PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Júlia Lúcia de Oliveira Albano da Silva

“MERGULHO NO ESCURO” E OUTROS MERGULHOS Programas de auditório como ambientes radiofônicos

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Júlia Lúcia de Oliveira Albano da Silva

“MERGULHO NO ESCURO” E OUTROS MERGULHOS Programas de auditório como ambientes radiofônicos

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção de título de Doutora em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Júnior

São Paulo 2014

Banca Examinadora

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A Elias, que com seu amor torna minha vida especial.

A Raíssa e Dimitri: raios de grandes dimensões em minha alma.

A Lucy e Tatá, Tootis e Dali: companheiros.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Norval Baitello Júnior, pelo compartilhamento de tanto conhecimento e por acreditar em meu potencial.

À CAPES, que financiou e possibilitou que esta pesquisa acontecesse durante os últimos quatro anos.

Aos professores da COS, pelo incentivo e pela partilha de tantos saberes.

À Profa. Lucrecia D´Alessio Ferrara, pela generosidade e pelas palavras certas em momentos tão duros.

Ao Prof. José Eugenio de Oliveira Menezes, pela escuta, pelos socorros em tempos de tempestades. Não me restam palavras para agradecer pelo tempo sem contratempos.

A Cida Bueno, pela escuta, torcida silenciosa e atenciosa na secretaria da COS.

À minha amiga-irmã Simone Kelly Svitek, por me ceder teto, tempo e afeto há mais de três décadas.

Ao amigo Eduardo Fernandes, pelo humor inteligente, pela sincera e atuante amizade. Uma figura única e fantástica.

A Danielle Gaspar, Henrique Romanos, Helena Navarrete, Edilaine Correia, Ingrid Esslinger: amigos que se revelaram presentes das mais inúmeras maneiras, todas encantadoras e necessárias.

Aos companheiros Márcia Amaral e Eliseu de Oliveira, pelos gestos de apoio verdadeiro e brejeiro.

Aos integrantes do Grupo Cultura e minha casa!, liderados pela Joana Guimarães e Maria Oliveira.

A Giovanna do departamento de marketing da Rádio CBN de São Paulo, à produção e aos apresentadores dos programas Fim de Expediente, Divã do Gikovate e Mergulho no Escuro do Itaú Cultural.

Aos meus queridos pais, irmãos, minha irmã (coração valente), sobrinhos e familiares que me apoiaram em mais esta caminhada.

Aos meus alunos, que me ensinam cada dia mais.

“MERGULHO NO ESCURO” E OUTROS MERGULHOS: PROGRAMAS DE AUDITÓRIO COMO AMBIENTES RADIOFÔNICOS

RESUMO. Esta pesquisa investiga a retomada, nos últimos 10 anos, dos programas radiofônicos com a presença de plateia em diferentes auditórios, na cidade de São Paulo. Formato presente no período entre 1940 e 1950, conhecido como a Era de Ouro da radiofonia brasileira, os programas de auditório se consolidaram como importante instrumento de entretenimento do universo midiático emergente na primeira metade do século XX. Atualmente, no cenário marcado pelas tecnologias de comunicação e informação digitais em rede que privilegiam o sentido da visão, a mobilidade e a comunicação à distância, o ressurgimento dos programas de auditório nos coloca defronte ao problema de investigação desta pesquisa: em que medida a retomada da dinâmica deste formato de programa por determinadas emissoras radiofônicas vai ao encontro da necessidade do homem de cultivar vínculos que extrapolem os espaços abstratos propostos pela mídia contemporânea? O objetivo central é investigar como os sentidos dos participantes presentes nos auditórios são acionados de forma recursiva pelas performances dos corpos e pela construtibilidade do espaço qualificado, portanto, pelo ambiente polissensível. O referencial teórico é constituído principalmente pelas contribuições de Harry Pross e Norval Baitello Jr. em relação à presença do corpo nos ambientes de comunicação; pelos trabalhos de Murray Schafer e Pierre Schaeffer sobre a constituição da paisagem sonora das cidades e os modos de ouvir; pelos conceitos de espacialidade, cidade e comunicação de Henry Lefebvre, Lucrécia D´Alessio Ferrara e ; pela concepção de arquitetura aural (sonora) desenvolvida por Barry Blesser e Juhani Pallasmaa; pelos conceitos de performance e coautoria elaborados por Paul Zumthor e pelos conceitos de vínculo, do ouvir e dos sentidos da antropologia cultural de Christoph Wulf, Bóris Cyrulnik e Michel Serres. Por meio da observação presencial dos programas radiofônicos com plateia - corpus da pesquisa - gravados e transmitidos ao vivo de auditórios localizados em diferentes endereços da Avenida Paulista, a pesquisa se direcionou para a consolidação da hipótese principal: a de que a exploração do formato dos programas de auditório, além de ser uma estratégia de marketing das atuais emissoras de rádio, é uma forma de resistência do corpo concreto e sedento de vinculação. Ao participar presencialmente dos programas radiofônicos com plateia, o ouvinte experimenta a tensão entre a comunicação presencial e os outros processos técnicos de comunicação.

Palavras-chave: Programas de auditório. Rádio. Corpo. Cultura do ouvir. Cidade. Ambientes.

"DIVING IN THE DARK " AND OTHER DIVES: AUDITORIUM PROGRAMS AS RADIO ENVIRONMENTS

ABSTRACT. This research investigates the resumption in the last 10 years on radio programs that include the attendees/audience in different auditoriums in the city of São Paulo. Within a different context than that seen in the 1940's and 1950's, known as the Brazilian radio Golden Age, auditorium programs have been established as an important instrument of the emerging entertainment media universe in the first half of the twentieth century. Currently, the scenario marked by digital network and information technologies that emphasize the sense of sight, mobility and distance communication, the resurgence of radio auditorium programs puts us in front of this research problem: to what extent the resumption of this program format by some radio stations meets the need of man to cultivate relationships that go beyond the abstract spaces proposed by contemporary media? The main aim is to investigate how the attendees’ senses in the auditoriums are recursively drived by the bodies’ performances and by the constructability in a skilled space, thus, by the multiple sensory environments. The theoretical reference is constituted mainly by contributions from Harry Pross and Norval Baitello Jr. regarding the presence of the body in communication environments; by the works of Murray Schafer and Pierre Schaeffer on the constitution of the soundscape of cities and modes of listening; by concepts of spatiality, city and communicating from Henry Lefebvre, Lucrecia D'Alessio Ferrara and Milton Santos; by the conception of aural architecture (sound) developed by Barry Blesser and Juhani Pallasmaa; by the concepts of performance and coauthorship developed by Paul Zumthor and by the concepts of bond, listening and senses of cultural anthropology from Christoph Wulf, Boris Cyrulnik and Michel Serres. Through the observation of the radio programs with attendees/ audience – research corpus - recorded and streamed live from auditoriums located at different addresses from avenida Paulista, the research is directed towards the consolidation of the main hypothesis: that the exploitation of the format of the auditorium programs, besides being a marketing strategy of the current radio stations, is a form of resistance of the concrete body thirsty of linking. During the attendance on the radio programs in the auditoriums, the listener experiences the tension between presential communication and other technical processes communication.

Keywords: Auditorium programs. Radio. Body. Listening culture, City. Environments.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Croqui de Teatro Grego e seus constituintes. Fonte: AVAAD: Ambiente Virtual de Aprendizagem em Arquitetura e Design da UFSC. Disponível em: < http://www.avaad.ufsc.br/moodle/mod/hiperbook/view.php?id=497&pagenum=2&target_nav igation_chapter=208&show_navigation=1>. Acesso em: 07 março de 2012...... p. 23

Figura 2 – Croqui de Um Anfiteatro Romano. Fonte: Dicionário Visual de Arquitetura de CHING, Francis D. K., Tradução de Júlio Fischer, 2ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014...... p. 24

Figura 3 – Anfiteatro Coliseu Romano. Fonte: arquivo pessoal...... p. 24

Figura 4 – Edifício A noite na região central do . Fonte: Livro Rio de Janeiro 1900 – 1930: Uma crônica fotográfica de George Ermakoff. Editado por G. Ermakoff Casa Editorial em 2003, Rio de Janeiro...... p. 38

Figura 5 – Avenida Rio Branco antiga Avenida Central do Rio de Janeiro, 1930. Fonte: Livro Rio de Janeiro 1900 – 1930: Uma crônica fotográfica de George Ermakoff. Editado por G. Ermakoff Casa Editorial em 2003, Rio de Janeiro...... p. 38

Figura 6 – Paulo Gracindo como animador de programa de auditório da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Fonte: Arquivo pessoal registrado na Exposição Uma rádio ligando o Brasil – memória a Rádio Nacional. Caixa Cultural Sé, São Paulo, 08 de dez. de 2012 à 25 de fev. de 2013...... p. 50

Figura 7 – Apresentação de Almira Castilho e Jackson do Pandeiro em programa de auditório na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Exposição Uma rádio ligando o Brasil – memória a Rádio Nacional. Caixa Cultural Sé, São Paulo, 08 de dez. de 2012 à 25 de fev. de 2013....p. 50

Figura 8 – Caravana para o Programa de Auditório de Paulo Gracindo, Rádio Nacional, Rio de Janeiro. Registro de 1960. Fonte: SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sonia V. Rádio Nacional O Brasil em sintonia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005...... p.57

Figuras 9, 10, 11 – Capas das Revistas especializadas no universo radiofônico. Disponível em: . Acesso em: setembro de 2012...... p. 58

Figura 12 – Programa Felicidade bate à sua porta com Emilinha Borba, Ruas do Rio de Janeiro. Fonte: SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sonia V. Rádio Nacional O Brasil em sintonia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005...... p. 62

Figura 13 – Rádio BSP – Bienal de São Paulo, 2012. Fonte: Fundação Bienal de São Paulo, Arquivo Histórico Wanda Svevo...... p. 70

Figura 14 – Rádio BSP – Bienal de São Paulo, 2012. Fonte: Fundação Bienal de São Paulo, Arquivo Histórico Wanda Svevo...... p. 70

Figura 15 – Estúdio da Rádio BSP montada no Pavilhão do prédio da Bienal de São Paulo em 2012. Fonte: Fundação Bienal de São Paulo, Arquivo Histórico Wanda Svevo...... p. 71

Figura 16 – Estúdio da Rádio BSP montada no Pavilhão do prédio da Bienal de São Paulo em 2012. Fonte: Fundação Bienal de São Paulo, Arquivo Histórico Wanda Svevo...... p. 71

Figuras 17, 18 e 19 – Estúdio móvel do Grupo Bandeirantes de Rádio de São Paulo na avenida Paulista, São Paulo. Fonte: arquivo pessoal...... p. 73

Figura 20 – Artista de Rua: Cover de Elvis Presley entre a avenida Paulista e Rua Augusta, São Paulo. Disponível em: . Acesso em: outubro de 2014...... p. 80

Figura 21 – Artistas de Rua: Cover de Michael Jackson entre a avenida Paulista e Rua Augusta, São Paulo. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/08/1498198-covers-de-michael-jackson-e-elvis- presley-disputam-calcada-no-cartao-postal-de-sp.shtml>. Acesso em: outubro de 2014....p. 80

Figura 22 – Pontos da avenida Paulista ocupados por artistas de rua. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/08/1498198-covers-de-michael-jackson-e-elvis- presley-disputam-calcada-no-cartao-postal-de-sp.shtml>. Acesso em: outubro de 2014....p. 81

Figura 23 - Ocupação da calçada da avenida Paulista, São Paulo por de artistas de rua. Fonte: arquivo pessoal...... p. 82

Figura 24 – Ocupação provisória da calçada da avenida Paulista, São Paulo por artesões. Fonte: arquivo pessoal...... p. 82

Figura 25 – Calçada da Avenida Paulista num certo sábado à noite; passagem e paragem. Fonte: arquivo pessoal...... p. 83

Figura 26 – Apresentadores do Programa Fim de Expediente com plateia, Rádio CBN. Fonte: Departamento de Marketing do Sistema Globo de Rádio...... p. 95

Figura 27 – Plateia do Programa Fim de Expediente realizado em 2012 no Sesc Vila Pompéia em São Paulo, Rádio CBN. Fonte: arquivo pessoal...... p. 95

Figura 28 – Programa No Divã do Gikovate realizado no Teatro Eva Herz em São Paulo, Rádio CBN. Fonte: Departamento de Marketing do Sistema Globo de Rádio...... p. 101

Figura 29 – Plateia do Programa No Divã do Gikovate. Fonte: Departamento de Marketing do Sistema Globo de Rádio...... p. 101

Figura 30 – Participante do Programa No Divã do Gikovate. Fonte: Departamento de Marketing do Sistema Globo de Rádio...... p. 102

Figura 31 – Zuza interage com a plateia. Disponível em: < http://albumitaucultural.org.br/notas/o-novo-programa-de-zuza-homem-de-mello/>. Acesso em: abril de 2013...... p. 110

Figura 32 – Participante que teve o CD sorteado pelo apresentador explica o porquê da sua escolha musical. Fonte: arquivo pessoal...... p. 110

Figura 33 – Plateia na Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú. Arquivo pessoal...... p. 110

Figura 34 – Carnaval de Rua na Vila Madalena em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 02 de nov. de 2014...... p. 117

Figura 35 – Festa do Buraco da Minhoca na entrada do Elevado Costa e Silva, São Paulo. Disponível: . Acesso em março de 2014...... p. 117

Figura 36 – 10ª Virada Cultural de São Paulo, 2014. Disponível em: . Acesso em: 02 de nov. de 2014..p. 117

As reproduções contidas nesse volume são somente para fins de pesquisa e divulgação científica, sem qualquer finalidade de lucro. As imagens referentes à Rádio BSP montada no Pavilhão de exposição da Bienal de São Paulo durante a sua 30ª edição foram cedidas pelo Arquivo Histórico Wanda Svevo. Os registros referentes aos programas veiculados pela CBN do Sistema Globo de Rádio também foram cedidos pelo departamento de marketing da empresa. Os termos constam no Anexos.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12

CAPÍTULO 1 – SOM E CIDADE ...... 17 1.1 Da sinuosidade da cidade medieval à metrópole polifônica ...... 27 1.2 Espaço urbano na cidade moderna e o rádio ...... 28

CAPÍTULO 2 – E A ESCUTA INAUGURA AUDITÓRIOS ...... 36 2.1 Escuta na “capital civilizada”: tensão entre esquizofonias e corpos ...... 37 2.2 Programas de auditório: alta intensidade sonora e imersão de corpos ...... 45 2.3 Programas de auditório e cidade: trânsito sonoro ...... 52

CAPÍTULO TRÊS – FONOBOLHAS URBANAS ...... 64 3.1 Reinvenções da radiofonia na cidade de São Paulo ...... 67 3.2 No meio do caminho tinha um... estúdio ...... 69 3.3 Avenida Paulista: auditórios, espaços-bolha, bolhas-acústicas ...... 75

CAPÍTULO QUATRO – CORPO E AMBIENTES EM MULTÍSSONO .. 85 4.1 Teatro e Auditório da Paulista: ambientes para ver, ouvir, tatear...... 86 4.2 Programa Fim de Expediente ...... 93 4.3 Programa Divã do Gikovate ...... 97 4.4 Programa Mergulho no Escuro ...... 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 115

ANEXOS ...... 128

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INTRODUÇÃO

Rádio e cidade. Por meio de emissões predominantemente invisíveis aos olhos, mas sensíveis ao corpo-ouvido, o primeiro meio de comunicação de massa eletrônico busca estratégias para permanecer presente no cotidiano do ouvinte e da cidade em pleno século XXI. Diante da avalanche de possibilidades que a radiodifusão multimídia oferece ao processo de produção, reprodução e compartilhamento de conteúdo, a radiofonia paulistana busca na “reciclagem” de um formato que compôs a sua programação e história durante a primeira metade do século XX, o programa de auditório, oportunidades para conquistar visibilidade na cidade e a preferência de ouvintes cada vez mais dispersos, nômades.

O programa de rádio com a presença de plateia desempenhou um importante papel político e social na consolidação da radiofonia, na disseminação de valores, costumes e ideologias, principalmente entre os anos 1940 e 1950, período conhecido como a era de ouro do rádio brasileiro.

A retomada desse formato ocorre em um contexto no qual as trocas de dados e bens simbólicos são predominantemente mediadas pelas tecnologias de comunicação e informação digitais, que encurtam ainda mais as distâncias e sobrepõem diferentes tempos, conectam indivíduos cujos corpos se encontram fisicamente separados. Com a disseminação das tecnologias digitais e a popularização de dispositivos móveis, o próprio rádio incorpora, à sua dinâmica de produção e disponibilização, recursos técnicos que permitem ao ouvinte- internauta a audição ao vivo da programação, ou de conteúdos arquivados em suas plataformas na internet. Portanto, os programas de auditório contemporâneos podem ser acompanhados à distância e em alguns casos permitem a participação do ouvinte por meio de instrumentos como correio eletrônico e redes sociais digitais (facebook, twitter, whatsapp e outros).

