"Me faz um Dó Menor, por favor meu compadre!": códigos, gestos e sinais na roda de

Marcelo da Silva1

Verônica Kimura2

Resumo

As rodas de samba são espaços cujas narrativas dos que participam delas inscrevem-se através do corpo enquanto enunciadores de uma história, tal qual nos fala Walter Benjamin, que interrompe as narrativas do Ocidente, na medida em que descrevem as formas pelas quais as culturas afro-brasileiras produzem por meio da corporalidade, acionada pela musicalidade. Aqui neste trabalho, discutiremos como o corpo nas rodas de samba através das síncopes (contrametricidade), constrói um tipo de sujeito que se comunica-produz por meio de linguagens não-escritas

PALAVRAS-CHAVES: 1) Roda de samba 2) Corporalidade 3) Síncope

A roda de samba

A roda de samba é um importante elemento na construção das socialidades, identidades e aprendizagens e têm sido a principal estrutura física que gestou gêneros e estilos musicais pelo Brasil, principalmente os gêneros ligados as tradições de matrizes afro-brasileiras e indígenas. Gêneros como o samba, o maxixe, o lundu, o choro, os côcos, enfim, entre muitos outros, foram gerados no exercício proporcionados pelos sujeitos nos momentos em que a roda se coloca como a instância mobilizadora dos códigos e sinais que comunica por meio da linguagem do corpo (MOURA, 2004).

O corpo, por sua vez, principalmente em se tratando de tradições de matrizes afro-brasileiras é a "casa" em que habita o ritmo, além de um espaço de experiência, ele se ressignifica nas rodas de samba pelo Brasil e acaba por enunciar uma nova epistemologia: a epistemologia de Exu. Enquanto narrativas sonoro-musicorporais que residem, entre outros espaços, nas rodas de samba, os produzem múltiplas formas de comunicação, acessíveis aos partícipes que conversam entre si através de

1 Licenciado e Bacharel em História, Mestre (UFSC) e Doutor em Antropologia (UFRGS). [email protected] 2 Licenciada e Mestre em Educação Musical e Doutoranda em Educação pela UDESC. [email protected] distintas linguagens não verbalizadas que atravessam seus corpos e mentes. Um sinal com o dedo indicador indica uma tonalidade ou a mudança dela, uma inclinada com a cabeça aponta um breque, uma modulação tonal, um avanço com o corpo à frente indica o pedido de mais cadência para o samba ou mesmo uma palhetada do cavaquinho destacada pode apontar o fim de uma samba.

As dimensões em que o uso do corpo se inscreve na comunicação elaborada no contexto sociomusical das rodas de samba e de seus partícipes é ritmado pelo uso sistemático da síncope. Segundo Sodré (1998), a síncope proporciona ao negro brasileiro uma retomada a sua condição ancestral, na medida em que a percussividade criada pelas síncopes por meio do samba e do candomblé, redefinem a sua corporalidade através das possibilidades engendradas pelo impulso mobilizador que se abre ao tocar o samba e as batidas do candomblé. Entre uma batida e outra, entre breques e compassos, um terceiro elemento é acionado, justamente no momento em que a ausência de som, como um imã, magnetiza o corpo e o invoca a preencher este espaço, esta pausa. Esse chamado, o apelo da síncopa na construção da sociomusicalidade do brasileiro, é o que Sandroni (2000) sintetizou como a forma paradigmática como o negro após a década de 1930, constituiu um tipo de brasileiro que se reorganizou no contexto brasileiro, a partir de sua noção ancestral de contrametricidade, podendo ser traduzida aqui, por ora, como o uso da síncope. Essa noção ancestral é levada a cabo nas rodas de samba, pois o idioma destas articula-se por meio da corporalidade acionada pelas batidas, pelos breques, pelos ritmos e tons. Essa consciência criada pelas sonoridades, desenvolve um discurso sonoro-musical que implica no conhecimento prévio das normas e regras de funcionamento dos espaços das rodas de samba, na medida em que todo aprendizado institui-se de forma informal e pelo exercício da prática musical entre os pares (sambistas). E todo aquele que não compreende o código das rodas de samba deve sempre pensar em sua inserção, levando em conta o que os grandes mestres nos ensinam, pois os que se iniciam nesta prática devem "chegar, chegando", ou como diria , "chega como eu cheguei, pisa como eu pisei, no chão que me consagrou".

