Resistência ON-LINE

Revista do Instituto Humanitas IHUNº 477 | Ano XV 16/11/2015 Viva ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online)

Kabengele Munanga: A preponderante geografia dos corpos Simone Vieira da Cruz: Duas faces de preconceito em uma só Alex André Vargem: O Atlântico Negro reeditado

Elsa Bevian: Fernanda Frizzo Marcio Gimenes de Capitalismo biocognitivo Bragato: Paula: - máquina de triturar Conflitos Guarani A Reforma e o convite trabalhadores Kaiowá: descolonizar aos reparos é preciso Editorial Resistência Viva. A luta de Zumbi e Dandara continua

m novembro se evidencia mais da Universidade do Vale do Rio dos intensamente a memória das Sinos - Unisinos. Elutas afro-brasileiras. Desde as O tema da entrevista do doutor em primeiras mobilizações por liberdade Teologia Volney J. Berkenbrock é a nas batalhas travadas nos diversos experiência religiosa do Candomblé e quilombos espalhados pelo país, até seu diálogo com o Catolicismo. Para o os embates mais recentes, que têm teólogo essas duas tradições religio- ocorrido nos “outros” espaços que a sas se afetam mutuamente na tarefa população negra pouco a pouco vem de encontrar o sentido da vida. conquistando e que historicamente Alexandre Ciconello, advogado e A IHU On-Line é a revista do Instituto não lhe são atribuídos. O Dia Nacio- assessor de direitos humanos da Anis- Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi- nal da Consciência Negra, celebrado tia Internacional, fala sobre a vulne- cação pode ser acessada às segundas-feiras em 20 de novembro, marca essa his- rabilidade da população negra quan- no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço tória de conquistas da qual são ícones to à violência no Brasil e destaca que www.ihuonline.unisinos.br. Zumbi e Dandara, guerreiros líderes os estereótipos racistas são fatores da resistência no Quilombo de Palma- que intensificam esse problema. A versão impressa circula às terças-feiras, a res, que se mantêm vivos em todos O sociólogo e integrante do Insti- partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo aqueles que lutam por uma sociedade tuto do Desenvolvimento da Diáspora da IHU On-Line é copyleft. com mais equidade e menos discrimi- Africana no Brasil, Alex André Var- Diretor de Redação nação. A revista IHU On-Line desta gem aponta que os fluxos migratórios Inácio Neutzling ([email protected]) semana debate este tema a partir do contemporâneos resgatam a noção olhar de diversos pensadores envolvi- de Atlântico Negro, porém com ele- Jornalistas dos com esta causa. mentos que revelam estagnações e João Vitor Santos - MTB 13.051/RS Excepcionalmente esta edição retrocessos. ([email protected]) conta com uma novidade. Junto às Simone Vieira da Cruz, psicólo- Leslie Chaves – MTB 12.415/RS entrevistas serão publicadas as fo- ga, mestre em Saúde Coletiva pela ([email protected]) 2 tos de cada entrevistado com uma Unisinos e integrante da Associação Márcia Junges - MTB 9.447/RS pergunta, ao mesmo tempo simples Cultural de Mulheres Negras, fala das ([email protected]) e complexa: Quem é você? A ideia é dificuldades de ser mulher negra na Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS apresentar algumas pistas do “lugar atualidade, em uma sociedade racis- ([email protected]) de fala” dessas pessoas, de como elas ta e machista. Ricardo Machado - MTB 15.598/RS se veem no mundo e a partir de que Também nesta edição podem ser ([email protected]) lentes o observam. conferidas as seguintes entrevistas: Revisão Contribuem para as discussões o Fernanda Frizzo Bragato, profes- Carla Bigliardi doutor em Ciências da Comunicação sora e pesquisadora do Programa de pela Unisinos e professor da Ulbra, Pós-graduação em Direito da Unisi- Projeto Gráfico Deivison Campos, que analisa as nos, reflete sobre a violação dos di- Ricardo Machado origens do 20 Novembro a partir da reitos humanos dos povos indígenas trajetória do Grupo Palmares, propo- brasileiros. Editoração sitor da data. O pesquisador também Os desafios à preservação da saú- Rafael Tarcísio Forneck de do trabalhador na atualidade é o apresenta em uma entrevista inédita Atualização diária do sítio tema da entrevista de Elsa Cristine e exclusiva as impressões de Oliveira Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia Bevian, doutora em Ciências Huma- Silveira, poeta e um dos fundadores Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner, nas pela Universidade Federal de desta mobilização histórica, falecido Matheus Freitas e Nahiene Machado. em 2009. Santa Catarina – UFSC. Na mesma O antropólogo e professor da USP linha, a psicóloga e doutora em Psi- Colaboração Kabengele Munanga, pensa os meca- cologia Social e Institucional, Carla Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui- nismos de funcionamento do racismo Garcia Bottega discute a saúde men- sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de no Brasil, que segundo suas análises, tal no mundo do trabalho. Curitiba-PR. são fortemente baseados nas diferen- A filosofia Ubuntu é debatida na ças fenotípicas. entrevista do filósofo congolês Jean José Antônio dos Santos, doutor Bosco Kakozi Kashindi. em História pela PUC-RS, aborda o O legado da Reforma Luterana é papel da imprensa negra nas lutas analisado pelo doutor em Filosofia pela dos negros. “A população negra sem- Unicamp, Márcio Gimenes de Paula. pre tomou a iniciativa de participar O teólogo leigo italiano, Andrea Instituto Humanitas Unisinos - IHU das discussões e criar seus próprios Grillo avalia que o Sínodo dos bispos Av. Unisinos, 950 canais de representação política e traz sinais de uma Igreja que sai de si São Leopoldo / RS cultural”, frisa. e olha o mundo. CEP: 93022-000 “Movimentos afro-latino-america- A todas e a todos uma boa leitura e nos: unidos pela diáspora e contra uma ótima semana! Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 a opressão” é o tema da entrevista e-mail: [email protected] com Laura Cecilia López, professora Diretor: Inácio Neutzling Foto da Capa: arte sobre ilustração de Gerente Administrativo: Jacinto dos Programas de Pós-graduação em Wikipédia Saúde Coletiva e em Ciências Sociais Schneider ([email protected])

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Destaques da Semana

6 Destaques On-Line 8 Linha do Tempo 10 Cobertura de eventos – A luta por dignidade e contra a invisibilidade 11 Estante - Adilson Felicio Feiler: Amor e destino: antídotos para o positivismo da lei 15 Eventos IHU - Fernanda Frizzo Bragato: Conflitos Guarani Kaiowá: descolonizar é preciso 20 Eventos IHU - Elsa Cristine Bevian: Capitalismo biocognitivo: máquina de triturar trabalhadores 27 Eventos IHU - Carla Garcia Bottega: Quando a chaga vem do silenciamento

Tema de Capa

36 Zumbi presente 37 Deivison Campos: Origens do 20 de Novembro: Grupo Palmares e sua estratégia subversiva 43 Deivison Campos: Oliveira Silveira: a face poética da luta 47 Kabengele Munanga: A preponderante geografia dos corpos 52 José Antônio dos Santos: Do apagamento à visibilidade – Os negros, a imprensa e a luta política 3 56 Laura Cecilia López: Movimentos afro-latino-americanos: unidos pela diáspora e contra a opressão 63 Volney J. Berkenbrock: Religiões de matriz africana e cristianismo: um diálogo possível? 69 Alexandre Ciconello: Os corpos matáveis de uma sociedade 74 Alex André Vargem: O Atlântico Negro reeditado 79 Simone Vieira da Cruz: Duas faces de preconceito em uma só

IHU em Revista

84 Agenda de Eventos 85 Jean Bosco Kakozi Kashindi: Metafísicas Africanas – Eu sou porque nós somos 93 Teologia Pública - Marcio Gimenes de Paula: A Reforma e o convite aos reparos 100 Teologia Pública - Andrea Grillo: Uma porta que se abre para o novo 105 Publicações 107 Retrovisor

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IHU ON-LINE

Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Destaques On-Line Entrevistas publicadas entre 09-11-2015 e 11-11-2015 no sítio do IHU

Lei antiterrorismo: uma falsa solução para um falso problema

Entrevista especial com Adriano Pilatti, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do – UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Ciên- cia Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza. Publicada em 11-11-2015 Disponível em http://bit.ly/1Lef015 O PL 101/15, conhecido como Lei antiterrorismo, aprovado no Senado, é um “desastre” do “ponto de vista das liberdades individuais e coletivas e dos direitos fundamentais”, diz Adriano Pilatti à IHU On-Line, na entrevista concedida por e- 6 -mail. Na avaliação dele, o PL representa um “retrocesso” que, se aprovado, nos Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br jogará de volta “para os tempos do arbítrio e do terror de Estado e que pode pro- duzir injustiças e sofrimentos em quantidades industriais”.

Direitos sociais na mira de novas alianças políticas

Entrevista especial com Guilherme Delgado, doutor em Economia pela Universi- dade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Publicada em 10-11-2015 Disponível em http://bit.ly/1MNThhD “Vejo cada vez mais difícil qualquer aliança, qualquer proposta que vá na linha da desconstrução de direitos sociais”, diz Guilherme Delgado à IHU On-Line, ao defender que qualquer aliança política que se faça nesse momento “no sentido de retroagir as salvaguardas da igualdade social na Constituição só irá piorar a situ- ação”. A alternativa agora, enfatiza, é “defender a Constituição e nenhum retro- cesso”. Na entrevista, analisa a atual conjuntura política, na qual se evidenciam “jogos de chantagem recíproca, em que o PT e o Cunha estão metidos”.

Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br

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Lei antiterrorismo. Da insegurança jurídica à derrota da democracia

Entrevista especial com Patrick Mariano, advogado, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – Renap. Publicada em 09-11-2015. Disponível em http://bit.ly/1PGie3z “Não existe razão jurídica, não existe razão política nem razão técnica” para a sanção do PL 101/15, que tipifica crimes de terrorismo no país. De acordo com Mariano, o ordenamento jurídico brasileiro “já prevê penas para todos os delitos que, por ventura, possam se vincular a atos de terrorismo. Por exemplo, em caso de explosão em ataque a aeronaves, já existe punição para isso, ou seja, já está previsto no Código Penal, inclusive com uma penalidade alta. Modificações legisla- tivas recentes, inclusive na lei de organizações criminosas, já dão às autoridades Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br brasileiras mecanismos de combate a esse tipo de ato”.

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Linha do Tempo A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, entre os dias 09-11-2015 e 13-11-2015, relacionada a temas que tiveram repercussão ao longo da semana

Um projeto que pode Mariana: desastres O PMDB e a reforma piorar ainda mais o viram chance de fiscal: ponte para o calvário das vítimas inferno social de estupro ganhar dinheiro sobre o sofrimento “A essência da proposta é, por- Luísa, uma jovem carioca de classe alta, foi estuprada aos 21. tanto, a de rasgar a Constituição “Para a Vale, a BHP, para o Em uma madrugada de maio des- de 1988 no que diz respeito à te ano, saiu de uma festa, entrou governo federal, para os depu- rede de proteção nela estabe- em um táxi e, ao perceber o ca- tados financiados pelas grandes lecida e retirar, do Executivo, minho estranho, foi impedida de abrir a porta pelo taxista, que a mineradoras que querem mu- toda e qualquer influência que ameaçou com uma arma enquan- dar o Código da Mineração, tem este hoje dispõe para formular, to a levava a um lugar ermo. Ou- coisas que é melhor não pensar propor e implementar programas tro homem esperava no local e que coloquem em risco a meta ambos a violentaram até ela des- – pois pensar demais pode atra- sagrada do ajuste fiscal”, es- maiar. O pavor, o nojo, a revolta palhar os lucros”, escreve Feli- 8 a impediram de procurar uma clarece Fabrício Augusto de Oli- pe Milanez, jornalista, em arti- delegacia. “Eu só quis dormir, es- veira, Doutor em economia pela quecer, ficar em posição fetal e go publicado por CartaCapital, Unicamp, membro da Plataforma não pensar mais nisso. Não que- 12-11-2015. de Política Social e escritor, em ria me expor a mais sofrimento, artigo publicado por Carta Maior, não queria ter que falar sobre Confira um trecho do artigo. isso. Não queria correr o risco de 10-11-2015. ser considerada culpada.” Sua Tragédias ecológicas de pro- família comprou em uma farmá- Confira um trecho do artigo. porções catastróficas, logo quan- cia a pílula do dia seguinte e, Depois de operar e atuar por com uma médica amiga da famí- do ocorrem, rompem o silêncio décadas nas sombras do poder, lia, conseguiu os medicamentos da mídia sobre situações de ris- para evitar HIV, sífilis, gonorreia. de uma maneira geral contra os cos que estavam marginalizadas A reportagem é de Talita Be- interesses da sociedade como e dão grande atenção aos espe- dinelli, publicada pelo jornal El um todo, o PMDB, visando man- País, 12-11-2015. táculos – sensacionalizando os ter seu espaço de influência nas Maria, uma mulher pobre, mo- aspectos macabros. No caso da decisões estratégicas da políti- radora de uma favela em São cobertura da catástrofe em Ma- ca do governo, acaba de lançar Paulo, foi estuprada pelo chefe oportunisticamente, para dele do tráfico local. Sabe que aquilo riana, essa atenção da mídia tem não se afastar, diante do enfra- que viveu não poderá ser com- sido parcial, baseada em infor- partilhado com a polícia, pois ela quecimento da presidente Dil- mações prestadas pela Samarco, certamente será morta logo de- ma, um documento com propos- que se tornou inclusive a “sede” pois, por vingança. Engravidou, tas de reformas para o País sair mas não quer de jeito nenhum do governo de Minas para uma da crise, intitulado “Uma ponte que um filho seja gerado daquela violência. coletiva de imprensa. para o futuro”. http://bit.ly/1Y9Cq10 http://bit.ly/1YcT2ov http://bit.ly/1NvqdMv

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Não há crise que Projeto de “lei Pacto das antiterrorismo”: possa justificar o Catacumbas. Por uma desmantelamento para quem? do SUS Igreja servidora e A nova lei antiterrorismo mos- tra-se instrumento adequado pobre. Livro de José “Aproveitar-se do momento para inibir protestos contra a de instabilidade para aumentar Oscar Beozzo atual onda conservadora”, frisa a possibilidade de lucros de seus Guilherme Leite Gonçalves, pro- patrocinadores é mais uma de- No dia 16 de novembro, segun- fessor de Sociologia da Universi- monstração de oportunismo po- dade do Estado do Rio de Janeiro da-feira, celebra-se o 50º aniver- lítico do lesa-pátria que ocupa a (UERJ), em artigo publicado por sário do Pacto das Catacumbas. Cadeira da Presidência da Câma- CartaCapital, 11-11-2015. ra”, escreve Gerson Salvador de Celebrando este evento, as Edi- Confira um trecho do artigo. Oliveira, médico infectologista, ções Paulinas estão lançando o em artigo publicado por Carta Em meio às perplexidades ao 9 Maior, 09-11-2015. redor do projeto de lei antiter- livro Pacto das Catacumbas. Por rorismo (PL 2016/2015), chama uma Igreja servidora e pobre. O Confira um trecho do artigo. a atenção o fato de que o texto Até 1988 atenção à saúde era de propositura tenha a assina- autor é José Oscar Beozzo. O li- tura dos ministros José Eduardo acessível a quem pudesse pa- vro tem como objetivo resgatar gar, ou a trabalhadores com em- Cardoso e Joaquim Levy. Que o Ministério da Justiça se ocupe da e conservar a memória do gesto pregos formais, segurados pelo matéria, nada de novo. Mas des- INAMPS (Instituto Nacional de profético denominado Pacto da de quando a “guerra ao terror” Assistência Médica e Previdência virou tema da Fazenda? Igreja servidora e pobre, mais Social), sendo que o aumento conhecido como Pacto das Cata- das taxas de desemprego e con- A surpresa se desfaz com a lei- sequente diminuição no número tura da justificativa, na qual se cumbas. O livro é um excelente aponta o dever de combater o fi- de segurados, a partir de mea- nanciamento ao terrorismo para subsídio para uma oração ou vi- dos da década de 1970 e durante cumprir “acordos internacionais toda a década de 1980, aumen- gília em torno do Pacto e tam- firmados pelo Brasil, sobretudo tou exponencialmente o número em relação a organismos como bém em memória de D. Enrico de pessoas que dependiam de o do Grupo de Ação Financeira Angelelli, bispo de La Rioja que filantropia, ou que não tinham (GAFI)”. Há muitos compromis- o assinou e foi assassinado pelos acesso a qualquer serviço de sos desse tipo que não se torna- saúde, porque o Estado não re- ram direito interno. Por que ta- militares na Argentina. conhecia o dever de lhes prover manha atenção com os acordos assistência. do grupo? O livro, em pdf, pode ser aces-

http://bit.ly/1H0WoXm http://bit.ly/1MNV1Hy sado em http://bit.ly/1Sw0J5o.

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COBERTURA DE EVENTOS A luta por dignidade e contra a invisibilidade Os coletivos de ocupação urbana reivindicam o direito à moradia digna e atenção do poder público

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Por Leslie Chaves

Estão se intensificando as lutas de ocupações urbanas na tarde rização fundiária. Morador há mais por espaço nas metrópoles, que são da quinta-feira, dia 05-11-2015, de 30 anos do Morro Santa Tere- cada vez mais amplas, mas ao mes- na sala Ignacio Ellacuría e Compa- sa, ele conta que as mobilizações mo tempo restritas, uma vez que o nheiros. A atividade Movimentos se intensificaram após uma ação acesso da população não é livre a sociais de resistência: coletivos de despejo recebida pelos cerca todas as áreas. Tal limitação se dá de ocupação urbana. Relatos de de 20 mil moradores da área de pelo custo do transporte público, experiências encerrou o 2º Ciclo 74 hectares localizada na região. que é caro e em geral de má qua- de Estudos Metrópoles, Políticas “Em 2010 recebemos a ordem de lidade, pela redução de áreas de Públicas e Tecnologias de Gover- despejo por causa do PL 388 e co- convivência abertas ao acesso de no. Territórios, governamento meçamos uma luta muito difícil, todos e pela remoção de comunida- da vida e o comum. Participaram quase desistimos. O governo que- des para áreas afastadas do centro Guilherme Schroder, integrante da ria vender a área para a iniciativa da cidade em nome do “progresso”. Ocupação Pandorga, Lorena Cas- privada e alegava que não havia Todos esses elementos de restrição tillo, do Coletivo Ateneu Libertário ninguém vivendo lá. Mas sabemos têm a mesma raiz: a lógica capi- a Batalha da Varzea, Darci Campos talista, que se baseia no lucro e dos Santos, da Vila Gaúcha, e Or- que há pessoas morando neste es- na propriedade privada e está aos ley Maria da Silveira, da Vila União, paço do Morro há pelo menos 60 poucos construindo um modelo pri- ambas comunidades de uma área anos. Então nos mobilizamos e vatizado de cidade, que se divide do Morro Santa Teresa em Porto começamos a bater na porta dos em guetos regidos pela especulação Alegre. deputados e dizer que nós existi- imobiliária, pela exclusão e acentu- mos e reivindicamos nosso direito “Nós somos invisíveis para o po- ação das desigualdades sociais. à moradia”, conta. der público”, aponta Darci Cam- Esse foi o foco da roda de deba- pos dos Santos ao compartilhar Leia mais em http://bit. tes com integrantes de coletivos sua experiência de luta por regula- ly/1kmP9iz.

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ESTANTE Amor e destino: antídotos para o positivismo da lei Em seu livro, Adilson Felicio Feiler retoma Hegel e Nietzsche para pensar uma ética cristã costurada por esses dois conceitos

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

filósofo e professor Adilson que se apresenta, muitas vezes, na sua Felicio Feiler reflete sobre o mais dura realidade. A ética da Lebens- Ocristianismo. Para isso, busca fülle acolhe o todo com amor, tal como nas críticas de Hegel e Nietzsche ou- o Jesus histórico, razão pela qual a prá- tro olhar sobre esse “ser cristão”. Para tica de vida que ele inaugura leva a aco- ele, entre os autores, há diferenças nas lhida do todo com disposição alegre e formas como apreendem e criticam o jubilosa”, explica. cristianismo enquanto lei e moral. “En- Adilson Felicio Feiler pos- quanto Hegel a faz com certa proprie- sui graduação em Filosofia dade, mergulhando no interno da esfera pela Fundação Educacional do Cristianismo, Nietzsche realiza esta de Brusque – Febe e em Teo- crítica com um tom um tanto caricato e logia pela Faculdade Jesuíta ressentido”, esclarece. Revisitando am- de Filosofia e Teologia – Faje bos os autores, Feiler sustenta que “é e pela Pontifícia Universida- através deste Cristianismo, estabelecido 11 numa prática, uma instituição para além de Católica do Paraná – PUC- de toda a instituição, que Hegel e Niet- -PR. É mestre em Filosofia zsche consideram possível se viver neste pela Universidade do Vale mundo moderno”. do Rio dos Sinos – Unisinos e doutor em Filosofia pela Hegel e Nietzsche: A ética cristã concebida pelo amor e o destino. Na entrevista concedida por e-mail à Pontifícia Universidade Ca- , Feiler também revela de São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015 IHU On-Line tólica do Rio Grande do Sul – que forma as ideias de amor e destino PUC-RS. Vem atuando como operam como dispositivo para compre- pesquisador visitante na Georgetown ender esse caminho trilhado pelos au- University. É professor na Unisinos, tra- tores. Para ele, os conceitos funcionam balhando com os temas: Nietzsche, He- como chave de leitura que ameniza a gel, moral, ética e Cristianismo. dureza da lei. “O amor é a disposição pela qual nos colocamos diante da vida Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a centra- vide, portanto de reconciliação. plenitude, abertura, Lebensfülle1, lidade dos conceitos de amor e O destino não é um determinismo expressão que tanto Hegel2 no Es- destino em sua pesquisa? fatalista, mas abertura, porvir. Por isso, amor e destino constituem Adilson Felicio Feiler – Os con- 1 Lebensfülle (Plenitude vital): referente antídotos para procurar sanar à abertura orgânica e anímica da vida, con- ceitos de amor e destino são cen- aquele estranhamento e positi- ceito utilizado por Nietzsche na Gaia Ciência trais em minha pesquisa sobre a vismo da lei. Do amor, a lei ganha (NIETZSCHE, GC, KSA, § 370, 1999, p. 620) ética cristã no período do Roman- e por Hegel no Espírito do Cristianismo e seu em unidade, contra o formalismo tismo alemão porque apontam destino (HEGEL, ECD, TWS, 1994, p. 354). próprio do centramento na parte (Nota do entrevistado) para uma ética que é reconcilia- e do destino em abertura, contra 2 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- ção e que está sempre voltada drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão o determinismo e o fechamento. ao porvir. O amor não evoca um idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás O amor e o destino reforçam o sentimentalismo, mas um movi- de Aquino, tentou desenvolver um sistema aspecto organicista da vida que é filosófico no qual estivessem integradas todas mento de oposição àquilo que di- as contribuições de seus principais predeces-

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Dilthey6, inclusive, chega a afirmar que este é um dos escritos mais be- los de Hegel, por respirar o roman- tismo alemão, e, deste movimen- O que difere basicamente Hegel to, O Espírito do Cristianismo e seu Destino acentua principalmente o e Nietzsche, com respeito às crí- organicismo vital. Falamos de es- crito e não obra porque Hegel não ticas ao Cristianismo como lei e teve a intenção de publicá-lo, con- como moral, reside na maneira tendo no mesmo, inclusive, inúme- ros cortes, erros e partes obscuras. como cada um realiza a crítica Contudo, os germens dos temas principais da filosofia hegeliana já repousam neste escrito de uma for- pírito do Cristianismo e seu des- Pelo amor que une as partes divi- ma não sistêmica. tino e Nietzsche3 na Gaia Ciência didas e formalizadas e pelo destino utilizam. que abre o dogmatizado e inerte, A tese de Hegel, neste escrito, é a vida é acolhida em sua plenitu- a de que o Cristianismo, fundado de e com tudo o que dela deman- por Jesus, está ligado ao seu espíri- sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. to; ou seja, diz respeito àquilo que ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, da, amor fati, acolhida jubilosa de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia ao destino, ao fatum. O amor é, verdadeiramente faz parte dele. do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He- portanto, a disposição pela qual Contudo, o legado de Jesus efetu- gel (1807-2007), em comemoração aos 200 nos colocamos diante da vida que ado pelos seus seguidores conduziu anos de lançamento dessa obra. Veja ainda ao seu estranhamento, pelo positi- a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober- se apresenta, muitas vezes, na sua to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler mais dura realidade. A ética da Le- vismo legal que foi se instaurando. Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261, bensfülle acolhe o todo com amor, Esta crítica de Hegel a um Cristia- e Hegel. A tradução da história pela razão, tal como o Jesus histórico, razão nismo estranhado vem ao encontro edição 430, disponível em http://bit.ly/ das críticas de Nietzsche de uma ihuon430. (Nota da IHU On-Line) pela qual a prática de vida que ele 3 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- inaugura leva a acolhida do todo falsificação do Cristianismo. É que sofo alemão, conhecido por seus conceitos com disposição alegre e jubilosa. aquela prática cristã, relativa à além-do-homem, transvaloração dos va- vida de seu fundador, foi crucifica- 12 lores, niilismo, vontade de poder e eterno da juntamente com Jesus. Assim, retorno. Entre suas obras figuram como as IHU On-Line – Que aproxima- em torno ao espírito (Hegel) e prá- mais importantes Assim falou Zaratustra ções são possíveis de serem es- (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, tica (Nietzsche) temos uma chave tabelecidas entre Hegel e Niet- 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) de aproximação entre O Espírito e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: zsche, tomando em consideração do Cristianismo e seu Destino e O Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando O Espírito do Cristianismo e seu foi acometido por um colapso nervoso que 4 Anticristo. nunca o abandonou até o dia de sua morte. destino e O Anticristo ? A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de Adilson Felicio Feiler – Jürgen IHU On-Line – Por que o ethos 5 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do Habermas diz que se Nietzsche cristão enquanto um telos é o martelo e do crepúsculo, disponível para do- tivesse conhecido este escrito da ponto de convergência dessa wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 juventude de Hegel (O Espírito dos Cadernos IHU em formação é intitu- aproximação? lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e do Cristianismo e seu Destino), pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. certamente teria concordado com Adilson Felicio Feiler – Porque Confira, também, a entrevista concedida por Hegel, porque neste escrito são o ethos cristão é o que, de fato, Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU antecipadas muitas das críticas de distingue o Cristianismo enquanto On-Line, de 10-05-2010, disponível em uma prática de vida; é o espírito http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- Nietzsche ao Cristianismo. Wilhelm mo radical de Nietzsche não pode ser mini- mizado, na qual discute ideias de sua confe- 6 Wilhelm Dilthey (1833-1911): foi um fi- rência A crítica de Heidegger ao biologismo 4 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras lósofo hermenêutico, psicólogo, historiador, de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1974. sociólogo e pedagogo alemão. Dilthey le- integrante do Ciclo de Estudos Filosofias (Nota da IHU On-Line) cionou filosofia na Universidade de Berlim. da diferença – Pré-evento do XI Simpósio 5 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale- Considerado um empirista, o que contrastava Internacional IHU: O (des)governo bio- mão, principal estudioso da segunda geração com o idealismo dominante na Alemanha em político da vida humana. Na edição 330 da da Escola de Frankfurt. Herdando as discus- sua época, mas sua concepção do empirismo Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia sões da Escola de Frankfurt, Habermas apon- e da experiência difere da concepção britâni- a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico ta a ação comunicativa como superação da ra- ca de empirismo. Seus principais conceitos e a afirmação da totalidade da existência, zão iluminista transformada num novo mito, procuram fundamentar as “ciências do espí- concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e o qual encobre a dominação burguesa (razão rito” como forma de conhecimento humano, disponível para download em http://bit.ly/ instrumental). Para ele, o logos deve cons- em oposição às ciências da razão. Para tal dia- nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, truir-se pela troca de ideias, opiniões e infor- loga e aprofunda o pensamento de Kant, John leia a entrevista O amor fati como resposta à mações entre os sujeitos históricos, estabele- Locke, Auguste Comte, Stuart Mill, Berkeley, tirania do sentido, com Danilo Bilate, dispo- cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se Rudolf Hermann Lotze, entre outros (Prefá- nível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU cio de Maria Amaral em Filosofia e Educação, On-Line) On-Line) 2010, pg. 13 a 30). (Nota da IHU On-Line)

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cristão, a sua dimensão crística, e Cristianismo como lei e como mo- na qualidade de seminarista, em não um conjunto de dogmas, regras ral, reside na maneira como cada Tübingen, e com Nietzsche como e mandamentos. E é esta dimensão um realiza a crítica. Enquanto He- filho de pastor, nos faz ver que a crística, o Cristianismo como prá- gel a faz com uma certa proprie- crítica que ambos endereçam ao xis, o que aproxima as críticas de dade, mergulhando no interno da Cristianismo é dirigida a um Cris- Hegel e de Nietzsche a uma forma esfera do Cristianismo, Nietzsche tianismo tipicamente protestante. pela qual o Cristianismo tem sido realiza esta crítica com um tom Hegel chega a apresentar, em uma vivido. um tanto caricato e ressentido, carta a Schelling9, de 2 de novem- de modo que suas críticas, em- bro de 1888, que preferiria residir A defesa do Cristianismo sin- bora no essencial sejam convin- numa cidade católica a uma cidade gular, em Hegel e Nietzsche, centes, tornam-se muitas vezes protestante. Isso porque, como na se apresenta com um único te- mal entendidas por deixar trans- teologia protestante o sacerdócio e los: a maximização da vida, Le- parecer elementos de cunho pes- as mediações históricas são inexis- benshöhepunkte7. O ethos cristão soal. Isto torna a crítica um tanto tentes, o Catolicismo preserva tais que se depreende da aproxima- tendenciosa. mediações como importantes para ção das concepções hegeliana e a encarnação de Deus na história, nietzschiana entre amor e desti- tema tão caro a Hegel. no, normatividade e organicida- de, o amor como movimento de reconciliação destinado a estar IHU On-Line – Por que as ten- sempre em movimento, aberto As críticas ao dências teológicas de Hegel e em momentos de desconstrução Nietzsche apontam para um mo- e criação, é a vida que, na sua Cristianismo delo ético que sinaliza para uma diferença, se afirma como pleni- moral têm em abertura da vida? tude: Lebensfülle. A vida em sua Adilson Felicio Feiler – Karl plenitude se traduz em potência, Hegel o seu iní- Löwith10, em sua obra De Hegel a força aberta a criar pontos sempre cio e em Niet- Nietzsche11, diz que as críticas ao mais culminantes: Lebenshöhe- Cristianismo moral têm em Hegel punke. Por isso, é evidente que zsche o seu o seu início e em Nietzsche o seu Nietzsche teve como alvo de seus acabamento. O que motivou tais 13 ataques o Hegel do sistema e não acabamento críticas é justamente a maneira o Hegel da juventude, pois não o pela qual o Cristianismo tem sido conheceu e, com esse último, há vivido, não como uma prática de É sabido, de acordo com inúme- um projeto comum: o de crítica à vida, mas como uma lei, uma re- ros biógrafos de Nietzsche, que sua moral em nome da afirmação do gra, sufocando aquilo que é mais educação na fé foi bastante re- ethos cristão como reconciliação caro ao fundador do Cristianismo, pressora e pietista8, de modo que no amor, destinado à fatalidade da a práxis. Por essa razão, num de- a imagem do Deus cristão que ele vida que se abre a sua plenitude e terminado modelo de Cristianismo assimilou no seio da família foi a culminância. tem se supervalorizado a lei e a de um Deus severo e castigador, norma, coibindo aquilo que são as muito mais pronto a ditar normas inclinações humanas vitais e im- IHU On-Line – Quais são as dife- e leis do que conduzir a uma práti- pondo prescrições dietéticas. renças fundamentais de ambos os ca de vida que conduz à liberdade. autores em seus posicionamentos Essa imagem lamentável do Cris- Tanto Hegel como Nietzsche acerca do Cristianismo? tianismo que Nietzsche herdou foi se insurgem contra tal situação, Adilson Felicio Feiler – O que a causa, em grande parte, de suas abrindo uma perspectiva de vi- difere basicamente Hegel e Niet- críticas terem sido tão vorazes. O que incorre, em muitos pontos, em 9 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm zsche, com respeito às críticas ao Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo uma grande injustiça, pois muitas alemão. Suas primeiras obras são geralmente 7 Essa metáfora é resultado da junção de duas vezes parece reduzir o Cristianis- vistas como um elo importante entre Kant e outras: plenitude vital Lebensfülle, a abertu- mo, como um todo, ao erro. Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas ra plena da vida (Hegel-Nietzsche) e pontos obras são representativas do idealismo e do culminantes de potência Macht-Höhepunkte, O fato de tanto Hegel como romantismo alemães. Criticou a filosofia de a multiplicidade de força que a vida assume Nietzsche terem sido herdeiros do Hegel como “filosofia negativa”. Schelling (Nietzsche). Pela Lebenshöhepunkte temos a tentou desenvolver uma “filosofia positiva”, intenção de aproximar o vitalismo de Nietzs- pietismo protestante, com Hegel que influenciou o existencialismo. Entrou che ao Jovem Hegel, resultando numa dialé- para o seminário teológico de Tübingen aos tica aberta, ou seja, da afirmação na imediati- 8 Pietismo: é um movimento oriundo do 16 anos. (Nota da IHU On-Line) dade passando pela negação na mediatidade, luteranismo que valoriza as experiências in- 10 Karl Löwith (1897-1973): filósofo ale- atingindo um grau máximo de resistência na dividuais do crente. Tal movimento surgiu mão. Sua obra mais famosa é Von Hegel zu reconciliação. Daqui se prepara uma nova no final do século XVII, como oposição à ne- Nietzsche (Stuttgart, Kohlhammer, 1958). afirmação: pontos culminantes que apon- gligência da ortodoxia luterana para com a (Nota da IHU On-Line) tam para um pensamento em rede. (Nota do dimensão pessoal da religião, e teve seu auge 11 São Paulo: Editora UNESP, 2014 (Nota da entrevistado) entre 1650-1800. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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vência cristã que valoriza a vida IHU On-Line – Como a crítica de tica, uma instituição para além naquilo que lhe é mais caracte- Nietzsche a Hegel perpassa sua de toda a instituição, que Hegel rístico: as manifestações orgâni- investigação? e Nietzsche consideram possível cas e pulsionais. A vida entendida de se viver neste mundo moder- Adilson Felicio Feiler – A crítica nesta perspectiva é potência, é no, pois promove a liberdade pela de Hegel a Nietzsche perpassa a uma inclinação, uma disposição intensificação da potência que minha investigação pela compre- ativa para a abertura ao fazer, ao marca cada instante da vida: Le- ensão que ambos têm do Cristia- criar. Nessa potencialidade a vida benshöhepunkte. A cada instante, se abre para a acolhida da diver- nismo, com suas ênfases às dimen- os valores que se depreendem da sidade. Neste sentido, as diferen- sões de totalidade e de plenitude, maximização da vida assumem ças ocupam um lugar privilegiado. para além do dualismo e do ra- uma forma representada por uma Estas diferenças tendem a atingir cionalismo positivista instaurado categoria diferente: na descrição a cada instante um ponto máximo pelo iluminismo. Nietzsche critica fenomenológica como força, or- de potência, porém não é apenas o Hegel do sistema, e não o de ganicidade pulsional, Leistungs- um ponto mais diverso, mas pon- seus textos da juventude, já que fähigkeit13, na crítica lógica como tos culminantes de potência, que destes não teve conhecimento. diferença, Vielfältigkeit14, e na é vida, daí a fórmula por mim ela- Não adentro nas críticas de Hegel atualização política como relacio- borada de que a vida é uma ma- a Nietzsche por não tomar nenhum nalidade e reconhecimento social, nifestação de um máximo de po- texto do seu período sistemático Gegenseitigkeit15. tência: Lebenshöhepunkte. Esta maduro. Mas o que faço é mos- É na reciprocidade que aconte- fórmula foi possível mediante os trar semelhanças, aproximações e ce nas relações sociais o lugar do conceitos de Lebensfülle em He- distanciamentos delineados pelos reconhecimento de uma sempre gel e Nietzsche e de Macht-Höhe- textos da juventude de Hegel, o nova Leistungsfähigkeit, que é in- punkte12 de Nietzsche. que não é igualar o pensamento de ambos. A crítica de Hegel e Niet- tensificação da potência. De uma Desse modo, a vida que, em si, zsche à moral cristã em nome da sempre nova Leistungsfähigkeit se é potência, atinge um máximo de Lebenshöhepunkte afirmação de umethos cristão sin- constitui a , um potência a cada instante. Portan- movimento de plenitude do qual gular mostra o seu otimismo para to, cada instante é uma plenitu- demandam valores não deontológi- com o Cristianismo. de, pois é o ser humano comple- cos, com uma normatividade fraca, 14 to que está implicado e, em sua O Cristianismo tal como viveu como práxis, aplicáveis às diferen- completude, está aberto ao criar, seu fundador não é só possível, tes circunstâncias que permeiam o reinventando a vida e permitindo mas até necessário por ter recon- mundo em constantes transforma- a ela que manifeste o máximo que ciliado Deus ao mundo para além ções. Tais valores remontam àque- pode oferecer. Tanto Hegel como de uma institucionalização e ter les do Cristianismo da prática de Nietzsche pactuam desta compre- concretizado o amor ao assumir Jesus. ensão da vida por serem tributá- a vida até seus pontos culminan- rios do pensamento de Heráclito, tes. Num mundo pós-niilista, o 13 Potencialidade,■ a disposição ativa em para quem tudo está em constante assumir um máximo e potência. (Nota do Cristianismo continua existindo entrevistado) movimento. na forma de atitude e disposição 14 Diversidade, a abertura a acolher as do coração e se concretiza como diferenças. (Nota do entrevistado) 12 Pontos culminantes de potência, cf. 15 Reciprocidade, a capacidade de estabelecer NIETZSCHE, FP Outono 1887-9 [8], 1999, p. uma prática. É através deste Cris- relações em redes potenciais, múltiplas e 343. (Nota do entrevistado) tianismo, estabelecido numa prá- anímicas. (Nota do entrevistado)

REFERÊNCIAS HEGEL, G. W. F. Der Geist des Christentums und sein Schicksal (1798/1800): Der Geist des Judentums, Der Geist des Christentums. In: HEGEL, G. W. F. Frühe Schriften. Frankfurt: Suhrkamp Taschenbuch, 1994. Werk 1, p. 317-418. (Suhrkamp Taschenbuch Wissenschaft, 601). ______. O espírito do cristianismo e seu destino. Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, n. 2, v. 1, p. 190-191, jul./dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2011. NIETZSCHE, F. W. Der Antichrist. In: COLLI, von Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Herausgegeben). Kritische Stu- dienausgabe in 15 Bänden. München: Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1999. Bd. 6. ______. Nachgelassene fragmente: herbst 1887 bis märz 1888. In: COLLI, von Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Herausgegeben). Achte Abteilung. Berlin: Walter de Gruyter, 1970. Bd. 2.

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EVENTOS IHU Conflitos Guarani Kaiowá: descolonizar é preciso Fernanda Bragato mergulha no universo de violação de Direitos Humanos aos povos indígenas e reflete sobre a necessidade de abandonarmos o pensamento colonizador

Por João Vitor Santos

célebre frase de Fernando ção de terras indígenas no Mato Grosso Pessoa, “navegar é preciso”, do Sul”, explica. faz pensar sobre a necessida- A É na contramão do ideal colonizador de de conhecer novos mundos. Entre- que Fernanda retoma a perspectiva da tanto, também traz consigo uma ideia descolonização. “A perspectiva des- europeia de conquista, colonização, colonial supera a necessidade de se ideais muito bem aceitos pela moder- reportar ao sistema de valores da mo- nidade. Quando “se conquista”, “se dernidade ocidental como o parâmetro coloniza”, há uma recusa do outro. Sua inafastável para julgar o que é certo forma de vida, seu mundo, é ignorado e errado, belo ou feio, bom ou mau e visto como entrave, tendo como úni- em qualquer tempo e lugar”, explica. co ideal o legado europeu-moderno. Lógica essa que também está por trás É desta perspectiva que a professora da PEC 215. “Segundo o Instituto So- e pesquisadora do Programa de Pós- cioambiental – ISA , caso aprovada, ela 15 graduação em Direito da Unisinos, impactará diretamente os processos de Fernanda Frizzo Bragato, olha para a demarcação de 228 terras ainda sem questão indígena brasileira. “Os bran- homologação, os quais devem ser pa- cos veem e tratam o ‘índio’ como um ralisados, afetando uma população de ser inferior, e seu sistema de crenças e 107.203 indígenas. Devem ser afetadas valores como a expressão do atraso e, ainda 144 terras cujos processos de às vezes, da barbárie. As demandas por demarcação estão judicializados, com território não são, por isso, vistas como uma população de 149.381 pessoas”, legítimas porque, segundo essa visão, alerta a pesquisadora. são um entrave ao modelo de desen- Fernanda Frizzo Bragato possui gra- volvimento econômico que impera em duação em Direito pela Universidade nosso país”, dispara. Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Fernanda está iniciando uma pesqui- mestrado em Direito pela Universida- sa que pretende compreender a lógica de do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e que coloca brancos e índios em terreno doutorado em Direito pela mesma ins- de disputas. Em entrevista concedida tituição, tendo realizado pós-doutorado por e-mail à IHU On-Line, a pesquisa- na University of London (School of Law dora revela que um de seus desafios: – Birkbeck College), Inglaterra. Atual- incursionar por uma das regiões mais mente, é professora e pesquisadora do conflituosas do Brasil, Mato Grosso do Programa de Pós-graduação em Direito Sul, para entender a questão de fundo e coordenadora do Núcleo de Direitos Kaiowá Guarani. “É um projeto de pes- Humanos na Unisinos. A pesquisadora quisa e intervenção sobre direitos terri- proferirá a conferência “O genocídio do toriais indígenas e que vamos elaborar, povo Kaiowá Guarani em debate” na próxima quinta-feira, dia 19 de novem- conjuntamente com colegas da Clínica bro, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacu- de Direitos Humanos da Uniritter e da ría e Companheiros – IHU. Confira mais Cardozo Law School, um amicus curiae detalhes em http://bit.ly/1MnUMUm. no Supremo Tribunal Federal em ações que discutem a anulação de demarca- Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como compreen- dígenas ocupando terras que lhes mente ocupadas) da Constituição der os conflitos de Mato Grosso do foram retiradas e, de outro, fazen- da República só se aplicaria caso Sul? O que está por trás das dispu- deiros com títulos de propriedade os indígenas estivessem ocupan- tas entre brancos e índios? que reagem, muitas vezes, violen- do tradicionalmente a terra em tamente a esta ocupação, lançan- 05/10/1988 (data da promulgação Fernanda Frizzo Bragato – Os do mão da ação de pistoleiros. De da Constituição), o que no seu en- conflitos entre indígenas e brancos 2003 a 2014, foram 390 indígenas tendimento não se verificou. Tra- em Mato Grosso do Sul envolvem assassinados em Mato Grosso do Sul ta-se da chamada “tese do marco longas disputas sobre terras. Os e praticamente nenhuma condena- temporal”. A consolidação deste indígenas vivem em terras daque- ção. Porém, o conflito não pode ser entendimento afetará diversos le estado há gerações, porém, por entendido como uma mera contra- processos em curso, seja impossi- volta da década de 1940, as suas posição dos interesses do fazendei- bilitando novas demarcações, seja áreas originárias começaram a ser ro x ou y, mas como resultado de anulando áreas já demarcadas que ocupadas por fazendeiros. Neste um projeto econômico em que os estão em litígio judicial. período, inicia-se um processo de indígenas são vistos como um en- desmatamento para plantações Paralelamente, analisamos se trave ao desenvolvimento. agrícolas e/ou criação de gados, e este fato [a aplicação judicial da os indígenas começam a ser remo- tese do marco temporal] pode con- vidos forçadamente pelos próprios IHU On-Line – No que consiste figurar fator de risco para crimes fazendeiros e levados para reser- e quais os objetivos do seu pro- de atrocidades (crimes contra a vas, confinados em pequenas áre- jeto de pesquisa sobre a situação humanidade, genocídio, crimes de as nestas novas “propriedades” ou Guarani–Kaiowá? guerra e limpeza étnica), de acor- simplesmente expulsos. do com o quadro de análise cria- Fernanda Frizzo Bragato – Co- do pela Organização das Nações Ocorre que mesmo os que eram ordeno um projeto de pesquisa, Unidas – ONU em 2014. Este qua- removidos voltavam a ocupar as iniciado no primeiro semestre de dro de análise visa proporcionar terras originárias e lá permane- 2015, intitulado “Direitos Territo- aos Estados uma ferramenta de ciam de diversas formas, inclusive riais Indígenas no Brasil e a Pre- identificação de fatores objetivos trabalhando como peões das fazen- venção de Atrocidades”, que não de risco para crimes de atrocida- das. Há alguns anos, especialmente se limita apenas à situação do povo de, permitindo que estes ajam de 16 a partir do fim da década de 1980, Guarani e Kaiowá, mas que procura forma preventiva ou em coopera- os indígenas iniciaram um intenso compreender a relação entre a pri- ção internacional em razão de sua processo de retomada destas ter- vação dos direitos territoriais indí- responsabilidade primária de pro- ras e passaram, com base no artigo genas e o risco de atrocidades con- teger as próprias populações vul- 231 da Constituição da República tra os afetados. A pesquisa envolve neráveis, sob pena de intervenção de 1988, a exigir a sua demarca- análise documental (legislação e humanitária. ção. De acordo com o Decreto nº jurisprudência) e saídas de cam- 1.775, de 08/01/1996, o processo po para realização de entrevistas IHU On-Line – Que leitura a se- de reconhecimento das terras indí- com povos indígenas, advogados nhora faz da situação dos Guara- genas envolve diferentes estágios, e autoridades envolvidas na causa ni-Kaiowá hoje? O que essa sua a saber: identificação, delimita- indígena. primeira incursão na área indíge- ção, demarcação e registro. 3 Especificamente, estamos ana- na revelou ? Em Mato Grosso do Sul, as terras lisando duas decisões em que o Fernanda Frizzo Bragato – Como indígenas estão em diferentes está- Supremo Tribunal Federal anulou são muitas comunidades Guarani e gios, mas em relação aos Guarani e a demarcação das terras indíge- Kaiowá no sul do estado (distribu- 2 Kaiowá1 ainda há várias em proces- nas Limão Verde (povo Terena) ídas em mais ou menos 30 terras so de demarcação e muitos acam- e Guyraroká (povo Guarani Kaio- em alguma fase do processo de pamentos onde sequer se iniciaram wá), ambas em Mato Grosso do demarcação – algumas das quais já os processos de identificação. Em Sul, sob o entendimento de que o regularizadas – e 25 acampamentos muitos casos, o cenário é de ten- direito previsto no artigo 231 (de- em fase de estudo), a situação va- são deflagrada: de um lado, os in- marcação das terras tradicional- ria. Porém, a minha primeira visita à área permite dizer que a situação 1 Guarani-Kaiowá povo indígena do Para- 2 O sitio do Instituto Humanitas Unisi- é, em geral, preocupante e, em al- guai, do estado brasileiro de Mato Grosso do nos – IHU vem publicando uma série de Sul e do nordeste Argentina. No Brasil, eles artigos sobre a questão. Dentre os quais des- guns casos, dramática. habitam Nhande Ru Marangatu, uma área tacamos: “Povo Terena retoma três fazendas de tropical floresta tropical. São um dos três da TI Taunay/Ipegue, em Mato Grosso do 3 A pesquisadora esteve em Mato grosso do guaranis subgrupos (os outros são Ñandeva Sul”, disponível em http://bit.ly/1Obq43N; Sul entre 4 e 7 de novembro de 2015. Nesse e Mbya). Estima-se que mais de 30.000 gua- e “’Os governos de esquerda são os que mais período, realizou entrevistas com membros ranis vivem no Brasil. No Paraguai eles são decepcionaram os povos indígenas’”. Entre- de três comunidades indígenas, além de ter cerca de 40.000. O Guaraní língua é uma das vista com Lindomar Terena, disponível em tido contato com vários missionários do Con- línguas oficiais do Paraguai, ao lado de língua http://bit.ly/20WteiP. Confira mais http:// selho Indigenista Missionário – CIMI. (Nota espanhola. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/1PvCy9B. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Preocupante porque a integrida- Guarani-Kaiowá? E como avalia o marco temporal, uma criação ju- de física, psíquica e cultural deste papel do Executivo, Legislativo e risprudencial do Supremo Tribunal povo depende do reconhecimento Judiciário? Federal no julgamento do caso Ra- de seu território tradicional, o que posa Serra do Sol6 em 2012. Fernanda Frizzo Bragato – Um só pode ser feito pelo Estado (atu- dos objetivos da pesquisa é avaliar Segundo esta tese, a tradiciona- almente, pelo Poder Executivo Fe- a percepção dos povos indígenas lidade de uma terra só deve ser re- deral). No entanto, as perspectivas sobre a atuação e a postura dos conhecida nos casos em que a área de solução para as demarcações poderes públicos, portanto seria se encontrava ocupada na data pendentes não são promissoras e precipitado apresentar conclusões da promulgação da Constituição algumas terras já regularizadas neste momento em que a pesquisa (05/10/1988), a menos que se pro- correm o risco de anulação. Os se encontra em estágio inicial. No ve que tenham sido impedidos de povos Guarani e Kaiowá ocupam entanto, já foi possível perceber ocupá-la por “renitente esbulho”, diversas terras em disputa, sendo nas entrevistas realizadas que, em ou seja, porque o grupo foi expulso que muitas comunidades vivem Mato Grosso do Sul, os povos, em à força e comprovadamente tentou acampadas em beiras de estradas geral, têm confiança no Ministério retornar à área e foi impedido. É e/ou em torno das fazendas. A dis- Público Federal e têm percebido importante registrar que este re- puta, por si só, os expõe a riscos de violência (assassinatos, atrope- quisito não consta no texto cons- lamentos, ameaças, estupro, desa- titucional e é muito difícil provar parecimento forçado), privação de o renitente esbulho em uma época meios de subsistência, restrições à em que os índios eram tutelados e liberdade de ir e vir, tensões inter- De 2003 a 2014, não tinham capacidade civil plena nas, impossibilidade de implemen- foram 390 indí- (antes de 1988). tação de políticas públicas e, acima Por fim, há denúncias de omissão de tudo, de viver de acordo com genas assassi- da Polícia Federal na proteção da seus costumes, línguas, crenças e integridade física das comunida- tradições, conforme lhes assegura nados em Mato des ameaçadas constantemente o artigo 231 da Constituição. Grosso do Sul por homens armados. Isso, além de Existem algumas áreas, espe- diversos inquéritos em que não se cialmente acampamentos (como, e praticamen- apura a autoria dos crimes e, por- 17 por exemplo, Kurussu Amba e te nenhuma tanto, resultam impunes. Ypoí) e aquelas já homologadas ou identificadas (como, por exem- condenação IHU On-Line – Como avalia a PEC plo, Ñande Ru Marangatu4 – e 2157? Quais os riscos de se dele- Panambi5), que apresentam qua- dro dramático. Há registro de as- positivamente a atuação da Fun- 6 Raposa Serra do Sol: área de terra in- dação Nacional do Índio – Funai. O dígena (TI) situada no nordeste do estado sassinatos praticados por homens brasileiro de Roraima, nos municípios de armados, fome, miséria, estupros, mesmo não se percebe em relação Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os perseguição e/ou superpopulação. à Polícia Federal, Polícia Militar, rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron- Governo Federal, Poderes Legisla- teira com a Venezuela. É destinada à posse permanente dos grupos indígenas ingaricós, tivo e Judiciário, embora seja cla- IHU On-Line – Como avalia o macuxis, patamonas, taurepangues e uapi- ro para os indígenas que todos têm xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada papel do Estado na proteção de capacidade, em tese, de atuar em pelo Ministério da Justiça através da Portaria povos indígenas, em específico os Nº 820/98, posteriormente modificada pela favor de seus direitos. Portaria 534/2005. A demarcação foi homo- 4 O sitio do Instituto Humanitas Unisinos Pessoalmente, eu concordo com logada por decreto de 15 de abril de 2005, da – IHU vem publicando uma série de artigos Presidência da República. Em 20 de março sobre o tema. Entre os quais destacamos: a visão dos indígenas. O Executivo de 2009, uma decisão final do STF confirmou “Para compreender Ñande Ru Maranga- Federal tem nas mãos (pelo menos, a homologação contínua da Terra Indígena tu”, disponível em http://bit.ly/1j3ew7n; e por enquanto) o poder de regula- Raposa Serra do Sol, determinando a retira- “Com homologação suspensa há dez anos, da dos não indígenas da região. Nas Notícias Guarani e Kaiowá retomam cinco áreas em rizar todas as terras indígenas dos do Dia do sítio do IHU é possível ler diversas Ñanderu Marangatu”, disponível em http:// Guarani e Kaiowá, mas os proces- entrevistas especiais sobre o tema. (Nota da bit.ly/1kzW8oi. Leia mais em http://bit. sos encontram-se simplesmente IHU On-Line) ly/1HOIPdQ. (Nota da IHU On-Line) paralisados a alimentar os conflitos 7 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons- 5 O sitio do Instituto Humanitas Unisinos tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao – IHU vem publicando uma série de artigos e a incerteza sobre o futuro deste Legislativo a aprovação de demarcações de sobre o tema. Entre os quais destacamos: povo. Paralelamente, o Judiciário terras indígenas, quilombolas e áreas de pre- “Barragens e violação de direitos: a história acirra o quadro de privação de seus servação ambiental. A proposta foi aprovada se repete com Garabi e Panambi”, disponível por comissões internas da Câmara e segue em http://bit.ly/1MhuepY; e “Deferimento direitos quando anula demarcações os trâmites em plenário. Confira a íntegra da da hidrelétrica de Pai Querê era indefensável. já homologadas ou paralisa demar- proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas No- Entrevista especial com Paulo Brack”, dispo- cações em curso, principalmente tícias do Dia do sítio do IHU há uma série nível em http://bit.ly/1PKbd1K. Lei mais em de materiais sobre o tema. Confira em ihu. http://bit.ly/1NzfRuX. por meio da aplicação da tese do unisinos.br A última entrevista publicada so-

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gar ao Legislativo a atribuição de c) Inserir a tese do “marco tem- gulada a questão indígena no país. demarcações de áreas de terra? poral” no texto da Constituição Na Constituição de 1988, “as terras Federal, impactando não somente tradicionalmente ocupadas pelos Fernanda Frizzo Bragato – Esta as terras sob processo de demarca- índios” foram mantidas entre os pergunta complementa a anterior, ção, mas as já demarcadas. bens da União (art. 20, XI), mas, porque a PEC 215 é a iniciativa do diferentemente das anteriores, o Poder Legislativo que constitui o d) Aplicar retroativamente as dis- texto tratou de reconhecer aos po- golpe de misericórdia nos direitos posições da proposta às Terras Indí- vos indígenas o direito à diferença, indígenas. A PEC 215 é um pacote genas que estejam sendo objeto de ou seja, o direito de serem indíge- de alterações constitucionais que questionamento perante o Poder nas e de permanecerem como tais. visa transferir a competência do Judiciário, apesar de já demarca- O texto inovou ao estabelecer, no Executivo para o Legislativo para das e homologadas. Atualmente, art. 231, não apenas o direito so- decidir sobre as demarcações de segundo o ISA, há pelo menos 144 bre as terras que tradicionalmente terras indígenas. Segundo o Institu- terras indígenas sub judice, sendo ocupam, mas de afirmar que esse to Socioambiental – ISA8, caso apro- que 79 delas já têm demarcações consolidadas. direito é de natureza originária, vada, ela impactará diretamente ou seja, anteriores à formação do os processos de demarcação de 228 Mesmo que o Congresso Nacional, próprio Estado brasileiro, existindo terras ainda sem homologação, os a quem seriam reservados os atos independentemente de qualquer quais devem ser paralisados, afe- relacionados a efetivar ou inter- reconhecimento oficial. tando uma população de 107.203 vir nas propriedades comunitárias indígenas. Devem ser afetadas ain- indígenas, mude sua atual com- Não obstante, a avaliação, até o da 144 terras cujos processos de posição altamente comprometida momento, era a de que o aparato demarcação estão judicializados, com os interesses do agronegócio, constitucional brasileiro era limita- com uma população de 149.381 ainda assim os efeitos seriam de- do, pois, em comparação a Consti- pessoas. vastadores para o futuro dos povos tuições de outros países com popu- lações indígenas (Bolívia, Equador Mas não se resume a isso. O mes- indígenas. Difícil pensar em uma proposta de Emenda Constitucional e Canadá, por exemplo), deixou de mo documento do ISA apresenta, que tenha contrariado de forma reconhecer uma série de direitos de forma resumida, as demais alte- tão clara e incisiva os objetivos e que derivam da autodeterminação rações propostas pela PEC 215: os fundamentos da Constituição e e de sua condição cultural diferen- 18 a) A abertura das terras reconhe- violado de forma direta instrumen- ciada. Logo, havia necessidade de cidas como indígenas a empreen- tos internacionais ratificados pelo avançar no reconhecimento de di- dimentos econômicos e atividades Brasil, como é o caso da Convenção reitos indígenas, até porque ainda de impacto, como aquelas defi- 169, da Organização Internacional há mais de 200 terras em alguma nidas em lei complementar como do Trabalho – OIT. fase do processo demarcatório, sendo de relevante interesse públi- sem solução definitiva. O que se vê, ao contrário, é um assustador co da União à exploração mineral IHU On-Line – Em que medida o retrocesso, pois, ao menos, exis- e de potenciais hidrelétricos e à aparato legal brasileiro dá conta tem dispositivos na atual redação construção de oleodutos, gaso- de proteger os povos indígenas? constitucional que permitem ao dutos, portos, aeroportos, linhas Numa perspectiva histórica, des- poder público implementar as de- de transmissão de energia, entre de a Constituição de 1988, como marcações, o que falta é vontade outros, e obras de infraestrutura avalia a preocupação com os po- política. (estradas, ferrovias e hidrovias), vos indígenas através das peças bem como assentamentos rurais de legais? E em que medida, de fato, não indígenas e atividades agrope- essas leis se efetivam? IHU On-Line – Em que consiste a cuárias, inclusive mediante arren- perspectiva “descolonial” e como Fernanda Frizzo Bragato – O damento de terras. Isso configura ela pode contribuir para compre- direito anterior à Constituição de grave ameaça a todas as 698 Terras ender uma lógica de poder subja- 1988 regulava a questão indíge- Indígenas do Brasil, inclusive as já cente à situação de violação com na sob o signo do assimilacionis- demarcadas. povos indígenas. mo e aplicava aos povos nativos b) A vedação à ampliação das o regime tutelar. Nesse contexto, Fernanda Frizzo Bragato – A Terras Indígenas já demarcadas, o a condição de indígena era reco- perspectiva descolonial supera a que afetaria 35 Terras Indígenas, nhecida como uma situação tran- necessidade de se reportar ao sis- com uma população de 33.603 sitória, um estágio na caminhada tema de valores da modernidade indígenas. civilizatória, que poderia ir desde ocidental como o parâmetro ina- o estado de “isolados” até o esta- fastável para julgar o que é cer- bre o tema é de Maurício Guetta, sob o título do de “integrados”. Porém, com to e errado, belo ou feio, bom ou “PEC 215: a expressão da disputa de terras no a promulgação da Constituição de mau em qualquer tempo e lugar. A país”, de 26-10-2015, disponível em http:// bit.ly/1ObqJ5a . (Nota da IHU On-Line) 1988, altera-se profundamente o modernidade não é tratada como 8 http://bit.ly/1ODWVRK. (Nota da entrevistada) paradigma sob o qual viria a ser re- um evento intraeuropeu, emanci-

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patório e moralmente superior. Ao IHU On-Line – O que os confli- também ser eficazes. Atualmente, contrário, é vista como um fenô- tos de Mato Grosso do Sul revelam em Mato Grosso do Sul, movimen- meno ambíguo, cujo lado obscuro acerca da relação entre homem tos sociais vêm promovendo ações é a colonialidade. Obscuro porque branco e índios? E o que podem de boicote nacional e internacional colonialidade é a característica de significar na compreensão de ou- aos produtos agrícolas do estado poder que nasce com o colonia- tros conflitos no Brasil? sob a acusação de que a produção lismo, mas a ele sobrevive, e que Fernanda Frizzo Bragato – Re- econômica viola direitos humanos, opera por meio de processos de de- velam o mesmo padrão de relação especialmente a vida dos povos preciação e inferiorização de tudo que se estabelece em basicamente indígenas. o que não se enquadra nos padrões todo território brasileiro. Os bran- epistemológicos, estéticos, éticos cos veem e tratam o “índio” como IHU On-Line – Quais os cami- e políticos ditados pela Europa Mo- um ser inferior, e seu sistema de nhos para se proteger os povos derna, com a finalidade de domina- crenças e valores como a expres- indígenas hoje? Qual o papel de ção e controle. são do atraso e, às vezes, da barbá- agentes estatais e não estatais Como consequência, a perspec- rie. As demandas por território não nessa proteção? tiva descolonial propõe que se são, por isso, vistas como legítimas Fernanda Frizzo Bragato – A pri- provincialize o legado europeu- porque, segundo essa visão, são um meira e mais urgente medida é a -moderno não com o objetivo de entrave ao modelo de desenvolvi- descartá-lo, mas de considerar mento econômico que impera em rejeição da PEC 215. Em segundo também outras perspectivas a par- nosso país. lugar, a revisão do posicionamen- tir das quais se compreende o mun- to judicial acerca da aplicação da tese do marco temporal. Em ter- do, como, por exemplo, as cosmo- IHU On-Line – Como avalia a atu- ceiro, a conclusão dos processos visões indígenas, e de valorizá-las ação de organismos internacio- naquilo em que aportam para um demarcatórios por parte do Poder nais, como a ONU, na proteção de projeto realmente emancipador. Executivo Federal e o incremento povos indígenas? Em que medida Desde a crítica descolonial, vê-se da segurança daqueles povos ame- a interferência desses organismos que a forma como tanto agentes açados de sofrer atos de violência, pode contribuir para dirimir os estatais quanto não estatais, no especialmente em Mato Grosso do conflitos em Mato Grosso do Sul? Brasil, lidam com a questão indíge- Sul. Estas medidas apenas con- 19 na ainda é fortemente marcada por Fernanda Frizzo Bragato – A teriam o retrocesso e a perda de leituras colonialistas. Supõem a in- ONU tem se posicionado de forma perspectiva de futuro digno para os ferioridade natural destes povos e favorável aos interesses dos povos povos indígenas. desconsideram suas formas de co- indígenas, muito embora o Estado nhecimento e de relação com a na- Brasileiro não tenha se mostra- Para avançar, seriam necessários tureza, comumente descritas como do receptivo aos seus constantes o reconhecimento de novos direi- atrasadas, selvagens e impeditivas alertas. Alguma atuação nos foros tos e a implementação de políti- do desenvolvimento econômico da ONU sobre genocídio e respon- cas públicas de educação, saúde e brasileiro. Por isso, negam o direito sabilidade de proteger, ligados ao subsistência nos territórios indíge- humano à diversidade e à identida- Conselho de Segurança, poderia nas. O papel dos agentes estatais de cultural diferenciada garantido ter sucesso no constrangimento é fundamental, portanto. Por ou- nos mais contemporâneos marcos do Estado Brasileiro. Resoluções tro lado, enquanto sociedade ci- normativos internacionais e permi- do Parlamento Europeu ou outras vil temos o grande desafio de nos tem que floresçam condições para tentativas de cooperação interna- descolonizarmos e aprendermos a a extinção física, cultural e espiri- cional, até mesmo para financia- respeitar a cosmovisão dos povos tual destes povos. mento das demarcações, poderiam originários.

