Paisagens, transformações e memórias do antigo “Arraial dos Jacubas” em Ouro Preto

Alenice Baeta 1 Henrique Piló 2 Fernanda Alves Martins 3 Francine dos Santos 4

Introdução

A proposta de uma leitura da paisagem do bairro de Antônio Dias e de suas transformações ao longo do tempo, em especial do vale do Córrego do Sobreira, município de Ouro Preto, foi suscitada a partir de uma pesquisa desenvolvida na área externa da Casa do Folclore, situada na Praça Antônio Dias. Este bem arquitetônico faz parte do acervo patrimonial de edificações tradicionais de Ouro Preto do final do séc. XVIII.

A Casa do Folclore pertence atualmente à Prefeitura de Ouro Preto, tendo tido nos últimos anos a função de Escola de Música, mas sua principal utilização nos decênios anteriores foi para uso eclesiástico da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Apresenta algumas adaptações e reformas, sobretudo ocorridas no séc. XIX (PROGRAMA MONUMENTA-OP, 2009).

A proposição de implantação de um projeto paisagístico 5 partiu da demanda de ter uma área externa ao fundo do sobrado onde pudessem ser desenvolvidas atividades culturais, revitalizando o uso dessa importante localidade de Antônio Dias.

O quintal da Casa do Folclore, felizmente, não foi objeto de grandes alterações durante as últimas reformas da casa, preservando parcialmente os seus

1 Arqueóloga e Historiadora-Artefactto Consultoria 2 Arqueólogo e Historiador-Artefactto Consultoria 3 Estudante de Arquitetura-EA/UFMG. 4 Estudante de História-FAFICH/UFMG. 5O projeto paisagístico da Casa do Folclore foi de responsabilidade do Programa Monumenta de Ouro Preto/BID (2009), sendo que a empresa executora foi a Germec Construções. A Artefactto Consultoria desenvolveu o Programa de Monitoramento Arqueológico (Cf. ARTEFACTTO, 2011).

patamares, alguns muros e seu partido, estreito e alongado. Possui características clássicas de um quintal típico do século XVIII, tendo como limítrofe de fundo o Córrego do Sobreira,que percorre parte do bairro Antônio Dias.

No projeto paisagístico de referência (2009) foi indicada a necessidade de pesquisa arqueológica. Além dos estudos arqueológicos ainda foram consultadas fontes escritas (primárias e secundárias), iconográficas e orais. Este artigo propõe, a partir de um recorte 6 na pesquisa desenvolvida (ARTEFACTTO, 2011), apresentar um panorama do processo de evolução urbana de Antônio Dias focalizando o logradouro onde se situa a Casa do Folclore e suas adjacências.

Originalmente essa localidade foi importante núcleo minerador em função das características geológicas e geomorfológicas dos vales do Sobreira e de Antônio Dias apresentando marcadores em sua paisagem relacionados a exploração do ouro em suas encostas, tais como galerias e “revirados”. Os antigos moradores fixos de Antônio Dias eram denominados “Jacubas” em função do uso de uma bebida típica de mineradores, constituída basicamente por caldo de limão-rosa com rapadura (LEITE, 2008).

6 Informações sobre a pesquisa arqueológica realizada, incluindo sondagens, análise e inventário do material coletado, além de documentos consultados constam em ARTEFACTTO (2011).

Fig. 01 - Planta geral de localização da Praça Antônio Dias, da Casa do Folclore e ruas do Bairro Antônio Dias Município: Ouro Preto-MG

Foto 01- Fachada anterior da Casa do Folclore, Bairro Antônio Dias. Município: Ouro Preto, MG.

A formação primitiva de Vila Rica no vale dos córregos Antônio Dias e do Sobreira

Na região de Ouro Preto provavelmente a primeira bandeira foi de Manoel Garcia, no final do século XVII seguida pelas explorações de Antônio Dias e do Padre Faria Fialho (CÓDICE COSTA MATOSO, 1999). A procura por jazidas auríferas causou os primeiros fluxos migratórios pelas cumeadas, tendo como consequência a interiorização e ocupação peculiar da colônia.

