1 TRADUÇÕES DE COMENTÁRIOS SOBRE AS PITAGÓRICAS Sumário

”...... 3 “A history of women philosophers”...... 5 “Some pythagorean female virtues”...... 11 “The pythagorean society and politics”...... 16 Entrada de enciclopédia “Philosophers, Greek”...... 17 “Women Philosophers in the Ancient Greek World: Donning the Mantle”...... 20 “A history of women philosophers”...... 30 “Pitagorian women: their history and writings” Introdução...... 34 “Pitagorian women: their history and writings” Cap. 5...... 40 3 Tradução parcial do texto “Pythagoreanism”

Fonte: HUFFMAN, Carl. Pythagoreanism. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: Acesso em: 02 de abril de 2020.

Tradução realizada por Janyne Sattler

3.2 Os Primeiros Pitagóricos: Brontino, , etc.

Na coleção padrão dos fragmentos e testemunhos dos Pré-socráticos, Cercops, Petron, Brontino, Hi- ppasus, Calliphon, Democedes e Parmeniscus são listados como pitagóricos mais antigos (DK I 105-113). Hippasus, que é a mais importante destas figuras, será discutido separadamente abaixo (seção 3.4). Do resto, apenas Brontino, Calliphon e Parmeniscus aparecem no catálogo de Jâmblico. Brontino é apresentado ou bem como esposo ou bem como pai de Teano (ver seção 3.3 abaixo). Em outro lugar (DK I 106-107), diz-se que Brontino teve uma esposa chamada Deino e que ele era ou bem de Metaponto ou de Crotona. A conexão elusiva entre orfismo e pitagorismo toma sua forma com Brontino, já que o autor do século IV, Epigenes, relata que Brontino é supostamente o verdadeiro autor de duas obras que circulavam com o nome de Orfeu (West 1983, 9ff.). Pouco mais se sabe sobre ele, mas sua existência parece ser confirmada por Alcmaeon ao escrever no final do sexto ou início do quinto século, o qual dirige seu livro a um Brontino além de Leon e Bathyllus (Fr. 1 DK). Os dois últimos podem ser pitagóricos também, já que um certo Leon é listado sob Metaponto e um Bathylaus (sic) sob Posidonia no catálogo de Jâmblico. Cercops (DK I 105-106) é uma figura ainda mais obscura a qual, novamente de acordo com Epigenes, é o suposto autor pitagórico de textos órficos (West 1983, 9, 248), embora Burkert duvide que ele fosse de fato um pitagórico (1972a, 130). A Petron (DK I 106) é atribuída a doutrina surpreendente segundo a qual existem 183 mundos dispos- tos em um triângulo, muito embora ele só seja conhecido devido a uma passagem em Plutarco, não seja cha- mado aí de pitagórico e seja muito provavelmente apenas uma ficção literária (Guthrie 1962, 322-323; Burkert 1972a, 114; Zhmud 2012a, 117). Um Parmeniscus (DK I 112-113) é chamado de pitagórico por Diógenes Laertius (IX 20) e pode ser o mesmo que o Parmiskos listado sob Metaponto no catálogo de Jâmblico. Athenaeus relata que um Parmeniscus de Metaponto perdeu a capacidade de rir depois de descer até a caverna de Trophonius, apenas para recupe- rá-la em um templo de Delos, onde o inventário sobrevivente do templo de Artemis registra uma oferenda de uma taça feita por um Parmiskos (Burkert 1972a, 154). Não há qualquer boa razão para se pensar que Democedes (DK I 110-112), o médico de Crotona, tenha sido ele próprio um pitagórico, embora tivesse algumas conexões pitagóricas. Ele é famoso por causa do relato de Heródoto (III 125 ff.) a respeito de seus serviços ao tirano Polycrates, e ao rei persa Darius. Uma fonte tardia o nomeia como pitagórico (DK I 112.21). Jâmblico menciona um pitagórico chamado Democedes, envolvido na turbulência política em torno da conspiração de Cylon contra os pitagóricos, mas está longe de ser evidente que este fosse o médico (VP 257-261). Heródoto nunca chama Democedes de pitogórico, como tampouco o faz qualquer outra das fontes posteriores (e.g., Aelian, Athenaeus, o Suda), assim como ele também não aparece no catálogo de Jâmblico. Um certo Calliphon, que poderia ser o pai de Democedes, é apresentado por Hermippus como um associado de Pitágoras (DK I 111.36 ff.) e aparece no catálogo de Jâmblico, de forma que é razoável considerá-lo como um pitagórico, embora não saibamos nada mais a seu respeito. Relata-se (Herodotus III 137) que Democedes casou-se com a filha do vencedor olímpico Milon, que foi o pitagórico cuja casa era usada como local de encontro (Jâmblico, VP 249). Foi sem dúvida porque Democedes veio de Crotona aproximada- mente na mesma época em que Pitágoras era proeminente por lá, e por causa das conexões pitagóricas do seu pai e do seu sogro, que fontes tardias vieram a rotular o próprio Democedes como pitagórico. Para o argumen- to de que Democedes foi um pitagórico, ver Zhmud 2012a, 120. 4

3.3 Mulheres pitagóricas

As mulheres foram provavelmente mais ativas no pitagorismo do que em qualquer outro movimento filosófico antigo. A evidência não é extensiva, mas é suficiente para nos dar um vislumbre do seu papel. Ao final do catálogo dos pitagóricos da obra de Jâmblico, On the Pythagorean Life, depois da lista de 218 pitagóricos homens, são dados os nomes de 17 mulheres pitagóricas (VP 267). Já que esta lista é possivelmente baseada no trabalho de Aristoxenus, ela provavelmente representa aquilo que Aristoxenus aprendeu dos pitagóricos do século IV, embora não possamos, é claro, ter a certeza de que alguns nomes não tenham sido inseridos na lista depois da época de Aristoxenus (ver seção 3.1 acima). Onze são identificadas como a esposa, a filha ou a irmã de um homem, mas sete são identificadas simplesmente por sua região ou cidade-estado de origem, embora a Echecrateia de Phlius aí listada pareça mais provavelmente estar ligada àquela Echecrates de Phlius que aparece no Fedon de Platão. Não sabemos mais nada acerca da maioria dos nomes da lista e não podemos, portanto, ter qualquer certeza, em casos individuais, sobre se elas pertencem ao sexto, ao quinto ou ao quarto século. Para uma reconstrução especulativa do papel das mulheres na sociedade pitagórica ver Rowett (2014, 122-123), ainda que esta especulação dependa parcialmente do relato de Jâmblico sobre o discurso que Pitá- goras proferiu às mulheres de Crotona quando de sua chegada (VP 54-57); no entanto, enquanto é verdade que Pitágoras proferia discursos para grupos diferentes, incluindo mulheres, o texto do discurso em Jâmblico é provavelmente uma fabricação tardia (Burkert 1972a, 115; Zhmud 2012a, 70). Os pitagóricos davam ênfase especial à fidelidade conjugal por parte de ambos, homens e mulheres (Gemelli Marciano 2014, 145). Também não há evidências confiáveis quanto a obras escritas por estas mulheres, embora na tradição posterior algumas obras fossem forjadas com o nome de algumas delas e de outras mulheres pitagóricas que não constam na lista (ver seção 4.2 abaixo). O nome mais famoso da lista é Teano, que é aqui denominada esposa de Brontino, mas que é em outros lugares considerada como esposa, ou bem como filha, ou discípula de Pitágoras (Diógenes Laertius VIII 42; Burkert 1972a, 114). O papel das mulheres no pitagorismo primevo, e a centralidade de Teano, é atestada ainda pelo contemporâneo de Aristoxenus, Dicaearchus, ao relatar que Pitágoras teve como seguidores não apenas homens, mas também mulheres, e que uma delas, Teano, tornou-se de fato famosa (Fr. 40 Mirhday = Porphyry, VP 19). É notável que Dicaearchus não a identifique como a esposa seja de Brontino seja de Pitágoras, mas simplesmente como uma seguidora de Pitágoras. Na tradição posterior, algumas obras foram forjadas em seu nome (ver seção 4.2. abaixo), mas temos poucas evidências realmente confiáveis sobre ela (ver Thesleff 1965, 193-201, para testemunhos e textos; Delatte 1922, 246-249; e Montepaone 1993). O segundo nome mais famo- so na lista é Timycha a qual, quando grávida de dez meses, supostamente arrancou com os dentes a sua própria língua, de modo que não pudesse, sob tortura, revelar segredos pitagóricos ao tirano Dionysius (Jâmblico, VP 189-194). Esta história remonta a Neanthes, que escreve no final do quarto ou início do terceiro século e pode ter contado com a tradição pitagórica local (Schorn 2014, 310).

Referências do site para este trecho:

Athenaeus. The Deipnosophists, 8 Vols., S. D. Olson (trad.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2006-2012. Burkert, W. Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, E. Minar (trad.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press; 1st German edn., 1962; 1972a. Delatte, A. La vie de Pythagore de Diogène Laërce, Brussels: M. Lamertin, 1922. DK: Diels, H. and W. Kranz. Die Fragmente der Vorsokratiker, 6th edition, 3 Vols., Dublin and Zürich: Weidmann, 1952. Gemelli Marciano, L. ‘The Pythagorean Way of Life and Pythagorean Ethics’, in Huffman (ed.), p.131–148, 2014. Guthrie, W. K. C. A History of Greek Philosophy, Vol. 1, Cambridge: Cambridge University Press, 1962. Herodotus, The Persian Wars, 4 Vols., A. D. Godley (trad.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1920-1925. Huffman, C.A. (ed.).A History of Pythagoreanism, Cambridge: Cambridge University Press, 2014. VP: Iamblichus. On the Pythagorean Way of Life, John Dillon and Jackson Hershbell (trad.), Atlanta: Scholars Press, 1991. Montepaone, C. ‘Teano, la pitagorica’, in Grecia al femminile, N. Loraux (ed.), Rome: Laterza, p.73–105, 1993. Schorn, S. ‘ in the Historical Tradition’, in Huffman (ed.), p.296–314, 2014. Thesleff, H.The Pythagorean Texts of the Hellenistic Period, Åbo: Åbo Akademi, 1965. West, M. L. The Orphic Poems, Oxford: Clarendon Press, 1983. Zhmud, L. Pythagoras and the Early Pythagoreans, Oxford: Oxford University Press, 2012a. 5 Tradução parcial do livro “A history of women philosophers”.

Fonte: WHAITE, Mary Ellen (ed.). A History of Women Philosophers. Vol.1 Ancient Women Philosophers. 600 B.C – 500 A.D. Martinus Nijhoff Publishers, 1987, pp.05-09; 11-17.

Tradução realizada por Janyne Sattler

Introdução ao volume 1

Ao retraçarmos a história da filosofia até Hesíodo, sabemos que, ao menos em sua forma escrita, a filo- sofia já engajava homens desde pelo menos o século VIII a.C. Uma filosofia oral sem dúvida precede a Hesíodo, mas sem o registro desta história oral, nós não sabemos o quanto. Há um registro que afirma que Pitágoras recebeu os seus princípios estéticos de uma mulher sacerdotisa-filósofa, Temistocleia, mas não há qualquer ou- tro detalhe que possa ser encontrado a seu respeito. Teano de Crotona, esposa de Pitágoras de Samos, vinha de uma família aristocrática órfica. Existe um documento atribuído a ela, no qual ela discute a metafísica pitagó- rica, e alguns registros dos seus apotegmas a partir dos quais podemos esboçar a sua visão sobre o casamento, o sexo, as mulheres e a ética. Pouco mais se sabe sobre Teano, exceto que suas filhas Damo, Myia e Arignote tinham igualmente a reputação de estar entre os filósofos pitagóricos originais. Algumas outras mulheres eram também pitagóricas, incluindo Phintys de Esparta, de Lucania, Perictione, Perictione II e Teano II, mas elas viveram muitos séculos depois dos membros da comunidade pitagórica original. A tradição filosófica recente assumiu que Diotima não foi uma pessoa histórica que manteve de fato aquele diálogo com Sócrates sobre a natureza do amor erótico tal como relatado no Banquete de Platão. No en- tanto, este diálogo platônico há muito tem intrigado os estudiosos de Platão, porque muitas das visões que são atribuídas à Diotima não parecem ser consistentes com a posição do próprio Platão. Introduzimos aqui uma evidência textual e arqueológica a favor de uma perspectiva que desafia aquelas reivindicações tradicionais acerca da historicidade de Diotima, e rastreamos as origens da sugestão de que Diotima não foi uma pessoa histórica até um humanista do século XV. Os dois fragmentos sobreviventes de Phintys, de On the Moderation of Women, refletem a pressupo- sição pitagórica de que existem algumas diferenças essenciais entre a natureza dos homens e a das mulheres. Phintys observa que, embora algumas virtudes sejam comuns a ambos (coragem, justiça e sabedoria), a tem- perança ou moderação é mais comum nas mulheres. Ela reconhece que as limitações impostas ao papel social das mulheres refletem uma certa compreensão da natureza de suas almas. Assim, o princípio normativo da harmonia deve ser satisfeito dentro do contexto dos papéis sociais específicos permitidos às mulheres. O fragmento sobrevivente da obra Book on the Human Nature de Aesara de Lucania apresenta uma teoria da lei natural que afirma que através da introspecção sobre a natureza e a estrutura da alma humana, nós podemos descobrir os fundamentos filosóficos naturais para toda lei humana, incluindo-se aí a estrutura téc- nica da lei moral e da lei positiva. Sua teoria da lei natural concerne três aplicações da lei moral: a moralidade individual privada, a base moral das instituições familiares, e a base moral das instituições sociais. Embora dois fragmentos de On the Harmony of Women e um fragmento de On Wisdom sejam identifi- cados como sendo de autoria de uma mulher chamada Perictione, não parece ser o caso de que ambas as obras devam ser atribuídas à mesma Perictione. E, embora a mãe de Platão se chamasse Perictione, não podemos saber com segurança se uma destas autores era a mãe de Platão. Os fragmentos de On the Harmony of Women constituem uma aplicação do princípio normativo da harmonia à difícil realidade do papel social das mulheres. Eles fornecem uma avaliação realista sobre o modo como uma mulher, que é confrontada com o fato de que sua liberdade de ação é limitada pela sociedade, pode cumprir o seu dever de agir virtuosamente. O fragmento de On Wisdom fornece uma análise teleológica da natureza e da finalidade da filosofia, e a distingue de outras disciplinas teoréticas. São dois os escritos de Teano II que sobrevivem: são cartas a Euboule e a Nikostrate, ambas preservadas por Theodoret em seuDe Vita Pythagoras. Em sua carta a Euboule, Teano II explica que é porque as crianças 6 pequenas são incapazes de compreender o modo como se aplica o princípio da harmonia que elas devem ser guiadas e disciplinadas. A pressuposição de Teano II de que a responsabilidade por esta tarefa recai sobre a mãe, porque é uma virtude especial da mulher ser capaz de criar a justiça e a harmonia no lar, é consistente com a perspectiva sobre o lugar das mulheres tal como expressa por Phintys e Perictione. A virtude especial das mulheres as obriga igualmente a comportar-se de forma justa para com seus maridos, mesmo quando os maridos as tratam injustamente. Esta visão é expressa na carta de Teano II a Nikostrate, e tem raízes em sua perspectiva sobre a responsabilidade das mulheres pela manutenção da harmonia em um casamento. Ela observa que acrescer uma injustiça à outra não é o caminho para restabelecer a ordem e a harmonia, mas o caminho para criar ainda mais discórdia. Apenas ao agir de forma honorável e justa pode a mulher demonstrar a sua superioridade moral ao homem e, deste modo, estabelecer o exemplo a ser por ele imitado. Sucessora da escola de filosofia originalmente fundada por seu pai Aristipo, Arete de Cyrene dirigiu a escola cirenaica de filosofia hedonista depois de sua morte. Como seu pai esteve presente quando da morte de Sócrates, nós podemos presumir que Arete foi uma contemporânea de Platão. Esta escola de filosofia defendia que o empreendimento intelectual humano mais importante é a busca da felicidade. Eles rejeitavam as disci- plinas científicas como irrelevantes para esta busca. O único critério de moralidade era a experiência presente de prazer, um princípio moral defendido sobre bases tanto empíricas quanto epistemológicas. Os filósofos estavam singularmente preparados para a busca do prazer porque estavam em melhor condição de exercer o controle racional sobre ela. A ética hedonista promovida por Arete e os outros antigos cirenaicos era um hedo- nismo filosófico, e não meramente uma defesa de vida dissoluta. Conhecida durante todo o Império Romano Tardio como “A Filósofa Julia”, esta Imperatriz Romana da dinastia Severa devotou-se ao estudo da filosofia e patrocinou um círculo filosófico formado por matemá- ticos, sofistas, juristas, médicos, historiadores e outros acadêmicos eruditos. Ela é mais conhecida como uma proponente da “segunda sofística”, uma escola de retórica filosófica dedicada a discussões sobre o tratamento filosófico de assuntos tais como a justiça e a cosmologia, assim como sobre as filosofias dos neo-pitagóricos e neo-platônicos. Makrina viveu em Neocaesarea no século IV d.C. Sua discussão mantida no leito de morte com seu ir- mão, Gregory, Bispo de Nyssa, acerca da natureza da alma, foi por ele registrada logo após sua morte no diálogo De Anima et Resurrectione. Makrina veio de uma família na qual tanto os homens quanto as mulheres eram intelectuais, e foi educada por sua mãe. Estudante de filosofia grega, Makrina era também cristã e extrema- mente conhecedora desta filosofia. Embora nada saibamos diretamente quanto à sua visão sobre a questão da igualdade das almas dos homens e das mulheres, de suas discussões sobre a natureza da alma e da criação hu- mana fica claro que Makrina não encontrou aí quaisquer diferenças essenciais entre as almas dos homens e as das mulheres. De acordo com Makrina, a capacidade para o pensamento racional é a característica essencial da alma. As paixões não são traços essências da alma. Consequentemente, ela argumenta, ainda que as mulheres fossem moralmente inferiores aos homens, como sustentavam o gnosticismo e a filosofia cristã primitiva, isto não seria devido a diferenças essenciais na natureza das almas dos homens e das mulheres, mas a escolhas feitas por mulheres individuais. Em sua visão, tanto homens quanto mulheres são feitos “à imagem e semelhança de Deus.” Makrina rejeita a ideia de que os seres humanos reencarnem como animais e plantas em punição por seus pecados. Hipátia viveu em Alexandria em uma época em que a cidade era o centro das realizações científicas e filosóficas do mundo ocidental. Naquele tempo, a cidade era um lugar de tremenda turbulência social, política, religiosa e acadêmica. Filha do mais famoso matemático do Museu de Alexandria, Theon, Hipátia alegada- mente excedeu as habilidades matemáticas do pai alcançando ao mesmo tempo a reputação de mais eminente filósofa neo-platônica de Alexandria. O governo Romano Cristão honrou as suas realizações com sua nome- ação sem precedentes a uma posição pública como dirigente da escola plotiniana. Embora ensinasse filosofia, incluindo as obras de Platão, Aristóteles e seus sucessores, ela aparentemente nada escreveu em filosofia. Na verdade, a filosofia forneceu-lhe os fundamentos teóricos necessários para que pudesse avaliar os méritos das mais poderosas teorias matemáticas, geométricas e astronômicas de seu tempo. Ela tornou-se conhecida pelos comentários acerca das teorias matemáticas e astronômicas de Ptolomeu (excedendo até mesmo a reputação de Pappus a esse respeito), por sua contribuição à teoria algébrica em seu comentário à obra de Diophantus, Arithmeticorum, e por seus comentários acerca da geometria sólida da obra Conic Sections de Apollonius Per- 7 gaeus. Sua obra escrita é em grande parte desconhecida dos estudiosos modernos, muitos dos quais apenas repetiram as afirmações infundadas do Lexicon Suda de que todos os seus trabalhos haviam perecido. Ao invés disso, as menções históricas à Hipátia limitavam-se geralmente a citar sua morte prematura e brutal nas mãos de uma turba de monges. Asclepigenia de Atena foi uma contemporânea mais jovem de Hipátia, mas enquanto Hipátia aplicava seu conhecimento da filosofia platônica e aristotélica às grandes questões matemáticas e científicas do seu -tem po, Asclepigenia aplicava seu conhecimento de Platão e de Aristóteles às grandes questões religiosas e metafí- sicas suscitadas pela teoria ética cristã. Os filósofos pagãos procuravam compreender os mistérios do cosmos e intervir junto aos deuses para modificar o destino humano. O Cristianismo, por outro lado, representava uma aceitação e até mesmo um acolhimento da tragédia e do destino nesta vida, com uma prometida salvação e consolação na próxima. Foi dentro deste contexto que a filosofia ensinada por Asclepigenia procurou pelo bem supremo. Os filósofos pagãos tais como Asclepigenia reagiam à insatisfação com os destinos da vida através da compreensão e domínio dos princípios “secretos” da metafísica que controlavam o universo, e da aplicação de princípios mágicos e teúrgicos que pudessem afetar tais destinos. Assim, Asclepigenia contrastava marcada- mente com os filósofos da escola alexandrina de Hipátia, os quais buscavam o Absoluto através do domínio da metafísica, da cosmologia, da matemática e da ciência. Os filósofos da escola ateniense e, em particular Proclus, o discípulo de Asclepigenia, buscavam o Absoluto através da contemplação dos mistérios da metafísica, da cosmologia, do misticismo, da magia e da teurgia.

1. As primeiras pitagóricas: Temistocleia, Teano, Arignote, Myia e Damo

O pitagorismo representou uma ativa e popular escola de filosofia do final do século VI a.C. até o- sé culo II ou III d.C. Os pitagóricos originais ou “primeiros” incluíam os membros imediatos de sua família e os outros sucessores que lideraram sociedades ou cultos pitagóricos em certas partes da Grécia e do sul da Itália. Os primeiros pitagóricos devem ser distinguidos dos pitagóricos “posteriores” [“late”] do século IV e III a.C. e dos “neopitagóricos” do século I a.C. até, talvez, o século III d.C. Os primeiros pitagóricos incluíam Temis- tocleia, Teano, Arignote, Myia e Damo. Com a possível exceção de Temistocleia, estas mulheres eram todas membros da família de Pitágoras. Pitagóricas posteriores, incluindo Phintys, Aesara de Lucania, Perictione, (possivelmente) Perictione II, e Teano II, podem ser melhor descritas como filósofas da tradição pitagórica. Elas provavelmente viveram em torno do século IV-II a.C1.

I. Temistocleia, Arignote e Damo

As fontes antigas indicam que as mulheres eram ativas nas primeiras sociedades pitagóricas e que po- dem ter desempenhado um papel central no desenvolvimento da filosofia pitagórica inicial. Diógenes Laertius2 relata que: Entretanto, Aristôxenos afirma que Pitágoras tirou a maior parte de suas doutrinas éticas da sacerdotisa délfica Temistocleia. Os primeiros pitagóricos viam o cosmos ou o universo como ordenado e harmonioso. Tudo está em uma relação matemática particular com todo o resto. Harmonia e ordem existem quando as coisas mantêm uma relação apropriada umas com as outras. Esta relação pode ser expressa como uma proporção matemática. Um dos “discursos sagrados” é atribuído à filha de Pitágoras, Arignote3. De acordo com Arignote4:

(...) a essência eterna do número é a causa mais providencial da totalidade do céu, da terra e da região in- termediária.Da mesma forma, ela é a raiz da existência contínua dos deuses e daimones, assim como a dos homens divinos.

O comentário de Arignote é consistente com um outro que é atribuído à sua mãe, Teano de Crotona, no

1Ver Cap. 4, Authenticating the Fragments and Letters. 2Diogenes Laertius, Lives of the Eminent Philosophers, R.D. Hicks, transl. Cambridge: Harvard University Press, 1942. V, 341. 3Armand Delatte, Études sur la litterature Pythagoricienne, Bibliothèque de l’École des Hautes Études, 217, Paris, 1915. 4Peter Gorman, Pythagoras, A Life. Boston: Routledge & Kegan Paul, 1979, p. 90 8 sentido de que tudo o que existe, tudo o que é real, pode ser distinguido das outras coisas por enumeração. A essência eterna do número também está diretamente relacionada à coexistência harmoniosa entre as diferentes coisas. Esta harmonia pode ser expressa como uma relação matemática. Destas duas maneiras, o número é a causa de todas as coisas: sem ele não poderíamos enumerar, delinear e distinguir entre as coisas, e ele expressa as relações ordenadas entre elas.

II. Teano de Crotona

Teano era filha de Brontino, um órfico e aristocrata de Crotona. Ela primeiro tornou-se discípula de -Pi tágoras de Samos, e mais tarde sua esposa. Em um documento atribuído a uma obra mais ampla de sua autoria, On Piety 5, ela alude aos conceitos metafísicos de imitação e participação. O texto é traduzido por Vicki Lynn Harper6:

Eu aprendi que muitos dos gregos acreditam que Pitágoras tenha dito que todas as coisas são geradas a partir do número. Esta própria afirmação coloca uma dificuldade: como podem as coisas que não existem sequer ser concebidas como geradoras? Mas ele não disse de fato que todas as coisas vêm a ser a partir do número; mas antes, de acordo com o número – pela razão segundo a qual a ordem no sentido primário está no núme- ro e é pela participação na ordem que um primeiro e um segundo, e o resto sequencialmente, são designados às coisas que são contadas.

Teano está dizendo que quando perguntamos pela natureza de um objeto, nós podemos responder ou bem fazendo uma analogia entre o objeto e alguma outra coisa, ou bem definindo o objeto. De acordo com ela, o que Pitágoras pretendeu foi expressar uma analogia entre as coisas e os números. Este é o conceito da imitação: as coisas são como os números. Por sua participação no universo de ordem e harmonia, um objeto, corpóreo ou não, pode ser sequenciado com todos os outros objetos, e pode ser contado. As coisas podem ser contadas de acordo com o número, o sentido primário do qual é a ordenação. O documento atribuído a Teano de Crotona parece ter sido desconhecido por Aristóteles que disse que os pitagóricos7:

(...) constroem os corpos naturais a partir dos números, coisas que têm luminosidade e peso a partir de coisas que não têm peso ou luminosidade (...)

Ao lermos as “coisas” de Teano como significando “objetos físicos ou corpóreos”, como penso que deve- mos fazer devido ao uso que ela faz do termo “gerar”, tudo o que ela está reivindicando é que as coisas corpóreas não vêm à existência a partir do número ele mesmo, porque o número é não-corpóreo. Ao invés disso, é o nú- mero que nos permite distinguir uma coisa da outra. Ao enumerar as coisas como primeira, segunda, etc., nós reivindicamos tacitamente ser capazes de especificar os parâmetros físicos da coisa: ela começa aqui, termina ali, e entre o começo e o fim há um objeto. Assim, ao enumerar, nós também delineamos os objetos. Podemos dizer que alguma coisa é um objeto porque nós podemos contá-lo. Um apotegma atribuído a Teano trata de duas bem conhecidas doutrinas pitagóricas: a imortalidade das almas, e a transmigração das almas. Teano confirma que os pitagóricos acreditavam na “justiça divina” da vida após a morte e na transmigração das almas para um novo corpo, o qual não precisava ser necessariamente humano. Deste apotegma, obtemos uma imagem do processo de transmigração através do qual a harmonia do universo pode ser restabelecida quando uma pessoa a tiver perturbado durante a sua vida ao violar a lei moral. Teano conecta moralidade e cosmologia ao mostrar porque não deveria haver qualquer dúvida a respeito da imortalidade da alma8:

Se a alma não é imortal, então a vida é verdadeiramente uma festa para os malfeitores, os quais morrem depois de terem vivido suas vidas tão iniquamente. 5 Thesleff, Holger, “Pythagorean Texts of the Hellenistic Period,” Acta Academiae Aboensis, Humaniora, Ser. A. Vol. 30,1, p. 125 (1965) Stob., 1.10.13, 125 Wa. 6 Harper adota a leitura γενναν.ο δ ε (Heeren), seguindo Thesleff. 7Aristotle, Metaphysics 1090a22. 8 Clement of Alexandria, Stromata, IV.7. 9 Em um universo harmonioso, regido por princípios, tudo tem o seu próprio lugar e executa as suas próprias funções de acordo com alguma lei: as leis da física, da lógica, ou da moralidade e da religião. Ações más ou imorais são contrárias à lei, e contribuem para a desordem e a discórdia. De acordo com Teano, se a alma não é imortal, então aqueles que contribuem para a desordem não apenas conseguem um tipo de passeio grátis [free ride] ao longo da vida à custa daqueles a quem fizeram mal, mas eles também perturbam a ordem do universo. Para que o equilíbrio e a harmonia do universo possam ser restabelecidos, as almas devem ser imortais. Assim, os imorais podem restaurar a ordem ao aceitar a punição de renascer como algo inferior a um ser humano, e ao viver aquela vida posterior tal como requerido pela lei moral. Stobeus cita vários apotegmas de Teano que revelam certas atitudes pitagóricas em relação às mulheres. A atividade sexual de uma esposa deve ser restrita a agradar seu marido – ela não deve ter outros amantes. No contexto do casamento, a castidade e a virtude não são identificadas com a abstinência. Quando perguntaram a Teano quantos dias depois da relação sexual são requeridos para que uma mulher seja novamente considerada “pura”, sua resposta foi a de que se a atividade é realizada com o próprio marido, a mulher permanece pura, mas se é realizada com outra pessoa, ela jamais pode tornar-se pura novamente.9 Quando lhe perguntaram quais deveres são incumbentes a uma mulher casada, sua resposta foi “agradar o seu marido”.10 Teano via o amor romântico como nada mais do que “a inclinação natural de uma alma vazia”.11 Estas citações talvez possam ser melhor compreendidas à luz dos escritos das filósofas pitagóricas posteriores, Phintys, Teano II, Perictione, Aesara de Lucania e Perictione II. Dos seus escritos, vemos que as doutrinas pitagóricas são concebidas para ser aplicadas à vida pessoal e familiar. As mulheres, cuja virtude especial é a temperança, assumem a respon- sabilidade de manter a lei e a justiça (ou a harmonia) dentro do lar. De acordo com Aesara de Lucania,12 o lar é um microcosmo do estado. Consequentemente, as mulheres carregam a grande responsabilidade de criar as condições sob as quais possam existir em um estado a harmonia e a ordem, a lei e a justiça. Uma mulher que não compreende isto provavelmente contribuirá para a desordem, para a discórdia e o caos. Quando lemos os apotegmas de Teano dento deste contexto, podemos apreciar melhor a força do seu comentário:13

Melhor estar sobre um cavalo em fuga do que ser uma mulher que não reflete.

