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Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral Artigos

Um triângulo prazeroso: entre a leitura e a escrita

Luciete de Cássia Souza Lima Bastos Mestre em Teoria Literária pela UFMG Professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade do Estado da - UNEB – DCH/Campus VI - Caetité. [email protected]

RESUMO: O artigo discute a obra da escritora Ana Maria Machado, procurando estabelecer uma relação entre os textos ensaísticos e a produção ficcional da autora também a partir do diálogo que ela, na condição de autora, estabelece com seus escri- tores, pintores, escultores, músicos e pensadores favoritos. Nesse sentido, a constante reflexão sobre o próprio fazer literário ajuda a aperfeiçoar seus textos ficcionais e, num caminho de volta, a ficção serve de corpus para a reflexão teórica, que pos- teriormente retorna à ficção, e assim sucessivamente, num exercício constante da práxis. Para esta discussão teórica convoco BENJAMIN (1995), SANDRONI (1998), LAJOLO (1995/2004), CARVALHO ( 2004), YUNES (2005) e RAMOS(2006).

Palavras-chave: Ana Maria Machado; Leitura; Escrita; Ensaio; Ficção

ABSTRACT: This paper treats about Ana Maria Machado’s work, trying to estab- lish a relation between her essayistic and fictional production also from the dialogue that she, as an author, establishes with her favorite writers, painters, sculptors, musicians and thinkers. Her constant reflection on the literary doing itself helps to improve her fictional texts and, on a way back, the fiction serves as a corpus to theoretical reflection, that, later, returns to fiction, and so forth, in a constant exercise of praxis. Basing this theoretical discussion, I use previous discussions of Benjamin (1995), Sandroni (1998), Lajolo (1995-2004), Carvalho (2004), Yunes (2005) and Branches (2006).

Key-words: Ana Maria Machado; Reading; Writing; Essay; Fiction.

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Um triângulo prazeroso: Ana Maria Machado entre a leitura e a escrita

(...) DESENVOLVIMENTO É hoje que sinto Aquilo que fui. Mesmo antes de aprender a ler, a futura es- Minha vida flui, critora já convivia com livros e leitores e apre- Feita do que minto. sentava grande interesse pelo universo letrado Mas nesta prisão, que seu cotidiano lhe oferecia. Em seu livro Livro único, leio ensaístico Como e por que ler os clássicos O sorriso alheio universais desde cedo (2002), Ana descreve De quem fui então. uma cena da qual jamais se esqueceu. Ao pé da escrivaninha, o pai explica à filha a origem F. Pessoa(1993) espanhola dos cavaleiros esculpidos em bron- ze que trazia sobre a mesa, Dom Quixote e seu INTRODUÇÃO fiel escudeiro Sancho Pança, mas acrescenta que eles também moram ali pertinho, dentro Assim como , em fevereiro de um livro (BASTOS, 2004, p.125). À se- de 2006, num artigo publicado na Folha de melhança do que ocorreu com Ana, outros São Paulo, Ana Maria resgata o provérbio: escritores também testemunharam o fascínio “Aranha vive do que tece”. À semelhança da despertado por histórias e personagens conhe- aranha, a autora vive do que produz, inventa cidos na infância. O poeta Carlos Drummond histórias e a maioria delas vira livros. Adora de Andrade, por exemplo, em sua poética, escrever e esta necessidade coincide com sua mostra o seu deslumbramento ao descobrir própria vida: “acho que não ia conseguir viver o clássico Robinson Crusoé. A romancista se não escrevesse”- afirma num autorretrato. É , em Felicidade Clandestina, possível deduzir que é essa relação vital entre demonstra a intensa emoção que lhe propor- o ser e estar no mundo e a ficção que faz Ana cionou a leitura de Reinações de Narizinho. Maria produzir incessantemente. Claudius Ceccon ratifica essa impressão: “(...) A vida A trajetória da leitora Ana Maria é longa. se alimentando da literatura e esta brotando da Flagramos, aqui e ali, nos textos teóricos, vida. Jogo de espelhos. Artes de Ana Maria”. entrevistas e palestras, elementos que configu- (In: BASTOS, 1995, p.115.) ram a apresentação da escritora como leitora e futura escritora. Sempre rodeada de leitores A versatilidade da autora revela-se tanto e livros, aprendeu a ler sem qualquer ajuda, em seus romances como nos textos teóricos. antes dos cinco anos, quase que secretamente, Nesse sentido, a constante reflexão sobre o causando espanto aos adultos. Daí por diante, próprio fazer literário ajuda a aperfeiçoar seus nada mais segurou a menina, que mergulhou textos ficcionais e, num caminho de volta, a na leitura do Almanaque do Tico-Tico e na ficção serve de corpus para a reflexão teórica, obra de Lobato. Assim como Reinações de que posteriormente retorna à ficção, e assim Narizinho encantou Clarice Lispector, a narra- sucessivamente, num exercício constante da tiva de Lobato tornou-se marca indelével que práxis. Cabe salientar que é possível relacio- a acompanhou vida afora; depois desse livro, nar os textos ensaísticos e a produção ficcional tomou gosto pela leitura e nunca mais parou da autora também a partir do diálogo que ela, de ler. na condição de autora, estabelece com seus escritores, pintores, escultores, músicos e pen- Um diário e um livro marcaram o aniver- sadores favoritos. sário de sete anos da escritora. Esses presentes