LEIA MAIS... —— A construção permanente dos sentidos dos Direitos Humanos. Entrevista com Fernanda Bra- gato, publicada nas Notícias do Dia, de 16-11-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1ROo7Li. —— A diversidade cultural negada pela modernidade. Entrevista com Fernanda Bragato, pu- blicada na revista IHU On-Line número 431, de 04-11-2013, disponível em http://bit. ly/1SiWYjJ.

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Capitalismo biocognitivo: máquina de triturar trabalhadores Elsa Bevian analisa os desafios à preservação da saúde do trabalhador na atualidade, momento em que a lógica do capital provoca desumanização, adoecimento físico e mental

Por João Vitor Santos

mundo do trabalho mudou. nos tempo, agindo e – não – pensando Entretanto, o que parece não como máquinas, traz consequências que Oter mudado é a necessidade de ainda vão além das doenças. “Os merca- se produzir mais e mais para alimentar dos financeiros fornecem o lubrificante um sistema capitalista agora atualiza- para o processo de acumulação no siste- do. O resultado é o adoecimento desse ma capitalista, e a acumulação acontece trabalhador, que vê a lógica maquínica com o endividamento dos cidadãos e das da empresa borrar o limite profissional instituições. Os trabalhadores se endivi- e contaminar toda a vida. A professora e dam e não sabem mais se estão vivendo pesquisadora Elsa Bevian olha para esse ou se estão produzindo”, aponta. momento como fruto do capitalismo Elsa Cristine Bevian é doutora em 20 biocognitivo, que para ela é “a junção Ciências Humanas pela Universidade do capitalismo cognitivo com a bioeco- Federal de Santa Catarina – UFSC. Du- nomia”. E os resultados não podiam ser rante o doutorado, passou pela Univer- outros: “adoecimento físico e mental sidade Rovira i Virgili, Tarragona, e pelo dos trabalhadores, vítimas das constan- Instituto de Pesquisas Sociais (Institut tes reestruturações, precarização dos für Sozialforschung), em Frankfurt. É, processos e relações nos ambientes de ainda, mestre em Ciência Jurídica pela trabalho, gerando preocupação, espe- Universidade do Vale do Itajaí – Univali. cialmente com o sofrimento gerado”, Possui graduação em Direito pela Funda- destaca. ção Universidade Regional de Blumenau Na entrevista, concedida por e-mail à – FURB e é professora titular do Depar- IHU On-Line, Elsa aprofunda os efeitos tamento de Direito da FURB. Na área nefastos dessa lógica no mundo do tra- jurídica, atua no Direito do Trabalho, balho. Segundo a pesquisadora, homens Direitos Sociais e Direito Previdenciário, e mulheres não têm mais espaço para se- atuando especialmente no controle so- rem eles mesmos, tendo o caráter huma- cial de políticas públicas, assessoria ju- no triturado. Em nome da produtividade rídica sindical e organizações populares e eficiência, precisam ser despersonali- de defesa da saúde do trabalhador e de zados, coisificados, sem razão ou emo- economia solidária. No dia 26 de novem- ção. “Esta des-humanização do trabalho bro, estará no Instituto Humanitas Uni- leva ao sofrimento patológico, através sinos – IHU para a conferência “Capita- de doenças físicas e psíquicas, no siste- lismo Biocognitivo e Trabalho: desafios à ma musculoesquelético, neurológico, na saúde e segurança”. O evento integra o pele, no sistema digestivo, circulatório Ciclo de Estudos: Saúde e seguran- ça no trabalho na região do Vale do e em outros inúmeros diagnósticos. A Rio dos Sinos, uma promoção conjunta iniciativa e a criatividade são cerceadas do IHU com o Sindicato dos Metalúr- pela maneira como é organizado e con- gicos de São Leopoldo. Saiba mais em trolado o trabalho”, diagnostica. Assim, http://bit.ly/1WOFMJy. diante dessa lógica, de competividade, longas jornadas, mais produção em me- Confira a entrevista.

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que existem. A OIT calcula que a cada ano se produzem 317 milhões de acidentes laborais não mortais, assim como 160 milhões de casos A gestão é desenhada de forma a de enfermidades não mortais rela- cionadas com o trabalho. A cada 15 evitar espaços de manifestação segundos, um trabalhador morre dos afetos e dos sentimentos de acidente ou doença relacionada com o trabalho e 115 trabalhado- res sofrem um acidente laboral. IHU On-Line- Que desafios à pior dos mundos! Nosso grande de- Os dados da OIT colocam o Brasil saúde e segurança do trabalhador safio é: como reverter esta situa- como quarto colocado no ranking o capitalismo biocognitivo impõe? ção em que se encontra a classe mundial de acidentes fatais de trabalhadora? Sem saúde física e trabalho. Elsa Cristine Bevian – O capi- mental as pessoas não conseguem talismo biocognitivo – definição Com a mais-valia globalizada e a viver com dignidade. Como resistir, terminológica do capitalismo con- competitividade acirrada no mer- como enfrentar a inércia e resgatar temporâneo, em que há a junção cado mundial, as exigências sobre a dignidade da luta por melhores do capitalismo cognitivo com a os trabalhadores para que esten- condições humanas no trabalho? bioeconomia, está gerando um fe- dam suas jornadas, trabalhem mais Como enfrentar o sentimento de nômeno crescente de adoecimento tempo, produzam mais em meno- impotência diante da realidade? físico e mental dos trabalhadores, res medidas de tempo, em ritmos vítimas das constantes reestrutu- acelerados ditados pelas esteiras e IHU On-Line – Que relação é rações, precarização dos proces- máquinas, estão provocando o ado- possível estabelecer entre o ado- sos e relações nos ambientes de ecimento dos trabalhadores. Além ecimento do trabalhador e a glo- trabalho, gerando preocupação, disso, os mercados financeiros for- balização da economia? Em que especialmente com o sofrimento necem o lubrificante para o proces- medida a lógica do capital impac- gerado. O corpo sofre, se sujeita, so de acumulação no sistema capi- ta na produtividade e saúde do violentando seu desejo e seu que- talista, e a acumulação acontece 21 trabalhador e em sua relação com rer, para sobreviver. Os trabalhado- com o endividamento dos cidadãos o meio? res, muitas vezes, não podem ser e das instituições. Os trabalhado- eles mesmos, humanos, precisam Elsa Cristine Bevian – O adoe- res se endividam e não sabem mais, 2 ser entes despersonalizados, coi- cimento dos trabalhadores é um como afirma Fumagalli , se estão sas, objetos, seres sem emoção e fenômeno local e global, acontece vivendo ou se estão produzindo. razão – representa um personagem. em nossos municípios, no Brasil e Não há mais tempo livre, somos em todos os continentes, e inclusi- constantemente consumidores, in- Esta des-humanização do traba- ve em países que muitas vezes são clusive de valores, somos contro- lho leva ao sofrimento patológico, considerados modelos de socieda- lados com “cartões-fidelidade”, através de doenças físicas e psí- de desenvolvida e justa, como, por produzimos valor para os outros. A quicas, no sistema musculoesque- exemplo, na Alemanha, nos Estados globalização está se impondo como lético, neurológico, na pele, no Unidos, no Reino Unido, na China uma “fábrica de perversidades”, sistema digestivo, circulatório e e na Coreia do Sul. A Organização 2 Andrea Fumagalli: doutor em Econo- em outros inúmeros diagnósticos. Internacional do Trabalho – OIT1 es- A iniciativa e a criatividade são mia Política, é professor no Departamento tima que, a cada ano, 2,34 milhões de Economia Política e Método Quantitati- cerceadas pela maneira como é or- de pessoas morrem de acidentes vo da Faculdade de Economia e Comércio ganizado e controlado o trabalho. da Università di Pavia, Itália. Dentre seus ou enfermidades relacionadas com vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Os gestos exigidos pelo trabalho o trabalho, equivalendo a algo em Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto são vazios de sentido e ocultam a torno de 6.300 mortes diárias. Des- Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. possibilidade de mudar a situação. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi sce- te número, em torno de 2,2 milhões nari politici (Verona: Ombre corte, 2009). A gestão é desenhada de forma a falecem em função de alguma das Confira as seguintes entrevistas concedidas evitar espaços de manifestação dos por Fumagalli à IHU On-Line: Os impactos muitas enfermidades profissionais da financeirização sobre o sujeito, edição afetos e dos sentimentos, negando 343 de 13-09-2010, disponível em http:// a função reguladora da subjetivi- 1 Organização Internacional do Trabalho. bit.ly/ihuon343; As finanças no comando dade no ato de trabalhar. La Prevencion de Las Enfermedades Pro- bioeconômico do trabalho vivo, edição 327, fesionales. Publicado em 28 abr. 2013. de 03-05-2010, disponível em http://bit. Este fenômeno é crucial, pois http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/ ly/c68dqC; “Os mercados financeiros são o files/topic /gender/doc/dia282013b_1007. coração pulsante do capitalismo cognitivo”, neutraliza, imobiliza os corpos e pdf. Acessado em: 11 ago. 2014. (Nota da edição nº 302, de 03-08-2009, disponível em as mentes dos trabalhadores. É o entrevistada) http://bit.ly/brJzel. (Nota da IHU On-Line)

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afirmou Milton Santos3, e é o ápice novo modo de vida: o modo de vida cardiovasculares. A OIT alerta que do processo de internacionalização just-in-time, favorecendo a “corro- a crise econômica e a recessão do do mundo capitalista. são do caráter” (Sennett) e defor- sistema capitalista estão levando a mação da personalidade humana, um aumento de estresse, ansieda- IHU On-Line – Como o trabalha- com uma captura cada vez mais de, depressão e outros transtornos dor adoece no mundo capitalista intensa da subjetividade humana. mentais relacionados com o traba- lho. A vida, para muitos, passa a ser da pós-modernidade? As pessoas acabam mergulhando um peso intolerável e a única alter- Elsa Cristine Bevian – O sistema no mundo da solidão profunda, per- nativa é o clímax do adoecimento e de Estado do Bem-Estar Social en- dem a verdadeira aspiração de au- da barbárie: o suicídio! O sistema tra em crise no final dos anos 1960, todeterminação e a vida passa a não capitalista não é acolhedor, literal- quando surgem os processos de pa- ter mais sentido ou a ter um sentido mente, não favorece uma vida dig- ralisação dos processos de produ- meramente econômico. O indivíduo na para o ser humano! ção, críticas ao gigantismo do Esta- sofre ameaças no plano imaginá- do, não recolhimento dos impostos rio, simbólico e real. Os distúrbios e outros. A alternativa que se cons- psicossomáticos, desenvolvidos em IHU On-Line – No Brasil de hoje, trói mais recentemente é a volta decorrência do sofrimento pela quais as novas modalidades de à situação anterior, pregando-se, prática do assédio moral (insônia, degradação do trabalho? Que ra- entre outras coisas, uma desregula- síndrome do pânico ou transtorno cionalidade está por trás dessas mentação do trabalho. No início dos de ansiedade generalizado), são novas formas de degradação? uma constante. Sobram desânimo, anos 1980, surgem governos neoli- Elsa Cristine Bevian – Além dos apreensão e angústia nos trabalha- berais e com eles há maior precari- fatores mencionados na questão dores, nas pessoas que trabalham. zação do trabalho estrutural, assim anterior, há ainda outros fatores como o desemprego. Constitui-se, como a má gestão, a falta de edu- 4 como afirma Giovanni Alves , um cação e cultura de segurança nas empresas, a falta de fiscalização 3 (1926-2001): geógrafo bra- sileiro, foi um dos pensadores de nosso país pela falta de auditores fiscais do mais respeitados em sua área. Em 1994, ele trabalho e estrutura eficaz do Mi- recebeu o Prêmio Internacional de Geografia Nosso grande 22 Vautrin Lud, na França, uma espécie de No- nistério do Trabalho e Emprego, bel da Geografia. Santos exerceu boa parte da desafio é: como as economias perigosas e o lucro a carreira acadêmica no exterior (França, Cana- todo custo. Todos esses fatores fa- dá, EUA, Peru, Venezuela etc.). Foi professor reverter esta si- emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e vorecem as tragédias humanas que Ciências Humanas da USP, tendo falecido tuação em que se atingem trabalhadores todos os em 2001. Santos publicou mais de 40 livros e dias no Brasil. O modo de vida just- 300 artigos em revistas especializadas. A Edi- encontra a clas- 5 tora Unesp publicou o livro SANTOS, Milton. -in-time , que significa uma maior 1926-2001. Testamento Intelectual/Milton se trabalhadora carga de pressão no plano psíquico Santos; entrevistado por Jesus de Paula As- sis; colaboração de Maria Encarnação Sposi- dos trabalhadores, implicando no to. São Paulo: UNESP, 2004. (Nota do IHU Surge o “precariado”, tornando os fenômeno denominado por Gio- On-Line) vanni Alves por “vida reduzida”. O 4 Giovanni Alves: professor da UNESP-Ma- seres humanos precários. Não há rilia, livre-docente em teoria sociológica, pes- mais alteridade e solidariedade, capital avassala a possibilidade de quisador do CNPq com bolsa-produtividade não há mais coletivo. Os sindicatos desenvolvimento humano-pessoal desenvolvendo projeto de pesquisa intitulado dos indivíduos sociais, na medida “A derrelição de Ícaro – Sonhos, expectativas perdem sua força política e reivin- e aspirações de jovens empregados do novo (e dicatória. O medo do desemprego, em que o tempo de vida disponível precário) mundo do trabalho no Brasil (2003- 2013). É um dos líderes do Grupo de Pesquisa da vergonha, da discriminação e da 5 Just-In-Time: é um sistema de adminis- “Estudos da Globalização”- GPEG, inscrito do solidão está em todo lugar! tração da produção que determina que nada diretório de grupos de pesquisa do CNPq; e da deve ser produzido, transportado ou compra- RET – Rede de Estudos do Trabalho. Coorde- Segundo as estatísticas nacionais do antes da hora exata. Pode ser aplicado em na os seguintes projetos de extensão universi- e internacionais, assim como da qualquer organização, para reduzir stocks e os tária: Projeto de Extensão Tela Critica, volta- custos decorrentes. O just in time é o principal do para a produção de material pedagógico de OIT, os casos de transtornos mus- pilar do Sistema Toyota de Produção ou pro- conteúdo sociológico que visa discutir temas culoesqueléticos – TME aumenta- dução enxuta. Com este sistema, o produto da sociedade global através da análise critica ram significativamente nas últimas ou matéria-prima chega ao local de utilização de filmes do cinema mundial; Projeto Cine- somente no momento exato em que for ne- Trabalho/Praxis Vídeo, voltado para a pro- décadas e há estudos que relacio- cessário. Os produtos somente são fabrica- dução de vídeos que tratem das experiências nam o estresse com as patologias dos ou entregues a tempo de serem vendidos vividas e experiências percebidas do mundo musculoesqueléticas, cardíacas e ou montados. O conceito desse sistema está do trabalho e o Projeto OST (Observatório So- relacionado ao de produção por demanda, cial do Trabalho) que visa criar um acervo vir- digestivas e com graves transtornos onde primeiramente vende-se o produto para tual que trate das experiências narrativas de depois comprar a matéria-prima e posterior- precarização do trabalho no Brasil. É autor de dicalismo e reestruturação produtiva. (Nota mente fabricá-lo ou montá-lo. (Nota da IHU vários livros e artigos na área de trabalho, sin- da IHU On-Line) On-Line)

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das pessoas está avassalado pela em que se vive. Também é ilusão 18/hora. Esta disparidade salarial lógica do trabalho estranhado e a acreditarmos que vamos conseguir não é admissível. É necessária uma lógica do consumismo desenfre- resolver tudo. A resistência hoje é cidadania cosmopolita, uma ordem ado. Para Alves, a vida reduzida mais difícil, porque a economia é jurídica que não permaneça redu- possui alguns traços característicos global e a política é local. A ética zida àquela do Estado nacional, fundamentais: significa vida veloz, não é universal, porque a política mas um novo sistema global de vida sinalizada, vida enxuta, vida não é universal, porém, as pessoas normas jurídicas, com humanidade capturada e vida invertida. não são só totalmente governáveis, comum, ameaças compartilhadas e obrigações mínimas. Urge haver No Brasil, o número de suicídios também têm capacidade de se in- uma interpretação das normas de aumentou em 705% nos últimos 16 surgir, especialmente em socieda- direitos humanos e da OIT comuni- anos, segundo Miguel Jorge6, pro- des democráticas. cadas com as normas da Organiza- fessor associado de Psiquiatria da ção Mundial do Comércio – OMC, de Universidade Federal de São Paulo forma paritária, caracterizando o – Unifesp, que considera o estresse dumping social, e com previsão de e a grande competitividade pro- sanções aos países transgressores. fissional como causas importantes O adoecimento Há necessidade do reconhecimen- desse aumento. dos trabalhado- to de direitos no âmbito universal, regras da OIT com racionalidade IHU On-Line- Como subverter a res é um fenôme- ampliada. lógica do capitalismo global, pri- no local e global mando pela saúde do trabalhador Movimento sindical enquanto espaço de resistência? Como sindicatos e entidades de O movimento sindical em sua classe vêm desempenhando esse A globalização com primazia do quase totalidade está sendo colo- papel de resistência? econômico, buscar a riqueza e nizado e vê diminuída sua força, tornar isto principal, como a coi- Elsa Cristine Bevian – Pelo fato renunciando a uma radicalidade sa mais importante da vida, é o de o capitalismo ser vivenciado que já teve e tendo pouco conhe- problema. É necessário lutar con- 23 como religião, é difícil enfrentá- cimento para fazer frente de luta -lo, desconstituir a fé. O capitalis- tra a primazia do econômico, para contra a exploração dos trabalha- mo, aliado à técnica e à financei- tornar possível outra globalização. dores, que estão extrapolando seus 8 rização7, passa a ser um fenômeno Globalizar a política, tornar a po- limites físicos e mentais. Marx , no complexo. Mas o capitalismo não lítica importante. Também chama- século XIX já havia alertado que pode tudo! O Estado deve permitir mos a atenção para a importância toda a luta sindical sem uma pers- a resistência, para que sejamos go- de termos em conta a supremacia pectiva de classe, de superação da vernados um pouco menos. Não dá da técnica, neste biocapitalismo escravidão assalariada, teria efei- para primeiro esperar uma socieda- cognitivo. E, neste contexto, urge tos parciais e temporários, corroí- de totalmente perfeita, para que que vejamos as possibilidades de 8 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818- seja possível melhorar a sociedade resistência ao que acontece, vincu- 1883): filósofo, cientista social, economista, lando a primazia do econômico ao historiador e revolucionário alemão, um dos 6 Miguel Roberto Jorge: professor As- endeusamento da técnica, o que pensadores que exerceram maior influência sociado do Departamento de Psiquiatria da sobre o pensamento social e sobre os destinos Escola Paulista de Medicina (EPM) da Uni- leva o ser humano a ser cada vez da humanidade no século XX. Leia a edição versidade Federal de São Paulo (Unifesp). mais servo da máquina. número 41 dos Cadernos IHU ideias, de Realizou seu pós-doutorado no Western autoria de Leda Maria Paulani, tem como Psychiatric Institute and Clinic da Universi- É necessário regulamentar as título A (anti)filosofia de Karl Marx, dis- dade de Pittsburgh (EUA) e obteve seu título ponível em http://bit.ly/173lFhO. Também de Livre-Docência em Psiquiatria Clínica na condições de trabalho de forma sobre o autor, confira a edição número 278 UNIFESP. Sua produção científica iniciou- igualitária, em todos os países, da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitula- -se na área das dependências químicas e está com a finalidade de coibir o dum- da A financeirização do mundo e sua crise. atualmente relacionada ao diagnóstico e clas- Uma leitura a partir de Marx, disponível em sificação em psiquiatria, envolvendo instru- ping social, que, em nosso enten- http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a mentos padronizados e aspectos transcultu- dimento, é o principal fator que entrevista Marx: os homens não são o que rais. Sua principal linha de pesquisa envolve pensam e desejam, mas o que fazem, conce- estes aspectos e mais recentemente questões favorece o adoecimento dos tra- dida por Pedro de Alcântara Figueira à edição relacionadas ao estigma e discriminação diri- balhadores nas últimas décadas. 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, dispo- gidas aos portadores de transtornos mentais, Como exemplo, há casos em que nível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On- desenvolvendo projetos em colaboração com -Line preparou uma edição especial sobre instituições internacionais. (Nota da IHU no setor industrial, em 2011, na desigualdade inspirada no livro de Thomas On-Line) China, os salários pagos eram cer- Piketty O Capital no Século XXI, que retoma 7 O número 468 da IHU On-Line debateu o o argumento central da obra de Marx O Capi- tema da financeirização. Confira em http:// ca de US$ 1,80/hora, enquanto nos tal, disponível em http://bit.ly/IHUOn449. bit.ly/1UeXijs. (Nota da IHU On-Line) EUA, US$ 20/hora e no Japão, US$ (Nota da IHU On-Line)

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dos pela própria lógica do capital, solidariedade entre os trabalhado- Elsa Cristine Bevian – A respon- e contribuiria somente para dese- res e categorias, pois as empresas sabilização dos empregadores pe- ducar a classe. multinacionais estão produzindo los riscos a que os trabalhadores em todos os cantos do planeta. Há se submetiam não era admitida no As lutas sindicais restringem-se dificuldade para formar esta rede século XIX. A formação do Direito a instituir estratégias que são de de organização, a começar pelos Social, com nova racionalidade ju- resultado, limitadas a ações en- rídica, segundo Jorge Luiz Souto volvendo assuntos salariais e da diferentes idiomas e culturas. Maior10, foi impulsionada, sobre- jornada de trabalho, e não estão O fato é que a atuação dos sin- tudo para se chegar à solução do questionando o sistema capitalista dicatos, por jurisdição, nos tempos maior problema social do século e a forma como o trabalhador está atuais, só serve para fragmentar XX, os acidentes de trabalho, que sendo explorado e assujeitado. a luta. É preciso juntar os sindi- não poderiam ser devidamente Neste contexto, a resistência por catos com diferentes movimentos cuidados na concepção jurídica li- parte dos trabalhadores poucas ve- sociais, movimentos de ação em beral. O aspecto da solidariedade zes inclui na sua agenda uma pre- rede. Há necessidade de a socie- deixa o campo da ordem moral ocupação com a luta para mudar dade civil se organizar e alargar o para se integrar ao campo da co- a sociedade no seu todo, mas se conceito de negociação coletiva, erção jurídica, reconhecendo-se satisfaz com reivindicações corpo- pois há um déficit democrático em que do vínculo social advém a res- rativas, não se interessando pela relação à questão racial, de mulhe- ponsabilidade de uns para com os situação do conjunto das classes res etc. Uma luta articulada para outros. subalternas na sociedade em que construção do sujeito de direitos se vive. Assim, os próprios sindica- pelo reconhecimento. Os sindicatos A luta pela obtenção de salários tos contribuem para que o mesmo justos ou dignos existe desde que modelo de sociedade se fortaleça e surgiu o capitalismo e vemos que nunca seja questionado. hoje, em pleno século XXI, cada vez mais os capitalistas se deslo- O movimento sindical precisaria cam pelo planeta à procura de mão investir mais na estratégia da for- A cada 15 segun- de obra mais barata, para obtenção mação, para desenvolver entre os dos, um traba- de mais-valia e, consequentemen- 24 trabalhadores um senso crítico da te, mais lucros. Há quem defenda realidade, de tomada de consciên- lhador morre estes movimentos, sob o argumen- cia de si. É preciso trabalhar com de acidentes ou to da sobrevivência das empresas. a subjetividade dos trabalhadores Então, pode-se dizer que, desde para formar um senso crítico so- doenças rela- pelo menos três séculos, há uma bre sua condição no mundo e da correria desenfreada pela mais-va- sua inserção social, com intuito de cionadas com lia, e as classes dominantes geram emancipação e liberdade. É neces- o trabalho sempre novas técnicas e tecnolo- sário avançar na comunicação do gias para controlar física e mental- movimento sindical entre si, des- mente os trabalhadores. O resulta- te com os trabalhadores e com a não conseguem garantir direitos e, do é um estrangulamento cada vez sociedade, com formação de gru- apesar de haver um esvaziamento pos, educação sindical e política da das consciências, o movimento sin- maior da força de trabalho, das dical pode conquistar seu lugar na classe trabalhadora. 10 Jorge Luiz Souto Maior (1964): jurista defesa da consciência de classe dos e professor livre docente de Direito do traba- Sindicalismo em rede trabalhadores. lho brasileiro na Universidade de São Paulo – USP, desde 2001. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí desde 1998, pales- Também não é mais possível o IHU On-Line – Numa perspectiva trante e conferencista. Formado na Faculda- isolamento sindical restrito à ju- histórica, como traçar um parale- de de Direito do Sul de Minas – FDSM, es- pecializou-se em direito em 1987 pela mesma risdição de cada sindicato. Urge lo entre os acidentes de trabalho faculdade, e pela USP, em 1990. Mestre em que o sindicalismo funcione em e as doenças adquiridas em de- Direito pela USP com a dissertação “Requisi- rede, como sugere Daniela Mura- tos da petição inicial nos dissídios individuais corrência do trabalho? trabalhistas” em 1995 e Doutor em Direito 9 das , com o intuito de ampliar a pela mesma Universidade de São Paulo com a tese “Procedimento oral, um pressuposto da 9 Daniela Muradas Reis: possui Gradu- tamento de Direito do Trabalho e Introdução efetividade do processo trabalhista” em 1997 ação em Direito, mestrado em Filosofia do ao Estudo do Direito da UFMG. Tem experi- e pela Universite de Paris II, UP II, França Direito e doutorado em Direito pela Univer- ência na área de Direito, com ênfase em Di- com a tese “Modes de Règlement des Conflits sidade Federal de Minas Gerais. É professora reito do Trabalho, atuando principalmente Individuels du Travail”, em 2001. Além disso, adjunta de Direito do Trabalho da Universi- nos seguintes temas: Retrocessos sociais, é livre-docente pela USP com a tese “O direito dade Federal de Minas Gerais. Foi membro direitos humanos sociais e trabalho decente. do trabalho como instrumento de justiça so- do Conselho Universitário e Chefe do Depar- (Nota da IHU On-Line) cial”, de 1999. (Nota da IHU On-Line)

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energias e uma apropriação inde- alienado na maioria dos casos e o deral que fala do direito à dignida- vida da subjetividade dos traba- trabalhador não sabe nem o que de humana, do art. 196 cujo texto lhadores, gerando consequências está fazendo ali naquele local, afirma que “a saúde é direito de e afetando sua saúde, pois estão naquele trabalho, naquela tortura todos e dever do Estado, garantido cada vez mais inseguros e despro- que vivencia. mediante políticas sociais e econô- micas que visem à redução do ris- tegidos. E os detentores do poder Diante desta realidade, e con- co de doença e de outros agravos econômico e financeiro querem fle- siderando que um dos princípios e ao acesso universal e igualitário xibilizar e precarizar cada vez mais gerais da atividade econômica do às ações e serviços para sua pro- as condições de trabalho... nosso Estado é a busca do pleno moção, proteção e recuperação”. emprego, de acordo com o art. Da mesma forma, o art. 200 da IHU On-Line – A automação de- 170, inciso VIII da Constituição da Constituição Federal, que institui corrente da Revolução Industrial11 República Federativa do Brasil, e trouxe outra relação com o traba- o Sistema Único de Saúde – SUS, a quem compete, dentre outras ta- lhador da fábrica. De que forma refas, “executar as ações de saúde essa mudança impactou na saúde do trabalhador, assim como colabo- do trabalhador e na sua lógica de rar na proteção do meio ambiente, relação com o trabalho? Em que Somos con- nele compreendido o do trabalho”. medida a tecnologia do mundo Além de princípios constitucionais, pós-moderno atualiza essa rela- trolados com são inúmeras as leis federais, es- ção e reproblematiza o ambiente ‘cartões-fide- taduais e municipais, portarias, da fábrica? lidade’, pro- decretos, instruções normativas e Elsa Cristine Bevian – Com cer- outras que regulamentam as ações, teza, a automação industrial, des- duzimos valor a educação, a prevenção, a elabo- de o sistema fordista até o siste- para os outros ração de estatísticas e a reparação ma atual, toyotista, vem gerando de danos. consequências nefastas sobre a Um grande avanço da nossa saúde dos trabalhadores. Hoje, são considerando que hoje a automa- Constituição Federal foi a institui- os trabalhadores que precisam se 25 ção industrial é a responsável pela ção do controle social, introduzido adaptar às máquinas e não o con- extinção de milhares de postos de pela política pública como um es- trário, em que as máquinas deve- trabalho no planeta, há a necessi- paço para os trabalhadores exerci- riam ser adaptadas aos trabalhado- dade de regulamentação da apli- tarem a ação política, com intuito res, ao ser humano. O ritmo não é cação da tecnologia. Não podemos de preservação da sua saúde. Este humano, é das máquinas; porém, continuar a ser reféns da tecnolo- controle social pode ser exercita- ser humano tem limites físicos e gia. A tecnologia deve existir para do através de inúmeras formas, mentais, então, não deveria ser as- ajudar o ser humano e não para com a participação nos conselhos, sim, é contra a natureza humana. torná-lo um escravo. Poderíamos como efetivação da democracia Além do mais, cada pessoa é uma começar regulamentando em nosso participativa. Tem significado per- pessoa, com suas características, país o art. 7º, inciso XXVII da Cons- manente como educação para a capacidades e habilidades. É lógico tituição da República Federativa cidadania. A sociedade conquistou que as pessoas estão adoecendo, do Brasil. um espaço de corresponsabilidade pois não têm nenhum controle so- na definição de leis e políticas ga- bre o ritmo e o alcance do traba- IHU On-Line – Como avalia a le- rantidoras dos seus direitos. Este lho. O trabalho é completamente gislação brasileira do trabalho no objetivo da lei nem sempre é al- que diz respeito à proteção da cançado, mas este é um espaço de 11 Revolução Industrial: foi a transição para novos processos de manufatura no pe- saúde do trabalhador? Quais os poder que permite mudanças, a ríodo entre 1760 a algum momento entre avanços e limites? exemplo da escolha de prioridades 1820 e 1840. Esta transformação incluiu a para aplicação dos recursos públi- transição de métodos de produção artesanais Elsa Cristine Bevian – A política cos destinados à saúde. Há, no en- para a produção por máquinas, a fabricação pública em saúde do trabalhador de novos produtos químicos, novos proces- tanto, o problema do quórum para instituída na Constituição da Re- sos de produção de ferro, maior eficiência da decisões, pois nem sempre o inte- energia da água, o uso crescente da energia pública Federativa do Brasil, em a vapor e o desenvolvimento das máquinas- resse dos trabalhadores é aceito e 1988, proporcionou avanços jurí- -ferramentas, além da substituição da madei- deliberado pelos conselhos. ra e de outros biocombustíveis pelo carvão. dicos e práticos, embora não seja A revolução teve início na Inglaterra e em integralmente eficaz. Compreende Há críticas por parte de alguns poucas décadas se espalhou para a Europa Ocidental e os Estados Unidos. (Nota da IHU princípios constitucionais, a exem- autores, que entendem que o Es- On-Line) plo do art. 1º da Constituição Fe- tado, muitas vezes, ao levar os

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trabalhadores para dentro dele, verificou que a cidade com maior em ter um diagnóstico preciso dos os limita no sentido de traduzir as número de doenças presumidas principais problemas relacionados reivindicações dentro do formato (não notificadas) é São Paulo, com ao tema, compreendendo as prin- que ele previamente determina. 14.603 casos. Em segundo lugar, cipais vulnerabilidades da política. Para alguns, sem a força das ruas, aponta as cidades do Rio de Janei- A prevenção em saúde do trabalha- os trabalhadores não têm sequer ro e Salvador. Blumenau aparece dor não somente produzirá imen- condições de avançar dentro do como quarta cidade do país nesta sa economia aos cofres públicos, Estado. estatística. Com relação às cidades como causará impacto imediato e com maior número de doenças ocu- profundo na qualidade de vida de IHU On-Line – O que a realidade pacionais, Blumenau aparece como cada trabalhador e trabalhadora. de Blumenau, em Santa Catarina, quinta cidade do país. Perde ape- seu objeto de pesquisa, diz sobre nas para Nuporanga, Erechim, São IHU On-Line – Deseja acrescen- a política pública de saúde do tra- Vicente e Chapecó. tar algo? balhador? Em que medida pode- Do diagnóstico às Elsa Cristine Bevian – É neces- -se extrapolar essa realidade para estratégias sário persistir para entender o que uma experiência brasileira? acontece, para encontrar a saída. Elsa Cristine Bevian – Os índices A perspectiva primordial da Compreender melhor a situação de adoecimento em Blumenau, que pesquisa que realizei e que terá atual da falta de saúde e seguran- é atualmente a quarta economia continuidade, é que, com seus re- ça dos trabalhadores nos ambien- do Estado de Santa Catarina, são sultados até agora obtidos e com tes de trabalho e buscar possíveis muito elevados, chegando a 10% a seus potenciais avanços, se possa resistências frente à ausência da média percentual de trabalhadores política e à concomitante prima- com emprego formal recebendo zia do econômico. Não é a simples benefícios do INSS por auxílio-do- reorganização ou reestruturação ença e auxílio-doença decorrente do Estado de Direito, ou da legis- de acidente de trabalho. Blume- O capital avas- lação, que vai resolver. Por maior nau, com 309 mil habitantes no e mais complexa que seja a tare- 26 ano de 2010, tinha 128,9 mil traba- sala a possibi- fa de compreender o que aconte- lhadores no mercado formal, sendo lidade de de- ce hoje, não podemos ceder a um o maior número na indústria têx- pessimismo ou a um conformismo til e do vestuário. É um problema senvolvimento que parecem predominar na cena epidemiológico. humano-pessoal tanto teórica quanto prática atual. O juiz do Trabalho em São Pau- dos indivídu- Não é sem motivo que se proje- lo, José Antonio Ribeiro de Oliveira tam novas leituras e novas experi- Silva, em sua tese doutoral, fez um os sociais ências, mesmo que elas abdiquem estudo sobre como as condições de de um costumeiro caráter univer- sal ou macrofísico, e aconteçam trabalho, em especial as jornadas contribuir com a formulação de um em plano microfísico. Quem sabe, de trabalho, têm a ver com essa diagnóstico, o qual pode contribuir exercitar a resistência seguindo o realidade de adoecimento dos tra- com a formulação de estratégias caminho sugerido por Spinoza12 balhadores. Analisou a realidade mais eficazes e humanizadas, ap- seja interessante, desenvolven- do Brasil e da Espanha. Fez uma tas a diminuir o impacto das trans- do a potência de ação através investigação sobre as cidades que formações econômicas no mundo da afetividade, possibilitando apresentaram, em 2008, a maior do trabalho e dos agravos à saúde aos seres humanos o encontro de quantidade de doenças ocupacio- do trabalhador. A estrutura estatal uns com os outros para conservar nais não declaradas, com o intuito não é suficiente para desenvolver e expandir sua potência, para a de investigar quais apresentaram o ações preventivas em meio a tan- autopreservação. maior índice de sinistralidade em tas irregularidades que chegam, relação ao seu número de empre- através de denúncias, todos os 12 Baruch Spinoza ■(ou Espinosa, 1632– gados, assim como analisou as ati- dias, aos órgãos públicos. São mui- 1677): filósofo holandês. Sua filosofia é consi- derada uma resposta ao dualismo da filosofia vidades econômicas predominantes tos fatores a serem analisados, e é de Descartes. Foi considerado um dos gran- nessas cidades. necessário agir no mundo macro e des racionalistas do século XVII dentro da no mundo micro. Filosofia Moderna e o fundador do criticismo No Brasil, analisou as estatísticas bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU de doenças ocupacionais não decla- O primeiro passo no planejamen- On-Line, de 06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamen- radas do ano 2008, segundo o Nexo to de estratégias de prevenção to, disponível em http://bit.ly/ihuon397. Técnico Epidemiológico – NTEP, e em saúde do trabalhador consiste (Nota da IHU On-Line)

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Quando a chaga vem do silenciamento Carla Bottega discute a saúde mental de trabalhadores e trabalhadoras que, pela lógica atual do mundo profissional, são silenciados e oprimidos pela necessidade de mais produção com menos relações

Por João Vitor Santos

xiste uma velha máxima que diz trabalho, estão perdendo espaço para o que a diferença entre o remédio individualismo e a solidão”, destaca. A Ee o veneno é a dose. A frase pode consequência, segundo a pesquisadora, ser transposta para o mundo do trabalho, é que “na medida em que não há espa- uma vez que este pode tanto enobrecer ço para uma construção do sentido do o ser humano como torná-lo doente. O sofrimento nas relações sociais, surge o desafio de melhorar o ambiente e a rela- desânimo, a decepção e, até mesmo, o ção com o trabalho, preservando a saúde desespero. Trabalhadores e trabalhado- física, é grande. Porém, o desafio com ras, apesar de doentes, não querem se relação à saúde mental é imenso. Carla afastar de seus postos de trabalho pelo Bottega, do Laboratório de Psicodinâmi- medo da substituição imediata por ou- ca do Trabalho da Universidade Federal tro profissional e pelo estigma que ainda do Rio Grande do Sul – UFRGS, reconhe- permanece em relação ao adoecimento ce que a preservação da saúde mental mental”, completa. Assim, mesmo do- do trabalhador não é sempre tratada da entes, seguem em seus postos, cada vez mesma forma que a preservação da dita produzindo menos e se afundando num 27 saúde física. “É preciso atenção e cons- ciclo de adoecimento. tante atualização com o que acontece no cotidiano da vida, no real do trabalho, Carla Garcia Bottega é psicóloga, dou- pois o sofrimento no trabalho tem levado tora e mestre em Psicologia Social e Insti- as pessoas à retração, ao silenciamento, tucional. É docente na Universidade Esta- e se não há espaço para a fala, significa dual do Rio Grande do Sul – UERGS. Ainda que também não há espaço para a escu- integra o Laboratório de Psicodinâmica ta”, alerta. do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atua em te- Na entrevista, concedia por e-mail à máticas da Saúde Mental e Trabalho, Pre- IHU On-Line, Carla analisa os fatores venção e Humanização em Saúde, temas que levam homens e mulheres ao adoeci- que estão presentes nos debates do Ciclo mento em decorrência de suas atividades de Estudos: Saúde e segurança no traba- profissionais. Entre eles, os principais são lho na região do Vale do Rio dos Sinos, o individualismo e a competitividade do promovido pelo Instituto Humanitas Uni- novo mundo corporativo. “O adoecimen- sinos – IHU em parceria com o Sindicato to tem demonstrado que as estratégias dos Metalúrgicos de São Leopoldo. Saiba coletivas de defesa, que possuem papel mais em http://bit.ly/1Mn1War. de extrema importância de resistência aos efeitos nocivos da organização do Confira a entrevista.

IHU On-Line- Em que medida o fera social e a vida privada do tra- vivenciado com trabalhadores, as trabalho (e as relações de e com o balhador. Nesse sentido, o trabalho mudanças operadas na realidade trabalho) impacta na saúde men- permite promover saúde mental, do trabalho têm sido as de ordem tal do indivíduo? mas não sem o confronto com a mais perversas e perturbadoras organização do trabalho, que pode com impactos significativos na vida Carla Garcia Bottega – Entendo gerar prazer, mas também sofri- dos trabalhadores. São situações o trabalho como constituidor da mento e adoecimento. A partir do geradoras de elevado nível de so- identidade e articulador entre a es- que tenho estudado, escutado e frimento e por vezes adoecimento,

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tam que as funções de recursos humanos, ou os subsistemas de Recursos Humanos que foram se desenvolvendo ao longo do tempo, Tudo na atualidade tem a ver como avaliação de desempenho, remuneração e carreiras, além com práticas gerencialistas e in- de outros, sempre fizeram parte vadiu a vida dos sujeitos con- do controle sobre o trabalhador e apropriação de sua subjetividade. trolando as relações sociais Principalmente visando o aumento da produtividade e o modo de ope- rar o trabalho. Ao mesmo tempo, sendo que os trabalhadores sempre pelo menos 20 anos, têm demons- essas funções têm sido “dissemi- buscam criar estratégias para lidar trado que as estratégias coletivas nadas” a todos os gestores e não com esse sofrimento e continuar de defesa, que possuem papel de apenas a um setor específico de RH trabalhando. Mas o que ocorre, extrema importância de resistên- nas empresas. por força da atual organização do cia aos efeitos nocivos da organi- O que se busca, nestes mode- trabalho, é que o trabalhador ten- zação do trabalho, estão perdendo los, são melhores condições para de a um processo doloroso de con- espaço para o individualismo e a o aumento da produtividade e que fronto com seus colegas, e consigo solidão. No enfrentamento às ad- os trabalhadores, além de partici- mesmo, relegando sua condição de versidades, presentes no trabalho, parem, o façam de acordo com as trabalho a um plano escondido, re- e às condições de vida desestabi- orientações, com as prescrições calcado e silencioso. lizantes, os trabalhadores têm de resistir e novamente estabilizar o dos gestores e que estão contidas São visíveis as intensas modifica- que se desorganiza. A partir da ha- nos manuais de Recursos Huma- ções que o trabalho sofreu nas úl- bilidade, da inteligência e astúcia, nos. Apesar de solicitarem a par- timas quatro décadas: diminuições os trabalhadores constroem estra- ticipação coletiva, os subsistemas no número de empregos, aumento tégias defensivas, que permitem a de recursos humanos propõem que de serviços, precarização dos con- permanência da normalidade. as ações sejam individualizadas, o 28 tratos e flexibilização de leis tra- que demonstra as contradições in- Mas o que ocorre é que a solida- balhistas, entre outras mudanças. ternas destas políticas. Ao mesmo tempo, como referência riedade e cooperação tão necessá- social, tem sido questionado, res- rias ao enfrentamento cotidiano do Lógica generalista e significado, criticado e resgatado trabalho, como recursos coletivos individualismo por alguns teóricos. Uns chegam a para a manutenção da saúde, estão desaparecendo. Para que realmen- colocar em xeque a centralidade É importante e necessário o te se possa desenvolver o “viver do trabalho, mas é visível o aumen- processo de planejamento, de or- junto”, é preciso atenção e respei- to da sua exploração. Todas essas ganização e de racionalização da to ao outro, o que tem sido substi- transformações influenciam, dire- produção. E estas preocupações tuído pela competição exacerbada ta ou indiretamente, a sociedade, são justas na medida em que me- e banalização do sofrimento alheio seja o trabalhador empregado ou lhoram a vida das pessoas e as re- a partir das mudanças, evoluções e sem emprego e suas famílias, e im- variantes dos modelos de gestão. lações, inclusive no trabalho. Mas pactam diretamente na subjetivi- o que ocorre é que a lógica geren- dade do trabalhador. Concordo com Margarida Barre- cialista, originada na área privada, to1 e Roberto Heloani2, que apon- tem avançado nos setores públicos IHU On-Line – Quais as princi- e na vida da sociedade. Tudo na 1 Margarida Maria Silveira Barreto: es- pais causas de sofrimento e trans- pecialista em Medicina do Trabalho e doutora atualidade tem a ver com práticas tornos psíquicos relacionados ao em Psicologia Social pela PUC-SP, está entre gerencialistas, e invadiu a vida dos trabalho? O que causa sofrimento os especialistas da área médica precursores sujeitos controlando as relações no estudo sobre assédio moral no trabalho e no trabalho hoje e em que me- efeitos das jornadas extensas sobre a saúde sociais. dida o mundo capitalista da atu- de trabalhadores. Suas pesquisas jogaram luz alidade, da lógica do consumo sobre a realidade vivida tanto por executivos Católica de São Paulo. É mestre em Adminis- quanto por operários em rotinas de desgaste tração pela Fundação Getulio Vargas – SP, e do descartável impacta nesse físico e emocional, sob o abuso de poder por doutor em Psicologia pela Pontifícia Univer- sofrimento? parte de empregadores, situações relatadas sidade Católica de São Paulo, pós-doutor em no livro Violência, saúde e trabalho – uma Comunicação pela USP e Livre Docente em Carla Garcia Bottega – A amplia- jornada de humilhações (Educ/Fapesp). Teoria das Organizações pela Unicamp. Atu- ção das vivências de sofrimento (Nota da IHU On-Line) almente é Professor Titular e pesquisador da 2 José Roberto Montes Heloani: gradua- Faculdade de Educação da Universidade Es- psíquico e, muitas vezes, o adoeci- do em Direito pela Universidade de São Paulo tadual de Campinas, na área de Gestão, Saú- mento, em maior escala do que há e em Psicologia pela Pontifícia Universidade de e Subjetividade. (Nota da IHU On-Line)

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Na prática clínica e de observa- tabelecendo perseguições ao sujei- Carla Garcia Bottega – O sofri- ção, verifica-se que não existem to em foco. A violência psicológica mento ético proveniente do tra- espaços abertos e democráticos tem origem em uma relação de balho pode mobilizar o sujeito a nos locais de trabalho. Ao contrá- abuso de poder, como ameaça ou agir individual ou coletivamente rio, estão presentes condições para ainda omissão nas relações de tra- em relação à violência e injustiça a emergência do individualismo, balho. Busca neutralizar o traba- ou pode ser negado, com a bana- dos comportamentos desleais, in- lhador, ou um grupo, no sentido de lização inclusive do sofrimento trigas e traições. Ou seja, a pos- controle de ações principalmente alheio. Na medida em que os tra- sibilidade de fazer sofrer e da in- inibindo questionamentos. balhadores não possuem espaço justiça entre os pares. Como não é coletivo para falarem sobre o seu possível construir uma perspectiva trabalho, se não são reconhecidos de futuro, a perspectiva atual está como aqueles que podem intervir marcada por ansiedade, angústia e na organização de suas práticas co- um sentimento de vazio de senti- tidianas, são levados a um embo- do. O estímulo ao individualismo Não existem es- tamento pessoal. Isso é traduzido exacerbado não permite a cons- paços abertos pelo silêncio, já que não há o que trução de vínculos, sejam eles na dizer. São levados a desacredita- comunidade ou no trabalho. e democráti- rem da sua potência, como trans- As pessoas deixam de utilizar os cos nos locais formadores das adversidades, que espaços públicos, seja para rea- de trabalho sofrem e vivem. lizarem discussão do seu trabalho Ao mesmo tempo, são induzidos ou de qualquer outra questão que na crença que seu sofrimento é da diga respeito às suas vidas. Se não Com modelos de gestão tão co- ordem do individual e, por essa ra- há espaço para uma construção do ercitivos e punitivos, os espaços de zão, não tem espaço no ambiente sentido do sofrimento nas relações reunião e encontro se reduziram à coletivo. Acabam não conseguindo sociais, surge o desânimo, a decep- passagem de informação, cobran- compartilhar, com outros trabalha- ção e, consequentemente, o deses- ças coletivas ou de exposição in- dores, os sentimentos e vivências pero. A transformação do sofrimen- dividual dos trabalhadores, sendo semelhantes. Como consequências, to passa pelo uso da palavra, em mais um palco para evidenciar atos o individualismo e a competição no 29 violentos. Ocorre que, no quadro um espaço público de discussão. trabalho são saídas para esse su- dos novos modelos gerenciais, o jeito que silencia e não divide as reconhecimento pelo trabalho bem Patologias da solidão adversidades vividas com outros feito não é um valor a ser conside- trabalhadores. Em pesquisa que realizei recen- rado, mesmo que algum movimen- temente para minha tese – “Clíni- to neste sentido seja feito pela or- Mesmo com este movimento so- ca do Trabalho no Sistema Único ganização, é fugaz e nem sempre cial pela competição exacerbada, de Saúde: Linha de cuidado em verdadeiro, na medida em que visa os trabalhadores que acreditam na saúde mental do trabalhador e da aumento de produtividade e lucro. mobilização coletiva buscam seus pares para a discussão, mas, como trabalhadora” – com entrevistas Os novos modelos de gestão, ado- não encontram parceiros, na maio- com trabalhadores e trabalhadoras tados por grande parte das empre- ria das vezes, acabam por também pude verificar que as situações de sas e até mesmo instituições públi- silenciar gradativamente. Os sujei- adoecimento foram aquelas prove- cas, favoreceram a intensificação tos não encontram solidariedade nientes da exposição a vivências dos sentimentos de insegurança, para suportar as dificuldades cole- de violência. Estas geraram con- desesperança, medos e autoexi- tivamente, já que a falta da soli- sequentemente depressões, esta- gências. Tudo isso acaba impondo do de pânico e fobias, angústias, aos trabalhadores um nível mais dariedade está também no espaço estresse e tentativa de suicídio, elevado de sujeição diante de prá- público. Dessa forma desacreditam entre outras. Que podem ser de- ticas gerenciais que exploram e que estão certos, em suas reivin- nominadas patologias da solidão, violentam. dicações, e muitas vezes chegarão patologias sociais e do silêncio. ao adoecimento, por descrença em si mesmos. Neste sentido, são comuns casos IHU On-Line – Como ocorre a ba- de assédio moral fazendo parte de nalização do sofrimento no traba- Nas entrevistas que realizei, fi- ações de violência psicológica que lho? Hoje, as doenças mentais e cam evidentes nos relatos dos tra- tomam proporções maiores do que transtornos psíquicos têm o mes- balhadores as tentativas – das che- atos isolados ou de acontecimento mo “status” das demais doenças fias e/ou profissionais de saúde da esparso. A exposição a situações relacionadas ao trabalho ou ain- empresa – de que seu sofrimento e vexatórias, xingamentos e maus da são negligenciadas e tratadas sintomatologia sejam atribuídos a tratos se tornaram cotidianas, es- como tabus? questões particulares, individuais,

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histórias pregressas de adoecimen- Trabalhadores mais ria afastados das atividades labo- to. Assim, acabam buscando afas- expostos rais, relatam profundo sofrimento tar cada vez mais qualquer rela- e situações de adoecimento rela- ção com a situação de trabalho, a Alguns autores e pesquisas apon- cionadas ao seu trabalho. Alguns, execução das tarefas ou vivências tam que os trabalhadores da saú- chegando ao desespero e deses- traumáticas ocorridas no ambiente de, educação e segurança estariam perança de mudanças em suas vi- laboral. Em resumo, a responsabi- mais expostos ou vulneráveis ao das, fizeram tentativas de suicídio. lidade pelo cuidado é apenas do adoecimento em função de seu É possível afirmar que o trabalho trabalhador, assim como a culpa contato com outro sujeito que para este grupo tem se constituí- de não ter se cuidado, caso algo também sofre, somando-se a isso do mais como fonte de sofrimen- aconteça. as pressões provenientes da or- to e consequente adoecimento, ganização do trabalho. Em minha na medida em que a permanência nos espaços laborais chegou ao IHU On-Line – Qual o perfil do prática clínica, e para a tese, tive insuportável. trabalhador que hoje tem sua contato com trabalhadores e tra- saúde mental mais ameaçada? balhadoras das áreas do comércio, Quais as atividades mais expostas educação, segurança patrimonial, IHU On-Line – Como conceber e que lógica comum interliga es- indústria e saúde. Independente ações de proteção à saúde men- sas atividades? dos que estão trabalhando atual- tal ao trabalhador? Que tipo de mente, todos já estiveram afasta- política pública deve e precisa Carla Garcia Bottega – Nas en- dos anteriormente por motivos de ser desenvolvida para assegurar trevistas, a relação de importância a saúde mental do trabalhador para com o trabalho, dedicação, e qual o papel das organizações interesse em permanecer traba- privadas (as empresas) e entida- lhando esteve presente em todas des de classe (sindicatos) nesse as falas. Mesmo aqueles que foram processo? assediados ou estão afastados por O estímulo ao Carla Garcia Bottega – É impor- longos períodos, todos falam da individualismo tante compreender que a prescri- importância do trabalho em suas ção para a execução do trabalho vidas. As histórias de extrema dedi- exacerbado não se tornou mais rígida, ao mesmo 30 cação ao trabalho, de “vestir a ca- permite a cons- tempo que diminuíram as explica- miseta” da instituição são as mais ções ou esclarecimentos de como comuns nos casos de adoecimento. trução de víncu- realizá-lo. As cobranças e exigên- Os relatos demonstram que mui- cias provenientes de chefias foram tos trabalhadores largavam tudo los, sejam eles ficando mais rudes, severas, e nem em função do trabalho, inclusive na comunidade sempre claras, aumentando as si- família, filhos e os cuidados com a ou no trabalho tuações de punições e advertências saúde. por questões/erros que não foram Nos aspectos de dedicação ao explicitadas para o trabalhador. saúde por longos períodos. Mesmo trabalho, os relatos são afetivos e Somadas às mudanças citadas no que o motivo do adoecimento seja carregados de sentimentos, estes gerenciamento, acrescentam-se a relacionado ao trabalho, e a ambi- muitas vezes ambivalentes devido sobrecarga de trabalho, novas for- valência sobre este adoecer esteja ao sofrimento, mas a relação de mas de controle, bem como pro- presente nos relatos de seus senti- pertencimento ao trabalho sem- cessos de avaliação de desempe- mentos, todos têm uma relação de pre está presente. Sabe-se que as nho individualizado; nesse sentido, pertencimento com o trabalho de pessoas trabalham para contribuir como não é possível avaliar o tra- extrema dedicação. com o seu local específico de tra- balho apenas por seu resultado e balho, mas também com a socieda- Outro aspecto importante é que de forma individualizada, os traba- de, dando sua contribuição social. o ciclo de adoecimento é visível, lhadores desenvolvem sentimentos Porém, o que ocorre atualmente manifesto pela permanência no de desconfiança e injustiça. É pos- é que esta retribuição simbólica trabalho mesmo em casos de ado- sível verificar o quanto as mensa- ou moral está cada vez mais esva- ecimento e com licenças saúde in- gens da gestão são paradoxais, de ziada, mais sem sentido. Há uma dicadas em avaliação médica, mas dupla linguagem, confundindo até supervalorização da retribuição não utilizadas. O medo de se afas- mesmo as chefias imediatas que também estão subordinadas à hie- material, e, por mais que esta seja tar do trabalho é uma constante, rarquia com relação semelhante. importante, não é suficiente para pelos sentimentos de inutilidade e alimentar o pertencimento e en- descarte exacerbados pelo discur- A compreensão do que se vive gajamento do trabalhador ao seu so gerencial de fácil substituição. atualmente no mundo do trabalho trabalho. Esses trabalhadores, em sua maio- precisa ser discutida entre gestores

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e trabalhadores, resgatando espa- Clínica na Linha de ídas linhas de cuidado que têm sua ços coletivos de planejamento, ne- Cuidado efetividade. gociação e gestão. Os sindicatos e espaços de representação têm um A clínica, expressa na Linha de IHU On-Line – Como avalia a papel importante neste aspecto. Cuidado, é uma clínica de suporte legislação trabalhista brasilei- Alguns sindicatos possuem acom- e acompanhamento que pressupõe ra acerca da proteção de saúde panhamento jurídico, médico e a criação de vínculo e confiança mental do trabalhador? E como psicológico, e este tem sido o único entre usuário e profissional da saú- Sistema Único de Saúde – SUS e espaço de acolhimento para alguns Previdência Social vêm desempe- trabalhadores. nhando esse papel de acolhida/ proteção ao trabalhador que tem Alternativas sua saúde mental ameaçada?