No entanto, ao acompanharmos as transmissões ao vivo pela internet, pelas ondas do rádio e ao frequentarmos presencialmente os locais onde ocorrem os programas em questão, foi possível constatar a realização de fenômeno complexo que atribui aos envolvidos presencialmente papéis intercambiáveis e interinfluentes na construção de um ambiente comunicacional. Tal constatação nos mobilizou em direção ao problema que norteia esta

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pesquisa, ou seja, em que medida a retomada dos programas de auditório nas programações das atuais emissoras de rádio de São Paulo vai ao encontro da necessidade do homem em manter vínculos concretos e presenciais que complementem os espaços abstratos propostos pela mídia, em especial na era da digitalização? Em que medida a retomada da dinâmica deste formato de programa por determinadas emissoras radiofônicas vai ao encontro da necessidade do homem de cultivar vínculos que extrapolem as conexões abstratas propostas pela mídia contemporânea?

A hipótese principal que permeou a pesquisa é de que, apesar das possibilidades de participação à distância, o ouvinte busca nos programas de auditório uma opção de vinculação presencial, mas não como oposição à comunicação à distância mediada por aparatos técnicos eletrônicos ou digitais – a comunicação terciária definida por Harry Pross (1971). A perspectiva que adotamos nos permite conjecturar que nos programas em questão, comunicação presencial (primária) e terciária ocorrem misturadas e reforçam-se, constituintes de um ecossistema que mistura corpos, espaços e equipamentos. Indícios de uma ecologia da comunicação (ROMANO, 2004) que não reclama somente da falta de relações presenciais, mas aponta para o fato de que, mesmo com a possibilidade de se usar mídias digitais, às vezes o corpo irrompe e pede pelo corpo.

A perspectiva de compreensão do corpo a partir das múltiplas interações dos seis sentidos (audição, visão, tato, paladar, olfato e propriocepção) nos ambientes comunicacionais permite a contextualização desta pesquisa nas teias das imbricações entre corpo, comunicação, vinculação, cidade e cultura. O referencial teórico é constituído principalmente pelas contribuições de Harry Pross e Norval Baitello Jr. em relação à presença do corpo nos ambientes de comunicação; pelos trabalhos de Murray Schafer e Pierre Schaeffer sobre a constituição da paisagem sonora das cidades e os modos de ouvir; pelos conceitos de espacialidade, cidade e comunicação de Henry Lefebvre, Lucrécia D´Alessio Ferrara e Milton Santos; pela concepção de arquitetura aural (sonora) desenvolvida por Barry Blesser e Juhani Pallasmaa; pelos conceitos de performance e coautoria elaborados por Paul Zumthor e pelas abordagens sobre vínculo, o ouvir e os sentidos da antropologia cultural de Christoph Wulf, Bóris Cyrulnik e Michel Serres. O modelo de comunicação orquestral estudado pelo pesquisador belga Yves Winkin (1998) também se revelou adequado para nos subsidiar neste processo de compreensão do ambiente (ou ecossistema) comunicativo configurado a partir dos programas de auditório, em especial, os contemporâneos. Apesar de seus roteiros e regras,

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a constatação de que o formato em questão lida com diferentes graus de imprevisibilidade, resultado da interação entre os corpos participantes, presentes e/ou ausentes fisicamente, o aproxima do modelo orquestral, ou seja, uma perspectiva de comunicação não linear.

Portanto, para além de meio de comunicação para a transmissão de informações de forma unidirecional, os programas de auditório são abordados nesta pesquisa como ambientes de comunicação e vinculação. Uma perspectiva que dialoga com as reflexões cultivadas pelos pesquisadores do CISC (Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica e do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura do Ouvir da Faculdade Cásper Líbero, ambos de São Paulo.

Neste sentido, o percurso trilhado nesta pesquisa teve como objetivo compreender o corpo como catalisador de processos e ambientes comunicacionais e a relevância dos espaços de encontro, como os auditórios e teatros onde são realizados os programas, considerando especialmente que uma megalópole como São Paulo é marcada por uma lógica urbanista que instituiu a rua como local de passagem com diferentes graus de periculosidade.

Para a eleição dos programas que compõem o corpus, adotamos como parâmetro a regularidade e a produção, gravação ou transmissão ao vivo dos programas em auditórios ou teatros localizados na avenida Paulista, na região central da cidade de São Paulo. A “Paulista” foi eleita por ser uma avenida plural e dinâmica, com dimensões visuais e sonoras singulares que ora cegam e ensurdecem devido à saturação, ora cativam e seduzem o transeunte para uma pausa, para participação em um jogo, num Mergulho no Escuro, juntamente com o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello, ou para a partilha de questões subjetivas No Divã do médico e psicanalista Flávio Gikovate, e que pode ser o início do Fim de Expediente apresentado por Dan Stubach, José Godoy e Luís Gustavo Medina.

Os programas No Divã do Gikovate e Fim de Expediente fazem parte da programação da Rádio CBN do Sistema Globo de Rádio. O programa Mergulho no Escuro é veiculado pela rádio web do Instituto Cultural Itaú e realizado ao vivo uma vez por mês. Todos os programas são disponibilizados enquanto arquivos de áudio nos portais da emissora e do instituto.

No primeiro capítulo, partimos da dinâmica de formação das cidades como um processo contínuo iniciado com a sedentarização do homem. A organização do espaço surge

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como um registro que revela as relações de poderes, os valores, as crenças e os modos de pensar, agir e de comunicar de um povo. Considerada por Lefebvre (2008) como uma das mais belas criações humanas, destacamos a importância dos espaços de encontro que acompanham o homem desde seus agrupamentos mais rudimentares. Neste percurso a ágora e o teatro da pólis grega ganharam destaque por revelarem a valorização atribuída aos espaços de encontros e de diálogos presenciais, notadamente marcados pelos índices da cultura oral, ou seja, pela palavra vocalizada e gestualidade dos corpos. Passando pelas vielas e ruas tortuosas das cidadelas medievais, desembarcamos nas cidades formadas a partir do adensamento populacional de mão de obra migrante, principalmente das áreas rurais, para o trabalho em fábricas e indústrias. Cidades europeias cujo processo de urbanização culmina em cidades racionais e funcionais. Neste cenário polifônico das cidades, destacamos o fenômeno da esquizofonia como apresentado pelo pesquisador canadense Murray Schafer, ou seja, a reprodução de sons desvinculados de seu local de produção, o impacto no processo de escuta e o surgimento do primeiro meio de comunicação eletrônico de massa, o rádio.

No capítulo dois, iniciamos com o processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, ocorrido no final do século XIX e início do XX, cujo objetivo era o de aproximar a capital da jovem república brasileira aos símbolos da modernidade. A meta foi destacar a importância do rádio como instrumento para o cultivo de valores e costumes ditos civilizados e o surgimento dos programas de auditório como estratégia para disputar a audiência com as demais emissoras radiofônicas. A relação entre os programas de auditório, ouvintes e a cidade, mais especificamente, a região central da capital carioca, são destacados para subsidiar a reflexão sobre a contínua alteração da paisagem urbana (SCHAFER, 1997), sobre a sinergia promovida pela imersão de corpos em um ambiente programado para ver, ouvir e acionar os demais sentidos e a transposição desta sonoridade para os espaços públicos da cidade.

No capítulo três sintonizamos e nos conectamos com o rádio no atual contexto de convergência midiáticas e das possibilidades de conexão à distância para identificarmos, no seu processo de midiamorfose (FIDLER, 1998) e cumulatividade (PROSS), as estratégias para se manter próximo ao cotidiano da cidade e do ouvinte. As reinvenções da radiofonia passam pelos estúdios móveis instalados em espaços coletivos ou públicos, como a avenida Paulista. A própria avenida merece destaque não somente por sua centralidade econômica, de lazer e turismo, mas como espaço de encontro com dimensões visuais e sonoras particulares,

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resultado de diversos fatores, dentre eles os espaços-bolhas ou bolhas–acústicas instantâneas e provisórias.

No capítulo quatro apresentamos a análise dos programas que compõem o corpus da tese, antecedida pela apresentação das características espaciais, visuais, sonoras e de iluminação do Teatro Eva Herz do Conjunto Nacional e da Sala Vermelha do Centro Cultural Itaú. Elementos que contribuem para a instauração de um ambiente polissensível, ou seja, um ambiente qualificado para o acionamento dos sentidos dos corpos envolvidos em um processo de comunicação orquestral. No decorrer das análises são apresentadas parte das informações e ponderações dos ouvintes integrantes da plateia, dos apresentadores e idealizadores dos programas de auditório em questão, obtidas por meio de pesquisa (aplicação de questionário com perguntas abertas) e de entrevistas qualitativas. Optamos por estabelecer uma ordem para apresentação das análises dos programas, ou seja, partimos do Fim de Expediente que no processo de análise, observamos com menor abertura para a incorporação de elementos novos que eventualmente surgissem no decorrer do programa. O segundo programa No Divã do Gikovate e o terceiro Mergulho no Escuro são programas que dependem dramaticamente da presença física da plateia e de sua atuação como coautores. No entanto, a surpresa, o acaso e o indeterminismo encontram mais espaço no terceiro programa.

Nas considerações finais, articulamos um conjunto de observações empíricas e sensibilidades teóricas para apresentar ao leitor a forma como progressivamente descobrimos que, entre outros fatores, características ou limites, nos atuais programas de auditório onde corpo irrompe pedindo corpo.

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CAPÍTULO 1 – SOM E CIDADE

O modo de ouvir nas grandes cidades contemporâneas1 tem raízes na dinâmica de formação das primeiras ocupações humanas, que nascem com o processo de sedentarização do homem. Ao se fixarem em determinado território, as pessoas estabelecem novas relações com a natureza – com novas técnicas de plantio, criação de animais, construção de abrigos – e novas relações sociais, com aqueles que habitam o mesmo local. Assim, para compreendermos o ouvir na cidade e o significado do fenômeno que estudaremos, os programas radiofônicos realizados em teatros ou auditórios com a presença da plateia, ou simplesmente, os programas de auditório na contemporaneidade, entendemos como necessário traçar um panorama sobre as transformações nas formas de se ouvir na medida em que foram se configurando as cidades e, depois, as metrópoles e megalópoles.

Se a existência da cidade está diretamente ligada à organização da vida social que normatiza o convívio e a produção coletiva, a organização do espaço, sempre provisória, surge como um texto, uma escrita, um registro que revela as relações de poderes, os valores, as crenças e os modos de pensar, agir e de comunicar de um povo. Ao analisar seu surgimento, o historiador Lewis Mumford (1965) observa que o processo de fundação das cidades romanas na Antiguidade era antecedido pelos augúrios2 sagrados, cuja intenção era a de certificar-se da aprovação dos deuses. A relação do surgimento da cidade com a mitologia, a transcendência, a Segunda Realidade (BRISTRYNA, 1995) fica ainda mais evidenciado com o fato de que o “traçado dos contornos da cidade era feito por um sacerdote que guiava a charrua” (MUMFORD, 1965, p. 270) e que, antes mesmo do seu erguimento efetivo, os locais em que as cidades surgiam geralmente eram templos reservados para cerimônias e ritos. Talvez tal indício forneça explicação para a capacidade de atração, o caráter de imã (magnet) intrínseco à cidade de atrair e reunir inúmeros e diversos grupos.

1 A noção de contemporaneidade é complexa e, por isso, estudada a partir de diferentes correntes do pensamento 2 O termo augúrio deriva do latim argur, arguris, que significa: adivinhação, agouro, presságio, vaticínio. Gregos e romanos, nos tempos dos Césares, faziam distinção entre augúrio e presságio. O augúrio se compreendia por meios de sinais rebuscados e interpretados segundo as regras de arte augural. Nesse tempo, sacerdotes especiais, os Augures, utilizando-se das regras da arte augural, prognosticavam observando o voo e o canto dos pássaros. O Augure é uma instituição romana.

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Assim foram os primeiros embriões de cidade de que se tem notícia, os zigurates3, templos erigidos pelos sumérios e babilônios nas planícies da Mesopotâmia por volta do terceiro milênio antes da era cristã. Geralmente, a construção do local cerimonial corresponde a uma transformação na maneira dos homens ocuparem o espaço. “A garantia do domínio sobre este espaço está na apropriação material e ritual do território [...] O Templo era o imã que reunia o grupo. A cidade dos deuses e dos mortos precede a cidade dos vivos, anunciando a sedentarização.” (ROLNIK, 1998, p. 13-14)

Embora as noções de cidade e urbanização apareçam ligadas ao processo de industrialização, motor das transformações da sociedade moderna, o sociólogo francês Henry Lefebvre (1972, p. 30) lembra-nos que a cidade enquanto lugar de vida, morada do homem em constante organização é algo decorrente da natureza humana. As práticas sociais de reunião e encontro, constituintes da forma urbana, acompanham o homem desde seus primeiros agrupamentos; portanto, a cidade antecede à industrialização, sendo considerada por Lefebvre (2008, p. 52) como uma das criações urbanas mais eminentes, as obras mais “belas” da vida urbana, “belas”, como geralmente se diz, porque são antes obras que produtos.

Como explica Lefebvre (2008), obras no sentido de que as cidades não são conglomerados de formas, objetos-ações que obedecem unicamente à logica de circulação, funcionalização e valor de troca. Mas são espaços em harmonia com a proposta de vida vivida. Obra no sentido de cidade como invenção humana em constante transformação, resultado e ao mesmo tempo condição da tensão entre ordens próximas (relações diretas entre pessoas e grupos mais ou menos amplos, mais ou menos estruturados) e distantes (normatizações e lógicas das instituições de poder).

Nesse contexto, e com o objetivo de pontuar espaços de encontro e interações de corpos, discussões de ideias e trocas comunicativas, destacamos a cidade arcaica antiga representada pela pólis grega. Erguida nas abruptas encostas escarpadas do Mar Egeu, a cidade grega diferenciava-se daquelas que surgiram junto a grandes vales de rios (como Nilo, Tigre-Eufrates, Indo, Huang-ho) que garantiam mobilidade, contatos, fertilidade do solo e alimento à população. A constituição das cidades egeias é marcada pelo clima, topografia e

3 De acordo com Murray Schafer (1997, p. 133), na mitologia babilônica há referências a uma sala especialmente construída em um dos zigurates, onde os sussurros permaneciam para sempre. Numa antiga lenda chinesa, um rei tem uma caixa preta secreta na qual ele profere suas ordens, mandando-as depois a seus ministros para que as faça percorrer todo o reino. Tal descrição aponta para o desejo de preservação do som e da audição nas comunicações ancoradas na voz.

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agricultura notadamente caracterizada pelo cultivo de grãos, árvores frutíferas e produtoras de bagas, como a oliveira e o castanheiro. Em decorrência destas condições naturais, o desenho da pólis e seus diversos espaços foram traçados em consenso com os limites e potencialidades naturais das encostas das montanhas, como ocorre com o teatro e a ágora.

A cidade grega era tomada como o espaço do trabalho intelectual, das atividades políticas, da elaboração do conhecimento teórico, mas não em oposição ao campo, reconhecido como o lugar do trabalho material, artesanal, da prática e do contato com a natureza. Portanto, apesar de aparente oposição, em uma cidade grega estava contemplada a relação entre a aldeia, fonte de suprimentos materiais, como cereais, lãs, mel, e imateriais, tais como costumes, valores e comportamentos: independência, autonomia, isolamento e valorização do tempo livre para o lazer, para o encontro.

Havia sempre um poderoso fluir para dentro e para fora da cidade [...] A dimensão de aldeia predomina no desenvolvimento das cidades gregas. As práticas democráticas da aldeia, sem fortes clivagens de classe ou vocação, incentivavam o hábito de se aconselhar em conjunto. A maior desculpa para a cidade, como uma aldeia maior, era a de que alargava o círculo dos possíveis oradores. (MUMFORD, 1965, p. 170)

A estrutura e as práticas sociais que caracterizaram a cultura grega reverberaram diretamente nos modelos de comunicação praticados ou predominantes. O aconselhamento em conjunto, o círculo de oradores, a valorização dos espaços de encontros e de diálogos presenciais, notadamente marcados pelos índices da cultura oral, favorecem o aprendizado da prática da comunicação dialógica. O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser (2012), ao eleger diferentes tipologias e aspectos que compõem o tecido comunicativo social, destaca a comunicação dialógica e a comunicação discursiva como os tipos de comunicação presentes na sociedade em geral. A análise do autor aponta para a inevitável sinergia entre as duas formas e que a tensão entre ambas é uma qualidade almejada.