Para tornarmos compreensível o que descrevemos acima, iremos contar três histórias acerca de eventos ocorridos em rodas de samba em Florianópolis, Porto Alegre e São Paulo, trazendo reflexões sobre a gestualidade impressa na condução das sonoridades e musicalidades nas rodas de samba, na medida em que muitas vezes, os “comandos” são dirigidos ao conjunto musical – cordas, percussão ou coro e vozes, como um todo ou mais especificamente a percussão, elemento rítmico indispensável na condução da roda de samba. Assim como no jazz, a rithym section deve conter instrumentos como contrabaixo, bateria e guitarra (MONSON, 1996), no samba o pandeiro, o surdo, o cavaquinho e o violão compõem a base deste gênero musical que se cristalizou no início do século XX, mas que tem na percussão seu principal elemento norteador. Essas histórias são roteiros indispensáveis à compreensão do universo musical de sambistas e partícipes nos espaços da roda de samba, ao mesmo tempo em que torna possível a compreensão desse contexto não-verbal de comunicação entre músicos, partícipes e demais integrantes no contexto das performances nas rodas de samba pelo Brasil.

Entre as batidas e levadas, cadências e olhares

Durante o ano de 2013 conhecemos um grupo de sambistas da cidade de Porto Alegre que encontravam-se aos sábados nas quadras das escolas de samba, com o objetivo de celebrar a amizade e a saudade dos amigos que não estavam mais presentes, haviam partido para o ORUN, segundo muitos deles costumavam dizer. Quem organizava esses encontros era o Samba do Irajá, uma associação de sambistas criada por amigos que se conheciam há muito tempo, que tinham experiências comuns em momentos históricos distintos da capital do Rio Grande do Sul e outros apaixonados pelo samba, que durante o ano, “não queriam deixar que os sambas nas quadras das escolas de samba parassem, já que o carnaval agitava as quadras só durante o fim do ano até fevereiro” (SILVA, 2015).

O Samba do Irajá tem uma agenda anual de compromissos e costuma fazer, além dos eventos nas quadras, atividades filantrópicas e beneficentes. Algumas vezes os vimos cantando em associações de cadeirantes para levantar fundos para pessoas portadoras de necessidades especiais e para os amigos com outras dificuldades, seja pelo motivo que fosse. Fundada pelo falecido Irajá Gutemberg, sindicalista e sambista, essa associação de amigos movimenta o samba de Porto Alegre e foi durante os anos de 2013 a 2017, um espaço fundamental de pesquisa que ajudou-nos a compreender a dinâmica dos sambistas da cidade de Porto Alegre e zona metropolitana, na medida em que nós também viajávamos para as cidades vizinhas como Novo Hamburgo, Esteio, Viamão, Alvorada, Portão, Gravataí.

Quando chegavam às quadras das agremiações, os sambistas do Irajá eram recebidos pela Diretoria Executiva de cada agremiação que lhes entregava as carnes para o churrasco e as cervejas para regar o samba. Normalmente as apresentações duravam das 16 às 23 horas e todos que desejavam apresentar-se tinham espaço garantido, pois segundo Rui Correia, um de seus organizadores, “o Irajá é uma verdadeira escola do samba, porque aqui canta quem sabe e quem não sabe. Nós estamos aqui para aprender e esse é o nosso objetivo”. Muitas vezes vimos gente cantando afinado, desafinado ou fora do ritmo sem ser chamado que fossem repreendidos, algo muito difícil de acontecer, principalmente na lógica dos bambas nas rodas de samba, que prezam pela extrema habilidade na execução dos instrumentos de cordas e percussão, nos conhecimentos prévios das regras e na estética produzida pelos sambistas nos momentos de interação na roda. É muito comum o uso de expressões na roda de samba do tipo, “pra entrar na roda tem que ser bamba”, “quem quiser treinar que o faça em casa” ou “tem que comer muito feijão pra chegar bonito”. O espaço da roda de samba pressupõe um conhecimento prévio de um jeito de tocar, das convenções musicais inerentes ao estilo e não permite, na maioria das vezes, um aprendizado prático enquanto uma espécie de prática pedagógica.