Nesse sentido, coloco como su- Com modelos de Carla Garcia Bottega – Apesar de gestão da minha tese para compo- gestão tão coer- saber e reconhecer o esforço de sição no Sistema Único de Saúde – pesquisadores e clínicos do traba- SUS a construção de uma Linha de citivos e puniti- lho na construção de conhecimen- Cuidado em Saúde Mental do Tra- vos, os espaços to nesta área, há necessidade de balhador que possa pensar ações propor novas possibilidades e de de cuidado entre os profissionais, de reunião e en- sistematizar o que já vem sendo usuários e serviços que priorizem o realizado no campo da saúde men- momento de vida do usuário e pos- contro se reduzi- tal. Entendo que ocorreram avan- sam ser resolutivas visando à pro- ram à passagem ços importantes nos últimos anos moção de saúde. A partir da escuta no desenvolvimento do campo da atenta, enquanto tecnologia leve, de informa- saúde mental do trabalhador, prin- o acolhimento no serviço e a pos- ção, cobran- cipalmente com a compreensão sibilidade de cuidado integral ao proposta pela Clínica Psicodinâmi- sujeito em sofrimento podem ga- ças coletivas ca do Trabalho, desenvolvida por rantir qualidade e resolutividade. Dejours3. Por outro lado, é grande a dificuldade para a investigação e 31 É necessário investimento na re- para o acompanhamento dos tra- lação clínica e esse investimento de. Importante ressaltar que, por ser uma clínica que no seu cotidia- balhadores com sofrimento mental precisa ser tanto do usuário quan- relacionado ao trabalho. to do profissional de saúde, assim no traz expressões de sofrimento/ como o serviço de saúde precisa se adoecimento de grande comple- Consideram-se, ainda, as difi- mostrar acolhedor ao atendimen- xidade, é preciso que a equipe e culdades no estabelecimento do to. Aquele que busca atendimento outros serviços deem suporte na nexo com o trabalho e no diag- está fragilizado em sua condição discussão da operacionalidade dos nóstico de adoecimento psíqui- de “ser” e busca estabelecer mini- casos e como apoio aos profissio- co relacionado ao trabalho, pois mamente um estado anterior ao da nais que fazem o atendimento. mesmo que este tipo de adoeci- doença. Mas, para isso, é preciso Essa clínica pode ser tanto em mento apresente alta prevalência que os profissionais da saúde inclu- caráter individual, inicialmente, entre os agravos que acometem a am na entrevista inicial dos usuá- quanto de forma coletiva, na me- população de trabalhadores, sua rios a questão do trabalho. Um sim- dida em que os grupos oferecem identificação, diagnóstico e regis- ples questionamento voltado para importante suporte para os parti- tro frequentemente deixam de ser a atividade de trabalho realizada cipantes que reconhecem nos pa- realizados pela rede de serviços pode abrir caminhos diversos da- res situações semelhantes às suas. de saúde pública e privada. Apesar queles em que fosse apenas inves- O grupo resgata o caráter coletivo da ampliação multidisciplinar nos atendimentos do SUS, na maio- tigada a sintomatologia manifesta. que não se encontra nos espaços de ria das vezes os profissionais não Por isso na Linha de Cuidado são trabalho. construídos e pactuados, com os As linhas de cuidado estão pre- 3 Christophe Dejours: psicanalista e psi- envolvidos, movimentos para ações quiatra, professor de Psicologia no Conser- que sejam mais resolutivas acom- sentes na legislação recente, em vatoire national des arts et métiers. Ele é au- panhadas com a responsabilização saúde do trabalhador, mas apenas tor de diversos livros, dos quais destacamos Souffrance en France: la banalisation de da equipe e serviço. Isso pode ser em diretrizes amplas, sem desen- l’injustice sociale (Paris: Seuil, 1998); Tra- expresso em um projeto terapêuti- volvimento. Em outras políticas de vail, usure mental. Essay de psycopathologie co que coletivamente traçado pode saúde, como a de saúde mental, da du travail (Paris: Bayard, 2000). De Christo- phe Dejours publicamos uma entrevista so- vir a ser dinâmico e flexível o sufi- mulher, da criança e do adolescen- bre esse livro, na 15ª edição, de 29 de abril de ciente às situações apresentadas. te, por exemplo, já foram constitu- 2002. (Nota da IHU On-Line)

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conseguem estabelecer a relação laudos/atestados e a fala do traba- tivos de discussão, em pesquisas e entre saúde mental e trabalho, lhador. A desconfiança sentida nas intervenções, a pedido dos traba- já que carecem de ferramentas avaliações periciais, além da mara- lhadores e de algumas instituições orientadoras para investigação e tona para atendimentos e compro- tem modificado a realidade do tra- atendimentos. vação do adoecimento, deixa cada balho. Os passos dados ainda são curtos e pequenos, pelo cuidado A Política Nacional da Saúde do vez mais fragilizado o trabalhador necessário para com os trabalha- Trabalhador e da Trabalhadora re- que já está em sofrimento. dores e em relação às modulações centemente regulamentada (Por- provenientes da organização do taria Nº 1.823, de 23 de agosto de SUS trabalho. 2012), conforme determinação do Ministério da Saúde deve ser arti- Quanto às vivências de atendi- É preciso atenção e constante culada à Política e ao Plano Nacio- mento na rede de serviços do SUS, atualização com o que acontece nal de Segurança e Saúde do Traba- as situações são variadas. Daqueles no cotidiano da vida, no real do lhador – PNSST, em todo o âmbito que buscaram atendimento psico- trabalho, pois o sofrimento no tra- do SUS, além do Ministério do Tra- terápico em Centros de Atenção balho tem levado as pessoas à re- balho e Emprego e da Previdência Psicossocial – Caps ou encaminha- tração, ao silenciamento, e se não Social. Busca desconstruir que o mento via Unidade Básica de Saúde há espaço para a fala, significa que processo de adoecimento seja res- – UBS disseram não ter conseguido também não há espaço para a es- ponsabilidade do trabalhador e não ou se sentido acolhidos. Também cuta. O que facilmente se lê como dos modelos de desenvolvimento é importante registrar que alguns, “descomprometimento ou desmo- e/ou processos produtivos, o que por estarem em momento de extre- bilização” no trabalho tem sido pode ser verificado no acréscimo consequência do silenciamento dos do princípio da precaução, além trabalhadores sobre o seu próprio dos princípios gerais do SUS. Tam- trabalho. bém reforça ações já existentes Na medida em que não há espa- desenvolvidas em muitos municí- O individualis- ço para uma construção do sen- pios, compreendendo a necessi- 32 mo e a competi- tido do sofrimento, nas relações dade da articulação intersetorial sociais, surge o desânimo, a de- e das atribuições nas três esferas ção no trabalho cepção e, até mesmo, o desespe- de governo: federal, estadual e são saídas para ro. Trabalhadores e trabalhadoras, municipal. apesar de doentes, não querem se esse sujeito que afastar de seus postos de trabalho Desafios à política silencia e não pelo medo da substituição ime- diata por outro profissional e pelo Há uma busca de articulação de divide as adver- estigma que ainda permanece em diversas ações em saúde do tra- relação ao adoecimento mental. balhador, mas a política enquanto sidades vividas Mesmo doentes, as pessoas tra- tal é ainda muito recente. Não se balham. E esta questão na lenti- tem serviços que atendam especi- ma fragilidade, ou mesmo pela fal- dão dos encaminhamentos, dos ficamente à saúde mental dos que ta de entendimento do que estão atendimentos, na passagem por estão em sofrimento e adoecimen- vivenciando, sequer conseguiram diversos profissionais, ou mesmo a to psíquico pelo trabalho, a não ser buscar algum tipo mais específico espera por uma solução, debilita em algumas ações desenvolvidas de atendimento em saúde mental. ainda mais este trabalhador que pelos Centros de Referência em continua a sofrer mesmo após ser Saúde do Trabalhador – Cerest. IHU On-Line – Deseja acrescen- afastado. Previdência Social tar algo? Como diz Dejours, as pessoas não Carla Garcia Bottega – Apesar do querem fazer mal suas atividades, No contato que tive com traba- querem fazer um trabalho bem quadro do mundo do trabalho na lhadores e trabalhadoras, a avalia- feito, mas muitas vezes são força- atualidade não ser dos mais anima- ção do serviço prestado pela Pre- das a realizá-lo mal pelas pressões dores, a prática tem demonstrado vidência Social foi uma constante. da organização do trabalho. Tam- que a possibilidade de escuta ao Um aspecto comum a todos que bém porque não querem e mesmo que é vivido no trabalho traz mu- comentaram sobre o serviço é que não podem se sentir descartáveis, danças para a vida dos trabalhado- este precisa ser mais humanizado, como apenas mais uma peça da en- ágil e levar em consideração os res. A promoção de espaços cole- grenagem.

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Tema de Capa DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Zumbi presente

Por Leslie Chaves

Dia 20 de Novembro marca o Dia da Consciência Negra, para os movimentos sociais negros desde meados da década de 1970, mas para o calendário oficial brasileiro a partir de 10 de novembro de 2011, quando foi promul- gada a Lei 12.519/20111. Além de ser um importante elemento de construção da identidade dos afro-brasileiros, a data é um momento para rememorar as conquistas, reconhecer os avanços e refletir sobre os desafios e obstá- culos ainda a superar na busca da construção de uma sociedade mais equânime.

Da ideia de cidadania concedida à cidadania conquistada. Esse é o deslocamento que se propôs na transferên- cia desse momento de mobilização de 13 de Maio para 20 de Novembro. O dia 13 de Maio de 1888 é a data em que foi abolida a escravidão no Brasil, momento que automaticamente evoca a figura da Princesa Isabel assinando a Lei Aurea, documento que oficializou (mas não promoveu) a libertação dos escravizados.

O dia 20 de Novembro de 1695 é a data da morte em combate de Zumbi dos Palmares. Herói negro genuina- mente brasileiro que teve sua trajetória negligenciada durante muito tempo pela historiografia oficial. Foi líder 36 do Quilombo dos Palmares, comunidade formada na Serra da Barriga em Alagoas, que representa um dos mais significativos movimentos de resistência e luta contra a opressão e pela liberdade.

Zumbi nasce com o corpo e o espírito livres da escravidão em um dos diversos quilombos que se espalhavam em Alagoas e pelo país. Com poucos dias de vida ele é levado por tropas militares após um ataque à sua comunidade. Então recém-nascido, Zumbi é entregue a um padre que o batiza com o nome de Francisco, o educa, alfabetiza e ensina-lhe Latim. Considerado muito inteligente pelo padre, o menino torna-se coroinha aos dez anos.

Aos 15 anos de idade Francisco foge para o Quilombo dos Palmares, assume o nome africano Zumbi e passa a lutar por liberdade à frente de um exército formado por negros fugidos, índios e brancos pobres. Em sua trajetó- ria de lutas está Dandara dos Palmares, sua companheira de vida e de combate na defesa do quilombo. Dandara se tornou ícone da força feminina na resistência contra a escravidão, representando a importância do papel das mulheres na história.

Após décadas de combates e vitórias, o Quilombo dos Palmares foi aniquilado pelo forte armamento de fogo e grande contingente militar no último confronto, e em 20 de novembro de 1695 Zumbi foi morto lutando.

Foram atribuídos diversos significados ao nome do líder de Palmares, mas um desses sentidos em especial pode traduzir o significado da militância dos movimentos sociais negros ao longo da construção do país:

Zumbi: aquele que nunca morre.

O espírito de Zumbi permanece vivo no anseio e nas lutas por um Brasil mais equânime e que reconheça a própria origem e história.

1 Lei 12.519/2011: Lei sancionada em 10-11-2011 pela presidente Dilma Rousseff, que institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser comemorado, anualmente, no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares. Disponível em http://bit.ly/1yhWZKT. (Nota da IHU On-Line)

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Origens do 20 de Novembro: Grupo Palmares e sua estratégia subversiva Para Deivison Campos, a reivindicação de novos lugares sociais para os afro-brasileiros a partir da herança cultural e identitária negra foi a principal tática de insurgência do grupo

Por Leslie Chaves

m busca de suas raízes identitá- caráter subversivo de atuação do grupo, rias e geográficas, em 1971 um segundo o pesquisador. “A subversão Egrupo de jovens negros se reúne pode ser observada nas proposições de para formar o Grupo Palmares, mobiliza- transformação de atuação e sociais do ção considerada um dos marcos da cons- grupo e nas estratégias utilizadas para tituição dos movimentos sociais negros isso. As referências de origem, coletivi- modernos e do processo de reorganiza- dade, resistência e movimento vão cons- ção dessas mobilizações depois do Golpe tituir os princípios para a construção Militar no Brasil. De acordo com o pes- de uma identidade afro-referenciada. quisador Deivison Campos, o sentimen- Esses elementos vão balizar não só essa to diaspórico dos integrantes provocado identidade, mas as ações do movimento pela perda de seu espaço foi o contexto social a partir de então. Nacionalizado 37 inicial dessa mobilização. “A desconsti- como Dia da Consciência Negra, a partir tuição dos territórios negros tradicionais de 1978, com a criação do Movimento de Porto Alegre, Colônia Africana e Ilho- Negro Unificado, tornou-se referência ta principalmente, e o deslocamento da para as principais manifestações popula- população para regiões mais periféricas res contra o racismo a partir de então”, da cidade nos anos 1960, que costumo ressalta. chamar de pequena diáspora, criou as Deivison Campos é graduado em Jor- condições para o surgimento do grupo. A nalismo pela Universidade do Vale do consequência mais direta foi que o senti- Rio dos Sinos – Unisinos, especialista em do de pertencimento perdeu sua relação História Contemporânea pela Faculdade espacial. Tendo se tornado essencial- Porto-Alegrense – Fapa, mestre em His- mente simbólico, demandou a constru- tória Social pela Pontifícia Universidade ção de um discurso identitário”, expli- Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS ca, em entrevista concedida por e-mail e doutor em Ciências da Comunicação à IHU On-Line. pela Unisinos. Atualmente, é professor O legado deixado pelo Grupo Palmares e coordenador do curso de Jornalismo para a trajetória de lutas dos movimen- e integrante da coordenação do Núcleo tos sociais negros e para a construção de Estudos Afro-brasileiro e Indígena – da identidade brasileira e dos afrodes- Neabi da Universidade Luterana do Bra- cendentes é evidenciado na proposição sil – Ulbra. Também é líder da área de do Dia da Consciência Negra. Segundo Comunicação, Linguagens e Mídias da Campos, o grupo adota a data da morte Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN, e membro convidado da de Zumbi, 20 de Novembro, como forma Comissão de Direitos Humanos Sobral de valorizar cultural, histórica e politi- Pinto, da Ordem dos Advogados do Brasil camente o papel dos afro-brasileiros na – OAB/RS, para atuar na Subcomissão da sociedade. Os referenciais negros são os Verdade Sobre a Escravidão Negra. que balizam as lutas por melhores espa- ços na sociedade. Ação que evidencia o Confira a entrevista.

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IHU On-Line – De que maneira e movimento Black2, principalmente atividades culturais, a proposta com que proposta é construído o no Rio, traduzindo movimentos ne- do 20 foi nacionalizada a partir de Grupo Palmares? Como foi articu- gros de África, Consciência Negra, 1973 e adotada em 1978, pelo Mo- lado em plena vigência do regime e da Diáspora, Black Power, princi- vimento Negro Unificado, em sua militar no país? palmente. Também possibilitará a institucionalização, como o Dia da construção de uma agenda política Consciência Negra. Deivison Campos – A desconsti- para o movimento social a partir de tuição dos territórios negros tra- então, a substituição de uma nar- dicionais de Porto Alegre, Colônia IHU On-Line – Como a proposta rativa de liberdade concedida para Africana e Ilhota principalmente, e do Grupo Palmares foi recebida a de uma liberdade conquistada. o deslocamento da população para no país naquela época? A evocação à Palmares, proposta regiões mais periféricas da cidade pelo grupo para ocorrer em 20 de Deivison Campos – O surgimento nos anos 1960, que costumo cha- novembro, denominado então Dia da proposta está ligado ao acesso mar de pequena diáspora, criou do Negro, foi confundida em sua de um maior número de jovens as condições para o surgimento do primeira edição, 1971, com uma negros, mesmo que proporcio- grupo. A consequência mais direta peça de teatro. Por isso, foram nalmente insignificante, no mer- foi que o sentido de pertencimen- chamados à Polícia Federal para cado de trabalho com formação to perdeu sua relação espacial. prestar esclarecimentos. Usando superior. A falta de oportunidades Tendo se tornado essencialmente a estratégia sincrética, através de leva à discussão sobre o lugar do simbólico, demandou a construção negro na sociedade brasileira até de um discurso identitário. Esse então silenciada pelo mito da de- discurso vai ser construído por um mocracia racial. O branqueamento dos grupos de jovens negros que se social, fortalecido pela ideia de reuniam no Centro da cidade, tor- mestiçagem, não mais atendia as nado um território transitório por O grupo de jo- demandas dos grupos letrados – ca- onde muitos passavam a caminho tegoria de Clóvis Moura3. Trata-se, de casa na volta do trabalho. Esses vens negros portanto de um projeto potente de encontros possibilitaram que ideias adota a data da desnaturalização do lugar social fossem fomentadas e circulassem ocupado historicamente pelo negro entre aqueles grupos. morte de Zum- no Brasil, mas inicialmente restrito 38 O questionamento ao 13 de Maio em seu alcance. Certamente, com como um dia a ser comemorado foi bi, 20 de No- os fluxos do que Gilroy4 chama de o motivador da formação de um vembro, e vai esfera pública alternativa, negros grupo de estudos para a proposi- de outras cidades e estados tinham ção de uma outra data. A figura de ressignificar o alguma informação sobre o que es- Zumbi vinha sendo utilizada, desde seu uso em 1971 tava acontecendo em Porto Alegre. a década de 1920, como símbolo de As reportagens publicadas no Liberdade por grupos de esquerda. Jornal do Brasil em maio de 1973 Esse uso tornou-se corrente no pe- e novembro de 1974 foram deter- ríodo ditatorial, como na peça tea- 2 Movimento Black Rio: surgido nos anos 1970, foi uma espécie de resposta a uma minantes para a nacionalização e 1 tral Arena, Conta Zumbi , de 1967. época de contestação, de luta por direitos o aumento da repercussão da pro- O grupo de jovens negros adota humanos, de uma procura involuntária por posta. A repercussão social se dará a data da morte de Zumbi, 20 de uma identidade negra universal, com base no que os negros americanos reivindicavam efetivamente com a Marcha dos Novembro, e vai ressignificar o seu e que os africanos recém-libertos do domínio 300 anos de Zumbi em 1995, 24 uso em 1971. Inicialmente, o grupo colonial europeu se permitiam fazer em sua anos depois da evocação. É possí- adota estratégias culturais de valo- terra, após séculos de diáspora para Améri- vel dizer, no entanto, que os órgãos ca e a própria Europa. O gênero que fundia a rização de indivíduos negros mar- 5 soul music ao samba ganhava uma projeção do Regime Militar mantiveram, ginalizados pela história oficial. inédita e transbordava e importava ideias: os Torna-se, no entanto, um símbolo artistas burilavam suas canções, enquanto os 3 Clóvis Moura [Clóvis Steiger de Assis de resistência e coletividade, ori- adeptos em geral se espelhavam na luta pelos Moura] (1925-2003): Sociólogo, jornalista e gem do nome Palmares. A propos- direitos civis nos Estados Unidos para com- historiador brasileiro. Foi militante do Parti- bater o preconceito racial. Os artistas negros do Comunista Brasileiro e um dos pioneiros ta torna-se o fato político que vai tornaram-se subversivos por exibir orgulho da defesa do movimento negro brasileiro. potencializar o discurso identitário de sua cultura e cor. Não pretendiam, ne- (Nota da IHU On-Line) que vinha sendo fomentado pelo cessariamente, se vincular à luta armada ou, 4 Paul Gilroy (1956): sociólogo inglês, re- apesar da importação de valores, aos Pante- nomado pesquisador das culturas negras ras Negras. A musicalidade era o ponto de diaspóricas. Entre outras publicações, uma 1 Arena Conta Zumbi: é um espetáculo convergência daquela geração e a influência de suas principais obras é O Atlântico Ne- teatral que aborda a luta dos quilombolas de estrangeira surgiu como uma opção à MPB, gro: Modernidade e dupla consciência. Palmares. O musical foi escrito por Gianfran- que não oferecia canais para ela se expressar. (São Paulo: Editora 34, 2001) (Nota da IHU cesco Guarnieri e em 1965, com Entretanto, com o período ditatorial a ação On-Line) música de , direção de Augusto Boal repressiva surtiu efeito neutralizador e o ím- 5 Regime Militar: Movimento deflagrado e direção musical de Carlos Castilho. (Nota da peto e a atitude original se esvaíram. (Nota da em 1º de abril de 1964. Os militares brasilei- IHU On-Line) IHU On-Line) ros, apoiados pela pressão internacional an-

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conforme documentos, o acompa- lidade de radicalização dos negros me, apesar de receberem muitos nhamento permanente da atuação brasileiros pelo fato de, segundo “avisos”. A valorização de negros dos diferentes grupos negros pelo ele, o país sempre ter mantido a marginalizados pela história e de temor do surgimento de organi- harmonia entre as raças. Entre os práticas e manifestações culturais zações como os Panteras Negras6. negros organizados, há articula- de matriz afro num primeiro mo- Essa perspectiva não se restringia ções importantes em São Paulo, mento facilitou a atuação do gru- aos militares. Campinas, Rio de Janeiro e . po. O uso do desejo de setores da O 20 de Novembro vai ser o fato imprensa de falar em liberdade, a Na edição de 19 de novembro imagem de Zumbi tinha este apelo, de 1971 do Correio do Povo, lê-se também foi uma estratégia impor- a primeira evocação midiática ao tante de interlocução com outros 20 de Novembro e, ao mesmo tem- grupos. po, uma repercussão com Gilberto Freyre7, que descartava a possibi- O desenvolvimento da atuação, Trata-se de um coincidindo com o processo de ticomunista liderada e financiada pelos EUA, projeto poten- abertura, vai aprofundar e ampliar desencadearam a Operação Brother Sam, que a pauta de atuação e reivindica- garantiu a execução do Golpe, que destituiu do poder o presidente João Goulart, o Jango. te de desnatu- ções socioeconômicas do Palmares. Em seu lugar os militares assumem o poder. Mesmo sem a possibilidade de uma Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar ralização do interlocução com grupos interna- o IHU publicou o 4º número dos Cadernos cionais e as restrições de diálogo IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. lugar social A memória do regime militar. Confira, tam- com as nacionais, Maria Paula Nas- bém, as edições nº 96 da IHU On-Line, inti- ocupado histo- cimento Araújo mostra numa pes- tulada O regime militar: a economia, a igreja, quisa – publicada no livro A utopia a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de ricamente pelo 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964 – fragmentada: as novas esquerdas 2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota negro no Brasil no Brasil e no mundo na década de da IHU On-Line) 1970 (Rio de Janeiro: FGV, 2001), 6 Panteras Negras (em inglês, Black Pan- como a ação do grupo está ligada ther Party ou BPP): originalmente deno- aos movimentos pela diferença da minado Partido Pantera Negra para Auto- político para a construção de um -defesa (em inglês, Black Panther Party for chamada Nova Esquerda que sur- novo discurso de identidade, apro- Self-Defense) foi uma organização política gem com o esvaziamento do proje- 39 extraparlamentar socialista revolucionária veitando as estratégias de auto- to da grande revolução comunista, norte-americana e ligada ao nacionalismo ne- estima dos movimentos musicais após as denúncias contra Stalin8 gro. Fundada em 1966, na cidade de Oakland, Black, que começaram pelo Rio, Califórnia, por Huey Newton, Bobby Seale, a nos anos 1960. Os grupos negros mas expandiram-se para diversos organização permaneceu ativa nos Estados nacionais, articulados em torno da Unidos até 1982. A finalidade original da or- estados. ganização era patrulhar guetos negros para cultura, acabam por assumir o fato proteger os residentes dos atos de brutali- político oferecido pelo Palmares. dade da polícia. Posteriormente, os Panteras IHU On-Line – Como o Grupo Pal- O 20 de Novembro vai significar a Negras tornaram-se um grupo revolucionário mares se posicionava no cenário marxista que defendia o armamento de todos substituição de uma concepção de os negros, a isenção dos negros de pagamento dos movimentos sociais negros no liberdade concedida, portanto de de impostos e de todas as sanções da chama- Brasil em um período de arrefeci- da “América Branca”, a libertação de todos os mento da militância no contexto negros da cadeia e o pagamento de indeniza- da ditadura? ções aos negros por “séculos de exploração 8 Josef Stalin (1878-1953): ditador sovié- branca”. A ala mais radical do movimento de- Deivison Campos – O Grupo Pal- tico, líder máximo da URSS de 1924 a 1953 fendia a luta armada. Em seu pico, nos anos e responsável pela condução de uma política de 1960, o número de membros dos Panteras mares é o marco da constituição do nomeada como stalinismo. Chegou a estudar Negras excedeu 2 mil, e a organização coor- chamado Movimento Negro Moder- em um colégio religioso de Tbilisi, capital denou sedes nas principais cidades. (Nota da no e do processo de reorganização georgiana, para satisfazer os anseios de sua IHU On-Line) do movimento social depois do Gol- mãe, que queria vê-lo seminarista. Mas logo 7 Gilberto Freyre (1900-1987): escritor, acabou enveredando pelas atividades revo- professor, conferencista e deputado federal. pe Militar. Essa proeminência se dá lucionárias contra o regime czarista. Passou Colaborou em revistas e jornais brasileiros. pelo fato de o grupo ter surgido em anos na prisão e, quando libertado, aliou-se a Foi professor convidado da Universidade de 1971, com uma proposta que con- Vladimir Lenin e outros camaradas, que pla- Stanford (EUA). Recebeu vários prêmios por nejavam a Revolução Russa. Stalin ocupou o sua obra, entre os quais, em 1967, o prêmio fronta questões estruturais, como posto de Secretário-geral do Partido Comu- Aspen, do Instituto Aspen de Estudos Hu- o lugar do negro na sociedade, e nista da União Soviética entre 1922 e 1953 manísticos (EUA) e o Prêmio Internacional conjunturais, como o discurso uni- e, por conseguinte, o de chefe de Estado da La Madoninna, em 1969. Entre seus livros, ficador de identidade dos militares, URSS durante cerca de um quarto de século. citamos: Casa grande & Senzala e Sobrados Sobre Stalin, confira a entrevista concedida e Mocambos. Sobre Freyre, confira o Cader- num período de repressão violenta pelo historiador brasileiro Ângelo Segrillo à nos IHU nº 6, de 2004, intitulado Gilberto e desarticulação de qualquer tipo edição 265 da IHU On-Line, Nazismo: a le- Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado. Gêne- de associação. O viés culturalista gitimação da irracionalidade e da barbárie, se e Dissolução do Patriarcalismo Escravista adotado pelo grupo e a opção por analisando a obra Prezado Sr. Stalin (Rio de no Brasil. Algumas Considerações, disponí- Janeiro: Zahar, 2008), de autoria de Susan vel em http://bit.ly/cadihu06. (Nota da IHU atuar na esfera legal possível evi- Butler, disponível em http://bit.ly/1j3t54H. On-Line) tou a perseguição direta pelo regi- (Nota da IHU On-Line)

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subalternidade, por uma postura Deivison Campos – As relações priedade dessas elites econômicas. de liberdade conquistada. raciais no Brasil são, até a atua- O grupo aproveitou a disposição de lidade, pautadas pela negação do se falar em liberdade para pautar a IHU On-Line – Existem pontos racismo como constituinte da cul- questão étnico-racial. O abandono que diferenciam o Grupo Palma- tura e mesmo do projeto de Na- do 13 de Maio, Dia das Raças, pelo res de outros movimentos daque- ção brasileira. A denúncia dessa 20 de Novembro, inicialmente Dia la época e de hoje? Quais? De que situação foi pauta permanente dos do Negro e depois Dia da Consciên- maneira? grupos anteriores que encontra- cia Negra, também afronta lógicas ram na aproximação com a cultura impostas pela história oficial. Deivison Campos – O surgimento euro-brasileira a estratégia de in- A subversão apontada, portanto, do Palmares coincide com a desar- serção social. Palmares representa pode ser observada nas proposi- ticulação total dos movimentos so- a negação dessa estratégia e a ne- ções de transformação de atuação ciais pela perseguição e confronto gociação do acesso a novos lugares 9 e sociais do grupo e nas estratégias desencadeados pelo AI-5 e a op- sociais a partir de uma identidade utilizadas para isso. As referências ção pela luta armada por alguns negra, portanto subverte o que de origem, coletividade, resistên- setores da resistência ao regime. está posto em termos de socializa- cia e movimento vão constituir os As principais diferenças, portan- ção. Essa valorização da diversida- princípios para a construção de to, relacionam-se com a opção em de, por outro lado, vai de encontro uma identidade afro-referenciada. manter-se dentro da esfera legal ao discurso unificador de identida- Esses elementos vão balizar não de atuação, propor o reconheci- de e cultura brasileira, defendido só essa identidade, mas as ações mento da diversidade e denunciar pelo Regime Militar. As denúncias do movimento social a partir de a diferença racial constituinte da de diferenças de oportunidades e então. Nacionalizado como Dia sociedade brasileira e, ainda, tra- marginalização socioeconômica da Consciência Negra, a partir de tar-se de uma proposta de constru- também confrontam a imagem do 1978, com a criação do Movimento ção de identidade de uma imensa país em pleno desenvolvimento – Negro Unificado, tornou-se refe- parcela da população marginaliza- Milagre Econômico10, propagado no rência para as principais manifes- da. Ao mesmo tempo, a demanda período. A principal subversão pro- tações populares contra o racismo apresentada pelo grupo propõe posta encontra-se, no entanto, na a partir de então. reformulações profundas na orga- transformação do modelo de socie- nização social, considerando que dade. Produzida a partir do perío- 40 a desigualdade racial foi silenciada do republicano, manteve os privi- IHU On-Line – A proposta do a fim de manter os privilégios da légios de uma elite branca e que se Grupo Palmares dialogava com os população branca. A ideia da valo- viu não somente denunciada, mas movimentos sociais negros inter- rização da cultura e da história dos questionada inicialmente pelo Gru- nacionais? De que maneira? negros no Brasil como estratégia de po Palmares, seguido de diferentes Deivison Campos – Esse diálogo atuação está na base dos documen- grupos durante os anos 70. Os prin- se deu mais a partir de rastros do tos e atuação do grupo. cipais documentos do Palmares es- que por um diálogo efetivo. Lu- tão publicados em jornais, de pro- ther King11, cujas ideias circulavam IHU On-Line – Em sua pesquisa principalmente através de revistas, você aponta que o Grupo Palma- 10Milagre econômico brasileiro: é a pregava a resistência pacífica e na res subverteu a esfera política e denominação dada à época de excepcional esfera legal, por exemplo, o que se social. De que maneira se dá essa crescimento econômico durante o Regime aproxima das premissas do grupo. Militar no Brasil, entre 1968 e 1973, também subversão? Que papel ela desem- 12 conhecido pelos oposicionistas como “anos Ângela Davis foi uma referência penha na construção da identi- de chumbo”. Nesse período do desenvolvi- dade étnica negra e nas lutas dos mento brasileiro, a taxa de crescimento do 11 Martin Luther King (1929-1968): pas- movimentos sociais negros? PIB saltou de 9,8% a.a. em 1968 para 14% a.a tor e ativista político estadunidense. Perten- em 1973, e a inflação passou de 19,46% em cente à Igreja Batista, tornou-se um dos mais 1968, para 34,55% em 1974. Paradoxalmente, importantes líderes do ativismo pelos direitos houve aumento da concentração de renda e civis (para negros e mulheres, principalmen- 9 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): de- da pobreza. Durante o milagre instaurou-se te) nos Estados Unidos e no mundo, através cretado pelo general Arthur da Costa e Silva, um pensamento ufanista de “Brasil potên- de uma campanha de não-violência e de amor que ocupava a cadeira de presidente, em 13 cia”, que se evidenciou com a conquista da para com o próximo. É a pessoa mais jovem a de dezembro de 1968, foi um instrumento terceira Copa do Mundo em 1970 no México, receber o Prêmio Nobel da Paz, o que ocor- de poder que deu ao regime militar poderes quando se criou o mote: “Brasil, ame-o ou reu em 1964, pouco antes de seu assassinato. políticos absolutos. A primeira consequência deixe-o”. Durante o milagre, a alta nas bolsas (Nota da IHU On-Line) do AI-5 foi o fechamento por quase um ano de valores brasileiras iniciada ao final da dé- 12 Angela Davis (1944): é uma professora do Congresso Nacional. O ato representou o cada de 1960 resultou em um clima de euforia e filósofa socialista estado-unidense que- al ápice da radicalização do regime de exceção generalizada – incentivado por canções como cançou notoriedade mundial na década de e inaugurou o período em que as liberdades Pra frente Brasil –, apelidado pelo autor Elio 1970 como integrante do Partido Comunista individuais foram mais restringidas e des- Gaspari de “patriotada”. Segundo Reinaldo dos Estados Unidos, dos Panteras Negras, respeitadas, constituindo-se em movimento Gonçalves, professor da UERJ e economis- por sua militância pelos direitos das mulhe- final de “legalização” da arbitrariedade que ta, o período do milagre econômico foi o que res e contra a discriminação social e racial pavimentou uma escalada de torturas e as- gerou maior crescimento econômico desde nos Estados Unidos e por ser personagem sassinatos contra opositores reais e imaginá- a Proclamação da República. (Nota da IHU de um dos mais polêmicos e famosos julga- rios ao regime. (Nota da IHU On-Line) On-Line) mentos criminais da recente história dos

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importante, pois o nome é recor- te, das guerras de descolonização se refere à identidade, além do rente nas falas dos antigos parti- da África, a efetivação do Black branqueamento como única estra- cipantes do Palmares. Com ela, o Power. Todos esses elementos sub- tégia de promoção social, o perí- estilo e propostas do movimento sidiaram as discussões, ações e odo significado pelo 13 manteve a Black Power13 foram traduzidos pe- documentos produzidos pelo Pal- maioria da população em situação los jovens negros. Esse processo já mares. No entanto não havia fluxos de subalternidade e negação. O re- vinha acontecendo pelo movimen- formais devido às restrições tecno- conhecimento da história de resis- to musical Black. Nas festas, os lógicas e ao contexto repressor do tência negra ao processo escravista DJs usavam o microfone para falar período. e de marginalização levou à adoção mensagens de autoestima, o Black de novos referenciais de identida- 14 is Beautiful . Por outro lado, ha- IHU On-Line – O que representa de. A ressignificação da palavra ne- via informações sobre as linhas do para a sociedade em geral, para a gro, em detrimento da expressão a 15 pan-africanismo e, principalmen- militância e construção da identi- pessoa de cor, simboliza essa nova dade étnica negra o deslocamen- postura. Quanto ao movimento ne- Estados Unidos. Na década de 1960, Angela to da ideia do “13 de Maio” para gro, criou o fato político que se im- tornou-se militante do partido e participan- o “20 de Novembro” como data põe como referência para todas as te ativa dos movimentos negros e feministas evocativa das lutas dos movimen- ações e discursos. que sacudiam a sociedade norte-americana da época, primeiro como filiada da SNCC de tos sociais negros? Stokely Carmichael e depois de movimentos e IHU On-Line – O que represen- Deivison Campos – Florestan organizações políticas como o Black Power e ta a figura de Oliveira Silveira no Fernandes16 apontou nos anos 1950 os Panteras Negras. (Nota da IHU On-Line) Grupo Palmares? E para o contex- 13 Black Power (em português: Poder ne- que os movimentos negros deve- to das lutas dos movimentos so- gro): foi um movimento entre pessoas ne- riam atualizar as relações raciais gras no mundo ocidental, especialmente nos ciais negros? Estados Unidos. Mais proeminente no final do Brasil e principalmente fazer dos anos 1960 e início dos anos 1970, o mo- com que a sociedade assuma inte- Deivison Campos – Oliveira Sil- vimento enfatizou o orgulho racial, racismo e gralmente o regime democrático. veira foi a continuidade, o fio da criação de instituições culturais e políticas negras para cultivar e promover interesses Ao desencadear a construção de condutor do Palmares. Ele esteve coletivos, valores antecipadamente, e segura uma identidade negra e uma agen- no quarteto que criou o grupo e autonomia para os negros. A expressão “Bla- da política, essa mudança efetivou manteve-se até sua extinção em ck Power” foi criada por Stokely Carmichael, uma atualização do debate. Por 78 e na tentativa de reorganização militante radical do movimento negro nos Estados Unidos, após sua vigésima sétima outro lado, a adoção da postura nos anos 80. Através dos livros, que 41 detenção em 1966. “Estamos gritando liber- resistente provoca um permanente lhe revelaram a Negritude e a lite- dade há seis anos. O que vamos começar a tensionamento dos lugares sociais ratura feita na África, resgatou e dizer agora é poder preto”, anunciou. (Nota da IHU On-Line) e exigências por oportunidades. ressignificou a experiência Palma- 14 Black is Beautiful: é um movimento cul- A Marcha dos 300 anos de Zum- rina. Costumava dizer que o grupo tural que foi iniciado no Estados Unidos na bi, diretamente influenciada por buscava uma valorização da cole- década de 1960 por afro-americanos e mais esse deslocamento, desencadeou tividade e, por isso, optaram pelo tarde se espalhou pelo mundo através dos es- critos do Movimento da Consciência Negra, o processo de reconhecimento ofi- nome do quilombo e não de seus lí- de Steve Biko na África do Sul. Esse movi- cial pelo Estado brasileiro da exis- deres e heróis, fugindo da individu- mento teve o objetivo de contrapor a ideia tência do racismo e deu início aos prevalecente na cultura norte-americana que grupos de trabalho que levaram pessoas que apresentam traços físicos típicos Trata-se de medidas que têm como objetivo negros eram menos atraentes ou desejáveis ao estabelecimento de políticas combater discriminações étnicas, raciais, re- do que os brancos. O movimento também específicas e afirmativas17. No que ligiosas, de gênero ou de casta, aumentando incentivou homens e mulheres a parar de a participação de minorias no processo polí- tentar eliminar seus traços africanos, a partir tico, no acesso à educação, saúde, emprego, de alisamento dos cabelos ou por tentativas das línguas e dialetos africanos, proibidos ou bens materiais, redes de proteção social e/ de clarear ou branquear a pele. (Nota da IHU limitados pelos europeus. A teoria pan-afri- ou no reconhecimento cultural. São medidas On-Line) canista foi desenvolvida principalmente pelos que englobam tanto a promoção da igualdade 15 Pan-africanismo: é uma ideologia que africanos na diáspora americana descenden- material e de direitos básicos de cidadania, propõe a união de todos os povos da Áfri- tes de africanos escravizados e pessoas nas- como também formas de valorização étnica ca como forma de potenciar a voz do con- cidas na África a partir de meados do século e cultural. Esses procedimentos podem ser tinente no contexto internacional. Relati- XX como William Edward Burghardt Du de iniciativa e âmbito de aplicação público vamente popular entre as elites africanas Bois e Marcus Mosiah Garvey, entre outros, ou privado, e adotados de forma voluntária ao longo das lutas pela independência da e posteriormente levados para a arena políti- e descentralizada ou por determinação le- segunda metade do século XX, em parte res- ca por africanos como Kwame Nkrumah. No gal. As ações afirmativas no Brasil partem ponsável pelo surgimento da Organização de Brasil foi divulgada amplamente por Abdias do conceito de equidade expresso na cons- Unidade Africana, o pan-africanismo tem Nascimento. (Nota da IHU On-Line) tituição, que significa tratar os desiguais de sido mais defendido fora de África, entre os 16 Florestan Fernandes (1920–1995): so- forma desigual, isto é, oferecer estímulos a descendentes dos africanos escravizados que ciólogo e político brasileiro. Foi duas vezes todos aqueles que não tiveram igualdade de foram levados para as Américas até ao sécu- deputado federal pelo Partido dos Trabalha- oportunidade devido a discriminação e racis- lo XIX e dos emigrantes mais recentes. Eles dores. (Nota da IHU On-Line) mo. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal propunham a unidade política de toda a Áfri- 17 Ações afirmativas: Ações afirmativas (STF) decidiu por unanimidade que as ações ca e o reagrupamento das diferentes etnias, são políticas focais que alocam recursos em afirmativas são constitucionais e políticas divididas pelas imposições dos colonizado- benefício de pessoas pertencentes a grupos essenciais para a redução de desigualdades e res. Valorizavam a realização de cultos aos discriminados e vitimados pela exclusão so- discriminações existentes no Brasil. (Nota da ancestrais e defendiam a ampliação do uso cioeconômica no passado ou no presente. IHU On-Line)

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alidade que se impunha na socie- aprovaram-se até mesmo as ques- Contém em si a proposição do co- dade racista. Por isso, representa o tionadas políticas afirmativas antes nhecimento e valorização da histó- articulador, alguém que conseguiu desse reconhecimento. ria dos povos negros que respaldem congregar pessoas interessadas em uma identidade. A construção des- construir uma sociedade melhor. Originalmente denominado Dia sa data passa pelos protestos orga- Oliveira também foi o narrador do Negro, em 1971, pelos integran- nizados em 1988, 100 anos da Abo- dessa história. Registrou em seus tes do Palmares, a data foi tornada lição, e 1995, 300 anos de Zumbi. livros e em seus arquivos pessoais Dia da Consciência Negra em 1978. não só a trajetória do grupo, mas O conceito de consciência negra A negativa do feriado em Porto de várias outras manifestações cul- foi formulado por Steve Biko19 tam- Alegre deve-se menos à legislação e mais à permanência do entendi- turais negras. Para o movimento bém nos anos 70 na África do Sul, mento de que se vive uma democra- social, pelo fato de ter persistido em meio ao regime de Apartheid20. no Palmares, tornou-se o Griô18 que cia racial e pelo histórico abandono restaurou socialmente uma história 19 Steve Biko – Stephen Bantu Biko (1946- das populações negras pelo poder silenciada. Mais do que viver o Gru- 1977): era um ativista anti-apartheid da Áfri- público. Por outro lado, atende aos ca do Sul na década de 1960 e 1970. Líder es- interesses econômicos principal- po Palmares, viveu Palmares. tudantil, fundou o Movimento da Conciência Negra (Black Consciousness Movement), que mente do comércio que pressiona capacitava e mobilizava grande parte da po- para que não seja aprovado mais IHU On-Line – De que modo você pulação negra urbana. Desde sua morte sob um dia de fechamento. Numa pers- avalia os processos que chegaram custódia da polícia, ele foi chamado de mártir pectiva política, nos últimos anos, até a instituição do “Dia Nacional de um movimento anti-apartheid. Enquanto vivia, seus escritos e ativismo tentou capaci- o poder público tem pulverizado da Consciência Negra”, a partir tar as pessoas negras, e era famoso por seu atividades no dia 20 a fim de que a da lei nº 12.519, de 10 de novem- slogan “black is beautiful”, que o próprio des- marcha, sempre o principal even- bro de 2011? E o fato de não ter creveu como: “você está bem como você é, sido instituído feriado na data em comece a olhar para si mesmo como um ser to das manifestações de protesto, humano”. Mesmo que Biko nunca tenha sido tenha uma concentração menor de Porto Alegre? um membro do Congresso Nacional Africano (ANC), foi incluído no panteão dos heróis de pessoas. É um conjunto de fatores Deivison Campos – A lei signifi- luta, indo tão longe como a utilização de sua que buscam, em última análise, cou somente o reconhecimento de imagem para cartazes de campanha nas pri- manter o status quo e evitar que as uma data estabelecida pelo mo- meiras eleições não-raciais da África do Sul transformações estruturais neces- vimento social negro. Ao mesmo em 1994. (Nota da IHU On-Line) 42 20 Apartheid: palavra em africâner que sárias aconteçam. tempo que se trata de uma das significa “separação”; foi um regime de se- conquistas alcançadas pelo movi- gregação racial adotado de 1948 a 1994 pelos públicos, fornecendo aos negros serviços in- mento social, demonstra a dificul- sucessivos governos do Partido Nacional na feriores aos dos brancos. O apartheid trouxe África do Sul, no qual os direitos da maioria violência e um significativo movimento de dade em se reconhecer a história dos habitantes foram cerceados pelo governo resistência interna, bem como um longo em- da população negra. A aprovação formado pela minoria branca. A segregação bargo comercial contra a África do Sul. Re- aconteceu 40 anos depois de sua racial na África do Sul teve início ainda no formas no regime durante a década de 1980 primeira evocação e 33 anos depois período colonial, mas o apartheid foi intro- não conseguiram conter a crescente oposição, duzido como política oficial após as eleições e em 1990, o presidente Frederik Willem de de sua nacionalização; ou seja, gerais de 1948. A nova legislação dividia Klerk iniciou negociações para acabar com o os habitantes em grupos raciais (“negros”, apartheid, o que culminou com a realização 18 Griô: indivíduo que, numa comunidade “brancos”, “de cor”, e “indianos”), segregan- de eleições multirraciais e democráticas em (p.ex., de âmbito religioso ou folclórico), de- do as áreas residenciais, muitas vezes através 1994, que foram vencidas pelo Congresso tém a memória do grupo e funciona como di- de remoções forçadas. Também havia segre- Nacional Africano, sob a liderança de Nelson fusor de tradições. (Nota da IHU On-Line) gação na saúde, educação e outros serviços Mandela. (Nota da IHU On-Line)

Deivison Campos

Sou pai, marido e cientista. Estudar me deu todas as oportunidades e possibilidades na vida, pois nasci numa comunidade pobre, negra e que desapareceu como um dia foi pela urbanização de Porto Alegre. Busco con- tinuamente tornar-me um ser humano melhor e isso passa por adquirir conhecimento crítico para poder intervir positivamente em questões que me afetam e cercam. O Jornalismo me fornece a visada pela qual olho o mundo. Há décadas, milito por uma sociedade mais justa e humana stricto sensu, com ênfase nas relações étnico-raciais. As pessoas me interessam profundamente, mas prezo as relações francas e espontâneas. Por acredi- tar que se ensina a ser humano pelo exemplo, me entrego e busco fazer o melhor que eu posso em tudo o que me envolvo. Acho que tem importado a quem se interessa que é quem interessa. Meu principal projeto é minha família e tenho investido tudo nisso. As vivências negras também ocupam um lugar importante em minha vida, principalmente os batuques sagrados e profanos. Atualmente, me interessa aprender a viver mais o momento.

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Oliveira Silveira: a face poética da luta O poeta e ativista que foi um dos fundadores do Grupo Palmares é considerado um dos griôs da cultura e história negra

Por Leslie Chaves

riô, aquele sábio que toma para si o papel de preservar e comparti- Glhar com as novas gerações o lega- do histórico e cultural de uma comunidade, é como alguns pesquisadores identificam Oliveira Silveira. Certamente também é uma das principais imagens que vem na mente dos que tomaram contato com a sua produção literária e, principalmente, dos que o conheceram pessoalmente. A aparência doce e o temperamento tranquilo escamoteavam o espírito crítico e combativo que sempre o moveu nas lu- tas contra as desigualdades raciais e pela valorização da cultura afro-brasileira. Infe- lizmente, Oliveira Silveira partiu em 2009, em decorrência de um câncer, mas se man- 43 tém presente na inestimável contribuição dos seus escritos e na sua atuação junto ao Grupo Palmares, do qual foi um dos fun- dadores e continuou levando a diante seus e doutor em Ciências da Comunicação pela objetivos, mesmo depois do término da mo- Unisinos, Deivison Campos realizava encon- bilização em 1978. O Grupo Palmares foi o tros sistemáticos com Oliveira Silveira. As propositor do 20 de Novembro como data conversas faziam parte de sua pesquisa de evocativa do Dia da Consciência Negra no campo para a escritura da dissertação de Brasil. mestrado em História Social, que cursa- Nascido em 1941 na área rural de Rosário va na Pontifícia Universidade Católica do do Sul, cidade do interior do Rio Grande Rio Grande do Sul – PUCRS. Seu objeto de do Sul, Oliveira Silveira era filho de uma estudo foi a atuação do Grupo Palmares. mãe negra e de um pai branco. Poeta com Deivison Campos cedeu à IHU On-Line uma uma relevante produção literária e ati- dessas conversas com Oliveira Silveira. No vista dos movimentos sociais negros, Sil- encontro, realizado em 04-12-2004, o poeta veira graduou-se em Letras – Português e revelou um pouco do olhar de quem viveu o Francês pela Universidade Federal do Rio importante momento de reposicionamento Grande do Sul – UFRGS, lecionando portu- das lutas dos movimentos sociais negros no guês e literatura no ensino médio. Também Brasil. foi conselheiro da Secretaria Nacional de Confira a seguir a entrevista que Olivei- Promoção da Igualdade Racial – Seppir. ra Silveira concedeu a Deivison Campos e Entre 2003 e 2006, o jornalista, professor as impressões do pesquisador sobre este na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA encontro.

Oliveira Silveira já me aguar- Recebeu-me com um sorriso tími- gum documento ou texto sobre o dava no hall de entrada do Hotel do e acolhedor, que considero sua 20 e dessa vez não foi diferente. Evereste no Centro de Porto Alegre marca. Sempre que nos encontrá- Entregou a cópia de um estatuto quando cheguei para entrevista. vamos me passava a cópia de al- que nunca foi aprovado. Era 04 de

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dezembro de 2004 e estávamos no etc. Chegavam informações da e a seguir Black Panters5, Poder hotel para uma atividade ainda re- Europa e Caribe, porque tem mili- Negro6. lativa ao mês da Consciência Negra tantes nestas áreas, como o Negri- 2 3 daquele ano. Aproveitamos uma tude de Césare, lá na França. Dos Deivison Campos – Como essas agenda em comum para mais uma Estados Unidos vinham as ideias informações chegavam, com a entrevista que aconteceu no bar do do movimento negro, notícias re- imprensa censurada, etc., quais 4 térreo do Hotel. ferentes primeiro a Luther King canais de comunicação foram Antes, conversamos um pouco criados para se ter acesso a essas sobre meu encontro com outros ex- ponsável pelo surgimento da Organização de informações? Unidade Africana, o pan-africanismo tem integrantes do grupo. Falou sobre sido mais defendido fora de África, entre os Oliveira Silveira – Essas eram seu interesse pela cultura Angola descendentes dos africanos escravizados que justamente as informações que vi- e seus rastros no estado, além do foram levados para as Américas até ao sécu- lo XIX e dos emigrantes mais recentes. Eles nham pela imprensa, a não ser as trabalho que iniciava com os clubes propunham a unidade política de toda a Áfri- idéias que vinham do socialismo negros. Sua voz era sempre suave e ca e o reagrupamento das diferentes etnias, que já vinham de toda a movimen- falava de forma lenta e em volume divididas pelas imposições dos colonizado- tação marxista-socialista. baixo. Enquanto conversávamos, os res. Valorizavam a realização de cultos aos ancestrais e defendiam a ampliação do uso que chegavam faziam questão de das línguas e dialetos africanos, proibidos ou Deivison Campos – Então havia cumprimentá-lo e trocar algumas limitados pelos europeus. A teoria pan-afri- pouca censura sobre informações palavras, tornando as respostas canista foi desenvolvida principalmente pelos africanos na diáspora americana descenden- que vinham de fora? cada vez mais objetivas para aten- tes de africanos escravizados e pessoas nas- der a todos. cidas na África a partir de meados do século Oliveira Silveira – Não é que não XX como William Edward Burghardt Du houvesse. Seguramente, sim. Mas Os encontros sistemáticos ha- Bois e Marcus Mosiah Garvey, entre outros, o problema maior eram as ideias viam começado um ano antes e e posteriormente levados para a arena políti- socialistas, que já circulavam por seguiriam até 2006. No período, ca por africanos como Kwame Nkrumah. No Brasil foi divulgada amplamente por Abdias realizava minha pesquisa de mes- Nascimento. (Nota da IHU On-Line) trado sobre a reorganização do 2 Negritude (Négritude em francês): 5 Panteras Negras (em inglês, Black Pan- movimento negro depois do golpe corrente literária francesa que agregou es- ther Party ou BPP): originalmente deno- militar, a partir do Grupo Palmares critores negros francófonos e também uma minado Partido Pantera Negra para Auto- ideologia. Os objetivos do movimento Ne- -defesa (em inglês, Black Panther Party for e da evocação ao 20 de novembro. gritude são a valorização da cultura negra Self-Defense) foi uma organização política 44 Depois disso, seguimos realizando em países africanos ou com populações afro- extraparlamentar socialista revolucionária atividades em conjunto. Outras -descendentes expressivas que foram vítimas norte-americana e ligada ao nacionalismo ne- vezes preferia que eu falasse em da opressão colonialista. Considera-se geral- gro. Fundada em 1966, na cidade de Oakland, mente que foi René Maran, autor de Batou- Califórnia, por Huey Newton, Bobby Seale, a seu lugar sobre o Grupo Palmares ala, o precursor da negritude. Todavia, foi organização permaneceu ativa nos Estados e o 20 de Novembro. Oliveira se- Aimé Césaire quem criou o termo em 1935, Unidos até 1982. A finalidade original da or- gue vivo em sua poesia e na luta no número 3 da revista L’étudiant noir (“O ganização era patrulhar guetos negros para estudante negro”). Com o conceito pretendia- proteger os residentes dos atos de brutali- antirracista. -se em primeiro lugar reivindicar a identida- dade da polícia. Posteriormente, os Panteras de negra e sua cultura, perante a cultura fran- Negras tornaram-se um grupo revolucionário cesa dominante e opressora, e que, ademais, marxista que defendia o armamento de todos Deivison Campos – Que tipo de era o instrumento da administração colonial os negros, a isenção dos negros de pagamento informação chegava no Brasil, francesa (Discurso sobre o colonialismo, Ca- de impostos e de todas as sanções da chama- naquele momento, sobre as ques- derno dum retorno ao país natal etc). O con- da “América Branca”, a libertação de todos os tões da Àfrica e a movimentação ceito foi retomado mais adiante por Léopold negros da cadeia e o pagamento de indeniza- Sédar Senghor, que o aprofunda, opondo a ções aos negros por “séculos de exploração dos negros no resto das Améri- razão helênica à emoção negra. (Nota da IHU branca”. A ala mais radical do movimento de- cas? Que tipo de informação em On-Line) fendia a luta armada. Em seu pico, nos anos Porto Alegre se tinha sobre essa 3 Aimé Fernand David Césaire (1913- de 1960, o número de membros dos Panteras movimentação? 2008): foi um poeta, dramaturgo, ensaísta Negras excedeu 2 mil, e a organização coor- e político da negritude. Além de ser um dos denou sedes nas principais cidades. (Nota da Oliveira Silveira – Na década de mais importantes poetas surrealistas do IHU On-Line) mundo, inclusive no dizer do líder deste mo- 6 Black Power (em português: Poder ne- 1970, quando nós começamos o vimento, Breton. Aimé Césaire foi, juntamen- gro): foi um movimento entre pessoas ne- trabalho com o Grupo Palmares, te ao Presidente do Senegal, Léopold Sédar gras no mundo ocidental, especialmente nos havia notícias procedentes da Eu- Senghor, o ideólogo do conceito de negritude, Estados Unidos. Mais proeminente no final ropa sobre socialismo. Da África sendo a sua obra marcada pela defesa de suas dos anos 1960 e início dos anos 1970, o mo- raízes africanas. (Nota da IHU On-Line) vimento enfatizou o orgulho racial, racismo e vinham as ideias da luta pelas in- 4 Martin Luther King (1929-1968): pastor da criação de instituições culturais e políticas dependências, Pan-fricanismo1, e ativista político estadunidense. Pertencente negras para cultivar e promover interesses à Igreja Batista, tornou-se um dos mais im- coletivos, valores antecipadamente, e segura portantes líderes do ativismo pelos direitos autonomia para os negros. A expressão “Bla- 1 Pan-africanismo: é uma ideologia que civis (para negros e mulheres, principalmen- ck Power” foi criada por Stokely Carmichael, propõe a união de todos os povos da Áfri- te) nos Estados Unidos e no mundo, através militante radical do movimento negro nos ca como forma de potenciar a voz do con- de uma campanha de não-violência e de amor Estados Unidos, após sua vigésima sétima tinente no contexto internacional. Relati- para com o próximo. É a pessoa mais jovem a detenção em 1966. “Estamos gritando liber- vamente popular entre as elites africanas receber o Prêmio Nobel da Paz, o que ocor- dade há seis anos. O que vamos começar a ao longo das lutas pela independência da reu em 1964, pouco antes de seu assassinato. dizer agora é poder preto”, anunciou. (Nota segunda metade do século XX, em parte res- (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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aqui e já acompanhávamos há de experiência essas pessoas tra- cional, 1938), que eu tinha em casa muito tempo. Sentíamos algumas ziam e como se unificaram para e não lembrava. O livro transcreve restrições, tanto é que em nosso formar um grupo? documentos da época das campa- trabalho tivemos que recorrer a nhas contra Palmares e aí não tive Oliveira Silveira – Nesse mo- aquelas liberações da censura para dúvida. Como não tínhamos a data mento a gente não sabia determi- determinadas promoções. de nascimento de Zumbi, ou do nadas coisas, como, por exemplo, início de Palmares, nós, por ana- que em São Paulo havia um jornal logia com Tiradentes, adotamos a Deivison Campos – Como essas clandestino, fotocopiado, intitula- data da morte de Zumbi. Então, ideias eram discutidas, traba- do A Árvore das Palavras, que saía o grupo aceitou e até adotou esse lhadas e até que ponto surgiram sem assinatura e caracteriza bem nome, porque foi aí que formaliza- ideias e discussões sobre temas esse período. Aqui em Porto Alegre mos a criação do grupo. Em junho mais locais? o que nós fizemos foram reuniões de 1971 o grupo já fez uma progra- informais. Foi acontecendo ao na- Oliveira Silveira – A partir de mação para aquele ano. Seria uma tural. Aqueles encontros na Rua da 1964, na verdade, todo mundo co- homenagem ao Luís Gama7, isso Praia, naquela área onde negros se meçou a exercer uma autocensura. tudo com a preocupação das datas. encontravam, se reuniam e então No trabalha do grupo sempre tínha- A homenagem para o Luiz Gama formavam alguns grupinhos para mos muito cuidado. Eu lembro que seria no dia 24 de agosto, que era conversas, um desses foi o nosso. nessa época tentamos fazer uma a data da morte, também, porque entidade que não tinha caráter Ali começávamos a falar sobre as a do nascimento já havia passado, político. Era um Centro Rosariense questões negras, surgindo a ques- era 21 de junho. Então marcamos – pessoas vindas de Rosário do Sul – tão do 13 de maio. O grupo não via a homenagem para agosto e depois para ficarmos vinculados à cidade. motivos para comemorar esta data. para o José do Patrocínio8 em 9 de Uma das pessoas que apareceu Um dos componentes era inclusive outubro e, por fim, 20 de Novem- nesse grupo foi com o objetivo de um dos grandes adversários do 13 bro em homenagem a Palmares. fazer grandes alertas sobre a ques- de Maio, chamado Jorge Gonçalves Fizemos o ato vocativo ao 20 de tão da repressão. Coisas que a prin- dos Santos. Com aquilo, surgiu a Novembro, no próprio dia 20, um cipio não preocupavam o grupo. idéia de encontrar outras datas. Foi sábado, no clube Náutico Marcílio Porque não havia nenhuma ação de o trabalho que eu realizei. Estudar Dias. caráter subversivo, mas esse cuida- um pouco mais de História, rever 45 do sempre existiu. Procurávamos a história do Brasil e a história do Deivison Campos – Como foi a fazer coisas que não entrassem em negro. Então, eu cheguei ao 20 de leitura que a imprensa fez dessa choque. Principalmente a partir da novembro. Especialmente através primeira movimentação, parece criação do Grupo Palmares que é de uma publicação da Abril Grande ter tido acompanhamento inte- de 1971. No momento em que nós Personagens da Nossa História, de- ressante das atividades? tentávamos fazer o primeiro ato dicada a Zumbi. Lá estava a histó- de 20 de novembro, foi necessário ria de Palmares e a morte de Zumbi 7 Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830 – pedir uma autorização da censura. em 20 de novembro de 1695. Como 1882): foi um rábula, orador, jornalista e es- era um fascículo, não poderia ser critor brasileiro. Nascido de mãe negra livre e Na época, saiu uma nota na Folha pai branco, foi contudo feito escravo aos 10, da Tarde dizendo Zumbi – A ho- tomado como uma fonte muita se- e permaneceu analfabeto até os 17 anos de menagem dos negros do teatro; e gura. E eu continuei tentando loca- idade. Foi um dos raros intelectuais negros lizar outras fontes. Cheguei ao Ed- no Brasil escravocrata do século XIX, o único o teatro era muito visado. Então, autodidata e o único a ter passado pela expe- como seria no Clube Náutico Marcí- son Carneiro, que escreveu o livro riência do cativeiro; pautou sua vida na defe- lio dias, na Avenida Praia de Belas, Quilombo dos Palmares (São Paulo: sa da liberdade e da república, ativo opositor o pessoal do clube nos ligou infor- WMF Martins, 2011, 5ª edição), que da monarquia, veio a morrer seis anos antes confirmava a data e o autor é um de ver seus sonhos concretizados. Conquistou mando que tinha idoso lá e que al- judicialmente a própria liberdade e passou a guém da Polícia Federal informou pesquisador consagrado. Então não atuar na advocacia em prol dos cativos, liber- que teríamos que pedir essa licen- tive dúvida de que poderia ser pro- tando mais de 500 deles. Aos 29 anos já era posta aquela data como alternativa um autor consagrado e considerado “o maior ça, o que foi feito. Não se tratava abolicionista do Brasil”. No dia 3 de novem- de teatro. Apenas o grupo preten- ao 13 de maio. Até porque, a gente bro de 2015, 133 anos após sua morte, a Or- dia depois ter um departamento reconhecia, ou entendia que Pal- dem dos Advogados do Brasil e de São Paulo de teatro o que nunca aconteceu. mares tinha sido a passagem mais concederam à Luís Gama o título de advoga- importante, marcante na história do pelos seus relevantes serviços prestados A idéia do ato era o de passar in- junto aos tribunais na libertação dos escra- formações às pessoas a respeito de do negro do Brasil, por ter durado vos. (Nota da IHU On-Line) Palmares. Era um ato que não tinha mais de um século com todas aque- 8 José Carlos do Patrocínio (1853 – las características que reuniu. 1905): foi um farmacêutico, jornalista, es- nenhuma apresentação teatral. critor, orador e ativista político brasileiro. Para corroborar a data ainda apa- Destacou-se como uma das figuras mais im- Deivison Campos – De que for- receu um livro de Ernesto Ennes, portantes dos movimentos Abolicionista e Republicano no país. Foi também idealizador ma se deu o encontro das pessoas intitulado As Guerras nos Palmares da Guarda Negra, que era formada por negros que formaram o grupo? Que tipo (São Paulo: Companhia Editora Na- e ex-escravos. (Nota da IHU On-Line)

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Oliveira Silveira – A impren- contros do centro tinham relação primeiros momentos em que a sa foi fundamental nesse sentido com isso, lugar de encontro de data foi proposta? porque ajudou a difundir. Desde o quem vem de longe? Oliveira Silveira – Sim, porque primeiro momento, tivemos apoio. Oliveira Silveira – Sem dúvidas, seria a alternativa com sentido Quando passamos a nosso primeiro acho que o encontro preenchia de ser uma liberdade conquista- ato – Luiz Gama – ele foi noticia- esta função. Pois o centro da ci- da, como foi o caso de Palmares, do no Correio do Povo, o José do dade é de todo mundo, todos os contra uma liberdade doada, que Patrocínio também, e o primeiro habitantes têm direito ao centro. foi a abolição. Palmares tinha um 20 de Novembro. A gente era meio A oportunidade melhor de encontro limitado. Não distribuíamos bem a sentido completamente diferen- numa cidade como Porto Alegre. A matéria para imprensa e talvez por te por ser conquistado através da Colônia Africana já havia sido dis- isso não tenhamos tido mais apoio luta, foi uma construção negra. Era solvida na década de 1950, com e não tenha tido uma repercussão esse o sentido. Agora, nós no Grupo o deslocamento para Vila jardim, mais forte no início. No ano seguin- Palmares, não tínhamos a intenção Bom Jesus, a Ilhota desfeita, com te, o ato seguinte, se deu através de individualizar a questão do 20 da imprensa. Preparei um material o pessoal sendo enviado para Res- de Novembro na figura de Zumbi, que ocupou sete páginas da Revista tinga, o Areal tinha perdido a força embora ressaltássemos toda a im- ZH, editado pelo Juarez Fonseca, como centro carnavalesco. O car- portância dele como herói. Nós no Jornal Zero Hora. Ele acolheu a nal tinha ido para o centro e sido visávamos mais o coletivo. Colo- ideia e utilizou todo material que institucionalizado, passando para cávamos homenagem aos Palma- preparei. Um histórico sobre Pal- a Avenida Borges, depois Avenida res – Palmares o momento maior. mares – já aí utilizando o livro do João Pessoa. Era um posicionamento contrário Décio Freitas9 – que se somou a bi- Estes pontos continuam existin- à historiografia oficial, dita- ofi bliografia conhecida. Por que é im- do hoje, mas estão sempre sendo cial, de centralizar tudo na figura portante dizer que nós chegamos dissolvidos pela ação do poder pú- de um herói como se fizesse tudo ao 20 sem conhecer o Décio Freitas blico. Não quer dizer que seja só o sozinho, quando tem um coletivo e sua obra. O Décio, conhecemos poder público, mas são medidas que trabalhando junto. Então quería- exatamente no dia do primeiro ato. acabam prejudicando. É o caso da mos trabalhar nessa perspectiva. O 46 Ele compareceu anonimamente e esquina Democrática que era sem- movimento negro ao aderir ao 20 ao final se apresentou e me- pre pre um centro de encontro princi- de novembro fez o caminho con- senteou com um exemplar do livro palmente da juventude nas sextas- trário e seguiu o caminho oficial, editado no Uruguai. O livro tinha -feiras, trocando informações sobre centralizando na figura de Zumbi. sido editado em agosto, um mês festas, etc. então os próprios gru- Pode até ter sido positivo numa depois da formalização do Grupo pos políticos, movimentos faziam fase de transição para não romper Palmares. Então, a partir daí, li o atos exatamente ali. Colocando um totalmente com o comum, com o livro e já nessa matéria para ZH, poder de som e atrapalhando a co- que era ensinado nos bancos esco- utilizei como fonte de pesquisa, municação das pessoas. Eu sempre lares, mas o fato é que ouve essa destacando a importância do livro. condenei isso. Os atos deviam ser individualização que pode ter sido A matéria também incluiu infor- um pouco afastados desse local de positiva sim, mas nós procuramos o mações sobre o posicionamento do reunião porque afinal de contas há coletivo. De qualquer forma, o fato Grupo Palmares, redigida por He- sistema de som. é que o 20 de novembro se propa- lena Vitória dos Santos Machado. gou para todo o país. A outra matéria era um poema de Outro ponto bastante prejudicado Solano Trindade e um conto meu foi na frente da Confeitaria Mateus, Deivison Campos – Se discutia a intitulado Zumbi no Morro. Ilustra- na Avenida Borges, porque agora questão da identidade? O que é do pela Maria Lídia Magliane, artis- tem estacionamento de microôni- ser negro? ta plástica, que também fez a capa bus e carro, assim como a própria da revista ZH [19/11/71]. Rua da Praia que estava livre dos Oliveira Silveira – Uma das coi- veículos e voltou a ter tráfego. sas importantes que aconteceram Deivison Campos – Esse momen- Mas esses pontos sempre existirão, foi essa afirmação da palavra ne- to coincide com o desmantela- acho que preenchem esta função de gro. Usar a palavra negro como mento de territórios negros em agregar as pessoas que estão espa- coisa positiva, inclusive negando Porto alegre, processo de peri- lhadas pelas cidades, cada vez em a palavra moreno, muito usada. ferização da população. Os en- bairros mais distantes. Isso é uma conquista do movimen- to negro como um todo. No grupo 9 Décio Freitas: Sobre ele, conferir o bole- Deivison Campos – Qual é o va- tínhamos isso também. É algo de tim IHU On-Line n.º 92, de 15 de março de 2004, os depoimentos de Gunter Axt e Ieda lor simbólico do 20 de novembro? muito significativo, essa coisa da Gutfriend. (Nota do IHU On-Line) Havia uma dimensão disso nos aceitação.