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Luciete de Cássia Souza Lima Bastos podem simbolizar o universo da autora nos em especial para o escritor:“ (...) eu acho que tempos pretérito, presente e futuro, ligados essa questão do escritor ser muito leitor foi entre si pela leitura/escrita, processos indisso- fundamental pra literatura infantil. Acho que é ciáveis e geradores de saber. O primeiro, um fundamental na criação. Você vai convivendo, livrinho com páginas virgens, onde se “podia tendo mais intimidade com aquele processo, e escrever tudo e trancar para ninguém ver”, isso vai virando um substrato que está ali, apa- a primeira página trazia um desenho, feito rece, brota.” (2006, p.37) Vale lembrar aqui a por encomenda a Carybé, que, segundo Ana, importância da leitura dos livros de Monteiro ainda não havia se tornado ilustrador de Jorge Lobato para a formação da geração de escrito- Amado e Garcia Márquez. A partir dali, ela res de literatura infanto-juvenil de qualidade saiu preenchendo aquelas páginas em branco na década de 1970. Ana Maria afirma que um “furiosamente”. O fraco por livros e ilhas nas- dos segredos da qualidade é que os compo- ceu com o segundo presente, um livro integral nentes desse grupo, por serem muito leitores, do Robinson Crusoé, ilustrado também por tinham muito para deixar fora do texto que Carybé. (MACHADO,1996, p.21). Sua pers- escreviam, relembrando uma frase do escritor pectiva sobre o poder da leitura perpassa por Hemingway: “O livro deve valer pelo muito essa formação familiar. que nele não entrou”. (RAMOS, 2006, p.37)

No livro Texturas (2001), Ana revela uma A trajetória de Ana Maria é marcada por concepção de leitura que acaba por se tornar o ações que evidenciam o caráter construtivo de cerne de sua poética, seja nas publicações de sua formação; a pesquisadora Senize Yazlle, natureza ensaística resultantes de palestras, es- em sua tese, escreve: tudos e análises, que dialogam entre si, seja nos textos literários, expandida em palavras como: Fica evidente um trabalho de construção editora, literatura e livro; intertextualidade e/ do conhecimento que se inicia na infân- ou citações de: escritores, artistas diversos, cia, com suas leituras que se multiplicam obras literárias e outras artes, teóricos e insti- e vão continuar pelo resto da vida, soma- tuições ligadas às letras; escolha de ambientes do ao fato de que ela ainda experimenta propícios à leitura como: bibliotecas, salas de outra modalidade artística – a pintura – aula, quarto de estudo, museus e outros; na como um meio de conhecer e explorar a elaboração do enredo, que versa sobre leitu- arte e, com isso, ampliar e aprofundar seu ra ou escrita; na escolha dos temas: infância, conceito e repertório. Esses dois lados da leitura, leitores, literatura, criação literária e artista, além de ampliar sua visão, tam- construção de personagens questionadoras, bém a auxiliaram na busca do seu tom, para as quais cria condições para que reflitam de seu estilo, que é, ao mesmo tempo, sobre a língua. Frequentemente, em suas his- oralizante e elaborado, uma maneira de tórias, as personagens buscam a autoafirmação desenhar e pintar com palavras. (2008, e sempre passam por processos de transforma- p.145) ção, que em geral se dá pela descoberta e pelo conhecimento. São, pois, inúmeros os indícios A busca por seu tom e seu estilo teve sua de sua paixão pelo universo da linguagem. estreia marcada aos onze anos, com o texto Arrastão- sobre as redes de pesca artesanal em Em entrevista à pesquisadora e escritora Manguinhos, publicado na revista Folclore, Anna Claudia Ramos, Ana Maria ratifica a originalmente uma redação premiada na es- importância da leitura na vida das pessoas, cola e ampliada para publicação. A prática da