Numa tarde de sábado, ocasião em que a apresentação do Irajá realizava-se na quadra dos Goianazes (uma das poucas Tribos que restaram em Porto Alegre, além dos Comanches, do Morro de São José), um partícipe pediu para cantar alguns sambas. Haviam regras para as pessoas que quisessem cantar: tinham que se dirigir até um dos organizadores que podiam ser o Jesus, Carioca ou o Rui, inscrever-se e aguardar o momento de ser chamado ao microfone para cantar uma, duas ou três músicas. A quantidade de músicas dependia da qualidade de quem cantava. Se a pessoa cantasse muito mal, de acordo com o julgamento dos músicos presentes, podia cantar uma música, se cantasse mais ou menos, podia cantar duas, mas se cantasse bem, poderia chegar até cinco músicas. Pois bem, o rapaz se aproximou e começou a cantar, contudo antes fora alertado por Rui que o informou: “olha aqui meu preto, aqui tem que cantar samba tá? Tem que ser samba, olha os nego véio que vão te acompanhar!”. O grupo de sambistas que acompanhava os cantores era composto de músicos antigos, gente considerada bamba das rodas de samba em Porto Alegre. Para se ter uma idéia, Seu Chumbo do Banjo, aos 85 anos de idade em 2015, tocava todos os sábados com o Irajá. Tratavam-se de músicos experientes que buscavam nestas tardes um espaço para praticar suas habilidades, brincar com os amigos e rir um pouco da vida fazendo o que mais gostavam: tocar samba.

O rapaz começou a cantar e, mesmo depois do alerta dado por Rui de que fosse um samba, cantou uma música do grupo , que começava assim: “dessa vez te peguei de jeito, na armadilha que armei pra você, fica aqui dentro do meu peito, que o meu coração não pode perder”. Ao mesmo tempo em que cantava, desenvolvia uma coreografia alegre e despretensiosa mexendo-se para lá e para cá, tão compenetrado que não conseguiu observar que os músicos que o acompanhavam, sentados à mesa, demonstravam um descontentamento. Começou a pairar no ar um clima de vergonha alheia e, mesmo assim, os músicos prosseguiram acompanhando o jovem, que emocionado, chegava ao refrão da música: “aiaiaiaiaiaiaiaiaiá, como é doce a brincadeira”. Neste momento, Rui fez começou a sinalizar com as mãos, repetindo o gesto por cinco vezes, anunciando um breque inusitado e o Samba do Irajá fez uma parada brusca. Rui se aproximou do rapaz e disse: “olha aqui rapaz, aqui nós fazemos samba, não pode. Pode até não cantar bem, mas a exigência é que seja samba, tá? Tu vais pra casa, te fortalece e depois tu voltas”! O rapaz, sem entender muito que havia acontecido saiu de forma tímida, despediu-se de todos e a próxima pessoa foi chamada para cantar, sem, no entanto, ser advertida das possíveis conseqüências de não ser respeitado o espaço da roda de samba.

