Trespass Trio + Joe Mcphee
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Jazz 23 de maio 2012 Ciclo “Isto é Jazz?” Comissário: Pedro Costa Trespass Trio + Joe McPhee É uma surpresa (e ainda por cima parti- McPhee, precisamente –, mas o certo cularmente agradável) ouvir o Trespass é que esta é tão confirmada quanto Trio na companhia de uma figura tão desmentida. Não da mesma forma que essencial para a história da improvisa- caracteriza o outro grande projeto de ção com matriz jazz quanto foi, e con- Martin Küchen, Angles, no qual nos tinua a ser, Joe McPhee. Ou talvez não deparamos com influências africanas, seja tão surpreendente assim, pois este especialmente as que apreendeu numa encontro mais cedo ou mais tarde teria frutuosa estadia na Guiné-Conakry. de ocorrer. Afinal, tanto o trompetista O esclarecimento: «As últimas peças e saxofonista norte-americano como que compus para o Trespass Trio os elementos do grupo sueco, Martin inspiram-se no folclore sueco e no Küchen, Per Zanussi e Raymond Strid, canto da Argélia, apenas surgindo vagos partilham uma semelhante atitude na ritmos de África. Podem igualmente sua relação com o jazz: adoptam as suas ouvir-se uns ecos do Leste europeu. As coordenadas, mas afastam-se destas, duas formações são complementares. sem hesitações, sempre que a criati- Há fragmentos de melodia que surgem vidade os apela a outros desenlaces. em qualquer contexto em que eu esteja. Os três músicos nórdicos seguem o Nem sempre, mas é frequente. E o que exemplo de McPhee em Nation Time, improviso é o que é e aquilo que sou, disco dos tempos do black power em independentemente das situações.» Saxofones alto e barítono Martin Küchen que reconhecemos o balanceamento do Aliás, cada vez mais é assim com este Contrabaixo Per Zanussi funk, bem como os envolvimentos do homem para quem tocar é um ato de Bateria Raymond Strid seu convidado com a música eletroacús- urgência. Se Küchen se tem dividido Saxofone tenor e trompete Joe McPhee tica de Pauline Oliveros e com o noise da entre a prática do jazz e uma dedicação anarquista Nihilist Spasm Band. desalinhada em termos idiomáticos, e «O que fazemos é jazz, sem dúvida, se até recentemente aplicava as suas dado o instrumentário tradicional, técnicas extensivas para o manejo dos dadas as nossas experiências passa- saxofones (sobretudo o alto e o barí- das nessa área e muito mais, mas ao tono, mas também o soprano e o tenor) mesmo tempo… não é jazz. Será jazz do nas suas incursões pelos territórios da deserto? Jazz dos lagos da Suécia? Não improvisação livre e exploratória (caso sei, mas sei que por vezes tocamos free dos álbuns Homo Sacer e AT 37), a ver- bop, uma mistura de free jazz e bebop. dade é que os seus procedimentos e o Fui suficientemente claro? Espero que seu vocabulário estão a tornar-se unitá- não», afirma Küchen, rindo-se. rios. «Até há pouco não tinha encon- O trio de saxofone, contrabaixo e trado um lugar para as “extensões” nas bateria tem a sua origem no hard bop músicas do Trespass Trio e dos Angles, e em Sonny Rollins, tendo-se tornado mas isso está a mudar», esclarece. um modelo na subsequente new thing. As diferenças entre os dois âmbitos Qua 23 de maio A própria escolha deste formato liga o de ação estão, portanto, a esbater-se. 21h30 · Pequeno Auditório · Duração: 1h10 · M12 Trespass Trio a tal linhagem – a de Joe «Trata-se, sobretudo, de uma questão de 3 dinâmicas. Tenho sentido a necessidade encobrimentos de negócios sujos, o que na Frente Oriental, e quase foi depor- apenas. O chefe da segurança interna de tocar melodias mesmo no meu jogo vem acontecendo desde há muito, muito tado para a União Soviética no final da dos Estados Unidos disse recentemente “não-idiomático”. As melodias parecem tempo.» guerra. Toda a família do lado dele era que questionar a história oficial do 9/11 tornar as dinâmicas mais espessas e Küchen não se considera, propria- pró-Israel. Uma irmã da minha avó foi estará em breve ao mesmo nível que fazem-no muito depressa, mais do que mente, um ativista, mas a sua responsa- voluntariamente para a parte Leste da duvidar da narrativa do Holocausto, isto os padrões rítmicos repetitivos. Talvez bilidade cívica enquanto artista tem-no Alemanha e gozou os privilégios dados é, será considerado delito de opinião. seja por isso, o que quer dizer que não é levado a exprimir publicamente consi- aos membros do Partido Comunista até Nesta conjuntura, compreende-se uma escolha pessoal, mas a resposta ao derações muitas vezes polémicas, tanto ao fim da vida…» porque é que os artistas deixaram de ser que a música, ou o som, me pede. Que pelo conteúdo como pela agressividade «Segundo a lei ortodoxa rabínica eu “militantes”. Desde pelo menos os anos tenha em conta a melodia e que seja do protesto. «Os 45 anos que tenho a não sou