III. Myia

Myia é mencionada como uma das filhas de Teano e Pitágoras.14 Ela era casada com um atleta, Milo (algumas vezes referido como Milon, Mylon ou até mesmo Meno), que viera da Crotona nativa de sua mãe. Foi em sua casa que Pitágoras sofreu as queimaduras que o levaram à morte. Assim como as outras mulheres pitagóricas, ela escreve sobre a aplicação do princípio de harmonia na vida cotidiana de uma mulher. Sua carta a Phyllis discute a importância de satisfazer as necessidades de uma criança recém-nascida de acordo com este princípio. O seu ponto parece ser o de que um recém-nascido deseja naturalmente aquilo que é apropriado às suas necessidades, e o que ele precisa é moderação: nem muita, nem pouca comida, roupa, calor, frio, ar fresco, etc. O que é interessante sobre a sua carta é a sugestão de que o recém-nascido deseja naturalmente a modera- ção em todas as coisas, e de que muito se beneficia com ela. Por estas razões, a nova mãe deve selecionar uma babá que seja igualmente moderada. A babá não deve ser dada a excessos de sono ou bebida, e deve moderar o apetite sexual do seu marido (presumivelmente porque uma gravidez impediria a lactação). Ela deve “fazer todas as coisas bem, no momento apropriado”. Ela deve estar em harmonia com o bem-estar da criança, e mo- derar suas próprias necessidades de tal modo que sua nutrição ao recém-nascido venha a contribuir para o seu bom desenvolvimento.

9 , Eclogae Physicae Dialecticae et Ethicae (Hense) IV, 586. 10 Op. cit., 587. 11 Ibid. 12 Variadamente escrita “Aisara” e “”, este último muitas vezes confundido com um homem com este nome, que não era o mes- mo que a nossa Aesara. 13 Stobaeus (Meineke) Florilegium, 268 14 Clement of Alexandria, Stromata, IV, 19., Suda Lexicon, s.v. “Myia,” “Theano.” Iamblichus,Life of Pythagoras, 30 and 36. 10 Texto da carta de Myia para Phyllis 15

Myia para Phyllis: Saudações. Porque você se tornou uma mãe, eu ofereço a você este conselho. Escolha uma babá que seja bem disposta e limpa, que seja modesta e que não seja dada a excessos de sono e bebida. Uma mulher assim será mais capaz de julgar o melhor modo de criar os seus filhos de uma maneira apropriada ao seu status de ser humano livre – desde que, é claro, ela tenha leite o suficiente para alimentar uma criança, e não seja facilmente dominada pelas solicitações de seu marido para compartilhar a sua cama. Uma babá tem uma grande contribuição neste que é o primeiro e preliminar momento de toda a vida de uma criança, isto é, nutrir tendo em vista o bom desenvolvimento da criança. Pois ela fará todas as coisas bem, no mo- mento apropriado. Não a deixe oferecer o mamilo e o peito e o alimento no calor do momento, mas de acordo com a devida consideração. Assim, ela orientará o bebê à saúde. Ela não deve ceder quando ela própria dese- jar dormir, mas quando o recém-nascido desejar descansar; ela será de grande conforto para a criança. Não a deixe ser irascível ou loquaz ou indiscriminada na ingestão de comida, mas ordenada e moderada e – se for possível – que não seja estrangeira, mas grega. O melhor é colocar o recém-nascido para dormir quando ele tiver sido adequadamente nutrido de leite, pois é então que o descanso é doce aos jovens, e assim o alimento é fácil de digerir. Se houver qualquer outro alimento, deve-se dar a comida a mais natural possível. Adie por completo o vinho, por causa do seu forte efeito, ou adicione-o frugalmente em uma mistura ao leite da noite. Não dê continuamente banhos na criança. Uma prática de banhos infrequentes, a uma temperatura bran- da, é melhor. Além disso, o ar deve ter um equilíbrio adequado entre calor e frio, e a casa não deve ser nem muito airosa nem muito fechada. A água não deve ter sais minerais demais nem de menos, e as roupas de cama não devem ser ásperas, mas tocar agradavelmente a pele. Em todas estas coisas, a natureza anseia pelo que é apropriado, não pelo que é extravagante. Estas são as coisas que me parecem úteis escrever para você no presente momento: minhas esperanças baseadas no cuidado da nutrição de acordo com o plano. Com a ajuda de deus, devemos providenciar outras lembranças viáveis e adequadas ainda à educação da criança, em um momento ulterior.

O leitor pode estar impressionado, como eu estive, com a maneira como Myia ela mesma leva a cabo este conselho de temperança: ela termina a carta com a afirmação de que “estas são as coisas que me parecem úteis escrever para você no presente momento...”. Há moderação até mesmo na ação de a aconselhar, já que ela o promete mais posteriormente, quando será “adequado” fazer lembrar a Phyllis os outros detalhes da educa- ção harmoniosa! Esta afirmação final sumariza aquilo que as mulheres pitagóricas se veemrealmente fazendo com suas cartas e textos. Há alguma coisa na carta de Myia, e naquelas de Teano II, bem como nos fragmentos de Perictione I e Phyntis, que soa como a assunção de uma tarefa. É sua tarefa como mulheres filósofas ensi- nar a outras mulheres aquilo que elas precisam saber se quiserem viver suas vidas harmoniosamente e, como sugere Aesara de Lucania, criar justiça e harmonia em suas almas e em seus lares. Da mesma forma, é tarefa dos homens filósofos ensinar a outros homens aquilo que eles precisam saber se quiserem viver suas vidas har- moniosamente, criando justiça e harmonia em suas almas e no estado. Esta orientação para uma tarefa explica em parte, e em parte meramente descreve, as razões pelas quais as mulheres adotam uma abordagem “realista” em filosofia moral, assim como a abordagem “ideal” adotada pelos homens. Eles adotam diferentes abordagens porque suas tarefas são diferentes. Suas tarefas são diferentes porque a natureza dos homens e das mulheres difere.

15 Thesleff, op. cit., 123-4; Hercher, Epistolographi Graeci, 608. Trad. Vicki Lynn Harper. 11 Tradução de capítulo de livro intitulado “Some pythagorean female virtues” (Algumas virtudes femi- ninas pitagóricas).

Fonte: LAMBROPOULOU, Voula. Some pythagorean female virtues. In: HAWLEY, Richard; LEVICK, Barbara. Women in antiquity: new assessments. Routledge, 1995. Cap. 8. pp. 122-133.

Tradução realizada por Camila Kulkamp

Como é sabido pelas fontes, as sociedades pitagóricas incluíam homens e mulheres em perfeita igual- dade. A admissão na comunidade ocorreu após um exame rigoroso e sob a condição de anos de silêncio. Os requisitos para iniciar a filosofia pitagórica e os deveres subsequentes eram comuns a homens e mulheres, sem exceção. As mulheres, no entanto, receberam mais alguns deveres extras, que, segundo os pitagóricos, eram adequados ao seu sexo. Assim, embora tratemos a moral pitagórica como um todo, sem distinção entre ho- mens e mulheres, não podemos ignorar algumas peculiaridades, talvez mais tarde, relativas à moral das mulhe- res. À parte as diferenças científicas, é certo que a escola pitagórica se distinguia das similares por sua direção moral. Segundo vários estudiosos, a escola pitagórica, como mostrou seu modo de vida, moral, crenças e ativi- dades políticas, sem dúvida se originou de motivos morais e religiosos. Mas um retrato real de suas tendências e orientações morais não pode ser extraído com precisão de descrições posteriores. Pitágoras, sem dúvida, tinha a intenção de estabelecer uma sementeira para o cultivo da piedade e princípios estritos de temperança, ordem, obediência aos governantes e à lei, coragem, amizade leal e, em geral, todas aquelas virtudes que, se- gundo o grego, especialmente a perspectiva dórica, caracterizam o homem corajoso, e que são particularmente enfatizados nos apofitemas pitagóricos sobre a moral. Alega-se que as doutrinas pitagóricas permaneceram cuidadosamente confinadas aos limites da escola e que qualquer transgressão foi seguida por uma severa re- preensão. É improvável, independentemente de seu significado religioso simbólico, que as doutrinas filosóficas e os teoremas matemáticos sejam mantidos em segredo. Além disso, a distinção entre estudantes internos e externos na escola pitagórica a organização era devida a outras razões além do sigilo. Pitágoras estava interessa- do em espalhar suas doutrinas sobre a virtude, e evidências contraditórias refletem crenças populares ou datas muito mais tarde. Os pitagóricos exigiam acima de tudo o culto a deuses e demônios, e um respeito genuíno pelos pais e pelas leis e tradições da cidade natal de cada um, que não devem ser frivolamente substituídos por estrangeiros. Eles consideravam a anarquia um vício importante, pois acreditavam que não é possível para a raça humana viver e prosperar sem algum tipo de autoridade. Governantes e governados devem estar unidos por amizade mútua. Cada cidadão deve se subordinar ao todo. O jovem e o adolescente devem ser educados para o estado; os homens maduros e os velhos devem agir por isso. A filosofia pitagórica também recomenda lealdade, con- fiança e tolerância na amizade; obediência dos jovens aos mais velhos; gratidão para com os pais e benfeitores. Quem possui um amor verdadeiro pelo belo não se voltará para o luxo externo, mas para a atividade moral e a autossuficiência interna. A ciência floresce apenas onde é praticada com zelo e amor. De fato, essa crença pitagórica pode ser responsável por várias proibições, simbolismos e regulamentos. Em alguns casos, o homem depende da sorte, mas na maioria das vezes ele é o mestre de seu próprio destino. Do mesmo espírito derivam os ‘regulamentos’ morais dos Versos de Ouro, dirigidos a homens e mulheres: respeito a deuses e pais, lealdade a amigos, justiça e tolerância a todos, temperança, propriedade, modéstia, autodisciplina, prudência, castidade, sabedoria, submissão ao destino, autocontrole regular, oração, participação em cerimônias sagradas, absti- nência de comida impura, aproximação de templos em trajes limpos e com a mente clara, evitação de desejos extravagantes, guarda de segredos e juramentos. Se todos esses deveres forem cumpridos, há esperança de muita sorte após a morte. A fé em uma recompensa póstuma exigia uma aceitação absoluta da ordem moral na família, do estado e do contato social em geral. Originalmente, (o virtus latino) não tinha um significado ético para os filósofos pré-democráticos. Significara o grupo de qualidades que tornam o homem extraordinário e perfeito, para que ele se destaque entre outros. Alguns estudiosos argumentam que, por mais inquestionável que seja a natureza religiosa e moral do pitagorismo, não é possível afirmar que o pitagorismo estabeleceu um sistema ético. Ethos, para os pitagóricos, é confundido com religião, e a religião tem dois aspectos: um é pura- 12 mente teórico, onde a ciência natural é reduzida à ciência dos números; o outro é puramente prático e reduzido a ações e rituais. A vida ética tem o objetivo de libertar a alma das paixões, que a mantêm escrava do corpo e de lhe dar liberdade absoluta; pois a alma não conhece outra lei ou vínculo além dos da razão e da ação. A filosofia pitagórica e o modo de vida de seus seguidores os ajudaram a alcançar a perfeição divina. A filosofia é uma tarefa árdua, de fato, e um filósofo é aquele que procura conceber o universo como cosmos (uma palavra que etimologicamente significa ornamento), como uma ordem harmoniosa de beleza e alcançar essa beleza de harmonia em sua vida pessoal. O pitagorianismo ensina as virtudes da devoção, fé, piedade e medida através da harmonia como um princípio dominante. A vida humana é um esforço, uma prova e a morte não é o seu fim, mas apenas uma transição para a regeneração de acordo com as leis da justa recompensa. Sabemos que a principal preocupação do pitagorismo era o estudo da ordem, da propriedade ou (observe a conexão etimoló- gica com o ‘cosmos’), e não a essência material do universo ou mudanças naturais: é por isso que eles tentaram cumprir as leis ‘cósmicas’. O conceito de decoro e harmonia na vida moral foi exposto por Perictione em seu trabalho, On Woman’s Harmony:

É preciso considerar a mulher harmoniosa como cheia de sabedoria e autocontrole; uma alma deve estar extremamente consciente da bondade para ser justa, corajosa e sábia, embelezada com a autossuficiência e odiando a opinião vazia. (trad. V.L. Harper)

Para a mulher, harmonia é prudência e temperança. Essas virtudes também são recomendadas por Pitágoras em seu “discurso” para as mulheres. Pitágoras, diz que a alma de uma mulher deve buscar a virtude para se tornar justa, corajosa, razoável, autossuficiente, por qualidades adaptadas à sua natureza e por não gos- tar da glória vã. A natureza harmoniosa da mulher não deve ser perturbada pela falta de riqueza, descendência nobre, glória ou outras coisas que são frequentemente mais prejudiciais do que úteis e causam inveja e ódio:

Mas não pense que nobreza de nascimento e riqueza, e provenientes de uma grande cidade, são necessidades, nem a boa opinião e amizade de homens eminentes e reais. Se for esse o caso, não dói. Mas, se não, desejar não os faz assim. Mesmo que isso lhe seja atribuído, não deixe sua alma perseguir o grandioso e o maravi- lhoso. Que ela também se afaste deles. Eles prejudicam mais do que ajudam, arrastando um ao infortúnio. Traição, inveja e malícia habitam neles; essa mulher não seria serena.

A mulher prudente, sem recusar quaisquer bens materiais que possua, não deve perseguir ‘o grande e o maravilhoso’. A conduta de uma mulher não preocupa só a ela mesma, mas reflete em toda a família. A mulher é o fundamento mais básico de um oikos (família), como percebido e consagrado pelos pitagóricos. Sabemos que havia uma conexão entre ética e política na sociedade pitagórica. A ética se torna proeminente na política. Perictione, inspirada por essas doutrinas pitagóricas, apresenta isso mais claramente:

Se, de qualquer forma, essa mulher governar cidades e tribos, como vemos no caso de uma cidade real.

Ela poderia ter em mente as grandes rainhas Semiramis, Tomyris e Artemisia, que despertaram grande admiração na antiguidade. Portanto, é óbvio que Perictione não exclui as mulheres pitagóricas de participarem da política. O que é importante aqui é que a distinção entre oikos (família) para mulheres e polis (cidade) para homens não é válida. Na passagem seguinte, Perictione é profundamente animada pelos princípios morais dos pitagóricos anteriores:

Tendo domínio sobre o apetite e sentimentos elevados, ela será justa e harmoniosa; nenhum desejo sem lei a impelirá. Ela preservará uma disposição amorosa para com o marido, os filhos e toda a família. Tantas mulheres que se tornam amantes de camas estranhas se tornam inimigas de todos em casa, nobres e servos. Essa mulher inventa continuamente mentiras e enganos para o marido e fabrica falsidades sobre tudo para ele, a fim de que ela pareça se sobressair na boa vontade e, embora adore a ociosidade, pareça governar a casa em tal extensão, deixe-as coisas sejam ditas.

As crenças pitagóricas sobre ligações ilegítimas eram as mais rigorosas de todas as expressas por outros 13 filósofos antigos. Eles foram os únicos a julgar relacionamentos ilegítimos que eram tolerados pela lei comum. Ou seja, eles não apenas proibiram o que foi condenado pela lei, a saber, a infidelidade da esposa ao marido, mas também consideraram a infidelidade do marido à esposa como igualmente injusta, apesar do costume local predominante; pois os pitagóricos professavam completa igualdade entre homens e mulheres. Além dis- so, eles não distinguiram entre classes sociais no desempenho de deveres sociais. Homens livres e escravos estavam em pé de igualdade. Pitágoras recomenda uma vida vivida “de forma casta e piedosa”, e Perictione fala sobre a temperança dos desejos. Uma mulher deve ser ‘justa’ e ‘harmoniosa’. A conduta de uma mulher que infringe a lei, que engana ou que mente é lamentável e imprópria e, além disso, perturba a harmonia de sua alma. É por isso que Perictione recomenda harmonia e amor para a família, marido, filhos e domésticas. Virtu- de é harmonia, assim como qualquer outra boa qualidade. Tudo isso está de acordo com as crenças pitagóricas sobre as mulheres, como derivadas do discurso do Mestre para as mulheres de Croton:

Ele também exortou as mulheres a usarem palavras de bom presságio por toda a vida e esforçar-se para que outras pessoas possam prever coisas boas delas. Da mesma forma, ele os exortou a não destruir a fama popu- lar, nem a culpar os escritores de fábulas, que examinavam a justiça das mulheres, por acomodarem outras pessoas com roupas e ornamentos, sem testemunha, quando é necessário que outra pessoa as use, e que nem esse litígio nem contradição são produzidos com essa confiança - fingiram que três mulheres usavam apenas um olho em comum, um relato da facilidade da comunhão entre si. (trad. T. Taylor)

A ordem (para usar palavras de bom presságio), como endereçada às mulheres, é totalmente adaptada à concepção grega antiga da posição das mulheres na sociedade, que dificilmente difere da realidade grega mo- derna, ou boa reputação de uma mulher, era um silêncio absoluto sobre o nome dela, como também é relatado por Tucídides. Pitágoras, de acordo com Iamblichus, caracteriza as mulheres como ‘justas’ porque estão dis- postas a compartilhar suas posses com outras pessoas e fazer isso com grande generosidade. Perictione repete isso, como vimos na p. 124. Esse é um comportamento corajoso da parte das mulheres e nunca é observado entre os homens. Confiança sem testemunhas ou juramentos é outra virtude feminina de Pitágoras. A virtude da simplicidade feminina, como professada por Pitágoras, também é repetida por Perictione: (‘embelezada com autossuficiência e odiando toda opinião vazia’). Como se sabe, o grande filósofo influenciou mulheres e crianças através de seu prestígio pessoal em relação à temperança e frugalidade, e recomendou evitar o luxo; e nisso quase todas as nossas fontes estão de acordo. Em seguida, Pitágoras trata do assunto “temperança”:

Em segundo lugar, ele falou sobre a temperança ... depois, exortou-os a considerar que isso só entre as virtu- des era adaptado a um menino e uma virgem, a uma mulher e à ordem daqueles de uma idade mais avan- çada; e que foi especialmente adaptado à parte mais jovem da comunidade. Ele também acrescentou que so- mente essa virtude compreendia os bens do corpo e da alma ... pois quando os bárbaros e os gregos brigavam entre si sobre Tróia, cada um deles caía nas mais terríveis calamidades, pela incontinência de um homem.

Além da frugalidade, a temperança é apresentada como uma virtude fundamental para todos e como de primordial importância para a mente e para a alma. Na passagem, a ‘virgem’ é distinta da ‘mulher’, e a pa- lavra (incontinência) é usada em vez de (intemperança). De qualquer forma, é o oposto da virtude de (tempe- rança). O fato de que a medida, a ordem e a harmonia foram consideradas pelos primeiros pitagóricos como os fundamentos da vida moral e social também é conhecido nos Górgias de Platão. Lá Platão diz que os ‘sábios’ pitagóricos professam contato social, amizade, propriedade e justiça como princípios cósmicos. O mesmo vale para os termos (amizade) e (filantropia) na passagem. Em seguida, ele nos incentiva a observar a “igualdade geométrica” e a “concordância” entre elas. Uma continuidade da ‘prudência’ pitagórica, no sentido estrito da prudência das mulheres, é encontrada em Phintys, “On Woman Prudence”. As virtudes agora são determinadas e distinguidas entre os sexos:

Uma mulher deve ser totalmente boa e ordeira; sem excelência, ela nunca se tornaria assim. A excelência adequada a cada coisa torna superior aquilo que é receptivo a ela.

Segundo Phintys, uma mulher deve se tornar boa e decente, e sem virtude, ela não pode se tornar tal. A 14 virtude feminina por excelência é a prudência, adequada para as mulheres, assim como a virtude ocular é para os olhos, a virtude auditiva para os ouvidos e assim por diante:

A excelência apropriada aos olhos faz com que os olhos sejam apropriados para a audição, para a faculdade da audição, para o cavalo, o cavalo, para o homem, o homem. Da mesma forma, a excelência apropriada para uma mulher a torna excelente. A excelência mais apropriada para uma mulher é a moderação. A prin- cipal virtude feminina, portanto, é a moderação.

De acordo com esta pitagórica, existem profissões adequadas para homens e outras adequadas para mulheres. Também existem virtudes comuns a homens e mulheres:

Concordo que os homens devem ser generais, oficiais da cidade e políticos, e as mulheres devem ficar em casa e ficar dentro de casa, receber e cuidar de seus maridos. Mas acredito que coragem, justiça e inteligência são qualidades que homens e mulheres têm em comum. (trans. M.R. Lefkowitz)

Essa passagem revela claramente: primeiro, um desvio das crenças pitagóricas, como as conhecemos dos discursos atribuídos a Pitágoras; segundo, a linguagem muito posterior do texto; terceiro, que essas pala- vras se encaixariam melhor em um cenário jônico ou ateniense do século IV ou III a.C., se tivessem sido escri- tas no dialeto ático. Portanto, Phintys não pode ter sido lacedaimoniana, principalmente porque suas palavras são contrárias ao ethos do Estado lacedaimoniano. Com as virtudes comuns a homens e mulheres, voltamos às posições pitagóricas sem excluir o platônico. Uma dessas virtudes comuns é a saúde do corpo e da alma: (‘E assim como é benéfico para o corpo de cada ser saudável, também é benéfico para a alma ser saudável’) As virtudes do corpo é saúde, força, sensibilidade e beleza. Existem virtudes que são adequadas para os homens, pois existem virtudes mais apropriadas para as mulheres. Coragem e resolução rápida são mais adequadas ao homem por causa da constituição de seu corpo e da força de sua alma. A reticência modesta é mais apropriada para a mulher. Sem condenar mulheres instruídas ou filósofas, Phintys recomendou, além da inteligência e do estudo, a virtude da prudência, cujos frutos são propriedade, modéstia e reticência. Essas virtudes dão graça às mulhe- res. Com a virtude da prudência, a mulher (‘será capaz de honrar e amar o marido’). A fé conjugal é considera- da a primeira condição necessária para a prudência feminina. Da mesma forma, outra pitagórica, Melissa, caracteriza a fé conjugal como ‘bonita’: (‘uma mulher livre deve parecer bonita para o marido, não para pessoas de fora’). Segundo Melissa, uma condição básica para uma mulher que busca ‘prudência’ (aqui ela usa um verbo forte, usado por poetas épicos e trágicos, que significa “desejar ardentemente, lutar por alguma coisa”) não é luxo do vestuário, mas, primeiro, a administração correta de sua casa; e, segundo, seu esforço para ser apreciado apenas pelo marido. As mulheres instruídas daquele período devem ter tido aulas particulares e familiarizadas com as teo- rias de Xenofonte e Aristóteles, e isso pode ser concluído pelas semelhanças de seus textos. A seguinte passagem de Phintys novamente pode ser considerada como uma amostra da vida pública e privada na Grécia antiga, no que diz respeito à posição das mulheres:

As mulheres de importância deixam a casa para sacrificar à divindade principal em nome de si mesmas, de seus maridos e de suas famílias. Elas não saem de casa à noite nem partem abertamente do mercado para assistir a um festival ou fazer alguma compra, acompanhadas por uma criada ou uma empregada, no máximo. Elas oferecem orações em sacrifício aos deuses também com o melhor de suas habilidades. Elas se afastam de cultos secretos e orgias de Cybeline em suas casas.

O momento em que o mercado estava lotado era o mais apropriado para uma mulher sair dos apo- sentos das mulheres. Exceto pela frase, nada mais aqui é remanescente da tradição pitagórica. O homem fora de casa e a mulher dentro dela resumem, como é sabido, a grandeza da antiga sociedade ateniense. O silêncio foi recomendado para as mulheres, além de ficar em casa. Silêncio sem fim. Esse tipo de silêncio é diferente daquele que Pitágoras recomendara e exigira de seus alunos do sexo masculino e feminino para garantir seu sigilo. Ele não aceitava mulheres tagarelas ou ambiciosas. A temperança da fala foi considerada a mais difícil 15 de alcançar. Esse silêncio foi chamado (discrição) ou (palavra em grego). Outra pitagórica, Lysis, elogia a coragem de Damo, filha de Pitágoras, que seguiu a tradição pitagórica e, apesar de ter caído em extrema pobreza, manteve os ‘memorandos’ de Pitágoras, que são suas obras escritas, e se recusou a entregá-las até para grandes ofertas de materiais:

Muitos dizem que você deveria filosofar em público, o que Pitágoras proibiu. Ele cuidadosamente anulou suas anotações, entregando-as à filha Damo, com a instrução de que ela as entregaria a ninguém fora da casa. E ela, embora podendo vender suas obras por muito dinheiro, recusou, considerando a pobreza e as instruções de seu pai mais valiosas que o ouro. Dizem de fato que, quando Damo morreu, ela deu a mesma instrução à filha Bistala. (trad. R. Hawley)

Lysis reclama que mesmo os estudantes de Pitágoras não conseguiram alcançar as alturas de Damo e de sua filha Bistala. Outra mulher pitagórica mencionada como silenciosa e corajosa é Timycha, 25 anos, esposa de Myllios Crotoniates, que cortou a própria língua para não revelar segredos sobre as crenças pitagóricas. Portanto, as mulheres cumpriam os requisitos solicitados para serem iniciadas na filosofia pitagórica: piedade para com os deuses, obediência aos pais, devoção absoluta a um homem (marido), sigilo, prudência, bravura, harmonia, prevenção de luxo, frugalidade em trajes e comida, e timidez genuína. Alguém pode se surpreender com o rigor dos princípios morais estabelecidos pelas alunas pitagóricas, e não pelo próprio Pitágoras, a fim de manter as mulheres dentro de suas casas, ocupando-se apenas com seus deveres como esposas e supervisio- nando crianças e servas. A mulher, como membro ativo da família, nem um pouco inferior ao homem, a fim de se iniciar na filosofia, deveria ser ainda mais devota do que ele e manter rigorosamente os preceitos morais dos pitagóricos, que eram muito rígidos para ambos os sexos. Esse rigor pode ter como objetivo proteger as mulhe- res, e isso está relacionado à grande crença pitagórica de que “as pessoas são más”. O objetivo da “pregação” de Pitágoras era criar uma aristocracia cultural e uma religião baseada em princípios morais. Nenhuma mulher pode ter permanecido indiferente às exigências da filosofia pitagórica, que propagou uma causa tão nobre. Os pitagóricos acreditavam na fraqueza natural do homem. Eles professavam que os seres humanos foram cria- dos para serem felizes, e toda a organização da vida privada e da comunidade política visava, para eles, criar felicidade duradoura e torná-la acessível a todos. A filosofia expurga. Ele purga a vida humana, libertando-a da desordem da matéria e das paixões corruptas do corpo. Mas isso tem sido difícil para o homem conseguir, porque nossas almas, escravas de nossos corpos, sempre foram vulneráveis a paixões materiais; muitas vezes se afastaram de Deus, abstiveram-se da concordância e da ordem e foram mais fundo no labirinto escuro da impropriedade. Os pitagóricos acreditavam que impediriam um perigo tão grande através de exercícios rígidos e rigorosos, que os manteriam em contato contínuo com a unidade dominante da palavra divina e o equilíbrio harmonioso da ordem hierárquica do mundo. Deus, sendo a essência da felicidade e, portanto, a única razão para a criação dos seres, criou para cada um a situação mais adequada a ela. Portanto, a contínua submissão à ordem, harmonia e beleza do universo significava união com esse elo comum que combinava tudo com o Todo e nada mais era do que a vontade e o pensamento do próprio Deus. Finalmente, há um ponto que não é diretamente relevante para o trabalho que gostaria de fazer. Não aceito a distinção recente dos acadêmicos dos trabalhos escritos por supostas mulheres pitagóricas como I, II ou mesmo III, por ex. Theano I, Theano II, etc. É inútil e sem sentido. Os homens também podem estar por trás desses nomes femininos e as mulheres por trás dos homens. Mesmo que haja uma diferença no idioma, esses trabalhos podem ter sido escritos em dife- rentes estágios da vida do mesmo autor. Isso é verdade especialmente para as cartas: todas elas são escritas sob pseudônimos, e seria melhor que isso fosse esclarecido primeiro e o nome e o conteúdo seguidos: em qualquer caso, essas cartas não são características dos princípios e crenças pitagóricas. 16 Tradução parcial de capítulo de livro intitulado “The pythagorean society and politics” (A sociedade e a política pitagóricas).

Fonte: ROWETT, Catherine. The pythagorean society and politics. In: HUFFMAN, Carl (edit). A history of py- thagoreanism. University Cambrigde press, 2014. pp. 122-130

Tradução realizada por Camila Kulkamp

5. Pitágoras e as mulheres

Mencionamos que Pitágoras escolheu falar não apenas para homens e meninos, mas também para mu- lheres. Elas também teriam um papel no apoio moral e na renovação do culto. Pitágoras aparentemente intro- duziu um santuário combinado para as musas, para regularizar uma pluralidade anterior de cultos separados. Não está claro por que, embora uma conexão com os interesses pitagóricos na música seja tentadora. Não há evidências históricas para apoiar a sugestão de Morrison de que os cultos anteriores envolviam prostituição ritual, embora a observação de Iamblichus de que ter prostitutas fosse um costume regional (epicorion) seja certamente estranha. Na conta de Iamblichus, Pitágoras pede às mulheres que evitem o sacrifício de animais, ofereçam produtos caseiros frugais e levem suas ofertas pessoalmente ao santuário, não enviando um escravo. Ele imagina Pitágoras revivendo valores antiquados, com papéis domésticos e religiosos consagrados pelo tem- po para homens e mulheres. Mas não devemos preferir uma imagem diferente, na qual Pitágoras tem um efeito bastante revolucionário e não convencional? Observe uma tradição generalizada segundo a qual Pitágoras não apenas ensinou as mulheres a serem esposas fiéis, mas as tornou parte de um projeto intelectual. Como sempre, é difícil separar evidências sobre estruturas da polis dos relatos do círculo pitagórico interno, mas Iamblichus (VP, seguindo Timaeus, ao que parece) diz que Pitágoras criou um curso relacionado à idade para as mulheres, identificando-as com diferentes deidades em diferentes estágios de suas vidas (com base em algum interesse misterioso no significado dos nomes). Uma mulher começa como solteira (kore), torna-se ninfa (nymphe) quando está noiva, (meter) quando cria filhos e maia( - termo do dialeto dórico) quando seu filho tem filhos. Para que servem esses grupos de estágio de vida? Eles deveriam privilegiar aquelas com filhos e netos em detri- mento das mulheres sem filhos? Incentivar a virtude competitiva dentro de cada categoria? Distribuir deveres de culto e ritual a diferentes faixas etárias? Para fornecer apoio e oportunidades para meninas solteiras e viúvas sem filhos após a guerra? Atribuir identidades e papéis por idade ou experiência, não status social ou riqueza? Embora alguns deles (particularmente, o primeiro) possam ser formas de reforçar os valores aristocráticos tra- dicionais, outros (especialmente os dois últimos) seriam projetos igualitários radicais. Então, qual é a melhor reconstrução? Outra tradição nomeia algumas mulheres que ocupavam posições importantes nessa sequência de etapas da vida sacralizada: Porfírio (VP, baseado em Timaeus) diz que a filha de Pitágoras “liderou as me- ninas em Croton” e sua esposa liderou as esposas. Como eram mulheres instruídas, “liderar as meninas” pode não apenas significar liderar cultos ou deveres de donzela, mas também identificar a classificação da garota entre os estudantes; ou seu papel como instrutora da turma das mulheres. Alguns ditos são atribuídos a Thea- no, sua esposa, sobre modéstia e pureza ritual em torno das relações sexuais. É dito também que ela escreveu “algumas coisas” (ao contrário de seu filho, Telauges). Diogenes e Iamblichus deram o nome de Damo para sua filha e Bitale para uma neta (filha de Damo, depois esposa de Telauges - Telauges sendo muito mais novo que Damo, e criado por Theano após a morte de Pitágoras). Muito disso deve ser lenda, mas os nomes parecem autênticos, e a tradição que Telauges ensinou a Empédocles se encaixa na cronologia, se nada mais. 17 Tradução de entrada de enciclopédia intitulada “Philosophers, Greek” (Filósofos(as) gregos(as)).