Não existe um consenso entre sambistas em relação às inúmeras subdivisões internas que se agrupam sob a égide deste gênero musical. As fronteiras que separam o que convencionou-se a chamar de samba ou samba-raiz daquilo que pode ser considerado pagode são extremamente móveis e variam de roda para roda. Somente o olhar atento de um iniciado no samba consegue visualizar esses limites a partir da observação, de sua experiência prática, ou melhor dizendo, a partir do seu vivido/concebido. A inexperiência do rapaz colocou-o numa situação difícil, pois naquele espaço de samba, a música escolhida foi considerada como um pagode e, neste caso, sua falta de habilidade em fazer a leitura do tipo de samba ali praticado, levou-o à exclusão daquela situação de prática de samba. Outro episódio aconteceu no bar Canto do Noel em Florianópolis em 2013, enquanto o músico Tonico Ferreira, filho de Martinho da Vila, fez uma apresentação num tradicional reduto de samba da Ilha, acompanhado pelo grupo “Um Bom Partido”, com mais de 20 anos de atuação no cenário musical da Ilha e de todo o Estado de Santa Catarina. Ao chegarmos na Travessa Ratclif, o sambista Tonico Ferreira chamou a atenção dos músicos sinalizando com o dedo indicador para cima, o que na roda de samba determina a tonalidade Dó maior. Este tipo de sinalização é considerado universal nos espaços tradicionais de samba. Usam-se os dedos de uma das mãos para indicar as 7 tonalidades maiores, quando viradas para cima ou menores, quando apontadas para baixo. O cavaquinho dava seus primeiros acordes, seguindo a orientação de Tonico, quando o sambista pediu um pouco mais de velocidade ao samba, marcando o ritmo com a boca, tuntxictun, txictun, txictun..., tuntxictun, txictun, txictun.

Além da indicação feita verbalmente, o cantor indicou com um solfejo rítmico o andamento que desejava obter dos músicos, tentou também obter resultado gesticulando com uma das mãos enquanto a outra segurava o microfone e olhando para os componentes do grupo, sobretudo para os percussionistas. Sem obter nenhuma alteração no resultado, seguiu cantando como estava e demonstrando certo desconforto. Desta forma a roda de samba no Canto do Noel prosseguiu com a apresentação do sambista Tonico Ferreira que continuou a insistir em seus pedidos de maior velocidade nos sambas, gesticulando, acenando, tentando obter a atenção dos músicos de todas as formas sem, contudo, ser atendido.

Trouxemos este episódio procurando ilustrar uma das principais características das rodas de samba. Ao exemplo de outros espaços nos quais a cultura afro-brasileira se destaca, tais como a capoeira e o candomblé, a roda de samba é um espaço musical orgânico. Aberta às participações de diversos músicos e intérpretes às quais costumamos nos referir como “canjas”, tem como pressuposto performances improvisadas, nunca ensaiadas. Deste modo, a música acontece naquele momento em que é executada com a configuração de músicos que se apresenta no momento da performance e, por este motivo, o conhecimento prévio de elementos estético-musicais é imprescindível. Além disso, os intérpretes costumam lançar mão de recursos gestuais considerados universais que lembram, de certo modo, as padronizações gestuais adotadas pelo regente na música erudita. No caso apresentado, tínhamos duas situações: uma delas era o sambista procurando obter resultados através dos elementos gestuais de que dispunha e, de outro lado, o referido grupo “Um Bom Partido” que é conhecido por seu estilo de tocar samba de um modo mais cadenciado. Consideramos que tratou-se de um caso incompatibilidade musical entre intérprete e grupo de samba.

Um último episódio ilustra a importância dada ao corpo e aos gestos produzidos, enquanto linguagens não verbalizadas, nos momentos de interação engendrados nas rodas de sambas, ao mesmo tempo em que nos indica de que maneira a linguagem falada ou escrita como única geradora e produtora de conhecimento, desloca-se para dar lugar a um tipo de comunicação que reage às batidas instrumentos musicais, as falas dos corpos a dançar e a tocar. Trata-se de um pensar com o corpo e com a mente, pois pensar com o corpo (inteiro) caracteriza a forma como na diáspora, as tradições de matrizes africanas construíram gêneros musicais, estilos de dança, a vida nos terreiros e na própria sociedade como um todo, a partir da formação das comunidades litúrgicas, das escolas de samba, dos blocos, das congadas, maracatus e afoxés. Esse vocabulário corporal fornece nexos importantes para compreensão da sociomusicalidade das rodas de samba, mas também da forma como o corpo desliza entre as síncopes e preenche os espaços entre uma batida e outra dos instrumentos musicais de cordas, o cavaquinho e o violão e de percussão, como o pandeiro, o surdo, tamborim, etc.