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Um triângulo prazeroso: Ana Maria Machado entre a leitura e a escrita leitura e da escrita desde muito jovem fomen- estudos sob a orientação do semiólogo Roland tou a sua habilidade com os textos, trajetória Barthes. Sem dúvida, vivia entre “deuses” da importante para quem ela é hoje: literatura e da teoria; era, pois, evidente que dessas relações resultasse um trabalho que Ser leitora e escritora é uma escolha liga- navega por mares e rios “dantes navegados” e da ao intenso prazer intelectual que essas por serem desbravados. atividades me dão. Escrevo porque gosto da língua portuguesa, gosto de histórias e Em toda obra literária que se propõe ino- conversas, gosto de gente com opiniões vadora o projeto estético e projeto ideológico e experiências diferentes, gosto de outras estão imbricados. O projeto político-ideo- vidas, outras idéias, outras emoções, lógico de Ana Maria pode ser resgatado via gosto de pesar e de imaginar. Em todo temática que aborda, a leitura e a escrita são esse processo, a leitura foi fundamental. recorrências freqüentes, quer sejam abordados (MACHADO,1996, p.44) explicitamente como motivo principal, quer indiretamente, a título de ilustração cito: Do Ana diz que Mark Twain encontrou vida outro lado tem segredos (1980b ), O Menino afora uma rica galeria de personagens que Que Virou Escritor (2001), Do outro mundo completavam a sua formação de escritor. (2002) e Mensagem para você (2008), Pa- (2001, p. 207) Assim também se completa lavras, Palavrinhas, Palavrões (1981b) em a formação da escritora Ana, com viagens e que o lúdico aparece relacionado à escrita. leituras de livros com personagens marcantes, Além da frequência insistente do tema leitura/ como Emília e Huckleberry Finn, e imagens escrita, encontramos temas que retratam de poéticas colhidas pelas obras de autores como forma criativa fatos cotidianos ligados ao uni- Alexandre Dumas, Bartolomeu Queirós, verso da criança; temas que são tratados com Charles Perrault, Charles Baudelaire, Clari- seriedade. O emprego de múltiplos recursos ce Lispector, Daniel Defoe, Eça de Queirós, linguístico-expressivos, a versatilidade/areja- Edgar Allan Poe, Fiodor Dostoievski, George mento da linguagem literária e a humanização Orwell, João Guimarães Rosa, José de Alen- do leitor pelo profundo respeito que demons- car, Luís Vaz de Camões, , tra ter pela criança/jovem também fazem parte Marcel Proust, Monteiro Lobato, Oscar Wil- do projeto estético-ideológico da autora. A de, Rudyard Kipling, Thomas Mann, Victor crítica literária Laura Sandroni escreve que Hugo, William Shakespeare, que foram escul- “(...) seus livros [livros de Ana] revelam uma pindo de A a Z a escritora que é hoje. A essa linguagem inventiva, uma temática origi- galeria, acrescento as pessoas de seu convívio, nal, além de uma profunda compreensão do anônimas e personalidades conhecidas como: mister de escritor integrado à cultura de seu Rubem Braga, Alceu Amoroso Lima, José povo e, simultaneamente, arauto de novos Carlos Lisboa, Roberto Alvim Correia, Anísio tempos(...)”(In:BASTOS,1995, p.115) A Teixeira, Manuel Bandeira e , desconstrução de estereótipos reforçada pela de quem divergia em profícuo debate. Drum- força questionadora das personagens revelam mond é um nome que fala por ela o tempo o caráter revolucionário da obra da autora. todo, assim como sua ficção percorre as vere- das lingüísticas de Guimarães Rosa de quem Ana Maria metaforiza a sua trajetória de herdou o gosto pela plurisignificação que o mulher leitora, independente, “contracor- nome próprio incita. Na pós-graduação, em rente”, como uma corrida de revezamento, Paris, participa de um selecionado grupo de durante a qual recebesse da mãe um bastão