Fonte: SALISBURY, Joice E. Encyclopedia of women in the ancien world. Abc-clio, 2001. p. 276-279.

Tradução realizada por Camila Kulkamp

Filósofos(as) gregos(as)

Filosofia é uma palavra grega que originalmente significava “amor à sabedoria”, e os primeiros filósofos gregos estabeleceram uma nova maneira de ver o mundo. Abandonando a ênfase no sobrenatural que moldou outras sociedades ocidentais antigas, os gregos usaram o pensamento racional - lógica - para explorar o mun- do e o lugar dos seres humanos e deuses dentro dele. Ao fazer isso, filósofos famosos como Sócrates, Platão, Aristóteles e outros estabeleceram uma abordagem que continua a formar a base das especulações filosóficas modernas. Desde o início da filosofia, as mulheres ficaram entusiasmadas com as novas ideias e se tornaram “amantes da sabedoria”. As restrições experimentadas pelas mulheres na sociedade grega antiga, no entanto, restringiram sua participação, portanto, o número de filósofas da Grécia antiga é pequeno e muitos estão co- nectados a membros da família que se dedicam à filosofia. Isso não é surpreendente, porque, como as mulheres não tinham acesso livre para se movimentar e escolher seus interesses, mulheres com contato direto com filó- sofos se envolveriam mais facilmente no estudo. Apesar das restrições, várias mulheres tiveram um impacto na história da filosofia da Grécia antiga. Provavelmente a primeira escola a incentivar o estudo da filosofia pelas mulheres foi a dos pitagóricos em meados do século VI a.C. Os pitagóricos acreditavam que a razão, que era a característica humana mais importante, não era afetada pelo gênero, para que as mulheres pudessem se envolver em estudos filosóficos. A tradição sustenta que o próprio Pitágoras estudou sob a influência da sacerdotisa délmica Themistoclea, que não apenas o liga a uma mulher, mas também deu autoridade divina a seus pensamentos filosóficos. Pitágoras estabeleceu uma comunidade - e uma escola - para estudar filosofia e, em uma saída impressionante da prá- tica tradicional grega, as mulheres eram bem-vindas. A vida de Pitágoras, escrita por volta do século IV d.C., registra dezessete mulheres seguidores de Pitágoras, que o autor descreve como “as mais ilustres”. Isso talvez implique que também houvessem outras. Esse estilo de vida também gerou críticas; pelo menos duas comédias antigas escritas no século IV a.C. por Cratinus, o Jovem e Alexis, tinham o título “A Mulher de Pitágoras”, que sem dúvida zombou da participação de mulheres na comunidade pitagórica. Pitágoras casou-se com uma de suas alunas, Theano, que o seguiu como líder da escola. Suas filhas - Myia, Arignote e Damo - também se tornaram pitagóricas. Mulheres pitagóricas tardias - do século IV a.C. por volta do primeiro século d.C. - incluímos Phintys, Aesara de Lucania, Perictione e possivelmente outra Thea- no. Sabemos pouco sobre a maioria dessas mulheres porque só temos alguns fragmentos de seus escritos (ou escritos atribuídos a elas), mas a partir desses fragmentos podemos identificar algo de seus interesses. Embora essas mulheres compartilhassem os interesses dos filósofos do sexo masculino nos princípios básicos da ciên- cia, matemática e comportamento humano, as mulheres também adicionavam frequentemente comentários sobre tópicos de interesse específico para outras mulheres. Por exemplo, Aesara de Lucania disse que a natureza humana fornecia o padrão de lei e justiça no lar e na cidade; assim, os princípios da filosofia tiveram relevância para as mulheres. Um fragmento sobrevivente atribuído a Theano (provavelmente a posterior) mostra como ela aplicou o princípio pitagórico de “harmonia” a uma mulher que estava lidando com um marido infiel e mostrou como esse princípio poderia ajudar essa mulher a decidir o que deveria fazer e como ela deveria agir. Phintys e Perictione aplicaram o conceito de harmonia à questão de como as mulheres devem agir na vida pública e privada. Essas pitagóricas mostram quão fecunda a interação de homens e mulheres nas escolas e comunidades poderia ser, mas as escolas filosóficas subsequentes não foram tão inclusivas. A busca da filosofia em Atenas deu um salto gigantesco com a vida e a carreira de Sócrates (469-399 a.C.), um pedreiro de profis- são, mas um filósofo por vocação. Ele passou a vida conversando com pessoas no mercado de Atenas e fazendo 18 perguntas destinadas a levar os alunos a insights sobre questões tão grandes como verdade, beleza e justiça. Sócrates não deixou escritos, mas seus alunos registraram muitas de suas conversas, o que nos permite estu- dar algumas das ideias desse pensador influente. Sócrates pensava que as mulheres eram igualmente capazes como homens de alcançar a sabedoria, mas os textos sobreviventes mostram que os seguidores de Sócrates (e provavelmente o próprio mestre) compartilhavam a noção grega de tratamento diferenciado para as mulheres. Por exemplo, Xenofonte em seu Oeconomicus limita o aprendizado das mulheres às tarefas domésticas, e um escritor posterior, Theophrastus, disse que as mulheres deveriam ter apenas conhecimento suficiente de letras para administrar a casa, que era sua própria esfera. Sócrates ofendeu muitos atenienses no curso de sua longa carreira de interrogatório, e o colocaram em julgamento em 399 a.C. por impiedade e por corromper a juven- tude. Os atenienses o sentenciaram à morte e ele bebeu uma xícara de cicuta venenosa para cumprir a sentença, em vez de parar sua vida de filosofia. Seu trabalho foi retomado por seu brilhante aluno, Platão, cujos escritos o marcaram como um dos maiores filósofos da cultura ocidental. Platão estabeleceu uma escola chamada Aca- demia em um olival nos arredores de Atenas, onde atraiu muitas das mentes mais brilhantes do dia. No centro da filosofia de Platão estava a ideia de que todos tinham uma alma imaterial, eterna e não sexual; somente nossos corpos são diferentes. Assim, as almas de homens e mulheres podiam estudar filosofia, e o objetivo de todos era tentar se concentrar em nossas almas e se desapegar do mundo material, incluindo o gênero. Talvez não surpreendentemente, dada a igualdade no centro de sua filosofia, as fontes registram mulheres ligadas à academia de Platão. Havia uma tradição de que a mãe de Platão, Perictione, era filósofa, mas é difícil fundamentar essa afirmação, e pode ser apenas uma convenção literária posterior. Outras mulheres certamente estudaram com Platão. Diógenes Laércio em sua obra sobre as vidas dos filósofos registra duas mulheres - Axiothea e Lasthe- nia - que eram alunas de Platão e de seus sucessores. Segundo uma fonte, Axiothea viveu em Arcadia, uma região no sudoeste da Grécia, e ela leu a República de Platão, na qual ele descreveu como uma sociedade ideal deveria ser governada. Ela ficou tão impressionada com o trabalho que viajou para Atenas para se tornar uma seguidora de Platão. Embora a República mantenha a igualdade das mulheres com os homens como membros em potencial da classe de guardiões, Axiothea teve que se vestir como homem para ganhar acesso às palestras de Platão; O mundo ideal de Platão certamente não havia sido implementado. Axiothea também estudou sob o sucessor de Platão como chefe da Academia, Speusippus. Diógenes Laertius também menciona Lasthenia em conexão com Axiothea como um estudante de Speusippus. Ele nos diz tentadoramente que “alguém também pode aprender filosofia com sua discípula de Arcádia” (Waithe 209), mas não oferece mais informações sobre o que Lasthenia ensinou. Gostaríamos de saber mais sobre essas mulheres que estudaram com Platão, mas as fontes infelizmente não oferecem nada além de evidências de sua presença. Um dos seguidores de Sócrates era um homem chamado Aristipo, que foi ao norte da África para a cidade de Cirene para fundar sua própria escola de filosofia. Aristipo tornou concreta a definição de virtude de Sócrates, equiparando o “bom” ao prazer e, assim, os cirenaicos sustentavam que a verdadeira felicidade dependia da ausência de desejos. Embora essa escola seja considerada um dos primeiros defensores do hedonismo - ou a busca pelo prazer como um modo de vida -, seus seguidores afirmavam que a educação e a inteligência eram necessárias como guias para o des- frute adequado. A filha de Aristipo, Arete, sucedeu seu pai como chefe da escola cirenaica. As fontes relatam que ela ensinou filosofia por trinta e cinco anos a mais de cem estudantes e que escreveu quarenta livros. In- felizmente, nenhum sobreviveu. Ela era mãe de Aristipo, o Mais jovem, que recebeu um apelido que significa “ensinado por sua mãe”. Uma epígrafe em seu túmulo registra as realizações dessa mulher notável: “Ela era o esplendor da Grécia e possuía a beleza de Helena, a virtude de Thirma, a caneta de Aristipo, a alma de Sócrates e a língua de Homero” (Waithe, 198). Não se poderia desejar uma epígrafe melhor. O melhor aluno de Platão foi Aristóteles (384–322 a.C.), que partiu de Platão em várias áreas. Aristóteles não compartilhava da crença de Platão na semelhança básica de homens e mulheres. Seus estudos científicos e biológicos o levaram a pensar nas mulheres apenas como conectadas à sua natureza física, e ele sustentou que as mulheres eram biologica- mente inferiores aos homens (ver Ginecologia). De fato, ele alegou que os homens eram perfeitos e que quando a natureza cometeu um erro, uma mulher foi formada. Ele acreditava que, como as mulheres eram mais fracas que os homens, suas capacidades mentais também eram mais fracas, de modo que as mulheres não podiam ser filósofas reais. Talvez não seja surpreendente que não tenhamos nenhuma evidência para nenhuma aluna de Aristóteles. Aristóteles era professor do macedônio Alexandre, o Grande, cujas conquistas transformaram 19 a cultura clássica das antigas cidades-estados gregas e, por sua vez, mudaram a posição das mulheres. Quando Alexandre conquistou seu grande império, a cultura grega se espalhou para o leste e misturou-se com a cultura mais antiga do leste. Quando Alexandre morreu, seu império quebrou em grandes monarquias - os reinos he- lenísticos - e dentro desses grandes estados, as pequenas cidades-estados não tinham mais tanta influência. À medida que a vida na cidade mudou, também mudou a vida familiar apertada que restringia as mu- lheres gregas à casa. No mundo helenístico, existem muitas evidências para as mulheres que emergiram das sombras e se tornaram poetas, governantes e filósofas. A participação das mulheres na filosofia também foi aumentada por novas escolas de filosofia que cresceram em resposta a novas situações. Os filósofos não esta- vam mais interessados principalmente nas grandes questões de verdade e justiça que consumiam Platão, mas se perguntavam como os indivíduos poderiam viver uma boa vida em um mundo caótico. As comunidades neo- pitagóricas floresceram em Alexandria e no sul da Itália, incluindo mulheres filósofas, assim como as anteriores comunidades tinham. Os estudiosos ainda debatem se vários fragmentos de escritos de neopitagóricas foram escritos por mulheres. Certamente eles discutem tópicos tradicionalmente ligados às mulheres - educação de filhos, escolha de uma enfermeira, controle de escravos, maneira de vestir e assim por diante - e foram atribuí- dos a mulheres. Não há motivo real para duvidar de sua autoria e, no mínimo, demonstram que os escritos su- postamente escritos por mulheres poderiam circular e ser levados a sério no mundo dos filósofos helenísticos. Os epicuristas do início do século IV a.C. desenvolveram uma filosofia que afirmava que a boa vida poderia ser estudada em uma comunidade de companheiros. A mulher Leontium (ver Leontium) era membro dessa comunidade e mostra o apelo às mulheres desse tipo de vida. Os cínicos acreditavam que a boa vida poderia ser alcançada desprezando as coisas deste mundo, e algumas mulheres também seguiam essa filosofia. (Veja Hipparchia.) Outra escola filosófica significativa do mundo helenístico foi o estoicismo, fundada pelo grego Zenão (século III a.C.). Os estoicos alegaram que não havia diferença entre homens e mulheres, e todos deve- riam estudar filosofia. Embora não tenhamos nenhum registro de mulheres estoicas, vários escritos estoicos posteriores incentivaram as mulheres a estudar filosofia, para que elas também pudessem ter uma vida mais fácil. O estoico romano Musonius Rufus (primeiro século d.C.) escreveu ensaios chamados “Que as mulheres também devem estudar filosofia” e “As filhas devem receber a mesma educação que os filhos”, que apoiam explicitamente o estudo da filosofia pelas mulheres. Não sabemos em que incidentes específicos as mulheres foram afetadas por esses escritos. A ambiguidade da participação das mulheres na filosofia estoica pode servir como uma conclusão apropriada para este breve resumo da participação das mulheres antigas na filosofia. Nossas fontes podem nos dizer o que os filósofos acreditavam sobre as mulheres - Aristóteles descartando seu potencial enquanto Pitágoras, Epicuro e Platão o apoiavam - mas não temos informações substanciais sobre como essas ideias afetaram a vida de muitas mulheres reais. Onde filósofos fundaram comunidades e reuni- ram alunos para conviver juntos, havia mais oportunidades para as mulheres entrarem como seus parentes ou amantes, mas a maioria das participantes permaneceu anônima e, portanto, esquecida pela história. Podemos identificar algumas mulheres, no entanto, que deixaram sua marca em um campo dominado por homens, e talvez a própria dificuldade da tarefa torne essas “amantes da sabedoria” ainda mais admiráveis. 20 Tradução parcial de artigo intitulado “Women Philosophers in the Ancient Greek World: Donning the Mantle” (Mulheres filósofas no mundo da Grécia Antiga: vestindo o manto).

Fonte: WIDER, Kathleen. Women Philosophers in the Ancient Greek World: Donning the Mantle. 1986. Hypa- tia, n. 1, vol. 1. p. 21-62.

Tradução realizada por Camila Kulkamp

A imagem mais comum para aqueles que estabelecem qualquer conexão entre as mulheres e a filosofia no mundo grego antigo é talvez a de Xanthippe - a esposa de Sócrates - excluída do diálogo sagrado dos filóso- fos - excluída até da cena do leito de morte, vista apenas como a esposa irritante que distrai o grande homem de seus pensamentos. O fato das mulheres participarem de fato da atividade filosófica é uma surpresa para muitos. Mas Gilles Ménage (1984, 3), no século dezoito, nomeia sessenta e cinco mulheres filósofas apenas na era helenística. Pretendo examinar as mulheres filósofas no mundo grego principalmente do sexto ao terceiro século a.C. Meu foco será as mulheres filósofas durante o final do período pré-clássico da história grega (século VI), o período clássico (quinto e quarto séculos) e durante os estágios iniciais do mundo helenístico (finais do quarto e terceiro séculos), embora discutirei a mais famosa das filósofas da antiguidade grega, Hypatia, que morreu em 415 d.C. 1, examinarei tanto a vida quanto, quando possível, os escritos das filósofas durante esses períodos (que juntos chamaremos de mundo grego antigo mundo). Devido à dificuldade de encontrar informações adequadas e precisas sobre esses períodos da história, particularmente em relação aos indivíduos, minha tese será bastante mínima: havia mulheres envolvidas com a filosofia ao longo da história da Grécia antiga. Não foi uma exceção rara encontrar uma mulher na filosofia. Havia mulheres na maioria, senão todas, escolas antigas de filosofia grega. Nem sempre podemos dizer suas posições nessas escolas (embora várias tenham se tornado as chefes das antigas escolas de filosofia), nem sem- pre podemos dizer quão influentes elas foram na formação da doutrina e metodologia filosóficas. Dada a falta de evidência, meu argumento não é que suas contribuições ao pensamento filosófico eram originais (embora possam muito bem ter sido); mas que eles contribuíram para a filosofia tal como se desenvolveu nas escolas antigas, pelo menos pela participação, numa base bastante constante em toda a antiguidade grega. A escola filosófica mais conhecida na Grécia pré-clássica era a escola pitagórica e haviam muitas mu- lheres membros dessa escola. Embora as datas precisas para as mulheres pitagóricas sejam desconhecidas, sabemos que algumas delas floresceram no sexto e no início do quinto século a.C. Isso inclui Theano, que se acredita ser a esposa de Pitágoras e a mais famosa dessas mulheres, além de Myia, Damo e Arignote, que pro- vavelmente eram filhas de Theano e Pitágoras. Perictione, que provavelmente viveu no século V a.C., Melissa, cujas datas são desconhecidas, e Phintys, que pode ter vivido no terceiro século a.C., também eram filósofas pitagóricas. Escritos existentes foram atribuídos a muitas dessas mulheres. Conhecemos o nome de menos filósofas no período clássico. Aspasia viveu de 470 a 410 e sua contribuição filosófica é conhecida apenas por outras pessoas (principalmente Sócrates) que a mencionam como influência. A fonte de nosso conhecimento de Diotima, que floresceu em 468, é novamente Sócrates, que afirma ter sido ensinado sobre amor por ela. Durante o início da era helenística, conhecemos novamente vários nomes de mulheres filósofas. Arete era a diretora da escola de filosofia cirenaica depois que seu pai Aristipo morreu em 350. Nenhuma data é conhecida para ela. Hipparchia floresceu por volta de 328 e é conhecida pelo fato de ter abandonado uma vida de riqueza e facilidade para se casar com Crates e viver a vida simples de um cínico. Pouco se sabe sobre Pamphile, exceto que ela era discípula de Teofrasto que chefiou o Liceu após Aristóteles. Epicuro, como Pitágoras, era conhecido por permitir que mulheres entrassem em sua escola filosófica. Leontion era a mais famosa dessas mulheres, embora apenas o título de uma obra que ela escreveu sobrevivesse. O Diodoro Crônico estoico, ativo entre 315 e 284, tinha cinco filhas que eram lógicas: Menexene, Argeia, Theognis, Artemisia e Pantacleia. O nome final que sobrevive do antigo mundo grego de uma filósofa é Hypatia, que viveu no final do período helenístico. Há várias coisas a ter em mente ao examinar as filósofas do mundo antigo. A primeira é que muito do que sabemos das filósofas desse período vem de historiadores que escrevem vários séculos depois. Em segundo 21 lugar, muitos dos escritos de filósofas antigas foram perdidos; portanto, nosso julgamento dessas pensadoras geralmente se baseia em meros fragmentos de seu trabalho, ou em uma lista de títulos, ou apenas nos julga- mentos de outros. Terceiro, o termo filosofia tinha um significado muito mais amplo do que agora; muitas das antigas escolas de filosofia tinham fortes conotações religiosas. Quarto, a informação sobre as filósofas é ainda mais superficial do que sobre os homens; é transmitida principalmente por homens e a ênfase costuma estar no status sexual e não intelectual das mulheres. Até os estudiosos dos séculos XIX e XX tendem a tratar as figuras das mulheres de maneira tendenciosa: eles são excessivamente galantes e sentimentais sobre elas ou diretamente sexistas. Determinar evidências precisas e úteis sobre essas filósofas e chegar a conclusões claras é como abrir um caminho pelo labirinto minoico. Para contextualizar essa discussão sobre mulheres filósofas no mundo grego antigo é necessária alguma familiaridade com a posição das mulheres na sociedade grega. Nem sempre é claro qual a posição que as mulheres ocupavam nas sociedades pré-clássicas, mas parece ter sido uma posição superior à que elas ocupavam no período clássico. A posição das mulheres em Homero é frequentemente apresentada como evidência para essa visão (Leanna Goodwater 1975, 3; Leonard Swidler 1976, 7). Haviam muitas mulheres fortes no Ilíada e Odisséia (Calypso, Circe, Penelope e Andromache) e os re- lacionamentos entre mulheres e homens eram frequentemente marcados por lealdade e devoção. As mulheres, no entanto, ainda estavam restritas aos papéis tradicionais de procriar e nutrir, e o mito de Hesíodo sobre a cai- xa de Pandora (século VIII) indica que a cultura carregava nela um medo das mulheres e uma certa hostilidade em relação a elas. As leis atenienses criadas por Sólon no século VI, ao abolir a maioria das formas de venda para a escravidão, preservavam uma: o guardião do sexo masculino ainda podia vender uma mulher solteira se perdesse a virgindade. As leis de Sólon também estabeleceram uma distinção legal entre boas mulheres e prostitutas e regulamentaram a atividade de ambas (Sarah B. Pomeroy 1975, 57). Embora o status das mulheres nos tempos pré-clássicos não fosse de forma alguma ideal, parece ter piorado no período clássico, pelo menos em Atenas. Para entender a posição das mulheres na Grécia clássica, é preciso distinguir as mulheres atenienses das espartanas e, em seguida, como observa Pomeroy (1975, 60), distinguir as diferentes classes sociais às quais as mulheres em Atenas pertenciam. Em Esparta, no século V, as mulheres cidadãs tinham mais direitos legais e políticos do que as mulheres cidadãs em Atenas. Elas poderiam herdar e legar propriedades; elas possuíam e administravam empresas e fazendas e participavam de esportes e política. Elas usavam roupas largas e ti- nham o mesmo treinamento físico que os homens. O sexo extraconjugal foi aprovado para homens e mulheres porque forneceu mais soldados para o estado. Embora a vida das mulheres espartanas fosse para o serviço do estado, elas não eram diferentes nesse aspecto da vida dos homens espartanos. Ambos eram igualmente livres e igualmente vinculados por uma sociedade que subordinava a vida de todos os cidadãos à defesa e apoio do Estado. À medida que o poder do estado declinava em Esparta no século IV, o poder das mulheres aumentava econômica e sexualmente. A taxa de natalidade caiu drasticamente durante esse período e as mulheres contro- lavam dois quintos das terras e propriedades em Esparta. (Goodwater 1975, 8; Swidler 1976, 8; Pomery 1975, 36-38.) As mulheres cidadãs em Atenas do século V não tinham direitos legais, políticos e educacionais. As mulheres cidadãs estavam continuamente sob tutela masculina. Quando uma menina chegava aos catorze ou quinze anos de idade, seu tutor masculino (geralmente seu pai) providenciava o casamento dela com um homem muito mais velho. Se o marido morreu antes dela, a tutela de seu dote e de si mesma passa para o pai ou os filhos. A lei ateniense protegia as mulheres, protegendo seus dotes por toda a vida; nenhum tutor masculino, incluindo um marido, poderia usar o diretor do dote. Mas essa restrição também se aplicava à mulher e, portanto, ela não tinha controle real sobre seu dote. Os casamentos eram arranjados por homens por razões econômicas e políticas. Embora o divórcio fosse possível, uma mulher não poderia processar; um representante masculino tinha que fazer isso por ela. Isso raramente ocorria. Os filhos eram posses legais do pai e, portanto, permaneceram com ele em caso de divórcio. Um marido era legalmente obrigado a se divorciar de sua esposa se ela fosse acusada de ter sido estuprada ou de ter cometido adultério. Um homem, por outro lado, tinha apenas que pagar uma multa monetária por estupro, embora um marido pudesse matar um homem por seduzir sua esposa. O sexo extraconjugal era permitido para homens, mas não para mulheres. No século V, as mulheres atenienses não podiam comprar ou vender terras e, embora pudessem adquiri-las através de dotes ou heranças, sua administração permaneceu em mãos masculinas. As mulheres não tinham direitos políticos. Elas não tinham voz nos assuntos do estado. As mulheres não podiam realizar negócios legais e tinham o sta- 22 tus legal de menor durante toda a vida. Eles não poderiam testemunhar em um tribunal, mesmo se estivessem envolvidos no caso. As mulheres cidadãs não tinham direito legal à educação e recebiam apenas habilidades de leitura e cálculo suficientes para administrar uma família. A única área pública em que as mulheres tiveram alguma influência foi em certos cultos religiosos, mas estes foram controlados por leis criadas pelos homens (Goodwater, 1975, 5-6; Pomeroy 1975, 62-75, 86-87). A posição das mulheres atenienses que não eram cidadãs, principalmente escravas e estrangeiras, era, em muitos aspectos, pior do que a das cidadãs. As mulheres escravas estavam sob o controle do mestre e não de sua própria família. Naturalmente, elas careciam de direitos políticos, legais e educacionais e, embora às vezes recebessem mais liberdade de movimento do que as mulheres cidadãs, seu trabalho era o mais difícil dos trabalhos femininos e seus dias passavam principalmente em ambientes fechados. Suas vidas sexuais eram controladas por mestres do sexo masculino. As mulheres nascidas no estrangeiro também não possuíam di- reitos políticos ou legais, nem mesmo o direito ao casamento legal com um cidadão; portanto, muitos deles se voltaram para a prostituição para sobreviver. Algumas dessas mulheres eram altamente educadas e bonitas e eram conhecidas como hetaerae, as companhias de alguns dos homens mais poderosos dos cidadãos de Atenas. Embora as poucas mulheres estrangeiras que alcançaram vínculos com homens poderosos pudessem sociali- zar e conversar com homens sobre política e filosofia, essas eram as raras exceções. E, embora os homens não tenham perdido status social por se associarem com hetaerae, as próprias hetaerae não possuíam o status social das mulheres cidadãs. A posição das mulheres na Atenas do século V, qualquer que fosse sua classe social, era muito mais restrita legal e politicamente do que a dos homens. Suas vidas foram direcionadas para a criação e cuidado de crianças. A vida de homens e mulheres era separada até da separação dos alojamentos para homens e mulheres dentro de casa (Pomeroy 1975, 80). Não foi permitido às mulheres nenhuma influência direta nos assuntos do estado ou do pensamento. Que algumas mulheres conseguiram dentro desta sociedade partici- par de assuntos filosóficos é extraordinário. É compreensível que menos mulheres o tenham feito no período clássico do que no período pré-clássico ou helenístico. A posição das mulheres melhorou na maior parte do mundo helenístico. Embora a posição de uma mulher ainda dependa de sua classe social e da área do mundo grego em que ela viveu (Pomeroy 1975, 120), podemos traçar algumas generalizações sobre o lote das mulhe- res. Durante esse período, as mulheres conquistaram direitos econômicos e legais, embora não muitos políti- cos. Elas poderiam comprar, possuir e vender bens e propriedades e os venderiam a outros. Gradualmente, o costume de permitir que uma mulher pratique um ato público (casamento ou divórcio, por exemplo) somente com a aprovação e representação de um homem começou a desaparecer no mundo helenístico. A educação se tornou mais comum para as meninas, e as mulheres se envolveram em música, esportes e artesanato. Elas tiveram mais liberdade de movimento e mais interação social com os homens (Swidler 1976, 14-18). Embora Platão tenha discípulas e Sócrates se refira às professoras, parece que, a partir das evidências limitadas, temos mais mulheres nas escolas filosóficas no período helenístico do que no clássico. Epicuro é famoso por permitir que homens e mulheres, escravos e livres, entrem em seu jardim. Teofrasto, sucessor de Aristóteles, tinha uma mulher discípula e uma oponente. A escola cirenaica tinha uma cabeça feminina. Embora seja discutível se o estoico Zenão e seus seguidores tinham uma visão significativamente esclarecida da posição das mulheres, eles acreditavam que as mulheres deveriam ser educadas. Infelizmente, muito do progresso das mulheres nos tem- pos helenísticos deixou as mulheres atenienses intocadas. Mas, na maioria das vezes, a posição das mulheres nesse período era melhor do que no período clássico. Isso se reflete no aumento da atividade das mulheres na filosofia. Costuma-se pensar que as únicas mulheres que se envolveram em filosofia no mundo grego antigo eram hetaerue, companheiras. Das vinte e seis mulheres sobre as quais eu consegui encontrar algumas infor- mações, apenas sete poderiam ser classificadas comohetaerue - e mesmo assim, isso era porque elas não eram cidadãs e, portanto, não podiam ser legalmente casadas. Há pouca ou nenhuma prova de que elas tenham se sustentado pela atividade sexual. As dezenove mulheres restantes eram casadas, virgens ou seu status sexual é desconhecido, mas não há indicação de que fossem cortesãs. Foi sugerido por escritores antigos e modernos que as mulheres estavam nas escolas filosóficas para proporcionar satisfação sexual aos homens. Alguns estu- diosos sugerem que o status dessas mulheres como filósofas é manchado por seu status sexual. Mesmo quando sugestões e implicações desse tipo estão ausentes, muitos estudiosos se concentram em um grau excessivo no status sexual, e não no intelectual, dessas mulheres. A cena do assassinato de Hypatia pela multidão em Ale- xandria se resume a nós em descrições pornográficas escandalosas de escritores do sexo masculino. Embora 23 seja verdade que o material que qualquer escritor tem que lidar ao escrever sobre mulheres filósofas antigas é escasso, esse fato não justifica ou explica esse foco inadequado. A discussão a seguir lida por necessidade, en- tão, tanto com as mulheres envolvidas com a filosofia no mundo grego antigo quanto com a maneira pela qual suas histórias chegaram até nós.