Para que surja um novo diálogo, precisam estar disponíveis as informações que foram colhidas pelos participantes graças à recepção de discursos anteriores. E, para que um discurso aconteça, o emissor tem que dispor de informações que tenham sido produzidas no diálogo anterior [...] Cada diálogo pode ser considerado uma série de discursos orientados para a troca. E cada discurso pode ser considerado parte de um diálogo [...] Embora estejam implicado um no outro... Participar de um discurso é uma situação totalmente distinta da de participar de diálogos. (FLUSSER, 2012, p. 97)

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Dessa perspectiva flusseriana, o tipo de comunicação da cultura grega arcaica, tecida por meio de relações presenciais, codificada predominantemente pelos recursos expressivos da palavra vocalizada e pela gestualidade dos corpos (característicos da tradição oral) aponta para a relevância dos espaços de encontros que, como veremos adiante, podem ter relação com os espaços de encontro dos programas radiofônicos realizados com a presença de espectadores-ouvintes em teatros e auditórios, objetos desta pesquisa.

Na cidade, os espaços de encontro comunal eram representados pela ágora e pelo teatro. O que ocorria junto a uma árvore sagrada ou a uma fonte nas aldeias para discutir e enfrentar as dificuldades comuns, reestabelecer a harmonia após embates, manejar negócios, celebrar por meio de danças e jogos, na pólis é concretizado na ágora. No decorrer do desenvolvimento da cidade grega, esse local central, aberto e público de assembleia em que integrantes da cidade se reuniam, configura-se espaço múltiplo e acumula diversas atribuições, como a de mercado; mas a função mais antiga, primeira, que persiste, é a de encontro comunal.

Em seu estado primitivo, a ágora era, acima de tudo um lugar destinado à palavra, e provavelmente, não existe sequer um mercado urbano em que a troca de notícias e opiniões, pelo menos no passado, não desempenhou um papel quase tão importante quanto a troca de mercadoria. (MUMFORD, 1965, p. 197)

Enquanto espaço urbano, a ágora grega é reconhecida como a praça principal da cidade onde circulam mercadorias, ideias e pessoas. Como ponto central da vida pública e lugar de encontro para a realização de diferentes atividades, a ágora é instalada em lugar aberto, fixo, permanente e rodeado por edifícios públicos. Para a democracia grega, a ágora era o espaço público mais visado e valorizado onde ocorriam discussões políticas e deliberações relevantes para a vida dos membros da sociedade como um todo.

Na ágora, os cidadãos4 tinham direito a voz e voto. E, como lugar da palavra, a ágora é lugar do conhecimento intersubjetivo, da conversação (FLUSSER, 2011)5, da interação, de

4 À medida que ocorrem as transformações histórico-sociais e políticas, as cidades gregas tornam-se símbolo da cultura urbana helênica. Em particular Atenas, os princípios democráticos são considerados os traços distintivos diante de outras culturas, como a Persa. No entanto, a segregação e o monopólio contrastavam com o próprio princípio democrático. A democracia ateniense excluía o estrangeiro, a mulher e o escravo, que constituíam uma

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trocas e trânsitos comunicativos na cidade. É, portanto, lugar do corpo. A descrição do historiador francês Gustavo Glotz em História Econômica da Grécia (1946) revela a intensidade e multiplicidade de funções e possibilidades comunicativas que a ágora desempenhava na cidade.

Aí palpita durante todo o dia a vida política, social e econômica da grande cidade. Nas extremidades da praça erguem-se as repartições dos magistrados, com os editais que atraem os curiosos. A multidão abriga-se debaixo dos pórticos de finas colunatas. Passa diante dos afrescos do ilustre Polignoto e aflui aos “Hermes”, onde os homens de negócio debatem as cotações, os interessados pela política discutem a ordem do dia da próxima assembleia, os basbaques ouvem os pregoeiros públicos, os ociosos cavaqueiam, agitando os seus bordões nodosos, os jovens elegantes fazem flutuar com gracilidade as pregas das suas compridas túnicas brancas. Cruzam-se em todos os sentidos todos os que têm alguma coisa para vender: escravos com fazendas que acabam de fabricar, artífices do cerâmico, de Mélite, ou das Escambônidas, saloios que partiram da sua aldeia antes da alba, megáricos a guiarem porcos, pescadores do lago Copais. Pelas aleias plantadas das árvores encaminham-se para os setores reservados às diversas mercadorias e separados por divisórias móveis. Sucessivamente, às horas fixadas pelo regulamento, abrem-se os mercados de legumes e hortaliças, de frutas, de queijo, de peixe, de carne, de carne de porco, de aves da capoeira e de caça, de vinho, de lenha, de olaria, de objetos de segunda mão, de quinquilharia. Há até um canto para os livros. Cada mercador tem o seu lugar, que o pagamento de um direito lhe garante; à sombra de um toldo ou dum guarda-sol, expõem os seus artigos em mesas, ao pé da sua carroça e dos seus animais que estão a descansar. Os fregueses circulam; os vendedores interpelam-nos; os moços de recados e de fretes oferecem os seus serviços (...) Quando acabam os mercados ao ar livre, a clientela passa à praça coberta, bazar à oriental. Ao fundo estão os balcões. Todos estes vendedores em relato têm má fama. Os fregueses queixam-se da sua violência e grosseria. As mulheres que ganham a vida na rua ou na ágora e as taberneiras são suspeitas de comportamento imoral; a lei não admite ações de adultério contra este gênero de pessoas. Mas aos pequenos comerciantes censuram-se, sobretudo, os seus hábitos de rapacidade, de deslealdade, de mentira. Pedem preços exorbitantes, falsificam os gêneros, enganam no peso, roubam nos trocos. (GLOTZ, 1946, p. 254-255)

parcela significativa da população total, comprometendo de certa forma a liberdade e a igualdade, princípios tão caros à democracia ateniense. 5 Vilém Flusser, no artigo Nossa Comunicação, reunido na obra Pós-história: vinte e um instantâneos e um modo de usar, inicia fazendo uma distinção entre dois modos de conhecimento, o “objetivo” que fala sobre objetos e é nomeado de discursivo e o conhecimento “intersubjetivo” que fala com os outros, nomeado de dialógico. De acordo com Flusser, “o que distingue o discurso do dialógico é, sobretudo o clima: o diálogo se dá em clima de responsabilidade” (2011, p. 71). Responsabilidade, segundo o filósofo, entendida como abertura para respostas.

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Esse lugar polivalente e polifônico, de intensas relações sociais cotidianas, de debates e decisões políticas, de acontecimentos e estímulos simultâneos e concorrentes, de proximidade e confrontos de corpos e sentidos, deve ser entendido para além de um espaço arquitetônico planejado e calculado. Como organismo vivo, a ágora abriga possibilidades de comunicação e de incomunicação e pode ser entendida como um ambiente comunal, um centro dinâmico que convoca múltiplas percepções sensoriais da multidão formada por passantes, comerciantes, magistrados, sacerdotes, artistas, pregoeiros, artesões, guerreiros, estrangeiros, aldeões, cidadãos, dente outros.

Assim como a eloquência e a capacidade de seduzir a escuta da audiência não são competências restritas aos juízes, magistrados, sacerdotes e cidadãos gregos, a ágora não era o único ambiente de escuta e encontro das cidades egeias. O teatro, representação cênica e espaço arquitetônico, é comumente reconhecido como uma das contribuições dos gregos à cultura das cidades. Historicamente (MUMFORD, 1965), a forma embrionária do teatro grego existia nos ritos de fertilidade da aldeia que consistiam em procissões compostas por mascarados e fantasiados que entoavam, em coro, cânticos líricos em honra a Dionísio, considerado deus da vegetação, da fertilidade e do vinho. O canto, conhecido como ditirambo (hino em uníssono), era constituído por uma parte narrativa recitada pelo corifeu, o cantor principal, e outra parte entoada pelo coro, composto por personagens vestidos de sátiros, divindades menores da mitologia grega, seres da natureza, metade homem, metade animal, que, embora considerados divinos, não eram imortais. Alguns dos rituais religiosos de celebração, que inicialmente utilizavam pátios circulares de debulha, passaram a reunir milhares de pessoas nas cidades, evoluindo para a forma de representação plenamente cênica6 em espaço intencionalmente construído para este fim, o teatro.

Os teatros e anfiteatros, idealizados por arquitetos gregos e, posteriormente, romanos, eram configurados como um espaço com qualidades específicas para ver e ouvir. Os teatros gregos eram moldados em formatos semicirculares construídos nas encostas rochosas, preferencialmente côncavas, permitindo a criação de filas de bancadas concêntricas com intervalos regulares. Essa disposição física permitia que todos os espectadores ficassem

6 No teatro tem-se a introdução do texto dialogado e recitado que abre espaço para a figura individual do ator e confere ao coro (coletivo e anônimo) o papel de intermediário entre este e a plateia. Por meio de danças e canções, o coro representava os sentimentos, narrava as façanhas do herói e estabelecia um vínculo com os espectadores. O envolvimento da plateia dá-se na presença e proximidade dos corpos, nos recursos cênicos, na potência musical e sedutora da voz e na configuração do espaço do teatro e anfiteatro. O teatro grego floresceu entre os anos 550 a.C. e 220 a.C. A tradição grega depois foi herdada por outras culturas, como a romana.

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posicionados de frente para o palco, favorecendo a acústica do ambiente com assentos estrategicamente instalados a céu aberto em acentuado declive sem dispersão do som. O Teatro de Epidauro, com capacidade para treze mil espectadores, foi construído na primeira metade século IV a.C. pelo escultor grego Policleto, considerado, ao lado do Teatro de Delfos, um importante exemplo de teatro, sobretudo pela sua notável acústica.

No croqui abaixo é possível observar e identificar os principais elementos que compõem a estrutura arquitetônica do teatro grego. Destacamos o “auditório”, local a céu aberto reservado para os espectadores, a plateia como conhecemos hoje, cuja ocupação dos assentos variava de acordo com a classe social do espectador. Portanto, auditório é um elemento arquitetônico dos teatros gregos e romanos. No entanto, além do teatro, temos o auditório como uma construção arquitetônica em si, geralmente destinado às reuniões, palestras ou encenações que não exijam elementos como coxia, camarim, cortina, profundidade de palco, urdimento (espaço acima do palco de um teatro utilizado para guardar e pendurar cenários e equipamentos) e outros.

Figura 1: Croqui de Teatro Grego e seus constituintes. (Todas as fontes constam do índice de figuras)

No teatro romano, a área do auditório também era conhecida como cavea, ou seja, uma série de assentos escalonados em fileiras horizontais cuja ocupação também era diretamente relacionada ao papel social do espectador. Os anfiteatros, por sua vez, eram arenas ovais ou circulares com assentos a céu aberto para o espectador. Na Roma Antiga, os

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anfiteatros foram resultantes da adaptação dos teatros gregos para servirem aos combates de gladiadores, animais selvagens e demais atividades de entretenimento público. Há relatos de que alguns desses anfiteatros eram preenchidos com água quando se tratava de espetáculos com combates navais. O maior e mais conhecido é o Coliseu de Roma, que, assim como o Anfiteatro Arena de Verona, podia acomodar até 40.000 espectadores.

Figuras 2 e 3: Croqui de Anfiteatro Romano e Coliseu de Roma, Itália.

A configuração semicircular do teatro e a circular do anfiteatro, que permite a ocupação dos espectadores em ambos os lados, remetem igualmente à configuração circular dos espaços de encontros (praças, ágora e ajuntamento ao redor das árvores sagradas ou de fontes), o que nos permite deduzir que os integrantes da plateia participavam de maneiras diversas.

Enquanto espaços de encontro, o teatro e a ágora grega são ambientes7 complexos nos quais há predominantemente a comunicação oral/presencial através de relações face a face, com o corpo como mídia fundamental, mídia primária, conforme conceito criado por Harry Pross. Segundo a Teoria dos Media desenvolvida por esse autor e jornalista, os processos de comunicação sempre têm como início e fim o corpo e, portanto, ele é o elemento fundamental, independente dos meios utilizados. Dentro dessa perspectiva, encontramos três tipos de comunicação a partir das mediações: a mediação primária ou os meios primários, os meios secundários e os meios terciários.

A comunicação primária requer a presença em um determinado tempo e espaço compartilhado pelos corpos envolvidos. Por sua vez, esta comunicação presencial ocorre por

7 A noção de “ambiente” será explicada no decorrer dos capítulos. Por ora, é suficiente o entendimento de que um ambiente é constituído pelas trocas comunicativas entre corpos presentes e pela construtibilidade do espaço em questão.

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meio do embate de recursos corporais, como através da voz, da gestualidade performática, dos odores naturais. Na comunicação por meios secundários, temos a expansão do tempo e do espaço, ou seja, um corpo, por meio de suportes materiais (pedra, ossos, madeira, papel e outros) consegue perpetuar e levar suas marcas (imagens, escrita) até outros corpos sem que seja necessária a presença.

Finalmente, os meios terciários, que surgem com a eletricidade e a criação de aparatos que transmitem instantaneamente mensagens para outros aparatos similares, ou remetem a mensagens gravadas em suportes que podem ser decodificadas por aparelhos similares. Do telefone, passando pela telegrafia, pela radiofonia, pela televisão, até chegarmos à comunicação mediada pelos computadores, temos a comunicação terciária. Mas como nos chama a atenção o estudioso da Teoria da Mídia Norval Baitello (2010, p. 62–63), é importante observarmos três questões fundamentais na teoria de Harry Pross.

A primeira é o destaque para a constatação de Pross de que “independentemente do grau de complexidade da mediação, primária, secundária ou terciária, sempre há um corpo no início e no final de todo o processo de comunicação”.

A segunda questão fundamental levantada por Baitello (2010) é de que há uma cumulatividade na passagem da comunicação primária para a secundária e da secundária para a terciária: “cada uma delas possui suas vantagens e desvantagens, seu potencial maior ou menor, sua melhor ou menos adequada aplicabilidade para cada determinada situação”.

E, por fim, mas não menos importante, é a constatação da expansão do pensamento de Pross sobre o conceito de mídia: “não apenas os meios de massa e os protomeios de massa como a escrita e a imagem, mas também os meios de comunicação interpessoal como a oralidade e a escuta, o gesto e a visibilidade, a comunicação olfativa que move hoje os poderosos mercados, os vínculos gustativos com o mundo que igualmente são cultivados como estratégia de sociabilidade” (BAITELLO, 2010, p. 62–63).

Norval Baitello (2008, p. 96), ao refletir sobre a corporeidade como elemento fundante da comunicação humana, ressalta as suas infinitas possibilidades comunicativas. Partindo da concepção de Harry Pross de conceber o corpo como portador dos primordiais meios de comunicação, Baitello destaca o seu papel enquanto catalisador inicial de um ambiente comunicacional. “Sua simples presença gera a disposição de interação, desencadeia processos

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de vinculação com o meio, com os outros seres do entorno e com seus iguais” (BAITELLO, 2008, p. 99).

Tais elaborações dialogam com aquelas descritas por Paul Zumthor (2000), estudioso dos fenômenos da oralidade. Para ele, a proximidade e gestualidade dos corpos, a performance, as qualidades e possibilidades vocais atuam como meios primários de um sistema perceptivo e cognitivo em uma cultura predominantemente oral. Embora a escrita já existisse como sistema de ordenamento e comunicação voltado para a visão, a voz, assim como o gesto do corpo e o cenário, atuavam como condição para o acontecimento desses textos orais e escritos. Estes textos apresentados pela e na voz em um determinado espaço e tempo, Paul Zumthor nomeia de “obra” e é “no nível da obra que se manifesta o sentido global, os múltiplos elementos significantes, auditivos, visuais, táteis, sistematizados ou não no contexto cultural” (2000, p. 88).

Portanto, o engajamento do corpo, a simultaneidade de interações, o intercâmbio e a porosidade de papéis entre aquele que fala, interpreta ou declama e aquele que escuta, responde e interage, fornecem os recursos intrínsecos para estabelecer uma comunicação efetiva e afetiva que não pode ser confundida com a concepção funcionalista que estabelece papéis estanques como “emissor” e “receptor”. Em diálogo com essa perspectiva, Baitello (2008, p. 99) adverte que “um corpo não se reduz a um único vetor ou a uma única direção de vinculação, tampouco se reduz à unidimensionalidade de processos lineares ou lógico- formais, muito menos à pura mediação”. Trata-se, portanto, de uma experiência comunicativa presencial e repleta de possibilidades e imprevisibilidades que podem ocorrer em ambientes comunicacionais abertos às percepções multissensoriais.

