UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ABDENALDO AURELIO ALVES DE LIMA MUNIZ SANTIAGO

PREPARAÇÃO E EXECUÇÃO DA ABERTURA CONCERTANTE DE CAMARGO GUARNIERI SOB A ÓTICA DO REGENTE DE ORQUESTRA

CAMPINAS

2016

ABDENALDO AURELIO ALVES DE LIMA MUNIZ SANTIAGO

PREPARAÇÃO E EXECUÇÃO DA ABERTURA CONCERTANTE DE CAMARGO GUARNIERI SOB A ÓTICA DO REGENTE DE ORQUESTRA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Música, na área de concentração Música: Teoria, Criação e Prática.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Eduardo Augusto Ostergren

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ABDENALDO AURELIO ALVES DE LIMA MUNIZ SANTIAGO E ORIENTADO PELO PROF. DR. EDUARDO AUGUSTO OSTERGREN.

CAMPINAS

2016 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Santiago, Abdenaldo Aurelio Alves de Lima Muniz, 1977- Sa59p Preparação e execução da Abertura Concertante de Camargo Guarnieri sob a ótica do regente de orquestra / Abdenaldo Aurelio Alves de Lima Muniz Santiago. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

Orientador: Eduardo Augusto Ostergren. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Guarnieri, Camargo, 1907-1993. 2. Música brasileira. 3. Regência (Música). 4. Música - Análise, apreciação. I. Ostergren, Eduardo Augusto,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Preparation and execution of the Camargo Guarnieri's Abertura Concertante from de viewpoint of the orchestral conduct Palavras-chave em inglês: Guarnieri, Camargo, 1907-1993 Brazilian music Conducting Music appreciation Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática Titulação: Mestre em Música Banca examinadora: Eduardo Augusto Ostergren [Orientador] José Eduardo Fornari Novo Junior Leila Yuri Sugahara Data de defesa: 21-10-2016 Programa de Pós-Graduação: Música BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ABDENALDO AURELIO ALVES DE LIMA MUNIZ SANTIAGO

ORIENTADOR(A): PROF. DR. EDUARDO AUGUSTO OSTERGREN

MEMBROS:

1. PROF. DR. EDUARDO AUGUSTO OSTERGREN

2. PROF(A). DR(A). JOSÉ EDUARDO FORNARI NOVO JUNIOR

3. PROF(A). DR(A). LEILA YURI SUGAHARA

Programa de Pós-Graduação em Música na área de concentração Música: Teoria, Criação e Prática do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 21.10.2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ao meu filho Alex Felix Cavalcante Santiago,

fonte inesgotável de amor! AGRADECIMENTOS

À minha esposa Taís Felix Cavalcante; A meus pais, Edna Alves de Lima e Epaminondas Muniz Santiago; Aos meus sogros Therezinha Cavalcante e Gabriel Cavalcante Neto, (responsável pela revisão deste trabalho); À minha querida irmã Fernanda Muniz Santiago Spagnol, amiga e protetora; Ao meu querido irmão Algo Mangili; À Maristela Muniz Santiago (in memoriam) minha madrasta, exatamente minha segunda mãe; Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Augusto Ostergren, pelos incentivos, ensinamentos, por partilhar sua vida com seus orientandos; Aos professores do Instituto de Artes da Unicamp José Fornari, Carlos Fiorini, Denise Garcia, Helena Jank, Jônatas Manzoli, Ricardo Goldemberg, Fernando Hashimoto, Paulo Ronqui, que, cada um a seu modo, contribuiu para a realização deste trabalho; Aos funcionários da UNICAMP, agentes de padrão de excelência Neusa Trindade, Vivien Ruiz, Letícia Machado e Lucia Aguilari; Aos professores Alvaro Carlini (UFPR), Maestro Aylton Escobar, Rita Domingues (UFMT), Alexandre Magno (UFPB), Branco Bernardes (Faculdade Lusófona), Ernani Teixeira, Paulo Baptista, Celso Marques, Julio Calliman, Peter Dietrich (UniSant’Anna) e Leila Sugahara (Faculdade Cantareira) pela amizade incondicional; Aos meus amigos que tantas vezes me socorreram durante esta jornada, Daniel Brasil, John Emerson, Erik Faez, Rafael Brás e Éricco Vinícius; Aos alunos da UniSant’Anna que trabalharam na editoração da partitura, Fabrício Gaia, William Sanches, Robinson Moreira, Bruno Januário, João Ângelo Bonfim, Tamires Montrazol, Filipe Morais, Luiz Cássio Cesário, José Paulo Fernandes; À Elaine Gardinale e Silvia Gardinale pelo apoio. À Adriano de Castro Meyer pelo auxílio com as partituras e em especial à Vera Sílvia Guarnieri e Tânia Guarnieri!

RESUMO

Camargo Guarnieri (1907-1993), foi um dos mais importantes compositores brasileiros do século XX. E é necessário que seu trabalho seja conhecido pela nova geração de músicos, bem como sua contribuição para a Educação Musical no Brasil e o estabelecimento de uma escola de composição. Guarnieri também publicou em 1950 a “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, documento controverso, onde ele critica a difusão da Música Dodecafônica no Brasil. Como resultado, Guarnieri passou todo o restante de sua vida explicando sua publicação. A “Abertura Concertante”, analisada nesta dissertação, trata-se de um trabalho com características nacionalistas e sólidas técnicas composicionais, e representa um importante desafio ao jovem regente de orquestra. Este trabalho também contém observações quanto ao estudo e preparo da composição como resultado dos estudos realizados com os professores Eduardo Ostergren, Carlos Fiorini e Denise Garcia da Universidade Estadual de Campinas, que serviram de valiosa ajuda sobretudo no estudo analítico deste trabalho.

Palavras-chave: Música Brasileira; Regência; Análise Musical ABSTRACT

Camargo Guarnieri (1907-1993) was one of the most important Brazilian composers of the 20th Century. It is necessary that his works be widely known by the younger generation, as well as his contribution to music education in Brazil and the establishing of a school of composition. Guarnieri also published in 1950 an “Open Letter to Musicians and Music Critics of Brazil”, a controversial letter in which he criticized the diffusion of Music Dodecaphonic in Brazil. As result Guarnieri spent the rest of his life explaining this publication. The “Abertura Concertante,” analyzed in this dissertation, a work of a nationalist character exhibits solid compositional techniques and presents an important challenge to the young conductor as well. This work also contains observations for the study and performance of this composition as result of studies with professors Eduardo Ostergren, Carlos Fiorini and Denise Garcia of the Campinas University who were of great help in the analytical study of thework.

Key words: Brazilian Music; Conducts studies; Analysis Índice de Figuras

Figura 1 – Da esquerda para a direita: sua irmã Arísia, seus pais Géssia e Miguel, e Camargo Guarnieri ...... 21 Figura 2 – Casa onde nasceu Guarnieri na cidade de Tietê – SP ...... 22 Figura 3 – Guarnieri aos 18 anos em audição no Colégio Sagrado Coração em São Paulo ...... 22 Figura 4 – O compositor Heitor Villa-Lobos, principal ícone da Música durante a Semana de Arte Moderna e que viria a ser amigo de Camargo Guarnieri ...... 23 Figura 5 – Sarau realizado na Casa Di Franco ...... 24 Figura 6 – Da esquerda para a direita: Mário de Andrade, Lamberto Baldi e Camargo Guarnieri ...... 26 Figura 7 – O maestro italiano Lamberto Baldi ...... 27 Figura 8 – Mário de Andrade ...... 28 Figura 9 – Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, localizado à Avenida São João s/n, onde hoje funciona a Escola Municipal de Música de São Paulo ...... 28 Figura 10 – Integrantes da Missão de Pesquisas Folclóricas no Teatro Santa Isabel em Recife-PE em 1938. Da esquerda para a direita: Maestro Martin Braunwieser, Luis Saia, Benedito Pacheco e Antônio Ladeira ...... 29 Figura 11 – O maestro austríaco radicado no Brasil Martin Braunwieser (1901-1991) ...... 29 Figura 12 – Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste ...... 30 Figura 13 – Caminhão cedido pelo governo de Pernambuco para que a Missão de Pesquisas Folclóricas se movimentasse pelo Nordeste ...... 30 Figura 14 – Teatro Municipal de São Paulo. Local de trabalho de Camargo Guarnieri durante 40 anos ...... 31 Figura 15 – Olívia Guedes Penteado (1872 – 1934) ...... 32 Figura 16 – Registro do primeiro concerto de Guarnieri na condição de compositor. Na foto, o compositor e os intérpretes de suas obras (1935) ...... 33 Figura 17 – O professor francês Alfred Cortot (1877-1962) ...... 34 Figura 18 – O professor francês Charles Koechlin (1867-1950) ...... 35 Figura 19 – Programa de concerto realizado em Paris dedicado à música contemporânea brasileira (1939) ...... 36 Figura 20 – Guarnieri retornando ao Brasil devido ao início da Segunda Guerra Mundial (1939) ...... 37 Figura 21 – O compositor no estúdio da Rádio Gazeta (1943) ...... 37 Figura 22 – Guarnieri regendo a Orquestra da Rádio Gazeta (1943) ...... 38 Figura 23 – Camargo Guarnieri e o maestro russo Sergei Koussevitski nos Estados Unidos, em 1943 ...... 38 Figura 24 – O compositor Camargo Guarnieri ...... 40 Figura 25 – Foto oficial da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1952, com seu regente titular, Maestro Eleazar de Carvalho, onde Hans Joachim Koellreutter foi primeiro flautista ...... 41 Figura 26 – O compositor, professor e flautista alemão Hans Joachin Koellreutter ...... 42 Figura 27 – Da esquerda para a direita: Camargo Guarnieri, Juscelino Kubstchek e Clóvis Salgado da Gama (1956) ...... 46 Figura 28 – Prédio da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás – EMAC/UFG, antigo Conservatório Goiano de Música, onde Guarnieri lecionou a partir de 1967 ...... 47 Figura 29 – Maestro Edoardo de Guarnieri ...... 48 Figura 30 – Camargo Guarnieri e seus pais Gessia e Manuel Camargo ...... 48 Figura 31 – Camargo Guarnieri (à frente, à esquerda), (fundo, à direita) e outros carregando o caixão do maestro italiano Edoardo de Guarnieri em publicação como se fosse o enterro de Camargo Guarnieri (1968) ...... 49 Figura 32 – Trechos de jornais datados de dois dias após a morte de Edoardo de Guarnieri. Não foi feita nenhuma menção ao engano dos jornais que noticiaram a morte de Camargo Guarnieri (1968) ...... 50 Figura 33 – O Crítico Musical Mozart de Araújo ...... 51 Figura 34 – Orquestra Universitária de Concertos da Universidade de São Paulo, sob regência do Maestro León Kaniefsky (1948) ...... 52 Figura 35 – Camargo Guarnieri em frente à sede da Orquestra Sinfônica de Chicago em 1973, no dia em que regeu um concerto, o qual teve como solista a pianista Laís de Souza Brasil ...... 53 Figura 36 – Da esquerda para a direita, a pianista Laís de Souza Brasil, Camargo Guarnieri, Flávio Marotta Rangel e o reitor da USP Orlando Marques de Paiva, no concerto inaugural da Orquestra Sinfônica da USP, em 1975 ...... 54 Figura 37 – Camargo Guarnieri regendo o concerto de estreia da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo em 1975 ...... 55 Figura 38 – Os maestros Eleazar de Carvalho e Camargo Guarnieri, na década de 1950 ...... 57 Figura 39 – Bilhete enviado pelo Maestro Eleazar de Carvalho a Camargo Guarnieri em 1979 ...... 58 Figura 40 – Maestro Eleazar de Carvalho ...... 59 Figura 41 – Camargo Guarnieri dirigindo ensaio de orquestra em 1943 ...... 60 Figura 42 – Camargo Guarnieri em seu estúdio ...... 61 Figura 43 – Cordas compassos 1 a 3 – Tema 1 ...... 74 Figura 44 – Cordas compassos 1 a 3 – Tema 1 disposto em três compassos ...... 74 Figura 45 – Cordas compassos 124 a 129 – Tema 1 disposto em seis compassos ...... 75 Figura 46 – Cordas compassos 142 e 143 – Fragmento do tema 1 disposto em dois compassos ...... 75 Figura 47 – Cordas compassos 22 e 23– Tema 2 ...... 76 Figura 48 – 1ª Trompa compassos 27 e 28 – Tema 3 ...... 76 Figura 49 – Clarinetes e Fagotes compasso 69 a 73 – Tema 4 ...... 77 Figura 50 – Trompas compassos 77 a 79 – Tema 5 ...... 77 Figura 51 – Cordas compassos 1 a 3 - Tema 1 ...... 78 Figura 52 – 1ª Flauta e 1º Fagote, compasso 24 ...... 79 Figura 53 – Tema 3 apresentado pelas cordas, compasso 47 ...... 80 Figura 54 – Tema 3 apresentado como contraponto. 1ª Trompa compassos 27 e 28 ...... 80 Figura 55 – Tema 1 acrescido de apogiatura executado pelas Madeiras nos compassos 55 a 58 ...... 80 Figura 56 – Pirâmide escrita para os Sopros. Compassos 62 a 66 ...... 81 Figura 57 – "Terças Paulistas", na verdade, terças compostas em tercinas de mínimas escritas para Trompas entre os compassos 78 e 81 ...... 82 Figura 58 – Sobreposição dos temas 1 e 5 dispostos para 1ª Flauta e 1º Trompete. Compassos 103 e 104 ...... 82 Figura 59 – Fragmento do tema 1 exposto pelos Tímpanos. Compasso 114 ...... 83 Figura 60 – Fragmento do tema 1 exposto pelas cordas. Compassos 142 e 143 ...... 83 Figura 61 – Ponte ligando as partes A e B executada pelas Trompas. Compassos 149 a 158...... 83 Figura 62 – Acompanhamento executado pela 1ª Flauta. Compassos 49 a 51 ...... 84 Figura 63 – Acompanhamento executado pelas cordas. Compassos 59 e 60 ...... 84 Figura 64 – Tímpanos compasso 58 ...... 84 Figura 65 – Motivo executado por oboés e fagotes. Compasso 48 ...... 85 Figura 66 – Clarinetes e Fagotes acompanhados pelos tímpanos tocados "... no bordo do tímpano", compassos 69 e 71 ...... 85 Figura 67 – Tema 5 apresentado pelas Trompas. Compassos 77 a 79 ...... 86 Figura 68 – Tema 1 da Parte B. Violas compassos 161 a 164 ...... 86 Figura 69 – Tema 2. Violinos compassos 161 a 164 ...... 87 Figura 70 – Tema 3. Flautas, compassos 170 a 174 ...... 87 Figura 71 – Início da Parte B. Violinos e Violas compassos 161 a 164 ...... 87 Figura 72 – Madeiras compassos 170 a 174 ...... 88 Figura 73 – Violinos I compassos 197 e 198 ...... 88 Figura 74 – Violas, Violoncelos e Contrabaixos compassos 224 a 226 ...... 89 Figura 75 – Tímpanos compassos 224 a 226 ...... 89 Figura 76 – Ponte para troca da Parte B para a Parte C. Tímpanos compassos 235 a 240 ...... 89 Figura 77 – Violinos compassos 162 a 170 ...... 90 Figura 78 – 1º Clarinete e 1º Fagote compassos 179 a 182 ...... 90 Figura 79 – Flautas, Oboés e Clarinetes compasso 205 ...... 90 Figura 80 – Tímpanos compassos 235 a 241 ...... 91 Figura 81 – Ponte ligando as Partes B e C. Tímpanos e Cordas compassos 235 a 241 ...... 91 Figura 82 – Primeiros violinos e sopros, compasso 333 e 334 ...... 92 Figura 83 – Sopros e Tímpanos compasso 93 a 95 ...... 92 Figura 84 – Sopros, Tímpanos e Primeiros Violinos, compassos 333 a 335 ...... 93 Figura 85 – Compassos 103 e 104 ...... 94 Figura 86 – Compassos 343 e 344 ...... 95 Figura 87 – 1º Clarinete compassos 112 e 113 ...... 96 Figura 88 – Clarinetes compasso 352 ...... 96 Figura 89 – Tímpanos compassos 352 a 355 ...... 96 Figura 90 – Compasso 368 ...... 97 Figura 91 – Cordas compassos 372 a 375 ...... 98 Figura 92 – Sopros compassos 377 a 379 ...... 98 Figura 93 – Compassos 388 e 389 ...... 99 Figura 94 – Cordas compassos 343 e 344 ...... 100 Figura 95 – Compassos 355 a 357...... 101 Figura 96 – Cordas compassos 369 a 371 ...... 102 Figura 97 – Cordas compassos 378 a 380 ...... 102 Figura 98 – Tímpanos compassos 388 e 389 ...... 102 Figura 99 – Tutti compassos 1 a 3 ...... 104 Figura 100 – Cordas compassos 6 a 10 ...... 105 Figura 101 – Sopros compassos 19 a 22 ...... 106 Figura 102 – Sopros compassos 29 a 31 ...... 107 Figura 103 – Sopros compassos 33 a 34 ...... 107 Figura 104 – Tutti compassos 42 e 43 ...... 108 Figura 105 – Tutti compassos 36 e 37 ...... 109 Figura 106 – Tutti compassos 48 e 49 ...... 109 Figura 107 – Cordas compassos 59 e 60 ...... 110 Figura 108 – Sopros compassos 63 a 65 ...... 110 Figura 109 – Tutti compassos 66 a 69 ...... 111 Figura 110 – Tutti compassos 69 e 70 ...... 112 Figura 111 – Tutti compassos 73 e 74 ...... 113 Figura 112 – Tutti compassos 77 e 78 ...... 114 Figura 113 – Clarinete compassos 86 a 94 ...... 114 Figura 114 – Tutti compasso 114 ...... 115 Figura 115 – Tutti 142 a 149 ...... 115 Figura 116 – Trompas compassos 149 a 158...... 116 Figura 117 – Clarinetes, fagotes, trompas, trompetes e tímpanos compassos 151 a 160 ...... 116 Figura 118 – Violinos e violas compassos 161 a 163 ...... 117 Figura 119 – Tutti compassos 170 a 172 ...... 118 Figura 120 – Oboés compassos 174 e 175 ...... 119 Figura 121 – Segundos violinos 174 e 175 ...... 119 Figura 122 – Tutti compassos 182 e 183 ...... 119 Figura 123 – Trompas e cordas compassos 190 e 191 ...... 120 Figura 124 – Trompas compasso 194 ...... 120 Figura 125 – Fagotes compasso 203 ...... 120 Figura 126 – Trompas compasso 199 ...... 120 Figura 127– Trompetes compasso 198 ...... 120 Figura 128 – Tutti compassos 205 a 207 ...... 121 Figura 129 – 1ª Trompa compassos 215 a 219 ...... 122 Figura 130 – 1º Fagote compassos 219 a 224 ...... 122 Figura 131 – Tímpanos compassos 235 a 241 ...... 122 Figura 132 – Tutti compassos 103 a 105 ...... 123 Figura 133 – Tutti compassos 343 a 345 ...... 123 Figura 134 – Madeiras compassos 343 a 349 ...... 124 Figura 135 – 1º Fagote compassos 345 a 346 ...... 124 Figura 136 – 1º Trompete compassos 346 a 348 ...... 124 Figura 137 – Tutti compasso 355 ...... 125 Figura 138 – Sopros compassos 377 e 378 ...... 126 Figura 139 – Tutti compassos 388 a 389 ...... 126 Índice de Quadros

