NO PRÓXIMO VAPOR Uma Viagem Entre Aracaju E O Rio De Janeiro No Século XIX
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
NO PRÓXIMO VAPOR Uma viagem entre Aracaju e o Rio de Janeiro no século XIX ∗ Samuel Barros de Medeiros Albuquerque Cais Pharoux, Rio de Janeiro, 18 de março de 1879. Do vapor alemão Valparaiso, desembarcava o deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), acompanhado de familiares, agregados e escravos domésticos. O político sergipano, conhecido, simplesmente, como Barão da Estância, voltava à capital do Império para tomar parte nas atividades da Câmara e estreitar relações na corte do imperador D. Pedro II. A “comitiva” do barão não era miúda. Além da esposa Lourença de Almeida Dias Mello (1848-1890) e das filhas Aurélia e Anna, que contavam 15 e 11 anos, respectivamente, compunham-na os afilhados Antônio e Eponina Motta; a preceptora alemã Marie Lassius; e os escravos domésticos Senhorinha, Domingas e Joaquim. Todos, ainda que abatidos pela longa viagem, estavam tomados pela excitação de, finalmente, chegar ao Rio. Naquela manhã de terça-feira, o grupo recém-chegado do norte encontrou a zona portuária, como sempre, bastante movimentada. Entre o Cais Pharoux e a Praça D. Pedro II, de onde seguiriam para o hotel, os viajantes capturaram as primeiras imagens, sons e cheiros da corte. Diferente da pequenina Aracaju, o Rio era uma cidade cosmopolita. A variedade de feições, línguas, sotaques e comportamentos atordoava os visitantes. Pedintes sujos e maltrapilhos, escravos de ganho oferecendo seus produtos e serviços, senhores trajados à inglesa acompanhados de senhoras vestidas à francesa a caminho da Sé, o apito dos vapores, o badalar dos sinos, o estampido dos fogos de artifício, as vozes... Tudo se misturava naquele movimentado cenário da “colorida e ruidosa cidade tropical”. O entorno da Praça D. Pedro II impressionava e o patriarca, ligado afetivamente àquela paisagem, indicava aos demais o Paço da Cidade; o antigo Convento do Carmo; a ermida do Senhor dos Passos; a Igreja do Carmo, que acumulava as funções de capela imperial e catedral; a Igreja da Ordem Terceira do Carmo; o Arco do Telles; o Chafariz no mestre Valentim... ∗ Professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS, graduado em História (UFS – 2004), mestre em Educação (UFS – 2007) e doutor em História (UFBA – 2013). Mas o deslumbre com o Rio, é preciso dizer, foi antecedido por uma longa e cansativa viagem iniciada oito dias antes, em uma distante província do norte do Império. O calvário começou no Porto do Aracaju, na luminosa manhã de 10 de março, uma segunda-feira, quando o grupo partiu no vapor Marquês de Caxias, da Companhia Baiana de Navegação. Deslizando para o sul, viram ficar para traz a cidadezinha cercada pelo imenso coqueiral que se espraiava por todo o estuário do Cotinguiba. A maré cheia facilitou a transposição da inconstante barra e deu acesso ao mar aberto. Os sopapos das ondas sobre a embarcação logo encheram de temor e enjoos as mulheres do grupo, que se refugiaram nos desconfortáveis camarotes a elas reservadas. Ao cair da tarde, já estavam no Porto da Estância, no litoral sul de Sergipe, onde o vapor fazia escala. Sem que deixassem seus camarotes, perceberam a contínua redução dos sacolejos e concluíram que haviam saído do mar aberto. Navegando pelas águas mansas do Rio Piauí, alcançaram o porto mais sulino da província, onde permaneceram até o alvorecer do dia seguinte, quando retomaram a viagem. Sob forte chuva, desembarcaram na tarde do dia 12 de março, uma quarta-feira, no caótico Porto da Bahia, onde eram aguardados por Cincinato Pinto da Silva (1835-1912), médico, escritor e político baiano, que há muito se tornara amigo do Barão da Estância e de sua família. A “pausa de mil compassos” à espera do vapor que os conduziria à Corte foi compensada pela calorosa acolhida no palacete dos Pinto, localizado no charmoso bairro dos Barris, na Cidade Alta, em Salvador. Lá permaneceram até o fim da tarde de 14 de março, uma sexta-feira ensolarada e de ruas tomadas por homens e mulheres, quase todos pretos ou pardos, trajando alvíssimas vestes brancas. Levados ao porto pelo doutor Cincinato, despediram-se do anfitrião e, sem demora, embarcaram no já mencionado vapor alemão Valparaiso, que, ao alvorecer do dia seguinte, partiria para o Porto de Santos, passando pelo Rio de Janeiro. Entre a Baía de Todos dos Santos e a Baía de Guanabara, o “tempo frágil das horas” parecia se arrastar em quadras intermináveis. Inquietas, dona Lourença e, principalmente, a pequena Anna, obrigavam o barão a sacar do bolso o relógio e, insistentemente, conferir as horas. 