios eletromagnéticos deixados também por sua Big Band. A soul music e o funk tomou todos os olhos para o sul dos EUA, percebemos suas influêncas claramente quando ouvimos Superstition, de Stevie Wonder; Inner City Blues, de Marvin Gaye; Cloud Nine, dos Temptations, entre outros. Começou como um efeito e acabou virando um padrão. Outro artista que não se pode deixar de citar é Curtis Mayfield, instrumentista, compositor e arranjador de vários clássicos do funk e do soul. Gostaria de falar de seu primeiro disco, intitulado Curtis, de 1970 (fig. 13), que mostra um ponto de vista

28 diferenciado, amplo e consciente, como podemos ver na primeira faixa do lado A, começa com uma mulher proclamando as virtudes do "Livro das Revelações" da Bíblia e de fundo ouve-se um contra-baixo com o efeito de fuzz e umas congas, então Curtis Mayfield grita (com um efeito de eco gigantesco): "Sisters! Niggers! Whities! Jews! Crackers! Don't Worry, If there's a Hell below, we're all gonna go!" (Irmãs, negros, brancos, judeus, não se preocupem, se já um inferno lá embaixo, é pra lá que a gente vai!), então ele começa a cantar dizendo "que as pessoas fogem de suas preocupações, enquanto os juízes e júris ditam uma lei que é parcialmente falha e que todos estão errados, as mulheres, os negros, os brancos, e que era para eles não se preocuparem, pois, se existisse o inferno, todos iremos para lá."

Figuras 13 e 14: capa do LP Curtis (1970), Mayfield se apresentando.

Curtis ficou famoso pelas suas músicas políticas que tratavam de problemas sociais.

29 If there's a hell below, We're all gonna go (Curtis Mayfield)

Don't Worry (If there's a Hell Below Us, We're all Gonna Go) (Curtis Mayfield)

Sisters, brothers and the whities Blacks and the crackers Police and their backers They're all political actors

Hurry People running from their worries While the judge and the juries Dictate the law that's partly flaw Cat calling, love balling, fussing and cussing Top billing now is killing For peace no-one is willing Kind of make you get that feeling

Everybody smoke, smoke, smoke, smoke, smoke Use the pill and the dope, dope, dope, dope, dope Educated fools From uneducated schools Pimping people is the rule Polluted water in the pool And Nixon talking about don't worry, worry, worry, worry He says don't worry, worry, worry, worry

But they don't know There can be no show And if there's a hell below We're all gonna go, go, go, go, go

Everybody's praying And everybody's saying But when come time to do Everybody's laying

Just talking about don't worry, worry, worry, worry They say don't worry, worry, worry, worry

Na época, meados da década de 1970, as músicas de James Brown com base em R&B e funk corriam o mundo nas mais conceituadas rádios e casas noturnas, desde o Brasil, passando pela Europa, pela África e chegando fortemente até o Japão. No final da década, a disco-music viraria febre mundial, sendo pouco mais que uma evolução mais pop do funk. Rickey Vincent diz que "a disco-music é uma evolução

30 da funk music, mas os conceitos se perdem no caminho, visando apenas o apelo comercial. Seus conceitos serão relembrados em sua gloriosa forma reconstituídas em forma de rap, atualmente" (Funk - 1996. p. 09).

2.2 Os negros no cinema e o cinema dos negros

Como observa Lawrence (2009, p. 01), desde o desenvolvimento da indústria cinematográfica nos EUA no final do século XIX, o cinema representou os negros de uma forma que refletia sua situação sociopolítica na América do Norte. Considerado inferior pela maioria branca, o povo negro foi quase sempre representado de forma agressiva ou inferiorizada, desde pequenos filmes mudos como Dancing Dark Boy (1895) e A Nigger in the Woodpile (1904), até o prodígio racista de David W. Griffith O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914), primeira superprodução do cinema dos EUA, e que contava justamente a história da Guerra de Secessão propondo a aliança dos brancos do sul e do norte do país através da Ku Klux Klan, organização racista responsável pela perseguição aos negros nos EUA (figs. 15 e 16).8

8 Para saber mais sobre O nascimento de uma nação e seus aspectos racistas, cf. STOKES, Melvin. D.W.Griffith’s The Birth of a Nation: A history of the most controversial motion picture of all time. New York: Oxford University Press, 2007.

31 Figuras 15 e 16: Cartaz e fotograma de O Nascimento de uma Nação (1914).

O filme, apesar do sucesso extraordinário, era tão escandalosamente racista que causou reações indignadas mesmo na época em que foi lançado, quando a consciência nacional sobre o racismo nos EUA estava muito menos desenvolvida do que hoje (sobre isso, v. Lawrence, 2009, p. 02-04). Mas, apesar dos protestos, inclusive da NAACP o filme foi o primeiro e até hoje um dos maiores sucessos da história da indústria de cinema dos EUA, lançando as bases comerciais, industriais e estéticas de Hollywood – e também indicando alguns caminhos bastante discriminatórios no tratamento dos personagens negros, com reflexos ao longo de todo o século XX. No primeiro filme sonoro, O cantor de Jazz (The Jazz Singer, de 1927), o protagonista é Al Jolson, ator branco que fundamentou sua interpretação musical nos Minstrel Shows (peças teatrais do final dos anos 1920, de dança e musicais feitas por atores brancos que pintavam a cara de preto e ingênuamente tiravam sarros de afro- americanos). Al fazia o papel de Jakie Rabinowitz, um jovem judeu que desafiava as tradições de sua família e cantava numa casa de diversões, é punido por seu pai e anos depois vira um cantor de jazz de sucesso, sempre com conflitos em relações familiares e de herança cultural. Ao longo do tempo, houve uma série de tentativas de reagir a esse estado de coisas, tanto em filmes feitos por realizadores negros e/ou pertencentes a outras minorias (como os indígenas) como também pelos conflitos que foram levando, pouco a pouco, o cinema dos grandes estúdios a absorver personagens negros mais positivos. Desde a década de 1930 até o final da década de 1960, vigorou no cinema estadunidense o chamado Código Hays, um código de conduta que vinha sendo respeitado e utilizado pelos produtores e distribuidoras nas décadas anteriores. O Código Hays foi criado em resposta a uma série de escândalos atormentaram a indústria de filmes no início da década de 1920, Algumas proibições sugeridas pelo código relativas à questão racial indicavam que a escravidão branca nunca deveria ser mostrada e que a miscigenação (relação sexual entre brancos e negros) era proibida. Esse código, também conhecido como Production Code pressionava por comportamentos apropriados, respeito perante o governo e defesa dos valores cristãos. Baseando-se numa inspeção extensiva sobre as gravações originais dos estúdios, os

32 arquivos censurados e os arquivos da Catholic Legion of Decency (CLOD), Hollywood censurou centenas de filmes que foram expurgados para promover uma política conservadora década de 1930, principalmente a partir da Grande Depressão. A obrigatoriedade da utilização do código não existia mas quem se atrevesse a não utilizá-lo era boicotado, juntamente com o cinema que ousasse a exibir o fime – e, na época, uma grande parte das salas de cinema nos EUA eram diretamente ligadas aos estúdios, em um tipo de organização vertical da produção/distribuição/exibição que só seria proibida a partir do final da década de 1940. Mas, a partir dos anos 1950, o Código Hays vinha sendo questionado, a princípio de maneira tímida e depois de forma cada vez mais provocante, até que, no decorrer dos primeiros anos da década de 1960, o grande movimento de liberação dos costumes favoreceu o surgimento de imagens que evocavam diretamente assuntos proibidos pela comissão de censura nos filmes hollywoodianos, o que acabou por derrubar o código em 1968, ano que marcou o abandono oficial da censura no cinema hollywoodiano. Após este fato o código foi modificado para o sistema de classificação etária que é vigente até hoje nos EUA.

Figuras 17 e 18: Richard Widmark e Poitier em cena e poster do filme Sangue do meu sangue (1950).

Com o fim da censura política, nascia então um novo gênero, o filme “anti-racista”, que tivera alguns precursores nos anos 1950, como Sangue do meu Sangue (No way out,

33 Joseph L. Mankiewicz, 1950, que lançou ao estrelado o ator negro Sidney Poitier); Sementes da Violência (Blackboard jungle, Richard Brooks, 1955,) e Acorrentados (The defiant ones, Stanley Kramer, 1958), ambos também estrelados por Poitier (figs. 16 e 17).