Numa viagem que fizemos ao Rio de Janeiro em 2015, fomos ao bar onde acontece quinzenalmente o Samba da Gamboa, apresentado pelo filho do saudoso João Nogueira, Diogo Nogueira. Nesse dia, o grupo que se apresentava era o Razões Brasileiras, um grupo de mulheres jongueiras, acompanhadas por um cavaquinho e um violão e um naipe sete percussionistas, entre os quais, quatro destes eram naipes de congas. Sambas, jongos, cateretês, sambas de roda e partido alto foram tocados durante toda a noite. Enquanto o repertório mesclava esses subgêneros do samba e estilos congêneres, um rapaz negro, com aproximadamente trinta anos, dançava sem parar. Era um exímio dançarino, sambava com muita habilidade e traçava passos no salão que, em muitos momentos, descreviam a dança dos orixás que estavam sendo cantados. Entre um samba e outro, cada vez mais o que o corpo daquele negro sambista que dançava e cantava músicas, juntamente com o grupo musical, descrevia experiências que transbordavam à mera performance. Uma dança do orixá Yansã ou de Ogum entre um afro-samba e outro, tecia, a partir de experiências sonoras, vivências e práticas que em interface entre samba e religião, falam de visões de mundo cujas tradições de matrizes africanas têm no corpo seu principal instrumento. O que essas três histórias têm em comum?

Elas trazem consigo uma idéia convergente a respeito das narrativas que o corpo produz. Mais do que isso, estas paisagens sonoras distintas, descritas dos músicos e do sambista que foi convidado a se retirar da roda de samba, por exemplo, do Tonico Ferreira apresentando-se em Florianópolis ou do dançarino na roda do samba da Gamboa, no Rio de Janeiro são rastros e pistas capazes de fazer com que nos desviemos das rotas iniciais previstas pela economia híbrida dos gêneros musicais tão divulgadas na literatura sobre o samba no Brasil. Elas talvez nos guiem para um repensar na diáspora numa perspectiva que transcenda e supere o corpo passivo que sofre as anomalias da modernidade de Foucault, um mero objeto do poder disciplinador e a outra visão hedonista, pós-moderna, de um corpo infinitamente moldável pelas escolhas subjetivas. Essas imagens matizadas do corpo, tanto na produção de representações quanto nas estratégias de resistência subalterna, chamam a atenção “da inscrição corporal da definição do outro, que passa a ser sobredeterminado, absolutizado de um lugar exterior (COSTA, 2006, p. 120-121).

Essa corporalidade sobre as quais as relações de dominação tornaram visíveis, conferindo materialidade é aqui evocada para produzir a emancipação e a inscrição e narrativas dos negros na diáspora por meio do samba; é o mesmo corpo que pode ser magnetizado pela invocação da contrametricidade (síncope) que rebela-se contra o compasso. Essa contrametricidade é, pois, se assim podemos dizer, uma presença rítmica inerente às musicalidades africanas, conforme aponta Sandroni (2000), que foi ao longo dos séculos elaborada no processo colonial, principalmente nos centros urbanos do país e serviu de alicerce à construção dos primeiros gêneros musicais que desembocam mais tarde no samba, no maracatu, no jongo, e foi amplamente utilizada como base para a produção de musicalidades afro-americanas que tem no ritmo, na exacerbação do uso das síncopes a consciência rítmica (SILVA, 2012, 2017).

Essa consciência que perpassa o corpo (inteiro) através dos gestos e os sinais produzidos na roda de samba como forma de comunicação nos revelam outros modos de produzirmos enquanto linguagem, narrativas que articulem corpo, arte e performatividade como caminhos possíveis na luta contra a dominação, acerca das potencialidades do olhar que os corpos, as rodas de samba e as sonoridades- musicalidades podem provocar. Enquanto lugares de enunciação na diáspora, esses espaços intervalares criados a partir das fissuras da modernidade, pensando a música e as artes como expressividades, são capazes de romper e ressignificar práticas no contexto da diáspora, fazendo emergir os signos de novas epistemologias.

