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Pessoas com depressão e a música

Clarice Cardeman

“Eu não gosto de música triste vai eu fico pior que já sou”

Anônimo

A maior dificuldade para a pessoa que sofre de depressão é ser compreendida. A palavra depressão tem sido usada para designar melancolia ou incapacidade de fazer algo em determinado momento. A depressão não é apenas uma emoção. É uma doença que afeta o indivíduo como um todo podendo trazer consequências indesejáveis à vida do mesmo. A depressão afeta o pensamento, as funções corporais, o comportamento. A pessoa pode apresentar irritabilidade, sentimento de incapacidade de sentir emoções e prazer, desânimo, falta de energia, distúrbios do sono, ideações de morte, dor psíquica.

A depressão ocorre devido a disfunções na transmissão de sinais entre neurônios, em diferentes regiões do cérebro.

O estigma da depressão e a falta de conhecimento da doença são fatores que retardam ou inviabilizam a busca de tratamento. A falta de compreensão acaba afastando do tratamento a pessoa que precisa de ajuda porque não se sente entendida.

“Tenho 68 anos, 30 anos convivendo e fazendo tratamento para depressão, ansiedade, pânico. Sei que existem pessoas que ficam curadas, mas eu até hoje não consegui. Mas, sei também que depende de cada pessoa, de cada causa, nós somos todos diferentes, embora estejamos juntos no mesmo sofrimento. Apesar da doença, eu trabalhei como bancária, até aposentar por tempo de serviço. Faz 40 anos que sou casada, bem compreendida pelo marido que me acompanha sempre. Temos 2 filhos, 2 netos. Vivo assim: tenho momentos, horas ou dias que me sinto melhor, mas também tenho crises que duram dias. O jeito de conviver com isso, é que procuro curtir bem os momentos bons, e nos maus, ter paciência para esperar passar. Pois uma coisa aprendi: eles passam, sempre passam. Sei, conheço na alma o tamanho do nosso sofrimento. Uma das principais reclamações que vejo entre os depressivos, é que as pessoas não entendem essa doença, e com isso se afastam da gente, ou somos nós que nos afastamos deles. Eu sofri muito no começo por esse motivo. Hoje, não me importo mais. As pessoas só entendem o que veem e podem tocar. Uma radiografia de um tumor, seria bem aceito. Mas, não existe esse tumor no nosso organismo. Então, não entendem, nem se esforçam pra entender. E o pior é que se passa na própria família...... A DEPRESSÃO É UMA DOENÇA, e não é falta de fé, falta de Deus, frescura, falta de serviço, e tantas outras coisas que eu cansei de ouvir...... é uma doença como outra qualquer, que precisa de tratamento. E uma coisa muito comum a ela é o desejo de morrer, de se suicidar, ( eu também tentei uma vez), mas no fundo, acho que a gente não quer mesmo morrer, quer matar a dor que é muito forte....A luta depende de cada um. Mas tenho a certeza de que a força necessária está dentro de nós mesmos.”

1 Apesar da doença, o indivíduo tem sua personalidade. Ele é gente. Assim, é capaz de um sorriso, uma risada, fazer uma piada, continuar trabalhando dependendo do acometimento e do momento. Alguns encontram na música uma forma da expressão dos seus sentimentos, outros podem se sentir acalentados em alguns momentos, há os que preferem o silêncio e os que se sentem mal ouvindo música.

Da mesma forma, cada um tem sua preferência musical, e isso influencia na escolha musical para expressar sentimentos.

“Castelo Forte - Hino do Cantor Cristão. Só procurar no . Nós, que sofremos de depressão, não precisamos de músicas alegres, e sim de Deus, que nos ajuda a sair dessa armadilha da mente que é a depressão. Acreditem. Foi assim que fiquei curada, através do evangelho de Jesus.”

Nos estados mais severos da depressão há preferência pelo silêncio e muitas vezes uma grande irritação ao ouvir música. A música é algo sem graça, sem vida, sem cor devido ao embotamento e a total incapacidade de sentir prazer e bem estar.

“Não consigo mais ouvir músicas. Eu amava.”

Conforme a doença evolui, há um afastamento das coisas que uma vez davam prazer. Só fica uma vaga lembrança e uma sensação de estranheza, de estar vivendo no lugar e época errada. A música também faz parte do que é afastado. Antes de entrar nesse estado é possível que a música possa proporcionar um sentimento de acolhimento e a expressão do estado em que ela se encontra.