2.2.1. A imagem do negro no cinema dos EUA nos anos 1960

Na década de 1960, começaram a aparecer alguns filmes hollywoodianos com protagonistas negros. A principal estrela da época era o ator Sidney Poitier, que já despontara nos anos 1950 e atuou em vários filmes e fez grande sucesso em diferentes gêneros, mas ficou mais conhecido por seus filmes em que interpretou papéis com características bem marcantes. Em boa parte desses filmes, ele interpretava um jovem simples, que quse nunca demonstrava raiva, frustração ou ódio por algum motivo ou por alguém. Sempre em ambiente familiar, mostrando as dificuldades dos afro-americanos, mas de uma forma camuflada, como em O Sol Tornará a Brilhar (A Rising in the Sun, Daniel Petrie, 1961) em que o personagem Walter Lee Younger (Sidney Poitier) é um motorista de um empresário milionário e mora numa casa de dois cômodos com sua esposa, filho, mãe e a irmã. O filme mostra e dificuldade que ele sofre para tentar proporcionar uma vida melhor à família. Os filmes mostravam basicamente que os negros eram pessoas boas e educadas, e as cenas de racismo eram sutis. Outra característica que começava a aparecer nos filmes dessa época era a miscigenação, porém não explícita, como em Ao Mestre com Carinho (To Sir, With Love, James Clavell, 1967). Nesse filme, o mesmo Poitier interpretava Mark Thackeray, um professor substituto que vai lecionar em uma escola pública para um bando de alunos rebeldes, desinteressados, agressivos e com problemas de relacionamentos familiares. O professor substituto flerta quase o filme inteiro com uma professora e tem um affair com uma de suas alunas, as duas brancas. Há uma cena muito interessante neste filme quando um de seus alunos vem a falecer e os colegas de classe não podem ir ao enterro por ele ser negro, alegando que os familiares não aceitariam uma coisa dessas. De maneira mais explícita, o tema apareceria ainda com Poitier em Adivinhe quem vem para jantar (Guess who’s coming to dinner, Stanley Kramer, 1967), em que ele e Katherine

34 Hougthon interpretam um casal interracial que enfrenta a resistência de ambas as famílias. O filme foi premido com o Oscar de Melhor Roteiro Original em 1968, ano em que o casamento interracial ainda era proibido em 12 estados americanos. Ainda no mesmo ano, Poitier interpretou o investigador Virgil Tibbs em No calor da noite (In The Heat of The Night, Normal Jewison, 1967). No filme, um figurão de uma pequena cidade do Mississippi é assassinado e as suspeitas caem sobre Mr. Tibbs, um detetive negro de passagem pela cidade. Quando a polícia local descobre quem ele é, passa a depender de sua ajuda para solucionar o caso. Tibbs acaba tendo que lidar com criminosos e com o preconceito das pessoas locais. Um dos primeiros filmes que mostra um negro discutindo problemas raciais sem abaixar a cabeça.

Figuras 19 e 20: Jim Brown no filme Os 12 Condenados e em Rio Conchos.

Além do onipresente Poitier, outro ator negro que atraiu um enorme público nos anos 1960 foi o famoso jogador de futebol americano profissional (NFL) Jim Brown (figs. 18 e 19), que atuou em filmes dramáticos de ação como Rio Conchos (Gordon Douglas, de 1964); Os Doze Condenados (Dirty Dozen, Robert Aldrich, 1967); 100 Rifles (Tom Gries, 1969), em que contracenou com Burt Reinolds e Raquel Welch – neste filme foi um dos primeiros a ter cenas de amor interracial. Os filmes em que Jim atuou foram chegando mais perto do gosto da audiência afroamericana, mas ainda parecia faltar algo que garantisse uma identificação mais direta com sua realidade.

35 Existiam filmes que tratavam do racismo de uma forma mais pesada, como The Black Klansman de 1966, dirigido por Ted V. Mikels. No começo do filme, a filhinha de Jerry Ellsworth (Richard Gilden) é assassinada num ataque a igreja feita por um grupo da Ku Klux Klan. Então, por ser um negro com a pele mais clara, ele se passa por branco e se infiltra em um Klan para vingar a morte de sua filha. Um filme político até demais para sua época, cheio de mensagens e protestos, que termina com uma frase de John F. Kennedy: “Se um Americano, por sua cor de pele ser escura, não pode almoçar em um restaurante público, se ele não pode mandar seus filhos para a melhor escola pública disponível, se ele não pode gozar da vida inteira livremente, que tanto batalhamos e buscamos para nós, então quem entre nós gostaria de ter a cor da pele trocada para se colocar no lugar dele?”

2.2.2 O nascimento de um gênero: o Blaxpoitation

Apesar de observada apenas genericamente por grande parte dos estudos de cinema, uma das mais variadas e numerosas vertentes da cinematografia popular mundial está ligada ao segmento chamado “de exploração”. Como descreve Cánepa, esse antigo filão da atividade cinematográfica adquiriu muitas faces ao longo do tempo e ao redor do planeta, mas, estrito senso, consiste na produção de filmes que têm como objetivo principal explorar temas considerados polêmicos ou tabus, usando seu potencial de escândalo com fins comerciais. O termo, adotado do inglês exploitation, foi derivado das práticas publicitárias e chamarizes usados em cartazes, anúncios de jornais e trailers, para suprir, em produções baratas realizadas desde as primeiras décadas do século XX, a falta de estrelas e astros famosos ou o reconhecimento como produtos de grandes estúdios. Após os anos 1950, exploitation também passou a designar um conjunto mais específico de filmes eróticos, policiais e de horror destinados a atrair principalmente o público masculino (2009. p. 01). Na dissertação de mestrado A Cultura do Lixo: Horror, sexo e exploração no cinema (2002), Lúcio Piedade, partindo das idéias do pesquisador estadunidense Eric Schaeffer, divide a história do cinema de exploração em quatro fases. A primeira, a qual chama de Clássica, abrange filmes muito baratos, exibidos marginalmente entre os anos 1920 e 1950, cujos temas centrais eram assuntos proibidos como sexo, prostituição, uso de drogas, nudez e delinqüência juvenil (às vezes feitos com fins educativos, mas que

36 acabavam sendo apropriados pelo circuito de exploração). A segunda fase, a do Teenexploitation, envolve espetáculos feitos especificamente para jovens, tratando dos temas clássicos e também de novos tipos de histórias de horror estreladas por terríveis monstros, num fenômeno que deu grande impulso ao cinema B nos EUA. A terceira fase, tida como a da Explosão, a partir de 1959, marca o surgimento de vertentes e ramificações, fazendo com que a palavra exploitation passasse a designar gêneros muito específicos a partir de subdenominações como sexploitation (para filmes cujo chamariz principal é o apelo sexual), blaxploitation (para filmes com temática violenta envolvendo afro-descendentes), nunexplitation (para histórias bizarras passadas em conventos); woman in prison (para filmes sobre presídios femininos) etc. Por fim, na fase da Generalização, o cinema de exploração se espalha pelo mundo, tendo suas próprias versões nacionais e vendo muitas de suas práticas serem apropriadas pelo cinema mainstream (PIEDADE, 2002, p. 17-18). É no contexto da explosão e da generalização do cinema de exploração que se pode compreender o gênero que interessa a este trabalho: o blaxploitation. Como observa Mikel Koven (2001, p.10), a definição de blaxploitation é problemática e se refere a filmes que satisfizeram o desejo dos espectadores negros estadunidenses de ver atores e atrizes negros nas telas interpretando papéis importantes. Mas esses papeis não necessariamente correspondiam à vida real dos espectadores. Não se tratava de ver no cinema a própria realidade, mas sim um imaginário idealizado (idealização incluía poder se impor através da violência e da atitude cool) e em boa parte das vezes transgressor (no sentido da resposta violenta ao racismo e à estrutura social excludente, resposta essa que poderia adquirir o sentido criminal). Nesse sentido, o autor chama a atenção para as diferenças entre filmes dirigidos por brancos e por negros, no sentido de uma percepção melhor dos segundos em relação à realidade da população afrodescendente (KOVEN, 2001, p. 11). Mas, também observa Koven, (2001, p. 12-13), a ligação dos filmes à indústria do exploitation de empresas como a AIP (American International Pictures) levava à exploração do noticiário (que tematizava com frequência a violência nas comunidades negras) e também ao sexo e a violência, que, como mostra Lúcio Piedade (2002) em sua dissertação, são temas centrais para a indústria do exploitation. E ele vai mais longe: “o período do blaxploitation não é representativo do cinema negro nos EUA, pois estava sob o domínio de uma indústria dos

37 brancos, reproduzindo em grande parte sua própria visão de mundo”. (KOVEN, 2001, p. 16, Trad. Livre do Autor) Ainda assim, não há dúvidas de que esse cinema teve um impacto cultural gigantesco para as comunidades negras e criou imagens e ideias contraditórias que marcam um momento da cultura afirmativa. Na descrição de Walker, Raush e Watson, mesmo sendo o blaxploitation off-Hollywood, sua influência sobre o público traria modificações importantes ao cinema dos EUA: Irmãos poderosos e irmãs super sexies, seus cabelos escolhidos pela perfeição esférica e suas brilhantes armas em punho, iluminaram a tela do cinema numa explosão que mudou para sempre Hollywood. A época eram os anos 1970, e boa parte da America – especialmente a America negra – ainda lidava com os tumultuados anos 1960. Dessa era veio um novo tipo de filmes que mudou completamente a forma como as pessoas negras eram apresentadas nos filmes. Naqueles anos, esses filmes foram chamados de blaxploitation. (WALKER, RAUSCH, WATSON, 2009, p. vii).

Mas a empolgação dos autores com esse cinema também não vai tão longe. Segundo eles, tanto a identificação quanto a valoração desse gênero são questoes polêmicas e trazem poucas certezas:

Tão dificil quanto decidir que filme deu origem ao gênero blaxploitation é definir o que esse gênero realmente é, quanto ele durou, e quais filmes podem se encaixar nessa classificação. O termo é positivo ou negativo? Pode ser o “blaxploitation” usado para descrever filmes feitos antes do termo ser cunhado, ou depois que cessou a produção desses filmes em série? Se a maioria dos filmes eram thrillers de ação, o que fazer com os dramas, as comédias e os filmes de horror que são assim classificados? (WALKER, RAUSCH, WATSON, 2009, p. viii)

De fato, quando se discute o blaxploitation, essas e outras dúvidas surgem necessariamente. Em que o gênero diferia dos filmes de ação hollywoodianos convencionais? Todos os filmes dos anos 1970 contendo atores/protagonistas/temas negros são blaxploitation? Trata-se de um gênero, de subgênero ou de um ciclo? Certamente é uma tarefa difícil responder com clareza a essas questões, mesmo porque alguns diretores e atores não aceitaram e não aceitam até hoje o termo, por causar conflitos e interpretações negativas. No caso do diretor e ator negro Keenen Ivory Wayans:

38 Tenho apenas uma única visão pessoal sobre o termo Blaxploitation, aquela que é racista. Não existem coisas do gênero "Negro". Negro não é um gênero. Não existem filmes "brancos", apenas filmes. Existem filmes bons, filmes ruins e filmes de exploitation, Muitos destes termos começam de uma maneira inocente. É como eles eram usados. O termo era utilizado em uma forma muito negativa tanto pelos grupos de pessoas com interesse pessoal e a mídia do mainstream (CHAVEZ; CHAVEZ; MARTINEZ, 1998, p. 80).

