PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE Programa de Pós-Graduação em Letras

Dayse Aparecida do Amaral Santos

O ENCONTRO MARCADO: a escrita e a memória em Fernando Sabino

Belo Horizonte 2016 11

Dayse Aparecida do Amaral Santos

O ENCONTRO MARCADO: a escrita e a memória em Fernando Sabino

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Raquel Beatriz Junqueira Guimarães.

Belo Horizonte 2016 11

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Santos, Dayse Aparecida do Amaral S237e O encontro marcado: a escrita e a memória em Fernando Sabino / Dayse Aparecida do Amaral Santos. Belo Horizonte, 2016. 143 f.

Orientadora: Raquel Beatriz Junqueira Guimarães Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Sabino, Fernando, 1923-2004 – O encontro marcado - Crítica e interpretação. 2. Memória. 3. Belo Horizonte (MG) - História. 4. Civilização moderna. I. Guimarães, Raquel Beatriz Junqueira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81).09

Dayse Aparecida do Amaral Santos

O ENCONTRO MARCADO: a escrita e a memória em Fernando Sabino

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Raquel Beatriz Junqueira Guimarães.

______Prof.ª Dr.ª Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (Orientadora) – PUC-Minas

______Prof. Dr. Roniere Silva Menezes – CEFET-MG

______Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC-Minas

Belo Horizonte, 23 de setembro de 2016. 11

A meus pais, Elza e João, pelo incentivo e carinho. 11

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus pela oportunidade de fazer este mestrado. Sem o auxílio e proteção d’Ele nenhum sonho pode ser realizado. À Sagrada Família, que nos ensina a ser seres humanos semelhantes a Deus. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – pelo financiamento do curso e, consequentemente, desta pesquisa importante em minha carreira acadêmica. Aos meus pais, Elza e João, por todo apoio e incentivo que me deram não apenas durante o mestrado, mas, também, durante toda a vida. À minha família, pela preciosa presença a conceder ânimo em todos os momentos. À minha orientadora, Raquel Beatriz Junqueira Guimarães, pela paciência, dedicação e orientação ao longo deste percurso. Sem esse apoio esta pesquisa não seria possível. Aos professores Audemaro Taranto Goulart, Márcia Marques de Morais, Jane Quintiliano, Ivete Walty, Maria Nazareth Soares Fonseca, Hugo Mari, Alexandre Veloso de Abreu, Terezinha Taborda Moreira e Johnny José Mafra pelos ensinamentos, carinho e interesse. Aos Grupos de Pesquisa “Poesia em Versiprosa” e “Estética e Humanismo”, que enriqueceram minhas concepções acadêmicas. Ao meu amigo Gustavo pelo auxílio nas traduções em língua estrangeira ao longo do mestrado. À minha amiga Isabella Moraes que realizou a revisão textual deste trabalho. Aos meus professores do Ensino Fundamental e Médio da Escola Estadual Mário Elias de Carvalho que, sem saber, foram exemplos e me inspiraram a valorizar aquilo que ninguém jamais poderá nos tirar: o saber. Meu agradecimento especial às professoras do Fundamental I: Conceição Silva e Silva, Marília Vieira Santos e Marina. Aos professores do Fundamental II: professores de História, Eros Luis Vasconcelos e Fátima; professoras de Ciências, Emília e Fátima; professora de Geografia, Silmara; professora de Língua Portuguesa, Adriana; professora de Matemática, Geni; professor de Geometria, Thiago. Aos professores do Ensino Médio: professoras de Língua Portuguesa e Literatura, Maria Ivete e Juscelina; professora de Educação Física, Adriana Lobo; professor de História, João Paulo; professora de Artes, Fernanda Figueiredo; professora de Física, Elza; professora de Geografia, Neuza Reis;

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professores de Matemática, Helbert e Terezinha e professores de Biologia, Érica e Donato. À supervisora, Graça Aquino, pelo carinho, dedicação e interesse pelos alunos. Aos professores do curso Pré-vestibular Chromos, professora de Literatura, Cristina, professor de História, Rodrigo e professor de Geografia, Lindemberg, que foram decisivos para minha escolha na licenciatura. Ao meu amado Bruno, que sempre esteve ao meu lado em todos os momentos. Aos amigos do mestrado, pelo enriquecimento da partilha de conhecimentos. Agradeço, finalmente, a Fernando Sabino que, por meio de sua obra, deu-me o sábio conselho: “No fim tudo dá certo; se não deu ainda, é porque não chegou ao fim”.

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Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. (BORGES, 2011). 11

RESUMO

Esta dissertação estuda os caminhos literários escolhidos pelo escritor mineiro Fernando Sabino ao compor seu romance O Encontro Marcado. Este estudo procura, na fortuna crítica e nos depoimentos do autor, elementos que explicam o fazer literário de Fernando Sabino e sua inserção na série literária como um escritor moderno. Para tanto, foi preciso estudar sua obra e seu percurso criativo como cronista e como romancista. A partir desses elementos, analisa-se como a memória da cidade de Belo Horizonte, nas décadas de 1940 e 1950, presente no romance por meio de sua arquitetura e seus espaços públicos, mostra que o espaço e o personagem principal, Eduardo Marciano, são inseparáveis, o que contribui para torná-lo um romance de geração. Neste estudo considera-se que, em O Encontro Marcado, a cidade e os jovens que nela vivem aparecem como sendo a extensão um do outro. Para realizar esta análise, estuda-se o romance como uma ficção que contém muitas semelhanças com a experiência vivida pelo escritor e considera-se que os elementos da vida pessoal são transformados para criar a cena literária. Contribuem para esta reflexão críticos como Fábio Lucas e Antonio Candido, teóricos como Massaud Moisés, Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Reinaldo Marques e Maria Zilda Ferreira Cury, nos quais se procuram amparar as análises, fruto da leitura do romance de Fernando Sabino.

Palavras-chave: Fernando Sabino. Criação literária. Memória. Cidade. Modernidade.

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ABSTRACT

This work studies the literary paths chosen by the brazilian writer Fernando Sabino when composing his novel O Encontro Marcado. This study looks for, in the literary criticism and the testimony of the author, elements that explain the literary work by Fernando Sabino and its place in the literary series as a modern writer. To that end, we needed to study his work and his creative career as a chronicler and as a novelist. From these elements, it analyzes how the memory of the city of Belo Horizonte, in the 1940s and 1950s, present in the novel through its architecture and its public spaces, shows that space and the main character, Eduardo Marciano, are inseparable, which helps to make it a generation novel. In this study it is considered that in O Encontro Marcado the city appear to be the extension of and young people who live there. To perform this analysis, we study the novel as a fiction that has many similarities to the experiences by the writer and it is considered that the elements of his personal life are transformed to create the literary scene. Have contributed to this critical reflection the researchers Fabio Lucas and Antonio Candido, theorists like Massaud Moises, Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Reinaldo Marques and Maria Zilda Ferreira Cury, in which the analysis is supported, resulto of the reading of the novel written by Fernando Sabino.

Keywords: Fernando Sabino. Literary creation. Memory. City. Modernity.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 19

2 ESCRITAS EM CENA: A CRÍTICA DO ROMANCE ...... 25 2.1 Encontro marcado com a crítica ...... 27 2.2 Novos encontros: Fernando Sabino no século XXI ...... 54

3 FERNANDO SABINO: O CRONISTA E O ROMANCISTA ...... 61 3.1 Fernando Sabino: o cronista ...... 61 3.2 O escritor e seu romance ...... 79

4 A CIDADE E OS PERSONAGENS: SEMELHANÇAS ...... 97 4.1 O Encontro Marcado: um romance da literatura moderna ...... 98 4.2 Belo Horizonte: o perfil literário da cidade moderna ...... 102 4.2.1 Transferência da capital: transferência do poder ...... 103 4.3 Eduardo, Mauro, Hugo e Belo Horizonte: personagens e espaço entrelaçados ...... 119

5 CONCLUSÃO ...... 131

REFERÊNCIAS ...... 137

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1 INTRODUÇÃO

A arte é uma flor nascida no caminho da nossa vida, e que se desenvolve para suavizá-la (SCHOPENHAUER, 2015).

O Encontro Marcado é um romance cujo cenário consiste na Belo Horizonte e, posteriormente, no entre os anos de 1940 e 1950. Em Belo Horizonte, acompanha-se a infância e a juventude do jovem Eduardo Marciano, personagem principal da obra, e sua vida adulta se passa na cidade do Rio de Janeiro, para onde se muda após se casar com a filha do governador de Minas. Fernando Sabino, ao construir seus personagens, transforma os questionamentos de uma geração em matéria literária e, dessa maneira, os eterniza. Como diz o narrador de O Encontro Marcado sobre as inquietudes de Eduardo Marciano: “De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar”. (SABINO, 2011, p. 68). Na juventude, entre os anos de 1940 e 1950, Fernando Sabino e três de seus amigos ficaram conhecidos como “cavaleiros do Apocalipse”. Eram eles: Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende. O escritor e psicanalista Hélio Pellegrino e Fernando Sabino se conheceram no jardim de infância e se tornaram amigos para o resto da vida. Ele foi um dos personagens mais marcantes da história da psicanálise no Brasil e também ficou conhecido por ser um militante de esquerda; o poeta, prosador e jornalista Paulo Mendes Campos conheceu os amigos em Belo Horizonte e nunca mais se separou deles; o escritor e jornalista Otto Lara Resende fundou com Sabino e a Editora do Autor. É nos anos de 1950 que surge o romance de Sabino, marcado pelo tom memorialístico, um estilo cronístico e um forte conteúdo urbano. O Encontro Marcado conta a história de um jovem aparentemente excêntrico demais para a idade e que, mais tarde, se envolve em uma busca desesperada para dar sentido à vida. Ele e seus amigos Mauro e Hugo viviam em meio à boemia pelas esquinas da Belo Horizonte. O romance se inicia na infância de Eduardo Marciano, filho de dona Estefânia e seu Marciano. Filho único, desde pequeno já demonstrava ser um menino inquieto em casa e no grupo escolar. Ainda na infância, Eduardo se interessa pelo léxico da língua e pela gramática expositiva. Na juventude, Eduardo conhece Hugo e, juntamente com Mauro, os três amigos exploram as ruas e as praças de Belo Horizonte, “puxando angústia”. É nessa época que o protagonista conhece sua namorada, e futura esposa, Antonieta, filha do governador de Minas.

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Quando Eduardo se casa, deixa Belo Horizonte e muda-se com a esposa para o Rio de Janeiro, onde ganha de “presente de casamento” um cartório do sogro. Na sua fase adulta, Eduardo alimenta o sonho de se tornar um escritor de sucesso, porém, é nessa fase que se percebe uma decadência do personagem: a saudade dos amigos de Belo Horizonte, do pai que já não está mais vivo e a relação com a cidade do Rio, que não é a mesma de Belo Horizonte. Com a crescente tensão advinda dessa situação, Eduardo se torna cada vez mais boêmio e seu casamento entra em crise, culminando na separação. Ao final do romance, Eduardo não consegue ser o escritor que desejava e termina o encontro com seu amigo Mauro em um convento, em que o visitava. A memória e a cidade, aqui considerada como parte da memória, – componentes do fazer literário do escritor Fernando Sabino – são temas que possibilitam um estudo mais aprofundado do romance, uma vez que o personagem principal em muito se parece com a geração belo-horizontina da qual fizeram parte Sabino e seus amigos escritores. A Belo Horizonte construída por meio da memória e transformada em ficção é um dos componentes principais do fazer literário de Fernando Sabino em O Encontro Marcado. Uma das hipóteses de construção do fazer literário de Fernando Sabino em seu romance é este ser delineado por uma ficção que contém muitas características de sua experiência vivida, ou seja, o autor traz alguns elementos da sua vida pessoal, o que oferece ao romance um tom de autobiografia, mas os transforma ao criar sua ficção, sua obra literária. Supõe-se que talvez o termo “autoficção” criado por Serge Doubrovsky para nomear o gênero para seu livro Fils1 possa ser utilizado para falar do romance de Sabino. Eurídice Figueiredo (2010, p. 92), em seu trabalho sobre o estudo da autoficção, afirma que

A autoficção é um gênero que embaralha as categorias de autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se excluir. Apesar de todos saberem que o escritor sempre se inspirou (também) em sua própria vida, a ficção foi o caminho trilhado pelo romance ocidental para se firmar ao longo da História. Como o romance autobiográfico foi, tradicionalmente, considerado um filho bastardo, um híbrido, que quase sempre mereceu o desprezo da crítica, a autoficção acabou por ocupar esse lugar, embora com formatos inovadores (FIGUEIREDO, 2010, p. 92).

Pelo que que se vê, O Encontro Marcado é esse embaralhamento da autobiografia com a ficção. Não se pode dizer ao certo se a vida de Eduardo Marciano é a que Fernando

1 A autoficção é um gênero que foi criado por Serge Doubrovsky. Sentindo-se desafiado por Philippe Lejeune que, no livro Le pacte autobiographique, indagava se seria possível haver um romance com o nome próprio do autor, já que nenhum lhe vinha ao espírito, Doubrovsky decidiu escrever um romance sobre si próprio. Assim, ele criou o neologismo de autofiction para qualificar seu livro Fils. Cf: Eurídice Figueiredo (2010).

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Sabino queria para si. O que se tem é a obra literária que Sabino escreveu. Na narrativa, o escritor cria o período da infância, da juventude até o início da vida adulta, com a separação de sua primeira esposa. Outro ponto importante que pode compor o fazer literário do autor é a percepção de que os espaços das cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro são norteadores nas fases da vida de Eduardo e atuam como um componente do personagem: as praças, as ruas, as avenidas, o viaduto, os pontos da cidade como o Minas Tênis Clube e os bares, indo muito além do fato de ser uma mera descrição física, assim como no Rio de Janeiro há o bairro boêmio de Copacabana, a praia e a repartição em que Eduardo trabalhava. A relação de Eduardo com os espaços urbanos é conflituosa, questionadora, tanto quanto é questionadora a relação de Eduardo com o mundo, com os valores da sociedade de seu tempo. Nesta análise, a intenção será mostrar como se dá a relação da escrita textual do romance, marcada pelo protagonista Eduardo Marciano, com a questão da memória das cidades, que também têm sua importância na narrativa. A relação de Eduardo com as cidades não é gratuita e aparece pautada pela complexidade, que é mostrada na própria estrutura narrativa do romance. Essa pesquisa se move com a hipótese de que no romance de Sabino encontra-se cenas construídas, referências e pistas de memórias pessoais que o autor elege e que serão urdidas nas memórias de Eduardo Marciano e inseridas no romance como matéria de ficção. Assim, a escrita do autor vai, então, modificando o vivido e transformando-o em memória de seu personagem. O romance contém um conjunto de relações e referências espaciais que fazem parte não só da vida do escritor, mas também de uma geração na qual estava inserido. Além do fato de as cidades fazerem parte da construção da memória no romance, outro ponto de interesse para essa pesquisa é como Fernando Sabino conceitua sua própria ficção. O Encontro Marcado é uma das mais afortunadas obras da moderna literatura brasileira e traz com ela uma ficção de um escritor mineiro que já vinha escrevendo suas crônicas nos jornais e publicado suas novelas. Sua atividade jornalística contribuiu para o seu modo de conceber a escrita literária e o seu romance. Uma justificativa para essa afirmação é a de que o escritor, além de transpor para sua obra suas vivências mais profundas com as cidades e com o mundo ao seu redor, inclui características da escrita das crônicas do quotidiano (que tanto estava habituado a escrever). Aprofundar na escrita própria de Fernando Sabino, ou seja, descobrir como ele concebe sua ficção no romance e suas particularidades é um dos objetivos desta pesquisa.

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Os estudos referentes aos mais diversos aspectos das publicações de Fernando Sabino não são vastos, porém, de forma contínua, surgem pesquisadores que se interessam pela escrita do autor. Embora haja poucas pesquisas, não se pode negar que suas produções contêm vitalidade para continuar a serem estudadas. Os trabalhos recentes a respeito do legado literário de Fernando Sabino abordam os mais diferentes temas, desde análises de suas crônicas até de seus livros, como O Encontro Marcado. Há pesquisas em que a ênfase é dada ao protagonista Eduardo Marciano e à composição das leituras feita pelo mesmo, há aquelas que enfatizaram o tema do existencialismo no romance, há as que se dedicaram a estudar a questão autobiográfica e cronística das produções do escritor mineiro; há aquelas que analisaram O Encontro Marcado como romance de formação; outras pesquisas abordaram como o tema do tédio na contemporaneidade relacionado à obra O Encontro Marcado. São temas e abordagens diversos que mostram as múltiplas possibilidades de leituras que as produções de Fernando Sabino podem conter, trazendo, assim, a visão de vitalidade que caracteriza as obras do escritor mineiro. Para desenvolver o trabalho optou-se por uma organização com uma introdução, três capítulos e a conclusão. No primeiro capítulo, pretendeu-se apresentar a recepção crítica do romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. Nele ressaltam-se as diferenças e semelhanças entre os textos comentados, com o intuito de promover um diálogo entre as análises e o próprio romance analisado. A base se dá a partir dos comentários e estudos críticos de autores que estão presentes em duas edições críticas do romance: uma em 1986 e outra em 1996. No segundo capítulo, discutem-se os conceitos de crônica e romance, a partir dos depoimentos do escritor, e em aproximação com concepções de teóricos que estudam esses gêneros literários, tais como Antonio Candido e Jorge de Sá, Massaud Moisés, Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Por fim, no terceiro capítulo aborda-se O Encontro Marcado como sendo um romance da literatura moderna, escrito no período em que a capital mineira passava por grandes transformações urbanísticas e arquitetônicas e em que o mundo da arte estava impregnado das concepções do movimento modernista que influenciou diferentes gerações de escritores, inclusive o próprio Fernando Sabino. Nesse capítulo também é abordada a relação dos personagens, principalmente Eduardo Marciano, com o espaço que frequentam. É uma interação forte estabelecida por eles, seja pela lembrança da infância, pelas confusões da adolescência ou a boemia na vida adulta. As transformações pelas quais Belo Horizonte e o

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país passavam contribuirão para os questionamentos vividos não só pelos personagens, mas também por toda a geração daquele período, se estendendo para as gerações atuais. Na conclusão, busca-se sintetizar os elementos discutidos no decorrer deste trabalho com o intuito de demonstrar o que foi proposto desde o início dos estudos: explicar o fazer literário de Fernando Sabino e sua inserção na série literária brasileira como um escritor moderno por meio da fortuna crítica de sua obra, dos depoimentos do autor, com suporte teórico que contribuísse no processo de leitura da obra O Encontro Marcado. Os depoimentos do próprio autor sobre o modo de se conceber um literato e como isso influenciou a escrita de O Encontro Marcado e também de suas outras produções literárias vão contribuir para compor o fazer literário do escritor mineiro. A questão dos personagens e da cidade também será destacada a partir de seus entrelaçamentos.

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2 ESCRITAS EM CENA: A CRÍTICA DO ROMANCE

O romance retrata a passagem da euforia à angústia, refletido num temperamento da mais extrema sensibilidade estética e de uma desesperadora versatilidade. (ATHAÍDE, 1996, p. 53).

Este estudo da recepção crítica do romance O Encontro Marcado se baseia nos comentários e análises de autores que estão presentes em duas edições críticas do romance: uma publicada em 1986 e outra em 1996 e da apresentação de um conjunto de estudos mais recentes sobre a obra do escritor. Na Edição Comemorativa do trigésimo aniversário do romance O Encontro Marcado, publicada em 1986 pela Editora Record, a maioria dos textos que precedem o romance são escritos por leitores-amigos de Fernando Sabino, os quais emitem uma opinião2 sobre as obras do romancista, em especial a obra em análise. As opiniões foram escritas por jornalistas, escritores, críticos e amigos do autor, não necessariamente com a intenção de se fazer crítica acadêmica. Mas tudo indica, pela natureza e conformação do volume, que se tratavam de textos cuja intenção era homenagear o autor e a sua obra mais importante pelo fato de a estrutura das análises ser mais sucinta. É interessante perceber que muitas das opiniões críticas estão escritas como sendo dirigidas diretamente a Fernando Sabino, reforçando o tom de comentários e de elogios na ocasião do aniversário do romance. Exemplo disso é, no início da edição de 1986, o depoimento de Dalton Trevisan: “A sua frase, Fernando, é uma frase clássica, no sentido em que ninguém a diria melhor” (TREVISAN, 1986). A segunda edição se trata da Obra Reunida de Fernando Sabino, publicada pela Editora Nova Aguilar em 1996, que reúne grande parte das produções literárias do escritor mineiro. Os novos apontamentos críticos presentes na Obra Reunida parecem ser mais profundos, provavelmente por seu caráter ensaístico e aprofundamento investigativo. Entre os autores estão, em conjunto com amigos do autor, alguns críticos especializados. Muitas dessas críticas incluídas na edição foram elaboradas por professores universitários, como é o caso de Jorge de Sá, Edilberto Coutinho, Tristão de Athayde, Dulce Maria Vianna Mindlin, Antônio Houaiss e Fábio Lucas, sendo este último um dos mais destacados críticos literários em atividade naquela época. A análise reflexiva mais fundamentada abre caminhos para novas interpretações da obra do prosador mineiro.

2 Toma-se esta palavra da edição de 1996, na qual, ao reunir alguns comentários da edição de 1986, a organização da editora os nomeou “Opinião” para distingui-los dos artigos reunidos na parte “Perfil” e na parte “Ensaio”. Isso mostra, justamente, que a hipótese de que não se tratam de textos para análise mais profunda, mas sim de homenagem, se confirma.

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A partir da análise dos textos de crítica dessas publicações, observa-se que os estudiosos se dedicam a vários pontos da obra de Sabino e, dentre eles, destacam-se: a conformação do gênero literário, se mais romance ou mais crônica; se mais ou menos autobiografia; se memória individual e/ou coletiva. Alguns se dedicam ao estudo da estrutura do romance, analisando o modo de construção dos diálogos e o ritmo desenvolvido pelo escritor; há, ainda, aqueles que tomam para análise os aspectos mais filosóficos da obra, por considerá-la existencialista; por fim, alguns destacam o legado que o romance deixou para a literatura brasileira. As análises apresentadas também permeiam a configuração do romance com base no dilema entre autobiografia e ficção presente em O Encontro Marcado. Além desses trabalhos realizados por críticos e leitores mais conhecidos e reconhecidos, verificam-se, ainda, trabalhos acadêmicos de pessoas que se dispuseram a estudar as produções do escritor mineiro. Este é o caso dos trabalhos de Suzana Barbosa Costa, Douglas Rodrigues de Sousa, Florita Dias da Silva, Marcelo Antunes Neves, Gabriela Kvacek Betella, Maria da Glória dos Reis, Adriana Aparecida Almeida de Oliveira e José Sterza Justo, Ewerton Martins Ribeiro, Walter Sabino dos Santos e Ilca Vieira de Oliveira. Diferentemente dos ensaios e comentários presentes nas edições comemorativas aqui mencionadas, muitos dos trabalhos mais recentes se dedicam a aspectos não abordados por estes. Nesses novos estudos, que demonstram a vitalidade da obra do escritor, são encontrados: a questão do hibridismo presente no romance; o processo de criação de Fernando Sabino por meio do protagonista de seu romance e seu difícil processo da influência e desleitura; a questão do dialogismo e polifonia no romance O Encontro Marcado; a formação do escritor e a angústia da influência; o tema do tédio na obra, a abordagem de um biografema em Zélia, uma paixão e um estudo de Fernando Sabino como um leitor de Machado de Assis. Alguns trabalhos, entretanto, retomam questões já clássicas nos estudos da obra de Sabino, como a hibridização do romance, o tema do existencialismo, a abordagem de Fernando Sabino como cronista em relação à influência da autobiografia em suas produções e a temática do romance de formação vinculada a O Encontro Marcado.

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2.1 Encontro marcado com a crítica

Para isso, há que haver, melhor, descobrir os mil andaimes literários com que ele menta a sua matéria, a fim de que ela consiga ser esse prodígio de simplicidade e cursividade que aparenta. (HOUAISS, 1996, p. 65).

Embora se trate de uma obra com muito reconhecimento crítico, pode-se dizer que os estudos sobre O Encontro Marcado não são proporcionais à importância dada ao romance, tampouco são muitas as pesquisas a respeito de Fernando Sabino. Na fortuna crítica reunida nas edições mencionadas há críticos que englobam todas as produções de Fernando Sabino, outros que são mais pontuais. Inicia-se esta seção com aqueles que tratam dos aspectos gerais da obra do autor. Dentre os que são mais específicos destacam-se os que pautam a forma de composição de O Encontro Marcado em diversos aspectos: uns tratam do tempo, outros dos personagens, há aqueles que se dedicaram a analisar o diálogo e a objetividade das falas, alguns consideraram o aspecto do existencialismo e outros refletiram sobre o aspecto histórico do romance. Dentre os ensaios que analisam a obra de Sabino, destaca-se o de Fábio Lucas. Em “A ficção de Fernando Sabino”, publicado primeiramente em 1983, o crítico revela que a ficção de Sabino se distribui entre dois eixos: “humor e temor”. Talvez esse aspecto da linha entre “o humor e o temor” possa ser comprovado em trechos em que o narrador enfoca no temor de Eduardo ao se deparar com o suicídio do amigo:

Durante o dia andava triste, abatido, pelos cantos, já pensando em outras coisas, não pensando em nada. (...) Não sabia o que se passava consigo; sabia que tudo era triste, o mundo era mal. Havia mistério em tudo, a alegria da infância era apenas lembrança. De súbito, a morte estava para abater-se sobre ele a qualquer momento. (SABINO, 2011, p. 37).

No campo do humor, pode-se identificar o momento em que Eduardo vai a um restaurante do Rio de Janeiro, ainda adolescente:

Viu o mar, achou muito cinzento e opaco. Andou pelas ruas, tomou sorvete de pistache, foi ao cinema, comprou um terno de calça comprida, deixou que Mauro e o tio se fossem, recusou-se a voltar. Para não ser encontrado, passou-se para o Hotel Elite, onde, em vez de quinze, pagava treze mil réis por dia. Com refeições. Um dia encontrou uma formiga no arroz: — Olha aqui, tem uma formiga no arroz. — Por este preço o que é que o senhor queria? Em todo caso, gostou de ser chamado de senhor pelo garçom, um japonês, gostou da ironia do japonês. Por aquele preço, era lógico, era justo, não podia querer que tivesse outra coisa no arroz, senão formigas. (SABINO, 2011, p. 32).

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Fábio Lucas aponta uma análise da narrativa de Fernando Sabino que outros críticos também irão pontuar e também insere uma percepção ainda não vista:

A narrativa de Fernando Sabino incorpora, pode-se dizer que inconscientemente, os sinais da nova dicção narrativa. O tempo interior se funde ou se opõe ao tempo exterior. A intimidade da personagem se dá com maior frequência e naturalidade. O tom da narrativa é confidencial, como se o leitor oculto estivesse mais próximo do narrador. Há um clima de intimidade com os seres e os objetos. (LUCAS, 1996, p. 23).

Quando o ensaísta analisa uma composição do conto de Sabino, percebe-se também uma semelhança dessa característica com o romance analisado: “Os contos são informativos de uma vida belo-horizontina que deixou de existir” (LUCAS, 1996, p. 23). A semelhança que há entre essa afirmação e O Encontro Marcado é que pelo fato de o romance ter sido escrito em uma época em que a modernidade das capitais brasileiras estava entrando em novo momento, Brasília, estava sendo construída, a belo-horizonte que Fernando Sabino retratou no romance já não era a mais a mesma no período em que escrevia (esse aspecto do romance será abordado mais detalhadamente no capítulo 4 deste estudo). Fábio Lucas (1996) aborda características que outros críticos, posteriormente neste trabalho, irão apontar ao descrever o romance O Encontro Marcado:

O estilo ágil, o tratamento direto da matéria, o diálogo desconcertante, a prosa bem humorada, a segmentação da intriga, são ali traços característicos que estarão presentes no restante da obra do ficcionista. (LUCAS, 1996, p. 23).

Em sua análise do romance de Sabino, Fábio Lucas considera duas características da obra: primeiramente, o fato de que “retrata a juventude da personagem Eduardo Marciano e de seus amigos, equiparando-se a um romance de formação” (LUCAS, 1996, p. 27). Para apreender o termo, o romance de formação é focado em um protagonista jovem e mostra sua jornada, da infância à maturidade, em busca de crescimento espiritual, político, social, psicológico, físico ou moral. Em segundo lugar, o romance é, também, para Lucas (1996) “uma narrativa que espelha a vida belo-horizontina dos anos quarenta, e, então, apresenta-se como um romance de costumes” (LUCAS, 1996, p. 27). Esse termo, romance de costumes, conhecido também como romance urbano, se refere a um romance que desenvolve um tema ligado à vida social; resumindo, ele tem como principal característica retratar e criticar os costumes da sociedade. O ensaísta aborda, portanto, esses dois aspectos da obra de Sabino: a formação de Eduardo Marciano, que se constrói em seu percurso desde “o ponto de partida”

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até “o encontro”, e uma narrativa que espelha a vida belo-horizontina dos anos quarenta, período em que as questões da modernidade das cidades permeavam o país. Lucas (1996) acrescenta “o sabor existencial” na direção das “arrojadas perspectivas do personagem principal”. Ele ressalta “a liberdade na condução dos acontecimentos, certo realismo confinado na época a uma ponta de escândalo que, além das qualidades literárias, tornou a obra mais atraente” (LUCAS, 1996, p. 27). O ensaísta ressalta outros pontos que se encaixam na série das ficções de Fernando Sabino: por exemplo, a natação, como um modo de se afirmar como pessoa e uma maneira de encarar os percalços da vida. A primeira parte do livro, A procura, de acordo com Lucas, “sugere também a formação moral e literária da personagem. Livros e interesses intelectuais são arrolados, de modo a se ter implícita uma arte poética da orientação romanesca do autor” (LUCAS, 1996, p. 24). No final do capítulo “O Ponto de Partida”, por exemplo, é possível encontrar o momento em que Eduardo tem contato com a literatura francesa por meio de seu amigo Toledo:

Escritor é mesmo gente esquisita — pensava, confirmando uma opinião de seu Marciano. Em todo caso, a familiaridade daquele homem com ele, e com temas tão vastos, a coragem de dizer palavrões, de revelar sua vida íntima, seu pessimismo, seu fracasso — tudo isso marcava Eduardo fundamente, fazia-o sentir-se homem. — Você quer ser contista, não é? — e Toledo o reteve, quando se despedia: — Pois então leia isso... E isso... E isso. Emprestou-lhe três livros de contos em francês: Merimée, Flaubert e Maupassant. ACOSTUMARA-SE A LER os franceses — os proibidos — na biblioteca do Ginásio, em traduções. Lera Madame Bovary, lera Eugénie Grandet, lera Gargantua — pouco lucrou com a leitura. Com este último ficou impressionado: como um livro podia conter tanta palavra baixa, tanta cena escabrosa, tanta porcaria. Mas achava engraçado, por isso ia lendo. Comprou um dicionário, prendeu-se em casa durante muitas noites, lendo à força os três livros de contos que lhe foram emprestados. Não entendeu muito bem, não gostou muito: — Se isso é que é boa literatura, então meus contos são uma merda — concluiu, imitando seu novo amigo. (SABINO, 2011, p. 55).

Eduardo é influenciado por seu amigo Toledo a ler contos franceses. Ele se mostra não muito satisfeito com a leitura, mas isso não impediu de se esforçar para traduzir os contos. Mesmo não gostando das leituras feitas nessa cena, Eduardo constrói sua bagagem de leitura neste e em outros momentos do romance, por meio da orientação romanesca do próprio autor. Fábio Lucas (1996) afirma que no segundo capítulo do romance, “A Geração Espontânea”, imprime-se o sinal geracional e se transmite o clima de época que influenciava os então nascentes escritores. Nesse sentido, encontram-se cenas no romance que mostram o protagonista tentando se tornar um escritor:

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Seu romance, iniciado na repartição. Agora, escrevia todas as noites – os amigos queriam, a viva força, arrancá-lo para a rua. Ele inflexível: — Não, tenho de escrever. Escrever toda noite. Se não tivesse o que escrever, pagar o tributo devido à arte. (...) O romance chegara a um impasse: não sabia o que pretendia, escrevendo-o. Os amigos telefonavam: — Não analisa não. (SABINO, 2011, p. 90).

Fábio Lucas, em seu ensaio, delineia o percurso de Eduardo Marciano ao longo do romance:

Depois de narrar a vida vertiginosa de Eduardo Marciano, suas relações com os amigos, a literatura e o ambiente, a atenção do narrador se concentra nas conquistas da personagem: seu ingresso no mundo das Letras, sua decisão amorosa e seu acesso à esfera do poder. (LUCAS, 1996, p. 28).

Lucas, ao se referir às conquistas do protagonista, remete ao desejo de Eduardo de inserir-se como um escritor, romancista, ao seu casamento com a filha do governador de Minas e seu “presente de casamento”, um emprego de funcionalismo público no Rio de Janeiro. O ensaísta aponta que após o casamento de Eduardo com Antonieta, quando o protagonista adquire status, ele passa a sofrer “as incertezas básicas que regressam ao seu espírito”. Ao terminar a primeira parte com o casamento, não se tem o final feliz “para glorificar a família, base da sociedade burguesa”, mas encontram-se características do compromisso da modernidade: “a aproximação do lado mórbido do realismo, a realização de sua concepção romanesca, a velocidade de sua narrativa e a fragmentação dos episódios” (LUCAS, 1996, p. 28): “Sentia vagamente que se tornara instrumentos de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já não era dono de si mesmo. Você não soube escolher – lhe dissera Toledo: foi escolhido” (SABINO apud LUCAS, 1996, p. 28). Uma das maiores qualidades reveladas pelo ensaísta, na concepção do romance, é “a velocidade de sua narrativa”, apontada por diversos estudiosos, e “a fragmentação dos episódios”, que testemunham o inteiro compromisso com a modernidade (LUCAS, 1996, p. 24). Concorda-se, neste trabalho, com esta opinião, conforme será demonstrado no estudo sobre as características modernas do romance. A segunda parte do livro, O Encontro, reforça o nome da primeira parte, A Procura. O segundo capítulo desta última, “O Afogado”, sugere a mudança que o protagonista sofreu: “mudança para o Rio, ou seja, de lugar, de status e de estado civil. Um afogado em águas revoltas” (LUCAS, 1996, p. 29). Para Lucas (1996), “no seu projeto de fulgurante ascensão, Eduardo Marciano mergulha no insucesso, na desestruturação: perde o controle de seus

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objetivos, perde-se em meio às cambiantes manifestações da vida” (LUCAS, 1996, p. 29). Pode-se perceber essa abordagem do ensaísta na cena do romance em que Eduardo se vê vagando pelas ruas do Rio:

Chegou o tempo de beber sozinho. Depois chega o tempo de andar, andar até não poder mais de cansaço: castigar o corpo. Depois chega o tempo de trabalhar, fazer alguma coisa, sentir-se vivendo de alguma maneira. Houve um que nesta última fase fundou uma cidade. Sim, ele sabe, conheceu nos outros e nos livros todas essas etapas. Nunca pensou é que pudesse acontecer com ele, logo com ele! que se julgava invulnerável. Por ora, beber apenas. (SABINO, 2011, p. 305).

Eduardo está entregue à bebida e desacompanhado de qualquer amigo que seja, ficando nítido seu insucesso na capital federal por “sentir-se vivendo de alguma maneira” (SABINO, 2011, p. 305). Nessa passagem fica claro o que Lucas havia apontado sobre Eduardo se desestruturar e perder o controle de seus objetivos. Fábio Lucas toca em outro ponto referente aos romances do século XX e o relaciona ao romance do prosador mineiro:

Para Eduardo Marciano, apaixonado por Guerra e Paz, “jamais nenhum romancista seria capaz de escrever algo de mais completo, e no entanto ninguém deveria ambicionar menos”. Mas aí vem uma confissão que é o problema da narrativa no século XX, quando a unidade ficcional do século XIX fora perdida. Tempo em que o referente da ficção tornou-se a própria palavra. “Acabaria escrevendo sobre a arte de escrever sobre a arte de escrever – e assim indefinidamente, enfiando-se na sua obstinação como um escravo entre dois espelhos, até o último andar da torre onde o haviam aprisionado. (LUCAS, 1996, p. 29).

Pela passagem de Fábio Lucas percebe-se que o protagonista do romance sofre influência de escritores russos (Guerra e Paz3, de Liev Tolstói) assim como é também referência para o próprio Fernando Sabino Fiódor Dostoiévski, por exemplo. Tanto para o personagem quanto para o autor, esses autores, especialmente Dostoiéviski, são considerados o que há de mais completo em relação à arte de escrever, porém nenhum escritor deve “ambicionar menos” por causa disso. De acordo com Fábio Lucas (1996), essa “confissão” demonstra a nova configuração das narrativas do século XX, em que a metalinguagem passa a ser a nova abordagem dos romances modernos: “escrever sobre a arte de escrever sobre a arte de escrever”, o que se difere dos romances dos séculos XVIII e XIX, uma vez que eram centrados na figura do narrador e no próprio enredo.

3 O enredo deste clássico da literatura russa se passa durante a campanha de Napoleão na Áustria e descreve a invasão da Rússia pelo exército francês até sua retirada, compreendendo o período de 1805 a 1820. Trata-se de um painel profundo e verdadeiro da aristocracia russa.

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O ensaísta aborda, também, a semelhança e diferença entre Rio e Belo Horizonte em relação às peripécias de Eduardo Marciano:

As peripécias de Eduardo Marciano no Rio têm a mesma velocidade daquelas de Belo Horizonte. Com uma diferença: as primeiras indicam a formação da personagem, as segundas mostram sua desestruturação. É quando se põe em questão o relacionamento amoroso. (LUCAS, 1996, p. 29).