Quadro 1: Esquema da Parte A de Abertura Concertante ...... 66

Quadro 2: Esquema da Parte B de Abertura Concertante ...... 67

Quadro 3: Esquema da Parte C (ou A’) de Abertura Concertante ...... 68

Quadro 4: Instrumentação de Abertura Concertante ...... 70 Sumário Introdução ...... 18

1 O compositor ...... 21

1.1 Formação inicial ...... 21

1.2 Mudança para São Paulo ...... 23

1.3 Os mentores ...... 25

1.3.1 Lamberto Baldi ...... 26

1.3.2 Mário de Andrade ...... 27

1.4 Estudos na Europa ...... 31

1.5 Vida profissional no Pós-Guerra ...... 37

2 Correntes estéticas e atuação na Educação Musical ...... 40

2.1 A Carta Aberta aos Músicos do Brasil ...... 41

2.2 Assessor, professor e compositor: O trabalho na Era JK e outras contribuições ...... 45

2.3 Edoardo de Guarnieri ...... 48

2.4 Mozart Araújo ...... 50

2.5 A Orquestra Sinfônica da USP ...... 52

2.6 Eleazar de Carvalho ...... 56

2.7 O Legado de Camargo Guarnieri: sua didática, seus alunos, instituições educacionais e artísticas ...... 60

3 A Abertura Concertante ...... 63

3.1 Considerações iniciais ...... 63

3.2 Histórico ...... 64

3.3 Forma ...... 65

3.4 Orquestração ...... 69

3.4.1 As Cordas ...... 71

3.4.2 As Madeiras ...... 72

3.4.3 Os Metais ...... 72 3.4.4 A Percussão ...... 73

3.5 A Estrutura da Obra ...... 73

3.5.1 Primeira parte ...... 73

3.5.2 Segunda Parte ...... 86

3.5.3 Terceira Parte ...... 91

4 Sugestões de Interpretação ...... 103

4.1 Primeira parte ...... 103

4.2 Segunda Parte ...... 117

4.3 Terceira Parte ...... 123

Considerações finais ...... 128

Referências ...... 130

Anexo 1 - Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil (1950) ...... 133

Anexo 2 - Carta Aberta de Koellreutter (em resposta à de Guarnieri), também aos Músicos e Críticos do Brasil (1950) ...... 138

Anexo 3 – Abertura (Partitura Editada) ...... 141

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Introdução

Mozart Camargo Guarnieri era essencialmente compositor de formação, embora tenha estudado regência quando de sua estada na França, o que lhe permitiu atuar como regente, compositor e professor. Segundo, Vera Guarnieri, sua viúva, ele reservava as manhãs para reger e as tardes para compor e ministrar aulas. Para essas duas últimas atividades, Guarnieri utilizava um estúdio, localizado na Rua Pamplona, 825, em São Paulo, próximo à sua residência.

Desde a década de 1930 até meados da década de 1960, o ensino formal de música era apoiado pelo Estado, embora existissem poucas opções no tocante ao nível superior. O ofício era exercido por pessoas que seguiam mestres, que muitas vezes não tinham diplomas de academias e estes eram responsáveis tanto pela técnica como pela orientação estética dos alunos. Tal panorama fomentava a difusão de informações acerca de determinada escola ou linhagem, embora não apresentasse ambiente favorável às discussões entre as mais variadas vertentes.

Guarnieri vivenciou o período em que o ensino de música era obrigatório nos currículos escolares. E já era um profissional experiente quando o ensino de música passou a ser gradativa e sistematicamente retirado da grade curricular escolar, para dar lugar a outras matérias, entre elas as de cunho cívico, como Educação Moral e Cívica, por exemplo, devido ao regime político vigente à época.

Na medida em que tal panorama se sedimentava, os cursos superiores em música tomavam forma, mesmo de maneira tímida, com profissionais experientes à frente, porém com formações diversas, muitas vezes não detendo títulos suficientes para ocupar adequadamente os cargos nas universidades.

Assim sendo era comum a existência de professores nos cursos de música que tinham graduação em Direito, Medicina, Psicologia, Filosofia e em

19 outras áreas. Outros detinham diplomas de conservatórios, ou de academias europeias, mas sem reconhecimento legal no Brasil.

Guarnieri trabalhou como professor no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo a partir de 1928 e em 1931 foi indicado por Lamberto Baldi para assumir seus alunos quando de seu desligamento quando passou a exercer a função de regente na Rádio Elétrica de Montevideo no Uruguai. O compositor, embora não tendo a titulação acadêmica adequada, atuou nesta instituição a partir de 1927, deixando o cargo, segundo Wernet (2009, p. 18) em 1936 por conta de um decreto do governador que o impediu de acumular as funções de professor e regente do Coral Paulistano.

Sua atividade como compositor teve reconhecidamente maior repercussão na Europa e nos Estados Unidos do que no Brasil. Tal reconhecimento se deu com o compositor ainda em vida. Guarnieri escreveu diversos trabalhos nas mais variadas formações e estilo. Produziu música vocal, musicalizou várias poesias de seu irmão, Rossine Guarnieri, além de transitar com desenvoltura pela escrita instrumental e orquestral. Escreveu sinfonias, vários concertos, peças avulsas e duas aberturas, uma delas, a Abertura Concertante, o objeto deste estudo.

Nas duas últimas décadas diversos pesquisadores escreveram sobre Camargo Guarnieri. A pianista Maria José Carrasqueira escreveu a dissertação de mestrado intitulada “A pianística de Camargo Guarnieri apreendida através dos vinte estudos para piano” em 1994 e a tese de doutorado intitulada “Mozart Camargo Guarnieri: uma história recontada em torno de um concerto (15-10- 1965) em 2001. Ainda sobre piano encontramos a dissertação de mestrado de Alex Sandra Grossi, pianista e professora da Escola Municipal de Música de São Paulo intitulada “O idiomático de Camargo Guarnieri nos dez improvisos para piano”, de 2002.

No ano de 2009, baseada na documentação deixada por Guarnieri encontramos uma análise de seu pensamento e sua visão artística na dissertação de mestrado de Klaus Wernet, intitulada “Camargo Guarnieri: memórias e reflexões sobre música no Brasil”, onde o autor remonta os pensamentos de Guarnieri acerca da música em seu tempo. No campo da

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música orquestral, no ano de 2002 encontramos a dissertação de mestrado de José Fortunato Fernandez, intitulada “Brasilidade na ópera: um paralelo entre Malazarte de Lorenzo Fernandez e Pedro Malazarte de Camargo Guarnieri”. Outro trabalho que aborda a música orquestral é a dissertação de mestrado de Lutero Rodrigues, do ano de 2001, intitulada “A linguagem sinfônica de Camargo Guarnieri”. Outros trabalhos acadêmicos, como artigos, além de dissertações e teses versaram sobre Camargo Guarnieri, seja a respeito de seu pensamento, ou suas produções específicas.

Ainda sobre a produção de música sinfônica, as aberturas de Guarnieri representam a síntese de sua escrita orquestral em diferentes fases de sua vida. A Abertura Concertante, de 1942, e a Abertura Festiva, de 1971, apresentam importantes desafios para o jovem regente, devido ao grande fluxo de elementos rítmicos, melódicos, timbrísticos e formais que se alinham com os estudos de Mário de Andrade acerca da construção de Identidade Nacional, bem como a interação destes elementos entre si.

Um aspecto interessante na escrita de Guarnieri é o fato de que, apesar de o compositor ter estudado na França, isso não interferiu no fluxo de ideias musicais ligadas ao Nacionalismo, mas contribuiu para o aprimoramento de suas técnicas composicionais.

Ao longo da pesquisa para a elaboração deste trabalho, várias informações inéditas foram resgatadas, como seu processo composicional, sua vida de compositor e seus posicionamentos na música e em outras artes.

No primeiro capítulo versaremos sobre o início da vida do compositor, sua formação, a forte presença de seu pai, e o início de sua carreira. O segundo capítulo será sobre a vida de Guarnieri após 1950, tendo como norte a publicação da “Carta Aberta aos Músicos do Brasil”. O terceiro capítulo abordará uma análise da Abertura Concertante, e o quarto apresentará sugestões para a interpretação desta obra.

O objetivo deste estudo é abordar características pontuais da Abertura Concertante, examinar elementos de complexidade para o regente, bem como o de oferecer sugestões para o preparo e a execução desta obra em concerto.

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1 O compositor

1.1 Formação inicial

Mozart Camargo Guarnieri era filho de músicos amadores, o que fez com que se iniciasse nos estudos de música ainda muito jovem, primeiramente na cidade de Tietê, onde nasceu em 1907 prosseguindo-os na cidade de São Paulo. Miguel Guarnieri, pai do compositor, participou ativamente neste processo, tanto para fazer contato com os professores originários da Itália, cuja língua ele dominava perfeitamente, como para incentivá-lo a se desenvolver nos estudos de música.

Figura 1 – Da esquerda para a direita: sua irmã Arísia, seus pais Géssia e Miguel, e Camargo Guarnieri

Seu pai trabalhou para que a primeira obra de Guarnieri, “Valsa de Artista” fosse publicada em São Paulo. Segundo Verhaalen (2001, pg. 20), esta havia sido composta como uma homenagem ao seu primeiro professor, o delegado de polícia de Tietê, Virgílio Dias, que, contrariando as expectativas da família, não recebeu positivamente a homenagem, questionando veementemente a crença que tanto Guarnieri como seus pais tinham num possível ingresso do jovem no ofício de compositor. Tal episódio resultou na ruptura da relação entre Virgílio Dias e a família Guarnieri.

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Figura 2 – Casa onde nasceu Guarnieri na cidade de Tietê – SP

Miguel Guarnieri pagou com recursos próprios a edição da primeira obra do filho. Tal fato se deu em São Paulo, onde a crítica especializada recebeu positivamente o trabalho, salientando a pouca idade do compositor, felicitando-o pela obra e prevendo que dali se desenrolaria um futuro promissor para Guarnieri quanto à sua escolha pela composição.

Figura 3 – Guarnieri aos 18 anos em audição no Colégio Sagrado Coração em São Paulo

Nesta época, década de 1920, o mundo vivia os efeitos da Segunda Revolução Industrial. Em São Paulo a atividade de música erudita tinha como palco principal o Teatro Municipal, inaugurado em 1911, que recebia artistas e companhias de ópera da Europa, sobretudo da Itália. Muitos músicos europeus, em sua maioria formada por italianos, se fixaram em São Paulo

23 formando a maior parte do corpo docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, fundado em 1906, segundo Azevedo (2008, pg. 1), destacando- se como um dos principais celeiros de formação de músicos em São Paulo.

Para que Camargo Guarnieri pudesse prosseguir nos seus estudos, seu pai decidiu se mudar com a família para a cidade de São Paulo, onde poderia receber orientação de professores especializados. Isso se deu em 1922, o ano da primeira Semana de Arte Moderna.

1.2 Mudança para São Paulo

A Semana de Arte Moderna foi um marco na produção artística daquela geração. Este evento teve sua origem na busca pela renovação das linguagens artísticas, pela experimentação, pelo rompimento com o antigo, fazendo com que a arte entrasse numa era de vanguarda.

Entre os líderes deste movimento encontrava-se Mário de Andrade, que viria a ter papel importante na formação e na vida pessoal de Camargo Guarnieri. O nome mais relevante na área da música dentro deste movimento era o compositor Heitor Villa Lobos.

Figura 4 – O compositor Heitor Villa-Lobos, principal ícone da Música durante a Semana de Arte Moderna e que viria a ser amigo de Camargo Guarnieri

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Desde muito antes, diversos movimentos vinham ocorrendo nas artes, culminando na realização da Semana de Arte Moderna, cuja importância maior se deu mais nas consequências do que na própria realização da mesma.

Com a família instalada em São Paulo, Miguel Guarnieri prosseguiu em seu duplo ofício: barbeiro e músico. Era barbeiro durante o dia e tocava durante a noite. Mozart, que abriu mão de seu primeiro nome, adotando “Camargo” como tal, na condição de primogênito passou a ajudar o pai no sustento da casa, trabalhando durante as tardes como pianista na Casa Di Franco, loja de música localizada na Rua São Bento, 50. Ele tocava as partituras ali a venda e a noite tocava com seu pai no Cine Teatro Recreio, na Avenida Rio Branco em São Paulo. Depois seguia para um cabaré onde tocava até às 4 horas da manhã.

Sua passagem pela Casa Di Franco, onde teve a oportunidade de tomar contato com partituras dos grandes mestres europeus, fez com que Guarnieri aumentasse seu repertório. Ele foi demitido do emprego por preferir tocar essas partituras ao invés das mais populares, que eram de gosto do grande público frequentador da casa.

Figura 5 – Sarau realizado na Casa Di Franco

Na primeira metade do século XX o centro de São Paulo possuía diversas casas de venda de instrumentos e partituras, sendo a maioria nas cercanias do Teatro Municipal. A Casa Di Franco era uma delas.

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[...] Uma loja de música, Casa Di Franco, mantinha um pianista para ler as obras para os clientes em potencial. Camargo ali trabalhava todas as tardes, das 13 às 17h30, mas foi despedido depois de alguns meses por preferir tocar música erudita em vez da música popular que os proprietários queriam vender. Parte da tarefa de Guarnieri era manter as músicas alfabeticamente arrumadas nas gavetas. Ele não só fazia isso como também tocava toda a literatura para piano solo, de A a S... quando foi demitido. Essa intimidade com a música de Bach, Chopin, Mozart, Rachmaninoff e outros, até “S”, foi de inestimável valor para o jovem músico naquela época de sua vida. (VERHAALEN, 2001, p. 21).

Durante três anos, entre 1922 e 1925, Guarnieri se aperfeiçoou (aulas particulares) com o pianista , profícuo educador, formado no Rio de Janeiro e em Paris, e que teve entre seus méritos a fundação do Conservatório Pernambucano de Música. Depois, em 1925 passou para a classe de Antônio Sá Pereira.Nesta época Guarnieri diminuiu sua jornada de trabalho, pois seu pai agora estava no ramo de vendas, após se desfazer da barbearia, o que possibilitou uma sensível melhora financeira para a família.

Antônio Sá Pereira apresentou seu jovem aluno ao compositor Agostino Cantú, professor italiano de composição residente em São Paulo. Durante alguns meses foi orientado por este, o que não se traduziu em grande progresso para Guarnieri, uma vez que ambos não se simpatizaram.

1.3 Os mentores

Durante toda sua vida, Guarnieri destacou a importância de dois grandes mestres para sua formação: Lamberto Baldi e Mário de Andrade. Nesta época, o aprendizado na área das humanidades caminhava em conjunto com o aprimoramento técnico e estético.

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Figura 6 – Da esquerda para a direita: Mário de Andrade, Lamberto Baldi e Camargo Guarnieri

O maestro italiano Lamberto Baldi e o musicólogo e ensaísta paulista Mário de Andrade entraram em um acordo versando que Baldi cuidaria do aprimoramento técnico de Guarnieri e Mário de Andrade de questões relativas à estética. O padrão de aprimoramento musical da época não seguia um mesmo caminho para todos. Em geral, os aspirantes ao ofício de músico eram educados por professores particulares ou estudavam em escolas como o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Mesmo nesta escola, os alunos seguiam propostas pedagógicas pessoais, formuladas pelos próprios professores, e não um programa regular comum a todas as escolas.

1.3.1 Lamberto Baldi

O Maestro Lamberto Baldi nasceu na Itália no ano de 1895 e se mudou para o Brasil em 1926, fixando-se em São Paulo. Ele veio a ser o mentor musical de Camargo Guarnieri. Seu pai intercedeu para que Guarnieri se tornasse aluno de Baldi, o que perdurou até o ano de 1930. Baldi nunca cobrou por essas aulas.

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Figura 7 – O maestro italiano Lamberto Baldi

Lamberto Baldi teve sólida formação musical, o que permitiu exercer funções em orquestras importantes, como em Portugal, na Orquestra Gulbenkian, no Uruguai, na Orquestra da Radio Elétrica de Montevideo, no Rio de Janeiro, na Orquestra Sinfônica Brasileira e ocupar o cargo de professor no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Por ocasião de sua contratação para o cargo de regente da Orquestra da Radio Elétrica de Montevideo, Baldi sugeriu o nome de Camargo Guarnieri para ocupar o cargo de professor em seu lugar no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo no ano de 1931.

Segundo Verhaalen (2001, pg. 25) Guarnieri se sentiu inseguro num primeiro momento, mas assumiu o cargo que Baldi confiara a ele.