Consciente das polêmicas, mas com base em minhas pesquisas realizadas até agora, porém, considerarei o blaxploitation como um ciclo de filmes (a maioria deles de ação) da década de 1970 que trata de temas/problemas/situações dos afroamericanos, contendo atores negros como protagonistas, com um elenco formado majoritariamente por negros e que eram direcionados ao público negro dos guetos, num contexto de produção ligado ao cinema de exploração. Eram filmes na maioria das vezes abordavam o submundo do crime e da marginalidade, mas também a cultura negra (música, arte, moda, comportamento) e o orgulho negro, além, é claro, dos problemas com as drogas e com as condições muitas vezes precárias dos guetos habitados pelas famílias afroamericanas nas grandes cidades. Esses filmes também tinham outras características marcantes, como a presença recorrente de certas categorias de personagens: os “pimps and hores” (cafetões e prostitútas), os militantes panteras negras que questionam as atitudes tanto de negros como de brancos, os antagonistas geralmente encarnados por atores brancos em papéis de homens racistas (sempre chamados nesses filmes como o "the man"), o “pusher” (traficante de drogas), o pastor da igreja e seus seguidores, a polícia e os políticos corruptos. Outras características frequentemente referidas pelos analistas desses filmes são o estilo exagerado, a presença do sangue, as vestimentas extravagantes, muitas cores, muitas armas, muitas cenas de sexo. A impressão que se tem é que eles resolveram fazer totalmente o oposto do que o código Hays sugeria até uma década antes. Então, generalizando a questão do blaxploitation para além dos filmes de ação mais lembrados hoje, e pensando em termos de filmes comerciais da década de 1970 direcionado ao público negro, é preciso lembrar que foram lançados também vários outros blaxploitation com temas de terror, western, artes marciais e até mesmo animações.

39 Foram lançados mais de 200 títulos considerados blaxploitation, mas falarei, neste momento, de alguns que acredito serem os mais importantes, os quais dividi como representantes de três fases: (1) o nascimento e a criação da fórmula; (2) o boom e invasão no mainstream; (3) a decadência e o fim. Na primeira fase, em torno de 1970, começaram a surgir filmes com protagonistas ambiciosos, objetivos modernos e histórias especificamente direcionadas ao público negro da periferia. Um desses filmes foi Halls of Anger (Paul Bogart, 1970, produzido pela pequena Mirish Corporation, fig, 21), que seguia à risca conceito "não se mexe em time que está ganhando" utilizado pelos filmes de exploração. O filme remetia-se ao sucesso de Ao Mestre, Com Carinho (produção de porte médio da ), mas com enredo mais complexo. O filme tratava do professor Quincy Davis (interpretado por Calvin Lockhart) em um colégio constituído apenas com alunos brancos, num bairro de brancos. Eis que o diretor desta escola propõe um cargo novo a ele em uma nova escola no bairro em que ele havia crescido. Uma escola de negros, num bairro negro. Mas a problemática é apresentada quando o diretor diz, numa das primeiras cenas, que sessenta alunos brancos serão transferidos para essa escola onde há três mil alunos negros. O professor reluta, mas acaba aceitando a missão de manter a paz nessa situação potencialmente explosiva. A minoria branca é tratada como os negros eram tratados na vida real, eram proibidos de utilizar certos bebedouros e coisas desse tipo. Quincy continua lutando para manter a paz e a harmonia entre os alunos, mas vê que o problema é bem maior do que apenas dentro da escola e que não tem controle sobre a sociedade. Aqui, ao mesmo tempo em que se percebe a crítica social ao racismo e um apelo à igualdade, também é possível notar tanto um certo ar de “desforra” para o público negro quanto uma visão antipática dos alunos negros, num tipo de contradição muito frequente nos filmes de exploitation.

40

Figuras 21 e 22: Cartazes de Halls of Anger e Rififi no Harlem.

Outros filmes com temas mais ou menos semelhantes surgiram nesse mesmo ano, como The Liberation of L.B. Jones (do grande diretor branco William Wyler, e produzido por uma pequena companhia francesa, a Liberation Co.), que falava do primeiro xerife negro de uma cidadezinha no interior e de todo seu processo para ganhar respeito entre os moradores dessa cidade. Esses títulos foram lançados em 1970, tratavam mais de contenção e volatilidade, temas do cotidiano, conseqüentemente surge o interesse do público negro nessa nova linha de produtos, não apenas para assistir aos filmes, mas criou-se também uma atmosfera de excitação e prosperidade que começara a vigorar nos guetos. A MGM, uma das maiores produtoras de Hollywood, que, como todas, passava por grandes dificuldades econômicas naqueles anos, percebe o potencial comercial lança logo a comédia Rifiri no Harlem (Cotton Comes To Harlem, Ossie Davies, 1970, fig. 22), obtendo grande sucesso de bilheteria (v. tabela na página 47). Mas há historiadores que afirmam que o ciclo do blaxploitation começou mesmo em 1971, com Sweet Sweetback BaadAsssss Song, dirigido e estrelado pelo artista negro Melvin Van Pheebles, que, numa produção pequena de menos de quinhentos mil dólares, arrecadou mais de quinze milhões de dólares nas bilheterias estadunidenses (v. tabela, p. 47). Na esteira desse sucesso, novamente a MGM investe no filão com o filme sobre o detetive negro Shaft, interpretado por Richard Roundtree (, 1971). O filme

41 custou pouco mais de um milhão de dólares, e rendeu mais de doze milhões. A estes filmes seguiu-se uma alavanche de dinheiro em forma de melodramas focando em gangsters, cafetões, prostitutas, detetives sexualmente exaltados. Suas apresentações de sensuais, carismáticos e, acima de tudo, poderosos personagens negros, independente de suas ambivalências morais, teve um efeito cultural e econômico fundamental. Foi então que se iniciou a segunda fase do blaxploitation, com sua entrada ao mainstream. Como descrevem WALKER, RAUSCH e WATSON, (2009, p. viii), esses filmes ajudaram a sustentar não apenas alguns estúdios (como a produtora exploitation, a AIP), como também deram lucro a grandes estúdios (como a MGM) e, sobretudo, a salas de cinema dos centros das cidades, então abandonadas pelo público branco e ocupadas pelos negros. Tempos depois, essas salas seriam definitivamente fechadas e substituídas pelos multiplexes nos subúrbios. Mas, naquele momento, os filmes estrelados por heróis e anti-heróis negros eram uma solução comercial válida.

Figuras 23 e 24: Capa do DVD de Sweet Sweetback´s Baadassss song e cartaz de Shaft.

Em 1972, apareceram filmes como Blacula (comédia de vampiro dirigida por William Crain e produção da AIP, fig. 25), Across the 110th Street (filme de guerra entre máfias dirigido por Barry Shear para a produtora Film Guarantors, que produziu apenas dois filmes), Super fly (história de um traficante dirigida por Gordon Parks Jr. em co-

42 produção com a Warner Bros.) e O ocaso de uma estrela (Lady sing the blues, drama biográfico sobre a cantora de jazz Billie Holliday estrelado pela cantora Diana Ross e dirigido Sidney Furie, numa co-produção da Paramount com a gravadora Motown), que fizeram um lucro gigante de bilheteria, como se pode conferir na tabela da página 47. No ano seguinte, seria a vez de O chefão do Gueto (Black Ceasar, de Larry Cohen, produção da AIP, fig. 26), um dos filmes mais famosos so período, que contava a história de um jovem negro que monta um esquema mafioso de venda de drogas e entra em choque com a máfia italiana e com a polícia. Este foi também o ano em que uma atriz negra ascendia ao estrelato: Pam Grier, que estrelou a continuação de Blacula chamada Scream, Blacula, Scream e o grande sucesso Coffy (Jack Hill, em produção para a AIP, fig. 27), em que interpreta uma enfermeira obrigada a se envolver no mundo do crime. No ano seguinte, ela faria se eternizaria no papel da prostituta com sede de vingança Foxy Brown (também da parceria de Jack Hill com a AIP), mais tarde homenageada por Quentin Tarantino no longa Jackie Brown, uma homenagem do diretor a vários filmes de blaxploitation, que foi estrelado por ela em 1997.

Figuras 25, 26 e 27: Cartazes de Blacula, O Chefão do Gueto e Coffy.