A velocidade das ações no romance, como será apontada no próximo capítulo deste estudo, em muito se assemelha à velocidade das ações presentes em uma crônica, pela própria experiência do autor como cronista antes de escrever seu romance. A constituição do personagem é decisiva quando os espaços mudam. Em Belo Horizonte, as experiências vividas na infância e adolescência fizeram parte da formação de Eduardo como leitor, como companheiro de seus amigos, em seus ideais a respeito do mundo e no desejo de se tornar escritor. Quando este se muda para o Rio, a desestruturação se mostra pelo casamento, pelo emprego de funcionalismo público, pela boemia, pela separação, pela solidão e pela frustração de não ter sido escritor. A questão final do romance, para Lucas (1996), indica um encontro: Eduardo Marciano ampara-se no aspecto religioso, vai em busca de uma salvação divina e encontra apoio para todos os seus conflitos vividos ao longo do romance. O personagem se conforma na vida religiosa devido a todos os percalços vividos em sua vida até então. Percebe-se, nesse sentido, que Lucas (1996) considera que a questão do existencialismo cristão é o que daria sentido à brusca decisão do personagem no desfecho do romance. Como leitor, o crítico sente- se enganado por ter dado um outro sentido para a procura de Eduardo Marciano ao longo do romance. Lucas não esperava um final tão voltado para o existencialismo cristão. Por esses aspectos aqui analisados, pode-se observar que, em seu trabalho de crítica, Fábio Lucas (1996) faz pontuações que, também, serão tratadas por outros pesquisadores, conforme será exposto a seguir, tais como a velocidade da narrativa, a fragmentação dos episódios, a confusão existencial, e discute se o modo como a narrativa se constituiu a torna um romance de formação e/ou de costumes. Para além desses aspectos, o ensaísta se detém em elementos a que outros não se dedicaram, como é o caso da filiação ao modernismo e da configuração do romance do século XX. Em relação às características do romance modernista, tem-se na obra do prosador mineiro passagens que ilustram os apontamentos feitos por Fábio Lucas (1996), como “a velocidade de sua narrativa” e “a fragmentação dos

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episódios”; uma delas é a cena em que o protagonista Eduardo e seu amigo Veiga estão em um cabaré:

Uma mulher veio sentar-se com eles. Aquelas eram as mulheres. De onde viriam? Onde teriam nascido, onde brincaram? Alguém, ao microfone, anunciava uma bailarina. A mulher a seu lado disse que se tratava de uma grande artista. Pôs-se a acariciar-lhe a perna, por baixo da mesa. — Vamos embora — e o Veiga fez sinal ao garçom. — Eu vou ficar. — Ficar? Todos o olharam, surpreendidos. — Vou ficar com ela — e apontou a mulher com naturalidade. No íntimo preferia a Jupira. — Onde é que você mora? — Aqui perto. Veiga, de pé, hesitante: — Bem... Espero você no restaurante da esquina. Já se encaminhava para a porta quando Eduardo o alcançou, puxou-o de lado: — Você pode deixar algum dinheiro? Um dos rapazes se atrasara: — Cuidado, que essa mulher sofre de estreitamento... (SABINO, 2011, p. 63).

Nessa cena a velocidade da narrativa se evidencia pela fala do narrador e do diálogo entre Veiga e Eduardo, que se mostra sucinto e objetivo. A questão da fragmentação dos episódios também é nítida nessa passagem. Logo após essa cena, já é mostrado Eduardo se encontrando com os amigos no restaurante. A continuação da narração prossegue quando o protagonista, já em casa, relembra dos momentos no quarto do cabaré: Eduardo recompõe a cena ao rememorar a mulher e o quarto. O protagonista relembra os objetos no quarto, a janela aberta que possibilitava avistar o letreiro luminoso, retratos na penteadeira, luz vermelha na cabeceira da cama. Ele relembra também o cheiro enjoativo do pó de arroz e vaselina e refaz a cena do ato sexual ao se lembrar dos movimentos realizados pela mulher. A fragmentação no romance fica nítida: ao invés dos detalhes da experiência de Eduardo no cabaré aparecerem após o personagem se despedir dos amigos, a cena se mostra para o leitor do romance quando Eduardo relembra os momentos quando este já se encontra em sua casa, sozinho no seu quarto. Após isso, a continuação do romance também se dá de forma fragmentada, pois a narrativa continua em um parágrafo que se inicia com o trecho: “Toledo continuava a lhe emprestar livros” (SABINO, 2011, p. 65). Embora este estudo trate da fortuna crítica do romance O Encontro Marcado, também se relacionará o romance a algumas semelhanças com as técnicas da crônica. Nesse sentido, é válido salientar o estudo das crônicas de Fernando Sabino feito por Marco Aurélio Matos (1996) que, em seu ensaio “Fernando Sabino: O verbo como aventura”, publicado

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primeiramente em 1984, analisa a obra do escritor em quatro partes: O verbo do princípio, A vida ao meio-dia, Desfrazão e Primeiro Mundo, e Amor e Humor. O autor considerou todas as produções de Fernando Sabino: crônicas e romance, e destacou que “o elemento dinamizador das crônicas é o humor: aquela maneira de tratar levemente as coisas graves e gravemente as coisas leves” (MATOS, 1996, p. 39). Ele ressalta que o humor de Fernando Sabino, além de fazer rir, faz cair uma lágrima, “porque explora de maneira não agressiva o humor recôndito no mecanismo das coisas e dos homens” (MATOS, 1996, p 39). Segundo Matos, Sabino “desmonta progressivamente a realidade, questiona a natureza das coisas, quer saber os limites das definições, toma a palavra do outro e a decompõe em seus próprios termos, explora o dinamismo das contradições” (MATOS, 1996, p 39). Para ele, a supremacia do humor do prosador mineiro está em saber rir de si mesmo. Para o ensaísta, “Fernando Sabino tem estruturado todos os seus livros na oralidade”, seu poder verbal é a força de atração de sua prosa. Trata-se “de uma força ligada à musicalidade, isso imprime ao seu estilo uma qualificação superior de oralidade”. Matos afirma que a oralidade se concentra em seu romance “na figura do homem, com suas paixões, perplexidades, ânsias, esperanças, alegrias”. O universo literário e humano de Sabino é o de um “existencialismo à sua maneira”. No cotidiano, surgem e desaparecem todos os mistérios; nos problemas do dia a dia, a existência precede a essência das coisas. “O homem está sempre sujeito à marca do tempo que lhe dá a chave dos seus muitos enigmas” (MATOS, 1996, p. 33). Sobre O Encontro Marcado, Matos considera que seus personagens visavam a uma “reorganização de um mundo que se desmantelava” (MATOS, 1996, p. 36). A sua força catártica está na coragem de “abrir o coração e mostrar os subterrâneos de suas angústias e de suas esperanças” (MATOS, 1996, p. 36) e, para ele, isso é a busca dinâmica de um perfil autêntico de sua identidade, que captaria, de forma contundente e dolorosa, o mundo juvenil e adulto. Com efeito, o ensaísta sugere que há

um universo luminoso nestas páginas: a descoberta do sentido dialógico da vida – a incorporação do diálogo à solidão de cada um de nós, a ronda misteriosa da fé religiosa que persegue principalmente Eduardo Marciano e que contamina por difusão pessoal a todos os personagens. (MATOS, 1996, p. 37).

O ensaísta considera ainda o romance de Sabino como “um livro profundamente religioso” no sentido de ser uma expressão de uma nostalgia do “religamento entre o homem e Deus”. Essa característica dada por Matos só pode ser compreendida se remeter ao final do

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romance, como analisou Fábio Lucas, quando o encontro de Eduardo, ao longo do romance, se baseava no existencialismo cristão. Matos também faz uma ponte ente a questão da oralidade, por ele desenvolvida, e o caráter confessional da obra: “A feição oral é básica para ressaltar os conceitos, as confissões, a troca de emoções entre os personagens. Há uma carga notável e diálogos – forma específica de credibilidade dos personagens e espinha dorsal desta obra” (MATOS, 1996, p. 37). O ensaísta ressalta um aspecto do romance que, posteriormente, outros críticos também apontarão: a oralidade se refere à carga notável de diálogos presente em O Encontro Marcado e, segundo o ensaísta, isso compõe a “espinha dorsal” da obra. Coincidindo em muitos aspectos com as análises dos críticos Fábio Lucas e Marco Aurélio Matos, anteriormente citados, Otto Lara Resende, em seu ensaio sobre o livro Gente4, publicado pela primeira vez em 1975, revela que os traços marcantes de Fernando Sabino são “a agilidade, não apenas de estilo, da escritura, mas da montagem e da construção”. Para o amigo de Sabino, há um ritmo interior em sua prosa que é quase “vertiginoso”, existe a “velocidade da montanha-russa”, “de objeto em movimento” e tudo isso constituiria as marcas de sua técnica. Ele aponta que o autor “sabe escolher, entrar e sair de um assunto e que o humor é uma das suas marcas” (RESENDE, 1996, p. 62). Otto Lara Resende (1996) considera O Encontro Marcado uma obra clássica e, para ele, a leitura do romance do prosador mineiro se tornou imprescindível com o passar do tempo. O escritor justifica sua consideração citando as palavras do escritor argentino Jorge Luís Borges segundo as quais “o fervor que singulariza a leitura de um clássico” comprova “uma misteriosa lealdade” de seu público, quase sempre jovem. Para Resende, o feito de Sabino é passar por temas, episódios e pessoas para enriquecê-los com sua visão única. O escritor ressalta ainda que o romance do prosador mineiro possui a marca jornalística, tornando-o “agradável e didático, jornalístico e literário, divertido e instrutivo, pessoal e alheio” (RESENDE, 1996, p. 62).

4 Gente, com quem Fernando Sabino conviveu ao longo da vida, ou mesmo de quem se tornou amigo “na cadência da arte”: Érico Veríssimo, , Lúcio Costa, Alyrio Cavalieri, Tom Jobim, Salvador Dalí, Antônio Houaiss, Carlos Drummond de Andrade, Silvio Caldas, Carlos Lacerda, Marques Rebelo, , Pablo Neruda, Ivo Pitanguy, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Di Cavalcanti, , Dalton Trevisan, Alfred Hitchcock, Villa Lobos, Augusto Frederico Schmidt, Florinda Bolkan, Carlos Scliar, , , Noel Nutels, Pedro Nava, Pelé, João Cabral de Melo Neto, Jayme Ovalle, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, , , Guiomar Novaes, Lúcio Rangel, Mayza Matarazzo, Prudente de Moraes, , Augusto Rodrigues, Oswaldo França Junior. O autor oferece ainda um nostálgico testemunho do seu tempo de campeão de natação, do ensino de português antigamente, da sua frustrada vocação de músico de jazz, da experiência de jornalista e editor e uma visão geral do “brasileiro para inglês ver”. Mais do que simples nostalgia dos anos setenta, este livro evoca aquilo que eles tiveram de melhor. Apesar de esse ensaio não falar sobre as crônicas ou o romance de Fernando Sabino, Otto Lara Resende explicita características da obra que se assemelham aos outros gêneros analisados do prosador mineiro.

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O crítico Tristão de Athaíde, em seu texto publicado em 1956, por sua vez, conta que conheceu o escritor mineiro, recém saído da adolescência, vindo de uma peregrinação que era “a Meca” dos escritores estreantes, a Rua Lopes Chaves, residência de Mário de Andrade. Ele considera o romance O Encontro Marcado “repleto de páginas dramáticas, recoberto numa atmosfera de angústia, de sofrimento, de perplexidade, de procura que é o que domina todo o romance” (ATHAÍDE, 1996, p. 53). Ele destaca também que “Sabino é um romancista comprometido com a vida e que soube estilizar seu próprio drama interior, transposto, transfigurado, palpitando como um pássaro ferido” (ATHAÍDE, 1996, p. 53). Segundo o crítico,

essa obra revela um escritor em plena posse de si mesmo, fixando de modo marcante não apenas o seu próprio estado de espírito, mas o de um momento particularmente dramático de nossa história vivida. O romance retrata a passagem da euforia à angústia, refletido num temperamento da mais extrema sensibilidade estética e de uma desesperadora versatilidade. (ATHAÍDE, 1996, p. 53).

Athaíde (1996) pensa que não houve o encontro, mas trata-se de “um relato particularmente impressionante” (ATHAÍDE, 1996, p. 53). Ele sustenta que o romance retrata uma geração, “na fase patética do contato com a vida dos sentidos, da inteligência” (ATHAÍDE, 1996, p. 53). Novamente encontra-se o caráter cristão na análise de O Encontro Marcado: Athaíde considera Deus como um personagem do romance, “por onde passeia o mais deslavado ateísmo” (ATHAÍDE, 1996, p. 53). Ele termina concluindo que o romance de Sabino seria representativo do drama de uma geração:

O Encontro Marcado é um livro flagrante de mocidade e até mesmo de adolescência. Será o próprio romance de seu autor, na medida em que o romancista não pode fugir a se prolongar em suas personagens. Mas é, igualmente, o drama de uma geração, de uma idade, de uma época social e daí lhe vem, igualmente, a importância que passa a ter na história de nossas letras. (ATHAÍDE, 1996, p. 53, grifo do autor).

Augusto Frederico Schmidt é outro crítico e escritor, que se dedica ao estudo de O Encontro Marcado, em seu texto de 1956. Ele afirma que o romance é uma espécie de “Educação Sentimental”, opinião semelhante à de Dalton Trevisan e Joel Silveira, com características e peculiaridades da modernidade, tal como pontuou Fábio Lucas. Para Schimidt, “Sabino é um moderno ao narrar uma tragédia em que o mal vence o bem, em que uma fatalidade conduz tudo e mergulha as personagens num mar cinza” (SCHMIDT, 1996, p. 58). É importante ressaltar a figura de um autor moderno que narra uma tragédia, pois Schmidt contrapõe duas noções opostas: Fernando Sabino escreveu em uma época em que as

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noções de modernidade pairavam no país e escreve seu romance – um gênero moderno – por meio de um gênero clássico, a tragédia. Além de Schmidt (1996), outros críticos também se reportarão a Sabino e seu romance como modernos e trágicos, como será apresentado posteriormente neste estudo. Segundo o crítico, o romance foi concebido e marcado pela desintegração: “o ser assistindo de fora ao seu próprio processo, sem intervir, sem romper os liames e prisões, assumindo erros e fraquezas” (SCHMIDT, 1996, p. 59). O autor acrescenta, ainda, que se espantou com

a falta de qualquer impulso construtivo, nos anos de preparação de Eduardo e de seus companheiros em Belo Horizonte. Adolescentes e jovens, entregam-se estes heróis à boemia, bebem muito e pregam sustos em seus semelhantes e em si mesmos, sacudindo a pacata Belo Horizonte com cenas de esbórnias. (SCHMIDT, 1996, p. 59, grifo do autor).

Segundo ele, são jovens inconformados com o provincianismo e precisam expandir-se. Apesar da pouca idade, já estão totalmente tomados pelo tédio. Schmidt (1996) analisa que “o que tange esses rapazes, esses estudantes, esses aprendizes de poetas, de romancistas, de ensaístas, é o medo da monotonia e a necessidade de vivenciarem experiências mais sérias e fortes” (SCHMIDT, 1996, p. 59). A contradição, segundo ele, é que esses jovens são “os mais inteligentes, os mais lúcidos e os mais desamparados, são seres incompreendidos e solitários” (SCHMIDT, 1996, p. 59). Essa sensação de desamparo e de solidão pode ser vista no romance:

— Eu me recuso, simplesmente. Se nós mesmos, que nos conhecemos mais do que ninguém, somos de tal maneira precários no julgamento de cada um, é porque não sabemos nada, não somos donos de verdade nenhuma, temos de buscá-la fora de nós. A consciência é inútil, sem uma convicção adquirida. Isso que estamos fazendo é inútil, é masoquismo. Não temos importância, somos apenas três coisas largadas, desarvoradas, aflitas. Está acima de minhas forças dizer alguma coisa mais... (SABINO, 2011, p. 108-109).

Para esses solitários é a lição de que não visavam o carreirismo, ou seja, não visavam fazer qualquer carreira para ter sucesso na vida, não ambicionavam vencer na vida, um sentimento totalmente burguês que os jovens combatiam com intensidade. O ensaísta termina assegurando que tudo o que aconteceu a Eduardo Marciano foi consequência de sua “inadaptação, da sua constante inconformidade com a vida” (SCHMIDT, 1996, p. 59). No excerto a seguir pode-se observar a cena em que os quatro amigos reunidos trabalhavam contra “o sentimento burguês”:

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Escreviam longos artigos que falavam em honra, liberdade, direitos do homem — burlavam os agentes do governo, que viam neles agitadores comunistas ameaçando a segurança do regime. Todas as noites o censor revia a matéria já composta, cortava, proibia, modificava — então eles se davam ao trabalho de ir à oficina, tornar a escrever, tornar a compor. Abaixo os burgueses donos da vida. Abaixo os exploradores do povo, abaixo os fascistas, abaixo a tirania, vivam a liberdade! Aos poucos, aceitando a linha de conduta imposta pelos defensores da democracia, endossando alguns postulados socialistas (falavam muito em reforma agrária, exploração do homem pelo homem, infraestrutura, participação nos lucros das empresas, socialização dos meios de produção), foram ingressando naquela massa amorfa, que vinha a constituir a Oposição em plena atividade clandestina. (SABINO, 2011, p. 100).

As reivindicações e o sentimento antiburguês dos jovens amigos denotam o período de mudanças pelo qual as capitais brasileiras passavam. A manifestação em uma atividade clandestina encontrada por eles mostra marcas de uma juventude que se mobilizava contra a ordem vigente para conquistar uma sociedade melhor. O crítico Antonio Houaiss (1996) inicia seu ensaio intitulado “Contos e Crônicas”, publicado primeiramente em 1976, enfatizando que a conversa tem tradição documentada desde Sócrates “como um dos meios interpsíquicos mais atilados de tentarmos compreender e apreender” (HOUAISS, 1996, p. 65). No Brasil, o crítico destaca que a estrela de maior grandeza, na arte da oralidade, é Fernando Sabino, que possui, segundo ele, “o papo escrito mais sedutor que se possa imaginar” (HOUAISS, 1996, p. 65). É interessante observar que Houaiss enfatiza em seu ensaio o caráter oral na escrita de Fernando Sabino como uma das maiores características do prosador mineiro. Ele ressalta as condições para se perceber o brilhantismo do escritor:

Para isso, há que haver, melhor, descobrir os mil andaimes literários com que ele menta a sua matéria, a fim de que ela consiga ser esse prodígio de simplicidade e cursividade que aparenta: embustes de um feiticeiro da palavra, duplo gozador da palavra. (HOUAISS, 1996, p. 65).

Ele considera raro alguém que “maneje com mais amenidade a língua e as ideias” como Fernando Sabino faz. O crítico também considera raro alguém que “pratique com mais arte a arte da distensão – de pensar e dizer” (HOUAISS, 1996, p. 65). Houaiss admira-se com o modo de narrar que, “sendo tão claro, tão lúcido, tão fluente, tão acessível, tão desarmado, tão pacífico, tão doce e (aparentemente) espontâneo, seja tão pertinente, contundente e denunciador” (HOUAISS, 1996, p. 65-66). Em um texto profundamente elogioso, ele considera Fernando Sabino “o mestre que dialoga intensamente”, por vezes “epigramático”, pois seu texto nada tem a tirar e nem por; “seu português é de normatividade e modernidade exemplares” (HOUAISS, 1996, p. 66):

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tangenciando a tristeza, o desânimo, a miséria, a dor e a morte, sem negá-las ou embelezá-las, é e faz-se o esperançado pudico, que crê que mesmo assim há razão para tentar prosseguir e quando não, sorrir – se, rindo, já não se castigam os costumes. São por isso, suas crônicas, ou-que-nome-tenham, de um toque personalíssimo. (HOUAISS, 1996, p. 66).

O ensaísta termina seu texto ressaltando que a prosa de Sabino é de um “altruísmo transfigurado”, em um “jogo obsessivo de si mesmo”, que traz “em cada linha e que dá continuamente a mão solidária ao leitor ou à leitora em singular calor humano” (HOUAISS, 1996, p. 66). Edilberto Coutinho, em ensaio publicado em 1983, percorre os caminhos literários de Sabino. Para ele, mesmo se Fernando Sabino não tivesse escrito novelas, contos e romances — “inclusive o clássico O Encontro Marcado, sua excelente produção de cronista colocar- lhe-ia na história da literatura brasileira. Como é o caso de Rubem Braga” (COUTINHO, 1996, p. 67). Coutinho ressalta que não deseja discutir gêneros literários:

Já dizia Mário de Andrade, numa carta ao então adolescente Sabino, em 1942 – “é simplesmente latrinária”. São outros valores que devem prevalecer, na análise da obra, e não, fundamentalmente, o enquadramento na camisa-de-força dos gêneros. (COUTINHO, 1996, p. 67).

Para Coutinho, pode-se dizer que, na literatura do prosador mineiro, “está presente o estilo ágil, bem-humorado, que, apesar do amor e da piedade, revela, por vezes, um ironista contundente dos desacertos da vida” (COUTINHO, 1996, p. 67). Ele considera a obra de Sabino como “um consolo para os aflitos” (COUTINHO, 1996, p. 67), da mesma maneira como Sabino definiu a poesia de Carlos Pena Filho5. Diante de um cotidiano “de sufoco e misérias”, Sabino oferece, na concepção de Coutinho, “o castigo ameno do riso, assim instaura a sátira como um dos remédios contra as mazelas do mundo” (COUTINHO, 1996, p. 67). O ensaísta ressalta que a poesia surge às vezes no romance de Sabino, mesmo que em um pequeno detalhe, “até como que a contragosto do autor” (COUTINHO, 1996, p. 67). Coutinho elogia o modo como o escritor mineiro, no geral, compõe sua prosa:

(...) Sabino fala de gatos e de sapatos, de Hernest Hemingway e de Fidel Castro, de noites nova-iorquinas e de dias cariocas, de Gabriel García Márquez (o que faz um escritor?) e, sobretudo, dele mesmo. Por tudo isto, nem sempre temos o riso ou o sorriso, mas também comparecem a essas páginas algumas lágrimas – inclusive

5 Carlos Souto Pena Filho, poeta pernambucano, nasceu no Recife no dia 17 de maio de 1928. Publicou vários de seus sonetos em jornais pernambucanos e colaborou com jornais como o Diário de Pernambuco, Diário da Noite, Folha da Manhã, porém marcou sua atividade jornalística, principalmente, no Jornal do Commercio, onde dirigiu a seção Literatura, mais tarde intitulada Rosa dos Ventos.

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“vividas pelo autor, neste mundo de Deus” – sempre de ternura, contudo. (COUTINHO, 1996, p. 67).

Coutinho conclui seu ensaio novamente exaltando a escrita do prosador mineiro: “Ler (e reler) Fernando Sabino sempre faz bem. Faz reconciliar com a literatura e com a vida. Pois de ambas ele sabe muito e, generosamente, reparte o que sabe com todos nós” (COUTINHO, 1996, p. 68). Joel Pontes expõe uma das características do romance que vários críticos apontaram e ainda irão apontar: “A primeira expressão estilística de Fernando Sabino frente ao seu assunto é a utilização da frase de orações curtas” (PONTES, 1996, p. 56):

Os períodos apresentam uma ou duas pausas de respiração apenas, quando não são períodos simples. O isócolo torna a prosa nervosa e veloz, exprimindo o tom geral de personagens que têm pressa de viver, ardor de realizar alguma coisa, dentro do marasmo geral. (PONTES, 1996, p. 56).

É importante observar que o crítico analisa a estrutura textual do romance O Encontro Marcado. Ele cita o isócolo (período composto de dois segmentos iguais ou sintaticamente simétricos) presente na estrutura, que faz com que o ritmo da narrativa acompanhe o próprio ritmo do protagonista. Pontes ressalva que esse ritmo por ele explicitado aparece em momento específicos do romance, como nos trechos de “acabrunhamento”:

Aí se misturam narrativa e monólogo desesperado, em períodos mais plácidos como se, fora do nervosismo da vida material, voltando-se para dentro de si mesmo, o homem necessitasse de pensamentos lentos, portanto mais profundos. (PONTES, 1996, p. 57).

O crítico também explicita a mudança estilística no romance quando ocorre uma “reviravolta ideológica” por parte do protagonista:

O personagem já não fala: pensa, entra em si mesmo, desliga-se dos encontros superficiais, do materialismo “sem problemas”, dos amigos falsificados pela vida. Paralelamente, o estilo, de estacato passa a ligado, os períodos ganham mais pausas de respiração. (PONTES, 1996, p. 57).

Joel Pontes (1996) adverte que esses momentos são exceções no romance. O recorrente, segundo o crítico, é a narrativa breve e “a linguagem documentária da época”. Na sua concepção, “as figuras de linguagem quase se resumem às das relações objetivas – metonímia”. O crítico também toca na questão do “artesanato literário”, termo que utiliza para explicitar que a preocupação com a técnica se sobressai às minúcias. O que se mostra

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interessante é que o crítico faz uma comparação a partir das técnicas usadas por Fernando Sabino para compor seu romance: “Neste ponto já começamos a surpreender uma animação que chamaremos de cinematográfica, principiando pelo diálogo, rápido com a sucessão de fotogramas” (PONTES, 1996, p. 57). Pontes (1996) associa o cinema ao romance de Sabino pelo aparecimento contínuo de diálogos na obra. A rapidez com que os diálogos se desenvolvem ocasiona o que seria “a sucessão de fotogramas”. A “interseção de diálogos” e o desejo que Eduardo Marciano nutriu ao querer escrever um romance é um exemplo, segundo Pontes (1996), da “clarividência” com que Fernando Sabino escreve.

aquele fluir quase biológico de sua prosa (W. Kayser) não é produto de um instintivo. Presidindo suas qualidades naturais de ficcionista, há um plano estabelecido e cumprido que o próprio romancista se dá à ironia de revelar. (PONTES, 1996, p. 57).

Joel Pontes (1996) também associa o personagem Eduardo Marciano com a linha de personagem de Luigi Pirandello6:

Também isso [a ironia] acontece quando começamos a surpreender a linha pirandelliana de um personagem e mais adiante o romancista se refere displicentemente a Pirandello como a indicar talentos de jogador de xadrez, prevendo a jogada do crítico. (PONTES, 1996, p. 57).

Ao finalizar, Pontes (1996) é um dos que ressaltam a natureza inovadora do romance de Fernando Sabino, acompanhando os que o consideram modernista. O crítico ressalta que seria

impossível comparar O Encontro Marcado aos romances que estão sendo publicados no Brasil. Seu lugar é solitário, pela técnica e pelos conflitos humanos. É obra de protesto, angústia, raiva, corajosa experiência de romancista que retrata o que há de mais comum no entusiasmo dos jovens literatos provincianos e o que há de mais vulgar na mente da burguesia carioca — ao contrário, com a inteligência e a lucidez que só muito poucos podem conservar inatingíveis. (PONTES, 1996, p. 57, grifo nosso).

6 Luigi Pirandello foi um grande renovador do teatro, com profundo sentido de humor e originalidade. Ele tornou-se célebre após o êxito com "Assim é, se lhe parece" (1917), e foi consagrado com "Esta noite se representa de improviso", "Cada um a seu modo" e "Seis personagens à procura de um autor", três peças que deram origem ao chamado "metateatro" ou "teatro dentro do teatro". Inovador do drama moderno, o autor adotou como temas centrais a volubilidade humana e as coincidências entre a vida e a ficção. Luigi Pirandello ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1934.

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Pontes não considera possível comparar o romance de Sabino com outros produzidos na mesma época no Brasil. Com isso, ele qualifica esse diferencial do romance como positivo para Sabino devido à inovação da escrita presente em sua narrativa. Ao observar as datas de publicação dos ensaios aqui referidos, observa-se que foram escritos em diferentes décadas do século XX. Percebe-se, no decorrer dos tempos, as mudanças na maneira de conceber e interpretar uma obra. Nesse caso, nota-se que os acentos críticos recaíram em diferentes aspectos do romance e da obra de Sabino como um todo. Tais variações oferecem ao leitor uma ampla visão das obras que se eternizaram, como parece ser o caso de O Encontro Marcado. Pode-se dizer que essas variações envolvem uma visão do momento em que foram escritas, uma vez que as interpretações abrangem novos contextos teórico-histórico-sociais. Percebe-se no ensaio de Fábio Lucas, de 1983, que a ênfase foi dada ao eixo humor-temor que permeia as produções de Fernando Sabino, além da reflexão do romance no século XX. Já alguns anos antes, em 1976, Antonio Houaiss se pautou na questão da oralidade na escrita do romance de Sabino e enfatiza em sua análise que a conversa tem tradição desde Sócrates. Otto Lara Resende, em 1975, tratou da “agilidade”, característica marcante na obra de Sabino, mostrando que isso vai além do estilo de escrita do romancista. Tristão de Athaíde, em 1956, abordou o romance de Sabino como uma passagem da euforia à angústia, refletido uma extrema sensibilidade estética e de uma desesperadora versatilidade. Augusto Frederico Schmidt, que também escreveu no mesmo ano, ressaltou o aspecto moderno e trágico presente no romance e definiu Eduardo e seus amigos como “heróis” em meio à boemia. Edilberto Coutinho, em 1983, destacou o caráter satírico e irônico que pode ser encontrado na prosa do escritor mineiro, assim como Joel Pontes ressaltou a ironia de se considerar O Encontro Marcado como sendo de fácil leitura devido às características da escrita. Pontes também comparou a escrita do romance com as técnicas cinematográficas devido aos diálogos presentes na obra. Apesar de ressaltarem pontos fundamentais das obras de Fernando Sabino, os críticos e ensaístas não deixaram, em algum momento, de ressaltar o tom de elogio da obra do escritor mineiro e, alguns deles, de tratar do aspecto do existencialismo cristão presente no romance. Além desses estudos que ressaltam os aspectos gerais do romance ou da obra de Fernando Sabino, encontram-se opiniões como as que aparecem na edição comemorativa de

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30 anos7 do romance, que salientam determinados elementos específicos da obra, a saber: aspecto inovador do romance, aspectos históricos do livro, a construção dos personagens, o diálogo, as frases curtas, o tempo, etc. Esses estudos, de certo modo, confirmam e repetem alguns apontamentos que os ensaios aqui já apresentados mostraram. Isso se confirma, por exemplo, em relação aos críticos que consideram o romance inovador, opinião largamente desenvolvida pelos ensaístas aqui apresentados. Nessa mesma direção vão os comentários de (1986), que credita ao romance “qualidades técnicas inovadoras”. Ele afirma que Fernando Sabino “escreveu, com O Encontro Marcado, um romance admirável e, em muitos aspectos, inovador. Mostrou-se lúcido e rigoroso na maneira de situar-se historicamente e, quanto à técnica, inventou um novo ritmo romanesco” (PORTELLA, 1986). Outros leitores de Sabino apontam para a importância histórica do livro. Esse parece ser o caso de Affonso Ávila (1986). Para o autor, a partir desse romance, Fernando Sabino “passaria sem nenhuma concessão a formar a primeira linha do ficcionismo” (ÁVILA, 1986) brasileiro. Ávila pergunta: “Que contribuição mais notável poderia trazer à literatura nova esse destacado representante da geração responsável, entre nós, por aquilo que alguém já definiu como ‘desumanização da arte’?”8 (ÁVILA, 1986). E ele mesmo responde: “Dando- nos um livro rico de elementos humanos, numa expressão depurada de acessórios, o romancista montanhês prova aos seus companheiros que ficção não é somente linguagem no seu sentido estreito de construção e criação verbal” (ÁVILA, 1986). Ávila (1986) discute o caráter moderno da escrita de Fernando Sabino dentro do contexto das artes produzidas no século XX (as artes de vanguarda), que contrariam a arte que representava a vida cotidiana, ou seja, a arte “humanizada”. Entende-se aqui que Affonso Ávila defende o romance de Fernando Sabino, considerando-o “rico em elementos humanos” e, mesmo tendo sido escrito no século XX, O Encontro Marcado não entraria no contexto de uma “novidade da arte” impopular junto ao público.

7 Os textos críticos apresentados na Edição Comemorativa do trigésimo aniversário de O Encontro Marcado, de 1986, não são paginados e nem seguem a ordem de paginação do livro. Nas citações aparecerá apenas o ano de publicação da obra.

8 A obra A desumanização da arte, dividida em 13 seções, foi publicada originalmente em 1925; nestas seções breves José Ortega y Gasset discute a novidade da arte não figurativa e tenta torná-la mais compreensível para um público muito paralisado com as formas tradicionais de arte. É um livro no qual o autor analisa o percurso da arte desde o período romântico até as vanguardas do século XX, tentando encontrar razões para a impopularidade das novas artes junto do público (SILVEIRA, 2010, p. 1).

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Paulo Mendes Campos, em texto intitulado “Retrato em Claro-Escuro”, publicado primeiramente em 1975, ressalta que o maior sucesso de Sabino é seu romance O Encontro Marcado, com inúmeras edições no Brasil e que também foi publicado em países europeus. Ele considera que “é no romance que se revela sua inquietude e sua face noturna” (CAMPOS, 2003, p. 12). O autor mostra que, no jornalismo, Sabino é “um dos criadores dessa ágil (e válida) sociologia de bolso, que ele diz ter aprendido nas páginas da revista The New Yorker, mas que na verdade reflete a vivacidade de seu olhar, atento às tramas dos pequenos mundos” (CAMPOS, 2003, p. 11). Assim também pensa Guilhermino César que, em seu ensaio “Nascimento de um Escritor”, publicado primeiramente em 1981, no qual analisa a obra do prosador mineiro, considera que:

O melhor desse escritor está em O Encontro Marcado (1956) e O Grande Mentecapto (1979). Ambos são romances mineiros: o tema, a paisagem, a atmosfera interior das criaturas, tudo é ali nitidamente mediterrâneo. E parece-me até, se não exagero, que nessa vertente psicológica inerente ao terruño se há de achar agora e no futuro o que de mais belo escreveu até hoje. (CÉSAR, 1996, p. 19, grifo do autor).

Guilhermino César ressalta o ambiente mediterrâneo dos romances mineiros de Sabino, o que nenhum crítico havia ainda mencionado ao analisar as obras do romancista. Outro aspecto importante discutido pelos críticos é a composição das personagens, também considerada por muitos como inovadora. Pode-se dizer que qualquer abordagem ao romance deve ser feita a partir de Eduardo Marciano, que, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista da apreciação humana, é o protagonista do romance e também de sua história. José Marianno Carneiro da Cunha (1986) dá uma ênfase maior ao personagem Eduardo Marciano, mas é importante não desconsiderar os outros personagens, principalmente porque os outros ao redor de Eduardo também vão auxiliar ao definir o próprio protagonista:

Qualquer abordagem que se faça do “O Encontro Marcado” será, forçosamente, a partir de Eduardo Marciano, que, tanto do ponto de vista técnico, como em função de uma apreciação humana é o ponto axial, o catalizador de todos os elementos do romance. O destino de Eduardo enfeixa em um nódulo toda uma geração, toda uma concepção de vida. Creio que a temática que melhor define Eduardo e o seu mundo, e talvez mesmo englobe todas as outras, seja a existência como mera competição lúdica. (CUNHA, 1986).

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O escritor José Carlos de Oliveira (1986) afirma que na obra os personagens aparecem

surgindo no livro como se desdobrassem uma esquina e rapidamente desaparecendo sob o turbilhão das novas anedotas e pequenos novos dramas, o protagonista Eduardo Marciano estando para a realidade como uma câmera fixa em relação aos planos que se sucedem diante dela. (OLIVEIRA, 1986).

Joel Pontes (1986), aparece novamente nessa edição comemorativa ao analisar os personagens centrais do romance e ressalta que Eduardo Marciano é o que importa. As demais existem para fazê-lo existir. Segundo Pontes,

Nota-se, logo às primeiras páginas, que Eduardo Marciano é o personagem central de “O Encontro Marcado”. À medida que a leitura se desenvolve, concluímos mais do que isto: é o personagem que importa. Os outros existem para fazê-lo existir, a tal ponto que o romance poderia ter sido ou talvez mesmo devesse ter sido escrito na primeira pessoa. São desdobramentos de Eduardo. Entre eles e Eduardo há uma identidade tão perfeita que aquilo que um diz, qualquer dos outros poderia dizer. (PONTES, 1986).

Ainda sobre as personagens é a opinião de Luiz Martins (1986). Para ele

deliberadamente, Fernando Sabino misturou tudo, fazendo um coquetel de personagens; numa só figura, sintetizou traços de duas ou três; deformou algumas; em suma, não retratou ninguém. Vivos, reais, autênticos, são o cenário, o tom, a atmosfera, os gestos, as atitudes, as palavras. E rigorosamente verdadeiro é também o drama que relata esse livro. (MARTINS, 1986).

O “drama” vivido por Eduardo Marciano fica mais evidente na segunda parte do romance, especificamente, no capítulo dois, “O Afogado”, momento em que o personagem começa a rever sua vida no Rio de Janeiro, seu casamento e seu sonho de se tornar um escritor:

EM ALGUM LUGAR DENTRO da noite um telefone toca sem parar, mas ele não ouve nada. Vai caminhando com decisão, prosseguindo na sua busca. Atravessa ruas, dobra esquinas, sobe escadas, bate em portas, entra, pergunta, olha; sai, torna a andar. Procura entre os rostos que passam, que riem, que se mexem, e se escondem atrás de outros rostos. Na esquina há um letreiro luminoso, mas basta, já esteve aqui, não há cabaré, nem dancing, nem botequim, nem pensão que não tenha esquadrinhado — nuns dizem que não, noutros dizem que sim mas vão ver estão enganados, noutros não dizem nada. Portas que não se abrem, bocas que não se abrem, olhos que nada viram, uma mesa e quatro cadeiras, cerveja, vestidos de cetim, seios e axilas, o garçom eunuco não sabe de nada, a gorda de olheiras nunca ouviu falar, é uma procura inútil, dez anos já se passaram. (SABINO, 2011, p. 233).