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Luciete de Cássia Souza Lima Bastos que deveria ser repassado à filha. A voz do um tema considerado por, alguns impossível, discurso feminino vai, ao longo desse proces- de ser compreendido pelo jovem leitor. Essa so, ganhando força com um sentido de igual- posição é ratificada na sua produção teórica; dade perseguido pelo respeito à diferença, no ensaio Contracorrente: conversas sobre sob as marcas estéticas expressivas da autora leitura e política, por exemplo, assume um é possível vislumbrar a sua visão de mundo. posicionamento contestatório: “Sou mesmo Neuza Ceciliato de Carvalho, num ensaio do contra a corrente (...) Contra os elos de ferro livro Trança de História, ao tratar do projeto que formam cadeias (...) Quando as maiorias estético-ideológico da escritora, destacou: começam a virar uma avassaladora uniformi- dade de pensamento, tenho um especial prazer Seus textos literários são seu testemunho em imaginar como aquilo poderia ser diferen- de uma época, onde a mulher, a mãe, a te.” (MACHADO, 1999b, p. 7) Confirmando professora, a cidadã e a escritora se fun- a premissa de que o ato de escrever envolve dem para revelar os conflitos humanos do responsabilidade social, Ana, assim como momento em que vivemos. No seu modo alguns de seus contemporâneos, se projeta no de compor está a sua ideologia, no seu es- papel da escritora comprometida e mobilizada tilo está o seu testemunho, na sua escolha pelas questões de seu tempo: técnica está a sua visão de mundo e a sua concepção de literatura e de leitor infantil Escrevíamos sobre tudo. Não nos au- e juvenil. (2004, p. 71) tocensurávamos nem evitávamos tema algum. (...) Não que fizéssemos obras No livro Contracorrente, Ana também panfletárias, mas falávamos do que nos teoriza acerca da leitura de mundo do escri- mobilizava de modo profundo. Ou, se- tor, dizendo: “Quando o livro é bom mesmo, gundo a fórmula de Camus, não púnha- quando a leitura do mundo que o autor fez mos nossa arte a serviço da ideologia, antes de escrevê-lo foi sensível e inteligente, mas como cidadãos estávamos tão mobi- o texto vai permitir que o leitor o escreva no- lizados nas questões de nosso tempo que vamente quando for lê-lo. (...) Mesmo se for tudo isso, inevitavelmente, aparecia no o que se chama ‘história para criança’. Se for que escrevíamos. (2001, p. 82). literatura.” (1999b, p.90) Esse depoimento ratifica a posição de Ana Ana Maria, assim como alguns escritores Maria com relação ao papel do escritor frente da década de 1970, leitores de Lobato na in- às questões sociais da época em que escreve. fância, foi além da difusão da leitura, ou me- Marisa Lajolo, em Do mundo da leitura para a lhor, a leitura levou a autora ao compromisso leitura do mundo afirma que “uma obra literá- com questões sociais, às quais o bom escritor ria é um objeto social muito específico” (2001, não fica indiferente.1 O protesto em relação ao p. 17). Como objeto social, o texto literário, poder imposto tornou-se uma constante nas mesmo não tendo o propósito de veiculação obras ficcionais da escritora, como, por exem- de ideologia, acaba por fazê-lo, pois, qualquer plo, em Bento-que-bento-é-o-frade (1977), que seja um discurso, é sempre uma instância Era uma Vez um Tirano(1982), Bebeto, o de poder, o texto é a visão de mundo do escri- carneiro (1993) e Tropical Sol da Liberdade tor, lembrando aqui os estudos linguísticos de (1988). No livro De olho nas penas (1981a), Bakhtin2. Ana Maria escreve sobre a questão política do exílio, sob a perspectiva de um menino, A autora sente enorme fascínio pela língua