43 Mas, em 1975, algumas coisas começaram a mudar na indústria de cinema dos EUA. Em primeiro lugar, o sucesso extraordinário de Tubarão (Jaws, de Steven Spielberg) indicou caminhos muito mais lucrativos para os grandes estúdios, que foram perdendo o interesse pelo ciclo de filmes voltados para o público dos guetos e voltaram a investir em produções maiores, buscando cada vez mais ao público adolescente (mudança que teria seu momento decisivo em 1977, com Guerra nas Estrelas, de George Lucas). Em função disso, começou a crescer o mercado para os multiplexes, os cinemas de shopping centers nos subúrbios mais abastados de população predominantemente branca, o que fez com que os cinemas dos centros da cidade, que vinham exibindo muitos longas-metragens de blaxploitation, iniciassem uma longa decadência. Além disso, apesar do público afro-americano estar gostando dos filmes, ao mesmo tempo havia aqueles que se sentiam ofendidos, alegando que nem todos os afroamericanos eram traficantes ou andavam armados e falavam gírias – aliás, na realidade, tratava-se de uma minoria. Esse foi um dos fatores, entre outros que causaram o fim do ciclo blaxploitation. A campanha feita pelas organizações que lutavam pelos direitos civis como a NCAAP e a CORE, que acusaram os filmes de estereotipar negativamente os negros, entraram com uma liminar e acabaram vencendo, proibindo os estúdios de lançarem mais filmes do gênero. Os filmes em si não eram ricos em variedade e originalidade, as mesmas histórias eram contadas de várias maneiras diferentes, repetidamente, assim foi secando a fonte de temas. Os orçamentos vinham diminuindo cada vez mais, e quando já se tem um orçamento baixo e a mesma história é contada pela terceira ou quarta vez consequentemente você perde mercado, perde público e chega ao fim. Então, se de um lado a lenta apropriação dos personagens negros pelo cinema mainstream era uma realidade incentivada, entre outras coisas, pelo blaxploitation, por outro lado, esses filmes já não tinham o interesse de mercado que tinham antes. Ainda assim, os lucros de alguns dos filmes citados mostram a importância deles na primeira metade dos anos 1970 nos EUA, como se pode perceber na tabela abaixo.

Título Custo de produção Lucro bruto de

estimado (orçamento) bilheteria nos EUA

44 Sweet Sweetback's $ 150.000 $ 15.180.000

BaadAssss Song

Shaft $ 1.2 Milhões $ 23.250.000

Cotton Comes to Harlem $ 2.2 Milhões $ 15.375.000

Superfly $ 149.000,00 $ 18.900.000

Coffy $ 600.000 $12.944.000

Tabela 1. Fonte: Variety Magazine

Os números falam por si, e são apenas alguns exemplos, pois existiram aproximadamente duzentos títulos na década de 1970 apontados como blaxploitation. Filmes de vários países foram influenciados na época, como: Black Fire (México); Soul Brother of Kung Fu e Black Dragon ambos de Hong Kong; Mandingo e Passion Plantation, ambos italianos; Mister Death Man, da África do Sul; Slavers, do Oeste da Alemanha; Man Friday e Embasy, ambos da Grã Bretânia; Harder They Come, da Jamaica – todos devidamente rebatizados e importados para os EUA. Até mesmo o Brasil não ficou fora dessa onda, com o filme A Rainha Diaba, lançado oficialmente em 1974 pelo diretor Antônio Carlos da Fontoura, baseado numa peça de Plínio Marcos. O filme não tratava diretamente do racismo, mas da criminalidade e do tráfico de drogas, tendo um protagonista negro cercado de vários clichês encontrados nos blaxploitation.

45 CAPITULO III - FILMES E TRILHAS SONORAS

Como já foi dito no começo desta dissertação, o objetivo de análise é mostrar a relação de alguns filmes do ciclo blaxploitation e de seus concorrentes produzidos nos grandes estúdios com as trilhas musicais compostas e executadas por grandes artistas da black music (música negra) naquele período, mostrando a importância da combinação de música e cinema para a conflituosa cultura afirmativa dos negros no começo dos anos 1970. Antes disso, porém, é preciso destacar que, desde o final dos anos 1960, o cinema dos EUA vinha modificando suas trilhas musicais, incluindo canções-tema extra- diegéticas como trilhas principais de filmes não-musicais, em substituição, por vezes, das músicas orquestrais do cinema clássico hollywoodiano. Exemplos disso são o filme de estrada Sem Destino (Easy Rider, Peter Fonda, 1969) e o drama romântico A primeira noite de um homem (The graduate, Mike Nichols, 1967), que utilizaram bandas como Stepenwolf e Simon & Garfunkel para comporem os temas musicais principais – no caso, as canções Born to be wild e Ms. Robinson, respectivamente, que foram enormes sucesso nas rádios e nas vendas de discos em seus respectivos anos, tornando-se clássicos da música pop até hoje. Essas canções ganhavam novos significados ao se relacionarem com as imagens dos filmes, permitindo um novo uso mais complexo para a música no cinema de ficção, pois agora não apenas as melodias e o ritmo, mas também as letras das canções podiam ser usadas para comentar a narrativa, acrescentando novos sentidos. Nesse sentido, observar o uso de algumas canções soul e funk nos filmes blaxploitation nos ajuda a perceber como, no cinema voltado mais especificamente ao público negro, foram os ritmos da música negra (e não o pop rock) que marcaram as trilhas musicais, o que nos leva a perceber uma exploração de nicho de público para além dos filmes, levando-nos também a outros aspectos do sistema da indústria cultural. Para isso, foram escolhidos cinco filmes exemplares e suas trilhas musicais formadas por grandes canções-tema: Sweet Sweetback Badaaaaasss Song, com trilha musical do conjunto Earth, Wind & Fire; Shaft, com trilha musical de Isaac Hayes; Across the 110 St, com trilha musical de Bobby Womack; Black Ceasar, com trilha de James Brown; Superfly com trilha de Curtis Mayfield.

46 3.1 Sweet Sweetback's Baadaaaaasssss Song

Ano: 1971, EUA Gênero: Ação / Aventura Duração:: 97 min. Produtora: Cinemation Industries Diretor: Produtor: Melvin Van Peebles Roteirista: Melvin Van Peebles. Elenco: Brer Soul (Melvin Van Peebles), Simon Chuckster, Johnny Amos, John Dullaghan, Trilha-sonora: Earth Wind and Fire e Melvin Van Peebles Slogan: "You Bled my Momma... Bled my Poppa... but you won't bleed me..."

Cartaz e ficha técnica Sweet sweetback baadasssss song

Filme independente muito importante, se não o mais, para o nascimento do blaxploitation foi Sweet Sweetback’s Baadasssss Song dirigido, escrito e atuado por Melvin Van Peebles. O diretor dizia que Sweetback era um ataque aos grandes estúdios de cinema na época. Para isso, ele criou como protagonista um personagem bastante sexualizado, estrelando cenas raras de sexo com atores negros. Van Peebles desejava utilizar o sexo como foco principal para conseguir a atenção do povo afroamericano para difundir seus ideais. As tais mensagens não foram absorvidas pela grande maioria instantaneamente, mas o filme teve uma repercussão muito boa fora dos EUA. Em Paris, Melvin foi considerado um gênio na época. Sua edição em andamento rápido e seus jump-cuts eram caractéristicas únicas no cinema norte-americano para a época. Louis Parker, que escrevia para o jornal Houston Chronicle, comentou que a edição do filme tem uma "improvisação jazzistica com uma qualidade muito boa, frequentemente aparecem cenas com luzes estridentes e psicodélicas que ilustram muito bem a alienação de Sweetback" (TORRIANO; VENISE, 2002, p.106). Torriano também escreveu que o filme possui "estranhos ângulos de câmera, superimposições, efeito de reverse, imagens de rack-focus, zooms extremos, stop-motion, step-printing e abundância de cenas com tremores causados pelo dispositivo

47 em mão e que todas estas características ajudaram para expressar a paranoia do pesadelo que a vida de Sweetback veio a se tornar” (2002, pp. 106-107). O slogan utilizado nesse filme era “You Bleed my momma, you bleed my poppa, but you ain’t bleed me” (“Você sangrou minha mãe, sangrou meu pai, mas não vai me sangrar), frase também é utilizada de refrão na trilha sonora. Sweetback é um joven garoto afro-americano, orfão (representado por , filho de Melvin), adotado por um proprietário de um bordel nos anos 40. No bordel, o garoto trabalhava como entregador de toalhas. Esta mulher o nomeia "Sweet Sweetback" devido ao tamanho de seu pênis. Como adulto, Sweetback, representado por Melvin Van Peebles, trabalha fazendo peças sexuais, entretendo os clientes da casa em shows de sexo. Numa noite dois policiais aparecem para conversar com o chefe de Sweetback, Beetle (Simon Chuckster) sobre um homem que fora assassinado, e dizendo que a comunidade afro-americana está pressionando-os para entregar o suspeito. Os policiais propõem levar Swetback preso, acusando-o pelo crime e dizendo que o soltariam em alguns dias por falta de evidências, apenas para acalmar os ânimos da comunidade afro-americana. Beetle acaba concordando e eles lvam Sweetback para a cadeia. No caminho à delegacia, os policiais prendem um jovem qe faz parte dos Black Panthers, chamado Mumu (Hubert Scales) e o algemam ao Sweetback. Mas Mumu insulta os policiais e no caminho à delegacia eles param e fazem os dois descerem do carro, soltam as algemas do pulso de Mumu e começam a espancá-lo. Sweetback que ainda está algemado, aproveita as algemas que estão em seu pulso e bate, revidando a ação violenta do policial, levando-o ao chão, inconciente. Sweetback foge juntamente com Mumu e vai à casa de uma mulher que o solta das algemas em troca de sexo. Agora, sem algemas Sweetback continua sua corrida e logo é capturado pelos Hells Angels, uma gangue de motoqueiros liderados por uma mulher que fica impressionada pelo tamanho de seu pênis e decide ajuda-los em troca de sexo. A polícia encontra Sweetback e Mumu onde estão estacionadas as motos, mas Sweetback consegue fugir, Mumu foge com um dos motoqueiros (John Amos) e logo os dois são mortos. Logo após a fuga de Sweetback, ele encontra com um homem branco que simpatiza com ele e decide aceitar trocar as roupas com ele. O filme se conclui no deserto, onde a polícia de Los Angeles mandam vários cães de caça atrás de Swetback. Ele foge até chegar ao Rio de Tijuana jurando que voltaria para cobrar as dívidas.