As pitagóricas

Os pitagóricos eram famosos por admitir mulheres igualmente com homens em suas sociedades. Pitá- goras, o fundador dessa religião e movimento filosófico, nasceu por volta de 570 e morreu por volta de 509 a.C. Ele estabeleceu a primeira comunidade pitagórica em Crotona, no sul da Itália, por volta de 529 e permaneceu lá por vinte anos (ver C. J. DeVogel 1966, 20-24 para uma cronologia da vida de Pitágoras). “Sob Pitágoras, temos indicações claras de um reavivamento. . . das condições matriarcais, e com ela a realização do apelo das mulheres tanto para o espírito quanto para a carne” (Jane Harrison, 1961, 645-46). A tradição órfica influen- ciou o pensamento pitagórico e essa tradição surgiu da religião de Dionísio, que envolvia o culto à mãe e ao fi- lho (Harrison, 1961, 645). Iamblichus (1818, 146-47), em Life of Pythugorus, escrito no início do século IV d.C., discutindo o fato de Pitágoras “aprender com os escritores órficos que a essência dos deuses é definida por -nú mero”, conta nós que Pitágoras em seu Segundo Discurso diz que “‘Orfeu, o filho de Calíope, que teve a sabedo- ria de sua Mãe na montanha Pangaeus, disse que a essência eterna do número é o princípio mais providencial do universo”. Diógenes Laércio (1853, 8,20-21), em uma história de filósofos provavelmente escrita no início do século III d.C., nos diz que, de acordo com Aristoxeno, um contemporâneo de Aristóteles que escreveu sobre Pitágoras e seus seguidores, Pitágoras obteve a maior parte dos sua teoria ética de uma mulher, Themistoclea, uma sacerdotisa de Delfos. Ela é mencionada no Suda, um léxico grego compilado por volta do final do século X DC, como Theoclea e por Porphyry como Aristoclea (Mario Meunier 1932, 12). Em sua morte, Pitágoras confiou seus escritos a uma mulher, sua filha Damo (Diog. Laer. 1853, 8,42). Existem várias explicações de por que as mulheres foram admitidas nas sociedades pitagóricas que floresceram durante os séculos V e IV a.C. no sul da Itália e no continente grego. Edward Zeller (1980, 34) argumenta que, uma vez que a ordem pitagórica repousava na doutrina da transmigração, os pitagóricos pensavam que todos os organismos vivos estavam inter-relacionados porque todos incorporavam os demônios da alma. Essa crença resultou em uma forte ten- dência social e, portanto, na admissão de mulheres na sociedade em igualdade de condições com os homens. Mary R. Beard (1947, 315) observa que essa forte tendência social os levou a formar uma sociedade de famílias que mais tarde se transformou em uma “irmandade” e, portanto, o ideal de vida familiar harmoniosa foi conec- tado à unidade entre as famílias da sociedade. Segundo Meunier (1932, 12-20), os pitagóricos viam a família e a cidade como um microcosmo do universo, e a ordem e a harmonia do universo refletiam-se na cidade e na família. As mulheres receberam um lugar importante no pensamento e na sociedade pitagóricos porque eram uma parte importante da família e eram um componente necessário em conseguir ordem e harmonia dentro dela. Cada pessoa da família deveria desempenhar bem seu papel e manter seu lugar designado por natureza. O lugar da mulher acaba sendo o tradicional de esposa e mãe, subordinado e submisso ao marido, mas a mu- lher só pode desempenhar esse papel se sua inteligência for desenvolvida. As restrições à vida de uma mulher pitagórica - o sacrifício de si mesmo para o bem comum, obediência à autoridade e preocupação com a beleza moral e a ordem divina - eram objetivos comuns de todos aqueles na sociedade pitagórica. A moderação e a obediência à autoridade e às leis eram maneiras de se proteger contra o caos e o mal para os pitagóricos. As mulheres estavam sujeitas a mais um mestre do que os homens; elas estavam sujeitos a seus maridos. Embora a razão do respeito e da posição dada às mulheres na sociedade pitagórica possa parecer opres- siva, ela não permitiu que as mulheres tivessem acesso ao aprendizado e discussão que nem sempre estão dispo- níveis para elas. Iamblichus (1818, 267) em sua Life of Pythugorus lista os nomes de dezessete das mais ilustres mulheres pitagóricas. Gilles Ménage (1984, 92), escrevendo uma história de filósofos publicada em 1765, lista vinte e seis mulheres pitagóricas e John Toland (2: 13) em um trabalho publicado em 1726, diz que as discípulas de Pitágoras eram tão numerosas que Filochorus de Atenas encheu um volume inteiro com eles. Não há dúvida de que havia muitas mulheres entre os filósofos pitagóricos. Examinarei primeiro o que sabemos sobre essas mulheres e depois examinarei os escritos atribuídos a algumas delas. Diógenes Laércio (1853, 8,42) menciona Theano como uma das mais eminentes das pitagóricas. As datas exatas de seu nascimento e morte são desco- 24 nhecidas. Ela provavelmente era a esposa de Pitágoras e a mãe dos filhos de Pitágoras Telauges e Mnesarchus. Há alguma indicação de que ela dirigiu a escola pitagórica com seus filhos após a morte de Pitágoras no final do século VI a.C. (Toland 1926, 2: 14; Meunier 1932, 32), embora Iamblichus (1818, 265) diga que se casou com Aristaeus após a morte de Pitágoras e que ele assumiu a liderança da escola. Plutarco (1928, “Coniugalia Praecepta”, 145 EF) elogiou-a em uma carta que ela escreveu a uma mulher recém-casada, Eurídice, na qual a exorta a não usar pérolas nem seda, que custam caro, mas sim para adornar-se com os ornamentos de Theano e outras mulheres antigas conhecidas pela sabedoria e aprendizado. Parece que Theano e Pitágoras tiveram três filhas, Myia, Damo e Arignote, todas filósofas pitagóricas em a última parte do sexto século e até a primeira metade do quinto século a.C. Myia era conhecida por seu elegante aprendizado e sua casa bem administrada e, por isso, a avenida de sua casa se chamava Museu. Ela era a chefe das jovens antes de se casar e das mulheres depois de se casar. Iamblichus (1818,267) lista uma mulher Mya como filósofa pitagórica e esposa de Milon de Crotona (ver também Toland 1726, 2: 14; DeVogel 1966, 9). Esta é provavelmente a mesma mulher. Há uma carta existente atribuída a ela. Diógenes Laércio (1853, 8,42) nos diz que Pitágoras confiou seus comentários a sua filha Damo e:

(...) encarregou-a de divulgá-los a ninguém fora de sua casa. E ela, embora pudesse ter vendido seus discur- sos por muito dinheiro, não os abandonaria, pois considerava a pobreza e a obediência às injunções de seu pai mais valiosas que o ouro; e isso também, embora ela fosse uma mulher.

Esses comentários foram deixados na morte de Damo para sua filha Bitale e o marido de Bitale, Telau- ges, irmão de Damo (Iambl. 1818, 146). Meunier (1932, 32) afirma que a própria Damo escreveu um comen- tário sobre Homer, embora ele não dê uma fonte antiga para isso. Embora não existam escritos sobre Damo, o fato de Pitágoras ter deixado seu trabalho para ela indica que ela provavelmente era um membro ativo e importante dessa escola filosófica. Alguns dizem que Arignote é filha de Pitágoras e Theano, embora outros simplesmente a chamem de discípula dos dois. Que ela era uma samiana e uma filósofa pitagórica não é con- testada. Ela editou ou escreveu um livro sobre os mistérios de Deméter, intitulado O Discurso Sagrado, e foi a autora dos Ritos de Dionísio e de outras obras filosóficas (Harrison, 1961, 646). Nenhum de seus trabalhos existe. Por causa dos fragmentos preservados por Stobaeus, temos o nome de três outras mulheres pitagóricas. Stobaeus atribuiu um fragmento de uma obra intitulada The Moderation which becomes a women a Phintys, que pode ser filha de Calicrates (Thomas Taylor 1822, 69; Meunier 1932, 63). Em Florilegium 74.53, Stobaeus também lhe atribuiu a visão de que a relação sexual no casamento com a intenção de gerar filhos não torna uma pessoa impura, mas a relação sexual fora do casamento (DeVogel 1966, 11 I). Menage (1984, 61) a coloca no terceiro século a.C. Sobre Melissa, sabemos apenas que ela era uma mulher samiana (S. K. Heninger 1974,56) e a suposta autora de uma carta preservada por Stobaeus (Meunier 1932, 10). Perictione pode ter sido a mãe ou irmã de Platão (Beard 1947, 317; Holger Thesleff 1965, 142) e, como tal, teria vivido no século V a.C. Aris- tóteles falou bem dela, de acordo com Beard (1947, 317). Richard Bentley (1874, 384), no entanto, argumenta contra sua existência porque lamblichus não a incluiu em sua lista de mulheres pitagóricas. Dois fragmentos em Stobaeus são atribuídos a ela, um de uma obra intitulada On Wisdom e o outro de uma obra intitulada On the Harmony of Women (Meunier 1932, 45 e 49). A última das filósofas pitagóricas sobre as quais sabemos mais que um nome é Timycha, a lacademoniana que Ménage (1984, 54) coloca por volta do século IV a.C. Ela e seu marido Myllias, o crotoniano, foram capturados pelo tirano Dionísio, que tentou obter deles as doutrinas se- cretas dos pitagóricos. Não tendo conseguido fazê-lo com o marido, ele ordenou que Timycha fosse torturada:

(...) pois ele pensava que, como ela era mulher, grávida e privada de seu marido, ela facilmente contaria tudo o que ele queria saber, por medo dos tormentos. A mulher heroica, no entanto, rangendo a língua com os dentes, mordeu e cuspiu no tirano; evidenciando que, embora seu sexo sendo vencido pelos tormentos possa ser obrigado a revelar algo que deveria ser oculto em silêncio, o membro subserviente ao desenvolvimento dele deve ser totalmente cortado. (Iambl., 1818, 192-95)

Esta história não conta nada sobre a perspicácia filosófica de Timycha, mas indica uma ferocidade e força extraordinárias. Dos escritos de todas as mulheres filósofas antigas, os únicos existentes são alguns 25 atribuídos a várias mulheres pitagóricas. Existem vários fragmentos e letras atribuídos a Theano, fragmentos atribuídos a Perictione e Phintys e outras atribuídas para Myia e Melissa. Se esses escritos foram realmente de autoria dessas mulheres é debatido pelos estudiosos. Eu gostaria de examinar tanto o conteúdo desses escritos quanto a questão da autenticidade da contribuição desses escritos. Existem muitas obras de Theano menciona- das por escritores antigos. Clemente de Alexandria menciona sua poesia e a Suda diz que deixou comentários filosóficos, frases e poemas épicos. Stobaeus atribui um livro sobre piedade a Theano e vários apofitemas- tam bém são atribuídos a ela. Diogenes Laertius (1853, 8,42) menciona que existem obras atribuídas a Theano, mas ele não dá títulos. O fragmento mais famoso frequentemente atribuído a ela (embora não necessariamente o mais interessante ou profundo) aparece em Diogenes Laertius (1853, 8,43) em versão mais longa:

E contam uma história dela, que uma vez, quando lhe perguntaram quanto tempo uma mulher deveria estar ausente do marido para ser pura, ela disse, no momento em que deixa o marido, ela é pura; mas ela nunca é pura, depois que deixa mais alguém. E ela recomendou a uma mulher que estava indo ao marido, adiar a modéstia com as roupas e, quando o deixou, retomá-lo novamente com as roupas; e quando lhe pergunta- ram “Que roupa?” ela disse: “aqueles que fazem você ser chamada de mulher”.

Essa visão foi expressa no momento em que as mulheres eram consideradas impuras após qualquer ato sexual. Uma citação semelhante, “que é lícito que uma mulher se sacrifique no mesmo dia em que ressus- citou dos abraços do marido” é atribuída a Theano, esposa de Brotinus, por Iamblichus (1818, 132), embora ele mencione que alguns atribuem a Theano, esposa de Pitágoras. No entanto, Iamblichus (1818, 59, no início de sua Vida de Pitútor), atribui uma visão semelhante a Pitágoras, quem “foi dito ter feito essa observação ce- lebrada, que é sagrado para uma mulher, depois de ter sido conectada com seu marido, realizar ritos sagrados no mesmo dia; mas que isso nunca é santo, depois que ela tiver sido conectada com qualquer outro homem.” O fragmento mais longo atribuído a Theano por escritores antigos é supostamente de seu trabalho sobre piedade. Nesse fragmento Theano contesta a opinião de que Pitágoras acreditava que tudo nasceu ou se originou do Número; ela argumenta que os pitagóricos acreditam que tudo foi formado em conformidade com o Número, já que no Número reside a ordem essencial. O restante dos fragmentos é formado por ditados morais. Por exemplo, é alegado que Theano disse:

Se a alma não é imortal, a vida realmente será um banquete para os iníquos que morrerem depois de viver uma vida má.

Outro fragmento é muito parecido com um fragmento atribuído a Pitágoras; ambos nos alertam que, sobre alguns assuntos, é melhor ficar calado e, sobre outros, é melhor falar. Plutarco (1928, Coniugalia“ ”, 142 C-D), assim como outros autores antigos, preservou o fragmento a seguir. Reflete a visão tradicional dos pi- tagóricos em relação ao lugar das mulheres no casamento e no lar, mas também reflete a moderação e reserva incentivadas pelos pitagóricos em mulheres e homens.

Theano, ao colocar a capa sobre ela, expôs seu braço. Alguém exclamou: “Um braço adorável”. “Mas não para o públi- co”, disse ela. “Não apenas o braço da mulher virtuosa, mas seu discurso também não deve ser do público, e ela deve ser modesta e cautelosa ao dizer qualquer coisa na audiência de pessoas de fora, uma vez que é uma exposição de si mesma; pois em sua fala podem ser vistos seus sentimentos, caráter e disposição.

Os próximos dois fragmentos refletem a mesma visão tradicional das mulheres. Quando questionada sobre o trabalho pelo qual ela se tornou famosa, Theano teria respondido: “Tecendo tecidos e compartilhando minha cama” (Meunier 1932, 42). Em outro fragmento, Theano explica o dever de uma mulher casada: “agra- dar o próprio marido” (Meunier 1932, 43). Os próximos fragmentos são pedaços de sabedoria folclórica. “É melhor confiar em um cavalo sem uma cela do que em uma mulher não-reflexiva” (Meunier 1932, 44) indica a importância da razão para mulheres e homens. O último fragmento tem a qualidade assombrosa do vazio: quando perguntada o que é o amor Theano respondeu, ecoando a Ilíada de Homero 1.31: “A inclinação de um coração desocupado” (Meunier 1932, 42 e M). “Esses fragmentos funcionam como filosofia popular similar em espécie a certas declarações atribuídas a Pitágoras. Por exemplo: “nem pense em fazer o que não deve ser feito”; 26 “Escolher antes, ser forte na alma do que no corpo”; e “É difícil andar ao mesmo tempo em muitos caminhos da vida” (Taylor 1818, 259). Também existem várias cartas atribuídas a Theano. Embora o assunto seja decep- cionante, elas refletem o desejo pitagórico de ordem e moderação. Na carta de Theano a Eubula, ela discursa sobre a educação das crianças. Ela adverte Eubula para não deixar seus filhos se abandonarem ao prazer, mas para acostumar-se à dor e ao sofrimento. Ela a repreende por ceder e estragar suas ~ crianças. ~ Em outra carta, Theano oferece conselhos a Nicóstrate, uma mulher casada que tem ciúmes de seu marido porque ele tem uma amante. Sua abordagem é pragmática. Ela a aconselha a não tentar punir o marido, mas a cumprir sua vontade, mesmo nisso. Ela argumenta para convencer-se de que ele vai para sua amante por desejo, mas para ela por desejo de uma companheira de vida e que, se ela for paciente, ele retornará a ela. Ela dá conselhos femininos tradicionais, embora não necessariamente sábios: se você agir bem, ele finalmente sentirá vergonha e se recon- ciliará com você. Seu argumento final lida diretamente com a dura realidade da existência de uma mulher:

Se ele sofre em sua reputação, o mundo fará com que você sofra da mesma forma; se ele age contra o interesse dele, seu interesse, como se uniu ao dele, não pode escapar ileso: de tudo o que você aprender nesta lição, que ao puni-lo, você se castiga.

Os argumentos dela são de natureza utilitária: a luta ou o divórcio apenas aumentarão seus problemas; obediência e paciência, no entanto, trarão os melhores resultados. Em outra carta, Theano aconselha Callisto a usar moderação no tratamento de empregados. Ela pede que ela seja gentil com seus servos porque eles são seres humanos. Calisto não deve maltratar seus servos ou eles se tornarão amargos e desleais, mas ela deve dis- cipliná-los a preservar seu próprio respeito próprio. “Aja de maneira a imitar as ferramentas que se deterioram quando não são usadas e que se quebram quando são usadas em excesso.” Essencialmente, Theano recomenda que se use razão e moderação no tratamento de empregados. O restante das cartas atribuídas a Theano trata de assuntos semelhantes aos tratados nas três primeiras cartas. Antes de examinar a questão da autenticidade da atribuição dessas cartas a Theano, deixe-me discutir os outros escritos atribuídos às mulheres pitagóricas. Uma é uma carta de Melissa a Cleareta, que dá conselhos semelhantes aos supostamente dados por Pitágoras às mulheres de Crotona. Ela aconselha Cleareta a vestir-se modestamente e a tentar agradar o marido e não os outros. Segundo Melissa, a obediência é o melhor dote que se pode levar ao casamento e as belezas da mente superam as do corpo. A carta de Myia a Phyllis está repleta de conselhos práticos, em particular sobre a escolha de uma cuidadora para os filhos: escolha uma, ela diz, que é elegante, modesta, temperada em comida e be- bida; que tem bom leite, se abstém do sexo durante a amamentação, não tem paixão e é grega. Os fragmentos atribuídos a Perictione e Phintys são mais substantivos do que aqueles acima. Três fragmentos bastante longos são atribuídos a Perictione. A primeira é de uma obra intitulada On Wisdom (A Sabedoria) e argumenta que os seres humanos nasceram para contemplar o princípio da natureza universal; a função da sabedoria é contem- plar a inteligência manifestada na realidade. Enquanto a matemática e as ciências estudam certas realidades, a sabedoria sozinha estuda todas as modalidades do real. Assim como a visão se preocupa com tudo o que é visível e a audição com tudo o que é audível, a sabedoria, diz Perictione, se preocupa com tudo o que é real. A sabedoria, diferentemente das ciências, estuda não as propriedades atribuídas a certos tipos de en- tidades, mas as propriedades atribuíveis a toda a realidade. A sabedoria estuda o princípio que ordena e dá harmonia a toda a existência; contemplar esse princípio é ter “encontrado um belo cume para levantar o olhar para Deus”. Os próximos dois fragmentos atribuídos a Perictione são de um trabalho intitulado On the Har- mony of Women. Exorta as mulheres, em linguagem muito elevada, a serem piedosas e obedientes a seus pais. Deveríamos sempre, recomenda Perictione, falar piedosamente de nossos pais e nunca os abandonar, seja na doença ou na saúde, na guerra ou na paz, no corpo ou na alma, na pobreza ou na riqueza, na obscuridade ou na fama. Se uma mulher desprezar seus pais quando eles precisam, ela será punida por tal impiedade nesta vida e na próxima. O outro fragmento de On the Harmony of Women é um retrato de uma mulher de moderação e prudência. O retrato é desenhado em linhas tradicionais. A alma de uma mulher, de acordo com Perictione, deve aspirar a virtude, para que ela possa se tornar justa, corajosa, prudente e ornamentada com as qualidades adequadas à sua natureza. Tal virtude será alcançada quando uma mulher se envolver em conduta nobre em relação a si mesma, a seu marido, a seus filhos, a sua casa e até a sua cidade ou nação, se ela governar. Essa conduta envolve superar o desejo e a paixão, protegendo sua afeição pelo marido, pelos filhos e pela casa e evi- 27 tando “os leitos de estranhos”. Uma mulher prudente também será moderada no cuidado de seu corpo: nutrin- do, vestindo, tomando banho e ungindo-o. Ela deve evitar excesso e despesa em alimentos, roupas e enfeites. Ela deve se proteger do frio e da nudez, mas, ao fazê-lo, evita roupas suntuosas ou indecentes. Ela deve evitar ouro ou pedras preciosas e evitar trançar os cabelos com ornamentos caros, ungir-se com perfumes pesados​​ ou colorir o rosto ou os cabelos. Quem o faz busca de licenciosidade, diz Perictione. É a beleza da temperança que agrada à mulher virtuosa. Se lhe falta riqueza e amizade dos homens de fama, ela não os procura porque a mulher inteligente não sente nenhum obstáculo à boa vida sem eles. A mulher moderada também deve honrar os deuses, obedecer às leis e costumes estabelecidos pelos ancestrais e reverenciar seus pais. Perictione dá o ve- lho conselho a uma mulher casada de não pensar em nada para si mesma em particular, mas de trabalhar para preservar seu casamento. Para fazer isso, ela deve suportar tudo o que acontece ao marido, mesmo a má inter- pretação resultante de sua fraqueza ou excesso. Ela deve aceitar as infidelidades do marido, pois essas falhas são perdoadas nos homens e não nas mulheres. Deveria evitar ciúmes e raiva diante de tais infiéis e conformar-se à vontade e ao bem-estar de seu marido. Se ela trabalhar contra o marido, ela trará apenas ruína a si mesma e a sua casa. Em suma, Perictione parece instar a mulher moderada a se transformar em algo indistinguível de seu marido.

Na companhia de seu marido, ela viverá em conformidade com as opiniões de uma vida comum com ele; ela vai se adaptar aos pais e amigos que aprecie seu marido e considerará as mesmas coisas doces e amargas que o marido.

Esse fragmento e outros são testemunhos infelizes de que o estudo da filosofia e do treinamento no exercício da reflexão não liberta necessariamente a tirania do costume. Muito desse conselho para as mulheres atribuídas a Perictione é acompanhado por conselhos semelhantes às mulheres atribuídas a Pitágoras, nas quais ele aconselha ambos os sexos a serem fiéis aos cônjuges, a se vestirem de maneira simples, evitarem luxo e riqueza e compartilharem tudo em comum, mas a subserviência de uma mulher ao marido não é exortada aos homens com referência a suas esposas. O fragmento atribuído a Phintys de uma obra intitulada The mode- ration which becomes a woman é semelhante no assunto ao segundo fragmento On the Harmony of Women, atribuído a Perictione. Nele, Phintys argumenta que o exercício da virtude própria de um certo tipo de entida- de dá valor a essa entidade. A virtude apropriada dos olhos dá excelência aos olhos; o mesmo vale para os ou- vidos, para o cavalo, para o homem e para a mulher. A virtude apropriada para uma mulher (aquilo que a torna uma excelente mulher) é a moderação, porque é através da moderação que ela é capaz de estimar e amar o marido. Embora Phintys pense que certas ocupações são específicas para homens (por exemplo, comandan- do exércitos, governando cidades, dirigindo-se assembleias) e outras para mulheres (por exemplo, cuidando da casa, servindo seu marido), ela não acha que a filosofia deva ser reservada para um sexo. Ela também argumen- ta que homens e mulheres devem exercer coragem, justiça e moderação. Tanto homens quanto mulheres de- vem buscar as virtudes do corpo: saúde, força, delicada sensibilidade e beleza; mas os dois primeiros são mais adequados para homens e os segundos dois para mulheres. Ela divide as virtudes do espírito da mesma manei- ra tradicional. Coragem e determinação clara tornam-se um homem melhor por causa do rigor de seu corpo e espírito. O autocontrole prudente é melhor para uma mulher. Phintys fornece cinco meios para alcançar esse autocontrole: (1) guardar a cama pela piedade; (2) conservar a casa por decência de vestir; (3) comportar-se com reservas em argumentos; (4) evitar participação em festivais orgiásticos e (5) ser temperado nos sacrifícios aos deuses. O meio mais eficaz, no entanto, e o que resume o resto, ela diz, é abster-se de relações sexuais com ninguém além do marido. Se uma mulher dorme com outros homens, ela ofende os deuses da família ao não fornecer filhos legítimos; ela ofende os deuses da procriação por se envolver em sexo por outra razão que não a reprodução e ofende seu país por violar as leis. Essa imoderação leva apenas à ruína. Os deuses não concedem perdão às mulheres infiéis. O ornamento mais bonito e a maior glória de uma mulher é que seus filhos se asse- melham ao marido. Phintys continua aconselhando as mulheres sobre o vestuário adequado para a mulher virtuosa. Ela deve se vestir de branco com simplicidade e sem excesso. Como Perictione, ela aconselha as mu- lheres a evitar tecidos transparentes ou multicoloridos, excesso de maquiagem, luxo em roupas e ornamentos. Ao fazer isso, evitarão provocar ciúmes de outras mulheres e evitarão manifestar desprezo pelas mulheres po- bres. Isso ajudará a manter a cidade unida. Ela acha que as mulheres deveriam ter permissão para sair de casa, mas apenas antes do anoitecer e apenas para certas cerimônias religiosas ou para fazer compras domésticas. 28 Deveriam evitar os festivais orgiásticos e sua embriaguez, pois a dona da casa deve estar cheia de autocontrole e livre de todos os atos errados. Para Phintys, a virtude da mulher como mulher parece funcionar como cinto de castidade sobre os espíritos e corpos de mulheres moderadas. Além da questão da correção ou importância do conteúdo desses escritos existentes atribuídos às mulheres pitagóricas, está a questão da precisão dessas atribuições. Existem dois argumentos padrão usados ​​para mostrar que os escritos pitagóricos atribuídos às mulheres pitagóricas são apócrifos. Uma é que eles não estão escritos no dialeto dórico, usado pela maioria dos pitagóricos, e a outra é que eles refletem o pensamento neopitagórico em vez de pitagórico. Aqueles que con- testam a autenticidade dos fragmentos e letras atribuídos a Theano apontam que estão escritos no dialeto do ático. Mas outros estudiosos argumentam, como Chaignet, que “o dialeto ático no qual eles são escritos não será o único motivo suficiente para rejeitá-los, porque foi demonstrado com frequência que, a fim de facilitar a leitura de uma obra escrita em Dorian, os copistas mudaram o dialeto original.” Mais evidências de sua falta de autenticidade são necessárias. Alguns argumentam que são inautênticos porque refletem o pensamento neopitagoriano e não pitagórico e, portanto, provavelmente foram escritos muito tempo depois que Theano viveu. Outros argumentam que esse argumento não funciona para as letras de Theano em Eubula, Nicostrate e Callisto, porque não conflitam com as doutrinas do Escola pitagórica.” Há razões para suspeitar da autentici- dade de algumas das outras cartas atribuídas a Theano. A carta ao admirável Eurídice parece ser uma imitação da carta de Theano a Nicostrate e a carta a Rhodope menciona os diálogos de Platão com os homens de ferro que foram escritos após a morte de Theano. Outra carta endereçada a Eurídice foi escrita muito mais tarde por Theophylactos Simocata, que viveu em Bizâncio no século VII d.C. Holger Thesleff (1961, 7-8, 31-33, 50-59), em um dos estudos mais recentes de esses textos pitagóricos argumentam que todos os escritos atribuídos a essas mulheres pitagóricas (entre muitos outros atribuídos aos escritores pitagóricos do sexo masculino) são provavelmente apócrifos. Ele separa os escritos que chama de pseudepigrapha da tradição pitagórica pré-pla- tônica, que era primariamente oral e pré-clássica, e das tradições neopitagorianas surgidas no primeiro século a.C. em que os autores anexaram seus próprios nomes aos escritos. Ele argumenta contra a visão padrão que sustenta que esses pseudepigrapha foram escritos em Alexandria entre o primeiro século a.C. e o primeiro sé- culo d.C. por neopitagóricos. Ele afirma que a maioria deles foi escrita entre o quarto e o século II a.C., alguns no sul da Itália e outros em Atenas ou Alexandria. Embora Thesleff date a maioria dos trabalhos que ele inclui entre os pseudepigrapha antes dos estudiosos, ele não contestar sua falta de autenticidade. Ele argumenta que é o assunto, a abordagem, a linguagem e o estilo que distinguem o pseudepigrapha dos primeiros escritos de Pitágoras e dos escritos posteriores de neopitagóricos. O fragmento de Perictione On Wisdom tem o mesmo título e ideias semelhantes a uma obra atribuída a de Tarente, embora o estilo e a ordem das ideias sejam um pouco diferentes. Alguns estudiosos sustentam que o fragmento Perictione foi modelado em Archy- tas. Enquanto Stobaeus atribuiu On Wisdom a Perictione, Iamblichus atribuiu um fragmento semelhante a Archytas. Porque apenas Stobaeus a menciona e porque ela leva o nome da mãe de Platão, alguns estudiosos argumentam que o trabalho atribuído a ela é uma falsificação. Richard Bentley (1874, 383-84) argumenta que, como os fragmentos de On the Harmony of Women atribuídos a ela estão em Iônico e o fragmento de On Wis- dom em Dórico, ela não poderia ter escrito os dois porque não há razão pela qual ela teria escrito em dois dialetos. Ele pensa, de fato, que todos os seus fragmentos são espúrios pelas razões expostas acima e porque “lamblichus nos deu uma lista de todas as mulheres da Seita, das quais ele já ouviu falar” e o nome de Perictio- ne não está entre elas. Se olharmos para Iamblichus (1818, 267), porém, descobriremos que ele está dando uma lista das mais ilustres mulheres pitagóricas, não uma lista de todas essas mulheres. Thesleff (1961, 76) argumen- ta que muitos escritos foram atribuídos a Archytas desde que ele era o último diretor da escola pitagórica e que a maioria dessas atribuições é apócrifa. Se o fragmento atribuído a Perictione foi modelado no fragmento de Archytas ou não, e quem escreveu um fragmento permanece incerto (ver também Meunier 1932, 47). Em re- sumo, parece que, desde a tradição, esses fragmentos existentes atribuídos às primeiras mulheres pitagóricas não eram de autoria dessas mulheres, mas de escritores de alguns séculos depois. Thesleff (1961, 76) especula que a razão para fazer tais falsas atribuições não foi enganar as pessoas, mas indicar uma certa lealdade. Aque- les que seguiram a tradição de Archytas atribuiriam seu trabalho a ele e aqueles que dissentissem desse grupo escolheriam outros nomes pitagóricos antigos para indicar essa discordância. Naturalmente, não podemos provar que esses escritos atribuídos a mulheres pitagóricas devam ter sido escritos por outras mulheres poste- riormente, embora seja um pouco difícil imaginar um escritor masculino atribuindo seu trabalho a uma mu- 29 lher. Alguns podem argumentar que os homens poderiam ter escrito essas obras, mas devido ao assunto de algumas das cartas e fragmentos, por exemplo, aqueles que lidam com um marido infiel ou com uma gerência familiar, os atribuiriam às mulheres. No entanto, os homens do mundo antigo costumavam escrever obras so- bre esses tópicos como gerência familiar e reconhecer sua autoria. Tudo o que podemos deduzir com certeza da existência de tais textos e suas atribuições às mulheres é que não deve ter sido incomum ou pelo menos desconhecido no mundo antigo que as mulheres escreveram tratados filosóficos, pelo menos populares. Se não fosse esse o caso, é difícil imaginar por que os escritores atribuem seus trabalhos às mulheres. (...) 30 Tradução parcial do livro “A history of women philosophers”.

Fonte: WHAITE, Mary Ellen (ed.). A History of Women Philosophers. Vol.1 Ancient Women Philosophers. 600 B.C – 500 A.D. Martinus Nijhoff Publishers, 1987, pp.05-09; 11-17.

Tradução realizada por Ilze Zirbel

1. As primeiras pitagóricas: Temistoclea, Teano, Arignote, Myia e Damo

O pitagorismo representou uma escola de filosofia ativa e popular a partir do final do século VI a.C até o segundo ou terceiro século d.C. Os pitagóricos originais ou “iniciais” incluíam os membros imediatos de sua família e outros sucessores que chefiavam sociedades ou cultos pitagóricos em partes da Grécia e no sul da Itália. Os primeiros pitagóricos devem ser distinguidos dos pitagóricos “tardios” dos séculos IV e III a.C. e dos “neo pitagóricos” do século I a.C. até por volta do século III d.C. Os primeiros pitagóricos incluíam Temisto- clea, Teano, Arignote, Myia e Damo. Com a possível exceção de Temistoclea, essas mulheres eram membros da família de Pitágoras. Os pitagóricos tardios, incluindo [as seguintes mulheres] Fintys, Aesara de Lucania, Perictione, (possivelmente) Perictione II e Teano II, podem ser melhor descritos como filósofos, na tradição pitagórica. Eles provavelmente viveram por volta dos séculos IV-II a.C.1

I. Temistoclea, Arignote e Damo

As fontes antigas indicam que as mulheres eram ativas nas primeiras sociedades pitagóricas e podem ter desempenhado um papel central no desenvolvimento da filosofia pitagórica em seus primórdiosearly [ Py- thagorean philosophy]. Diógenes Laertius2 relata que:

Aristonexus afirma que Pitágoras derivou a maior parte de suas doutrinas éticas de Temistoclea, a sa- cerdotisa de Delfos. (p.12): Os primeiros pitagóricos viam o cosmos ou universo como ordenado e harmonioso. Tudo carrega uma relação matemática particular com todo o resto. Harmonia e ordem existem quando as coisas estão no seu relacionamento adequado umas com as outras. Essa relação pode ser expressa como uma proporção matemá- tica. Um dos “discursos sagrados” [dos pitagóricos] é atribuído à filha de Pitágoras, Arignote.3 De acordo com Arignote:4

(...) a eterna essência do número é a causa mais providencial de todo o céu, terra e da região intermediária. Da mesma forma, ele é a raiz da existência contínua dos deuses e daimones, bem como a dos homens divinos.