judeu, pelo facto de a minha 1920 que éramos vistos como “radicais”, cuidadoso com a sua colocação.» viver na Suécia foram de permanen- mãe não ser, mas segundo a lei secular como “rebeldes”, mas depois surgiu a A associação com Joe McPhee tes lavagens ao cérebro, mas estou a de Israel posso clamar pela Aliya, ou década de 90, com a falência das ideolo- torna-se, pois, um desafio. Para ambas libertar-me desse condicionamento. Já seja, pedir passaporte israelita. Na gias e a generalizada desilusão. Como é as partes: «Porque é que o convidá- não chega ser um “esquerdista bem- Alemanha dos anos 1930, tanto os nazis possível, hoje, acreditar ainda no comu- mos? Nem me lembro do dia em que, -intencionado”, até porque a esquerda como os sionistas tinham interesse na nismo? Mesmo que os artistas finjam pura e simplesmente, a sua “persona” passou por uma grande deceção, o segregação dos dois grupos raciais. Este que não, a verdade é que baixaram os e o seu nome estavam ali, no meio de marxismo. Precisamos de encontrar é um tema muito complicado, e muito braços, e isso eu não aceito.» nós. Porque já acontecia de alguma novas ferramentas para continuarmos atual ainda», acrescenta Martin Küchen. Para todos os efeitos, não é só na maneira antes, tenho a certeza de que espiritualmente vivos. O que eu faço A mentira que, segundo o líder do Internet e em texto que Martin Küchen a contribuição do Joe se fará sentir é muito limitado, não passando de Trespass Trio, nos rodeia é deste modo faz ouvir a sua voz. Aquilo que pensa imensamente na música que apresen- uns posts no Facebook e de umas liner por si entendida: «O problema maior e sente é aquilo que toca, e por isso os taremos em Portugal e que este será notes nos meus discos, mas sinto essa está nos media e no facto de as massas seus saxofones fazem soar a raiva e a um momento muito especial para o obrigação.» acreditarem no que estes apregoam, angústia próprias desta época de inter- Trespass Trio. Tanto assim que o nosso As críticas do músico a Israel têm ignorando, ou esquecendo-se, que os rogações e incertezas… encontro em quarteto vai ser gravado, tido tanto mais impacto em quem as lê mesmos são controlados por quem está para futura edição pela Clean Feed.» e ouve porquanto Küchen é de origem interessado em fazer passar determi- Rui Eduardo Paes Um aspeto em comum com o familiar judia, emigrada da Alemanha. nadas mensagens, designadamente Crítico de música, ensaísta, multi-instrumentista residente em «Antissemitismo? A política do Estado governos, partidos, grupos financeiros editor da revista jazz.pt Woodstock é o engajamento político de israelita é que é antissemita! A própria e corporações empresariais. Questioná- Martin Küchen, patente, por exemplo, expressão utilizada contra mim é -las implica o risco de as pessoas serem no último disco do Trespass Trio, “…was um contrassenso. Seria o mesmo que ridicularizadas nos seus meios sociais, there to illuminate the night sky…”, chamar “antieuropeu” a um dinamar- pelo que é mais fácil aceitar tudo alusão às bombas de fósforo utilizadas quês crítico das políticas da União acriticamente.» pelos EUA no Iraque. «Não é que eu Europeia. Um dinamarquês é um Ora, a música do Trespass Trio e de tenha a veleidade de achar que a música europeu. A minha avó era judia, mas Joe McPhee é uma das formas com pode mudar o mundo. O que ambiciono isso só se tornou uma questão para a sua que o inconformismo ainda se vai é que o mundo tenha a possibilidade de completamente assimilada família com culturalmente manifestando por estes ser autêntico. Confronto as distorções à a ascensão do nazismo e do sionismo. dias… «Vivemos num meta-mundo com verdade consoante me vou deparando Os seus irmãos tiveram de se exilar e ela um único sistema de pensamento e com elas. Assistimos a campanhas de de se esconder, para evitar a deporta- com um único inimigo – este pode ter desinformação massivas e a horríveis ção. O meu pai esteve na Wehrmacht, muitas cabeças, como a Hidra, mas é um 4 5 Martin Küchen descobriu o jazz, trocou o seu ins- muitos casos combinando elementos Amiri Baraka. A editora suíça Hat Hut saxofones alto e barítono trumento pelo contrabaixo. Estudou de ambas. Quando não está na estrada, foi fundada por Werner Uehlinger com no Conservatório de Trondheim e ensina metodologia e estética da o propósito inicial de publicar os seus Nascido em 1966 em Eskilstuna, na na Academia de Música Norueguesa, improvisação. Embora seja um exímio discos e aí, de facto, saíram muitos dos Suécia, é uma das personalidades de em Oslo. Em 1996, cofundou o grupo ritmista, aprecia particularmente um mais importantes trabalhos deste incan- maior relevo nas cenas europeias do Wibutee, que se destacava por ter uma trabalho percussivo feito de pequenos sável militante da liberdade.