48 Nas legendas do início do filme, está escrito: “Esse filme é dedicado às pessoas que estão cheias do the man (termo bastante utilizado nos filmes blaxploitation, nesse caso, referindo-se aos políciais racistas, mas normalmente faz referência aos brancos). Nos créditos de elenco, aparece participação especial de “black community” (querendo dizer que ele não utilizou atores profissionais e sim o povo da comunidade afro- americana). A trilha sonora foi gravada pela banda Earth Wind and Fire, ainda então desconhecida. Melvin Van Peebles não tinha dinheiro para qualquer tipo de publicidade tradidional utilizada na época, então ele lançou o disco de vinil da trilha sonora alguns meses antes do lançamento do filme, justamente para gerar uma publicidade ao filme, visitava estações de rádios que transmitiam músicas negras, falava do disco e já aproveitando a situação fazia um merchandising do filme. Pelo fato de Melvin não ter dinheiro nem para contratar um compositor para esta trilha, ele decidiu fazer isto por si próprio, Como ele não sabia ler nem escrever músicas, numerou todas as teclas de um piano para que pudesse relembrar das melodias. Melvin dizia que ter criado a história e os cenários de um jeito que o som possa ser usado como parte integrada do filme. Ele acreditava que as produtoras e diretores de filmes nunca davam muito valor ao audio nos filmes que foram produzidos até a época, uma de suas maiores preocupações era de manter o áudio e as músicas muito bem relacionadas com o filme. As músicas foram tocadas pelo ainda desconhecido na época, Earth, Wind and Fire. Após o grupo ter gravado a trilha sonora, o sucesso deles começaram a despontar, lançando vários hits de funk. O contato foi feito pois sua secretária estava saindo com um dos integrantes do grupo e assim que Melvin contou o roteiro eles se interessaram e gravaram a trilha mesmo sem cachê, após o sucesso do filme eles foram recompensados. A trilha sonora de Sweetback contêm músicas que lembram muito as músicas gospel cantadas nas igrejas frequentadas pelo povo afro-americano, com uma pequena diferença, as letras, ele gravou um coral que cantou no refrão da música tema do filme (trecho da letra citada no primeiro parágrafo deste sub-capítulo). Logo na introdução do filme a cena que é mostrada é a do pequeno Sweetback (Mario Van Peebles, filho de Melvin) perdendo a virginidade com uma das prostitútas que trabalham no local. O fato mais chocante desta cena é que enquanto está sendo mostrado cenas da prostitúta se despindo, chamando o garoto para o quarto e deixando-o nú, assim que o garoto começa

49 com o ato sexual uma música de igreja começa a tocar "I'm gonna let it shine..." e logo entra um baixo de funk para anunciar o nome do filme, a música de igreja volta a soar novamente, ocorre um corte de cena e na próxima sequencia Sweetback já é um adulto. As faixas do disco são nomeadas pelas cenas do filme, como por exemplo a faixa um do lado um do vinil foram nomeadas de "Sweetback Losing His Cherry" e a segunda de "Sweetback Getting It Uptight And Preaching It So Hard The Bourgeois Reggin Angels In Heaven Turn Around", isto é, pelo fato de Melvin além de dirigir o filme também fez toda a trilha sonora ele já imaginava as músicas, as vezes, antes mesmo de ter pensado no roteiro em si. Como havia de se esperar os grandes estúdios ignoraram-no, por isso o filme foi financiado pelo próprio diretor, transformando idéias em um sucesso underground gigantesco. O filme foi censurado (por um júri do qual todos os integrantes eram brancos), mas foi liberado logo após o lançamento de Shaft, em 1971 (ver a seguir). Sweetback foi enormemente aceito pela comunidade e pelos militantes dos Panteras Negras, tornando- se até uma obrigação para quem viesse fazer parte do grupo. O orçamento desse filme foi de U$ 150 mil (sendo que U$ 50 mil Melvin pediu emprestado de ), e o lucro foi de U$ 15.180.000, superando as expectativas. O final do filme era chocante para os afro-americanos frequentadores de cinema, pois eles nunca imaginariam que Sweetback fugiria das mãos dos policiais. O crítico de cinema Roger Ebert considera, inclusive, que este é um motivo pelo qual o filme não pode ser etiquetado exatamente na categoria de exploitation, já que se trata de uma obra de denúncia e transgressão política (EBERT, 2004).

50 3.2. Shaft

Ano: 1971, EUA Gênero: Ação / Aventura Duração: 100 min. Cia.Produtira: Metro Goldwyn Mayer Diretor: Gordon Parks Produtor: Joel Freeman Roteiro: Ernest Tidyman e John D.F. Black, baseados no romance de Ernest Tidyman Elenco: Richard Roundtree, Moses Gunn, Charles Cioffi, Christopher St. John Trilha sonora: Isaac Hayes Slogan: "Hotter than Bond, Cooler than Bullit... Shaft's his name. Shaft's his game."

Cartaz e ficha técnica Shaft

Quando se ouve o termo blaxploitation, o primeiro nome que vem à mente da maioria das pessoas é Shaft, dirigido por Gordon Parks, filme lançado pela MGM, o mais conhecido do gênero, o ícone. O blaxploitation entrava em sua segunda fase o mainstream (citada no capítulo anterior). A MGM vinha trabalhando em um filme como Sweetback, mas com algumas diferenças. Mais glamuroso, com enredo mais convencional e com uma realidade menos claustrofóbica que Sweetback. Dirigido por Gordon Parks, que era fotógrafo, poeta, jornalista, músico e ativista, padrinho da filha de Malcom X. Foi o co-fundador da revista Essence. Ele foi o primeiro afroamericano a trabalhar na revista Life. Como músico (pianista de jazz) compôs e coreografou uma peça de ballet dedicado a Martin Luther King. The Learning Tree foi o primeiro filme dirigido por um homem afro-americano, o próprio Gordon Parks, mas isto é apenas uma informação relevante, a parte chocante é que isto nunca havia acontecido antes de 1969. Ele dirigiu o filme (baseado em seu próprio livro de 1963), ganhando boas críticas mas não teve muito sucesso com bilheterias. Dois anos depois ele fez Shaft, um filme de ação com elementos de film noir, conta a história de um detetive afroamericano, John Shaft (Richard Roundtree), que vaga pelo Harlem (bairro de Nova York) e entre os bairros onde fica a máfia italiana. Ele é também uma máquina de sexo também, muito

51 estiloso, com sua jaqueta de couro e seu jeito de andar. A primeira cena mostra ele numa tentativa frustrada de pegar um taxi por ele ser negro. Shaft é contratado por Bumpy (Moses Gunn), um gângster que quer saber quem sequestrou sua filha e porque, por ter seu nome sujo por ser envolvivo em tráfico de drogas, extorsão e jogos de azar, não poderia recorrer à policia. Shaft é o primeiro héroi negro americano do cinema, antes disso o povo afro-americano nunca tinha visto um herói assim. Richard Roundtree, que havia feito apenas alguns papéis em teatro e trabalhos de modelo virou um ícone da contracultura. De acordo com Melvin Van Peebles, no livro What it Is... What it was... a produção original era para ser uma história de um detetive branco mas percebendo o sucesso de Sweetback, o script original foi reescrito e acabaram utlizando uma adaptação do romance de Ernest Tidyman de 1970 chamado Shaft que tem como foco um detetive afroamericano. As produções de Shaft se iniciaram em janeiro de 1971 logo após o lançamento do filme de Melvin. No começo de novembro de 1971, o reportou que o filme que durou 10 semanas para ser filmado seria lançado e Richard Roundtree seria protagonista, e que tinham como base o livro de Tidyman. Ernest Tidyman que era branco, era um editor da The New York Times antes de ser um escritor de romances. Ele vendeu os direitos de Shaft para a MGM (antes do livro ser publicado) e foi honrado pela NAACP pelo seu trabalho no filme e no livro Shaft. O filme foi um dos três maiores únicos lucros que a MGM teve no ano, com o orçamento de apenas U$ 500 mil, fazendo U$ 23 milhões de lucro em vendas de bilheterias. Este influenciou uns 150 a 200 outros filmes feitos na década de 70 (ou seja, praticamente todo o ciclo blaxploitation). Certamente Sweet Sweetback's Badaaaaass Song foi um big hit, mas, por ser independente e não de um estúdio de produção renomado seu sucesso, foi em outro nível, independente de vendas de bilheteria, sua atitude era muito "militante" para o mainstream, enquanto que Shaft era muito mais equilibrado nesse aspecto. No filme, o protagonista afroamericano sempre estava um passo a frente de todos, era sempre o cara mais esperto, o mais malandro da sala e sempre provava sua superioridae diante dos policiais brancos, ele não odiava os brancos e nem sentia inveja, nuca demonstrava raiva por alguém ou algo. Ele apelava pelo público afroamericano frequentador de cinema mas