1.3.2 Mário de Andrade

No ano de 1928, aos 21 anos de idade, Guarnieri conheceu através do pianista Antônio Munhoz, aquele que viria a ser seu mentor em estética e cultura: Mário de Andrade.

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Figura 8 – Mário de Andrade

Nascido em 1893, Mario de Andrade em 1928 já era um pesquisador influente e um respeitado intelectual que se destacava pelo seu trabalho de busca de uma “identidade cultural nacional”. Ele, a princípio, se impressionou com a maturidade e senso de nacionalismo da obra de Guarnieri.

Mario de Andrade tinha grande domínio também de música, visto que fora professor de história da música do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, referência de ensino de música nesta época. Também viria a ocupar cargos de destaque na Prefeitura de São Paulo, como chefe do Departamento de Cultura.

Figura 9 – Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, localizado à Avenida São João s/n, onde hoje funciona a Escola Municipal de Música de São Paulo

Neste cargo promoveu a Missão de Pesquisas Folclóricas, enviando ao nordeste brasileiro pesquisadores para registrar manifestações folclóricas daquela região.

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Segundo Carlini (1993), o músico envolvido no processo foi o maestro austríaco Martin Braunwieser, responsável pela notação em partituras dessas manifestações. Anos mais tarde, já na década de 1940, Guarnieri trabalharia no resgate desse material, fazendo transcrições das gravações não anotadas por Braunwieser, a convite da chefe da Discoteca Pública Municipal, Oneyda Alvarenga.

Figura 10 – Integrantes da Missão de Pesquisas Folclóricas no Teatro Santa Isabel em Recife-PE em 1938. Da esquerda para a direita: Maestro Martin Braunwieser, Luis Saia, Benedito Pacheco e Antônio Ladeira

O trabalho basicamente consistia na transcrição de todo o material que fora apenas gravado e não transcrito pelo Maestro Martin Braunwieser.

Figura 11 – O maestro austríaco radicado no Brasil Martin Braunwieser (1901-1991)

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Figura 12 – Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste

Figura 13 – Caminhão cedido pelo governo de Pernambuco para que a Missão de Pesquisas Folclóricas se movimentasse pelo Nordeste

No mesmo ano em que conhece Mario de Andrade, Guarnieri foi contratado, mesmo sem formação acadêmica, para lecionar no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

O procedimento de contratação de Guarnieri se deu em caráter irregular, pois ele não possuía diploma, situação que se resolveria apenas em 1941, quando o Conservatório outorgou um título honorário a Guarnieri, permitindo-o lecionar sem nenhuma ressalva.

Na década de 1930, os ofícios de instrumentista, professor ou regente eram mais bem remunerados e estáveis do que o de compositor. Assim sendo, Guarnieri assumiu a direção musical do recém-criado Coral Paulistano, fundado pelo seu mentor intelectual, Mário de Andrade.

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Figura 14 – Teatro Municipal de São Paulo. Local de trabalho de Camargo Guarnieri durante 40 anos

A relação de Guarnieri com o Teatro Municipal de São Paulo, que abrigava o Coral Paulistano, foi longa. Mais tarde viria a ser o regente supervisor da Orquestra Sinfônica Municipal, dividindo as funções de regente com os maestros João de Souza Lima, Edoardo de Guarnieri e Armando Belardi.

1.4 Estudos na Europa

O ano de 1930 foi marcado pela subida ao poder do presidente Getúlio Vargas, que viria a instituir o Estado Novo. A nova realidade construída por este governo descontentou a muitos, culminando na Revolução Constitucionalista de 1932, quando paulistas recorreram à luta armada no intuito de derrubar o novo regime.

Diversos pontos da cidade de São Paulo foram bombardeados, como as redondezas do aeroporto do Campo de Marte, em funcionamento até hoje, na zona norte da cidade de São Paulo, e prédios como o da empresa Alpargatas, no bairro da Moóca, onde atualmente funciona Universidade Anhembi Morumbi e que antes produzia os uniformes para os soldados paulistas. Nesta época Guarnieri trabalhou como funcionário da Defesa Civil durante as noites e madrugadas.

No início da década de 1930, Guarnieri apresentou algumas de suas obras para uma comissão formada por uma rica senhora, Olívia Guedes

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Penteado, pelo Doutor Freitas Valle e pelo Doutor Sampaio Viana. Esta comissão outorgava bolsas de estudo para a Europa, para jovens artistas de reconhecido talento.

Figura 15 – Olívia Guedes Penteado (1872 – 1934)

Ao final da apresentação, o Doutor Freitas Valle questionou Lamberto Baldi, que havia sido convidado para integrar a comissão, sobre o jovem Guarnieri. Segundo Verhaalen (2001) a opinião do Doutor Freitas Valle era a de que Guarnieri se apresentava fora do padrão usual, no tocante à estética de suas composições e para isso solicitava a opinião do maestro Baldi. Apesar desta opinião contrária, Guarnieri foi premiado com uma bolsa de estudos, que, segundo Verhaalen (2001) não se concretizou devido aos acontecimentos políticos na cidade de São Paulo que culminaram na Revolução Constitucionalista de 1932.

Durante um período de quatro anos, iniciado em 1932, Guarnieri, que antes estudava a obra dos compositores de vanguarda europeus, passa a realizar experiências com música atonal. Esse período o próprio Guarnieri denominou como “anos de namoro com o atonalismo”. Ele defendia que o atonalismo era uma técnica e que não cabia em suas possibilidades de recursos composicionais.

Em 1933 Guarnieri escreveu a sua 2ª Sonata para Violino. Ainda com a partitura por terminar, Mario de Andrade pediu para ver o trabalho. Guarnieri disse tratar-se de uma obra ainda inacabada, sem dinâmicas e faltando notas. Ainda assim seu mentor insistiu para ver a partitura. Algum

33 tempo depois, numa carta de várias páginas, Mario de Andrade atacou veementemente a composição de seu pupilo, dizendo que este utilizava a dissonância sem critério algum, a esmo. Também por carta Guarnieri argumentou que havia um propósito e ainda chamava a atenção para o fato de a obra ainda estar inacabada. Em nova carta, igualmente longa Mario de Andrade tece ainda mais críticas.

Quando Guarnieri terminou a obra e esta foi apresentada em público, Mario de Andrade, presente ao concerto procurou Guarnieri ao final com o intuito de elogiar a obra citando, inclusive a forma sutil como utilizara intervalos de 9ª em pianíssimo. Guarnieri disse a ele que se tratava da mesma obra que provocara a indignação dele produzindo duas longas cartas de duras críticas. Diante disso, Mario de Andrade afirmou que já, que era assim, ele estava “desdizendo” o que dissera anteriormente.

Dois anos mais tarde, em 1935, Guarnieri realiza em São Paulo o primeiro concerto na condição de compositor, onde foram exclusivamente tocadas obras de sua autoria.

Figura 16 – Registro do primeiro concerto de Guarnieri na condição de compositor. Na foto, o compositor e os intérpretes de suas obras (1935)

No ano de 1936 o músico Alfred Cortot, presidente da Escola Normal de Música de Paris, em excursão pela América do Sul, conhece Lamberto Baldi em Montevidéo. Baldi faz diversos elogios à Guarnieri para que Alfred Cortot, ao chegar a São Paulo o procure. Guarnieri mostrou ao professor francês

34 algumas de suas obras. Segundo Verhaalen (2001), Cortot (figura 17) se impressionou com o trabalho do jovem compositor, e, ao retornar a Paris escreve a seguinte carta ao governador do Estado de São Paulo, à época o Senhor Armando Sales de Oliveira.

Figura 17 – O professor francês Alfred Cortot (1877-1962)

Paris, 11 de Junho de 1936

Caro Senhor Governador Espero que permita um músico francês expressar a grande alegria que, acredito, os compositores de seu país sentirão ao conhecer um compatriota: Camargo Guarnieri. Durante minha curta estada em São Paulo, tive a oportunidade de conhecer a música de Guarnieri. Ela me causou tal impressão que não hesito em afirmar que sua obra representa um dos valores musicais mais pessoais de nossa era e, certamente, uma das mais características do gênio nacional. Sei que o Governo do Estado de São Paulo oferece bolsas de estudo a artistas de talento especial e tenho certeza de que uma dessas bolsas não poderia estar em melhores mãos que as de Camargo Guarnieri, de cujo sucesso em nosso velho continente não tenho a menor dúvida. Suas obras representariam brilhantemente as tendências específicas da ainda jovem escola de música brasileira. Espero que meu pedido não lhe pareça inoportuno e que mereça a devida atenção. Com meus melhores votos. Sinceramente, Alfred Cortot Presidente da Escola Normal de Música de Paris Comendador da Legião de Honra

Ao receber esta carta, o Governador, através de seu Secretário de Educação promoveu um concurso com o intuito de outorgar bolsas de estudo na Europa, e para isso exigiam diploma de Conservatório, ou a submissão a

35 uma prova dividida em quatro fases. Seus alunos do Conservatório Dramático estavam dispensados desta prova, mas Guarnieri não. Ele as fez e foi contemplado com uma bolsa para estudar em Paris.

Antes de ir para a Europa, Guarnieri fez uma viagem à Bahia, onde participou da 1ª Conferência Afro-Brasileira, representando o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Segundo Verhaalen (2001), o compositor coletou diversas melodias, hoje sob a guarda do Centro Cultural São Paulo – CCSP.

Em 1938 Guarnieri foi para a Europa, passando antes pela Itália e Alemanha, fixando-se em seguida em Paris. Nesta capital tornou-se aluno de harmonia de Charles Koechlin e de regência de François Ruhlmann. No início de seu curso, Guarnieri não mencionou a seus novos professores que já era compositor no Brasil, mas veio a oferecer uma coleção de canções suas à Madame Andreè d’Autemar, que à época era professora de canto. Esta teceu diversos elogios sobre Guarnieri para o professor Koechlin (figura 18). Tal fato os aproximou e acabaram se tornando amigos muito próximos.

Agora suas composições já refletiam novas técnicas apreendidas em aula, porém, sem perder a identidade de música brasileira.

Figura 18 – O professor francês Charles Koechlin (1867-1950)

Na Europa, como sua bolsa de estudos era de valor limitado, Guarnieri recebia um pagamento da Prefeitura de São Paulo, para estudar o processo educacional das crianças com Síndrome de Down e poder aplicá-lo quando de sua volta à capital paulista, e complementando assim sua renda.

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Entretanto a esposa do recém-empossado prefeito Prestes Maia investigou tais remessas de dinheiro e as cancelou, com a justificativa de existência de irregularidades bancárias e administrativas. Mário de Andrade também viria a ter problemas de ordem política com os novos dirigentes da Prefeitura.

Figura 19 – Programa de concerto realizado em Paris dedicado à música contemporânea brasileira (1939)

Com o passar dos meses a amizade entre Guarnieri e Koechlin se intensificou a ponto deste lhe oferecer a sua casa de campo para que lá se protegesse dos perigos existentes em Paris relativos aos combates da Segunda Guerra Mundial. Esta oferta foi recusada porGuarnieri.

Com a interrupção da remessa extra de dinheiro, Guarnieri passou a se sustentar apenas com o valor da bolsa de estudos, enfrentando um cenário de dificuldade financeira. Esta situação aliada ao panorama político desfavorável na Europa, no início da Segunda Guerra Mundial, fez com que Guarnieri buscasse ajuda na Embaixada Brasileira em Paris, conseguindo apenas uma passagem de terceira classe em um navio, desembarcando na Bahia em novembro de 1939, implicando na interrupção dos seus estudos em Paris.

Em seu retorno ao Brasil, Guarnieri encontrava-se sem dinheiro, sem emprego, mas com grande prestígio conquistado junto a músicos de reputação, e portador também de respeitável bagagemintelectual.

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Figura 20 – Guarnieri retornando ao Brasil devido ao início da Segunda Guerra Mundial (1939)

1.5 Vida profissional no Pós-Guerra

Ao retornar a São Paulo, seus antigos empregos, haviam sido ocupados por outros profissionais. Assim, Guarnieri se dedicou à composição em período integral, realizando concertos de suas obras em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Figura 21 – O compositor no estúdio da Rádio Gazeta (1943)

Através dos jornais, os críticos se dividiam entre os que o apoiavam e os que o criticavam. Mario de Andrade e o crítico Fernando Mendes de Almeida, entretanto, saíram em defesa do compositor. Eles salientavam que sua convivência com músicos franceses não havia afetado sua “brasilidade”.

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Ao contrário, esta saiu fortalecida pelo convívio diário com os mestres europeus.

Figura 22 – Guarnieri regendo a Orquestra da Rádio Gazeta (1943)

Guarnieri passou a ocupar de forma constante os noticiários quando recebeu um convite para ministrar aulas no Conservatório Dramático e Musical do Panamá, por dois anos. Sua situação financeira estava delicada, apesar de ter conseguido reconstituir uma parte de sua antiga classe de alunos.

Figura 23 – Camargo Guarnieri e o maestro russo Sergei Koussevitski nos Estados Unidos, em 1943

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Tal convite provocou uma série de manifestações contrárias à sua ida àquele país, chamando também a atenção para sua delicada situação financeira. Nesse mesmo período Guarnieri recebeu a notícia de que fora agraciado com o primeiro prêmio do concurso de composição promovido pela “The Fleischer Music Collection of the Philadelphia Free Library” nos Estados Unidos.

O prêmio recebido foi o reflexo do reconhecimento que os Estados Unidos tiveram pelo trabalho do compositor.

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2 Correntes estéticas e atuação na Educação Musical

Camargo Guarnieri desempenhou papel de grande importância no cenário musical do Brasil, como referência técnica e estética às gerações posteriores à sua, bem como o de grande divulgador da música brasileira no exterior.

No fim da década de 1940 ele já visitara a Europa e os Estados Unidos, conhecendo orquestras, compositores, escolas e professores. E por isso, a comparação com o Brasil estava sempre presente. Entretanto, a preocupação com a educação musical no Brasil já constava em entrevistas, livros e dissertações sobre o compositor.

Figura 24 – O compositor Camargo Guarnieri

Nesse contexto, um dos mais emblemáticos acontecimentos foi a divulgação da “Carta Aberta aos Músicos do Brasil”, ocorrida em 1950, sobre a qual, o compositor respondeu durante toda a sua vida. Datada de 7 de novembro de 1950, ela foi publicada no jornal “O Estado de São Paulo” na edição do dia 17 de dezembro de 1950, conforme é descrita na próxima seção.

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2.1 A Carta Aberta aos Músicos do Brasil

O início da década de 1950 foi marcado por profundas transformações no cenário internacional. Eram tempos em que a Europa ainda se recuperava da 2ª Guerra Mundial, terminada cinco anos antes e o Brasil buscava uma identidade própria no novo panorama mundial. Tais efeitos eram imediatamente refletidos nas artes.

Por conta da 2ª Guerra Mundial vários artistas, pensadores, cientistas e técnicos europeus, das mais variadas áreas deixaram seus países, por perseguição, banimento ou com o intuito de proteger suas famílias, rumo ao continente americano.

Figura 25 – Foto oficial da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1952, com seu regente titular, Maestro Eleazar de Carvalho, onde Hans Joachim Koellreutter foi primeiro flautista

Vários desses músicos vieram para o Brasil. Entre eles, estava Hans- Joachim Koellreutter (figura 26), flautista alemão que ao chegou ao Rio de Janeiro em 1937 e em 1940 assumiu o cargo de primeiro flautista da recém- criada Orquestra Sinfônica Brasileira.

Na Alemanha, Koellreutter já era professor e no Brasil começou a lecionar para jovens estudantes as modernas técnicas de composição utilizadas na Europa. Uma delas, denominada “Dodecafonismo”, fora desenvolvida na década de 1920, pelo compositor austríaco . Dentre esses estudantes estavam alguns alunos de composição de Guarnieri.

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Figura 26 – O compositor, professor e flautista alemão Hans Joachin Koellreutter

Guarnieri já era uma referência intelectual acerca de música, no início da década de 1950, e então, através de uma carta, se posicionou contra a ideia de se ensinar a técnica dodecafônica para iniciantes no ofício da composição. A justificativa de Guarnieri, segundo sua viúva, era de ordem pedagógica. Ele acreditava que uma vez impondo caminhos imbuídos de diversas regras, estas serviriam como agentes cerceadores da criatividade do compositor.

Guarnieri acreditava que antes de se pautar por determinadas técnicas composicionais, o aspirante ao ofício de compositor deveria ter experiência suficiente para utilizar as mesmas, e segurança para que a busca pelo conhecimento técnico não significasse uma profunda alteração em seu processo criativo.

Guarnieri expôs estas ideias no que ele denominou “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, onde se posicionou veementemente contra o ensino e a prática do Dodecafonismo, por parte de jovens compositores ou estudantes de composição.

Quando a atividade profissional e artística de Camargo Guarnieri se intensificou diversas vezes a mídia o procurou para que concedesse entrevistas; fato relativamente constante ao longo de sua carreira. (WERNET, 2009)

Antes da publicação da “Carta Aberta” pelo jornal, Hans Joachim Koellreutter escreveu à Guarnieri propondo um debate público acerca do

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Dodecafonismo e suas implicações. A “Carta Aberta” foi enviada a endereços específicos, tais como de músicos de renome e professores e por este motivo Koellreutter tinha conhecimento dela antes de sua publicação pelo jornal.

Carta 1 (de Koellreutter a Guarnieri) “São Paulo, 16 de novembro de 1950 Amigo Camargo

Li sua carta aberta, importante documento, com que sugere o debate de problemas que lhe parecem vitais para a música brasileira. Venho, portanto, pedir-lhe a fixação de uma data entre 30 d.c. e 15 de dezembro para a realização de um debate público em torno das questões apresentadas por você. Aguardando uma resposta sua, subscrevo-me muito cordialmente. Koellreutter”. (RIBEIRO, 2015)

Alguns dias depois, Guarnieri responde a Koellreutter.