2 Finalmente, o Rio. Depois de oito luas, muito chacoalho, enjoo e desconforto, o Rio. Eis, agora, uma questão: como foi possível reconstituir o percurso da viagem entre Aracaju e o Rio de Janeiro, feita pelo Barão da Estância e seus acompanhantes em março de 1879? A resposta não carece de rodeios. A reconstituição foi possível graças à sobrevivência de manuscritos e impressos produzidos no Brasil do século XIX ou legados por mulheres e homens que viveram no Brasil entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. E quais seriam esses documentos? O primeiro e mais importante foi o texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), nome de casada da filha mais velha do Barão da Estância com dona Lourença de Almeida Dias Mello. Como havíamos registrado, as sinhazinhas Aurélia e Anna acompanharam seus pais na viagem de 1879. Décadas depois, no gabinete de leitura do memorável casarão da Rua Boquim, no centro de Aracaju, a viúva do senador Gonçalo de Faro Rollemberg (1860-1927), registrou suas reminiscências sobre o Rio oitocentista em uma pequena caderneta escolar. Esse documento, produzido entre 1927 e 1952, foi editado em 2005, na obra Memórias de Dona Sinhá , e o manuscrito original foi incorporado ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, através de doação feita pelos herdeiros do médico Lauro de Britto Porto (1911-2011). Assim, o texto de memórias de Aurélia pode ser consultado em sua versão impressa ou manuscrita.1 No Arquivo Público Estadual de Sergipe, localizamos os registros de saída de embarcações no porto do Aracaju relativos ao ano de 1879. Nesse sentido, o volume 21 do Fundo Segurança Pública 8 registra a saída, em 10 de março, do vapor nacional Marquês de Caxias para o porto da Bahia. 2 Por fim, a edição de 16 de março do jornal baiano O Monitor veiculou o seguinte registro: “[Ontem], no vapor allemão Valparaiso foram para Santos pelo Rio de Janeiro os seguintes [passageiros]: Manuel de M. e Souza sua senhora, 1 criada e 2 crianças, Barão da 1 A referência completa da versão impressa é: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. O documento. In: ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. Memórias de Dona Sinhá . Aracaju: Typografia Editorial, 2005. p. 47-123. Por sua vez, o documento original possui a seguinte referência: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. [ Texto de memórias ]. Aracaju, [entre 1927 e 1952]. Acervo do IHGSE. 2 REGISTROS de saída de embarcações no porto de Aracaju em 1879. Arquivo Público Estadual de Sergipe, Fundo SP 8 - Inspetoria da Polícia (Marítima e Aérea), volume 21, p. 197 (reverso). 3 Estancia sua senhora, 2 filhas e 4 criados, Antonio da M[otta] Ribeiro e 4 criados, Chr. Retberg, Eleodoro J. de Campos, Dr. Pedro J. Pereira”.3 Para além das fontes que nortearam, principalmente, a reconstituição do percurso, dialogamos com outros documentos e estudos sobre o Brasil oitocentista, que muito contribuíram para a reconstituição dos cenários estudados. Exemplo disso são as cartas de preceptora alemã Ina von Binzer, que narram suas experiências enquanto preceptora de famílias fluminenses e paulistas em princípios da década de 1880. Esses documentos foram publicados na Europa em fins da década de 1880 e no Brasil, somente, em meados da década de 1950.4 No mais, é preciso dizer que uma boa dose de pesquisa de campo foi acrescida à pesquisa documental e bibliográfica. Conduzidos pelas memórias de Aurélia, chegamos ao Rio de Janeiro em 14 de março de 2012. No roteiro da viagem, além de bibliotecas e arquivos, os lugares que deram o tom da “geografia sentimental” presente no texto de memórias da filha do Barão da Estância.5 Saímos em busca do que restou do Cais Pharoux na tarde de 16 de março, uma sexta- feira chuvosa e abafada. Por volta das 15 horas, chegamos à Praça 15 de Novembro. Lá, detivemo-nos por algum tempo no antigo Paço Imperial, que, em princípios de 1879, era a sede oficial do governo. Defronte ao Paço, está a Praça Mercado Municipal, conhecida como Estação das Barcas, por abrigar o terminal marítimo Barcas S/A, que viabiliza o trânsito entre o Rio de Janeiro e Niterói, Paquetá, Charitas e Ribeira (Ilha do Governador). O Cais Pharoux existiu entre o limite sudeste da Praça Mercado Municipal e toda a faixa litorânea da Praça General Âncora, espaços públicos separados, diga-se, por uma via cuja denominação é uma homenagem ao antigo cais. Deparamo-nos, então, com uma praça em reforma (um amplo projeto de reurbanização) e cuja paisagem é marcada pela presença do Restaurante Albamar, instalado em um torreão de ferro que remete à memória do antigo Mercado Municipal, demolido na década de 1930. Da General Âncora avistamos a Baía de Guanabara, a Ponte Presidente Costa 3 NOTÍCIAS diversas. O Monitor , Bahia, 16 mar. 1879, p. 1. 4 BINZER, Ina von. Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil . São Paulo: Anhembi, 1956. 5 Interessante registrar que, se em 1879, sem contar com a escala na Estância e o período de permanência na Bahia, a viagem marítima entre Aracaju e o Rio de Janeiro durava cerva de cinco dias, atualmente, o deslocamento entre o Aeroporto Santa Maria, em Aracaju, e o Aeroporto Santos Dumont, no Rio, dura, em média, duas horas e trinta minutos.