Desde o título desse capítulo, “O Afogado”, o drama do personagem se revela. Trata- se daquele sujeito que tenta sair de uma situação difícil. O narrador mostra um número

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significativo de lugares por onde ele passa e não consegue se encontrar, mostrando a inutilidade da procura e o tempo passado. O drama de Eduardo é, em certa medida, como dizem alguns críticos, o de toda uma geração. É importante perceber que a palavra “drama” tem origem grega, vem do verbo grego dráo que significa “fazer”, tem sua ênfase na ação. Isso mostra que o que é destacado no drama é a representação, a encenação. Pensa-se aqui que Luiz Martins (1986) deve ter associado a vida de Eduardo a um drama pelo fato de ela ser movimentada, agitada, assim como o próprio percurso da narrativa e seus diálogos. Alguns analistas apontam, como se vê a seguir, que Sabino não usa o modo clássico de narrar as ações dos personagens. Essa comparação da obra de Sabino com o drama está relacionada à própria estrutura do romance, como aponta Moisés (1992): “Estruturalmente, o romance caracteriza-se pela pluralidade da ação, ou seja, pela coexistência de várias células dramáticas, conflitos ou dramas” (MOISÉS, 1992, p. 452). Mais do que isso, pode-se perceber, ainda, que a construção do romance obedece a certa estrutura dos textos dramáticos, marcados pelos diálogos e ações, o que remete aos textos teatrais. Além disso, Joel Pontes já havia anteriormente associado o personagem Eduardo Marciano com a linha de personagem do dramaturgo Luigi Pirandello. Outro aspecto muito discutido pelos textos que tratam da obra do autor é a escrita do romance. Uma das opiniões que entram nessa questão é aquela emitida por Dalton Trevisan (1986), que elogia a construção do diálogo no romance. Para ele: “o diálogo é fabuloso porque funciona em toda linha. Não carece escolher, é pegar qualquer um, de olhos fechados: aqui há sabedoria, como se diz na Bíblia” (TREVISAN, 1986). O autor equipara Sabino a Flaubert e sintetiza que seu romance é uma espécie de educação sentimental. Para Trevisan, Sabino retrata “costumes da província e da cidade” com “crônicas brilhantes” e “enaltece as cenas de boemia”, a “lucidez implacável”, o “policiamento das emoções” (TREVISAN, 1986). Também salientando a construção dos diálogos, o escritor Temístocles Linhares (1986) considera que

O Encontro Marcado é o que se pode chamar um romance de relações. O segredo do livro está nisso, uma vez que são essas relações que dão origem ao diálogo. No diálogo é que, realmente, reside a força do romance. Em Fernando Sabino, o diálogo é a manifestação de criação autêntica, (...) Arma insidiosa de sua arte, o diálogo nele joga com parceiros de carne e osso, que se situam num plano real e vivo, em alguma parte do limite flutuante que separa a conversação da subconversação de Sarraute. Expresso de maneira mais simples e necessária, ele preenche a insuficiência e o vago daqueles movimentos interiores, das incertezas e contradições daquele grupo de moços amantes da vida literária (...) (LINHARES, 1986).

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Outro que vai salientar os efeitos do diálogo no romance de Sabino é Carlos Dante de Moraes (1986), ao ressaltar a mínima utilização da descrição na obra e a sua extensão que se reduz ao mínimo possível. Ele enfatiza a objetividade na linguagem das personagens que, ao longo da obra, pode parecer até recurso próprio do cinema, como foi também apontado por Joel Pontes:

Nas páginas de O Encontro Marcado os traços descritivos são reduzidos ao mínimo. Compõem-se quase exclusivamente de diálogos e solilóquios, interseção de momentos diferentes em cada página, imprimindo-lhe uma animação e vivacidade que lembram a técnica cinematográfica. (MORAES, 1986).

Outro crítico a elogiar a técnica usada pelo escritor mineiro, é José Paulo Moreira da Fonseca (1986), ao afirmar que Fernando Sabino “recolhe da ação os fragmentos essenciais” e “não raro, subitamente, passa de um qualquer ao subsequente”, intensificando “o tempo do romance”, que se ajustará nos “momentos nevrálgicos”. O pesquisador define o romance como sendo de “prosa rápida, de frases curtas, que congrega o diálogo e o monólogo”.

A técnica do romance em foco é o primeiro dado que recruta a sensibilidade do leitor. Longe estamos da narração “clássica” que tendia para um contínuo, que preocupava captar a ação, ou, ao menos, longos seguimentos da ação, numa sequência semi-inconsútil. Fernando Sabino repudia sistematicamente esse modo de contar. Da “ação”, ele recolhe os fragmentos essenciais e não raro abruptamente passa de um qualquer ao subsequente, intensificando, dessarte, o “tempo” do romance, que se pautará nos momentos nevrálgicos. Estamos diante de uma prosa rápida, a se valer de frases curtas, e que congrega o diálogo, o “monólogo”, a descrição e a narrativa sumárias numa “politonacionalidade” quase constante, operando no setor “estilo” a ágil mescla do “humano” com a “paisagem”. Essa maneira de levar adiante o assunto mantém um infatigável interesse no leitor, um “vivace” na música, que nos arrasta insensivelmente. (FONSECA, 1986, grifo nosso).

A exemplo da observação de Fonseca (1986) pode-se encontrar em vários momentos do romance passagens que ilustrem um “vivace” no romance do escritor mineiro:

— NA NATUREZA nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.— Um corpo mergulhado num líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao peso do volume do líquido deslocado. — Não é fluido, não? — Não: é líquido. Líquido e fluido é a mesma coisa. — Olha o bobo. Líquido e fluido a mesma coisa? Discutiam: — Manteiga é sólido, líquido ou gasoso? — Então me diga quem foi Laplace. — Laplace foi o da banheira. — Da banheira foi Arquimedes, seu. — E o da maçã? — Da maçã foi Newton.

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— Então quem foi Laplace? Diga você. — Foi o da gota de azeite. (SABINO, 2011, p. 23-24).

Hélio Pólvora (1986) também tratou sobre o diálogo e outros elementos da composição do romance. Ele elogia o domínio da técnica do diálogo, a exatidão da entrada das personagens em cena. Ele considera que Sabino

domina perfeitamente a difícil arte do diálogo; prepara com exatidão a entrada das personagens em cena – e a longa conversa de “O Encontro Marcado” flui com naturalidade. E isso é importante, pois muito poucos romancistas brasileiros sabem dialogar, e o que temos em larga escala é o monólogo marcando a natureza introspectiva de um povo na aparência extrovertido. Frases curtas, estilo nervoso e inquieto de repórter ou de cronista, marcam o romance do prosador mineiro. Ele dá a impressão nítida de angústia, de quem quer esgotar logo o assunto, livrar-se da carga dramática que carregou durante tanto tempo sobre os ombros. O romance tem um ritmo de “andante” e não há quem, ouvindo sua marcha, desista de escutá-la, com os nervos tensos, até o final apoteótico. (PÓLVORA, 1986, grifo nosso).

Corrobora com essa posição de Pólvora (1986) o trecho a seguir:

Passou o resto da noite com Térsio, pendurado ao telefone, tentando arranjar lugar num dos primeiros aviões. Conseguiu reserva para as nove da manhã. Acordou Antonieta: — Tenho certeza de que ele morreu. Senti uma coisa... — Quer que eu vá também? – perguntou ela aflita. — Não, você tem medo de avião. Fica em casa de seu pai. —Tenho medo, mas sendo preciso – ela insistiu, já inteiramente acordada. Abraçou-o, penalizada: – Gostaria de fazer alguma coisa por você. — Faz um café. — Se for preciso, você me avisa que eu vou. (SABINO, 2011, p. 207).

Nesta cena observa-se que a fala do narrador foi realmente curta, a entrada do personagem em cena foi direta e a objetividade está presente nas falas breves. Todos esses comentários, que salientam a técnica dos diálogos no romance, ressaltam um aspecto fundamental da estrutura romanesca da obra de Sabino: a sua feição dramática, aqui no sentido de sua aproximação com as características do texto teatral. Por isso pode-se concordar aqui com Pólvora (1986) quando afirma que Sabino não é daqueles que “apenas escrevem monólogos”. Ao se analisar as duas partes do romance e seus vários capítulos, nota-se, na maioria das vezes, grande recorrência dos diálogos entre as personagens. Fica nítido o motivo pelo qual vários leitores e críticos do escritor ressaltam essa técnica na obra e justifica-se a percepção dos leitores quanto à agilidade da ação narrativa, que evidencia esse aspecto dramático da obra. Assim, as técnicas de escrita apresentadas pelo escritor tanto aproximam o

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romance das artes cinematográficas, como salienta Moraes (1986) e Pontes (1986), como o predomínio do diálogo aproxima-o, também, do texto teatral. Deve-se, ainda, destacar nesses comentários as noções de andamento da narrativa, expressa pelos críticos e leitores de Sabino. Para alguns, como Pólvora (1986), a narrativa é um “andante”; para outros, como Fonseca (1986), um “vivace”. Na linguagem musical, a velocidade da execução de uma composição é chamada de “andamento”. O andamento é indicado no início da música ou de um movimento e é apontado por expressões de velocidade no idioma italiano. “Andante” é uma dessas expressões e significa “um moderado, nem rápido e nem lento”, enquanto que o “Vivace” significa “um pouco mais acelerado que o Allegro (andamento veloz e ligeiro)”. Portanto, Pólvora (1986) considera o romance de Fernando Sabino com uma velocidade moderada, enquanto Fonseca (1986) considera-o muito veloz e ligeiro. Pensa-se que, ainda que se encontrem vários trechos em “Andante”, o que se sobressai é o “Vivace”. Mesmo o uso do diálogo sendo uma técnica recorrente no romance, é importante ressalvar que O Encontro Marcado não é um livro composto apenas por diálogos, ou seja, não se devem desconsiderar as outras técnicas que estão presentes na obra e que também a constituem. Outro elemento composicional muito destacado pelos críticos é o uso de frases curtas, que constituem o estilo nervoso e inquieto do romance. Pode-se observar nessas características a aproximação do romancista ao cronista: 9

— Térsio ficou de aparecer – disse Eduardo. — Ele arranjou o tal emprego? — Não sei. Disse que precisava muito falar comigo. Deve estar sem dinheiro. — Grande novidade. — Pode ser outra coisa também, Antonieta. Não sei por que essa má vontade com ele. — Não tem perigo: ele se arranja. Calaram-se, ficaram olhando o mar. Estavam no bar da praia onde faziam ponto quase todas as noites, tomando chope ao ar livre com sua nova roda de amigos. Térsio, um rapaz de Belo Horizonte, viera tentar a vida no Rio, Eduardo procurava ajudá-lo. (SABINO, 2011, p. 181).

Observa-se que tanto a fala dos personagens quanto a intervenção do narrador são constituídas das mencionadas “frases curtas”, o que oferece à cena o estilo rápido, agilidade na composição da leitura e transparece uma escrita marcada pela rapidez.

9 Como já se viu nas críticas apresentas anteriormente, essa aproximação é recorrente nas discussões a respeito do autor e de seu romance e será objeto de estudo no Capítulo 2.

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Talvez essa característica singular da obra se dê pela técnica do livro que, segundo Antonio Olinto (1986), contém uma “firme estrutura” e “os saltos no tempo aparecem, ali, de modo tão natural – como na frase “de repente passaram-se seis meses” – que o leitor pode acompanhá-los com espírito de integração, como se estivesse vivendo aquela série de sofrimentos” (OLINTO, 1986, grifo nosso). Se a afirmação de Olinto apresenta o modo como o narrador marca o tempo para o leitor, é possível notar outra maneira de a dimensão temporal aparecer no romance. Percebe- se, diferentemente do que afirma Olinto (1986), ao se voltar a atenção para o passar do tempo vivenciado pelo personagem, que, na narrativa da juventude, o tempo parece ser mais rápido, como se verifica no capítulo “O Escolhido” (SABINO, 2011, p. 111-180); e na maturidade, o tempo fica mais prolongado. Isso se vê de modo claro no capítulo “O afogado” (SABINO, 2011, p. 233-282). Ao falar sobre o tempo, (1986) concorda com Olinto (1986) no que diz respeito à rapidez com que o tempo decorre, embora ela parta, para falar desse aspecto, não do tempo das personagens, mas do tempo do leitor quando afirma: “É angustiante a rapidez com que ele [o tempo] decorre – sem que se possa fazer nada” (LISPECTOR, 1986). Sua opinião centra-se, portanto, na sensação do leitor que se angustia com o drama daquela geração e que, de certo modo, queria vivê-lo de outro modo:

O livro me deu grande tristeza. Eu não queria que fosse tão assim, tão rolando para a salvação ou para a perdição, e tudo por questão de pendurar-se um segundo a mais ou a menos, um minuto, tudo às vezes questão de mão recusada ou dada, tudo às vezes por causa de um passo a mais ou a menos. (LISPECTOR, 1986).

Como visto, O Encontro Marcado já foi aproximado ao cinema, ao drama, à crônica, a movimentos musicais mais ou menos velozes. Em seu comentário sobre o livro, Carlos Lacerda (1996), compara-o, por sua vez, a uma epopeia ao apontar que não se trata de apenas um encontro, mas de vários. Ele ressalta que, no romance, a multiplicidade explode “com estrondo e festejo ou gemido de bicho ferido” (LACERDA, 1996, p. 55). Isso se faz porque Lacerda (1996) compara o livro de Sabino com a Odisseia, de Homero, e o percurso de Eduardo Marciano ao de Ulisses “nas ilhas, nos botequins, nos lupanares, nos fins de festa e nos atritos sem rumo” (LACERDA, 1996, p. 55). Ao refletir sobre os percursos de Ulisses e Eduardo, percebe-se que Ulisses está voltando para casa enquanto Eduardo também tem um rumo, é “o encontro” que ele está esperando desde “a partida”. Que relação teria esse encontro pretendido por Eduardo com

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aquele vivido por Ulisses e Penélope? Ao relacionar Ulisses e Eduardo, percebe-se que o primeiro saiu para a guerra, ficou muitos anos fora e era esperado por sua mulher, Penélope. Já Eduardo quer sair de casa, com toda sua insatisfação com o mundo, rumo ao seu encontro tão esperado durante toda sua vida. Comparar esses dois personagens considerando seus destinos, seus caminhos, seria colocar em questão as diferenças entre os gêneros narrativos e os percursos de seus protagonistas. A finalidade do encontro de um e de outro parece ser muito distinta, então, poder-se-ia questionar se não seria essa uma comparação exagerada. Para tentar compreender a comparação de Carlos Lacerda, é necessário recorrer ao conceito do termo epopeia. A epopeia é caracterizada como um poema amplo, de grande extensão, cuja narração descreve e relata os acontecimentos, ações e feitos de um herói histórico ou de um sujeito célebre. Ela representa, dessa forma, uma sociedade ou um grupo social específico. Na epopeia também há sequência de acontecimentos incomuns, fenomenais ou de ações honrosas, que provocam grande admiração. Já o romance “é uma forma literária relativamente moderna”, como aponta Silva (1997):

Embora na literatura helenística e na literatura latina apareçam narrativas de interesse literário (...) o romance não tem verdadeiras raízes greco-latinas, diferentemente da tragédia, da epopeia, etc., e pode considerar-se como uma das mais ricas criações artísticas das modernas literaturas europeias. (SILVA, 1997, p. 672).

A primeira diferença que se pode constatar é a época a que pertence o romance, ou seja, a modernidade, que se distancia da antiguidade clássica. A segunda, é que Eduardo Marciano é considerado um herói moderno, diferente de Ulisses, um herói clássico: aquele que é corajoso e enfrenta todos os obstáculos com magnitude e destreza. O herói do romance se difere do herói clássico, como aponta Silva (1997): “Em dados contextos socioculturais, o escritor cria os seus heróis na aceitação perfeita daqueles códigos: o herói espelha os ideais de uma comunidade ou de uma classe social, encarnando os padrões morais e ideológicos que essa comunidade ou classe valorizam” (SILVA, 1997, p. 700). Por esse prisma, pode-se considerar que por meio de Eduardo Marciano são mostrados conflitos, insatisfações e questionamentos que refletem uma sociedade já decadente. Esses autores que aproximam o romance à tragédia e à epopeia parecem aproximá-los dos textos clássicos e fundadores. As motivações críticas são, portanto, distintas e levam o romance a outros patamares. Preocupado com o modo de composição do romance, de forma geral, Haroldo Bruno (1986), defende que O Encontro Marcado é um romance de ideais, “sem ser de tese”. Para

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ele, o romance é uma espécie de “tragédia do escritor da infância à mocidade”. Para o crítico, o romance de Sabino é “o triunfo de uma concepção existencialista”, dentro da corrente do “existencialismo místico”. De acordo com Bruno (1986), o escritor mineiro escreveu sobre o “desentendimento essencial do homem”, “a contradição e a incoerência das coisas”, a “implacabilidade do destino”. Segundo o crítico, é “a narração de hábitos e costumes da sociedade atual”. Importante observar que novamente um crítico ressalta O Encontro Marcado como parecido com um texto clássico, a tragédia. O crítico João Clímaco Bezerra (1986), define que “o pequeno drama do romance se estabelece entre a responsabilidade, a vaidade e o medo de derrota, e assim atinge a perfeição sem exagero”. Inicia-se com altos períodos na descrição das “pequenas aventuras juvenis”, “das primeiras reações do adolescente em face dos profundos mistérios da vida”. Ele elogia, ainda, “as cenas de sensações psicológicas desse drama interior”.

Atinge o sr. Fernando Sabino altos momentos na descrição das pequenas aventuras juvenis, nas primeiras reações do adolescente em face dos profundos mistérios da vida. As cenas das sensações psicológicas do narrador diante da piscina e da multidão, o pequeno drama que se estabelece entre a responsabilidade, a vaidade e o medo de derrota, atinge, sem exagero, a perfeição. Houve, para elas, a vivência que faz o romance e a memória, no caso, atuar como cristalizadora de uma realidade ideal. (BEZERRA, 1986).

Se alguns se preocupam com os personagens, outros com o tempo, outros com a construção do diálogo, há que se perguntar: como Sabino se relaciona com a realidade ao escrever seu romance? João Etienne Filho (1986) pensa que a realidade está transfigurada em O Encontro Marcado. Para ele, o romance é composto por fatos acontecidos, “atribuindo-os a personagens fictícios” (ETIENNE FILHO, 1986).

Como todo romancista que se preza, Fernando Sabino colheu seus seres à vida real. Mas, como todo romancista de talento, transfigurou a realidade. Personagens reais, fez ele moverem-se em ambientes de pura fantasia. Fatos acontecidos, atribuiu-os a personagens fictícios. Agora, em uma coisa Fernando Sabino tem razão: o valor de seu romance não tem de ser julgado em função desta maior ou menor fidelidade a fatos e pessoas reais. Valerá, ou não valerá, por si mesmo. A meu ver vale. Muitíssimo, (ETIENNE FILHO, 1986).

No capítulo posterior deste estudo, percebe-se, no próprio depoimento do autor, que Sabino tem como matéria literária sua própria experiência. O jornalista e escritor Henrique Pongetti (1986) concorda que O Encontro Marcado seja “um romance de uma geração encarnada na pessoa de Eduardo Marciano”; a geração do

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protagonista está muito próxima dos olhos de quem lê, e de seus tormentos e problemas. Segundo Pongetti (1986), é uma geração “podre de literatismo” que Sabino “retrata magistralmente, taquigrafando-lhe os diálogos puxados a substância e estéreis, historiando-lhe o niilismo cotidiano, patente nas molecagens com que punham a caminho do desespero o delegado da cidade”. Para ele, “o romance é o estupendo retrato de uma geração”. É também sobre a condição existencial do personagem de que trata Oscar Mendes (1986). Ele considera que “o romance trata da angústia do homem que sente crescer em torno de si e dentro de si o isolamento”. Mendes (1986) destaca que Fernando Sabino soube transmitir esta angústia em termos de “criação artística”, com “uma realidade de que só os verdadeiros romancistas são capazes”. Para o crítico, o romance não é apenas “um depoimento sincero de erros e fracassos de uma geração”, é uma “ilustração da luta eterna do homem do bem contra o mal”, “uma insatisfação de alma que os amores não podem saciar e que só o amor pode salvar e completar”. Em relação à abordagem filosófica do romance, o escritor Lúcio Cardoso (1986) compartilha com os que atribuem ao livro uma dimensão existencial. Para ele, Eduardo Marciano é comparado a um herói e a parte mais densa do romance é aquela em que ele caminha sozinho: “trata-se de uma aventura interior, de uma violenta história de uma náusea”.

Trata-se de um livro admirável; se a princípio hesitamos um pouco na evolução dessa parte tão difícil para quase todos os escritores que é a infância – a infância é domínio da poesia – ainda assim navegamos sem sobressalto através da narrativa, para atingirmos finalmente sua parte mais densa, aquela em que o herói caminha sozinho, e em que o autor atinge momentos excepcionais para nos dar um diagrama completo e perturbador de sua grande aventura. Aventura interior, podemos dizer desde logo, porque “O Encontro Marcado” é a violenta história de uma náusea. (CARDOSO, 1986).

Talvez possa ser dito que os analistas que consideram o romance uma “ilustração da luta” do homem consigo mesmo o façam por se depararem no romance com trechos como o que se tem a seguir. Nele pode-se observar um pouco do interior de cada um dos amigos de Eduardo, e, também, dele próprio, por meio do narrador, que pode sugerir que essa geração em que se incluem esses personagens foi uma geração de “puxar angústia”:

Tema habitual de Hugo: o efêmero da existência. Nada valia nada, tudo precário, equívoco, contraditório. Vinha escrevendo um livro, uma espécie de ensaio poético, em que procurava traduzir este sentimento de inutilidade das coisas. Era a palavra- chave; bastava dizer, a certa altura, com um suspiro de desalento: “mas que cooooisa!” e a angústia baixava logo as negras asas sobre os três. “Angústia? Mal sabíamos com que estávamos brincando”, diria cada um para si mesmo, anos mais tarde, quando a verdadeira angústia os apanhasse.

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Tema habitual de Mário: a inocência no tempo e no espaço: a inexorabilidade do fortuito na vida de cada um. Seu pai jamais se encontrara com sua mãe. Ele próprio nascera cem anos atrás. Cada gesto, cada palavra, cada pensamento seu refletia-se nos outros, alterava-lhes a vida, comandava-lhes o destino. Ali, sentado no banco da praça, ele estava, por uma série de relações, ou ilações (gostava desta palavra) negativas, alterando o curso das coisas, talvez o curso da guerra. — Vivo em mim a humanidade inteira! — e se erguia, entusiasmado. Tema habitual de Eduardo: o tempo em face da eternidade. Caminhamos para a morte. O futuro se converte, a cada instante, em passado. O presente não existe. Vivemos a morte desde o nascimento. (SABINO, 2011, p. 72-73).

O escritor Tristão De Athayde (1986), pensador, professor e crítico literário, declara que o romance é “muitas vezes chocante e cru em seus detalhes”. Ele esclarece que “Fernando Sabino transpôs para o livro a suja realidade da vida”. Para o crítico, o romance trata do “drama de uma geração”, “um flagrante da mocidade e até mesmo da adolescência”. Assim, volta-se à ideia com que esta seção foi iniciada: trata-se de um romance que apresenta o “drama de uma geração, ao mesmo tempo que retrata a realidade, a transfigura”. Pelo que aqui se apresentou e sintetizou sobre o principal romance de Sabino, nota-se a diversidade de abordagem possível e de pesquisas possíveis de serem feitas para a análise da obra: as oposições das características clássicas e modernas atreladas ao romance, a feição ao modernismo, o caráter existencialista, as classificações como romance de formação ou de costumes, os diálogos, a velocidade da narrativa, a centralização no protagonista, tudo isso faz parte da composição crítica dos olhares críticos para o romance O Encontro Marcado.

2.2 Novos encontros: Fernando Sabino no século XXI

De uma vida agitada, irreverente e contundente, na juventude, a personagem vai mergulhando num estado de tédio. (OLIVEIRA, 2010, p. 45).

Além dos textos de críticos e de leitores aqui apresentados, há outros trabalhos acadêmicos de pessoas que se dedicaram a estudar o romance do escritor mineiro e suas demais obras produzidas. São dissertações, artigos e trabalhos de conclusão de curso que abordam diferentes perspectivas da produção de Fernando Sabino. Esses trabalhos recentes demonstram a vitalidade da obra do escritor e projetam caminhos da recepção de Sabino atualmente. Por exemplo, a dissertação Encontro Marcado com a Crônica de Fernando Sabino, de Suzana Barbosa Costa (2007) da PUC-São Paulo, aborda o romance O encontro Marcado em comparação com os aspectos da crônica nele presentes a propiciar a hibridização na construção narrativa. Além desse aspecto, a autora pretende compreender “o eu como objeto de alteridade (termo utilizado por Mikhail Bakhtin), marcando o narrador”

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(COSTA, 2007, p. 15); e ainda, “apreender a transitividade do narrador desenvolvida entre dois eixos: o vivido e o representado como sujeito e objeto” (COSTA, 2007, p. 15). A autora propõe as seguintes hipóteses para as problemáticas que analisa:

A transitividade “eu-sujeito” e “eu-outro” determina e configura o discurso cronístico e, ao mesmo tempo, a narrativa experimental moderna contaminada pela mídia jornalística; O “eu” que narra e o “eu” vivido, ao serem colocados à prova, remetem as personagens ao papel comprobatório do discurso cronístico. (COSTA, 2007, p. 15-16).

O artigo intitulado “Eduardo Marciano e o difícil processo da influência e desleitura em O Encontro Marcado de Fernando Sabino”, de Douglas Rodrigues de Sousa (2011) da Universidade Federal do Piauí – UFPI, apresenta uma abordagem literária na figura do protagonista Eduardo Marciano e seus aspectos da escrita. O autor apresenta as teorias de Harold Bloom, dos livros A angústia da influência e Um mapa da desleitura para mostrar os fundamentos principais para a formação de qualquer escritor e do entendimento acerca do texto literário. Essas teorias, nesse trabalho, são voltadas e analisadas a partir do texto de O Encontro Marcado, “que narra a saga de um personagem que luta obstinadamente pela construção e realização de um sonho: ‘ser escritor e escrever um romance’” (SOUSA, 2001, p. 210). E perseguindo seu objetivo, o personagem terá que se instrumentalizar dos elementos necessários para a formação do escritor e, logo, para a escrita de seu romance. Nesse artigo, o enfoque é dado no personagem que

terá que realizar o difícil processo, segundo Bloom, de apropriar-se para depois desapropriar-se das obras literárias de seus precursores, este terá que sofrer a difícil angústia da influência, e realizar uma além-leitura dos que o antecederam, uma desleitura dos fortes. (SOUSA, 2007, p. 209-210).

Outra temática abordada nas produções de Fernando Sabino é a de Florita Dias da Silva (2010) também da Universidade Federal do Piauí. No título da dissertação Dialogismo e Polifonia em O Encontro Marcado, de Fernando Sabino apresenta-se a abordagem do romance O Encontro Marcado por meio de uma análise fundada nos postulados teóricos de Mikhail Bakhtin, com o objetivo de apreender como se manifestam o dialogismo e a polifonia na narrativa do escritor mineiro. Primeiramente, a autora se dedica a analisar os diálogos da narrativa

com as esferas religiosas e literárias, instâncias de formação do homem, na qual o plurilinguismo, a paródia e a estilização assumem a forma de dialogismo, utilizados

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por Sabino como recursos literários para evidenciar uma autoconsciência narrativa. (SILVA, 2010, p. 8).

Posteriormente, Silva (2010) aborda a questão da polifonia no romance do prosador mineiro, discutindo “o lugar ideológico do narrador e as vozes sociais que se entrelaçam nos conflitos das personagens, numa vivência em que tempo e espaço são indissolúveis e fazem parte da visão de mundo das personagens” (SILVA, 2010, p. 8). E, por fim, a autora discute outro aspecto da polifonia: “a formação da autoconsciência do protagonista, que se constitui pela relação com o outro” (SILVA, 2010, p, 8). Para ela, “ao mesmo tempo em que esta última abordagem finaliza os tópicos analisados, reforça a ideia de que as vozes sociais no romance O Encontro Marcado se manifestam numa tessitura dialógica e polifônica” (SILVA, 2010, p, 8). Em consonância com os críticos Marco Aurélio Matos e Haroldo Bruno, citados anteriormente, Marcelo Antunes Neves (2011), da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, também estudou a obra pelo viés existencialista. A dissertação nomeada Os Caminhos Existenciais em O Encontro Marcado aborda um estudo pelo viés existencialista do romance de Fernando Sabino dentro dos campos literário e filosófico. O autor aborda uma leitura do romance na qual estão presentes discussões a respeito de temas ligados diretamente à existência: liberdade, responsabilidade, escolha, etc. De acordo com Neves (2011), no enredo, tais temas são desenvolvidos principalmente por meio da vida do personagem central, Eduardo Marciano, e seus caminhos trilhados:

Esse caminho que será percorrido no romance possui afinidade com a assim chamada filosofia da existência, com o pensamento de Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, considerado o precursor do que posteriormente seria conhecido como Existencialismo. A interpenetração entre o romance e as ideias existencialistas/kierkegaardianas, segundo o autor, deu o tom à análise e às discussões, sempre pautadas nos convites lançados pelo próprio enredo e relacionados à vida do protagonista, além de outros possíveis desdobramentos. (NEVES, 2011, p. 7).

No artigo intitulado “A lealdade da busca: Fernando Sabino fala sobre os outros e encontra ele mesmo, ou vice-versa”, Gabriela Kvacek Betella (2005), da Universidade de São Paulo – USP, faz um estudo do processo de criação de Fernando Sabino como cronista em relação à influência da verve autobiográfica que permeia sua obra. A autora examina os textos do prosador mineiro reunidos no volume “Gente” à luz de um itinerário de vida e de estilo: “O material é uma coletânea de perfis, necrológios ou elogios relativos a pessoas que fizeram parte, em algum momento, da vida do escritor mineiro” (BETELLA, 2005, p. 123).

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Outro trabalho é a dissertação intitulada A construção da identidade no romance de formação O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, de Maria da Glória dos Reis (2012) do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES-JF. Sua abordagem mostra como o romance de formação ocorre na modernidade e no contexto do protagonista. A autora analisa a tradição e a ruptura presentes na obra e culmina seu trabalho com uma análise do processo de construção da identidade, sob a ótica de autores como: Stuart Hall (2006), Zygmunt Bauman (2005), Erik Erikson (1987), Anthony Giddens (2002) e outros teóricos. Adriana Aparecida Almeida de Oliveira e José Sterza Justo (2010) da Universidade Estadual Paulista – UNESP, pesquisaram em artigo a respeito das “Expressões do tédio na contemporaneidade: uma análise do romance ‘Encontro Marcado’, de Fernando Sabino”, ao considerar o romance O Encontro Marcado com a intenção de ressaltar as expressões do tédio na cultura. Os autores abordam a contemporaneidade como sendo caracterizada pela “incorporação e aceitação do efêmero e do provisório” (JUSTO; OLIVEIRA, 2010, p. 45). Por esse prisma, “o tédio aparece como manifestação de um cansaço e da despotencialização do sujeito” (JUSTO; OLIVEIRA, 2010, p. 45). Em relação a Eduardo Marciano, Oliveira e Justo (2010) analisam que

foi possível identificar, na história de vida da personagem principal, o declínio dos investimentos afetivos e da sensação de encanto com a vida. De uma vida agitada, irreverente e contundente, na juventude, a personagem vai mergulhando num estado de tédio, com um casamento e um emprego público que não conseguem sustentar ou produzir sentidos básicos capazes de manter a força e a alegria de viver. (JUSTO; OLIVEIRA, 2010, p. 45).

Ewerton Martins Ribeiro (2015), da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, em sua dissertação nomeada Retrato de um escritor bifurcado e de sua paixão pela literatura: um biografema de Fernando Sabino com foco no livro Zélia, uma paixão, encerra uma biografia do escritor mineiro Fernando Sabino; mais especificamente, um biografema, perspectiva biográfica idealizada por Roland Barthes em que o foco sai da trajetória diacrônica do biografado para ser dedicado a um específico fragmento de sua vida. O fragmento da vida de Fernando Sabino que motivou esse trabalho é o romance-biografia Zélia, uma paixão. Walter Sabino dos Santos (2006), da Universidade Federal do Paraná – UFPR, escreveu um Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Encontros Atemporais em Fernando Sabino: O Homem Feito e o Menino no Espelho”, em que o autor aborda o tema do “encontro” nas produções de Fernando Sabino. A pesquisa de Santos (2006) se dedica a uma análise de duas das obras do autor, em que há entre elas uma relação temática: o encontro

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entre o menino e o homem que ele será no futuro e, ao mesmo tempo, entre o homem e o menino que ele foi no passado, encontros esses que seriam revestidos de um tratamento atemporal. Os textos selecionados pelo pesquisador foram a novela “O homem feito”, que aparece pela primeira vez no livro A vida real, publicado em 1952, e o romance O menino no espelho, de 1982. Ilca Vieira de Oliveira (2016), professora da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, em seu artigo “Fernando Sabino, leitor de Machado de Assis”, faz uma reflexão sobre o escritor Fernando Sabino como leitor e divulgador das obras de Machado de Assis. Em sua investigação, a autora fez um estudo comparativo das obras O Encontro Marcado, O Menino no Espelho, O Grande Mentecapto e Amor de Capitu, de Fernando Sabino, com as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, “O Espelho” e “O Alienista”, de Machado de Assis, observando como se processa o diálogo intertextual entre obras escritas nos séculos XIX e XX. Após a explicitação dos recentes estudos referentes à produção de Sabino, percebe-se que os trabalhos acadêmicos apresentam diversas abordagens atreladas a temas que a crítica não havia ainda mencionado e algumas anteriormente já vistas. São dissertações e artigos produzidos que mostram, além da vitalidade das produções, a pluralidade de relações estabelecidas a partir de uma mesma obra. Relações como a de influência e desleitura atreladas ao protagonista do romance, dialogismo e polifonia na obra, a questão do biografema, as expressões do tédio na escrita e a abordagem de Sabino como leitor de Machado de Assis são considerados estudos que se diversificam e, ao mesmo tempo, mostram novidades em relação à abordagem analítica das produções de Fernando Sabino. Temas como o hibridismo entre romance e crônica, o existencialismo, o processo de criação como cronista e a construção da identidade no romance de formação, que outros críticos já haviam pontuado, são trazidos com uma abordagem recente. Percebe-se, após o panorama da crítica que permeia as produções de Fernando Sabino, que a contribuição do escritor para a literatura brasileira tem seu significado no que diz respeito à vitalidade que suas obras ainda propõem para serem estudadas. Sobre as críticas e leituras anteriores, aqui trazidas pelas edições comemorativas, pode-se afirmar que um dos temas discutidos é a conformação do gênero literário, se é mais romance ou mais crônica; observa-se, durante a leitura e análise da obra, que o romance criado por Fernando Sabino tem essa questão híbrida marcante e pode-se dizer que, com todas suas caraterísticas modernistas, O Encontro Marcado ainda provoca os leitores deste século que recorreram à obra e se debruçaram em análises diversas e atualizadoras. Nota-se, nas

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leituras recentes, que as abordagens chegam a ser, inclusive, pós-modernas com questionamentos presentes na literatura a partir do século XXI. A questão autobiográfica e ficcional no romance também é muito discutida pela crítica e pode-se dizer que é praticamente unânime a consideração de que há um tom autobiográfico em O Encontro Marcado, ao comparar a trajetória de vida do protagonista com a do próprio autor. Outro tema muito presente nas análises, é a relação entre memória individual e/ou coletiva. Pensa-se que o romance parte da memória individual do autor por meio de Eduardo Marciano e das representações no romance para uma memória coletiva, uma vez que os referenciais que compõem o romance, como o espaço, são identificados por gerações posteriores à de Sabino. Delgado (2007) destaca a obra como sendo um trabalho do “mito de origem inerente à identidade urbana e à memória individual, entrelaçada às memórias social e citadina” (DELGADO, 2007, p. 149):

As cidades, como espaços de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas de registros da memória. A pena dos escritores faz dessas paisagens personagens vivas de narrativas que, na interseção com a História, expressam, de forma policromática, a vida das pessoas no cotidiano de suas ruas, praças, cafés, escolas, museus, residências, universidades, fábricas, repartições públicas, bares, cinemas. As cidades são cristais de variadas luzes, entre elas as da memória, que, com sua temporalidade sempre em movimento, reencontra os lugares de ontem com sentimentos do presente. (DELGADO apud DELGADO, 2007, p. 149).

Sabino, por meio da memória de Belo Horizonte, eterniza a cidade das décadas de 1940 e 1950 em seu romance. Apesar de muitas das referências da cidade não existirem mais, as gerações posteriores à de Sabino reconhecem a cidade e sua história, mesmo a Belo Horizonte descrita na obra não sendo mais a mesma de atualmente. Como foi visto nesta seção, alguns críticos se dedicaram ao estudo da estrutura do romance, analisando o modo de construção dos diálogos e o ritmo conseguido pelo escritor durante a narrativa; há, ainda, aqueles que tomam para análise os aspectos mais filosóficos da obra, por considerá-la existencialista; e, por fim, alguns destacam o legado que o romance deixou para a literatura brasileira. Todos esses componentes abordados neste segundo capítulo colaboram para definir o fazer literário de Fernando Sabino, uma vez que os ensaios, as críticas e os trabalhos acadêmicos recentes ressaltam os aspectos mais significativos do romance O Encontro Marcado. Um deles é seu caráter híbrido e por isso torna-se relevante conhecer mais sobre o cronista e o romancista, o que será feito no capítulo seguinte. Assim, procura-se compreender como esse hibridismo se apresenta por meio dos depoimentos do

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próprio autor a respeito de seu fazer literário (seja crônica ou romance) e das concepções de alguns teóricos que refletem sobre o modo de compor o fazer literário de Fernando Sabino O capítulo seguinte trará duas vertentes de Fernando Sabino: o cronista e o romancista. Essa abordagem será relevante, pois o romance em questão, como foi visto, possui características híbridas com a crônica. Os depoimentos do próprio autor a respeito da escrita, seja de crônica ou de romance, são reveladores do modo de compor seu próprio fazer literário.