Carta 2 (de Guarnieri a Koellreutter) “São Paulo, 21 de novembro de 1950 Meu caro Koellreutter,

Em primeiro lugar, quero agradecer pela sua atenção em escrever- me. É verdade que a carta aberta que dirigi aos músicos e críticos do Brasil constitui um convite para o debate, o mais extenso e profundo possível, de problemas que são realmente vitais para a música brasileira. Esses problemas não me ‘parecem’ vitais. São vitais realmente. Quanto ao convite para um debate em torno das questões que apresentei, não vejo necessidade de aceita-lo desde que o debate já está publicamente aberto para divulgação de minha carta. A questão agora é debatê-la pela imprensa, que não tem a vida efêmera das palavras que o vento leva. O problema exige realmente uma discussão extensa e profunda que alcance o maior número possível de pessoas, de forma concreta e objetiva. E o melhor meio para isso é a imprensa. Ventilar a questão em recinto fechado, diante de poucas pessoas, não corresponde à importância que o problema tem. Espero que, interessado como está pela questão, me honre com a sua opinião pelos jornais. Terei muito prazer em responder-lhe. Atenciosamente, Camargo Guarnieri”. (RIBEIRO, 2015)

Dois dias após a resposta de Guarnieri, Koellreutter volta a insistir num debate público.

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Carta 3 (de Koellreutter a Guarnieri) “Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1950 Caro Camargo

Agradeço suas linhas de 21 d.c. Insisto, entretanto, num debate público, de vez que seria totalmente impossível estudar assunto tão complexo e, sem dúvida, vital para a música brasileira, no espaço reduzido de colunas de imprensa. Penso, outrossim, ser inteiramente de acordo com as ideias expostas em sua ‘Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil’, a realização de um debate, o qual pudesse livremente participar o público, afinal a parte interessante na polêmica, pois é para ele que escrevemos. Além disso, essa iniciativa também me parece oportuna, a fim de que se desfaçam os rumores os quais a sua ‘Carta Aberta’, longe de estar inspirada somente em ideais artísticos e patrióticos, teria sido provocada por interesses pessoais. A realização de um debate público, porém, não exclui uma resposta minha por escrito, como é de sua preferência, pois a oportunidade que você oferece de uma discussão em que possam ser desfeitos todos os mal-entendidos a cerca do dodecafonismo, veio ao encontro de um velho desejo meu. Encontrar-me-ei em São Paulo de 30 de novembro a 15 de dezembro à sua inteira disposição. Muito cordialmente, Koellreutter”. (RIBEIRO, 2015)

A recusa de Guarnieri se alinha à fala de Vera Guarnieri, viúva de Guarnieri, quando afirma que o compositor era reticente a dar entrevistas que não fossem por escrito, visto que no passado já haviam sido publicadas declarações que descontentaram Guarnieri e não representavam exatamente o que ele quis dizer.

Carta 4 (de Guarnieri a Koellreutter) “São Paulo, 28 de novembro de 1950 Meu caro Koellreutter,

Recebi sua carta de 23 do corrente, em que insiste na realização de um debate verbal sobre o dodecafonismo. A minha ‘Carta aberta’ defende uma tese artística e não tem, assim, caráter político e nem pessoal. O meu ponto de vista àquele [sic] respeito já foi expendido em definitivo, em minha carta de 21 do corrente, a cujos termos nada mais tenho a acrescentar. Atenciosamente, Camargo Guarnieri”. (RIBEIRO, 2015)

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Segundo a viúva do compositor, Guarnieri passou o restante de sua vida se explicando acerca da “Carta Aberta”. Quando perguntado se houve arrependimento sobre sua atitude de escrever a Carta, Guarnieri negou, dizendo que talvez pudesse tê-la escrita de outra forma, mas sem abrir mão de sua posição original.

Como consequência da Carta Aberta, Guarnieri por muitos anos foi rotulado por estudiosos e outros músicos, como retrógrado, nostálgico e contrário da produção de música atonal e de vanguarda.

Segundo Wernet (2009) é possível que, por conta da Carta Aberta o compositor tenha se preocupado, a partir da década de 1950, com a consolidação de uma escola de composição no Brasil. Dessa forma, ele passou a dar grande importância para esta atividade, além das outras que lhe tomavam também muito tempo, como compor e reger.

A “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, teve como resposta pública também uma “Carta Aberta” escrita por Koellreutter. Ambas as cartas se encontram em anexo (anexos 1 e 2). Esta última foi publicada diante da recusa de Guarnieri para um debate público. Assim sendo, as quatro correspondências aqui reproduzidas foram, escritas entre o intervalo de tempo das publicações das cartas abertas de ambos os compositores.

Para Guarnieri o Brasil deveria investir na formação básica dos futuros artistas, para que estes provessem o país de orquestras, professores e compositores, com formação sólida, produzindo assim um contingente de pessoas comprometidas com o futuro da música no Brasil.

2.2 Assessor, professor e compositor: O trabalho na Era JK e outras contribuições

Entre 1956 e 1961, durante o governo do presidente Juscelino Kubistchek (1902-1976), Camargo Guarnieri exerceu a função de assessor especial para a área de música, a convite do Clovis Salgado da Gama (1906- 1978), à época ministro da Educação e Cultura, e que havia anteriormente

46 cumprido mandato como vice-governador (1951-1955, durante o mandato de Juscelino Kubistchek como governador) e governador de Minas Gerais (1955- 1956).

Clóvis Salgado da Gama era marido da cantora Lia Salgado, apontada como grande intérprete dos Lieder de Guarnieri e tio do cineasta Geraldo Santos Pereira que dirigiu, junto com seu irmão gêmeo Renato Santos Pereira o filme “Rebelião em Vila Rica” (1958) que marca a única incursão do compositor à música para cinema. Ele o fez a pedido de Clóvis Salgado da Gama e nunca mais voltou a repetir tal atividade, por sentir-se “preso” durante o processo composicional.

Durante seu trabalho no Ministério de Educação e Cultura, Guarnieri vislumbrou grande oportunidade de contribuir para a resolução de questões que o incomodavam, como a deficiência do ensino musical no Brasil.

No Ministério, Guarnieri articulou um plano de ensino de música, em período integral, que tinha música como eixo central, e as outras matérias do curriculum inseridas nela. Ele mostrou este plano ao ministro Clóvis Salgado da Gama (figura 27) que se mostrou favorável à imediata implementação. Guarnieri, no entanto preferiu consultar outros músicos, dirigentes das escolas de música do Brasil.

Figura 27 – Da esquerda para a direita: Camargo Guarnieri, Juscelino Kubstchek e Clóvis Salgado da Gama (1956)

Assim sendo, segundo sua viúva, ele enviou mais de 400 correspondências a escolas de música de todo o país, recebendo, no entanto duas respostas, uma do Rio de Janeiro e outra de Porto Alegre, sendo ambas negativas. Estas respostas traziam à tona diversas dificuldades no tocante à

47 implementação das ideias de Guarnieri. Este cenário fez com que o compositor desistisse deste plano.

Em 1960 Guarnieri rege o concerto em homenagem à Fundação de Brasília e no ano seguinte se casa com Vera Sílvia Ferreira, filha de um advogado e músico amador, seu amigo. Neste mesmo ano deixa o trabalho no Ministério de Educação e Cultura e é convidado a assumir a direção do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

O direcionamento do Conservatório nesta época era voltado para o ensino do piano prioritariamente e Guarnieri se posicionava no sentido de formar músicos nas mais variadas vertentes, como instrumentistas de orquestra, cantores, compositores e não priorizando uma área específica. Não encontrando situação favorável às suas ideias, ele deixou o cargo depois de dez meses.

Figura 28 – Prédio da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás – EMAC/UFG, antigo Conservatório Goiano de Música, onde Guarnieri lecionou a partir de 1967

Em 1964 Guarnieri passa a lecionar no Conservatório de Santos, em São Paulo, ocupando o cargo de docente de Composição e Regência. Entre os anos de 1967 e 1977 integra o corpo docente da Universidade Federal de Goiás (figura 28). Neste mesmo período, no ano de 1972, Guarnieri também contribui para o crescimento do curso de música da Universidade Federal de Uberlândia lecionando matérias teóricas e piano.

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2.3 Edoardo de Guarnieri

Camargo Guarnieri era sistemático. Ele visitava os pais aos sábados. Na tarde do sábado, 25 de maio de 1968, o maestro Edoardo de Guarnieri, um dos regentes assistentes da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, sofreu rompimento de aorta, dentro do Teatro Municipal, e, apesar de socorrido ao Pronto Socorro Municipal, veio a falecer em seguida.

Figura 29 – Maestro Edoardo de Guarnieri

Os jornais e rádios da época, sem se darem conta de que haviam dois “Guarnieri” trabalhando no mesmo Teatro Municipal imediatamente, noticiaram a morte de Camargo Guarnieri.

Figura 30 – Camargo Guarnieri e seus pais Gessia e Manuel Camargo

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Os pais de Guarnieri ouviram a notícia no rádio, e quando ele chegou à sua casa, encontrou a porta aberta e diversas pessoas consolando- os, e se assustaram com a presença do filho. Guarnieri telefonou para o Teatro Municipal e soube então que Edoardo de Guarnieri haviafalecido.

Figura 31 – Camargo Guarnieri (à frente, à esquerda), Osvaldo Lacerda (fundo, à direita) e outros carregando o caixão do maestro italiano Edoardo de Guarnieri em publicação como se fosse o enterro de Camargo Guarnieri (1968)

Na imprensa escrita também foi divulgada a morte de Camargo Guarnieri, e esta, inclusive publicando uma foto onde mostra o compositor carregando aquele que seria seu próprio caixão, e ao lado uma breve biografia.

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Figura 32 – Trechos de jornais datados de dois dias após a morte de Edoardo de Guarnieri. Não foi feita nenhuma menção ao engano dos jornais que noticiaram a morte de Camargo Guarnieri (1968)

Nas edições do dia seguinte constava, ao invés de uma retratação, a notícia da morte de Edoardo de Guarnieri, com sua trajetória profissional, como se o engano nunca tivesse existido. Edoardo de Guarnieri e M. Camargo Guarnieri, apesar do mesmo sobrenome e origem, não tinham grau de parentesco.

2.4 Mozart Araújo

O musicólogo cearense residente no Rio de Janeiro José Mozart de Araújo (1904-1988), sempre que vinha a São Paulo se hospedava na casa de Guarnieri. Em 1961 Mozart de Araújo foi jurado em um concurso de piano realizado no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. Nesta ocasião a decisão do júri foi oposta ao que o público presente concordava, gerando conflitos entre os presentes.

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Figura 33 – O Crítico Musical Mozart de Araújo

Ao sair do teatro, já no carro, Mozart de Araújo desabafou sua posição em relação ao resultado do concurso finalizando com a frase: “O público não sabe nada sobre música, você não concorda, Guarnieri?”. Guarnieri, que era conhecido por sua franqueza respondeu que não, que o público sabia sim, e que quem não sabia nada de música era ele, Mozart de Araújo. Não se falaram mais. Mozart de Araújo chegou à residência dos Guarnieri, pegou suas coisas e saiu sem se despedir do amigo.

Guarnieri, ao notar sua ausência perguntou à esposa o que havia acontecido. Ela respondeu que ele havia sido indelicado com o hóspede. E Guarnieri observou que ele havia apenas respondido a uma pergunta. Ficaram sem se falar. O que pareceu ser uma simples resposta para Guarnieri acabou se transformando numa ofensa irreparável para Mozart de Araújo.

O musicólogo Mozart de Araújo e Guarnieri se tratavam mutuamente por “xará”, pois ambos tinham em comum o nome “Mozart” (José Mozart de Araújo e Mozart Camargo Guarnieri). Após este episódio do concurso de piano no Teatro Cultura Artística, o musicólogo e Guarnieri ficaram sem se comunicar por sete anos, até quando, num hotel em Portugal, o musicólogo recebeu a falsa notícia da morte de Guarnieri (quando da ocasião do falecimento do maestro Edoardo de Guarnieri).

O musicólogo imediatamente telefonou para a residência dos Guarnieri, no Brasil, e foi atendido pela esposa de Guarnieri; Dona Vera. A ela, o musicólogo teceu inúmeros elogios à Guarnieri, lamentando que ele tivesse

52 falecido sem que ambos tivessem tido a oportunidade de reatar relações de amizade. Após esperar o musicólogo encerrar seu longo e emotivo discurso, Dona Vera disse que se o musicólogo de fato quisesse “fazer as pazes” com Guarnieri, bastaria conversar diretamente com ele, que naquele momento estava de pé, ao lado de sua esposa. Ela passou o telefone para Guarnieri e ambos conversaram, desfizeram o mal-entendido da suposta morte de Guarnieri, choraram e reataram sua antiga amizade.

2.5 A Orquestra Sinfônica da USP

A Universidade de São Paulo foi fundada em 1934, com a junção de 5 faculdades já existentes em São Paulo e em 1945, foi formada na universidade a Orquestra Universitária de Concertos da Universidade de São Paulo. Esta orquestra era formada por músicos amadores das mais variadas carreiras.

Figura 34 – Orquestra Universitária de Concertos da Universidade de São Paulo, sob regência do Maestro León Kaniefsky (1948)

Por sua natureza, a Orquestra Universitária de Concertos não tinha ensaios diários. A maior parte do repertório necessitava de adaptações, executadas pelo seu regente titular, Maestro León Kaniefsky (1897-1975), doutor em engenharia química, formado pela USP. Existem registros de atividade desta orquestra até o ano de 1953.

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A criação da Orquestra Sinfônica da USP é conexa à criação do curso de graduação em música e da Escola de Comunicações e Artes. No final da década de 1960, o Maestro Olivier Toni, ex-aluno de Guarnieri, e que havia idealizado e criado a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal e a Escola Municipal de Música em São Paulo, apontava a necessidade da existência de uma orquestra e de um curso de música dentro da USP.

Assim, durante o ano de 1970 foram formulados os cursos de Teatro, Artes Plásticas e Música, que entraram em funcionamento no ano seguinte. Em 1972, foi autorizada a implementação de uma orquestra, pela reitoria da USP, com liberação de verba e apoio do Governo do Estado.

Este primeiro modelo de orquestra seria voltado para fins didáticos, gerido pela Escola de Comunicações e Artes, com o Maestro Olivier Toni, a frente do projeto, acumulando assim, a função de professor do curso de música, criado na instituição em 1970.

Ao longo de dois anos a orquestra foi planejada, até que em 1974 foi institucionalizada a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo, que entrou em funcionamento no ano seguinte. Segundo Leite (2013), o fato de o curso de graduação em música não dispor de alunos em número e especializações suficientes para compor uma orquestra fez com que o plano original do Maestro Olivier Toni fosse transformado de uma orquestra didática ao invés de uma orquestra de perfil profissional.

“Com a criação da Orquestra Sinfônica da USP, consegui realizar um sonho antigo, o de ter uma orquestra própria para trabalhar, não com subalternos, mas com amigos, como em família. Uma orquestra é como um organismo humano, só tem bom desempenho quando age harmoniosamente.” Camargo Guarnieri em (VERHAALEN, 2001).

Figura 35 – Camargo Guarnieri em frente à sede da Orquestra Sinfônica de Chicago em 1973, no dia em que regeu um concerto, o qual teve como solista a pianista Laís de Souza Brasil

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Para o cargo de Regente Titular e Diretor Artístico, o reitor da USP à época, Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva, nomeou o Maestro Camargo Guarnieri, e para regente assistente, o Maestro Ronaldo Bologna, ex-trompista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo e professor da USP. Guarnieri aceitou o novo desafio, visto que no ano anterior havia se aposentado de seu trabalho no Teatro Municipal de SãoPaulo.

Figura 36 – Da esquerda para a direita, a pianista Laís de Souza Brasil, Camargo Guarnieri, Flávio Marotta Rangel e o reitor da USP Orlando Marques de Paiva, no concerto inaugural da Orquestra Sinfônica da USP, em 1975

Segundo Verhaalen (2001) a situação de ser diretor artístico de uma nova orquestra, onde seria possível executar sua música, incentivou Camargo Guarnieri a novos desafios, como escrever para o novo grupo. Desde então diversas obras foram escritas e estreadas pela Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo, a OSUSP.

No início a OSUSP era formada por alguns músicos egressos de outras orquestras profissionais de São Paulo, como a Orquestra Sinfônica Estadual, (atual OSESP) e a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo (OSM), além de outros jovens músicos em início de carreira e profissionais advindos de outros estados, e do exterior, como foi o caso dos spallas Cussy

55 de Almeida de Recife e Elias Slon da Argentina. Foi construído um auditório na Cidade Universitária, para sediar a nova orquestra.

Figura 37 – Camargo Guarnieri regendo o concerto de estreia da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo em 1975

Ao ser contratado, Guarnieri passou a percorrer diversas cidades e estados em busca de músicos dispostos a prestar concurso para uma nova orquestra, que ofereceria o maior salário dentre os conjuntos sinfônicos àquela época.

Camargo Guarnieri dirigiu a Orquestra Sinfônica da USP de 1975 até 1993. Após seu falecimento, a orquestra passou a ser dirigida pelo Maestro Ronaldo Bologna, até 2001. Durante sua permanência à frente da OSUSP foi lançado um CD em 1996 e realizada uma turnê pela Alemanha.

Entre 2002 e 2008 o grupo foi dirigido pelo maestro Carlos Moreno, que implantou o Projeto Academia, onde jovens recém-ingressos na carreira poderiam trabalhar ao lado dos profissionais da OSUSP. Através deste projeto a OSUSP passava a contar com sopros e percussão, visto que o grupo, apesar de constar a palavra “Sinfônica” no nome, sempre fora uma orquestra de cordas.

Até a implementação do Projeto Academia, eventualmente eram convidados sopros e percussão para executar determinadas obras. Nesta época a orquestra executou as sinfonias de Brahms e Tchaikowski, os choros

56 de Camargo Guarnieri, sinfonias de Beethoven e as Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos. Foi gravado um CD em comemoração aos 30 anos da OSUSP (2005) e a orquestra recebeu o Prêmio Carlos Gomes como “Melhor Orquestra do Ano”, (2006).