Os beiços de córregos e encostas eram ocupados por ranchos, palhoças de barro batido, sopapo e pau a pique, cobertos por palhas ou sapé. Primeiramente, quando trabalhavam no leito do rio, chegavam a desviá-lo com paliçadas de madeira, a fim de retirar o cascalho para bateá-lo. No barranco, usava-se o desmonte com picaretas e almocafres terminando o serviço com a apuração na bateia. Ao subirem as encostas, por sua vez, realizavam o talho aberto, que implica no processo de extração em cortes regulares na encosta do morro. Com o passar dos anos canalizavam ainda regos de água a partir das partes mais alta dos morros. O minério era então conduzido até embaixo, onde havia caixas ou depósitos retangulares, também conhecidos como mundéus (SALLES, 1999).

As formas de prospecção do ouro nas revelaram assim um novo modelo de ocupação e expansão territorial, pois até então as áreas costeiras e planícies eram os primeiros ambientes a serem ocupados pelos povoadores (CAMPOS, 2008). A região de Ouro Preto e Mariana foi a responsável por mais da metade da produção aurífera no século XVIII, tendo sido retiradas aproximadamente 350 toneladas de ouro naquele período (OLIVEIRA, 1977).

As matrizes auríferas principais da região de Ouro Preto e Itacolomi (Itaculumi possivelmente, corruptela de ita-curumí , ou pedra menino na língua tupi ), situavam-se em pontos altos e inóspitos, compostos por terrenos íngremes,

inférteis e com vegetação rupestre ou rala, incapazes de suprir por meio da coleta a demanda alimentar de um agrupamento humano.

O ouro era chamado de preto por ser fino,escuro e fofo. Um dos veios mais ricos foi encontrado por Pascoal da Silva Guimarães, comerciante português, um dos principais líderes dos Emboabas, que encontrou veios ricos do “ouro podre” na região de Lages, próximo a Antônio Dias e Encardideira (SALLES, 1999).

Segundo Antonil (1967) a imprevidência no provimento puniram severamente as primeiras levas de mineradores na região de Ouro Preto que experimentaram períodos de fome e escassez, ocasionando ocasiões de abandono temporário das primeiras .

“Os velhos descobridores do ouro preto não aguentaram; fugiram da fome tanto o Padre Faria como Antônio Dias. Muitos se retiraram para Taubaté e mais tarde, vencida a fase aguda da tragédia coletiva, persistentes – voltaram e até mesmo se enriqueceram” (SALLES, 1999: 30).

Vários arraiais que circundavam Vila Rica, como Amarantina e Cachoeira do Campo se dedicavam especialmente a agricultura e comércio, visando suprir a população que se dedicava as atividades de mineração no meio rural e urbano. Segundo Boher (2011), há um local em Rodrigo Silva conhecido como “Campo da Caveira” onde esqueletos de garimpeiros foram encontrados; provavelmente não conseguiram chegar a seus destinos em busca de alimentos e medicamentos.

Foram instaladas, visando um maior rigor administrativo, três comarcas nos primeiros decênios do dezoito, a dizer: a Comarca de Ouro Preto, cujos principais núcleos eram Vila Rica e Ribeirão do Carmo, Comarca do Rio das Velhas, sediada em Sabará e Comarca do Rio das Mortes, cuja sede foi São João Del Rei (BARBOSA, 1995).

A fiscalização da Coroa portuguesa sobre a mineração e comércio influenciou a formação de vilas e aglomerados, pois a administração portuguesa visava conter a dispersão da população e assim poder melhor implantar o fisco; daí a criação das primeiras vilas no início do século XVIII (RUSSEL-WOOD, 1977).