Recolhi informações em grupos de depressão. Trata-se de grupos de autoajuda, sem a intervenção de profissionais da saúde, onde é possível trocar informações sobre a doença, medicamentos, desabafar, trazer palavras animadoras, pedir socorro e salvar pessoas em casos extremos. A música também é assunto nesses grupos. Não é o tema principal Se alguém perguntar o que lhe faz sentir melhor, a maior parte das respostas será Dormir.

A música tem o poder de induzir mudanças nas funções cerebrais, seus circuitos e neurotransmissores. Tem o poder de despertar lembranças, sentimentos, relaxar, agitar, motivar, alegrar, dar novos significados a determinadas situações, mas também pode entristecer e fazer se sentir mal, ou ainda ser um estímulo para a morte para alguém que já a estava planejando faz tempo. Tudo depende do momento e do quanto a pessoa está tomada pela depressão.

Entre as colocações sobre música nos grupos, três me impressionaram como definição da pessoa com depressão, tanto pela letra como pela forma musical. Elas são: Queen - Bohemian Rhapsody, Creed – e Creep do Radiohead.

A maior parte das músicas colocadas pelos participantes é rock e em inglês. Partes das músicas brasileiras são expostas como o que define uma pessoa com depressão. Um fenômeno interessante que deve ser refletido. Também havia citações sobre Renato Russo de forma muito superficial. Daí minha preferência por trilhar este material, e dedicar a questão da música brasileira em outra oportunidade.

2 Creep - Radiohead

Há quem diga que todas as músicas do Radiohead são tristes. Creep (Verme em português) foi escrita por Thom Yorke. Mesmo com a balada Creep ganhando destaque, foi censurada por um tempo na rádio BBC e em muitas rádios norte-americanas, nos anos 90, por ser ‘depressiva demais’. De qualquer forma pessoas com depressão se definem nessa música.

É comum na depressão a pessoa se sentir um “estranho no ninho”, como se não pertencesse a esse lugar e essa época. Isso acontece porque a pessoa não sente vontade de estar nesse mundo e também pela incapacidade de sentir emoções. O refrão de Creep retrata a autoestima baixa e a sensação de ser um esquisito no mundo.

A melodia de Creep é uma repetição em torno da mesma frase dando a sensação de estarmos girando sempre em torno das mesmas notas ( sol-lá-sol-fá-sol) e dos mesmos acordes (G – B – C – Cm). Apesar da tônica estar em Sol Maior, a tonalidade usada é Mi menor com andamento moderado, o que traz um clima sonoro um pouco sombrio e arrastado. O ritmo arrastado pode lembrar o peso e a falta de energia e permite que, aliado a letra, a pessoa se veja nesta música

Figura 1 – Melodia

Os pensamentos pessimistas e repetitivos, que não saem da cabeça, também são bem característicos na depressão. É comum a pessoa acumular mais de uma doença ou apresentar algum tipo de compulsão. O 3 caráter repetitivo da melodia e da harmonia pode estar associado à esses pensamentos repetitivos e persistentes.

O refrão mantém basicamente a mesma tonalidade. O aumento da intensidade, da densidade e as distorções da guitarra quebram a sonoridade rastejante e monótona.

A letra fala de perda, o que pode estar relacionado a um fator desencadeante de uma crise ou da doença.

Figura 2 - Refrão

Weathered - Creed

Creed foi uma banda norte americana de Hard Rock fundada em 1995, originalmente idealizada pelos amigos (vocal) e Mark Tremonti (guitarra), tendo Scott Phillips (bateria) e (contrabaixo). Alcançou sucesso comercial no fim da década de 90 e se tornou famosa, principalmente entre os jovens, graças as suas músicas com belos dedilhados, boa acústica, uma distorção impecável, letras profundas que retrata os sentimentos humanos.

A letra da música Weathered descreve de forma bem direta sobre os sentimentos de quem está com depressão. Fala da dor na alma, do desejo de uma vida simples normal, da insônia, sentimentos que levam ao afastamento e solidão, o desgaste que a doença traz, a vontade de desistir, a morte, a impossibilidade de cura e em certo momento sobre a opção de continuar lutando e a escolha de vencer.