Entre 2009 e 2011 o grupo foi dirigido pela maestrina Ligia Amadio. A partir de 2012, devido a uma reformulação artística e administrativa, a orquestra passou a ser dirigida por um conselho, tendo os maestros Wagner Polistchuk e Ricardo Bologna como regentes principais, contando ainda com vários regentes convidados.

2.6 Eleazar de Carvalho

Ainda mais longo que o distanciamento com Mozart de Araújo foi com o Maestro Eleazar de Carvalho. Tal afastamento se iniciou ainda na década de 1950, por fatores desconhecidos e terminou em 1979 quando Tânia Guarnieri, filha do compositor e violinista, venceu o Concurso Jovens Solistas da Orquestra Sinfônica Estadual, a qual tinha como diretor artístico o Maestro Eleazar de Carvalho. Ele enviou, através de Tânia Guarnieri, um bilhete ao compositor selando a reconciliação, (figura 39), transcrito abaixo.

“Senhor Maestro Camargo Guarnieri, Foi muito significativo para mim, nesse estágio de minha vida profissional e física aprender mais uma lição de epigonomia e de como um simples gesto – mas, de alto espírito de superioridade – pode transformar todo um conceito (o meu modo de pensar e de agir), joeirando as causas que poderiam ter significados diferentes: este de consentir que sua filha fosse examinada por mim. Ela – pelo talento que possue (sic) – não necessitava (sic) ser submetida a testes. Esse gesto foi outro exemplo de simplicidade que comoveu a todos nós e a todos os que estão observando. Ela deve servir para iluminar os nossos caminhos: eu lhe estendo a mão e v., não se recuzando (sic) a aceitá-la. Mando-lhe o abraço de Eleazar. 8-3-79

(Bilhete enviado por Eleazar de Carvalho a Camargo Guarnieri através de Tânia Guarnieri fornecido pela viúva do compositor, Vera Sílvia Guarnieri)

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Figura 38 – Os maestros Eleazar de Carvalho e Camargo Guarnieri, na década de 1950

Eleazar havia trazido para o Festival de Inverno de Campos do Jordão, que foi fundado por Camargo Guarnieri em 1968, o modelo de Tanglewood, onde durante um período, jovens músicos podiam se aperfeiçoar com professores especializados. Até então o festival consistia em concertos na residência de inverno do Governador do Estado de São Paulo.

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Figura 39 – Bilhete enviado pelo Maestro Eleazar de Carvalho a Camargo Guarnieri em 1979

Eleazar de Carvalho (figura 40) nasceu em Igatú, no Ceará em 1912. Devido ao seu comportamento rebelde, seu pai o enviou para a Marinha, onde teve a oportunidade de conhecer uma banda de música, e até de tocar tuba. Foi transferido para a Banda dos Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro, pedindo baixa da Marinha em seguida para assumir o cargo de tubista na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1929. Concomitante ao seu trabalho na orquestra, também foi diretor musical no Casino da Urca.

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Figura 40 – Maestro Eleazar de Carvalho

A primeira oportunidade para reger uma orquestra foi por ocasião da estréia de sua ópera “O Descobrimento do Brasil”. Eleazar teve participação ativa na fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, sendo nomeado regente assistente, e tendo como regente titular o maestro húngaro Eugen Szenkar.

Em três ocasiões Eleazar foi regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira, entre 1951 a 1957, 1960 a 1962 e de 1966 a 1969. Ele também desenvolveu sólida carreira no exterior tendo sido diretor da Orquestra de Saint Louis e professor em Tanglewood. Dirigiu por vários anos o Festival de Inverno de Campos do Jordão e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a OSESP, de 1973 até o seu falecimento em 12 de setembro de 1996. Durante sua carreira regeu diversas orquestras nos Estados Unidos, Europa e Israel.

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2.7 O Legado de Camargo Guarnieri: sua didática, seus alunos, instituições educacionais e artísticas

Camargo Guarnieri foi o responsável pelo estabelecimento de uma escola de composição no Brasil ainda na década de 1930. Durante anos ele se ocupou da formação de vários compositores, muitos deles em atividade ainda hoje.

Além de seu estúdio em São Paulo (figura 42), onde, segundo sua viúva, lecionava todas as tardes, no decorrer de sua carreira trabalhou nas Universidades Federais de Goiás e Uberlândia, além do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, fundado em 1906 e que teve suas atividades encerradas em 2008 por conta de processo de desapropriação impetrado pela Prefeitura de São Paulo.

Como regente Guarnieri trabalhou em grupos sinfônicos como a da Radio Gazeta, a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, Coral Paulistano, e por último a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo.

Figura 41 – Camargo Guarnieri dirigindo ensaio de orquestra em 1943

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Como regente convidado trabalhou com as orquestras sinfônicas de Boston, Chicago e Milwaukee, nos Estados Unidos. Regeu também como convidado a Orquestra Filarmônica de São Paulo, as Sinfônicas de Porto Alegre, Brasileira e do Estado de São Paulo.

Figura 42 – Camargo Guarnieri em seu estúdio

Sobre sua produção, Camargo Guarnieri desautorizou edição ou publicação de qualquer obra sua anterior a 1929. Segundo ele, essas obras não eram condizentes com seu pensamento artístico. Ele escreveu 48 obras para piano solo, 4 para violão solo, 2 óperas, uma para canto e orquestra, uma trilha sonora, para o filme “Rebelião em Vila Rica”, 20 para música de câmara, nas mais variadas formações, uma obra para coro, 3 cantatas, uma missa, e 28 obras para orquestra, entre elas 2 aberturas (Concertante e Festiva) e 7 sinfonias.

Na década de 1980, Camargo Guarnieri seguiu à frente da OSUSP, tendo gravado com este grupo dois discos, em 1983 e 1984, sendo este último acompanhando a pianista Belkiss Carneiro de Mendonça.

Sua carreira de compositor e professor seguia em paralelo à carreira de regente. Dentre suas derradeiras obras encontram-se a sinfonia no. 7 de 1985, composta em doze dias, por encomenda do casal Max e Betty Feffer em comemoração aos 60 anos de casamento dos pais de Max Feffer, duas Ave Marias para os casamentos de suas filhas, também de 1985 e o 6º Concerto para Piano, terminada na manhã de seu aniversário de 80 anos, em 1987.

62

Em 1992 Camargo Guarnieri foi homenageado pela Escola de Comunicações e Artes da USP por ocasião de seu 85º aniversário. Mesmo com problemas de saúde, ele mantinha na medida do possível sua rotina de compromissos como compositor, professor e regente da Orquestra Sinfônica da USP. Ainda em 1992 Camargo Guarnieri realizou sua última viagem ao exterior, quando recebeu a Condecoração “Ordem de Sant’Iago da Espada”, no Grau de Comendador em Portugal. E menos de um mês antes de seu falecimento foi apontado vencedor do prêmio “Gabriela Mistral” outorgado pela Organização dos Estados Americanos, sendo designado o “Maior Músico das Três Américas”.

Ele veio a falecer em 13 de Janeiro de 1993 e foi velado no Teatro Municipal de São Paulo. Camargo Guarnieri se encontra sepultado junto a seus pais no Cemitério Gethsêmani, no bairro do Morumbi em São Paulo.

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3 A Abertura Concertante

3.1 Considerações iniciais

A escrita de Camargo Guarnieri representa um grande desafio, sobretudo àqueles não familiarizados com as peculiaridades da música brasileira. Da perspectiva da quantidade de elementos, não parece à princípio oferecer maiores problemas, mas o âmago da questão está em como esses elementos se transformam, sem, no entanto perder suas identidades iniciais. A questão fundamental é que, dependendo do caso, um mesmo elemento rítmico ou melódico pode ter funções diferentes, e até mesmo opostas.

Guarnieri em alguns momentos também sobrepõe tema 1 com tema 2, ou mesmo os apresenta ípsis litteris, mas com todo o acompanhamento transformado de notas longas para um caráter um pouco mais movido, trocando completamente a harmonia, sem no entanto trocar o andamento.

A influência do período em que viveu na França se dá, sobretudo pela textura, onde o compositor explora a troca de timbres sem que isso signifique uma ruptura do fio condutor da melodia.

É importante lembrar que na França Guarnieri estudou regência com François Rülhmann e composição com Charles Koechlin, que à época era o professor de composição do Conservatório de Paris, e que fora aluno de Gabriel Fauré e Jules Massenet. Koechlin conviveu com Maurice Ravel e Claude Debussy, vivendo, portanto um período de busca de novos rumos para a música francesa. Embora com grande catálogo de obras, Koechlin teve recentemente apenas um interesse maior por suas obras, sendo reconhecido em vida e logo após sua morte como um respeitado teórico.

Apesar do aprendizado na Europa, Guarnieri, segundo Verhaalen (2001), Mário de Andrade disse que não perdeu a sua “brasilidade”, isto é, sua fluência em compor temas que fossem genuinamente “brasileiros”. Mário de

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Andrade defendeu Guarnieri nos jornais acerca deste tópico, em resposta a ataques sofridos por parte de críticos da época.

A primeira parte da Abertura Concertante se inicia com um ataque de tímpanos, seguido em rítmica igual para todo o restante da orquestra. Nota- se que o compositor emprega temas de grande versatilidade, ousadia e variações de textura, imprimindo um caráter brasileiro, mas, sem se utilizar da rítmica formada por semicolcheia, colcheia e semicolcheia, uma das mais presentes na música brasileira.

Ainda na primeira parte, Guarnieri utiliza tercinas de mínimas como forma de “suavizar” a textura, criando frases onde os instrumentistas em questão ficam expostos, porém, com o evidente objetivo de se criar uma frase “lírica”.

A segunda parte, com indicação “Calmo” é a seção lenta da peça, onde Guarnieri também faz uso das tercinas de mínimas, com o mesmo objetivo de sua utilização na parte anterior, mas agora contando também com frases dos violinos em movimento descendente. Neste caso, o procedimento de se apresentar uma frase nas cordas e repeti-lo nas madeiras é substituído pelo uso de duas frases de funções similares, porém apresentando rítmica distinta.

A terceira parte, com indicação “I Movimento”, tem nos primeiros 101 compassos a repetição do que ocorrera na primeira parte. Os pontos que diferenciam ambos é a troca da harmonia, de algumas funções de acompanhamento das cordas e a construção de uma coda que não está presente na primeira parte.

3.2 Histórico

Segundo Verhaalen (2001), no ano de 1942, Guarnieri e outros compositores brasileiros receberam um convite da União Pan-Americana para, como hóspede do Departamento de Estado Norte-Americano, estudar a música

65 norte-americana durante seis meses. Tal convite não incluía recursos para custear a viagem.

Assim sendo, o compositor procurou a senhora Esther Mesquita, à época dirigente da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo solicitando seu apoio no sentido de custear alguns concertos de suas obras com a finalidade de levantar a quantia necessária para a viagem. A senhora Esther Mesquita, no entanto encomendou uma obra sinfônica a Guarnieri.

Assim nasceu a “Abertura Concertante”, peça esta executada diversas vezes nos Estados Unidos quando de sua estada por lá. Guarnieri partiu para aquele país em outubro de 1942 para retornar somente em maio do ano seguinte. Durante esta viagem ele regeu esta peça diversas vezes, inclusive, frente à Orquestra Sinfônica de Boston, a convite do Maestro Sergei Koussevitzky, que a dirigia à época.

3.3 Forma

Guarnieri emprega aqui o termo “Abertura”, não com o sentido histórico de uma peça instrumental, para servir de abertura a uma ópera ou oratório, como a Abertura Francesa ou Abertura Italiana, mas sim como uma peça instrumental independente, de um único movimento, uma peça instrumental para abrir um programa de concerto.

A Abertura Concertante foi escrita em forma ternária, A-B-A’, concebida em 389 compassos, e estruturada conforme os quadros a seguir:

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Parte I – A

160 compassos

Período Frase Semi-frase

1 a 30 1 a 14 1 a 3 1 1 4 a 9

10 a 14

15 a 30 15 a 23

2 24 a 30

31 a 76 31 a 51 31 a 36 2 1 37 a 51

52 a 76 52 a 62

2 63 a 69

70 a 76

77 a 160 77 a 120 77 a 86

87 a 93

94 a 102

103 a 109

110 a 120

121 a 160 121 a 131

2 131 a 134

135 a 148

CODA CODA 149 a 160

Quadro 1 - Esquema da parte A de Abertura Concertante

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Parte II – B

80 compassos

Período Frase Semi-frase

161 a 205 161 a 179 161 a 170 1 1 171 a 175

176 a 179

180 a 191 180 a 185 2 186 a 191

192 a 205 192 a 196

3 197 a 200

201 a 205

205 a 240 Introdução 205 e 206 2 1

207 a 212 207 e 208

2 209 a 212

213 a 223 213 a 215

3 216 a 219

220 a 223

Coda 224 a 235 (Coda 1)

236 a 240 (Coda 2)

Quadro 2 - Esquema da parte B de Abertura Concertante

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Parte III – A’

149 compassos

Período Frase Semi-frase

241 a 270 241 a 254 241 a 243 1 1 244 a 249

250 a 254

255 a 270 255 a 263

2 264 a 270

271 a 317 271 a 291 271 a 276 2 1 277 a 291

292 a 316 292 a 302

2 303 a 309

310 a 316

317 a 354 317 a 342 317 a 325

3 326 a 332 1 333 a 342

343 a 354 343 a 345

2 346 a 348

349 a 351

352 a 354

355 a 377 355 a 367 355 a 357 4 1 358 a 363

364 a 367 (ponte)

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368 a 377 368 a 371 2 372 a 374

375 a 377

CODA CODA 378 a 389

Quadro 3 - Esquema da parte C (ou A’) da Abertura Concertante

Segundo Zamacois, (1960) na forma ternária são possíveis diversas combinações de partes, porém a mais usual é a forma A-B-A, tendo por premissa que cada parte tenha sua própria estrutura e uma função específica. A parte “A” apresenta uma “exposição” que é a ideia principal, com final suspensivo ou conclusivo; a parte “B”, constituída de elementos próprios ou derivados de “A”; e finalmente a parte “C”, ou reexposição de “A”, contendo esta um final conclusivo.

3.4 Orquestração

A orquestração da Abertura Concertante foi concebida utilizando os instrumentos constantes da tabela a seguir:

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Instrumentação da Abertura Concertante

Família Instrumento

Cordas Violino I

Violino II

Viola

Violoncelo

Contrabaixo

Madeiras Flauta

Oboé

Clarinete em Si bemol

Fagote

Metais Trompete em Dó

Trompa em Fá

Percussão Tímpanos em Sol e Ré

Quadro 4 - Instrumentação de Abertura Concertante

Os instrumentos da família das madeiras e metais são dispostos aos pares, tal como numa orquestra clássica.

A sonoridade específica (forma de escrita que privilegia a mecânica) de cada instrumento ou de cada família de instrumentos é respeitada por Guarnieri, mesmo nos casos em que um tema é apresentado por famílias diferentes em momentos diferentes.

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3.4.1 As Cordas

As cordas têm sobre si tanto a responsabilidade de apresentar o tema, bem como de executar a segunda voz, servir de suporte harmônico e também de condução de temas, neste caso, todos tocando colcheias em pizzicato. Guarnieri também faz uso de surdinas.

Do início ao compasso 11 Guarnieri dobra as cordas, que tocam em oitavas. No compasso 12, entretanto ele coloca pausas nos contrabaixos e prossegue em oitavas com os outros instrumentos da família das cordas. O efeito obtido é uma discreta “leveza”, que faz com que a linha desenvolvida pelas madeiras tenha maior destaque.

Nos compassos seguintes o compositor volta a se utilizar de pausas para os contrabaixos com o mesmo objetivo, porém em alguns momentos concebendo para estes instrumentos os mesmos ataques executados pelos tímpanos.

Ele também escreve intervenções de caráter mais obscuro, utilizando violas e violoncelos. O resultado é uma sonoridade escura, embora discreta, pela ausência dos contrabaixos.

O uso de divisi1 é frequente, não só para aumentar a quantidade de notas de um determinado acorde, mas para tratar a família das cordas como se fossem duas famílias, cada uma com possibilidade de dois grupos de cinco vozes.

Na segunda parte as violas executam o tema principal de “B” enquanto o desencadeamento da melodia se dá nos violinos, em frases descendentes. No trecho iniciado no compasso 224 Guarnieri escreve para as violas, violoncelos e contrabaixos a mesma linha dos tímpanos, para dar a estes, maior destaque.

1 Divisi: Na partitura que é lida por mais de um instrumento, como acontece nos naipes de orquestra, indica que a partir do ponto demarcado devem ser executadas duas linhas separadas. Na orquestra, quando o divisi é indicado na parte, o músico que se senta mais próximos à área central do palco toca a voz mais grave, enquanto seu par, que se senta à mesma estante e mais aproxima da plateia, executa a superior. Algumas vezes, na orquestra, os divisi podem ser distribuídos por estantes. (DOURADO, Henrique Autran, 2004)

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3.4.2 As Madeiras

As madeiras reapresentam, num segundo momento, temas antes executados pelas cordas, mas sem perder, no entanto, a sua identidade timbrística. Além disso, as madeiras também têm um importante papel nas texturas, e executam intervenções isoladas, tanto em solos, como na dobra com outros instrumentos.

Guarnieri utiliza as madeiras também para montar pirâmides, isto é, entradas de diferentes instrumentos, em momentos diferentes e consecutivos, explorando assim toda a gama de texturas possíveis. Para isso faz associações entre oboés e fagotes, clarinetes e flautas, flautas e violinos, entre outras.

3.4.3 Os Metais

Nesta peça em especial ele oferece o desafio do lirismo para trompetes e trompas, únicos representantes desta família.

Trompas e trompetes têm tanto a execução de temas apresentados pelas cordas e madeiras, como acompanhamentos e importantes seções solo. Os timbres de trompetes e trompas são bastante explorados pelo compositor, que coloca indicações comuns, como “expressivo”, bem como outras pouco usuais, como: “rude”, “natural”, “lamentoso”. Ele também faz uso de surdinas.

