HÁ 50 ANOS – QUITEXE, A VILA MÁRTIR

João Nogueira Garcia António Manuel Pereira Guerra

Foto - http://www.batcac443.com

O dia-a-dia numa fazenda do Quitexe

Estamos ainda na época das chuvas que, também maldita terra. Em quanto mais intensas, mais beneficiam Relata-nos João Garcia: parece que os encontros têm sido uma boa floração do café. Os dias são É neste correr do dia-a-dia que numa das renhidos e que já houve centenas de todos iguais nesta época: é preciso capi- minhas idas ao Quitexe encontro o Che- mortes, mas mesmo lá, por enquanto, nar todo o cafezal dado que as ervas fe do Posto Nascimento Rodrigues que parece que os ataques são só dirigidos crescem rapidamente pois o calor inten- diz precisar de falar comigo, confiden- contra a polícia e o exército e que das so e a farta humidade no solo não dão cialmente: forças revoltadas fazem parte brancos. tréguas ao pessoal. Cada contratado Ele, Chefe do Posto, tinha sido alertado Seria uma sorte pois, se vamos para a capina diariamente 120 pés de café. pela PIDE que estavam a ser distribuídos questão racial será uma desgraça, pois Junto às casas, os armazéns do café e a panfletos subversivos nas sanzalas para será o caso de mata que é branco e casa das máquinas de descasque consti- os lados do Zalala e que esses panfletos mata que é preto. Mas parece-me que tuem o sector laboral. No acampamento, eram de uma organização política desig- não teremos sorte pois esses cavalheiros situado no morro em frente, à beira da nada por U.P.A. que significava União daí para salvarem a pele não hesitarão mata, vivem os contratados do Sul, em dos Povos de . O Chefe esclare- em nos sacrificarem. (...) número variado conforme a época do ceu que estava a contactar todos os ano: entre 60, no tempo das chuvas e fazendeiros para colaborarem com a Relendo agora a carta, quase me sur- 100, na época do cacimbo, altura da PIDE dando-lhe todas as informações preendo com a clarividência com que colheita do café. Entretanto tinha sido que fossem colhendo. Respondi-lhe que expus a situação política vivida em inaugurada no Quitexe uma escola pri- de tudo que eu viesse a saber lhe daria Angola, bem como o alerta premonitório mária tornando possível, aos colonos, conhecimento a ele e não à PIDE, visto para o que se passaria cinco dias depois. ser organização que sempre repudiei. Esta conversa teve lugar no dia 5 de Março de 61. Entretanto as férias escolares haviam começado e, por isso, não era necessário levar os miúdos ao Quitexe. No dia 10, escrevo uma carta à minha Tia Marquinhas, carta essa que mais tarde recuperei e que agora transcrevo:

(...) Desculpe a Tia o só hoje dar notí- cias mas como deve calcular estas vidas, primeiro a baixa do café que atingiu um preço que pôs toda esta região à falência e agora surge o inevi- terem junto de si os filhos em idade tável problema político, para o qual os escolar. governantes resolveram solucioná-lo Dia de Comunhão no Quitexe. À esquerda o Tó Guerra entre os irmãos Este é o cenário que dia a dia se vive na pela força. Seremos nós, os do interior, Roça Quimbanze de João Nogueira Baptista (Manuela e João) e à direita homens, mulheres e crianças as princi- os irmãos Barreiros (Graça e Acácio, Garcia, a 3 Km da povoação do Quitexe, pais vítimas, pois além de nos encon- semelhante a todas as fazendas de café futuro deputado da UDP e PS) trarmos indefesos, por mil e uma razões da região. não podemos abandonar esta boa mas Ao fim de semana as famílias iam passear à Lagoa do Feitiço, a escassos 5 Km do Quitexe. Na foto da direita, ao centro, com a armadilha de peixes na mão, está o Zézito Guerreiro que viria a ser morto no 15 de Março.

Dia 15

À semelhança de todos os dias, mal mou-me de lado e disse-me que de para tentar chegar ao Uíge e trazer a despontam os primeiros alvores da noite tinha havido sarilho na fazenda polícia! madrugada, o capataz acorda o pes- do Zalala e que o gerente tinha con- De imediato dou meia volta ao jipe e soal, batendo com o bocado de mola seguido fugir e ir para o Uíge chamar corro a grande velocidade para casa da carrinha num semi-eixo partido a tropa e que constava que muitos passando pela fazenda do Armindo pendurado num galho duma mes- pretos haviam fugido da fazenda. Lenita onde ele, a mulher e os dois sumba. Ao som das pancadas o pes- Iam ver o que se estava a passar nas filhos podem correr perigo. Chegado soal do acampamento começa a for- fazendas e que depois voltavam a à fazenda chamo a Aline e digo-lhe mar a fim de serem distribuídas as passar por cá. para preparar cobertores pois pode- tarefas para o dia de trabalho. Não vá para o Quitexe. mos ter necessidade de fugir para a Quando saio de casa já só o vejo ir mata. com o pessoal a caminho da planta- Há lá muitos mortos! Mando, também, chamar o Alcindo e ção. Lá partiram e eu desloquei-me para o o Tavares, os empregados brancos da Da casa avistamos a estrada que, Quitexe passando pela sanzala fazenda. vinda do Uíge ou do Quitexe, dá Talambanza onde iria buscar o car- De volta o Chefe do Posto, o Abílio acesso à fazenda continuando depois pinteiro Jorge Panzo. A sanzala, que Guerra e o Jaime Rei vêm horroriza- para S. José do Encoje e Ambuíla. ficava no cruzamento da estrada para dos dizendo que há mortos nas Vimos, então, um jipe com o Chefe o Uíge com a da fazenda, estava fazendas. Eu tenho que lhes dizer que do Posto Nascimento Rodrigues ao deserta. Nem Jorge, nem meio Jorge! no Quitexe também há mortos; os volante. No banco traseiro o Abílio Mas um capita vem apressado dizer- três tinham lá deixado as mulheres e Guerra e o Jaime Rei. Eram afinal os me: os filhos e lá partiram, como loucos, três membros da Junta Local. Muito Não vá para o Quitexe pois há por lá sem saberem o que iriam encontrar. preocupados, o Chefe do Posto cha- muitos mortos! O Dr. “Talambaza” (Almeida Santos) acaba de passar