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A preponderante geografia dos corpos De acordo com Kabengele Munanga, apesar da inexistência de raças biológicas e da ideia da mestiçagem brasileira, o racismo persiste e escolhe seus alvos pela aparência física

Por Leslie Chaves

om frequência o argumento de que o Brasil tária, que constitui coletivamente uma plataforma de é um país mestiço, onde não se pode definir mobilização política”, frisa. quem é branco e quem é negro, é utilizado C Kabengele Munanga nasceu na República Democráti- para negar a existência do racismo brasileiro e, em ca do Congo, onde se graduou em Antropologia Cultural consequência, para desconstruir as lutas de combate pela Universidade Oficial do Congo, na cidade de Lu- ao preconceito racial e à implementação de políticas bumbashi, instituição em que trabalhou como professor públicas com esta finalidade, como, por exemplo, o e pesquisador. Em meados da década de 1970 iniciou o sistema de cotas raciais nas universidades públicas. De curso de doutorado em Antropologia na Universidade de acordo com Kabengele Munanga, essa justificativa cai Louvain, na Bélgica. Entretanto, em função do contexto por terra quando se examina mais de perto o cotidiano político congolês, que passava por um período ditatorial das relações sociais brasileiras e o perfil da população do país. “As diferenças fenotípicas são inegáveis. Pro- na época, não pôde concluir seus estudos. Em 1974, a partir de um convênio entre a Universidade de São Paulo va disso: os policiais não têm dúvida para distinguir 47 brancos e negros. A dificuldade de distinguir ambos – USP e a Universidade Oficial do Congo, o pesquisador está somente no olhar ‘mentiroso’ de alguns estudio- foi convidado a retomar seus estudos no Brasil pelo pro- sos, políticos e midiáticos. Como explicar o racismo à fessor Fernando Mourão, do departamento de Sociologia brasileira se as pessoas não sabem distinguir negros e da USP e então vice-diretor do Centro de Estudos Africa- brancos por causa da miscigenação?”, provoca. nos na universidade. No ano de 1977 conclui o doutorado em Antropologia Social pela USP e retorna ao Congo. No O antropólogo afirma, em entrevista por e-mail à entanto, no final da década de 1970 Kabengele Munanga IHU On-Line, que no país, apesar desse contexto ra- se exila no Brasil em função da situação política de seu cializado, ainda há a crença de que a desigualdade de país. Mais tarde se naturaliza brasileiro. Atualmente é classe é o principal fator de discriminação dos negros. professor pesquisador sênior da Universidade Federal do “Alguns, por inércia do mito de democracia racial, Recôncavo da Bahia – UFRB e da USP, onde também obte- continuam a acreditar que a classe socioeconômica é ve livre-docência em 1997 com o trabalho Rediscutindo o único critério de discriminação dos negros no Bra- a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus iden- sil. No entanto, é pela geografia dos corpos que somos tidade negra (Petrópolis: Vozes, 1999). vistos e percebidos antes de descobrir nossas classes sociais”, explica. E ainda questiona: “Como um poli- Ao longo de sua trajetória acadêmica no Brasil, o cial enxergaria o professor Kabengele Munanga de pas- antropólogo recebeu diversos prêmios e títulos hono- sagem na periferia de qualquer cidade brasileira? Pela ríficos, entre os quais a Comenda da Ordem do Mérito cor da pele ou pela classe social?” Cultural, contribuição aos estudos da cultura brasilei- ra, pela Presidência da República do Brasil; Grau de Falando a partir do ponto de vista de quem é espec- Oficial da Ordem do Rio Branco do Ministério das Rela- tador, mas também vivenciou e vivencia os cenários ra- ções Exteriores, pelo Palácio do Itamaraty; e Comen- ciais do outro lado do atlântico negro, no Congo, e do da da Ordem do Mérito dos Palmares, Grau de Oficial, Brasil, Munanga aponta a importância de conhecermos pelo Governo do Estado de Alagoas; entre outros. Entre nossas próprias origens, nosso lugar no país e no mun- sua vasta produção bibliográfica destacam-se Origens do. “Quem somos, de onde viemos e por onde vamos? africanas do Brasil contemporâneo: Histórias, línguas, Sem a consciência de quem somos na formação histó- culturas e civilizações (São Paulo: Global, 2009), Su- rica do Brasil não existimos política e coletivamente. perando o racismo na escola (Brasília: Ministério da Consequentemente não podemos nos mobilizar ou nos Educação, Secretaria do Ensino Fundamental, 1999) e organizar para reivindicar nossos direitos na sociedade Negritude. Usos e Sentidos (São Paulo: Ática, 1986). ou lutar para a transformação da sociedade. Aqui está o conteúdo político-ideológico da consciência identi- Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Quais elementos intelectuais, morais, psicológicas e tarde no nazismo3. Ao decretar, no do antigo processo de definição estéticas. E essa hierarquização foi início da segunda metade do século de raças baseado na botânica e utilizada política e ideologicamen- XX, que cientificamente a raça não zoologia ainda implicam nos pro- te para legitimar as desigualdades existe, o racismo científico deixou cessos de construção e legitima- entre as chamadas raças, a coloni- de existir, mas o racismo de fato já ção das relações de dominação zação, o holocausto1 e todas as for- incorporado nas culturas de diver- e de sujeição entre os grupos mas de racismo que conhecemos. sas sociedades continua a persistir, sociais? e é contra ele que se luta hoje. As raças como construção sociológica Kabengele Munanga – O conceito IHU On-Line – Quais são as ori- ou política continuam a existir no de raça tal como foi empregado na gens da ideia de racismo? Que imaginário coletivo de todos os ra- Zoologia e na Botânica significava mudanças essa concepção vem cistas, e a raça como noção e fer- simplesmente categoria, espécie sofrendo ao longo do tempo? O ramenta de análise sociológica e ou sorte, sem nenhum conteúdo de deslocamento da noção biológica histórica se mantém no vocabulário hierarquização das espécies vege- para a sociológica sobre raça tem das ciências sociais. Não se trata tais e animais em plantas e animais influência nesse processo? mais de raças biológicas, mas sim superiores e inferiores e nada tinha Kabengele Munanga – A palavra de raças sociais. Em outros termos, com as cores dessas espécies. Por- racismo derivada da raça aparece depois da morte científica da raça, tanto não havia nenhuma relação na literatura científica por volta de seu filhote “racismo” continua sol- com o conteúdo hierarquizante to no mundo e faz vítimas indepen- dado a esse conceito pelos ilumi- 1920. Como todos os “ismos”, re- dentemente da mãe já morta. nistas e naturalistas na modernida- mete à ideologia, isto é, à crença de ocidental. numa humanidade hierarquizada a partir de critérios na época consi- IHU On-Line – Como a argumen- derados científicos, ou seja, racio- tação da “inexistência de raças IHU On-Line – A evolução dos nais e que deu origem ao racismo humanas” é utilizada como estra- estudos das ciências biológicas científico ou racialismo que foi ins- tégia para desconstruir os deba- comprovou que o conceito de titucionalizado nos Estados Unidos tes a respeito do racismo? raça não é uma realidade biológi- e no regime do apartheid2 e mais ca, ou seja, não é capaz de expli- Kabengele Munanga – Algumas pessoas pensam que o racismo 48 car a diversidade humana e não 1 Holocausto: também conhecido como pode dividi-la em grupos estan- Shoá (em hebraico: HaShoá, “a catástrofe”; não existe mais, porque a raça ques. Porém, a ideia de raça ain- em iídiche: Churben ou Hurban, do hebraico da qual derivou deixou de existir. para “destruição”), foi o genocídio ou assas- Este argumentou foi utilizado para da persiste no imaginário social, sinato em massa de cerca de seis milhões de e conforme o senhor afirma, -ga judeus durante a Segunda Guerra Mundial, combater as políticas de ação afir- nha um sentido etnossemântico, no maior genocídio do século XX, através político-ideológico. O senhor po- de um programa sistemático de extermínio não conseguiram conter a crescente oposição, étnico patrocinado pelo Estado nazista, lide- e em 1990 o presidente Frederik Willem de deria falar um pouco sobre esse rado por Adolf Hitler e pelo Partido Nazista e Klerk iniciou negociações para acabar com sentido não biológico para o con- que ocorreu em todo o Terceiro Reich e nos o apartheid, o que culminou com a realiza- ceito de raça? O que significa esse territórios ocupados pelos alemães durante a ção de eleições multirraciais e democráticas guerra. Dos nove milhões de judeus que re- em 1994, que foram vencidas pelo Congresso deslocamento? sidiam na Europa antes do Holocausto, cer- Nacional Africano, sob a liderança de Nelson ca de dois terços foram mortos; mais de um Mandela. (Nota da IHU On-Line) Kabengele Munanga – Se os cha- milhão de crianças, dois milhões de mulheres 3 Nazismo: conhecido oficialmente na mados cientistas dessa época tives- e três milhões de homens judeus morreram Alemanha como Nacional-Socialismo (em sem limitado sua classificação da durante o período. (Nota da IHU On-Line) alemão: Nationalsozialismus), é a ideologia diversidade humana aos critérios 2 Apartheid: (palavra em africâner que praticada pelo Partido Nazista da Alemanha, significa “separação”) foi um regime de se- formulada por Adolf Hitler e adotada pelo go- que eles consideravam objetivos e gregação racial adotado de 1948 a 1994 pelos verno da Alemanha de 1933 a 1945. Esse perí- científicos, mas que na realidade sucessivos governos do Partido Nacional na odo ficou conhecido como Alemanha Nazista não eram, eles não teriam criado África do Sul, no qual os direitos da maioria ou Terceiro Reich. Mesmo incorporando ele- dos habitantes foram cerceados pelo governo mentos comuns tanto da direita quanto da es- nenhum mal à humanidade. O con- formado pela minoria branca. A segregação querda política, o nazismo é considerado um ceito de raça teria sido abandonado racial na África do Sul teve início ainda no movimento essencialmente de extrema-direi- e os critérios de classificação (cor período colonial, mas o apartheid foi intro- ta. Os nazistas foram um dos vários grupos da pele, diferenças morfobiológi- duzido como política oficial após as eleições históricos que utilizaram o termo “nacional- gerais de 1948. A nova legislação dividia -socialismo” para descrever a si mesmos e, na cas entre grupos humanos, diferen- os habitantes em grupos raciais (“negros”, década de 1920, tornaram-se o maior grupo ças genéticas, doenças “raciais” “brancos”, “de cor” e “indianos”), segregando da Alemanha. Os ideais do Partido Nacional etc.) teriam sido simplesmente as áreas residenciais, muitas vezes através Socialista dos Trabalhadores Alemães (Parti- de remoções forçadas. Também havia segre- do Nazista) são expressos no seu “Programa abandonados como acontece na gação na saúde, educação e outros serviços de 25 Pontos”, proclamado em 1920. Entre os história das ciências. Infelizmente públicos, fornecendo aos negros serviços in- elementos-chave do nazismo, há o antiparla- hierarquizaram os grupos huma- feriores aos dos brancos. O apartheid trouxe mentarismo, o pangermanismo, o racismo, nos em inferiores e superiores ao violência e um significativo movimento de o coletivismo, a eugenia, o antissemitismo/ resistência interna, bem como um longo em- antijudaísmo, o anticomunismo, o totalitaris- fazer a relação intrínseca entre as bargo comercial contra a África do Sul. Re- mo e a oposição ao liberalismo econômico e diferenças biológicas, as aptidões formas no regime durante a década de 1980 político. (Nota da IHU On-Line)

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mativa4 ou das cotas no Brasil, um continuam a acreditar que a classe negro6 morto pela ação de policiais país mestiço onde negros e bran- socioeconômica é o único crité- na cidade de Guarulhos, no Estado cos não existem mais como raças rio de discriminação dos negros no de São Paulo. Lembraria a piada do para justificar as chamadas cotas Brasil. No entanto, é pela geografia macaco que estava correndo para raciais. No entanto, as diferenças atravessar a fronteira entre o Bra- dos corpos que somos vistos e per- fenotípicas são inegáveis. Prova sil e o Paraguai. “Macaco, por que cebidos antes de descobrir nossas disso: os policiais não têm dúvida está correndo tanto, com a língua para distinguir brancos e negros. classes sociais. Como um policial para fora?”, lhe foi perguntado. “Lá A dificuldade de distinguir ambos enxergaria o professor Kabengele no Brasil estão matando todos os está somente no olhar “mentiroso” Munanga de passagem na periferia animais que têm orelhas grandes”, de alguns estudiosos, políticos e de qualquer cidade brasileira? Pela respondeu. “Mas você não tem ore- midiáticos. Como explicar o racis- cor da pele ou pela classe social? lhas grandes, por que então está mo à brasileira se as pessoas não Talvez já tivesse sido morto antes de com medo?”, questionaram-lhe. sabem distinguir negros e brancos descobrirem que pertenço à classe “Até provar, ‘meu amigo’, já estaria por causa da miscigenação? média intelectual, como aconteceu morto!”, respondeu o macaco. anos atrás com o jovem dentista IHU On-Line – Apesar de contem- IHU On-Line – Em que patamar poraneamente a ideia de raça se rística que, de acordo com essa ideia, garante se encontra o Brasil em relação distanciar do campo biológico, os a harmonia na heterogênea sociedade brasi- a outros países, como a África do marcadores genéticos (principal- leira. Esse foi construído ao longo do tempo a partir de experiências isoladas de pesqui- Sul e os Estados Unidos, no com- mente a cor da pele) ainda são sadores de outros países no Brasil. Trata-se bate ao racismo? um critério relevante usado pelo do resultado de um processo que foi se de- imaginário social na divisão e hie- senvolvendo aproximadamente durante um Kabengele Munanga – Não po- século até chegar, em meados da década de deria avaliar os avanços realiza- rarquização dos grupos sociais no 1930, à obra de Gilberto Freyre, autor consi- Brasil. Que implicações essa situa- derado ícone dessa discussão. Casa Grande & dos nesses países em políticas de ção traz para os debates acerca do Senzala (1933), que pensa as bases da organi- combate ao racismo por falta de racismo no complexo contexto de zação social brasileira e o papel da coloniza- estatísticas, além do fato de não ção portuguesa nesse processo, é considerada ser estudioso dessas regiões geo- formação populacional brasileiro? uma das mais importantes obras de Freyre e já lança os primeiros fundamentos da ideia de gráficas. No entanto, em matéria – Se a geo- Kabengele Munanga Lusotropicalismo – o entendimento de que a de ensino superior, as diferenças 49 grafia dos corpos existe, que ou- mestiçagem é uma característica inata do entre brancos e negros, nos Esta- modo de ser português. Freyre foi o primeiro tro critério é usado para distinguir dos Unidos, que eram absurdas, se brancos e negros? Alguns, por inér- estudioso na sociologia moderna que resga- tou o “mito do paraíso racial”, o reconstituin- reduzem hoje a cerca de 10%, en- 5 cia do mito de democracia racial , do a partir de um viés científico, tornando-se quanto a brasileira está acima de um dos principais responsáveis pela legiti- 4 Ações afirmativas: são políticas focais mação científica da ideia da harmonia entre 80%, graças às políticas de cotas. que alocam recursos em benefício de pes- raças no Brasil. A essa conjuntura, o pesqui- Isto não quer dizer que as manifes- soas pertencentes a grupos discriminados e sador acrescenta o caráter hierárquico, mas tações racistas recuaram nos Esta- vitimados pela exclusão socioeconômica no não político, entre as diferentes raças, o qual dos Unidos, apesar de terem elegi- passado ou no presente. Trata-se de medidas também, para o estudioso, não impediria a que têm como objetivo combater discrimina- harmonia racial. Ao longo dos anos, Freyre do um presidente negro. ções étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou passeou por diversos termos até chegar à ex- de casta, aumentando a participação de mi- pressão “democracia racial”, mas sempre gi- 6 Caso Flávio Ferreira de Sant’Ana: aos norias no processo político, no acesso à edu- rando em torno do tema das relações raciais. 28 anos, o jovem negro formado em Odon- cação, saúde, emprego, bens materiais, redes Foi só nos anos 1960 que esse intelectual bra- tologia voltava do Aeroporto de Guarulhos, de proteção social e/ou no reconhecimento sileiro se apropriou da expressão. Também em São Paulo, no dia 3 de fevereiro de 2004, cultural. São medidas que englobam tanto a foi nessa época que o movimento negro, ao onde tinha ido levar sua namorada, a suíça promoção da igualdade material e de direitos se aproximar das influências do movimento Anita Joos, de 30 anos. Mais ou menos na básicos de cidadania, como também formas negritude e das origens culturais africanas, mesma hora e região, o comerciante Antonio de valorização étnica e cultural. Esses proce- começou a tensionar o ideal de “democracia dos Anjos, 29 anos, havia dado queixa aos po- dimentos podem ser de iniciativa e âmbito racial”. Expressão que ao longo da história liciais que se encontravam em uma viatura, de aplicação público ou privado, e adotados ganhou diversos significados. Resumida- de que teria sido assaltado. Flávio guiava o de forma voluntária e descentralizada ou por mente, refletiu, durante as décadas de 1930 próprio carro, um Gol, em Santana (zona nor- determinação legal. As ações afirmativas no e 1940, uma oposição aos regimes de governo te de São Paulo) e foi interpelado por cinco Brasil partem do conceito de equidade ex- totalitaristas vigentes na Alemanha e na Itália policiais militares do 5º Batalhão da Polícia presso na constituição, que significa tratar os no período; nos anos de 1950 foi aproxima- Militar (Jaçanã), naturalmente porque era desiguais de forma desigual, isto é, oferecer do do universo individualista ocidental ga- negro e estava ao volante de um automóvel. estímulos a todos aqueles que não tiveram nhando a conotação de ideal de igualdade de Foi interpelado e em seguida morto com igualdade de oportunidade devido a discrimi- oportunidades e respeito aos direitos civis e dois tiros. Ao ver o dentista morto no chão, nação e racismo. Em 2012, o Supremo Tribu- políticos; para então a partir de 1960 retomar o comerciante declarou que não se tratava do nal Federal (STF) decidiu por unanimidade seu sentido original, elaborado por Freyre, ladrão que o tinha assaltado. Ao constatar o que as ações afirmativas são constitucionais referente essencialmente à mestiçagem como engano, os policiais simularam um tiroteio e políticas essenciais para a redução de de- mote da harmonia racial, tornando-se para a para alegar que só revidaram a tiros depois sigualdades e discriminações existentes no militância negra e para intelectuais, como os que a vítima disparou. Os policiais coloca- Brasil. (Nota da IHU On-Line) da escola de Florestan Fernandes, a tradução ram uma pistola 357 nas mãos de Flávio, e no 5 Mito da democracia racial: concepção do racismo à brasileira, o mito e a chave in- bolso dele a carteira do comerciante Antônio que defende que a gramática das relações terpretativa da cultura e das relações sociais Alves dos Anjos, vítima de assalto. (Nota da raciais no Brasil é a miscigenação, caracte- no Brasil. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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As leis racistas institucionalizadas por todos os conceitos, mesmo por co, amarelo ou vermelho emergido não existem mais na África do Sul, aqueles considerados neutros. da condição histórica e cultural dos nem nos Estados Unidos. Mas todos sujeitos. De que modo essa noção praticam um racismo de fato seme- IHU On-Line – Que implicações o se insere no contexto da dinâmica lhante ao do Brasil de hoje com di- desrespeito ao pertencimento étni- contemporânea das relações so- nâmicas e consequências diferentes. co pode trazer para a organização ciais? A partir dessa ideia, o com- De qualquer modo, todos os racismos social? Como, por exemplo, nos ca- bate à discriminação e ao precon- são abomináveis, não existindo nem sos dos conflitos entre o mapa ge- ceito pode avançar? De que modo? piores, nem melhores que os outros, opolítico pré-colonial e o atual do Kabengele Munanga – A diver- pois cada um faz suas vítimas. continente africano, que envolve sidade e suas diferenças é a coisa questões culturais e territoriais. mais natural e está presente por IHU On-Line – O senhor poderia Kabengele Munanga – Em todas toda parte no universo mineral, ve- falar um pouco sobre a ideia de as sociedades humanas, as diferen- getal e animal. Como seres huma- etnia? Em que ela se diferencia ças, sejam elas étnico-culturais, nos somos animais entre os demais da ideia de raça? Como essa con- regionais ou geográficas, socioe- animais e acreditamos, até prova cepção se insere nos debates a conômicas, de sexo, gêneros, reli- em contrário, que somos animais respeito do racismo e da diversi- gião, língua etc., podem ser mani- racionais que se desenvolveram dade na contemporaneidade? puladas para formar clientelas nas em cultura e história. No entan- Kabengele Munanga – O conceito lutas pelo poder social, econômico, to, percebe-se que a diversidade de etnia tem um conteúdo cultural, político, religioso etc. Vejam o que que constitui nossa riqueza cole- histórico e psicológico, enquanto acontece na Espanha, no Canadá, tiva constitui ao mesmo tempo a o conceito de raça tem um conte- na Bélgica, nos países Bálcãs, no matéria-prima para construir nos- údo morfobiológico. Em todos os oriente médio, entre outros. É nes- sas identidades e os germes para grupos humanos ditos raças negra, ta linha de raciocínio que podemos a construção dos preconceitos. Se branca e amarela, têm-se etnias ou entender o que acontece em alguns nossa sobrevivência coletiva está grupos étnicos. Alguns estudiosos países africanos onde as diferenças nas diferenças, por que não criar advogam o abandono do conceito étnicas são manipuladas nas guer- a partir dela uma multicultura ou de raça na luta contra o racismo e ras civis. Digo bem guerras civis e pluralismo cultural que desem- sua substituição pelo conceito mais não guerras étnicas que existiram bocaria numa cultura de paz e na 50 “cômodo” de etnia. Considero essa na África antes das invasões colo- construção de uma democracia que substituição como um eufemismo niais e que tinham a ver com a for- cria a igualdade entre os diferentes que nada resolve, pois o racismo no mação dos impérios que em toda a em vez dos conflitos que nascem século XXI não precisa mais da base história da humanidade utilizaram das desigualdades? Creio que deve- pseudocientífica ou do conceito de a violência. Não é exclusividade, mos “aperfeiçoar” nossas relações raça. Ele se reformula com base nem propriedade da África. É um humanas com base não somente em outras essencializações como dado da história da humanidade. O nas semelhanças, mas também etnia, cultura, identidade, história. que era a Europa ocidental até a com respeito às nossas diferenças. É um racismo diferencialista e não segunda guerra mundial, senão um O pluralismo está em toda parte: mais científico. Em africânder7, o campo de batalha? religiões, pensamentos, filosofias apartheid significa desenvolvimen- de vida, visões de mundo, sexos, to separado em nome do respeito IHU On-Line– Poderia falar um gêneros etc. Sem ele não existimos às diversidades culturais dos povos pouco sobre o conceito de po- ontologicamente. da África do Sul. Vê-se que os racis- pulação que o senhor utiliza em tas da África do Sul não precisaram seus trabalhos para se referir aos IHU On-Line – Qual é a impor- recorrer ao conceito de raça para diferentes grupos sociais? reformular, em 1948, a ideologia tância de se reconhecer o conte- segregacionista do apartheid. Re- Kabengele Munanga – Para evi- údo político envolvido na ideia de correram sim ao conceito de etnia, tar o conceito de raça e suas ambi- identidade étnico-racial negra? O de diversidade cultural e identitária guidades, eu prefiro em meus tex- que representa a construção des- que alguns consideram mais cômo- tos utilizar o conceito demográfico sa identidade política na busca de dos comparativamente ao conceito de população (população negra, transformações da condição do de raça. O que prova que o racis- população branca, população in- negro no Brasil? mo como ideologia pode parasitar dígena) ou conceito de sociedades Kabengele Munanga – Quem so- humanas. Assim não corro o risco mos, de onde viemos e por onde 7 Africânder (Africâner, Africano ou de cair nas armadilhas ideológicas Afrikaans): é uma língua do ramo germâni- vamos? Sem a consciência de quem co do grupo indo-europeu falada na África do dos conceitos de raça e etnia. somos na formação histórica do Sul e na Namíbia. Desenvolvida durante o pe- Brasil não existimos política e cole- ríodo em que a Holanda colonizou uma parte IHU On-Line – O senhor cita o tivamente. Consequentemente não da África, o que levou ao desenvolvimento do “Africânder”, que é baseado no neerlandês/ pluralismo existente entre os di- podemos nos mobilizar ou nos or- Holandês. (Nota da IHU On-Line) versos modos de ser negro, bran- ganizar para reivindicar nossos di-

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reitos na sociedade ou lutar para a sobre as desigualdades das raças”, organizada pela Organização das transformação da sociedade. Aqui considerado como um dos pais das Nações Unidas – ONU, em Durban, está o conteúdo político-ideológi- doutrinas racistas, não o nega ape- África do Sul, em agosto/setembro co da consciência identitária, que sar de suas contradições sobre a de 2001, as palavras cotas e políti- constitui coletivamente uma plata- degenerescência da mestiçagem. cas de ação afirmativa não faziam forma de mobilização política. A questão está na manipulação da parte do vocabulário do brasileiro mestiçagem para escamotear ou comum. Elas resultam das lutas IHU On-Line – Como essa identi- camuflar os problemas da socieda- reivindicatórias do movimento ne- dade se relaciona com a noção de de e a discriminação racial, como gro de várias gerações, mas que “identidade mestiça”, utilizada o faz o mito da democracia racial culminaram nos debates candentes como argumento de reprodução ou como disseram alguns durante o que se acenderam desde as prepa- do mito da democracia racial? debate sobre cotas ao afirmar que rativas brasileiras para essa 3ª Con- não precisava de cotas para negros ferência Mundial da ONU e depois Kabengele Munanga – A mes- num país onde eles não existem dela. A consciência das desigualda- tiçagem faz parte da história da mais, tendo em vista que todos os des raciais e suas denúncias foram humanidade, pois a pureza é um brasileiros são mestiços e que a importantes, mas a retórica em si mito. Até o Conde Joseph Arthur palavra “negro” introduziria uma não foi suficiente para deflagrar de Gobineau8, autor do “Ensaio discriminação ao avesso e exalta- o processo de transformação sem ria a consciências das raças que apontar concretamente as propos- 8 Joseph Arthur de Gobineau (1816- cientificamente não existem mais. 1882): foi um diplomata, escritor e filósofo tas de mudanças no exemplo das Na hipótese de que “somos” todos francês. Foi um dos mais importantes teóri- cotas ou reservas de vagas para cos do racismo no século XIX. Segundo ele, mestiços, podemos afirmar que a negro, cujo caminho de institucio- a miscigenação era inevitável e levaria a raça discriminação racial contra negros humana a graus sempre maiores de dege- nalização se aprofunda em outros e mestiços não existe no Brasil de nerescência física e intelectual. Vivendo em setores da vida nacional, como es- Paris, a partir de 1835, tornou-se funcionário 2015? Só cegos e surdos no cotidia- tamos observando hoje. público como secretário do escritor Alexis no brasileiro poderiam arriscar tal de Tocqueville, nomeado ministro, em 1849. afirmação. Como diplomata, Gobineau serviu em Berna, vida pela Organização das Nações■ Unidas – Hanover, Frankfurt, Teerã, Rio de Janeiro e ONU reuniu delegações de 170 países com o Estocolmo. Chega ao Brasil em 1869, envia- objetivo de definir estratégias globais de com- do por Napoleão III para uma missão diplo- IHU On-Line – De que forma os bate ao racismo e à discriminação em suas mática. Nunca escondeu sua animosidade debates contemporâneos acerca distintas vertentes e manifestações. Desse 51 para com o país, que deixou um ano depois, da ideia de raça, etnia e racismo encontro, resultou a Declaração e Programa em 1870. Travou amizade com o imperador incidem na construção e implan- de Ação adotados pela terceira conferência, Pedro II, que perdurou durante muitos anos um documento que reúne a Declaração enu- depois de sua partida do Brasil. Não conse- tação de políticas de ação afirma- merando os objetivos, análises do contex- guiu ver com bons olhos nenhum aspecto da tiva no Brasil? to mundial e as bases para a construção do sociedade brasileira, a não ser sua amizade conjunto de resoluções contido no Programa com D. Pedro II. Para ele o Brasil não tinha Kabengele Munanga – Antes da de Ação. O documento, considerado um dos futuro, considerava o país marcado pela pre- 3ª Conferência Mundial contra o mais abrangentes sobre a questão do racis- sença de raças que julgava inferiores. A mis- Racismo, Discriminação Racial, Xe- mo, da discriminação racial e da intolerância, tura racial daria origem a mestiços e pardos é visto como uma das primeiras ações mais 9 degenerados e estéreis. Para Gobineau, esta nofobia e Intolerância correlata , concretas e globais com esse objetivo. A ver- característica já teria selado a sorte do país: são eletrônica do documento está disponível a degeneração levaria ao desaparecimento da 9 III Conferência Mundial das Nações em http://bit.ly/1WJCIhE. A Primeira e a população. A única saída para os brasileiros Unidas contra o Racismo, a Xenofobia Segunda Conferência Mundial de Combate seria o incentivo à imigração de “raças” eu- e a Intolerância Correlata: realizada em ao Racismo e à Discriminação Racial aconte- ropeias, consideradas superiores, segundo o Durban, África do Sul, entre 31 de agosto e 8 ceram em Genebra em 1978 e 1983 respecti- filósofo. (Nota da IHU On-Line) de setembro de 2001, a conferência promo- vamente. (Nota da IHU On-Line)

Kabengele Munanga

Eu me vejo apenas como um cidadão, um sonhador comum que acredita que os problemas de nossas sociedades têm soluções. O que falta muitas vezes é a vontade política e a coragem coletiva para enfrentá-los. É claro que ninguém tem respostas e receitas prontas. Há resistências, dúvidas e inércias das ideologias passadas e presentes no caminho das lutas; há interesses de grupos que querem manter o status quo, entre outros obs- táculos previsíveis e imprevisíveis, mas a experiência humana mostra que em qualquer luta sempre há conquistas, perdas e às vezes retrocessos. Por que não ter a coragem de corrigir os rumos, fazer uma autocrítica a partir dos resultados alcançados em termos de sucessos e insucessos? Costumo dizer, quem não tem nada não perde nada ao tentar lutar, pelo contrário, só pode ganhar!

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Do apagamento à visibilidade – Os negros, a imprensa e a luta política José Antônio dos Santos analisa a história dos negros em perspectiva com os meios de comunicação criados por eles próprios

Por Leslie Chaves e Ricardo Machado

o caminho entre a libertação for- constituiu-se como um espaço público de mal na escravatura, com a abo- reivindicação de direitos à moradia, edu- Dlição de 1888, ao (re)começo da cação, acesso ao mercado de trabalho e construção social e política, o papel dos para a denúncia de arbitrariedades poli- negros na construção de meios de comu- ciais cometidas contra a população negra. nicação foi fundamental para a consolida- A invasão de bailes e casas de batuque, a ção da própria cultura. Na contramão da perseguição nas ruas, a proibição de pro- ladainha que defendia que os negros eram cissões religiosas e carnavalescas eram incapazes de acompanhar o conhecimento temas correntes na imprensa negra”, re- produzido nas universidades, eles criaram corda o professor. “A história da imprensa seus próprios meios. “Os meios de comuni- negra no Brasil e, particularmente, no Rio cação têm papéis fundamentais em todas Grande do Sul tem nos revelado o comple- essas questões, por isso a população negra to desconhecimento dessa rica fonte de sempre tomou a iniciativa de participar pesquisa que foi deixada ao largo pelos 52 das discussões e criar seus próprios canais historiadores”, complementa. de representação política e cultural, para José Antônio dos Santos é graduado fazer um contradiscurso que afirme a sua em História na Universidade Federal do inteligência e civilidade”, pondera José Rio Grande do Sul – UFRGS, realizou mes- Antônio dos Santos, em entrevista por e- trado em História Social na Universidade -mail à IHU On-Line. Federal Fluminense – UFF e doutorado em Os modestos, mas significativos, avanços História das Sociedades Ibéricas e Ameri- ocorridos a partir de 1888 e 1891, com a canas na Pontifícia Universidade Católica Constituição Republicana, abriram maiores do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Atualmente possibilidades de alfabetização, inserção é professor e pesquisador da história e da social e organização política, ainda que cultura negra no Brasil Republicano e da os negros tenham continuado marginaliza- diáspora africana nas Américas. É editor da Revista da Extensão da UFRGS e membro dos. Esta minúscula brecha, porém, permi- do Conselho de Acompanhamento e Ava- tiu que os negros que trabalhavam como liação do Programa de Educação Tutorial gráficos e revisores nos grandes jornais dessa mesma Universidade. construíssem seus próprios informativos. “No pós-abolição, a publicação de jornais Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- sua importância histórico-social cadeia reprodutiva de estereótipos cia da representação do negro, e expressão populacional, assim e imaginários sociais. Aqueles que tanto a partir das demandas de como os aspectos positivos dessa foram a base evolutiva econômica interesse dessa população quanto representação, ainda são muito e cultural dos processos de ocu- a partir da presença e participa- inferiores aos diversos papéis que pação territorial, urbanização, in- ção, nos meios de comunicação? os negros e negras desempenharam dustrialização e desenvolvimento, na nossa história. Os meios de co- são ainda sub-representados nos José Antônio dos Santos – A municação são absolutamente he- meios de comunicação. Este qua- representação equitativa da po- gemonizados pela representação dro se mantém, em alguns casos, pulação negra nos meios de co- eurocêntrica – o homem branco he- por atitudes deliberadas de chefes municação no Brasil, conforme a terossexual se mantém no topo da de redações, jornalistas e outros

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profissionais em manter o status lítica e a criação de meios de co- núncia de arbitrariedades policiais quo dos privilégios adquiridos ao municação voltados aos interesses cometidas contra a população ne- longo do tempo, em muitas outras e sociabilidades dessa população. gra. A invasão de bailes e casas de situações, por completo desconhe- Os periódicos escritos e impressos batuque, a perseguição nas ruas, a cimento e desinteresse em buscar por negros, inicialmente, foram proibição de procissões religiosas informações atualizadas da partici- produzidos de forma artesanal, e carnavalescas eram temas cor- pação dos negros nesses processos. regionalizada e com baixa circula- rentes na imprensa negra. Os ne- Recentemente, quando, pela pri- ção. A iniciativa se deu a partir da gros passaram a assumir lugares de meira vez desde a abolição, houve experiência que muitos deles tive- maior protagonismo nos diversos uma discussão nacional sobre as ram como gráficos e revisores nos espaços da sociedade quando do desigualdades raciais no acesso à grandes jornais do período. Uma início da publicação dos seus pró- educação superior (o debate sobre vez que eles não se viam represen- prios jornais. O que foi uma forma as políticas de ações afirmativas ou tados nos jornais diários, criaram de enfrentamento ao processo de cotas), tivemos a oportunidade de os seus com objetivos diversos, marginalização e guetização pelo acompanhar o discurso de uma par- mas, principalmente, para divulgar qual passou a maioria dessa popu- te significativa da opinião pública seus interesses e notícias especí- lação desde o final da escravidão, que foi embasado em argumentos ficas de suas comunidades: festas que levou à criação de meios de do final do século XIX. Ou seja, se de aniversário, nascimento, casa- comunicação e representação da- aproximavam muito daqueles que mentos, bailes, jogos de futebol, queles que se viram jogados à pró- defendiam a escravidão, pautada enfermidades e óbitos. Também pria sorte. Diversas estratégias de no argumento da incapacidade dos eram recorrentes na imprensa ne- integração e ascensão social foram negros em administrar suas pró- gra as denúncias contra o racismo criadas e divulgadas nos jornais, prias vidas, repetindo a ladainha e o preconceito reinantes no país: desde a busca do acesso à educa- das dificuldades que teriam para escolas que não recebiam alunos ção por meio da criação de escolas, acompanhar o conhecimento pro- negros, a proibição do ingresso em o apadrinhamento, a partidariza- duzido nas universidades. Os meios cafés, confeitarias, teatros, hotéis ção, a confissão religiosa, o envol- de comunicação têm papéis funda- e cinemas, dentre outras tantas si- vimento nos movimentos sociais, mentais em todas essas questões, tuações cotidianas. A manutenção como o movimento operário, por por isso a população negra sempre e a distribuição dos jornais se da- exemplo. Muitos dos intelectuais tomou a iniciativa de participar vam pelo pagamento de anúncios, negros buscaram essas alternativas das discussões e criar seus próprios mensalidades, semestralidades e tornaram públicas aos demais, canais de representação política e e pela distribuição e leitura em demonstrando a necessidade de 53 cultural, para fazer um contradis- locais públicos, o que tornava o serem reconhecidos como constru- curso que afirme a sua inteligência acesso bastante ampliado, inclusi- tores do país, e do respeito público e civilidade. ve àqueles(as) que não sabiam ler. às suas idiossincrasias culturais e Em geral, os jornalistas e redato- religiosas. IHU On-Line – Como se dá o sur- res negros eram reconhecidos em gimento da imprensa negra no suas comunidades onde assumiam IHU On-Line – Em um de seus contexto de violência e exclusão papéis de lideranças, ocupando trabalhos o senhor afirma que a do sistema escravocrata, onde a cargos em sociedades esportivas, imprensa negra, ao longo de sua maioria da população negra era culturais e beneficentes. As mulhe- trajetória, ressignificou as cate- analfabeta e empobrecida? Que res negras também tiveram parti- gorias “raça” e “negro” e serviu temas abordava e onde se desen- cipação fundamental na criação e de base até para a manutenção volveu com mais intensidade? manutenção dos jornais, algumas dos jornais. Como se dá esse pro- como redatoras de colunas ou sim- cesso? Que novas concepções são José Antônio dos Santos – Ini- ples leitoras, a maioria como parti- construídas? cialmente, é necessário afirmar cipante ou organizadora de festas, que, conforme as pesquisas vêm bailes e quermesses para arrecadar José Antônio dos Santos – As ca- demonstrando, havia, no final do recursos para os jornais. tegorias que identificavam os - po século XIX, um contingente ex- vos em termos de cor e raça, até, pressivo de abolicionistas radicais principalmente, o início do século IHU On-Line – Qual é a impor- ou reformistas, intelectuais e po- XX, serviram para hierarquizar a tância de os afro-brasileiros assu- líticos negros envolvidos na defesa humanidade em civilizados-incivili- mirem o protagonismo no debate das principais causas da popula- zados, desenvolvidos-primitivos, e das demandas de seus interesses ção negra, aqui entendida no am- para transformar alguns em senho- a partir da construção de espaços plo espectro que abarcava as(os) res e outros em escravizados. como a imprensa negra? africanas(os) escravizadas(os), ex- Como sabemos, a modernidade -escravizados(as) e seus descen- José Antônio dos Santos – No nasceu intimamente associada à in- dentes. A abolição da escravidão, pós-abolição, a publicação de jor- tolerância e à negação das diversi- em 1888, e a Constituição repu- nais constituiu-se como um espaço dades culturais e étnicas, servindo blicana, de 1891, abriram maiores público de reivindicação de direi- como justificativas para toda sorte possibilidades de alfabetização, tos à moradia, educação, acesso ao de exploração e genocídio. Nesse inserção social, organização po- mercado de trabalho, e para a de- sentido, os termos “raça” e “ne-

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gro” foram usados por cientistas, IHU On-Line – Durante a traje- dos intelectuais negros na constru- intelectuais e políticos para clas- tória histórica da imprensa negra ção do pensamento social e cultu- sificar grupos humanos diversos, brasileira houve uma articulação ral brasileiro, estamos presos ao como os africanos, de forma ab- com a imprensa negra ou outras imaginário do negro açoitado no solutamente homogênea, precon- organizações de outros países? De tronco ou escondido na mata. Há ceituosa e estereotipada. Quando que maneira? um universo a ser descortinado, os intelectuais negros começaram no mundo rural e nas cidades, te- José Antônio dos Santos – Os a intervir nesse processo, p. ex., mos pouco espaço imaginativo para jornais da imprensa negra do Rio W.E.B. Du Bois1 nos EUA, fizeram pensar as outras formas de integra- Grande do Sul eram trocados com críticas contundentes ao pensa- ção dos negros, homens e mulhe- os “coirmãos”, expressão que usa- mento social de matriz europeia res, à sociedade brasileira. Ainda vam, de todo o Brasil. As frontei- e buscaram a unidade de todos os carecemos de pesquisas sobre os ras eram superadas no lombo das afrodescendentes na diáspora. No intelectuais, operários, lideranças, mulas, navios, ferrovias e estradas, Brasil, também a imprensa negra médicos, jornalistas, engenheiros nas malas dos viajantes, intelectu- buscou tornar positivas algumas e políticos negros que construí- ais e trabalhadores os jornais via- características que identificavam ram o país e foram deixados de javam, e eram espalhados por to- os negros como oriundos do pro- lado na nossa história. A imprensa dos os lugares. Há registros, nesses cesso escravagista. A cor da pele negra, conjugada com outras fon- periódicos, de artigos preocupados não deu ao negro a possibilidade tes de pesquisa, pode nos ajudar a com o genocídio e a exploração co- de fugir de sua origem africana; descobrir esse passado, contribuir lonial no continente africano e de mesmo quando obteve educação e para a construção de identidades casos de linchamentos de negros dinheiro, ou “subiu na vida”, teve e reforçar a autoestima dos jovens nos Estados Unidos. O principal e de enfrentar o estigma de ser des- negros. ainda atuante jornal da imprensa cendente de escravizados. Sem o negra norte-americana, o Chicago trabalho educativo da importân- Defender, muitas vezes teve como IHU On-Line – A imprensa em cia dos escravizados na história do referência e parceiro de diálogo a geral e a imprensa negra contri- país, com o desconhecimento das nossa imprensa, nomeadamente, buíram para os processos de legi- culturas e civilizações africanas, os jornais de São Paulo. No nosso timação do 20 de Novembro como ninguém se identificaria com os caso, o racismo deles parecia mais data substitutiva ao 13 de Maio? termos – “raça” e “negro” – que cruel, afinal, nos Estados Unidos os De que maneira? remetem a aspectos genéticos de negros eram mortos e segregados, 54 “inferioridade” e a um “lugar pri- José Antônio dos Santos – A enquanto vivíamos na “democra- mitivo” (África). Quanto mais co- imprensa negra, nos primórdios, cia racial”. Para a imprensa negra nhecemos a história do continente quando publicava fotos e biografias norte-americana, o Brasil era vis- africano, mais aprendemos que das principais lideranças negras to como o paraíso da harmonia e 2 isso tudo foi invenção dos coloni- contra a escravidão – Luiz Gama, igualdade racial, imagem que se 3 zadores, cientistas e intelectuais José do Patrocínio, Aurélio Verís- esfacelava tão logo eles chegavam 4 europeus. Talvez, em virtude disso, simo de Bittencourt, André Rebou- ao nosso país. Enfim, os jornais, tenhamos atualmente a maioria da com suas imagens e palavras, sem- população brasileira identificada pre carregam consigo a representa- como negra e o termo raça sendo ção parcial de uma realidade. usado de forma positiva como si- 2 Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830- nônimo de afrodescendente. Os 1882): foi orador, jornalista e escritor brasi- jovens negros e negras usam com IHU On-Line – O que a trajetória leiro. Nascido de mãe negra livre e pai bran- orgulho, cada vez mais, turbantes, da imprensa negra pode revelar co, foi contudo feito escravo aos 10, e per- sobre o contexto sócio-histórico maneceu analfabeto até os 17 anos de idade. roupas coloridas e cabelos soltos, Conquistou judicialmente a própria liberdade são afirmações de uma negritude do negro no Brasil? e passou a atuar na advocacia em prol dos ca- que singrou os mares, cruzou o José Antônio dos Santos – A his- tivos, sendo já aos 29 anos autor consagrado tempo, e se mantém viva. e considerado “o maior abolicionista do Bra- tória da imprensa negra no Brasil sil”. (Nota da IHU On-Line) e, particularmente, no Rio Grande 3 José Carlos do Patrocínio (1853–1905): do Sul tem nos revelado o com- foi um farmacêutico, jornalista, escritor, ora- pleto desconhecimento dessa rica dor e ativista político brasileiro. Destacou-se 1 William Edward Burghardt “W. E. B.” como uma das figuras mais importantes dos Du Bois (1868-1963): foi um sociólogo, his- fonte de pesquisa que foi deixada movimentos Abolicionista e Republicano no toriador, ativista, autor e editor. Nascido no ao largo pelos historiadores. Ainda país. Foi também idealizador da Guarda Ne- interior do estado de Massachusetts, Du Bois hoje, os jornais escritos por negros gra, que era formada por negros e ex-escra- cresceu em uma comunidade relativamente no Estado são desconhecidos dos vos. (Nota da IHU On-Line) tolerante e integrada. Recebeu um diploma 4 Aurélio Veríssimo de Bittencourt em 1888 pela Universidade Fisk, e um se- jornalistas, os cursos de gradua- (1849-1919): foi um jornalista e escritor bra- gundo diploma por Harvard em 1890. Depois ção em jornalismo, assim como os sileiro. Iniciou sua vida profissional como jor- de dois anos de estudo na Universidade de principais livros e manuais sobre a nalista. Foi, depois, funcionário público, em Berlim, recebeu seu Ph.D (título de doutor) história da imprensa desconhecem 1868, chegando a secretário do presidente pela Harvard em 1895. W.E.B. Du Bois foi essas publicações. Os cursos de da província. Foi um dos fundadores da So- um autor prolifico, que publicou mais de vin- ciedade Pártenon Literário em Porto Alegre, te livros ao longo de sua vida. (Nota da IHU história do Brasil, em boa parte, dirigente do Jornal do Commercio entre 1903 On-Line) ainda não enfocam a participação e 1911. (Nota da IHU On-Line)

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ças5 – demonstrava quanto havia populacional do país e exige aten- municação tanto para a militância sido importante a mobilização dos ção. Não podemos esquecer que, quanto para o racismo? escravizados e seus descenden- antes de Zumbi dos Palmares,7 não José Antônio dos Santos – O ter- tes naquele processo que levou à tínhamos nenhum herói negro no mo imprensa negra, ao que tudo abolição. Embora houvesse alguns panteão nacional e nenhuma data indica, foi criado pelos jornalistas jornalistas que louvassem a Prin- que pudéssemos chamar de nossa. cesa Isabel,6 afinal, foi ela quem negros envolvidos com a funda- A imprensa, de um modo geral, é ção e manutenção dos primeiros assinou o documento que extinguiu fundamental para a legitimação de o cativeiro e, como se sabia na periódicos que tinham como alvo reivindicações e garantia de con- essa população. Ainda usamos esse época, tinha manifestas intenções quistas. Atualmente, tudo passa abolicionistas, muitos articulistas termo para definir e agrupar to- pela aprovação ou reprovação da das as mídias que se dirigem para daquela imprensa também recu- mídia, termo que abarca todas as peravam o protagonismo negro e esse agrupamento populacional ou formas de comunicação de massa. estão envolvidas em temáticas, denunciavam a situação em que se Então, desde que o Grupo Palma- encontrava a maioria dos negros. questões e reivindicações que lhe res, em Porto Alegre, em 1971, Portanto, muitos intelectuais da- dizem respeito. Com a internet e propôs o dia 20 de Novembro no quele período tinham consciência as redes sociais, mas também com meio negro da cidade, também do papel fundamental que a po- o ingresso de maior número de ne- teve artigo publicado por Olivei- gros e negras às universidades, e o pulação negra havia desempenha- 8 do para a conquista da abolição. A ra Silveira, no principal jornal do crescimento da classe média ne- liberdade de todos os escravizados estado, no ano seguinte. Logo eles gra, houve um processo crescente foi um passo fundamental para a buscaram a criação dos seus peri- de acesso às novas formas de co- construção da nação brasileira, ódicos, como foi o caso do jornal municação, o que se transformou mas foi apenas o primeiro, eram Tição, criado no final daquela dé- em mecanismos de divulgação de necessários muitos outros. Nesse cada, que hoje é tido como primor- atividades, meios de reivindicação sentido, o Dia Nacional da Consci- dial para o Movimento Negro brasi- e mobilização social e denúncias ência Negra, ou 20 de Novembro, leiro contemporâneo. públicas de casos de racismos e foi outra conquista necessária, que preconceitos no Brasil e no mundo. resultou de demandas contemporâ- IHU On-Line – De que forma o Sem dúvida, vivemos um tempo neas do Movimento Negro. Havia a senhor avalia a imprensa negra exuberante em termos de acesso necessidade de romper com o perí- hoje, sobretudo após o advento à informação e conhecimentos, e 55 odo anterior e registrar uma data da internet e mais recentemente a população negra em geral, mas, para chamar a atenção da socieda- das redes sociais? Que papel ela especialmente, os intelectuais e de para as necessidades e capaci- desempenha no contexto con- militantes negros, têm feito far- dades da população que se originou temporâneo da internet que ofe- to e apropriado uso dessas novas daquele processo, que, embora, rece mais potencialidades de co- mídias na defesa dos seus interes- relegada à margem pelo Estado ses. As desigualdades, o racismo e nacional é o principal contingente 7 Zumbi dos Palmares (1655-1695): úl- o preconceito se mantêm, mesmo timo líder do Quilombo dos Palmares. Foi com todo o aporte tecnológico, 5 André Pinto Rebouças (1838-1898): capturado e entregue a um missionário por- conhecimento apenas não muda as foi um engenheiro, inventor e abolicionista tuguês quando tinha aproximadamente seis brasileiro. Ele passou seus últimos 6 anos anos. Aos 15 anos de idade, fugiu e retornou a pessoas que criam e comandam as trabalhando pelo desenvolvimento de alguns seu local de origem. (Nota da IHU On-Line) máquinas. O que pode fazer a di- países africanos. (Nota da IHU On-Line) 8 Oliveira Ferreira Silveira (1941-2009): ferença no futuro é a punição para 6 Princesa Isabel (1846-1921): apelidada foi um poeta brasileiro. Formou-se em Le- casos de racismo na rede (inter- de “a Redentora”, foi a herdeira presuntiva tras (Português e Francês) pela Universidade do Império do Brasil com o título de Princesa Federal do Rio Grande do Sul. Militante do net), por exemplo, e a educação Imperial. Nasceu no Rio de Janeiro, a filha Movimento Negro em Porto Alegre, foi um para o respeito daqueles(as) que mais velha do imperador D. Pedro II do Bra- dos fundadores do Grupo Palmares, sendo são diferentes, mas também o uso sil e sua esposa D. Teresa Cristina das Duas um dos líderes da campanha pelo reconhe- que fazemos da tecnologia para di- Sicílias, sendo assim membro do ramo bra- cimento do Dia da Consciência Negra em 20 sileiro da Casa de Bragança. (Nota da IHU de novembro. Morreu de câncer, aos 67 anos. vulgar outras histórias do negro no On-Line) (Nota da IHU On-Line) Brasil, na África e na diáspora.

José Antônio dos Santos ■

Sou um negro intelectual envolvido nas principais questões da humanidade.