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3 FERNANDO SABINO: O CRONISTA E O ROMANCISTA

Acho que o empenho de um escritor deve ser o de desaprender tudo o que aprendeu. (SABINO, 1985, p. 14).

Neste capítulo, no primeiro tópico, será abordado o modo como Fernando Sabino concebe o gênero crônica em suas produções publicadas em jornais e revistas e, posteriormente, em livros. Ele conceitua as suas crônicas a sua maneira e também situa para os leitores como é o processo de sua escrita, que, segundo ele, é o contrário do que a maioria dos leitores pensa. O conceito de crônica de renomados teóricos como Antonio Candido e Jorge de Sá será importante para iluminar a análise da discussão feita neste capítulo. No segundo tópico, apresenta-se Fernando Sabino como romancista e o modo como o próprio autor concebe a profissão de escrever, além da sua concepção de romance a partir de sua experiência como leitor de obras canônicas. O conceito de romance apresentado por Massaud Moisés e o percurso histórico do romance moderno elaborado por Vítor Manuel de Aguiar e Silva ajudarão a estabelecer um percurso de Fernando Sabino como sendo o romancista de O Encontro Marcado, além de algumas entrevistas e depoimentos dados pelo próprio autor ao longo de sua carreira. Nesse percurso será dado destaque a depoimentos de três momentos importantes na carreira do escritor, situados em três décadas diferentes: a “Autocrítica”, publicada em Manchete, em 1967; a entrevista à revista Veja, em 1976; e a palestra proferida no Paraná em 1985, no projeto “Um escritor na biblioteca”. Assim, pode-se perceber como o escritor mantém determinadas convicções e como transige em algumas concepções que inicialmente professava.

3.1 Fernando Sabino: o cronista

Só que eu não sou Dostoiévski. (...) Cada um faz o que pode; o importante é que cada um seja do seu tamanho, nem maior, nem menor. (SABINO, 1976, p. 4).

Fernando Sabino iniciou sua carreira literária ainda muito jovem e aos quinze anos já havia recebido vários prêmios, produzindo contos e crônicas. No início de sua carreira passou a escrever crônicas para a revista Carioca, que promovia um concurso permanente – o qual vencia com frequência. O conteúdo de suas produções era baseado em elementos do cotidiano popular mineiro e carioca e em situações vivenciadas por ele próprio durante sua infância, adolescência e vida adulta.

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Sabino teve uma atividade jornalística intensa antes de publicar suas obras literárias mais longas. Era muito conhecido como cronista e muitas de suas crônicas tinham o viés humorístico. O Encontro Marcado, configurado como um romance, ainda assim possui várias passagens com características pertencentes ao gênero crônica, como anedotas, pequenas histórias engraçadas e episódios pitorescos. Não se pode dizer que cada capítulo do romance separadamente poderia corresponder a uma crônica, até pela questão da diferença entre o tamanho das crônicas que Fernando Sabino costumava escrever e a extensão dos capítulos do romance. Na segunda parte do romance, O Encontro, não se vê de forma intensa a presença dessas características da crônica, uma vez que o enredo centra-se na vida adulta de Eduardo Marciano o que determina que se trate de uma relação mais tensa, diferentemente do que ocorre na narrativa sobre a infância e a juventude do personagem em Belo Horizonte, presente na primeira parte, A Procura. No início de 1940, Fernando Sabino iniciou o curso na Faculdade de Direito em Minas Gerais e começou no jornalismo como redator da antiga Folha de Minas. O escritor mineiro tornou-se colaborador diário do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e foi ali que conheceu o poeta Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo. Em 1942, trabalhou na Secretaria de Finanças de Minas Gerais e teve experiência de três meses no Quartel de Cavalaria de Juiz de Fora, período que serviu de inspiração para os engraçados episódios do livro "O Grande Mentecapto". Em 1944, Fernando Sabino mudou-se para o Rio de Janeiro, já casado com Helena Valadares. Logo em seguida, em 1946, o escritor mudou-se para Nova Iorque, convocado para trabalhar no Escritório Comercial do Brasil e, logo depois, no Consulado Brasileiro, na mesma cidade. Nos dois anos em que morou nos Estados Unidos, o escritor mineiro cultivou uma produção jornalística e literária intensa em revistas, artigos de jornais e colunas brasileiros: contribuiu com o jornal carioca Diário de Notícias e emitia as crônicas escritas de Nova Iorque para serem publicadas, aos domingos, nos jornais Diário Carioca e O Jornal, todos eles situados no Rio de Janeiro10. Nessa carreira internacional, posteriormente, em 1964, Fernando Sabino foi adido cultural da Embaixada do Brasil em Londres até o ano de 1966. O autor mineiro colaborou na revista Manchete a partir do primeiro número, em 1952, e seu trabalho se prolongou por 15 anos. As colunas de Sabino na revista Manchete tiveram diversos nomes: a princípio, a coluna era chamada “Damas e Cavalheiros”, em seguida “Sala

10 As crônicas foram publicadas na década de 1950, no livro A cidade vazia. Nessas crônicas, Fernando Sabino evidenciou sua crítica e decepção com o estilo de vida da América do Norte.

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de Espera” e, posteriormente, “Aventuras do Cotidiano”. Após publicar O Encontro Marcado, em 1957, resolve iniciar uma produção diária de crônicas para o Jornal do Brasil, escrevendo mensalmente também para a revista Senhor. Em 1960, Fernando Sabino publicou o livro O homem nu, pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta. Em 1962, publicou A mulher do vizinho e em 1965, A companheira de viagem, sendo que “esses três livros de crônicas são compilações dos textos publicados em Manchete” (JÚNIOR, 2013, p. 7). Júnior (2013)11, ao analisar a transição das crônicas publicadas em Manchete para a publicação em livro, averigua que

esse fenômeno, de migração das crônicas do semanário para os livros, foi possível principalmente pela fixação do gênero nas páginas do periódico. A partir dela, foram sendo consolidados como escritores nacionais importantes nomes da literatura brasileira, entre eles Fernando Sabino. (JÚNIOR, 2013, p. 7).

Percebe-se que o escritor mineiro aprimorou seus textos ainda quando publicava na revista Manchete. Isso se verifica quando se compara suas colunas da revista. Em Sala de Espera os textos eram mais curtos, mais anedóticos, ou se configuravam com o que hoje se chama de minicontos, ou ainda como esboços de crônica. Na coluna Aventura do Cotidiano, não se vê mais textos dessa natureza, parecem mais o que seria a crônica completa12. Mais tarde seus textos seriam publicados em livros. Como Fernando Sabino já havia dito em algumas entrevistas que não considerava o que escrevia como sendo uma autêntica crônica, o autor reforça isso na sua publicação A companheira de viagem, como aponta Júnior:

Interessante observar a linha tênue que separa a crônica do conto. Na obra A companheira de viagem Fernando Sabino abre seu livro informando ao leitor que os textos que a compõem, embora sob a genérica designação de crônicas publicadas em revistas, têm tratamento de ficção característico dos contos e histórias curtas. Sabino apontou ainda na nota introdutória que o ofício de cronista era o meio de vida do qual ainda se valia, graças à generosa acolhida dos leitores. (JÚNIOR, 2013, p. 7).

O romance O Encontro Marcado, como dito anteriormente, possui, em partes, ares de crônica, pois mesmo antes de escrever seu romance, Sabino havia iniciado sua escrita com a prática dos textos curtos. Nada mais natural, portanto, do que encontrar em alguns

11 Clésio Moacir dos Santos Júnior (FIP/PUC Minas). Mineiros em Manchete: Fernando Sabino. PROJETO FIP 2013. Orientadora: Profª. Drª. Raquel Beatriz Junqueira Guimarães.

12 Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (2013). Sobre as diferenças nas colunas de Sabino na revista Manchete.

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momentos do romance registros dessa escrita cronística, como se pode observar logo no primeiro capítulo, “O Ponto de Partida”:

A CASA tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de empregada, porão, varanda e quintal. Que significava o quintal para Eduardo? Significava chão remexido com pauzinho, caco de vidro desenterrado, de onde teria vindo? minhoca partida em duas ainda mexendo, a existência sempre possível de um tesouro, poças d’água barrenta na época das chuvas, barquinho de papel, uma formiga dentro, a fila de formigas que ele seguia para ver onde elas iam. Iam ao formigueiro. Um pé de manga-sapatinho, pé de manga-coração-de-boi. Fruta-de- conde, goiaba, gabiroba. Galinheiro. A galinha branca era sua, atendia pelo nome: — Eduarda! Ela se abaixava, deixava-se pegar. Às vezes punha um ovo. Quando Eduardo ia para o Grupo, deixava-a debaixo da bacia. Um dia o pai lhe disse que aquilo era maldade: gostaria que fizessem o mesmo com você? As galinhas também sofrem. Um domingo encontrou Eduarda na mesa do almoço, pernas para o ar, assada. Eduarda foi comida entre lágrimas. É, sofrem, mas todo mundo come e ainda acha bom. Desgostou-se, jurou nunca mais ter galinha na sua vida. O porão — trastes e móveis velhos, objetos de outro tempo, uma máquina de fazer sorvete que nunca funcionou, livros roídos de traça. A arca cheia de mistérios que mãos de criança violavam. Esconderijo de bandidos. Caverna de piratas. Almas penadas durante a noite. De repente um escorpião debaixo do tijolo. A varanda. De noite, o pai e a mãe, sentados nas cadeiras de vime, depois de jantar, conversando. Que conversavam? Eduardo chegava, mudavam de assunto. Um dia se esgueirou de mansinho até bem perto, para ouvir. Conversavam sobre ele, Eduardo! Então já era assunto de gente grande. — Também não é tanto assim — dizia seu Marciano. — Não sei — dizia dona Estefânia: — Às vezes fico pensando em levá-lo a um médico. — Por quê? O menino não é doente nem nada. — Muito nervoso. Fico impressionada. — Luxos. Luxos? Eduardo não via luxo nenhum. Era uma coisa dentro de casa, como outra qualquer: menino acaba tendo de ir para a cama, galinha acaba sendo comida no almoço. (SABINO, 2011 p. 11-12).

Além de ser o início do romance, esse excerto também se configura perfeitamente como uma pequena crônica: apesar de a narrativa estar em terceira pessoa, observa-se uma visão de mundo acerca da infância de Eduardo, o personagem. O leitor passa a ter contato com essa noção de infância que está sendo vivida pelo personagem e descrita pelo narrador. As imagens construídas são nítidas, o fluxo da narrativa é rápido, valendo-se de uma linguagem simples, espontânea, situada entre a oralidade e a escrita. O humor, presente nas crônicas de Sabino, aparece na relação do personagem com a galinha de estimação que tem o mesmo nome que ele: “Eduarda”. No ambiente do quintal da casa, a galinha deixa de ser animal de estimação para ser o almoço de domingo e a noção de arrependimento é mostrada: “Eduarda foi comida entre lágrimas. É, sofrem, mas todo mundo come e ainda acha bom” (SABINO, 2011, p. 12).

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Sobre as cônicas do escritor mineiro, no livro Literatura comentada: Fernando Sabino, organizado por Flora Christina Bender (1988), a autora faz uma reflexão acerca das temáticas que envolvem as crônicas de Fernando Sabino, são temas relativos ao cotidiano, como bem aponta a autora:

Sabino faz suas observações do cotidiano há cinquenta anos (começou aos treze) e mantém o mesmo pique até hoje. Tudo pode ser matéria-prima para seus textos: a passarinha perneta que bebe água no seu vaso de gerânio, as reminiscências da infância ou da adolescência, um fato inusitado, o escoteiro que ele foi (e continua sendo), os roteiros de viagem (e como viaja!), personalidades famosas com quem conviveu, anônimas conversas de bar, cenas da cidade grande, encontros e desencontros. A realidade aí está, é só aproveitar. E Sabino a recria como se a visse, sempre, pela primeira vez. (BENDER, 1988, p. 81).

Pelo fato de Sabino escrever crônicas regularmente para os jornais, além de estar sempre atento aos elementos do cotidiano como matéria-prima de sua produção artística, Bender (1998) considera que “a semente de seus romances e novelas” foram certamente suas crônicas. Segundo ela, o autor diz que “não faz crônica factual, mas que tira do cotidiano a própria aventura de viver” (BENDER, 1998, p. 81). A autora discute, ainda, o valor literário da crônica:

A crônica, afinal, é menor, ou há cronistas (e romancistas, poetas, novelistas, etc.) que são menores? Onde estaria a menor qualidade, no gênero ou no fato de o texto, por ser pequeno e jornalístico, parece mais fácil do que outros e servir para que grandes enganos literários se concretizem? (BENDER, 1998, p. 165).

Sobre essa questão, Fernando Sabino assume que, na função de cronista de periódicos, o desafio é ter que adequá-la ao preenchimento dos espaços vazios da revista ou do jornal:

É tudo problema de ordem prática. Um jornal tem determinado espaço para minha crônica e eu tenho de escrever quatro páginas datilografadas, tenha ou não o que dizer. Às vezes, o assunto que tenho é uma história curta ou um caso pequeno; não dá para preencher então passo para outro assunto, até completar o espaço. Além do mais, hoje se pode dizer da crônica o que Mário de Andrade dizia do conto: é tudo que o autor chama de crônica. Eu, por exemplo, não escrevo crônica, escrevo o que quiser para encher aquele espaço; pode ser uma reminiscência, um conto; se eu escrevesse poesia, podia ser um poema. Escrevo notas de viagem, casos, anedotas, notas de leitura. Isso com relação a mim, mas há pessoas que são cronistas mesmo, que escrevem crônicas, isto é, o relato, o comentário sobre os fatos do dia, vistos sob um ponto de vista pessoal, o que não é o meu caso. (SABINO apud BENDER, 1998, p. 166).

O escritor mineiro não se considera um cronista de fato, aquele que faz “o relato, o comentário sobre os fatos do dia, vistos sob um ponto de vista pessoal” (AULETE, 2016).

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Reconhecer que outros e ele fazem crônica não é mostrar um posicionamento de que a sua escrita, da maneira como ela é composta, basta para que os jornais e revistas aceitem publicar e que os leitores leiam, ainda que não faça crônica no seu sentido estrito. Mas se isso é verídico, por que Sabino promoveu mudanças em seu espaço destinado para publicação de crônicas na revista Manchete? Pensa-se que o cronista, apesar de se mostrar publicamente como um escritor “despreocupado” com a identificação do gênero, se dedicava, sim, ao aperfeiçoamento da crônica, ainda que insistentemente o negue em um determinado momento de sua carreira. Sabino reflete sobre a crônica, ao dizer que ela é uma palavra muito flexível e abrange vários temas jornalísticos: “Acho que o gênero se classifica, atualmente, como as doenças: se não for aguda, é crônica” (SABINO apud BENDER, 1998, p. 166-167). Para o escritor mineiro, não existe um gênero crônica, mas, sim, os cronistas como Fernão Lopes, João de Barros, Pero Vaz de Caminha, Machado de Assis, Rubem Braga. Tais escritores são linhagens nobres, “que só faz engrandecer a melhor literatura de todos os tempos” (SABINO apud BENDER, 1998, p. 166-167). Assim, na concepção do autor, a sua literatura não pode ser considerada como crônica, ao admitir que poucas vezes ele ousou praticar tal gênero em sua escrita, como relatado na entrevista concedida à revista Veja, em dezembro de 1976, em que Sabino reforça seu posicionamento sobre o modo de elaborar a escrita da crônica. Na entrevista, salienta que a crônica pode ser escrita em verso:

É que chamam de crônica tudo que sai publicado em jornal ou revista, no local destinado ao gênero. Até poesia: Carlos Drummond tem lançado alguns de seus melhores poemas na sua “crônica” do Jornal do Brasil. Acho que o gênero, hoje, se classifica como as doenças: se não for aguda, é crônica. (SABINO, 1976, p. 4).

Na mesma entrevista, Fernando Sabino responde a uma pergunta a respeito da definição, para ele, da profissão de cronista. O autor mineiro responde que a prática de escrever crônicas é

uma maneira de ganhar a vida como outra qualquer. Ainda hoje me telefonaram de uma revista perguntando se posso preparar alguma coisa para o próximo número. Vou preparar porque no momento estou precisando do que vão me pagar. Isso não é mais uma das minhas “racionalizações”, pois não serve de desculpa: Dostoiévski escreveu “O Jogador” em 25 dias para saldar uma dívida. Só que eu não sou Dostoiévski. Cada um faz o que pode. Um dia perguntaram a Thelonious Monk, o pianista, se ele se considerava um gênio, e ele respondeu: eu sou do meu tamanho. É isso aí; o importante é que cada um seja do seu tamanho, nem maior, nem menor. (SABINO, 1976, p. 4).

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Nessa resposta nota-se que, para Sabino, a prática de escrever crônicas é realizada “sob encomenda”, ou seja, a crônica surge quando há uma oportunidade de se ter o trabalho remunerado. Ao analisar a resposta dada, percebe-se que esse depoimento do autor é uma cogitação do escritor já maduro que reflete sobre suas produções de escrita que são publicadas em jornais e revistas. Ele demonstra para os leitores que não se importa com a nomeação de cronista que é dada a ele e nem considera aquilo que faz como sendo o gênero crônica. É importante ressaltar que os próprios modernistas propuseram uma forma de não enquadrar as produções literárias em seus respectivos gêneros, portanto, Sabino não foi o único a promover tal relação com as próprias produções literárias. Ao citar o escritor russo Fiódor Dostoievski e o seu livro O Jogador13, Fernando Sabino se compara e, ao mesmo tempo, se difere do artista russo. A comparação está no sentido de escrever por dinheiro (interessante perceber que também seu amigo Vinícius de Moraes dizia a mesma coisa em suas entrevistas) e a distinção se encontra em colocar Dostoievski em um patamar que ele, Sabino, não poderá alcançar. Essa comparação mostra as referências de escritas canônicas que o prosador mineiro tem. O escritor mineiro relata escrever pelo dinheiro, mas não perde a qualidade de suas produções. Sobre Dostoievski, o autor foi um profundo conhecedor da alma humana, soube que a diversidade de personalidades, que constitui uma das mais marcantes características dos seres humanos, poderia ser explorada com grandeza no mundo da literatura como “um universo social em formação” e que as vozes presentes nesse universo social se constroem como um diálogo sem fim e que se propagam para o futuro quando abordadas no romance (BEZERRA, 2013, p. 11). Como analisa M. Bakhthin14, na criação de um romance polifônico (de Dostoievski), cujo universo é plural, a representação das personagens do escritor russo se equivale à

representação de consciências plurais, nunca da consciência de um eu único e indiviso, mas da interação de muitas consciências unas, dotadas de valores próprios, que dialogam entre si, interagem, preenchem com suas vozes as lacunas e evasivas deixadas por seus interlocutores, não se objetificam, isto é, não se tornam objeto dos discursos dos outros falantes nem do próprio autor e produzem o que Bakhtin chama de grande diálogo do romance (BEZERRA, 2013, p. 10).

13 O jogador, publicado no mesmo ano de Crime e castigo (1866), é ambientado na Alemanha, e tem como protagonista Aleksei Ivánovitch, um jovem com um forte sentido crítico em relação ao mundo que o rodeia, mas carente de objetivos, que desenvolve uma paixão compulsiva pelo jogo (vício que acometeu o próprio escritor).

14 Problemas da Poética de Dostoievski.

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Bakhthin (2013) considera a independência das personagens de Dostoievski em relação às interferências do autor, mas ressalva que pelo caráter dialógico do romance, o autor assume o papel de orquestrador das múltiplas vozes presentes em seu romance. As diversas consciências situadas nas obras são caracterizadas, portanto, como estratégias de construção dos romances do escritor russo. A maneira de Dostoievski estabelecer uma concepção de romance, a partir das escolhas de estratégias textuais presentes em sua poética, fez com que Fernando Sabino estabelecesse o autor russo como última forma de criação de um romance. Ao prosseguir com a entrevista na qual Sabino refletia sobre a produção de suas crônicas, ao responder se já pensava assim quando escreveu suas primeiras crônicas, as do livro A Cidade Vazia, o autor demonstra que não pensava dessa maneira no começo de sua carreira, quando iniciou sua atividade com a escrita:

Naquele tempo eu não tinha consciência do meu tamanho. Como todo jovem, eu achava que era muito maior. Depois dos 30 anos é que comecei a sentir que teria de reformular tudo: poderia até continuar acreditando nas coisas em que acreditava, mas não de maneira tão errada. (SABINO, 1976, p. 4).

Por meio desses depoimentos é possível notar que Fernando Sabino tinha concepções diferentes sobre suas próprias produções no início da carreira e como escritor experiente. Esse contraste leva a pensar na trajetória de produções que o autor pretendia quando jovem e o que ele realmente se dedicou a produzir durante sua carreira. O autor mineiro reforça seu posicionamento quanto a “escrever por precisar de dinheiro” em outra entrevista, concedida ao programa Roda Viva da TV Cultura:

Eu vivia na dependência de escrever toda semana, eu me sentia uma cozinheira que acabou de fazer o jantar, servia o jantar, lava as panelas, guarda e já tem que tirar tudo de novo para fazer o almoço e, quer dizer, não para nunca isso... eu estava feito um cano furado, eu estava perdendo no cotidiano aquilo que podia ser aproveitado de maneira mais essencial, e disso dependia e depende minha subsistência econômica. Eu levei um baque terrível parando de escrever... mais da metade do meu sustento vinha do jornal (...) Então eu percebi que agora eu quero escrever o que eu quiser e não o que o jornal espera que eu escreva. (SABINO, 1989).15

Fernando Sabino, ao fazer esse depoimento, reconhece que a escrita encomendada para o jornal fazia com que ele perdesse “no cotidiano aquilo que poderia ser aproveitado de maneira mais essencial” (SABINO, 1989), ou seja, ele se importava com o valor que a crônica, de fato, teria se não escrevesse por precisar de dinheiro.

15 Entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura, exibida em 25 de dez. de 1989.

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Na mesma entrevista, quando perguntado se teria alguma coisa que ele, Sabino, gostaria de fazer como escritor e ainda não havia feito, talvez alguma história dele próprio, o autor responde que

do mundo de intenções, o meu inferno literário está cheio (risos). Para cada coisa que eu publico tem, pelo menos, dez que eu não publiquei. Você pode dar essa proporção, é um décimo do que eu escrevo, isso é o que eu publico. Inclusive, literalmente, esse último que eu publiquei (parece ao leitor mais apressado umas crônicas de viagem), De cabeça para baixo, mas, na verdade, eu levei quatro anos para fazer esse livro, nota-se que a última viagem é de 86, levei três anos para fazer o livro e fiz seis versões diferentes, mil e quatrocentas páginas para aproveitar trezentas. Quer dizer, às vezes eu penso que não sou escritor, inventaram que eu sou escritor porque eu não tenho a menor facilidade de escrever. (SABINO, 1989).16

A partir dessa declaração, pode-se deduzir que talvez seja por isso que Fernando Sabino foi conhecido, por um bom tempo, como escritor de um único romance. Embora não se tenha encontrado notícias sobre as várias versões de O Encontro Marcado, o escritor demonstrou que demorava a concluir as produções literárias, sejam elas coletâneas de crônicas, contos, romances ou novelas. Seu outro romance, O Grande Mentecapto, também teve várias versões. Ele foi iniciado em 1946 e houve um longo período de interrupção na escrita da obra, que só seria publicada em 1979. Esse livro conta a história de Geraldo Viramundo, um personagem que sai pelas cidades de Minas Gerais à procura de Marília, sua amada. Porém, para a sociedade, Viramundo não passa de um vadio que sai vagando pelas cidades e Marília é a filha do governador da província. Percebe-se nessa transcrição que o escritor mineiro demonstra que escrever, para ele, é um trabalho árduo e nada fácil. Ao afirmar que publica apenas um décimo do que escreve, Fernando Sabino apresenta-se como um escritor criterioso com suas produções e, apesar de sua literatura ser considerada pelos leitores como sendo de “fácil leitura”, isso mostra a seriedade com que o escritor encara a profissão de escritor (seja de romance ou de crônicas), o que ultrapassa as palavras do próprio autor quando declara: “escrevo porque preciso de dinheiro”; ou quando afirma que “inventaram que ele era escritor”. O fato de ele próprio pensar que não é um escritor só reforça o comprometimento que Sabino tem com sua escrita e com suas produções e publicações. Quanto à facilidade da leitura de suas produções, ao ser perguntado se seus livros são fáceis de escrever, o autor relata, na mesma entrevista, que

16 Entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura, exibida em 25 de dez. de 1989.

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o elogio que mais me tocou foi feito pela mulher do Hélio Pelegrino, a minha querida Maria Urbana Pelegrino, que disse que foi contar uma história minha para uma amiga, uma história de quatro ou cinco linhas, e ela falou: “Eu quebrei a cara porque eu acabei tendo que buscar o livro para ler para ela as cinco frases”. E ela disse o seguinte: “Eu descobri que escrever parece com o balé, você vê uma bailarina fazendo um passo muito bonito, muito leve, vai fazer a mesma coisa que cai no chão e quebra a perna”. Foi o que me aconteceu. E eu fiquei muito tocado com isso porque realmente custa muito esforço para ser simples. É um trabalho terrível para você conseguir chegar a essa simplicidade que parece que é fácil de ler e parece que foi fácil de escrever. Eu fiquei muito gratificado por pensarem que minha literatura é fácil de ler. (SABINO, 1989)17.

Nessa entrevista, aqui transcrita, Fernando Sabino desvenda um mito de suas produções literárias: “realmente custa muito esforço para ser simples”. O autor considera que se sua literatura é fácil de ler é porque corresponde ao esforço que é feito para se chegar a esse resultado, o que torna um elogio a afirmação de que sua literatura é de fácil compreensão. O Encontro Marcado, por exemplo, é o resultado dessa procura da simplicidade. O apelo juvenil da obra, pelo fato de ela ser considerada um romance de geração juntamente com a escrita simples faz com que o romance seja um marco na literatura brasileira. Nessa entrevista concedida ao programa Roda Viva, Sabino discute, também, a questão de a crônica ser considerada um gênero menor em relação à ficção. O escritor mineiro, então, indaga:

O que é crônica, afinal de contas? É uma coisa indefinida, é o history, em inglês... A crônica vem, com o decorrer do tempo, dessa condição dela ser decorrente de uma atividade jornalística que foi se tornando literária ao tempo de Machado de Assis e depois veio se tornando social (...) de modo que hoje a crônica política nem se chama mais crônica, é coluna (...). Eu não acho a crônica um gênero menor, haja vista Rubem Braga que é essencialmente cronista, fez um outro poema eventual, mas fez poemas e prosas maravilhosas a que ele chama de crônica, e contos maravilhosos a que ele chama também de crônica... Uma vez o Guimarães Rosa me telefonou e perguntou: “O que você está fazendo?” Eu respondi que estou tentando fazer uma peça de teatro... E ele disse assim: “Não faça biscoitos, faça pirâmides!”. E eu fiquei massacrado. Então quer dizer que na literatura ou você é biscoiteiro, ou você é faraó... (risos) Então quer dizer que minha obra é uma padaria, eu faço pão toda noite para vender de manhã no jornal. (risos) Para encerrar esse caso, eu, de repente, fui salvo porque comecei a meditar e descobri que ao longo da literatura tem muitos biscoiteiros, a começar pelo Machado de Assis... Você quer maior biscoiteiro que Jorge Luis Borges, Clarice Lispector... e toda essa obra massacrante do próprio Rosa, que é uma pirâmide fabulosa, nem sempre é o necessário... tem escritores menores como Manuel Bandeira... (SABINO, 1989).18

17 Entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura, exibida em 25 de dez. de 1989.

18 Entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura, exibida em 25 de dez. de 1989.

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Como se pode ver, Fernando Sabino, tal como já apontara Bender, considera crônica um gênero indefinido. Como cronista, reconhece o início da crônica literária com Machado de Assis até, com o passar do tempo, se transformar na crônica social ou política, como bem apontará Antonio Candido. O mais interessante na entrevista é que Sabino, mesmo considerando o gênero crônica como indefinido, não o considera como sendo um gênero menor em relação às outras ficções. O escritor mineiro vê em Rubem Braga a figura do autêntico cronista e em nenhum momento se autodeclara como cronista. A metáfora do “não faça biscoitos, faça pirâmides”, de Guimarães Rosa, demonstra a questão do valor que a escrita tem: ou ela é elaborada, a ponto de ser comparada a uma pirâmide, ou é simplificada, a ponto de ser comparada com biscoitos. Com bom humor, Fernando Sabino se vê como biscoiteiro e não como um faraó, pois pela frequência com que sua literatura é vendida, ou seja, se é publicada no jornal, é vendida também todos os dias. É importante destacar que Sabino escreve para ser simples, procura a simplicidade da escrita, mas, em contrapartida, essa experiência de escrita é difícil para o autor. Escrever, para ele, exige um trabalho quase árduo e a escrita necessita ser reformulada, sendo a forma de garantir sua subsistência e modo de sobrevivência, estilo de vida e de sua literatura. Percebe-se que, a partir de sua experiência, o autor se autodenomina “biscoiteiro”; ele também considera como “outros biscoiteiros” na literatura brasileira e latino-americana o próprio Machado de Assis, Clarice Lispector e Jorge Luis Borges, nomes considerados “de peso” no cenário literário. O escritor mineiro também reconhece Guimarães Rosa como aquele que faz “pirâmides fabulosas” e não “biscoitos”, mas reconhece que nem sempre é necessário escrever com tamanha grandiosidade, ao mencionar escritores considerados menores, como o poeta Manuel Bandeira. Parece, desse modo, que Sabino prefere as padarias às pirâmides. A metáfora de “biscoiteiro” que Fernando Sabino toma para si se assemelha à de Graciliano Ramos (1962), em sua crônica “Os sapateiros da literatura”:

E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não fossem precisos. Por isso desejo que o fabricante deles seja honesto, não tenha metido pedaços de papelão nos tacões. E espero também que os meus fregueses fiquem satisfeitos com a mercadoria que lhes ofereço, aceitem as minhas ideias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto. (RAMOS, 1962, p. 187-188).

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A diferença na crônica de Graciliano Ramos é que ele aproxima a profissão de literato, de romancista, à de um sapateiro e qualquer juízo de valor que diferencie um como nobre e o outro como inferior seria, para o autor, considerado preconceito. “Sapateiro” ou “biscoiteiro”, Fernando Sabino pode ser considerado um grande literato, seja pela produção de seu romance, crônicas, contos ou novelas. O conceito de crônica recebe várias formulações dentre as quais se destacam aquelas que consideram-na um gênero que não tem o intuito de permanecer na posteridade (CANDIDO, 1980), outras que evidenciam a importância dela para o jornalismo literário e a consideram um gênero híbrido, ágil e próximo simultaneamente da língua escrita e da oralidade, tal como aponta Jorge de Sá (2008). Antonio Candido (1980), em seu texto “A vida ao rés-do-chão”, escreve a respeito do gênero crônica, do surgimento nos jornais brasileiros e sobre as produções de escritores como Fernando Sabino. Ele não a considera um gênero maior. Porém, para Candido, isso não traz um caráter negativo para o gênero crônica, muito pelo contrário, “e para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura” (CANDIDO, 1980, p. 5). O teórico acrescenta que a crônica, na sua despretensão, humaniza; “e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição” (CANDIDO, 1980, p. 5). Mas ao aprofundar na discussão da crônica como gênero, Candido lembra que o fato de ficar tão perto do dia-a-dia faz com que esse gênero aja “como quebra do monumental e da ênfase” (CANDIDO, 1980, p. 5). Na concepção do autor, não que isso seja um caráter ruim da crônica, pois, segundo Candido, há estilos que trabalham a magnitude do assunto e possuem uma “pompa” da linguagem e isso pode atuar como disfarce da realidade e da verdade. Esse resultado na literatura pode impedir a possibilidade de o leitor ver as coisas com completude e impossibilitar a reflexão sobre os fatos em consequência disso. Já a crônica, pelo seu caráter, “está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas” (CANDIDO, 1980, p. 5). Ao invés de um cenário sublime, cheio de adjetivos, a crônica “trabalha o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas” (CANDIDO, 1980, p. 5). De acordo com o autor, “a crônica é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor” (CANDIDO, 1980, p. 5-6). O teórico também articula que a crônica não tem

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pretensões de durar, justamente porque “é filha do jornal” e da era da máquina, em que tudo acaba depressa. Na sua origem, esse gênero não foi feito para a publicação em livro, mas para essa publicação passageira “que se compra um dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha” (CANDIDO, 1980, p. 6). Devido à transitoriedade do veículo jornalístico em que a crônica se abrigou, o intuito dela não é o de permanecer na posteridade; “e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão” (CANDIDO, 1980, p. 6). Quanto ao fato de a crônica conseguir sair do espaço do jornal e se instalar nos livros, o autor enfatiza que:

Por isso mesmo, consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um; e, quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. Como no preceito evangélico, aquele que quer salvar-se acaba por perder-se; e aquele que não teme perder-se acaba por se salvar. (CANDIDO, 1980, p. 6).

Como foi dito anteriormente, embora o romance O Encontro Marcado tenha ares de crônica, ele mantém sua natureza perene e foi publicado diretamente em livro. Pode-se dizer que é um romance híbrido porque possui elementos da crônica que se vê no romance: o humor, o cotidiano, os acontecimentos comuns como o passeio na praça, o falar do animal de estimação, a fala da vida e da experiência do protagonista e dos outros personagens, o namoro da infância e da juventude, o cotidiano escolar são temas que permeiam todo o romance de Fernando Sabino, mas que também são assuntos abordados nas produções de crônicas. Segundo Candido (1980), a crônica conseguiu passar do jornal para o livro por ser insinuante e reveladora. E também porque ela ensina a conviver profundamente com a palavra, “fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na forma dos seus valores próprios” (CANDIDO, 1980, p. 6). Conforme o autor, antes de ser crônica propriamente dita, foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia: políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os artigos da seção “Ao correr da pena”, título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. “Aos poucos o ‘folhetim’ foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância” (CANDIDO, 1980, p. 7). Depois, entrou espontaneamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar à forma que tem hoje. Ao longo desse caminho, esse gênero foi abandonando cada vez mais a intenção de informar e comentar, deixadas a outros tipos de jornalismo, para ficar principalmente com a

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intenção de divertir. Conforme o autor diz, a linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e, fato decisivo, se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para adentrar poesia. Antonio Candido (1980) declara: “creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma” (CANDIDO, 1980, p. 7). Ao analisar Fernando Sabino como cronista, Candido (1980) analisa “A Última Crônica” enfatizando sua teoria de que na crônica “há sempre muita riqueza para o leitor explorar” (CANDIDO, 1980, p. 11):

É então que vê o casal com a filhinha e assiste ao ritual modesto. Mas as suas reflexões, a maestria com que constrói a cena e todo o ritmo emocionado sob a superfície do humor lírico – constituem ao mesmo tempo uma pequena e despretensiosa teoria da crônica, deixando ver o que sugeri, isto é, por baixo delas há sempre muita riqueza para o leitor explorar. Dizendo isto, não quero transformar em tratados sisudos essas peças leves. Ao contrário. Quero dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional, a visão humana do homem na sua vida de todo o dia. (CANDIDO, 1980, p. 11).

Ao analisar a crônica de Fernando Sabino, Antonio Candido aponta que ela acaba tendo uma comunicação que vai além do estudo intencional justamente por conter a visão do homem na vida de todo dia. O romance O Encontro Marcado, tanto quanto “A Última Crônica”, traz um trabalho estético para além da literatura diletante. Nele, o romancista, trabalha a memória de uma geração situada em Belo Horizonte, com todos seus percalços, conflitos, superações e questionamentos, ainda que se possam encontrar algumas cenas pitorescas no interior do romance. Um exemplo de conflito presente na obra romanesca de Sabino é a cena em que Eduardo vê seu noivado com Antonieta adiado:

POUCO falara com Antonieta ultimamente. A ideia do noivado fora adiada: por acaso caíra sob os olhos do ministro a sua reportagem sobre Uberaba, o homem nem queria ouvir falar nele: — Vejam só a ousadia desse menino: diz aqui que eu fui uma das figuras mais importantes da exposição de animais. — Como é que você teve coragem... — queixou-se Antonieta. — O que me admira é que nosso noivado, nossa vida inteira, vá depender de uma bobagem dessas. Também, como é que eu podia imaginar que seu pai ia acabar lendo um jornal de Minas? Os telefonemas agora corriam por conta de seu Marciano. — Meu filho, você deixou a repartição? Anda faltoso, relapso... — Perco meu tempo naquela burocracia estúpida e o que ganho é uma vergonha. Minha vida não vai para a frente, não, às vezes me dá vontade de desistir de tudo e sair por aí... — Tome juízo, menino — censurava dona Estefânia. — Não fale assim que Deus te castiga.

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— Ora, Deus... Deus anda mesmo muito preocupado comigo. — E seus estudos? — perguntava o pai. — Não tenho nada para estudar: as aulas não prestam, os professores são umas bestas. — Meu filho, você não era assim. — Pois agora sou — retrucava. Terminara o serviço militar, fora promovido, aguardava convocação para o estágio. (SABINO, 2011, p. 164-165).

A cena mostra o noivado de Eduardo Marciano dependia de sua reputação. Eduardo se mostra chateado por conta disso e nem a preocupação dos pais com ele consegue mudá-lo. O protagonista também se mostra insatisfeito com seu trabalho na repartição e sua remuneração. Passagens como essa no romance demonstram a complexidade das relações entre as personagens, nem sempre explorada nas crônicas. Após perceber que é possível identificar elementos próprios da crônica no romance de Fernando Sabino, é plausível dizer que O Encontro Marcado é um romance híbrido porque, além das características que o constituem como romance – como a escrita em prosa, a presença de um narrador, um enredo longo, a complexidade vivida entre os personagens (conflitos, situações dramáticas), situados em um tempo e espaço –, também estão presentes na narrativa elementos da crônica, como a narrativa simples, diálogos curtos, as cenas do cotidiano, a essência humana, a construção dos tipos, as pequenas histórias contadas dentro de um enredo maior, além de notas de viagem e de leituras, casos, anedotas e notas, conforme definido pelo próprio Sabino. Em relação a Fernando Sabino, Jorge de Sá (2008) diz que “o escritor mineiro põe toda a sua técnica de romancista a serviço da narrativa curta” (SÁ, 2008, p. 25). Porém, ouso dizer que o contrário também é verídico: o escritor mineiro põe a sua técnica de cronista a serviço do romance. Jorge de Sá (2008), além de Candido, também explicita a trajetória da crônica – do folhetim à crônica atual:

No tempo de Paulo Barreto, por exemplo, era apenas uma seção quase que informativa, um rodapé onde eram publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os acontecimentos daquele dia ou daquela semana, recebendo o nome de folhetim. (SÁ, 2008, p. 8).