Entretanto, no Quitexe

O António Manuel Guerra, então com - A minha mãe bem pediu ao meu pai tio Augusto, onde também viviam os dez anos, quando se levantou já não viu que não fosse, mas de nada lhe valeu meus avós (António Inocêncio Pereira e o pai Abílio Guerra. Tinha saído cedo (pressentimentos de mulheres). Joaquina Pereira), estavam as minhas com o chefe de posto, o Sr. Jaime Rei e Recorda agora: primas Milu e Juju, filhas do meu tio dois cipaios do posto. Na véspera o Celestino e tia Maria (que na altura esta- chefe tinha-lhes pedido que os acompa- No final de 1960, tinha eu 10 anos, já vam em Luanda). nhassem para os lados do Zalala, pois qualquer coisa de anormal se fazia sen- Eu levantei-me cedo, como era hábito, e tinham fazenda para aqueles lados e tir, pois as festas familiares (Natal e fui a casa do tio Augusto encontrar-me iriam efectuar contactos com os traba- passagem de ano) não foram como nos com a Milu e Juju, para as desafiar para lhadores das diversas roças dessa região anos anteriores. As reuniões de família irmos brincar. Como elas ainda estavam pedindo-lhes que, caso aparecessem decorriam sempre com as armas em a matabichar, esperei por lá um pouco. elementos estranhos ou suspeitos, os presença. A minha mãe encontrava-se em frente da prendessem e mandassem recado ao No Quitexe estavam a passar férias a nossa casa, a curta distância da casa do posto do Quitexe. minha irmã (que estudava em Luanda no tio Augusto, a podar umas roseiras de Colégio das Freiras), e em casa do meu um canteiro de flores. A minha irmã por nós, da porta de casa do tio Augus- roupão turco que ficou ensopado em ainda dormia. to). Os meus avós que também tinham sangue, bem assim como todos nós, pois Contou depois a minha mãe, que quando saído em socorro da minha mãe, tomba- das oito pessoas que iam na cabine três soaram as badaladas das oito horas, no ram também. A minha avó sucumbiu na estavam feridas. sino da administração, que era o sinal varanda da casa dos meus pais e já a vi para os comerciantes abrirem as portas morta quando acabou o ataque. O meu das lojas, se gerou um certo burburinho avô foi ferido com uma catanada na na rua de cima. Era, afinal, também o nuca, foi connosco para o Uíge, e veio a sinal para começar o ataque ao Quitexe. falecer 5 dias depois no hospital de Uns dias antes tinham fugido uns presos Luanda. da prisão do posto e na perseguição que Algum tempo depois chegou o tio se seguiu, houve bastante algazarra, pelo Augusto que nos veio buscar, já com que a minha mãe não deu importância ao outra arma, uma caçadeira, que ele tinha barulho que ouviu, pensando tratar-se ido buscar à arrecadação do posto, onde outra vez de uma fuga da prisão. Foi estavam algumas armas apreendidas, nesse instante que um elemento que pois a 22 long tinha encravado ao pri- estava na esquina da nossa casa, empu- meiro disparo (salvou-se graças a uma nhou uma catana dirigindo-se a ela de pequena pistola 6,35 que andava sempre arma no ar com a intenção de a matar. com ele no bolso das calças). Fotografia de Maria Helena Guerra, Ela começou a fugir em direcção a casa Em frente da minha casa, estavam o Sr. sendo visível a cicatriz que lhe atra- do seu irmão Augusto, aos gritos de José Coelho Guerreiro e a esposa (D. vessava o rosto, fruto da catanada socorro. Felismina), com a filha bebé a Maria que lhe fragilizou o osso do maxilar.

A minha mãe levou 11 Helena, a minha mãe com 11 catanadas A viagem até ao Uíge decorreu sem (8 nas costas, 2 nos braços e uma no catanadas e o Zézito incidentes e ao chegarmos ao Hospital, rosto, tendo o nariz ficado preso pelo já lá estava o Dr. Almeida Santos (Dr. Guerreiro ficou degola- lábio superior), a minha irmã e o meu Talambanza como era conhecido) à avô que foi colocado num colchão na espera, tendo sido a primeira pessoa a do à entrada da loja carroçaria da carrinha do Sr. José Guer- socorrer a minha mãe, aplicando-lhe reiro. Com o tio Augusto de pé na carro- logo uma injecção à entrada do Hospital. Foi nesse instante que nós ouvimos os çaria a fazer protecção, seguimos para o gritos da minha mãe e nos apercebemos Uíge. O filho mais velho do sr. José Quando o meu pai chegou ao Quitexe, já da gravidade da situação. De imediato o Guerreiro (José Cebola Guerreiro de sete tio Augusto agarrou a espingarda 22 se tinha dado o ataque e já nós tínhamos anos), tinha ficado degolado à entrada da seguido para o Uíge. Como houve mobi- long, ordenou-nos que nos escondêsse- loja dos pais na rua de cima. Na cabine mos e que só poderíamos sair quando ele lização geral, nenhum homem mais foi da carrinha de apenas 3 lugares, seguia o autorizado a abandonar o Quitexe. Ficou nos fosse buscar. Desatou a correr em Sr. José a conduzir (ferido), a esposa direcção à irmã que, entretanto, já tinha 15 dias sem saber de nós, e nós sem (ferida) e filha, a minha mãe, a minha sabermos dele. tombado junto ao cruzamento para a rua irmã, as minhas duas primas e eu. A da Igreja (esta cena marcante, foi vista minha mãe segurava o nariz com um

De regresso à Fazenda Quimbanze

Na fazenda Quimbanze as Já em Portugal, durante a noite chora- • José Manuel Cebola Guerreiro mulheres e os miúdos estão reunidos na va, não era medo era terror, pânico! - 6 anos casa. Entretanto chegam mais uns vizi- -“Não tenhas medo filha, eles • José Luiz dos Santos Albuquer- nhos e era a altura de decidirmos o que não chegam cá. O mar é tão grande!” que - 7 anos fazer... Dentro de pouco tempo, vimos -“Mas há barcos, mãe. Eles • Humberto Romano de Freitas que dois carros circulavam no sentido do podem vir de barco, mãe!” Silva - 8 anos Quitexe que ficava a uns três quilóme- • Maria Emília dos Santos Albu- tros. Resolvemos avançar, também, e Aquela madrugada tinha sido querque - 9 anos entrar na povoação onde alguns cadáve- trágica no Quitexe, mas também em Ilda dos Prazeres Soares -32 res estavam ainda na berma das ruas. diversas fazendas em redor. Tempos anos Tento desviar o olhar dos miúdos da depois, para recordar os seus mortos, os • Adelina (?) da Conceição das tragédia, mas não o consegui totalmente colonos colocariam na parede da igreja Dores Teixeira Fernandes pois a minha Adrianita, com sete anos lápides com os nomes dos assassinados, • Umbelina dos Santos Carmo – não mais esqueceu a visão dos mortos: mutilados e esventrados à catanada. Da 30 anos “Uma guerra, a guerra via leitura dos nomes dos que caíram nessa • Joaquina de Jesus Guerra Bor- com os meus olhos, começou a andar à manhã o que mais impressiona são as ges – 73 anos volta, entrou dentro de mim: a senhora crianças: • António Inocêncio Pereira – 76 gorda que tanto tremia, as pessoas mor- anos tas nos passeios do Quitexe, nós fecha- • Laura de Jesus Soares da Res- • Maria Coelho Guerreiro – 48 dos num quarto do hotel do Uíge e a sureição - 4 anos anos mãe com uma catana na mão; depois, • Luiz Osvaldo Fernandes Cor- • Maria Cesaltina Pires Ferreira escondidos num jeep, com armas a pro- rente - 5 anos tegerem-nos, na ida para o aeroporto. – 32 anos • Esposa de António Mendes • Mário da Ressureição – 34 • Henrique do Nascimento Pires Famílias inteiras destroçadas e, anos – 30 anos outras, que jamais recuperaram do trau- • Carlos Taylor Corrente • José Poço – 39 anos ma. • Manuel Maria Guerreiro Men- • António Mendes – 32 anos Até 1975 outras placas se segui- des – 26 anos ram preenchendo a fachada da igreja.