A obra da voz e pela voz conforme delineada por Paul Zumthor (2000) surge como um acontecimento da cidade arcaica quando esta é vivenciada como espaço de relacionamentos, ou seja, como espaço de interação na perspectiva sistêmica da interdependência das ações dos sujeitos conforme estudado pelos pesquisadores Gregory Bateson e Erving Goffman. A cidade, explica Lefebvre (2008, p. 52-53), não se reduz às condições históricas, embora seja obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que a realizam nas condições de um momento limitado pelo tempo. A cidade é um devir, um vir a ser também forjado nas relações e práticas sociais cotidianas, que podem proporcionar a vivência da cidade como valor de uso.

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Nesse sentido, a celebração na cidade como espaço de trocas, encontros e interações não se encontra desvinculada dos processos de comunicação e de informação. À medida que nos distanciamos das cidades arcaicas e avançamos em direção às cidades modernas e contemporâneas, novas formas de comunicação propiciam o desencadeamento de diferentes experiências perceptivas do indivíduo com o seu próximo, com os ambientes sonoros e com o espaço urbano.

A própria cidade passa por transformações arquitetônicas e geográficas em função do adensamento populacional, do desenvolvimento e intensificação das atividades comerciais, dos meios técnicos de produção de bens duráveis, de transportes e dos meios eletrônicos de comunicação a distância. Estas transformações serão estudadas a seguir.

1.1 Da sinuosidade da cidade medieval à metrópole polifônica

As ruas estreitas, as vielas sinuosas, os traçados orgânicos desenhados em conformidade com a topografia do território caracterizavam a cidadela medieval que se estruturava, geralmente, em torno da Igreja e suas instituições. “O desenho das ruas e praças de um burgo [...] não obedecia a qualquer traçado preestabelecido [...] Nada de quadriculado que se repete nas quadras e quadras, nada de praças regulares, na cidade medieval tudo é sinuosidade, descontinuidade, surpresa” (ROLNIK, 1998, p. 32-33).

A voz, a presença do corpo, o encontro face a face no espaço concreto seriam condições para a possível memorização e perpetuação dos textos orais – valores, normas e conhecimentos – adquiridos e propagados por meio de relações cotidianas, rituais e procissões de agradecimento, festas religiosas, mutirões e cortejos que engendravam os acontecimentos nas ruas e praças da cidade medieval. A situação comunicativa característica da cidade medieval não se distanciava das cidades antigas, ou seja, tratava-se de uma comunicação que ocorria em um tempo e espaço definidos e baseados em potencialidades expressivas do corpo e da voz. Os sons estão ligados aos mecanismos que o produzem, são originais e se propagam no limite do seu alcance. Apresentavam-se como sociedades predominantemente orais ou de oralidade primária em que, de acordo com Paul Zumthor (1993), a presença da escrita é praticamente nula e o corpo atua como mídia primária.

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A cidade é espaço de vida, um organismo vivo que nasce, amadurece e envelhece. E neste continnum, a cidade medieval europeia, delimitada por muralhas e atividade econômica predominantemente baseada na prática agrícola e ofício dos artesões, passou por transformações à medida em que a economia mercantil (séculos XV–XVII) se expandiu, provocando a circulação de mercadorias, a necessidade da produção de excedentes para comercialização e novas configurações do espaço urbano e da comunicação. A cidade moderna, ao mesmo tempo, condição e resultado da intensificação do comércio e da passagem da produção manufatureira à produção industrial (mecânica a vapor e elétrica), surge inaugurando novas práticas sociais e comunicativas.

1.2 Espaço urbano na cidade moderna e o rádio

O crescimento e adensamento populacional8, a expansão do comércio, a reconfiguração do espaço urbano para o rápido deslocamento de pessoas, a circulação de mercadorias (por meio de transportes elétricos ou movidos por combustíveis derivado do petróleo), a separação entre local de trabalho e de moradia, a delimitação entre zonas residenciais de proprietários dos meios de produção e as dos trabalhadores assalariados, dentre outros acontecimentos, embalam radicais transformações na forma de organização da cidade. Nesse contexto de demarcações e funcionalização de territórios, a relação dos indivíduos com o espaço urbano adquire novas nuances, a começar pelo surgimento do modelo de moradia burguesa orientado sob o signo da intimidade, do espaço privado. Em relação ao espaço público, observa-se o esquecimento da rua como lugar de trocas cotidianas e de socialização. A rua agora é redefinida como via de passagem de pedestres e veículos.

Para a burguesia, o espaço público deixa de ser a rua – lugar de festas religiosas e cortejos que engloba a maior variedade possível de cidades e condições sociais – e passa a ser a sala de visita, ou o salão (...) ‘rua’ e ‘casa’

8 As cidades dos séculos XVIII e XIX recebem um grande contingente populacional que migra do campo para vender sua mão de obra nas atividades fabris em troca de um salário e se amontoam em conglomerados habitacionais caracterizados pela densidade (populacional) e pelas precárias condições sanitárias. São exemplos destas habitações os cortiços e as pensões que se formam na área central das cidades que posteriormente são banidas para as áreas marginais ou periféricas ligadas pelo transporte coletivo de tração animal e pelos bondes elétricos. A expansão contínua, acelerada e quase sempre desordenada das cidades resulta no surgimento de bairros populares marcados pela ausência ou frágil infraestrutura, como serviços de eletricidade, água, esgoto e transportes coletivos. Como conclui o filósofo francês Henry Lefebvre (2008, p. 24) “em redor da cidade instala- se uma periferia desurbanizada e, no entanto dependente da cidade [...] Urbanização desurbanizante e desurbanizada”.

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são dois termos em oposição: a rua é terra de ninguém perigosa que mistura classes, sexos, idades, funções, posições na hierarquia; a casa é território íntimo e exclusivo. (ROLNIK, 1998, p.49-50)

O processo de reorganização da cidade moderna é pautado pela racionalização dos espaços para a circulação de mercadorias, informações e veículos, pela transformação da terra em mercadoria valorizada por meio da urbanização, centralização do poder urbano e divisão da sociedade em classes: os proprietários dos meios de produção, detentores do dinheiro e dos bens, os trabalhadores (antigos servos da cidade medieval) e os artesões.

Para o filósofo francês Henry Lefebvre (2008), essa reorganização das cidades desurbanizou a própria cidade. Ao analisar o processo de urbanização de Paris durante o império de Napoleão III (1852-1870), Lefebvre destaca a estratégia de George-Eugène Haussmann, que incluía a construção de habitações para os trabalhadores na periferia da capital francesa. Os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público principiaram um processo de descentralização de Paris que provocou o evento de desurbanização na medida em que todos os espaços destinados para o encontro, para as trocas comunicativas e socialização foram ignorados. Deste contexto surgiu a expressão Metro, Boulot, Dodo9 como uma ideia crítica e resumida da rotina mais que mecânica e ritmada dos trabalhadores que percorriam grandes distâncias não sobrando tempo para o lazer ou momentos de encontro.

Vale destacar que essa lógica de desurbanização não demora em encontrar legitimação por meio da publicação da Carta de Atenas em 1943. Resultado do IV CIAM, Congresso Internacional de Arquitetura de 1933, o manifesto reúne orientações para a urbanização das metrópoles inspiradas nas concepções e práticas modernistas do arquiteto francês, de origem sueca, Le Corbusier.

De acordo com as proposições urbanísticas de Corbusier, cada espaço da cidade deveria atender a uma função claramente definida e separada, portanto, a cidade moderna deveria ser concebida para atender a quatro funções básicas: circulação, trabalho, lazer e habitação. No Brasil, onde esteve em pelo menos três ocasiões, suas ideias inspiraram projetos como o do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro10 nos anos de 1930, e o

9 Metro, Boulou, Dodo – transporte, trabalho, repouso em gíria. Metrô, trampo e cochilo. 10 O Ministério da Educação e Saúde do Rio de Janeiro foi projetado em 1936 por Lucio Costa, Burle Marx, Eduardo Reidy e , com a consultoria de Le Corbusier. O edifício, conhecido como o Palácio

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de Brasília, que Le Corbusier apreciaria após sua inauguração, em 1960, como o fruto mais emblemático da adesão dos arquitetos e urbanistas brasileiros às suas ideias.

A arquitetura funcionalista de matriz corbuseana ganha adesão e espalha-se de forma hegemônica, no entanto, os princípios norteadores do seu método de trabalho e de sua filosofia urbanística, que incluíam linguagem formal e sem ornamentos, o uso racional de materiais e o diálogo sistemático com a tecnologia industrial, despertam inúmeras resistências. Dentre os alvos das críticas, estava o desprezo de Le Corbusier pela configuração das cidades antigas e pelas ruas que recebem o estatuto de lugar perigoso e retrógrado, como observado anteriormente.

De acordo com Lefebvre (2008, p. 27), “toda a realidade urbana perceptível (legível) desapareceu: ruas, praças, monumentos, espaços para encontros”, transformando o sentido de bairro, vizinhança e espaços públicos e estabelecendo novas formas de sociabilidade. Na avaliação do pesquisador e arquiteto brasileiro Cristovão Duarte, o diálogo da arquitetura corbuseana com a lógica de produção industrial torna-se patente e desastroso.

Corbusier propõe transplantar a racionalidade industrial para a cidade, concebida, metaforicamente, como uma linha de montagem para a ‘produção’ do homem urbano moderno. A circulação funcionando como a esteira rolante que levaria o ‘homem-produto’ a percorrer os diversos ‘setores de produção’, basicamente representados pela habitação, o trabalho e o lazer. (DUARTE, 2006)

As metrópoles ocidentais do final do século XIX e, sobretudo do século XX, trazem inscritas em seus espaços (públicos e privados) as propostas e ações dessa racionalidade organizadora que propõe instaurar ou restaurar a “coerência” em uma realidade urbana “diagnosticada como caótica, desorganizada e ‘malsã’” (LEFEBVRE, 2008, p. 30). Trata-se de uma estética que, se expande tanto através da lógica arquitetônica do espaço urbano como da lógica dos meios de comunicação de massa eletrônicos. Tudo com o objetivo de organizar e tornar os prodigiosos avanços científicos e tecnológicos, oriundos da razão instrumental, o caminho seguro para o homem moderno alcançar as benesses do progresso.

Gustavo Capanema, está localizado na Rua da Imprensa, 16, Centro, Rio de Janeiro. Hoje, o MEC RJ, abriga a FUNARTE – Fundação Nacional de Artes, cuja missão é incentivar a produção e capacitação de artistas, desenvolver pesquisas, preservar a memória, promover atividades culturais que, dentre outros objetivos, formem público para as artes no Brasil. Sobre as atividades, estrutura, representações regionais, espaços culturais e relatório, conferir: .

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Portanto, o desenvolvimento dos meios de comunicação – telefone, telegrafia sem fio, imprensa ilustrada, rádio, cinema e indústria fonográfica –, participaram ativamente desse processo de modernização urbana e consequentemente da relação do indivíduo com a metrópole. A possibilidade de transmitir informações a distância, sem que fosse necessária a presença, no mesmo espaço, dos corpos dos envolvidos no processo, abriria novas perspectivas comunicativas. Os recursos de gravação inauguraram uma nova dimensão de tempo e espaço em relação à escuta, afinal, para apreciar a interpretação de um cantor ou de uma orquestra não seria mais necessário o deslocamento até o espaço físico, público e coletivo em um determinado espaço e tempo.

Ao homem moderno foi dada a oportunidade de uma experiência privada de escuta, distante dos ruídos oriundos das máquinas que possibilitaram as realizações dos tempos modernos e o deslocamento das multidões.

O fenômeno de apreciação do som desconectado de sua fonte de origem, seja um falante ao telefone ou uma composição gravada em disco, é nomeado como esquizofonia pelo canadense R. Murray Schafer (1997). O prefixo grego schizo significa fendido, separado, enquanto a palavra phono refere-se a som. Portanto, temos telefone, fonógrafo e rádio como os representantes mais emblemáticos deste fenômeno e ícones de uma nova relação que o homem moderno passa a ter com o tempo e o espaço.

Os três mecanismos sonoros mais revolucionários da Revolução Elétrica foram o telefone, o fonógrafo e o rádio. Com o telefone e o rádio o som já não estava ligado ao seu ponto de origem no espaço; com o fonógrafo ele foi liberado de seu ponto original no tempo. A fascinante remoção dessas restrições conferiu ao homem moderno um poder novo e excitante, que a moderna tecnologia tem procurado tornar mais eficaz. (SCHAFER, 1997, p. 132)

Se a velocidade vivenciada no deslocamento dos trens, no vaivém dos veículos movidos a combustíveis derivados de petróleo e na sequência de imagens do cinema abriam uma nova dimensão à percepção do homem moderno, as vozes descorporificadas veiculadas através do autofalante de uma caixa de madeira agenciam as pulsões e os desejos do ouvinte em sua esfera privada.

Partindo cada um do seu isolamento real, se encontram todos nesse território etéreo, nessa dimensão eletromagnética, nessa voz sem corpo que sussurra

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suave, vinda de um aparelho elétrico no recanto mais íntimo do lar, repousando sobre a toalhinha de renda caprichosamente bordada e ecoando no fundo da alma dos ouvintes, milhares, milhões, por toda parte e todos anônimos. (SEVCENKO, 1998b, p. 585)

A experiência perceptiva e cognitiva do homem moderno com a metrópole passa a ser resultado de um diálogo entre a cidade imaginada e espetacularizada pelos meios de comunicação de massa e a cidade vivenciada concretamente por meio de práticas sociais cotidianas. Como explica Milton Santos (2002, p. 21), “a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades das realizações humanas”, mas seu surgimento não abole a existência e ação de tempos anteriores, o que significa dizer que a reorganização do espaço público em função dos desdobramentos da lógica industrial não extingue a necessidade dos espaços de encontro e nem tampouco as formas comunicativas primárias. As trocas comunicativas tornam-se mais complexas e o ritmo acelerado da vida na e da metrópole, a sobreposição e fragmentação de diversos tempos exigem sincronização de muitas das diferentes atividades desenvolvidas pelas multidões. Neste contexto é que as mídias terciárias, em especial a radiofonia, atuam como sincronizadoras das atividades dos indivíduos em função do ritmo da cidade. Como explica Norval Baitello “a mídia não apenas adota as imagens calendárias e/ou cronológicas do dia, da noite, da tarde, do período, da jornada e do jornal, da folha e da folhinha, como ritualiza suas aparições, suas formas e seus formatos, acentuando-lhe a função sincronizadora” (1999, p. 100).

Não há como desvincular o espaço urbano das práticas comunicativas. No caso das metrópoles brasileiras nos primeiros 50 anos do século XX, a impressa ilustrada – mídia secundária – e as mídias terciárias - eletrônicas, com especial atenção ao rádio, criam novas possibilidades de interação com a cidade. O rádio brasileiro, que inicia oficialmente suas atividades em 1922 com as festividades do Centenário da Independência no Rio de Janeiro, e se consolida como importante meio de comunicação eletrônico de massa nas décadas de 1930, 40, 50 e 60, atua de forma decisiva para a propagação de valores de vida nas cidades modernas. De acordo com dados do IBGE/Mídia Dados11, mais de 60% da população urbana tinha um aparelho de rádio em casa.

11 Pesquisa realizada pelo Ibope Media em 2012. Disponível em: . Acesso em: dez. 2012.

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A velocidade do sinal que permite o acompanhamento do desdobramento dos fatos, a penetração social, uma vez que suas mensagens são decodificáveis e acessíveis a diferentes públicos, a abrangência física que vence distâncias geográficas, se aliam à inventividade brasileira e aos interesses político-econômicos que transformam o rádio no centro sincronizador do cotidiano, do consumo, dos valores, das conversas, do imaginário e dos rituais familiares.

O potencial de envolvimento e de sedução da escuta por meio das vozes mediatizadas pelas ondas do rádio foi gradativamente assimilado em todo o mundo e largamente explorado pelos líderes políticos, como por Adolf Hitler na Alemanha nos anos 192012. Nos anos de 1940, o rádio brasileiro já se portava como o meio de comunicação de ampla penetração e credibilidade junto à classe popular e à elite intelectual. Essa abrangência e força persuasiva motiva a estratégia de explorar o rádio, juntamente com a imprensa, como importante e eficaz instrumento do projeto político estadonovista de Getúlio Vargas.

Não obstante, é importante assinalar que após as comemorações do Centenário da Independência em 1922 as primeiras estações instaladas no Rio de Janeiro seguiam a proposta educativa e cultural da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em 1923 pelo médico e educador Edgard Roquette Pinto juntamente com seus companheiros da Academia de Ciências. Tal etapa, compreendida entre 1922 e 1932, fica conhecida como o ciclo pioneiro do rádio ou como fase elitista que, dentre outros aspectos, caracterizava-se pela contribuição mensal de seus sócios-ouvintes e pela transmissão de palestras, audições de músicas, leituras de romance e notícias. Em decorrência deste modelo é que encontramos a nomeação das emissoras da época como “rádio sociedade” ou “rádio clube”.