Vinculado da mesma forma à mineração, o segundo ciclo implicou na ruralização e dispersão populacional em direção às zonas de expansão do território mineiro e novas fronteiras, em consequência do esgotamento das lavras de ouro, aumento populacional e investimento em atividades agropecuárias, venda e distribuição de suprimentos (SOUZA, 1976).

A terceira fase de ocupação dos territórios das Minas Gerais relaciona-se ao processo de ocupação e expansão do território mineiro, fundamentado na Lei de Terras de 1850 num contexto vigoroso de crescimento demográfico, consolidando-se como o estado mais populoso do Brasil.

Antônio Dias de Vila Rica, seu plano de ocupação e a “Casa do Folclore”

Situado na porção sudeste do Quadrilátero Ferrífero, na região da serra homônima, o município de Ouro Preto, é divisor da bacia do rio São Francisco onde ainda nasce o rio das Velhas, dos rios orientais que deságuam no Atlântico (CAVALCANTI, 1999).

O relevo da Serra de Ouro Preto, por sua vez, é dividido em duas seções distintas. A primeira, na parte superior, apresenta declives abruptos ou acentuados, quase em escarpa. A segunda, dividida da primeira pela linha de meia encosta, apresenta declives tênues em direção à base da serra. Há ainda zonas planas passíveis de edificações quer pela formação de pequenos planaltos, ou encostas mais suaves ou ainda nos leitos dos rios (GUERREIRO, 2005).

Segundo Antonil, “(...) Antônio Dias, galgando as escarpas da serra e seguindo também a leste pelo alto da cumiada avista afinal o procurado pico do itacolomi e retira o ouro do rio Tripui, onde será fundada a Vila Rica do Ouro Preto. ”

Guerreiro (2005) buscando reconstruir o trajeto dos primeiros bandeirantes utilizando a aplicação da tipologia de percursos presume que os caminhos foram feitos pelas cumeadas secundárias que dividem os promontórios. Os exploradores, segundo a pesquisadora, desciam pelos espigões da encosta até os córregos.

Sua primeira fase de implantação ocorreu, dessa maneira, no nível das ramificações de cumeadas, onde o sistema de drenagem é denso, sinuoso e declivoso. Dessa forma, os primeiros assentamentos do sítio Ouro Preto ocorreram nas margens dos dois principais núcleos que deram origem a cidade: Antônio Dias e Pilar de Ouro Preto. As ocupações nas serras circundantes a esses dois núcleos principais deram-se de forma esparsa, localizadas junto aos córregos de exploração aluvial, ou rente a morros 7 de ocorrência aurífera (GUERREIRO, 2005).

Foram pioneiros os caminhos de cumeada, bem como os de fundo de vale, que constituíram os principais acessos de chegada e ocupação de Ouro Preto, interligando linearmente os núcleos vizinhos configurando a futura malha urbana da cidade.

“A sua relação com os caminhos extraurbanos é feita sobretudo por um percurso de meia encosta que liga diversos aglomerados sistematicamente localizados no sopé da serra, sendo os mais próximos Cachoeira do Campo, à direita e Mariana, à esquerda ” (GUERREIRO, 2005: 6).

7 O Morro de São João, por exemplo, foi uma das localidades exploradas no final do século XVII.

Os pontos notáveis do território de Ouro Preto situam-se nas linhas de cumeada, nos centros de distribuição ou de talvegue nos centros de encontro, que eram os centros de articulação do território tecendo a estrutura urbana da cidade (GUERREIRO, 2005).

Do ponto de vista morfológico Ouro Preto apresenta uma rede urbana que resulta do cruzamento de ocupações em cumeada, encosta e vale. Essa teia demonstra, por sua vez, que os espaços urbanos não planejados, considerados irregulares, podem significar um processo de ocupação orgânico que representa a espacialização social e econômica de um lugar (BORREGO, 2004;GUERREIRO,2005).