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Movimentos afro-latino-americanos: unidos pela diáspora e contra a opressão De acordo com Laura Cecilia López, apesar das especificidades de cada país, o histórico colonial e pós-colonial une as realidades latinas

Por Leslie Chaves

processo de colonização da Américas, no qual a sociedade como um América Latina, guardadas algu- todo se responsabiliza por esse passado e Omas particularidades, envolveu os efeitos de racismo até a atualidade”, a exploração de territórios, a ocupação explica. desses espaços e a opressão dos habitan- Ao longo da entrevista concedida por tes originários e dos povos que foram le- e-mail à IHU On-Line, Laura Cecilia López vados como força de trabalho para estas abordou diversos aspectos do cenário dos regiões, no caso majoritariamente os afri- movimentos sociais afro-latino-america- canos escravizados, que introduziram a nos, como as mobilizações de mulheres experiência da diáspora onde foram inse- negras, as políticas públicas direcionadas ridos. No período pós-colonial, conforme aos afrodescendentes e a organização po- a antropóloga Laura Cecília López, tam- lítica dos movimentos e dos governos na bém havia um objetivo comum quanto à abordagem das desigualdades raciais. A formação populacional desses países. “A pesar de reconhecer os avanços alerta: constituição dos Estados nação nas Amé- 56 “ainda são reduzidas as experiências de ricas se deu num cenário de geopolíticas transformação institucional mais profun- globais de raça, que tinham como hori- da, que atinjam epistemologias, modos zonte o embranquecimento da nação”, de lidar positivamente com a pluralidade aponta. de sujeitos”. A partir das similitudes e da troca de in- formações sobre as diferenças nos contex- Laura Cecilia López é argentina, gra- tos sociais e históricos, construiu-se uma duada em Ciências Antropológicas (Orien- rede transnacional de movimentos sociais tação Sociocultural) pela Universidad de negros na América Latina, conforme res- Buenos Aires – Argentina, mestre e douto- saltou a antropóloga, que durante suas ra em Antropologia Social pela Universida- pesquisas encontrou reivindicações e pen- de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. samentos compartilhados por esses grupos Atualmente é professora dos Programas militantes. “Um conceito que ressoou é o de Pós-graduação em Saúde Coletiva e em de reparação, e esse ponto pode ser to- Ciências Sociais da Universidade do Vale mado como comum às mobilizações afro- do Rio dos Sinos – Unisinos. Tem experi- -latino-americanas: a ideia de reparação ência na área das Ciências Sociais, com pelo crime de lesa humanidade que signi- ênfase em Antropologia das Populações ficou a escravidão, que nos remete a um Afro-americanas, Antropologia do Corpo e horizonte almejado pela militância negra da Saúde, Estudos Descoloniais. de um novo pacto social em cada país das Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua pesquisa emergidos desses países é possí- çar com a minha trajetória de pes- em que países latino-americanos vel se ter uma perspectiva do que quisa e como fui construindo um foram examinadas as mobiliza- ocorre na America Latina como caminho metodológico para pensar ções afro-latino-americanas? Em um todo? contextos locais e transnacionais linhas gerais, qual o contexto dos em relação às mobilizações afro- movimentos sociais negros latinos Laura Cecilia López – Para res- -latino-americanas. Venho desen- foi encontrado? A partir dos dados ponder essas questões devo come- volvendo trabalhos sobre processos

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identitários e mobilizações políti- plementação de políticas públicas sibilidade ao denunciar o racismo cas negras a partir da monografia com enfoque étnico-racial. Na nos países latino-americanos (pen- de conclusão do curso de Antropo- minha argumentação, a partir de semos que em épocas anteriores logia na Universidade de Buenos levar a sério as perspectivas e as a visibilidade mundial do racismo Aires (Argentina), que analisou as próprias vozes críticas dos meus estava vinculada ao Apartheid3 sul- construções de identidade étnica interlocutores, questiono a ideia -africano e ao regime Jim Crow4 do de afro-uruguaios imigrantes em de vários intelectuais brancos de sul dos Estados Unidos), quanto por Buenos Aires em torno da cultura que os movimentos negros latino- pactuar com os diferentes Estados performática do candombe. Dei -americanos são produto de uma um plano de ação a ser desenvol- continuidade na dissertação de “imposição” do imperialismo esta- vido em cada país em relação a mestrado em Antropologia Social dunidense através de fundações e políticas públicas antirracistas. (realizado no Brasil, na UFRGS), na financiamentos globais para os pa- Então, ao longo do meu campo qual examinei as reconfigurações íses periféricos, pressupondo a não pude acompanhar tanto proces- do ativismo afro-argentino em face existência de racismo nas socieda- sos preparatórios da Conferência de processos transnacionais e os des latino-americanas. na Argentina e no Uruguai, e seus desdobramentos de um pleito com desdobramentos e efeitos nas po- Nesse sentido, proponho pen- o Estado sobre a implementação da líticas, incluindo já nesse período sar que a dimensão transnacional contabilização dos afrodescenden- meu campo no Brasil. dos movimentos negros é inerente tes no censo nacional argentino. à própria ideia e historicidade da Um conceito que ressoou nesses Nesses trabalhos, esboçava-se a diáspora africana nas Américas e diálogos com a militância negra é possibilidade de indagar na trans- sua ligação com a experiência de o de reparação, e esse ponto pode nacionalidade desses processos: escravidão, que provocou o des- ser tomado como comum às mobi- seja no primeiro caso, através dos locamento forçado e violento de lizações afro-latino-americanas: a laços étnicos e formas artísticas milhões de africanos dentro do ideia de reparação pelo crime de que atravessavam fronteiras na- sistema-mundo criado com a co- lesa humanidade que significou a cionais; seja no segundo, que des- lonização e o capitalismo; com a escravidão, que nos remete a um tacava as conexões de fluxos glo- desumanização de sujeitos negros horizonte almejado pela militância bais e processos nacionais através e ameríndios, através de relações negra de um novo pacto social em das articulações e reconfigurações coloniais que tem efeitos até hoje; cada país das Américas, no qual a do ativismo negro. Mas também com uma experiência de raça que sociedade como um todo se respon- 57 demonstravam a necessidade de vincula tempos e espaços (o que vi- sabiliza por esse passado e os efei- comparar “para ver melhor” as venciaram nossos ancestrais, forma tos de racismo até a atualidade. expressões políticas e poéticas da parte da nossa corporeidade); com diáspora africana nas Américas, se constituir como um coletivo com IHU On-Line – Quais aspectos como elas se constituem local e conexões, trânsitos e perspectivas você destaca como mais marcan- transnacionalmente, e como vêm culturais para além das nações e tes da experiência de militância a interferir no espaço “branco” e/ crítico das ideologias nacionais ba- negra em cada um dos países pes- ou “mestiço” da nação. Foi assim seadas na ideia de homogeneida- quisados? Em que se distanciam que escolhi o Cone Sul como con- de, seja pela mestiçagem ou pelo e se aproximam os processos de texto regional e três cidades pró- branqueamento. mobilização nesses países? ximas (Buenos Aires, Montevidéu Lembremos que a constituição e Porto Alegre) – mas de três paí- Laura Cecilia López – Do meu dos Estados nação nas Américas se ses diferentes (Argentina, Uruguai campo na Argentina, desde finais deu num cenário de geopolíticas e Brasil), mas que apresentavam da década de 1990 até o ano 2005, globais de raça, que tinham como conexões entre si – como cenário horizonte o embranquecimento da local para a realização da pesquisa nação. Nos diálogos em campo e 3 de doutorado. 4 Leis de Jim Crow: foram leis estaduais com literatura da área, reconstitui e locais decretadas nos estados sulistas e li- Na tese de doutorado em Antro- um cenário em que a Conferência mítrofes nos Estados Unidos, em vigor en- pologia Social (também realiza- Mundial Contra o Racismo2, orga- tre1876 e 1965, e que afetaram afro-ameri- do na UFRGS) analisei itinerários nizada pelas Nações Unidas, e re- canos, asiáticos e outros grupos. As leis mais importantes exigiam que as escolas públicas e perspectivas das mobilizações alizada em Durban, África do Sul, e a maioria dos locais públicos (incluindo políticas negras contemporâneas em 2001, se tornava central para trens e ônibus) tivessem instalações separa- no Cone Sul1, em cenários de im- entender os movimentos afro-lati- das para brancos e negros. Estas Leis de Jim Crow eram distintas dos Black Codes (1800- no-americanos, tanto por ter sido 1866), que restringiam as liberdades e direi- 1 Cone Sul (em espanhol: Cono Sur): é uma um espaço propício para se pensar tos civis dos afro-americanos. A segregação região composta pelas zonas austrais da Amé- como coletivo e alcançar uma vi- escolar patrocinada pelo estado foi decla- rica do Sul, ao sul do Trópico de Capricórnio, rada inconstitucional pela Suprema Corte formando uma espécie de grande penínsu- em 1954 no caso Brown v. Board of Educa- la que define o sul do subcontinente. Geogra- assemelha a de um triângulo escaleno. (Nota tion. Todas as outras leis de Jim Crow foram ficamente, o Cone Sul da América é a porção da IHU On-Line) revogadas pelo Civil Rights Act de 1964. sul do continente americano, cuja forma se 2 (Nota da IHU On-Line)

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posso destacar as mobilizações como força identitária. O trânsi- problemas sociais legitimados que contemporâneas dos afro-argenti- to é fluido entre esses universos resultassem em políticas públicas. nos que se retroalimentaram com a sendo que os próprios militantes Observamos uma militância com chegada de imigrantes afro-latino- “políticos” tem laços pessoais, de múltiplos pertencimentos e rela- -americanos e africanos a partir parentesco, de vizinhança, e ex- ções, inserida em partidos políti- da década de 1980, com grandes periências próximas ao universo do cos e outros movimentos sociais. A tensões para se definir como - mo candombe. Uma militância base- militância articula espaços negros, vimento. O grande desafio dessas ada na linguagem da família e da com organizações que vão das que mobilizações me parece ser a des- vizinhança. gravitam nos laços familiares e de construção do imaginário nacional vizinhança até entidades de al- que apagou quase que completa- Confrontei-me também com uma situação particular de mudanças cance nacional. Percebi tensões mente a presença negra (embora a e alianças em torno de discussões produção cultural que mais carac- políticas aceleradas, relacionadas 5 elaboradas pela militância de como teriza o país internacionalmente com a posse do Frente Ampla do governo nacional e a inserção de interpretar as relações de poder no seja o tango, com raízes afro até Brasil: relacionando raça/classe, militantes negros na esfera do Es- no seu próprio nome...). raça/território, raça/gênero, para tado. A construção da trama de dar forma a projetos políticos ne- O processo pós-Durban fortale- políticas públicas com perspectiva gros. Estas distinções delinearam ceu um órgão criado na década de étnico-racial toma um novo im- ações e demandas que se expres- 1990, o Instituto Nacional de Com- pulso e são criados escritórios em sam hoje de maneira convergente bate a la Discriminación – INADI, diferentes órgãos do governo para mecanismo ressaltado nas avalia- em torno das discussões sobre polí- orientar as políticas para a equida- ções internacionais após Durban. ticas de ação afirmativa: de acesso de racial. Em seus primeiros anos, atendia à educação, saúde, direito a terras basicamente as manifestações an- No Brasil, no campo realizado e territórios étnicos, mercado de tissemitas, porém, a partir de 2003, desde o ano 2005, identificamos trabalho. foram ativados fóruns internos ao um movimento negro contemporâ- Os processos de mobilização nes- INADI para tratar outras temáticas, neo com uma grande pluralidade e ses três países se distanciam pelas entre elas, a discriminação racial expandido a nível nacional, que co- conjunturas locais diferenciadas, 58 contra os afrodescendentes, indí- meça com ações disseminadas pe- em termos de relações raciais e genas e imigrantes latino-america- las organizações nos anos 1970 nas de historicidade da população ne- nos e africanos; e assim orientar as diferentes cidades do Brasil e com gra nesses três países que é muito políticas promovidas pelo Institu- uma tentativa de unificação da luta diferente: na Argentina, com uma to. O processo Durban abriu espaço antirracista com a criação do Movi- invisibilidade gritante da popula- também para a discussão sobre a mento Negro Unificado – MNU a -fi ção negra; no Uruguai, com uma contabilidade dos afrodescenden- nais dessa década. A junção da mi- presença cultural importante atra- tes no censo argentino como um litância negra com a participação vés do candombe (embora no ima- processo de reconhecimento desse em partidos políticos (particular- ginário uruguaio seja um gênero segmento da população no espaço mente o Partido dos Trabalhadores) artístico identificado como símbolo da nação. e em sindicatos ao longo dos anos nacional e não necessariamente à No caso do Uruguai, no campo 1980 e 1990 apresentou um espaço população negra, mas que na sua realizado entre 2006 e 2008, me de disputas e alianças a partir de vivência cotidiana sim corporifique deparei com um movimento negro visões da sociedade diferenciadas, uma experiência e memória negra); contemporâneo com uma forte in- mas que reforçaram a interven- no Brasil, com uma presença forte serção internacional remetida às ção do movimento negro na esfe- da população negra, embora no sul décadas de 1990 e os anos 2000 ra pública no sentido de constituir exista uma invisibilidade, mas com (foi bastante importante a pre- um cenário de visibilizar o racismo sença da delegação afro-uruguaia 5 Frente Ampla (em espanhol: Frente Am- como constituinte da sociedade. plio – FA) é uma coalizão eleitoral de centro- na Conferência de Durban), e com -esquerda do Uruguai, da qual integram Algumas similitudes foram obser- um processo de fragmentação da vários partidos políticos e organizações da vadas em termos de lógica política: organização que foi central nessa sociedade civil. Foi fundada em 5 de feverei- a dinâmica de segmentariedade e ro de 1971 na tentativa de eleger Líber Sereg- internacionalização. Esta reconfi- ni à presidência da República. Com o golpe aliança foi algo que me chamou a guração parecia particularmente militar de 27 de junho de 1973 foi colocada atenção nos três países e que pode derivada de tensões de gênero, na ilegalidade e reprimida, assim como os ser pensado em termos mais cos- líderes que a formavam. Seu líder à épo- sendo que a maioria das novas or- ca, Líber Seregni, é preso. Mais de trinta anos mológicos ou cosmopolíticos. Nesse ganizações eram de mulheres ne- depois, já na democracia, elegeu Tabaré Váz- sentido, interpretei uma lógica que gras. Também percebi que os laços quez para presidente do Uruguai. Após cinco implicitamente questiona ao Esta- étnicos que conformam uma cole- anos de um governo popular, elege seu suces- do ocidental, que se pretende Um sor, José Mujica. Em 2014, Tabaré Vázquez é tividade na linguagem do candom- eleito presidente novamente. (Nota da IHU e que pretende uma população que be eram retomados pela militância On-Line) opere com a mesma lógica classi-

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ficatória. A definição de demandas pactos nos planos nacionais. Entre por parte do Estado. Isso teve um da militância, por um lado, parece eles, contribuíram para a legitima- impacto nos censos de população se enquadrar na lógica das divisões ção de espaços públicos de debate nos diferentes países. do Estado (saúde, educação, etc.), sobre relações raciais nos diferen- No início dos anos 2000, teve mas por outro a questiona pela sua tes países da América Latina, e a uma série de estudos exploratórios própria dinâmica e por ser um co- implementação de políticas públi- em diversos países latino-america- letivo que se conforma a partir de cas com perspectiva étnico-racial. nos de como introduzir variáveis outras dimensões, como ressaltei que contemplassem aos afrodes- em termos da diáspora, que supe- IHU On-Line – As agendas das cendentes financiados pelo Banco ram o espaço e o tempo restrito da mobilizações afro-latino-ame- Mundial, e ainda experiências assu- nação. ricanas apresentam pontos em midas pelos próprios órgãos estatís- comum? Quais? Como esse fato ticos. Assim, a questão da inclusão IHU On-Line – As mobilizações se reflete na luta dos negros na de variáveis étnico-raciais nos cen- afro-latino-americanas se articu- América Latina? sos passou a ser uma demanda das lam na América Latina? De que Laura Cecilia López – Sim, vou mobilizações afro-latino-america- modo? Que reflexos esse modo nas, que teve um desdobramento de organização tem no contexto dar o exemplo das discussões para incluir nos censos da América La- interessante na rodada de censos das lutas dos movimentos sociais do ano 2010, em que militantes, tina a contabilização da população negros? órgãos estatísticos nacionais e or- negra. Esta demanda vem da dé- ganizações globais realizaram uma Laura Cecilia López – Sim, se cada de 1990, quando começaram série de eventos para discutir essa articulam. Nas minhas pesquisas a se expandir redes transnacionais inclusão nos países da região. reconstituí a conformação de redes de militantes que dialogavam com transnacionais de ativistas organi- agências financiadoras como o zados em torno de causas coletivas Banco Mundial. Relação bastante IHU On-Line – Você aponta que antirracistas, que encontraram um complexa no sentido desses órgãos a perspectiva da diáspora inaugu- cenário mundial favorável a partir estarem incentivando as ações da ra o “momento contemporâneo” da década de 1970 em circuitos de sociedade civil organizada correla- dos movimentos sociais negros identificações através de diferen- cionadas com as políticas de ajuste latino-americanos. Em que con- tes realidades coloniais e pós-colo- estrutural, mas que foi um cenário siste a noção de diáspora? Por que niais e de lutas pela redemocrati- interessante para as mobilizações e como ela inaugura esse “novo 59 zação em vários países da América afro-latino-americanas, particu- tempo” desses movimentos? Latina. larmente em países com uma in- Laura Cecilia López – A lingua- Nesse cenário, as mobilizações visibilidade grande (como no caso gem da diáspora foi uma elabora- negras no Cone Sul inseriram a da Argentina), porque as colocou ção que emergiu na década de 1960 questão racial em contextos em como atores que podiam ser ouvi- entre intelectuais e ativistas negros que predominava uma noção de dos pelos agentes do Estado. como resposta ao pan-africanismo, movimento social vinculada à clas- O caso das discussões dos censos entendido em termos de “mesmi- se. Nos anos de 1990, estas redes é emblemático, porque sem dados dade” e comunalidade cultural se disseminam – paradoxalmente estatísticos para mostrar percen- assumidas a-historicamente como – com a expansão do neoliberalis- tuais de população negra e indica- unidade política entre as pessoas mo e com o foco de atores globais dores sociais desse segmento era negras. Nesse sentido, apontou-se em temáticas afrodescendentes e impossível qualquer demanda de um sentido historizado e politizado indígenas como objeto de finan- política pública. Inclusive, como da diáspora, entendida como um ciamento e parceria com Organi- na Argentina, era difícil descons- circuito transnacional de políticas zações Não Governamentais – ONGs truir a própria invisibilidade sem e culturas por sobre a nação e além na América Latina. Como já men- a presença no censo. Cabe desta- dos oceanos, que conformara uma cionamos, a Conferência de Durban car que, até a década de 1990, o arena de contestação e de identi- de 2001 é um exemplo destas arti- Brasil era o único país da região ficação baseados em pleitos e ne- culações locais-globais. que tinha algum tipo de registro gociações da diferença. Desta for- ma, repensavam-se as narrativas Podemos vislumbrar as ações da étnico-racial. Com as discussões históricas e culturais pautadas por sociedade civil organizada junto a sobre multiculturalismo em várias noções de centro e periferia e, em agências internacionais que pro- reformas das Constituições nos di- uma perspectiva multi-localizada, moveram o evento e pressionaram ferentes países latino-americanos, começava-se a problematizar as os Estados da América Latina a re- relacionadas às mobilizações ne- experiências identitárias, no caso, modelar ou mesmo criar institui- gras e indígenas por direitos de ci- de afrodescendentes. ções e políticas com o propósito dadania também foi impulsionado de reparar às populações afrodes- um questionamento e uma trans- Nos Estados Unidos, as mobiliza- cendentes. Esses reordenamentos formação nos modos de registrar a ções pelos direitos civis resseman- transnacionais tiveram vários im- diversidade da população nacional tizaram o termo “negro”, que pas-

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sou a representar uma tentativa de noções de pluralismo dos Estados ram uma incidência direta em vá- reivindicar uma herança africana nacionais já estivessem postas em rios rumos políticos do governo do que havia sido negada aos norte- cartas constitucionais (no Brasil, presidente Luiz Inácio Lula da Sil- -americanos negros pelo racismo. por exemplo) nos anos de 1980 e va), foi criada a Secretaria Especial Mas, como projeto político histo- 1990, resultantes de um debate de Políticas de Promoção da Igual- ricamente específico localizado na intenso dos períodos de transição dade Racial – Seppir, órgão guarda- dinâmica sócio-política e econômi- de ditaduras, em Durban há uma -chuva para as várias políticas com ca nesse país, a ideologia do Poder reconfiguração de noções de justi- enfoque nas desigualdades raciais Negro6 não reivindicava simples- ça que enfatizam os modos como e na diversidade étnico-racial. mente um passado ancestral pré- Estados nacionais invisibilizam as A Conferência de Durban, se tor- -determinado. No próprio processo conexões entre desigualdade social nando um espaço de protagonismo também se construía uma versão e racismo, assim como não viabili- dos movimentos afro-latino-ameri- particular dessa herança. Segundo zam transformações pluriculturais. canos, como antes falei, teve um Stuart Hall7, as lutas por redesco- Nesse sentido, que é proposto que efeito potencialiazador, por exem- brir as “raízes/rotas” africanas no a perspectiva diaspórica inaugura o plo, na discussão de ações afirmati- interior das complexas configura- momento contemporâneo dos mo- vas no ensino superior. Vivenciamos ções da cultura caribenha (mas que vimentos negros. mais de 10 anos de ações afirmati- pode ser pensado também para as vas no Brasil e no momento vemos Américas de modo geral) e por fa- IHU On-Line – As mobilizações uma onda conservadora que afeta lar, através desse prisma, das rup- afro-latino-americanas contem- as várias dimensões da nossa vida turas do navio, da escravidão, da porâneas têm incidido no âmbito social, entre elas, oposições a con- colonização, da exploração e da político de proposição de ações siderar políticas que desconstruam racialização produziram o sujeito institucionais e políticas públi- o racismo. Vivemos também uma negro nas Américas e a “África” na cas de combate às desigualda- crise de legitimidade das políticas diáspora. des raciais e ao racismo? De que redistributivas (e que eu incluiria Lembramos ainda que a Confe- maneira? Qual é a situação deste os sistemas de cotas, já que re- rência de Durban, tal como analisa cenário? distribuem vagas sejam no ensino 8 Agustín Láo-Montes , inaugurou um Laura Cecilia López – Nos dife- superior, nos concursos públicos, 60 momento de protagonismo dos mo- rentes países teve processos diver- etc., com um olhar de equidade, vimentos afro-latino-americanos sos, conforme as conjunturas. No de justiça social) que afeta tam- na arena transnacional, colocan- Brasil, os efeitos das mobilizações bém as ações afirmativas. do em primeiro plano noções de negras vêm sendo grandes, embora Podemos falar de um certo su- justiça baseadas nas experiências bastante dificultados precisamen- cesso no acesso e conclusão de cur- diaspóricas na América Latina, que te porque as agendas antirracistas sos de estudante negros. Porém, chamam a atenção para a conver- propõem uma desconstrução do me parece que ainda são reduzidas gência de igualdade racial e plu- que é chamado de racismo institu- as experiências de transformação ralismo cultural. Mesmo que tais cional, que se expressa de manei- institucional mais profunda, que ra disseminada nas instituições. Se 6 Black Power (em português: Poder ne- atinjam epistemologias, modos de gro): foi um movimento entre pessoas ne- considerarmos o racismo como algo lidar positivamente com a plura- gras no mundo ocidental, especialmente nos estrutural da sociedade brasileira lidade de sujeitos que estão pas- Estados Unidos. Mais proeminente no final (junto com classe social, gênero), dos anos 1960 e início dos anos 1970, o mo- sando por essas instituições. Essa vimento enfatizou o orgulho racial, racismo e este provoca situações que afetam mudança talvez se potencialize da criação de instituições culturais e políticas a população como um todo, tendo quando se pensem ações afirma- negras para cultivar e promover interesses efeitos negativos em mais da me- tivas, como em algumas universi- coletivos, valores antecipadamente, e segura tade da população brasileira (se autonomia para os negros. A expressão “Bla- dades existem, que atinjam a pós- ck Power” foi criada por Stokely Carmichael, levarmos em consideração os per- -graduação e ainda os concursos de militante radical do movimento negro nos centuais de população negra do professores. Essa dinâmica deveria Estados Unidos, após sua vigésima sétima IBGE9). detenção em 1966. “Estamos gritando liber- também atingir outros domínios dade há seis anos. O que vamos começar a Após a Conferência de Durban, públicos: por exemplo, existe a Po- dizer agora é poder preto”, anunciou. (Nota lítica Nacional de Saúde Integral da da IHU On-Line) e com o Partido dos Trabalhadores 7 HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades assumindo a presidência da nação População Negra, com a finalidade e mediações culturais. : Ed. (pensemos que muitos militantes de trabalhar os impactos do racis- UFMG, 2003. (Nota da Entrevistada) do movimento negro militavam no mo na vida, na saúde dos sujeitos e 8 LAO-MONTES, Agustin. Sin justicia étni- co-racial no hay paz: las afro-reparaciones PT, fundaram o partido, então tive- coletivos negros. Com mais profis- en perspectiva histórico-mundial. In: MOS- sionais negros formados, com cur- QUERA, Claudia; BARCELOS, Luiz C. (ed.) 9 No último censo do Instituto Brasileiro de rículos universitários que assumam Afro-reparaciones: Memorias de la Esclavi- Geografia e Estatística – IBGE apontou que uma perspectiva étnico-racial para tud y Justicia Reparativa para negros, afro- 50,7% é negra, número que inclui os per- -colombianos y raizales. Bogotá: Universidad centuais de pretos e pardos. (Nota da IHU pensar a saúde, com ações afirma- Nacional de Colombia, 2006. On-Line) tivas para ocupar cargos por esses

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profissionais negros formados,- po nial” de Frantz Fanon11, a partir da articulação entre as mulheres ne- deria ser fortalecida a política. inquietação de interpretar as expe- gras dos países latinos? riências dos movimentos negros na Laura Cecilia López – A visibili- perspectiva de uma filosofia políti- IHU On-Line – Em um de seus dade política do corpo negro é uma ca afro-latino-americana, e busco trabalhos você trata da questão constante nas mobilizações negras, referenciais também afro-latinos das mobilizações negras a partir sejam de homens ou de mulheres. da concepção do corpo como ins- para exprimir essa perspectiva. Um Porém, existem diferentes expres- tância de construção de identi- dos pontos centrais propostos pelo sividades desses corpos na articu- dade em contextos racializados. pensador afro-caribenho é que a lação de raça e gênero. Seguindo Como funciona a articulação des- crítica ao colonialismo produz um as trilhas dos meus interlocutores sas duas concepções para pensar deslocamento tanto em termos de em campo, me chamou a atenção a militância negra? temporalidade/historicidade (a que as mulheres negras davam uma passagem de uma subjetividade visibilidade maior para o “corpo Laura Cecilia López – Como co- colonial a uma subjetividade deco- loca a autora indiana Avtar Brah10, colonial”, no sentido de crítica à lonial); quanto da espacialidade: a própria ideia de mestiçagem, que o poder racializado opera em e criação política de uma geografia através dos corpos. Mesmo reto- constitui os ideários das nações diferente para a subjetividade co- latino-americanas. mando a Foucault, interpretamos lonial, que visibiliza a marca colo- que raça produz efeitos de poder nial, mas retirando a positividade O corpo e a sexualidade, assim nas populações e nos corpos, como que a produzia. como a reprodução vinculada à formas de biopoder. Então a cen- ideologia da mestiçagem, apre- tralidade do corpo para entender O corpo colonial é o lócus prin- sentaram-se durante o trabalho de os fenômenos de racialização das cipal desse deslocamento, sendo a campo como centro das atenções relações sociais é fundamental. pergunta crítica da descolonização da militância das mulheres negras, Mas ao mesmo tempo, e ai discuto que lhe dá visibilidade e organiza vinculando a autonomia sexual em com intelectuais brancos que des- suas potencialidades. Eu retomo relação à reprodução (um assunto tacam o poder opressivo de raça (e a poesia de Victoria Santa Cruz, do feminismo) à dupla opressão de em muitos casos chegam a propor Negra Soy12, precisamente como gênero e raça, expressa na imagem a eliminação do próprio conceito expressão poética do deslocamen- hipererotizada da mulher negra. como categoria de análise), sem to do corpo colonizado (“me senti A crítica de raça e gênero do fe- entender o poder criativo. Criativo negra, como eles diziam, e retro- 61 minismo negro chama a atenção ao no sentido de resistência, de cor- cedi”) ao corpo descolonizado (“no lugar das mulheres negras na repro- poreidade, de estética, etc. fim compreendi, já tenho a chave, dução da nação. Se o movimento negra sou”), deslocamento que Me parece que o que os movimen- negro (com um perfil masculino de implica o “situar-se como negra”, tos negros propõem é precisamen- liderança, questão criticada pelas uma situacionalidade descolonial. te desconstruir a racialização das feministas negras) propõe em sua Entender esse deslocamento numa relações sociais e do próprio corpo, raiz uma crítica à democracia ra- perspectiva afro-latino-americana que coloca à população negra numa cial enquanto “mito”, questionan- me parece de extrema importância situação de desvantagem e a desu- do as posições desiguais em termos para levar a sério as propostas po- maniza, lhe retira a humanidade. raciais na sociedade brasileira, a lítico-estéticas de justiça racial e Mas ao mesmo tempo, as mobiliza- crítica do movimento de mulheres da densidade das experiências que ções negras também visibilizam o negras se faz “corpo” ao atribuir à corporificam a raça e a diáspora. vínculo entre corpo e raça de ma- “mestiçagem” a violência sexual neira a expressar uma diferença, do homem branco colonizador so- uma pluralidade de experiências, IHU On-Line – Nessa perspecti- bre as mulheres africanas e indí- uma incorporação da história, que va, quais seriam os aspectos mais genas. Crítica que se constitui por não pode ser apagada. marcantes da corporeidade das meio da conexão diaspórica desse mulheres negras latinas na mili- processo de opressão nas Américas. tância que inclui os aspectos do IHU On-Line – Em que consiste O corpo da mulher negra se torna “gênero” nas lutas negras e da visível como objeto de múltiplas o deslocamento da concepção de opressões e o centro das disputas “corpo colonizado” para “corpo “raça” nas lutas feministas? Como políticas. Esta violência de raça e descolonizado”? Como se deu e o é o cenário das mobilizações de gênero aparece como o ponto ini- que significa esse movimento no mulheres na América Latina? Há cial de uma narrativa subalterna contexto da América Latina? 11 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras que critica o poder do ponto de Laura Cecilia López – Eu traba- brancas. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952]. _____. Os condenados da terra. Rio de Ja- vista do corpo que o sofre e produz lho com o conceito de “corpo colo- neiro: Editora Civilização Brasileira, 1968 uma identificação afro-diaspórica. [1961]. (Nota da entrevistada) 10 BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora. 12 SANTA-CRUZ, Victoria. Me gritaron ne- Identidades en cuestión. Madrid: Traficantes gra. Disponível em http://bit.ly/1HPWKea IHU On-Line – Qual a importân- de Sueños, 2011. (Nota da entrevistada) (Nota da entrevistada) cia das mobilizações das mulhe-

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res negras para a militância negra ressante porque no Uruguai, existe africanas, os movimentos pelos latino-americana? uma Secretaria da Mulher Afro-uru- direitos civis nos Estados Unidos. guaia dentro do Instituto da Mu- O dia 20 de novembro como data Laura Cecilia López – As mo- lher, que depende do Ministério de da Consciência Negra origina-se bilizações de mulheres afro- Desenvolvimento Social. Podemos numa organização de Porto Alegre, latino-americanas me parecem perceber várias interseccionalida- o Grupo Palmares, celebração que de fundamental importância, já des contempladas na inserção da depois se expande pelo Brasil e por que questionam ao mesmo tempo temática, mas, ao mesmo tempo, outros países, grupo que reuniu mi- vários sujeitos “totais”: seja “o” que política de desenvolvimento litantes, intelectuais, poetas e es- sujeito negro (no masculino – ge- social atingiria aos homens negros? critores e teve como figura central ralmente se fala “o negro”), seja Eles entrariam como pobres e não Oliveira Silveira, que se tornou um “a” mulher (muitas vezes identi- como negros? É complexo porque ícone da intelectualidade afro-bra- ficada como uma mulher branca, nossas instituições funcionam na sileira. O comunitarismo do qui- de classe média). As pensadoras lógica do Um e não da pluralidade. lombo dos Palmares, proposto pelo feministas negras estão chamando grupo, expressava uma liberdade a atenção para a pluralidade de conquistada, substituindo a ideia experiências de ser mulher, de ser IHU On-Line – O que representa de liberdade concedida do dia 13 negra, e assim por diante. As nos- para o cenário de lutas da mili- de maio. Produzia-se um desloca- sas existências são plurais, só que tância e construção da identidade mento da colonialidade para a de- estamos muito acostumados a pen- étnica negra o deslocamento da colonialidade a partir de constituir sar através de uma filosofia do Um, ideia do “13 de maio” para o “20 um sujeito negro que conquista do Estado, da sociedade ocidental. de novembro” como data evoca- sua liberdade, ator da sua própria As filosofias da diferença que ques- tiva das lutas dos movimentos so- história, incorporando o ideário de tionam esse Um, desestabilizam ciais negros no Brasil? Palmares. nosso pensamento e as instituições Laura Cecilia López – Me parece promotoras de políticas. um deslocamento potente que en- IHU On-Line – Deseja acrescen- volve uma transformação profunda Um exemplo no Brasil são as po- tar algo? líticas orientadas para a promoção do lugar dos sujeitos negros na na- da igualdade racial separadas das ção e para além dela, já que o 20 Laura Cecilia López – Gostaria 62 políticas promotoras da igualdade de novembro foi inspirado não só de destacar a ideia que perpassou de gênero. Geralmente o esforço pelas lutas históricas locais, mas a minha tese de doutorado, e que de articulação desses conjuntos também diaspóricas: as ideias de se relaciona com o que projeto 13 de políticas tem a ver com a ação Negritude , as independências como horizonte de luta no Dia da da militância. Porque não projetar Consciência Negra: a necessidade 13 Negritude (Négritude em francês): de levar a sério a perspectiva afro- políticas sensíveis à intersecciona- corrente literária francesa que agregou es- lidade de raça e gênero (e outras critores negros francófonos e também uma latino-americana como uma filoso- como, orientação sexual, classe, ideologia. Os objetivos do movimento Ne- fia política que nos interpela como gritude são a valorização da cultura negra etc.) se os próprios sujeitos de- sociedade para que novos pactos em países africanos ou com populações afro- sociais / éticos / estéticos antirra- mandantes, particularmente as -descendentes expressivas que foram vítimas  feministas negras, estão apontan- da opressão colonialista. Considera-se geral- cistas possam ser realizados. mente que foi René Maran, autor de Batou- do essa experiência complexa de ala, o precursor da negritude. Todavia, foi era o instrumento da administração colonial desigualdades? Quer dizer que não Aimé Césaire quem criou o termo em 1935, francesa (Discurso sobre o colonialismo, Ca- levamos a sério como sociedade no número 3 da revista L’étudiant noir (“O derno dum retorno ao país natal etc). O con- a complexidade das opressões na estudante negro”). Com o conceito pretendia- ceito foi retomado mais adiante por Léopold -se em primeiro lugar reivindicar a identida- Sédar Senghor, que o aprofunda, opondo a nossa sociedade, demanda na esfe- de negra e sua cultura, perante a cultura fran- razão helênica à emoção negra. (Nota da IHU ra pública por vários atores. É inte- cesa dominante e opressora, e que, ademais, On-Line)

Laura Cecilia López

Quem eu sou tem a ver com múltiplas experiências da vida, mas com certeza as minhas interlocutoras e interlocutores de pesquisa me ajuda- ram a constituir a forma como eu me vejo no mundo: me vejo como uma mulher branca latino-americana antropóloga, que questiona a branquitu- de como sistema de privilégios e como universal ético/estético, compro- metida com as lutas políticas/epistemológicas que expressam e reivindi- cam equidades e pluralidades.

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Religiões de matriz africana e cristianismo: um diálogo possível? Para Volney J. Berkenbrock, ao mesmo tempo que essas duas tradições religiosas são diversas, elas se afetam mutuamente na tarefa de encontrar o sentido da vida

Por Leslie Chaves

s sistemas religiosos, ao propor perante o contexto social e histórico formas de viver e interpretar o que cercam as tradições religiosas. Ain- Omundo e experienciar o divino, da, traz o tema do sincretismo religioso, também revelam importantes aspectos um modo peculiar do brasileiro de se re- históricos e socioculturais de um grupo lacionar com o sagrado e transitar pelo social. O Brasil, um país multicultural, cenário multicultural do país, onde as foi construído a partir da contribuição de diferentes tradições religiosas, como o muitos povos que carregam consigo sua catolicismo e o Candomblé, se afetam e herança cultural, a qual se expressa a constroem-se reciprocamente. “Entendo partir de diversos elementos, entre esses que o sincretismo é um processo perma- a religião. Atraído por “mundos diferen- nente de diálogo, parte da dinâmica cul- tes do seu”, o teólogo Volney J. Berken- tural. Assim, dentro dele, há elementos brock mergulhou na tradição religiosa de que são interessantes numa análise. Um matriz africana para entender, a partir do deles é justamente esta mútua influên- 63 Candomblé, essa cosmovisão do sagrado cia. Ao falarmos de sincretismo no Brasil e que relações são possíveis de serem es- muitas vezes se pensa logo nas religiões tabelecidas com o catolicismo. “Qual res- afro-brasileiras, como se fossem somen- posta de sentido encontra quem faz a ex- te elas passíveis de serem sincretizadas; periência dos Orixás e em que medida o fazendo uma análise mais apurada se cristianismo pode dialogar com isto. Este pode perceber que – mesmo estando em tema serviu não apenas para o doutora- condição social muito adversa – as com- do, mas para nortear minhas pesquisas preensões religiosas de matriz africana até hoje: a religião dos Orixás como um também deixaram marcas em tradições sistema de sentido, de compreensão da cristãs”, aponta. existência e, sobretudo, de respostas às Volney J. Berkenbrock é frei francis- questões do ser humano. É uma temática cano e doutor em Teologia pela Faculda- de pesquisa e curiosidade que nunca se de de Teologia Católica da Universidade acabaram”, explica. Federal de Bonn, Alemanha, título que Ao longo da entrevista concedida por obteve com a tese A experiência dos e-mail à IHU On-line, Berkenbrock fala Orixás (Petrópolis: Vozes, 1998), traba- sobre essa investigação, que foi intitula- lho publicado em 1995 na Alemanha (Die da A experiência dos Orixás e desenvol- Erfahrung der Orixás. Bonn: Verlag N. vida durante seu curso de doutorado em Borengaesser, 1995) e em 1998 no Bra- Teologia, mas que, como ele menciona, sil. Atualmente é professor do programa tornou-se um marco que continua orien- de Pós-graduação em Ciência da Religião tando seu olhar de pesquisador a respeito na Universidade Federal de Juiz de Fora da temática das religiões. – UFJF. Tem experiência na área de Teo- logia, com ênfase em História das Reli- Além das principais características da giões, atuando principalmente nos temas experiência religiosa do Candomblé, o eclesiologia, diálogo inter-religioso, his- teólogo aborda a situação da identidade tória das religiões, Igreja Católica, Cris- do católico a partir do diálogo com as re- tianismo e Candomblé. ligiões de matriz africana, não só diante das diferenças teológicas, mas também Confira a entrevista.

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ritual; que a casa que visitamos era um templo da Umbanda etc. Num primeiro momento, diria que meu interesse pelas religiões de matriz africana no Brasil foi Enfrentar a questão do papel entender como funciona aquele de cristãos na história da mundo. Como eu não tinha tido anteriormente qualquer contato constituição da América com alguma religião desta tradi- ção, quer positivo, quer negativo, Latina é muito importante confesso que não tive qualquer medo do contato. Para mim tudo IHU On-Line – De onde partiu ritual, como não havíamos enten- era novidade. E posso dizer que seu interesse pelas religiões de dido quase nada, perguntamos se muito aprendi e achei tudo muito matriz africana? Quais foram os alguém poderia nos explicar algo, interessante. objetivos de sua pesquisa? Por pois precisávamos apresentar em que a escolha do Candomblé aula o relato da visita. Aquela se- O doutorado especificamente? nhorinha – Vovó Luiza – dispôs-se a responder nossas perguntas. E Terminada já a graduação em Volney J. Berkenbrock – O meu ali ficou um bom tempo tentando Teologia e estando eu alguns anos interesse pelas religiões de matriz nos explicar o que significava cada depois às voltas com uma temática africana começou de forma um coisa, bem como os momentos do para o doutorado – na Universida- tanto casual. Quando fazia a fa- ritual. de de Bonn, Alemanha – participei culdade de Teologia, o professor de um seminário dirigido por meu da disciplina chamada Sociologia Para mim abriu-se um novo mun- orientador (Hans Waldenfels) com da Religião nos deu uma tarefa: vi- do: uma realidade da qual nunca a temática: O espírito nas religiões sitar algum ritual de uma religião tinha tomado conhecimento, mas não cristãs. Resolvi então buscar que não fosse de tradição cristã e que tinha uma lógica, uma compre- meus conhecimentos antigos so- tentar descrever o que ali tínha- ensão, uma organização. E muitas bre as religiões de matriz africa- 64 mos visto e o que havíamos enten- pessoas tinham ido ao ritual – para na no Brasil e tentar apresentar dido. Eu, como outros colegas de se consultar – dado que era uma no seminário o tema do espírito curso, fui procurar alguma casa na casa relativamente grande. Toma- (entidades, orixás, guias) nestas linha do que o professor tinha pedi- do por uma curiosidade que sem- religiões. Meu orientador achou a do. Alguém do grupo sabia que não pre me foi natural para quase tudo, temática interessante e me incen- muito longe de onde morávamos pensei comigo: estas pessoas todas tivou a mudar a temática inicial do havia um templo religioso que não que aqui estão não são loucas; elas doutorado. Eu intentava pesquisar devem encontrar um sentido nisto era cristão. E tivemos a informação um tema dentro da Pneumatolo- tudo; elas devem encontrar aqui de que haveria ritual numa sexta- gia1. Meu orientador me disse: isto respostas para o que buscam. Este -feira. Para lá nos dirigimos: Tenda muitos já fizeram; faça algo ligado foi o ponto de partida: uma curio- Espírita de Oxóssi, assim chamava- à temática do Brasil, alguma coisa sidade enorme por entender o que -se a casa. que seja interessante para a Igreja ali acontecia, qual era a lógica do Brasil. Achei a ideia tentadora e Eu nunca havia entrado num que regia aquele mundo, qual res- conversei com Leonardo Boff2, meu templo religioso que não fosse cris- posta de sentido encontravam as tão e nunca havia participado de pessoas. Saí daquela visita com o 1 Pneumatologia: é o estudo de seres espi- qualquer ritual religioso onde Jesus propósito de tentar entender isto. rituais e phenomena, especialmente as inte- Cristo e a Bíblia não fossem uma Depois da visita, procurei os livros rações entre os humanos e Deus. Pneuma é a referência. Tudo ali naquele tem- palavra grega para “respiração”, que metafo- da biblioteca sobre o assunto. Li ricamente descreve um ser de espírito ou in- plo foi novidade para mim: a orga- avidamente diversas obras. Come- fluência. Em Teologia Cristã, pneumatologia nização do espaço, a defumação, cei a perceber que aquele mundo se refere ao estudo do Espírito Santo. Na dou- os símbolos, as cores, a música, era muito mais amplo e complexo trina Cristã popular, o Espírito Santo é a ter- ceira pessoa de Deus na Trindade. Algumas a dança, as consultas, as entida- do que eu inicialmente imaginara. formas de Cristianismo negam que o Espírito des... Fiquei vendo aquele ritual, Das leituras comecei a entender Santo seja pessoal, embora assegurando que sem entender praticamente nada. que havia, por exemplo, Umban- pode, em algumas ocasiões, influenciar as pessoas. No Evangelho de João, pneuma é Disseram-nos que Vovó Luiza é que da e Candomblé; que macumba unido a renascimento em água e espírito que estava presente. Um dos membros era uma palavra mais pejorativa foram sugeridos para ser o batismo. (Nota da do grupo, mais corajoso um pouco, que descritiva; que Vovó Luiza não IHU On-Line) foi fazer uma consulta. Nós outros era o nome da senhorinha que nos 2 (1938): teólogo brasileiro, autor de mais de 60 livros nas áreas de teolo- só observávamos (e certamente atendeu, mas sim o nome da en- gia, espiritualidade, filosofia, antropologia e éramos observados). Terminado o tidade que ela recebera no dia do mística. Boff escreveu um depoimento sobre

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antigo professor de Teologia Siste- Volney J. Berkenbrock – Fiz e eclesial. E muito pouco a ques- mática e que me havia incentivado minha graduação em Teologia na tão religiosa (e teológica) destas a continuar os estudos. Ele achou década de 1980, período forte da pessoas. a temática muito boa e assim de- Teologia da Libertação3. Um dos cidi mudar o rumo da pesquisa pontos altos desta teologia era o IHU On-Line – De que maneira de doutorado que estava apenas seu famoso método, muito bem a diversidade cultural é abordada iniciando. estudado e apresentado por outro pela Teologia, sobretudo no con- professor que tive, Clodovis Boff4. Faltava ainda especificar mais a texto latino-americano? Nele, a análise da realidade é o busca e, após mais leituras, a per- ponto de partida. Para mim, esta Volney J. Berkenbrock – Ao gunta inicial me veio novamente à metodologia encaixou-se como avançar em meus estudos sobre o mente: que respostas encontram uma luva: como analisar esta rea- Candomblé e como a teologia cris- as pessoas que buscam estas reli- lidade religiosa do Candomblé? Eu tã – inclusive a Teologia da Liber- giões? Era necessário estreitar a poderia, pois, utilizar um método tação – interpretava esta realida- temática e me decidi então pelo que já me era familiar e aplicá- de, comecei a notar algo que para Candomblé. Esta decisão deveu- -lo ao meu objeto de pesquisa. Ao mim se tornou cada vez mais um -se muito mais ao fato de ter já mesmo tempo, toda a linguagem problema bastante complexo. A te- lido muito material sobre esta re- da libertação que estivera presente ologia cristã, na maioria dos casos, ligião do que – por exclusão – de na teologia e aplicada geralmente ao abordar a diversidade cultural a outra tradição. Focando ainda mais à realidade social, política, econô- entende mais como diversidade de a pesquisa, cheguei ao tema es- mica, eclesial, ganhava para mim costumes, de línguas, de expres- pecífico de meu doutorado: aex- outro elemento. Era sabido que as sões. Mas se pensa quase sempre periência religiosa no Candomblé. pessoas destas tradições religiosas numa teologia cristã subjacente a Ou seja, qual resposta de sentido de matriz africana eram oprimidas esta diversidade. Mesmo a Teologia encontra quem faz a experiência e discriminadas por muitos aspec- da Libertação, considerada avan- dos Orixás e em que medida o cris- tos. Mas os discursos sobre como çada em sua época, continuava a tianismo pode dialogar com isto. pensar num processo de liberta- pensar as questões políticas, so- O tema serviu não apenas para o ção para estas pessoas abrangiam ciais, econômicas sempre a partir doutorado, mas para nortear mi- quase exclusivamente a questão da matriz cristã. A questão cultural nhas pesquisas até hoje: a religião étnico-racial, econômica, política era ainda incipiente para a Teolo- dos Orixás como um sistema de gia da Libertação. Passados cer- 65 sentido, de compreensão da exis- 3 Teologia da Libertação: escola teológica ca de 30 anos desde que terminei tência e, sobretudo, de respostas desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. minha formação teológica básica, Surge na América Latina, a partir da opção às questões do ser humano. É uma pelos pobres, e se espalha por todo o mundo. vejo que muito se avançou nesta temática de pesquisa e curiosidade O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um questão da diversidade cultural que nunca se acabaram. dos primeiros que propõe esta teologia. A dentro da teologia, sobretudo com Teologia da Libertação tem um impacto de- cisivo em muitos países do mundo. Sobre o a chamada teologia pluralista das IHU On-Line – De que forma a tema confira a edição 214 da IHU On-Line, religiões. de 02-04-2007, intitulada Teologia da liber- perspectiva da Teologia da Liber- tação, disponível para download em http:// tação se insere em sua pesquisa bit.ly/bsMG96.Leia, também, a edição 404 IHU On-Line – Em sua pesquisa sobre o Candomblé? Por que a es- da revista IHU On-Line, de 05-10-2012, in- o senhor afirma que o reconhe- colha desta abordagem teológica titulada Congresso Continental de Teologia. cimento da alteridade do outro Concílio Vaticano II e Teologia da Liberta- neste trabalho? ção em debate, disponível em http://bit.ly/ (nesse caso os fiéis das religiões SSYVTO. (Nota da IHU On-Line) de matriz africana) interpela a as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, 4 Clodovis Boff: frade da ordem dos Servos identidade cristã. Por quê? De publicado na edição especial de Natal da IHU de Maria, nasceu em Concórdia, Santa Cata- que forma acontece essa inter- On-Line, número 209, de 18-12-2006, dis- rina, em 1944. Possui graduação em Filosofia ponível em http://bit.ly/iBjvZq, e concedeu pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras pelação e que implicações pode uma entrevista sobre a Teologia da Liberta- de Mogi das Cruzes, graduação em Teologia trazer para a identidade católica ção na IHU On-Line número 214, de 02- pela Universidade Católica de Lovaina e dou- especificamente? 04-2007, disponível em http://bit.ly/kaibZx. torado em Teologia pela Universidade Católi- Na edição 238, de 01-10-2007, intitulada ca de Lovaina. É autor de vários livros, entre Volney J. Berkenbrock – Quan- Francisco. O santo, concedeu a entrevista A os quais citamos Uma Igreja para o Novo Mi- do nos aproximamos da realidade ecologia exterior e a ecologia interior. Fran- lênio (5. ed. São Paulo: Paulus, 2003). Atual- cisco, uma síntese feliz, disponível em http:// mente, reside em Curitiba e leciona teologia das religiões de matriz africana no bit.ly/km44R2. Sua entrevista mais recente à na Universidade Católica de Curitiba. De suas Brasil, começam a aparecer diver- IHU On-Line intitula-se Ecologia integral. obras, citamos Teoria do Método Teológico sos aspectos para o cristianismo A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a (4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009) e O Livro do ONU produziu um texto desta natureza’’ e sentido. Crise e busca de sentido hoje (São que interpelam a sua identidade. está disponível em http://bit.ly/1lk6J6U. Paulo: Paulus, 2014). Confira a entrevista es- Há um aspecto que é a questão Sua mais recente entrevista para IHU On- pecial concedida por Boff à revista IHU On- histórica ligada à escravidão: como -Line foi em 04-10-2015, intitulada “Fran- -Line, “O Documento de Aparecida é o ponto pôde acontecer que cristãos escra- cisco de Assis. O protótipo ocidental da razão mais alto do Magistério da Igreja latino-ame- cordial e emocional”, disponível http://bit. ricana e caribenha”, disponível em http://bit. vizaram pessoas, milhões de pesso- ly/1N6u6gF. (Nota da IHU On-Line) ly/Kgii7O. (Nota da IHU On-Line) as, durante séculos? Isto é um tipo

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de interpelação: a distância entre sido as propostas religiosas de sen- vidão, é o aprendizado que disto o proposto e o vivido no cristianis- tido destas tradições aquelas que se pode retirar para que a Igreja mo. Enfrentar a questão do papel responderam à busca pelo sentido católica e todos os seus organismos de cristãos na história da consti- de milhares de pessoas jogadas estejam atentos a questões atuais, tuição da América Latina é muito neste mundo de escravizados ou para nelas não desempenharem pa- importante. Não se trata simples- descendentes de escravos. Foi nes- péis que em um futuro não muito mente de revolver o passado, mas tas tradições religiosas que muitas distante venham a ser percebidos sim de – a partir do que ocorreu no destas pessoas encontraram acolhi- não apenas como equívocos histó- passado – pensar nesta relação en- da e caminho de sentido. ricos, mas como atitudes contra a tre fé cristã e forma de vida para proposta do Evangelho. Não basta aos cristãos, frente a os tempos em que vivemos. Esta esta constatação, dizer que as pes- Nesta linha, há uma lista enorme interpelação pode ser vista tanto soas da época, que escravizaram, de questões a serem trabalhadas, no sentido de vivência de cada fiel, não viveram o cristianismo de uma como, por exemplo, o papel e a como também para a instituição forma verdadeira. Seria uma saída importância da mulher na Igreja, o cristã. Trata-se aqui da necessida- pela tangente. É preciso levar em papel da Igreja na questão ecológi- de da instituição de estar atenta consideração o fato de haver uma ca, a complexa questão de gênero, sempre novamente à proposta do proposta de sentido paralela à do a situação das regras para os sacra- Evangelho. Especificamente, para cristianismo e que foi e é realidade mentos etc. Não estou apontando o catolicismo como instituição, é para milhares de pessoas. Diante aqui nenhuma sugestão concreta preciso haver a constante preocu- disto, a identidade cristã precisa para estas questões. Estou apenas pação em suas estruturas organiza- novamente voltar à questão posta apontando alguns temas onde é cionais por espelhar a identidade acima: o problema da distância en- necessária uma atenção maior para cristã, quer dizer, o seguimento tre o proposto e o vivido. Somente que no futuro não se tenha que re- da proposta de amor, de serviço, através do vivido é que a identida- conhecer que teria sido possível de misericórdia de Jesus Cristo. Este é, pois, um tipo de interpela- de cristã pode ser verificada. E é fazer diferente. O papa Francis- ção que o contato com as religiões esta verificação (pela vida) o desa- co, aliás, tem sido uma voz muito de matriz africana no Brasil faz à fio que os outros sistemas religiosos corajosa nesta linha. Tem pedido identidade cristã. Esta interpe- colocam à identidade cristã. constantemente uma Igreja mise- ricordiosa, uma Igreja em saída, 66 lação aponta para um desafio aos cristãos: viver cristãmente. IHU On-Line – Como o contexto uma Igreja da alegria do Evangelho sócio-histórico é abordado pela e não somente guardiã das estrutu- Outra interpelação à identidade Teologia no estudo das religiões ras antigas. cristã é de natureza mais profunda de matriz africana, sobretudo nos e radical. O cristianismo se pro- cenários brasileiro e latino-ame- IHU On-Line – De que forma põe a ser uma resposta de sentido ricano, marcados pela violência seu trabalho se insere em um a todo ser humano de uma forma advinda dos processos de coloni- contexto amplo da compreensão ampla e uma proposta de caminho zação e escravidão? De que forma que a Igreja Católica tem sobre para se chegar à realização des- são tratados a presença e o papel as outras religiões e o diálogo te sentido. Sem aprofundar muito da Igreja Católica nesse âmbito? inter-religioso? aqui a questão, percebo que uma Qual era esse papel? compreensão mais aprofundada Volney J. Berkenbrock – Vivemos dos sistemas religiosos de matriz Volney J. Berkenbrock – Há aqui hoje numa situação cultural onde o africana, que aportaram em nos- duas questões que queria distin- pluralismo é cada vez mais a regra. so país pela escravidão e aqui se guir: uma delas é o papel que a Tudo é plural, ou quase tudo. E isto reorganizaram, mostra que eles Igreja católica – em todos os seus também em termos de religião: há apresentam igualmente tanto uma níveis – desempenhou na história muitas possibilidades. Consequên- proposta de sentido como uma da escravidão. Não foi um papel cia disto é que há propostas que oferta de caminho para se chegar dos mais gloriosos. Pelo contrário, podem ser escolhidas. Ter alguma à realização. Ou seja, estes siste- as vozes advindas da Igreja católi- religião (ou não ter) é uma questão mas religiosos se apresentam com ca contra a escravização de afri- de opção. Em princípio, qualquer a mesma proposta de totalidade canos e contra tudo o que isto en- pessoa pode fazer sua opção reli- de sentido que tem o cristianis- volvia foram poucas, foram fracas giosa. Vemos isto como um direito. mo. Esta constatação interpela a e foram exceções. É preciso então Esta é a forma de pensamento e identidade cristã no sentido então trabalhar esta questão histórica: sentimento que temos hoje. Mas de – minimamente – levar em con- por um lado entendê-la e por outro isto coloca para as religiões duas sideração não ser nesta realidade seguir o caminho da reparação, da questões muito importantes: A par- a única proposta de sentido reli- restituição. Isto dado que o passa- tir de qual ponto de vista as pesso- gioso. Mas a maior interpelação à do não pode mais ser mudado. Ou- as escolhem uma religião? E como identidade cristã decorrente desta tra questão, advinda da análise do estas opções religiosas (suas orga- constatação está no fato de terem papel da Igreja católica na escra- nizações) vão conviver?

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Quanto à primeira questão, IHU On-Line – Quais são as prin- ali uma forma de pensar inclusiva. penso que cada vez menos a op- cipais diferenças e semelhanças Não há duas coisas: as duas atitudes ção religiosa se dá pela propos- entre as concepções teológicas fazem parte de uma única realida- ta de doxa (o que tal religião católicas e do Candomblé? Que de, assim o compreendem. Levei apresenta como verdade) e cada contribuições essas religiões po- anos para perceber que de fato um vez mais a opção religiosa é fei- dem trazer uma à outra já que membro da tradição do Candomblé ta a partir da proposta de práxis ambas são cultuadas intensamen- que frequenta também a tradição (qual proposta de vida tem esta te no Brasil gerando inclusive o católica não sente isto como uma religião). Para a Igreja católica, fenômeno da dupla militância, duplicidade (e muito menos como não vejo isto como um proble- conforme o senhor pontua? contradição), mas como uma úni- ma, mas como uma grande chan- ca realidade. Esta forma de pensar ce: apresentar-se cada vez mais inclusiva é uma característica mar- como uma proposta de vida. Na cante do povo Iorubano, que está segunda questão está para mim o na raiz do Candomblé. grande desafio de nosso tempo: como conviver. Não podemos mais O que geralmen- IHU On-Line – De que maneira o sonhar com um mundo unitário, te chamamos de sincretismo religioso se construiu onde todos vão se entender sobre ao longo da história do Brasil, uma série de questões. Vivemos sincretismo é um persistindo contemporaneamen- num mundo plural, onde a diver- te? De que modo o senhor avalia sidade será a regra (pelo menos grande diálogo essa prática? nos próximos tempos). E sendo então assim, o desafio é convi- inter-religioso Volney J. Berkenbrock – A temá- ver com a diversidade. Digo isto tica do sincretismo nas religiões de não apenas em termos religiosos. matriz africana no Brasil é um dos Volney J. Berkenbrock – Tanto Também em termos políticos, cul- aspectos muito estudados e posto o sistema religioso do cristianismo turais, de costumes etc. se coloca em evidência. Muito se quis fazer católico quanto do Candomblé são o mesmo desafio da convivência. para entender como surgiu ou se Nesta linha, no meu contato de muito complexos e amplos para se formou o sincretismo. Hoje tendo poder apontar de maneira rápida mais de 30 anos com as religi- a pensar o sincretismo num âmbi- 67 ões de matriz africana no Brasil semelhanças e diferenças. Queria to bem maior que é o do diálogo aprendi algo sobre a convivência. aqui acenar apenas para um ele- intercultural. É um fenômeno que Depois deste tempo, não vejo mento: na tradição cristã existe ocorre em praticamente toda a his- mais estas casas como lugar de a compreensão de bem e mal. No tória conhecida das religiões. Não pesquisas, mas sim como casas de Candomblé não existe esta com- há religião que tenha nascido pura amigos. Aprendemos a conviver preensão, mas sim a de equilíbrio: de qualquer influência, nem que em muitos aspectos: participa- as coisas estão equilibradas ou de- tenha se mantido pura de qualquer mos em conjunto de muitos mo- sequilibradas. Na tradição católi- influência, nem que tenha chegado mentos, tristes ou alegres. Assim ca, para o mal (o pecado), existe o a um estado que não mais vai ser muitas vezes sou convidado para perdão. No Candomblé algo estaria influenciada por outras tradições religiosas. O próprio cristianismo festas de família, de aniversário, desequilibrado e exigiria alguma é um exemplo claro de um grande para um churrasco e também para ação para recompor o equilíbrio. sincretismo, formado de raízes ju- as festas religiosas. São concepções diferentes que geram atitudes diferentes. En- daicas (que tinham muitas influên- Marcou-me muito o que ocorreu quanto se está pensando em fiéis cias egípcias, babilônicas, persas), quando do falecimento de uma desta ou daquela tradição, isto fica por influências gregas e romanas, filha de santo duma casa de Can- mais fácil de perceber: concepções por influências germânicas e assim domblé. A família da falecida era diferentes e atitudes religiosas por diante. Com as divisões institu- de tradição católica e morava no diferentes. cionais dentro do cristianismo em interior; a pessoa falecida morava diversas igrejas, estes processos na capital e tinha se iniciado no Mas temos entre nós uma parti- sincréticos se tornam ainda mais Candomblé. Nos momentos antes cularidade chamada às vezes de claros: ora esta, ora aquela influ- do sepultamento, de forma espon- dupla militância. Como fazer en- ência se torna mais visível. Assim, tânea e em sintonia com a Mãe-de- tão? Aí a pergunta pelas diferen- o processo de formação das religi- -santo, eu conduzi as orações de ças já se torna mais complexa. E é ões afro-brasileiras também é per- tradição católica e ela conduziu o especialmente mais complexa pelo passado por muitos sincretismos. cortejo com a procissão e a canti- fato de que a expressão dupla mi- Eu os vejo não como mistura ou – o ga do Candomblé. Foi um momento litância é advinda do modo de pen- que seria pior ainda – como dege- de convivência: unidos pela dor da sar cristão. Para o modo de pensar neração religiosa, mas sim como o perda de uma pessoa amiga, unidos próprio do Candomblé não há aqui resultado de um diálogo cultural pela diversidade da fé. qualquer duplicidade, pois se tem sempre presente na história das re-

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ligiões. O que geralmente chama- IHU On-Line – Em sua pesquisa o é a importância que se dá à mis- mos de sincretismo é, a meu modo senhor afirma que o processo de sa de 7º dia (e 30º). Na tradição de ver, um grande diálogo inter-re- sincretismo não teve e não tem do Candomblé, há um ritual fúne- ligioso. Constituído não por vias de uma mão única, ou seja, influen- bre feito dias ou semanas depois encontros para este fim, mas por ciou as religiões de matriz africa- do sepultamento, que é uma des- vias da dinâmica cultural. na e o catolicismo mutuamente. pedida do falecido da comunida- Que elementos evidenciam essa de. Na tradição católica existe a IHU On-Line – O que o sincretis- afetação mútua nos campos re- missa de 7º dia (ou 30º). É uma mo religioso revela sobre o modo ligiosos afrodescendente e cató- tradição antiga. Mas em diversos dos brasileiros de viverem a ex- lico? O que nos revelam os pro- lugares do Brasil ela tomou uma periência religiosa? E sobre o con- cessos de “desafricanização” dos importância muito grande. É uma texto sócio-histórico? negros e mestiços e “reafricani- espécie de momento de despedida zação” da sociedade e cultura Volney J. Berkenbrock – Per- do grupo de amigos, uma espécie brasileira? cebendo o sincretismo como um de homenagem-despedida. Nisto, processo inerente à dinâmica cul- Volney J. Berkenbrock – Enten- penso, há influência da tradição tural, é interessante perguntar-se do que o sincretismo é um processo do Candomblé. quais mecanismos o conduziram. permanente de diálogo, parte da Esta influência não está apenas Como algumas coisas se formaram dinâmica cultural. Assim, dentro no catolicismo. Se formos para o de uma maneira e outras de ou- dele, há elementos que são inte- universo das igrejas pentecostais, tra? Penso que um dos elementos ressantes numa análise. Um deles por exemplo, há ali influências importantes para se entender o é justamente esta mútua influên- muito maiores como momentos caminho do processo dialogal do cia. Ao falarmos de sincretismo no de transe ou de expressão cor- sincretismo é o que chamaria de Brasil muitas vezes se pensa logo poral. Outro elemento de análise lógica do objetivo. As coisas se nas religiões afro-brasileiras, como interessante neste processo de juntam, se interinfluenciam mais se fossem somente elas passíveis quando há objetivos comuns que diálogo intercultural é o que tem de serem sincretizadas; fazendo ocorrido entre o Brasil e a Áfri- são visados. Assim, a busca da uma análise mais apurada se pode experiência religiosa pode ser en- ca negra. Este tem se intensifi- perceber que – mesmo estando em cado nos últimos tempos e gera tendida como um elemento impul- condição social muito adversa – as 68 sionador do sincretismo. Mas este dentro das tradições religiosas compreensões religiosas de matriz é apenas um elemento na grande afro-brasileiras a chamada reafri- africana também deixaram marcas teia que o sincretismo vai perma- canização, ou seja, um processo em tradições cristãs. nentemente tecendo. Nela muitos de influência africana novamente são os coloridos que fazem o todo Em termos de catolicismo, por sobre os descendentes destas tra- sempre mais belo. exemplo, uma marca interessante dições no Brasil. 