O comentário de Arignote é consistente com o atribuído a sua mãe, Teano de Crotona, em que tudo o que existe, tudo o que é real, pode ser distinguido de outras coisas por meio de enumeração. A essência eterna do número também está diretamente relacionada à coexistência harmoniosa de coisas diferentes. Essa harmo- nia pode ser expressa como um relacionamento matemático. Nessas duas maneiras, o número é a causa de to- das as coisas: sem ele não poderíamos enumerar, delinear e distinguir entre as coisas, e ele expressa as relações ordenadas entre as coisas.

1 Ver o cap 4, Authenticating the Fragments and Letters. 2 Diogenes Laertius, Lives o f the Eminent Philosophers, R.D. Hicks, transl. Cambridge: Harvard University Press, 1942. V, 341. 3 Delatte, Et.udes sur la litterature Pythagoricienne, Bibliotheque de l'Ecole des Hautes Etudes, 217, Paris, 1915. 4 Peter Gorman, Pythagoras, A Life, Boston: Routledge & Kegan Paul, 1979, p. 90. 31 II. Teano de Crotona

Teano era filha de Brontinus, um órfico [da escola órfica] e aristocrata [da cidade] de Crotona. Ela se tornou, primeiro, a pupila de Pitágoras de Samos e depois sua esposa. Em um documento atribuído a um traba- lho mais amplo dela, Sobre a Piedade (On Piety)5, ela alude aos conceitos metafísicos de imitação e participação [os grifos não estão no texto de Whaite]. O texto está traduzido por Vicki Lynn Harper:6

Eu aprendi que muitos gregos acreditam que Pitágoras disse que todas as coisas são geradas a partir do número. A própria afirmação [disso] coloca uma dificuldade: Como podem as coisas que não existem ser concebidas pra [como capazes de] gerar? Mas ele não disse que todas as coisas vêm a existir a partir do número; mas de acordo com [o] número - sob o argumento de que a ordem [a idéia de ordem; de ordenação; e a própria ordem das coisas], no sentido primário, está no número e é pela participação na ordem que um primeiro e um segundo, (p.13: ) e o resto, sequencialmente, são atribuídos a coisas que são contadas. Teano está dizendo que, quando perguntamos qual é [o que é] a natureza de um objeto, podemos res- ponder tanto traçando uma analogia entre esse objeto e outra coisa, como podemos definir o objeto. [ou seja: Ha duas maneiras: a coisa é...; ou: isso se formou a partir daquilo; veio depois daqui, da junção de um ou dois elementos, ou mais]. Segundo ela, Pitágoras pretendia expressar uma analogia entre coisas e números. Este é o conceito de imitação: as coisas são como números. Por sua participação no universo da ordem e harmonia, um objeto, corporal ou não, pode ser sequenciado com todos os outros objetos e pode ser contado. As coisas podem ser contadas de acordo com [o/um] número, cujo sentido primário é ordenar. O documento atribuído a Teano de Crotona parece ser desconhecido de Aristóteles, que afirmou que os pita- góricos:7

(...) constroem corpos naturais a partir de números, coisas que têm leveza e peso a partir de coisas que não têm peso ou leveza (...)

Se lermos as “coisas” de Teano como “objetos corporais ou físicos”, como penso que devemos fazer, dado o uso do termo “gerar” [que ela usa], ela está afirmando apenas que as coisas corporais não vêm à exis- tência pelo número em si, porque o número é [algo] não-corporal/físico. Ao invés disso, é [a ideia de] número que nos permite distinguir uma coisa de outra. Ao enumerar as coisas como primeira, segunda [whaite não usa itálico para essas duas palavras] etc., afirmamos tacitamente que somos capazes de especificar os parâmetros físicos da coisa: ela começa aqui, termina ali, e entre o início e o fim existe um objeto. Assim, no ato de enume- rar também delineamos objetos. Podemos dizer que algo é um objeto porque podemos contá-lo. Um apotegma [um ditado breve que, em geral, possui conteúdo moral e que pretende dar uma lição ou ensinar algo] atribuído a Teano diz respeito a duas doutrinas pitagóricas bem conhecidas: a imortalidade das almas e a trans- migração das almas. Teano confirma que os pitagóricos acreditavam na “justiça divina” na vida após a morte e na transmigração das almas após a morte para um novo corpo que não era necessariamente humano. A partir desse apotegma, obtemos uma imagem de um processo de transmigração através do qual a harmonia pode ser restaurada para o universo quando uma pessoa rompeu essa harmonia violando a lei moral durante sua vida. Teano conecta moralidade com cosmologia mostrando por que não deve haver dúvida sobre a imortalidade da alma:8

(p.14:) Se a alma não é imortal, então a vida é verdadeiramente um banquete para os malfeitores que mor- rem depois de terem vivido suas vidas com tanta iniquidade.

Em um universo harmonioso e com princípios, tudo tem seu próprio lugar e executa suas próprias funções de acordo com algumas leis: as leis da física, da lógica ou da moralidade e da religião. O mal ou ações

5 Thesleff, Holger, “Pythagorean Texts of the Hellenistic Period,”Acta Academiae Aboensis, Humaniora, Ser. A. Vol. 30,1, p. 125 (1965) Stob., 1.10.13, 125 Wa. 6 Harper adota a leitura gennan. o dè (Heeren), seguindo Thesleff. 7 Aristóteles, Metaphysics 1090a22. 8 Clement of Alexandria, Stromata, IV.7. 32 imorais são contrárias à lei e contribuem para desordem e discórdia. De acordo com Teano, se a alma não é imortal, aqueles que contribuem para a desordem não apenas pegam uma espécie de carona vida a fora às cus- tas daqueles a quem prejudicaram [vivem às custas de quem prejudicaram], mas também perturbam a ordem do universo. Se o equilíbrio e a harmonia no universo devem ser restaurados, as almas devem ser imortais. Então o imoral pode restaurar a ordem, aceitando a punição de renascer como algo menos que um ser humano e vivendo essa vida tardia [uma segunda vida, depois da que vivera], conforme exigido pela lei moral. Stobeaus cita vários apotegmas de Teano que revelam atitudes pitagóricas em relação às mulheres. A atividade sexual de uma esposa deve restringir-se a agradar seu marido - ela não deve ter outros amantes. No contexto do casamento, castidade e virtude não são identificadas com abstinência. Quando perguntaram a Teano quantos dias após a relação sexual são necessários para uma mulher ser considerada mais uma vez “pura”, sua resposta foi que, se a atividade era com o próprio marido da mulher, ela permanece pura, mas se foi com outra pessoa, nunca mais poderá se tornar pura.9 Quando lhe perguntam quais deveres incumbem sobre uma mulher casada, sua resposta é “agradar ao marido”.10 Teano via o amor romântico como nada mais do que “a inclinação natural de uma alma vazia”.11 Estas citações talvez possam ser melhor compreendidas à luz dos escritos das filósofas pitagóricas posteriores, Fintys, Teano II, Perictione, Aesara de Lucania e Perictione II. De seus escritos, vemos que as doutrinas pitagóricas devem ser aplicadas à vida pessoal e familiar. As mulheres, cuja virtude especial é a temperança, têm a responsabilidade de manter a lei e a justiça (ou harmonia) dentro do lar. Segundo Aesara de Lucania12, o lar é um microcosmo do estado. Consequentemente, as mulheres têm uma grande responsabi- lidade em criar as condições sob as quais a harmonia e a ordem, a lei e a justiça podem existir no estado. Uma mulher que não entende isso provavelmente contribuirá para (p.15:) a desordem, discórdia e caos. Quando lemos os apotegmas de Teano, nesse contexto, podemos apreciar melhor a força de seu comentário:13

Melhor estar em um cavalo em fuga do que ser uma mulher que não reflete.

III. Myia

Myia é mencionada como uma das filhas de Teano e Pitágoras.14 Ela era casada com um atleta, Milo (às vezes chamado de Milon, Mylon ou mesmo Meno), que veio da cidade natal da sua mãe, Crotona. Foi na casa dela que Pitágoras foi queimado até a morte. Como as outras mulheres pitagóricas, ela escreve sobre a aplicação do princípio da harmonia na vida cotidiana de uma mulher. Sua carta a Fyllis discute a importância de suprir as necessidades de um bebê recém-nascido de acordo com esse princípio. Seu argumento parece ser de que um recém-nascido naturalmente deseja aquilo que é apropriado às suas necessidades, e o que ele precisa é de moderação: nem muito pouca nem muita comida, roupas, calor, frio, ar fresco, etc. O que é interessante na car- ta dela é a sugestão de que o recém-nascido naturalmente deseja moderação em tudo, e que mais se beneficia com a moderação. Por esses motivos, a nova mãe também deve selecionar uma babá que seja moderada [tenha temperança]. A ama/babá não deve ser dada a excessos de sono ou bebida e deve moderar o apetite sexual do marido (presumivelmente porque a gravidez [se ela vier a engravidar] impedirá a lactação). Ela deve “fazer todas as coisas bem [e] no momento apropriado”. Ela deve estar em sintonia com o bem-estar da criança e mo- derar suas próprias necessidades, de maneira que a sua nutrição do recém-nascido contribua para o bem-estar do bebê.

9 Stobaeus, Eclogae Physicae Dialecticae et Ethicae (Hense) IV, 586. [Nota da tradutora: No mundo antigo era comum que as secreções “esporádicas” do corpo fossem vistas como “impuras”. Possivelmente isso se deu por questões de saúde, em um universo com pouquíssima água disponível. Assim, a menstruação, o sangramento pós-parto, o sêmen 'derramado fora do corpo da mulher” podiam “permanecer” na superfície do corpo e das coisas, atraindo insetos. O suor é uma exceção (possivelmente por ser algo frequente e que “desaparece”, ao ser reabsorvido pela pele). A mulher, após as relações sexuais, era impura possivelmente por causa das secreções produzidas pelo corpo e pelo sêmen, ainda que o sêmen não seja citado. Com o tempo, a misoginia tornou a mulher impura (e não as secreções), já que ela é “marcada” pelas secreções. Aqui, Teano não vê a mulher como tal por causa das relações sexuais, mas pelo ato do adultério.] 10 Op. cit., 587. 11 Ibid. 12 Muitos escrevem "Aisara" e "Aresas" esta última as vezes confundida com um homem com este nome que não era o mesmo que a nossa Aesara. 13 Stobaeus (Meineke) Florilegium, 268. 14 Clement of Alexandria, Stromata, IV, 19., Suda Lexicon, s.v. "Myia," "Teano." Iamblichus, Life of Pythagoras, 30 e 36. 33 Texto da carta de Myia a Fyllis15

Myia para Fyllis: Saudações. Por você ter se tornado mãe, eu ofereço a você este conselho. Escolha uma enfermeira [cuidadora] que é bem disposta e limpa, uma que seja modesta e não seja dada ao sono ou à bebida em excesso. Uma tal mulher será mais capaz de julgar como criar seus filhos de maneira apropriada a posição deles de nascidos-livres – desde que, é claro, ela tenha leite suficiente para nutrir uma criança e não seja facilmente vencida [convencida] pelos pedidos [súplicas] do marido para partilhar da cama dele. Uma enfermeira/cuidadora tem uma grande parte nisto que é primeiro e introdutório [as primeiras experiências] à vida inteira de uma criança, ou seja, nutrindo com o objetivo de criar bem a criança. Pois ela fará todas as coisas bem, no momento apropriado. Deixe-a oferecer o mamilo, o peito e a nutrição, não no calor do momento, mas de acordo com a devida consideração. Assim, ela guiará o bebê para a saúde [para ser saudá- vel]. Ela não deve ceder quando ela mesma deseja dormir [ao próprio sono], mas quando o recém-nascido deseja descansar; ela não será um pequeno conforto para a criança. Não a deixe ser irascível, loquaz ou indiscriminada na comida [ao se alimentar], mas ordeira e moderada [que atua com temperança] e – na medida do possível – [que] não [seja] estrangeira, mas grega. É melhor colocar o recém-nascido para dormir quando estiver adequadamente cheio de leite, pois o descanso é agradável para o jovem [recém-nascido], e esse alimento é fácil de digerir. Se houver qualquer outro alimento, deve-se dar comida que é a mais simples possível. Retenha-se completamente do vinho, devido ao seu forte efeito, ou adicione-o moderadamente em uma mistura ao leite da noite. Não dê continuamente à criança banhos. Uma prática de banhos pouco fre- quentes, a uma temperatura amena, é melhor. Além disso, o ar deve ter um equilíbrio adequado de calor e frio, e a casa não deve estar muito fria ou muito fechada. A água não deve ser dura [muito quente ou muito fria?] nem suave, e as roupas de cama não devem ser ásperas, mas caindo agradavelmente na pele [agradá- veis ao toque]. Em todas essas coisas, a natureza anseia pelo que é apropriado, não pelo que é extravagante. Estas são as coisas que parecem ser úteis de escrever para você no presente [por agora]: minhas esperanças baseadas na enfermagem de acordo com o plano. Com a ajuda de deus, nós devemos providenciar lembretes viáveis e adequados sobre a educação da criança novamente, mais tarde.

O leitor pode ficar impressionado, como eu, na medida em que esse conselho de temperança é reali- zado pela própria Myia: ela termina a carta com a afirmação de que ‘essas são as coisas que parecem ser úteis escrever para você no presente...” Há moderação até mesmo no aconselhamento, pois ela promete mais para mais tarde, quando será “apropriado” lembrar Fyllis de outros detalhes da educação infantil harmoniosa! Esta declaração final resume o que (p.17:) as mulheres pitagóricas veem a si mesmas fazendo realmente através de suas cartas e textos. Há algo orientado-para-a-ação/dever [task-oriented] na carta de Myia e nas de Teano II, bem como nos fragmentos de Perictione I e Fyntis. É sua tarefa como mulheres filósofas ensinar a outras mulheres o que mulheres precisam saber para viverem harmoniosamente suas vidas e, como sugere Aesara de Lucania, criar justiça e harmonia em suas almas e em seus lares. Da mesma forma, é tarefa dos homens filó- sofos ensinarem outros homens o que eles precisam saber para viverem harmoniosamente suas vidas, criando justiça e harmonia em suas almas e no estado. Essa orientação-para-a ação/dever explica, em parte, e em parte apenas descreve as razões para a abordagem “realista” da filosofia moral adotada pelas mulheres, bem como a abordagem “ideal” que os homens adotam. Eles adotam abordagens diferentes porque suas tarefas são dife- rentes. Suas tarefas são diferentes porque a natureza dos homens e mulheres diferem.

15 Thesleff, op. cit., 123-4; Hercher, Epistolographi Graeci, 608. Translated by Vicki Lynn Harper. 34 Tradução parcial do livro “Pitagorian women: their history and writings”

Fonte: POMEROY, S. B. Pythagorean women: their history and writings. Baltimore (Md.): The John Hopkins University Press, 2013, Introdução.

Tradução realizada por Ilze Zirbel

Introdução

Eles consideravam Pitágoras como divino, com o resultado de que entregaram/viraram [turned over] suas esposas para ele, a fim de que [elas] aprenderiam algumas de suas doutrinas. E assim elas foram chamadas de “mulheres pitagóricas”.

Diógenes Laertius, Vida de Pitágoras, 41.

[p. xv:] Pitágoras foi o primeiro filósofo grego a incluir mulheres entre seus discípulos. Ele também foi o pri- meiro a ouvir com simpatia os apelos das mulheres casadas e a impor monogamia sexual a seus maridos. Cerca de duzentos anos após a morte de Pitágoras, as mulheres neopitagóricas se tornaram as primeiras mulheres no mundo grego a escrever textos em prosa existentes [até o momento]. Como o próprio Pitágoras, esses autores posteriores foram simpáticos ao ponto de vista das mulheres. Quem eram as mulheres pitagóricas? Embora essas questões sejam discutidas em detalhes neste livro (ver cap. 1 e 3), é importante entender desde o início que as mulheres pitagóricas devem ser consideradas como dois grupos. Primeiro, são as mulheres contemporâneas de Pitágoras, algumas das quais são nomeadas em vá- rios relatos da vida de Pitágoras por Iamblichus (ca. 245-325 d.C.) e por outros. No segundo grande grupo, es- tão os descendentes intelectuais do primeiro: mulheres neopitagóricas, incluindo as autoras de cartas e outros textos em prosa, alguns completos, outros agora fragmentados. O primeiro grupo viveu nos períodos arcaico e clássico tardios; o segundo grupo (com uma exceção) é helenístico. O primeiro grupo era composto por gregos dóricos e pelo menos duas mulheres nativas1. A identidade das mulheres posteriores é menos certa, mas elas escreveram nos dialetos dórico e jônico; acredita-se que algumas tenham vivido em Roma e sul da Itália, outras em Atenas e Alexandria. A literatura [delas] circulou entre os assentamentos no leste e oeste, pois cartas de Melissa e Teano foram encontradas no Egito, parafraseadas em koine ático (a língua comum) da versão dórica em um papiro do século III d.C.2 [p. xvi:] O assunto deste livro é a história social de mulheres que eram pitagóricas; no entanto, não há publica- ções anteriores sobre as mulheres em geral nas colônias gregas ocidentais do sul da Itália.3 Portanto, nos dois primeiros capítulos, tive que fazer um retrato de fundo para descrever o contexto social, cultural e ecológico da região que os pitagóricos viveram. Os cap. 3–7 tratam dos neopitagóricos, alguns dos quais escreveram cartas e outras obras em prosa. Esses textos foram editados por Holger Thesleff e publicados emThe Pythagorean Texts of the Hellenistic Pe- riod.4 A abrangência do período de tempo desse livro é longa: do séc. VI a.C. até pelo menos o I séc. a.C. e possivelmente mais (dependendo da datação controversa dos documentos neopitagóricos). O cap. 4 inclui observações gerais sobre os textos neopitagóricos de mulheres e explora questões que surgem com frequência

1 Havia três grupos maiores de Gregos, distinguidos entre si por seus dialetos: Dóricos, iônicos e Aeolianos. 2 P. Haun. 3Alfonso Mele (Magna Grecia. Colonie achee e Pitagorismo [Naples, 2007], passim), no entanto, encontra conecções entre tradições relacionadas sobre Teano e mito Achaeano. 4 Thesleff, Texts, 210. 35 ou são discutidas detalhadamente. Nos dois capítulos seguintes, todos os escritos das mulheres neopitagóricas aparecem com tradução, com uma introdução precedendo cada texto e um comentário a seguir, explicando algumas características específicas desse documento. Meu comentário enfatiza os problemas e a história social das mulheres. No cap. 7, a professora Vicki Lynn Harper discute aspectos filosóficos do pitagorismo, especial- mente no que se refere às mulheres e como aparecem nos textos neopitagóricos. Quando pensei em escrever este livro, fiquei surpresa ao descobrir que ninguém havia me precedido em escrever um estudo abrangente, embora mais mulheres pitagóricas sejam conhecidas pelo nome do que mulheres em qualquer outra escola filosófica grega. Elas não foram “silenciados” como suas respeitáveis contemporâneos atenienses na Grécia antiga. Essas mulheres deixaram uma impressão [marcaram]; algumas de suas observações espirituosas e prudentes foram citadas por autores posteriores. Assim, este livro é uma contribuição para a literatura histórica sobre o mundo grego além de Atenas. O atenocentrismo distorceu nossa visão da história das mulheres, obscurecendo, por exemplo, as mu- lheres alfabetizadas que podem ser encontradas em todos os períodos da história grega e em vários lugares do mundo grego - embora não frequentemente em Atenas.5 Mulheres espartanas, diferentemente das atenien- ses, não foram silenciados nem isolados; em vez disso, exerceram-se ao ar livre, foram bem nutridas, foram educadas pelo estado e exerceram influência na esfera pública.6 A conexão entre as mulheres de Esparta e as mulheres da colônia espartana de Taranto (o lar de muitos pitagóricos e neopitagóricos) é aparente e influên- cias culturais podem ser detectadas. Os pitagóricos também viviam em Crotona e Metaponto. Essas cidades, no entanto, eram colônias da Acaia, e as mulheres de suas cidades-mãe na antiga Grécia não foram estudadas, embora tenham sido encontradas ligações entre os cultos antigos de Hera e os da Magna Grécia (ver cap. 2). Embora as mulheres dóricas tenham desempenhado um papel maior em público do que as atenienses [p.xvii:], ainda é verdade que a história das mulheres em geral é mais obscura que a dos homens. Por exemplo, Teeano I era a mulher pitagórica mais célebre, muito citada, influente e adotada como modelo pelos neopita- góricos. No entanto, fontes antigas divergem sobre se ela era a esposa ou discípula de Pitágoras, ou a filha ou esposa de Brontinus. Nenhuma esposa além de Teano é registrada para Pitágoras, e foi geralmente aceito que ele tinha filhos. Portanto, vou me referir a Teano neste livro como a esposa de Pitágoras (ver cap. 1). A evidência material contribuiu significativamente para a construção da história das mulheres pitagóri- cas na Magna Grécia. A moderna cidade de Crotona se encontra no caminho [atrapalha?] de qualquer extensa exploração da Crotona de Pitágoras. Portanto, são particularmente valiosas as publicações de Joseph Coleman Carter sobre a escavação em andamento que ele dirige em Metaponto. The Chora of Metaponto: The Necropoleis é um estudo diacrônico da arqueologia, história e ecologia de Metaponto, com atenção especial aos enterros e às sepulturas.7 Sua Discovering the Greek Countryside at Metaponto é um trabalho acadêmico detalhado e uma síntese que oferece uma das imagens mais completas da vida em uma pequena cidade antiga já publicadas.8 Não há estudo comparável do contexto ecológico dos lugares onde os neopitagóricos viveram. Metaponto era uma colônia Acaia no golfo de Taranto fundada por volta de 600 a.C., pouco antes da época de Pitágoras. Chegando bastante tarde na história da colonização grega, os colonos reivindicaram uma área com uma boa localização para a água, mas já sob cultivo por povos nativos. Nos vales ribeiros [dos rios], eles encon- traram um local pantanoso e infestado de malária, que eles começaram a drenar e converter em terras agrícolas.9 Muitos metapontinos optaram por viver em terrenos altos. O principal projeto de drenagem ocorreu por volta de 500 a.C., depois que os colonos viveram lá por cerca de cem anos. Não foi por acaso que esse enorme projeto de engenharia foi realizado quando Pitágoras e seus discípulos tiveram influência política. As escavações revelaram um porto e uma cidade bem planejada, dispostos em um padrão de quadras.10 Valas e esgotos de drenagem suge- rem um governo forte e ordenado e atestam a prosperidade da cidade. O museu de Metaponto não apenas exibe as

5 Certa literatura ateniense apresenta mulheres letradas ou filósofas, incluindo Aspasia (nos diálogos socráticos) e Melanippe a sábia (Sophe, em Euripides: R. Kannicht, Tragicorum Graecorum Fragmenta [Gottingen, 2004], 5.1, p.537–53, e C. Collard and M. Cropp, Euripides: Fragments. Aegeus-Meleager [Cambridge, MA, 2005], p. 572–611). 6 Sarah B. Pomeroy, Spartan Women (New York, 2002). 7 Joseph Coleman Carter, ed., The Chora of Metaponto: The Necropoleis, 2 vols. (Austin, 1998). 8 Joseph Coleman Carter, Discovering the Greek Country side at Metaponto (Ann Arbor, 2006). 9 Carter, Discovering the Greek Countryside at Metaponto, p. 80. 10 Na grade, a distribuição de partes iguais da terra e a influência do pitagorismo, veja ibid., p. 206, onde Carter cita P. Lévêque e P. Vidal-Naquet, Cleisthenes the Athenian, trans. D. A. Curtis (Atlantic Highlands, NJ, 1996), p. 63–72. 36 descobertas do local e dos túmulos, mas também reflete a amplitude da visão de Carter; ele contém caixas dedicadas a imagens artísticas de mulheres em vasos e a artefatos e utensílios utilizados por elas, especialmente aquelas em materiais duráveis, incluindo joias, fíbulas, espelhos, cerâmica, carretéis, pesos de tear e espirais de fuso. Um gráfico de seus muitos penteados é exibido.11 Sem descrições detalhadas de Heródoto, Tucídides ou Aristófanes, as evidências arqueológicas desem- penham um papel ainda mais significativo na reconstrução das sociedades nas quais os pitagóricos viviam – embora para ter [p.xviii:] certeza, autores que viveram muito depois de Pitágoras, incluindo Livy e Strabo, evocam o passado. Os bens de tumbas fornecem informações sobre a pessoa morta e o doador sobrevivente [da tumba]. Por exemplo, como Pitágoras proibiu mulheres respeitáveis de usar ouro, podemos assumir que qualquer mulher enterrada com joias de ouro não era pitagórica (ou pelo menos seus sobreviventes, que a en- terraram não eram).12 Ossos foram analisados para fornecer informações sobre o sexo dos cadáveres, seu esta- do de saúde, grupo sanguíneo e idade na morte. As análises de pólen dão pistas sobre a dieta das mulheres. Os enterros de crianças produzem [como resultado arqueológico] bonecas e objetos em miniatura, como carroças e pequenos vasos. Representações de mulheres nas artes visuais fornecem informações sobre sua aparência, roupas e habitat. Além disso, o registro arqueológico em um local bem [bastante] escavado como Metaponto revela costumes e artefatos italianos e gregos nativos da Itália. (Por outro lado, o registro escrito que descreve as interações de Pitágoras com as mulheres e seus pontos de vista sobre elas está em grego e é amplamente limita- do, embora não exclusivamente, às mulheres gregas). Artefatos de arquitetura e engenharia, incluindo templos e canais de drenagem e irrigação, sugerem o contexto material em que essas mulheres viviam e as inscrições registram informações públicas contemporâneas [à elas]. A parafernália usual da vida cotidiana e cívica em uma pequena cidade grega é importante na recons- trução da vida das mulheres. Assumimos que as mulheres que tiveram tempo de ouvir Pitágoras, que possuíam roupas e joias luxuosas e podiam fazer dedicações caras, e que tinham o lazer e a educação para escrever prosa que pudesse circular, não usaram pessoalmente as panelas e frigideiras e outros equipamentos de cozinha que foram escavadas.13 No máximo, elas supervisionavam enquanto seus escravos cozinhavam a comida, embora ocasionalmente preparassem ofertas de sacrifício com as próprias mãos. Como a maioria dos escravos domés- ticos era do sexo feminino, no entanto, a cerâmica amplia o leque de classes sociais disponíveis para nosso es- tudo geral das mulheres.14 Embora não possamos presumir que as mulheres enterradas nos túmulos estudados eram pitagóricas, algumas podem ter sido. De qualquer forma, os pitagóricos viviam entre eles ou perto deles, sujeitos às mesmas doenças e condições climáticas, e optando pelo mesmo suprimento de comida. Pelo menos, podemos ter certeza de que os pitagóricos eram membros da elite, e geralmente são os túmulos dos prósperos que sobreviveram para serem escavados e produzir uma série de bens funerários. Foi menos complicado escrever sobre as neopitagóricas do que sobre as pitagóricas, visto que estudio- sos, inclusive eu, discutiram os escritos do primeiro grupo. Além disso, as neopitagóricas viviam em cidades helenísticas cosmopolitas e no sul da Itália, juntamente com outras mulheres cujas vidas foram estudadas.15 Como mencionei, Pitágoras foi o primeiro filósofo a incluir mulheres em sua comunidade. No séc. IV a.C. e no período helenístico [p. xix:] algumas mulheres eram ativas na Academia de Platão, bem como entre os cínicos e os epicuristas. As mulheres neopitagóricas, no entanto, eram mais numerosas do que aquelas associadas a qualquer outra escola filosófica. Embora os dois grupos sejam cronologicamente distintos, as neopitagóricas preservaram as tradições dos pitagóricos originais e compartilhavam as mesmas visões filosóficas e éticas e, às vezes, os mesmos nomes.

11 Em 1991, A. De Siena organizou uma exposição de ornamentos femininos da Idade do Ferro à Antiguidade Tardia, exibindo penteados e objetos ornamentais: Femminili na Basilicata dall’età del ferro al tardo antico: La documentazione archeologica, Museo Archeologico Nazionale di Metaponto, 14 de janeiro a 30 de junho de 1991. Não havia catálogo, mas havia um depliant. Sou grata a A. De Siena por fornecer essas informações em um e-mail em 18 de janeiro de 2010 e a Francesca Silvestri por fornecer o depliant. 12 Ex. tomb 71 in Carter, Discovering the Greek Countryside at Metaponto, p. 177– 78, e figs. 4.51–53. 13 Para equipamentos de cozinha e recipientes de armazenamento, consultar Joseph Coleman Carter, ed., Living Off the Chora: Diet and Nutrition at Metaponto (Austin, 2003), 25–28. 14 Para mais informações, consultar Sarah B. Pomeroy, Xenophon Oeconomicus: A Social and Historical Commentary (Oxford, 1994), esp. p. 42–43. 15 Ex. Sarah B. Pomeroy, Women in Hellenistic Egypt, from Alexander to Cleopatra (New York, 1984; pbk., com novo prefácio, Detroit, 1990; ACLS History E-Book, 2004), p.61–71, e Jane Rowlandson, ed., Women and Society in Greek and Roman Egypt: A Sourcebook (Cambridge, 1998). 37 Além disso, alguns de seus escritos mostram a influência de outros filósofos, especialmente Platão. Neste livro, os dois grupos de mulheres serão ocasionalmente tratados como um todo unificado, mas mais frequentemente como distintos. Grande parte da biografia de Pitágoras e a história da pitagorianismo primitivo/inicial não são claras e são controversas. Alguns eruditos clássicos e historiadores sociais da antiguidade tendem a aceitar muitas das tradições antigas, mas outros argumentam que certas evidências pertencentes à história de Pitágoras e das mulheres pitagóricas e neopitagóricas eram pseudônimas ou não confiáveis. Minha intenção aqui não é parti- cipar do debate acadêmico sobre essas questões em si - exceto quando elas afetam diretamente minha narrativa sobre as mulheres -, mas usar criteriosamente as evidências na reconstrução da vida das mulheres. De qualquer forma, considerando que grande parte dos estudos sobre a história do pitagorismo simplesmente ignorou as mulheres pitagóricas, ao contribuindo com uma peça que faltava para o enigma do pitagorismo, este livro pode não apenas expandir o quadro atual de Pitágoras e outros homens pitagóricos, mas alterá-lo (ver cap. 3). Enquanto isso, ofereço aqui um breve esboço que fornecerá orientação ao leitor que não é especialista em his- tória antiga. Este esboço servirá como uma estrutura simples para o assunto deste livro: mulheres pitagóricas e neopitagóricas. Embora as experiências intelectuais dessas mulheres tenham sido únicas por serem pitagóricas, o que podemos captar sobre suas vidas diárias aprimora nosso conhecimento geral da história das mulheres gregas. Pitágoras nasceu em meados do século VI a.C. em Samos, no Mediterrâneo oriental. Como a maioria de seus discípulos, ele viajou [saiu] do mundo da Grécia antiga para se estabelecer na Magna Grécia, no sul da Itália. Por volta de 530 a.C., ele começou a dar palestras para os cidadãos da colônia Acaiana de Crotona e depois se mudou para Metaponto. Além da contemplação do cosmos, da natureza da alma e de assuntos que também foram discutidos por outros filósofos pré-socráticos, a filosofia pitagórica incluiu um programa ético muito elaborado, com conselhos para mulheres e homens sobre conduta pessoal na vida cotidiana.16 Os biógrafos posteriores (usando as obras de autores anteriores) escreveram sobre as mulheres que conheciam efetivamente Pitágoras. Por exemplo, Filochorus, que morreu na década de 260 a.C. e pode ter conhecido algumas mulheres neopitagóricas, escreveu um volume sobre [p.xx:] mulheres pitagóricas que ele intitulou The Collection of Pythagorean Women Heroines (ou “fundadoras”: Sunagoge heroidon hetoi Pythago- reion gunaikon).17 Filochorus pode ter produzido seu livro porque notou que trabalhos anteriores as haviam ignorado.18 Iamblichus nomeou 17 mulheres entre os 235 discípulos de Pitágoras, a quem ele lista.19 Como esse catálogo provavelmente se originou com Aristoxeno no século IV a.C., quando vários tratados sobre os pitagó- ricos foram escritos, é provável que seja preciso, mas como alguns dos pitagóricos nomeados são posteriores a Aristoxeno, Iamblichus ou outros biógrafos os devem ter acrescentado.20 Trabalhos sobre a vida de Pitágoras são as principais fontes escritas de informações sobre as mulheres pitagóricas. Os autores mais importantes são Diógenes Laércio da Cilícia (3 a. a.C), Porfírio de Tiro (232/233 a cerca de 305 a.C.) e Iamblichus de Chalcis (ca. 245 a 255a.C.), um neoplatonista que estudou com Porfírio. Embora eles difiram em detalhes, há considerável sobreposição entre as biografias. Por exemplo, Iamblichus identifica Teano como a esposa de Broninus, enquanto, como mencionamos, outras fontes variam se ela era esposa, filha ou discípula de Pitágoras. Brontinus de Metaponto ou Crotona às vezes é identificado como o ma- rido de Teano, às vezes como de Deino e às vezes como o pai de Teano. Existe uma confusão semelhante sobre os nomes dos filhos de Pitágoras. Além disso, algumas fontes atribuem citações particulares a Deino, outras a Teano. Alguns dos biógrafos foram aparentemente inspirados por filósofas que eram suas contemporâneas ou patronas. Assim, Diógenes Laércio dedicou seu trabalho a uma mulher da escola platônica.21 Em sua Life of Plo- tino (9), Porfírio menciona as alunas de Plotino que estavam seriamente comprometidas com a filosofia.