Borrego (2004) aponta as principais etapas de desenvolvimento urbano de Vila Rica, sendo a primeira, linear, quando se deu ao longo da estrada e com o crescimento dos núcleos de povoamento; a segunda, com o estabelecimento da praça que tornou o povoamento centrípeto e, por fim, posteriormente à construção da praça o movimento urbano se modifica atingindo um movimento centrífugo, com ramificações de ruas paralelas, vielas e becos.

John Mawe, que esteve em Vila Rica em 1812, chama a atenção para os terrenos acidentados onde esta se encontrava implantada.

“A maior parte das ruas se encontram em degraus, desde a base até o vértice da montanha e atravessada por outras, que seguem a direção da subida. É bom o abastecimento de água, conduzida a muitas casas de maneira muito cômoda e agradável. Há nas ruas muitos chafarizes; conquanto não sejam de arquitetura comparável à das fontes da Itália, são bem construídos. (...)O lado sobre o qual se ergue a cidade apresenta várias pequenas colinas, que formam despenhadeiros e barrancos estreitos ”(1978:122-123).

Os registros da atividade mineradora na Serra de Ouro Preto também são notórios, tendo sido identificados antigos sítios de lavra de ouro 8, descritos em parte por Eschwege no século XIX, a dizer: Lavras do Coronel Veloso, de Lages-Antônio Dias, do Morro da Queimada, Saragoça, do Morro São João, Tassara e do Moreira, Sumaré e Taquaral, dentre outras.

“O ouro também se encontra nesses conglomerados, em maior quantidade na parte inferior das mais baixas encostas das montanhas, do que em seus cumes, e apresenta-se do mesmo modo mais abundante nas camadas inferiores, do que nas da superfície, especialmente quando cobre o xisto hematítico () como é o caso da Serra de VilaRica, no vale de Antônio Dias, onde ainda durante os últimos anos de minha permanência ali foi demolido em parte o chamado Palácio Velho, antiga morada em ruínas dos governadores, com o fim de ser extraída a grande quantidade de ouro existente na tapanhoacanga sobre a qual fora o mesmo edificado. A camada de tapanhoacanga se destacava como que em forma de ilha sobre o vale, pois, desde muito, as partes dessa camada em torno do palácio já haviam sido trabalhadas por outros proprietários, até o topo da serra ” (ESCHWEGE, 1979:159).

8As minas de ouro da Serra de Ouro Preto foram alvos de estudos de metalogênese desde o século XIX por Eschwege (1833), Gorceix (1876), Ferrand (1887), Derby (1899) e Lacourt (1937). As galerias de Antônio Dias e arredores foram mapeadas por Cavalcanti (1999).

Foto 02- Antiga foto de Antônio Dias, onde é possível visualizar parte do quintal da Casa do Folclore, seus terrenos adjacentes e encostas do vale do Sobreira. Arquivo da Casa do Pilar- Museu da Inconfidência

Vila Rica, conforme exposto, formou-se a partir da expansão e junção de vários núcleos primitivos de povoamento. As duas matrizes ou zonas principais foram as freguesias de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto e a de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias (GUERREIRO, 2005).

Dedicada a Nossa Senhora da Conceição, leva o nome do bandeirante Antônio Dias que mandou construir a sua primeira capela. A construção da matriz foi iniciada em 1727, por Manuel Francisco Lisboa (cujo projeto foi de Pedro Gomes Chaves), e concluída 30 anos depois. Mas suas obras ainda se estenderam por mais de trinta anos.

“Por informação fidedigna, sabe-se que no local onde existe o atual jardim, existia a casa do sacristão, o que vem documentar ter sido a velha matriz de frente para a rua Direita, atual Bernardo Vasconcelos ” (RUAS, 1950:71).

Foto 03- Largo da Matriz de Antônio Dias,Nossa Senhora da Conceição, a partir da rua Alfredo Baeta. Na Praça Antônio Dias se encontra a Casa do Folclore. Bairro: Antônio Dias. Município: Ouro Preto, MG.