52 sem assustar os executivos brancos por trás dos grandes estúdios, esta era a fórmula que Hollywood gostaria de emular, pelo menos eram a primeira intenção. E há que destacar mesmo a diminuição da discussão sobre o preconceito racial numa comparação entre Shaft e Sweet Sweetback. Shaft é um afro-americano que trabalha num mundo de brancos e ele está perfeitamente satisfeito. Em uma das cenas um, dos seus conhecidos, um militante afroamericanos o acusa de "pensar como um homem branco" (de ser um vendido como o Uncle Tom) e Shaft logo responde o seu amigo que ele não está pensando para perguntar aquilo e que se continuasse falando desta forma, ele seria morto rapidamente. No filme, Shaft trabalha com muitos policiais brancos (quando realmente precisa), mas, por opção ele prefere trabalhar sozinho e quando precisa de ajuda do grupo de militantes negros (que são seus associados) ele sempre mantém distância quando eles começam com radicalismos. Podemos dizer que temos um herói que pode ter um apelo para a audiência afroamericana sem dar as costas a audiência branca e vice-versa. Se para alguns, Shaft é um "grande" filme, em termos de roteiro, trama, personagem e direção não tem muita coisa original. O ponto importante do filme é o impacto cultural que ele causou, dando um ponto de partida para o gênero blaxploitation chegar ao mainstream e conseguir os olhares de Hollywood se interessando em filmes com temas afroamericanos pela primeira vez na história do país. A influência que Shaft e seus sucessores causaram nos filmes, músicas e na própria cultura foram bem profundos. O sucesso foi tão grande que logo lançaram a sequencia Shaft’s Big Score (1972), desta vez a trilha fora criada pelo próprio diretor, Gordon Parks e, em 1973, Shaft in Africa, o capítulo final da saga de Shaft vem com uma trilha sonora finissíma escrita pelo experiente jazz player e arranjador do grupo The Impressions, Johnny Pate. Nesse último, transformaram Shaft, um herói de ação em um espetáculo negro, chamando o diretor inglês de filmes de ação John Guillermin para trabalhar com Gordon Parks. A trilha do primeiro filme foi gravada por Isaac Hayes, o baixo elétrico de funk e o balanço foi introduzido às trilhas sonoras após esse filme. Os chimbais sibilam sugestivamente com a técnica chamada 16 hats (tocados por Willie Hall), e wicka-wicka... faziam as guitarras, com uma regência pontual, chegam a fanfarra e as cordas anunciando, o indomável, SHAFT, na introdução do filme. Isaac Hayes ganhou Grammy de melhor trilha original e Melhor Música Original pela Academy Awards do ano com a

53 música “Shaft’s Theme”, dentro de dois meses alcançou o topo da parada de Hot 100 Billboard e se manteve por duas semanas. Assim foi o nascimento do Blaxploitation Funk. A música carimbou esta sonoridade de guitarras com pedais de efeito wah-wah, um marco, ele mudou o jeito de fazer trilhas, utilizou instrumentos que não eram comuns em trilhas de filmes, como o contra-baixo. Esta sonoridade fora imitada, expandida e utilizada na maioria dos filmes Blaxploitation e continuam influênciando vários diretores até hoje. Isaac Hayes que já frequentava as paradas de sucesso da billboard com albums de vinil como "Hot Buttered Soul" de 1969 (alcançando a 8ª posição no top40 norte americano), e com o album The Isaac Hayes Movement (em 8ª lugar no top 40 norte americano) e também com o album ...to Be Continued de 1970 que chegou a 11º lugar no top40 norte americano. Ele já havia conquistado um público grande desde o lançamento de seu primeiro álbum, mas foi com a trilha de Shaft, com o álbum que leva o mesmo nome do filme que ele chegou no topo da parada, ficando lá durante várias semanas consecutivas. Depois deste disco, Isaac Hayes não parou mais de lançar músicas e milhares de grandes Hits ao longo de sua carreira, aparece no documentário de música chamado WattStax (1973) fez também mais trilhas como Truck Turner e Three Tought Guys, ambos de 1974, nestes filmes além de fazer a trilha ele era o ator protagonista também. A letra da canção-tema de Shaft confirma a força de alguns clichês do cinema e da música negros daquele período, como o apelo sexual, a atitude destemida e cool, assim como a violência.

Shaft! (Isaac Hayes)

Who's the black private dick That's a sex machine to all the chicks? (Shaft!) You're damn right

Who is the man That would risk his neck for his brother man? (Shaft!) Can ya dig it?

Who's the cat that won't cop out When there's danger all about (Shaft!) Right on

54 You see this cat Shaft is a bad mother-- (Shut your mouth) But I'm talkin' about Shaft (Then we can dig it)

He's a complicated man But no one understands him but his woman (John Shaft)

55 3.3. Across 110th Street (A Máfia Nunca Perdoa)

Ano: 1972, EUA Gênero: Ação / Aventura Duração: 102 min. Cia. Produtora: United Artists Diretor: Barry Shear Produtor: Ralph Serpe Roteiro: Luther Davis baseado no romance de Wallys Ferris Elenco: Yaphet Kotto, Anthony Quinn, Antony Franciosa, Richard Ward Trilha-sonora: Bobby Womack Slogan: "If you steal $ 3000.000 from the mod. It's not robbery. It's Suicide."

Cartaz e ficha técnica A máfia nunca perdoa

Melodrama de crime que recebeu muitos elogios na época por superar as limitações do blaxploitation, esse filme dirigido por Barry Shear se passa no Harlem, onde a rua 110th delimita uma fronteira informal. O filme mostra uma substituição de cargos na polícia, quando o responsável Capitão Matelli (Anthony Quinn) é substituído por um tenente negro chamado Pope (Yaphet Kotto), por ter um grau de escolaridade maior. O filme trata de questões raciais em autoridades da raça negra, que vinham cada vez mais ocupando espaços na vida real. No Harlem naquela época, era politicamente vantajoso ter um policial negro encarregado das investigações. O filme mostra também o início da preocupação da polícia com bandidos de cargos menores que venham a ser um perigo no futuro e não apenas os criminosos grandes. O filme é notavelmente marcado por ser o primeiro a utilizar uma camera Self- Blimp. (que e um tipo de camera que não necessita do blimp um dispositivo que serve para diminuir o som produzido pela própria câmera) o modelo era o Arriflex 35BL para syncar o som. Devido ao tamanho bastante reduzido da câmera era possível fazer uma produção não apenas para filmar com a câmera na mão, mas também em locações

56 menores do que era possível até aquela época e também gravar som utilizável ao mesmo tempo. Os críticos elogiaram muito a música que tem o mesmo nome do filme. Bobby Womack ficou em 19ª lugar nas paradas de Top Black Singles da Billboard no ano de 1973. A letra começa dizendo: "Eu era o terceiro irmão de cinco / Fazia o que era preciso para sobreviver / Não digo que o que eu fiz era o certo / Tentando sair do gueto era uma luta diária... Atravessando a rua 110, os cafetões tentavam pegar as mulheres que eram fracas / Atravessando a rua 110 / Os traficantes não deixavam os viciados serem livres / Atravessando a rua 110 / A mulher tentava dar o golpe na rua / Atravessando a rua 110 / Você encontra isso tudo na rua..." A mesma música foi utilizada por Tarantino em uma homenagem que ele faz ao blaxploitation com Jackie Brown (1997) e também utilizada pelo diretor Ridley Scott no filme Americam Gangster (2007) e no jogo de video game chamado True Crime: New York City. Com isso, tornou-se hoje um clássico dos filmes dessa época, ainda que não tenha sido tao bem-sucedida quanto a trilha de Isaac Hayes para Shaft na mesma época.

Across the 110th Street (Bobby Womack)

I was the third brother of five, Doing whatever I had to do to survive. I'm not saying what I did was alright, Trying to break out of the ghetto was a day to day fight.

Been down so long, getting up didn't cross my mind, I knew there was a better way of life that I was just trying to find. You don't know what you'll do until you're put under pressure, Across 110th Street is a hell of a tester.

Across 110th Street, Pimps trying to catch a woman that's weak Across 110th Street, Pushers won't let the junkie go free. Across 110th Street, Woman trying to catch a trick on the street. Across 110th Street, You can find it all in the street.

I got one more thing I'd like to y'all about right now. Hey brother, there's a better way out. Snorting that coke, shooting that dope man you're copping out.

57 Take my advice, it's either live or die. You've got to be strong, if you want to survive.

The family on the other side of town, Would catch hell without a ghetto around. In every city you find the same thing going down, Harlem is the capital of every ghetto town.

Across 110th Street, Pimps trying to catch a woman that's weak Across 110th Street, Pushers won't let the junkie go free. Across 110th Street, A woman trying to catch a trick on the street, ouh baby Across 110th Street, You can find it all in the street. Yes he can, oh

Look around you, just look around you,Look around you, look around you, uh yeah.

58

3.4. Super Fly

Ano: 1972, EUA Gênero: Ação / Aventura Duração: 93 min. Cia. Produtora: Warner Bros. Diretor: Gordon Parks Jr. Produtor: Sig Shore Roteiro: Phillip Fenty Elenco: Ron O'neal, Carl Lee, Sheila Frazier, Julius Harris, Charles McGregor Trilha sonora: Curtis Mayfield Slogan: "Never a dude like this one! He's got a plan to stick it to the man!"

Cartaz e ficha técnica Super fly

A Warner Brothers ficou desapontada com a perda de Gordon Parks para a MGM e chamou seu filho, Gordon Parks Jr. para dirigir Superfly, que estabeleceu o esteriótipo vistoso dos traficantes afroamericanos e pimps (cafetões), com seus carros e estilo de vestir que persiste na cultura pop até os dias de hoje, principalmente entre os artistas de hip-hop. Ron O’neal faz o papel de Priest, um traficante de cocaína que aparentemente tem tudo que muita gente gostaria de ter: mulheres, dinheiro, uma casa bem confortável para morar e respeito nas ruas. Depois de uma tentativa de assassinato, ele começa a se questionar sobre as coisas que vem fazendo a ele mesmo e, o mais importante, ao seu povo. Então, ele decide fazer um serviço derradeiro, com lucros bem altos, e sair da vida do crime. Assim começam as várias confusões. Como Sweetback, Superfly é um anti- herói, mas com uma visão e sentimento de transformação mais profundos.