Essa epistemologia de Exu (KAWARALA 2015 e SILVA 2017), signo de uma epistemologia pós-colonial “é um ponto de encontro de diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem numa pluralidade, na medida em que se produz nas encruzilhadas, onde se abre e fecha caminhos, interrompem-se fluxos e, ao mesmo tempo em que irrompem, interrompem, tanto quanto potencialmente permitem conexões, materializado o princípio de indeterminação (CARDOSO, 2016), princípio este capaz de evitar a política da polarização e de fazer emergir narrativas como se fossem “os outros de nós mesmos”, possibilitando que passemos a vislumbrar histórias nacionais antinacionalistas (BHABHA, 1998). Estas histórias das rodas de samba, das Quadras das agremiações carnavalescas, de bares e botecos, guiadas pelas ondas sonoras das síncopes, engendram-se na inscrição e na articulação do hibridismo na cultura. As síncopes, suas sonoridades e seu poder mobilizador são invocados, entre seus mistérios, como lugares que introduzem a possibilidade de deslocamento em todo seu potencial de sentidos, de coordenadas materiais de movimento a possibilidades de significação: a encruzilhada e seu regente são perigosos (CARDOSO, 2016, p. 09).

Ao descrever a dança dos orixás através do samba, o dançarino do samba da Gamboa brinca ao construir as narrativas dos orixás por meio da dança das músicas apresentados pelo grupo Razões Brasileiras. Mesmo sabendo, por meio de algumas pessoas naquela noite, que o rapaz havia se convertido naquele ano de 2015 ao pentecostalismo, ainda assim, seu corpo debochava e descrevia uma experiência ancestral e, por vezes, tornava-se perigoso, avançando entre as mesas e cadeiras, provocando quem o assistia ou tentava, de alguma forma, participar do seu bailado.

Ou ainda, na forma como Tonico Ferreira buscava construir um andamento que trazia de seu vivido na cidade do Rio de Janeiro para uma roda de samba em Florianópolis que possuía um outro modo de fazer samba. O que poderia ser uma simples diferença aponta para a afirmação de Dos Anjos (2008) quando indica o “ponto de encontro de diferentes caminhos que não se fundem numa unidade” (p.80). Embora os sambas das duas cidades tenham características distintas, elas têm em comum o uso da síncope e os sambas que ela cria e recria, produzindo histórias plurais de combate à segregação racial e a discriminação e fornecendo elementos para o combate ao racismo e a emancipação do negro nas Américas. Ao jovem que foi retirado da roda de samba do Irajá só restou estudar e voltar mais forte, mas a lista de narrativas produzidas pelos quase vinte sambistas sentados a mesa ouvindo seu samba (pagode) e o acompanhando revela-nos o quanto a linguagem da roda de samba pode nos ajudar a construir um novo recomeço.

Laroiê Exu!

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K.(1998) O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG.

CARDOSO, Vânia Zikán. (2007) Narrar o mundo: Estórias do “Povo”de Rua” e a Narração do imprevisível. Mana: 13(2): 317-345.

COSTA, Sérgio. (2006) Dois Atlânticos: Teoria social, Anti-racismo, cosmopolistismo. Belo Horizonte. Editora UFMG.

DOS ANJOS, José Carlos. Debates do NER. Porto Alegre. Vol. 9, n. 13 (jan.jun. 2008), p. 77-96

MONSON, Ingrid. (1996) Saying Something: jazz improvisations and interactions. Chicago: The University of Chicago Press.

MOURA, Roberto. (2004) No Princípio era Roda: estudo sobre samba, partido alto e outros . Rio de Janeiro, Rocco.

SANDRONI, Carlos. (2001) Feitiço Decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Ed. UFRJ. Rio de Janeiro.

SILVA, Marcelo. (2000). Os Bailes, as casas e a Rua: o samba nas camadas populares de Florianópolis de 1920 a 1950. Monografia apresentada em História pela UDESC. 182 ______(2012) Ué Gaúcho, em Floripa tem samba: Uma antropologia do samba e do choro na Grande Florianópolis ontem e hoje. Dissertação de Mestrado apresentado ao PPGASUFSC. SILVA, Marília T. Barboza e SANTOS, Lygia. (1989) Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas. Rio de Janeiro. FUNARTE. SODRÉ, Muniz. (1998) Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro. Mauad.