Foto de http://cesarbcav1917.blogs.sapo.pt/

A fachada da igreja foi ficando repleta de placas alusivas aos mortos portugueses no município do Quitexe Entretanto, no Uíge

António Manuel continua o seu minhas primas para casa dela, onde para levar os feridos e ao qual foram relato: puderam trocar de roupa que entre- retirados alguns bancos para receber tanto lhes arranjaram, pois nós saí- as macas. Aguardámos a chegada do No Uíge, o tio Augusto levou-nos mos do Quitexe só com a roupa que avião, sozinhos e sem qualquer pro- para uma sala no hospital e deixou- trazíamos vestida. Próximo do meio- tecção militar. Quando o avião ater- me de guarda às espingardas encos- dia, o tio Augusto levou-me a casa rou, foram embarcados os feridos do tadas a um canto da sala, enquanto dessa senhora, onde troquei de roupa Quitexe e lembro-me de ter visto a ele procurava saber dos feridos. Ao (as nossas estavam todas cheias de D. Felismina, Sr. José Guerreiro e hospital chegavam cada vez mais sangue) e almoçámos. filha, a minha mãe, o meu avô, a pessoas, quer feridos, quer pessoas Logo a seguir ao almoço, o tio Geninha e a prima Beatriz, o Tio que iam saber de amigos e de notí- Augusto foi-nos buscar e levou-nos Augusto, a minha irmã, e as minhas cias. para o aeroporto do Uíge, onde primas. Mais pessoas embarcaram, Uma senhora que morava próximo aguardámos a chegada de um avião pois o avião ia cheio, mas não me do hospital, levou a minha irmã e as (Dakota) da DTA, vindo de Luanda recordo quem eram.

Regressemos ao testemunho de João Garcia:

Ao Quitexe começam a afluir as evacuar as mulheres e crianças para o No Uíge ficamos instalados no mulheres e crianças brancas de todas as hotel do Uíge. Mas consta que esta cida- hotel, mas os rumores do ataque da UPA fazendas. Ninguém sabe se será seguro de será atacada por milhares de pretos são cada vez mais persistentes. As ruas permanecerem lá sozinhas ou, sequer, nessa noite (de 15 para 16). Decido que estão desertas e na rua principal apenas como vai evoluir a situação. Na parte da o meu dever acima de tudo é defender a um civil, que deve ser da Pide, patrulha, tarde vem uma camioneta do Uíge para família e deixo o Quitexe rumo ao Uíge. rua abaixo, rua acima, com uma pistola- metralhadora e cartucheiras cheias de res, em caso de ataque apenas têm as balas. No hotel a confusão e ansiedade As mulheres, nos quar- catanas para se defenderem. A meia- pelo que pode acontecer é grande. Não noite aproxima-se e então começo a ver há ninguém para defender o hotel. Um tos do hotel, apenas têm e ouvir vultos que se aproximam, subin- redactor do Jornal do Congo, lá hospe- catanas para se defen- do a rua das traseiras do hotel. dado, apercebe-se do drama e telefona – MATA! MATA! UPA! UPA! para o quartel da tropa relatando a situa- derem! Do lugar onde estou vejo passar a turba, ção em que se encontravam dezenas e A situação era aflitiva pois os mas não há nenhum sinal de quererem dezenas de mulheres e crianças, total- homens tinham ficado no Quitexe. Esgo- atacar o hotel. Também já passaram mente desamparadas e sem protecção. A tada a possibilidade de defesa, vou à loja junto ao quartel da Polícia e do Palácio resposta foi pronta: do Ferreira Lima buscar uma dezena de do Governador e só se ouve o – MATA! catanas que distribuo pelos quartos. Com MATA! UPA! UPA! Não há tiros. Só - Desenrasquem-se como puderem os poucos homens organiza-se uma mais tarde para os lados do Bairro Mon- pois em caso de ataque nem tenho defesa simbólica com duas pistolitas e tanha Pinto começa grande tiroteio que tropa suficiente para defender o duas catanas. Três pessoas ficam na vai diminuindo conforme a noite avança. paiol! porta principal. Eu fui para as traseiras Corre a notícia de que, afinal, as grandes defender a porta de acesso às instala- sanzalas em redor do Uíge não colabora- Eu tinha comigo uma pistola ções. A noite vai avançando. Atacarão, ram no ataque. O grupo que avançou era 365 com 10 balas; eu que na minha vida não atacarão? Agora chega a informação o que havia passado nas traseiras do só tinha disparado ao alvo armas de que o ataque vai começar à meia-noite. hotel e foi disperso. pressão de ar! E se fosse preciso abrir Cresce a ansiedade. Nada é dito para os fogo?... quartos, agora fechados, onde as mulhe-

Nesta altura já o avião com os primeiros feridos chegara a Luanda, conta-nos António Manuel:

Ao chegarmos a Luanda, não fomos sido nessa altura que ele falou com o parte do poder que tentara encobrir os desembarcados para o terminal do aero- autor do livro Sangue no Capim (Horá- ataques. porto como seria normal. Fomos metidos cio Caio), que faz uma alusão muito Entretanto, uma senhora amiga, esposa todos em ambulâncias que nos levaram rápida sobre as pessoas com que o meu de um caixeiro-viajante, que aparecia para o hospital Maria Pia, onde ficaram tio estaria preocupado (Tio Jaime e famí- pelo Quitexe e por vezes ficava em nos- internados os feridos. O tio Augusto, as lia, família Rocha, etc.). sa casa, viu o nome da minha mãe, num minhas primas, a minha irmã e eu, jornal diário na lista dos feridos, foi podemos juntar-nos ao tio Celestino, que Houve manipulação por par- visitá-la ao hospital e mandou um tele- estava em Luanda e tinha seguido as te do poder para encobrir os grama para o meu pai, dando-lhe conta ambulâncias desde o aeroporto e aguar- que a família se encontrava viva em dava por nós. ataques Luanda. O tio Celestino levou-nos para o hotel Na primeira oportunidade que o meu pai Europa, onde ele se encontrava hospeda- Ao tio Augusto, que infelizmente viveu teve de pedir uma licença ao exército do e fomos mandados subir imediata- na primeira pessoa o ataque ao Quitexe, para ir a Luanda ver a família, fê-lo e mente para os quartos, não tendo sido e que para mim foi o nosso salvador, não nunca mais regressou ao Quitexe. permitido a ninguém falar fosse com foi permitido que falasse com ninguém As nossas casas foram entretanto aluga- quem fosse. À porta do hotel encontra- (não entendemos porquê). Mais tarde, e das ao exército, tendo permanecido vam-se bastantes pessoas, mas só o meu à medida que se ia falando mais sobre assim até 1975. tio Celestino ficou para trás, e creio ter estes acontecimentos, começámos a perceber uma certa manipulação por