16 Ver: Riedweg, Pythagoras, x. Para o pitagorianismo antigo ver também Carl Huffmann,Pythagoras , primeira publicação 23 de fevereiro de 2005; revisão substantiva em 13 de novembro de 2009. http://plato.stanford.edu/entries/pythagoras/. 17 FGrH B328, Fr. 91, nos. 25–26. 18. Thus F. Jacoby in FGrH IIIb, vol. 1 (Leiden, 1954), 380. 19. Iambl. VP267. 18 F. Jacoby em FGrH IIIb, vol. 1 (Leiden, 1954), 380. 19 Iambl.VP267. 20 Sobre o assunto complexo e controverso de uma das principais fontes para a biografia de Pitágoras e o antigo pitagorismo, ver, por exemplo, John Dillon e Jackson Hershbell, Iamblichus: On the Pythagorean Way of life, Society of Biblical Literature Texts and Trans- lations, vol. 29. Graeco-Roman Religion, ser. 11 (Atlanta, 1991), p. 6-14. Os estudiosos determinaram que as fontes de Iamblichus variam de confiável a conjuntural. Sobre o catálogo de Iamblichus, veja o cap. 1 [deste livro de Pomeroy]. 21 P. Von der Muhll, “Was Diogenes Laertios der Dame, der er sein Buch widmen will, ankundigt,” Philologus 109 (1965), p. 313–15. 38 Embora os autores das biografias existentes tenham escrito séculos após a existência dos pitagóricos originais, a tradição biográfica estava em andamento na geração após a morte de Pitágoras. Pitágoras é men- cionado já em Heródoto (4.95). Esse testemunho inicial, portanto, não foi totalmente contaminado por influ- ências posteriores, como o platonismo, mas oferece alguma reflexão sobre o pitagorismo original.22 Os autores das obras que agora existem consultaram essas biografias anteriores e as incorporaram, às vezes literalmente, e muitas vezes sem [nenhuma] atribuição. Os estudos modernos conseguiram filtrar muitos dos escritos sobre os pitagóricos em geral e atribuir autoria e data a várias tradições; estes serão discutidos neste livro onde for relevante. No entanto, um dos problemas específicos encontrados no estudo de mulheres pitagóricas e neopi- tagóricas é que nossas fontes antigas não fazem distinções claras entre elas, por exemplo, confundindo a Teano que era esposa e discípula de Pitágoras com a mulher, ou mulheres, de mesmo nome que escreveu cartas e tratados no período helenístico. [p. xxi:] Nas muitas tradições concernentes à vida e às doutrinas de Pitágoras, há pouco da misoginia que des- figura [that mars] o ensino de outros filósofos e pensadores gregos. As mulheres não parecem estranhas e infe- riores aos homens. Antes, são o mesmo ou iguais aos homens, recebem a mesma educação, seguem as mesmas regras de conduta e merecem o mesmo respeito (ver cap. 2). Pitágoras dedicou alguns pensamentos aos [falou sobre] hábitos das mulheres. Por exemplo, ele observou que os laços entre as mulheres eram fortes. Elas faziam empréstimos de roupas e ornamentos para outras mulheres que precisavam de certas coisas e o faziam sem a garantia de testemunhas [sem registrarem isso]. Não seria natural para os homens serem tão confiantes. Ele ilustra seu argumento com o exemplo das míticas Três Graias, irmãs idosas que confiavam uma na outra tão completamente que compartilhavam um olho entre elas (Iambl. VP 55). Os biógrafos concordam que, entre os pitagóricos originais, as mulheres desempenharam um papel 23 importante e participaram ativamente da vida filosófica. Esse fenômeno era único no mundo grego dos sé- culos VI e V a.C. O fato de o próprio filósofo ter sido responsável por essa inovação ou pelo menos aprovado completamente é indicado pela inclusão de sua esposa e filhas entre as mulheres exemplares mencionadas pelo nome.24 Segundo Diógenes Laertius, Teano escreveu algumas coisas (8.43: suggramma ... tina). Como ele tam- bém relata que Filolaus (ca. 470 a.C.) foi o primeiro a publicar tratados pitagóricos (ekdounai), concluímos que os textos de Teano não foram publicados.25 Essa dedução é consistente com um axioma da história das mulhe- res: mulheres, em geral, escreveram obras mais curtas e menos e, muitas vezes, as mantinha em privado ou as publicavam apenas sob pseudônimo. Assim, a tradição sobre Teano não precisa ser rejeitada, embora alguns estudiosos influentes tenham argumentado que nem as mulheres pitagóricas nem as neopitagóricas poderiam ter participado da escola filosófica, nem poderiam ter escrito alguns textos pitagóricos. Por exemplo, Richard Bentley não acredita neste relato sobre a participação das mulheres. Em uma discussão sobre a autenticidade de um tratado neopitagórico atribuído a Perictione, ele escreveu que os criadores de tratados simplesmente “consideravam um ponto de decoro fazer até as mulheres filhas de filósofos copiarem os homens”.26 B.L. van der Waerden continuou a tradição de estudar apenas os pitagóricos do sexo masculino em seu Die Pythagoreer: Religiöse Bruderschaft e Schule der Wissenschaft.27 Por outro lado, W. Burkert28, C.J. de Vogel29 e Peter Kingsley30 comentaram sobre a igualdade de mulheres e homens no pitagorianismo. O s Discursos de Pitágoras [Speeches of Pythagoras], que foram datados do final do quinto ou início do quarto século, são uma fonte primordial da tradição sobre a participação das mulheres na sociedade pitagóri- ca.31 Os discursos são dirigidos a ambos, mulheres e homens, e incluem a discussão de comportamento apro- priado para mulheres. Dicaearchus (ap. Porph. Plot. 18–19) relata que Pitágoras se dirigiu a uma reunião de

22 Ver: Riedweg, Pythagoras, x–xi e cap. 1. 23 Iamblicus VP 267, e passim; Diogenes Laertio 8.42–43; Porph. Plot. 4.19. 24 Diog. Laert. 8.41–43. 25 Diog. Laert. 8.85. A frase no DL está incompleta: biblia kai epigrapsai (e publicar livros) é uma inserção editorial. 26 Richard Bentley, Dissertation upon the Epistles of Phalaris, 1699 (London, 1816), p.304. 27 B. L. van der Waerden, Die Pythagoreer: Religiöse Bruderschaft und Schule der Wissenschaft (Zurich, 1979). Teano não é citada no index. 28 W. Burkert, “Craft versus Sect:The Problem of Orphics and Pythagoreans,” inJewish and Christian Self-Definition, ed. B. F. Meyer and E. P. Sanders, vol. 3 (London, 1982), p. 1–22, p. 183–89, e esp. 17–18. 29 C. J. de Vogel, Pythagoras and Early Pythagoreanism (Assen, 1966), 138 e passim. 30 Peter Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery, and Magic: Empedocles and Pythagorean Tradition (Oxford, 1995), cap. 12. 31 Nancy Demand, “Plato, Aristophanes, and the Speeches of Pythagoras,” GRBS 23 (1982), p. 179–84. 39 mulheres e [p.xxii:] que uma associação de mulheres foi criada para ele. Ele continua e discute Teano, que foi a mulher pitagórica mais famosa. Em seguida, ele afirma que o que Pitágoras disse a seus íntimos não podemos dizer com certeza, mas foi consensual que ele disse que a alma era imortal, que transmigrou para outras formas de vida animal e que renascia periodicamente.32 Apesar da tradição sobre a participação das mulheres, como outras tradições relativas à vida de Pitágoras, não ter sido preservada por um autor contemporâneo, não há necessidade de supor que se trata de uma ficção biográfica. Os pitagóricos originais viviam juntos em comu- nidades muito unidas, cumprindo uma disciplina rigorosa, que se estendia a questões alimentares, roupas e os momentos adequados para se envolver em relações sexuais. Sob tais circunstâncias, era obrigatório que ambos os sexos entendessem as doutrinas (ver cap. 1). Tanto as pitagóricas como as neopitagóricas devem ter lido filosofia ou participado de aulas, palestras ou discussões informais. Dizem-nos que Pitágoras se dirigiu diretamente às mulheres de Crotona. Com o fun- dador criando esse precedente, não há razão para duvidar que as mulheres foram incluídas entre os pitagóricos e os neopitagóricos, que preservaram as tradições anteriores. Quando escrevi pela primeira vez sobre mulheres filósofas e escritoras, há uns 35 anos atrás, às ve- zes apresentei minhas opiniões, sabendo que alguns críticos se recusariam a ser persuadidos. Ainda estava na moda teorizar que os trabalhos atribuídos às autoras eram pseudônimos e que os autores tinham que ser do sexo masculino. Eruditos respeitados como Martin West continuaram a tradição, remontando a Richard Bentley. Como mencionei, Bentley descartou sumariamente a ideia de que as mulheres poderiam ter escrito os tratados neopitagóricos atribuídos a elas e, da mesma forma, West argumentou que Erinna não poderia ter escrito a poesia que circulava em seu nome. Desde então, pesquisas sobre a alfabetização das mulheres confir- maram que as mulheres poderiam muito bem ter escrito trabalhos publicados sob seus nomes.33 Assim, em- bora existam muitas incertezas sobre onde e quando as mulheres neopitagóricas (e homens) escreveram suas cartas e outras prosas, há pouca dúvida de que as mulheres helenísticas poderiam ter escrito tais obras e que as mulheres pitagóricas serviram de modelo para elas.

32 Burkert (Loreand Science, 115n 38) não observa que Dicaearchus (ap. Porph. Plot. 19) afirma que o conteúdo dos discursos de Pitágoras era desconhecido, mas ele é impreciso, pois Dicaearchus apresenta alguns dogmas. 33 Ex. Sarah B. Pomeroy, “Technikai kai Mousikai: The Education of Women in the Fourth Century and in the Hellenistic Period”, AJAH 2 (1977), p. 51–68; Susan Guettel Cole, “Could Greek Women Read and Write?” [As mulheres gregas poderiam ler e escre- ver?”] Women’s Studies 8 (1981), p. 129-55, re-impresso em Reflections of Women in Antiquity, ed. Helen Foley (Londres, 1981), 219–45; Rowlandson, Women and Society in Greek and Roman Egypt, 14, 119, 225, 281, 285; e ver cap. 4 [deste livro de Sarah Pome- roy]. 40 Tradução parcial do livro “Pitagorian women: their history and writings”

Fonte: POMEROY, S. B. Pythagorean women: their history and writings. Baltimore (Md.): The John Hopkins University Press, 2013, Cap. 5.

Tradução realizada por Ilze Zirbel

As cartas e tratados das mulheres neo-pitagórico no Leste

[p. 66:] [Observações gerais do capítulo referente às fontes utilizadas] [Nesse capítulo e no capítulo 6] A versão grega dos textos [das pitagóricas] é citada [do jeito que foi] publicada nos “Texts” de Thesleff, seguida pela página e os números de linha. Referências [à obra de] a Hercher são relativas ao monumental R. Hercher, Epis- tolographi Graeci.1As cartas de Melissa, Mya e Teano II também foram publicadas em Alfons Städele, Die Briefe des Pythagoras und der Pythagoreer.2 Städele mostrou que os manuscritos apresentam as cartas em sequências variadas. Thesleff organizou os textos alfabeticamente, pelos nomes das autoras. Os textos são apresentados aqui cronologicamente por autor, seguindo a datação de Thesleff.3 Uma vez que há provas de que os textos viajaram através do seu lugar de origem, um arranjo cronoló- gico vai revelar qualquer influência das primeiras autoras sobre as últimas. As traduções citadas em Waithe, Women Philosophers, são de Vicki Lynn Harper. Quaisquer pequenas mudanças na tradução de Harper são indicadas em itálico.4 Eu tomei a liberdade de substituir por outras palavras inglesas para [a palavra] “pecado” ( hamartano, hamartia [no grego]) por que a palavra é anacrônica e enganosa. Stobaeus é citado de C. Waschs- muth e O. Hense, Ioannis Stobaei: Anthologium.5 As referências introduzindo passagens particulares nos Comentários fazem referência aos Textos de- Thesleff e à tradução para o inglês. Comentários filosóficos posteriores sobre muitas das cartas no Capítulo 5 e 6 aparecem no Capítulo 7, abaixo.

Teano I “On Piety” (Sobre a piedade), [Fonte:] Thesleff,Texts , p. 195. Tradução de Sarah B. Pomeroy.

Introdução

Teano I foi a esposa de Pitágoras (ver Capítulo 1), enquanto que Teano II foi uma Neopitagórica, ou vá- rias neo-pitagóricas chamadas de Teano, cujas palavras foram coletadas sob a rubrica Teano II. Aparentemente a hipótese de que mais de [p.67:] uma autora mulher emprestou o nome [de] Teano se dá pelo grande número de textos existentes dela; ninguém detectou nenhuma diferença de estilo ou conteúdo entre elas. Thesleff co- menta que as datas das declarações atribuídas a Teano I são indeterminadas e ele data alguns desses escritos ou apotegmas [ditos/ditados] no quarto ou terceiro século antes de Cristo.6 Apotegmas de Teano I foram citados 7 em 300 a.C. Essas ‘palavras boas’ [os ditados] poderiam ter sido citações autênticas, uma vez que Diógenes La- 8 ertius relata que Teano escreveu algumas coisas. Teano viveu no tempo de algumas mulheres gregas altamente

1 R. Hercher, Epistolographi Graeci (Paris, 1873, repr. Amsterdam, 1965), esp. pp. 602–8, incluindo textos gregos e traduções lati- nas. 2 Alfons Städele, Die Briefe des Pythagoras und der Pythagoreer. Beitrage zur Klassischen Philologie, Heft 115 (Meisenheim am Glan, 1980). Städele discute os manuscritos em detalhes, mas para críticas, ver P. Haun . p. 8–9. 3 Thesleff, Intro., p. 113–15, e ver cap. 3, acima. 4 Melissa não é mencionada em Waithe, Women Philosophers. 5 C. Wachsmuth e O. Hense, Ioannis Stobaei: Anthologium, 5 vols. (Berlin, 1884–1912). 6 Thesleff,Intro ., 113, e ver cap. 3, acima. 7 Thesleff, Intro., p. 100–102, 106; Thesleff, Texts, p.194–95, menciona citações em Lucian, Amor. 30, Imag. 18–19; Schol. in Lucian, p. 124 (Rabe); e Euseb. Praep. evang. 10.14.14. 8 É sempre possível que Diógenes Laertius estivesse pensando em Teano II, mas veja o cap. 1. Burkert, Lore and Science, [ele] descreve “On Piety” em seu índice (535) como uma “carta apócrifa”, embora seja um tratado, não uma carta e (61) como “um documento 41 alfabetizadas, incluindo poetas líricas e sábias; foi dito que uma sacerdotisa instruiu Pitágoras e Cleobulina, filha do filósofo Cleobulus, que compôs enigmas em versos.9 As mulheres pitagóricas não são únicas que têm suas palavras citadas pelas gerações posteriores. Embora as mulheres atenienses fossem um grupo emudecido, as mulheres espartanas do período clássico eram incentivadas a falar [para o público] e foram citadas e seus ditos concisos foram coletados.10 Os espartanos eram famosos por suas excelentes memórias: por exemplo, eles não tinham um código de direito escrito porque todos conheciam as leis de cor. Os escritos de Teano abrangem uma ampla gama de assuntos, incluindo moralidade humana, etiqueta adequada, conduta diária e estrutura numérica do universo.11 O fragmento a seguir mostra que, em sua ênfase na matemática, o pitagorismo é se- melhante ao platonismo.

Tradução

“Eu prendi que muitos gregos pensam que Pitágoras disse que tudo é criado [a partir] do número. Esta afirmação em si mesma levanta uma questão. Como pode o que não existe [aquilo que não existe] pensar e reproduzir? Mas ele não disse que tudo deriva do número, mas tudo é gerado de acordo com número, que a ordem primária está no número. Ao fazer parte dela [da ordem primária], o primeiro e o segundo, e o restante que segue, são a ordem para as coisas que são contadas.”

Comentário

Pitágoras observou que as mulheres eram especialmente piedosas: daí, talvez, o título do tratado de Teano. O fragmento existente, no entanto, trata de outra característica fundamental da doutrina pitagórica. Acreditava-se popularmente que Pitágoras considerava ‘número’ a origem de tudo o que existe. W. Emmanuel Abraham, referindo-se à Metafísica de Aristóteles, explica: “As coisas são construções ônticas, não agregados numéricas; como criaturas ônticas, elas existem através de relações de números e de conformidade com essas relações.”12 Aristóteles, no entanto, que não acreditava que as mulheres eram capazes de filosofar, aparentemen- te não tinha lido o texto de Teano ou o ignorou, pois relatou: [p. 68:] “Os chamados pitagóricos, que foram os primeiros a abordar a matemática, não apenas fizeram avançar este [tipo de] estudo, mas também, tendo sido criados [formados] nele, acreditavam que seus princípios [os da matemática] eram os princípios de todas as coisas. Como esses princípios [uma vez que, de acordo com esses princípios os] números são, por natureza, os primeiros, e em números eles parecem ver muitas semelhanças com as coisas que existem e passam a exis- tir - mais do que no fogo, na terra e na água (tal e tal uma modificação de números sendo justiça, outra sendo alma e razão, outra sendo oportunidade - e similarmente quase todas as outras coisas sendo numericamente expressáveis); visto que, novamente, eles viram que as modificações e as proporções das escalas musicais eram expressáveis em números; - desde então, todas as outras coisas pareciam ser, em toda a sua natureza, modela- das em números [pautadas nos números], e os números pareciam ser as primeiras coisas no todo da natureza, eles supuseram os elementos dos números sendo os elementos de todas as coisas, e o céu inteiro uma escala musical e um número.”13 [comentário de] Thesleff,Textos , p.195, linhas 13-14. “Como pode o que não existe”. Burkert observa a notável ideia de que o número não existe e argumenta que equacionar “ser e ser corporal” sugere uma data curioso, atribuído a Teano, que geralmente era conhecida como a esposa de Pitágoras.” Mas ele continua argumentando que foi escri- to após Aristóteles como uma polêmica. “E quem está qualificado para oferecer exegese autêntica, senão a própria esposa e estudante de Pitágoras?” Assim Burkert mina seu argumento pelo uso do nome Teano como pseudônimo, referindo-se a Teano I como um filósofo que os filósofos posteriores consideraram uma autoridade sobre o pitagorismo. Waithe, Women Philosophers, p.12–15, aceita Teano I como autora dos textos publicados em seu nome. 9 Diogenes Laertio 1.89, p.91, e ver cap. 1, acima. 10 Ver ex: as citações de Gorgoin Herod. 5.51, e Plut., Sayings of Spar tan Women, e ver Pomeroy, Spartan Women, 52–53, 153, e passim. 11 Arignote também discute o “número”: ver cap. 6, abaixo. 12W. Emmanuel Abraham, “Did the Pythagoreans Use Recursive Definitions and Functions?” inPythagorean Philosophy, ed., K. I. Boudouris (Athens, 1992), 11– 21, esp. 15. 13 Arist. Metaph. 1.5, trans. W. D. Ross. http://classics.mit.edu/Aristotle/meta physics.1.i.html. Carl Huffman (“The Pythgorean Tra- dition,” in The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy, ed. A. A. Long [Cambridge, 1999], p. 66–87, esp. 82) argumenta que nesta passagem Aristóteles interpreta mal as visões expressadas pelo pitagórico (meados do séc. V a.C) sobre números.

42 helenística e um desacordo com Aristóteles.14 Se a hipótese de Burkert estiver correta, essa passagem não deve ser atribuída a Teano I, esposa de Pitágoras, mas a alguma Teano posterior.

Teano I. Apotegmas, tradução Sarah B. Pomeroy

Apotegma:

“Se a alma não é imortal, então a vida é verdadeiramente um banquete para os malfeitores que morrem depois de se comportarem de maneira iníqua.”15

Comentário

Esse apoptegma parece ser dirigido contra filósofos que duvidavam da existência da vida após a morte, incluindo Demócrito (séc. 5 a. C.) e sua teoria atomista. Os pitagóricos acreditavam na imortalidade da alma e na transmigração da alma após a morte para um destino apropriado à vida que havia sido vivida. Assim, uma pessoa que viveu uma vida desordenada e amoral pode renascer como uma fera/besta promíscua. Aqui Teano considera a ordem do mundo não como conceitos numéricos, mas em termos morais antropocêntricos.

Apotegma:

“Há coisas que é bom discutir; sobre essas coisas, é vergonhoso ficar calado. Há também coisas que é vergo- nhoso discutir; sobre essas coisas, é preferível ficar calado.”16

[p.69:] Comentário

Teano também podia oferecer conselhos práticos para o cotidiano.

Apotegma:

É melhor andar a cavalo sem rédeas do que ser uma mulher que não reflete.17

Comentário

“Cavalo”: em sua carta abaixo, Fintys de Esparta considera a possibilidade de uma mulher andar a ca- valo. “que não reflete”: Teano também falou da necessidade de uma mulher ser pensativa [fazer reflexões]. Que a alma não tem sexo e que as mulheres podem ser tão racionais quanto os homens é um tema que se repete nos escritos das mulheres neopitagóricas.

Apotegma:

Ao ser perguntado o que é amor (eros), Teano disse que é uma condição de “uma alma desocupada”.18

14 Burkert, Lore and Science, 61n52, cita incorretamente o texto grego como linha 12. 15 Clem. Al. Strom. iv.7 = Thesleff,Texts , 201.6–9. For other Apotegmas of Teano I, ver cap. 1 e Thesleff,Texts , p. 194–95. 16 Meunier, fr.3, p.41, de A. Meineke, ed., Stobaeus, vol.4, Florilegium Mon cense (Leipzig, 1856), 289, nr. 269. 17 Stobeus (Meineke), 4: 289, nr. 268. Não está além do campo de possibilidade que a própria Teano experimentou andar a cavalo em fuga. Cloelia, uma heroína lendária do início de Roma, que havia sido tomada como refém pelos etruscos no século VII ou VI aC, era retratada nos tempos históricos a cavalo como uma forma especial de honra: Livy, 2,13. Para mulheres dirigindo carruagens, veja o cap. 2 acima. 18 Stobeus (Meineke), 4: 290, nr. 270. 43 Comentário

Em outras palavras, paixão e desejo não afligirão aqueles que estão ocupados pensando em pensamen- tos virtuosos. Que eros pudesse causar irracionalidade e perda de controle pessoal era uma ideia tradicional da Grécia. Safo havia escrito: “Eros, afrouxador de membros, me coloca em turbilhões [me faz girar]”,19 e “Estou apaixonada! Não estou apaixonada! / Estou louca! Não estou louca!”20 Essa forma de pensar/conceituar, no entanto, não impediu Teano de aprovar a atração sexual dentro do relacionamento conjugal (ver cap. 1).

Perictione I: “Sobre a mulher harmoniosa” [Fontes:] Thesleff,Textos , p. 142–45, Stobaeus 4, p. 688-93, p. 631-32, trad. Flora R. Levin.21

Introdução

Thesleff identifica o dialeto [do texto] como iônico com alguns doricismos. Ele também descobre que um autor [a?] chamado Perictione usa um “dórico bastante consistente” em “On Wisdom” (Peri Sophias [em grego])22 e, portanto, conclui que havia duas tradições para autores chamados Perictione. “Sobre a mulher harmoniosa” foi escrito no leste do quarto ao terceiro século a.C., e “Sobre a sabedoria” do terceiro ao segundo século a.C., no oeste.23 O texto anterior foi dirigido às mulheres, o tratado posterior foi escrito para homens e mulheres. Essas autoras são referidas neste livro como Perictione I e Perictione II. Thesleff data Perictione I do quarto ao terceiro século [a.C.] [p.70:] e acredita que a autora provavelmente foi a mãe de Platão.24 Mulheres atenienses de classe alta casavam-se na puberdade e poderiam ser mães aos quinze anos. Como Platão nasceu por volta de 429 a.C., se sua mãe viveu tanto quanto ele, ela poderia muito bem ter escrito textos filosóficos até o segundo trimestre do quarto século; essa hipótese é consistente com a data anterior de Thesleff. Perictione seria, assim, a primeira mulher ateniense a escrever não apenas um texto filosófico existente, mas também um texto de literatura existente. Ela pode ter sido influenciada por filósofos da diáspora pitagórica em Atenas ou pelo próprio Platão, que visitou a Sicília e Taranto, onde era amigo do governante pitagórico Archytas.25 A jul- gar simplesmente pelas suas idades respectivas, é provável que Perictione I escreveu seu ensaio antes de Platão escrever seus diálogos. Algumas mulheres da classe alta no período clássico eram alfabetizadas. Por exemplo, no Oeconomicus de Xenofonte (9.10), a esposa do rico Ischomachus mantém os arranjos domésticos.26 Para filósofas como predecessoras, não precisamos procurar muito longe [pois há] Aspasia, Diotima, Lastheneia e Axiothea no círculo e nas obras de Platão. Ao citar Perictione em tão grande ênfase, Stobaeus pode estar prestando homenagem à mãe de Platão. Por outro lado, o nome Perictione era um nove óbvio para um neopi- tagórico dar a uma filha, pois Platão tinha ligações com o pitagorismo e, como Pitágoras, tinha pupilas/alunas (ver cap. 1 e Teano II para Rhodope, abaixo). Mesmo que a identidade de Perictione I seja incerta, é pelo me- nos claro que ela não é a mesma mulher que a posterior Perictione, que escreveu “Sobre a Sabedoria” (ver cap. 6).27A histórica Perictione nasceu em uma família muito rica e depois se casou bem; assim, suas preocupações com adornos luxuosos e joias caras refletiriam sua experiência pessoal e a de seu público de elite. Ao [mesmo tempo que] criticar cosméticos e trajes extravagantes e sedutores, ela acredita que mulheres harmoniosas po- dem tomar banho e usar adornos e roupas atraentes de forma moderada [em moderação]. Aparentemente, ela não era uma das mulheres pitagóricas desalinhadas retratadas na comédia ateniense (ver cap. 4). Neste texto, Perictione I aborda ética, religião, vestuário, adultério, política, família e filosofia: esses tó- picos serão recorrentes em muitos dos textos escritos posteriormente pelas mulheres neopitagóricas. Ela adap- ta a teoria pitagórica à vida das mulheres casadas, pois seu tratado não é teórico, mas prático, com objetivos que poderiam ter sido alcançados pelas mulheres no século IV [a.C.] e no período helenístico. Apesar de sérias provocações, a mulher harmoniosa exercitará o autocontrole, obedecerá aos pais e estará em paz consigo mes- 19 LP 130. 20 Page, PMG 428, trans. Anne Carson, Eros: The Bittersweet (Princeton, 1986), 8. 21 Originalmente publicado em: Pomeroy, Goddesses, Whores, Wives, and Slaves, p.134–36. 22 Thesleff, Intro., p. 17, 29, 77, 87. 23 Ibid., p. 111, p. 113, p. 115, e ver o cap. 6, abaixo para for Perictione II, “On Wisdom.” 24 Ver cap. 3, acima, e Waithe, Women Philosophers, p. 111. 25 Ver Carl A. Huffman,Archytas of Tarentum: Pythagorean, Philosopher, and Mathematician King (Cambridge, 2005). 26 Ver Pomeroy, Xenophon Oeconomicus, 283. 27 Prudence Allen, The Concept of Woman (Grand Rapids, MI, 1997), p. 142. 44 ma. Em tal condição, ela será parte integrante da ordem natural do universo e viverá a vida pitagórica. Harmo- dzo significa “eu me encaixo”, como um carpinteiro pode juntar peças; assim, passou a significar “acomodar”. Harmonia [p.71:] faz referência à junção entre duas partes de um todo e também conota “temperamento”, “mú- sica” e “ordem”.28 Em uma pessoa harmoniosa, a razão e as paixões estão em total equilíbrio e sintonia - como as cordas esticadas de um lira. Essa pessoa não é nem “tensa”, “largada” [negligente, preguiçosa, sem energia] ou “frouxa”. Em manter consonância com a metáfora musical, sophrosyne foi traduzido como “temperança”, mas também denota castidade e autocontrole. Tradicionalmente, sophrosyne era uma virtude das mulheres e, como tal, tinha a conotação de inibição, autocontrole e castidade, mas os pitagóricos e socráticos estenderam o significado para incluir ambos os sexos. Para Pitágoras,sophroysne não estava confinado à vida privada, mas também permeava todos os aspectos da existência humana (Iambl. VP 6.32, 27.132, 31.195). Os pitagóricos podem ter influenciado as visões de Platão sobre sophrosyne na esfera pública29 e as visões de Xenofonte sobre sophrosyne nas esferas pública e privada,30 e as visões desses dois socráticos, por sua vez, podem ter contribuído para as teorias neopitagóricas. Várias das cartas neopitagóricas se referem diretamente à sophrosyne como uma virtude em mulheres e homens, especialmente no contexto de casamento e educação (ver, por exemplo, Teano II para Eurídice, abaixo). Os três primeiros beneficiários da virtude de uma mulher (marido, filhos e lar) são tradicionais no pensamento grego. O único tipo bom de mulher listado na Diatribe contra as Mulheres de Semonides (7 a. AC) faz com que a “propriedade do marido cresça e aumente, e ela envelhece com um marido a quem ama e que a ama, [é] a mãe de uma família bonita e respeitável.”31 Que uma mulher possa receber elogios governando é uma idéia mais incomum, talvez inspirada por rainhas contemporâneas [à eles e da região] da Macedônia, ou por monarcas mulheres de tempos mais antigos, por exemplo, Artemísia I, ou (menos provável por causa da cronologia postulada logo acima) pelas guardiãs [na obra de] Platão, A República [livro] 5. Deve-se observar, por outro lado, que Fintys, membro do grupo ocidental dos neopitagóricos, declarou que as mulheres não de- veriam participar do governo (ver cap. 6). Os dois fragmentos deste tratado são apresentados na ordem em que são impressos nos Textos de Thes- leff. Eles não são registradas em uma ordem contínua em Stobaeus (antólogista do séc. 5 a.C.), onde, de fato, o Fragmento II precede o Fragmento I. Stobaeus cita o Fragmento II em seu capítulo sobre os deveres para com os pais (hoti chre tous goneis tes kathekouses times) e o Fragmento I, em seu capítulo sobre administração de residências ou propriedades (Oikonomikos). Como o Fragmento I termina com um clímax pitagórico, há uma forte possibilidade de que constitua a última parte do tratado e que o Fragmento II tenha feito parte do tratado um pouco antes.