Cada paróquia desenvolveu uma feição própria, tanto sob o ponto de vista cultural, quanto sob a ótica da especialização econômica, pois em Antônio Dias predominou a mineração de ouro e, em Pilar de Ouro Preto, a atividade comercial (CAMPOS, 2003).

Fundados por paulistas, os primevos arraiais foram ocupados por estes, mas após a sua derrota na Guerra dos Emboadas estes buscaram se concentrar preferencialmente em Antônio Dias. Neste arraial e adjacências, em função das características geológicas e geomorfológicas se concentravam ainda as principais e promissoras galerias de explotação de ouro (CAVALCANTI, 1999).

Foto 04- Entrada de antiga galeria de exploração de ouro próximo as ruínas do Palácio Velho em Antônio Dias e Encardideira. Município: Ouro Preto, MG.

O geólogo Eschwege, em “Pluto Brasiliensis”, descreve que em sua estadia em Vila Rica, testemunhou em Antônio Dias o desmonte parcial de parte dos muros da antiga residência dos governadores, o “Palácio Velho”, em busca de veios de ouro, tamanha era a voracidade e procura do metal na região. Esse local ficava em Encardideira.

“O ouro também se encontra nesses conglomerados, em maior quantidade na parte inferior das mais baixas encostas das montanhas do que em seus cumes e apresenta-se do mesmo modo mais abundantes nas camadas inferiores, do que nas da superfície, especialmente quando cobre o xisto hematítico (itabirito), como é o caso da Serra da Vila Rica, no vale de Antônio Dias, onde durante os últimos anos de minha permanência ali, foi demolido em parte o chamado Palácio Velho, antiga morada em ruína dos governadores, com o fim de ser extraída a grande quantidade de ouro existente na tapanhoacanga, sobre a qual fora o mesmo edificado (...) desde muito, as partes desta camada em torno do palácio já haviam sido trabalhadas por outros proprietários até o topo da serra “ (1979:159) .

Foto 05- Ruínas do Palácio Velho em Antônio Dias-Encardideira. Município: Ouro Preto, MG.

A partir da instalação do aparelho administrativo o espaço de Vila Rica passa a ser normatizado pelas “Ordenações do Reino e Posturas Municipais”, quando se iniciam construções mais suntuosas, como templos religiosos, quartéis, palácios, pontes, chafarizes e edificações de maior porte.

Visando unificar os arraiais Antônio Dias e Pilar, a Praça Ouro Preto (antigo Morro de Santa Quitéria), posteriormente denominada , busca centralizar os principais edifícios administrativos e de poder. O outro intuito seria hierarquizar os espaços buscando enquadrar a população considerada sediciosa, dispersa e desregrada. O Senado da Câmara chegou a lançar posturas no sentido de coibir que pequenos animais vagassem a esmo pelas ruas e logradouros.

Fig. 02- Desenho do artista local Sr. José Pio (bico de pena) da Matriz de Antônio Dias, a partir de antiga fotografia onde pode ser observada a parte posterior da Casa do Folclore-Ouro Preto, MG. Autor: José Pio (Acervo pessoal: Edson Quirino).

Fig.03- Detalhe do desenho anterior onde pode ser observada fachada posterior e quintal da Casa do Folclore. Autor: José Pio (Acervo pessoal de Edson Quirino).

Segundo Vasconcelos (1968), os quintais normalmente não possuíam cercados ou em algumas situações sua delimitação era indefinida, constituindo-se em espaço híbrido onde eram exercidas atividades típicas urbanas e rurais. Em regra, as casas eram de um pavimento ou térreas, posteriormente, algumas

recebiam o segundo pavimento e novos elementos decorativos ou acréscimos.

John Mawe em 1812 descreve ainda em sua visita a Vila Rica alguns jardins e quintais, modelo que se aplica a área externa da Casa do Folclore:

“Os jardins, plantados com muito gosto, apresentam em sua disposição, espetáculo curioso. Como é difícil encontrar em todo o flanco da montanha espaço plano de trinta pés quadrados, remediaram essa falta, aplainando espaços uns sobre os outros, a distâncias iguais e sustentando-os por muros pouco elevados; escadas conduzem de uns a outros. (...) Há também excelentes hortaliças de toda a espécie, tais como alcachofras, aspargos, espinafres, repolhos, feijão e batatas ” (1978: 122).