No entanto, a proposta cultural e educativa sucumbe mediante as pressões da lógica de mercado que vislumbram no rádio a capacidade para disseminar o consumo. Com a regulamentação da publicidade radiofônica em 193213 e a popularização de aparelhos

12 Sobre a história do rádio, sugerimos o filme Woody Allen, A Era do Rádio, de 1987, que, apesar de abordar a importância do meio na sociedade estadunidense, fornece informações relevantes sobre seu poder de sedução e seus gêneros e formatos veiculados durante os anos de 1930 e 1940. 13 A publicidade no rádio brasileiro é regulamentada em 1 de março de 1932 por meio do decreto-lei 21.111 que estabelece um limite de 10% de propaganda da programação da emissora. Já em 1934, este limite é alterado e aumentando para 20% do tempo de cada programa. Vale lembrar que, como alternativa de sustentação econômica, antes mesmo do decreto 21.111, a publicidade já aparecia nas programações, ainda embrionária, na forma de “assinatura”, ou seja, uma simples menção do “colaborador” na abertura e no encerramento da programação, conforme ilustra Roberto Simões (1995, p. 173): “E seguia-se a transmissão durante uns cinco

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receptores com preços mais acessíveis, há um processo de reformulação do que até então era veiculado como um hobby da elite intelectual, marcado pelo improviso e amadorismo.

A busca por formatos, a introdução de elementos de outras linguagens, como a trilha e os efeitos sonoros do cinema e do teatro, a gestualidade da voz apresentada performaticamente, como observado nas comunidades de oralidade primária, não demoram a provar a eficácia do meio rádio junto aos ouvintes de todas as classes sociais. A publicidade tem importante papel na construção da estética radiofônica, como se pode conferir neste excerto:

Neste percurso de construção de uma nova linguagem, os anúncios radiofônicos desempenharam um importante papel, pois o amadorismo e o desconhecimento da linguagem adequada ao veículo, que se faziam presentes através da improvisação da mensagem pelo locutor e/ou através da simples leitura de textos preparados para a mídia impressa sem qualquer adaptação ao meio, começam a ceder espaço para a introdução de textos pré- elaborados por um redator e que eram posteriormente lidos ao vivo pelos locutores das emissoras ou gravados com antecedência, isto é, o spot publicitário e os jingles (anúncios musicados). (SILVA, 1999, p. 17)

Esse processo de construção de uma linguagem essencialmente sonora capaz de informar, entreter e, sobretudo, construir interações entre os apresentadores, personagens, cantores, humoristas, narradores esportivos e o ouvinte é notadamente influenciado pelo modelo norte-americano. No entanto, as singularidades da cultura latino-americana invadem e reconstroem os formatos com os signos da voz e da eroticidade corporal, conferindo sonoridade e particularidade ao rádio brasileiro, como observou o maestro Júlio Medaglia (1978) no excerto a seguir: “No Brasil, o rádio tem uma forma de expressão absolutamente particular cujo resultado se assemelha a uma espécie de grande commedia dell’arte [...] Aqui o radialista inventa com a linguagem do veículo. Ele é um ‘ser eletrônico’” (1978, p. 126).

Em consequência dessas singularidades, que são, dentre outras, resultado do caldeirão antropofágico de etnias e línguas do qual a cultura latino-americana é “produto”, assim como da introdução tardia da escritura (mídia secundária), é que encontramos, no Brasil, a possibilidade latente de uma abordagem diferenciada dos elementos que compõem a linguagem radiofônica (SILVA, 1999) e dos formatos engendrados através de tais elementos.

minutos de títulos de estabelecimentos comerciais”.

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Dentre os formatos que surgem nessa fase do rádio brasileiro, o programa de auditório revela-se como um relevante objeto de pesquisa, pois está presente no trânsito entre a comunicação presencial e a mediatizada e no diálogo do ouvinte com a metrópole emergente na então capital federal, Rio de Janeiro, e em São Paulo. A importância, a inventividade e particularidades deste fenômeno comunicacional que participou ativamente da programação das emissoras de rádio entre as décadas de 1930 e 1950, e da vida cultural e política brasileira por meio de suas reverberações sonoras nas cidades, são temas do próximo capítulo.

O caminho até aqui percorrido considera um conjunto de elementos que nos ajudarão a compreender os programas radiofônicos realizados em auditório na cidade de São Paulo. Passamos pelas cidades arcaicas, nas quais descobrimos os locais de cerimônias e ritos; pelas cidades gregas e seus espaços de encontro nas ágoras e teatros; pelas cidades medievais marcadas pela oralidade; pelas cidades modernas caracterizadas pelo planejamento e sincronização das atividades ao redor das máquinas; isto é, pelas cidades marcadas por múltiplas sonoridades e pela presença sonoro-sincronizadora do rádio. Essa trajetória histórica, que não pode ser lida linearmente e da qual destacamos alguns elementos que nos permitirão ouvir a São Paulo do século XXI, na qual emissoras de rádio realizam periodicamente programas de auditório ressignificando o formato dentro de uma dinâmica de comunicação instantânea, marcada pelo encurtamento e sobreposição de tempo e espaço, pelo nomadismo de um ouvinte integrado à rede digital, habitante de ambientes férteis de comunicação e incomunicação.

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CAPÍTULO 2 – E A ESCUTA INAUGURA AUDITÓRIOS

Aprendemos a associar o alaúde à Idade Média, o cantochão ao monastério, o tam-tam ao selvagem, a viola da gamba aos trajes da corte. Como não esperar que a música do século XX seja a das máquinas e das massas, do elétron e das calculadoras?

Pierre Schaeffer (1966)

Em A Era do Rádio, filme de 1987, Woody Allen narra as lembranças de infância do garoto Joe (Seth Green) e sua família judia no subúrbio de Nova York. A narrativa ocorre às vésperas da Segunda Guerra Mundial, mas é o rádio e sua programação diversificada e envolvente que fascinam o imaginário e o cotidiano do protagonista e dos demais personagens. O filme começa com o tocar do telefone residencial logo após a invasão de dois ladrões. No escuro, ingenuamente, os personagens atendem ao telefone e são surpreendidos pela voz envolvente de um animador de programa de auditório. Aplausos do auditório, música da orquestra e um convite irrecusável do animador para que o ouvinte (o ladrão) participasse do concurso e concorresse ao prêmio (em dinheiro). Os ladrões participam, acertam todas as perguntas e “ganham” o prêmio máximo oferecido pelos patrocinadores do programa a ser entregue no dia seguinte, na residência assaltada.

O programa de auditório foi um dos formatos que integravam as grades de programação das emissoras estadunidense durante as décadas de 1930 e 1940, período áureo da radiofonia naquele país. No filme de Woody Allen, os diversos formatos e gêneros são apresentados ao espectador por meio de uma narrativa conduzida pelo garoto Joe. Jingles – anúncios essencialmente cantados estruturados com rimas e melodias de fácil memorização, crônicas esportivas, programas de aconselhamento de casais, de variedades sobre celebridades do rádio, dramaturgia, como radioteatro – destaque para O Vingador Mascarado, o preferido do protagonista, de variedades com participação do auditório, prestação de serviço, radiojornais e boletins informativos. Tendo a Segunda Guerra Mundial como cenário de fundo, o protagonista apresenta curiosidades que ocorrem nos bastidores do rádio estadunidense e a relação de fascínio estabelecida entre cada integrante da família com seu programa preferido.

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Com a consolidação do rádio enquanto meio de comunicação de massa, com a popularização da programação e aproximação das relações entre Brasil e EUA, os programas de auditório, assim como outros formatos, gêneros jornalísticos e publicitários, constata-se a incorporação de tais práticas radiofônicas às brasileiras, em especial nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro na década de 1930. No Brasil, encontramos como primeiro registro de apresentação de programas de auditório o da Rádio Cruzeiro do Sul em São Paulo (1933), protagonizado por Celso Guimarães. No entanto, o formato que se consolidou como eficaz em descobrir novos talentos, exercer maior fascínio entre os ouvintes (ouvintes-espectadores), estimular o consumo de produtos intrinsecamente relacionados a um estilo de vida pertinente a novos valores, de forma a persuadir e seduzir a sociedade carioca, assim como a brasileira como um todo, ocorreu através da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, durante os anos de 1940.

2.1 Escuta na “capital civilizada”: tensão entre esquizofonias e corpos

O processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, ocorrido no final do século XIX e início do XX, foi uma tentativa de aproximar a capital da jovem República brasileira aos símbolos da modernidade engendrados pela economia capitalista desenvolvida pelos centros político-econômicos – Europa e EUA.

Uma economia orientada pelas inovações da revolução científico-tecnológica, como a eletricidade, os transportes, as comunicações sem fios e as descobertas na área de microbiologia, bacteriologia e bioquímica, que revolucionaram a conservação de alimentos, bem como o controle de moléstias, o controle de natalidade e o prolongamento da vida. Conquistas salutares tendo em vista as aglomerações humanas (mão de obra) concentradas nas cidades como a do Rio de Janeiro, que demandavam um processo de ordenamento e saneamento por parte dos agentes da vigilância sanitária representantes de um Estado que tinha como missão gerar bem estar à população.

Vale lembrar que o Rio de Janeiro, cuja população era constituída majoritariamente de negros remanescentes da África, alforriados e seus descendentes, no início do século XX foi destino de ex-escravos que migraram das fazendas de café do Vale do Paraíba em busca de

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oportunidades de trabalho, principalmente na zona portuária da capital. Conforme relata o historiador Nicolau Sevcenko

Essa população, extremamente pobre, se concentrava em antigos casarões do início do século XIX, localizados no centro da cidade, nas áreas ao redor do porto. Esses casarões haviam se degradado em razão mesmo da grande concentração populacional naquele perímetro e tinham sido redivididos em inúmeros cubículos alugados a famílias inteiras, que viviam ali em condições de extrema precariedade, sem recursos de infraestrutura e na mais deprimente promiscuidade. Para as autoridades elas significavam uma ameaça permanente à ordem, à segurança e à moralidade públicas. (SEVCENKO, 1998a, p. 21)

Portanto, no projeto de transformação do Rio de Janeiro em metrópole-modelo ou, como prometera Rodrigues Alves, em “capital civilizada”, estariam inclusas estratégias de higienização apoiadas pelo sanitarista Oswaldo Cruz, como a demolição do Morro do Castelo e de moradias populares, cortiços e pensões nos antigos casarões localizados no centro.

O projeto de urbanização da capital da República também incluía a imunização da população por meio de vacinas e a reforma do espaço urbano, com a remodelação das avenidas, tornando-as espaços para o deslocamento de carros, a construção de edificações verticais e imponentes, a concentração de sedes para os principais grupos de comunicação representados pelos meios impressos, posteriormente pelas emissoras de rádio e televisão.

Figuras 4 e 5: Construção do Edifício A Noite em 1930 e Av. Rio Branco, Região Central do Rio de Janeiro.

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Como descreve o historiador Luiz Carlos Saroldi, onde havia cortiços e vielas sem higiene surgiram:

A Avenida Central, um bulevar de largura ligando a Praça Mauá ao Passeio Público, onde se ergueram prédios que nada deviam em conforto e beleza arquitetônica aos de Paris ou Berlim. Aí se destacavam as edificações da Casa Mauá, as sedes do Jornal do Commercio e o Museu de Belas-Artes [...] O bonde elétrico unia os pontos mais distantes da cidade a preço módico, automóveis e ônibus circulavam livremente. (SAROLDI, 2005, p. 19)

Essa reforma urbana e sanitária do Rio de Janeiro trazia consigo o desejo de uma “europeização” da cidade orientada em muitos conceitos urbanísticos implantados na reforma de Paris, realizada entre os anos de 1852 e 1870 por Georges-Eugène Haussmann, o conhecido barão de Haussmann, conforme apontado no capítulo anterior.

O rádio tornou-se então em instrumento para o cultivo de valores e costumes ditos civilizados. À medida que se popularizava, passava como meio organizador do ritmo e das atividades cotidianas das famílias no que diz respeito à variedade de sua programação e capacidade de criar mitos com os quais o público encontraria identificação.

Com o esgarçamento das famílias extensivas, dos laços de compadrio e das relações de vizinhança na situação peculiar das grandes cidades, é muito mais nos ícones exibidos e repetidos à sociedade pelos meios de comunicação que as pessoas tendem a definir essa situação de reconhecimento familiar. O fato de eles não serem de carne e osso, mas reproduções fotográficas, imagens de cinema ou vozes de disco e rádio só ajuda nesse processo, já que a imagem fica resolvida num clichê visual ou auditivo e a estrutura psicológica num personagem típico, o que os torna por isso imensamente mais fáceis de assimilar do que quaisquer pessoas concretas com suas contradições, complexidades de comportamento. (SEVCENKO, 1998b, p. 592)

Da proximidade criada com o ouvinte, o rádio é explorado como um meio capaz de disseminar ideias e, principalmente, hábitos e necessidade de consumo. Seguindo o modelo norte-americano de radiodifusão, baseado no desenvolvimento de estratégias para conquistar audiências, a partir do decreto 21.111 de 1932, que regulamentou a inserção de publicidade pelas ondas hertzianas, o rádio brasileiro inaugura a sua fase popular ou comercial.

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As inovações tecnológicas, somadas à nova legislação, fizeram surgir mais emissoras de rádio com finalidades comerciais. Buscando atrair um público maior, elas apresentavam programas mais populares, com um ritmo dinâmico, prendendo melhor a atenção do ouvinte [...] Em 1933, César Ladeira afirmava que o rádio estava vencendo na sua finalidade de divertir, e que querer mantê-lo como veículo meramente educativo era um grande equívoco: o modelo de rádio bem sucedido seria o do veículo de entretenimento. (CALABRE, 2004, p. 23-24)

Portanto, a busca incessante pela audiência aumenta a rivalidade entre as emissoras que se instalaram na região central da capital carioca, resultando na experimentação de modelos de programas e programação, na aposta em artistas e apresentadores emergentes, no estabelecimento de contratos de exclusividade, no desenvolvimento de técnicas de administração, propaganda e de recursos tecnológicos de transmissão dentro e fora dos estúdios. Neste contexto, a partir de modelos da radiofonia estadunidense, surgem formatos que consagram o rádio brasileiro como meio de comunicação de massa. Radionovelas, radioteatros, transmissões esportivas e noticiosas, programas de humor e de auditório invadem o imaginário dos ouvintes. Todos – personagens, narradores, repórteres, intérpretes, humoristas, apresentadores, animadores de auditórios e ouvintes – se encontram neste universo particular, conforme explica Sevcenko:

Se encontram todos nesse território etéreo, nessa dimensão eletromagnética, nessa voz sem corpo que sussurra suave, vinda de um aparato elétrico no recanto mais íntimo do lar, repousando sobre uma toalhinha de renda caprichosamente bordada e ecoando no fundo da alma dos ouvintes, milhares, milhões, por toda a parte e todos anônimos. O rádio religa o que a tecnologia havia separado (SEVCENKO, 1998, p. 585b, grifo nosso)

Essa “voz sem corpo” ou o fenômeno da esquizofonia, como observado por Schafer (1991, p. 172; 1997, p. 132), desenvolve novas formas de escuta e se torna mais um componente da paisagem sonora das cidades. A expressão “paisagem sonora”, também criada por Murray Schafer (1997), refere-se ao campo de estudo acústico, qualquer que seja. Assim, são exemplos de paisagem sonora um programa de rádio, uma orquestra ou um ambiente acústico como a cidade. A paisagem sonora dos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, é composta por polifonias múltiplas, contínuas, simultâneas e de diversas naturezas, resultando em uma orquestra densa e babélica em constante mutação. As transformações que a revolução industrial, a revolução elétrica e os inventos técnico-científicos produziram também provocaram alterações significativas nos modos de ouvir, uma vez que a paisagem

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sonora das cidades passou de hi-fi (abreviação de alta definição) para lo-fi (abreviação de baixa definição).