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Um triângulo prazeroso: Ana Maria Machado entre a leitura e a escrita portuguesa, principalmente pelo lugar em que configurando como temática principal, num o registro oral, familiar e quotidiano se en- exercício de metalinguagem, seja quando contra com a tradição erudita. Muitos são os aborda, mesmo que implicitamente, o proble- recursos que se revelam na sua obra, a exem- ma da relação significante/significado, como plo do diálogo, que confere dinamismo às em Palavras, palavrinhas, palavrões (1981b), narrativas; do emprego de termos e expressões seja em Bento-que-bento-é-o-frade(1977), inusitadas, dos poemas e cantigas de roda, tro- em que questiona o significado das palavras vas populares e trava-línguas, brincadeiras e e suas múltiplas possibilidades, seja quando lúdicos jogos poéticos com frequentes alusões dialoga com obras clássicas a exemplo de Ali- a cantigas e poemas que resgatam costumes e ce e Ulisses(1999a). A linguagem é para Ana festejos da tradição popular, proporcionando Maria, assim como para seus personagens, ritmo e musicalidade ao texto. Vivências de um elemento lúdico, cuja função é se deixar Ana com a avó Ritinha, que “era uma bibliote- manipular para se transformar num elemento ca oral”, conforme anuncia a autora. Segundo novo, numa outra palavra, também passível de Ana Maria, tanto a prosa de Mário de Andrade mudança. Em Bem do seu tamanho (1980a), como a poesia de Manuel Bandeira, dentre tan- a personagem Flávia diz:“ (...) Inventar, que tos outros, confirmam que a criação brasileira as palavras são brinquedos, que a gente pode do século XX é perpassada pela influência pegar, (...) revirar, olhar de um lado ou de oralizante das primeiras vozes literárias ouvi- outro, ver se uma cabe dentro da outra, essas das na infância. Vale lembrar o que escreveu coisas(...)”(p.24-25). Essa preocupação com a Walter Benjamin: “A experiência transmitida linguagem nos textos ficcionais se estende aos oralmente é a fonte de que hauriam todos os teóricos; se nos primeiros busca o lúdico, nos narradores”(1995, p.268) e, por extensão, os ensaísticos prima pela precisão: “(...) a clare- escritores e poetas. Em todos os textos da za de conceitos não deve se esconder atrás da autora, o trabalho com a linguagem é cuida- obscuridade dos termos. (...) Um especialista doso, a desliteralização aproxima seu discurso não deve abrir mão do rigor e da exatidão dos oral do cotidiano, o que proporciona imediata conceitos quando está examinando o assunto identificação de seu leitor com a personagem. que estuda. (2004, p.80-1) Em outro ensaio, No ensaio Livros infantis como pontes entre Língua portuguesa: impressões pessoais, Ana gerações, assim se expressa sobre o assunto: escreve que a língua “marca e define a pessoa”, ela tem plena consciência de que a Língua se (...) um acervo vindo oralmente da noite mantém viva, por ser dinâmica e, ao mesmo nos tempos e passando de uma geração tempo, manter uma estrutura normativa que para outra em sucessivas pontes, vai aos a sustenta, evitando dispersões individuais e poucos se construindo um legado. Uma desagregadoras que transformariam o idioma vez sedimentado, esse patrimônio passa a numa “torre de babel”. exigir rupturas e reinvenções que ao mes- mo tempo o contestem e reconfirmem – A pesquisadora Anna Cláudia Ramos es- em novas vozes e novos tons, para que creve que Ana Maria é uma grande pensadora possa ser retransmitido também de forma sobre a leitura e o fazer literário, que seus en- renovada, com o acréscimo de experiên- saios abordam “aspectos fundamentais sobre cias originais. (MACHADO, 2004, p. 61) a democratização da leitura de literatura em nosso país e sobre os processos de criação”, A linguagem é, pois, elemento constitutivo e que o faz através de uma “escrita leve e da obra de Ana Maria, em muitos casos se acessível, quase um bate-papo com o leitor”.

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(2006, p.17). Principalmente por se tratar de gosta de um texto porque sente que esse tex- uma literatura destinada às crianças e jovens to “o escolhe, o atrai, o deseja, o excita, por é que Ana demonstra todo o cuidado com a meio de todo um jogo de esconder e revelar”. qualidade do texto que escreve. Na mesma (MACHADO, 2004, p.37) Nesse contexto linha de pensamento, escreve a ensaísta Eliana teórico, Ana lembra a formulação de Barthes: Yunes: “O prazer do texto é o momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois Ana jamais tolerou a mesmice, a escritora meu corpo não tem as mesmas idéias que eu, gosta de driblar as fórmulas, sua obra é modo pelo qual essa ligação se estabelece até um marco de renovação da linguagem mesmo pela ruptura e pela independência.” na literatura infantil brasileira. Suas (p.39) A tríade autor-texto-leitor, composição narrativas respeitam a inteligência e a de um outro triângulo amoroso,elementos in- sensibilidade infantis. Ana experimenta dissociáveis na leitura/escrita, gera e absorve formas e temáticas diversas, brinca com o prazer que essa relação envolve num movi- as palavras e induz à reflexão sem peda- mento de ir e vir entre autor/texto/leitor. Cien- gogismos. (In: BASTOS, 1995, capa) te desse processo, ao mesmo tempo lúdico e consciente, para Ana o ato de ler e escrever constitui prazer, porque está associado à curio- CONSIDERAÇÕES FINAIS sidade, ao desejo de saber, de investigar e de explorar, uma atividade a dois, mediada por Valendo-se de competência linguística e um jogo (texto) entre autor e leitor. Trata-se, capacidade de renovação, Ana escreve suas portanto, de convidar o leitor para participar histórias atenta a uma linguagem que seja do jogo literário, penetrar o texto e apreciar a ao mesmo tempo lúdica e correta. Todo esse beleza propiciada pelos artifícios linguísticos, cuidado com a escrita vem da crença de que que somente um escritor experiente e criativo um leitor, seja ele criança, jovem ou adulto, é capaz de produzir.