Dia 16

Continuamos, agora, com o relato nós nos responsabilizássemos pelo do que se está a passar e ficam muito de João Garcia pagamento. Perante uma tragédia desta surpreendidos pois em Luanda não há dimensão era ignóbil que fossem os conhecimento de nada. E prometem que, Começa a caça ao preto, enquanto vão particulares a assumir as despesas, mas se houver condições, voltarão antes de chegando notícias de mortes por todo o não hesitámos. Eu e o Ramos assumimos anoitecer. Mas as condições atmosféricas norte de Angola. a responsabilidade, com a garantia de não o permitiram. Eu, o Ramos e o Armindo concluímos que o avião chegaria ao Uíge por volta No dia seguinte o Governo ordena uma que, dada a impossibilidade de as famí- das três da tarde. Não havia sacos nem ponte aérea e começa a evacuação das lias voltarem para o Quitexe e para as malas pois as mulheres e crianças mulheres e crianças do norte de Angola. fazendas, o melhor seria requisitar um embarcavam com a roupa que traziam no E eu regresso ao Quitexe preocupado avião e evacuá-las para Luanda, onde corpo. com o que se terá passado na fazenda. estava tudo calmo. Feitas as diligências Já no aeroporto e com o avião junto da DTA o avião só viria ao Uíge se na pista os pilotos tomam conhecimento No percurso, perto da fazenda do Matos Vaz um casal de nativos, ela Bilhete do contratado José Zeferino com um bebé atado às costas, caminha relatando o assalto à fazenda no dia 24 de Março: pela berma da estrada. De uma carrinha Atenção no dia 24 de Março alguém dispara e mata o casal. Eu, que de 1961 apareceu com muita gente de vou noutra carrinha, mais atrás, vejo Ambuíla com espingardas. Começou a horrorizado o bebé rastejando por cima partir as portas. Queria nos levar no do corpo da mãe já morta. O motorista povo deles. Nós com pessoal do Sr. não para e ninguém grita... A morte Gracia ninguém acedeu na conversa sobrepõe-se à vida! deles. Os gajos mataram as cabras e O Quitexe está cheio de gente que, vinda galinhas do Snr. Gracia, (...) entrou nos dos , das povoações e das quartos a bebida toda que havia lá e chouriço e atum comeram tudo. Fez fazendas ali procurava abrigo. muito estrago (...) A noite de 17 para 18 é passada na casa Vosso servo do Chefe do Posto entretanto transfor- José Zeferino mada na fortificação principal. Um gru- po de 9 soldados africanos, 2 cabos e um tenente brancos das forças territoriais cada vez menos ocupado. Com diversos vêm em nossa defesa. Os soldados e os argumentos, entre os quais irem ver as civis, deitados no chão, embrulhados Parecem nunca terem sono, disciplina- mulheres e os filhos a Luanda os homens num cobertor, esperam, dormindo acor- dos. São homens do Sul, talvez Cua- também vão saindo. Mas a vigilância dados, que a manhã afaste o medo da nhamas, soldados de confiança. aumenta, temendo-se novo ataque. noite. Os soldados africanos revezam-se O Quitexe, onde nos primeiros dia e noite agarrados às metralhadoras. dias se juntou muita gente, vai ficando

A repressão

Após o ataque ao Quitexe as propomos tentar entrar em contacto com pouco política e irresponsável, as autori- populações das grandes sanzalas perma- as sanzalas, mas a nossa sugestão é limi- dades portuguesas entregaram à guarda neceram nelas, pacificamente. Os carros narmente excluída: não havia ordem da UPA, os povos com quem convive- circulavam no seu interior, sem qualquer para isso. mos durante centenas de anos. Este con- hostilidade. Há como que uma pausa As sanzalas são metralhadas e vívio nem sempre foi feito da melhor para avaliar a situação pois creio que, incendiadas. Homens, mulheres, velhos maneira, mas mais por culpa das autori- embora todos os negros estejam ao cor- e crianças iniciam a debandada; levam dades que preferiam, em vez do respeito rente do que se passa, inicialmente, só consigo os poucos haveres que conse- mútuo, incutir em terra alheia a submis- uma pequena parte terá aderido à UPA e guem reunir. O seu destino é as matas são e o medo, esquecendo os valores do ao ataque ao Quitexe e às fazendas. A impenetráveis da Serra do Quimbinde, humanismo cristão que tanto apregoa- UPA só conseguiu alguns êxitos no da Serra do Quitoque, do maciço da vam. primeiro dia dada a surpresa, pois se Serra do Cananga. Vão, quem sabe, à Só mais tarde adoptaram a estivessem as fazendas alertadas, tudo procura dos lugares dos seus antepassa- política da “psico”, tentando atrair as tinha sido diferente. As autoridades dos, de onde, um dia, foram obrigados a populações africanas a aldeamentos - estavam, afinal, a par do que iria aconte- sair, pela força, para se fixarem junto às modelo guardados pelos “flechas” e cer, dia e hora, como posteriormente se estradas que correm no sopé das serras e veio a saber. Porque não alertaram as dão acesso aos Postos Administrativos e, visitados pelos altos governantes, como fazendas e as povoações da iminência do agora, às povoações da população branca exemplo da convivência com os povos ataque? Porque deixaram morrer tantos e às sanzalas africanas. nativos. brancos, mulheres e crianças sem sabe- A morte de todos os pretos da região, rem por que estavam a ser esquartejados sentenciada pela Pide, braço da repres- à catanada? são do governo, secundada pelos agentes A UPA, à semelhança do que se passou das autoridades administrativas e outros no Congo Belga, confiou que os bran- mais sedentos de vingança, conseguiu, cos, cheios de medo, abandonassem em em poucos dias destruir o equilíbrio fuga as suas terras, o que, por pouco não simbólico que existia entre o poder das conseguiu. Só, talvez a presença de autoridades portuguesas e o poder afri- largos milhares de contratados do Sul, cano dos sobas. agora todos classificados de Bailundos o terá evitado. Só na área do Posto do O bom relacionamento dos Quitexe haverá quatro ou cinco vezes comerciantes com os povos das sanzalas mais Bailundos que toda a população era fruto de uma actividade onde os local africana. Por variadas razões estão interesses mútuos se cruzavam. Para o totalmente ao nosso lado e, assim evitam comerciante do mato é do bom relacio- que a actividade cafeícula paralise. namento com os nativos que depende a A repressão que se segue é bru- sua própria sobrevivência e foi este tal. Não se procura uma alternativa. equilíbrio estável que foi irremediavel- Entretanto, eu e o Martins Gonçalves mente perdido. E, assim, de maneira “Ao Povo do Quitoque que está nas mata. a tropa trata bem de nós. Todo que vinha familiares para saírem da mata e se apre- Eu Raul Manuel chamo meu pai Manuel, doente foi tratado no hospital, agora está sentarem à tropa portuguesa. Este pan- venha apresentar no Quitexe e outra gente muito bem; olha se não deixar gente para vir fleto era lançado no mato com meios quer vir, venha também. Não deixa perder apresentado vão entrar patrulha vão fazer aéreos e fazia parte da "guerra psicológi- seu tempo. Francisco Domingues chama a 3(?) mez (?) na mata e lagar (?) mandioca ca", lançada mais tarde, para retirar as mulher Donana Almendo, o Tiago Malungo Se onde vão esconder populações da influência dos movimen- chama a sua mulher, o soba Simão Domin- espero tos de libertação. gues chama sua filha Luísa Simão e os seus dia 21-11-65 netos O Soba Simão Domingues” Documento - José Lapa O comandante deixa vir quem quiser vir apresentar. Todo está apresentado vive bem, Carta do Soba do Quitoque pedindo aos