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O jornalista e escritor Paulo Barreto19, sob o pseudônimo de João do Rio, como bem aponta Sá, havia percebido as mudanças que estavam acontecendo na cidade e isso demandava uma mudança naqueles que escreviam diariamente a sua história. Ao invés de ficar no jornal esperando as histórias chegarem, Barreto ia até o local dos fatos para investigar melhor os ocorridos e criar seu próprio texto com mais vida:

subindo morros, frequentando lugares refinados e também a fina flor da malandragem carioca, João do Rio (seu pseudônimo mais conhecido) construiu uma nova sintaxe, impondo a seus contemporâneos uma outra maneira de vivenciar a profissão de jornalista. Mudando o enfoque, mudaria também a linguagem e a própria estrutura folhetinesca. (SÁ, 2008, p. 8-9).

Assim, João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, consagrou-se como cronista e deu à crônica “uma roupagem mais ‘literária’”, que, mais tarde, seria enriquecida com Rubem Braga:

Em vez do simples registro formal, o comentário de acontecimentos que tanto poderiam ser do conhecimento público como apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação do real. (SÁ, 2008, p. 9).

João do Rio prenunciou que a crônica e o conto teriam fronteiras muito próximas. Segundo Jorge de Sá (2008), a linha divisória entre eles é a densidade:

Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato “exemplar”, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem. (SÁ, 2008, p. 9).

Nessa passagem o autor dá ênfase à figura do cronista explicando a maneira de ele agir, mostrando a diferença do narrador de um conto e o caráter jornalístico de quem escreve as crônicas. Segundo Sá (2008), o cronista pode conduzir uma aparência de superficialidade em sua escrita para desenvolver o seu tema, o que pode fazer o leitor supor que tudo seja feito de forma ocasional, o que não é o caso. Sá (2008) alerta que o próprio escritor sabe que esse

19 João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto tinha como pseudônimo João do Rio. Nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu em 1921. Foi importante cronista, contista, dramaturgo e jornalista.

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“acaso” não procede na construção do texto literário e a crônica também faz parte dos textos literários. Jorge de Sá (2008), ao comentar a função do artista, traz esse caráter de “antena do povo” também para o cronista, não o excluindo em relação às outras escritas literárias. Para ele, o fato de a crônica ter sido, no início, um gênero jornalístico, a simplicidade que ela apresenta na sua escrita não equivale a falta de conhecimento dos artifícios artísticos.

Essa simplicidade decorre do fato de que a crônica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. (SÁ, 2008, p. 10).

A transitoriedade, nesse contexto, também é assumida pela crônica, direcionando-se a leitores com pressa, inicialmente, que leem nas pequenas folgas do dia a dia. A elaboração da crônica se vincula a essa urgência dos leitores: o cronista tem pouco prazo para escrever sua crônica, seja na redação do jornal ou em sua própria casa:

À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima de conversas entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. (SÁ, 2008, p. 10-11).

Segundo o autor, assim, existe uma proximidade maior entre a oralidade e as normas da língua escrita, sem que o autor confunda os momentos do uso da oralidade com a necessidade de uso da língua mais formal. O coloquialismo, deste modo, na crônica, deixa de ser a exata transcrição de uma fala ouvida para se tornar a elaboração de um diálogo entre o leitor e o cronista. Sabino, tanto na crônica quanto no romance, faz esse trânsito com segurança, tanto que chega a afirmar, por exemplo, que dentre as normas do escritor a primeira delas é ter o domínio da língua e para fazer esse trânsito é preciso ter muito domínio dela. Nesse contexto, ao se referir ao dialogismo como elemento importante na constituição da crônica, Sá (2008) o aponta como o equilíbrio entre o coloquialismo e o literário,

permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas conversar diárias e em nossas reflexões, como também conversamos com um interlocutor que nada mais é do que

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o nosso outro lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstância. (SÁ, 2008, p. 11).

O autor adverte que o sentido de circunstância é o de pequenas coisas que acontecem diariamente, que poderiam passar despercebidas ou desprezadas à marginalidade por serem consideradas sem significância. Quanto ao processo criativo da crônica, Sá (2008) pontua que:

Com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também. (SÁ, 2008, p. 11, grifo do autor).

Jorge de Sá (2008), por fim, considera o cronista um agente transformador da simples situação para elevar o lado circunstancial da vida e da literatura. O autor finaliza a abordagem enfatizando a importância da crônica para o contexto literário justamente por seu caráter lírico e reflexivo que faz parte da condição humana, e é disso que a literatura trata. A simplicidade da escrita, de modo algum, inferioriza a crônica como texto literário, mesmo seu nascimento tendo sido nas páginas diárias dos jornais. Assim, essas palavras de Sá (2008) aproximam-se das concepções de Sabino quanto à procura da simplicidade e à sofisticação envolvida nesse processo. Para eles, como já dissemos, é preciso muito esforço para ser simples, para elaborar diálogos coloquiais e narrativas ágeis acessíveis a qualquer leitor. Pode-se pensar que o fato de O Encontro Marcado ser um romance híbrido está vinculado ao momento em que os jornais publicavam um grande número de crônicas. E em meio às produções para os jornais, Fernando Sabino escreveu e publicou seu romance de geração. Pode-se, ainda, considerar aspectos da biografia do autor ao se refletir sobre o caráter híbrido do romance: o autor foi um artista popular e diverso; foi nadador, exerceu o funcionalismo público, foi jornalista, tinha rico conhecimento sobre o jazz, foi, inclusive, baterista, editor, cineasta, um produtor cultural. A sua performance pública, portanto, não se enquadrava em uma imagem de um intelectual conservador, de “terno e gravata”, muito pelo contrário. Suas fotos de entrevistas concedidas a jornais, revistas e televisão mostravam um escritor à vontade e relativamente despojado. O modo de se configurar como um intelectual à sua maneira leva a pensar que esse fator pode, muito bem, ter contribuído para o hibridismo de O Encontro Marcado, uma obra entre o romance e a crônica. Suas atividades culturais

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influenciaram a sua escrita romanesca: a prática jornalística, sua atividade com a natação e seu gosto musical pelo jazz, de certa forma, se encontram explícita e implicitamente no romance. O próprio protagonista Eduardo Marciano se enquadraria em um personagem diverso: iniciou escrevendo para concursos de contos, foi nadador, burocrata, casado com a filha de um político, era boêmio e tinha um desejo de se tornar escritor. Assim, escritor e personagem exercem múltiplas funções, atuam em diversas atividades.

3.2 O escritor e seu romance

O romancista escreve apenas sobre o que não sabe, exatamente para ficar sabendo. (SABINO, 1976, p. 3).

Inicia-se esta reflexão acerca das concepções sobre o romance a partir das noções gerais trazidas por Massaud Moisés (1992) e Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1997). Para Moisés, o romance se define como um gênero em prosa. A prosa designa uma forma literária universalmente considerada “a mais independente, a mais elástica, a mais prodigiosa de todas”, a ponto de, segundo o autor, “parecer infensa a regras, e, mesmo, exigir um tratamento também fora das Letras” (MOISÉS, 1992, p. 452). Segundo Moisés, o romance tem características que diferem da novela e do conto, por exemplo, e “todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo” (MOISÉS, 1992, p. 452). Mais conhecimento do que entretenimento, o romance, segundo o teórico, permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para sua própria existência; “o prosador conhece o mundo por meio do romance, e dá-o a conhecer ao leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem totalizante do Universo” (MOISÉS, 1992, p. 453). Ao fazer o percurso histórico do gênero romance, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1997) aponta a crescente importância do romance durante os três últimos séculos em relação à evolução das formas literárias. Silva (1997) avalia esse gênero como “a mais importante e a mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos” (SILVA, 1997, p. 671), a partir do século XIX, por alargar o domínio de sua temática, “ao interessar-se pela psicologia, conflitos sociais e políticos e por ensaiar constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas” (SILVA, 1997, p. 671). Sobre a transformação do gênero romance, o teórico ressalta que:

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De mera narrativa de entretenimento, sem grandes ambições, o romance volveu-se em estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexão filosófica, em reportagem, em testemunho polêmico, etc. O romancista, de autor pouco considerado na república das letras, transformou-se num escritor prestigiado em extremo, dispondo de um público vastíssimo e exercendo uma poderosa influência nos seus leitores. (SILVA, 1997, p. 671).

O autor ressalta, assim, a importância da figura do romancista que se torna uma espécie de formador de opinião ao exercer influência sobre o público. Silva (1997) considera que os romances publicados só ultrapassam gerações se os leitores forem capazes de “dar conta” da leitura. O teórico aponta o romance como uma forma literária moderna que não tem verdadeiras raízes greco-latinas, como a epopeia e a tragédia têm, e o considera “como uma das mais ricas criações artísticas das modernas literaturas europeias” (SILVA, 1997, p. 672). Segundo o autor, foi na Idade Média que a palavra romance ganhou significado literário, “designando determinadas composições redigidas em língua vulgar e não na língua latina, própria dos clérigos” (SILVA, 1997, p. 672). A literatura narrativa medieval, entretanto, não determinou os limites do romance. No Renascimento, o romance pastoril, forma narrativa carregada de tradição bucólica, marcadamente culta, se apresentava de modo que

numa natureza idealizada ou fabulosa, estão apenas nominalmente ligados à vida da pastorícia, revelando-se antes como personagens de requintada sensibilidades e cultura que discorrem, em cenas não raro saturadas de simbolismo, sobre múltiplos problemas do homem, desde o amor, em geral conceituado e analisado neoplatonicamente, até as servidões e hipocrisias da vida social historicamente concreta, ante a qual a vida pastoril se ergue como um sonho de harmonia e de tranquilidade. (SILVA, 1997, p. 676).

O romance, porém, conhece uma proliferação extraordinária no século XVII, sob o signo do Barroco. Ele se parece estreitamente com o romance medieval e é caracterizado no geral pela “imaginação exuberante, pela abundância de situações e aventuras excepcionais e inverossímeis: naufrágios, duelos, raptos, confusões de personagens, aparições de monstros e gigantes, etc.” (SILVA, 1997, p. 676). O romance barroco, ao mesmo tempo, responde ao gosto e às exigências corteses do público do século XVII por meio de longas e complicadas narrativas de aventuras sentimentais, implantadas de finas e cultas discussões sobre o amor. Silva (1997) aponta a literatura espanhola do século XVII, no concerto das literaturas europeias, como a que ocupa um lugar no topo em relação ao domínio da criação romanesca:

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O Dom Quixote de Cervantes, espécie de anti-romance centrado sobre a crítica dos romances de cavalaria, apresenta a ideia desse mundo romanesco, quimérico e ilusório, característico da época barroca, e ascende à categoria de eterno e patético símbolo do conflito entre a realidade e a aparência, entre o sonho e a vileza da matéria. (SILVA, 1997, p. 676-677).

O autor, ao contrapor o romance moderno ao barroco, expõe que o romance moderno é indissociável da confrontação do indivíduo com a realidade e é bem consciente do caráter legítimo de sua autonomia no mundo que o rodeia:

Como afirma um estudioso destes problemas, o romance barroco representa uma espécie de grau zero do romance, e é precisamente com a dissolução desse “ópio romanesco” que aparece o romance moderno, o romance que não quer ser simplesmente uma “história”, mas que aspira a ser “observação, confissão, análise”, que se revela como “pretensão de pintar o homem ou uma época da história, de descobrir o mecanismo das sociedades, e finalmente de pôr os problemas dos fins últimos. (SILVA, 1997, p. 677-678).

O autor ressalta que o romance moderno se constitui não só da dissolução da narrativa barroca, mas também por ser um gênero que desagrega a estética clássica:

O romance, como já ficou exposto, é um gênero sem antepassados ilustres na literatura greco-latina e, por conseguinte, sem modelos a imitar, nem regras a que obedecer; as poéticas quinhentistas e seiscentistas, fundadas em Aristóteles e em Horácio, não lhe concedem a reverenciosa atenção prestada à tragédia, à epopeia, ou mesmo à comédia e aos gêneros líricos menores. (SILVA, 1997, p. 678).

Silva (1997) observa que até o século XVIII o romance constituiu um gênero literário desprestigiado sob todos os pontos de vista. Segundo ele, os romances medieval, renascentista e barroco dirigem-se a um público feminino ao qual oferecem motivos de entretenimento e de evasão. Além disso, ainda era considerado como “um perigoso elemento de perturbação passional e de corrupção dos bons costumes, razões por que os moralistas e os próprios poderes públicos os condenaram asperamente” (SILVA, 1997, p. 679). Quando, no século XVIII, os valores da estética clássica começaram a perder a sua homogeneidade e rigidez, e começou a se afirmar um novo público, com novos gostos artísticos e novas exigências espirituais – um novo público burguês –, o romance, que era um gênero considerado menor, “conhece uma metamorfose e um desenvolvimento muito profundos” (SILVA, 1997, p. 680). “O romance tradicional, o romance barroco de extensão desmesurada, de episódios inverossímeis e complicados, entrara em crise. O início da crise situou-se na segunda metade do século XVII” (SILVA, 1997, p. 680). A própria designação

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de “romance” passou a ser afetada por uma conotação pejorativa e os próprios autores a evitavam. No século XVIII, o romance transformou-se em “penetrante e, por vezes, despudorada análise das paixões e dos sentimentos humanos, em sátira social e política ou em escritos de intenções filosóficas” (SILVA, 1997, p. 681). Quando o Romantismo se revelou nas literaturas europeias, o romance já não tinha mais o caráter pejorativo e menosprezado e já se podia falar de uma tradição romanesca. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o público do romance se expandiu e, para satisfazer a sua necessidade de leitura, escreveram-se e editaram-se, nesse período, um número expressivo de romances, o que possibilitou a publicação de muitas obras sem qualidade. Com o Romantismo, no século XIX, segundo Silva (1997), a narrativa romanesca afirmou-se decisivamente como uma grande forma literária, apta a expandir os aspectos multiformes do homem e do mundo, como o romance psicológico (Benjamin Constant), romance histórico (Victor Hugo), romance poético e simbólico (Gérard Nerval), romance de análise e crítica da realidade social contemporânea (Balzac, Charles Dickens). Silva (1997) vê o romance como o gênero que assimila diversos gêneros literários, desde o ensaio e as memórias até à crônica de viagens. Ele incorpora múltiplos registros literários, revelando-se capaz de efetivar a representação da vida cotidiana, para a criação de uma atmosfera poética ou para análise de uma ideologia. Essa assimilação informada por Silva (1997) pode, talvez, justificar o que se veio chamando de hibridismo em O Encontro Marcado, o que significa dizer que seria uma espécie de mistura de gêneros, próprio da natureza do romance, e não uma excepcionalidade como foi considerado por alguns, no caso do romance de Sabino. Segundo Silva (1997), se o século XVII constitui o auge da tragédia moderna, o século XIX constitui, de forma inegável, o período de maior brilho da história do romance. Depois das experiências dos românticos, durante toda a segunda metade do século XIX sucederam-se as criações dos grandes mestres do romance europeu, o que possibilitou que o romance dominasse a cena literária como uma forma já madura:

Com Flaubert, Maupassant e Henry James, a composição do romance adquire uma mestria e um rigor desconhecidos até então; com Tolstói e Dostoievski, o universo romanesco alarga-se e enriquece com experiências humanas perturbantes pelo seu caráter abismal, estranho e demoníaco; com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exatidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos meios sociais. (SILVA, 1997, p. 683).

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Quando declinou o século XIX e surgiram os primeiros anos do século XX, começou a se processar a crise e a metamorfose do romance moderno, relativamente aos modelos, tidos como “clássicos” do século XIX, e aparecem

os romances de análise psicológica de Marcel Proust e de Virginia Woolf; James Joyce cria os seus grandes romances de dimensões míticas, construídos em torno das recorrências dos arquétipos (Ulisses e Finnegans Wake); Kafka dá a conhecer os seus romances simbólicos e alegóricos. (SILVA, 1997, p. 684).

Com esses autores, segundo Silva, renovaram-se os temas, exploraram-se novos domínios do indivíduo e da sociedade, modificaram-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a intriga, de apresentar os personagens. Sucederam-se o romance neorrealista, o romance existencialista, o nouveau roman. Enfim, como aponta o autor, o romance não para de investir em novas formas e de exprimir novos conteúdos, “numa manifestação única da eterna inquietude estética e espiritual do homem” (SILVA, 1997, p. 684). Silva (1997) aponta a opinião de alguns críticos sobre o romance atual20: “depois de tão profundas e numerosas metamorfoses e aventuras, sofre de uma grande crise, aproximando-se do seu declínio e esgotamento” (SILVA, 1997, p. 684). O autor ressalva que, independentemente de tal profecia, há algo que não sofre contestação: “o romance permanece a forma literária mais importante do nosso tempo, pelas possibilidades expressivas que oferece ao autor e pela difusão e influência que alcança entre o público” (SILVA, 1997, p. 684). Ao se analisarem as concepções de Sabino sobre o romance, notar-se-á que ele tem como seus paradigmas exatamente os autores mencionados pelo teórico: Flaubert, Henry James, Joyce, Tolstói, Dostoievski e Fraz Kafka. Para acompanhar a reflexão do escritor mineiro, volta-se para sua “Autocrítica”, escrita em 1967, na qual ele discute o valor do romance e o papel do romancista. Nela ele declara que “passou a vida se preparando para se tornar um romancista” (SABINO, 1967, p. 147). O autor elege as experiências de escrita que o ajudaram em sua preparação:

Sou bom datilógrafo, sei ainda aquele resto de gramática, algumas coisas de ortografia. Gastei resmas e resmas de papel escrevendo o que quer que fosse que me ensinasse a exprimir através da palavra escrita, desde o caso mais gaiato à novela mais pretensiosamente literária. Com isso não fiz propriamente uma obra, senão algumas histórias curtas, ditas crônicas (...) (SABINO, 1967, p. 147).

20 O teórico se refere ao romance da primeira metade do século XX. A primeira edição de seu livro é de 1967, já a edição usada para este trabalho foi a do ano de 1997.

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Percebe-se, com essa afirmação, que Sabino não se declara um romancista, nem pensa que tenha produzido uma obra, mesmo com sua experiência e as tentativas que desenvolveu, nesse sentido: “O romance que escrevi foi uma tentativa de saber com o que eu contava para poder começar” (SABINO, 1967, p. 147). Sabino dá a impressão aos seus leitores de que ousou apostar toda sua preparação em uma única tentativa de escrever um romance. Ainda que seja o primeiro, o escritor mineiro não pensava em investir novamente na escrita do gênero romanesco. O autor declara que:

Aos 30 anos, achei que devia pagar esse preço, para merecer o ingresso no mundo da criação literária: o de oferecer ao público, ainda que em termos de ficção, a história de uma experiência pessoal arrancada do coração. Eu tinha de jogar tudo para abrir estrada larga e franca, como me aconselhava gravemente Mário de Andrade em uma de suas cartas: não ter contemplações para comigo mesmo, não escorregar apenas, mas cair de quatro, quebrar a cabeça. Ir até o extremo de mim mesmo, não blefar, ser exatamente do meu tamanho – nem maior, nem menor. Para isso não bastava apenas ser sincero ou espontâneo: teria de adquirir, nas palavras de Mário, “pelo sofrimento perfeito da vida, uma coisa muito mais nobre do que a espontaneidade e muito mais espiritual que a sinceridade: uma convicção”. (SABINO, 1967, p. 147).

Fernando Sabino não deixou de citar Mário de Andrade, com quem trocou suas experiências de escritor por meio de cartas desde que tinha dezoito anos. O mestre e amigo o ensinara a não ter medo na hora de produzir suas criações e que o sofrimento do escritor permanece por meio de suas convicções. E mais, Sabino fora estimulado pelo próprio Mário de Andrade a se tornar romancista:

Mas ainda eu me pergunto se sua tendência é realmente para o conto e não para o romance... Pela faculdade de observação naturalista, pela riqueza de tipos psicológicos, não sei, sinto em muitos dos nossos contistas, e em você, romancistas verdadeiros, que por preguiça, por falta de tomar fôlego, erram de espécie, se dispersam no conto, quando são romancistas legítimos. (ANDRADE, 1982, p. 17).

Voltando à “Autocrítica”, de 1967, ao relatar uma pergunta feita a ele sobre um suposto novo romance, o autor afirma que prefere se calar ou disfarçar, fingir que não ouviu a pergunta por não saber o que dizer. Por esse motivo, chegou a afirmar que seu “novo romance se desintegrou antes de nascido. Porque o romancista só escreve sobre o que não sabe, exatamente para ficar sabendo” (SABINO, 1967, p. 147). Ainda em sua “Autocrítica”, ao continuar discutindo sobre o que é ser romancista, o escritor mineiro declara que “ser inocente é a sabedoria do romancista, em que reside o segredo de sua capacidade criadora” (SABINO, 1967, p. 147), o que significa dizer que a sabedoria do romancista não está em criar um romance único e inédito, ela está em saber ler

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outros romances e permeá-los como se estivesse os analisando. Mas ele não está falando de analisar qualquer romance, pois Sabino elege seus clássicos para poder, durante suas leituras, mapeá-los e escrever minuciosamente a leitura, descobrir os caminhos percorridos pelo escritor-referência para tentar trilhar os mesmos rumos dos autores eleitos. O escritor não se considera um sábio e sim um “esperto”, pois “soube achar no romance alheio o caminho de casa, desenhar o mapa da mina” (SABINO, 1967, p. 147). Esse depoimento registra que ele, ao reconhecer que passou um longo tempo lendo, não se tornou um escritor “inocente”, ou seja, aquele que se dedicou apenas aos romances próprios. Ao se declarar um adepto da leitura das obras canônicas, Sabino, portanto, opõe a figura desse escritor “inocente” à do escritor “esperto”. Sabino não se tornou um “inocente”, mas foi se tornando um “esperto” ao longo de sua vida de escritor ao se dedicar ao mapeamento das obras canônicas, ao se entregar à leitura de obras que considerava, por sua constituição estética, paradigmáticas. Na “Autocrítica” aqui referida, ao explicitar seu itinerário de leitura, Sabino cita as novelas de Henry James, e as considera “chatas”; refere-se a Ulisses, de James Joyce, como uma “insuportável obra-prima” (SABINO, 1967, p. 147). Para ele, a forma do romance está completamente definida por autores como Dostoievski. Fernando Sabino se tornou um leitor assíduo e mapeava o modo como os autores escrevem e as leituras realizadas melhores do que o romance que ele próprio escreveu. O escritor mineiro não só lia os romances de Dostoievski como também não acreditava que alguém pudesse superar o escritor russo no que diz respeito à escrita do romance. Sabino o considerava um marco em sua vida de escritor e de leitor e, por isso, acreditava que não precisava mais escrever romances e que O Encontro Marcado já bastaria, pois fora sua primeira e última tentativa, na qual havia lançado tudo o que tinha para escrever. Conforme foi dito, Sabino se preocupava em reescrever, como o autor declarou em seu depoimento dado ao Roda Viva, que publicava apenas um décimo do que escrevia. Pode-se supor que as diferentes versões que eram elaboradas por Fernando Sabino de cada uma de suas obras seriam as tentativas do escritor de mapear sua própria escrita, tal como ele fazia como leitor das obras canônicas. Seus paradigmas de perfeição, além de Dostoievski, são Nabokov, Durrel, Joseph Heller, Saul Bellow. Entre os brasileiros estão José Cândido de Carvalho com o livro O Coronel e o Lobisomem, Machado de Assis e o seu Quincas Borba e, acima de todos, Winnetou, de Karl May, que, inclusive, aparece citado em O Encontro Marcado:

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E abandonou a Scotland Yard com seus inspetores, em busca de novos heróis. Seus heróis, até então: aos dez anos, Sherlock Holmes, Rafles, Tom Mix; aos onze, Tarzan, o Rei das Selvas; aos doze, Winnetou, Cacique dos Apaches; aos treze, os inspetores da Scotland Yard. Aos quatorze trocaria todos pelos da vida real: Jack Dempsey, Friedenreich, Lindbergh. Entre a vida real e a literatura, preocupado em escrever, aprender português — o professor dissera. O professor era poeta, tinha noventa sonetos prontos, quando completasse cem publicaria um livro. (SABINO, 2011, p. 29-30).

Para Fernando Sabino, o romance se torna ultrapassado como um gênero literário. Mas a herança deixada por Proust, Faulkner, Dickens, Balzac permanecerá para sempre viva ao serem lidos. Esta opinião pode ser aproximada daquela de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1997) ao refletir sobre o que considera o declínio da forma romanesca nos primeiros anos do século XX. Ao designar o que considera ser a crise e a metamorfose do romance moderno, Silva traz como exemplo exatamente as obras de Marcel Proust, James Joyce e Franz Kafka. Sabino, em suas reflexões sobre como se tornar um escritor, declara que, por ser um romancista em potencial, pretendia ser um scholar, ou seja, um indivíduo erudito, sábio, com grande conhecimento humanístico adquirido por meio da leitura de toda uma bibliografia sobre o fenômeno da literatura de seu tempo.

Eu, um literato, um escritor, um romancista em potencial: que em certa época de paranoia literária me pretendi um scholar e disparei a ler toda uma bibliografia sobre o fenômeno da literatura em nosso tempo, de I. A. Richards a C. M. Bowra! Ora, rapaz, dizia um tio meu: você não passa mesmo de um poeta... (SABINO, 1967, p. 147).

Sabino cita Ivor Armstrong Richards, um importante retórico e crítico literário inglês, e Cecil Maurice Bowra, que também era um scholar inglês e foi vice-chanceler da Universidade de Oxford, da Inglaterra, entre os anos de 1951 e 1954. Fernando Sabino declara sua busca pela erudição por meio das leituras dos cânones literários. Ele considera que os romances de Kafka encerraram a possibilidade de ele, como leitor, mapear o modo de escrita de uma obra. Isso porque seria com esse escritor que a forma do romance estaria mesmo liquidada. Mais uma vez observa-se que, de certo modo, as convicções de Sabino se aproximam das de Silva (1997), pois Kafka é apresentado por este como um exemplo da crise do romance no século XX. Ao comparar entrevistas que Fernando Sabino concedeu durante sua vida, podem-se perceber algumas de suas convicções: apresenta-se como um escritor que escreve, no espaço reservado às crônicas, outros gêneros, tais como notas, relatos, pequenos contos, anedotas; repete sempre uma lista de cronistas considerados importantes; reitera, ao apresentar suas

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preferências literárias, a importância da literatura de Dostoievski e justifica, por meio dessa preferência, o motivo pelo qual se tornou “escritor de um romance só”. Essa necessidade de sempre frisar essas mesmas convicções em entrevistas mostra que Fernando Sabino tem um conceito próprio de literatura e de como os outros leitores devem lidar com a literatura construída por ele. Sabino repete, em uma entrevista à revista Veja, em 1976, praticamente as mesmas opiniões apresentadas em sua “Autocrítica”, em 1967, mas detalha um pouco mais o modo de construção do romance quando responde a uma pergunta sobre o que representava o livro para ele quando o escreveu, aos 33 anos:

A princípio, eu pensava em fazer uma espécie de depoimento sobre alguém que chegou aos trinta anos sem saber como nem por quê. E eu precisava saber, para poder continuar. Seria uma espécie de apuração de haveres, e o livro ia se chamar assim – influência, talvez, do fato de eu ter, na época, um cartório. Resolvi jogar na mesa toda a minha experiência – ou inexperiência – vivida até ali para poder assumir minha condição de homem feito. (...) Preferi escrever um romance porque a realidade, recriada pela imaginação, acaba sendo mais real. Assim, pude modificá-la à vontade, adaptando, inventando ou omitindo quando necessário, para me espalhar no livro inteiro e não me encarnar apenas na personagem principal. Mas não deixei a imaginação ir além daquilo que me interessava: o que me ajudasse a me conhecer melhor. (SABINO, 1976, p. 3, grifo nosso).

O escritor mineiro confirma, assim, o motivo pelo qual “o romancista escreve apenas sobre o que não sabe, exatamente para ficar sabendo” quando revela que escreveu seu romance para saber o porquê e como conseguiu chegar aos trinta anos. Nessa passagem o depoimento do escritor revela que jogou toda sua experiência vivida até ali para compor seu romance, o que evidencia parte de seu fazer literário quando registra que recriou a realidade pela imaginação, ao modificar, adaptar, inventar ou omitir para se espelhar no livro inteiro e não apenas no protagonista. À revista Veja, Sabino declara que O Encontro Marcado, visto 20 anos depois, é um livro que cumpriu sua finalidade. Para ele, seu primeiro romance começa e acaba ali mesmo. Não pretendeu ser o início de uma obra.

Eu vinha me preparando a vida inteira para ser escritor, realizar uma obra. Era um literato, queria dedicar minha vida à elaboração de uma obra literária. Era essa a minha ambição. Nesse sentido, escrevendo aquele livro, eu estaria me entregando, jogando tudo de uma vez, matando deliberadamente a galinha dos ovos de ouro. (SABINO, 1976, p. 3).

Assim, nessa entrevista da década de 1970, o escritor se assume como “um escritor de um romance só” e afirma que esse era seu projeto literário, essa era sua ambição. Mas, na

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mesma entrevista, admite que quando jovem pensou na posteridade no período em que trocou cartas com Mário de Andrade e reconhece que, no tempo de vida em que está, essa ambição não faria mais sentido para ele:

Meus haveres eram a literatura, a minha ambição literária, aquilo que Mário de Andrade, em suas cartas, chamava de minha “ganância estética”. No fundo, eu queria assegurar para mim um lugar na posteridade. Mas que me interessa a posteridade, se já estarei morto? De repente eu me percebi como um idiota que se enfeitava todo para uma festa que afinal não haveria. (SABINO, 1976, p. 3).

Outro importante depoimento de Fernando Sabino sobre sua trajetória como escritor é a palestra que proferiu, no Paraná, em 1985, publicada sob o título Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino21. Nela, o autor revela o motivo pelo qual escreve, ou seja, o que o motivou a se tornar um escritor:

Sempre me perguntaram por que escrevo, sobre o que escrevo. (...) Escrevo porque me sinto descompensado em relação à realidade. Eu me sinto defasado. A minha realidade interior vive abaixo do nível da realidade que me cerca. Para restabelecer o equilíbrio, num contato normal com os demais seres humanos, tenho que escrever, porque a linguagem verbal escrita é a maneira que tenho de me comunicar. Há uma catarse naquilo que escrevo. Escrevo para não ir para o divã de um psicanalista. E consigo assim ser do meu tamanho, seja ele qual for: nem maior, nem menor. Vejo o mundo e a vida através dos meus próprios olhos. O que quer dizer que, no fundo, escrevo sobre mim mesmo. Confesso que não sou do meu tipo predileto, mas é comigo mesmo que tenho que conviver. (SABINO, 1985, p. 11).

Nessa afirmação, observa-se que Sabino não repete o mote tantas vezes trazido por ele em seus depoimentos, o de que escrevia porque precisava de dinheiro. Aqui, Sabino opta por uma reflexão de natureza mais psicológica, interior, falando mais de um tipo de “sobrevivência” que não é exatamente material: “um modo de não ir para o divã”. Pensa-se que essa sobrevivência por meio da escrita denota mais uma vez que Fernando Sabino é um escritor que se preocupa com que escreve, suas produções partem de sua própria experiência de vida e vê o ato de escrever como uma catarse. Nessa palestra ele aprofunda, também, o que pensa a respeito da escrita de seu principal romance:

O encontro marcado foi baseado na minha experiência pessoal até os 30 anos. Eu havia chegado a um impasse, em que não sabia com que contava, nem como ou para

21 “Um Escritor na Biblioteca” é um projeto homônimo realizado pela Biblioteca Pública do Paraná, pela primeira vez, na década de 1980. Desde a sua primeira edição, participaram escritores como Paulo Leminski, Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Callado, Fernando Sabino, Thiago de Mello, entre outros. O projeto tem o objetivo de reafirmar o importante papel da biblioteca na formação de novos leitores. Nessa edição, da qual Sabino participou, em 1985, houve também a participação de Selma Suely Teixeira, funcionária do Setor de Editoração da Biblioteca Pública do Paraná. Essa palestra foi publicada pela Biblioteca referida.

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onde iria continuar. Minha vida se desintegrava. Eu não teria mais condições de sobrevivência se não escrevesse sobre o que tinha vivido até aquele momento. Em consequência, é um romance muito autobiográfico, como aqueles que já leram devem ter percebido, mas é um livro escrito dentro das exigências da técnica do romance. Eu pretendia ser, e ainda pretendo, é romancista. Então, adotei o critério de não fazer um livro de memórias, nem uma autobiografia, mas, escrevendo sobre o preço exigido para sobreviver àquele momento, quer dizer, o preço que se paga para se tornar um homem, que é a perda da inocência, elaborei um romance onde uso muito da imaginação. (SABINO, 1985, p. 12, grifo nosso).

Nessa passagem em que Sabino relata o processo de criação de seu romance, novamente o autor reporta à necessidade de escrever como um modo de sobrevivência, e assim confirma o caráter autobiográfico de sua obra, e, mais uma vez, reivindica o status de romance, não de autobiografia, para o livro, o que já fizera em outras ocasiões. O interessante é que, diferentemente do que foi declarado em sua “Autocrítica” publicada na revista Manchete, dezoito anos antes, Fernando Sabino declara ainda pretender ser romancista, ou seja não pretendia ter apenas um romance publicado, e deixa, portanto, de se justificar como escritor de um romance só22. Nessa passagem, o sentido de “inocência” também é diferente daquele presente em sua “Autocrítica”. A inocência aqui se assemelha à infância, o que significa dizer que a perda da inocência o leva a se tornar um homem; em sua “Autocrítica”, a inocência se refere ao fato de o escritor querer compor seus romances a partir do nada, o que seria o oposto do esperto – aquele que mapeia e encontra o caminho do ouro, o riscado do seu texto, por meio da leitura de grandes escritores. Esta é mais uma ocasião em que Sabino é questionado a respeito de sua semelhança com o protagonista Eduardo Marciano:

Quando me perguntam se sou o personagem principal do livro, digo que apenas sou o protótipo daquele personagem: há diferenças fundamentais entre nós. O personagem principal é filho único. Eu sou filho de uma família de seis irmãos, o que significa uma grande diferença. Como queria enfatizar o problema da solidão, era mais adequado que o personagem fosse filho único. Ele não tem filho nenhum, e eu, que eu saiba, tenho sete. Escrevi um livro sobre ele, ele não escreveu nenhum livro sobre mim. E por aí afora. Mas de qualquer maneira, globalmente, no seu todo, O encontro marcado é a minha vida: é a súmula da minha experiência vital até aquele momento. (SABINO, 1985, p. 12).

Em O Encontro Marcado, é delineada uma ficção que contém muitas características de sua experiência vivida, ou seja, o autor traz alguns elementos da sua vida pessoal, mas os transforma ao criar sua ficção, sua obra literária. Como mostra o próprio relato do autor, a vida de Eduardo Marciano não é a de Fernando Sabino e nem se pode saber se era essa vida

22 Até essa data de 1985, Fernando Sabino já havia publicado seus outros dois romances: Em 1979 publicou O Grande Mentecapto, e em 1982 publicou O Menino no Espelho.

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que o autor queria para si. A solidão, como alguns críticos já abordaram, se torna presente na figura de Eduardo Marciano como filho único. O que se tem é a obra literária que Sabino escreveu e Eduardo Marciano é sua criação. Na narrativa, o escritor cria também o período da infância, da juventude até o início da vida adulta, e da separação de sua primeira esposa. Como dito anteriormente, Sabino teve necessidade de criar seu romance aos 30 anos e, portanto, criar O Encontro Marcado como a súmula de sua experiência vital até aquele momento. Arnaldo Bloch (2005), em seu livro Fernando Sabino: Reencontro, relata alguns elementos da experiência da vida do autor presentes no romance:

Seguindo à risca a recomendação de seu mestre, [Mário de Andrade] Fernando jogara tudo em seu primeiro romance. A infância do herói Eduardo Marciano é a sua, travestida em infância de filho único. Os irmãos e irmãs (a realidade) desaparecem para dar lugar à verdade: Fernando era um menino encerrado e recluso. A gramática, o escotismo, as leituras, o serviço militar, a zona boêmia, a natação, está tudo lá. Os amigos também, e a sombra existencial que um dia pairou sobre eles nos bancos de praça. O inflamado Mauro, que desafia a ordem estabelecida e manda o bispo às favas em nome de uma igreja socializante é Hélio Pellegrino. O atormentado Hugo é uma mistura de Otto e Paulo, com mechas de João Etienne Filho, que décadas depois viveria o papel de outro personagem, o boêmio e místico Germano, numa montagem teatral do romance. Antonieta é Helena. O “ministro” é Benedicto Valladares. Toledo é o mentor Guilhermino César. O poeta Sílvio Garcia é Vinicius de Moraes. O monge parece ser Dom Marcos Barbosa, do Mosteiro de São Bento. Em Germano, há componentes de Jayme Ovalle. Eduardo, como Fernando, não se dá bem com o sogro, a quem deve o emprego que tem. A relação com Antonieta é tumultuada, e vai se complicando à medida que Eduardo se perde nos desvarios da boemia carioca. O casamento fracassa. Eduardo, que, além do emprego, escreve para jornais sobre literatura, alimenta um sonho: justamente o de escrever um romance. Não consegue, ao contrário do autor que lhe deu a vida, à custa e tematizar o seu drama na pele de Eduardo. Fernando Sabino, num exercício de auto-superação, completa sua obra maior. Testemunho de sua geração, é um romance de caráter universal, centrado no drama de um jovem à procura de um sentido para vida. (BLOCH, 2005, p. 89-90).