A utilização de indicações pouco usuais, mas em português e contendo expressões de uso mais comum do que propriamente em música é um procedimento normal adotado nas obras de Guarnieri. Neste caso, ele utiliza “lamentoso” nas ocasiões em que ele escreve linhas para os metais que remetem ao campo e a temas de sua infância.

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3.4.4 A Percussão

Os únicos representantes da família da percussão são os tímpanos, que têm papel fundamental no início da peça e em trocas de textura e de seções. Guarnieri também faz uso de anotações pouco usuais como “tocar no bordo do tímpano” ou “abafar com um lenço”.

Guarnieri escreve linhas inteiras para os tímpanos, principalmente na função de agente principal na troca de seções. Os tímpanos têm, além da exigência técnica, notações com um “x” no lugar da cabeça de nota, e uma indicação para se tocar no “bordo” do instrumento, produzindo uma sonoridade seca, sem nota definida e mais ágil.

3.5 A Estrutura da Obra

A Abertura Concertante é dividida em três partes.

3.5.1 Primeira parte

A primeira parte de Abertura Concertante é composta por 5 temas, exemplificados a seguir:

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Tema 1:

Figura 43 – Cordas compassos 1 a 3 – Tema 1

Este tema será repetido 12 vezes durante a primeira parte, sendo que se apresenta em três formas distintas: escrita em três compassos, em seis compassos e nas duas últimas vezes, em dois compassos.

Figura 44 – Cordas compassos 1 a 3 – Tema 1 disposto em três compassos

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Figura 45 – Cordas compassos 124 a 129 – Tema 1 disposto em seis compassos

Figura 46 – Cordas compassos 142 e 143 – Fragmento do tema 1 disposto em dois compassos

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Tema 2:

Figura 47 – Cordas compassos 22 e 23– Tema 2

Este tema exerce a função de ligação entre o tema 1 e o tema 3, e tendo a característica principal de começar na última colcheia do tempo 1.

Tema 3:

Figura 48 – 1ª Trompa compassos 27 e 28 – Tema 3

Tema marcado pela predominância das semínimas destacadas. Ele é executado pela primeira vez pelas trompas no compasso 27.

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Tema 4:

Figura 49 – Clarinetes e Fagotes compasso 69 a 73 – Tema 4

Este tema é derivado do tema 3, porém se diferencia quanto à articulação e textura, bem como ao acréscimo de notas.

Tema 5:

Figura 50 – Trompas compassos 77 a 79 – Tema 5

Tema de natureza mais introspectiva e reflexiva tendo como características principais o uso de notas longas e mínimas dispostas em tercinas.

Quanto ao aspecto formal, esta parte, também chamada de “A” se inicia no primeiro compasso e termina no compasso 160. A peça tem seus dois primeiros compassos escritos em fórmula de compasso 2/2, precedida por uma indicação, “Enérgico e ritmado”, com indicação metronômica da mínima igual a 112, e se inicia com um ataque de semínima do tímpano em Sol, sendo que a semínima seguinte é respondida por toda a orquestra, também com a nota sol, à exceção da flauta, que se mantém em pausa, e com as cordas prosseguindo no contorno melódico, com quatro colcheias. Neste início observa-se a indicação de andamento “Enérgico” referente ao aspecto rítmico deste momento.

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O tema 1, em duas partes, é apresentado incisivamente pelas cordas, sendo que a segunda parte se inicia sempre pela nota “Fá”, em movimento descendente.

Figura 51 – Cordas compassos 1 a 3 - Tema 1

A semifrase seguinte é similar à anterior, exceto pelo fato de o desenho em colcheias ser disposto agora em quatro compassos. Na terceira semifrase a disposição das colcheias é postada em três compassos.

A segunda frase se inicia com o tema 1 sendo novamente exposto, desta vez pelas flautas, no compasso 15, com contraponto de oboés e apoio de clarinetes e fagotes. Na parte dos oboés há a indicação “com alegria”. A finalização deste tema consiste num ataque seco, de colcheia, nos sopros, tímpano, contrabaixos, violoncelos (com três notas), e violas (com duas notas), no compasso 22.

O compasso 24 contém uma linha em colcheias executada apenas por flauta e fagote, em oitavas paralelas, com quatro oitavas de diferença entre as vozes.

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Figura 52 – 1ª Flauta e 1º Fagote, compasso 24

O tema seguinte, apresentado no compasso 22 pelas cordas, é repetido pelos sopros no compasso 27, com contraponto de trompas e sustentação harmônica em notas longas, que é fornecida por clarinetes e fagotes.

O segundo período se inicia no compasso 31 com o tema 1, também com as cordas, sendo imediatamente respondidas no compasso 33 pelos sopros.

O compasso 42, diferentemente dos anteriores que eram em 2/2 ou 3/2, é escrito em 3/4, sendo que o compasso 43 volta a ser em 2/2. No compasso 47 Guarnieri transforma em tema, com as cordas, o mesmo contraponto apresentado pelas trompas no compasso 27.

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Figura 53 – Tema 3 apresentado pelas cordas, compasso 47

Figura 54 – Tema 3 apresentado como contraponto. 1ª Trompa compassos 27 e 28

O compasso 52 se inicia com o tema 1 com as cordas, que é repetido pelos sopros no compasso 55, sendo que neste compasso foi acrescentada uma apogiatura2 antes da primeira e terceira colcheias.

Figura 55 – Tema 1 acrescido de apogiatura executado pelas Madeiras nos compassos 55 a 58

2 Apogiatura é um termo musical utilizado para ornamentar uma melodia

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No compasso 59, o tema 1 é apresentado pelo trompete, sendo acompanhado por divisi de cordas (pizzicato3 em colcheias e nota longa). No compasso 61, o tema é apresentado pelo 1º oboé, sendo finalizado por pausa de colcheia e três colcheias, que será o primeiro elemento de uma pirâmide, seguido por flautas, clarinetes, oboés novamente, e por último, trompetes.

Figura 56 – Pirâmide escrita para os Sopros. Compassos 62 a 66

A finalização desta semifrase se dá com a maior parte da orquestra em notas longas e o curto movimento rítmico feito pelos fagotes, violoncelos e contrabaixos. A última semifrase deste segundo período termina no compasso 69 com um tema executado por clarinetes e fagotes. No compasso seguinte há uma anotação na parte dos tímpanos: “bater com a ‘baqueta’ no bordo do tímpano”, em rítmica similar à da semifrase iniciada um compasso antes.

O compasso 77 tem a predominância de notas longas, com um discreto acompanhamento de violas e violoncelos, onde Guarnieri faz uso das chamadas “terças paulistas”, que consiste em trechos inteiros em terças paralelas. Neste caso foram utilizadas “terças paulistas” em tercinas de mínimas imprimindo um caráter mais tênue e introspectivo ao trecho, que se

3 Pizzicato: Ato de pinçar ao invés de friccionar o arco.

82 desenvolve através da alteração das texturas. Este trecho foi escrito para as trompas.

Figura 57 – "Terças Paulistas", na verdade, terças compostas em tercinas de mínimas escritas para Trompas entre os compassos 78 e 81

No compasso 103, o autor sobrepõe o tema 1 nas flautas, com a rítmica de tercinas de mínimas em terças nos trompetes, sobre uma base de notas longas executada pelas cordas, sendo que em seguida, no compasso 106, os clarinetes repetem o tema 1.

Figura 58 – Sobreposição dos temas 1 e 5 dispostos para 1ª Flauta e 1º Trompete. Compassos 103 e 104

No compasso 114 inicia-se um solo dos tímpanos utilizando rítmica similar ao que apresentaram flautas e clarinetes, indicando a finalização de uma frase, com um último ataque que já é a primeira nota da frase seguinte. Os tímpanos são seguidos por toda a orquestra, na segunda semínima, iniciando novamente a apresentação do tema 1.

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Figura 59 – Fragmento do tema 1 exposto pelos Tímpanos. Compasso 114

Para finalizar a parte A, Guarnieri mistura elementos do tema 1, a movimentação em tercinas de mínimas e a sensação de movimento causada pelos tímpanos, e com uma nota longa da primeira trompa, faz a ligação com a parte B.

Figura 60 – Fragmento do tema 1 exposto pelas cordas. Compassos 142 e 143

Figura 61 – Ponte ligando as partes A e B executada pelas Trompas. Compassos 149 a 158

Com relação ao aspecto motívico, o tema 1 é composto por pausa de semínima, semínima e 4 colcheias, que, executado em dinâmica fortíssimo pelas cordas, num andamento próximo a 112 mínimas por minuto, produz a sensação de extremo movimento.

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Já nos acompanhamentos a rítmica mais comum é a movimentação de colcheias ascendentes, em geral executada pelas madeiras.

Figura 62 – Acompanhamento executado pela 1ª Flauta. Compassos 49 a 51

Em acompanhamentos promovidos pelas cordas, há o uso de divisi, onde uma voz executa notas longas e a outra voz, colcheias alternadas com pausas de colcheias.

Figura 63 – Acompanhamento executado pelas cordas. Compassos 59 e 60

Os tímpanos fazem um pequeno apoio para a troca do tema 1 das madeiras, para o acompanhamento das cordas e o solo de 1º trompete, no compasso 58.

Figura 64 – Tímpanos compasso 58

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O motivo formado por pausa de colcheia e 11 colcheias é escrito apenas para madeiras e trompetes.

Figura 65 – Motivo executado por oboés e fagotes. Compasso 48

O tema 4 da primeira parte é executado por clarinetes e fagotes, na anacruse do compasso 69, iniciando-se na mesma posição, mas no compasso seguinte (última semínima), rítmica similar à primeira parte do tema 1, pelo tímpano, sob a indicação de “tocar no bordo do instrumento”.

Figura 66 – Clarinetes e Fagotes acompanhados pelos tímpanos tocados "... no bordo do tímpano", compassos 69 e 71

O tema 5 é totalmente diferente dos anteriores quanto à sua textura. Nele Guarnieri antecipa a textura que predominará na segunda parte, utilizando intervalos de décimas e tercinas de mínimas.

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Figura 67 – Tema 5 apresentado pelas Trompas. Compassos 77 a 79

3.5.2 Segunda Parte

A segunda parte, chamada de “B”, compreende o trecho entre os compassos 161 e 240. A indicação de andamento é Semínima igual a 72 bpm ao lado da indicação “Calmo”. Ela se inicia com as cordas, com todos utilizando surdina.

São características desta parte a leveza das texturas e introspecção, demonstradas pelo compositor na escolha dos instrumentos e exploração das capacidades dos mesmos e a presença de tercinas e notas mais longas do que apresentadas na primeira parte. Esta parte utiliza fórmula de compasso 4/4, diferentemente do que fora adotado na primeira parte, onde as mais utilizadas eram 3/2 e 2/2.

A parte B é composta pelos 3 temas apresentados a seguir:

Tema 1:

Figura 68 – Tema 1 da Parte B. Violas compassos 161 a 164

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Tema 2:

Figura 69 – Tema 2. Violinos compassos 161 a 164

Tema 3:

Figura 70 – Tema 3. Flautas, compassos 170 a 174

Quanto à apresentação dos temas, no compasso 161 (figura 71), as violas apresentam tercinas de mínimas, e na anacruse do compasso 162 os primeiros e segundos violinos em divisi iniciam o tema 1 da segunda parte. Violoncelos entram no compasso 168 e contrabaixos no compasso 170.

Figura 71 – Início da Parte B. Violinos e Violas compassos 161 a 164

De forma similar ao processo composicional da parte A (primeira parte), o tema 1 da parte B é apresentado por cordas e em seguida por flautas

88 e clarinetes. Neste momento, o acompanhamento passa de Violoncelos e Contrabaixos para trompetes e trompas, fazendo linhas distintas entre si. Também ocorrem pequenas e breves intervenções de fagotes, e oboés (figura 72).

Figura 72 – Madeiras compassos 170 a 174

No compasso 198 há a indicação para retirada de surdina para os primeiros violinos (figura 73). A mesma indicação consta no compasso 202 para segundos violinos e no compasso 216 para violas, violoncelos e contrabaixos.

Figura 73 – Violinos I compassos 197 e 198

Na anacruse do compasso anterior se inicia o solo de primeira trompa, que no compasso 219 entra em nota longa, e tendo início o solo de primeiro fagote, contendo a indicação de “lamentoso”.

No compasso 224 violas, violoncelos e contrabaixos (figura 74), têm um acompanhamento em semínimas, igual aos tímpanos, que contém a indicação “abafando com um lenço”.

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Figura 74 – Violas, Violoncelos e Contrabaixos compassos 224 a 226

Figura 75 – Tímpanos compassos 224 a 226

No compasso 235, para os tímpanos consta a indicação “tira o lenço” e no compasso seguinte há uma condução em semicolcheias, com crescendo, enquanto as cordas têm dinâmica inversa, de decrescendo, claramente em movimentação para troca de seção.

Figura 76 – Ponte para troca da Parte B para a Parte C. Tímpanos compassos 235 a 240

Considerando-se agora o aspecto motívico, o tema 1 tem constituição similar ao do tema 5 da parte A (Vide figura 50), cuja construção é baseada em tercinas de mínimas.

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Figura 77 – Violinos compassos 162 a 170

O tema 2 é formado basicamente por semínimas, semínimas pontuadas e colcheias (figura 78).

Figura 78 – 1º Clarinete e 1º Fagote compassos 179 a 182

Para se atingir o ápice da parte B, Guarnieri utiliza escalas executadas em oitavas, por flautas e oboés, junto a clarinetes em abertura de oitavas entre si (figura 79).

Figura 79 – Flautas, Oboés e Clarinetes compasso 205

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Para indicar movimento dentro da ponte para a Parte C, Guarnieri utiliza os tímpanos numa rítmica não utilizada anteriormente na Parte B contendo semicolcheias (figura 80).

Figura 80 – Tímpanos compassos 235 a 241

3.5.3 Terceira Parte

Esta parte se inicia no compasso 241 e vai até o final, no compasso 389 e utiliza os mesmos temas da parte A. A terceira e última parte, “C” ou “A’” é idêntico à parte A do compasso 241 até o compasso 332, onde há uma barra dupla.

Figura 81 – Ponte ligando as Partes B e C. Tímpanos e Cordas compassos 235 a 241

Observa-se aqui que a partir do compasso 333, os sopros continuam idênticos à primeira parte, mas há alteração nos primeiros violinos que

92 sustentam por 11 compassos as notas Si bemol 4 e 5, em divisi, conforme pode-se comparar nas figuras apresentadas a seguir:

Figura 82 – Primeiros violinos e sopros, compasso 333 e 334

Figura 83 – Sopros e Tímpanos compasso 93 a 95

93

Figura 84 – Sopros, Tímpanos e Primeiros Violinos, compassos 333 a 335

No compasso 343, o acompanhamento de cordas, que no compasso 103 era de notas longas, aqui tem, segundos violinos, violas e violoncelos, executando um ostinato em três compassos, sendo que o primeiro e o terceiro contém 4 semínimas e o segundo contém 4 colcheias e 2 semínimas, enquanto os contrabaixos têm 3 semibreves ligadas, trocando a cada três compassos de nota, acompanhando a progressão do ostinato, utilizando as notas Fá1, Mi bemol1, Ré1 e Dó1. Neste trecho há também a indicação “Ponticello” e segundos violinos, violas e violoncelos são executados em divisi, sendo que a outra parte, além da descrita anteriormente executa notas longas.

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Figura 85 – Compassos 103 e 104

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Figura 86 – Compassos 343 e 344

No compasso 352 ocorre a primeira diferença das madeiras entre a primeira e terceira partes: na parte do clarinete, no seu equivalente na parte A (primeira), compasso 112, após a pausa de semínima, há um Dó#5, primeiramente uma semínima, seguida por 3 colcheias e uma colcheia grafada na nota Ré5. No compasso 352, este desenho é idêntico, exceto pelo fato de este Dó#5 dar lugar a um Dó5 natural. Outra diferença é que no compasso 112 a parte está escrita apenas para o 1º Clarinete enquanto que no compasso 352 está escrito para os dois.

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Figura 87 – 1º Clarinete compassos 112 e 113

Figura 88 – Clarinetes compasso 352

No compasso 355 há a sobreposição do tema 1 nas cordas e do tema em tercinas de mínimas nas madeiras, acompanhados por notas longas de trompas e intervenções em colcheias dos trompetes.

O tema 1 é apresentado pelas madeiras no compasso 368, tendo como apoio inicial, uma semínima, antes executada apenas pelos tímpanos, agora executada por cordas, tímpanos, trompetes e trompas.

Figura 89 – Tímpanos compassos 352 a 355

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Figura 90 – Compasso 368

Nos compassos 372 e 375 as cordas executam a primeira metade do tema 1, sendo imitados por madeiras, da mesma forma nos compassos 378 e 380, sendo que neste caso tal acontecimento é precedido por quintinas de semicolcheias.

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Figura 91 – Cordas compassos 372 a 375

Figura 92 – Sopros compassos 377 a 379

Toda a orquestra ataca uma semínima no compasso 388, sendo que todos entram em pausa a seguir, com exceção dos tímpanos, que têm um solo, seguido de um novo ataque no compasso 389 finalizando assim, a Abertura Concertante (figura 93).

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Figura 93 – Compassos 388 e 389

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Devido à semelhança que Guarnieri imprimiu às partes A e C, as diferenças de motivos em geral se encontram nos acompanhamentos, como nas partes de violino II, viola e violoncelo, como por exemplo, 344 e 354 (figura 94).

Figura 94 – Cordas compassos 343 e 344

Outro aspecto adotado na Parte C é o da sobreposição de temas (figura 95.

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Figura 95 – Compassos 355 a 357

No compasso 369 Guarnieri utiliza uma configuração rítmica para cordas que visa o apoio para o tema 1 apresentado pelas madeiras.

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Figura 96 – Cordas compassos 369 a 371

E uma variação deste acompanhamento pode ser notada no compasso 378 nas Violas, Violoncelos e Contrabaixos (figura 97).