Poucos anos depois da visita de Mawe, Saint-Hilaire, em 1816, apresenta outra impressão dos quintais de Vila Rica:

“As casas se encontram assim dispostas por grupos desiguais, e cada uma, é, por assim dizer, construída em plano diferente do das outras. A maioria tem um pequeno jardim, longo e estreito e muito mal cuidado ” (1975:70).

O médico viajante J. E. Pohl, por sua vez, descreve as casas da população mais pobre, constituídas por “paredes de barro e caiadas ” (1976:397).

No entorno da Matriz de Antônio Dias havia uma zona de concentração populacional grande que alcançava a rua dos Paulistas, com muitas construções, conforme Massara (1989).

Apesar da unificação entre as vilas no início do século XVIII as rivalidades entre os dois núcleos principais eram permanentes, tanto em termos econômicos, como culturais e políticos.

Em função do Concílio de Trento que vinculava os moradores à sua freguesia havia um registro rigoroso de nascimentos, casamentos e óbitos de seus

habitantes. Segundo o Cônego Raymundo Trindade (1928: 35) Antônio Dias foi elevada a Vigaria Colada, por Carta Régia de 16 de fevereiro de 1724, sujeita à jurisdição do Bispado do .

Em Antônio Dias concentrava-se boa parte da vida administrativa, militar e religiosa de Vila Rica. Com pouco mais de metade (50,77%) da população da urbe, Antônio Dias e Pilar de Ouro Preto,

“contavam com quatro quintos dos militares (79,20%) e 85,52% dos demais integrantes da administração civil. Neles residiam trinta e três dos quarenta eclesiásticos (82,50%) e76,31% dos profissionais liberais. Quatro quintos dos comerciantes (80,62%) e 78,98% das pessoas relacionadas em "outros serviços". Por outro lado, neles congregava-se 49,76% da massa vinculada ao secundário e apenas 39,17% dos elementos enquadrados no setor primário ” (LUNA & COSTA,1978 – O grifo é nosso).

Campos (2008) propõe que o limite entre as freguesias de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias e de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (ou Ouro Preto) por uma linha imaginária, no sentido aproximado norte-sul, que corta a Rua Nova e a Praça Tiradentes, em seu eixo longitudinal, seguindo pela Barra até atingir o Morro do Cruzeiro. A leste, fica Antônio Dias e a oeste, Ouro Preto.

“A distância que separava esses povoados iniciais era grande. O Antônio Dias e o Ouro Preto, crescendo ambos, encontraram-se no morro de Santa Quitéria, hoje Praça Tiradentes. A rua principal tomou então, seu sentido longitudinal, ligando as três colinas, Cabeças, morro Santa Quitéria, e no outro extremo, Santa Efigênia ” (SALLES, 1999).

Massara indica o Morro de Ouro Preto ou de Santa Quitéria o divisor natural das duas freguesias, sendo que o acesso a Matriz Nossa Senhora da

Conceição, seria feito “ por duas ruas, a saber: rua da igreja de Antônio Dias ou rua de baixo ou rua da ponte, ou ainda a rua da cadeia velha ” (1989:146).

Outra localidade adjacente a Antônio Dias que se expandiu durante o século XVIII foi Santa Efigênia, interligando as antigas localidades de Padre Faria. A ladeira “Vira e Saia” dá acesso a esse templo, próximo ao Calvário ou Alto Cruz.

Foto 06- Rua Padre Antônio Carvalho, onde no século XVIII havia um cemitério e torre com sino (Cf. Foto 02). Bairro: Antônio Dias. Município: Ouro Preto, MG.