Ao compor seu romance, Fernando Sabino alia memória, amizade, cidade, amores e ficção. O próprio autor, mais adiante, relatou que partiu de sua própria experiência vivida para compor seu romance, porém não deve ser deixado de lado que, ainda assim, O Encontro Marcado é uma criação de Sabino: os lugares e os personagens compõem o romance que o autor idealizou. Pode-se dizer que Fernando Sabino criou uma autoficção à sua maneira, partindo da infância, passando pela adolescência e terminando na vida adulta de Eduardo Marciano por meio de suas recriações. Mais uma vez, como ocorre em vários momentos nessa palestra, Sabino também revela, com detalhes, as influências literárias que teve durante seu percurso de escritor e durante suas viagens a Nova Iorque e a Londres:

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Aos 17 anos publiquei um livro, Os grilos não cantam mais, ajudado pelo Guilhermino [César], e mandei para o Mário de Andrade. Ele me escreveu, e começou a nossa correspondência, que durou 2 ou 3 anos, até ele morrer. Foi uma influência literária muito poderosa. Fui a São Paulo conhecê-lo, ele me orientava em tudo. Quem leu Cartas a um jovem escritor pode ver toda a influência que recebi dele em vários aspectos. Depois disso, fui para os Estados Unidos, e o aprendizado do inglês possibilitou a abertura de um mundo novo, com influências literárias. Pude conhecer vários autores, como Conrad, Stevenson, Hemingway, Scott Fitzgerald, Henry James, e tantos outros. Lia o dia inteiro, mas muito desordenadamente. Ia lendo aquilo que tinha afinidade comigo. Passei também alguns anos na Inglaterra, uma civilização completamente diferente, que me deu outra dimensão, como influência. Mas acho um pouco pretensioso da minha parte ficar falando de influências, como se fosse um sujeito às voltas com estudos, preocupado com a erudição. Pelo contrário, acho que o empenho de um escritor deve ser o de desaprender tudo o que aprendeu. Desaprender o que lhe ensinaram de falso, artificial, deformado, preconceituoso. Recuperar a inocência. Olhar as coisas com olhos de criança. Como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. Como se nascesse cada manhã. Tudo inédito: uma fisionomia, uma rua, uma árvore, uma criança, um cachorro, uma ideia. Tudo é um espetáculo que deve ser visto como se fosse um turista que acabou de baixar neste mundo. Isso é o que eu pretendo: Um conhecimento quantitativo seria para mim muito prejudicial, abrir demais o leque da informação. Não estou justificando a ignorância, não. Estou justificando a preservação da espontaneidade da criação literária. Vamos dizer assim, sem que isso implique em que o sujeito seja ignorante. Tem certas coisas que é inadmissível que você não saiba. A partir da gramática da língua que é seu instrumento de trabalho até o conhecimento geral. (SABINO, 1985, p. 22, grifo nosso).

Nesse depoimento, Sabino, ao confessar a importância das viagens em sua formação leitora e da decisiva participação de Mário de Andrade em sua formação como escritor, contradiz o que havia dito em sua primeira “Autocrítica”, a de 1967. Na palestra de 1985, Sabino não se vê preocupado com a erudição, enquanto que em sua “Autocrítica” o autor pretendia ser um scholar. Na palestra o escritor defende que esse processo que ele chama de “desaprender” é o que considera fundamental para ser um escritor. O termo “inocência” aqui ganha o sentido de “ter o olhar de uma criança”, como se tudo fosse inédito e Sabino relata que essa é a sua pretensão. Também, mais uma vez, o sentido de inocência é alterado e o caráter de um leitor que averigua a escrita de outrem para compor a sua, como um “esperto”, é relativamente banido da cena de criação literária, entrando aquele que quer ver o que está ao seu redor como algo inédito. Novamente percebe-se um posicionamento diferente em relação aos depoimentos anteriores. O escritor ressalta como prejudicial um conhecimento quantitativo com a justificativa de “preservar a espontaneidade da criação literária”. Em sua “Autocrítica”, Sabino se posicionava mais como um leitor que mapeia tudo o que lê do que propriamente um escritor focado no que escreve. Essa mudança de paradigma nos mostra uma nova fase da vida do escritor, diferente daquela vivenciada em 1967: a de escrever por necessidade de escrever, como se a escrita fosse um refúgio para embates acerca da vida. O autor encerra a

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discussão com os aspectos imprescindíveis na vida de um escritor que se preze: a gramática da língua e o conhecimento geral de mundo. Fernando Sabino é perguntado sobre o que é preciso para ser um bom escritor, se é uma “leitura desordenada”, como o próprio autor expôs, ou se o melhor seria cursar uma faculdade. Com precisão, o escritor responde:

Parto do princípio de que o escritor tem o dever, como parte da sua dignidade pessoal, de conhecer a própria língua. Isso implica num estudo sistemático. Com Universidade, ou sem Universidade, exijo que o escritor saiba, para começo de conversa, datilografia. Manuscritos não usam mais. Hoje em dia o escritor tem que ser um bom datilógrafo. Segundo, você tem que conhecer ortografia. Terceiro, gramática. Depois, semântica. Enfim, conhecer o idioma, aprender as regras elementares para quem escreve, ou seja, as relativas à propriedade vocabular, concisão, clareza, simplicidade. Conseguindo isso você vai partir para sua escrita própria. E deve ler sistematicamente o que os melhores escrevem. Inclusive para não arrombar porta aberta, para não escrever o que já se escreveu. Quando li Dostoiévski pensei em desistir, porque ele já tinha escrito tudo o que eu queria escrever. (SABINO, 1985, p. 22-23, grifo nosso).

Novamente Sabino reforça o domínio da língua como um primeiro passo para se tornar um escritor. O manejo da datilografia, a tecnologia de escrita mais acessível depois do manuscrito naquele período, também seria indispensável para o desenvolvimento dessa carreira. É interessante que o prosador mineiro, após reiterar a importância da gramática, da semântica, das regras da propriedade vocabular, elege a “concisão, clareza e simplicidade”, ou seja, o autor faz um percurso do seu próprio modo de compor a escrita, pois elege uma escrita “simples e clara” em suas produções, para compor uma espécie de “manual” de como se tornar um escritor, ou seja, partindo de seu próprio processo de composição, de sua própria experiência de escritor. No próprio romance O Encontro Marcado percebe-se uma reflexão de Eduardo, por meio do narrador, a respeito do romance e de ser um romancista:

Não, era simplesmente romancista. E o romancista é um inocente, não sabe nada senão escrever. Aprender a escrever. Regressou à ficção: aprender com os que sabiam, se preciso plagiar, mas plagiar com sabedoria, com verdadeiro aproveitamento das ideias, desenvolvendo-as noutras ideias — e não apenas pastichar: escrever para os dias de hoje como eles escreveram para o seu tempo. E isso já não é plagiar, é recriar. Na literatura, como na natureza, nada se cria e nada se perde: tudo se transforma. (SABINO, 2011, p. 221).

Nessa cena pode-se afirmar que há a voz de Fernando Sabino no romance ao fazer essa reflexão e não a do narrador. Como se pode perceber, em sua “Autocrítica”, o autor declarou que existiam os escritores considerados “inocentes” e os considerados “espertos”. O conceito

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de “inocente” transparece nesse excerto do romance. Talvez por isso Eduardo Marciano não conseguiu realizar o tão sonhado desejo de se tornar um escritor. A reflexão continua em transformar a leitura de grandes nomes da literatura em criação literária do próprio protagonista: alterando as questões abordadas em outras épocas e outros livros para sua época atual, para o seu próprio livro. Esse é o processo de transformação, segundo o autor, da literatura, tal como acontece na natureza: “tudo se transforma” em nova matéria literária. O autor continua sua linha de raciocínio ao falar sobre a organização da iniciação literária de um escritor:

Você percebe então que tem alguma coisa a dizer que é pequenina, é um biscoitinho, mas que vale tanto quanto a pirâmide dos outros, porque é sua. É a sua visão de mundo. (...) Inicialmente essa iniciação literária organizada, vamos dizer assim, é fundamental, porque senão você se perde: monta a cavalo e parte a galope em todas as direções, não é? Como o poema do gaúcho; você começa a querer entender de cinema, de artes plásticas, de teatro, de música, a ler os clássicos e também os modernos, aprender latim. Você tem que se organizar de acordo com suas aptidões, e de acordo com aquilo que quer fazer. A partir daí, vai começando a se soltar. Vai descobrir sua própria linguagem, sua própria maneira de ser – e muita novidade passa a ser irrelevante. (SABINO, 1985, p. 23, grifo do autor).

Ao salientar a importância de alguma organização inicial para se criar um método de escrita, Sabino retoma a metáfora da escrita como o “fazer biscoitos”. Com ela, procura ensinar aos presentes na palestra como criar modos que possibilitem se concentrar em sua criação e descobrir, de modo solto, a própria linguagem literária. Nesse processo, salienta a importância da prática jornalística em sua atividade:

Muita gente me pergunta, por exemplo, se o jornalismo atrapalha a literatura. A princípio até ajuda, e muito: ensina a despojar a linguagem. Mas a partir de determinado momento, você tem que optar. O escritor pode acabar apenas na reportagem, na redação da notícia, no editorial. (SABINO, 1985, p. 23).

Pode-se perceber, daí, que a procura pela simplicidade foi, de certo modo, facilitada pela prática da escrita diária no jornal. Sabino ressalta que o processo de escrita contínua possibilita o despojamento da linguagem, marca registrada em suas produções literárias. Novamente Sabino se reporta ao processo de escolhas que o escritor faz ao longo de sua vida e reafirma seu interesse pela escrita simples e acessível. Mas, segundo ele, isso não se dá porque leva para a literatura o que escreve para o jornal, ao contrário, afirma o escritor:

Se me perguntam se aproveito para o livro o que escrevo para o jornal, respondo que não. É o contrário: aproveito em jornal o que faço para livro. Se não fizesse isso,

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correia o risco de reunir perecíveis, pois a crônica, como tal, tem muito de perecível. (SABINO, 1985, p. 25).

Observa-se, portanto, que Sabino inverte a lógica apresentada pelos estudiosos da crônica: leva para os jornais os textos perenes de sua prática literária, e não ao contrário. Esse cuidado de não deixar a crônica jornalística ser um texto “perecível” demonstra a preocupação do escritor em relação ao seu legado, ou seja, revela mais uma vez o desejo de ficar para a posteridade, embora o tenha negado em algumas ocasiões. E, por fim, deve-se salientar o que diz Sabino sobre a dificuldade de escrever e a necessidade de fazer suas reescritas:

imagine você ter hora para escrever, ter hora para entregar, fazer uma coisa de carregação, repetir uma coisa que já sabe, que já fez. Dá um desgosto profundo. Mesmo quando vou procurar uma coisa antiga, não deixo de recriar aquele texto, faço alterações, atualizo, porque não há nada mais chato do que aquilo que você já escreveu. Parece mentira, mas tenho que escrever quatro laudas por semana e quando sou feliz gasto entre 8 e 10 laudas para tirar as quatro de que preciso. Às vezes é uma loucura; gasto 20, 30. Nas novelas do livro, para ter uma ideia, precisei de 300 páginas para a primeira, que tem 60 páginas, e na terceira comecei 22 vezes o quarto capítulo. (SABINO, 1985, p, 28).

Nessa passagem também se encontra o caráter árduo de escrever que Fernando Sabino já declarou em sua entrevista do programa Roda Viva, da TV Cultura. Escrever não lhe parece tão simples, como consideram seus leitores. E esse discurso evidencia o comprometimento e preocupação do escritor com cada uma de suas produções. Assim, nessa palestra, como em outras entrevistas, Fernando Sabino reflete sobre seu fazer literário. Sabino demonstra suas vaidades, fala da cobrança a respeito da escrita de seus textos, das várias versões para uma mesma publicação, a escrita como um modo de sobrevivência, o “manual” de como se tornar um escritor, as suas referências literárias, revela sentir alguma dificuldade para escrever, a semelhança entre autor e protagonista do romance, O Encontro Marcado como um romance autobiográfico e a necessidade de escrever como refúgio dos percalços da vida, sendo a escrita uma catarse. Ao fazer um panorama da crônica e de como o autor concebia tal gênero, percebe-se que o escritor considerava que a sua produção cronística expandia seu próprio discurso de “escrever para encher as lacunas do jornal” ou por “precisar da renda através das publicações”. Isso talvez possa ser comprovado por meio de suas publicações na revista Manchete, pois nota-se que as mudanças dos títulos de sua coluna acompanhavam as mudanças da própria escrita do cronista, o que transparecia a preocupação com as publicações da revista. Essa intensa atividade como cronista contribuiu para que o escritor mineiro

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deixasse marcas do gênero crônica no seu primeiro romance publicado, ocasionando o hibridismo em sua obra, e não o contrário, como o próprio autor afirmou. Essa característica híbrida do romance compõe o fazer literário de Fernando Sabino em O Encontro Marcado, uma vez que muitas das características da crônica concebida pelo autor (como pequenas histórias, pequenas notas, relatos) e pela crítica (agilidade, diálogos, simplicidade, escrita breve) se encontram no romance do escritor mineiro. Ao conceber seu romance, Sabino expõe sua experiência vivida e de escrita, o que denota também características que ajudam a compor o fazer literário do romancista. Suas leituras, referências literárias, viagens pelo mundo e técnicas de escrita fizeram com que o romance fosse concebido tal como ele é. O autor também demostrou amadurecimento em relação ao modo de refletir sobre as próprias produções literárias e da maneira de se conceber como escritor, o que mostra as diferentes fases da vida do escritor e como isso influenciou a escrita de Fernando Sabino: de uma escrita encomendada a uma feita no tempo do próprio escritor. No capítulo a seguir, o estudo dos personagens e a relação com a cidade será essencial na composição do fazer literário de Fernando Sabino.

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4 A CIDADE E OS PERSONAGENS: SEMELHANÇAS

— Chegou a hora de puxar angústia (SABINO, 2011, p. 289).

Nos capítulos anteriores mostrou-se a fortuna crítica sobre o autor enfatizando-se o fazer literário de Fernando Sabino e mostrou-se como o escritor, em seu estilo, elabora sua obra, com características tais como diálogos curtos, estilo rápido, uma certa face modernista, a importância dada ao personagem central, a rapidez das ações e das alterações de dimensões temporais. Na composição geral da narrativa, destacou-se o aspecto híbrido do texto, que o faz um romance com atributos cronísticos, a discussão sobre o romance se tratar de um romance de costumes, ou de formação, ou epopeia, ou drama, e sobre como o existencialismo aparece na obra aqui estudada. Tendo percorrido a fortuna crítica antiga e recente, discutido o significado da crônica, os hábitos do escritor em sua profissão de cronista de jornal, o aspecto híbrido do romance, as concepções de Sabino sobre a forma do romance e a importância da leitura em sua formação de escritor, passa-se agora, neste capítulo, a mostrar como as cenas da cidade, descritas pelo narrador em terceira pessoa, ao longo da narrativa, evidenciam como o espaço faz parte da composição não só do personagem principal, Eduardo Marciano, mas, também, de seus amigos Mauro e Hugo. Pontos como a praça, o viaduto, o cinema e as ruas comerciais de Belo Horizonte são significativos para explicar a relação entre os personagens e os espaços ocupados por eles no romance. Delineia-se, desse modo, o nascimento de Belo Horizonte, a sua construção e sua representação no romance. As cenas do romance serão aqui exploradas juntamente com a história de Belo Horizonte como cidade moderna. Nesse capítulo serão apresentadas as transformações da cidade em plena década de 1940 e como o romance de Sabino foi influenciado por isso. Em outro momento, têm-se os lugares das cidades demonstrando as fases da vida dos personagens, pelo que ocorre com Eduardo e seus amigos Mauro e Hugo. Será pautado que esses mesmos espaços não são meras paisagens, mas têm sua importância por mostrarem as fases de vida dos personagens e, consequentemente, serem parte delas. Mais adiante, a relação entre modernidade e tradição em Belo Horizonte será mostrada por meio dos estudos de Maria Zilda Ferreira Cury, ao trazer o contexto histórico de formação da cidade de Belo Horizonte, antigo Curral del Rei. Após a apresentação do contexto histórico da cidade, é apresentada uma abordagem na qual Belo Horizonte e outras capitais sofrerão a transferência de poder em seus territórios.

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Por fim, a última abordagem desse capítulo será mostrar duas gerações de escritores que pertenceram à Belo Horizonte: a geração do poeta Carlos Drummond de Andrade e a do próprio Fernando Sabino, com o intuito de estabelecer o modo como as gerações de escritores concebiam a cidade belorizontina.

4.1 O Encontro Marcado: um romance da literatura moderna

O encontro marcado foi publicado quando Brasília começava a ser projetada (DELGADO, 2007, p. 42).

O livro de Fernando Sabino foi escrito no período em que a capital mineira passava por grandes transformações urbanísticas e arquitetônicas e em que o mundo da arte estava impregnado das concepções do movimento modernista que influenciou diferentes gerações de escritores, sendo Fernando Sabino um deles. O autor inseriu-se no contexto de uma geração de escritores formados sob as concepções de modernidade da cidade e da literatura e, ao mesmo tempo, havia um gosto pelo fervor da brasilidade interiorana, gosto esse manifestado pelas tradições brasileiras, como será abordado no artigo de Maria Zilda Ferreira Cury no decorrer deste capítulo. O autor integra a geração literária da década de quarenta, geração essa que herdou do modernismo as inspirações de vanguarda e propôs a adoção de novos estilos estéticos e literários. De acordo com Lucilia de Almeida Neves Delgado (2007), em seu artigo “Cidade, memória e geração: a Belo Horizonte de Fernando Sabino”, essa geração “ensaiou seus primeiros passos sob a inexorável influência de um clima de eufórica e desafiadora renovação da conjuntura do pós-segunda guerra” (DELGADO, 2007, p. 41). A obra de Fernando Sabino trata de uma representação de um determinado tempo e a memória individual e as memórias das cidades, atreladas às temáticas do tempo e da geração, integram a matéria-prima do livro O Encontro Marcado. Nas palavras da autora,

O encontro marcado foi publicado quando Brasília começava a ser projetada. É um romance essencialmente urbano e pode ser considerado como espelho de uma época de crença no desenvolvimento, que teria na nova capital seu principal emblema. Uma nova capital que se constituiu como símbolo e monumento do progresso almejado. Dessa forma, o primeiro romance de Sabino inscreve-se entre as principais produções da literatura brasileira de inspiração urbana, que tem as cidades como seu cenário. (DELGADO, 2007, p. 42).

Nesse sentido, é possível compreender a constituição da cidade na obra muito além de simples espaço onde se localizam os personagens do romance. A cidade pode ser vista como

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componente importante tanto quanto o protagonista Eduardo e os outros ao seu redor, uma vez que cidade e personagens em muito se assemelham. Conceitos como urbanização, progresso, velocidade, multidão e industrialização, próprios dos tempos modernos, formam a base em que o romance foi criado, no período em que Belo Horizonte vivenciava uma modernização tardia, e Brasília estava no auge de sua construção para ser a nova capital do país. Em Baudelaire (1998), a referência de Modernidade é a cidade de Paris, em que o poeta viveu no século XIX, no Segundo Império. Naquela época, a cidade e a sociedade ocidental como um todo passavam por mudanças. Um dos fatores dessas mudanças é o surgimento da vida urbana e a mudança do cenário da convivência entre as pessoas que passa a acontecer nas ruas movimentadas. Nesse novo cenário, o sujeito se defronta com a multidão e nele também aparecem os contrastes sociais nesse mesmo espaço urbano. A modernização acontece também no comércio, principalmente o parisiense, com o surgimento das galerias e das vitrines iluminadas. No contexto dessas mudanças, Baudelaire trabalha e reflete sobre essas transformações, expondo isso tanto na vida quanto na arte. Segundo Teixeira Coelho (1998), em Baudelaire são encontrados temas que, combinados, desenham as linhas fortes da vida moderna, na qual ele distingue um lado épico tão fecundo quanto o da “vida antiga” e em que o artista contemporâneo poderia alimentar-se tranquilamente, deixando de recorrer às fontes da Antiguidade. Em relação ao conceito de Modernidade em Baudelaire, pode-se dizer que a Modernidade extrai do transitório aquilo que ele tem de eterno e estabelecer uma ponte possível entre a tradição e a continuidade, como afirma Coelho (1998):

É sobre esta base que Baudelaire chamará de “Modernidade” esse algo resultante da operação de extrair da moda o que ela tem de poético no histórico, de extrair do transitório o que ele tem de eterno. Modernidade que em arte existe apenas quando dialoga continuamente com a Antiguidade; Modernidade que, se for somente o transitório, o efêmero, o contingente, é apenas “metade da arte” que vai buscar sua outra metade no “eterno e imutável”. Modernidade feita de “belezas passageiras e fugazes”, como se encontraram na “vida presente”, mas que para transformar-se em obra de arte precisa recorrer à identificação daquilo que estabelece, com a tradição e a continuidade, uma ponte possível. (COELHO, 1998, p. 14, grifo do autor).

Fernando Sabino apresenta, em sua obra, esses mesmos traços aqui referidos por Coelho (1998) ao falar de Baudelaire: extrai, da vida de um indivíduo, o comportamento de um grupo social; registra uma paisagem singular e sua decadência e a torna perene ao imortalizá-la na literatura; trata da vida presente, com uma escrita do presente, marcada pela leitura da tradição (como será visto a seguir, a tradição está marcada quando os personagens

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do romance decidem repetir o mesmo ato realizado pelo poeta mineiro ao subirem no Viaduto Santa Tereza); extrai de uma geração o que pode falar de todas as gerações. É nesse ambiente que surge a figura de Eduardo Marciano, personagem de um Brasil que se urbanizava a passos largos:

É em meio aos vestígios da memória e das angústias próprias à modernidade, que o Fernando Sabino retrata um Brasil que, tal qual o personagem do livro, buscava inventar seu caminho. Um novo caminho a ser construído em meio às contradições do passado histórico nacional. Contradições atualizadas em um presente que se queria inovador. (DELGADO, 2007, p. 12).

Para Lucilia Delgado (2007), naquele momento o Brasil se modernizava, mas a literatura e as artes continuavam sendo consideradas como um adereço apenas, ou como atividades complementares aos empreendimentos econômicos, tidos como reais geradores de riqueza. Literatura e arte eram vistas, portanto, como retratos e representações do progresso ou como, nas palavras da autora, “brisas a arejar o cotidiano de uma vida moderna” (DELGADO, 2007, p. 12), que julgava uma nova e incontrolável aceleração do tempo. Fernando Sabino, simultaneamente, fazia um diálogo crítico no tempo histórico no qual produziu sua escrita. Ele e Eduardo Marciano, são, contudo, filhos da modernidade tardia de Belo Horizonte e do Brasil. De acordo com Renato César José de Souza (1998), no artigo “A última escola antiga” presente no livro Modernidades Tardias, usa-se o adjetivo “tardio” para se referir aos países colonizados que tiveram progresso tardio em relação aos colonizadores. O autor aponta o processo de modernidade que os países europeus vivenciaram desde o período das grandes navegações, em contraposição ao que ocorre nos países colonizados, nos quais o processo de modernidade acontecerá muito depois de deixarem o status de colônia. A modernidade tardia em Belo Horizonte pode ser representada por meio de um questionamento do protagonista Eduardo:

Nada importava mais, senão que haviam acabado com o banco da Praça. O novo prefeito fizera um estrago no jardim, pondo abaixo as belas touceiras de antigamente, substituindo tudo por uma grama rasa, bem aparada, ridícula. Os bancos agora eram de mármore, como túmulos. Nada mais o ligava àquele lugar: — Chegou a hora de puxar angústia. Chegou a hora. Mocidade velha, cansada, desnorteada, exaurida, quando chegaria enfim a tua hora? Quantos séculos de angústia coletiva te fizeram? Quantas horas de aflição foram vividas, quantos corações se extenuaram no amor e na esperança para te entregarem desamparada ao mundo novo? e que será de ti neste mundo? que será do mundo? Perguntas sem resposta e sem sentido que ele largava na praça avermelhada pelo crepúsculo. “Aqui outrora retumbaram hinos”, pensou, e logo se afastava dali. (SABINO, 2011, p. 289).

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Nessa cena, Eduardo vai a Belo Horizonte após a morte de seu pai e encontra uma cidade que não era mais a mesma que deixou. A vitalidade da geração do personagem já se esgotara e a cidade já não mais ligava a geração aos ideais e ao mundo que idealizaram. O pensamento do personagem resume o que a cidade foi um dia: “Aqui outrora retumbaram hinos” (SABINO, 2011, p. 289). No Brasil, desde as manifestações artísticas (após o processo colonial do país) viveu- se uma tentativa de acompanhar aquilo que se fazia na Europa. Em relação às artes, incluindo a arquitetura, toda experiência brasileira foi tardia se comparada, cronologicamente, aos países europeus, porém as criações se tornavam originais. De acordo com Souza (1998), “a modernidade do Brasil era tardia e, muitas vezes, inexplicavelmente, original em relação a seus modelos” (SOUZA, 1998, p. 106).

Lúcio Costa nos lembra, com relação às ideias de construções trazidas pelos colonizadores, que como roupa perfeita elas tinham que ser aqui adaptadas, considerando-se a nova realidade local. Novos materiais, novas formas e novas necessidades geraram então algo diferente do modelo que balizou as primeiras reproduções da arte e das construções no Brasil. (SOUZA, 1998, p. 106).

De acordo com Reinaldo Marques (1998), na concepção de Walter Benjamin, a modernidade é atrelada à constituição heroica. Isso porque

a modernidade oferece enormes resistências ao natural impulso produtivo do homem, desproporcionais às suas forças. Daí que a modernidade, para Benjamim, deva se manter sob o signo do suicídio, mas o suicídio como expressão de uma vontade e uma paixão heroicas, e não como renúncia. (MARQUES, 1998, p. 160).

Se a experiência da modernidade requer uma “constituição heroica”, o herói da modernidade é um herói melancólico. Pode-se considerar Eduardo Marciano como um herói melancólico na medida em que a angústia e a nostalgia caminham lado a lado com o protagonista. A começar pelo sonho nunca realizado de Eduardo: o de escrever um romance e ser um escritor reconhecido. Essa frustração do personagem fica mais evidente na segunda parte do romance, O Encontro, em que Eduardo vê sua vida adulta trilhando um caminho árduo, sem sonhos. É nessa fase da vida que também o protagonista evidencia a saudade de sua infância, de seus pais e de seus amigos de Belo Horizonte:

À tarde pensou em procurar alguém, um amigo, um conhecido. Não vou procurar ninguém, decidiu. Não tenho amigos, sou um homem sozinho, ninguém me reconheceria. Mas à noite, quando deu por si, estava entrando no bar de sempre. O que vim fazer aqui? se perguntava, depois de pedir um uísque. Jantara, fora a um cinema, estava sem sono, não tinha onde ir. Depois sinto vontade de conversar, não

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aparece ninguém que eu conheça, vou ao telefone, ligo para quem quer que seja, e me apanham na engrenagem maldita, começa tudo novamente... A sua solidão lhe pesava, espessa, impenetrável como um enigma prestes a ser decifrado — sentia-se devorado de uma nostalgia, pungente como uma recordação da infância — e era essa a outra espécie de nostalgia, de que lhe falava o Toledo, finalmente a reconhecia — o homem que ele finalmente era — sozinho, nu e indefeso diante de si mesmo — e seus ombros se curvavam junto ao balcão, como sob o peso de uma cruz. “Que eu devia mesmo é ir para casa, ler ou escrever”, pensava. “Não sou um escritor? Escrever, alguma coisa. O meu romance”. (SABINO, 2011, p. 337).

A angústia e a melancolia se manifestam no modo como o personagem vê a cidade, realidade sempre em transformação, signo da modernidade e da pós-modernidade. “Seus espaços coletivos constituem férteis celeiros para análises sociológicas, históricas, arquitetônicas e antropológicas, entre outras. As cidades são também cenários de rica produção literária, incluindo a memorialística e a ficção” (DELGADO, 2007, p. 45). Isso é o que acontece em O Encontro Marcado, quando Fernando Sabino constrói uma expressiva representação da vida urbana em que esteve integrado. Trata-se de um “retrato em movimento de uma conjuntura específica da história republicana brasileira, uma vez que o movimento de construção da representação é simultaneamente o de representação da realidade da vida social” (DELGADO, 2007, p. 45). Ao narrar a trajetória pessoal de Marciano, Sabino também apresenta a realidade social de Belo Horizonte das décadas de 1940 e 1950, em que “realidade urbana, personagens, temporalidade e memória de curta duração são elementos-chave da trama, que podem, por sua potencialidade criativa e foco na realidade, estimular e desafiar o historiador das cidades e da cultura” (DELGADO, 2007, p. 46).

4.2 Belo Horizonte: o perfil literário da cidade moderna

As cidades, como espaço de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas de registros da memória. (DELGADO, 2006, p. 117).

A importância da cidade de Belo Horizonte na conformação do romance O Encontro Marcado leva a refletir sobre como essa cidade é construída e como adquire o status de capital do Estado. Isso se torna importante exatamente pelo modo como personagens e cidade se entrelaçam no romance. Por esse motivo serão ressaltados alguns aspectos da cidade. Desde o período dos inconfidentes mineiros já se pensava em uma nova capital para Minas Gerais. O movimento para a mudança da capital começou após a proclamação da República e assim, em 12 de dezembro de 1897, foi inaugurada Belo Horizonte, a cidade planejada para ser a capital do estado. Belo Horizonte surge, então, no clima da ordem republicana sem recusar “seus heróis”. Ouro Preto, que era então sede do Estado, e se

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chamava ainda Vila Rica, já não apresentava condições de suportar o crescimento econômico e populacional que o novo cenário republicano despertava.

4.2.1 Transferência da capital: transferência do poder

Até a construção e a fundação da cidade de Belo Horizonte, houve a elaboração de um planejamento meticuloso que envolveu aspectos históricos, políticos e econômicos. A cidade foi construída inspirada nos modelos urbanos de Paris e Washington. A visão urbanística coube ao engenheiro Aarão Reis que optou por um “estilo arquitetônico de traçados geométricos, com ruas em formato quadriculado e avenidas no sentido diagonal” (MINAS GERAIS, 2015, p. 1) nas quais foram reunidos, nos limites da avenida do Contorno “os edifícios públicos, estabelecimentos comerciais e as principais obras de infraestrutura” (MINAS GERAIS, 2015, p. 1). Maria Zilda Ferreira Cury (2004), em seu artigo “Ouro Preto, Belo Horizonte, Brasília: a utopia da modernidade”, faz uma análise do percurso histórico da construção e idealização dessas cidades. Ao analisar o percurso da mudança da capital, de Ouro Preto para Belo Horizonte, Cury (2004) faz uma trajetória histórica e crítica dos ideais urbanos e culturais que estavam em torno dessas duas cidades mineiras. Após a Inconfidência Mineira e o esgotamento da extração de ouro da região, veio o século XIX, considerado um “século de trevas” para os que queriam a república e não a monarquia. Durante aquele século, Ouro Preto, a promissora cidade de ricas minas de ouro, entrou em declínio. Cury (2004) afirma que os republicanos consideravam Ouro Preto ultrapassada por suas características arquitetônicas e pelas limitações técnicas do processo extrativista, diferente do que ocorria naquele período em outras regiões. Segundo a autora, a cidade já não era mais o centro econômico do Estado quando a República foi instaurada no Brasil. Com o advento da República, houve vários movimentos separatistas em Minas Gerais. A intenção do novo regime instaurado no Brasil era evitar o desmembramento do estado com receio de desmembrar também o próprio país. Nas palavras da autora, a forma de evitar que o estado se desmembrasse veio com a

proposta de uma nova capital como ponto de convergência econômica e cultural aglutinadora que consolidou-se neste contexto de efervescência política do começo republicano: culto ao progresso e conservação da tradição de Ouro Preto como berço do nativismo e da identidade brasileira. Como já se registrou anteriormente, a mudança da capital mineira já fazia parte dos ideais dos inconfidentes. Assim, só

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aparentemente Belo Horizonte surgia do papel, “sem passado”. Sua construção se confundiu com a da ordem republicana que não podia dispensar um panteão de heróis. (CURY, 2004, p. 16).

Quando Belo Horizonte foi inaugurada, já havia uma proposta, desde a planta, de ocupação segregativa da cidade, pois poucos tinham a posse dos terrenos, e a maior parte pertencia ao próprio Estado. Nas palavras de Cury (2004), “o projeto correspondia aos ideais das elites brasileiras do final do século passado que desejavam a entrada do país no concerto das nações desenvolvidas, na ‘aventura da modernidade’” (CURY, 2004, p. 18). Segundo a autora, pode-se observar que esse modelo conciliava “modernização e práticas sociais excludentes e conservadoras” (CURY, 2004, p. 19) e isso denotava um modelo de modernismo pautado no subdesenvolvimento. Mas não é apenas a noção geral de urbanização da nova capital que contrasta com Ouro Preto. A arquitetura de Belo Horizonte se diferencia substancialmente da arquitetura de estilo colonial da antiga Vila Rica. Para Maria Zilda Ferreira Cury (2004),

as avenidas longas e largas, inspiradas nos bulevares haussmanianos, contrapunham- se às tortuosas e estreitas ruas ouro-pretanas e irradiavam uma perspectiva sem obstáculos para a visão, ligando os pontos extremos da cidade e controlando a circulação das pessoas. A rua organizava a passagem e a paisagem, o espaço da ordem, contraposta à desordem que caracterizava a rua colonial. Becos e ruelas, ornamentos e rococós eram coisas do passado colonial. A época, agora, exigia bulevares, praças e amplos espaços, uma cidade-jardim. (CURY, 2004, p. 20).

Outro fato importante da construção de Belo Horizonte é o de que muitas famílias de Ouro Preto se deslocaram para a nova capital, lembrando que só vieram aquelas que tinham condição financeira suficiente para morar na nova cidade. Assim, a cidade já nasce com um passado. Para Cury,

“transplantando” para Belo Horizonte, o passado colonial de Vila Rica, – onde sobressaíram artistas e literatos que conferiram peculiaridade à cultura das Minas – além dos costumes e estilo de vida, trouxe também a tradição jornalística e os grêmios culturais, o que favoreceu um florescimento rápido da atividade literária da nova capital. Desde sua fundação, já se observavam em Belo Horizonte manifestações literárias significativas, vindo a ser o público ouro-pretano leitor virtual dos seus intelectuais. (CURY, 2004, p. 22, grifo nosso).

O processo de modernização de Belo Horizonte, na concepção da autora, como em outros centros urbanos maiores, aparecia ligado à burguesia local, vigorosa para a época, que assumiu para si um perfil de mecenas, financiando e estimulando os projetos da nova geração. Nos anos 1930, o ecletismo inaugural que caracterizara a arquitetura de Belo Horizonte

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modificou-se, dando lugar ao estilo cubista e art-déco, assistindo a cidade à construção dos primeiros arranha-céus. Para tanto, foram necessárias algumas demolições que evidenciam a tensão entre o antigo e o moderno. Esse processo de alteração da arquitetura de Belo Horizonte marca a fisionomia da cidade como o novo que já apresentava em si a ruína futura, numa cidade que se renovava, praticamente, a cada 25 anos. Cada vez o contraste se intensificava mais: Ouro Preto, a cidade monumento, que deveria permanecer inalterada; a cidade-jardim, como Belo Horizonte era conhecida, rapidamente cedendo espaço ao concreto, com as novas edificações. De acordo com Cury (2004), também por essa época inauguraram-se obras que seriam consideradas como marcos de modernidade (e também da literatura mineira): os viadutos de Santa Tereza (1930), na época o maior vão de cimento armado da América Latina, e da Floresta (1936), as fontes das Praças Rui Barbosa e Raul Soares (1936), que se completavam com os letreiros luminosos a gás neon que se tornavam cada vez mais comuns na cidade. Em 1936 começou a funcionar o Aeroporto da Pampulha. É do final dos anos 1930 a construção do Minas Tênis Clube, até hoje referência para o lazer das elites e um incentivo ao esporte local, com grande destaque atual no vôlei e na natação23. Durante a formação da capital, idealizava-se uma organização urbana que determinasse uma ordem social que deixasse de fora do perímetro central tudo o que era considerado desordem e que significasse um tipo de conflito. A atual Avenida do Contorno (anteriormente conhecida como avenida 17 de Dezembro) abraçava toda a área central da cidade, estabelecia os limites entre as zonas urbana e suburbana e demarcava a área dos que seriam privilegiados, os que estavam na área interna da avenida. Nessa urbanização da nova capital de Minas, Ouro Preto só poderia ser lembrada como monumento. Com a inauguração da capital moderna, a cidade da extração do ouro, da oportunidade de enriquecimento desaparece e fica sendo um monumento histórico do estado. O poder político se desloca de Ouro Preto para a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, onde se instalara o centro do Poder Executivo. Percebe-se que este ciclo de mudança do local onde se concentra o poder de uma determinada região é recorrente. Recentemente, a Praça da Liberdade deixou de ser também o centro de poder político que ali se concentrava e seus prédios se transformaram em espaço de visitação turística nomeados de “Circuito Cultural Praça da Liberdade”. O poder administrativo de Minas Gerais foi transferido para a atual “Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves”, localizada em

23 É importante ressaltar que tanto o autor, Fernando Sabino, quanto o personagem, Eduardo Marciano, eram nadadores do Minas Tênis Clube, forte referência esportiva de Belo Horizonte.