Em 62 os que regressavam ao Quitexe eram treinados e preparados como um grupo especial da defesa civil (foto – António Rei)

O ataque à sanzala do Ambuíla

O homem da Pide, pessoa por Quando parece acabada a ope- Parti com a sensação de que, no sinal asquerosa, era quem mandava no ração eis que surge uma figura envolvida dia seguinte, só encontraria destroços Quitexe. Tinha efectivamente um poder em panos, de carapinha toda branca, um fumegantes das casas, dos armazéns, dos que se sobrepunha a todos os outros, velho (macolundo) descendo do ponto acampamentos, dos tractores, enfim de incluindo o militar e era ele que coman- mais alto da sanzala. Era o velho Cusse- tudo o que representa uma vida de traba- dava toda a repressão. Assim, resolve cala, pai do Pedro, meu antigo ajudante lho e sofrimento. um dia, com autorização superior, nas carrinhas, que enlouqueceu, depois A morte é a sina para incendiar a sanzala do Ambuíla que de ter sido soba. confrontava com a minha fazenda. Nesse fim do dia, ele descia todos os negros que livre, pela última vez a avenida da sua não sejam bailundos Fiquei preocupadíssimo, pois a velha sanzala. Ainda grito para um sol- roça limitava com a sanzala e com todas dado: Vivendo ainda o sucedido no as lavras de café, mandioca e feijão que - Não o matem! Não o matem! Ele é um dia anterior, vou para a fazenda saber a eram a base de toda a sobrevivência doido que há muito enlouqueceu! reacção dos contratados Bailundos aos daqueles povos. Quando fui autorizado a Do cano da espingarda uma acontecimentos. Sou informado de que demarcar a fazenda tive o cuidado de bala parte direitinha ao crânio do Velho está tudo calmo e que a minha ordem, falar com o velho Cussecala, deixando Cussecala que cai com a cabeça despe- para que todos os utensílios roubados no livre a mata entre a fazenda e as lavras e daçada. Ambuíla fossem postos fora da fazenda sempre mantive relações de cordialidade foi cumprida. O Augusto segredou-me com os nativos da Sanzala. Agora é o regresso dos heróis e que eles tinham reunido todos os bens eu vou para a fazenda onde começam a roubados e os tinham ido pôr junto à Sigo para lá e constato que são chegar os contratados com os despojos minha casa; de noite alguém os havia os meus contratados que, à ordem da do saque. Ordeno, então, para que todos levado. Pide, estão a colaborar no ataque. os haveres que tinham sido roubados na Não fiz mais perguntas, mas calculo que Quando entro na sanzala os sanzala sejam transportados para fora da os seus donos os vieram reaver, levando- contratados vêm carregados de coberto- fazenda pois não permito que nada rou- os para as matas, onde agora se escon- res, panelas, bicicletas e tudo o mais que bado aqui permaneça. Têm o prazo até diam. podem carregar. Entretanto o fogo vai amanhã de manhã para o fazerem. consumindo as cubatas, restando apenas paus fumegantes. O Augusto e o Quintas

Recordar o Augusto e o Quintas é, sabendo do seu paradeiro e, aprovei- vou encontrar já casado e com três para mim, um acto doloroso. Eram tando a minha ausência, resolveu ir filhos. dois empregados da fazenda que não buscá-los. Essa pessoa, manda-os eram Bailundos. Trabalhadores chamar dizendo que eu precisava exemplares de quem eu gostava deles no Quitexe. Os dois dirigem-se muito. Depois do 15 de Março tomo para a carrinha. O Quintas sobe mas consciência do perigo que eles cor- o Augusto diz que tem que voltar ao rem. Eu não vou permitir que os acampamento buscar um cobertor. brancos os matem, pois é a sina que Vai a correr para demorar pouco. No está reservada para todos os negros momento em que o tinham mandado que não sejam bailundos. Como subir lembrou-se das minhas palavras sabia que eles nada tinham a ver com e já não voltou. O pobre do Quintas é o que se estava a passar, chamei-os e entregue à Pide que o faz desapare- fiz-lhes ver a situação. Pelos tempos cer. mais próximos eu dava-lhes guarida O Augusto viveu sempre na na fazenda, comida e dormida, mas fazenda e, em 1973 quando regresso não podiam aparecer a qualquer ao Quitexe, passados 12 anos, lá o branco. Certo dia, em que eu tinha ido ao Uíge, houve alguém, que