Figura 97 – Cordas compassos 378 a 380

No penúltimo compasso, Guarnieri ainda escreve um solo para tímpanos, de caráter dramático.

Figura 98 – Tímpanos compassos 388 e 389

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4 Sugestões de Interpretação

A Abertura Concertante é uma peça que demanda domínio do tempo e das frequentes trocas de fórmula de compasso, em sua maioria 2/2 e 3/2, por parte do regente. Num segundo plano, as diferentes texturas requerem também atenção, no sentido de prospectar as intenções, nem sempre nítidas, do compositor. Não é possível apreender tais características sem um estudo detido da obra, uma vez que Guarnieri fazia em cada composição uso de elementos distintos, nem sempre detectáveis em uma primeira leitura.

Esta é uma obra que data de dois anos após o retorno de Guarnieri de seus estudos em Paris, e de oito anos antes da publicação da “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, onde condena veementemente a prática da técnica do Dodecafonismo por compositores ainda sem formação artística fundamentada. Assim a Abertura Concertante foi concebida numa época em que Guarnieri tinha ainda recente os ensinamentos obtidos na Europa e fora ainda do campo de influência de sua posição sobre os rumos da música brasileira.

Neste capítulo serão apresentadas sugestões de interpretação desta partitura para estudantes e pesquisadores na área da regência orquestral e da música brasileira.

4.1 Primeira parte

Conforme descrito no quadro 1, na página 66, a primeira parte, a parte “A” de Abertura Concertante, compreende os compassos 1 a 160.

Com a indicação “Enérgico e Ritmado” (figura 99), Guarnieri imprime à peça a necessidade de precisão rítmica. O primeiro ataque da peça é uma semínima, produzida pelo tímpano, seguido por toda a orquestra, que ataca a segunda semínima. Assim sendo, a indicação para início da peça, deve ser direcionada a todos e não exclusivamente ao timpanista.

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Figura 99 – Tutti compassos 1 a 3

Ainda no primeiro compasso, o segundo tempo é executado apenas por cordas, o que demanda a atenção do regente para este naipe. Esta atenção se faz necessária ainda no compasso 3, onde a fórmula de compasso passa de 2/2 para 3/2, e contém pausa de semínima e uma sequência de colcheias, em oitavas paralelas, para que sejam executadas com vigor e clareza.

Do compasso 6 até o compasso 9 (figura 100), ocorre um trecho semelhante ao descrito anteriormente, onde o efeito dramático da frase se dá pela movimentação em oitavas paralelas das cordas. A função do regente neste trecho basicamente é o de dar continuidade à pulsação e observar rigorosamente este naipe para que não haja trocas de notas inadvertidamente.

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Figura 100 – Cordas compassos 6 a 10

Na reexposição do tema, (compasso 10) o início é igual ao compasso 1, sendo que os tímpanos ainda executam uma anacruse, que necessita ser indicada pelo regente, bem como a entrada das madeiras logo em seguida. A indicação também deve ser clara ao final deste trecho, que compreende o ataque da última nota do trecho por todos os instrumentos, à exceção das flautas, no compasso 15. O tema 1, apresentado por flautas, deve ser indicado também, com gesto suave, uma vez que tem início um acompanhamento em pizzicato pelos violinos.

No compasso 17 deve-se indicar de forma igualmente suave a entrada dos oboés, seguidos pelos fagotes. O mesmo se repete no compasso 19, onde a primeira entrada é para flautas e a segunda para clarinetes, e no compasso seguinte para os oboés, finalizando a frase no compasso 22 (figura 101). É importante salientar que a grande dificuldade deste trecho encontra-se no fato de todas as entradas das madeiras serem muito próximas, exigindo do regente grande precisão em seus gestos.

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Figura 101 – Sopros compassos 19 a 22

Ainda no compasso 22, deve-se indicar a entrada dos violinos, e no compasso 24, nota longa nos clarinetes e trompas, e movimentação por colcheias para flautas e fagotes, imediatamente após uma pausa de semínima. Tanto a entrada para clarinetes e trompas, como a seguinte, para flautas e fagotes, podem ser executadas por uma das mãos.

O compasso 29 (figura 102) apresenta movimentação em colcheias nas flautas e oboés, porém a parte mais evidente neste trecho são as trompas. No compasso 32 ocorre o mesmo contorno melódico, mas agora com dobras de fagotes e clarinetes, com oboés e flautas ainda com colcheias. Esta configuração melódica, na qual clarinetes e fagotes vêm apoiar a frase das trompas, faz com que o trecho fique com sonoridade “escura” e mais pesada do que a anterior. Em ensaios o regente deve se atentar a este fato, pois uma das possibilidades é o do atraso do tempo nos compassos 33 e 34 (figura 103), em relação aos compassos 29 e 30.

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Figura 102 – Sopros compassos 29 a 31

Figura 103 – Sopros compassos 33 a 34

O compasso 42 (figura 104) apresenta alteração da fórmula de compasso, passando de 2/2 para 3/4, com indicação de mínima igual à semínima, o que se deduz tratar de uma indicação de três tempos por parte do regente. Contudo, nas três gravações estudadas para a produção deste trabalho este compasso foi regido como se a mínima fosse igual à mínima pontuada, ou seja, contendo a indicação de um único tempo subdividido em três partes, no caso, três semínimas (um compasso unáriocomposto).

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Figura 104 – Tutti compassos 42 e 43

O compasso 48 (figura 106) apresenta o mesmo contorno melódico do compasso 36 (figura 105), porém o compositor altera a textura do trecho, fazendo com que a do compasso 36 seja mais pesada, com a presença das madeiras e das trompas. Já em sua repetição no compasso 48, nota-se que o trecho é executado apenas por oboés e fagotes, em uníssono.

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Figura 105 – Tutti compassos 36 e 37

Figura 106 – Tutti compassos 48 e 49

A partir do compasso 59 (figura 107) Guarnieri utiliza a orquestra considerando dois naipes distintos de cordas, através do divisi, onde uma parte do grupo executa notas longas e a outra parte acompanhamento em colcheias, dando suporte ao tema principal executado pelo primeiro trompete. Neste caso, a entrada para o trompete é essencial, porém a correta indicação de tempo

110 para as cordas é muito importante, uma vez que qualquer oscilação de tempo pode afetar a inflexão da frase do primeiro trompete.

Figura 107 – Cordas compassos 59 e 60

Nos compassos 63 e 64 (figura 108) há uma pirâmide, onde a indicação de entrada para cada instrumento deve ser individual, na seguinte ordem: Flautas, clarinetes, oboés e por último os trompetes.

Figura 108 – Sopros compassos 63 a 65

Neste caso a dificuldade principal está no gerenciamento de dois procedimentos: as indicações de entradas para a pirâmide e as trocas de fórmula de compasso, que ocorrem a seguir. Imediatamente ao término da pirâmide, no compasso 67 (figura 109), o tema 1 é apresentado novamente por

111 violoncelos, contrabaixos e fagotes, mas devido à região em que os instrumentos executam este tema, apesar de estarem em dinâmica “ff” o mesmo fica em segundo plano, apesar de estar concomitante com as notas longas.

Figura 109 – Tutti compassos 66 a 69

Nos compassos 69 e 73 (figura 110) as trompas executam as mesmas notas, salvo um “Lá” no compasso 69, que no compasso 73 é substituído por um “Lá bemol”. Na primeira vez consta a indicação “rude” e com indicação de “boucheè” 4 abaixo da nota e na segunda, a indicação “natural”. Tal troca de caráter, operada pela troca de timbre, deve ser apontada pelo regente, uma vez que tais indicações podem passar despercebidas aos instrumentistas ou os mesmos não terem a completa certeza do que espera o regente.

4 Boucheè: Segundo Randel (1986), trata-se da técnica utilizada por trompistas para troca de timbre das notas, e que consiste no total fechamento da saída de ar pela campana, e este, ao entrar em contato com as paredes dos tubos, produz efeito característico. Tal efeito pode ser obtido com uso de surdina específica.

112

Figura 110 – Tutti compassos 69 e 70

113

Figura 111 – Tutti compassos 73 e 74

A indicação de “rude” pode ser um movimento mais enérgico com a mão esquerda, apontando para o centro, ao passo que o de “natural”, um gesto mais suave. Neste mesmo viés em torno da palavra “rude”, pode-se traçar um paralelo com o que ocorre nos tímpanos no compasso 70 (figura 110): a indicação de “bater com a ‘baqueta’ no bordo do tímpano”, expressão esta que não é corriqueira ou usual para partes destes instrumentos. Porém tal sonoridade dá continuidade à ideia de rudeza expressa pelas trompas.

A partir do compasso 77 (figura 112), há uma troca de textura, apesar do andamento não ser alterado. Isso se dá pela evidência da linha melódica contendo as chamadas “terças paulistas” em tercinas de mínimas.

114

Aqui o regente se vê em uma dupla função: a de fazer fluir a frase que é nitidamente mais suave e zelar para que as intervenções que ocorrem a seguir permaneçam dentro da marcação correta do tempo, uma vez que a execução de tercinas em mínimas pode se mostrar imprecisa da perspectiva do ritmo.

Figura 112 – Tutti compassos 77 e 78

No compasso 86 (figura 113), há a indicação para os clarinetes de “dolcíssimo”, o que por si só não indica mudança de tempo, porém nas gravações analisadas é possível notar uma leve diminuição do andamento, que volta ao tempo I no compasso 114, onde tem início uma pequena “ponte” para a retomada do tema 1, executada pelos tímpanos, que, para ter êxito em sua função, necessita estar rigorosamente dentro da marcação de tempo, uma vez que é uma movimentação em colcheias e em crescendo.

Figura 113 – Clarinete compassos 86 a 94

115

Figura 114 – Tutti compasso 114

Entre os compassos 142 e 149 (figura 115) há um pequeno episódio de pergunta e resposta cujos protagonistas são tímpanos e cordas, e que tem a função de ligar a melodia do tema 1 com o trecho que finaliza a seção “A”.

Neste caso, o regente necessita indicar as entradas para cordas e tímpanos, bem como apontar o momento de pausa dos tímpanos, onde há um ataque das cordas.

Figura 115 – Tutti 142 a 149

116

O instrumento escolhido para executar essa troca de seção é a trompa, que com a aplicação de notas longas, o ouvinte tem a impressão de que a melodia está caminhando para algo mais leve, tênue e suave. Tal evento envolvendo as trompas ocorre desde o compasso 149 (figura 116) e se finda com uma nota longa que abrange 4 compassos, e que tem seu final já no primeiro compasso da segunda parte, no compasso 161 (figura 117).

Figura 116 – Trompas compassos 149 a 158

Toda esta última frase de trompas tem intervenções isoladas de fagotes, clarinetes e tímpanos, que demandam indicação de início por parte do regente, uma vez que a conexão dessas intervenções com a frase das trompas não é nitidamente orgânica.

Figura 117 – Clarinetes, fagotes, trompas, trompetes e tímpanos compassos 151 a 160

117

4.2 Segunda Parte

A segunda parte se inicia no compasso 161, onde as violas executam, com surdinas, a mesma rítmica que o compositor utilizou para apresentar as terças paulistas, tercinas de mínimas, nos dois primeiros compassos, passando em seguida a utilizar uma linha baseada em colcheias como acompanhamento para o solo executado pelos violinos a partir do compasso 162 (figura 118).

Figura 118 – Violinos e violas compassos 161 a 163

Neste caso, embora a rítmica seja idêntica à condução das trompas no final da primeira parte, o caráter se transforma, uma vez que o andamento torna-se mais lento, indo de 112 mínimas por minuto para 72 semínimas por minuto (equivalente a 36 bpm). No compasso 161, o regente necessita indicar a entrada para as violas, e, em seguida, no terceiro tempo, indicar a finalização da frase executada pela primeira trompa.

Um novo processo melódico começa no quarto tempo do compasso 162, com os violinos em divisi, com surdina, em pianíssimos, e arcadas em direção ao talão5, que requer do regente muita tranquilidade e clareza do gestual.

No compasso 170 (figura 119) se iniciam as intervenções de sopros, sendo que a primeira é da primeira trompa, em conjunto com violas e violoncelos. No mesmo compasso, no quarto tempo, são as flautas e clarinetes, e no compasso seguinte os trompetes com surdina.

5 Talão: Parte inferior do arco de instrumentos de cordas friccionadas (RANDEL, 1986).

118

Figura 119 – Tutti compassos 170 a 172

No caso dos trompetes, por estarem com indicação “expressivo”, dinâmica “p”, com surdina, com decrescendo em direção à dinâmica “pp”, sugere-se ao regente que faça uma indicação de apoio visando o auxílio dos instrumentistas em relação ao apoio da coluna de ar, uma vez que todos os fatores descritos acima exigem dos trompetistas demasiado controle desta coluna.

No compasso 174 o compositor elabora um timbre não explorado até então, que é a dobra de oboés com segundos violinos. Este efeito se dá a partir do compasso 175, já que a anacruse é executada apenas pelos oboés. Tal entrada deve ser indicada com absoluta segurança, porque, além de exposta, ela se inicia na segunda metade do terceiro tempo do compasso 174, e assim pode conter as indicações referentes à oboés e segundos violinos separadamente (figuras 120 e 121).

119

Figura 120 – Oboés compassos 174 e 175 Figura 121 – Segundos violinos 174 e 175

No compasso 182 (figura 122) este procedimento se repete, porém com a substituição dos segundos violinos por violas.

Figura 122 – Tutti compassos 182 e 183

As trompas atuam no compasso 190 contando somente com apoio de violas, violoncelos e contrabaixos, numa entrada que se inicia na segunda metade do primeiro tempo. Tal entrada, por ser fora de um ponto de apoio comum, necessita da atenção do regente para que ambos os instrumentistas iniciem juntos a frase (figura 123).

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Figura 123 – Trompas e cordas compassos 190 e 191

A seção iniciada no compasso 192 possui um grande apoio harmônico escrito para segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, com intervenções isoladas de primeiros violinos, sopros e tímpanos. Basicamente estas intervenções possuem quatro tipos de articulação inicial: marcato, tenuto em dinâmica piano, dinâmica piano e dinâmica piano seguido de crescendo. Cada uma dessas indicações deve ser diferenciada pelo regente, uma vez que o instrumentista pode se guiar não pelo que está escrito, mas pelo que outros instrumentistas tocam, e a partir desta audição, ajustar e executar a articulação diferentemente da escrita.

Figura 124 – Trompas compasso 194 Figura 125 – Fagotes compasso 203

Figura 126 – Trompas compasso 199 Figura 127– Trompetes compasso 198

121

A seção iniciada na anacruse do compasso 206 (figura 128) demanda indicação para entrada de flautas, oboés e clarinetes no último tempo do compasso 205 e simultaneamente de madeiras, violas e violoncelos em marcato, rulo com crescendo nos tímpanos e condução de violinos em colcheias descendentes. Todos esses eventos devem ser indicados.

Figura 128 – Tutti compassos 205 a 207

Esta seção é ligada por um solo de primeira trompa entre os compassos 216 e 219 (figura 129), a um solo de fagote, que se inicia na anacruse do compasso 220 e termina numa nota longa no compasso 236. Concomitante a esta finalização, a ponte que conduz à terceira parte se inicia, com apoio harmônico de segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos e condução por parte dos tímpanos.

122

Figura 129 – 1ª Trompa compassos 215 a 219

Figura 130 – 1º Fagote compassos 219 a 224

Figura 131 – Tímpanos compassos 235 a 241

No caso de trompa e fagote, por se tratarem de solos, a atenção do regente deve estar voltada para dois aspectos, o andamento dos solistas e as intervenções de cordas e tímpanos. Outro aspecto que demanda atenção é em relação ao accelerando indicado para os tímpanos entre compassos 235 a 241 (figura 131) que é a ponte de ligação entre a segunda e terceira partes.

123

4.3 Terceira Parte

A terceira parte compreende o trecho entre os compassos 241 e 389 e conforme mencionado no capítulo anterior, os 101 primeiros compassos desta Abertura Concertante são repetidos no início da terceira parte, ou seja, entre os compassos 241 e 342.

A partir do compasso 343 (figura 133), embora com escrita para sopros idêntica ao compasso 103 (figura 132), a parte das cordas, porém apresenta nova função. Anteriormente foi apresentado um acompanhamento somente em blocos harmônicos, mas nesta terceira parte, este trecho correspondente tem, além do apoio harmônico por parte da metade do naipe das cordas, também uma movimentação rítmica, por doze compassos em ostinato, agrupados em quatro blocos de três compassos cada, sendo o primeiro e o terceiro compassos de cada bloco composto por quatro semínimas e o segundo composto por quatro colcheias e duas semínimas.

Figura 132 – Tutti compassos 103 a 105 Figura 133 – Tutti compassos 343 a 345

124

A atenção do regente a partir do compasso 343 deve ser dividida entre as indicações de inflexões da frase executada pelo primeiro trompete e as intervenções de madeiras, que ocorrem de duas formas: a primeira, alternando entre si, flautas, oboés e clarinetes, em desenho contendo pausa de semínima, semínima e quatro colcheias versus fagotes, que executam um desenho indicativo de final de frase, composto de quatro colcheias iniciadas no quarto tempo de compasso (figuras 134 e 135).

Figura 134 – Madeiras compassos 343 a 349

Figura 135 – 1º Fagote compassos 345 a 346

Por se tratar de quatro eventos simultâneos e que, mesmo havendo uma hierarquia entre as frases, a junção de todas depende essencialmente do regente, uma vez que a rítmica das madeiras é de natureza diferente daquela executada pelo trompete (figura 136). Por isso, faz-se necessária a indicação, sobretudo, na execução das mínimas em tercinas por parte do trompete, bem como a terminação das notas longas.