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Venda Nova. A nova cidade foi planejada e construída com o intuito de reunir os servidores públicos, o palácio do governador, os prédios de secretarias de Estado, e os edifícios que compunham o centro do poder administrativo. Desse modo, no século XXI, a Praça da Liberdade se torna símbolo do poder que teve no século XX, se transformando, tal como Ouro Preto, em um monumento. Assim como em Minas Gerais, houve, no Brasil, mudanças das capitais, ou seja, dos centros de poder. A primeira capital do país foi a cidade de Salvador, na Bahia. Na época, o lugar tinha posição estratégica para os navegadores portugueses, uma vez que ali se comercializava a maior parte do pau-brasil que era extraído na região. No período de recém- chegada dos navegantes portugueses ao Brasil, Salvador era considerado um porto de apoio às navegações para o Oriente e também porto exportador de açúcar. Naquela época, a cana-de- açúcar era cultivada no Recôncavo Baiano e na região do Nordeste brasileiro. Com o passar do tempo, no século XVII, foram descobertos ouro e pedras preciosas em outros lugares do Brasil e seria necessário fiscalizar mais de perto essas regiões. Procurando deixar a administração colonial portuguesa o mais perto possível da principal fonte de riquezas da época, a região mineradora de Minas Gerais, Marquês de Pombal (o então administrador da colônia portuguesa) determinou que o Rio de Janeiro se tornasse a nova capital do Brasil. Foi nesse período que a Coroa Portuguesa, para evitar o desvio no transporte do ouro e das pedras preciosas, determinou que o ouro e os diamantes deixassem as terras mineiras apenas por trilhas concedidas pela realeza, que receberam o nome de Estrada Real. Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro passou a ser a sede de todo o império português, em 1808. Porém, após a decadência do ouro em Minas Gerais e a volta da família real para Portugal, a cidade do Rio de Janeiro também foi entrando em declínio quanto ao seu poder como centro político-econômico do Brasil. Durante a primeira metade do século XX, após a Proclamação da República, as principais cidades do país começaram a se transformar e a se modernizar com a política do começo republicano e o culto ao progresso do país. Enquanto, na década de 1950, Brasília estava sendo construída para ser a nova capital do país, a cidade do Rio de Janeiro estava deixando de ser o polo político e econômico, perdendo a condição de capital do Brasil. O Rio, tal como Ouro Preto, perde o status de núcleo que concentra os poderes do país para uma nova cidade moderna, planejada e construída com o intuito de ser a nova capital: Brasília. Na década seguinte, Brasília foi inaugurada, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, como o novo centro político-administrativo do país, tornando-se a terceira capital do Brasil. A partir dessa data, começou a transferência dos principais órgãos da administração

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federal para a nova capital, com a mudança das sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário Federais. Ao visualizar o processo de mudança que as capitais federais brasileiras sofreram, é possível fazer uma ligação direta entre Belo Horizonte e Brasília. Ambas foram projetadas, planejadas e construídas no auge da modernidade arquitetônica e urbanística no país. É importante ressaltar que antes de Brasília começar a ser erguida na década de 1950, em 1943, em Belo Horizonte, a Igreja de São Francisco de Assis havia sido inaugurada na capital mineira. A Igreja é parte do projeto arquitetônico da Pampulha encomendado pelo ainda prefeito Juscelino Kubitschek. Marina Holanda Souza (2012) faz um percurso histórico do símbolo turístico belorizontino. Por ter sido projetada pelo renomado arquiteto Oscar Niemeyer, “o conjunto arquitetônico é um marco da arquitetura moderna no Brasil e no mundo, abrigando vários ícones do modernismo brasileiro” (SOUZA, 2012).

Sendo uma das primeiras obras do arquiteto, com a qual ele ganhou reconhecimento em todo o país, Niemeyer encontrou a oportunidade de desafiar a monotonia que rodeava a arquitetura contemporânea, aproveitando-se da liberdade plástica que o concreto permite, dando início a sua arquitetura de curvas que o caracteriza até hoje (SOUZA, 2012).

O estilo arquitetônico inovador, de Niemayer, juntamente com o desejo de modernizar a cidade, de Kubitschek, fizera com que a Pampulha permanecesse como símbolo do auge da modernidade arquitetônica e urbanística de Belo Horizonte. O Encontro Marcado é uma obra escrita em e sobre Belo Horizonte, na mesma década em que o projeto de Brasília estava sendo desenvolvido. Fernando Sabino refletiu, na literatura, o processo de modernização pelo qual Belo Horizonte estava passando. Esse fato influenciou a geração a que ele pertenceu e as posteriores, pois a noção que foi difundida do novo e do moderno atrelados às cidades contemplava, também, a nova capital do Brasil, o que marca uma nova impressão sobre o país. Esse processo do modo como as cidades foram sendo edificadas, e de como cada uma vai perdendo espaço e poder significa também o processo de angústia e perda em que vivem os personagens de O Encontro Marcado. O processo de angústia do personagem Eduardo demarca o que ocorria em Belo Horizonte, no momento em que passava por várias modificações arquitetônicas, nos anos 1940, e no Rio de Janeiro esse processo será visto também, na segunda parte do romance, quando o personagem, estando na capital federal, sentirá uma espécie de nostalgia de sua infância em Belo Horizonte, e sentirá também uma espécie de deterioração íntima representada pela própria vida do protagonista e de suas

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relações na antiga capital do país. Isso demonstra, no romance, que tanto Belo Horizonte quanto o Rio de Janeiro já se encontravam em um momento de transformações arquitetônicas e perdas políticas representadas pelo sentimento de nostalgia experimentado por de Eduardo Marciano. O Rio, aos poucos, estava perdendo seu prestígio de capital federal para a nova cidade construída no centro-oeste brasileiro. Belo Horizonte, pelo olhar do protagonista, oscilava entre a tradição do provincianismo e a modernização de centro do Estado, o que significaria a perda de destaque na cena cultural brasileira. Essa visão do protagonista, no entanto, precisa ser relativizada. Ao nos distanciarmos dela percebe-se que as cidades perdem em certos aspectos, porém ganham em outros. Em Belo Horizonte, por exemplo, há produções culturais contemporâneas que ganham destaque nacional como Grupo Corpo, Grupo Galpão, Festival Internacional de Teatros e Bonecos, etc, o que também ocorria no início do século XX. É importante ressaltar que, no período histórico representado no romance, Belo Horizonte estava no auge da concepção de modernidade que motivou a construção da nova capital. Porém, a decadência humana visível na cidade também começa a ser evidenciada no romance de Fernando Sabino, uma vez que a sua construção foi idealizada de forma segregativa e separatista e a noção de ocupação urbana desejada pela elite era um tanto ilusória. Em O Encontro Marcado são identificadas cenas em que transparecem e a exclusão social na cidade ao se evidenciar uma situação em que uma parcela de cidadãos vive à margem dela. No trecho a seguir, observa-se uma cena em que o personagem Mauro fica indignado com o fato de, na cidade, existirem várias famílias de retirantes vivendo debaixo do Viaduto:

Era uma leva de retirantes dormindo debaixo do Viaduto. Haviam desembarcado na estação, não tinham para onde ir. Mais de cinquenta famílias: homens magros, sujos, mulheres de olho fundo e cabelo desgrenhado, crianças encardidas e seminuas, trouxas de roupa, esteiras, baús, promiscuidade, mau cheiro, abandono. Revoltado, Mauro saiu dali e telefonou do primeiro botequim ainda aberto, para o palácio do arcebispo. — Falar com o arcebispo? A esta hora? — Quem está falando? — É o irmão José, da portaria. Quem é o senhor? — Um cristão. Basta? — Um cristão? — Chama o arcebispo aí, homem de Deus. — A esta hora o arcebispo está recolhido, não pode atender — informou o irmão, cautelosamente. — Não pode atender? Até uma farmácia pode atender dia e noite e o representante de Deus não pode?

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— O senhor quer falar com o padre Marques? Ele está aqui. Veio ao telefone uma voz macia, melíflua, delicada: — Alô? — Escuta, padre, quero que o senhor transmita um recado urgente ao arcebispo. Na cidade, debaixo do Viaduto, tem mais de cinquenta famílias de miseráveis dormindo ao relento. São retirantes, parece. Cristãos, como qualquer de nós. E como cristão, exijo que sejam todos albergados aí no palácio. — Aqui no palácio? — espantou-se o padre. — Mas não há lugar para tanta gente... — Essa é muito boa: não há lugar! O senhor se esquece de que com sete peixes Cristo alimentou uma multidão inteira? — Não posso fazer milagres... — Olha, padre, que eu não estou brincando. — O senhor podia dar o seu nome? — Mauro Lombardi. Diga ao arcebispo que em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo... — Pois não... Pois não... — São uns vendidos — disse ele, desligando o telefone. — Deviam dar o exemplo. — Por que você não leva para sua casa? — sugeriu Hugo. (SABINO, 2011, p. 98- 100).

Como se vê, a atuação de Mauro em favor dos necessitados questiona antes a Igreja que o Poder Público. Ao invés de ligar para algum órgão público responsável, direciona a ligação para o arcebispo, ou seja, o que representa os preceitos cristãos na sociedade. Com esse gesto, o personagem denuncia uma dupla decadência, a da cidade moderna cujo progresso não inclui os mais pobres e a da Igreja, uma vez que, na cena, o padre é pego de surpresa pela denúncia de Mauro. Em outra obra de Fernando Sabino tem-se situação semelhante. A decadência humana/urbana está representada na figura de Geraldo Viramundo, personagem principal de O Grande Mentecapto. Essa obra encena a grande diferença de classes sociais na sociedade mineira com muita ironia, sarcasmo e humor. Nela, as cidades mineiras, que foram palco dos anos dourados da Inconfidência, são apresentadas como trajetos que Viramundo percorre, e, ao fazê-lo, mostra a exclusão social nas várias cidades em que o personagem transitava, até chegar a sua morte, também como excluído da cidade, ao final da narrativa. A cena a seguir mostra a morte do cego Elias, amigo de Viramundo, que foi brutalmente espancado até a morte a mando do próprio delegado. A decadência é mostrada por um sistema baseado no abuso de poder da própria polícia e da cidade sem nenhuma condição de integrar os menos favorecidos.

Encontraram o velho Elias estirado no chão de terra do porão que lhes servia de abrigo. Viramundo ajoelhou-se e tomou-lhe a cabeça branca nas mãos, sem saber se ainda havia vida por detrás daqueles olhos opacos. Mas o velho ofegava, engasgado, e afinal abriu a boca para deixar escorrer um filete de sangue. Viramundo chamava- o pelo nome, ansioso, abraçava-o, beijava-lhe os olhos:

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– Elias, o que fizeram com você, Elias, por que fizeram isso, meu Deus... – e soluçava, molhando de lágrimas o rosto do amigo. Em pouco era um corpo sem vida que ele apertava desesperadamente nos braços. Mais tarde era o delegado que chegava e tomava as providências para abafar o crime que seus comandados haviam cometido. Mandou que o rabecão do necrotério transportasse naquele mesmo dia o corpo da vítima para Ouro Preto em companhia do filho, conforme desejo deste, depois que o legista passou o atestado de óbito em que se lia: Causa mortis – ignorada. (SABINO, 1982, p. 108-109).

A decadência humana/urbana é representada tanto em O Encontro Marcado quanto em O Grande Mentecapto: em contextos diferentes, o autor encena como as cidades são excludentes em relação a determinada parcela da população e como instituições como a Igreja, por exemplo, não conseguem conter as falhas presentes na sociedade, uma vez que o Estado não abarca todas suas reponsabilidades. Essa decadência humana encenada através das necessidades de condições incorruptíveis se reflete também na urbanização que compõe o cenário literário; em O Encontro Marcado, o viaduto, que tem uma função no espaço urbano, passa a exercer outra função: a de abrigar famílias. O mesmo acontece em O Grande Mentecapto: as cidades históricas mineiras, monumentos de valor cultural para a humanidade, também possuem seu contingente populacional dos que vivem à margem dos centros das arquiteturas arcaicas, representado pelo próprio personagem Viramundo.

4.2.2 Os escritores na cidade moderna

Para Maria Zilda Cury (2004), as primeiras produções intelectuais da nova capital vieram, cultural e fisicamente, do passado colonial da antiga Vila Rica. Isso nos possibilita dizer que a atividade literária em Belo Horizonte recebeu, de algum modo, a tradição vinda de Ouro Preto. De acordo com a autora, em relação à formação e composição intelectual e literária da capital, durante os anos 1920 e 1930, o movimento pró-universidade se acentuara e nesse momento alguns fatores serviram para acelerar a fundação das primeiras escolas de ensino superior de Minas Gerais. A maioria dos modernistas belo-horizontinos passaram pela faculdade de Direito, constituindo-se em um grupo homogêneo e interessado em resgatar o regionalismo cultural mineiro e retomar a tradição cultural do século XVIII. Ao refletir sobre a tensão entre o perfil de cidade tranquila e aceleração da vida urbana de Belo Horizonte, Cury (2004), aponta que

Se, por um lado, Belo Horizonte continuava a ser, político-administrativamente, uma cidade tranquila, por outro recebia mineiros vindo de todo o Estado, acelerando-se

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sua vida urbana e comercial, centralizando aos poucos a sua vida cultural. Já que a elite política andava de braços com a intelectual, a soma desses fatores contribuiu para a realização do sonho dos Inconfidentes de criação de uma Universidade. (CURY, 2004, p. 28, grifo nosso).

No fim da década de 1930, Belo Horizonte já se configurava como um centro polarizador do estado, cultural e economicamente falando. O movimento modernista, na capital mineira, teve seu começo nos anos 1920 e atinge seu ponto mais alto na década de 1940, ao se tornar um polo centralizador de tendências culturais e artísticas. A autora cita uma leva de escritores que vieram para “ocupar o espaço cultural da jovem capital das Minas” (CURY, 2004, p. 28):

Belo Horizonte, por esta época, atraiu uma leva bem grande de escritores, todos ansiosos por ocupar o espaço cultural da jovem capital das Minas, de seu ambiente simultaneamente progressista e conservador. Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, João Alfonsus, Pedro Nava, Aníbal Machado, Abgar Renault, Milton Campos, Mário Casassanta, todos muito jovens, desejosos de tomar posse da cidade e de superar seu ambiente acadêmico provinciano e conservador. (CURY, 2004, p. 28).

Os intelectuais citados pela autora são considerados uma geração de escritores que, durante os anos de 1920, compuseram a cena literária da nova capital mineira. Eles transitaram entre a tradição, a influência dos poetas inconfidentes mineiros, a modernidade e a influência dos modernistas paulistas. Para compreender o modo como Fernando Sabino representa Belo Horizonte e Eduardo Marciano no seu romance, é de suma importância observar o modo como a geração de escritores anterior à dele representava Belo Horizonte na escrita. No livro A Belo Horizonte dos modernistas: representações ambivalentes da cidade moderna, de Luciana Teixeira de Andrade, a autora analisa as representações da cidade moderna na escrita de Cyro dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava. Na literatura dos três autores destaca-se a ausência de representações da cidade moderna como lugar das transformações aceleradas, dos contrastes, da heterogeneidade e das instituições culturais e artísticas. Pelo contrário, Belo Horizonte foi representada como provinciana pelos escritores. A autora vai expor a questão da artificialidade da modernidade que aparece em Cyro dos Anjos e em Carlos Drummond. Em Cyro dos Anjos há um aspecto positivo quando ele vê “na ausência de passado e tradição um ponto a favor das novas gerações” (ANDRADE, 2004, p. 176). Em relação a Drummond, essas representações, embora sejam recorrentes em suas obras, apresentam as transformações da cidade sempre com uma avaliação negativa. Para Andrade (2004), os três escritores

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privilegiaram a parte central de Belo Horizonte, principalmente a rua da Bahia, centro da vida urbana, intelectual e boêmia, ainda que Nava explore, mais que os outros, as regiões periféricas. E, como suas relações sociais se circunscrevem aos estratos médios da sociedade, estes ganham destaque em suas obras, assim como seus locais de residência, trabalho e diversão. (ANDRADE, 2004, p. 176).

Como esses escritores migraram de suas cidades para a nova capital de Minas, Drummond, de Itabira, Pedro Nava, de Juiz de Fora e Cyro dos Anjos, de Montes Claros, a cidade e sua representação será marcada como lugar da perda das referências físicas, sociais e afetivas. De acordo com Andrade (2004) isso ocorre não porque a cidade estava em constante fluxo, mas por causa da mudança deles do interior para a capital. Segundo ela, eles traziam consigo experiências sedimentadas de um mundo mais estável e definido. Na capital se deparam no plano espacial, mais destacado por Drummond, ou no social-afetivo, com uma ordem na qual ainda não se sentem em segurança. A autora acredita que será Drummond o escritor dessa geração que mais consegue perceber as características da cidade moderna em Belo Horizonte:

Drummond, o mais identificado com o modernismo, é o que mais percebe em Belo Horizonte as características das cidades modernas, mas é o que mais se opõe a chamá-la de moderna, pois tal palavra tinha na época uma conotação claramente positiva e, sendo um crítico da cidade, preferiu o contrassenso de chamar de velha a mais nova capital do país. (ANDRADE, 2004, p. 177).

De acordo com Andrade (2004), Drummond referencia a cidade como um espaço moderno e oferece a ela sempre um caráter negativo, mesmo sendo na capital mineira o local onde se tomava contato com as ideias modernistas e se publicavam as produções literárias de seus escritores. Maria Zilda Ferreira Cury (2004), ao apresentar essa mesma geração, acrescenta aos três escritores lembrados por Andrade (2004), as figuras de João Alphonsus e Emílio Moura. Segundo ela, essa geração de escritores já apontava para deslocamentos do eixo cultural Rio- São Paulo “inscrevendo-se com especificidade no processo renovador colocado em curso pelas vanguardas do país e do exterior” (CURY, 2004, p. 29) e mostravam como Belo Horizonte fazia parte dos processos de modernização cultural e literária que ocorria em cidades importantes do país. Cury (2004) alerta que

no caso dos intelectuais mineiros, a oportunidade que logo se abriu para eles nos jornais da capital fazia parte da estratégia de setores da oligarquia que imprimiam certa modernização, visando basicamente a manutenção do poder e a continuidade do esquema vigente de exclusão social de outras classes. Houve um choque frontal entre o antigo (representado pelos setores tradicionais da

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oligarquia), o moderno (representado pelas tendências industrializantes) e a emergência do novo (representada pela maior atuação das camadas populares). O grupo fez parte deste projeto das elites que se empenharam, articuladamente, em garantir a “continuidade na mudança” na geração de seus próprios intelectuais. Esses jovens não eram interioranos homens de letras perdidos na cidade grande, mas uma geração bem nascida, bem educada, e represada em suas aspirações de influência e poder, formando uma intelligentsia, que ansiava por alcançar posições políticas. (CURY, 2004, p. 29, grifo nosso).

Todos esses intelectuais e escritores ocuparam lugares no Aparelho de Estado, todos eles saíram da cidade de Belo Horizonte, a maioria para a capital da República, Rio de Janeiro. Apesar disso, por outro lado, contrariando ou não os grupos no poder, respondendo a seu modo às condições modernizantes da cidade e às influências literárias modernistas, o grupo de Belo Horizonte teve presença renovadora no cenário: divulgou produções de escritores de outros Estados, investigou o clima que se vivenciava em outras capitais e a ele deu resposta própria e original. Esses intelectuais cumpriram, por assim dizer, papel de “atualizadores” do meio cultural em que viviam. Sobre o fato de que a modernidade da capital mineira está ligada à tradição, Cury (2004) pontua que

O fascínio pelo espaço urbano que se modernizava foi característica marcante do Modernismo, atração arraigada nas condições reais de desenvolvimento das cidades do Brasil da época, sob a influência dos diversos ismos europeus. Também entre os modernistas belo-horizontinos a sedução exercida pela cidade apareceu desde os primeiros poemas publicados em jornal. Mas não foi somente a cidade futurista, movimentada e barulhenta, que perdurou na obra do grupo mineiro. Nela, bem marcantemente, foi retrabalhada a tradição – não raro tomada como peso, muitas vezes representada pelas montanhas de Minas: na ficção de João Alphonsus, nas reminiscências da maturidade de Nava, na poesia de Drummond. (CURY, 2004, p. 30, grifo nosso).

Na metade da década de vinte, os modernistas, de forma articulada, mostraram-se ao mundo por meio de uma publicação: A Revista. Publicação de quatro números apenas, de pouca duração, como tantas outras do mesmo período, nem por isso foi menos importante como espaço que mostrou para Minas e para o resto do país que Belo Horizonte também tinha um grupo modernista. A essa geração, sucedeu-se a de Fernando Sabino, nos anos de 1940 e 1950. Os temas com os quais a geração dos anos 20 se debateu, a complexidade, a inquietude, o questionamento e o deslocamento, são os mesmos com o que se debateram os jovens das décadas de 40 e 50, e estão presentes no romance de Sabino. Como analisado por Lucilia de Almeida Delgado (2007), o personagem Eduardo Marciano buscava inventar e construir seu caminho em meio às contradições do passado

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histórico nacional, “contradições atualizadas em um presente que se queria inovador” (DELGADO, 2007, p. 7). O país que se urbanizava rapidamente acabava se tornando um “mundo enigmático” para Eduardo, que construiu seu destino marcado por dúvidas existenciais. Os vestígios da memória e das angústias próprias à modernidade contribuíram para as angústias não só de Eduardo, mas, também, de seus amigos Mauro e Hugo. O autor mineiro nasceu em 1923, em uma época cujo signo do modernismo foi difundido pelo país. Esse fato fez com que se renovasse o campo artístico no Brasil em razão da forte influência da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922. O movimento modernista influenciou, com suas propostas de revolução estética, conceitual e de conteúdo, diferentes gerações de escritores e artistas. A proposta modernista chegou a Belo Horizonte, como visto anteriormente, pelas mãos de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos e Pedro Nava, que, se por um lado, foram atraídos pela revolução modernista, por outro, continuaram a cultivar, de forma ambígua, muitas das tradições nacionais e mineiras. Fernando Sabino e os outros escritores dessa época “herdaram” de seus predecessores aquilo que configurava as suas propostas: a revolução modernista e a tradição brasileira/mineira. Isso é perceptível, por exemplo, em O Encontro Marcado e também em O Grande Mentecapto. No caso deste último, aprecem traços da cultura mineira, desde o hospício tradicional de Barbacena até a poesia de Tomaz Antonio Gonzaga. A respeito dessa herança recebida pela geração de Sabino, Lucilia de Almeida Delgado (2007), em seu artigo “Tempo de reencontro em Fernando Sabino: memória, literatura, história e modernidade” aponta que “Sabino inscreve-se em uma geração de escritores, formados sob a influência dessas concepções, que valorizavam a revolução urbana e ao mesmo tempo se rendiam ao fervor da brasilidade interiorana, através do gosto manifesto pelas tradições brasileiras” (DELGADO, 2007, p. 148). Outros escritores que compuseram essa geração juntamente com Fernando Sabino foram seus principais companheiros de jornada e de interlocução, desde os tempos de juventude até a vida adulta: o escritor e psicanalista Hélio Pelegrino e os também escritores Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, conhecidos como “os cavaleiros do apocalipse”. Em Belo Horizonte, os quatro moravam próximos uns dos outros: Fernando, na Praça da Liberdade; Hélio, na rua Bernardo Guimarães; Paulo, na avenida Paraúna, que hoje se chama Getúlio Vargas, e Otto, na rua Alagoas. Andavam juntos o tempo todo. Podia-se fazer o percurso desses quatro endereços a pé, no máximo em um quarto de hora. Raramente andavam de carro. Primeiro, porque havia muito menos facilidade do que hoje; segundo,

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porque durante a guerra havia total racionamento de gasolina. O depoimento de Otto Lara Resende, encontrado no estudo crítico de Flora Christina Bender (1988), ilustra essa proximidade da habitação dos amigos e do exercício da boemia entre eles:

“A gente usava o bonde ou então era o pé de dois mesmo”, diz Otto. “Um telefonema para o outro e um minuto depois eu e o Hélio nos encontrávamos no meio do caminho, num botequim da rua Tupis. Do ponto de vista topográfico, o Fernando talvez estivesse mais próximo, mas quando ele fazia o CPOR, não podia dormir tarde. O Hélio também tinha aula muito cedo, então eu ficava com o Paulinho até mais tarde; ia até a casa dele levá-lo, depois ele vinha me acompanhar até a metade do caminho... Andávamos e conversávamos muito, éramos peripatéticos”. (BENDER, 1988, p. 36).

No início da década de 1940, Fernando Sabino também se tornou funcionário público. Por meio da influência de seu sogro, pai de sua noiva Helena Valadares e então governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, Sabino é nomeado oficial do cartório de Registro de Interdições e Tutelas. Nesse período da juventude de Sabino e seus amigos as transformações da cidade de Belo Horizonte continuavam. No início dos anos 40, Belo Horizonte, sob a administração de Otacílio Negrão de Lima e, posteriormente, de Juscelino Kubitschek. se modificava rapidamente, presa da especulação imobiliária, assistindo à destruição de seus pontos tradicionais e com uma crise habitacional intensa. Ao mesmo tempo, é o espaço pujante de modernidade. Os escritores mineiros das duas gerações aqui mencionadas expressaram na literatura as transformações e contrastes da nova capital mineira. O memorialista Pedro Nava (1976) demonstra essas mudanças, por meio das transformações percebidas na Avenida Amazonas:

A Avenida Amazonas só tinha quatro quarteirões e a cidade mandava tímidos prolongamentos para a Serra, a Barroca, o Calafate, o Bonfim, a Floresta. (...) Entretanto crescera para além do Cruzeiro, materializara o círculo da Avenida do Contorno, tomara conta do Barro Preto, canalizara o Córrego Leitão, asfaltara o Centro e ligava-se, sem descontinuidade, ao Calafate, ao Carlos Prates, ao Bonfim, à Lagoinha. Estendeu-se mais ainda, em todas as direções (...) mas não vai parar! (NAVA, 1976, p. 144-145).

Outro monumento de Belo Horizonte que foi marcante para os escritores mineiros até a década de 1940 é o Bar do Ponto. O estabelecimento foi fechado em 1940 e demolido em 1959. No local foi construído o hotel Othon Palace. Nava assim o descreve:

O café chamado Bar do Ponto estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina

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do Bar do ponto. Encontros de amigos, encontros de obrigação. O nome acabou extrapolando, se estendendo, ultrapassando o estabelecimento, passando a designar o polígono formado pelo cruzamento de Afonso Pena com Bahia – local onde termina também a ladeira da rua Tupis.” (...) Bar do Ponto é um vasto hexágono irregular que tive várias vezes a honra de atravessar, no tempo em que se o fazia flanando, conversando, sem esperar o pare e o siga da luz vermelha, da verde, das mangas brancas dos guardas e do trilo de seus apitos”. (NAVA, 1985, p. 4).

A Pampulha, o monumento símbolo da modernização de Belo Horizonte, também é muito apresentado, como é o caso de escritores como Moacir Andrade (1985):

Modernizou-se a Capital também nas Artes. Criou um Museu de Arte Moderna, num local que foi marco pioneiro da Arte Moderna no Brasil: a Pampulha. (...) Essa Pampulha nasceu da audácia do engenheiro e Prefeito Otacílio Negrão de Lima. Os visitantes da capital achavam-na bonita, gabavam-na, mas diziam que só lhe faltava ter mar, para completar o quadro de maravilhas... O prefeito engenheiro era inteligente e corajoso. Não havia mesmo mar e era impossível trazê-lo. Viu a mataria da Pampulha à ilharga da Capital. (...) Juscelino Kubitschek completaria o arrojo, porque foi o prefeito que veio depois. Quis a Pampulha, padrão de Arte Moderna, escandalizasse a quem escandalizasse... Chamou Niemeyer, Portinari e outros do mesmo naipe. E surgiram as construções atrevidas pela originalidade: a Igreja, o Iate, o Cassino. A Pampulha, antes matagal, passou a ter fama no mundo. (ANDRADE apud CAMPOS, 1985, p. 124-125).

Outro espaço muito referido é a rua da Bahia. Paulo Mendes Campos (1996) utiliza um tom de saudosismo e, ao mesmo tempo, de nostalgia para falar dela:

A vida é esta, descer Bahia e subir Floresta. Quem não morou em Belo Horizonte, ao ouvir o mineiro suspirar num momento de cansaço e bobice – a vida é esta. Descer Bahia e subir Floresta – não há de entender, perdendo-se em noções de selva e Estado. Nada disso. A vida é descer a rua da Bahia, que tinha dois ou três quarteirões de cidade grande, de prazer; depois que se atravessava o estirão da avenida Afonso Pena, a Rua da Bahia caía em declive desagradável para o vale das estações de estrada de ferro, ficava desolada, comprida e estéril, acabando por subir sem fôlego e sem esperança o bairro da Floresta. Era a vida. Mas a Rua da Bahia, com seus dois quarteirões comerciais, era a rua. Sem a vastidão da Avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se de admirá-la, a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação. (...) Mas, como todo mundo enquanto vivi, nunca deixei de percorrer a Rua da Bahia, única rua de Belo Horizonte que dava a impressão de poder conduzir-nos para fora do espaço moral de Belo Horizonte – uma chateação colante e quase indolor naqueles tempos. Contam mesmo a história patética dum repórter maduro que, fechado o jornal, subia devagar a Rua da Bahia, seus passos ocos ressoando no silencio espetacular de Minas Gerais, seus olhos de dromedário espreitando as casas todas, na esperança de que uma janela se abrisse e uma senhora deslumbrante o convidasse para entrar. Pois durante anos a fio as janelas da Rua da Bahia permaneceram herméticas como a virtude. No cemitério do Bonfim o jornalista repousa de suas andanças. A vida é esta. (CAMPOS, 1996, p. 155).

Ao observar as ilustrações de excertos dos escritores mineiros, nota-se que a transitoriedade da cidade moderna não deixou apenas marcas na cidade com as modificações

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arquitetônicas, mas, também, na própria literatura mineira por meio da memória de seus escritores e leitores. O Encontro Marcado, além de apresentar Eduardo Marciano e sua vida, incorpora também praças, ruas, avenidas, hotéis, bares, pontos boêmios da cidade, referências nas quais o personagem enfrentou as dificuldades e as convivências com os amigos durante a transição da juventude para a idade adulta, “como as vicissitudes e prazeres do cotidiano da maturidade” (DELGADO, 2007, p. 41). Em relação ao romance, pode-se notar o modo como os personagens interagem com a própria organização da cidade e a reflexão que eles fazem dela e das pessoas:

Eduardo deixava o paletó na repartição, esquivava-se pela porta como se fosse ao mictório, ganhava a rua, ia encontrar-se com Mauro e sua pasta de remédios: — Besta-Fera, está uma tarde belíssima. Vamos à Pampulha tomar uma cerveja. — Você está doido? Não posso, de jeito nenhum. — Não analisa não. (...) — Experimente olhar a cidade com olhos de turista. Olha aquela casa ali, que esquisita. Estamos em Beirute. Olha a cara das pessoas. Todo mundo tem dois olhos para ver, que coisa estranha. É preciso ver a realidade que se esconde além, onde a vista não alcança. Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade. Palma Cavalão, você é uma flor por ter tirado o meu emprego, não trabalho mais. Não sou mais representante de remédios, não sou mais representante de coisa nenhuma, a não ser das minhas contradições mais absurdas. Você é a última flor do Lácio, inculta e bela! Devíamos ter trazido o Radiguet. Hugo também estava trabalhando: arranjara um lugar de professor de português, num colégio particular. Vivia se queixando da saúde, não podia beber, tinha dor de cabeça, tinha de acordar cedo, de corrigir provas, um milhão e meio de encargos, era um infeliz, seu pai lhe pedira que pusesse uma carta no correio, como pôr uma carta no correio se não tinha selo? como comprar selo, entrar na fila, esperar, oh, viver como era difícil, não, não podia sair com eles, não tinha dinheiro, não tinha onde cair morto, estava mesmo para morrer, sentia umas cólicas, umas pontadas... — Não posso, de maneira alguma. — Não analisa não! — Dentro de meia hora estarei aí. (SABINO, 2011, p.87-88).

Nota-se que, neste trecho, a Pampulha será o encontro boêmio dos três amigos. O trabalho fica de lado quando a famosa frase “Não analisa não” é dita por um deles. O lugar da boemia tem seu destaque no romance, uma vez que a juventude ainda é sinônimo de boemia também. O fato de os amigos tentarem olhar as ruas e as pessoas com olhar de turistas faz com que eles experimentem uma tentativa de saírem de seu lugar comum e verem o que se esconde além da realidade, “onde a vista não alcança”. Esse ato de iniciativa de Eduardo demonstra que ele reflete sobre o lugar que ocupa na cidade: o de ter um olhar de artista, mesmo sabendo que, mais a frente, seu desejo não se concretizaria. O livro integra traços autobiográficos e traços ficcionais e busca na memória do escritor a imagem e a lembrança do olhar vivido. Por ser um livro que trata da memória de

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uma geração, nele se destaca também o mito de origem inerente à sua identidade urbana e à sua memória individual, entrelaçada às memórias social e citadina:

As cidades, como espaço de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas de registros da memória. A pena dos escritores faz dessas paisagens, personagens vivas de narrativas, que, na interseção com a História, expressam, de forma policromática, a vida das pessoas no cotidiano de suas ruas, praças, cafés, escolas, museus, residências, universidades, fábricas, repartições públicas, bares, cinemas. As cidades são cristais de variadas luzes, entre elas as da memória, que, com sua temporalidade sempre em movimento, reencontra os lugares de ontem com sentimentos do presente. (DELGADO, 2006, p. 117).

Em O Encontro Marcado isso se torna visível quando, por exemplo, Eduardo e seus amigos pensam ter visto o demônio:

— Eduardo. — O quê? — Estou com medo. — Eu também. — Você não acha que este lugar... Foram interrompidos por um ruído atrás do banco. Levantaram-se, assustados, voltaram-se, e viram — ambos viram — um homem alto, magro, lívido vestido de smoking, um cravo vermelho na lapela, sorrindo para eles. Com um grito de pavor precipitaram-se para a ponte e, em poucos segundos, estavam na rua. Pararam ofegantes, e puseram-se a rir, um riso nervoso, descontrolado. Na fuga, Eduardo deixara cair a caneta do bolso, Hugo torcera o pé. — Você também viu? — Quem era? — Vestido a rigor, no Parque, a esta hora? Só pode ser o demônio. — Reparou no sorriso, na palidez? — Que diabo estaria fazendo ali, atrás de nós? — Quando chegamos não havia ninguém, tenho certeza. — Naquelas touceiras, talvez... — Eu estava justamente pensando na estátua de Anita Garibaldi, a solidão da estátua naquela ilha... Senti uma coisa... De repente, olho para trás... — Alguém que tivesse saído de uma festa, talvez bêbado. O Automóvel Clube é ali perto. (...) Falaram a Mauro sobre o homem de smoking. — É o terror — dizia Mauro, entusiasmado, porque não tinha visto. Subiam a rua em direção à Praça. (SABINO, 2011, p. 92-94).

O Parque Municipal se torna o lugar da memória onde os amigos vivenciaram cenas cômicas, típicas de cidade provinciana, ao mesmo tempo em que as reflexões existencialistas dos personagens se tornam frequentes entre eles. A dualidade entre provincianismo e modernidade está presente nesta cena: a questão da melancolia dos personagens em uma época em que o auge da modernidade da cidade já havia passado e a comicidade da cena em que se assustam ao pensarem ter visto o demônio perto de um salão para festas da cidade.

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4.3 Eduardo, Mauro, Hugo e Belo Horizonte: personagens e espaço entrelaçados

Ao longe o sol se escondia no horizonte de Belo Horizonte, céu arroxeado. (SABINO, 2011, p. 34).

Pode-se observar no romance que a tendência de o personagem viver intensamente os espaços da cidade se materializa em uma espécie de entrelaçamento entre os espaços urbanos e os personagens; isso se dá, principalmente, pelo fato de que a cidade está entrelaçada à memória. No romance, tanto na primeira parte da obra, A Procura, quanto na segunda, O Encontro, há uma interação forte dos personagens com o lugar no qual estão inseridos, seja pela lembrança da infância, pelas confusões da adolescência ou pela boemia na vida de adultos. A lembrança da infância aparece, por exemplo, em cenas tais como a do primeiro beijo de Eduardo. Nela, personagem e lugar se enlaçam de tal modo que o conflito do personagem está refletido no espaço urbano por meio da melancolia, quando o primeiro beijo acontece:

Letícia mudara-se para o bairro de Santo Antônio. Era de tarde no bairro de Santo Antônio, passeavam de mãos dadas. Ao longe o sol se escondia no horizonte de Belo Horizonte, céu arroxeado. Aquela hora deixava Eduardo triste: crepúsculo era coisa triste. Não respondeu. As sombras dos dois se alongavam, compridas e finas, como as de duas árvores. Letícia diferente, seu corpo ia-se transformando, os peitinhos já sobressaíam na blusa de jérsei, modos de mulher. – Leticia – Eduardo parou, segurou-a nos ombros. – Estou triste, eu queria... Eu queria... – Fala – a menina o olhava com ternura, emocionada, à espera. – Não sei – seus olhos se encheram de lágrimas. – Não fica assim, meu bem. – Tudo é tão ruim, Letícia. Tudo tão triste. Abraçou-se a ela. – Não fique triste. Você está comigo. Beijaram-se pela primeira vez. Eduardo se sentia tonto, alguma coisa estalava e rompia no seu coração: – Letícia, que será de mim, Letícia, responde! Que será de mim. (SABINO, 2011, p. 34). . Mesmo em momentos da infância como esse, ressalta-se a melancolia do personagem, pois no que seria um momento sublime para ele, há profunda tristeza e questionamentos sobre si próprio. A adolescência, por sua vez, demonstra ser uma fase mais intensa para os jovens amigos, quando Eduardo deixa a amizade de Mauro por um tempo. O espaço, agora, da escola já não é mais semelhante à melancolia do espaço do primeiro namoro:

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NA PRÓPRIA piscina havia muito que aprender. Os rapazes perdiam horas e horas conversando, distraindo-se, inventando brincadeiras. Um dia, invadiram o vestiário das moças, houve pânico, gritaria, suspensões. Um dia, dois deles foram surpreendidos juntos no vestiário vazio, acabaram expulsos. Um dia, uma das moças foi deflorada no alto do último trampolim, teve de casar-se na polícia. Seus novos amigos: andava com eles de automóvel, pôs a primeira gravata, começou a frequentar festas. Onde ficava Letícia em tudo isso? Não ficava em parte alguma: tudo se acabara entre os dois, sem que ele soubesse explicar como nem por quê. No Ginásio já não era dos melhores alunos; refugiava-se entre os que ignoravam os estudos, só queria passar de ano. Abandonou Mauro, seu antigo companheiro. Um dia Mauro o provocou, na aula de História Universal: — Como vai essa belezinha? — e atrapalhou-lhe os cabelos. Eduardo sabia-se forte, nadador conhecido, nome nos jornais — cuidava de si, fazia perfil, e o ar modesto que costumava assumir logo se turvava ao primeiro desafio: — É a mãe. Mauro reagiu e se agarraram ali mesmo, dentro da sala de aula. Foram expulsos, enviados ao Monsenhor Tavares, diretor do Ginásio. (SABINO, 2011, p. 45-46).