À procura da cidadania

Neste tempo de certezas absolutas nin- à cidadania portuguesa e fugir ao estatu- branco se julga no direito de fazer justiça guém queria encarar a raiz do conflito. to do indigenato que era, ainda, uma por conta própria. No entanto era notório que algo novo reminiscência da velha escravatura. estava na forja e que excluía a comuni- Nenhum filho da puta de A aquisição da cidadania era dade branca. Os indígenas, que tantos formalizada com a posse do Alvará de preto queira ser portu- anos esperaram pelo direito à cidadania Assimilação. Enquanto os brancos, para na sua própria terra, impedidos de serem guês como eu! obterem o Bilhete de Identidade, apenas cidadãos portugueses, fartos das prepo- precisavam duma certidão de nascimen- Vem tudo isto a propósito do Alvará de tências das autoridades administrativas, to, duas fotografias e uns dias de espera, Assimilação. Certificada a pretensão era da palmatória e do chicote foram terreno para os negros era um nunca mais acabar entregue na Administração ou no Posto fértil para a sementeira de ódios recalca- de exigências: Administrativo; Em qualquer dos dois dos. lados o destino era o mesmo – o cesto - Tinham que ser católicos (quando João Garcia recua no tempo e relata-nos dos papeis. Fartos de esperar acabam por nesta região os povos eram quase alguns acontecimentos do quotidiano desistir, pois a resposta era sempre a todos protestantes); que ajudam a compreender a raiva e o mesma: - Só podiam ter uma mulher; descontentamento acumulados que, bem - Deviam possuir uma casa com - Ainda não há nada! explorados pela UPA, explodiram numa cobertura de zinco ou alumínio. Alguns, entretanto, vão tentar a onda cega de ódio e sangue. - Tinham que falar português. sorte a Luanda e, possivelmente a troco Por volta dos anos 55/56 o preço do café Eram as condições que as auto- de uns angolares, lá arranjam o tão dese- atinge preços elevados; a economia ridades administrativas do Quitexe jado alvará. Quando voltam às suas floresce e os indígenas, ao vender o seu impunham e que podiam ser certificadas terras, orgulhosos porque finalmente são café nas povoações comerciais regres- por comerciantes. Ainda certifiquei uma homens com direitos, vão, como tal, sam a casa com bens de consumo que meia dúzia de casos, pelo conhecimento apresentarem-se se às autoridades exi- nunca pensaram adquirir. Os quimonos e pessoal que tinha das pessoas, pois, bindo o símbolo do sonho agora realiza- as tangas dão lugar aos vestidos, os tirando a questão religiosa, tudo o resto do. O Chefe do Posto analisa o alvará e panos que envolvem os mais velhos são, era verdadeiro. vê que foi tirado em Luanda. Sendo ele em parte, substituídos por calções. Até a natural deste posto não podia ser emitido Mas, como no passado, desde o língua portuguesa começa a sobrepor-se sem prévia informação da autoridade reino à república, as leis são aprovadas ao Quimbundo; já não há miúdo nenhum local. O Chefe do Posto chama o cipaio em Lisboa, mas os governos coloniais que não fale a nossa língua, ou porque e manda dar uma carga de porrada e das províncias não só não as cumprem nas missões o seu ensino é agora mais vinte palmatoadas em cada mão, dizen- como não as mandam cumprir, perpe- intenso, ou porque o relacionamento do: tuando uma escravatura, onde os direitos com os comerciantes é cada vez mais são só aqueles que cada autoridade - Aqui quem manda sou eu e, forte. Alguns indígenas, já produtores de administrativa, segundo a sua bondade, enquanto for autoridade, nenhum grandes quantidades de café, começam a permite. O abuso é tal que qualquer filho da puta de preto queira ser manifestar o desejo de adquirir o direito português como eu!

O Velho Canzenza

O velho Canzenza simbolizava nheiros, advogados, comerciantes, juí- a alma da velha cultura e do poder afri- zes, reformados do exército e também cano, exercido em paralelo com o da muitos aventureiros; vêm todos à procu- administração portuguesa. A solução dos ra do ouro negro. grandes problemas surgidos no seio das As matas do Quitexe são as comunidades e no interior das sanzalas mais apetecidas e, assim, munidos de estava a cargo de Os Mais Velhos que licenças de demarcação de milhares de eram pessoas de muito respeito, não só hectares, vão espalhando tabuletas a por serem velhos, mas pelo saber e expe- assinalar a posse e ocupação dessas riência que tinham da vida africana. São, lados de Camabatela aproxima-se da extensas áreas. O Quitexe está transfor- os mais velhos, homens como o Canzen- sanzala. O velho lá está vestido com os mado num verdadeiro “Farwije”. za, perante os quais os mais novos se tradicionais panos. Da carrinha são dis- curvam e batem palmas em sinal de Estamos no ano de 1951. O parados tiros e o Canzenza cai ao chão. muito respeito. Foi na pequena sanzala, velho Canzenza é chamado ao posto A viatura não para, segue para o Quitexe logo à saída do Quitexe, na estrada que onde o Chefe lhe diz que as suas antigas e o R...... anuncia que acabava de matar vai para Camabatela, que o velho Can- lavras de café na serra do Cananga e as o Canzenza. No dia 18 de Março o Qui- zenza foi obrigado a fixar-se desde matas em redor foram demarcadas por texe está em pé de guerra, cheio de gen- 1947/48 vindo de longe, da serra do um senhor médico, reformado do exérci- te. Por altura do meio-dia é dado o sinal Cananga. Lá vivia rodeado de uma to. O Chefe do Posto intimou o Velho de alerta, todos correm a pegar em numerosa família e era possuidor de Canzenza para, no outro dia, lhes ir armas. Um preto, possivelmente um grandes lavras de café. mostrar todas as lavras lá existentes. Ele, “turra” aparece de mãos no ar dirigindo- que três anos antes fora obrigado a se para o Posto Administrativo. Aproxi- abandoná-las, regressa, agora, para as ma-se e passa entre alguns brancos de entregar ao branco vindo de Luanda. armas apontadas. Vou ver de quem se Podia ser que o branco, em troca, lhe trata e, meu Deus, que vejo eu! A figura desse uma boa retribuição... imponente do velho Canzenza. Tal como Jesus Cristo, que ao terceiro dia ressusci- Há uma corrida em tou, também o velho Canzenza faz de direcção ao Norte. Todos novo a sua aparição no reino dos vivos. querem ser fazendeiros Afastei-me cobardemente, para que ele não me visse. Eu não estava em condi- Mas o oficial médico, vestindo a sua ções de lhe poder valer, pois, dias antes, farda militar, arroga-se em representante eu também havia sido ameaçado de do estado português e, portanto nada morte pelos brancos. Horas mais tarde, tinha a pagar. soube que havia sido entregue à Pide e tinha sido levado para o Uíge para inter- E, assim regressaram ao Quite- A ordem do Muniputo (Admi- rogatório. Pobre Canzenza, por certo xe, o Velho mais pobre e o branco, mais nistração Portuguesa) viera. Tinha que nunca mais voltaria e as autoridades rico, talvez já colha, nesse ano, umas abandonar a sua serra e fixar-se junto à portuguesas teriam perdido um dos elos toneladas de café nas lavras abandona- estrada, perto do Posto Administrativo mais fortes do convívio pacífico entre os das. do Quitexe, a uns 40 ou 50 Km. Portugueses e os Africanos: apesar de A partir de 1949 o café começa No dia 15 de Março o Canzenza tudo, Os Mais Velhos gostavam dos a subir nas cotações internacionais, o seu ficara na sua sanzala que ficava a menos Portugueses! de 1 Km do Quitexe. Por certo saberia o preço aumenta. Em Luanda há uma . corrida em direcção ao Norte. Todos que se tinha passado nessa manhã. Ao querem ser fazendeiros: médicos, enge- cair da noite, uma carrinha vinda dos