Volney J. Berkenbrock

Sou um franciscano que continua encantado com a pluralidade religio- sa. Vejo esta não como um problema, mas como uma imensa riqueza de formas de pensar e viver. Todas tentando desvendar o mistério da vida. E isto me leva a crer cada vez mais na grandiosidade do mistério divi- no e pensar/sentir que somos, cada pessoa ou cada tradição religiosa, guardiães de pedaços deste imenso tesouro. E que cada qual cuide o melhor possível de sua parte, mas também admire com maravilhamento as partes cuidadas pelos outros.

LEIA MAIS... —— Candomblé. A unidade entre dois níveis de existência. Entrevista especial com Volney J. Berkenbrock publicada na revista IHU On-Line, nº 309, de 28-09-2009, disponível em http://bit.ly/1La58oV

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Os corpos matáveis de uma sociedade Alexandre Ciconello destaca que o racismo também é atualizado na violência contra o negro numa sociedade que finge não existir preconceito, mas que mata jovens e mulheres

Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

violência e o homicídio de que ainda há o desafio de lutar contra negros são mais uma face- o estigma de que todo jovem de peri- A ta do racismo que se vive no feria é ou pode vir a ser bandido. “Em Brasil. É o que defende o advogado e geral, a polícia tem essa concepção do assessor de direitos humanos da Anis- elemento suspeito, o jovem e o homem tia Internacional Alexandre Ciconello. negro, e que suas vidas valem menos, “Quem está morrendo é esse invisível, são corpos matáveis”. São como pesso- e o racismo faz com que a outra par- as de menos valor e que, dada a situa- te da sociedade, a sociedade branca, ção, sua execução é aceitável. É neste não se interesse por isso”, destaca ao mesmo contexto que estão as mulheres lembrar que as maiores vítimas de ho- negras, que morrem muito mais do que 69 micídios são homens jovens, negros e as mulheres brancas. “O corpo da mu- moradores de periferia. Para Ciconello, lher negra é ainda mais visto como ob- essa falta de visibilidade faz com que jeto do que o corpo da mulher branca. a sociedade e até o poder público não Há todo um estereótipo de que a negra encarem o problema de frente. “Temos é boa de cama”, analisa. de romper com a indiferença e isso tem a ver com racismo, pois aqueles que es- Alexandre Ciconello é assessor de tão morrendo não são os filhos daque- direitos humanos da Anistia Interna- les que têm poder numa sociedade. Se cional. Advogado, formado pela Uni- fosse, essa situação já teria mudado. versidade de São Paulo, é especialista Afinal, quem está morrendo é o outro, em Direitos Humanos pela American aquele que não tem voz e que está em University (Humphrey Program – Fulbri- situação subalterna”, completa. ght), Washington, e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Na entrevista concedida por telefo- ne à IHU On-Line, Ciconello destaca Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como entender destacar que a violência está pre- vidos no país, ainda com base em a situação de vulnerabilidade da sente na sociedade brasileira de muita violência. E a aliança desse população negra no Brasil, espe- diversas formas. Podemos falar em cenário com o racismo, algo mui- cificamente relacionada com a violência sexual, violência domés- to presente na sociedade brasilei- violência a que são expostos? tica, violência contra as mulheres ra, faz com que a população negra Alexandre Ciconello – Um dos e também a outros povos, como os tenha mais dificuldade de acessar fatores é a violência em si. O Brasil indígenas. Tudo isso é um contexto é um país muito violento e a sua que tem a ver com a nossa forma- direitos e enfrente um cotidiano forma letal realmente afeta mais ção e também com as relações so- de discriminação, preconceito e a juventude negra. É importante ciais e como os conflitos são resol- violência.

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Há, ainda, a realidade da socia- bilidade violenta e a participação na mídia nisso. A televisão coloca certa masculinidade relacionada ao poder, à potência, no sentido A segurança pública é focada de que é necessário o uso de armas e a solução dos conflitos só se dá na guerra das drogas, baseada de forma violenta. Isso aparece na numa polícia militarizada que música e em várias outras expres- sões culturais que exaltam uma visa enfrentar um inimigo masculinidade violenta, agressiva e interno que seria o traficante preconceituosa que afeta a juven- tude em geral. Não é à toa que 93% dos homicídios são entre homens. Assim, os assassinatos hoje no inimigo interno que seria o trafi- Brasil são muito maiores, propor- cante. E é muito localizada nesse IHU On-Line – Dentro dessa ló- cionalmente, entre a população enfrentamento em locais muito gica de política de segurança pú- negra e especialmente entre o pobres, favelas e periferias. Não blica baseada na militarização, negro jovem. São várias explica- há uma política de redução de ho- como se dá a constituição do es- ções para entender por que isso micídios, de preservação de vidas. tereótipo do suspeito padrão nes- acontece. O número de homicídios Assim, temos uma política pública se sujeito negro jovem? E como vem crescendo no Brasil desde a de segurança militarizada e volta- combater esse estigma? década de 1980. É o contrário de da para o combate em territórios outros indicadores sociais, como de favelas e periferias, sem muito Alexandre Ciconello – Ele não só saúde e educação, que vêm me- respeito aos direitos à população é considerado suspeito como ain- lhorando depois da Constituição de que ali mora. E favelas e perife- da pode ser morto. É ainda mais 88, considerando os indicadores de rias são territórios majoritaria- perverso. A polícia atua sobre esse suspeito padrão através do racismo violência letal, que é a violência mente negros. mais grave, pois é quando se tira a institucional das corporações po- 70 Um segundo ponto é que há hoje vida de alguém. Se desagregarmos liciais. Há vários exemplos disso. um estereótipo racista muito asso- os dados entre população branca Existem cartuns e ilustrações em ciado à juventude negra de favela, manuais de corporações em que e negra, veremos uma queda em numa ideia de que o jovem negro sempre representam o criminoso homicídios entre jovens brancos e está ligado ao crime, ao tráfico. como negro. E essa criminalização aumento na taxa de homicídios na Há uma criminalização, uma leitu- da população negra vem aconte- população negra. Dado que é muito ra de que a juventude é desviada, cendo no Brasil desde sempre, bem preocupante. criminalizada, e que é preciso fa- como suas expressões. O samba, zer um projeto social para os jo- por exemplo, foi criminalizado, o IHU On-Line – A que podemos vens não irem para as drogas. Ou mesmo ocorreu com a capoeira, as atribuir essa diferença? Por que seja, há a visão de uma juventude religiões de matriz africana. Vemos diminuem os homicídios entre que acaba muito mais os crimina- até hoje um retrocesso nessa área. brancos e aumentam entre os lizando e tratando dos riscos e não O funk, muito mais recente, tam- negros? de sua potencialidade. As políticas bém foi criminalizado. Alexandre Ciconello – Isso tem públicas e a sociedade não veem Temos uma sociedade que tem a ver com o fato de que a maio- a juventude, em especial a juven- padrões racistas e que crimina- ria dos negros no país são pobres, tude negra, na sua potencialidade lizam as expressões da cultura e a violência é também seletiva criativa, seus talentos, mas sim negra e também os seus jovens. em termos etários, raciais e so- como um eventual problema que A face visível disso é que, para a ciais. Além disso, estão inseridos vai se criar na sua relação com a polícia, o suspeito padrão é o jo- nos territórios mais pobres, nas droga e os demais aspectos “des- vem negro, independentemente periferias, onde as taxas de homi- viantes”. Isso afeta a autoestima de classe social. Temos vários ca- cídios são mais altas. Outro fator desse jovem, e as políticas públi- sos de violência e até assassinatos é que não há política de redução cas todas, de educação, saúde, praticados pela polícia porque os de homicídios enquanto política não atentam para isso e seguem suspeitos eram jovens negros que de segurança pública. A seguran- nessa linha de criminalização. Na estavam na favela, simplesmente ça pública é focada na guerra das prática, não temos políticas pú- andando, sem nenhum tipo de jus- drogas, baseada numa polícia mi- blicas realmente voltadas para tificativa. Os homicídios cometidos litarizada que visa enfrentar um juventude. pela polícia são parte importante

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desses números da violência contra principal do país, com discussões Temos de romper com a indife- negros. Só na cidade do Rio de Ja- nas universidades, nas associações, rença e isso tem a ver com racis- neiro, os homicídios praticados por nas igrejas e em qualquer lugar. É mo, pois aqueles que estão mor- força policial, chamados autos de preciso, também, reduzir a violên- rendo não são os filhos daqueles resistência, somam entre 15 e 20% cia policial, mudar a lógica de se- que têm poder numa sociedade. Se do total. Isso é uma escala muito gurança pública que hoje não tem fosse, essa situação já teria muda- alta. Não sabemos quantas pessoas o foco na redução de homicídios. do. Afinal, quem está morrendo é a polícia mata no Brasil. Há apenas Se o foco fosse esse, teríamos mais o outro, aquele que não tem voz estimativas, mas os números não e que está em situação subalterna. são confiáveis, pois cada estado Os negros não têm representação tem sua metodologia. no Congresso Nacional, não têm poder econômico, não são direto- O professor Michel Misse1, por res e presidentes de grandes em- exemplo, estima que cerca de 30% Não há políti- presas, não têm presença na mídia, de todos os homicídios do país te- não têm voz em artigos como co- riam participação da polícia. Em ca de redução lunistas de jornais, é uma situação geral, a polícia tem essa concep- de homicídios invisível. Então, quem está mor- ção do elemento suspeito, o jovem rendo é esse invisível, e o racismo e o homem negro, e que suas vidas enquanto po- faz com que a outra parte da socie- valem menos, são corpos matáveis. lítica de segu- dade, a sociedade branca, não se São pessoas que podem ser mortas, interesse por isso. como se o destino desses jovens rança pública fosse a violência, o tráfico. É muito perversa a imagem e a autoima- IHU On-Line – O último mapa pesquisas, saberíamos por que as 3 gem que se acaba constituindo da da violência aponta que, num pessoas estão morrendo, teríamos juventude negra. período de dez anos, houve au- mais elementos para saber onde mento de 54,2% na taxa de ho- os jovens negros estão morrendo e Desafios para subverter micídios contra mulheres negras, quais são as dinâmicas dessas mor- enquanto o índice caiu 9,8% en- a lógica de corpos tes e como mudar isso. 71 matáveis tre as mulheres brancas. Qual a Infelizmente, o que se vê é a sua interpretação dessa realida- O primeiro passo é romper com criminalização de favelas e peri- de? Por que as mulheres negras a indiferença. A Anistia2 lançou a ferias. A política entra em favelas são as mais atingidas por essa campanha Jovem Negro Vivo com com blindados, com fuzis e suas violência? esse objetivo. É preciso desnatu- balas de longo alcance matando Alexandre Ciconello – São os ralizar essa questão, não pode ser crianças e jovens sob o argumento mesmos fatores que atingem os ho- visto como algo natural. Essa dis- de legítima defesa. Essa política mens negros jovens, com algumas cussão – sobre a preservação de de combate às drogas é que vem diferenças. O homem morre mui- vidas, em especial de negros jo- causando muito mais mortes e to no espaço público, em conflitos vens – deveria ser a agenda pública abusos, destruição, do que o pró- interpessoais e também em razão prio consumo de drogas individual da ação da polícia, envolvimento 1 Michel Misse: bacharel em Ciências So- provoca. Isso tem que mudar. Há ciais pelo Instituto de Filosofia e Ciências com criminalidade e trânsito. As Sociais da Universidade Federal do Rio de um coronel do Estado Maior da Po- mulheres são mortas no espaço do- Janeiro, mestre e doutor em Sociologia pelo lícia Militar aqui do Rio de Janeiro méstico, por pessoas muito ligadas Instituto Universitário de Pesquisas do Rio que fala: numa política onde o foco de Janeiro – IUPERJ/SBI/UCAM. Atual- ao seu convívio familiar ou mesmo mente é professor Associado do Departamen- é a guerra não há como preservar seus parceiros. Essa morte de mu- to de Sociologia da Universidade Federal do as vidas. A imprensa também cola- lheres negras ainda tem muito a Rio de Janeiro. Publicou recentemente Crime bora muito com essa política nos e Violência no Brasil Contemporâneo. Es- ver com a questão do machismo, tudos de sociologia do crime e da violência seus discursos, nas narrativas de o poder do homem sobre a mu- urbana (Rio de Janeiro, Editora Lumen Ju- programas policialescos que esti- lher. E, mais uma vez: a redução ris, 2006; 2a. edição: 2011), Acusados e Acu- mulam e que exaltam o combate, sadores: estudos sobre ofensas, acusações e de homicídios é o foco, assim, não incriminações (Rio de Janeiro, Editora Re- a polarização da sociedade entre se produzem informações suficien- van/Faperj, 2008), As Guardas Municipais polícia e criminosos. É uma corti- tes para se saber em detalhes as no Brasil (Rio, Booklink/Finep, 2010) e O Inquérito Policial no Brasil (Rio, Booklink/ na de fumaça para esconder uma circunstâncias dessa morte, em Fenapef, 2010). (Nota da IHU On-Line) polícia ineficiente, corrupta e que 2 O entrevistado refere-se à Organização Não pratica ainda execuções extraju- 3 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos Governamental Anistia Internacional. Para – IHU publicou material sobre o Mapa da mais detalhes, acesse anistia.org.br. (Nota da diciais como parte de seu modus Violência. Confira em http://bit.ly/1kSP1XC. IHU On-Line) operandi. (Nota da IHU On-Line)

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que contexto essas mulheres estão a condições de moradia precária e “Quem sabe quem mora aqui do morrendo. menos segurança. lado?”. Ela diz que não sabe e o policial responde: “Como você não Podemos perceber que esse é sabe, sua mulher de bandido, filha também um contexto do racismo, IHU On-Line – Qual é o peso da puta”. Ou seja, representa uma nesse caso, à mulher negra. Ela da questão racial no tema da criminalização não só da juventude muitas vezes é vista como objeto violência? negra, mas de todo o território ba- sexual, usada como objeto de pra- Alexandre Ciconello – Não tem sicamente negro e das pessoas que zer dos homens. Temos visto ma- como falar em violência no Brasil vivem ali. É um território em que o nifestações de mulheres tomando Estado Democrático de Direito não espaço com relatos de assédios que sem passar pela questão racial. A chega. têm sofrido. Mas as mulheres ne- forma como o poder foi estrutu- gras ainda sofrem mais em decor- rado no Brasil, o poder político, A polícia, a repressão, continua rência do racismo. O corpo da mu- econômico e simbólico, é racista. com um viés racista contra a po- lher negra é ainda mais visto como Coloca negros e negras em posições pulação negra e pobre. Se formos objeto do que o corpo da mulher subalternas. Usam-se as forças de analisar, há o componente do racis- branca. Há todo um estereótipo de segurança para marginalizar terri- mo institucional que prioriza outra que a negra é boa de cama. tórios majoritariamente negros, as agenda que não essa. O racismo expressões das culturas... Lógico institucional é quando as institui- IHU On-Line – Isso também não que se avançou muito desde a es- ções, os seus procedimentos e prá- tem a ver com o local onde vivem cravidão, mas é só acompanharmos ticas se reproduzem lá no racismo. as mulheres? É também uma ques- relatos hoje do que acontece nas Assim, diariamente negros e negras tão de vulnerabilidade social? passam por situações discriminató- rias em vários espaços, mercado Alexandre Ciconello – É também de trabalho, na rua, no ônibus, em isso. Sempre que falamos da socie- tudo. São decisões que reforçam dade negra, tem a ver com as ques- essa institucionalização do racis- tões socioeconômicas. Há alguns As políticas pú- mo. Você vê um jovem negro sem discursos que dizem: “isso ocorre camisa e já puxa sua bolsa. O jo- porque são pobres, não há questão blicas e a socie- 72 vem vai ao shopping e o segurança de racismo no Brasil”. Isso não é dade não veem começa a segui-lo, ou então vai em verdade! As discriminações se mul- busca de um emprego e não con- tiplicam. Recentemente, vi uma a juventude, em segue. Sei de um caso, no Distri- entrevista muito interessante da to Federal, em que menos de 10% consulesa da França em São Paulo4. especial a juven- dos atendentes dos bancos eram Ela é uma mulher negra, bonita, tude negra, na negros. Isso gerou uma ação do Mi- rica e poderosa, mas sempre sofre nistério Público do Trabalho6 para racismo no Brasil. Se fosse pobre, sua potenciali- entender por que os bancos não haveria ainda outras questões, dade criativa contratavam ninguém negro para vulnerabilidades e preconceitos. atendimento, somente para posi- A maioria das mulheres pobres no favelas e periferias do Brasil para ções mais subalternas. Brasil são negras, ganham menos ver o que os jovens estão dizendo. no mercado de trabalho, têm me- Então, levando esse contexto nos direitos trabalhistas – basta ver O rap, o funk falam do que se pas- para polícia, vemos que ela real- que a maioria das empregadas do- sa na favela: um jovem negro volta mente vê que a vida do jovem ne- mésticas são negras – e isso as leva para casa e é revistado, leva tapa gro não tem valor. Isso gera uma na cara. série de mecanismos na polícia e 4 Alexandra Loras: é uma das líderes fran- na própria sociedade, que acober- cesas mais Influentes com menos de 40 anos. Histórias como essas descobri- tam a impunidade. É quando se diz Seus pontos de vista transformadores sobre mos através de um relatório que raça, gênero, sexualidade e poder lhe trou- aquela infeliz frase que “bandido a Anistia elaborou, Você Matou xeram em 2013 o prêmio Mulher destaque bom é bandido morto”. Ao falar do ano Organização Brasileira das Mulheres Meu Filho5. Fala de um contexto isso, não estamos nos referindo a Empresarias – OBME. Possui mestrado em na região de Acari, no Rio de Ja- Gestão de Mídia pelo IEP- Paris ( Sciences político corrupto suspeito de rou- Po), mora no Brasil atualmente e é curado- neiro. Lá, por exemplo, a polícia bar milhões, estamos falando do ra do Bailinho da Bastilla ao lado do Mari- entra na casa de uma família ne- do Damien, Cônsul Geral da França em São estereótipo do negro da favela com Paulo. Nasceu e cresceu na França, viveu na gra e pergunta para uma mulher: Alemanha, Inglaterra, Espanha, México, EUA 6 Confira reportagem sobre o tema no sítio e Suécia. E ainda tem em seu histórico mais 5 A íntegra do relatório pode ser acessada do Ministério Público do Trabalho, disponí- de 50 países quais conheceu. (Nota da IHU em http://bit.ly/1MsoCaf. (Nota da IHU vel em http://bit.ly/1H0FmZs. (Nota da IHU On-Line) On-Line) On-Line)

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arma na mão e de chinelo. A cons- Não se quer diminuir o número os, artigos de mídia e palestras trução social desse bandido que de homicídios e a letalidade poli- para buscar essa visibilidade para pode ser morto é o jovem negro. cial, pois a maioria dos que mor- o tema. Em várias cidades do Bra- Porque quando traficante de -dro rem são jovens pobres e negros. sil temos ativistas que se engajam gas branco é pego na zona sul do Quem está morrendo não tem voz, nessa causa e vão para a rua falar Rio de Janeiro, ou numa área mais não há pressão efetiva, embora com as pessoas e pedir que partici- nobre, até a imprensa fala: “estu- se faça essa pressão na periferia. pem de nosso manifesto, que clama dante é preso por traficar drogas Por isso que a campanha da Anis- por ver o jovem vivo. As pessoas se na zona sul”. É diferente quando comprometem e pedem políticas ocorre na favela. É algo muito en- públicas de redução de homicídios tranhado, visível e ridículo. de forma urgente no país. Com a força dessas assinaturas e do mani- IHU On-Line – Inúmeras pes- A polícia atua festo vamos fazer a entrega dessas quisas apontam para situações reivindicações ao Governo Federal de racismo e vulnerabilidade de sobre esse sus- e em alguns estados para que se negros, revelando um contexto peito padrão comprometam com isso e com um de marginalização. Mas essas pes- pacto nacional para redução dos quisas acabam se efetivando em através do racis- homicídios. políticas públicas? mo institucional Alexandre Ciconello – Não. É das corpora- IHU On-Line – Deseja acrescen- essa a dimensão do racismo insti- tar algo? tucional nas políticas públicas. Ou ções policiais seja, esses dados revelados não Alexandre Ciconello – Gostaria são priorizados nas políticas públi- apenas de convidar a conhecer o 7 cas porque há racismo. Há dados, tia tinha esse componente de falar relatório Você Matou meu Filho . evidências de que o Brasil é um dos de todas essas questões. Além de São dados importantes, histórias países mais violentos do mundo, romper com a indiferença, há um de vidas importantes. Ali, tem a em termos absolutos é onde mais manifesto pedindo política pública história de um menino, o Eduardo, 73 se mata, e quem está morrendo são para reduzir homicídios, política de dez anos, assassinado pela po- jovens negros e ninguém faz nada. pública para os jovens, para que os lícia na porta de casa com tiro na Por quê? É a dimensão do racismo tirem dessa situação de vulnerabi- cabeça. O inquérito foi concluído institucional na política pública. E lidade e violência. dizendo que os policiais agiram quando falo em política pública me em legítima defesa. Lamenta- refiro desde a definição da agenda. IHU On-Line – Gostaria que fa- velmente os estados e o Governo Isso nunca entra na agenda. Desde lasse mais da campanha Jovem Federal não têm colocado essa o início do Governo Dilma há uma Negro Vivo. questão como central. Isso é la- pressão para que o Governo Fede- mentável. E o pacto nacional pela ral lidere um pacto nacional de re- Alexandre Ciconello – A campa- redução de homicídios ainda não dução de homicídios. Isso não foi nha começou apresentando esses saiu do papel. feito até hoje, não há uma priori- dados de forma bem forte, dando dade. A prioridade é outra, e nos visibilidade ao tema. E temos vá- 7 Disponível em http://bit.ly/1MsoCaf.■ (Nota estados também. rias ações de comunicação, víde- da IHU On-Line)

Alexandre Ciconello

Eu sou um cara branco, que sempre me indignei com as injustiças e desigualdades no nosso país. E que milito desde sempre para que todos tenham uma vida digna, livre da violência.

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O Atlântico Negro reeditado Para o sociólogo Alex André Vargem, os fluxos migratórios contemporâneos resgatam essa noção nas relações entre “Brasil e África” e “Brasil e Haiti”

Por Leslie Chaves

contexto cultural gerado a africanos chegam ao Brasil em porões de partir do tráfico de negros navios. O tempo passou, mas o proces- Oafricanos escravizados para as so social ainda não mudou. Se antes eles Américas foi denominado como Atlânti- vinham como escravos, hoje eles vêm co Negro pela historiografia. Entretan- como refugiados; se antes se almejava a to, essa noção assume dimensões mais carta de alforria, agora se almeja a carta vigorosas a partir dos estudos do inglês de refúgio. Então o tempo passou, mas o Paul Gilroy (O Atlântico Negro: Moder- processo social diaspórico não mudou, e nidade e dupla consciência. São Paulo: isso é inaceitável que aconteça no Brasil Editora 34, 2001), renomado pesquisador e no mundo”, ressalta. das culturas negras diaspóricas, que se Ao longo da entrevista concedida por centraliza nesse cenário para pensar os telefone à IHU On-Line, Vargem aborda fluxos interculturais e multidimensio- diversos aspectos da questão migratória nais que têm início no período colonial e no Brasil, mas principalmente a vulne- continuam até hoje. O estudioso pensa a rabilidade a que estão expostos os mi- cultura produzida no trânsito da diáspo- grantes e refugiados. Os povos negros ra, a qual simultaneamente se sente es- são os mais atingidos pelas dificuldades e trangeira e local, em um eterno processo 74 violências. “É necessário considerar um de negociação em busca de integração e conjunto de vulnerabilidades que atin- construção identitária. gem os migrantes, sobretudo os negros. Contemporaneamente, com a intensifi- Quando se trata dos debates migratórios, cação dos processos migratórios no mun- não se faz um recorte racial e essa é uma do e no Brasil, principalmente em rela- questão central, pois envolve aspectos ção à migração de africanos e haitianos, específicos que são esquecidos e negli- que estão em grande número no país, genciados”, aponta. pode-se dizer que as trocas culturais têm Alex André Vargem é graduado em Ci- se renovado nesse fluxo. Para o sociólogo ências Sociais pela Pontifícia Universida- Alex André Vargem, essa é a parte posi- de Católica de São Paulo – PUC-SP, com tiva do resgate do Atlântico Negro, po- formação sobre Direito Internacional dos rém a preocupação são os elementos que Refugiados pelo International Institute of revelam estagnações e retrocessos. O Humanitarian Law – IIHL, na Itália. É co- pesquisador se refere especialmente às laborador do Jornal Nosotros Imigrantes, condições de transporte dos migrantes, membro da Transnational, Lives, Mobili- que em alguns casos viajam clandestina- ty and Gender, rede de pesquisadores do mente, e à situação de vida deles após Instituto de Ciências Sociais da Univer- a entrada no país, diante da falta de sidade de Lisboa, Portugal, e integrante políticas públicas para atendê-los. “Po- do Instituto do Desenvolvimento da Diás- demos fazer um resgate da história do pora Africana no Brasil – IDDAB. Atlântico Negro, onde a questão central é que ainda hoje, em pleno século XXI, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que reflexos a Alex André Vargem – Quando identidade, uma reconstrução no noção de diáspora tem na cons- falamos de diáspora há toda uma âmbito de uma sociedade diversa trução da identidade dos povos dimensão cultural, política, econô- da sua, na tentativa de encontrar africanos e seus descendentes es- mica e sociológica de sujeitos que o próprio lugar no mundo. Nessa palhados por diversos países? buscam um outro lugar, uma nova busca por um lugar de pertença se

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informações sobre como lidaram com determinadas circunstâncias, mas sempre pensando nas questões da integração e da busca do reco- A organização dos negros nhecimento de direitos. Esta é um pouco da dinâmica que eu tenho brasileiros sempre se remeteu observado mais recentemente nos grupos que estão se estabelecendo à diáspora a partir do resgate aqui. da ancestralidade e da cultura IHU On-Line – Como o uso da in- ternet e, mais recentemente, das desenvolvem diversos processos de dos negros e, posteriormente, dos redes sociais na militância negra natureza social. Existem processos afrodescendentes, fora da África. se relacionam com a ideia de di- de integração e de conflito que são Particularmente aqui no Brasil a áspora africana? permeados por muitas indagações, organização dos negros brasileiros Alex André Vargem – Uma das como: De onde sou? Para onde vou? sempre se remeteu à diáspora a principais ferramentas para a co- Onde vou me estabelecer? O que partir do resgate da ancestralida- municação entre os migrantes ou será de mim e consequentemente de, da cultura, através da dança, refugiados e seus familiares e ami- dos meus familiares? Trata-se de música e outros elementos, e até gos, que estão nas suas nações de um processo complexo que envolve da força de trabalho, que também origem ou mesmo na diáspora em a dimensão dos fluxos migratórios e é uma dimensão que faz parte des- diversos países, são as redes sociais a reconfiguração identitária desses sa herança. e outras plataformas da internet, grupos. A organização desses grupos como o Skype e o WhatsApp. Esses acontece de diversas formas. Há, aparatos facilitaram muito a co- IHU On-Line – A perspectiva por exemplo, grupos de congoleses municação, sobretudo porque ela da diáspora incide sobre a orga- no mundo que têm redes sociais torna-se mais barata. Sobre esse nização dos movimentos sociais estabelecidas, que se comunicam assunto, um dado interessante negros ao redor do mundo e no entre si a partir de diferentes pa- quando falamos em fluxos migrató- Brasil? Por quê? De que forma? íses. Hoje existem também movi- rios, particularmente os que estão 75 Alex André Vargem – Pensan- mentos africanistas que procuram vindo para o Brasil, é que a partir do do ponto de vista histórico há fazer uma integração com os mais desse contato através da internet uma série de movimentos Pan-afri- de 50 países africanos e esses gru- os migrantes já conhecem um pou- canistas1 que sempre debateram pos têm representatividade em co da realidade do lugar para o essa questão do papel e do lugar diversos países na Europa, como, qual estão indo. por exemplo, França e Bélgica. Além disso, eles ainda obtêm in- Muitos dos que integram esses mo- 1 Pan-africanismo: é uma ideologia que formações mais práticas, como que propõe a união de todos os povos da Áfri- vimentos são, sobretudo, migran- tipo de documentos é necessário ca como forma de potenciar a voz do con- tes e refugiados nesses países que para entrar em determinado país, tinente no contexto internacional. Relati- outrora foram colonizadores das vamente popular entre as elites africanas quais são os procedimentos para nações de origem dessas pessoas. ao longo das lutas pela independência da ficar em situação regular, como segunda metade do século XX, em parte res- Além da integração, esses grupos é a obtenção do visto e ainda se ponsável pelo surgimento da Organização de procuram reunir seus participantes Unidade Africana, o pan-africanismo tem existem e como são os processos de diversas nacionalidades africa- sido mais defendido fora de África, entre os de acolhimento. Com esses conta- nas em torno da busca de direitos descendentes dos africanos escravizados que tos, às vezes, alguns desses sujei- foram levados para as Américas até ao sécu- e de soluções de problemas co- tos quando chegam a outro país, lo XIX e dos emigrantes mais recentes. Eles muns entre eles. Ultimamente isso propunham a unidade política de toda a Áfri- como aqui no Brasil, por exemplo, também tem acontecido aqui no ca e o reagrupamento das diferentes etnias, já são recepcionados por uma co- divididas pelas imposições dos colonizado- Brasil. Principalmente os congole- munidade. Outro exemplo são os res. Valorizavam a realização de cultos aos ses e camaroneses que estão aqui ancestrais e defendiam a ampliação do uso fluxos migratórios que estão acon- têm buscado estabelecer este link das línguas e dialetos africanos, proibidos ou tecendo na Europa, o caso dos sí- com outros africanos da diáspora limitados pelos europeus. A teoria pan-afri- rios indo para a Inglaterra, Suécia, canista foi desenvolvida principalmente pelos residentes em diferentes países. Finlândia etc. Muitos desses grupos africanos na diáspora americana descenden- Procuram fazer um paralelo entre tes de africanos escravizados e pessoas nas- já têm parentes estabelecidos nes- situações que ocorrem com eles cidas na África a partir de meados do século ses países, não escolheram aleato- XX como William Edward Burghardt Du aqui e outros acontecimentos se- riamente para onde migrar. Laços Bois e Marcus Mosiah Garvey, entre outros, melhantes que se passaram com são reforçados e até outros são e posteriormente levados para a arena políti- grupos no Canadá, França, Bélgica, ca por africanos como Kwame Nkrumah. No construídos a partir desse conta- Estados Unidos etc. A ideia é trocar Brasil foi divulgada amplamente por Abdias to facilitado pela internet. Assim, Nascimento. (Nota da IHU On-Line)

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torna-se favorável a migração para ropeu e acabam chegando ao solo nos e do Haiti) que estão vivendo lugares onde há essa estrutura de brasileiro. Essa última situação é no Brasil? acolhimento, que propicia a inte- menos frequente, mas acontece. Alex André Vargem – Os dados gração dessas pessoas na “nova” Analisando-a, ainda é possível fa- do Instituto Brasileiro de Geografia sociedade. zer outra reflexão quando vemos e Estatística – IBGE, no censo mais africanos fazendo essa travessia recente, de 2010, apontam que há do Atlântico em porões de navios, IHU On-Line – É possível falar na pouco mais de 14 mil africanos em sendo, de acordo com vários rela- conformação de uma “diáspora situação regular no Brasil. Mas con- tos, espancados pela tripulação, negra contemporânea” e de um sidero esse número muito peque- confinados e até jogados no mar. “Novo Atlântico Negro” a partir no e até irrisório tendo em vista a A partir desse fenômeno podemos dos processos de migração de realidade que conhecemos. Então, fazer um resgate da história do africanos para o Brasil? há a necessidade de se ter dados Atlântico Negro, onde a questão mais precisos para podermos tra- Alex André Vargem – É possível central é que ainda hoje, em ple- balhar políticas públicas direcio- fazer esta afirmação, sim. Mas an- no século XXI, africanos chegam nadas a esta população. Sabemos, tes de entrar nessa questão espe- ao Brasil em porões de navios. O a partir da nossa experiência de cificamente, eu gostaria de falar tempo passou, mas o processo so- campo, conhecendo os contextos e um pouco sobre as diversas catego- cial ainda não mudou. Se antes eles grupos sociais, que há uma migra- rias jurídicas que existem quanto vinham como escravos, hoje eles ção irregular, ou indocumentada, à migração, as quais muitas vezes vêm como refugiados; se antes se que é bem maior do que esse nú- acabam se confundindo um pouco. almejava a carta de alforria, agora mero. Existem diversos órgãos go- Temos o refugiado, o solicitante de se almeja a carta de refúgio. Então vernamentais que trabalham com refúgio, o migrante econômico e o o tempo passou, mas o processo so- indocumentado. Embora do ponto os migrantes e/ou refugiados, que de vista sociológico o processo não fazem a contagem dessas pessoas, seja tão diferente, essas catego- porém me parece que não há uma rias jurídicas se diferenciam entre conversação entre essas diferentes si. Os refugiados, por exemplo, de instâncias e aí não se chega a um acordo com a convenção de 1951 No contato atra- número preciso; assim se trabalha da Organização das Nações Unidas vés da internet com estimativas. 76 – ONU, são aqueles que apresen- Especificamente sobre os refu- tam um fundado temor de perse- os migrantes já giados, hoje se fala que eles são guição por motivos de raça, reli- 8.500 em situação regular, de dife- gião, nacionalidade, grupo social conhecem um rentes origens como Síria, Congo, ou opinião política. Muitas vezes, pouco da rea- Angola, entre outros. Mas ressalto um migrante que se enquadre em que esse número se refere só aos outra das categorias também pode lidade do lu- refugiados reconhecidos. E os que ser considerado um refugiado, mas não foram reconhecidos? socialmente, porém não juridica- gar para o qual mente. Já o migrante é definido estão indo Recentemente no Brasil se discu- como aquele que migra por moti- te a formulação de um órgão que vos econômicos. sistematize os números dos diver- sos setores que trabalham com esse cial diaspórico não mudou, e isso é Se pensarmos hoje a questão do tema, mas ainda há uma carência inaceitável que aconteça no Brasil refúgio no mundo e dentro desse do Estado brasileiro nesse senti- e no mundo. cenário global o Brasil – que rati- do. Alerto que o nosso país nunca ficou uma série de convenções e Também é importante mencionar pensou antes em potencializar as acordos internacionais em relação que é necessário desconstruir um políticas migratórias e para refu- a esse tema –, não se trata de um pouco o mito do Brasil como país giados. Tanto que a nossa primeira fenômeno novo, aqui no país já acolhedor, porque além dos confli- conferência sobre migração, o Co- está em curso há muito tempo. tos com a população local, há mui- migrar2, foi no ano passado, 2014. Essas pessoas chegam aos países tos desses migrantes que não que- Isso é um total absurdo. Muitos de diversas formas: diretamente, rem estar no país e o veem como de avião ou por via terrestre, ou uma escala, um lugar para juntar 2 Conferência de Migrações e Refú- pelos navios, meio que às vezes dinheiro para ir para nações mais gio – Comigrar: evento realizado de 30 de pode se configurar como indire- desenvolvidas. maio a 1º de junho de 2014, em São Paulo, to, uma vez que em muitos casos, com o objetivo de promover um diálogo so- como por exemplo, aqui no Brasil, cial para subsidiar a construção da Política IHU On-Line – Há dados sobre Nacional sobre Migrações e Refúgio pautada os migrantes entram clandestina- a quantidade e situação dos imi- nos direitos humanos. O evento foi promovi- mente nessas embarcações com o do pelo Ministério da Justiça, Ministério do grantes negros (de países africa- intuito de aportar em um país eu- Trabalho e Ministério das Relações Exterio- res, com apoio as agências das Nações Unidas

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comemoraram, mas no meu ponto ma apontado ou aguardando a de- aqui é selecionada. O acolhimento de vista não temos que comemorar, portação. Isso é um total absurdo. funciona para determinados gru- precisamos é fazer uma reflexão e O grande problema é que não há pos sociais, de uma nacionalidade nos envergonharmos, porque só nenhum tipo de regulamentação específica e, sobretudo, de uma em 2014 o Estado brasileiro e a so- ou lei para a existência do “conec- raça específica. Os imigrantes ne- ciedade pensaram nessas políticas tor”. Práticas semelhantes tam- gros não são vistos como potenciais públicas. bém se repetem na recepção de desenvolvedores, como talentos. A migrantes/refugiados que chegam sociedade os vê como aqueles que Eu parto sempre da ideia do mito por terra. trazem doenças, pobreza, margi- do acolhimento para entender essa nalização, violência etc. Enquanto situação. Se o brasileiro é acolhe- isso o imigrante branco é tratado dor, para que criar políticas públi- de outra forma. cas? É necessário considerar um conjunto de vulnerabilidades que atingem os migrantes, sobretudo IHU On-Line – O racismo tem os negros. Quando se trata dos de- É necessário atingido os imigrantes negros (de bates migratórios, não se faz um países africanos e do Haiti) no recorte racial e essa é uma ques- considerar um Brasil? De que maneira? Os mo- tão central, pois envolve aspectos conjunto de vul- vimentos sociais negros ou ou- específicos que são esquecidos e tras entidades têm tratado dessa negligenciados. nerabilidades questão? E o poder público? que atingem Alex André Vargem – Os migran- IHU On-Line – Como estão sen- tes e/ou refugiados africanos, ou do recebidos os imigrantes negros os migran- haitianos, no ponto de vista de uma (de países africanos e do Haiti) parcela significativa da sociedade no Brasil? Há diferenças entre a tes, sobretu- e também do poder público, são recepção de imigrantes negros e do os negros considerados indesejáveis. Quan- não negros aqui? do essas pessoas estão no âmbito da sociedade brasileira, morando Alex André Vargem – Há diferen- Depois do ingresso no Brasil, eles em diversas cidades em busca do ças sim. Por exemplo, muitas vezes são colocados em situação regular processo de integração, elas so- 77 os solicitantes de refúgio e mesmo quanto à permissão de entrada, frem variados tipos de violência e os que chegam em situação irregu- mas ficam jogados à própria sorte de racismo. Estive conversando em lar são impedidos de permanecer no país. O que acaba acontecendo, São Paulo com comunidades de hai- no país porque agentes federais os às vezes, é que eles se tornam mo- tianos, congoleses e senegaleses e consideram ameaças à segurança radores de rua, buscando espaços eles relataram que, andando no nacional, à saúde pública etc. Isso nos albergues que atendem essa centro da cidade, muitas vezes são configura uma violação dos direitos população. Eu tenho uma visão crí- chamados de macacos. Outra situ- dessas pessoas, principalmente o tica quanto a isso, pois o visto hu- ação que me contaram aconteceu direito de solicitar refúgio, prerro- manitário, concedido aos migran- com dois amigos, um haitiano e um gativa prevista nos acordos inter- tes na chegada, nada mais é que senegalês. Enquanto eles andavam nacionais dos quais o Brasil é sig- uma forma de igualá-los aos mo- também pelo centro, um senhor natário. A diferença na recepção já radores de rua. Alguns consideram viu que se tratava de estrangeiros começa por aí, no primeiro contato esse documento como uma benesse e cuspiu neles. com as autoridades fronteiriças. do Estado, mas na verdade revela a Ocorre desde esta violência fí- No tocante ao tema da imigra- ausência de políticas públicas mi- sica e psicológica mais direta na ção, no Brasil infelizmente ainda gratórias, que gera um conjunto de rua, até o racismo em espaços se tem uma visão policialesca dos violências e dificuldades para um como a universidade. Muitos dos refugiados e/ou migrantes. Nos processo de integração. estudantes estrangeiros negros grandes aeroportos há o chama- O slogan “Brasil de braços que estão nas universidades públi- do “conector”, que é um espaço 3 abertos” , usado para falar sobre cas vêm por convênios e acordos de confinamento onde as pessoas o debate migratório no país, de bilaterais Brasil-África. Mesmo nas ficam semanas e até meses quan- fato não é verdadeiro. A imigração universidades de ponta, como as do as autoridades alegam que elas públicas e algumas particulares, apresentam algum tipo de irregu- 3 Brasil de braços abertos: expressão estes estudantes se deparam com laridade ao chegar ao país. Essas dita pela presidente Dilma Rousseff em men- a violência racial. Um caso clássi- pessoas ficam confinadas, tentando sagem gravada para as redes sociais para as co foi o da Universidade de Brasília encontrar uma saída para o proble- celebrações de 2015 do Dia da Independên- cia. A presidente mencionou que, mesmo vi- – UNB em 2007, quando um grupo vendo momento de dificuldades, o Brasil está de estudantes brancos brasileiros UNODC, OIM, ACNUR e PNUD. (Nota da “de braços abertos” para receber refugiados. ateou fogo em um alojamento de IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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estudantes africanos. Outra situ- Infelizmente esse racismo e xe- nós temos trabalhado com pales- ação ocorreu na Universidade Es- nofobia não vêm só da sociedade, tras de conscientização e sensibi- tadual Paulista – Unesp, na cidade também vêm do poder público. lização, formação para diversos de Araraquara, que é o campus Sempre cito o caso emblemático públicos e pesquisa. Também re- de Ciências Humanas, onde foram que nós tivemos em São Paulo no alizamos o encaminhamento de feitas pichações contra a presen- ano de 2012, nessa que é uma das alguns casos pensando em como ça de estudantes intercambistas maiores cidades do mundo, que al- atender os migrantes/refugiados a africanos. Foi pichada a seguinte guns definem como cosmopolita. partir das nossas políticas e servi- frase: “Sem cotas para animais da Em uma tarde de dia de semana, ços gerais (como o Sistema único África”. Esse absurdo aconteceu no centro da cidade, prenderam de Saúde – SUS e a Lei Orgânica em 2012 e revelou uma grande quase 600 africanos e haitianos sob de Assistência Social – LOAS, entre carga de preconceito, xenofobia e a alegação de que eles apresenta- outros) diante da escassez e inefi- racismo. O mais paradoxal é que vam indícios de irregularidade. Mas ciência das políticas públicas espe- isso tudo se deu em um campus de o que são esses indícios de irregu- cíficas para eles. Ciências Humanas. Iguais a esses, laridade? E por que só migrantes, Assim, o trabalho que vem sendo há diversos outros casos, que não refugiados e estudantes intercam- realizado busca a conscientização são isolados, fazem parte de um bistas negros foram detidos? No do público brasileiro e também contexto de racismo. caso específico dos haitianos, eles tinham visto humanitário. O Bra- dos imigrantes, no sentido do en- Desse modo, quando esses es- sil outorga ao haitiano o visto hu- tendimento da realidade do Brasil, trangeiros negros, sejam eles mi- manitário e depois este haitiano principalmente no tocante ao con- grantes, refugiados ou estudantes se torna objeto de manifestações texto sócio-histórico e econômico intercambistas, estão em território racistas pela própria autoridade das relações raciais no país, como brasileiro, eles se deparam com que lhe concedeu este documento. a trajetória do processo de escra- essas violências racistas diretas, Isso é um contrassenso e coloca em vidão brasileiro, as desigualdades através de insultos pessoais e às xeque o mito do Brasil como país raciais etc. É necessário explicar vezes até ataques à integridade acolhedor. que eles estão pisando em um física que resultam em morte; e território cujas estruturas sociais indiretas, a partir das pichações, foram construídas a partir dessas IHU On-Line – Como é o trabalho por exemplo. Aquela violência bases. Precisamos preparar essas 78 do Instituto do Desenvolvimento que o brasileiro racista e xenofó- pessoas para o que elas podem vir da Diáspora Africana no Brasil bico não manifesta contra corpos a enfrentar, elas têm que conhecer – IDDAB? negros brasileiros, ele manifesta a realidade do lugar em que vão se contra corpos negros africanos e Alex André Vargem – Ao longo estabelecer para não terem uma haitianos. desses quase dez anos de atuação, visão romantizada.

■ Alex André Vargem

Sou um observador e questionador da realidade, e contestador de algu- mas das questões sociais invisíveis.

LEIA MAIS... —— Imigrantes negros que chegam ao Brasil deparam-se com “racismo à brasileira”, diz soci- ólogo. Entrevista com Alex André Vargem reproduzida nas Notícias do Dia, em 20-10-2015, disponível em http://bit.ly/1WPRyU3.

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Duas faces de preconceito em uma só Simone Vieira da Cruz fala das dificuldades de ser mulher negra na atualidade, em uma sociedade racista e machista

Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

magine o preconceito como uma moldura, diferenciam nossas lutas e isso demanda polí- como se cada face desse tipo de discri- ticas públicas que deem conta de todas nós”, Iminação gerasse uma moldura pesada e destaca. Para ela, apesar dos desafios, a luta dura. Assim, se você é mulher tem de aprender contra essas duas formas de preconceito as a viver com o peso da desigualdade de gênero deixa fortalecidas. “Nossa luta sempre foi e mostrar que você tem os mesmos direitos e por sobrevivência, para poder viver com dig- capacidades que os homens. Se você é negro, nidade. Neste aspecto incorporar o recorte tem de provar que não tem menos valor do de gênero na luta do movimento negro é for- que qualquer outro. Agora, imagine ser mu- talecer essa luta que sempre foi legítima”. lher e negra numa sociedade que se diz pós- moderna, mas que nutre o racismo e o machis- Simone Vieira da Cruz é mestre em Saúde mo. Essa realidade é vivida por milhares de Coletiva pela Unisinos, é ex-bolsista da Fun- brasileiras, como Simone Vieira da Cruz, psi- dação Ford – International Fellowships Pro- cóloga e ativista das questões raciais e de gê- gram (2008). Durante seu mestrado, também nero. “São as mulheres negras que ampliam a realizou estágio no Departamento de Psicolo- agenda do movimento negro quando apontam gia Social da Universidade Autônoma de Bar- a desigualdade de gênero produzida no âmbito celona. Ainda é especialista em Psico-Onco- deste movimento e a necessidade de fazer essa logia pela Pontifícia Universidade Católica do discussão e mudar as relações”, completa. Rio Grande do Sul e graduada em Psicologia 79 pela Universidade Luterana do Brasil. Atual- Na entrevista, concedida por e-mail à IHU mente, é secretária Executiva da Articulação On-Line, reconstitui os desafios e lutas pelos de Organizações de Mulheres Negras Brasilei- quais ela e muitas outras mulheres passam ras – AMNB, Integrante da Associação Cultural diariamente. Lutas que não significam apagar de Mulheres Negras e pesquisadora na área sua negritude ou feminilidade. “Nossas lutas de Saúde da População Negra e HIV/Aids, são importantes para que possamos mostrar movimento negro e de mulheres negras. para a sociedade que não somos todas iguais, temos especificidades que nos diferenciam, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o papel partir desse não reconhecimento preta, e somente nós vivenciamos das mulheres negras na história da agenda das mulheres negras isso. É essa violência do racismo de luta dos movimentos sociais no movimento negro, como uma que nos coloca em uma condição negros? ação política. pior. Nossa luta sempre foi por so- brevivência, para poder viver com Simone Vieira da Cruz – As mu- IHU On-Line – De que manei- dignidade. Neste aspecto incorpo- lheres negras foram e são funda- rar o recorte de gênero na luta do mentais na história de luta dos ra o racismo atinge as mulheres negras? Por que é necessário movimento negro é fortalecer essa movimentos sociais negros. São luta que sempre foi legítima. as mulheres negras que ampliam o recorte de gênero nas lutas a agenda do movimento negro afrodescendentes? IHU On-Line – Quando e de que quando apontam a desigualdade Simone Vieira da Cruz – O racis- maneira as mulheres negras mi- de gênero produzida no âmbito mo atinge toda a população negra, litantes começam a incluir mais deste movimento e a necessi- e com as mulheres negras não é formalmente os aspectos do dade de fazer essa discussão e diferente. Nós, mulheres negras, “gênero” nas lutas negras e da mudar as relações. Mas é impor- vivenciamos todos os aspectos da “raça” nas lutas feministas? tante destacar que as marcas do desigualdade de gênero que afe- patriarcado sempre foram pre- tam as mulheres de modo geral, no Simone Vieira da Cruz – As mu- sentes e que o movimento de entanto o racismo só é vivenciado lheres negras sempre demarcaram mulheres negras enquanto um por nós. Racismo é a discriminação suas lutas tanto no movimento ne- movimento independente surge a pela cor da pele. Pela cor da pele gro quanto no feminista. No entan-

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to, a dificuldade de reconhecimen- sil e, a partir disso, articular com IHU On-Line – Quais são os prin- to dessas lutas por um histórico redes internacionais. cipais pontos da agenda dos movi- mito da democracia racial e da ma- mentos de mulheres negras hoje? nutenção de um sistema patriarcal IHU On-Line – Quando nasce e impediu que nossas lutas se forta- Simone Vieira da Cruz – São como é o trabalho da “Articulação muitas as nossas agendas, mas to- lecessem no interior desses movi- de Mulheres Negras Brasileiras”? mentos. A agenda inicia, no entan- das se focam no enfrentamento ao to, a partir da denúncia contra a Simone Vieira da Cruz – A Articu- racismo. O racismo é fruto da desi- esterilização das mulheres negras. lação de Organizações de Mulheres gualdade que vivenciamos, da vio- Negras Brasileiras é criada a partir lência que sofremos em diferentes da organização da mulheres negras aspectos, violência física, moral, IHU On-Line – Qual a importân- brasileiras para participação na cia das mobilizações das mulhe- psicológica, e pela perda de nossos Conferência de Durban, África do filhos, sobrinhos etc. É por essas res negras para a militância e para Sul, em 2001. Logo após a Confe- as lutas feministas? violências que iremos marchar em rência, a Articulação se institucio- 18 de novembro1. Simone Vieira da Cruz – Nossas naliza reunindo organizações de lutas são importantes para que mulheres negras de vários estados IHU On-Line – Quais são as prin- possamos mostrar para a socieda- brasileiros para uma ação coletiva de que não somos todas iguais, te- de acompanhamento dos resulta- cipais conquistas das mobiliza- mos especificidades que nos dife- dos da conferência. Atualmente, a ções de mulheres negras no Bra- renciam, diferenciam nossas lutas AMNB possui 27 organizações filia- sil? E os próximos desafios? das, sendo representada em vários e isso demanda políticas públicas Simone Vieira da Cruz – Infeliz- estados e em todas as regiões do que deem conta de todas nós. mente nossas conquistas, como a Brasil. O trabalho efetivo se dá na criação da Secretaria de Políticas atuação em espaços como os con- IHU On-Line – Como é o contex- selhos nacionais: de saúde, de mu- de Promoção da Igualdade Racial – to das mobilizações de mulheres lheres, de igualdade racial, dentre SEPPIR, acaba de ser fusionada com negras militantes brasileiras, e outras proposições. a Secretaria de Direitos Humanos e delas com mobilizações de outros a Secretaria das Mulheres. No en- países? tanto, apesar disso, temos muitas IHU On-Line – Quando nasce e lutas pela frente, precisamos avan- Simone Vieira da Cruz – As mu- como é o trabalho da “Associação çar, e nossa principal ação de mo- 80 lheres negras no Brasil mantêm es- Cultural de Mulheres Negras – AC- treitas relações com mulheres ne- MUN”, da qual você é integrante? bilização nos últimos anos tem sido gras de outros países, participando para a realização/concretização da de redes internacionais de mulhe- Simone Vieira da Cruz – A AC- Marcha das Mulheres Negras, con- res negras da América latina e do MUN foi fundada em 1994 a partir tra o racismo, a violência e pelo Caribe, assim como dos Estados do trabalho de mulheres negras bem viver. O título da marcha de- Unidos. É a partir da participação que atuavam na comunidade Maria marca nossos principais desafios. em redes que nos articulamos com da Conceição, a partir do trabalho mulheres negras de outros países, de conscientização e valorização 1 A Marcha das Mulheres Negras Contra■ o denunciando o racismo existente do papel das mulheres negras. O Racismo, a Violência e pelo Bem Viver será realizada em Brasília, dia 18 de novembro no Brasil em nível internacional. trabalho da ACMUN sempre foi fo- cado em mulheres negras de co- de 2015, com concentração a partir das 9h no Ginásio Nilson Nelson. A expectativa é de A partir da Articulação de Organi- munidade na perspectiva de levar que participem 20 mil mulheres de todos os zações de Mulheres Negras Brasilei- informações e orientações sobre a estados e regiões do Brasil. A mobilização é ras – AMNB, reunimos organizações saúde, identidade e políticas públi- pela garantia de direitos já conquistados, pelo de mulheres negras de vários esta- cas. Desde então, atuamos através direito à vida e a liberdade, por um país mais justo e democrático e pela defesa de um novo dos do Brasil. Esta articulação tem do desenvolvimento de projetos modelo de desenvolvimento baseado na valo- o objetivo de fortalecer a ação po- comunitários, de saúde, educação rização dos saberes da cultura afro-brasileira. lítica das mulheres negras no Bra- e direitos humanos em geral. (Nota da IHU On-Line)

Simone Vieira da Cruz

Sou Simone Cruz, psicóloga ativista do movimento de mulheres negras. Sou aquela que acredita em um amanhã melhor. Trabalho diariamente com a expectativa de que meu trabalho propicie com que mais mulheres negras tomem consciência de seu lugar no mundo enquanto mulheres ne- gras referências de nossas ancestrais e não de um padrão europeu.

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IHU em Revista DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Agenda de Eventos Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU entre 16-11-2015 e 27-11-2015

O genocídio do povo Kaiowá Guarani em debate

Palestrante: Profa. Dra. Fernanda Bragato – Unisinos Horário: 17h30min às 19h 19/11 Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1MnUMUm

Ciclo de Estudos: Saúde e segurança no trabalho na região do Vale do Rio dos Sinos

Conferência – Capitalismo Biocognitivo e Trabalho: desafios à saúde e segurança 09/11 a Conferencista: Profa. Dra. Elsa Cristine Bevian – FURB 26/11 84 Data: 26-11-2015 Horário:18h às 20h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU ** O Ciclo também compreende atividades na modalidade de Ensino à Distância – EAD Saiba mais em http://bit.ly/1WOFMJy

Cadernos Teologia Pública

Cadernos Teologia Pública divulga artigos que apresentam a contribui- ção da teologia com os debates que se desenvolvem na esfera pública da sociedade e na universidade, com abertura ao diálogo com as ci- ências, com a cultura e com as reli giões.