Foto 07- Córrego do Sobreira canalizado e antiga ponte de alvenaria de pedra do Palácio Velho que dá acesso pela Rua Dom Silvério a antigas galerias de exploração do ouro e a mina Chico Rei- Encardideira. Bairro Antônio Dias. Município: Ouro Preto, MG.

Segundo relato da Senhora Maria Cota Quirino, o leito do Córrego do Sobreira era muito mais amplo, onde até se podia pescar. Havia também vegetação em suas margens, apesar de um pouco rala, segundo seu depoimento. Na margem oposta à Casa do Folclore, havia galerias e algumas ruínas, como as do Palácio Velho e outras casas constituídas por muros de alvenaria de pedra.

O local onde hoje fica a Rua Padre Antônio Carvalho teria sido um grande cemitério no século dezoito, que se estendia desde a Matriz de Antônio Dias até o Córrego do Sobreira. Na parte alta, rente a igreja teria tido uma torre com sino. Essas informações podem ser confirmadas por antiga foto encontrada no Arquivo da Casa do Pilar (Cf. Foto 02).

Parte dos muros de pedra do século XVIII dos lotes que confrontam com o Córrego do Sobreira foi infelizmente destruído. Alguns blocos foram retirados para serem utilizados em obras recentes nas redondezas, sobretudo, como alicerces de residências, descaracterizando a configuração dos muros originais do vale. Alguns trechos, por sua vez, foram reutilizados na realocação dos muros traseiros em direção ao Córrego do Sobreira canalizado nos anos setenta do século passado, como parece ter sido o caso do quintal da Casa do Folclore, que se alongou ainda mais, como os de seus vizinhos laterais.

Com a canalização do Córrego do Sobreira, os quintais antigos ampliaram-se em direção ao canal 9. O fundo dos terrenos, antes alagáveis, foram também ocupados (ou “invadidos”) por novas construções, como pode ser averiguado na Travessa José Catarino.

A partir da Casa do Folclore e Praça Antônio Dias podia-se avistar a movimentação dos mineiros junto às galerias na encosta oposta do Córrego do

9 O muro lateral original coincide com o término da estrutura de canalização de pedra conforme observado nas sondagens arqueológicas. Também foi constatada uma expansão no segundo pavimento na lateral direita com a instalação de três amplas janelas com vidros propiciando mais iluminação no cômodo. Esse acréscimo foi sustentado pelas vigas da varanda inferior (ARTEFACTTO, 2011).

Sobreira, no “Palácio Velho” e Encardideira. Nos últimos decênios, a maioria das residências da meia e baixa encosta foi construída encobrindo parte do conjunto de galerias e demais vestígios de mineração, além de ruínas remanescentes do Arraial de Antônio Dias 10 , marcas diacríticas deste lugar e de sua paisagem.

Referências Bibliográficas

ANTONIL, André João (João Antônio Andreoni) Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas . São Paulo: Cia Editora Nacional,1967.

ARTEFACTTO CONSULTORIA “Monitoramento Arqueológico da obra de Paisagismo na Casa do Folclore de Antônio Dias” Município: Ouro Preto, MG. BAETA, Alenice& PILÓ, Henrique (Coord.). Programa Monumenta de Ouro Preto/BID-GERMEC Construções, Ouro Preto, 2011.

BARBOSA, Waldemar de A. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais . : Itatiaia, 1995.

BOHRER, Alex Fernandes. Ouro Preto, um novo olhar São Paulo: Scortecci, 2011.

BORREGO, Maria Aparecida de M. Códigos e Prática: o processo de constituição urbana em Vila Rica colonial (1702-1748) São Paulo: Anablume, 2004.

CAMPOS, Kátia Maria N. Vila Rica um estudo de morfologia urbana . Monografia de Bacharelado em História, ICHS/UFOP, 2003.

CAVALCANTI, José Adilson D. Mineralização Aurífera de Lages- Antônio Dias, Ouro Preto (Dissertação de Mestrado) UNICAMP, Campinas, 1999.