O segundo ataque ao Quitexe

Em 10 de Abril organiza-se nas tremeram-me; felizmente reagi e não junto ao ombro. O Dr. Assoreira e o uma grande coluna com todos os bran- caí. Continuo a subir a rampa trazendo, enfermeiro Alves conseguiram estancar cos que ainda resistem, tropas e Bailun- atrás de mim os contratados. Já a uns 50 a hemorragia. Há mais três ou quatro dos das diversas fazendas para ir ocupar metros da casa do Chefe do Posto, onde feridos mas sem gravidade. Mortos, Aldeia Viçosa. Mas a povoação estava estava concentrado o maior poder de temos o soldado esfacelado pela granada completamente destruída e é feito o fogo da nossa defesa, mas felizmente, e uma família, pai (Bessa), mãe (negra) e regresso ainda nesse dia. A deslocação a agora, virado para o lado oposto de onde dois filhos, que viviam em casa do Lau- Aldeia Viçosa deixou-me muito cansado eu vinha, alguém grita: rindo Ribeiro, mesmo à entrada da e, como tudo parece calmo, vou dormir a povoação e, por isso mesmo, foram as - Não façam fogo! Vem ali o Garcia! minha casa, no meu colchão. De noite, primeiras vítimas do ataque, barba- Não façam fogo! pouco antes de amanhecer, acordo com ramente assassinados. E assim conseguimos chegar ao um falatório em surdina entre os Bailun- Posto, eu e os Bailundos, que foram dos que estavam a dormir nas varandas colocados à volta da casa. Mas dois da casa. Levanto-me, calço os sapatos e “turras” haviam-se misturado com os em cuecas venho à porta saber o que se contratados que, prontamente, os denun- está a passar. ciaram. Foram de imediato executados. Mal abro a porta, rompe um tiroteio Entrei para dentro do Posto e fui coloca- infernal. Vou buscar a espingarda e o do numa janela para proteger o motor e o saco bordado da ilha da Madeira, onde gerador da electricidade. De arma carre- trago as 100 balas que me haviam sido gada fiquei vigilante. De repente um distribuídas e vou para o Bar do Pache- estrondo enorme faz tremer a casa. Digo co, mesmo em frente, onde todos os dias para mim: dormíamos. Mas eles, logo que começou - Estamos perdidos, já cá estão den- o tiroteio, fecharam as portas. Entretanto tro. os Bailundos vão-se juntando à minha A coisa é grave, vou ver o que Os mortos visíveis da UPA são volta; eles e eu, estamos agora em cam- se está a passar e vejo, no canto da sala poucos, uns seis ou sete à roda do posto. po aberto. Olho da esquina do Bar do ao lado, um soldado morto, completa- É uma surpresa, terão eles carregado os Pacheco para as ruas em frente e só vejo mente despedaçado. Aconteceu, que o mortos? Como é possível, com tantos pretos com uma fita branca à roda da soldado, prevendo o aproximar dos ata- tiros e avançando eles a descoberto? cabeça. É o distintivo dos “upas” para cantes, agarra numa granada de mão, tira não se confundirem com os Bailundos. Ora, dentro da povoação, a úni- a cavilha e, quando se prepara para a Tudo quanto é arma faz fogo cerrado ca saída que tinham, dado o fogo intenso arremessar é atingido por um tiro na desde as metralhadoras pesadas, às mau- a que estavam expostos, era refugiarem- barriga. Recua para a sala, sempre com o sers e caçadeiras e eu, ali em cuecas, no se no capinzal, que do lado poente tinha manípulo premido, com a mão fechada. meio da rua, sem saber o que fazer. uma altura que os escondia completa- Já no canto da sala começa a desfalecer, Resolvo arriscar e começo a subir em mente. abre a mão e deixa cair a granada que direcção ao Posto, com todos os Bailun- rebenta estrondosamente, estilhaçando As autoridades dão ordens para dos atrás de mim. É uma decisão arris- tudo à volta. que os contratados das fazendas capinem cada, para mim e para os contratados, toda aquela área do lado poente. E, pois há o risco dos defensores da casa do então, as suspeitas confirmam-se: à Posto confundirem os Bailundos com os medida que o terreno vai ficando limpo terroristas e, então, ocorrer uma chacina começam a aparecer os cadáveres criva- de consequências imprevisíveis, pois dos de balas. Na fuga os “upas” tinham nenhum dos comandantes se lembrou da que atravessar um terreno inclinado, protecção a estes homens em caso de onde eram apanhados pelas balas das ataque. metralhadoras, não lhes valendo de nada Tudo quanto é arma faz o facto de estarem escondidos no capim. Ouvi dizer que os alinharam no fogo cerrado e eu ali, em chão, à medida que iam aparecendo, mas cuecas, no meio da rua eu não fui ver. O espectáculo da morte sem saber o que fazer. nunca me atraiu. Para mim representa sempre uma tragédia macabra, mesmo quando feita em legítima defesa. Infe- lizmente, neste mundo cristão, o man- As balas assobiam por todo o lado, um Agora, que as armas se calaram damento – Não matarás , não é escutado, , perto de mim, leva uma cata- e o dia começa a despontar há que tratar prevalecendo sempre o grito odiondo de nada na cabeça. No lusco-fusco ainda há dos feridos e contar os mortos. Dos – Viva a morte! De um lado porque é muitas sombras, mas o ataque é forte. feridos, o caso mais grave é o cabo preto, do outro porque é branco Eu, na vida, nunca tinha tido medo, mas Alfredo, que foi atingido e tem uma bala naquela altura, e, por segundos, as per- alojada um pouco acima do coração,