“Eu me vejo acordado numa longa noite escura 4 Eu pareço não conseguir dominar minha mente Estilingues e flechas estão me matando por dentro... Vivendo apenas está meu choro desesperado Que tem trocado amor com indiferença... Eu? Eu estou enferrujado e resistindo Tentando fazer isso junto. Estou coberto por uma pele que queima e Apenas não cicatriza

O sol brilha e não consigo evitar a luz Eu acho que estou me segurando nessa vida com forças demais Cinzas às cinzas e pó ao pó Às vezes sinto como se estivesse desistindo E eu disse às vezes sinto como se estivesse desistindo”

Eu? Eu estou enferrujado e resistindo Tentando fazer isso junto Estou coberto por uma pele que queima e apenas não cicatriza

O dia me lembra você A noite esconde sua verdade A terra é uma voz te dizendo Pegue todo esse orgulho E deixe pra trás Porque um dia isso acaba Um dia morremos Acredite no seu desejo Esta é sua verdade Mas eu escolho vencer Eu escolho lutar Lutar

O autor da letra é de Scott Stapp que foi diagnosticado, em 1998, com transtorno bipolar e hoje em dia se dedica à conscientização sobre a doença. A música foi composta por Mark Tremonti. Weathered não teve um sucesso comercial, mas é bem conhecida entre as pessoas com depressão. Weathered apresenta um riff de introdução com dedilhado limpo e se mantém durante o canto. A distorção entra como um chamado para o refrão.

5 Figura 3 – Introdução

Figura 4 – Versos - A letra versa sobre como se sente uma pessoa nesse estado- o padrão musical mantém a mesma linha da introdução.

6 Figura 5 - Refrão - Eu... Estou coberto de ferrugem e desgastado Quase desmoronando Estou recoberto com uma pele que descasca e que não vai curar – Isso não cai curar não, não isso não vai curar.

Bohemian Rhapsody - Queen

De acordo com Chris Smith (um pianista amigo de Mercury), Mercury começou a desenvolver "Bohemian Rhapsody" no fim da década de 1960. A mesma foi concluída e lançada em 1975.

A musicóloga Sheila Whiteley sugeriu que "o título se baseia fortemente na ideologia do rock contemporâneo, no individualismo do mundo boêmio do artista, com a rapsódia afirmando os ideais românticos do art rock.

Esta canção não possui refrão e consiste de três partes principais: um segmento de balada que acaba com um solo de guitarra, uma passagem operística e uma seção de hard rock;

A maioria das interpretações da letra é relacionada à sexualidade e o passado de Mercury.

Comentando sobre seu boemismo, Judith Peraino disse que "Mercury queria... [que essa música] fosse uma zombaria, algo fora do normal nas músicas de rock, e ela realmente segue uma certa lógica operística: coros de muitas vozes se alternam em solos melódicos, as emoções são excessivas, e o enredo é confuso".

Assim, a letra pode tomar várias interpretações. E isso me intrigou muito ao ver que muitas pessoas com depressão se viam nessa música. E não é à toa. Para quem está nesse estado a vida é um desmoronamento sem escapatória da realidade, mesmo que seja uma fantasia sem fim. Existe também o desejo de não existir, preferir não ter nascido para não suportar tanto sofrimento. Há sempre o dilema de ir ou não. A dificuldade de se tomar uma decisão. Enfim, para a pessoa que assim está, nada importa.

Escrevi o presente artigo com o objetivo de trazer melhor compreensão da Depressão. Me perguntaram, e a luz no fim do túnel que a música traz? Preferi me estender pela escuridão, um processo doloroso e difícil até que se consiga pedir socorro. A depressão vai se desenvolvendo sem que o indivíduo tome consciência. A luz da música com certeza virá, mas no momento que a pessoa esteja fortificada o suficiente para trabalhar fatores desencadeantes e aspectos mais difíceis para se verbalizar. E também trazer um alerta para as duas faces da música. 7 8 9 10 Referencias Bibliográficas

Clara Márcia de Freitas Piazzetta - MÚSICA EM MUSICOTERAPIA: estudos e reflexões na construção do corpo teórico da Musicoterapia LIA REJANE MENDES BARCELLOS - A MÚSICA COMO METÁFORA EM MUSICOTERAPIA

OLIVER SACKS - ALUCINAÇOES MUSICAIS https://pt.wikipedia.org/wiki/Bohemian_Rhapsody https://whiplash.net/materias/biografias/250117-queen.html https://pt.wikipedia.org/wiki/Creed#Weathered

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