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ENTREVISTA Metafísicas Africanas – Eu sou porque nós somos O título desta entrevista sintetiza a Filosofia Ubuntu, que juntamente com a racionalidade do Sul-Global, é debatida por Jean Bosco Kakozi Kashindi

Por Ricardo Machado

om o Ubuntu operou-se a mu- sujeitos são como tais pela relação intrínse- dança da concepção da identi- ca e imprescindível que têm com os outros “Cdade a partir do ‘eu sou por- lato sensu, daí a intersubjetividade inerente que tu não és’ (concepção excludente) para e constitutiva das pessoas”, explica. o ‘eu sou porque nós somos, e dado que so- é natural da mos então eu sou’ (concepção includente)”. Jean Bosco Kakozi Kashindi Desta maneira objetiva, mas contundente, República do Congo, onde se graduou em Filo- Jean Bosco Kakozi Kashindi demonstra um sofia e Ciência Humanas. Especializou-se em dos principais deslocamentos teóricos e prá- Religião, no Centre de Formation Missionnaire ticos da racionalidade do continente africano Notre Dame d’Afrique, na cidade de Bukavu em relação ao olhar ocidental hegemônico. (República Democrática do Congo). Realizou Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ele mestrado em Estudos Latino-americanos pela explica que a filosofia africana oferece ele- Universidade Nacional Autônoma do México – mentos para pensar, também, a realidade la- UNAM. Atualmente é doutorando em Filoso- tino-americana e caribenha. “Eu estimo que fia e Ciências Humanas na cidade de Bukavu. 85 nessas culturas – dominadas, exploradas e Sua pesquisa é referente ao Ubuntu na Áfri- marginalizadas – existe um potencial enorme ca do Sul (Joanesburgo) na Universidade de para pensar, a partir de outras racionalidades, Witwatersrand. a realidade latino-americana e caribenha, e, Jean Bosco Kakozi Kashindi esteve na Uni- dessa maneira, dar uma nova seiva aos pro- sinos em 2014 apresentando a conferência cessos de transformação ou de mudança que La vivencia de Ubuntu y la descolonización ocorreram na região”, propõe. africana. Caso de Sudáfrica, durante o even- Ao explicar tal mudança de concepção on- to Conversações Interculturais no Sul Global – tológica, o entrevistado apresenta os três Descolonização, Direito e Política em debate, postulados éticos que emergem. “Primeiro, que foi realizado em parceria com o Instituto todas as pessoas são valiosas em si mesmas, Humanitas Unisinos – IHU. motivo pelo qual ninguém pode ser conside- A entrevista foi publicada nas Notícias do rado como inútil na sociedade; segundo, se Dia, atualizadas diariamente no sitio do Ins- todas as pessoas são valiosas em si mesmas, tituto Humanitas Unisinos – IHU, em 08-11- segue-se que são sujeitos, isto é, agentes que 2015, disponível em http://bit.ly/1ONg7MW. podem e devem incidir na sociedade na qual vivem; terceiro, no horizonte do Ubuntu, os Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que trata exa- samento que me atreveria a cha- tamente a Filosofia africana ban- primeiro, seguindo Cheik Anta Diop, apesar mar de crítico, que nasceu quase tu e como ela explica uma condi- da diversidade de vivências culturais, existe no final da primeira metade do ção de existência no Sul Global? uma unidade cultural dos povos que moram século passado, e que tinha como no sul do Saara; segundo, o bantu limita-se Jean Bosco Kakozi Kashindi – A no aspecto linguístico, razão pela qual em um 1 mesmo país é possível encontrar povos que vamente pelos brancos durante o apartheid filosofia africana bantu é um pen- compartilham uma mesma cultura, um mes- na África do Sul para segregar racialmente mo espaço..., mas alguns falam uma língua os negros. Estas razões, entre outras, leva- 1 Não existem diferenças teóricas significa- bantu e outros uma língua não-bantu (niló- ram vários filósofos e/ou pensadores e - afri tivas para dizer “filosofia africana bantu” ou tica, por exemplo); terceiro, o termo “bantu” canistas a falar apenas de “filosofia africana”. simplesmente “filosofia africana”. Porque, foi durante muito tempo utilizado pejorati- (Nota do Entrevistado)

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principal incumbência negar os “vida”.4 Desde esta ótica, o ser é -se que possuem uma racionalida- pressupostos hegelianos ampla- sempre concretamente dinâmico; de diferente da ocidental. mente difundidos no Ocidente, de expressa-se como força, a mesma Pois bem, reivindicar uma ra- que os homens e as mulheres que que é a exteriorização da energia cionalidade diferente, isto é, viviam no sul do Saara não tives- e, por conseguinte, está sempre uma cosmovisão diferente, uma sem nenhum sistema filosófico e, em relação ativa com a vida para maneira diferente de ver o mun- pior ainda, não seriam capazes de aumentá-la e, às vezes, diminuí- do e de viver nele, é assumir-se filosofar. Foi o missionário francis- -la. Esta foi a principal crítica de simplesmente como humano e, cano belga Placide Tempels2 quem, Tempels, sobre a qual fundamen- por conseguinte, posicionar-se na paradoxalmente, inaugurou oficial- tou todo o edifício da filosofia existência. Atualmente, reivindi- mente essa crítica. Em seu livro – africana bantu. Após o trabalho car sua humanidade como africa- já imprescindível nesse campo – La do missionário belga, houve críti- no – como o que fez o ex-presi- Philosophie bantoue (Paris: Pré- cas a favor ou contra que foram dente sul-africano Thabo Mbeki,9 sence Africaine, 1945), publicado situadas em diferentes correntes em seu discurso de 8 de maio de primeiro em holandês, em 1944, e da filosofia africana: a corrente 1996, na adoção da nova Consti- traduzido, um ano mais tarde, para ontológica, chamada também de tuição da África do Sul, quando o francês, demonstrou metódica e “etnofilosofia”; a refutação do 3 começou dizendo “I am African comparativamente que os bantu “tempelsianismo”(Fabien Eboussi- (Eu sou africano) – é ter consci- tinham uma filosofia como os euro- -Boulaga5), a destruição da “etno- ência da posição que se ocupa no peus, mas diferente. filosofia” (Marcien Towa6 e Paulin mundo. Esta não pode ser outra Baseando-se em sua experiência Hountondji7); Crítica da crítica da senão a marginalização, a explo- de campo como missionário católi- “etnofilosofia”, entre outras.8 Em- ração e a dominação. Então, o co (viveu 28 anos no antigo Congo bora estas correntes tenham aber- simples fato de sentir a necessi- Belga, hoje República Democrática to o fazer filosófico africano, foi o dade de gritar aos quatro ventos do Congo, na região dos baluba, no trabalho pioneiro de Tempels que que os africanos pensam, que têm centro e sudeste deste país), pôde influenciou e propulsou todos os uma racionalidade..., é denun- demonstrar que os bantu tinham trabalhos posteriores. Em suma, a ciar implícita e explicitamente a uma ontologia, uma metafísica, filosofia africana bantu foi uma re- condição de existência da maioria uma epistemologia, uma psicolo- flexão crítica reivindicativa de um dos africanos, a mesma que estes 86 gia, uma ética e uma religião ba- tributo eminentemente humano últimos compartilham proporcio- seadas na concepção do ser como que é a razão. Se os africanos têm nalmente com outros habitantes força. Esta concorre sempre para uma ontologia diferente, uma éti- do Sul Global. procurar a vida. Tempels observou ca diferente, metafísica... infere- que os bantu se relacionavam com IHU On-Line – De que forma a outros seres, animados ou inani- 4 Ver TEMPELS, Placide. La philosophie perspectiva filosófica africana mados, com vistas a fortalecer sua bantoue. Paris: Présence Africaine, 1945, p. 30-47. (Nota do Entrevistado) bantu torna-se uma ferramenta vida ou diminuir a força vital de 5 Fabien Eboussi Boulaga (1934): é um fi- produtiva para pensar a realidade um inimigo. Isto quer dizer que a lósofo camaronês, nascido na cidade de Bafia, latino-americana e caribenha? ontologia bantu dista da ontologia no Camarões. Realizou estudos no Seminário Menor de Akono no sul de Camarões, antes Jean Bosco Kakozi Kashindi – Na clássica ocidental, que considera de entrar na Companhia de Jesus, em 1955. minha maneira de ver as coisas, a o ser enquanto ser. Para os ban- Foi ordenado sacerdote em 1969. É conhe- filosofia africana é irmã da- filoso tu, o ser é força, ou melhor dito, cido por suas posições teóricas, incluindo a fia latino-americana e caribenha, é força vital, porque existe uma publicação do “problema Bantu”, em 1968, o que provocou um protesto em círculos da porque ambas nascem do desejo relação intrínseca entre “força” e Igreja. (Nota da IHU On-Line) da emancipação da “tutela” ou 6 Marcian Towa (1931-2014): é um filósofo 2 Placide Tempels (1906-1977): padre nascido no Camarões. Sua filosofia tornou-se dominação ocidental; em ambas franciscano belga, que foi missionário na re- influente no pensamento africano no século há uma preocupação com a busca gião da África Central que atuou como etnofi- XX, influenciando inúmeros outros estudio- do próprio, das identidades locais. lósofo. Tornou-se conhecido por seu livro La sos. (Nota da IHU On-Line) Philosophie bantoue (Paris: Présence Africai- 7 Paulin Hountondji (1942): é um filósofo Vendo-o desta perspectiva, a filo- ne, 1945). (Nota da IHU On-Line) e político beninense. Hountondji foi educado sofia africana não apenas pode ser 3 Não se deveria fazer a concordância deste na École Normale Supérieure, em Paris, gra- uma ferramenta produtiva para apelativo e tampouco se deveria colocar arti- duando-se em 1966, onde realizou doutorado pensar e transformar a realidade go e plural e dizer os bantus ou bantues, por- em 1970, cuja tese foi sobre Edmund Husserl. que em si este termo já está no plural; “bantu” Depois de dois anos de ensino em Besancon latino-americana e caribenha, mas significa pessoas. E os artigos estão sobrando (França), em Kinshasa e Lubumbashi (Repú- e poderiam desorientar um pouco a compre- blica Democrática do Congo), ele aceitou um 9 Thabo Mvuyelwa Mbeki (1942): é um ensão, porque em línguas bantu não apenas cargo na Université du Bénin Nationale, onde político da África do Sul e ex-presidente do não existem, mas também que “bantu” inclui ainda leciona como professor de Filosofia. país, que governou entre 14 de junho de 1999, os dois gêneros (masculino e feminino), neu- (Nota da IHU On-Line) sucedendo a Nelson Mandela, e 20 de setem- tro, inclusive. No entanto, nas línguas neola- 8 Ver BIYOGO, Grégoire. Histoire de la phi- bro de 2008, quando renunciou por falta de tinas costuma-se antepor artigo apenas, na losophie africaine. Livre III, Les courants apoio político no parlamento de seu partido, minha opinião, por motivos eufônicos. (Nota de pensée et les livres de synthèse. Paris: Congresso Nacional Africano, deixando o car- do Entrevistado) L’Harmattan, 2006. (Nota do Entrevistado) go vago. (Nota da IHU On-Line)

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também pode aprender muito des- Sankara,10 em Burkina Faso (recor- ocidental chegou aos seus limites ta última. rendo à cultura e línguas nativas, e nos está levando ao precipício mudou o nome de seu país que an- da autodestruição! É o momento Tanto a África como a América tes se chamava “Haute Volta”); Ju- de considerar novamente outras Latina foram colonizadas por paí- lius Kambarage Nyerere, na Tanzâ- racionalidades que foram margi- ses da Europa ocidental, mas essa nia, recorreu às culturas africanas nalizadas pela suposta “racionali- colonização foi um pouco diferen- e à língua swahili, para propor um dade universal”. Nisso, a filosofia te: na América Latina, antes da “socialismo africano”, que chamou africana se apresenta como uma colonização, houve a conquista; os de “Ujamaa”, que significa o fato alternativa. europeus chegaram com a intenção de viver em família, em comuni- de não apenas enriquecer as me- dade. O caso exitoso das duas últi- IHU On-Line – Que racionalida- trópoles, mas de fixar-se no “novo mas décadas foi o uso do “Ubuntu” des o Sul Global apresenta como mundo”. Daí os topônimos como (humanidade, o humano), na África alternativa à perspectiva hege- “Nova Espanha”, “Nova Inglater- do Sul. Neste país, utilizou-se esta mônica? Que relação nós temos ra”, “Nova York”, “Nova Galícia”, “sabedoria” africana para pensar com o “outro” a partir da pers- “Nova Granada”, etc. A África, ao uma nova África do Sul, uma nova pectiva Ubuntu? contrário, não foi conquistada no identidade sul-africana mais inclu- sentido próprio do termo, mas sim- dente. Assim, também foi possível Jean Bosco Kakozi Kashindi – Já plesmente colonizada; e foram ra- evitar o derramamento de sangue existem racionalidades anti-hege- ros os topônimos tipo “novo este”, que muitos profetas de desgraças mônicas que, independentemente “novo aquele”. Em termos gerais, já haviam prognosticado. das polêmicas que há em torno delas, podemos asseverar que são os europeus não tinham muito in- racionalidades do Sul Global.11 A teresse em se fixar definitivamen- Novas racionalidades filosofia da libertação, o -pós-co te na África (esta não era “nova” lonialismo, o “giro decolonial”, o para eles), mas explorar em gran- Em suma, a filosofia africana “pachamamismo”, a filosofia maia de escala as matérias-primas, com oferece elementos que podem ser tojolabal, o Ubuntu, entre outras, valiosos para pensar de forma dife- a mão de obra barata ou, às vezes, são esforços louváveis na busca de rente a realidade latino-americana escravizada, para as indústrias das outras vias para “sentipensar”12 a e caribenha. Nesta última região, metrópoles. “nossa América”. não se considerou, em seu justo 87 Filosofia Africana valor, as contribuições das culturas Ubuntu subordinadas (principalmente as indígenas e “afro”). Eu estimo que Dito isso, a filosofia africana tem O Ubuntu, por exemplo, conside- nessas culturas – dominadas, ex- a virtude de refletir sobre uma re- rado como “humanismo africano”, ploradas e marginalizadas – existe alidade que tem algo em comum “ética africana” ou “filosofia afri- um potencial enorme para pensar, com a realidade latino-americana cana” por antonomásia, tem seus a partir de outras racionalidades, e caribenha, mas difere em vários fundamentos nas vivências comu- a realidade latino-americana e ca- aspectos pelos contextos sócio- nitaristas das pessoas, ou seja, na ribenha, e dessa maneira dar uma -históricos de ambos os continen- alteridade. Com efeito, nos estu- nova seiva aos processos de trans- tes. Um destes aspectos é, por dos sobre o Ubuntu, fala-se sempre formação ou de mudança que ocor- exemplo, as línguas autóctones. reram na região. A racionalidade Estas seguem sendo uma fonte 11 Entendo o “Sul Global” no sentido que lhe dão Boaventura de Sousa Santos e outros es- inesgotável para as pesquisas em 10 Thomas Isidore Noël Sankara (1949- tudiosos latino-americanos e caribenhos pró- ciências sociais e humanidades. 1987): foi um militar e líder político de Burki- ximos ao “giro decolonial”, isto é, “Sul Glo- Relacionado a isso, também as na Faso. Foi um popular capitão e o primei- bal” como uma posição na existência ou uma ro-ministro quando o país ainda se chamava condição de existência no sistema mundo ca- culturas autóctones, às vezes con- República do Alto Volta. Logo depois, tornou- pitalista europeu e norte-atlântico, mais que sideradas como “autenticamente -se o quinto presidente voltense desde a liber- uma localização geográfica. Essa condição africanas”, foram uma mina para tação do jugo francês e o primeiro de Burkina de existência alude à dominação e injustiças Faso. Ele também enunciou os objetivos da históricas do “hemisfério norte” para com o empreender práxis de libertação “revolução democrática e popular” com as ta- “hemisfério sul”, as mesmas que produziram ou de transformação política, refas de erradicar a corrupção, a luta contra pobreza, marginalização social, exploração, social... de países africanos. Os a degradação ambiental, o empoderamento racismo... (Nota do Entrevistado) das mulheres, e aumentar o acesso à educa- 12 Retomo este termo do filósofo mexicano exemplos ilustrativos disso são ção e cuidados de saúde. Durante o curso de maia tzeltal Juan López Intzín. Ver INTZÍN, abundantes. Com efeito, muitos sua presidência, Sankara implementou com Juan López. Ich´el ta muk´: la trama en la líderes políticos e/ou intelectuais sucesso programas que muito reduziram a construcción mutua y equitativa del Lekil mortalidade infantil, aumentaram as taxas de kuxlejal (vida plena-digna). Conferência se valeram de recursos de suas lín- alfabetização e frequência escolar e aumen- dada em 14 de abril de 2011 no Centro Regio- guas e culturas, para propor mu- taram o número de mulheres que ocupam nal de Investigaciones Multidisciplinarias, da danças simbólicas e concretas em cargos governamentais. Seu governo tentou Universidade Nacional Autônoma do México, abolir também os privilégios tribais e baniu Cuernavaca, Morelos. Disponível em: http:// seus países. Aqui podemos citar as mutilações genitais, os casamentos força- www.educrim.org/drupal612/sites/default/ alguns casos, como o de Thomas dos e a poligamia. (Nota da IHU On-Line) files/Lopez.pdf. (Nota do Entrevistado)

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do aforismo xhosa13 onde encon- IHU On-Line – Como a ideia de ser]. Desta maneira, [humaness] tramos essa expressão: “Ubuntu identidade é reorganizada pela opõe-se a qualquer “-ism”, incluin- ungamuntu ngabanye abantu” ou perspectiva do Ubuntu? do o “humanism”, porque esse [-ism] tende a sugerir uma condi- seu equivalente em zulu: “Umun- Jean Bosco Kakozi Kashindi – A ção de finalidade, um fechamento tu ngumuntu ngabantu” (a pessoa identidade é um aspecto funda- ou uma espécie de algo absoluto, é ou torna-se pessoa no meio de mental no Ubuntu. De fato, este úl- incapaz de ou resistente a qual- ou através de outras pessoas). No timo foi levado à arena política, na quer movimento.18 Então “huma- horizonte do Ubuntu, parafrasean- África do Sul, para também ajudar do Desmond Tutu,14 a outra pessoa a repensar a identidade sul-africa- ness” evoca a ideia de humanidade é condição de possibilidade para na. Era preciso sair da concepção como atividade, ou seja, como um a minha realização como ser hu- de “cidadãos” separados, que está processo aberto, uma humanidade mano; o outro me dá confiança na por trás da ideologia da segregação que está sendo. Isto é fundamen- minha humanidade, porque a com- racial, para inventar uma identi- tal para a compreensão e a vivên- partilhamos; minha humanidade dade sul-africana includente; era cia das identidades. Estas são vis- está inextricavelmente ligada à da preciso “criar” uma nova concep- tas então não como algo acabado, outra pessoa, pois pertencemos a ção da cidadania sul-africana. Nes- mas como algo que está sempre um feixe de vida, diria o prêmio ta, deviam caber todas as cores, em processo, algo que segue sen- do. Nesta perspectiva, então, uma Nobel da Paz, Desmond Tutu. todas as culturas, todas as narra- tivas nacionalistas (africâner, bri- identidade nacional – por exemplo, Concepção humanista tânica, zulu, xhosa, tswana, etc.) a sul-africana – deve ser entendida que compunham a África do Sul. como aberta, já que o ser humano nunca termina de ser. Então, a partir dessa concepção Com o Ubuntu operou-se a mudan- humanista, a relação com o outro15 ça da concepção da identidade a Vendo-o assim, as identidades torna-se ontológica, epistemológi- partir do “eu sou porque tu não és” devem viver em uma tensão dialé- ca, social e politicamente falando, (concepção excludente) para o “eu tica entre a “exclusão” dos outros sou porque nós somos, e dado que necessária, vital. Pois sem o outro, e a inclusão dos mesmos em um somos então eu sou”16 (concepção não existe a possibilidade da huma- “nós”. A exclusão não deve ser en- includente). nidade, do conhecimento da vida; tendida como negação dos outros (não estamos no “eu sou porque 88 com o outro, ao contrário, postula- Matriz conceitual -se o humano e outros valores como tu não és”), mas como uma dife- a solidariedade afetiva, calorosa, a renciação ou distinção dentro do Ora, na conceitualização que Ra- responsabilidade... e liberta-se dos “nós”. Afinal de contas, este últi- mose faz do Ubuntu,17 este último ídolos da morte que são o egoísmo, mo vai sendo, ontológica, episte- é entendido como “humaness” ou mológica e fenomenologicamente a marginalização social, o racismo, “humanity”, em vez de “huma- entre outros. falando, na atividade de “reunir nism”. O matiz conceitual que este diferenciando”. Isto lembra preci- 13 Xhosa e zulu são etnias sul-africanas. autor estabelece entre ambos os samente o que o filósofo mexicano O atual presidente da África do Sul, Jacob termos é de suma importância para Leopoldo Zea dizia: “somos iguais Zuma é zulu, ao passo que Nelson Mandela a questão da identidade. Para este porque somos diferentes”. era xhosa, e o arcebispo emérito Desmond autor, “humaness” é uma interpre- Tutu também é xhosa. tação melhor do conceito de Ubun- 14 Desmond Tutu (1931): Bispo anglicano IHU On-Line – De que maneira sul-africano. Trabalhou como professor se- tu do que “humanism”, pois sugere cundário e, em 1960, ordenou-se sacerdote tanto uma condição de ser, como os conceitos de subjetividade e anglicano. Após estudar teologia por cinco um estado de devir, de abertura ou intersubjetividade são tensiona- anos na Inglaterra, foi nomeado deão da ca- dos e reconstruídos pela lógica do tedral de Santa Maria, em Johannesburgo, de incessante desenvolvimento [do sendo o primeiro negro a ter tal nomeação. Ubuntu? Sagrado bispo, dirige a diocese de Lesoto de 16 Este enunciado é do escritor e filósofo que- 1976 a 1978, ano em que se torna secretário- niano John Mbiti. Neste enunciado encontra- Jean Bosco Kakozi Kashindi -geral do Conselho das Igrejas da África do -se a tradução que Desmond Tutu dá à má- – Dado que em Ubuntu parte-se Sul. Sua proposta para a sociedade sul-afri- xima xhosa “Ubuntu ungamuntu ngabanye do aforismo “Umuntu ngumuntu cana inclui direitos civis iguais para todos; abantu”; costuma traduzi-la como “eu sou ngabantu” (“a pessoa é pessoa no abolição das leis que limitam a circulação porque nós somos”. O acadêmico e religioso dos negros; um sistema educacional comum; ganês Noah Dzobo, por sua vez, dando uma meio de outras pessoas” ou “eu sou e o fim das deportações forçadas de negros. precedência ontológica ao “nós”, definia a éti- porque nós somos”), entende-se Sua firme posição anti-apartheid – a políti- ca comunitarista africana como “nós somos, que existe uma igualdade ontoló- ca oficial de segregação racial – lhe vale, em portanto sou; e porque eu sou então somos”. 1984, o Prêmio Nobel da Paz. (Nota da IHU Para uma aproximação a esses postulados da gica de todas as pessoas, e dentro On-Line) ética africana, ver: EZE, Michael Onyebuchi. dessa igualdade há uma relação 15 Cabe mencionar que esse “outro”, na pers- Intellectual history in contemporary South existencial, vital, que permite que pectiva da filosofia africana, não se limita Africa. New York: MacMillan, 2010, pp. 94- alguém seja o que é; por isso uma apenas aos seres humanos, mas inclui tam- 95. (Nota do Entrevistado) bém outras entidades cósmicas (animais, 17 Ver RAMOSE, Mogobe B. African Philo- interdependência vital entre não árvores, ar, rios, etc.). Daí a dimensão ético- sophy through Ubuntu. Harare: Mond Books -ecológica do Ubuntu. (Nota do Entrevistado) Publishers, 2002. (Nota do Entrevistado) 18 Ver Ibid., p. 123. (Nota do Entrevistado)

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só todos os humanos, mas também postulado ético do filósofo alemão ética à ontologia. Para Lévinas,22 o entre estes e outras entidades cós- –, uma concepção do ser humano rosto do Outro irrompe antes que micas. Sob esta ótica, deduzem-se não como meio, mas como fim em qualquer outro discurso, e o faz três postulados éticos importantes: si mesmo; não obstante, esse ser a partir da sua nudez e do temor primeiro, todas as pessoas são va- humano sempre deve estar cons- que inspira. Mas esse outro vive em liosas em si mesmas, motivo pelo ciente da alteridade, no sentido uma sociedade concreta, isto é, qual ninguém pode ser considerado amplo, que o constitui. É um ser que tem um contexto histórico de como inútil na sociedade; segundo, humano consciente de que a espe- sua formação, um sistema político se todas as pessoas são valiosas em cificidade que o distingue de- ou concreto, valores comuns, etc. Por si mesmas, segue-se que são sujei- tros seres cósmicos (consciência, esta razão, a ética e a ontologia, na tos, isto é, agentes que podem e vontade, liberdade...) o torna mais minha forma de ver, são chamadas devem incidir na sociedade na qual responsável pelo cuidado e não a conviver em uma dialética aberta vivem; terceiro, no horizonte do pela destruição ou extinção desses ou, nas palavras do filósofo mexi- Ubuntu, os sujeitos são como tais outros que o constituem. E tudo cano Mauricio Beuchot,23 em uma pela relação intrínseca e impres- isso encontra-se mutatis mutandis dialética analógica. Esta ajudaria, cindível que têm com os outros nas filosofias ou nas cosmovisões por exemplo, a pensar uma justiça lato sensu, daí a intersubjetivida- dos povos originários das Américas. prudencial que não leve em conta de inerente e constitutiva das pes- Por esta razão, a contribuição do apenas os agravos ou danos come- 19 soas. Parafraseando Lenkersdorf, Ubuntu ou da filosofia africana à- fi tidos, mas o contexto e as circuns- esta intersubjetividade é “nosó- losofia latino-americana seria, em tâncias em que foram cometidos. trica”, pois evoca aquele “nós” poucas palavras, recordar a esta sempre aberto, constitutivo do última que as racionalidades subal- Outro como ponto de eu, mas sem aniquilá-lo. Nisso se ternas, oprimidas, marginalizadas vista ético vê precisamente a tensão insolúvel ou desprezadas pela racionalidade que se vive sempre entre o “eu” e ocidental imperante têm recursos Dito isso, evocar o outro como o “nós”. Esta tensão dialética deve inesgotáveis para pensar de manei- ponto de partida ético é, no ho- ser, no meu modo de ver, o mo- ra diferente a realidade da região e rizonte do Ubuntu, fundamental. tor da transformação de qualquer transformá-la. sociedade. ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista IHU On-Line – Por que devemos concedida por Ernildo Stein à edição 328 da 89 IHU On-Line – Qual é a contri- revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispo- pensar no outro como ponto de nível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O buição da perspectiva do Ubuntu partida ético? biologismo radical de Nietzsche não pode ser à filosofia latino-americana? minimizado, na qual discute ideias de sua Jean Bosco Kakozi Kashindi – conferência A crítica de Heidegger ao biolo- Jean Bosco Kakozi Kashindi – A A “revolução levinasiana”, se se gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, filosofia africana tem muito em -co pode dizer assim, consistiu em parte integrante do ciclo de estudos Filo- sofias da diferença – pré-evento do XI mum com sua irmã filosofia latino- 21 superar Heidegger, antepondo a Simpósio Internacional IHU: O (des) -americana. Na minha opinião, a governo biopolítico da vida humana. especificidade da contribuição do dade (espaço e tempo) e pelas categorias do (Nota da IHU On-Line) Ubuntu à última está em recuperar entendimento. A IHU On-Line número 93, 22 Emmanuel Lévinas (1906-1995): fi- de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa lósofo e comentador talmúdico lituano, de e/ou restaurar o ser humano todo à vida e à obra do pensador com o título Kant: ascendência judaica e naturalizado francês. dentro da sociedade, entendida razão, liberdade e ética, disponível para do- Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, esta como uma “comunidade cós- wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. mica de vida”. Ou seja – em ter- sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU “A ética precede a ontologia” é uma frase que em formação número 2, intitulado Em- caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre 20 mos kantianos, mas ampliando o manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições ética, que pode ser acessado em http://bit. 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevis- 19 Ver LENKERSDORF, Carlos. Filosofar en ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da ta com Rafael Haddock-Lobo, publicada em clave tojolabal. México: Porrúa, 2002. (Nota revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti- 30-08-2007 no sítio do IHU, intitulada Lévi- do Entrevistado) tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- nas: justiça à sua filosofia e a relação com 20 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ Heidegger, Husserl e Derrida, disponível em prussiano, considerado como o último gran- ihuon417. (Nota da IHU On-Line) http://bit.ly/1bZ77kk, e a edição número 277 de filósofo dos princípios da era moderna, 21 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada representante do Iluminismo. Kant teve um alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo Lévinas e a majestade do Outro, disponível grande impacto no romantismo alemão e nas (1927). A problemática heideggeriana é am- em http://bit.ly/1gsnUOI. (Nota da IHU filosofias idealistas do século XIX, as quais se pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas On-Line) tornaram um ponto de partida para Hegel. sobre o humanismo (1947), Introdução à 23 Mauricio Hardie Beuchot Puente Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira (1950): é um filósofo mexicano reconhecido nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O como um dos principais pensadores contem- menon), isto é, entre o que nos aparece e o século de Heidegger, disponível em http:// porâneos da América Latina. Possui ampla que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti- obra sobre filosofia da linguagem, filosofia poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- tulada Ser e tempo. A desconstrução da me- analítica, o estruturalismo e Hermenêutica. mento científico, como até então pretendera tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, Ele é fundador da proposta chamada her- a metafísica clássica. A ciência se restringi- ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, menêutica analógica, hoje reconhecida como ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria Martin Heidegger. A desconstrução da me- uma proposta original e inovadora. (Nota da constituída pelas formas a priori da sensibili- tafísica, que pode ser acessado em http://bit. IHU On-Line)

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Pois a realidade social que se vive Ética Passar por alto esta realidade não depende muito das relações te- é senão fazer a “política do aves- cidas com a alteridade; em ter- Voltando à pergunta, partir do truz”, ou seja, fingir não ver as mos lenkersdorfianos, depende da outro como ponto de partida éti- ameaças. O que não quer dizer que “cosmovivência”.24 Explico-me: to- co – vale a redundância – é então se defende o desaparecimento e a memos o exemplo da marginaliza- considerar que vivemos em um exclusão da racionalidade ociden- ção social no México. A maioria dos mundo, em uma sociedade, que é, tal; propõe-se antes uma inclusão pobres no México são pessoas indí- parafraseando Tempels, como uma verdadeira e consequente de ou- genas e afro-mexicanas; em todo rede, onde não se pode mover um tras racionalidades operantes na o caso, são pessoas de cor escura fio sem que os outros se movam. região, que durante séculos foram ou menos branca.25 Esta situação é Com outras palavras, já não há a marginalizadas. É preciso apostar assim, em grande medida pelo con- necessidade de demonstrar que em um diálogo frutífero com elas texto histórico-social (conquista dependemos não apenas dos ou- em benefício do bem de todas as espanhola, escravização dos afri- tros seres humanos, mas também sociedades latino-americanas e canos, mestiçagem, etc.) no qual o de outras entidades cósmicas (ar, caribenhas. México foi “inventado”. água, montanhas, árvores, mine- Nesse contexto, o outro (indíge- rais, animais, etc.) que nos possi- IHU On-Line – Em um contexto nas e africanos) foi considerado pe- bilitam viver. Negligenciar o Ou- globalizado, cujo financeirismo los brancos (espanhóis) como infe- tro é, na perspectiva do Ubuntu, abarca praticamente a totalida- rior e inclusive como não humano. desumanizar-se. Urge, pois, sair ao de das relações sociais, como é As relações interpessoais racializa- encontro desse Outro, reconhecê- possível promover uma ruptura das que nasceram desse contexto -lo e construir com ele uma solida- epistemológica em nome de uma seguem afetando atualmente mi- riedade afetiva, calorosa, como a perspectiva mais democrática? lhões de indígenas e afrodescen- própria etimologia da ética indica. Jean Bosco Kakozi Kashindi – dentes. Relacionado a isso, a ra- Nossos sonhos mais diurnos são que cionalidade ocidental que levou à IHU On-Line – Por que pensar a os detentores do poder na região institucionalização destas relações realidade do Sul Global a partir e/ou a elite das nossas sociedades racializadas desprezou, marginali- de uma perspectiva eurocêntrica ouvissem o clamor de seus povos e zou e, em certa medida, destruiu mostrou-se incapaz de dar conta se dignassem a descer ao “vale de 90 as racionalidades indígenas e afri- dos desafios colocados às comuni- lágrimas” para sentir também na canas ou “afro”. Assim se arreme- dades do “Novo Mundo”? própria carne as realidades huma- teu sobre os povos originários e os Jean Bosco Kakozi Kashindi – nas e socialmente intoleráveis... escravizados africanos, explorando Creio que a resposta a esta pergun- Agora me vêm à mente os rostos impiedosamente os recursos na- ta pode ser encontrada esboçada dos mendigos, das “meninas e me- turais deste país. Exemplos como em linhas anteriores. Aqui bastaria ninos de rua”, as pessoas sem lar... este são abundantes na região, mas recordar que pensar a realidade do que pululam nas ruas das grandes estão fora do alcance desta entre- Sul Global a partir de uma perspec- cidades latino-americanas; como vista. Devemos destacar que a ra- tiva somente eurocêntrica, isto é, não recordar que há milhões de cionalidade que sustentou tanto a a partir da racionalidade ocidental, pessoas que trabalham duramen- conquista como a escravização só já mostrou seus limites. E isto pelo te, inclusive fazendo horas extras, podia ser “anti-humana”, “anticós- simples fato de que a América La- para ganhar uma miséria, ao pas- mica”; eu a chamaria realmente de tina não é a Europa nem os Estados so que para outras pessoas basta “altercida”26; nela imperava justa- Unidos, por mais que queiram que que assinem algum documento ou mente o “eu sou porque tu não és”. assim seja! Embora os europeus e estejam presentes sem tocar em as culturas e civilizações europeias 24 A “cosmovivência” é o modo particular praticamente nada, para ganhar maia tojolabal de entender, explicar e viver tenham desembarcado, seguem milhões... Já em nossas sociedades a realidade. Os tojolabales, segundo Lenker- presente, na região latino-ameri- capitalistas e neoliberais fala-se sdorf, sentem-se membros do cosmos que cana e caribenha, outras culturas vive, o que implica uma relação muito respei- e vive-se com “pessoas descartá- tosa com as outras entidades cósmicas que, e civilizações não europeias. O que veis”. Estamos nos pontos extre- na sua cosmovisão, são “não objetos”, ou seja, isso significa? Significa que há, na mos da lógica da exploração capi- sujeitos, e fazem parte do “nós”. Ver: “Vivir região, outras racionalidades que talista, um dos monstros criados sin objetos”. In: El saber filosófico. Tópi- seguem operando contra, paralela cos No. 3, Coord. Martínez Contreras Jorge, pela racionalidade ocidental. Ponce de León Aura, Asociación Filosófica de ou transversalmente à ocidental. México. México: Siglo XXI, 2007. (Nota do Entrevistado) de Ubuntu y la superación del racismo en Vozes que se levantam 25 Isto me faz recordar da afirmação do soci- “nuestra América”. México: UNAM, 2014, ólogo e antropólogo Roger Bastide, segundo em análise), uso este termo para significar a Como romper com essa lógica? o qual nas Américas a riqueza tem cor. (Nota ideologia, os desejos, as atitudes, as ações... Não tenho uma resposta contun- do Entrevistado) que tendem sempre a matar, exterminar, des- 26 Nas minhas reflexões para a tese de dou- truir esse Outro que nos constitui. (Nota do dente, já que o capitalismo, assim toramento (La Dimensión ético-política Entrevistado) como a hidra, soube como renascer

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das suas cinzas, soube revestir-se nas os seres humanos, mas toda a foi dizimada e reduzida quase à de outros rostos, deixando o fundo natureza que está ameaçada pela metade. Isto foi um dos lados da igual. No entanto me atreveria a lógica da exploração capitalista. destruição das “Índias Ocidentais”. dizer que nem tudo está perdido; Fazendo-o assim é também libertar Como quiseram remediar essa situ- há esperanças. Já há vozes que se a vida, é escutar, respeitar e re- ação? A Junta de Valladolid31 (1550- levantam, tanto no Sul como no conhecer esse Outro que me cons- 1551) criou um marco político- Norte, para lutar por novos mo- titui; é, afinal de contas, libertar -jurídico que abriu a possibilidade delos econômicos, por um mundo também a democracia, para viver da escravização dos africanos nas mais justo e multipolar, por uma aquilo que Lenkersdorf chama de Américas. Novamente, isso foi um 29 nova forma de relacionar-nos com “cosmocracia”. grave problema não apenas jurídi- o meio ambiente ou a natureza, co, mas também ético, já que os etc. Já não se pode seguir com a IHU On-Line – Em que medida africanos que cruzaram o Atlântico imposição epistêmica da racionali- os problemas das nações latino- e chegaram às Américas não eram dade ocidental. Esta não deve ter -americanas são uma espécie de capturados e/ou vendidos no con- a exclusividade de dizer a todo o problema ético, em última medi- texto de uma guerra justa; tam- mundo o que devem conhecer, da, um problema do homem que como devem fazer, em que devem bém não eram animais ou “peças é incapaz de reconhecer o outro crer, o que devem esperar, etc. de ébanos”, sem alma, sem consci- como semelhante? ência, vontade e liberdade. Barbárie Jean Bosco Kakozi Kashindi – A Pois bem, apesar das estritas América Latina nasce, seguindo proibições para mesclar-se, as três 30 Vários intelectuais do Norte27 já Enrique Dussel, do encobrimento principais matrizes culturais e “ra- fizeram críticas, às vezes duras, do outro. Por isso, esta região já ciais” (a indígena, a africana e a contra a racionalidade ocidental, vem à existência com um problema europeia) se mesclaram. Não obs- demonstrando sua barbárie e seus ético. As consequências desse pro- tante as mesclas que se produzi- limites. No entanto, são poucos blema não se fizeram esperar: em ram e as teorias estrategicamente os que se voltaram para ver o que menos de um século de presença voluntaristas da mestiçagem (Mé- está acontecendo no Sul Global. ocidental, a população originária xico, Colômbia...), da democracia Nesta região “posicional” e não racial (Brasil), entre outras, que estritamente geográfica já estão 29 Lenkersdorf define-a como um “gover- 91 no” que se vive no mundo maia tojolabal, foram brandidas no desejo de rom- ocorrendo ensaios de outras epis- onde há um reconhecimento e/ou respeito per com a época colonial, a infe- temologias, como a proposta de mútuo entre todos os entes que compõem o Boaventura de Sousa Santos,28 o cosmos. Exclui-se a prepotência, a presen- riorização do outro diferente, “não giro decolonial, o pachamamismo, ça de líderes, caudilhos, chefes destacados, branco”, permanecia em pé. Como presidentes, superiores, partidos. Nesse “go- resultado, temos, hoje, na Améri- entre outras. Nessas epistemolo- verno”, a convivência política caracteriza-se gias o componente ético-político pelo consenso de todos os que representam ca Latina e no Caribe, sociedades está muito presente. Trata-se de o “nós”, conceito chave da cosmocracia. Ver profundamente desiguais, racistas LENKERSDORF, Carlos. “Vivir sin objetos”. e excludentes. lutar contra o colonialismo, modo In: El saber filosófico. Tópicos No. 3, Coord. de pensar e agir da colonização Martínez Contreras Jorge, Ponce de León Então, como já chamaram a Aura, Asociación Filosófica de México. Méxi- e, evidentemente, fruto da racio- 32 co: Siglo XXI, 2007, pp. 71, 73. Em relação à atenção Simón Bolívar, Arturo nalidade ocidental. Empreender organização sociopolítica de uma sociedade, as lutas contra esse colonialismo trata-se de algum modo de deslocar o olhar 31 Junta de Valladolid: é o nome habitual a partir de outras racionalidades da pessoa, como é o caso, teoricamente fa- do famoso debate realizado em 1550 e 1551 no é, na minha opinião, descoloni- lando, da democracia, e fixá-lo em todo o Colégio de San Gregorio, em Valladolid, na cosmos; é reconhecer e incluir as outras enti- Espanha. A questão de fundo era a controvér- zar as mentes, libertar não ape- dades cósmicas nas decisões que afetam toda sia nas conquistas com relação aos amerín- a comunidade, entendidas essas entidades, dios, e que teve duas formas antagônicas de 27 De maneira particular a chamada “Escola na cosmovisão tojolabal, como “não objetos”, conceber a expansão europeia: a primeira, re- de Frankfurt”. (Nota do Entrevistado) ou seja, também como sujeitos. (Nota do presentada por Bartolomé de las Casas, hoje 28 Boaventura de Sousa Santos (1940): Entrevistado) considerado um pioneiro na luta pelos direi- doutor em Sociologia do Direito pela Univer- 30 Enrique Dussel (1934): filósofo argenti- tos humanos, defendia o direito dos indíge- sidade de Yale, Estados Unidos, e professor no radicado (exilado) desde 1975 no México. nas de não serem dizimados e aculturados; e catedrático da Faculdade de Economia da É um dos maiores expoentes da Filosofia da a segunda proposta por Juan Ginés de Sepúl- Universidade de Coimbra, Portugal. É um Libertação e do pensamento latino-america- veda, que sustenta a lei e a conveniência de dos principais intelectuais da área de ciên- no em geral. Autor de uma grande quantida- domínio espanhol sobre os índios, que eram cias sociais, com mérito internacionalmente de de obras, seu pensamento discorre sobre vistos como naturalmente inferiores. Embora reconhecido, tendo ganho especial populari- temas como: filosofia, política, ética e teo- a história tenha demonstrado a racionalidade dade no Brasil, principalmente depois de ter logia. Tem se colocado como crítico da pós- vencedora, na ocasião não houve resolução participado nas três edições do Fórum Social -modernidade chamando por um novo mo- final. (Nota daIHU On-Line) Mundial, em Porto Alegre. Confira a entre- mento denominado transmodernidade. Tem 32 Simón José Antonio de la Santísi- vista O Fórum Social Mundial desafiado por mantido diálogos com filósofos como Apel, ma Trinidad Bolívar Palacios y Blanco novas perspectivas, concedida por Boaventu- Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard (1783-1830): general e líder revolucionário ra ao sítio do IHU em 30-01-2010, disponível Rorty, Lévinas. É um crítico do pensamento responsável pela independência em relação à em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota da eurocêntrico contemporâneo. (Nota da IHU Espanha de vários territórios da América do IHU On-Line) On-Line) Sul. (Nota da IHU On-Line)

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Andrés Roig,33 Leopoldo Zea,34 en- Sousa Santos, a ética ecológica de os liberais e socialistas, como para tre outros, o problema da América Leonardo Boff,36 a filosofia tojola- os conservadores, na região. Mas, Latina é o problema do homem no bal de Carlos Lenkersdorf, a ética hoje sabemos que a maior parte sentido genérico; é, afinal de con- de libertação de Enrique Dussel, da educação no subcontinente está tas, o problema da alteridade. E as contribuições teórico-metodo- colonizada. Pois o colonialismo, isto encontra um eco favorável no lógicas de estudos de gênero e da como modo de pensar a realidade, Ubuntu. Segue-se considerando o mulher (cada país tendo suas es- permeou todos os âmbitos da socie- outro como inferior, como subu- pecificidades), etc. Relacionado a dade latino-americana, desde a fa- isso, é preciso mencionar também mano, como não cidadão ou cida- mília, as escolas, as universidades, dão de segunda categoria... Ainda a importância das redes de inte- os centros culturais, até as igrejas. estamos longe de sair do túnel da lectuais e/ou lutadores sociais que Assim, o colonialismo converteu-se multidão de problemas que seguem perseguem um objetivo essencial- praticamente em uma das culturas acometendo muitos países da re- mente comum. Neste sentido, são gião e, por conseguinte, freando dignos de apreço os encontros do do subcontinente. Diante deste pa- o desenvolvimento harmonioso do Fórum Social Mundial. norama, como é possível descolo- subcontinente americano. nizar a educação? Quem financia a Estamos vivendo, pois, uma épo- educação? Quem deve descolonizar ca de muitas propostas teóricas, a quem? Isso me faz pensar na Tese IHU On-Line – Ao olhar para a cujo ponto em comum é dizer um III de Marx37 sobre Feuerbach,38 se- realidade do Sul Global no século basta à lógica da organização so- gundo a qual são os homens que XXI, que avanços e limites pode- cial, política, econômica, religiosa mudam as circunstâncias e que o mos perceber na proposição de e cultural a partir da racionalidade educador também precisa ser edu- racionalidades alternativas aos ocidental, isto é, desde uma ra- cado. Portanto, minha dúvida é se nossos desafios éticos? cionalidade capitalista do homem branco, cristão, machista... No en- todos aqueles que propõem racio- Jean Bosco Kakozi Kashindi – nalidades alternativas estão sufi- Confesso não ter elementos sufi- tanto, ainda falta um longo cami- cientemente descolonizados. Daí cientes para fazer um juízo cabal nho a percorrer, e isso não apenas a importância capital, penso, de sobre avanços e limites das racio- pela inércia das pessoas que estão fazer uma autocrítica permanen- nalidades alternativas. No entan- no conforto, mas, sobretudo, pela 92 to, gostaria de assinalar aqui tão dificuldade de mudar as estruturas te, para seguir firme nos caminhos somente alguns avanços que con- que, durante séculos, se encarre- descolonizadores. sidero pertinentes e alguns pontos garam de produzir o sistema desu- mano no qual vivemos. 37 Karl Marx (Karl Heinrich■ Marx, 1818- que poderiam ser limites. 1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos Desafios pensadores que exerceram maior influência Avanços sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Leia a edição Na região houve muitos avanços Aqui me vêm à mente algumas número 41 dos Cadernos IHU ideias, de nas propostas teórico-éticas que perguntas que expressam real- autoria de Leda Maria Paulani, tem como mente os limites das racionalida- título A (anti)filosofia de Karl Marx, dis- estão impactando os movimentos ponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sociais indígenas, afros e campo- des alternativas. Vejamos um caso sobre o autor, confira a edição número 278 neses. Entre algumas propostas ilustrativo: a educação (em seu da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitula- da A financeirização do mundo e sua crise. que ajudaram nas mobilizações sentido mais amplo e não reduzido à escola) foi um dos campos de ba- Uma leitura a partir de Marx, disponível em sociais, poderíamos citar “o giro http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a decolonial”, a interculturalidade talha mais importantes tanto para entrevista Marx: os homens não são o que de Catherine Walsh,35 a “episte- pensam e desejam, mas o que fazem, conce- 36 Leonardo Boff (1938): teólogo brasilei- dida por Pedro de Alcântara Figueira à edição mologia do sul” de Boaventura de ro, autor de mais de 60 livros nas áreas de te- 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, dispo- ologia, espiritualidade, filosofia, antropologia nível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On- 33 Arturo Andrés Roig (1922-2012): foi e mística. Boff escreveu um depoimento sobre -Line preparou uma edição especial sobre um filósofo e historiador argentino. Nascido as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, desigualdade inspirada no livro de Thomas em Mendoza, entrou na Universidade Nacio- publicado na edição especial de Natal da IHU Piketty O Capital no Século XXI, que retoma nal de Cuyo, de onde saiu em 1949 depois de On-Line, número 209, de 18-12-2006, dis- o argumento central da obra de Marx O Capi- ganhar uma licenciatura em Ciências da Edu- ponível em http://bit.ly/iBjvZq, e concedeu tal, disponível em http://bit.ly/IHUOn449. cação. (Nota da IHU On-Line) uma entrevista sobre a Teologia da Liberta- (Nota da IHU On-Line) 34 Leopoldo Zea Aguilar (1912-2004): fi- ção na IHU On-Line número 214, de 02-04- 38 Ludwig Feuerbach (1804-1872): fi- lósofo mexicano defensor do latino-america- 2007, disponível em http://bit.ly/kaibZx. Na lósofo alemão, reconhecido pela influência nismo integral na história. Ficou reconhecido edição 238, de 01-10-2007, intitulada Fran- que seu pensamento exerce sobre Karl Marx. por sua tese de graduação O positivismo no cisco. O santo, concedeu a entrevista A ecolo- Abandona os estudos de Teologia para tor- México (1945), em que aplicou e estudou o gia exterior e a ecologia interior. Francisco, nar-se aluno de Hegel, durante dois anos, em positivismo no contexto de seu país na tran- uma síntese feliz, disponível em http://bit.ly/ Berlim. De acordo com sua filosofia, a religião sição dos séculos XIX e XX. (Nota da IHU km44R2. Sua entrevista mais recente à IHU é uma forma de alienação que projeta os con- On-Line) On-Line intitula-se Os intelectuais que têm ceitos do ideal humano em um ser supremo. 35 Catherine Walsh: professora na Uni- algum sentido ético precisam falar sobre a É autor de A essência do cristianismo (2ª versidade Andina Simon Bolívar, em Quito, Terra ameaçada e está disponível em http:// ed. São Paulo: Papirus, 1997). (Nota da IHU Equador. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/Qpj45L. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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TEOLOGIA PÚBLICA A Reforma e o convite aos reparos Para Marcio Gimenes de Paula, Lutero é símbolo de uma reforma que deu certo. Esse espírito reformador deve ser revisitado para que haja evolução luterana, católica, de outras religiões e da Filosofia

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

o último dia 31 de outubro, si e vice-versa, num primado de inter- foram celebrados 498 anos -religiosidade e multiplicidade filosófi- Nda Reforma Luterana. Muito ca. “Acho que o protestantismo pode mais do que uma perspectiva religiosa ensinar o catolicismo a se reformar e, e teológica, o pensamento de Lutero quem sabe, o protestantismo, depois ilumina uma forma de pensar na mo- de tantos séculos, volte a se reformar dernidade, em especial na Filosofia. novamente olhando o catolicismo”, Essas duas perspectivas passam pela destaca. Para o professor, vivemos um análise do filósofo e também teólo- momento especial para isso, em fun- go Marcio Gimenes de Paula. Na en- ção da figura do Papa Francisco. Ele trevista, concedida por e-mail à IHU vê o pontífice como provocador, que 93 On-Line, ele mergulha no pensamento põe as duas grandes vertentes cristãs da Reforma Protestante e seus refle- num momento muito particular de diá- xos nos séculos XIX e XX sob os dois logo. “Nosso colega de América do Sul aspectos. Entretanto, deixa claro que faz, depois de alguns anos de inverno a Reforma Luterana não foi algo que na cúpula da Igreja Católica, um belo rompeu abruptamente com um mo- discurso de recuperação dos valores delo. “Lutero representa, no fundo, evangélicos e dos valores do Concílio a reforma que deu ‘certo’”, pontua. do Vaticano II”, conclui. “Penso que foram inúmeras as refor- Marcio Gimenes de Paula possui gra- mas que deram ‘errado’ e antecede- duação em Filosofia pela Universida- ram a Lutero. Ele recebeu um legado de Estadual de Campinas – Unicamp e de séculos. Carrega consigo – com em Teologia pelo Seminário Teológico todos os méritos, é bom que se diga Presbiteriano Independente. É mestre – séculos de pessoas que sempre qui- e doutor em Filosofia pela Unicamp. seram reformar a sua Igreja. Essa é Atua como professor do departamento a grande atualidade da Reforma: sua de Filosofia da Universidade de Brasí- presença na história e seu dinamis- lia. Também é membro colaborador e mo”, completa. pesquisador do Centro de Filosofia da Assim, hoje, na pós-modernidade, Universidade de Lisboa (integrado em Marcio faz um convite para voltarmos projeto de investigação sobre Filoso- o olhar não somente para Lutero e os fia da Ação e Valores e em projeto de rompimentos propostos pela Reforma, tradução das obras de Kierkegaard), e membro da Sociedade Brasileira de mas também para sua processualidade. Estudos de Kierkegaard – Sobreski, da É quando as perspectivas teólogicas e Associação Brasileira de Filosofia da filosóficas são atualizadas, numa espé- Religião. cie de evolução do pensamento, como se olhassem para as outras através de Confira a entrevista.

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isso: Feuerbach7, crítico do cristia- nismo do século XIX, sempre cita Agostinho e suas interpretações. A mesma coisa é feita por Kierkega- ard8 que, mesmo não sendo alemão No fundo, a grande herança do (e sim dinamarquês) opera dentro desse mesmo horizonte conceitual cristianismo alemão será sempre e, por isso, sua filosofia não deixa esta crise de consciência, que é, na de espelhar certa tentativa de re- cuperar os valores agostinianos no verdade, de fundo agostiniano século XIX.

IHU On-Line – Pensando na Re- No entender dele, o cristianismo IHU On-Line – O caracteriza o pensamento pós-hegeliano, so- forma Protestante1 e consideran- alemão, inclusive aquele que ante- 4 bretudo aquele de Feuerbach, do ainda o século XIX, o que é o cede Lutero , é fortemente mar- Kierkegaard e Nietzsche9? cristianismo alemão e quais são cado por uma herança espiritual, subjetiva, espelha as angústias do suas raízes fundamentais? mador e humanista, disponível em http:// homem diante de Deus, a crise em bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU On-Line) Marcio Gimenes de Paula – O estar nesse mundo cumprindo sua 7 Ludwig Feuerbach (1804-1872): filósofo cristianismo é, na verdade, um missão e sempre questionando se alemão, reconhecido pela influência que seu pensamento exerce sobre Karl Marx. Aban- conjunto complexo que, talvez, está fazendo isso de modo adequa- dona os estudos de Teologia para tornar-se podemos dividir num período an- do ou não. Sempre há um problema aluno de Hegel, durante dois anos, em Ber- terior e num período posterior ao ético, um grande dilema moral. No lim. De acordo com sua filosofia, a religião é fundo, a grande herança do cristia- uma forma de alienação que projeta os con- evento da Reforma. Contudo, se ceitos do ideal humano em um ser supremo. nismo alemão será sempre esta cri- o nosso horizonte conceitual é o É autor de A essência do cristianismo (2ª. se de consciência, que é, na verda- ed. São Paulo: Papirus, 1997). (Nota da IHU século XIX, penso que uma aborda- de, de fundo agostiniano. Por isso, On-Line) 8 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo gem significativa é aquela apresen- não fortuitamente, se fizermos tada por Heine2 na sua obra Con- existencialista dinamarquês. Alguns de seus 94 uma pesquisa, veremos que Santo livros foram publicados sob pseudônimos: tribuição à História da Religião e Agostinho5 é talvez um autor muito Víctor Eremita, Johannes de Silentio, Cons- da Filosofia na Alemanha3. Ali, com citado tanto por Lutero como por tantín Constantius, Johannes Climacus, Vigi- lius Haufniensis, Nicolás Notabene, Hilarius 6 maestria, o autor apresenta, nota- Calvino . Ainda mais forte do que Bogbinder, Frater Taciturnus e Anticlimacus. damente para um público francês Filosoficamente, faz uma ponte entre a filoso- 4 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo fia de Hegel e o que viria a ser posteriormente que não conhece bem a religião e alemão, considerado o pai espiritual da Re- o existencialismo. Boa parte de sua obra dedi- a filosofia dos alemães, a peculiari- forma Protestante. Foi o autor da primeira ca-se à discussão de questões religiosas como dade do cristianismo (e da filosofia) tradução da Bíblia para o alemão. Além da a naturaza da fé, a instituição da igreja cristã, qualidade da tradução, foi amplamente divul- a ética cristã e a teologia. Autor de O Concei- produzida naquele país. gada em decorrência da sua difusão por meio to de Ironia (1841), Temor e Tremor (1843) da imprensa, desenvolvida por Gutemberg e O Desespero Humano (1849). A respeito 1 Reforma Protestante: movimento refor- em 1453. Sobre Lutero, confira a edição 280 de Kierkegaard, confira a entrevista Paulo e mista cristão liderado por Martinho Lutero, da IHU On-Line, de 03-11-2008, intitulada Kierkegaard, realizada com Álvaro Valls, da autor das 95 teses pregadas na porta da Igre- Reformador da Teologia, da igreja e criador Unisinos, na edição 175, de 10-04-2006, da ja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, da língua alemã. O material está disponível IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/ em 31 de outubro de 1517, propondo uma para download em http://bit.ly/ihuon280. ihuon175. A edição 314 da IHU On-Line, de reforma na doutrina do catolicismo roma- (Nota da IHU On-Line) 09-11-2009, tem como tema de capa A atua- no. Lutero foi apoiado por vários religiosos e 5 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, lidade de Soren Kierkeggard, disponível em governantes europeus. Em resposta, a Igreja 354-430): bispo, escritor, teólogo, filósofo foi http://bit.ly/ihuon314. Leia, também, uma Católica Romana implementou a Contra- uma das figuras mais importantes no desen- entrevista da edição 339 da IHU On-Line, -Reforma ou Reforma Católica, iniciada no volvimento do cristianismo no Ocidente. Ele de 16-08-2010, intitulada Kierkegaard e Do- Concílio de Trento. Em decorrência destes foi influenciado pelo neoplatonismo de Plo- gville: a desumanização do humano, conce- fatos, ocorreu a divisão da chamada Igreja do tino e criou os conceitos de pecado original e dida pelo filósofo Fransmar Barreira Costa Ocidente entre os católicos romanos e os pro- guerra justa. (Nota da IHU On-Line) Lima, disponível em http://bit.ly/ihuon339. testantes. (Nota da IHU On-Line) 6 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão (Nota da IHU On-Line) 2 Heinrich Heine [Christian Johann francês, teve uma influência muito grande 9 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- Heinrich Heine] (1797-1856): poeta ro- durante a Reforma Protestante e que con- sofo alemão, conhecido por seus conceitos mântico alemão, conhecido como “o último tinua até hoje. Portanto, a forma de Protes- além-do-homem, transvaloração dos va- dos românticos.” Boa parte de sua poesia líri- tantismo que ele ensinou e viveu é conhecida lores, niilismo, vontade de poder e eterno ca, especialmente a sua obra de juventude, foi por alguns pelo nome Calvinismo, embora o retorno. Entre suas obras figuram como as musicada por vários compositores notáveis próprio Calvino tivesse repudiado contun- mais importantes Assim falou Zaratustra como Robert Schumann, Franz Schubert, dentemente este apelido. Esta variante do (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo Wolf, Ri- Protestantismo viria a ser bem-sucedida em 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) chard Wagner e, já no século XX, por Hans países como a Suíça (país de origem), Países e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Werner Henze e Lord Berners. (Nota da IHU Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando On-Line) Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, foi acometido por um colapso nervoso que 3 São Paulo: Iluminuras, 1991. (Nota da IHU também, a edição 316 da IHU On-Line in- nunca o abandonou até o dia de sua morte. On-Line) titulada Calvino – 1509-1564. Teólogo, refor- A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da