59 Superfly é um dos melhores filmes estrelados por atores negros naquele período, se não o melhor, apesar de um certo amadorismo em alguns momentos em função da pouca experiência do diretor. Mesmo assim, Gordon Parks Jr. dirigiu muito bem o filme mostrando, que aprendeu muito com seu pai, o diretor de Shaft. Há uma momento em que Priest está distribuindo cocaína, e aparece uma montagem de fotografias tiradas por ele mesmo, enquanto Curtis Mayfield toca Pusherman de fundo, que é uma sequencia muito bem elaborada. O filme foi financiado inicialmente por dois dentistas afro-americanos e por Gordon Parks (que dirigiu Shaft). Em relação às críticas, o filme era controverso, sobretudo pela glorificação do traficante. O filme passava a ideia de que a America dos afroamericanos era controlada pelas drogas, ao contrário das iniciativas defendidas pelos movimentos de luta pelos direitos civis. Por outro lado, o produtor e o diretor do filme alegavam que queriam mostrar o lado negativo e os aspectos vazios da vida em torno do uso e do tráfico de drogas. Isto fica evidente em várias partes do filme, e com clareza podemos ver na parte que Priest expõe seus desejos dizendo que quer largar a vida do tráfico de drogas. O filme teve muito sucesso, tanto que logo depois veio a seqüência Superfly TNT (1973), dirigido por Ron O’Neil, e Return of The Superfly (1990), uma sequencia tardia do filme dirigida por Sig Shore e estrelada por Nathan Purdee no papel de Superfly. A trilha musical de Superfly ficou por conta do soulman Curtis Mayfield, que fez nessa ocasião um dos melhores discos do gênero. Curtis via o filme como uma verdadeira chance de fazer uma declaração sobre a condição do povo negro da época, e ele conseguiu, mesmo que o filme estivesse eticamente caminhando em direção um pouco distinta, já que a ambiguidade do herói/traficante repetia a contradição já apontada em outros filmes do gênero em relação aos protagonistas negros. Curtis Mayfield deu voz ao vazio e o niilismo do coração daquele “narco-sonho”. Ao mesmo tempo maduros, suaves e compreensíveis, os sussuros astutos de Mayfield falando sobre a vida e problemas sociais de traficantes se diferenciavam das demais trilhas sonoras, superando as expectativas do público. O disco Super Fly foi o terceiro album de Mayfield. Foi lançado em julho de 1972 pelo selo Curtom Records, que utilizara um gravador de 8 canais e tinha distribuições internacionais incluindo países como Itália, Alemanha, França, Canada, Inglaterra e até mesmo cópias vendidas no Brasil. O disco é considerado um clássico da soul/funk music

60 dos anos 1970, já nasceu como um hit com o single chegando rapidamente a marca dos dois milhões de cópias vendidas. A música Freddie's Dead permaneceu durante 62 semanas nas paradas, chegando ao topo 8 vezes (tanto na parada das categorias de R&B e pop). Os críticos de música da época glorificaram o disco. Numa resenha do album em 2004 a Rolling Stones deu 5 estrelas e citou Mayfield como "um progresso musical criativo". O crítico de rock Robert Christgau do jornal The Village Voice deu nota "A" ao album e vangloriou o compositor. Christgau escreveu também que "As músicas falam das (e para) as vítimas do gueto e não apenas para aquelas que já conquistaram algo. A franqueza e o rítimo são essenciais para a sobrevivência". Superfly, juntamente com What's Going On? (1971), de Marvin Gaye, foi um dos pioneiros álbuns-conceito de soul music, com suas letras de auto-ajuda / consciência social que tratavam de pobreza e abuso de drogas. Assim, o filme e a trilha sonora de Superfly podem ter pontos de vistos, de certo modo, como “dissonantes”, pois o filme defende visões ambiguas sobre os traficantes de drogas, enquanto que a posição de Curtis Mayfield é muito mais crítica. Devido ao sucesso significativo, Curtis foi chamado para fazer várias outras trilhas de filme durante décadas. A música Pusherman do mesmo disco foi utilizado por Spike Lee no filme Crooklyn (1994).

Little Child Runnin' Wild (Curtis Mayfield)

Little child Runnin' wild Watch a while You see he never smiles Broken home Father gone Mama tired So he's all alone

Kind of sad Kind of mad Ghetto child Thinkin' he's been had

In the back of his mind he's sayin'

Didn't have to be here You didn't have to love for me While I was just a nothin' child Why couldn't they just let me be Let me be, let me be, let me be

61 One room shack On the alley-back Control, I'm told From across the track

Where is the mayor Who'll make all things fair He lives outside Our polluted air

And I didn't have to be here You didn't have to love for me While I was just a nothin' child Why couldn't they just let me be Let me be, let me be, let me be

I got a jones Runnin' through ma' bones I'm sorry son All your money's gone

Painful rip In my upper hip I guess it's time To take another trip

Don't care what nobody say I got to take the pain away It's getting worser day by day And all my life has been this way Can't reason with the pusherman Finance is all that he understands 'You junkie, mama cries, you know' Would rip her, but I love her so Love her so, now....

62 3.5. Black Caesar (O Chefão do Gueto)

Título alternativo: The Godfather of Harlem Ano: 1973, EUA Gênero: Ação / Aventura Duração: 94min. Cia. Produtora: AIP Diretor: Larry Cohen Produtor: Larry Cohen Roteiro: Larry Cohen Elenco: Fred Williamson, Art Lund, Julius Harris, Gloria Hendry, D'urville Martin, Val Avery Trilha-sonora: James Brown Slogan: "Hail Caesar Godfather of Harlem! The cat with the .45 caliber claws."

Cartaz e ficha técnica O chefão do gueto

Dirigido por Larry Cohen, Black Caesar veio para o Brasil com os títulos de O Chefão do Gueto e O Chefão de Nova Iorque. O filme conta a história de Tommy Gibbs (Fred Williansom), um jovem engraxate que, através do mundo do crime e da contravenção, vem a dominar quase todo o bairro do Harlem, superando a máfia italiana e a máfia de policiais brancos corruptos. Seus amigos de infância são: Joe (Philip Roye) um advogado, Rev. Rufus (D’urville Martin), um evangélico e Helen (Gloria Hendry), uma cantora de boate e sua grande paixão. Tommy consegue subir na vida do crime chantageando políticos e policiais corruptos de Nova Iorque, incluindo seu maior inimigo, o policial McKinney (Art Lund), que quebrara sua perna quando adolescente. Tommy acaba sendo ameaçado e manda sua esposa Helen para casa de Joe. Os dois acabam se envolvendo amorosamente e Tommy leva um tiro de um policial nas ruas, ele vai até um beco e é morto por jovens gangsters (crianças) que são a próxima geração na vida do crime. Black Caesar é uma refilmagem do filme gangster Little Caesar (1930), dirigido por Mervyn Leroy e lançado pela Warner. Black Caesar teve uma sequencia, lançaram no mesmo ano o “Hell Up In Harlem”, era como se fosse Black Caesar II. No começo do filme mostram que Tommy não foi morto e alguém resgatou ele após o ataque das crianças.

63 Após Isaac Hayes e Curtis Mayfield despontarem suas carreiras, compondo as trilhas de Shaft e Superfly, aparentemente todas as estrelas de soul da época acabavam fazendo músicas para algum filme blaxploitation, e James Brown certamente não foi uma excessão. J. Brown canta o tema principal deste filme de Larry Cohen e também em outras 10 faixas que fazem parte do disco trilha sonora do mesmo (A maioria delas foram escritas por Brown em colaboração com Fred Wesley). Barry Devorzon's dava o pontapé inicial com sua voz, a letra de "Down and out of New York City" estabelece a história do filme, enquanto que a maioria das outras cinco músicas com vocais, refletem mais a narrativa do filme de uma sequencia ou de outra, e em Make it Good to yourself, parece estar na trilha apenas pois tem uma letra de conscientização social afro-americana, e em Mama Feelgood, Brown apenas manuseou apropriadamente os vocais em cima da voz de Lynn Collins. especialmente quando a música é divorciada da narrativa do filme, como na maioria dos albuns deste período, as faixas da trilha sonora de Black Caesar aparenta ser um pouco desordenado, especialmente quando o tema de alguma música não parece fazer parte do contexto do filme, talvez, algumas eram escolhidas apenas pela sonoridade e não o tema em sí. The Boss, uma das músicas mais sampleadas atualmente, aparece logo depois da conversa que Tommy tem com Cardoza (o cabeça da máfia italiana) para conseguir um ponto de tráfico. Nesta sequencia é mostrada uma série de colagem com várias imagens que demonstram a ascensão de Tommy Gibbs na vida do crime. A letra diz "I paid the costo to be the boss (Paguei o preço para ser o chefão)". A música melodramática Mamma's Dead, toca bem na hora que Tommy Gibbs vai visitar o túmulo de sua mãe e tem uma conversa com seu amigo Rufus. A letra de James fala "nunca mais irei vê-la novamente" a música para de tocar e entra em uma cena na entrada do cemitério, quando Tommy conversando com seu pai, que sempre foi ausente em sua vida, e pergunta se ele quer ficar em sua casa, o pai responde que não pois ele viaja bastante, a música volta a tocar com James cantando "não tenho mais ninguém para olhar por mim..." Assim começa a decadência de Tommy na vida do crime. Este disco é um dos ultimos trabalhos mais consistentes lançados pela gravadora Polydor, e foi um grande sucesso de vendas. A idéia inicial de James era de utilizar músicas já lançadas em discos anteriores, mas Fred Wesley, que era o líder de sua banda, insistiu e conseguiu convencê-lo a gravar músicas exclusivamente para o filme. A

64 abertura do filmes se inicia com a música Down and Out In New York City, um hino funk dedicado à cidade de Nova York.