Tradução

Devemos considerar a mulher harmoniosa como aquela que é bem dotada de sabedoria e autocontrole. Pois sua alma deve ser muito sábia quando se trata de virtude [p. 72:] de modo que ela seja justa e corajosa [lit., “viril”, andreie] enquanto é sensata e embelezada com a auto-suficiência, desprezando a opinião vazia. Pois, a partir dessas qualidades, ações justas acumulam para uma mulher, tanto para ela mesma como para seu ma- rido, filhos e lar; e possivelmente [por sorte] até mesmo para a cidade, se, na verdade, essa mulher governasse cidades ou pessoas, como vemos no caso de uma monarquia legítima. Certamente, por controlar seu desejo e paixão, uma mulher se torna devota e harmoniosa, resultando em que ela não se torne presa de casos de amor ímpios. Em vez disso, ela será cheia de amor pelo seu marido e filhos e toda a sua casa [seu núcleo familiar]. Pois todas essas mulheres que desejam ter relações extraconjugais [lit., “camas alheias”] tornam-se inimigas de todos os homens libertos e [os/as?] domésticos da casa. Essa mulher maquina [inventa] ambos: falsidade e dolo [fraude/engano] para seu marido e conta mentiras contra qualquer um, para ele [o marido] inclusive, de modo que ela sozinha pareça se sobressair na boa vontade e no domínio do núcleo da casa/familiar, embora ela se revele em ociosidade. Pois de todas essas atividades vem a ruína que afeta em conjunto a mulher e o marido.

28 LSJ, s.v. harmodzo and harmonia, e ver Vicki Lynn Harper “Aristotle and the Late Pythagorean Women Periktione and Teano,” in An Unconventional History of Western Philosophy, ed. Karen J. Warren (Lanham, MD, 2009), p. 63–91, especialmente p. 88. 29 Ver Helen North, Sophrosyne: Self-Knowledge and Self-Restraint in Greek Literature (Ithaca, NY, 1966), p.235–37. 30 Ver Xenofonte. Oeconomicus p. 7.13, e Pomeroy, Xenophon Oeconomicus, p. 275. 31 Diehl, fr. 7. 45 Assim, deixe que estes preceitos sejam pronunciados diante das mulheres de hoje. No que diz respeito ao sustento e às exigências naturais do corpo, ele deve receber uma medida adequa- da de roupas, banho, unção, penteado e todos aqueles itens de ouro e pedras preciosas que são usados como adorno. Para as mulheres que comem e bebem todos os tipos de pratos extravagantes e se vestem suntuosa- mente, vestindo coisas que as mulheres recebem para vestir, são enfeitadas para seduzir na direção de todo tipo de vício, não apenas para a cama, mas também para o cometimento de outras ações ilícitas. E assim, uma mulher deve meramente satisfazer sua fome e sede, e se ela é da classe mais pobre, seu calafrio [frio], se ela tem uma capa feita de pele de cabra. Ser consumidor de bens de terras longínquas ou de itens que custam uma grande quantia de dinheiro ou que são altamente estimados não é, manifestamente, um vício pequeno. E usar vestidos que são excessivamente estilosos e sofisticadamente tingidos de roxo ou outra cor é uma indulgência tola em extravagância. Pois o corpo deseja apenas não estar frio ou, pelo bem das aparências, nu; mas não pre- cisa de mais nada. A opinião dos homens corre atrás de inanidades e esquisitices. Portanto, uma mulher não se cobre nem de ouro ou pedra da Índia ou de qualquer outro lugar, nem trança os cabelos com artefatos de arte; nem se ungirá com perfume árabe; nem colocará maquiagem branca no rosto ou avermelhará suas bochechas ou escurecerá suas sobrancelhas e cílios, ou pintará artisticamente seus cabelos grisalhos; nem ira banhar-se muito. Pois, ao perseguir essas coisas, a mulher procura fazer um espetáculo da incontinência feminina. A be- leza que vem da sabedoria e não dessas coisas traz prazer às mulheres que são bem nascidas. Deixe uma mulher não pensar [ou: que uma mulher não pense] que nobres nascimentos e riquezas, ser proveniente de uma grande cidade, ter a estima e o amor de homens ilustres e da realeza, são necessida- des. Pois se uma mulher está bem, ela não tem do que reclamar; se não está, não [p.73:] faz por ansiar/desejar. Uma mulher inteligente não é impedida de viver sem esses benefícios. Mesmo se as atribuições sejam grandes e maravilhosas, não deixe a alma esforçar-se por elas [empenhar-se nessa direção], mas afaste-se delas. Pois fazem mais mal do que bem quando alguém arrasta uma mulher para dentro de problemas. Traição, malícia e despeito estão associados a eles, de tal maneira que uma mulher tão dotada nunca poderia ser serena. Uma mulher deve reverenciar os deuses se ela espera ter felicidade, obedecendo às leis e instituições ancestrais. E nomeio entre (os deuses), [também os] seus pais, a quem ela deve honrar e reverenciar. Pois os pais são, em todos os aspectos, equivalentes aos deuses e eles agem no interesse de seus netos. Uma mulher deve viver para o seu marido e de acordo com a lei e na atualidade [na realidade?], não tendo pensamentos pri- vados para ela mesma, mas cuidando do seu casamento e protegendo-o. Pois tudo depende disso. Uma mulher deve suportar tudo o que o marido suporta, seja ele azarado ou age errado por ignorância, esteja ele doente, bêbado ou dormindo com outras mulheres. Uma vez que este último erro é peculiar aos homens, mas nunca às mulheres. Pelo contrário, traz vingança sobre ela. Portanto, uma mulher deve preservar a lei e não imitar os homens. E ela deve suportar seu temperamento, mesquinhez, reclamação, ciúme, abuso e qualquer outra coisa peculiar à natureza dele. E ela lidará com todas as características dele de uma maneira que seja agradável para ele, usando de discrição. Pois uma mulher que é carinhosa para com o seu marido e o trata de maneira agradá- vel, é uma mulher harmoniosa e uma [mulher] que ama toda a sua família e torna todos nela bem dispostos. Mas quando uma mulher não tem amor dentro dela, ela não tem desejo de velar por seu lar, filhos ou escravos ou pela segurança deles, mas anseia para eles que sejam levados à perdição, como faria um inimigo; e ela reza para que o marido morra como se ela faria com um inimigo, odiando todo mundo que o agrada, apenas para poder dormir com outros homens.

Assim, acho que uma mulher é harmoniosa se estiver cheia de sagacidade e temperança. Pois ela não apenas ajudará seu marido, mas também seus parentes, escravos e toda o ambiente familiar, onde residem todos os seus bens e seus queridos parentes e amigos. Ela conduzirá o seu lar com simplicidade, falando e ouvindo pa- lavras justas e mantendo pontos de vista sobre o modo comum de vida deles, que são compatíveis, enquanto atua em conjunto com os parentes e amigos que o marido preza/exalta. E se o seu marido acha que algo é doce, ela também pensará assim; ou se ele achar algo amargo, ela concordará com ele. Caso contrário, ela estará desafinada com todo o seu universo.

Comentário

Thesleff,Textos, p. 142, linha 20. “Corajoso” [lit. “Viril”, andreie] . Nos trabalhos de filósofos socráticos 46 radicais, incluindo Xenofonte e Platão, [p. 74:] as mulheres podem compartilhar traços e virtudes masculinas. Veja abaixo em Teano II para Euboule (Thesleff, Textos, p. 196.17), cap. 6; abaixo sobre Fintys; Platão, Resp., Especialmente livro 5; e Jeremy McInerney, “As mulheres viris de Plutarco”, em Andreia: Studies in Manness and Courage in Classical Antiquity, ed. Ralph M. Rosen e Ineke Sluiter (Leiden, 2003), p. 320–44, especialmente p. 323-24. Thesleff, Textos, p. 142. Linhas 24 - p. 143, linha 1. “Uma mulher deveria governar cidades ou pessoas, como vemos no caso de uma monarquia legítima”. Na República de Platão, mulheres e homens da classe dos guardiões recebem a mesma educação e não há diferença de gênero na psique (alma). Portanto, teoricamente, o estado pode ser governado por um rei ou rainha filósofos. Perictione I também estaria ciente de rainhas his- tóricas, incluindo Artemísia I e II, que governavam seus reinos na periferia do mundo grego. Thesleff,Textos, p.143, linha 5. “Inimigos de todos os libertos e domésticos da casa.” As lealdades de escravos e libertos seriam comprometidas, pois sabiam do adultério e seriam forçadas por sua senhora a mentir para seu senhor. Thesleff,Textos, p. 143, linha 10. “Uma medida adequada de. . . banho,” p.143, 26; “Tomar muito banho.” Antes dos grandes banhos [públicos] construídos pelos imperadores romanos para a população em geral, os homens gregos tomavam banho no ginásio. Os banhos de imersão para mulheres eram um luxo, exigindo os serviços dos escravos para buscar e esvaziar a água [da banheira] e o combustível para aquecê-la, e exigindo que a banhista tivesse uma banheira e desfrutasse de tempo de lazer suficiente para banhar-se e relaxar em seguida. Assim, de acordo com Ateneus (12.519e), os sibaritas tinham banheiras que lhes permitiam se esticar. Em contrapartida, os pitagóricos desencorajavam o consumo conspícuo, bem como os sentimentos sensuais, sexuais e sedutores que o banho poderia despertar. Havia precedentes para banhos luxuriosos para as neopitagóricas no oeste e no leste. Banhos de imer- são e de quadril [hipbath] foram escavados na Magna Grécia a partir do final do século IV a.C. e no continente grego a partir do século V a.C.32 Banhos luxuosos também foram encontrados em residências particulares no Egito ptolomaico.33 Em Alexandria, a riqueza e a imaginação das mulheres ptolemaicas permitiram-lhes inven- tar abluções extravagantes como os fabulosos banhos de leite de Cleópatra VII. Os pitagóricos se preocupavam com a limpeza. Fintys enfatiza a importância de lavar [se] com água e usar roupas limpas (ver cap. 6, abaixo). Myia aconselha Fyllis a impedir que a enfermeira banhe o bebê com muita frequência por causa do efeito enervante. Ver cap. 6, abaixo, Thesleff,Textos , p.123.31–32. Essas referências ao banho excessivo são evi- dências adicionais do alto status econômico das mulheres neopitagóricas. [p.75:] Thesleff, Textos, p. 143, linhas 18–19. “Tingido de roxo” [literal: “Mergulhado em corante do ma- risco”]. O corante roxo foi feito a partir de uma veia de certos mariscos. O processo foi inventado pelos fenícios: daí o corante era conhecido como roxo de Tirio [ou Tiro, o nome da cidade fenícia]. Assim como ouro, pedras preciosas e perfume, mencionados mais adiante neste parágrafo, o roxo era extremamente caro e, portanto, um símbolo de poder, luxo e até decadência. No mundo greco-romano, o roxo era usado por pessoas de alto status, especialmente a realeza, e por crianças romanas nascidas livres (ver Plínio HN 9.60–63). Thesleff,Textos, p. 144, linhas 9-10. “Uma mulher deve viver para o marido e de acordo com a lei e na realidade, não tendo pensamentos particulares, mas cuidando do casamento [literal: da “Cama”] e guardá-lo.” Plutarco (Con. Praec. 14) aconselha: uma esposa não deve ter sentimentos próprios, mas [deve] compartilhar a seriedade e o esporte do marido, a ansiedade e o riso dele. Observamos, no entanto, que a ênfase de Perictione está na fidelidade sexual, enquanto Plutarco está interessado na harmonia emocional no casamento. No século V a.C., Sófocles, Édipo fr. 909 (Nauck, 2d ed = 545A em Tragicorum Graecorum Fragments, ed. Kannicht), es- crevera: “Também é agradável, se o marido teve alguma experiência ruim, que uma esposa faça uma cara triste e se junte a ele para compartilhar suas dores e prazeres. [lacuna] Você e eu - quando você sofrer, ficarei contente em sofrer com você.” Ambas as passagens são claramente consistentes com o status quo no mundo patriarcal da Grécia, que resistiu, apesar de algumas mudanças significativas no status e na educação das mulheres, no pe- ríodo helenístico. Passagens paralelas como esta sobre uma esposa sem pensamentos particulares não podem ser usadas para argumentar que Perictione I e Plutarco eram contemporâneos. 32 Fikret Yegul, Bathing in the Roman World (Cambridge, 2010), p. 43. 33 René Ginouves, Balaneutiké (Paris, 1962), p. 179–80, e J. Delaine, “Some Observations on the Transition from Greek to Roman Baths in Hellenistic ,” Mediterranean Archaeology 2 (1989): p. 111–25, especialmente p. 115, 121, 125. 47 Thesleff,Textos, p. 144, linhas 12-14. “Pois este último erro é peculiar aos homens, mas nunca às mulhe- res. . . . e não imite os homens.” Perictione I é a primeira escritora da literatura ocidental a reconhecer o duplo padrão, a visão de que as relações sexuais anteriores ou externas ao casamento são permitidas para homens, mas não para mulheres. As mulheres são ensinadas a perpetuar o duplo padrão: a vida está acabada para a mulher que cometeu adultério. A esposa deve fazer a escolha de suportar o comportamento desarmônico de um marido, a fim de preservar a harmonia em seu casamento. Nomos pode se referir ao costume ou à legisla- ção: nas sociedades patriarcais - onde os homens fazem as regras -, o costume e a lei conspiram para aprovar a castidade apenas para mulheres respeitáveis e para permitir que os homens sejam sexualmente poliginosos. A prostituição serviu como uma instituição que preservava a castidade de mulheres respeitáveis, ao mesmo tempo que permitia a liberdade sexual dos homens.34 Pitágoras, no entanto, defendia um padrão estrito de monogamia para mulheres e homens casados e exigia que os homens parassem de se associar com mulheres com quem [p.76:] não eram casados. (ver cap.2). Ao restringir seus próprios desejos sexuais e ciúmes quando o marido é escravo do apetite lascivo, a esposa mostra mais virtude do que ele e mostra-se uma pitagórica mais fiel. Thesleff,Textos, p. 143, linhas 22–23. “Pedra da Índia. . . Perfume árabe”. Heródoto (3.107) escreveu que a Arábia era o único país onde crescia incenso, mirra, cássia, canela e ladanum (resina de rocha). Mesmo depois das campanhas de Alexandre no Oriente, a idéia de que os aromáticos foram encontrados apenas na Arábia sobreviveu.35 Thesleff,Textos, p. 145, linhas 5-6. “Caso contrário, ela estará desafinada com todo o seu universo” (anarmonios). Perictione termina com um típico sphragis pitagórico [uma espécie de assinatura, um dispositi- vo literário usado no início ou fim de um poema ou texto], uma referência à [falta de] harmonia.

Perictione I. “Sobre a mulher harmoniosa”, fragmento 2. [Fontes:] Thesleff,Textos , p.145-46, Stobaeus. 4.25.50, p. 631–32.

Introdução

O cuidado com os pais era algo tradicional na sociedade grega e até codificado em Atenas pelas leis de Sólon.36 Em Esparta, prevaleceram as mesmas opiniões, como fica claro na anedota sobre homens mais jovens dando seus assentos para idosos, mas não para solteiros, porque um solteiro não produziria filhos que, por sua vez, se levantariam para os mais velhos (Plutarco, Sayings of Spartans, p. 227, linha 14; Lyc. p.15, linha 2). Não havia instituições estatais nem instituições de caridade privadas estabelecidas para cuidar dos idosos; de fato, um grande incentivo para gerar filhos era que eles cuidariam dos pais quando envelhecessem. Pitágoras havia aconselhado seus discípulos a respeitar e obedecer aos pais (ver cap. 2). As migrações dos próprios pitagóricos, no entanto, provavelmente separaram muitos de suas extensas redes de parentesco. Por isso, foi necessário reafirmar o princípio de que os adultos devem obedecer e cuidar de seus pais. Para os filhos, cuidar dos pais era [algo] tradicional. Que uma filha era obrigada a cuidar de seus pais também pode ser atribuída às convulsões sociais da Guerra do Peloponeso e às migrações subsequentes, durante as quais houve menos restrições às mulheres do que as que estavam em vigor anteriormente, bem como ao alto status econômico e social de algumas mulheres, o que lhes permitiu cuidar de seus próprios pais.37 De fato, se essa Perictione era a mãe de Platão, ela pode ter se inspirado a escrever esta seção do tratado devido à sua própria experiência com os filhos. Perictione teve três filhos, incluindo Platão, e uma filha de Ariston, e outro [p.77:] filho quando ela se casou novamente após a morte de Ariston. Após a execução de Sócrates, Platão deixou Atenas. Ele viajou para a Sicília e a Magna Grécia três vezes e foi mantido refém por piratas. Nestes tempos tumultuados, especulamos que pelo menos a idosa Perictione pudesse recorrer à filha Potone, que se casara e se tornara mãe de Speusippus.

34 Ver: Keith Thomas, “The Double Standard,” Journal of the History of Ideas 20: (1959): p.195–216. 35 Ver Marcel Detienne, The Gardens of Adonis: Spices in Greek Mythology, trans. Janet Lloyd (Highlands, NJ, 1977), cap. 1. Publicado originalmente como Les Jardins d’Adonis (Paris, 1972). 36 Pomeroy, Families in Classical and Hellenistic Greece, p. 126. 37 Ver: ibid., p.12, 39, 118, 166, 184. 48 Tradução

Não devemos nem falar mal de nossos pais nem prejudicá-los, mas obedecer àqueles que nos geraram, tanto nos assuntos triviais quanto nos importantes e em todos os estados da alma e do corpo, em assuntos internos e externos, tanto na paz quanto na guerra, na saúde e na doença, na riqueza e pobreza, na fama e na obscuridade, sejam eles indivíduos privados ou funcionários públicos. É necessário acompanhar e nunca abandoná-los, mas obedecê-los mesmo no ponto da loucura [quando enlouquecem, na velhice]. Tal conduta é considerada sábia e honrada por pessoas piedosas. Se alguém deveria ter desprezo por seus pais, planejando qualquer tipo de mal em particular, sua con- duta errada é registrada pelos deuses, esteja [essa pessoa que fez o mal aos pais] viva ou morta. As pessoas a odiarão, e ela será para sempre ferida/prejudicada por males com os ímpios no lugar deles [junto deles] sob a terra em nome das justiças e dos deuses abaixo [do mundo subterrâneo], que são designados para supervisio- nar esses assuntos. Divina e bela é a visão dos nossos pais, assim como a reverência e o cuidado deles, tão grande quanto a visão do sol e de todas as estrelas que o céu veste e gira, e qualquer outra coisa que alguém considere algo maior de ver. Parece-me que nem os deuses ficam bravos quando veem isso acontecer [essa reverência voltada aos pais]. É necessário reverenciá-los quando estão vivendo e quando partiram e nunca murmurar contra eles, mesmo quando se comportam sem sentido por causa de doença ou engano, mas exortá-los e ensiná-los e de modo algum os odiar. Não há maior erro e injustiça entre os seres humanos do que não reverenciar os nossos pais.

Teano II para Euboule [Fontes:] Thesleff,Textos , p.195–97, Hercher, 603, n. 4, Theodoret,De Vita Pitá- goras (1598), p. 163-65, trad. Vicki Lynn Harper, em Waithe, Women Philosophers, p.42–43.

Introdução

Esta carta foi escrita em koine Atico. O conselho é consistente com os ensinamentos de Pitágoras so- bre educação dos filhos (Iambl. VP 51, p.201–4; Myia para Fylisis, cap. 6, abaixo; e veja o cap. 2). Também é consistente com as opiniões de outras [p.78:] escolas filosóficas e com idéias gregas tradicionais sobre a male- abilidade das crianças. O que falta aqui é o castigo corporal que os pais costumavam usar para disciplinar os filhos.38 Além disso, os pitagóricos são distintos em sua preocupação com mimar os filhos com conforto e luxo e demasiados. O consumo conspícuo e a abundância de bens materiais que os gregos encontraram em luga- res como a Alexandria helenística estavam em desacordo com os ideais pitagóricos. A maioria dos gregos em outros lugares e períodos não desfrutavam de um excesso tão grande que precisavam se preocupar com o fato de darem às crianças comida demais ou muitos banhos ou mantê-las aquecidas demais. Segundo Teano II, as crianças deveriam ser treinadas para serem pitagóricas, para se sentirem confortáveis com austeridade e para exercer autocontrole e temperança. Esta carta também reflete a influência do sistema educacional espartano na educação infantil pitagórica. Como o próprio Pitágoras, os espartanos históricos e a classe de guardiões da República de Platão (que reflete a prática espartana), as mulheres autoras neoptitagóricas não diferenciam me- ninos e meninas de maneira a dar às meninas uma educação inferior. O agogê [o rigoroso regime obrigatório de educação e treinamento imposto a todos os cidadãos espartanos] espartano foi revivido no período helenístico. Se Teano II era membro do grupo de neopitagóricos que moravam em Alexandria (ver cap. 3), ela pode até ter conhecido Cratesicleia, que era a mãe do rei espartano Cleomenes (r. 235 a.C). Os filhos de Cratesicleia e Cleomenes foram reféns dos Euergetes de Ptolomeu III e mortos por Ptolomeu IV (Plutarco Cleom. 38, e ver cap. 1). Em Atenas, as mães cuidavam das filhas até que deixassem a casa dos pais para se casar; mas as mães criaram filhos apenas até os sete anos de idade, quando entravam no círculo [das relações] do pai e eram en- tregues a tutores, pedagogos e parentes. Como em Esparta é enfatizada a contribuição da mãe pitagórica para a educação de seus filhos de ambos os sexos e sua contínua responsabilidade pelos adultos em que se tornam, esperaríamos que o papel da mãe seja discutido em uma carta de uma mulher para outra, mas é interessante

38 Ver: Mark Golden, “Pais, ‘Child,’ and ‘Slave,’ ” AntClass 54 (1985): p. 91–104. 49 notar que o papel do pai não é mencionado.

Tradução

Eu ouvi dizer que você está criando seus filhos no luxo. A marca de uma boa mãe não é dar atenção ao prazer de seus filhos, mas a educação com vistas à temperança. Preste atenção [cuidado] para que você não estar fazendo o trabalho de uma mãe amorosa, mas o de uma mãe adoradora [que idolatra os filhos, atuando de maneira não crítica]. Quando prazer e crianças são criados juntos, isso torna as crianças indisciplinadas. O que é mais doce para o infante do que o prazer familiar? É preciso ter cuidado, minha amiga, para que a educação dos nossos filhos não se transforme na queda\declínio deles. O luxo perverte a natureza quando as crianças se tornam amantes do prazer no espírito [delas] e no corpo, mentalmente com medo do trabalho e fisicamente fracos. Uma mãe também deve exercitar suas cobranças nas coisas que eles temem - mesmo se isso lhes cause alguma dor e angústia/sofrimento - para que não se tornem escravos de seus sentimentos, gananciosos por prazer e encolhidos de dor; antes, honrarão a virtude acima de tudo e poderão ambos: abster-se do prazer e suportar a dor. Não deixe que eles sejam saturados com alimentos/nutrição, nem gratificados em todos os seus prazeres. Essa falta de restrição na infância os torna desenfreados; permite que eles digam qualquer coisa e tentem tudo; especialmente se você se alarmar toda vez que eles gritam e sempre se orgulhar de suas risadas - sorrindo com in- dulgência, mesmo que agridam sua enfermeira/cuidadora ou insultem você - e se você insistir em mantê-los frescos de maneira não naturalmente [artificialmente] no verão e quentes no inverno, dando a eles todos os luxos. Crianças pobres não têm experiência dessas coisas; no entanto, elas crescem suficientemente. Elas não crescem menos e se tornam muito mais fortes. Mas você cuida de seus filhos como os descendentes de Sarmadapalus, debilitando suas naturezas masculinas com prazeres. O que alguém faria de uma criança que, se não come mais cedo, clama; que, sempre que come, anseia pelas iguarias mais deliciosas; que murcha no calor e derrubada pelo frio; que, se alguém encontrar falhas nela, revida; que, se alguém não atende a todos os seus prazeres, fica ofendida; que, se não mastiga algo [não está mastigando algo], fica descontente; que se comporta mal só por diversão e que “gagueja” sem viver de maneira articulada? Cuide, minha amiga - consciente do fato de que as crianças que vivem licenciosamente se tornam es- cravas quando crescem [entram para a idade adulta] – para [poder] privá-las de tais prazeres. Torne o alimento delas austero e não suntuoso; deixe que suportem tanto a fome quanto a sede, tanto o frio quanto o calor, e até a vergonha diante de seus pares ou supervisores. Essa é a maneira pela qual eles tornam-se corajosas em espírito, não importando se são exaltados ou atormentados. As dificuldades, minha querida, servem como um processo de fortalecimento para as crianças, um processo pelo qual a virtude é aperfeiçoada. Aqueles que foram mer- gulhados suficientemente nelas suportam o banho moderador da virtude como uma coisa natural. Portanto, preste atenção, querida, para que, assim como as videiras que foram mal cuidadas são deficientes em frutas, seus filhos produzam os frutos maus da licenciosidade e da total inutilidade, tudo por causa do luxo. Adeus.

Comentário

Thesleff,Texts, p.196, linhas 7-11. “Uma mãe também precisa exercitar seus encargos nas coisas que eles temem - mesmo que isso lhes cause alguma dor e angústia. . . e suportar dor.” Essas linhas evocam o agogê espartano, que foi revivido no final do século III a.C. Meninos foram endurecidos para suportar o calor e o frio, foram açoitados e competiram [p.80:] em concursos mostrando resistência à dor: Xen. Sp. Const. 2.2–9, ver Nigel M. Kennell, The Gymnasium of Virtue: Education and Culture in Ancient Sparta (Chapel Hill, NC, 1995). Thesleff,Textos, p.196, linha14. “Mesmo se eles atacarem a enfermeira/cuidadora”. Crianças gregas ricas eram servidas por escravos desde o momento do nascimento. Como seus pais, os filhos podem regularmente bater em escravos e tratá-los como subumanos. Veja Teano II para Calisto; abaixo cap. 6; e veja mais Keith Bra- dley, “Images of Childhood. The Evidence of Plutarch”, em “Conselhos para os noivos” e “Um consolo para sua esposa”, de Plutarco, ed. Sarah B. Pomeroy (Nova York, 1999), p. 183–198, especialmente p.188. Thesleff,Textos, p.196, linha 17. “Suas naturezas masculinas”. Esta frase não indica necessariamente que Teano II tenha escrito exclusivamente sobre a criação de meninos. Pronomes e substantivos masculinos gregos 50 podem ser aplicados às mulheres (ver cap. 2, acima). O sistema educacional espartano era bastante detalhado e específico em relação à criação de meninas espartanas: ver mais Sarah B. Pomeroy,Spartan Women (Nova York, 2002), cap. 1. Como no Xen. Oec. 10.1, uma mulher pode ter uma inteligência masculina (ver Sarah B. Pomeroy, Xenophon Oeconomicus: A social and historical commentary [Oxford, 1994], 303). Perictione I, “So- bre a mulher harmoniosa” (neste capítulo, acima), observa que uma mulher pode ser corajosa [literalmente: “Viril”, andreie]. Thesleff,Textos, p.196, linhas 19–23. “sempre que ele come, anseia pelas delícias das iguarias; quem, . . . se não mastiga algo, está descontente. ” Os meninos espartanos foram ensinados a comer moderadamente, a fim de que a circunferência [deles] não aumentasse e para perseverarem em suas responsabilidades quando estavam com fome: Xen. Sp. Const. 2,5-6. Thesleff,Textos, p.196, linha 25. “Crianças que vivem licenciosamente se tornam escravas quando cres- cem para a idade adulta”. Consequentemente, as mães têm uma responsabilidade séria: elas podem criar seus filhos para serem praticamente escravos ou serem harmoniosos e com temperança, quando adultos. Thesleff,Textos, p.196, linhas 29-30. “Temperamento” (anateinômenos e epiteinômenos [em grego]). A educação de uma criança é análoga à temperança [afinação] de uma corda de alaúde, sendo estendida ou es- ticada até que seja afinada. Para a aplicação da harmonia a seres humanos, veja também Perictione I, “On the Harmonious Woman”, acima, e Teano II para Callisto, abaixo. Thesleff,Textos, p.196, linhas 32-33. “Assim como as videiras que foram mal cuidadas são deficientes em frutos - seus filhos produzem frutos maus”. Plutarco De( Educ. 3) também usa uma analogia entre agricul- tura e educação.

[p.81:] Teano II para Euclides, o Doutor [Fonte:] Thesleff, Textos, p.196-97, Hercher, 607,9, trad. Vicki Lynn Harper, em Waithe, Women Philosophers, p. 53.