A paisagem sonora hi-fi é aquela em que os sons separados podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em geral, o campo é mais hi-fi que a cidade [...] Em uma paisagem sonora lo-fi, os sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma população de sons superdensa. Perde-se a perspectiva. Na esquina de uma rua, no centro de uma cidade moderna, não há distância, há somente presença. Há fala cruzada em todos os canais, e para que os sons comuns possam ser ouvidos eles têm de ser intensamente amplificados. (SCHAFER, 1997, pp. 71-72)

A paisagem sonora das cidades modernas torna-se predominantemente lo-fi e representa as transformações nos espaços públicos e privados, e nas formas de percepção e comunicação. Portanto, essa paisagem sonora é um amalgama de sons de diferentes naturezas – naturais e tecnológicos. Acrescenta-se à paisagem da cidade moderna, os ruídos das máquinas das indústrias, dos meios de transporte, da circulação das multidões que disputam espaço com os veículos, do rádio, das máquinas de músicas como a jukebox14, as vitrolas automáticas que são desdobramentos do fonógrafo criado em 1877 pelo norte-americano Thomas Edison.

Ao se pensar a cidade como um espaço em constante transformação, cujas formas e funções são índices do tipo de relações sociais organizadas de acordo com a geografia da cidade e com a estrutura socioeconômica que se constitui ao longo do processo histórico, é esperado que sua configuração espacial seja um de seus aspectos mais marcantes. O desenho, a forma de suas ruas, vielas, praças e edificações são objetos de apreensão, em especial, do sentido da visão. De acordo com o geógrafo Milton Santos (2002), a forma da cidade é o aspecto visível, exterior de um conjunto de objetos, e a função é a atividade desempenhada pelo objeto criado. Formas e funções variam no tempo e assumem as características de cada grupo social, mas a apreensão não fica limitada ao olhar. De acordo com o que se torna interessante evidenciar, dar a ver, a cidade pode ser luz e sombra, visível e invisível, mas é sempre audível. Mesmo se fosse possível o silêncio absoluto, a ausência de som já seria entendida como significante, assim como a ausência ou o excesso de luz podem ser passíveis de inúmeras interpretações.

14 No Brasil na era de ouro do rádio a vitrolas automática Wurlitzer era a jukebox mais popular.

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Em Um Rei à Escuta, Italo Calvino (2010) relata como a presença e ausência de sons são plenas de significados e podem desvelar as formas de uma cidade. No conto, ambientado em um aposento real, o soberano decifra a rotina do seu reino, as intenções de seus possíveis traidores, a materialidade dos objetos e edifícios que compõem o palácio por meio dos sons percebidos ou ausentes. Cada evento sonoro – ritmo, intensidade e repetições cíclicas – ou a sua ausência, é avaliado e transformado em matéria-prima para o reconhecimento da normalidade ou para fabulações que ocupam o imaginário do rei.

O palácio é uma construção sonora que ora se dilata ora se contrai, estreita- se como um emaranhado de correntes [...] O palácio é o corpo do rei. O seu corpo lhe manda mensagens misteriosas, que você acolhe com receio, com ansiedade [...] Para quem está ansioso cada sinal que rompe a norma surge como ameaça. Cada mínimo evento sonoro lhe parece anunciar os adversários de seus temores [...] Mas o contrário não poderia ser verdadeiro? [...] Quem sabe a ameaça vem mais dos silêncios que dos ruídos. (CALVINO, 2010, p. 68-69, grifo nosso).

Às vozes que ocupam a cidade moderna somam-se as que são transmitidas a distância por meio de aparatos eletrônicos e as empacotadas em diferentes suportes (discos de vinil, fitas magnéticas, dentre outros). Aliás, vale lembrar que o desejo de captar e preservar o som vivo já estava presente nos zigurates15 dos povos mesopotâmios, os embriões das cidades. Nestes templos babilônicos havia uma sala específica especialmente construída para apreender os sussurros dos sacerdotes, como descrito no capítulo anterior.

Na vida moderna que Schafer (1991) identifica como “ventriloquizada”, os sons foram arrancados de seus encaixes e ganharam uma existência amplificada e independente. O som vocal, exemplifica o pesquisador, não está mais ligado a um orifício na cabeça, mas está livre para reverberar em qualquer lugar da (e na) paisagem. Por sua vez, a escuta não se encontra mais limitada à obrigatoriedade em se apresentar fisicamente no espaço e no tempo do acontecimento sonoro.

No espaço privado transformado em um grande público-privado, ao redor do aparelho receptor ou do gramofone, é dada ao ouvinte a possibilidade de ouvir sons originados em diferentes lugares e em tempos diversos. Quanto ao espaço público, a paisagem lo-fi envolve a população em uma orquestra sonora composta por estímulos diversos, nervosos e

15 Sobre os zigurates, conferir capítulo 1.

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simultâneos, gravados ou ao vivo. A aproximação da paisagem sonora da cidade moderna ao de uma orquestra oferece uma metáfora sui generis, particular, uma vez que a complexidade e o potencial sonoro desta última pode refletir ou sugerir a densidade da vida nas metrópoles. Lewis Mumford (1934) expõe os paralelos entre a orquestra, que no universo da música erudita, se expande entre o final dos séculos XIX e início do XX, e o trabalho fabril desempenhado pelos operários:

Com o aumento do número de instrumentos, a divisão de trabalho dentro de uma orquestra correspondia ao da fábrica: a divisão desse processo tornou-se notável nas mais novas sinfonias. O maestro era o superintendente e o gerente de produção, encarregado da manufatura e da montagem do produto, a saber, a peça musical, enquanto o compositor correspondia ao inventor, engenheiro ou projetista que tinha calculado no papel, com a ajuda de alguns instrumentos menores, como o piano, a natureza do produto final – retocando seus últimos detalhes antes que um só passo fosse dado na fábrica. Para composições difíceis, novos instrumentos foram inventados, ou velhos, ressuscitados; mas na orquestra a eficiência coletiva, a harmonia coletiva, a divisão funcional de trabalho, a interação cooperativa legal entre os líderes e os liderados produziam um uníssono coletivo maior do que aquele que se conseguia, com toda probabilidade, dentro de qualquer fábrica. Por uma razão: o ritmo era mais sutil; e o tempo das sucessivas operações era aperfeiçoado, na orquestra sinfônica, muito antes que qualquer coisa semelhante à mesma eficiente rotina chegasse à fábrica. Aqui, pois, na constituição da orquestra, estava o modelo ideal da nova sociedade. Esse modelo foi adquirido pela arte antes de ser abordado pela técnica... Tempo, ritmo, tom, harmonia, melodia, polifonia, contraponto e mesmo dissonância e atonalidade foram utilizados livremente para criar um novo mundo ideal, onde o trágico destino, os desejos sombrios, os heroicos destinos dos homens poderiam ser entretidos mais uma vez. Limitados por suas novas rotinas pragmáticas, dirigidos pela feira livre e pela fábrica, o espírito humano ascendeu a uma nova supremacia na sala de concerto. Suas maiores estruturas foram construídas com som e desapareceram no próprio ato de ser produzido. Se apenas uma parte da população ouvisse essas obras de arte ou tivesse ideia de seu significado, ela teria ao menos um lampejo de um outro céu, além do céu de Coketown. A música fornecia mais nutrição e valor do que os alimentos estragados e adulterados de Coketown, suas roupas esfarrapadas e suas casas toscas. (MUMFORD, 1934, pp. 202-203, grifo nosso)

A intensidade, a diversidade e o volume das composições executadas pela multiplicidade de instrumentos de uma orquestra são características que dialogam com a polifonia da paisagem sonora da metrópole. As complexas e intensas capacidades de produção sonora da orquestra no final do século XIX e no decorrer do século XX dão-se a partir da introdução de instrumentos mais potentes e cientificamente calibrados, como é o caso dos instrumentos de metal e percussão. O cravo de corda pinçada, por exemplo, é

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substituído pelo piano de corda martelada fortalecido graças à dimensão física e as tensões de sua estrutura de metal, ampliada pelos recursos de fundição advindos da indústria. Os sons mais fortes e a tessitura ampliada do piano eram necessários para serem ouvidos dentre os novos conjuntos instrumentais da orquestra e potentes para concorrerem com os polirruídos da fábrica industrial (SCHAFER, 1997, p. 157).

A expressão máxima do diálogo entre a orquestra e a paisagem sonora da metrópole evidencia-se quando os ruídos das ruas, das máquinas, fábricas e do vozerio da população nos mercados e área central da cidade passam a ser incluídos como integrantes de composições musicais. O compositor italiano futurista Luigi Russolo (1885–1947) publica em 1913 a célebre obra A Arte do Ruído e juntamente com compositores como Pierre Schaeffer (1910– 1995), John Cage (1912–1992) e outros, introduz uma nova dimensão à música e aos ruídos. Russolo, considerado como o primeiro teórico da música eletrônica, ousa a partir da experimentação e inclusão de sons ambientes, ruídos externos característicos da vida urbana, às composições musicais. O conceito de ruído enquanto som que atrapalha, um som inconveniente, assume novo status e “marca um ponto focal na história da percepção auditiva, uma inversão de figura e fundo” (SCHAFER, 1997, p. 161).

A grande figura de um concerto “tradicional” é a obra executada por músicos e conduzida pelo maestro em salas fechadas com paredes “acolchoadas” que isolam executantes e ouvintes dos ruídos externos. Exige grande concentração, escuta atenta. Exige silêncio para que possa ser executada e investigada de forma pormenorizada. Supõe distância física e social, “pois essa música pertence a uma era de distinção de classes, para a sociedade de bem e mal nascidos, mestre e aprendiz, virtuose e ouvinte” (SCHAFER, 1997, p. 169). Na paisagem sonora das metrópoles, o ouvinte se acha no centro do som; cada vibração sonora massageia e inunda seu corpo. Trata-se de uma experiência de imersão em vez de concentração. Portanto, quando o músico norte-americano John Cage rompe com a parede sonora, abrindo as portas da sala de concerto para que todos os ruídos do tráfego de veículos, do vozerio de pedestres e mercadores se misturassem à sua composição, ele insere o ouvinte na sonoridade que compõe a vida urbana nas metrópoles e expande a espacialidade do auditório. O acaso e o indeterminismo que caracterizam as composições de Cage propõem o rompimento com os limites entre a música e os ruídos do cotidiano do homem moderno e, desta forma, desafia o ouvinte a uma percepção sonora que não se limita à audição, mas que envolva todo o corpo.

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A percepção auditiva do homem moderno é também moldada pelo aumento generalizado dos sons técnicos reproduzidos por caixas falantes (rádios), pelas vozes e músicas vibrantes que ressoam dos gramofones. São sons de alta intensidade e baixa frequência introduzidos progressivamente na música, em especial a popular, graças a instrumentos projetados com o objetivo de elevar a tessitura sonora para além dos limites do ouvido humano. O amplificador – utilizado pela primeira vez em 1919 em um comício político nos EUA – contribui para que o espaço público se torne um ambiente ainda mais vibrante sonoramente, o que significa dizer que os efeitos vibratórios dos sons envolvem o corpo do homem moderno. De acordo com Schafer (1997) estas características tornam-se cada vez mais presentes na música do século XX e encontram na escuta dos jovens grande preferência.

Isso é interessante porque as ondas longas dos sons de baixa frequência têm maior poder de penetração, e, como são menos influenciadas pela difração, conseguem transpor os obstáculos que estão à volta e preencher mais completamente o espaço. A localização da fonte sonora é mais difícil quando se trata de sons de baixa frequência, e a música que enfatiza esses sons é mais escura em qualidade e menos direcionada no espaço. Em vez de estar diante da fonte sonora, o ouvinte parece estar imerso nela. (SCHAFER, 1997, p. 168)

A perda das altas frequências e a localização difusa do som faz com que o ouvinte se torne ele mesmo parte do mundo dos sons. O homem moderno está imerso em sons cada vez mais técnicos, difusos e provenientes dos vários aparatos tecnológicos que compõem a paisagem sonora, como alto falantes, vitrolas, aparelhos de rádio, e de suas próprias atividades cotidianas. Não indiferente a estas alterações, a indústria fonográfica e a radiofonia encontraram formas de explorar esta experiência, em especial por meio dos programas de auditório, que mesclam proximidade, sons envolventes e amplificados e experiências sinestésicas.

2.2 Programas de auditório: alta intensidade sonora e imersão de corpos

Como observado no capítulo anterior, o “auditório” é um dos elementos, tanto do teatro como do anfiteatro, mas também pode ser entendido como uma construção arquitetônica destinada à reunião de pessoas. Neste contexto torna-se relevante nos atermos ao fato de que a palavra

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auditório, deriva da palavra audire, que em latim significa “ouvir”, “audiência”, “audição”, e finalmente auditório. Auditório, que em latim é auditoriu, tem dentre seus significados o de assembleia ou reunião de pessoas que têm por objetivo ouvir um discurso ou assistir a uma sessão ou audiência. O auditório como construção arquitetônica surge, na história e na estética da radiofonia brasileira, nos anos de 1930 e revela-se como um ambiente em que se agrupavam os ouvintes-espectadores presencialmente para assistirem e participarem de um espetáculo já conhecido graças às emissões sonoras de um meio que suspendia a imagem e se consolidava como produtor de bens simbólicos. Neste contexto, torna-se relevante esclarecer a respeito da importância do ambiente e do vínculo para o processo de comunicação, seja ele presencial (comunicação primária) ou mediado por dispositivos eletrônicos (comunicação terciária), como é o caso do rádio.

Da concepção de comunicação como “colocar em comum”, comunicar não pode ser reduzido ao simples processo de transmitir informação, unidirecional e instrumental. Comunicar se manifesta na complexidade da criação de vínculo entre os participantes envolvidos em processo dinâmico cujos papéis de emissão e recepção não são rígidos, ou seja, são dotados de porosidade, passíveis de circularidade, de intercâmbio. Na troca comunicativa, o entorno, o ambiente, assim como os meios técnicos, não são condição única para o estabelecimento deste processo cognitivo, mas atuam na possibilidade de uma comunicação interativa, vinculadora. Segundo Norval Baitello (1999), a condição primeira para a comunicação está na criação de um vínculo em um determinado ambiente. Ao se entender a etimologia das palavras ambiente e vínculo pode-se observar a relação de ambas com o processo comunicativo. O verbo latim ambere, do qual deriva a palavra ambiente, significa “cercar”, “envolver”; por sua vez o termo vínculo, do latim vinculu, significa “laço”, desta aproximação temos que a comunicação ocorre em um ambiente que permite o estabelecimento ou manutenção de vínculos. Como define Baitello (1999), vincular significa ter ou criar um elo simbólico ou material, constituir um espaço (ou território) comum, a base primeira para a comunicação. Portanto, ambiente e vínculo são noções essenciais para compreensão dos processos comunicativos.

No caso dos programas de auditório, a possibilidade de conhecer o dono da voz que invade periodicamente o imaginário dos ouvintes em suas escutas ritualísticas16 e ainda

16 Devido ao volume do aparelho receptor e ao seu alto custo para aquisição, as pessoas se reuniam geralmente na sala de estar para escutarem seus programas preferidos. Embora aborde a Era de Ouro nos EUA, o filme de Woody Allen retrata com propriedade, em diversas cenas, tal ritual. Dos mais complexos até os rituais do dia a

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participar de um programa radiofônico, apresentou-se até os anos de 1950 como um evento social, midiático e uma possibilidade de estreitar o vínculo. “O rádio criou uma corte imaginária com Rainhas do Rádio e Reis da Voz, sempre seguidos por súditos fiéis (...) Eles poderiam ser vistos ao vivo nos programas de auditório que levavam multidões até as rádios.” (CALABRE, 2004, p. 40)

Esse “estar presencialmente”, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, para assistir/participar de um espetáculo configura o que Harry Pross17 nomeia de comunicação primária. Neste processo comunicativo, ocorre uma troca viva e sinestésica, onde o corpo figura como mídia principal. No caso da estratégia dos programas de auditório radiofônicos, os corpos de apresentadores, artistas e músicos presentes se utilizam de seus recursos intrínsecos para comunicar, mas não exclusivamente com os presentes na plateia, mas também com os ouvintes que se envolvem a partir do que é veiculado por meio das ondas sonoras.

São, portanto, gestualidades e vozes de um corpo performático acompanhados de sons amplificados e recursos cênicos, que acionam de forma simultânea e sinestésica o sistema perceptivo dos corpos ausentes e presentes – plateia e os próprios apresentadores – vinculando-os em um ambiente fértil para possibilidades interativas.

Apesar de ser um ambiente que nos remete imediatamente ao ver, o auditório convoca simultaneamente a audição e todos os demais sentidos dos participantes, remetendo-nos ao conceito de unidade de sentidos observado por Helmuth Plessner (2007):

Unidade implica multiplicidade [...] a unidade dos sentidos não tem como tema a organização dos sentidos dentro dos limites impostos ao homem enquanto ser vivo, mas sim a totalidade com inclusão das possibilidades especificamente humanas. (PLESSNER, 1997, p. 7)

O programa de auditório no Brasil consolida-se como um formato de sucesso mobilizando os ouvintes-espectadores e os demais meios de comunicação da época, como

dia, os rituais são específicos da cultura e mudam ao longo da história. Devem ser lidos como textos culturais nos quais as encenações assumem relevância. 17 O teórico alemão Harry Pross baseia-se nos estudos sobre o corpo de Helmuth Plessner para fundamentar sua Teoria dos Media. Para Plessner (1977, p. 6) “haverá influências fisiologicamente palpáveis entre olho e ouvido, tato e paladar, ligações colaterais inibitórias e excitatórias, pois o corpo humano é uma unidade funcional, cuja presença orgânica é revelada pelas modalidades proprioceptivas das sensações sinestésicas e musculares”.