REFERÊNCIAS

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BASTOS, Dau (Org). Ana& Ruth: vinte e cinco anos de literatura. Textos de MORAES, Carlos; LAJOLO, Marisa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.

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Um triângulo prazeroso: Ana Maria Machado entre a leitura e a escrita

BASTOS, Luciete. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, de Ana Maria Macha- do. Resenha. Revista Letras de hoje. PUC-RS, Porto Alegre, v. 39, n. 2, p. 123-127, jun., 2004. ISSN 0101-3335.

BENJAMIN, Walter - O bom escritor. In:­­­______Rua de mão única. Obras Escolhidas. Tradu- ção de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ed .Vol. II. São Paulo: Brasiliense, 1995.

CARVALHO, Neuza Ceciliato de. A emancipação do sujeito infantil pela discursividade do delí- rio em Bisa Bia, Bisa Bel. In: PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves; ANTUNES, Benedito. (Org.). Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado. São Paulo: UNESP; Assis-SP: ANEP: 2004, p.67-86.

LAJOLO, Marisa. Teoria literária, literatura infantil e Ana Maria Machado. In: PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves; ANTUNES, Benedito. (Org.).Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado. São Paulo: UNESP; Assis-SP: ANEP: 2004, p.11-21.

RAMOS, Anna Claudia. Nos bastidores do imaginário: criação e literatura infantil e juvenil. São Paulo: DCL, 2006.

SANDRONI, Laura. De Lobato à década de 1970. SERRA, Elizabeth D’Angelo (Org.). 30 anos de literatura para crianças e jovens: algumas leituras. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1998.

MACHADO. Ana Maria.Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

_____.Alice e Ulisses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999a.

_____.Contracorrente: conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática, 1999b. (A primeira edição é de 1997, à qual não tive acesso. Publicado também em espanhol: Buenas palabras, ma- las palabras. Argentina: Ed. Sudamericana, 1998).

_____. Esta força estranha: trajetória de uma autora. São Paulo: Atual, 1996.

_____. Beto, o carneiro. 5.ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.

_____. Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

_____. Era uma vez um tirano. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982.(Publicado também na Espa- nha, e Alemanha).

_____. De olho nas Penas. Rio de Janeiro: Salamandra, 1981a. (Publicado também na Espanha, Suécia, Dinamarca e Noruega).

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Luciete de Cássia Souza Lima Bastos

_____.Palavras, palavrinhas, palavrões. São Paulo: Codecri, 1981b.(Publicado também na Es- panha).

_____.Bem do seu tamanho. Rio de Janeiro: EBAL, 1980a. (Publicado também na Espanha e França).

_____. Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980b. (Atualmente Nova Fron- teira - Publicado também na Espanha).

_____.Bento-que-bento-é-o-frade. São Paulo: Abril 1977. (Atualmente Salamandra - publicado também na Espanha e Portugal).

(Endnotes)

1 Na compreensão do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, no livro Que é a literatura?, de 1948, a função do escritor é “(...) fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (1989, p. 21), apontando um papel engajado por parte do escritor. Vislumbro esse posicionamento em Lobato, no discurso questionador de Emília, e em Ana Maria, em vários personagens, a exemplo de Nita; em ambos, o engajamento não beira o panfletário.

2 Os estudos linguísticos de Mikhail Bakhtin, no início do século XX, apontam para a falta de inocência dos discursos, inclusive o discurso literário que enreda fatos históricos, sociais, antropológicos, culturais, étnicos, econômicos e políticos, construindo, por uma teia metafórica, a malha narrativa, através da qual veiculava, consciente ou inconscientemente, a visão de mundo de seu autor.

(Artigo recebido em 28 de janeiro de 2011 e aprovado para publicação em 10 de fevereiro de 2011.)

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