O Adeus ao Quitexe

Corre o mês de Abril de 61 no conta do dia-a-dia do Quitexe. A vida ser como era dantes. Entretanto alguns, Quitexe. O tractor, que eu havia humana, para alguns, tem apenas o poucos, abriram as lojas e começaram, emprestado para os trabalhos de abertu- valor do custo de uma bala, 7$50. Triste com restaurantes e bares, a fazer negó- ra da pista para as avionetas, continua imagem de gente “civilizada”. Estes cio com os militares e, mais tarde com ao serviço da Administração. Mas, são, afinal, os valores morais emergen- os voluntários. entretanto, alguém me vem informar tes da filosofia da guerra que só viriam Nos primeiros dias de Julho que o pretendem utilizar na abertura de a ser contrariados por oficiais militares vou a Camabatela. No caminho encon- valas para enterrarem os pretos que vão que reconheceram o mérito e a bondade tro muitos camiões carregados de tropa, sendo mortos na repressão cega, desen- das minhas atitudes nesta guerra diabó- atolados num mar de lama. Era a com- freada e absurda da revolta. Faço-me lica. panhia que seguia para o Quitexe. ouvir: - Quem os mata que lhes abra a Também se acabaram as cucas (cerve- Chegado ao Quitexe, anuncio cova! Com o meu tractor, não! jas), o vinho e até os cigarros escas- que, finalmente, as tropas já estão às seiam. As pessoas começam a reagir portas de Camabatela e que dentro de Retiro a máquina e guardo a pelo desprezo a que estão a ser votadas três ou quatro dias chegarão à povoação. chave. Ninguém se atreveu a questio- pelas autoridades, que nada fazem para No dia 4 de Julho combino nar-me. abastecer o Quitexe. Só os de são heróis. Aproxima-se o mês de Julho com o Armindo Lenita a ida para Luan- e eu começo a pensar seriamente em vir da, pois ele também vai a Portugal ver a A vida humana tem família. Combinamos fazer a viagem de a Portugal. Entretanto, a chegada de carrinha, via onde dormimos. No apenas o valor do custo uma companhia de soldados, para se dia 5 vou ter com o Alferes Santiago, fixar no Quitexe, já tem data anunciada. de uma bala, 7$50 uma jóia de pessoa, pedir autorização O meu irmão Alfredo, que já regressou para ir a Luanda e a Portugal. Os corpos dos negros são atira- de Luanda, vai tentar, com o Alcindo, dos da ponte ao rio Luquixe. Às vezes fazer a colheita do café. As circunstân- ainda moribundos, agarram-se aos cias são difíceis, pois os contratados do sul são poucos e também ficaram afec- - Vá, vá, Garcia. Vá ver a família e ramos das árvores que bordejam o rio e trate da saúde que deve estar aba- assim se vão esvaindo até que a morte e tados por quatro meses de terríveis sobressaltos. lada. a corrente os transportem rio abaixo. A indisciplina, que entretanto Com a anunciada vinda da tropa muitos reina entre os brancos, causa alguma comerciantes regressam na esperança de Desejei-lhe felicidades e, com apreensão às autoridades. que a actividade possa ser retomada. um aperto de mão, despedi-me do nono Neste ambiente, sem calor Mas, ao contrário dos agricultores, que, comandante do Posto Militar do Quite- humano, os sentimentos são confusos. se tiverem um pouco de segurança, xe, quantos os que foram rendidos Não há mulheres, nem o sorriso ou o podem fazer a colheita, os comerciantes durante a minha permanência de 4 choro de uma criança. À noite matilhas não têm a quem vender e a quem com- meses na guerra. de cães famintos, abandonados pelos prar, pois só com o regresso dos nativos Do Quitexe levei comigo a seus donos cercam o Quitexe, uivando das matas aos lugares das antigas sanza- imagem de um sepulcro, onde só sem parar, pressagiando a desgraça e a las isso seria possível. Hoje sabemos regressaria se um dia voltasse a haver morte. Os nervos sempre à flor da pele, que isso só veio a acontecer 14 anos paz. o vinho, a cerveja e os instintos mais depois, quando já nada podia voltar a primários de cada um vão tomando

João Nogueira Gar- António Manuel João Nogueira Garcia e Abílio Guerra, cia rumou a Angola, Pereira Guerra , nas- foram durante anos, e até 61,vizinhos em 1947, com uma carta de chamada ceu no Quitexe em Junho de 1950, no Quitexe. Os seus filhos, João Luís e do seu irmão Alfredo que se instalara sendo o primeiro filho de europeus a António Manuel reencontram-se ao em Porto Alexandre uns anos antes. nascer naquela povoação. Filho de fim de muitos anos em Coimbra, Natural da Várzea Grande (Vila Nova Abílio Augusto Guerra e Maria Hele- fazem amizade e fomentam um blogue do Ceira) chegou a Angola com 21 na Borges Pereira Guerra. Os seus pais sobre o Quitexe – Espaço aberto para anos, com uma mala cheia de esperan- oriundos de Trás-os-Montes tinham a divulgação de dados históricos, ça. Rapidamente a sua experiência no chegado a Angola, depois de uma demográficos, sociológicos e etnográ- comércio lhe permitiu construir a sua breve passagem pela Guiné. Estabele- ficos desta vila Angolana. própria casa comercial no posto admi- ceram-se no Quitexe em 1949. Depois Os relatos, que hoje publicamos, nistrativo do Quitexe, na zona do de estar à frente da casa comercial do baseiam-se no livro “Quitexe 61 – Uíge, a terceira a ser edificada no seu cunhado Celestino, o seu pai cons- Uma Tragédia Anunciada” escrito por local. truiu a sua própria casa e demarcou João Nogueira Garcia e nos depoimen- O bom relacionamento e o respeito uma fazenda para os lados do Zalala. tos prestados por António Guerra no que nutria pelos povos desta região - “Eu tive o privilégio de nascer em blogue “Quitexe” - http://quitexe- angolana foram fundamentais na Angola e crescer livre (qual bicho do historia.blogs.sapo.pt expansão das suas actividades. mato) pelas terras do Quitexe e viver a Já em colaboração com o seu irmão odisseia da época das chuvas e das Alfredo foi também agricultor de café viagens a Luanda sem estradas asfal- e industrial. No Quitexe, que rapida- tadas”. mente cresceu e se tornou vila, nasce- Tinha 10 anos quando assistiu, incré- ram os seus filhos. Envolvido na bar- dulo, à morte dos avós e à tentativa de bárie que toldou os espíritos de ango- assassínio da sua mãe, acontecimentos lanos e portugueses em Março de 61, que o marcaram profundamente. soube afirmar o seu carácter no respei- Veio para Portugal em 1975 tendo to pela dignidade humana, contra a falecido, prematuramente, o ano pas- violência, a vingança e o terror. Veio a sado, com 60 anos. Partilhou, no falecer em2006, com 79 anos, deixan- entanto, connosco as memórias da sua do-nos o relato desses dias negros no vivência de menino no Quitexe. repositório de memórias que é o livro Assumiu a descrição da tragédia do 15 “Quitexe 61– Uma Tragédia Anuncia- de Março com o distanciamento que 1948 – A casa de João Garcia em construção da”. só um espírito livre consegue, sem ódios, sem rancores ou ideias de vin- gança recalcada. O horror visto pela criança de 10 anos, com os mesmos olhos, com a mesma simplicidade e incredulidade.