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revistas e jornais impressos. Antes mesmo do surgimento do primeiro programa de auditório em 1933, a experiência comunicativa entre locutor e ouvinte dava-se, sobretudo, à distância e por meio de vozes descorporificadas e mediatizadas pelo meio rádio. A performance da voz acompanhada ou não pelos elementos da sonoplastia (trilhas ou músicas executadas ao vivo pelas orquestras ou veiculadas a partir dos discos, efeitos sonoros, ruídos e silêncios) incitava sinestesicamente o ouvinte a construir uma imagem mental particular sobre o locutor, o assunto relatado e todos os demais participantes do programa. Importante entendermos que sinestésico tem a ver com aquele que é “sensorial”, ou seja, trata-se da capacidade em fundir ou misturar diferentes sentidos, por exemplo, conseguem ouvir (audição) um movimento visual (visão) ou sentir cheiro (olfato) ou gosto (paladar) de uma imagem visual (visão) ou visualizar (visão) ao ouvir (audição) uma música.

Portanto, a capacidade da produção radiofônica de provocar imagens mentais encontra respaldo na explicação de Plessner (1977) sobre as modalidades de sentidos e suas inter- relações ou “intermodalidade”:

Há muito é sabido que cada modalidade de sensação como ver, ouvir, cheirar, está associada a um órgão determinado. Cada um dos órgãos é específico para uma determinada qualidade (de vivência fenomenal da qualidade do estímulo físico) [...] A intermodalidade se refere a fenômenos como a audição de cores, isto é, à associação de sons a cores ou também a odores, o que é um fenômeno muito mais difundido e muito menos sujeito à própria volição do que se admitia antes. As metáforas dos poetas encontram aqui sua fundamentação verdadeira. (PLESSNER, 1977, p. 5-6, grifo nosso)

Embora o senso comum aponte para a manifestação da imagem como uma mídia eminentemente visual, Hans Belting, a partir da abordagem antropológica da imagem, destaca o corpo como mídia viva que possui e produz imagens mentais.

A medialidade das imagens transcende a esfera visual propriamente dita. A linguagem permite uma imageria verbal quando transformamos palavras em imagens mentais próprias. As palavras estimulam nossa imaginação, enquanto a imaginação, por sua vez, transforma as palavras nas imagens que elas significam. Neste caso, é a linguagem que serve como um meio para transmitir imagens. Mas aqui também ela necessita do nosso corpo para preenchê-la com experiências pessoais e significado; esta é razão pela qual a imaginação tem resistido a qualquer controle público. (BELTING, 2006, p. 38, grifo nosso)

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Com o advento dos programas de auditório, abre-se a possibilidade da voz sem corpo (Schafer, 1997) ganhar outro contorno imagético, agora construído também por elementos da ordem do visual. Portanto, ao apresentador é dada a oportunidade de construir um corpo visual para a sua voz. Para o ouvinte, é a oportunidade de participar de uma forma diferente, ou seja, inserido em um ambiente comunicativo polissensível. No espaço qualificado deste auditório, a apreensão cognitiva é resultado de uma experiência sensorial de provocação de sentidos. Som, luzes, cores se amalgamam com a audição, a visão, o olfato, o tato e até mesmo o paladar, abrindo para possibilidades interativas entre os participantes e o(s) apresentador(es).

Neste sentido, a percepção de quem participa dos programas de auditório ganha em volume e proporciona a este “novo homem”, como diz Vilém Flusser, uma nova experiência.

O novo homem não é mais uma pessoa de ações concretas, mas sim um performer: Homo ludens, e não Homo faber. Para ele, a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo. Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar, conhecer e, sobretudo, desfrutar. (FLUSSER, 2007, p. 58)

A presença e a vinculação entre os corpos (mídias primárias) qualificam o processo comunicativo que se constrói, pois são corpos que se aproximam e se afastam, que se tocam por meio da voz, que ainda se configura como o nexo fundamental de contágio entre eles, e por meio dos recursos visuais e sonoros. O que qualifica este ambiente, portanto, são as vozes-corpo que se fazem presentes pela performance do apresentador que contamina os corpos dos participantes como se existisse entre eles um fio condutor levando as sensações de um corpo para o outro.

Na plasticidade de suas curvaturas, o corpo é irredutível, imbuído de incomensurabilidade. Não se cabe nas fôrmas instituídas dos clichês e das leis que o pretendem empadronar, conformar e silenciar. Irreverente, no fluxo de suas afecções e no lampejar de seus feixes, ele transgride os determinismos reducionistas, os modelos que comprimem e cerceiam seus movimentos, a pregnância de suas vibrações co-moventes. Com suas torções, escapa à unidimensionalidade das normas que o pretendem domesticar e enrijecer. Suas in-tensidades desinstalam e desbordam as lógicas instrumentalistas, desafiam cânones que o pretendem conformar aos auspícios da homogeneização. (ARAÚJO, 2008, p. 75)

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A performance, ou seja, o saber-ser e estar (ZUMTHOR, 2000, p. 35) do apresentador, também conhecido como mestre de cerimônias ou animador dos programas de auditório, se desenvolve no acontecimento do programa e em consonância com a plateia e com os ouvintes a distância. Derivado da palavra ânimo, animus em latim significa alma, ao animador está reservada a função de envolver, conduzir seus interlocutores presentes e “ausentes”. Como explica Saroldi, “caberia à sensibilidade deste o equilíbrio do programa, alternando brincadeiras, sorteios de brindes, piadas e outros efeitos destinados a excitar ou acalmar o público – sem o que as mensagens comerciais seriam prejudicadas” (SAROLDI, 2005, p. 83).

Dentre os inúmeros animadores de programas de auditório do rádio brasileiro, destaca- se Paulo Gracindo, que conduziu o Domingo Alegre na Rádio Nacional do Rio de Janeiro por 21 anos. Embora tenha começado na Rádio Tupi do Rio de Janeiro com o radiodrama, Paulo Gracindo era chamado para substituir ocasionalmente , que comandava o programa de auditório Desfile de Calouros, conhecido mais tarde como Calouros do Ary da Rádio Cruzeiro do Sul do Rio de Janeiro em 1935. O fato é que, além de músico e apresentador, Ary Barroso era também narrador de futebol. Quando não era possível conciliar a apresentação do programa com a cobertura da rodada de futebol, o próprio apresentador indicava Paulo Gracindo para substituí-lo18. Os conhecimentos sobre os recursos expressivos e performáticos adquiridos com a radiodramaturgia e a observação da atuação do mestre Ary Barroso, subsidiavam a formação de um animador que encenava e comandava as inúmeras “atrações” dos programas de auditório e tornava-se referência para outros animadores como César de Alencar e Manoel Barcelos.

Figuras 6 e 7: Paulo Gracindo como animador de programa de auditório, Almira Castilho e Jackson do Pandeiro.

18 BRITISH BROADCASTING CORPORATION. O rádio no Brasil. 3ª edição. Londres: Serviço Brasileiro da BBC, 2005. Disco 03 da série.

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Retoma-se nesse momento um dos aspectos fundamentais do conceito de performance apresentado por Paul Zumthor (2000, 2010), o de coautoria, pois sem ela não se daria a performance do animador. Neste sentido, para os espectadores que compõem a plateia, fica reservado mais que um papel reduzido de “receptor” ou “destinatário”. O programa de auditório mostra-se como um ambiente midiático em que trocas comunicativas são possíveis e potencializadas, passíveis de interação além da lógica presente nos meios de massas coordenados pela mediação eletrônica.

Tal possibilidade interativa encontra ressonância na força vinculadora dos “ingredientes corpóreos” – materialidade vocal, expressão gestual, odores, proximidade física – que compõem, surpreendem e transformam o formato. O filósofo francês Michel Serres, em Variações Sobre o Corpo, nos traz uma percepção sobre o poder do corpo em movimento e sua relação com o ambiente:

O corpo em movimento federa (reúne) os sentidos e os unifica nele. Essa visão corporal global e esse toque, cujo maravilhoso poder de transubstanciação transforma o paredão rochoso (distância, ausência) em matéria mole e fibrosa, continuam sempre a produzir encantamento [...] Esse canto prodigioso e intenso que surge do corpo exposto ao movimento ritmado do coração, à respiração e à regularidade parece sair dos receptores musculares e das articulações, do sentido dos gestos e do movimento para invadir inicialmente o corpo e depois o ambiente, com uma harmonia que celebra sua grandeza e que, posteriormente, se adapta transbordante ao próprio corpo que a emite. (SERRES, 2004, p. 17, grifo nosso)

No decurso do programa, os espectadores são convocados a participarem de uma estrutura preestabelecida, comunicada com antecedência ou não, seguida ou não pela plateia. Neste contexto os espectadores são envolvidos como coautores de um jogo19 (HUIZINGA, 1980) cuja manifestação sonora, por meio de perguntas, exclamações e aplausos, sustenta e modula a performance do apresentador e do próprio interlocutor presente no local. “O ouvinte contribui, portanto, com a produção da obra na performance. Ele é ouvinte-autor” (ZUMTHOR, 2010, p. 264).

19 Noção de jogo para Johan Huizinga: "O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana” (HUIZINGA, 1980, p. 33).

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2.3 Programas de auditório e cidade: trânsito sonoro

De acordo com IBGE/Mídia Dados20, na década de 1920, período de implantação do rádio no Brasil, contabilizava-se o total de 16 emissoras existentes. Na década seguinte, essa cifra salta para 83, chegando em 1950 a 592 emissoras em todo o território nacional. À medida que o rádio se populariza e a concorrência entre as emissoras torna-se mais acirrada, a recepção do público nos estúdios e auditórios passa a ser uma forma de lazer rotineira. A historiadora Lia Calabre explica que tal estratégia atendia a uma demanda dos próprios ouvintes “que passaram a não querer somente ouvir seus artistas favoritos. Eles desejavam vê-los” (2004, p. 26). É neste contexto que surgem os programas de auditório.

Inicialmente, a presença dos ouvintes nos programas radiofônicos deu-se por meio de visitas guiadas aos estúdios das emissoras. Tal possibilidade era divulgada pelos jornais e revistas21 de ampla circulação que tratavam de informar sobre os procedimentos para a concretização de tal “façanha” e, ao mesmo tempo, relatavam a percepção temerosa que as emissoras tinham sobre o comportamento destes visitantes. Percepção esta que se aproximava dos conceitos desenvolvidos pelo teórico dos comportamentos da multidão, Gustave Le Bon, em seu célebre livro Psicologia das Massas, de 1895. Le Bon indicava a alucinação, a sugestão e o contágio como comportamentos inerentes aos indivíduos quando em massa e havia uma associação direta destes estados ao comportamento dos ouvintes que compareciam aos estúdios e auditórios.

Calabre destaca uma reportagem publicada pela Revista Carioca, em 7 de novembro de 1936, intitulada “Qual é o verdadeiro ambiente radiofônico”, em que eram informados sobre as instalações das emissoras da época e a política de acesso para os ouvintes. Este registro corrobora a referida associação do comportamento dos ouvintes ao de massa descrita

20 Pesquisa realizada pelo Ibope Media em 2012. Disponível em: . Acesso em: dez. 2012. 21 O impacto e a captura da comunicação presencial envolta por um imaginário construído por materialidades sonoras irradiadas pelas ondas sonoras e reforçadas pela mídia especializada (Revista do Rádio, O Cruzeiro, Radiolândia, Revista da Rádio Nacional) era observável pelo comportamento das plateias lotadas e pela articulação de fã-clubes.

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por Le Bon como violenta e por José Ortega Y Gasset (1971) como hermética, impulsiva e indócil.

Sobre a Rádio Jornal do Brasil, a reportagem informava que a emissora não exigia convites, mas se reservava o direito de impedir a entrada de “qualquer elemento pernicioso”, mesmo porque a exiguidade de seus estúdios “não comporta multidões”. Quanto à Rádio Clube, o clima de “austeridade” e o auditório relativamente pequeno não permitiam encontros efusivos entre fãs e artistas. Já a Rádio Cruzeiro do Sul era classificada pela reportagem como possuindo um ambiente de “entusiasmo e alegria”, entretanto, a emissora costumava vetar “grandes grupos turbulentos”. A Rádio Nacional foi apresentada como a emissora maior e mais luxuosa de 1936, possuindo um auditório que comportava, “como um grande teatro, uma infinidade de ouvintes que queriam ver os seus astros prediletos” (CALABRE, 2004, pp. 27- 28, grifos nossos).

“Multidões”, “encontros efusivos”, “grandes grupos turbulentos” são termos que aparecem como denotativos de comportamentos de massa urbana que, por sua característica supostamente imprevisível, solicitavam dispositivos de controle, regras e normas para uma conduta social orientada ao convívio considerado civilizado. No caso dos programas de auditório, à medida que o formato se consolidava como eficiente, sobretudo sob o aspecto de audiência, diversas emissoras ampliaram seus auditórios e algumas passaram a cobrar ingressos. Tal procedimento tinha como objetivo principal selecionar o público frequentador do auditório.

Essa medida foi resultado de muitas críticas feitas, na época, aos frequentadores desses programas. Inúmeras vezes as plateias eram tachadas de “sem educação” em razão da quantidade de gritos entusiasmados, provocados pela aparição do ídolo ou pela torcida organizada dos concursos que sorteavam prêmios aos presentes. (SAROLDI, 2005, p. 121)

Em busca de uma definição sobre o programa de auditório, observa-se o seu caráter híbrido, ou seja, no decorrer da história este formato radiofônico, marcado pela transitoriedade, vai se transformando e incorporando novos elementos, estabelecendo nova estética até o surgimento de um novo animador disposto a ousar e introduzir outras atrações. José Ramos Tinhorão assim define os programas de auditório:

Mistura de programa radiofônico, show musical, espetáculo de teatro de variedades, circo e festa do adro (o que não faltavam eram sorteios), esses programas chegaram a alcançar uma dinâmica de apresentação que

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conseguia manter o público dos auditórios em estado de excitação durante três, quatro e até mais horas. Para isso, os animadores contavam não apenas com a presença de cartazes de sucesso garantido junto ao público, mas ainda com a colaboração de grandes orquestras, conjuntos regionais, músicos solistas, conjuntos vocais, humoristas e mágicos, aos quais se juntavam números de exotismo, concursos à base de sorteios e distribuição de amostras de produtos entre o público. (TINHORÃO, 1981, p. 70)

A possibilidade de ter contato com os ídolos do rádio, participar do programa e ainda concorrer aos brindes dos patrocinadores exercia grande fascínio entre os fãs que se aglomeravam nos auditórios das emissoras. Tomados pela sinergia do espetáculo, o público era enredado por até quatro horas em uma dinâmica de jogo e encenação, envolvendo luzes, sons, cores e corpos. Registros apontam o comportamento estridente como característica singular da plateia presente nos programas e muitas vezes organizada em torcidas.

Na maioria dos casos os auditórios e as emissoras dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, tinham localização central de fácil acesso com luminosos e cartazes possibilitando capturar o olhar e estimular o imaginário do público circulante. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, por exemplo, considerada uma das emissoras de maior abrangência e credibilidade, foi instalada em 1936 na região central da então capital da República. O prédio de onde irradiava sua programação pertencia à empresa Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, que administrava o “influente órgão da mídia impressa carioca, o jornal A Noite que se apresentava aos seus leitores como ‘o vespertino da cidade’” (SAROLDI, 2005, p. 30).

O edifício de A Noite foi inaugurado em 1929 e se tornou o primeiro arranha-céu22 construído em cimento armado no Rio de Janeiro, com 22 andares, representando um importante e imponente marco visual da cidade. Localizado na Praça Mauá, próximo às avenidas Rio Branco e Mayrink Veiga, o edifício estrategicamente localizado em um dos lados da praça corresponderia à lógica das metrópoles que consiste em concentrar os símbolos de poder e status social em espaços centrais, privilegiados e sob uma arquitetura pujante. O projeto foi desenvolvido pelo arquiteto francês Joseph Gire, o mesmo do Copacabana Palace.