O ambiente era perturbado pelo interesse adolescente no sexo, na farra, diferente do afeto presente no primeiro beijo, e a agitação do adolescente o fez cortar relações com o amigo Mauro ao mudar de ambiente. A agitação aqui é registrada em dois ambientes distintos: o da natação, que só ele pratica, e o da escola, com o qual há um primeiro corte. Já na vida adulta, Eduardo se depara com a morte de seu pai e com o sentimento de solidão por não ter os amigos de infância por perto mais, e Belo Horizonte se torna uma lembrança de nostalgia:

NÃO FOI DIRETAMENTE para o Rio — à última hora resolveu passar dois dias em Ouro Preto. Precisava descansar, pensar um pouco, meditar em sua vida, ver que rumo tomar. Deixava a mãe morando com umas tias, na Serra. Mais tarde teria de voltar, providenciar o inventário de seu Marciano — o que seria fácil, seu Marciano não deixara quase nada. Mas agora queria proceder ao inventário dos próprios bens. Precisava saber com que contava, para prosseguir. Em Ouro Preto se deixou ficar, pelas ruas quietas e frias, tentando ordenar as ideias, descobrir o que ocorria consigo, afinal. Não podia entender, não entendia nada, era como se os pensamentos lhe viessem envoltos em nuvem, uma nuvem de tristeza, desânimo, aniquilamento. Sua vida não estava certa. Esses amigos com quem você anda não servem — a mãe dissera. E assim eram todos — escritores sem livros, poetas sem versos, pintores sem quadros, arraia miúda da arte que vicejava ao seu lado, tirando-lhe o que lhe restava de melhor — entusiasmo, idealismo, mocidade. A que ponto chegara: em Belo Horizonte lastimara Hugo e Mauro, agora percebia que também ele não escapava, eram os três que naufragavam lentamente. Mas ainda haveria de se salvar. (SABINO, 2011, p. 214).

Além dos lugares das cidades demonstrarem as fases da vida dos personagens, aqui mostrada pelo que ocorre com Eduardo, pode-se afirmar que esses mesmos espaços não são meras paisagens, mas têm sua importância quase como se eles falassem por si sós. Isso se dá porque, embora pareçam pano de fundo, é como se o espaço mostrasse o estado de espírito do personagem. Percebe-se também que o narrador atrela muitas situações, ora de humor, ora de conflito nessa relação das cidades com os personagens envolvidos.

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Nesse sentido, o espaço compõe os personagens, é como se ele tivesse uma vida própria e os personagens apenas interagissem com ele. Na narrativa de Sabino não é possível ver Eduardo sem ver Belo Horizonte e vice-versa, o que se dá pelo modo de construção do texto. Gaston Bachelard, na obra A Poética do Espaço, aborda a questão poética e do imaginário a partir das concepções do espaço ligados à casa. De acordo com Sueli Aparecida da Costa, ao analisar o primeiro capítulo do livro, Bachelard mostra como a memória da primeira moradia pode acompanhar o sujeito toda a vida. Embora Bachelard (1993) baseie sua análise na poesia, acredita-se que ela pode ser estendida para a análise de um romance e mais, acredita- se que a metáfora da casa pode ser expandida e entendida, de forma mais ampla, como o lugar da infância, por exemplo. Em O Encontro Marcado, Eduardo Marciano tem como ponto de referência no mundo a cidade de Belo Horizonte e não Rio de Janeiro, pois foi o local onde cresceu, onde as lembranças foram tão significativas que, mais tarde, na vida adulta, o personagem sentirá a nostalgia de sua juventude. Para Eduardo, a memória de sua cidade natal o acompanhou durante toda sua vida, em seus sonhos e devaneios, sendo para ele uma memória permanente em sua imaginação. A relação que se pretende mostrar é a de construção entre espaço e personagem em que um depende e se completa a partir do outro. No romance, o tempo, o espaço, a cidade e o personagem de ficção relacionam-se na construção do texto literário; nenhum deles é independente, pois o sentido se fará pela maneira com que o autor estruturará seu texto e, para que haja uma estrutura concreta da narrativa, estas partes não podem ser isoladas. (2008), ao analisar o espaço geográfico, faz uma abordagem dele como aquele que sempre se transforma e sempre se encontra em movimento e, portanto, sempre estará ligado em uma rede de transformações sofridas nele próprio. Portanto, Santos (2008) o conceitua como

algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente. (SANTOS, 2008, p. 46).

Ao pensar no modo como sujeito, tempo e espaço estão imbricados na construção de uma narrativa é importante perceber que eles revelam juntos as intenções da narrativa, a visão da vida que decorre dela, os significados e valores que fazem parte; tudo o que é narrado se passa em um tempo, em um espaço e acontece com determinados personagens. Portanto, os

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elementos centrais de um desenvolvimento narrativo são: o tempo, o espaço, o personagem e as ideias que, juntos, formam um conjunto elaborado pelo ato de narrar e, por isso, são estruturas textuais inseparáveis nas narrativas. Não se pode pensar que o personagem, ou qualquer outro elemento da narrativa, possa existir de modo isolado na narração. Antonio Dimas (1987), em seu livro Espaço e romance, aponta a importância do espaço tanto quanto dos outros elementos narrativos e a harmonia deles na narrativa:

Entre as várias armadilhas virtuais de um texto o espaço pode alcançar estatuto tão importante quando outros componentes da narrativa, tais como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura etc. É bem verdade que, reconheçamos logo, em certas narrações esse componente pode estar severamente diluído e por esse motivo, sua importância torna-se secundária. Em outras, ao contrário, ele poderá ser prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante. Uma terceira hipótese ainda, esta bem mais fascinante!, é a de ir-se descobrindo-lhe a funcionalidade e organicidade gradativamente, uma vez que o escritor soube dissimulá-lo tão bem a ponto de harmonizar-se com os demais elementos narrativos, não lhe cedendo, portanto, nenhuma prioridade. (DIMAS, 1987, p. 5-6).

As representações literárias urbanas, tal como a construída em O Encontro Marcado, atribuem sentidos às cidades, além de resgatar e apresentar ao leitor os cenários citadinos, com seus múltiplos personagens sociais. Essa aproximação se estabelece porque a referência geográfica nomeada aparece muito nitidamente no romance; mas mesmo o espaço não sendo nomeado para o leitor, isso não impede de ocorrer um entrelaçamento da constituição do personagem e do lugar onde ele atua. O espaço é tão componente que torna-se quase como apenas um, há uma espécie de indistinção entre sujeito e o espaço. Aspectos geográficos comuns da cidade, tais como a Avenida do Contorno, o Minas Tênis Clube, a Igreja de Santo Antônio, a Praça da Liberdade, embora pouco referidos, são marcas indeléveis na narrativa e no personagem de modo que um não existe sem o outro, o que significa dizer que não é possível supor que Eduardo Marciano, na cena em que esteve na praça com seus amigos, estivesse transitando “em qualquer lugar”, mas, ao contrário, o leitor vê Eduardo, Mauro e Hugo transitando pela cidade, mesmo sem a referência nomeada de lugares: isso é vê-los transitando por Belo Horizonte. Os espaços destacados no romance que têm a função de construir o personagem Eduardo e, consequentemente, seus amigos eram e ainda são pontos importantes e históricos da capital mineira: a Praça da Liberdade, a Rua da Bahia, o Bairro Santo Antônio, o Viaduto Santa Tereza, localizado no Bairro Floresta, o antigo Cine Glória, localizado na Avenida Afonso Pena, além dos pontos boêmios da cidade como o antigo Bar do Ponto também

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localizado na Avenida Afonso Pena. A Praça da Liberdade surgiu na época da fundação da nova capital mineira. Situada no ponto mais alto da área inicial da cidade (a Avenida do Contorno) a praça foi feita para abrigar a sede do poder mineiro, os prédios do Palácio do Governo e das primeiras Secretarias de Estado. No romance O Encontro Marcado, a praça se configura como o lugar de convivência de Eduardo e seus amigos, inclusive para fazer as tranquinagens de adolescentes, e, também, para os namoros de mãos dadas:

Eduardo se esquivava. Afinal de contas, simples namoro — não significava compromisso. Moça do Rio, outros hábitos, outra espécie de gente — gente importante, vida de luxo e conforto, talvez — ele mesmo não sabia explicar como e por que começara aquilo. Ela o aceitava como namorado antigo, e, até agora, nada sabiam um do outro. De mãos dadas, num banco da Praça — o mesmo banco dos amigos: — Você é diferente de todo mundo. — Diferente por quê? — perguntava ela. — Não sei. Diferente. (SABINO, 2011, p. 111-112).

A Rua da Bahia se encontra na esquina com a Avenida Augusto de Lima, onde se localizava o antigo Grande Hotel, no qual se hospedaram as maiores personalidades da época. Na esquina com a rua Goiás, havia o Teatro Municipal. Em toda a sua extensão, existiam cafés, livrarias, charutarias e leiterias. Entre os estabelecimentos famosos no período, destacam-se a Confeitaria Suíça, a Sorveteria Camponesa, o Trianon, a Gruta Metrópole e o Clube Belo Horizonte. No romance, pode-se observar a rua como o lugar de passagem dos amigos em meio às situações de companheirismo entre eles:

Conseguiu livrá-lo do bar, dispensar o guarda. Foram subindo a pé a rua da Bahia. Mauro mal podia andar. — Aguenta a mão, que ali no Grande Hotel tomamos um carro. Como é que você foi me promover um estrago daqueles? Alguém saía justamente do Grande Hotel, vinha-lhes ao encontro. Mauro se contraiu, soltou um berro: — É ele! É o Barbusse! Foi quem me denunciou. Traidor! (SABINO, 2011 p. 213).

O Cineteatro Glória, de Belo Horizonte, funcionava na avenida Afonso Pena, próximo à Praça Sete, em frente ao Café Nice (lado oposto da avenida). Era um dos pontos de encontro para o entretenimento na cidade. Nesta cena do romance, o Cine Glória vira ponto de referência quando Eduardo encontra Hugo pela primeira vez:

Tomaram um café em pé, e o rapaz lhe ofereceu um cigarro. — Obrigado, não fumo. Foram andando. O rapaz procurou puxar conversa:

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— Você já leu “O Lobo da Estepe”? — Já... — e, distraído, Eduardo apontou um carro que passava: — Olha ali, Buick deste ano, é o primeiro que eu vejo. O rapaz se calou, ressentido. Em frente ao cinema Glória despediu-se: — Vou tomar o bonde ali no abrigo. — Então até logo. Como é mesmo o seu nome? — Hugo. — Por que você não aparece mais tarde lá na oficina? — Que oficina? — Oficina do jornal, nunca foi lá? Tem um botequim onde sempre se toma qualquer coisa... — Não posso beber. Sofro da vesícula. Ainda ontem... — Deixa disso, rapaz — e Eduardo bateu-lhe nas costas cordialmente: — Uma cachacinha de vez em quando não faz mal a ninguém. Apareça lá. Encontrar o Veiga. (SABINO, 2011, p. 59-60).

Em O Encontro Marcado, na primeira parte do romance, A Procura, observa-se uma gama de cenas dos personagens que se passam na Praça. No romance ela não está nomeada, mas pode-se supor que a Praça da Liberdade é uma das inspirações para essas cenas recorrentes do romance. Para aprofundar as análises sobre a integração dos pontos da cidade aos personagens, é importante ressaltar as concepções em relação à própria praça, o seu lugar físico e social na cidade. A praça demonstra ser um lugar de bate-papo, reencontro e troca de experiências. Ela é um lugar de socialização entre as pessoas da cidade, podem se localizar junto a uma igreja ou à prefeitura, enfim, ela está em uma localização importante, onde quer que ela se encontre. Nela acontece também entretenimento, pois é um lugar em que o encontro é intencional, voltado para práticas sociais e comunitárias, e sua estrutura arquitetônica também é muito significativa, como visto anteriormente. Na primeira parte do romance nota-se uma cena em que a praça se configura, também, como o lugar de “puxar angústia” de Eduardo e seus companheiros. Esse lugar foi escolhido por eles também para fazer suas discussões ideológicas, filosóficas e literárias. Ao longo da narrativa observa-se a configuração da praça como muito mais do que simples localização dos personagens: ela é, em si, um componente desses que a frequentam.

Nada mais a fazer — a cidade dormia e a noite avançava. Cansados, deixaram-se ficar num dos bancos da praça: — Chegou a hora de puxar angústia. Puxar angústia era abordar um tema habitual, como el sentimiento trágico de la vida, le recherche du temps perdu, to be or not to be: — Você já pensou que daqui a cem anos estaremos mortos? — O que são cem anos, diante da eternidade? — Esta vida é uma merda. Tema habitual de Hugo: o efêmero da existência. Nada valia nada, tudo precário, equívoco, contraditório. Vinha escrevendo um livro, uma espécie de ensaio poético, em que procurava traduzir este sentimento da inutilidade das coisas. (...)

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Tema habitual de Mauro: a incidência no tempo e no espaço: a inexorabilidade do fortuito na vida de cada um. Seu pai jamais se encontrara com sua mãe. (...). Ali, sentado no banco da praça, ele estava, por uma série de relações, ou ilações (gostava desta palavra) negativas, alterando o curso das coisas, talvez o curso da guerra. (SABINO, 2011, p. 72-73).

Percebe-se nesta cena que as indagações feitas pelos três amigos ali no ambiente da praça e durante a madrugada demonstram a peculiaridade dos personagens de transformar aquele lugar de espaço puramente de entretenimento em um lugar de reflexão sobre a própria vida. As praças, em geral, são comumente frequentadas durante o período do dia e não à noite, mesmo ela sendo o lugar do encontro. Os três amigos escolhem a praça deserta e de madrugada justamente pela irreverência de seus modos de vida. O clima da noite e do lugar vazio também propiciam a discussão de Mauro, Eduardo e Hugo acerca da angústia. As citações em espanhol, francês e inglês (O sentimento trágico da vida, de Miguel de Unamuno, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust e a expressão “ser ou não ser”, de Hamlet, de Shakespeare), respectivamente, são citações de obras canônicas que aparecem emaranhadas a esse lugar escolhido pelos amigos para se constituírem como críticos da vida, da literatura e de si mesmos. Na próxima cena do romance, percebem-se as ações dos personagens semelhantes às do excerto anterior, reforçando, assim, a praça como um lugar além de “chorar as angústias”, mas um lugar que faz parte da vida de Eduardo e seus amigos, literalmente:

Uma noite Eduardo e Hugo foram ao banco da Praça, já de madrugada, especialmente para chorar. Encontraram-se por acaso numa festa de carnaval. Em meio à animação reinante, o efêmero das coisas juntou-se ao tempo-versus- eternidade, e não resistiram: foram chorar na Praça o tempo perdido. Mais tarde viriam a saber que, por um desses milagres de afinidades eletivas que os unia, Mauro, em casa, naquele mesmo instante chorava também. A incidência no tempo e no espaço. Mauro encerrava a sessão de angústia propondo que alimentassem a besta: — Chega, gente, é demais. Forniquemos. Sem dinheiro como viviam, o hábito era percorrer as ruas da cidade, noite adentro, à cata de mulatas. — Uma grande instituição. — “O último ouro do Brasil”. Perdiam-se pelo Bairro dos Funcionários vendo em cada sombra de árvore ou em cada capote de guarda-noturno uma empregada a caminho de casa. Certa madrugada, Mauro abordou um vulto de mulher que seguia apressado, de braços cruzados. – Sozinha, meu bem? –Não – e a mulher lhe brandiu à cara um rosário. – Com Deus. Impressionado, desde então Mauro pontificava: – Nunca abordar mulheres de braços cruzados. Estão indo para a missa das cinco. (SABINO, 2011, p. 74).

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Percebe-se que a praça, para eles, pode ser uma tentativa de recuperação do tempo perdido, da nostalgia dos amigos. É importante atentar também para a ocupação desse espaço urbano: jovens de boas condições sociais que experimentam peripécias em vários pontos da cidade. O que também chama a atenção é a expressão “à cata de mulatas” presente na fala do narrador. Isso mostra um discurso dominador sobre aqueles que se encontram em condições desfavorecidas, no caso citado são as mulheres e negras. As ruas de Belo Horizonte se tornam um palco importe na narrativa, pois além de serem citadas frequentemente, nelas acontecem grande parte das aventuras juvenis dos três amigos, como neste episódio cômico em que eles abordam uma mulher devota indo para a missa das cinco da manhã. Em outra cena inusitada dos três amigos, observa-se outra façanha que acontece também na praça. Eduardo, Mauro, Hugo e o esqueleto Yorick tentam encontrar uma solução para a falta de dinheiro deles. Eduardo tem a ideia de enterrar o esqueleto na praça e todos fugiram e isso denota outra função que os personagens atribuem a ela: o espaço cômico de ser um cemitério para um esqueleto de um médico, pai de Mauro. A relação dos jovens com a praça, as ruas, os bairros de Belo Horizonte dizem muito do que eles realmente são: incomuns, inquietos, questionadores, zombadores:

Estudando juntos, para as provas de Direito. Mauro, aluno de Medicina, vinha estudar Direito também. Logo, uma discussão qualquer os empolgava, esqueciam tudo para conversar, descobrir o mundo e o perder, na ânsia de sair pela cidade, farrear, beber. — Estou sem dinheiro. — Eu, também, para variar. Precisavam justificar o estado de embriaguez em que já se achavam. — O jeito é vender o Yorick. Yorick — o esqueleto — pertencia ao pai de Mauro, que era médico. (...) Agora os três seguiam pela rua, carregando o esqueleto aos trambolhões, assustando os transeuntes. Não encontraram em casa o provável comprador. Foram procurá-lo no centro, entraram de supetão numa confeitaria, houve pânico, um garçom chegou a derrubar uma bandeja de sorvetes. Sentaram-se no bar de costume, o esqueleto acomodado numa cadeira, pernas cruzadas, cigarro à boca. — Chope para três. Hoje é ele que paga. O dono do bar não gostou da brincadeira, ameaçou chamar a polícia. Já alta noite, acabaram, os três, num banco da praça, desanimados e secos, cismando na impassibilidade do esqueleto que um dia tivera carnes, sentira fome, sede, talvez tomasse chopes. — Coitado, afinal merece respeito. — Seria uma baixeza vendê-lo. — Não posso voltar com ele. Leve para sua casa. — Eu? Você quer que eu mate minha mãe de susto? — E você, Hugo? — Não fico sozinho com ele, de jeito nenhum. Eduardo foi à sua casa, em pouco voltava com uma pá de jardim. — Depressa, antes que apareça alguém. Abriram rapidamente uma cova rasa na terra fofa do canteiro.

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— Assim. Deita ele aqui. Adeus, Yorick! Remember me! Agora joga terra. Se endireitaram, compenetrados, persignaram-se, e sumiram na noite em disparada. (SABINO, 2011, p. 67-70)

O tom de galhofa dos amigos continua quando o esqueleto é desenterrado por um jardineiro e vira noticiário nos jornais:

O ANCINHO DO JARDINEIRO desenterrou uma ossada humana no jardim da Praça. O encontro macabro foi noticiado pelos jornais. — Yorick ressuscitou. — Precisamos celebrar. (SABINO, 2011, p. 77)

Outra cena relevante das traquinagens dos três amigos é a que acontece no Viaduto Santa Tereza. Os três amigos estão bêbados no Viaduto tentando repetir uma ação que outro escritor mineiro já realizara outrora:

— “MUNDO, mundo, vasto mundo”! — “Grito imperioso de brancura em mim”! — “Meu carnaval sem nenhuma alegria”! De súbito, um deles sugeriu: — Vamos subir no Viaduto? Hugo era o mais ágil: galgava o parapeito com presteza, corria sobre a estreita fita de cimento, a trinta metros do solo, como se andasse em cima de um muro. Curvado, subia o grande arco que se elevava, abrupto, sobre a própria amurada. Eduardo subia do outro lado. Lá em cima se encontravam, equilibristas de circo, passavam um pelo outro, vacilavam, ameaçavam cair. Mauro ainda não tivera coragem; os dois se sentavam na viga de cimento armado suspensa no espaço, balançavam as pernas no ar, gritavam para ele: — Sobe, carcamano! — “Mijemos em comum numa festa de espuma”! Naquela noite Mauro se animou a subir. Quando se viu largado no vazio, tendo sob os pés apenas meio metro de cimento e lá embaixo, muito embaixo, os trilhos da estrada de ferro a brilhar, um trem passando exatamente naquele instante, não resistiu à vertigem. Deitou-se de bruços, agarrou-se com força, dilacerando as unhas na superfície áspera, pôs-se a chorar: — Não desço mais. Pelo amor de Deus me tirem daqui. Chamem o Corpo de Bombeiros! Era extraordinário que a brincadeira imprudente não terminasse em tragédia. E se repetia porque (rezava a tradição) um poeta (um grande poeta) havia feito aquilo antes, para se divertir. Anos mais tarde Eduardo lhe perguntaria se era verdade e o poeta haveria de confirmar: — Parece difícil, mas não é tanto, você não acha? No seu tempo, subia às três da tarde, depois de tomar apenas um copo de leite, pour épater les bourgeois. A nova geração procurava imitá-lo nos versos e nas proezas, mas precisavam beber para criar coragem. (SABINO, 2011, p. 69-70).

Nesse excerto, há a citação de três trechos de poemas de autores brasileiros importantes, inclusive para os próprios personagens, são eles o “Mundo, mundo, vasto mundo”, do “Poema de Sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade; “Grito imperioso de

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brancura em mim!”, do poema “Improviso do mal da América”, de Mário de Andrade; e “Meu carnaval sem nenhuma alegria!”, retirado do poema “Epílogo”, publicado no livro Carnaval, de Manuel Bandeira e, mais adiante, o “Soneto de Intimidade”, de Vinícius de Moraes. Esse é o modo escolhido por Fernando Sabino para unir literatura e espaço urbano, boemia e poesia. É o modo de, por meio de um exercício metaliterário, aproximar a literatura brasileira (e estrangeira) e a cidade em seu texto literário. Na cena apresentada, para além da presença da literatura e dos poetas, por meio de seus versos, há uma retomada dos atos juvenis, dos ritos radicais dos escritores de outras gerações: Eduardo e seus amigos repetem a aventura de subir no Viaduto Santa Tereza realizada por Carlos Drummond de Andrade. Nota-se, ainda, o uso da expressão épater les bourgeois (para impressionar o burguês), evidencia a proximidade desses autores com a cultura francesa, muito presente na vida literária dos escritores mineiros. Desse modo, não só a literatura, mas os “ritos” da juventude de outros tempos aparecem nas páginas de O Encontro Marcado. Esses ritos feitos na cidade também são tidos como tradição dos escritores mineiros. A cidade de Belo Horizonte se mostra o palco das leituras feitas pelo autor e que são representadas na figura do personagem Eduardo. Não são apenas os clássicos universais que fazem parte da construção leitora do autor e do protagonista, a tradição do modernismo brasileiro se mostra nítida não só no que diz respeito às leituras, mas também em relação a repetir os mesmos atos do poeta consagrado, como uma espécie de ritual para se inserir no mundo da literatura. Esse encontro com a tradição se dá em um tom de humor, com cenas pitorescas e cômicas, que marca toda a fase da juventude de Eduardo Marciano e seus dois amigos no convívio com a cidade. No romance, esse tom muda, na segunda parte da obra, em que Eduardo e seus amigos já estão adultos. Nela, Eduardo passa a ter uma relação tensa com o espaço urbano que é refletida em seu casamento, em seu trabalho e, consequentemente, em seus sonhos e ideais. No Rio de Janeiro a melancolia e a nostalgia se farão presentes na vida do protagonista. Eduardo Marciano, portanto, carregou consigo, durante a primeira parte do romance, uma Belo Horizonte marcada pelas desventuras vividas na cidade. Ver Eduardo era o mesmo que ver Belo Horizonte tal como ela se encontrava: uma modernidade fora de seu auge, a tradição de outros escritores presentes nos monumentos, as inquietudes de uma juventude insatisfeita com o mundo em que vive e as experiências de uma juventude marcada nos espaços públicos de Belo Horizonte: da praça até o clube. Os amigos Mauro e Hugo também

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se encontram como interligados à cidade, pois na maioria das cenas em que Eduardo atuava ele estava acompanhado de seus amigos de infância, até mudar-se para o Rio de Janeiro.

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5 CONCLUSÃO

Nesta dissertação procurou-se refletir sobre o fazer literário do escritor Fernando Sabino. Entende-se aqui por fazer literário os procedimentos a que o autor se reporta para compor não só seu romance, mas também suas outras produções artísticas. A crítica literária sobre o autor realiza esse processo de reflexão ao fazer um percurso da escrita de O Encontro Marcado evidenciando elementos que foram ressaltados na análise aqui realizada. Observou-se que Sabino tem preferência por utilizar várias características em seu romance, como bem a crítica apontou, que também são encontradas em suas crônicas, tais como: humor, velocidade da narrativa, orações curtas, oralidade, excesso de diálogos, pouca descrição dos espaços, agilidade, a mistura do tom jornalístico com o trabalho literário, relato, anedotas, estilo nervoso e inquieto. Pode-se observar, também, que os críticos se debruçaram sobre aspectos que são especificamente do romance do prosador mineiro, alguns deles presentes em todos os romances e outros que distinguem o escritor de outros romancistas, por sua abordagem inovadora. Isso se vê na fragmentação dos episódios, nas evidências da influência do modernismo, na desestruturação do protagonista principalmente na segunda parte, na expressão forte dos personagens contra o sentimento burguês e no uso de estratégias de escrita distintas das utilizadas pelos romancistas do século XIX. Além desses elementos, tem-se também a presença de várias páginas que demonstram aproximação da escrita do romance aos textos dramáticos, o caráter de relato, a aproximação do texto a elementos da tragédia e da a epopeia. Também são vistos como inovadores o caráter cinematográfico do romance, a reflexão metalinguística evidenciada pelas leituras citadas no interior da obra e a aproximação do conceito de desumanização da arte. Há, além disso, no romance outros aspectos que não são exatamente inovadores, como se pode verificar pela tematização, para alguns críticos, do existencialismo cristão e a atmosfera da angústia presente pelo fato de o personagem se encontrar em uma procura, o que perpassa todo o romance. O Encontro Marcado tem como tema a questão da educação sentimental, o que o faz ser considerado um romance de formação. Para outros estudiosos, trata-se de um romance de costumes, por apresentar os costumes da província e da cidade, ao enaltecer cenas de boemia. Tudo isso feito com a mínima utilização da descrição, com uma linguagem objetiva, a fragmentação do tempo do romance e a utilização de ritmos que vão do “vivace” ao “andante”.

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Pensa-se, a partir das características dadas pelos críticos, que a construção do romance com aspectos de crônica denota que sua intensa experiência como cronista influenciou a escrita do romance e, portanto, esses recursos fazem parte da composição literária de Fernando Sabino. Quando os críticos apontam a forma de composição do romance O Encontro Marcado, eles direcionam sua apreciação analítica para as características próprias do romance do século XX. Algumas são consideradas tradicionais, outras vistas como inovadoras pelo modo como são executadas pelo romancista mineiro. Porém, ao analisar com maior atenção, percebe-se que algumas dessas características consideradas “inovadoras” já fazem parte de uma tradição da escrita romanesca no Brasil, por influências do movimento modernista. Alguns trabalhos mais recentes sobre o legado de Fernando Sabino, no século XXI, trazem abordagens inéditas da obra do escritor mineiros; outros reforçam os elementos selecionados da crítica do século anterior. Entre os estudos que reforçam os elementos já estudados pela crítica do século XX estão aqueles que desenvolvem sua reflexão sobre a hibridização na construção narrativa (crônica e romance), a presença do viés existencialista e a construção da identidade no romance de formação. As pesquisas cujos temas não foram abordados pela crítica do século XX e que procuram abordagens inéditas se dedicam ao processo da influência e desleitura, à discussão da presença do dialogismo e da polifonia presentes no romance, ao modo como os aspectos autobiográficos, claramente presentes nos romances, aparecem também nas crônicas do autor. Estudam, ainda, as expressões do tédio na contemporaneidade, a questão do biografema e Fernando Sabino como leitor de Machado de Assis. Repetindo ou não o que a crítica anterior já havia abordado, os trabalhos recentes a respeito de toda a obra de Fernando Sabino demonstram a vitalidade que ela possui, ou seja, a produção literária do autor não se esgota em leituras e análises com o passar do tempo. Os novos estudos também apontam para novas descobertas do fazer literário do escritor ao analisarem a estrutura dos textos, as influências literárias e temas que são abordados nos romances do século XXI. Essa pesquisa tratou, também, do modo como Fernando Sabino concebe a crônica e o romance. Dos depoimentos do autor, pode-se concluir que suas crônicas são compostas a partir das reminiscências da infância ou da adolescência, de um fato inusitado, de sua experiência como escoteiro, dos roteiros de viagem, das personalidades famosas com quem conviveu, das anônimas conversas de bar, dos encontros e desencontros vividos na cidade grande.

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Sabino, em suas entrevistas mais antigas, declara que não considera o que faz como sendo o gênero crônica. O autor, nessas mesmas entrevistas, também relatava que escrevia para preencher espaços do jornal e que a prática de escrever crônicas era uma maneira de ganhar a vida como outra qualquer. A escrita de suas crônicas era diária, assim como um padeiro que faz pão para vender todo dia, metáfora usada pelo próprio cronista. Porém, mesmo com essa imagem de “despreocupação” com os conteúdos que publica, o autor relata que, para ele, escrever é um trabalho árduo e que se exige muito esforço para elaborar uma escrita simples. O discurso professado por Fernando Sabino mostra um escritor que quer passar uma imagem para seu público leitor de um escritor despreocupado com a forma específica dos gêneros, seja crônica ou romance. Mas, apesar desse discurso, o escritor revela que tem um trabalho árduo por detrás de toda essa publicação diária, o que demonstra o empenho e a dedicação do autor em suas produções. As influências do autor para compor a matéria de suas crônicas também serão influências para compor seu romance, o que reforça que Sabino partiu de suas crônicas para escrever o seu romance. Nota-se, assim, que essa atividade como cronista contribuiu para que Sabino deixasse marcas do gênero crônica no seu primeiro romance publicado, ocasionando o que aqui se considera como hibridismo. Essa característica híbrida do romance é da natureza do fazer literário de Fernando Sabino em O Encontro Marcado, uma vez que muitas das características da crônica concebida pelo autor (como pequenas histórias, pequenas notas, relatos) e pela crítica (agilidade, diálogos) se encontram no romance do escritor mineiro. Em seu romance, o prosador mineiro muda de concepção de sua própria produção romanesca com o passar dos anos: em suas entrevistas, no início da carreira, o autor declarava que apostou toda sua preparação em uma única tentativa de escrever um romance. Ele também contrapõe duas concepções de escritores: o escritor “inocente” em oposição ao escritor “esperto”. Como Sabino muda essa concepção, demonstra que o autor sempre reflete sobre suas produções literárias e também sobre o seu próprio fazer literário e não tem uma concepção cristalizada. Sempre mencionando suas leituras, Sabino, ao citar seus escritores preferidos, como Henry James, James Joyce, Franz Kafka e Dostoievski, acentua que são eles os últimos que escreveram o romance como um gênero de fato. Escrever como eles nunca mais seria possível, por isso devia se contentar consigo mesmo: “O que quer dizer que, no fundo, escrevo sobre mim mesmo. Confesso que não sou do meu tipo predileto, mas é comigo mesmo que tenho que conviver”.

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Também em suas entrevistas mais antigas, Sabino declara que pretendia ser um scholar, o que posteriormente, o autor desconstruirá. Fernando Sabino, inicialmente, declara que escreveu O Encontro marcado para saber o porquê e como conseguiu chegar aos trinta anos. Em suas entrevistas posteriores, o autor relata que esteve se preparando a vida inteira para ser escritor, para realizar uma obra, e que escreve para se compensar em relação à realidade. Sabino também revela que O encontro marcado foi baseado em sua própria experiência pessoal até os 30 anos, em consequência, é um romance autobiográfico, mas foi escrito dentro das exigências da técnica do romance. Quando declara, no início da carreira, que apostou todas as suas técnicas para escrever um único romance, Sabino parece satisfeito com ser “escritor de um único romance”. Mas, em entrevistas posteriores afirma que passou a vida toda se preparando para ser escritor e que ainda pretendia ser romancista. Esse é mais um exemplo de como o romancista se contradiz, ou pelo menos muda de ideia, com o passar do tempo. A forma que escolheu para desenvolver seus romances foi, quase sempre, não fazer um livro de memórias, nem uma autobiografia, mas partir de suas experiências para construir suas ficções. A importância das viagens (Nova Iorque e Londres) em sua formação leitora e a decisiva participação de Mário de Andrade em sua formação como escritor denotam que tudo pode ser influência para suas matérias literárias: desde a troca de experiências com o mestre até suas viagens ao exterior. Posteriormente, com a justificativa de “preservar a espontaneidade da criação literária”, Sabino se mostra despreocupado com a erudição e ressalta o quanto um conhecimento quantitativo pode ser prejudicial. O leitor Sabino deixa de mapear tudo o que lê e passa a se dedicar a ser um escritor focado naquilo que escreve. Fernando Sabino, para isso, cria uma espécie de “manual” para se tornar escritor: o manejo da datilografia, o conhecimento da gramática, a percepção semântica, as regras da propriedade vocabular, o uso da concisão, da clareza e da simplicidade, ou seja, o autor estabelece o seu próprio modo de compor a escrita. Assim, já mais maduro, ele declara inverter a lógica apresentada pelos estudiosos da crônica: leva para os jornais os textos perenes de sua prática literária, e não o contrário. Esse cuidado em não deixar a crônica jornalística ser um texto “perecível” demonstra o desejo do escritor de ficar para a posteridade, embora o tenha negado em algumas ocasiões. Por isso, é possível que Sabino, desde sempre, tenha tido a necessidade de recriar várias vezes o mesmo texto, porque se preocupava com o que publicava e mantinha o desejo de ser lido por muitas gerações.

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Toda essa procura do gênero impreciso é percorrida de modo a aproximar, pelo menos em O Encontro marcado, a história da cidade à história do próprio escritor. Isso foi mostrado neste estudo ao se comparar a construção das cidades com a construção dos personagens. Pretendeu-se analisar Eduardo e seus amigos em relação com acontecimentos que marcaram a cidade de Belo Horizonte. As angústias, o ato de repetir a tradição de outros escritores, uma modernidade tardia, os monumentos da cidade, as inquietudes da juventude aparecem nos personagens e, ao mesmo tempo, na cidade de Belo Horizonte quando estes se relacionavam com os lugares por eles habitados. O fato de as capitais, pelo percurso histórico brasileiro, irem perdendo seu status de centro político e econômico marca as gerações residentes nessas cidades. Elas são afetadas por essa perda, o que possibilita que se aproxime a nostalgia e a melancolia dos personagens a essa chamada perda de status. Do mesmo modo, essa própria mudança será a motivação para que os jovens se posicionem de modo inquieto e crítico em suas vidas. Ainda com referência a uma geração, parece importante ressaltar que a narrativa é ao mesmo tempo individual e coletiva. A narrativa fictícia também escreve a história da sociedade da qual se tem registro e da qual participa. Sendo assim, os caminhos de Eduardo Marciano repercutem em toda uma geração. O fazer literário do escritor mineiro se delineia, portanto, com uma velocidade nítida e com grande quantidade de diálogos. As referências aos pontos da cidade são bem ligeiras no romance, porém, a ação dos personagens faz com que a memória da cidade apareça, sem ter a necessidade explícita de aparecerem os lugares nitidamente. Ao conceber seu romance, Sabino expõe sua experiência vivida e de escrita, o que denota também características que ajudam a compor o fazer literário do romancista. Suas leituras, referências literárias, viagens pelo mundo e técnicas de escrita fizeram com que o romance fosse concebido tal como ele é. A contribuição desta pesquisa para os estudos da obra de Fernando Sabino foi reunir a crítica do século XX e os trabalhos acadêmicos recentes escritos no século XXI e delinear as características importantes para a leitura do romance O Encontro Marcado. Com a observação das datas dos livros que compõem as críticas escritas nas duas edições citadas, notar-se-á que a edição mais recente foi do ano de 1996, ou seja, desde esse ano não são mais reeditados livros que compõem a fortuna crítica do autor, ficando o alcance dessas obras um pouco mais restrito aos leitores e estudiosos da obra de Sabino.

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Os depoimentos do escritor também são importantes para delinear o seu fazer literário, pois a partir de seu relato e de suas concepções a respeito do texto literário pode-se perceber que o que ele diz ultrapassa o sentido que ele mesmo queria dar aos seus trabalhos. Por fim, percebe-se que a abordagem dos personagens e do espaço no romance O Encontro Marcado ainda não foi explorada nos trabalhos recentes do autor. O espaço com a mesma importância do protagonista na narrativa expande os conceitos literários de espaço e sua relação com os personagens.

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REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Maria do Carmo. Carlos Pena Filho. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2016.

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ATHAÍDE, Tristão de. O Encontro Marcado. In: SABINO, Fernando. Obra Reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

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