DERBY, O. Os primeiros descobrimentos do Ouro em Minas Gerais. In: Revista do Instituto Histórico de São Paulo . Vol. 5, 1899.

ESCHWEGE, W. L. Von. Pluto Brasiliensis (1833) Ed. Itatiaia; São Paulo; EDUSP, 1979.

10 Este conjunto de estruturas remanescentes merece, ao nosso ver, um programa de pesquisa, inventário e revitalização patrimonial.

FERRAND, Paul. Ouro Preto e as Minas de Ouro. Revista de Engenharia , Rio de Janeiro, 1887-1891.

GORCEIX, H. Passado da mineração de ouro na província de Minas Gerais. In: Revista da Escola de Minas-REM . Ouro Preto, MG, v.45 (3), 1876.

GUERREIRO, Maria Rosália A Lógica Territorial na Gênese e Formação das Cidades Brasileiras; o caso de Ouro Preto. In: Urban , n. 3, 2005.

PROGRAMA MONUMENTA-OP/BID - Projeto Paisagístico da Casa do Folclore, IJC Arquitetura e Engenharia ,Ouro Preto, 2009.

LACOURT, F. Jazidas auríferas de Ouro Preto e Mariana (I e II). In: Estado de Minas Gerais , 1937. 1937.

LEITE, Antônio Lobo Memórias de um habitante do Jacuba . Livraria e Editora de Ouro Preto, Ouro Preto, 2008.

LIMA JÚNIOR, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto: síntese histórica e descritiva . Belo Horizonte: Gráfica Veloso, 1957.

LUNA, Francisco Vidal &COSTA, Iraci del Nero da. Contribuição ao Estudo de um Núcleo Urbano Colonial (Vila Rica:1804). IN: Estudos Econômicos, IPE - USP, 8(3):1-68, São Paulo, 1978.

MARX, Murilo Arraiais Mineiros: Relendo Sylvio de Vasconcelos. Revista Barroco , n. 15, Ouro Preto, 1992.

MASSARA, Mônica et al. Evolução Urbana de Ouro Preto nas primeiras décadas do século XVIII. Revista do Departamento de História , Belo Horizonte, FAFICH-UFMG, n.9, p.141-148, 1989.

MAWE, John Viagens ao Interior do Brasil . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;São Paulo: EDUSP, 1978.

OLIVEIRA, T. B. O Ouro em Minas Gerais. Simpósio sobre o ouro. XVII Semana de Estudos Geológicos da SIGE C. Escola de Minas. Ouro Preto, 1977.

POHL, Joahann E. Viagem no Interior do Brasil . São Paulo: EDUSP, 1976.

RUAS, Eponina. Ouro Preto sua história, seus templos e monumentos . Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1950.

RUGENDAS, Johan Moritz Voyage Pitoresquedans Le Brésil . Paris: Engelmar, 1835.

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem às nascentes do rio São Francisco . Belo Horizonte:Itatiaia;SãoPaulo:EDUSP, 1975.

SALLES, Fritz Teixeira. Vila Rica do Pilar. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda; São Paulo: EDUSP, 1982.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História . São Paulo, Ano XXVIII, V. LV, 1977.

TRINDADE, Cônego Raimundo Trindade. Archidiocese de Mariana: Subsídios para a sua História. São Paulo: Escolas Profissionais do Lyceu Sagrado Coração de Jesus, vol. 1, 1928.

VASCONCELOS, Sylvio de. Como Nasceu Ouro Preto: sua formação cadastral desde 1712.Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional .n.12, 1959.

VASCONCELOS, Sylvio de. Vila Rica Formação e Desenvolvimento . São Paulo: Perspectiva, 1977.

LIMA, Augusto de. Um município do Ouro-memória histórica. In: Revista do Arquivo Público Mineiro . VI, 1901.

Arquivo Casa do Pilar - Museu da Inconfidência

Acervo Iconográfico - Docs. avulsos