Down and Out In New York City (James Brown)

Say, brother Can I borrow a fan, brother, you know Say, say, say I'd sure like just a dime So I can buy some coffee and snacks I guess I'd better stop trying to be hip and get on down Hey man, you know...

I was born in New York City Saved by the night on a Monday Trying to shoot the news Not a bad cat, not a bad hat Doing me a real big favor Forget the bad cats and the bad hats Playing it all real good And a damn boy give me a shine, boy, ha! When a cold wind comes in New, New York City And the street's no place to be but there you are So you try hard or die hard No one really gives a damn to try hard

And to die hard, no one give a damn And a damn boy give me a shine, boy, ha! Down and out in New York City This ain't no way to be Oh boy, letting you go When you're down and out in New York City Never, never, never gonna get that way again No... not me, when you need a friend You need to have her When you want a friend Gonna get myself together in the morning Gonna leave it all I want my dream All the bad cats and the bad hats Doing me a real big favor You've got the bad cats and the bad hats Paying me all real good And a damn boy give me a shine, boy, ha! Give me a shine, boy Down and out in New York City This ain't no way to be Oh boy, letting you go When you're down and out in New York City

65 Never, never, never gonna get that way again No. not me, when you need a friend Troubled mind When you need a friend You've got a troubled mind

Ain't nobody gonna give you one thin dime Friends can be cruel sometimes And be sweet, but what? What bugs a man, what hurts a man When you give him a drink Just can't get nothing to eat That's New York CityThat's New York City New York City Horton and 25th Street Bricks 8th Avenue...

66 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa sociedade inundada por icones brancos da cultura pop, os herois negros dos filmes blaxploitation foram a resposta necessária a personagens como James Bond e ícones cinematográficos como John Wayne. Talvez pela primeira vez desde a invenção do cinema, havia finalmente heróis negros que salvavam o dia, frequentemente resistindo bravamente à opressão branca. E não importa o quão negativas sejam as afirmações sobre a era do blaxploitation – o fato é que ela proveu a uma geração heróis que retinham sua significativa verdade. (WALKER, RAUSCH, WATSON, 2008, p.ix, Trad. Livre do Autor)

Uma das boas maneiras de se compreender uma geração é compará-la à geração seguinte. Nesse sentido, pensar o blaxploitation a partir de seus sucessores pode ser revelador de sua importância, a despeito de todas as polêmicas em torno desse gênero de filmes. Entre os herdeiros desse numeroso e variado gênero, podemos encontrar cineastas como Spike Lee e Quentin Tarantino, atores como Samuel L. Jackson e Woopy Goldberg. No caso da música, a herança também é muito significativa, contando com figuras do peso de Ice T (nome artístico de Tracy Marrow), Dr. Dre (nome artístico de André Romelle Young), Tupac Shakur, Wu Tang Clan entre dezenas de outros. É claro que não se trata simplesmente de uma continuidade. A cultura americana (e não apenas a afroamericana) sofreu muitas mudanças em relação ao que havia na década de 1970. Afinal, aquela foi uma época de libertação e autoafirmação de diversos grupos (como os negros, os gays, as mulheres etc) que hoje já têm suas reivindicações e direitos muitos mais aceitos e absorvidos pela sociedade, ainda que não livres de tensões. Ao mesmo tempo, tratava-se da era do ouro do cinema de exploração e de um período em que Hollywood buscava desesperadamente novas soluções comerciais, e então o público negro que lotava os cinemas das cidades parecia um bom alvo mercadológico. Na década de 1980, quando o blaxploitation já perdera todo o seu fôlego, sendo em grande parte absorvido pelo mainstream com grandes astros negros começando a despontar (como Denzel Washington), apareceram filmes que tinham várias influências da década passada, mas esta se apresentava sob novos pontos de vista, nos chamados Hip Hop Movies. Foi quando começaram a surgir filmes com mais qualidade técnica e orçamentos mais altos, com enredos, montagem e fotografias mais complexas. Filmes

67 como The Answer, de Spike Lee, e documentários como Wild Style (Charlie Ahern, 1982), Style Wars (Henru Chalfant e Tony Silver, 1983), títulos que falam da cultura e estilo de vida do movimento Hip Hop e de seus elementos, que são grafite, o break dance e os MCs e DJs do rap. Em 1988, também Dennis Hopper digiriu o filme Colors (As Cores da Violência), que falava sobre de dois policiais, Bobby (Robert Duvall) e Danny (Sean Penn) que trabalham na LAPD (Departamento da Policia de Los Angeles), com a missão de cuidar de jovens e crianças envolvidas nas gangues Bloods (vermelhos) e os Creeps (azuis), que se diferenciam através das cores das vestimentas. Nessa década também foram lançados School Daze (Lute pela coisa Certa, 1988) e Do the Right Thing (Faça a coisa Certa, 1989), ambos de Spike Lee, mostrando o ponto de vista de um negro num bairro pobre de Nova Iorque onde convivem diferentes raças e diferentes culturas (italianos, asiáticos, negros, brancos e latinos) e seus conflitos e ideais. Nesses filmes, Lee seguiria em uma trilha de revelação como um dos mais profícuos autores do cinema dos EUA, geralmente tratando de temas voltados ao universo dos negros e de seus conflitos, e liderando uma geração de diretores que trataram a questão racial nos EUA com mais variedade e complexidade. Na música, o legado do sucesso das trilhas musicais dos filmes de blaxploitation também é notório, sobretudo no nascimento de um gênero musical: os artistas do movimento hip hop dos anos 1980 e 1990 não se cansam de declarar, em variadas entrevistas, que cresceram assistindo a esses filmes, tendo-os como modelo em suas vidas e carreiras. Não por acaso, muitos rappers citam filmes de blaxploitation, utilizam seus vulgos e se baseiam nas atitudes de seus heróis em suas letras. Um exemplo disto é o grupo de rap Das Efx, que sampleou a música Blind Man Can See, da trilha sonora de Black Caesar, e fizeram uma música chamada They Want EFX, um clássico da década de 1990. Também Ice-T sampleou a música The Boss, do mesmo álbum de James Brown, e fez a música You Played Yourself, também sampleada pelo produtor Alchemist, que produziu uma música para o disco do rapper Prodigy (Mobb Deep). Nos anos 2000, a mesma canção foi sampleada pelo rapper Nas na faixa Get Down. Existem milhares de outros produtores de rap que samplearam algum trecho de músicas de trilhas sonoras ou até mesmo de diálogos dos filmes (como o grupo Wu-Tang Clan, que utilizou um diálogo do filme Education of Sonny Carson).

68 Nos anos 1990, muitos filmes com protagonistas e temas negros estiveram relacionados às gangues e às drogas. De fato, desde os anos 1960, muitas famílias foram se desestruturando por causa de drogas e da criminalidade, e muitas crianças negras foram crescendo sem a figura paterna, muitas criadas pelos avós, e os filmes dessa época retratam as consequências disso, como Boys in the hood, de John Singleton (1991) e Menace II Society (Albert Hughes, 1993). Mas, para além das tristezas, também começaram a aparecer muitos filmes de comédia também, que satirizavam o próprio estilo de vida do negro, coisas como a moda, as gírias, estilo e até mesmo os problemas como viciados, enfim todo o estilo de vida da época, como Crooklyn (1994), de Spike Lee, baseado nas memórias de infância do diretor. Também a maioria dos filmes com temática negra que apareceram nessa época tinham o rap como trilha sonora. As influências não pararam por aí, nos anos 2000, continuavam a aparecer mais filmes influenciados pelo gênero. O mais evidente deles foi John Singleton, por exemplo, que fez uma releitura de Shaft, um policial da delegacia de homicídios frustrado pelo sistema, em Nova Iorque, no início do filme é chamado de madrugada para investigar uma morte de um jovem negro inocente e vai atrás de um dono do tráfico dominicano. Richard Roundtree (o Shaft original de 1971) é o seu Tio Shaft no filme, até mesmo o diretor Gordon Parks Jr. faz uma aparição no filme numa uma festa surpresa para o novo Shaft (Samuel L. Jackson). Esse filme é interessante que além de ser uma releitura contemporânea, é meio que uma continuação após trinta anos. Shaft (Samuel L. Jackson) acaba largando o emprego da polícia para ser detetive igual seu tio Shaft (Richard Roundtree) e ainda no final saem para fazer um serviço juntos. Na música também o produtor sampleou uma música da trilha sonora de Sweetback e produziu a música C'mon Feet, do clássico album The Unseen. De qualquer forma, todo esse conjunto de obras nos permite compreender o blaxploitation não apenas como um ciclo de filmes rentável num dado momento histórico, mas como uma espécie de divisor de águas que modificou definitivamente a representação dos negros no cinema dos EUA, popularizando também, ainda mais, a música funk e soul, contribuindo para a politica afirmativa dos negros nos Estados Unidos. Ainda que a contribuição dessas obras seja contraditória e tenha causado dúvidas mesmo entre membros do movimento negro, como aponta Piedade (2002, p. 06), se grande parte da produção exploitation surge compensando seus baixos orçamentos com

69 apelos explícitos aos instintos dos espectadores, muitas vezes, esses apelos podem se tornar elementos transgressores, mesmo que se apresentem de forma contraditória. Assim, observando-se com mais atenção, não é raro encontrar-se, nos filmes de exploração, rasgos de conservadorismo ou preconceito ao lado de momentos perturbadores da ordem (social, sexual, política, estética...) vigente. Com isso, apesar da péssima fama, eles filmes oferecem um panorama interessante sobre as preocupações e aspirações inconfessáveis das sociedades em que são produzidos, e também participam, muitas vezes, do debate sobre elas.

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