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Marcio Gimenes de Pau- transitam pela literatura; c) são mo que ajudaria, no seu entender, la – Saiu no Brasil, no final de autores que chegam até a política, os próprios cristãos a realizarem 2014, uma excelente tradução isto é, tomam a política como um uma reforma no seu cristianismo de uma obra clássica para en- “céu” possível de ser alcançado deturpado. tendermos o problema dos pós- pela ação dos homens. Penso que vale muito a pena re- hegelianos e, em especial, desses Evidentemente, nem todos os fletir sobre isso, isto é, ver Feuer- três grandes autores. Refiro-me autores tratados por Löwith com- bach não apenas como “inimigo” aqui a De Hegel a Nietzsche10, de pletariam os três passos do mesmo do cristianismo, mas pensá-lo no Karl Löwith11. Ali, com imensa pro- modo ou, talvez, alguns, inclusive, horizonte de uma crítica do cristia- priedade, esse filósofo, que mere- deixaram o caminho um pouco in- nismo. Tal crítica será fundamental ce ser mais bem estudado no Bra- completo. Enfim, penso que vale para inúmeras correntes teológicas sil, avalia que o que caracteriza o a pena pensar nos pós-hegelianos do século XX, incluindo até mesmo pensamento pós-hegeliano são três a Teologia da Libertação13 feita na com o desafio proposto por Löwith. características: a) são autores que América Latina. partem do tema religioso ou do universo teológico, muitos deles, Kierkegaard protestantes; b) são autores que Já o pensamento de Kierkegaard, edição número 127 da IHU On-Line, de esse autor por vezes tão enigmá- 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filóso- Nietzsche fler- fo do martelo e do crepúsculo, disponível tico que flerta com a literatura, para download em http://bit.ly/Hl7xwP. A ta com temas com a psicologia, “meio filósofo” e edição 15 dos Cadernos IHU em forma- “meio teólogo”, certamente mere- ção é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit. teológicos ce um estudo aprofundado. Penso ly/HdcqOB. Confira, também, a entrevista que uma pista significativa talvez concedida por Ernildo Stein à edição 328 da possa ser encontrada num lindo revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dis- IHU On-Line – Quais são as críti- texto escrito por Hannah Arendt14 ponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada cas fundamentais que esses filó- O biologismo radical de Nietzsche não pode sobre Kierkegaard. Ali a filósofa diz ser minimizado, na qual discute ideias de sua sofos endereçam ao cristianismo? conferência A crítica de Heidegger ao biolo- 13 Teologia da Libertação: escola teoló- Marcio Gimenes de Paula – O gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, gica desenvolvida depois do Concílio Vatica- 95 parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias pensamento de Feuerbach é mar- no II. Surge na América Latina, a partir da da diferença – Pré-evento do XI Simpósio cado por uma forte ambiguidade. opção pelos pobres, e se espalha por todo o Internacional IHU: O (des)governo Ao mesmo tempo em que é uma mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez biopolítico da vida humana. Na edição é um dos primeiros que propõe esta teologia. 330 da revista IHU On-Line, de 24-05-2010, recusa do cristianismo e uma de- A teologia da libertação tem um impacto de- leia a entrevista Nietzsche, o pensamento núncia da sua fraqueza, ele é, de cisivo em muitos países do mundo. Sobre o trágico e a afirmação da totalidade da igual modo, uma busca pelos seus tema confira a edição 214 da IHU On-Line, existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo de 02-04-2007, intitulada Teologia da liber- Giacoia e disponível para download em http:// valores mais autênticos. Isto é, ele tação, disponível para download em http:// bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, é uma denúncia de que o cristianis- bit.ly/bsMG96.Leia, também, a edição 404 leia a entrevista O amor fati como respos- mo do século XIX, no fundo, detur- da revista IHU On-Line, de 05-10-2012, in- ta à tirania do sentido, com Danilo Bilate, titulada Congresso Continental de Teologia. disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da pou muito dos valores originários Concílio Vaticano II e Teologia da Liberta- IHU On-Line) da fé cristã. ção em debate, disponível em http://bit.ly/ 10 São Paulo: Unesp, 2014. (Nota da IHU SSYVTO. (Nota da IHU On-Line) On-Line) Por isso, não fortuitamente, 14 Hannah Arendt (1906-1975): filóso- 11 Karl Löwith (1897-1973): foi um filósofo muitos teólogos, incluindo aqui fa e socióloga alemã, de origem judaica. Foi alemão, aluno de Martin Heidegger. Embo- influenciada por Husserl, Heidegger e Karl ra professasse a religião protestante, Löwith Kierkegaard, serão leitores aten- Jaspers. Em consequência das perseguições nasceu numa família de religião judaica. Es- tos de Feuerbach. Karl Barth12, o nazistas, em 1941, partiu para os Estados tudou filosofia primeiramente com Husserl célebre teólogo protestante, já no Unidos, onde escreveu grande parte das suas em Freiburg e, entre 1919 e 1928 com Hei- obras. Lecionou nas principais universidades degger. Em 1934 foi forçado a deixar a Ale- século XX escreverá um belo tra- desse país. Sua filosofia assenta numa -críti manha devido às políticas antissemitas do balho sobre Feuerbach e percebe ca à sociedade de massas e à sua tendência governo nazi. Viveu primeiro na Itália e em no seu pensamento um importan- para atomizar os indivíduos. Preconiza um 1936 embarcou em Nápoles para o Japão a regresso a uma concepção política separada convite do seu amigo Kuki Shuzo. Deu au- te aspecto de crítica ao cristianis- da esfera econômica, tendo como modelo de las na Universidade Imperial de Tohoku, no inspiração a antiga cidade grega. A edição norte do Japão mas, em 1941, a proximidade 12 Karl Barth (1886-1968): teólogo cristão mais recente da IHU On-Line que abordou deste país com as políticas do Eixo levou- protestante, pastor da Igreja Reformada e um o trabalho da filósofa foi a 438,A Banalidade -o, pouco antes do ataque a Pearl Harbor, a dos líderes da teologia dialética e dos pensa- do Mal, de 24-03-2014, disponível em http:// mudar-se para os Estados Unidos. Entre 1941 mentos neo-ortodoxos. Lecionou teologia em bit.ly/ihuon438. Sobre Arendt, confira ainda e 1952 deu aulas no Hartford Theological Se- Bonn, Alemanha, mas, em 1935, recusou-se a as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- minary e na New School for Social Research. apoiar Adolf Hitler e teve que deixar o país, 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Nesse ano regressou à Alemanha para dar au- retornando à Basileia. Tornou-se um dos lí- Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar- las de filosofia em Heidelberg, onde faleceu. deres da Igreja Confessante, grupo oposto ao caram o século XX, disponível em http://bit. Sua obra mais famosa é Von Hegel zu Nietzs- Movimento Cristão Alemão. Foi o principal ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006, che (Stuttgart, Kohlhammer, 1958). (Nota da redator da Declaração Teológica de Barmen. intitulada O mundo moderno é o mundo sem IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) política. Hannah Arendt 1906-1975, disponí-

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que “ser radicalmente religioso em IHU On-Line – Qual é a pecu- vê em Lutero um desafio, mas, ao tal mundo significa estar sozinho liaridade da crítica destinada ao mesmo tempo, vê na Igreja Lute- não só no sentido em que a pessoa Protestantismo, em específico? rana, ou ao menos numa fração se posta diante de Deus, mas tam- dela, uma traição aos ideais mais Marcio Gimenes de Paula – Curio- bém no sentido de que ninguém nobres do cristianismo. Penso que, samente Feuerbach, mesmo com mais se posta diante de Deus”15. No além da imensa obra kierkegaar- todas as críticas ao protestantismo entender dela, Kierkegaard vive o diana que deve ser examinada para que faz, enxerga a si mesmo como desafio de ser religioso num mundo perceber a afinidade e a crítica a uma espécie de Lutero segundo, isto totalmente secularizado oriundo Lutero, há um exemplo cinemato- é, alguém que estava realizando na do Iluminismo. gráfico para quem quer entender a filosofia uma Reforma tal como Lu- crítica kierkegaardiana: o filmeLuz Assim, penso que o grande de- tero havia feito na teologia. Para o de Inverno18, do sueco Bergman19. safio ao qual ele responde é que o pensador alemão, o protestantismo Ali, na trama de um pastor desilu- cristianismo não é mais uma ques- mostraria, com mais clareza que dido com o seu tempo e cumprin- tão de “geografia”, onde todos o catolicismo, um mundo onde as do apenas os rituais da burocracia, nascemos (e morremos) cristãos coisas já podem ser explicadas ao nota-se muito da crítica kierkega- por pertencermos a um país que modo de uma teologia racional e, ardiana. Vale a pena conferir. é oficialmente cristão, mas antes por isso, o próprio Deus poderia se aponta para o verdadeiro desafio tornar dispensável. Notemos que tal Por fim, alguns estudiosos de de ser cristão num mundo onde não pista, guardadas as devidas distân- Nietzsche nos dias de hoje chegam parece mais fazer sentido ser cris- cias, não deixa de dialogar com as a dizer que muito da crítica de tão. É, na verdade, uma posição de teses de Max Weber17. Nietzsche endereçada a São Paulo existência. Talvez, nesse sentido, é, no fundo, uma crítica a Lutero. se possa dizer que Kierkegaard é Assim, o pensador teria atribuído “existencialista”. Penso que isso ao reformador tanto peso que, em vale mais do que um rótulo de um virtude disso, teria tecido muitas manual qualquer de filosofia. de suas críticas à teologia pauli- Nietzsche abra- na. Talvez a crítica mais vigorosa Nietzsche que podemos notar é aquela em ça a Renascen- que Nietzsche parece ir apontan- 96 Por fim, a crítica nietzschiana, ça, ficando mais do aos poucos um caráter doentio talvez a mais comentada do sécu- no cristianismo paulino e luterano. lo XX, mas não sei se a mais bem próximo de um Assim, ao mesmo tempo que afir- conhecida, é outra crítica que não ma tal crítica, tenta exaltar, por pode ser entendida, segundo pen- ideal renascen- exemplo, um cristianismo como so, sem uma análise consistente tista, que, por aquele oriundo da Renascença ca- da teologia. Afinal, Nietzsche fler- tólica, onde há mais vida, mais fes- ta com temas teológicos. Com isso sua vez, pare- ta, mais apego aos valores daquilo não quero dizer que ele era cristão cia mais grego que era humano, demasiadamente ou coisa parecida, mas gostaria de humano. chamar atenção para o fato de que toda sua crítica não é compreen- Kierkegaard, vivendo num am- IHU On-Line – Em que sentido se dida sem o cristianismo. Os nomes biente protestante dinamarquês, pode falar na filosofia alemã como dos livros, o uso de referências bí- herdeira da reforma de Lutero? blicas nas passagens, a afirmação 17 Max Weber (1864-1920): sociólogo ale- de uma moral diferente daquela mão, considerado um dos fundadores da defendida pelo cristianismo. Para Sociologia. Ética protestante e o espírito do 18 Luz de Inverno (1963). (Nota da IHU tudo isso ser feito, é preciso de capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das On-Line) muito cristianismo. Um bom exer- Letras, 2004) é uma das suas mais conheci- 19 Ernst Ingmar Bergman (1918-2007): das e importantes obras. Cem anos depois, dramaturgo e cineasta sueco. Estudou na cício para perceber isso é, talvez, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edi- Universidade de Estocolmo, onde se inte- ler obras como o Anticristo16 a par- ção, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ressou por teatro e, mais tarde, por cinema. tir de tais indagações. ética protestante e o espírito do capitalismo Iniciou a carreira em 1941, escrevendo a peça 100 anos depois, disponível para download teatral “Morte de Kasper”. Em 1944, desen- em http://bit.ly/ihuon101. De Max Weber o volveu o primeiro argumento para o filme IHU publicou Cadernos IHU em forma- “Hets”. Realizou o primeiro filme em 1945, vel em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU ção nº 3, 2005, chamado Max Weber – o “Kris”. Seus trabalhos lidam geralmente com On-Line) espírito do capitalismo disponível em http:// questões existenciais, como a mortalidade, a 15 ARENDT, H. Compreender – forma- bit.ly/ihuem03. Em 10-11-2005, o professor solidão e a fé. Recentemente foi exibido nova- ção, exílio e totalitarismo. São Paulo: Com- Antônio Flávio Pierucci ministrou a confe- mente, no Brasil, o clássico Sétimo Selo. O si- panhia das Letras, 2008, p. 76. (Nota do rência de encerramento do I Ciclo de Estu- tio Instituto Humanitas Unisinos – IHU noti- entrevistado) dos Repensando os Clássicos da Economia, ciou a exibição em artigo sob o título “Ingmar 16 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Últimos promovido pelo IHU, intitulada Relações e Bergman chega aos cinemas em cópia restau- opúsculos. Madrid: La España Moderna. implicações da ética protestante para o ca- rada”, em 31-07-2015, disponível em http:// (Nota da IHU On-Line) pitalismo. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/1RYR4V8. (Nota da IHU On-Line)

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Marcio Gimenes de Paula – Niet- Fichte23, Schelling24, por exemplo, ligiosa. Mais do que isso: ela soava zsche diz, reafirmando uma posi- não deixamos de ver a presença de como protestante. ção de Heine20, que Lutero teria Lutero e da sua teologia. Há quem sido o primeiro pensador dos ale- diga, inclusive, que a ética e a mo- IHU On-Line – Nesse sentido, mães. Tal tese não é desprovida de ral de Kant, por exemplo, não po- que ressonâncias do protestantis- sentido. O modo alemão de pensar dem ser compreendidas sem Lute- mo se apresentam na ética e na a modernidade filosófica passa, ro. Lembremos que uma das razões política do século XIX? sem sombra de dúvida, por Lute- da rejeição de Schopenhauer25 à ro. A ênfase na subjetividade, to- moral kantiana residia exatamente Marcio Gimenes de Paula – A éti- mada por sua vez de uma ênfase no fato de tomá-la como muito re- ca e a política do século XIX, es- luterana em Agostinho, será funda- pecialmente em contexto alemão, mental para muitos dos temas da são impensáveis sem os ideais da filosofia alemã. Assim, se pensamos Reforma Protestante. Há quem em autores como Kant21, Hegel22, diga que o professor de ética que conhecemos atualmente é um sa-

20 Heinrich Heine [Christian Johann cerdote sem igreja e sem fé, mas Heinrich Heine] (1797-1856): poeta ro- Lutero repre- com muitos preceitos morais. Isso mântico alemão, conhecido como “o último parece apontar uma coisa muito dos românticos.” Boa parte de sua poesia líri- senta, no fun- importante: a ética e a política ca, especialmente a sua obra de juventude, foi musicada por vários compositores notáveis do, a reforma dos séculos XIX e XX são de matriz como Robert Schumann, Franz Schubert, teológica. Acaba ultrapassando o Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo Wolf, Ri- que deu ‘certo’ teológico e tenta construir, com chard Wagner e, já no século XX, por Hans as próprias mãos, um céu possível Werner Henze e Lord Berners. (Nota da IHU On-Line) e realizável pelos homens. Nesse 21 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo sentido, a política seria a transfi- prussiano, considerado como o último gran- edição 430, disponível em http://bit.ly/ guração de um sonho teológico. Tal de filósofo dos princípios da era moderna, ihuon430. (Nota da IHU On-Line) representante do Iluminismo. Kant teve um 23 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): tese é explorada com maestria por grande impacto no romantismo alemão e nas filósofo alemão. Exerceu forte influência so- Karl Löwith na sua bela obra O Sen- filosofias idealistas do século XIX, as quais se bre os representantes do nacionalismo ale- tido da História26. Ali percebemos, tornaram um ponto de partida para Hegel. mão, assim como sobre as teorias filosóficas na história secularizada, todos os Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- decidiu devotar sua vida à filosofia depois de temas da tradição teológica. 97 menon), isto é, entre o que nos aparece e o ler as três Críticas de Immanuel Kant, publi- que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não cadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu IHU On-Line – Em outra entre- mento científico, como até então pretendera próprio editor que publicasse o manuscri- vista concedida à IHU On-Line27, a metafísica clássica. A ciência se restringi- to. O livro surgiu em 1792, sem o nome e o você afirma que além de um mon- ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria prefácio do autor, e foi saudado amplamente ge ressentido, como Nietzsche constituída pelas formas a priori da sensibili- como uma nova obra de Kant. Quando Kant dade (espaço e tempo) e pelas categorias do esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se fa- classificava Lutero em O Anticris- entendimento. A IHU On-Line número 93, moso do dia para a noite e foi convidado a to, o reformador era “um tipo de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa lecionar na Universidade de Jena. Fichte foi psicológico interessante”. Quais à vida e à obra do pensador com o título Kant: um conferencista popular, mas suas obras te- razão, liberdade e ética, disponível para do- óricas são difíceis. Acusado de ateísmo, per- são os impactos dessa caracteri- wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também deu o emprego e mudou-se para Berlim. Seus zação na divisão da história da sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU Discursos à nação alemã são sua obra mais cristandade ocidental e, também, em formação número 2, intitulado Em- conhecida. (Nota da IHU On-Line) na formação da filosofia alemã? manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e 24 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm ética, que pode ser acessado em http://bit. Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo Marcio Gimenes de Paula – Niet- ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da alemão. Suas primeiras obras são geralmente revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu- vistas como um elo importante entre Kant e zsche gostava de trabalhar com a lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas ideia de tipos psicológicos. Para tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ obras são representativas do idealismo e do ele, tais figuras espelhavam, como ihuon417. (Nota da IHU On-Line) romantismo alemães. Criticou a filosofia de poucas, uma época e seus ideais. 22 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- Hegel como “filosofia negativa”. Schelling drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão tentou desenvolver uma “filosofia positiva”, Nesse sentido, Lutero seria um tipo idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás que influenciou o existencialismo. Entrou psicológico, isto é, representava, de Aquino, tentou desenvolver um sistema para o seminário teológico de Tübingen aos com singular energia, um tipo par- filosófico no qual estivessem integradas todas 16 anos. (Nota da IHU On-Line) ticular de religião desenvolvida na as contribuições de seus principais predeces- 25 Arthur Schopenhauer (1788-1860): fi- sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. lósofo alemão. Sua obra principal é O mundo Alemanha, representava um tipo ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, como vontade e representação, embora o seu de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia livro Parerga e Paraliponema (1815) seja o do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He- mais conhecido. Friedrich Nietzsche foi gran- 26 Rio de Janeiro: Edições 70, 1991. (Nota da gel (1807-2007), em comemoração aos 200 demente influenciado por Schopenhauer, que IHU On-Line) anos de lançamento dessa obra. Veja ainda introduziu o budismo e a filosofia indiana na 27 A crítica de Kierkegaard ao cristianismo: a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober- metafísica alemã. Schopenhauer, entretan- uma experiência humanamente impossível?. to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler to, ficou conhecido por seu pessimismo. Ele Recista IHU On-Line, nº 418, de 13-05- Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261, entendia o budismo como uma confirmação 2013, disponível em http://bit.ly/1Obq43N. e Hegel. A tradução da história pela razão, dessa visão. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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de compromisso com Deus que, por Tal tese é muito longa e certa- por exemplo, João Huss30, que ao sua vez, se desenvolveria em boa mente mereceria um maior cui- tentar defender suas ideias refor- parte do Ocidente cristão dali em dado. Assim, de muito simplório, madoras num Concílio é levado à diante. Assim, o modo de fazer te- podemos dizer aqui que Nietzsche morte. Assim, Lutero é mais do ologia passa a ser, especialmente abraça a Renascença, ficando mais que apenas um homem. Ele rece- em contexto alemão, o modo tam- próximo de um ideal renascentis- beu um legado de séculos. Carrega bém de se fazer filosofia. Por isso, ta, que, por sua vez, parecia mais consigo – com todos os méritos, é caberia talvez lembrar uma outra grego. Assim, mais distante do bom que se diga – séculos de pes- célebre sentença de Nietzsche no pecado, parece atingir o coração soas que sempre quiseram refor- Anticristo. No seu entender, o san- da modernidade, visto que tudo o mar a sua Igreja. Essa é a grande gue dos filósofos alemães está in- que vem depois do cristianismo é atualidade da Reforma: sua pre- dissociavelmente unido ao sangue ainda baseado nesse ideal: demo- sença na história e seu dinamis- dos teólogos. Penso que essa é uma cracia, política etc. Não é um as- mo. Assim, mais do que olhar para pista que merece maior cuidado e sunto simples, mas é, sem dúvida, Lutero, vale olhar para seus ante- investigação. fascinante. cedentes e para o que se afirma depois dele. É o primeiro cisma do IHU On-Line – Como é possível IHU On-Line – Ao completar 500 Ocidente que consegue avançar. compreendermos o projeto de anos da Reforma Luterana, qual Isso não é pouca coisa. Heine dizia Nietzsche de atacar a moderni- é a atualidade do debate crítico que a responsabilidade de Lutero dade em seu cerne e, portanto, acerca do legado de Lutero? é imensa e que Deus deve saber atingir Lutero? em que ombro havia confiado tão Marcio Gimenes de Paula – Lu- grande missão. Isso é um gracejo. Márcio Gimenes de Paula – Essa tero representa, no fundo, a re- Que vale para sorrir e para pensar. me parece uma questão muito complexa. É certo que Nietzsche IHU On-Line – Quais são os si- ataca a modernidade. Contudo, ele nais de diálogo ecumênico que se mesmo não deixa de fazer parte do apresentam, passados cinco sécu- seu projeto, isto é, ele é um filho los da Reforma? da modernidade filosófica alemã, Nosso colega dessa modernidade típica que co- Marcio Gimenes de Paula – Eu, 98 meça na Reforma e chega até os de América do do ponto de vista pessoal, vejo pós-hegelianos do século XIX. O Sul faz, depois com muita alegria um Papa como que talvez seja importante pensar o atual. Nosso colega de América é qual cristianismo Nietzsche atin- de alguns anos do Sul faz, depois de alguns anos ge com sua crítica a Lutero. Para de inverno na cúpula da Igreja Ca- isso, penso que nos ajuda uma re- de inverno na tólica, um belo discurso de recu- flexão feita por Cassirer28 na sua cúpula da Igre- peração dos valores evangélicos obra Filosofia do Iluminismo29. Ali e dos valores do Concílio do Va- o pensador aponta uma diferen- ja Católica, um ticano II31. O que isso quer dizer? ça crucial entre a Renascença e a belo discurso de Reforma. Para Cassirer, a Reforma 30 John Huss (1369-1415): foi um pensador enfatiza, e tem como seu ponto de recuperação dos e reformador religioso. Ele iniciou um movi- partida, o conceito de pecado e, mento religioso baseado nas ideias de John portanto, molda toda a sua moral a valores evangé- Wycliffe. Os seus seguidores ficaram conhe- cidos como os Hussitas. A Igreja Católica não partir disso. Já a Renascença, ain- licos e dos valo- perdoou tais rebeliões e ele foi excomungado da que não abandone em momento em 1410. Condenado pelo Concílio de Cons- algum o conceito de pecado, pare- res do Concílio tança, foi queimado vivo e morreu cantando ce diminuir a sua força e, com al- um cântico [cântico de Davi, Jesus filho de do Vaticano II Davi tem misericórdia de mim]. Um precur- guma ênfase, parece produzir uma sor do movimento protestante, a sua exten- religião mais humanizada, ligada sa obra escrita concedeu-lhe um importante ao artístico, ao estético, ao mundo forma que deu “certo”. O que papel na história literária checa. Também é responsável pela introdução do uso de acen- presente. isso quer dizer? Penso que foram tos na língua checa por modo a fazer corres- inúmeras as reformas que deram ponder cada som a um símbolo único. Hoje 28 Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo “errado” e antecederam a Lutero. em dia a sua estátua pode ser encontrada na alemão de origem judaica que pertenceu a O que quer dizer reforma certa praça central de Praga, a Praça da Cidade Ve- Escola de Marburg.Foi um dos mais impor- lha, em checo Staroměstské náměstí. (Nota tantes representantes da tradição neokantia- e reforma errada? Por exemplo, da IHU On-Line) na de Marburgo. Desenvolveu uma filosofia antes de Lutero não podemos nos 31 Concílio Vaticano II: convocado no dia da Cultura como uma teoria dos símbolos, esquecer de personagens como, 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram baseada na Fenomenologia do Conhecimen- quatro sessões, uma em cada ano. Seu encer- to. (Nota da IHU On-Line) ramento deu-se a 08-12-1965, pelo Papa Pau- 29 Campinas: UNICAMP, 1992. (Nota da lo VI. A revisão proposta por este Concílio IHU On-Line) estava centrada na visão da Igreja como uma

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Isso aponta claramente, segundo IHU On-Line – Gostaria de vam ver, afirma três coisas: a) sou minha avaliação, para um para- acrescentar algum aspecto não cumpridor do meu dever, ou seja, digma ecumênico, amplo, aberto. questionado? apenas fazia aquilo que me orde- Acho que vivemos, num mundo navam os meus superiores; b) sou Marcio Gimenes de Paula – Que- corroído de fundamentalismos, cristão e luterano; c) sou, do ponto ria lembrar aqui um caso curioso do um tempo tão bonito quanto foi de vista moral, um kantiano. século XX que foi magistralmente o pontificado de João XXIII32. Acho exposto por Hannah Arendt. Refiro- que o protestantismo pode ensi- O que isso parece apontar? -me aqui ao caso da banalidade do nar o catolicismo a se reformar Aponta para uma ética produzida mal exposto na obra, que no fundo e, quem sabe, o protestantismo, por um dado tipo de protestantis- depois de tantos séculos, volte a é uma reportagem, Eichmann em mo, isto é, a ética do cumprimen- 33 se reformar novamente olhando o Jerusalém . Ali, Eichmann, um cri- to do seu dever e, nesse sentido, catolicismo, pelo menos esse do minoso nazista de Guerra, é captu- Kant e os Evangelhos podem es- Papa Francisco. A igreja é refor- rado e levado a julgamento. Ao se tar muito mais próximos do que mada exatamente por poder se apresentar no tribunal, o ex-oficial se pode imaginar. Essa é uma 34 reformar sempre. da polícia de Hitler , ao contrário possível interpretação. Contudo, de ser o monstro que todos espera- no mesmo século XX, servindo o congregação de fé, substituindo a concepção mesmo protestantismo, temos o hierárquica do Concílio anterior, que decla- 33 Eichmann em Jerusalém – Um rela- rara a infalibilidade papal. As transformações to sobre a banalidade do mal (Original exemplo tão notável de uma figu- que introduziu foram no sentido da demo- em inglês: Eichmann in Jerusalem: A Report ra como a de Albert Schweitzer35, cratização dos ritos, como a missa rezada em on the Banality of Evil): é um livro da filósofa vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos alemã Hannah Arendt, sobre o julgamento médico, teólogo, músico. Um diferentes países. Este Concílio encontrou re- de Adolf Eichmann, em Jerusalém, publica- missionário apaixonado que, nas sistência dos setores conservadores da Igreja, do em 1963. Arendt, judia alemã que havia defensores da hierarquia e do dogma estrito, fugido do regime nazista, cobriu o processo primeiras décadas do século XX, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, de Eichmann numa série de cinco artigos foi capaz de entender o quanto retornando a Igreja à estrutura rígida preco- para a revista The New Yorker, os quais mais a colonização europeia foi atroz nizada pelo Concílio Vaticano I. O Instituto tarde dariam origem ao livro. (Nota da IHU Humanitas Unisinos – IHU produziu a On-Line) com a África e, despojando-se do edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Vati- 34 Adolf Hitler (1889-1945): ditador aus- seu próprio ambiente cultural, cano II, de 15-6-2009, disponível em http:// tríaco. O termo Führer foi o título adotado bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de por Hitler para designar o chefe máximo do serve nas selvas africanas cons- 99 03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. Reich e do Partido Nazista. O nome significa truindo hospitais e igrejas. Enfim, 50 anos depois, disponível em http://bit.ly/ o chefe máximo de todas as organizações mi- valeria pensar que o ser protes- REokjn, e a edição 425, de 01-07-2013, in- litares e políticas alemãs, e quer dizer “con- titulada O Concílio Vaticano II como even- dutor”, “guia” ou “líder”. Suas teses racistas tante pode ser muito diverso e, to dialógico. Um olhar a partir de Mikhail e antissemitas, bem como seus objetivos para no século XX, ele assume inúme- Bakhtin e seu Círculo, disponível em http:// a Alemanha, ficaram patentes no seu livro de bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o IHU promoveu o 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No perío- ras facetas. Ainda bem. colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos de- do da ditadura de Hitler, os judeus e outros pois. A Igreja no contexto das transformações grupos minoritários considerados “indeseja- vel em http://bit.ly/ihuon265. (Nota■ da IHU tecnocientíficas e socioculturais da contem- dos”, como ciganos e negros, foram persegui- On-Line) poraneidade. As repercussões do evento po- dos e exterminados no que se convencionou 35 Albert Schweitzer (1875-1965): teólogo, dem ser conferidas na IHU On-Line, edição chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio músico, filósofo e médico alsaciano. Formou- 466, de 01-06-2015, disponível em http://bit. no seu Quartel-General (o Führerbunker) -se em Teologia e Filosofia na Universidade ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no em Berlim, com o Exército Soviético a pou- de Strasbourg, onde atuou como docente. Re- sítio IHU. (Nota da IHU On-Line) cos quarteirões de distância. A edição 145 da cebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1952. O sitio 32 Papa João XXIII (1881-1963): nascido IHU On-Line, de 13-06-2005, comentou na do Instituto Humanitas Unisinos – IHU pu- Angelo Giuseppe Roncalli. Foi Papa de 28- editoria Filme da Semana, o filme dirigido blicou uma série de artigos sobre A. Schweit- 10-1958 até a data da sua morte. Conside- por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últi- zer, entre os quais destacamos “Albert rado um papa de transição, depois do longo mas horas de Hitler, disponível em http:// Schweitzer, um dos precursores do trabalho pontificado de Pio XII, convocou o Concílio bit.ly/ihuon145. A edição 265, intitulada humanitário”, publicado em 15-08-2015, dis- Vaticano II. Conhecido como o “Papa Bom”, Nazisimo: a legitimação da irracionalidade ponível em http://bit.ly/1Mx5nwd. Confira João XXIII foi canonizado em 2013 pelo Papa e da barbárie, de 21-07-2008, trata dos 75 mais artigos em http://bit.ly/1STt0Ug. (Nota Francisco. (Nota da IHU On-Line) anos de ascensão de Hitler ao poder, disponí- da IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— O indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana. Entrevista com Marcio Gime- nes de Paula, publicada na revista IHU On-Line número 314, de 09-11-2009, disponível em http://bit.ly/1GT4xx6.

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Uma porta que se abre para o novo Ao analisar o Sínodo dos bispos, Andrea Grillo entende que mais do que apresentar rupturas e mudanças bruscas, o encontro traz sinais de uma Igreja que sai de si e olha o mundo atual

Por João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall’Onder

á quem diga que o Sínodo sobretudo, diminuir o nível de ‘ficção’ dos bispos sobre a família, e de ‘idealização’ da família. A Igre- Hque teve sua assembleia re- ja, idealizando o casamento, agride o alizada no Vaticano em outubro, não mundo moderno e, infelizmente, agri- trouxe mudanças e fracassou em seu de também a vida de muitos homens e relatório final. Entretanto, o teólogo mulheres”, frisa. Grillo também reflete italiano Andrea Grillo destaca que é sobre as polêmicas em torno de acon- preciso ir além dos resultados imedia- tecimentos paralelos ao Sínodo. “Esses tistas para, de fato, entender o saldo fatos são indícios sérios que provam desse encontro. “O fato de que o Síno- que o establishment eclesiástico, onde 100 do, no final, não está fechado para o é exercido o poder real, tem medo das novo, é um grande sinal de esperança reformas de Francisco e também ma- e de visão que o Papa Francisco deixa, nifesta de modo desorganizado a sua de forma sábia e profética”, destaca. ‘malaeducacion’”, analisa. Sobre se o Grillo também destaca que é necessá- Papa sai fortalecido ou não desse ce- rio entender que a discussão não se en- nário (suposto tumor, revelação de ho- cerra com o documento final. Pelo con- mossexualismo na Cúria e oposição de trário, é o começo da abertura de uma bispos em meio ao Sínodo), sintetiza: nova perspectiva. “Estou convencido “com tudo isto, Francisco parecia cal- de que, para além do documento ela- mo e quase se divertia. Sem subesti- borado, que continua a ser provisório mar os complôs, ele parece vivenciar e preparatório para outras decisões, o tudo isso de forma distante, preocu- encontro e a discussão fez bem a to- pado com outras coisas, muito mais dos e também permitiu o surgimento essenciais”. da ‘verdadeira face’ de muitos perso- nagens que aparentemente são autori- Andrea Grillo é filósofo e teólogo dades”, completa, ao referir a disputa italiano, leigo, especialista em liturgia de poder e perspectiva doutrinária pre- e pastoral. Doutor em Teologia pelo sentes no encontro. Instituto de Liturgia Pastoral, de Pá- dua, é professor do Pontifício Ateneu Na entrevista a seguir, concedida por Santo Anselmo, de Roma, do Instituto e-mail à IHU On-Line cerca de duas Teológico Marchigiano, de Ancona, e do semanas depois do encerramento do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia encontro, o italiano analisa em deta- de Santa Giustina, de Pádua. Também lhes movimentos que indicam novas é membro da Associação Teológica Ita- perspectivas provocadas pelo Sínodo. liana e da Associação dos Professores “Somente agora podemos encontrar a de Liturgia da Itália. liberdade de uma linguagem positiva sobre casamento e a família. Podemos, Confira a entrevista.

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bispos. A palavra do Papa e outros bispos iluminados fez com que es- quecesse a má impressão causada pelos arcebispos e cardeais, que Durante séculos, formamos propuseram comparações irrespon- sáveis e julgamentos desequilibra- e alimentamos indivíduos dos sobre o mundo e a história. “monocráticos”: por que agora IHU On-Line – Quais foram os estes mesmos filhos desejariam o pontos centrais da fala do Papa Francisco no encerramento do Sí- confronto e a disputa em relação nodo? Como interpretá-la? ao diálogo com os outros? Andrea Grillo – O Papa, no en- cerramento do Sínodo, chamou a atenção sobre dois pontos essen- IHU On-Line – Como o senhor pastoral e de qualidade clerical de ciais: primeiro, a disponibilidade avalia todo o processo do Sínodo1, uma série de arcebispos, radiogra- da Igreja em se deixar guiar pelo desde a sua preparação até o en- fa o ponto mais baixo, e quase in- seu Senhor ao longo das estradas contro em si? A Igreja entendeu descritível, de uma iniciativa que inéditas e desconhecidas. Não é o princípio da colegialidade, tão merece louvor, mas ao contrário, preciso ter medo em deixar-se presente no Papa Francisco? terá de ser formulada de forma conduzir pelo Espírito, que sopra mais adequada e menos formal. Andrea Grillo – A fórmula da onde quer. Por outro lado, o Papa “consulta” – animada pelo bom Mas as dificuldades do questioná- censurou todas as formas rígidas espírito de “inclusão de todos os rio são diretamente proporcionais da tradição. Algumas palavras pa- membros da Igreja” – necessita de às dificuldades de uma madura e recem libertadoras em relação ao grandes esclarecimentos. As per- séria cultura da colegialidade. Du- resultado do discurso sinodal. guntas foram muitas vezes redigi- rante séculos, formamos e alimen- das de forma vaga ou ideológica. A tamos indivíduos “monocráticos”: IHU On-Line – Qual sua inter- aceitação por parte da comunida- por que agora estes mesmos filhos pretação do Relatório Final do Sí- 101 de não foi estrutural e confiada à criados em vista de uma cultura nodo? O que ele revela acerca do boa iniciativa dos bispos e sacerdo- monocrática desejariam o con- pontificado de Francisco? Como tes. Um dos casos particularmente fronto e a disputa em relação ao ele pode impactar nos rumos da surpreendente: o relator geral do diálogo com os outros? Preferem se Igreja? Sínodo, tanto da Sessão Extraordi- esconder atrás de uma “doutrina Andrea Grillo – O relatório final nária de 2014 quanto na Ordinária monolítica” e bastante “petrifica- expressa, com grande esforço, mas de 2015, durante a fase intermedi- da”, como os seus corações. Este com clareza, a “retirada de uma ária, recusou-se a distribuir o ques- modelo de bispo, infelizmente pre- proibição”. O texto não fala, de tionário na sua diocese em Buda- sente no Sínodo, deveria falar so- forma alguma, em proibir a inclu- peste. Esta situação desagradável, bre tudo, exceto sobre a família, são dos divorciados que se casam que demonstra a falta de preparo pois pouco a entendem e falam novamente com o ritual eucarís- dela sem tato e sem experiência. tico, sob certas condições. Desta 1 Sínodo da Família: em 2013 o papa forma, após o passo dado por João Francisco convocou o Sínodo sobre a família, IHU On-Line – O Papa sai mais Paulo II2, que concedia aos divor- intitulado “Sínodo dos Bispos: os desafios fortalecido do encontro? pastorais da família no contexto da evangeli- ciados em segunda união a “comu- zação”. Na primeira etapa, o Vaticano enviou Andrea Grillo – Apesar dessas nhão eclesial”, agora o Sínodo em às dioceses do mundo todo um questionário e muitas outras dificuldades, o seu documento final “já não nega de 38 perguntas sobre o tema, que serviu a comunhão eucarística”. Isto me como um documento preparatório para a III Papa Francisco pode sair deste Sí- Assembleia Geral Extaordinária do Sínodo nodo com um resultado duplo: de parece um resultado muito impor- dos Bispos sobre a Família, que ocorreu em um lado ele confrontou os bispos, tante, embora mínimo, junto à outubro de 2014. Durante a III Assembleia quase os forçando a se expor. Por possibilidade de falar uma língua Extraordinária do Sínodo dos Bispos, no Va- mais concreta e menos jurídica. ticano, foi produzido um texto com 46 pontos outro lado, recebeu um “mandato” a serem refletidos pela comunidade católica. amplo e compartilhado – ao menos Mas nem sempre o documento está Todo esse processo culminou na XIV Assem- em linhas gerais – para que tivesse à altura da situação. Parece para- bleia Geral Ordinária, que ocorreu entre 4 e 25 de outubro de 2015, no Vaticano. O dis- um efeito profundo sobre a pasto- curso do Papa Francisco aos bispos pode ser ral do matrimônio. Mas a grandeza 2 Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo conferido pelo link http://bit.ly/1kQWt60. O profética das suas palavras tem se Pontífice da Igreja Católica Apostólica Roma- sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na de 16 de outubro de 1978 até o ano da sua também vem publicando uma série de mate- destacado sobre os discursos insig- morte, sucedeu ao Papa João Paulo I, tornan- riais acerca do Sínodo que pode ser acessado nificantes ou alucinados de alguns do-se o primeiro Papa não italiano em 450 em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) anos. (Nota da IHU On-Line)

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doxal quando, por exemplo, na pri- ção da doutrina do casamento no deira face” de muitos personagens meira parte, pede insistentemente contexto atual. O avanço é objeti- que aparentemente são autorida- que os “políticos” façam as possí- vo. Contanto que se possa sair do des. O autoritarismo que se passa veis reformas legislativas e morais, paradigma apologético antimoder- por autoridade e o fundamentalis- mas, por outro lado, os bispos não no, de que foram vítimas os últimos mo que se mostra como fidelidade falam explicitamente de nenhuma Papas João Paulo II e Bento XVI4, de agora têm nomes e sobrenomes, de reforma eclesiástica! Pedem tudo forma mais ou menos evidente. forma mais clara do que antes. aos outros, mas não estão dispos- tos a mudar nada no seu mundo. IHU On-Line – Havia grande ex- IHU On-Line – De que forma po- Isto não é uma forma grave de pectativa no encontro com rela- demos interpretar as disputas, as autorreferencialidade? ção aos temas como comunhão forças que estavam em jogo no de casais em segunda união, mé- Sínodo? Como essas disputas se IHU On-Line – O pontificado de todos contraceptivos, união ho- materializam no relatório final? Bergoglio é apoiado nos ideais de moafetiva e homossexualidade Andrea Grillo – Enquanto isso, misericórdia, perdão, conversão. e o espaço e papel da mulher na algumas disputas eram e são ine- Como esse e outros conceitos Igreja. Como o senhor analisa as vitáveis e até mesmo saudáveis. bergoglianos orbitaram no Síno- discussões acerca desses temas e Pensar que a comunhão significa do? E em que medida fez avançar como avalia sua incidência no re- “todos estão de acordo” demons- o debate acerca da família? latório final? tra um conhecimento bem abstrato Andrea Grillo – Antes de tudo, da comunhão. Algumas das forças os conceitos de Bergoglio não são em jogo temiam o confronto e a “ideais”, mas estão em sintonia discussão. Então, tentaram anteci- com a palavra exigente do Evange- pá-la e marginalizá-la. No relatório lho, relida na visão serena e pro- A grandeza pro- final este “jogo destrutivo” foi am- fética do Concílio Vaticano II3. O plamente superado, mas aparece Evangelho não é a negação do mun- fética das suas na “brevidade do texto”, o que, do, mas a sua salvação. É por isso pelo menos em algumas partes, que vale a pena reunir os bispos, palavras tem se é “pura referência a si mesmo”; para que discutam sobre a tradu- destacado sobre ou seja, ao documento papal que 102 virá. Exercer a colegialidade para 3 Concílio Vaticano II: convocado no dia os discursos in- depois renunciar a ela, não é uma 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram manifestação extraordinária de co- quatro sessões, uma em cada ano. Seu encer- significantes ou ramento deu-se a 08-12-1965, pelo Papa Pau- ragem e responsabilidade. lo VI. A revisão proposta por este Concílio alucinados de estava centrada na visão da Igreja como uma IHU On-Line – Em que medida congregação de fé, substituindo a concepção alguns bispos hierárquica do Concílio anterior, que decla- é possível afirmar que o Sínodo rara a infalibilidade papal. As transformações abre uma nova temporada, um que introduziu foram no sentido da demo- novo período na Igreja? cratização dos ritos, como a missa rezada Andrea Grillo – O relatório final em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis por razões estratégicas e de “tá- Andrea Grillo – Claro, depois do dos diferentes países. Este Concílio encon- Sínodo, como disse o Papa Francis- trou resistência dos setores conservadores tica sinodal” evitou enfrentar as da Igreja, defensores da hierarquia e do dog- questões sobre as quais os bispos co, “a palavra família não é mais a ma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, estavam mais divididos. Por isto, mesma”. E é verdade. Superadas as esvaziados, retornando a Igreja à estrutura primeiras batalhas, podemos aban- rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. não existe muita coisa sobre os O Instituto Humanitas Unisinos – IHU “tópicos quentes”. Mas estou con- donar um estilo defensivo e de con- 5 produziu a edição 297, Karl Rahner e a rup- vencido de que, para além do do- denação. De Casti Connubii de Pio 6 7 tura do Vaticano II, de 15-06-2009, dispo- cumento elaborado, que continua XI até a Familiaris Consortio de nível em http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de 03-09-2012, intitulada Con- a ser provisório e preparatório para cílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível outras decisões, o encontro e a dis- 5 Casti Connubii: encíclica promulgada em http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de cussão fez bem a todos e também pelo Papa Pio XI em 31 de dezembro de 1930. 01-07-2013, intitulada O Concílio Vaticano II Reitera a santidade do matrimônio e proíbe como evento dialógico. Um olhar a partir de permitiu o surgimento da “verda- aos católicos o uso de qualquer forma arti- Mikhail Bakhtin e seu Círculo,disponível em ficial de controle de natalidade e reafirma a http://bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto 4 Bento XVI, nascido Joseph Aloisius proibição do aborto. Explana ainda sobre a Humanitas Unisinos – IHU promoveu o Ratzinger (1927): foi papa da Igreja Católica autoridade da doutrina da Igreja em questões colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos de- e bispo de Roma de 19 de abril de 2005 a 28 morais e advoga a cooperação entre o poder pois. A Igreja no contexto das transformações de fevereiro de 2013, quando oficializou sua civil e a Igreja. (Nota da IHU On-Line) tecnocientíficas e socioculturais da contem- abdicação. Desde sua renúncia é Bispo eméri- 6 Papa Pio XI (1857-1939): nascido Ambro- poraneidade. As repercussões do evento po- to da Diocese de Roma, foi eleito, no conclave gio Damiano Achille Ratti, foi Papa entre 6 de dem ser conferidas na IHU On-Line, edição de 2005, o 265º Papa, com a idade de 78 anos fevereiro de 1922 e a data da sua morte. (Nota 466, de 01-06-2015, disponível em http://bit. e três dias, sendo o sucessor de João Paulo da IHU On-Line) ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da 7 Familiaris consortio: Exortação Apos- sítio IHU. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) tólica, do Papa João Paulo II, de 22 de no-

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João Paulo II, com a parcial exce- fícil arte, que constitui a Igreja na dres – além da comitiva inevitável ção do Vaticano II, tivemos muitos sua identidade de “discípula” e de clérigos seculares, que não fal- documentos que fazem da família “serva”: receber após tantas gera- tam jamais. Abandonar a autorre- e do casamento um campo de bata- ções a “boa palavra” sobre o ca- ferencialidade significa entender lha com a civilização moderna. Já samento e devolvê-la às que virão que o objetivo dos seus maus hábi- Familiaris Consortio muda em par- enriquecidas pela nossa história e tos não é o objetivo nem da Igreja, te este comportamento, manten- pela nossa experiência. A Igreja fez nem de Deus. A expressão “ou Deus do-se em uma lógica apologética. isso durante muitos séculos. So- ou nada” – pequena concentração de fundamentalismo – demonstra o Somente agora podemos encon- medo e uma grave incompreensão trar a liberdade de uma linguagem da história e da vida. positiva sobre casamento e a famí- lia. Podemos, sobretudo, diminuir o nível de “ficção” e de “idealiza- IHU On-Line – Qual sua leitura ção” da família, estilo que o Papa Pensar que a dos “acontecimentos paralelos” Francisco, citando Freud8, recon- comunhão sig- ao Sínodo que tiveram grande duziu a “uma forma de agressão.” destaque na imprensa internacio- A Igreja, idealizando o casamento, nifica “todos es- nal (a carta dos 13, a publicação agride o mundo moderno e, infe- da notícia de um suposto câncer lizmente, agride também a vida de tão de acordo” do Papa e o fato de o padre po- muitos homens e mulheres. Para demonstra um lonês Krysztof Olaf Charamsa vir evitar esse estilo agressivo e in- a público assumir sua homosse- justo será necessário diferenciar a conhecimento xualidade)? O que eles significam disciplina em grandes zonas conti- bem abstrato para além do encontro? nentais. A “descentralização” será Andrea Grillo – Esses fatos são inevitável para interceptar as ver- da comunhão indícios sérios que provam que o dadeiras instâncias do casamento e establishment eclesiástico, onde é da família, exigindo atenção escru- mente nos últimos dois séculos co- exercido o poder real, tem medo pulosa em relação ao Evangelho e meçamos a pensar que a tradição das reformas de Francisco e tam- à cultura. não é um “jardim a ser cultivado”, bém manifesta de modo desorga- mas um “museu a ser preservado.” nizado a sua “malaeducacion”. O 103 IHU On-Line – Em que medida o – de acordo com a feliz expressão medo se manifesta de maneiras desafio de “traduzir a tradição” com a qual João XXIII9 abria o Va- diferentes, de forma rude ou orgu- foi cumprido pelo Sínodo? ticano II. lhosa. Escrever uma carta ao papa com antecedência, para evitar que Andrea Grillo – Eu acho que este Por isso, hoje, diante de tantas certas coisas aconteçam no Sínodo Sínodo foi um bom exemplo da di- dificuldades, mas também diante ou para desafiar a sua abordagem de novas oportunidades, se nos vembro de 1981, “sobre a função da família é um sinal de medo e covardia da- cristã no mundo de hoje”. O documento foi mantivermos atados a uma lin- queles que temem a comparação editado após a realização do Sínodo dos Bis- guagem jurídica para proclamar a e sofrem quando perdem o poder. pos celebrado em Roma de 26 de Setembro beleza da comunhão matrimonial, Tendo sido os cardeais, somente a 25 de Outubro de 1980. (Nota da IHU estaremos, sem querer, fazendo o On-Line) piora a situação. 8 Sigmund Freud (1856-1939): neurolo- jogo do “inimigo”. E pensar que gista, fundador da psicanálise. Interessou-se, a única resposta possível para a Os outros “eventos” – confis- inicialmente, pela histeria e, tendo como mé- “crise matrimonial” seja hoje a sões e diagnósticos – pertencem todo a hipnose, estudou pessoas que apresen- procura de um “vício original do a um gênero “misto”, em que as tavam esse quadro. Mais tarde, interessado histórias pessoais e as mitomanias pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influen- consentimento” – ou o desinteres- ciado por Charcot e Leibniz, abandonando a se em relação ao ato sexual na se- se entrelaçam e são cúmplices. O hipnose em favor da associação livre. Estes gunda união – significa permanecer medo leva à confusão. Mas com elementos tornaram-se bases da psicanálise. tudo isto Francisco parecia calmo Freud nos trouxe a ideia de que somos movi- fixo em categorias e atitudes agora dos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o incompatíveis com a maioria das e quase se divertia. Sem subesti- tratamento com seus pacientes foram contro- consciências contemporâneas. Os mar os complôs, ele parece viven- versos na Viena do século XIX, e continuam únicos a serem “garantidos” por ciar tudo isso de forma distante, ainda muito debatidos hoje. A edição 179 da preocupado com outras coisas, IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe este método são os bispos e os pa- o tema de capa sob o título Sigmund Freud. muito mais essenciais. Se pensar- Mestre da suspeita, disponível em http://bit. 9 Papa João XXIII (1881-1963): nascido mos que, enquanto estes cardeais ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12-2006, Angelo Giuseppe Roncalli. Foi Papa de 28- sem nenhuma autoridade moral e tem como tema de capa Freud e a religião, 10-1958 até a data da sua morte. Conside- disponível em http://bit.ly/ihuon207. A edi- rado um papa de transição, depois do longo eclesiástica ficam à mercê destes ção 16 dos Cadernos IHU em formação pontificado de Pio XII, convocou o Concílio jogos miseráveis de poder, existem tem como título Quer entender a modernida- Vaticano II. Conhecido como o “Papa Bom”, pessoas que migram, crianças que de? Freud explica, disponível em http://bit. João XXIII foi canonizado em 2013 pelo Papa morrem no mar, vidas sofridas e ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line) Francisco. (Nota da IHU On-Line)

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sem esperança, podemos entender será traduzida em uma nova lin- imprensa quis apresentar o deba- a dureza e a franqueza das pala- guagem, corajosa e leal, audaciosa te sinodal como uma “competi- vras do Papa Francisco quando ele e a serviço de uma verdadeira co- ção” entre os bispos que queriam terminou a Assembleia, olhando de municação da fé. Enfim o Jubileu10, permanecer fiéis à tradição e os forma profética para um lugar lon- já iminente, reunirá a força de mi- bispos que queriam se emancipar. ge dali. sericórdia e permitirá na lógica do Esta representação é falsa e afeta- Ano Santo, que se suportem as “ex- da. Na verdade, trata-se de bispos ceções”, como uma regra mais pro- IHU On-Line – Quais os desafios que vivem a comunhão da doutri- funda e verdadeira. Será, creio eu, do pontificado pós-sínodo? na, mas que se diferem na forma o espaço de uma verdadeira con- como iriam traduzir a doutrina co- Andrea Grillo – O pós-sínodo é versão da autorreferencialidade. mum em disciplina. Alguns se ilu- mais um avanço, que identificaria dem que a atual disciplina vigente em três níveis: de um lado uma IHU On-Line – Deseja acrescen- pode ficar indiferente à história e à “prática das nomeações episco- tar algo? sociedade. Este é um erro de pers- pais” que ajudarão a mudar a ló- pectiva, que desqualifica a tarefa Andrea Grillo – Eu gostaria de gica da “pastoral ordinária”. Uma “pastoral” dos bispos. parte dos problemas do Sínodo de- acrescentar uma consideração de Nestes casos, quando esse sen- riva de uma “política” das nome- caráter geral: por muito tempo a timento prevalece, os Bispos con- ações episcopais intencionalmente 10 Julbileu da Misericórdia (Ano Jubi- fessam a “impotência” que parece modestas. Se você escolher como lar): Anunciado pelo Papa Francisco em 13 suspeita e a projeção de uma ina- bispos os sacerdotes “carreiris- de março de 2015, o “jubileu extraordinário” dequada compreensão não só da tas”, dificilmente ouvirá interven- é centrado na “misericórdia de Deus”. Terá início a 8 de dezembro deste ano e percorrerá realidade humana, mas do próprio ções significativas sobre problemas todo o ano de 2016. O Ano Jubilar é uma co- Evangelho. O fato de que o Sínodo, reais... memoração religiosa da Igreja Católica, cele- brada dentro de um Ano Santo, mas o que di- no final, não está fechado para o Sob outro aspecto, a “continu- fere deste é que a celebração jubilar é feita de novo, é um grande sinal de espe- ação do Sínodo” levará a um do- 25 em 25 anos. A celebração cristã se funda- rança e de visão que o Papa Fran- menta na Bíblia, tanto no Antigo Testamento, cumento (Exortação ou Encíclica) de onde temos a tradição judaica como no cisco deixa, de forma sábia e pro- com o qual a teologia da família Novo Testamento. (Nota da IHU On-Line) fética. Tenho certeza disso.

104 ■ LEIA MAIS... —— O filho do Concílio e a luta contra o clericalismo. Entrevista com Andrea Grillo, publicada na revista IHU On-Line, número 465, de 18-05-2015, disponível em http://bit.ly/1iHvfNw. —— O Sínodo: o texto e o evento. Artigo de Andrea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 03-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit. ly/1iHvoAt. —— “Não se pode reduzir a doutrina à disciplina medieval. É preciso profecia.” Artigo de An- drea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 22-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1Qj0uMp. —— Os Padres sinodais saberão chegar aonde uma criança já chegou? Artigo de Andrea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 19-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1LV0bnY. —— O que Carlo Maria Martini diria no Sínodo? Artigo de Andrea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 16-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http:// bit.ly/1S2kxwQ. —— As “teses infundadas” do cardeal Müller. Artigo de Andrea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 15-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http:// bit.ly/1RBlywa. —— Analogias de tradição: como sair da oposição entre justiça e misericórdia? Artigo de Andrea Grillo, publicado nas Notícias do Dia, de 14-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisi- nos – IHU, disponível em http://bit.ly/1HwBvy7.

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PUBLICAÇÕES Bioética e biopolítica na perspectiva hermenêutica: uma ética do cuidado da vida

Cadernos IHU ideias, em sua 231ª edição, publica o artigo Bioética e biopolítica na perspectiva hermenêutica: uma ética do cuidado da vida, de Jesús Conill Sancho, Universidade de Valência – Espanha. Sobre a problemática entre o cuidado e a administração da vida, con- vém refletir, em primeiro lugar, sobre a perspectiva diretora do pensa- mento, que, na minha opinião, é a hermenêutica. Com efeito, ao longo do desenvolvimento do pensamento contemporâneo foi se introduzindo uma intensa transformação da filosofia, que teve dois impulsos prepon- derantes: o hermenêutico e o prático. E é nesse contexto que se deve entender a emergência da bioética e da biopolítica, que, por sua vez, constituem duas concreções da plasmação prática da filosofia. A versão digital está disponível em http://bit.ly/1N2lGqv Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisi- nos – IHU ou solicitadas pelo endereço [email protected].

Biopoder e a constituição 105 étnico-racial das populações. Racialismo, eugenia e a gestão biopolítica da mestiçagem no Brasil

Cadernos IHU ideias, em sua 230ª edição, publica o artigo Biopoder e a constituição étnico-racial das populações. Racialismo, eugenia e a gestão biopolítica da mestiçagem no Brasil, de Gustavo da Silva Kern doutorando pela Univerisidade do Rio Grande do Sul – UFRGS e docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina – IFSC. O presente trabalho apresenta uma incursão teórica e empírica acerca do biopoder e sua atuação sobre a constituição étnico-racial da popu- lação brasileira. Partindo de uma discussão em torno da acepção que Michel Foucault conferiu ao conceito de biopoder e avançando sobre sua análise em torno do “racismo de Estado”, passo à abordagem dos discursos racialistas e eugenistas produzidos em nosso país entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ao problematizar as teorizações em torno do branqueamento da população brasileira, procuro compreender o que Antonio Negri e Giuseppe Cocco chamaram de gestão biopolítica da mestiçagem no Brasil. A versão digital está disponível em http://bit.ly/1SOyP5f Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisi- nos – IHU ou solicitadas pelo endereço [email protected].

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PUBLICAÇÕES A Constituição Dogmática Dei Verbum e o Concílio Vaticano II

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Cadernos Teologia Pública, em sua 102ª edição, traz o artigo A Constituição Dogmática Dei Verbum e o Concílio Vaticano II, de Flávio Martinez de Oliveira, UCPel (Universidade Católica de Pelotas). Situa-se a Dei Verbum em seu contexto próximo e imediato até chegar ao Vaticano II. Nos séculos XIX e XX há avanços e restrições por parte dos documentos magisteriais e na teologia nos principais aspectos abordados no Documento: a Revelação, as fontes da Revelação, as relações entre Escritura e Tradição, a verdade bíblica, a inspiração e os autores divino e humano da Escritura, os métodos de exegese. A complexidade das questões abordadas e o candente debate entre os padres conciliares, com a assessoria dos mais eminentes teólogos, vêm descritos até se chegar à redação definitiva. Os principais temas e as questões que permanecem abertas são enumerados e brevemente analisados. A Dei Verbum apresenta um caráter único que fermenta todo o Concílio Vaticano II. Inova ao assumir o caráter cristológico, eclesiológico, antropológico e pastoral da revelação. Enten- der esta constituição dogmática permite melhor compreender não somente a história da interpretação da Bíblia que se sucede, mas toda a história da teologia e da Igreja que resulta do Vaticano II, pois a Bíblia, antes relegada à marginalidade, no seu estudo “deve ser como que a alma da sagrada teologia” (DV 24) e, consequentemente, da vida da Igreja. Nem tudo foi resolvido, mas o caminho foi largamente aberto e se afirmou na pesquisa, no ensino, na missão, na pastoral. Confira a edição digital em http://bit.ly/1H12C9P Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitados pelo endereço [email protected].

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Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Refugiados, uma diáspora em tempos globais

Edição 362 – Ano XI – 23.05.2011 Disponível em http://bit.ly/1H13pYd O drama mundial dos refugiados é o tema de capa desta edição IHU On-Line. Contribuem para o debate Andrés Ramirez, Peter Balleis, Juan Felipe Carrillo, Padre Alfredo Infante e Wooldy Edson Louidor. Outros entrevistados são Roger Zetter, Paulo Welter, Jacques Wainberg, Karin Kaid Wapechowski e Denise Jar- dim. Em 1951, quando foi assinada a Convenção de Genebra, que reconheceu a denominação “refugiado” e seus direitos, o mundo vivia as primeiras grandes mu- danças estruturais e contabilizava as consequências de grandes conflitos. Hoje, sessenta anos depois, o número de refugiados cresceu proporcionalmente à popu- lação e reflete de maneira clara a crise dos tempos globais.

Ubuntu. ‘Eu sou porque nos somos’

Edição 353 – Ano X – 06.12.2010 Disponível em http://bit.ly/1lntwin 107 O Ubuntu é o tema de capa desta edição. Participam do debate Dirk Louw, Mogobe Ramose, Dalene Swanson, Dalene Swanson, Bas’Ilele Malomalo e Drucilla Cornell. Dos povos originários da África, surge uma concepção ética que desafia o estilo de vida da sociedade contemporânea: o ubuntu. Para os povos de língua bantu, esse termo significa “eu sou porque nós somos”. Essa “filosofia do Nós” pensa a comunidade, em seu sentido mais pleno, como todos os seres do universo. Todos nós somos família.

Fé, justiça e diálogo inter-religioso e intercultural

337 – Ano X – 02.08.2010 Disponível em http://bit.ly/1RUoxjx Fé, justiça e diálogo inter-religioso e intercultural é o tema de capa da edição 337 da IHU On-Line, de 02/08/2010. Contribuem para a discussão Alfredo Ferro Medina, Antônio José Maria de Abreu, João Inácio Wenzel, José Ivo Follmann, Mauricio García Durán, Octavio Figueroa, Roberto Jaramillo Bernal, Thierry Li- nard de Guertechin, Pedro Miguel Lamet, Cesar Sanson, André Langer e Darli de Fátima Sampaio O tema de capa da revista IHU On-Line desta semana é inspirado pela realiza- ção, aqui em São Leopoldo, RS, da reunião latino-americana dos coordenadores e diretores dos Centros Sociais da Companhia de Jesus. Buscando entender melhor a inspiração destes centros sociais espalhados pela América Latina e o serviço que tentam prestar, entrevistamos alguns diretores e pesquisadores que neles atuam.

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Bioética e Biopoder e a biopolítica na constituição Um olhar perspectiva étnico-racial biopolítico hermenêutica das populações sobre a bioética

Cadernos IHU ideias, em sua 231ª Cadernos IHU ideias, em sua 230ª Cadernos IHU ideias, em sua 229ª edição, publica o artigo Bioética edição, publica o artigo Biopoder edição, publica o artigo Um olhar e biopolítica na perspectiva her- e a constituição étnico-racial das biopolítico sobre a bioética, de menêutica: uma ética do cuidado populações. Racialismo, eugenia Anna Quintanas Feixas da Uni- da vida, de Jesús Conill Sancho, e a gestão biopolítica da mestiça- versidade de Girona, Espanha. A Universidade de Valência - Espa- gem no Brasil, de Gustavo da Silva autora sustenta que nos últimos nha. Ao longo do desenvolvimento Kern, doutorando pela Univerisida- anos temos defendido a neces- do pensamento contemporâneo foi de do Rio Grande do Sul - UFRGS sidade de cruzar a bioética com se introduzindo e docente do Instituto Federal de os estudos biopolíticos. A razão uma intensa Educação, Ciência principal reside transformação e Tecnologia de no fato de pen- da filosofia, Santa Catarina - sar que a bioéti- que teve dois IFSC. O trabalho ca corre o risco impulsos pre- analisa o biopoder de converter-se ponderantes: e sua atuação so- na “cara amá- o hermenêu- bre a constituição vel da biopolí- tico e o práti- étnico-racial no tica”. Leia mais co. Leia mais Brasil. Leia mais em http://bit. em http://bit. em http://bit. ly/1WRdgXw. ly/1H10Vch. ly/1Sq6UYw. Eventos - IHU ideias

Palestrante Profa. Dra. Fernanda Frizzo Bragato – Unisinos Data Quinta-feira, 19-11-2015 Horário 17h30 Local Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

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