Segundo Thesleff, esta carta é escrita em um koine Attico “afetado” e “talvez intencionalmente ridícu- l o”. 39 Como em sua carta sobre Cleon (veja abaixo), Teano II não hesita em escrever intimamente sobre um homem que não é seu parente e (no caso de Euclides) para se comunicar com ele. Isso constitui evidência adi- cional de que as mulheres no período helenístico desfrutavam de mais liberdade social do que, digamos, suas contrapartes na Atenas clássica. Ver mais Sarah B. Pomeroy, Goddesses, Whores, Wives, and Slaves: Women in Classical Antiquity (Nova York, 1975, com um novo Prefácio, 1995, cap. 7). Esta carta é única entre as letras neopitagorianas em sua especificidade. Ela faz a pergunta perene [de maneira] séria, mas divertida, que ainda fazemos na forma de: “Por que os filhos de um psiquiatra precisam ser tratados por um psiquiatra?” Embora não haja nada visivelmente filosófico na carta a seguir, os pitagóricos eram muito preocupados com a saúde: a falta de boa saúde indicava falta de equilíbrio e harmonia espiritual e física. O próprio Pitágoras fez recomendações sobre dieta, exercício e autocontrole conducentes à boa saúde, e várias teorias médicas foram atribuídas a ele e a outros pitagóricos.40 Em seu tom de brincadeira, a carta sugere uma mensagem enviada a um bom amigo para animá-lo. Essa carta também é uma evidência adicional de que esses textos neopitagóricos foram realmente escritos por mulheres, pois quem se daria ao trabalho de falsificar uma carta como a seguinte?

Tradução

Ontem, quando alguém deslocou a perna e um mensageiro foi chamá-lo (eu mesma estava lá, uma vez que a parte ferida [a pessoa em questão, que estava ferida] era um amigo meu), o mensageiro voltou rapida- mente, declarando que o próprio médico estava doente e fisicamente mal. E eu - juro! - afastei todos os pensa- mentos ligados à dor do meu amigo e só pensei na do médico. Orei a Panacéia e a Apolo, o Renomado Arquei- ro, para que nada sério [de grave] tivesse acontecido ao médico! Agora, apesar do meu desânimo, inscrevo esta

39 Thesleff, Introduction, p.22. 40 Sobre Pitagoras e a medicina, ver: inter alia, C. J. de Vogel, Pythagoras and Early Pythagoreanism (Assen, 1966), cap. 10, e Burkert, Lore and Science, 88, p. 272. 51 carta para você, ansiosa para saber como você está: no caso [por receio] de, talvez seu orifício gástrico estar em situação de doença, ou seu fígado tenha sido danificado por febre, ou algum dano orgânico aconteceu com você. Portanto - desconsiderando os inúmeros membros [partes do corpo] de meus amigos - devo me apegar com carinho à sua querida saúde, meu bom médico.

Thesleff,Textos, p.197, linha 5. “Panaceia”. Panacea foi uma filha guerreira de Asclépio, deus da cura. Apolo estava associado a Asclépio.

Teano II para Eurydice [Fontes:] Thesleff,Textos , p. 197, 3, Hercher, 606, n. 7, trad. Sarah B. Pomeroy.

Introdução

Nas duas cartas a seguir e em sua carta a Nicóstrate (abaixo), Teano II mostra-se especialista nas ques- tões das mulheres, especialmente no aconselhamento de mulheres casadas com maridos infiéis. O conselho que ela oferece está de acordo com os pontos de vista pitagóricos que defendem uma conduta virtuosa e har- moniosa e sugere que as mulheres injuriadas/feridas são pitagóricas, embora possam simplesmente ter consul- tado Teano por causa de sua experiência. Os maridos adúlteros certamente não cumprem a conduta prescrita por Pitágoras. Analogias entre música e emoções humanas são comuns nos textos neopitagóricos. Elas indicam que, como outras mulheres da classe alta no mundo helenístico, as neopitagóricas eram bem-educados nas artes musicais.41 As mulheres e suas famílias estavam orgulhosas dessa conquista: elas são retratadas em esculturas, incluindo figuras de terra-cota e estelas de sepulturas, com instrumentos musicais, em particular instrumentos de cordas como alaúdes e cítaras (fig. 10).42 Instrumentos de sopro - flautas e ‘flautas de pastor’ [há de vário tipos, as gaitas escocesas podem ser um desses tipos ou o flautim] - eram considerados inferiores e associados a mulheres de classe baixa, como as hetairai. Na educação musical dos neopitagóricos e de outras mulheres de elite, a ênfase era diferente. Como indicam as numerosas referências à harmonia, bem como os escritos de Ptolemaïs (veja abaixo), os neopitagóricos estavam mergulhados na teoria musical, pois isso era tradicional entre os pitagóri- cos. Outras mulheres helenísticas se orgulhavam de sua capacidade de tocar música, mas, embora poesia de autoria de mulheres helenísticas tenham sobrevivido, não há evidências escritas de que elas haviam entendido ou se importado em entender os meandros da teoria musical esotérica.

Tradução

Teano para Eurydice

“Que pesar/aflição aperta sua alma? Você está desanimada por nenhuma outra razão senão que o ho- mem com quem você está unida [sunoikeo] visita uma hetaira e obtem prazer corporal com ela? [p.83:] Mas isso não deve atraí-la [absorver toda a sua atenção] assim, ó admirável entre as mulheres, pois você não vê que quando o ouvido está cheio do prazer da melodia de um instrumento e de música, quan- do está saciado com isso, [ele] satisfaz-se em ouvir uma flauta e uma gaita de foles [flauta de pastor]? Qual é a conexão entre a flauta e os acordes musicais e o som incrível de um instrumento da mais doce qualidade? Considere que é a mesma coisa [entre] você e a hetaira com a qual seu marido está unido [sunoikeo]. “Seu marido está pensando em você por causa da disposição, natureza e razão dele. Mas quando ele fica saciado, ele une-se [sunoikeo] com uma hetaira casualmente. Por conseguinte, aqueles [aquelas?] nos quais há um gosto destrutivo têm algum desejo de sustento/sustentação que não é bom.”

41 Ver: Sarah B. Pomeroy, Women in Hellenistic Egypt, from Alexander to Cleopatra (1984; Detroit, 1990; ACLS History E-Book, 2004), p.560. 42 Ver: J. G. Milne, Cairo Cat. Gr. Inscrs., p. 46, nr. 9259. I. Noshy (The Arts in Ptolemaic Egypt: A Study of Greek and Egyptian In- fluences in Ptolemaic Architecture and Sculpture [London, 1937], p. 106–7, e plate 12.2) pontua que a estela apresntada na figura 10 é esculpida em um estilo puramente ático. Ambos os motivos, a lira e a cítara, aparecem in Caranis, no monumento funerário de uma garota que morreu na ide de vinte anos: ver Bernand, Inscr. métriques, no. 83, p. 331n10. 52 Teano II para Calisto [Fontes:] Thesleff,Textos , p.197–98, Hercher, p. 604, 5, trad. Vicki Lynn Harper, em Waithe, Women Philosophers, p. 47–48.

[p.84:] Introdução

Essa longa carta foi escrita em koiné ático.43 A carta, ou tratado, de aconselhamento de uma pessoa ido- sa e bem -sucedida, para uma pessoa mais jovem, era tradicional, normal e comum. As pessoas mais velhas pa- recem ter o hábito de oferecer conselhos que não foram solicitados. Assim, por exemplo, Plutarco, no conselho para os noivos, caracteriza a si mesmo como um marido maduro, com sabedoria para comunicar a um noivo recém casado. No Oeconomicus de Xenofonte, um Ischomachus maduro conta a Sócrates sobre seus primeiros dias de casamento, fornecendo um exemplo e uma comparação com o Critobulus vazio de ideias/pensamento e dado ao desperdício [libertino?]. Um dos tópicos que Ischomachus cobre em detalhes é o do gerenciamento de escravos, a fim de mantê-los produtivos, cooperativos e leais. Cartas de conselho de mulher para mulher, no entanto, são encontradas na literatura grega apenas entre esses documentos neopitagóricos. Em suas frases iniciais, Teano II afirma que o gerenciamento familiar é de fato um negócio para mulheres. Uma filha geralmente aprendia o manejo familiar com a mãe enquanto crescia. Então, quando ela era casada e mudava-se para a casa do marido, a sogra a instruiria. Fatores demográficos, incluindo mortes na geração mais velha e casamento por volta dos quinze anos, poderiam deixar a jovem noiva precisando de con- selhos sobre como administrar um núcleo familiar grande. Embora ela esteja familiarizada com os escravos desde o dia em que nasceu, ela pode estar morando longe de sua família natal, em uma vizinhança urbana ou rústica desconhecida e em uma casa com escravos de etnia e treinamento diferentes daqueles que ela havia conhecido na casa dos pais. No Oeconomicus de Xenofonte, o próprio marido diz a sua jovem noiva como ele deseja que sua família seja administrada.44 “Para um homem, Ischomachus parece ter se envolvido de maneira incomum nos detalhes da organização da família”.45 Teano II pode ter sido familiarizada com o tratado de Xenofonte. Suas conclusões são compatíveis, mas alguns de seus argumentos, observações e ênfases diferem. O tratado de Xenofonte é muito mais longo e lida com a economia de uma propriedade grande e rica, bem como com o relacionamento entre marido e mulher. No Oeconomicus, Ischomachus não perde tempo pensando se os escravos são naturalmente diferentes das pes- soas livres. Ele escolhe o mais confiável dos escravos para assumir as responsabilidades da senhora e do senhor quando estes não estão disponíveis. O objetivo de Ischomachus em defender que os escravos sejam tratados decentemente e recompensados por seu bom trabalho é, em última análise, aumentar a lucratividade de sua propriedade. Por outro lado, o objetivo da Teano é manter uma família harmoniosa e livre de problemas. Além disso, a mulher com autoridade deve gerenciar racionalmente os escravos, [p.85:] não ser influenciado por suas paixões e emoções. Como outros neopitagóricos, Teano II usa uma analogia com um instrumento de cordas: ela aconselha Callisto a manter os escravos “afinados”, sem muita tensão nem muita folga. Nesta carta, Teano II também pode estar reagindo contra teorias populares, como as opiniões de Aristó- teles sobre a escravidão natural. Como Xenofonte, ela considera os escravos seres humanos intactos, diferentes das pessoas livres apenas por causa do seu status civil. Ambos apontam que o tratamento adequado dos escra- vos restringirá seu desejo de fugir e os tornará mais fáceis de explorar. Aristóteles, em contraste, argumentou que os escravos eram inerentemente inferiores aos homens/machos livres, pois os escravos (como crianças e mulheres) não possuíam o elemento racional da mente (logos: Política 1254b.1.2.13). Portanto, embora Aristó- teles veja as tarefas dos escravos como domésticas, ele pode conceber o mestre apenas como homem (despotes, Política. 1255b. 1.2.23). Aristóteles (Política 1255a.1.2.16-17) também discute o uso da força: é um incitamento à virtude e, portanto, algo bom, ou é apenas uma demonstração do poder dos mais fortes sobre os mais fracos?

Tradução

Para vocês, mulheres mais jovens, assim que se casam, a autoridade [lhes] é concedida por lei para gover-

43 Thesleff, Introduction, p.22. 44 Ver Pomeroy, Xenophon Oeconomicus, passim. 45 Em todos os casos, mesmo nos dias atuais, mulheres economicamente confortáveis frequentemente discutem como gerenciar sua “ajuda” doméstica e os livros mais vendidos são escritos por e sobre babás. 53 nar o núcleo familiar e a casa. Mas, para fazê-lo bem, é necessária a instrução de mulheres mais velhas sobre o gerenciamento doméstico, [elas são] uma fonte contínua de aconselhamento. É bom aprender com antecedência o que você não sabe e considerar mais adequados os conselhos das mulheres mais velhas; nesses assuntos, uma alma jovem deve ser educada desde a adolescência/mocidade. A autoridade primária das mulheres na casa é a autoridade sobre os escravos. E a melhor coisa, minha querida, é boa vontade por parte dos escravos. Pois essa posse [esse tipo de coisa] não é comprada junto com seus corpos; pelo contrário, patroas inteligentes produzem isso [fazem isso emergir] com o tempo. Apenas o uso [a maneira que se lida com eles] é a causa disso – cuidando para que eles não sejam desgastados pelo trabalho nem incapacitados pela privação. Porque eles são de natureza humana. Existem algumas mulheres que supõem que o mais lucrativo é o que é [no fundo] mais inútil: maus-tratos a seus escravos, sobrecarregando-os com tarefas a serem realizadas e privando-os das coisas que precisam. E então, tendo feito grande parte do lucro de um obol,46 pagam o preço com enormes prejuízos: má vontade e as piores enganações [traições]. Quanto a você, deixe em mãos uma quantidade de comida proporcional à quantidade de lã produzida pelo dia de trabalho. Com relação à dieta de seus escravos, isso será suficiente. Quanto ao comportamento indisciplinado, é preciso ajudar ao máximo [a realizar] o que é adequado para você, não o que é vantajoso para eles. Pois é necessário estimar os próprios escravos no valor adequado a eles. Por um lado, a crueldade não trará gratidão a uma alma; [e] por outro, o raciocinar, nada menos que a justa indignação, é um meio eficaz de controle. Mas se há muito vício inconquistável por parte dos [p.86:] escravos, é preciso mandá-los embora para serem vendidos. Deixe que o que é alheio às necessidades (da casa) também see afastado de sua senhora (literalmente: “Deixe que o que é alheio à necessidade seja afastado também do juiz (feminino), igualmente”].

Deixe o julgamento adequado disso ter precedência para que, dessa maneira, você determine os fatos verdadeiros do erro, ao manter a justiça da condenação e a magnitude do erro, na proporção da punição ade- quada. Mas, às vezes, o perdão e a bondade da patroa para com aqueles que cometeram erros há de liberá-los das penalidades. Dessa forma, você também preservará um modo de vida adequado e apropriado. Há algumas mulheres, minha querida, que por serem cruéis - brutalizadas pelo ciúme ou pela raiva - até chicotearam os corpos de seus escravos como se estivessem inscrevendo [neles] o excesso de sua amargura como um memo- rando. Com o tempo, algumas dessas (escravas) são consumidas [esgotadas], totalmente incapacitadas para o trabalho; outras buscam segurança escapando; mas algumas param de viver, se retirando para a morte com as próprias mãos. No final, o isolamento da patroa, amargurando sua falta de consideração doméstica, encontra arrependimento desolado. Mas, minha querida, comparando você mesma a instrumentos musicais, saiba que som eles emitem quando são demais afrouxados [as cordas], mas que são feitos em pedaços quando esticados demais. É o mesmo para seus escravos. Muita licença cria dissonância em matéria de obediência, mas o estira- mento da necessidade forçada causa a dissolução da própria natureza. É preciso meditar sobre isso: ‘A medida certa é o melhor em tudo’. Adeus.

Comentário

Thesleff,Textos, p.197, linhas 31-32. “Nesses assuntos, uma alma jovem deve ser criada/educada desde a mocidade.” A carta de Myia a Fyllis (abaixo) concernente ao uso/emprego de uma ama de leite indica que as crianças també podiam estar acostumadas aos serviços de um escravo desde o dia do nascimento (ver cap. 6, abaixo). Thesleff,Textos, p.197, Linha 31. “A principal autoridade das mulheres na casa é a autoridade sobre os escravos [ therapainon].” Serviçais/servas podem ser mulheres livres forçadas pela necessidade econômica a trabalhar fora de suas casas, mas é muito mais provável que elas fossem escravas. (Veja o comentário da carta de Myia a Fyllis, abaixo, cap. 6.) Além disso, o conteúdo específico da carta de Teano não deixa dúvidas de que os servos [sobre os quais] ela está discutindo são escravos. Escravas, variando de crianças a adultas, eram mais propensas a trabalhar em ambientes fechados e, portanto, estar sob a autoridade da senhora. Suas tarefas incluíam limpeza, transporte de água e lenha, moagem de grãos e outras preparações alimentares. Elas tam- bém prestavam cuidados pessoais à família de seus donos, como enfermagem, limpeza e dobragem de roupas, assistência no banheiro [ou: na toilette; higiene diária] e serviços sexuais para os homens da casa.

46 Moeda grega antiga, equivalente a 1/6 de uma dracma. 54 [p. 87:] Elas produziam, com frequência, todas as roupas usadas por seus donos e escravos na casa, e em seu tempo livre esperava-se que fiassem. Uma unidade doméstica grega urbana confortável comumente utilizava muito mais mulheres do que homens. Os escravos homens trabalhavam ao ar livre, cultivando, jardinando, fazendo o trabalho de quintal, entregando mensagens e acompanhando o mestre ou seus filhos em suas roti- nas diárias.47 Papéis de gênero podiam ser alterados em momentos de necessidade, especialmente na época da colheita, quando as mulheres poderiam ser deslocadas para [o trabalho] ao ar livre. Observamos que no Oeco- nomicus de Xenofonte, o marido é a autoridade suprema da família, mas ele delega o comando à esposa depois de treiná-la para administrar os assuntos como ele faria. Em contraste, Teano II assume que a jovem esposa ocupará as rédeas da casa imediatamente. Xenofonte e Teano II enfatizam a importância de conquistar a boa vontade do escravo. Xenofonte oferece recompensas materiais, como uma participação nos lucros e melhores roupas, Teano II simplesmente recomenda não usar punições corporais para escravos, como em sua carta a Euboule (acima), e ela não aconselha o uso de medidas tão duras para disciplinar crianças. Thesleff,Textos, p.198, linhas5-6. “Uma medida de comida que é proporcional à quantidade de lã pro- duzida por um dia de trabalho”. A referência ao trabalho de lã como meio de calcular a pensão de comida de um escravo deixa claro que os escravos domésticos são do sexo feminino. Relatos de papiros do Egito helenís- tico mostram que as rações/porções alimentares eram alocadas de acordo com a idade, sexo e intensidade do trabalho realizado, enquanto às vezes a qualidade da comida era avaliada de acordo com o status do escravo.48 Thesleff,Textos, p.198. Linha 10. “Raciocínio [logismos], nada menos que uma justa indignação, é um meio eficaz de controle.” Podemos contrastar a visão de Aristóteles de que as mulheres possuíam a parte racio- nal da alma, mas ela estava adormecida, enquanto os escravos não a possuíam (veja acima). Thesleff,Textos, p.198, Linha 17–21. “Mulheres, minha querida, que por serem cruéis - brutalizadas pelo ciúme ou pela raiva - até chicoteiam os corpos de seus escravos como se estivessem inscrevendo o excesso de sua amargura como um memorando. Com o tempo, algumas dessas [escravas] são esgotadas, totalmente usadas para o trabalho; outras adquirem segurança escapando; mas algumas param de viver, se retirando para a morte com as próprias mãos.” Os escravos constituíam um grande investimento de capital. O proprietário pru- dente os manteria saudáveis, bem alimentados e dispostos a trabalhar, protegendo para que não fiquem doen- tes, mal-intencionados, impossíveis de vender ou de outras formas que se mostrem um investimento inútil. Ela não os puniria quando ela própria tivesse perdido o autocontrole ou estivesse com raiva. O pitagórico Archytas de Taranto também advertira contra punir escravos com raiva. Assim, ele disse em resposta à negligência de seu mordomo: “Eu já teria batido em você até a morte se não estivesse com raiva”.49 [p.88:] Thesleff,Textos , p. 198. linha 23. “instrumentos musicais”. Ta organa pode se referir a órgãos do corpo humano ou a instrumentos musicais: LSJ, s.v. organon. Thesleff,Textos, p. 198. linhas 23–27. “Comparando-se a instrumentos musicais, saiba quais sons eles emitem quando são afrouxados demais. . . . É preciso meditar sobre isso: ‘A medida correta é a melhor em tudo’.” Teano fecha com um sphragis nitidamente pitagórico, a analogia entre o ser humano harmonioso e o instrumento musical bem-temperado/afinado. Podemos comparar os sentimentos com os expressos por Peric- tione I em seu tratado “Sobre a mulher harmoniosa”.

Teano II para Nicostrate [Fontes:] Thesleff,Textos , 198, Hercher, 604,5, trad. Vicki Lynn Harper, em Waithe, Women Philosophers, p. 44-46.

Introdução

Esta carta foi escrita em koine ático. Muitos dos conselhos de Teano a respeito de lidar com um marido apaixonado são semelhantes aos dados por Perictione I. A esposa traída não deve se rebaixar tendo ciúmes ou vingando-se. Ela não deve baixar-se ao nível do marido, que é escravizado pela paixão sexual e escravo de uma mulher desavergonhada. Sua loucura acentua, por contraste, o comportamento razoável e nobre da esposa. Pelo seu comportamento, marido e mulher desmentem a opinião de Aristóteles (Política 1.5.6–7 [1260a]) de

47 Ver: Pomeroy, Xenophon Oeconomicus, p. 43–44. 48 Pomeroy, Women in Hellenistic Egypt, p. 139–41. 49 Val. Max. Memorable Deeds and Sayngs, iv. 1. Ext. I, St. Jerome, Letter 79.9, e ver: Huffman, Archytas of Tarentum, p. 286-88. 55 que, embora homens e mulheres possuam a parte deliberativa da alma, apenas homens podem exercitá-la. De fato, até as cortesãs são racionais e calculistas; embora escravizem os homens, [elas] diferentemente dos ho- mens, elas próprios não são escravas da paixão e do apetite sexual (veja abaixo). O conselho de Teano prenun- cia a afirmação comum dos psicólogos no mundo ocidental moderno: você não pode mudar outras pessoas; ao lidar com as dificuldades criadas por outros, você deve mudar a si mesmo. Hetairai anunciavam seu sucesso financeiro e sua capacidade de obter preços altos exibindo seu lucro na forma de ouro e pedras preciosas. Claro, elas usavam cosméticos. As esposas respeitáveis e ricas que não eram pitagóricas também usavam regularmente jóias e cosméticos, como podemos ver na pintura de vasos da Apúlia (fig. 1, e veja os caps. 1 e 2). No entanto, Pitágoras preferiu que suas discípulas se distinguissem de todas as outras mulheres, evitando jóias e cosméticos preciosos. [p.89:] Os homens de Croton, nos dias de Pitágoras, e os maridos das neopitagóricas, não erravam ape- nas contratando ocasionalmente uma porne (prostituta comum). Embora Pitágoras não aprovasse nenhuma infidelidade, algumas poucas horas com um porne em um bordel teriam constituído uma breve “aventura”, algo de uma única vez.50 Antes, os maridos licenciosos estavam apoiando ou contribuindo para o apoio de toda uma unidade doméstica de uma concubina ou hetaira, incluindo crianças, escravos, roupas, a casa e seus móveis, despesas religiosas, enfim, todas as necessidades da vida cotidiana.51 Acesso exclusivo a uma hetaira ou con- cubina desejável e cara na altamente competitiva sociedade grega aumentava o amor-próprio de um homem. (Entre todos os pretendentes disponíveis, ela o escolhera.) Uma mulher no comércio de sexo não era modesta, como uma esposa respeitável; assim, ela servia como uma demonstração de consumo conspícuo. Talvez a casa da hetaira fosse menos cara que a do marido e da esposa legítima; talvez não. De qualquer forma, o dote da esposa havia contribuído para a fundação econômica dos oikos conjugais e suas habilidades de trabalho e ad- ministração garantiam sua prosperidade contínua, enquanto a mulher “mantida” não podia mais dobrar seu comércio e dependia de um homem para sua subsistência. Nos Dialogues of the Courtesans, Lucian (nascido em cerca de 120 d.C.) oferece um esboço dramático realista da vida de cortesãs clássicas e helenísticas, e de seus jovens amantes, que complementa o quadro pinta- do nas letras neopitagóricas. As cortesãs em Lucian são geralmente mercenárias, embora possam aceitar alguns amantes porque são bonitos ou agradáveis. Se elas têm uma criança, tendem a criar o menino e expor a menina bebê [doá-la] ou criá-la para ser uma hetaira (DMeretr. 1.281, 14.320). A maioria de seus clientes são jovens solteiros e as mulheres estão preocupadas com o fato delas virem a ser deserdadas quando seus jovens amantes se casarem (DMeretr.1.281-83). Em um caso, um cliente é um homem casado; sua esposa disse que a cortesã o havia enlouquecido com drogas, mas a única droga era o seu próprio ciúme de outro amante (DMeretr. 8.301). O marido finalmente pagou um talento (um preço enorme) pelos serviços exclusivos da cortesã por oito meses. A competição entre os homens por uma cortesã desejável é um tema frequente, assim como a competição en- tre as mulheres por um amante rico.52 Recorrer a bruxaria (incluindo encantos, feitiços, maldições e artifícios mágicos) para atrair homens, é comum (DMeretr 1.281, 3.287-89). Cortesãs também estão disponíveis para clientes ricas do sexo feminino para relacionamentos lésbicos, embora uma cortesã chame essas ligações de “incomuns” (allokoton: DMeretr. 5.289). Athenaeus (ca. 170–230 AD) também retrata hetairai como espirituo- sas, sofisticadas e divertidas.53 A maioria das mulheres históricas que são apresentadas em Athenaeus e Lucian viveu no período clássico e no início da era helenística e ilustra a crença dos autores de que [p.90:] a natureza humana não muda ao longo do tempo.54 Assim, os cenários descritos nas cartas são perenes na vida das corte- sãs e não indicam que as cartas neopitagóricas foram escritas nos dias de Lucian. Suficientemente interessante/curioso, as esposas não reclamam das despesas envolvidas quando o ma- rido apoia outras mulheres. Talvez elas não tenham tido plena consciência das somas extravagantes envolvidas, embora Teano ressalte que o marido errante pode perceber a diminuição de seu sustento e de sua reputação.

50 Ver Cap. 4, acima sobre a terminologia para mulheres nesse extrato, ver Laura K. McClure, Courtesans at Table (Nem York, 2003), 4, p. 9-26, e Leslie Kurke, “Inveenting the Hetaira: sex, politics and discursive conflict in archaic Greence” Clant 16 (1997): p 106-50, especialmente p. 107-10. Nem McCLURE OU Kurke discutem a literatura neopitagórica. 51 Sobre os custos envolvendo uma hetaira ou contratar uma prostituta em Athenas, ver Edward E. Cohen, “Free and Unfree sexual work: na economic analysis of prostitution” em: Prostitutes and courtesans in the ancient world, ed. Christopher A Faraone and Laura K. McClure (Madison, WI, 2006), p. 95-124, e ver cap. 2, acima. 52 Dmeretr, 6.293, 8.299-300, 12. 311-12, 14.320, p. 322-23. 53 McClure, Courtesans at Table, 79-105. 54 See further R. Hawley, “Pretty Witty, and Wise’: Courtesans in Athenaeus Deipnosophistai Book 13” International Journal of Moral and Social Studies 8 (1993): 73-91, eps. 76. 56 Em vez disso, lamentam a infidelidade sexual do marido e sua servidão mental e emocional [em relação a] a outra mulher.

Tradução

Saudações. Eu ouço repetidamente sobre a loucura do seu marido: ele tem uma cortesã; também que você sente [uma] raiva ciumenta em relação a ele. Minha querida, eu conheci muitos homens com a mesma doença. É como se eles fossem abatidos [como uma caça; caçados] e mantidos por essas mulheres; É como se eles tivessem perdido a cabeça. Mas você está desanimada [abatida] noite e dia, você está muito perturbado e maquina coisas contra ele. Não seja assim, pelo menos, minha querida. Pois a excelência moral da esposa não é a vigilância de seu marido, mas a acomodação sociável; está no espírito da acomodação suportar a loucura dele. Se ele se associa à cortesã com vistas ao prazer, ele associa-se a sua esposa com vistas ao benéfico. É benéfico não agravar males com males e não aumentar a loucura com a loucura. Algumas falhas, querida, são ainda mais agitadas quando são condenadas, mas cessam quando são deixadas de lado em silêncio, como di- zem: o fogo se apaga se for deixado sozinho. Além disso, embora pareça que você deseja escapar, observe que, ao condená-lo você removerá o véu que cobre a sua própria condição. Então você irá manifestamente errar: Você não está convencida de que o amor ao marido reside em uma conduta nobre e boa. Pois essa é a graça da associação conjugal. Reconheça o fato de que ele vai até a cor- tesã para ser frívolo, mas que permanece com você para viver uma vida comum; de que ele ama você com base no bom julgamento, mas a ela com base na paixão. O momento disso é breve; quase coincide com sua própria satisfação. Num instante, surge e cessa. O tempo [despendido] para uma cortesã é de curta duração para qual- quer homem que não seja excessivamente corrupto. Pois o que é mais vazio do que o desejo, cujo benefício do gozo é [uma] injustiça? Eventualmente, ele perceberá que está diminuindo a própria vida e difamando o seu bom caráter [dele]. Ninguém que entende [isso] persiste em um mal auto-escolhido. Assim, sendo convocado por sua justa obrigação para com você e percebendo a diminuição dos provimentos para o próprio sustento (ele perceberá você). Incapaz de suportar o ultraje da condenação moral, ele logo se arrependerá. Minha querida, é assim que você deve viver: não se defendendo das cortesãs, mas se distinguindo delas por sua conduta ordenada em rela- ção ao seu marido, por meio da sua cuidadosa atenção à casa, pela maneira calma de lidar com os servos e por seu terno amor pelos seus filhos. Você não deve ter ciúmes dessa mulher (pois é bom estender sua emulação apenas às mulheres virtuosas); em vez disso, você deve tornar-se apta à reconciliação. O bom caráter traz con- sideração [respeito] até mesmo dos inimigos, querida, e a estima é o produto apenas da nobreza e da bondade. Dessa maneira, é até possível o poder de uma mulher ultrapassar o de um homem. É possível para ela crescer na estima dele, em vez de precisar servir alguém que é hostil a ela. Se ele foi devidamente preparado para isso por você, ele ficará ainda mais envergonhado; ele desejará se reconciliar mais cedo e, por se apegar mais calorosamente a você, ele a amará com mais ternura. Consciente da injustiça dele em relação a você, ele perceberá sua atenção ao modo de vida dele e testará a sua afeição voltada a ele. Assim como as doenças corporais tornam suas cessações mais doces, as diferenças entre amigos também tornam as reconciliações mais íntimas. Quanto a você, resista às resoluções apaixonadas de seu sofrimento. Por ele não estar bem, ele a convida a compartilhar de sua situação; porque ele mesmo erra a marca da decência, ele a convida a falhar no decoro; tendo danificado sua própria vida, ele a convida a prejudicar o que é benéfico para você. Consequentemente, você parecerá ter conspirado contra ele e, ao reprová-lo, parecerá reprovar a si mesma. Se você se divorciar dele e seguir em frente, você trocará seu primeiro marido apenas para tentar outro e, se ele tiver as mesmas falhas, você recorrerá a outro (porque a ausência [falta] de um marido não é suportá- vel para mulheres jovens); ou então você ficará sozinho sem marido como uma solteirona. Você pretende ser negligente com a casa e destruir seu marido? Então você compartilhará os despojos de uma vida angustiada. Você pretende se vingar da cortesã? Estando em sua própria guarda [defesa], ela irá contornar você; mas, se ela ativamente te repele, uma mulher que não tem tendência a corar é formidável na batalha. É bom brigar com seu marido dia após dia? Com quê vantagem? As batalhas e as reprovações não interromperão seu comportamento 57 licencioso, mas aumentarão os desentendimentos entre vocês mediante o escalonamento delas [das brigas]. O que então? Você está tramando algo contra ele? Não faça isso, minha querida. A tragédia nos ensina a vencer o ciúme, abrangendo um tratado sistemático sobre as ações pelas quais Medéia foi levada ao cometimento do ultraje. Assim como é necessário manter as nossas mãos afastadas de uma doença dos olhos, você também deve separar sua pretensão de sua dor. Suportando pacientemente, você saciará seu sofrimento mais cedo.

[Obs.: o restante do capítulo não foi traduzido]