Figura 136 – 1º Trompete compassos 346 a 348

O compasso 355 (figura 137) apresenta violinos com uma pausa de semínima primeiro tempo, simultâneo a pausa de mínima em tercina para flautas e clarinetes, o que representa um local que demanda certo grau de

125 atenção por parte do regente, uma vez que faz-se necessária a sua indicação para ambas as entradas. A sugestão neste caso é a de se indicar a entrada de violinos com a mão esquerda e de flautas e clarinetes com a mão direita.

Figura 137 – Tutti compasso 355

No compasso 377, tem início a última frase da música, em uma anacruse para o compasso 378 (figura 138). Este compasso possui um ataque de semínima no primeiro tempo e no segundo, também com semínima, trata-se de uma anacruse para a retomada da frase, porém com o peso de um tempo forte, o que demanda por parte do regente uma indicação incisiva para os sopros.

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Figura 138 – Sopros compassos 377 e 378

O início do compasso 388 tem o ataque de toda a orquestra no valor de uma semínima, porém uma pausa no restante do compasso, dá a oportunidade para tímpanos executarem, como breve cadência final um trecho do tema 1 (figura 139).

Figura 139 – Tutti compassos 388 a 389

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A sugestão neste caso é que a entrada seja indicada a todos, e com a mão esquerda seja executada a condução da frase dos tímpanos, culminando ao final, que é a última nota para toda a orquestra, com um ataque seco e abrupto no primeiro tempo do compasso 389.

128

Considerações finais

O estudo de obras de Camargo Guarnieri mostra grande senso da estética nacionalista brasileira. A influência de Mário de Andrade, que foi um dos principais nomes na busca pela identidade nacional nas artes, está presente muito mais nos caminhos adotados por Guarnieri do que nas obras em si.

Tais caminhos são diferentes dos seguidos por Carlos Gomes, por exemplo, que foi para a Itália estudar, e voltou ao Brasil com a técnica europeia tão profundamente impregnada em suas obras, que muitos críticos de sua época o apontavam como compositor de música europeia e não de música brasileira.

Segundo a viúva de Guarnieri, Vera Silvia Guarnieri, compor, para ele era como respirar. Em mais de uma entrevista Guarnieri transparece o aspecto “natural” com que exercia o ofício da composição. Ainda segundo a própria Vera Silvia Guarnieri, ele procurava compor em seu estúdio, preservando assim, o ambiente familiar. Todavia, em algumas ocasiões era impossível não levar trabalho para casa. E nessas ocasiões compunha até mesmo com seus filhos à sua volta, demandando atenção paterna. Metódico, Guarnieri almoçava e jantava todos os dias em casa nos mesmos horários.

Da perspectiva dos desafios técnicos para se executar a Abertura Concertante, rítmica e textura são os mais evidentes, à medida que a precisão rítmica é uma exigência da partitura e a textura pode transformar completamente uma interpretação com sutis inferências do regente.

A Abertura Concertante é uma obra complexa que demanda grande conhecimento da linguagem do compositor por parte do regente. Isso se mostra inclusive na segunda seção da peça, onde o compositor utiliza as chamadas “terças paulistas”. Outra questão refere-se à terceira parte, onde os 91 primeiros compassos são idênticos aos da primeira parte e faz-se mais interessante executar ambos os trechos diferentes um do outro.

129

As gravações analisadas e usadas como referência foram realizadas pela Orquestra Sinfônica da USP, sob a regência do Maestro Ronaldo Bologna (2001), pela Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, sob a regência do Maestro Luiz Gustavo Petri (2007) e pela Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense sob a regência da Maestrina Beatriz de Lucca (2013). A partitura utilizada para análise foi a editada pela Orquestra de Câmara da USP.

Dentre as vertentes da obra de Camargo Guarnieri, a da obra sinfônica talvez seja a que mais se tem a explorar ainda. Em uma das entrevistas a senhora Vera Silvia Guarnieri disse que uma pessoa, logo após o falecimento de Camargo Guarnieri se ofereceu para limpar as marcas de nanquim deixadas pelo compositor ao longo dos anos. Ela respondeu dizendo que cada marca daquela tinha uma história, e que, portanto, ficaria ali, naquele mesmo lugar. E este é apenas um pequeno detalhe, dentre tantos outros.

Este trabalho começou da pergunta: Por que Camargo Guarnieri não tem o reconhecimento a altura de sua obra? E optou-se pelo caminho de uma análise seguida de uma sugestão de interpretação, como forma de se dominar a linguagem da música brasileira, tanto quanto os clássicos europeus.

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Referências

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132 Gravações:

GUARNIERI, M. C. Abertura Concertante https://www.youtube.com/watch?v=jtrjUVzMvCw

Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo. Regente: Ronaldo Bologna (2001) https://www.youtube.com/watch?v=BNasgTyk4wA

Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto. Regente: Luis Gustavo Petri (2007) https://www.youtube.com/watch?v=v-3Q1wqj9Y0

Orquestra Sinfônica da Universidade Federal Fluminense. Regente: Beatriz de Luca (2013)

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Anexo 1 - Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil (1950)

Considerando as minhas grandes responsabilidades como compositor brasileiro, diante de meu povo e das novas gerações de criadores na arte musical, e profundamente preocupado com a orientação atual da música dos jovens compositores que, influenciados por ideias errôneas, se filiam ao Dodecafonismo – corrente formalista que leva à degenerescência do caráter nacional de nossa música – tomei a resolução de escrever esta carta aos músicos e críticos do Brasil.

Através deste documento quero alertá-los sobre os enormes perigos que, neste momento, ameaçam profundamente toda a cultura musical brasileira, a que estamos estreitamente vinculados. Esses perigos provêm do fato de muitos jovens compositores, por inadvertência ou ignorância, estarem se deixando seduzir por falsas teorias progressistas da música, orientando a sua obra nascente num sentido contrário aos dos verdadeiros interesses da música brasileira.

Introduzido no Brasil há poucos anos, por elementos oriundos de países onde se empobrece o folclore musical, o Dodecafonismo encontrou aqui ardorosa acolhida por parte de alguns espíritos desprevenidos.

À sombra de seu meléfico prestígio se abrigaram alguns compositores, moços de grande valor e talento, como Cláudio Santoro e Guerra Peixe que, felizmente, após seguirem essa orientação errada, puderam se libertar dela e retomar o caminho da música baseada no estudo e no aproveitamento artístico- científico do nosso folclore. Outros jovens compositores, entretanto, ainda dominados pela corrente dodecafonista (que desgraçadamente recebe o apoio e a simpatia de pessoas desorientadas), estão sufocando o seu talento, perdendo o contato com a realidade e a cultura brasileiras, e criando uma música cerebrina e falaciosa, inteiramente divorciada de nossas características nacionais.

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Diante desta situação que tende a se agravar dia a dia, comprometendo basilarmente o destino de nossa música, é tempo de erguer um grito de alerta para deter a nefasta infiltração formalística e antibrasileira que, recebida com tolerância e complacência hoje, virá trazer, no futuro, graves e insanáveis prejuízos do desenvolvimento da música nacional do Brasil.

É preciso que se diga a esses jovens compositores que o Dodecafonismo em Música corresponde ao Abstracionismo em Pintura; ao Hermetismo em Literatura; ao Existencialismo em Filosofia; ao Charlatanismo em Ciência.

Assim, pois, o Dodecafonismo (como aqueles e outros contrabandos que estamos importando e assimilando servilmente) é uma expressão característica de uma política de degenerescência cultural, um ramo adventício da figueira- brava do cosmopolitismo que nos ameaça com suas sombras deformantes e tem por objetivo oculto um lento e pernicioso trabalho de destruição de nosso caráter nacional.

O Dodecafonismo é assim, do ponto de vista mais geral, produto de culturas superadas, que se decompõem de maneira inevitável; um artifício cerebralista, antinacional, antipopular, levado ao extremo; é química, é arquitetura, é matemática da música – é tudo que quiserem – mas não é música! É um requinte de inteligências saturadas, de almas secas descrentes da vida; é um vício de semimortos, um refúgio de compositores medíocres, de seres sem pátria, incapazes de compreender, de sentir, de amar e revelar tudo o que há de novo, dinâmico e saudável no espírito de nosso povo.

Que essa pretensa música encontre adeptos no seio de civilizações e culturas decadentes, onde se exaurem as fontes originais do folclore (como é o caso de alguns países da Europa); que essa tendência deformadora deite as suas raízes envenenadas no solo cansado da sociedade em decomposição, vá lá! Mas não encontre acolhida aqui na América nativa e especialmente no nosso Brasil, onde um povo novo e rico de poder criador tem todo um grandioso porvir nacional a construir com suas próprias mãos! Importar e tentar adaptar no Brasil essa caricatura de música, esse método de contorcionismo cerebral antiartístico, que nada tem em comum com as características

135 específicas de nosso temperamento nacional, e que se destina apenas a nutrir o gosto pervertido de pequenas elites de requintados e paranoicos, reputo um crime de lesa-Pátria! Isso constitui, além do mais, uma afronta à capacidade criadora, ao patriotismo e à inteligência dos músicosbrasileiros.

O nosso país possui um folclore musical dos mais ricos de mundo, quase que totalmente ignorado por muitos compositores brasileiros que, inexplicavelmente, preferem carbonizar o cérebro para produzir música segundo os princípios aparentemente inovadores de uma estética esdrúxula e falsa.

Como macacos, como imitadores vulgares, como criaturas sem princípios, preferem importar e copiar nocivas novidades estrangeiras, simulando assim, que são “originais” e “avançados” e esquecem, deliberada e criminosamente que temos todo um amazonas de música folclórica – à espera de que venham também a estuda-la e divulga-la para engrandecimento da cultura brasileira. Eles não sabem ou fingem não saber que somente representaremos um autêntico valor, no conjunto de valores internacionais, na medida em que soubermos preservar e aperfeiçoar os traços fundamentais de nossa fisionomia nacional em todos os sentidos.

Os nossos compositores dodecafonistas adotam e defendem essa tendência formalista e degenerada da música porque não se deram ao cuidado elementar de estudar os tesouros da herança clássica, o desenvolvimento autônomo da música brasileira e suas raízes populares e folclóricas. Eles, certamente, não leram as sábias palavras de Glinka: – “... as suas regras são por demais ingenuamente escolásticas. Permitem ao Não músico escrever a mesma música que escreveria um indivíduo altamente dotado...”

Mas o que pretende, afinal, esta corrente antiartística que procura conquistar principalmente os nossos jovens músicos, deformando a sua obra nascente?

Pretende, aqui no Brasil o mesmo que tem pretendido em quase todos os países do mundo; atribuir valor preponderante à Forma; despojar a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade; arrancar-lhe o conteúdo nacional; desfigurar-lhe o caráter nacional; isolar o músico (transformando-o

136 num monstro de individualismo) e atingir o seu objetivo principal que é de justificar uma música sem Pátria e inteiramente incompreensível para o povo.

Com todas as tendências de arte degenerada e decadente, o Dodecafonismo, com suas facilidades, truques e receitas de fabricar música atemática, procura menosprezar o trabalho criador do artista, instituindo a improvisação, o charlatanismo, a meia-ciência como substitutos da pesquisa, do talento, da cultura, do aproveitamento nacional das experiências do passado, que são as bases para a realização da obra de arte verdadeira.

Desejando, absurdamente, pairar acima e além da influência de fatores de ordem social e histórica, tais como o meio, a tradição, os costumes e a herança clássica; pretendendo ignorar ou desprezar a índole do povo brasileiro e as condições do seu desenvolvimento, o dodecafonismo procura, sorrateiramente, realizar a destruição das características especialmente nacionais da nossa música, disseminando entre os jovens a “teoria” da música de laboratório, criada apenas com o concurso de algumas regras especiosas, sem ligação com as fontes populares.

O nosso povo, entretanto, com aguda intuição e sabedoria, tem sabido desprezar essa falsificação e o arremedo de música que conseguem produzir. Para tentar explicar a sua nenhuma aceitação por parte do público, alegam alguns dos seus mais fervorosos adeptos que o “nosso País é muito atrasado”, que estão “escrevendo música para o futuro” ou que “o dodecafonismo não é ainda compreendido pelo povo porque a sua obra não é suficientemente divulgada...”.

É necessário que se diga, de uma vez por todas, que tudo isso não passa de desculpa dos que pretendem ocultar aos nossos olhos, os motivos mais profundos daquele divórcio.

Afirmo, sem medo de errar, que o dodecafonismo jamais será compreendido pelo grande público porque ele é essencialmente cerebral, antipopular, antinacional, e não tem nenhuma afinidade com a alma do povo.

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Muita coisa ainda precisaria ser dita a respeito do dodecafonismo e do pernicioso trabalho que seus adeptos vêm desenvolvendo no Brasil, mas urge terminar esta carta, que já se torna longa demais.

E ela não estaria concluída, se não me penitenciasse publicamente perante o povo brasileiro por ter demorado tanto tempo em publicá-la. Esperei que se criassem condições mais favoráveis para um pronunciamento coletivo dos responsáveis pela nossa música a respeito desse importante problema que envolve intenções bem mais graves do que, superficialmente, se imagina. Essas condições não se criariam e o que se nota é um silêncio constrangido e comprometedor. Pessoalmente, acho que o nosso silêncio, neste momento, é conivência com a contrafação dodecafonista. É esse o motivo por que este documento tem um caráter tão pessoal.

Espero, entretanto, que os meus colegas compositores, intérpretes, regentes e críticos manifestem, agora, sinceramente, a sua autorizada opinião a propósito do assunto. Aqui fica, pois, o meu apelo patriótico.

São Paulo, 7 de novembro de 1950

Camargo Guarnieri

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Anexo 2 - Carta Aberta de Koellreutter (em resposta à de Guarnieri), também aos Músicos e Críticos do Brasil (1950)

Consciente de minhas responsabilidades perante a nova geração de compositores, em especial diante daqueles que me foram confiados, e perante o país cujo desenvolvimento cultural venho dedicando todos os meus esforços profissionais, movido ainda pelo profundo respeito que tenho pelo espírito criador do homem e pela inabalável fé na liberdade do pensamento, venho responder, de público, à “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil” que o Sr. Camargo Guarnieri fez publicar, com data de 7 de novembro de 1950.

Vejamos de início o que é o tão falado Dodecafonismo, atacado pelo Sr. Camargo Guarnieri com tanta veemência e com uma terminologia pouco apta a um documento artístico. Dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendência estética, mas sim o emprego de uma técnica de composição criada para a estruturação do atonalismo, linguagem musical em formação, lógica consequência de uma evolução e da conversão das mutações quantitativas do cromatismo, em qualitativas, através do modalismo e do tonalismo. Não tenho, por um lado – como todas as outras técnicas de composição – outro fim, a não ser o de ajudar o artista a expressar-se, e servindo, por outro lado, à cristalização de qualquer tendência estética, a técnica dodecafônica garante liberdade absoluta de expressão e realização completa da personalidade do compositor.

Ela não é mais nem menos “formalista”, “cerebralista”, “antinacional” ou “antipopular” que qualquer outra técnica de composição baseada em contraponto e harmonia tradicionais. É errôneo, portanto, o conceito de que o Dodecafonismo “atribua valor preponderante à forma ou despoje a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade”, que “lhe arranque o conteúdo emocional”; que “lhe desfigure o caráter nacional” e que possa “levar à degenerescência do sentimento nacional”, o que se torna um “vício de semimortos” e “um refúgio de compositores medíocres”, e não contribui em absoluto para a evolução cultural de um povo, pelo contrário, é fonte de sucessos fáceis e improvisações, é o nacionalismo em sua forma de adaptação de expressões vernáculas. Essa tendência, tão comum entre nós, é

139 responsável por uma música que lembra o estado pré-natal de “sensação”, próprio do homem primitivo e da criança e que, com suas formas gratuitas, emprestadas do colorismo russo-frances, não consegue encobrir sua pobreza estrutural e a ausência de potência criadora. O verdadeiro nacionalismo é uma característica intrínseca do artista e de sua obra. Quando, porém, essa tendência se reduz a uma atitude apenas, leva tanto ao formalismo quanto qualquer outra corrente estética.

Entende-se por formalismo a conversão da forma artística a uma espécie de autossuficiência. Ao contrário do que afirma o Sr. Camargo Guarnieri, o que me parece alarmante é a situação de estagnação mental em que vive amodorrado o meio musical brasileiro, de cujas instituições de ensino, com seu programa atrasado e ineficiente, não têm saído, nestes últimos anos, nenhum valor representativo. Eis a expressão, esta sim de uma “política de degenerescência cultural” e não a ânsia estética, o trabalho sincero dos jovens dodecafonistas brasileiros, que lutam corajosamente por um novo conteúdo e uma nova forma, e que jamais desprezam o folclore de sua terra, estudando-o e assimilando-o em sua essência. Esses jovens dodecafonistas brasileiros desbravam as regiões do inexplorado, à procura de uma nova realidade na arte. Escrevem música que não admite outra lógica a não ser a que nasce da própria substância musical.

É verdade que essa música, apesar de toda a sua perfeição estrutural, demonstra algo de instável e fragmentário, característica de uma crise que resulta do conflito entre forma e conteúdo, a fonte mais importante do desenvolvimento e do progresso nas artes. E é justamente nisso, no alto grau de veracidade e no realismo de sua arte, que consiste o valor humano e artístico do trabalho desses jovens compositores.

Quanto aos conceitos finais dos últimos parágrafos da Carta Aberta do Sr. Camargo Guarnieri, não merecem respostas por serem incompetentes e tendenciosos. Em lugar da demagogia falaciosa de sua carta, o Sr. Camargo Guarnieri deveria ter feito uma análise serena e limpa dos problemas relativos aos jovens musicistas do Brasil, se é que realmente isso lhe interessa. O nacionalismo exaltado e exasperado que condena cegamente e de maneira odiosa a contribuição que um grupo de jovens compositores procura dar à

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cultura musical do país conduz apenas ao exacerbamento das paixões que originam forças disruptivas e separam os homens.

A luta contra essas forças que representam o atraso e a reação, a luta sincera e honesta em prol do progresso humano na arte é a única atitude digna de um artista.

Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1950

H. J. Koellreutter

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Anexo 3 – Abertura (Partitura Editada)

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