22 No dia 3 de abril de 2013, o Conselho Consultivo do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional) decidiu tombar o edifício A Noite. A decisão, no entanto, não dizia respeito à antiga polêmica referente ao pioneirismo da construção. O edifício carioca disputava o título de “primeiro arranha-céu da América Latina” com o Martinelli, edifício de 130 metros construído no centro de São Paulo.

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Assim, a potência já representada em forma de edifício e de mídia impressa – o jornal A Noite e suas várias edições por dia, as revistas A Noite Ilustrada, Carioca e Vamos Ler, ganharia abrangência nacional através das ondas curtas e médias irradiadas pela Sociedade Brasileira Rádio Nacional que inicia suas atividades contando com uma estrutura modesta sediada no 22º andar do edifício A Noite.

Outras emissoras surgiram na região central do Rio de Janeiro, como a Rádio Mayrink Veiga que, em 1926, foi instalada na rua Municipal número 20, transversal à avenida Rio Branco. A emissora assumiu a liderança em relação às demais durante os anos de 1930 e sua “popularidade determinou a troca de nome da rua. Então em prédio próprio, a PRA-923 fixou- se na Rua Mayrink Veiga, número 15 até seu fechamento pelo regime militar em 1965” (SAROLDI, 2005, p. 21).

Esta concentração das emissoras de rádio e empresas jornalísticas – Jornal do Brasil, A Noite e os Diários Associados de Assis Chateaubriand – no perímetro nobre da capital da República despertava ainda mais o interesse dos ouvintes em conhecer as instalações e em participar os programas de auditório, assim como circular e interagir com a área central da cidade. Em resposta a este anseio e em busca de audiência, as emissoras inauguraram maiores e melhores instalações para os programas de auditório.

A Rádio Nacional foi novamente aquela que serviu de exemplo de eficiência, agilidade e penetração do rádio, tida como a “a sereia dos tempos modernos”. Em 18 de abril de 1942, a PRE-8 inaugurou um novo auditório com capacidade para quase 500 pessoas no 21º andar do edifício A Noite. A iniciativa fazia parte de uma série de estruturações que se iniciaram em março de 1940, quando o governo Getúlio Vargas institui o decreto-lei 2.073, por meio do qual incorporava ao Patrimônio da União, a emissora, todas as demais empresas afiliadas e seus respectivos acervos da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Sobre este espaço, Luiz Carlos Saroldi explica que o novo auditório da Rádio Nacional “se tornaria uma espécie de cartão-postal sonoro do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, um

23 Ao iniciar o funcionamento, cada emissora recebe do governo federal um prefixo, uma identificação composta de letras e números. As emissoras de rádio que surgiram entre os anos de 1930 e 1950 no Brasil recebiam o prefixo composto de três letras e um número como “PRA-9” da Rádio Mayrink Veiga, “PRA-8”da Rádio Nacional, ambas do Rio de janeiro. Os prefixos surgiram durante a Segunda Guerra Mundial para a orientação do tráfego aéreo e marítimo e são utilizados até os dias atuais. No caso brasileiro, quem determina o prefixo é o Ministério das Comunicações, sendo que as letras informam que se trata de uma rádio e o número indica a faixa de frequência na qual ela transmite a sua programação.

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inesperado ponto de encontro do Brasil e do mundo em plena Praça Mauá” (SAROLDI, 2005, p. 80).

As emissoras e seus programas de auditório imprimiam uma sinergia que não ficava circunscrita à intimidade da sala de estar dos ouvintes e nem tampouco às paredes dos auditórios. Toda agitação, movimentação de fãs, ouvintes que se deslocavam do trabalho ou dos bairros afastados para o centro das capitais, invadiam a dinâmica social e espacial da própria cidade forçando o aparecimento de espaços públicos coletivos. No caso do centro do Rio de Janeiro, a Praça Mauá e seus arredores, incluindo a zona portuária repleta de bares, passavam a receber caravanas, grupos de fãs, ouvintes dos mais diversos programas de auditório das emissoras instaladas nas imediações. Por sua vez, as multiplicidades de sons de naturezas diferentes e advindos de fontes variadas que compunham a paisagem sonora das metrópoles reverberavam dentro e fora dos auditórios por meio do comportamento entusiasmado da plateia e dos animadores. A postura de todos os personagens do espetáculo diferia daquela observada durante a execução de uma música de concerto. Ocorria uma imersão em um ambiente composto por estímulos visuais, olfativos, táteis e sonoros. A intensa vibração sonora resultante das vinhetas,24dos jingles25, das interpretações musicais de artistas e calouros acompanhados pelos conjuntos musicais ou pela orquestra, da performance do animador e da interação da plateia, compõem um ambiente de sedução e de mergulho de corpos que se tocam e interagem presencialmente e a distância.

Os programas de auditório do rádio brasileiro revelam-se como um fenômeno de comunicação marcado pelo trânsito entre a fronteira do presencial e do mediado pelas ondas sonoras irradiadas; entre a postura concentrada nas audições de concertos e a imersão na intensidade vibratória dos auditórios; entre a polifonia dos auditórios e a paisagem sonora lo- fi do espaço público das metrópoles.

24 Vinhetas são peças de curta duração elaboradas exclusivamente para o programa em questão com letra e melodia envolventes para serem memorizadas pelos ouvintes e criar identidade sonora para o programa e animador. 25 Consideramos relevante a ampliação do entendimento sobre os jingles que, como tratamos anteriormente, são anúncios publicitários cuja mensagem é passada por meio de uma música. A letra da canção aborda as qualidades do produto, serviço ou instituição em questão e é estruturada com frases curtas, rimadas e repetidas para facilitarem o processo de memorização. Neste sentido, a estrutura sintática da canção do jingle se aproxima da poesia oral, das narrativas apresentadas performaticamente por meio da voz presencial das comunidades de oralidade primária. A melodia do jingle é criada visando assimilação imediata do texto e em muitos casos decorre de uma música que faz parte do repertório do público a quem se desejava comunicar.

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Programas de grande audiência, como os de Paulo Gracindo, César de Alencar e Manoel Barcelos, convidavam e estimulavam ouvintes a enfrentarem extensas filas nas imediações das emissoras como um sacrifício aceito e compartilhado com o objetivo único de desfrutar e prestigiar tanto o programa quanto seus artistas. Mário Lago registra a cena na cidade ao relatar que “às quatro horas da madrugada, sem exagero, já havia gente deitada na porta do edifício de A Noite, esperando que ela abrisse para comprar entrada e ficar numa fila que dava voltas pelo quarteirão, até a hora de subir” (LAGO, 1977, p. 145).

Figura 8: Caravana para o Programa Paulo Gracindo: movimentando a cidade.

As estratégias midiáticas e comerciais coordenadas por ações promocionais dos patrocinadores, pelos contratos de exclusividade com apresentadores e pelas parcerias com gravadoras que coordenavam os programas de auditório impulsionaram o surgimento de fã- clubes. Havia uma orquestração da mídia impressa – destaque para Revista do Rádio, O Cruzeiro, Radiolândia, Revista da Rádio Nacional, e do próprio rádio diante do aumento da popularidade dos artistas e da consequente disputa por títulos de Reis e Rainhas do Rádio. Este contexto de disputa dividia os fãs em torcidas organizadas, vindo a revelar, em 1947, Emilinha Borba como a primeira artista do país a ter um fã-clube. “Os astros mais renomados

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chegavam a ter mais de um fã-clube. Foram famosos os de Emilinha, Marlene, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e Cauby Peixoto, mas as disputas mais acirradas de fã-clubes ocorreram entre os adoradores das cantoras Marlene e Emilinha Borba” (CALABRE, 2004, p. 41).

Figuras 9, 10 e 11: Capas das revistas especializadas no universo radiofônico. Radiolândia (1952 – 1962) e Revista do Rádio (1948 – 1970).

Vale um destaque para a eleição da Rainha do Rádio em 1949, em que foi protagonizada a disputa entre duas torcidas barulhentas e quase radicais com marcação de presença contumaz nos programas de auditório da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, lideradas por Manoel Barcellos (Marlene) e Cesar de Alencar (Emilinha Borba). O confronto entre os dois fã-clubes ficou registrado na história da radiofonia como o mais acirrado com a revelação de comportamentos apaixonados e imprevisíveis dos fãs de Emilinha e Marlene26. Mario Lago, em Bagaço de beira-estrada, descreve em tom de ironia os ânimos das duas torcidas.

26 Sobre a história do Rádio brasileiro, há várias pesquisas e livros que, de forma aprofundada, apresentam as características e o contexto sociopolítico deste veículo de comunicação de massa. Dentre eles estão O Veículo, a História e a Técnica, de Luiz Artur Ferraretto; A Era do Rádio, de Lia Calabre; Rádio Nacional o Brasil em Sintonia, de Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira; A Informação no Rádio – os grupos de poder e a determinação de conteúdos, de Gisela Swetlana Ortriwano; Por trás das ondas da Rádio Nacional, de Miriam Goldefeder; A História que o rádio não contou, de Reynaldo C. Tavares; As Divas da Rádio Nacional, de Ronaldo Conde Aguiar; As Rainhas do Rádio – Símbolos da Nascente Indústria Cultural Brasileira, de Maria Luisa Rinaldi Hupper.

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Tempo quente mesmo era nas quintas e sábados, com a explosão da briga muito bem preparada e melhor mantida entre Emilinha e Marlene. Difícil de acreditar, hoje em dia, a que auges de loucura chegaram os fã-clubes dessas duas cantoras. O Francisco Carlos, El Broto, tinha a sua corrente; Cauby Peixoto também era um dos paparicados. Mas a história era com as duas. Se uma das duas fosse para Canudos íamos ter outro Euclides da Cunha. Se fossem as duas juntas, adeus mundo! (LAGO, 1977, p. 117)

Se por um lado havia críticas em relação ao comportamento descontrolado e histérico das torcidas ou até mesmo à “aparência desleixada ou simplesmente pobre da multidão anônima dos fãs” (SARODI, 2005, p. 124), por outro havia um interesse comercial na orquestração e na manipulação de suas ações. A disputa entre Marlene e Emilinha fazia parte de uma orquestração na qual as torcidas cumpriam a função de manter o assunto em pauta e instigar, mais e mais, pessoas a consumirem os produtos ou assistirem aos programas liderados pelas artistas. Além de matérias sobre o cotidiano das artistas publicadas em revistas especializadas e aparição pública em eventos, conceitos e estratégias modernos de manipulação publicitária impulsionavam o ritmo das disputas entre as torcidas compostas por “fãs deliciosamente sem educação” (LAGO, 1977, p. 118). Como relatado por Mário Lago, apesar de atuarem como um suporte de marketing das gravadoras e emissoras garantindo visibilidade e prestígio aos artistas, os fãs não agradavam a todos, em especial à classe média burguesa que os considerava desajustados sociais, perigosos e integrantes de uma massa manipulável.

Segundo a pesquisadora Maria Luisa Hupper (2009), a percepção que alguns setores da sociedade brasileira, em especial a classe burguesa emergente, alimentavam a respeito do comportamento dos fãs, individuais ou coletivos, revelava uma

crítica implícita à vida moderna, que promoveu o progresso tecnológico, mas trouxe consigo a decadência social, moral e espiritual. Nesse contexto, o fã é definido como uma “resposta” ao star system. Ele se relaciona artificialmente com a celebridade sob a influência da mídia. (HUPPER, 2009, p. 172).

“Fã” vem do Inglês fan, de fanatic, que vem do Latim fanum, “templo”. Fanaticus é o sujeito que exagera em suas devoções. De acordo com a pesquisadora Joli Jensen (1992), os teóricos que abordam a questão do surgimento e comportamento do fã o fazem em oposição ao aficionado. Diferentemente dos fãs, que são caraterizados como grupos marginais ou

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desviantes em busca de uma relação com celebridades para compensar a falta de relações sociais autênticas, o aficionado é dotado de racionalidade e relaciona-se intelectualmente com o seu objeto de admiração. Portanto, os “objetos do desejo” e os “modos de atuação” de fãs e aficionados pautam as diferenças entre eles. Jensen (1992, p. 16) explica que os objetos do desejo de um aficionado são considerados “alta cultura” e o de um fã são “produtos da cultura de massa”, baratos e amplamente disponíveis para o consumo. Em relação ao comportamento, Jensen destaca a oposição entre fãs e aficionados realizada pelos teóricos: “a obsessão de um fã é considerada emocional (classe baixa, mal-educado) e por isso perigosa, enquanto a obsessão do aficionado é racional (classe alta, educado), e por isso benigna e mesmo valiosa” (JENSEN, 1992, p. 21).

Essa concepção é a que aparece nos depoimentos de intelectuais e nas matérias publicadas nas revistas e no jornal impresso brasileiros sobre o comportamento dos fãs de celebridades radiofônicas da época. Histéricos, fanáticos, apaixonados, barulhentos, os fãs dos anos de 1940 e 1950 eram compostos basicamente por moças de colégio, do comércio ou trabalhadoras domésticas de baixa renda que, de acordo com José Ramos Tinhorão27, eram vítimas de preconceito da imprensa e da intelectualidade brasileira ao serem chamadas de “macacas de auditório”. O tom agressivo de Millôr Fernandes sobre os programas de auditório e os fãs, publicado em 1955 na Revista do Rádio, evidencia o preconceito apontado por Tinhorão:

Caso típico de intervenção por parte do Ministério da Educação. Caso típico de intervenção por parte das Forças Armadas. Caso típico de polícia. Já foram ditas milhares de vezes, e só a comparsaria que dirige as estações de rádio não atenta (por interesses comerciais pessoais), as duas verdades fundamentais contra os programas de auditório, ou seja, à debilidade mental. O frequentador de auditório não tem poder aquisitivo para comprar uma caixa de fósforos. (FERNANDES, 1955, p. 22)

A formação de fã-clubes, em homenagem a cantoras como Marlene,28 deu-se como uma forma de expressão popular espontânea e, no decorrer do tempo, foi ganhando outras proporções, repercutindo e mobilizando interesses. No entanto, segundo Hupfer (2009), a formação de fã-clubes era uma tentativa de enquadramento do fenômeno. “Até o final da

27 BRITISH BROADCASTING CORPORATION. O rádio no Brasil. 3ª edição. Londres: Serviço Brasileiro da BBC, 2005. Disco 03 da série. 28 BRITISH BROADCASTING CORPORATION. O rádio no Brasil. 3ª edição. Londres: Serviço Brasileiro da BBC, 2005. Disco 03 da série.

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década de 1950, esse discurso de adequação vai se transformar numa verdadeira cruzada contra o tom emocional e ruidoso dos fã-clubes. Tanto que em fevereiro de 1958, a Revista do Rádio publica ‘os dez mandamentos para os fãs’” (HUPPER, 2009, p. 179).

Entre críticas e incentivos, com o fenômeno dos fã-clubes29 de artistas, muitos grupos se organizavam em caravanas e disputavam o espaço na cidade assim como a atenção dos passantes com faixas e vociferações entusiasmadas.

Dessa intensa relação com a cidade, surgiram programas que enveredavam pelos bairros e os transformavam em uma extensão do auditório, de onde os participantes vibravam ao ouvirem o desdobramento do espetáculo nas ruas. As paredes e portas, que até então encerravam o espetáculo dentro de uma espacialidade construída para receber presencialmente um determinado número de espectadores, metaforicamente são abertas para a rua. Os limites são temporariamente transformados em fronteiras móveis, em porosidade por onde transitam informações que dão nova materialidade ao programa. O programa A Felicidade Bate à sua Porta é um exemplo desta possibilidade. Apresentado todos os domingos às 19 horas pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, o esquema proposto pelo programa era considerado sofisticado e ousado tecnicamente para a época, idos de 1951, e contava com o “atrativo máximo” de Emilinha Borba, considerada uma das rainhas mais populares. A dinâmica do programa consistia no deslocamento de um furgão equipado que percorria os diversos bairros da capital carioca levando o apresentador Héber de Bôscoli à procura do ouvinte sorteado em auditório comandado por Iara Sales. “Localizado o felizardo (e se ele comprovasse o uso de produtos da União Fabril Exportadora), iniciava-se uma série de comemorações” (SAROLDI, 2005, p. 120). Uma estratégia de aproximação entre a emissora, os anunciantes e seus ouvintes, que lotavam as ruas estreitas dos bairros periféricos da cidade para acompanhar e ver de perto os artistas e ainda ganhar brindes dos patrocinadores como podemos observar no registro abaixo.

29 Em As Rainhas do Rádio – Símbolos da Nascente Indústria Cultural Brasileira, Maria Luisa Rinaldi Hupfer desvenda a história e os mecanismos para a transformação do rádio em um veiculo de comunicação de massa por meio das Rainhas do Rádio. A pesquisadora dedica um capítulo especial para os fã-clubes.

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Figura 12: Programa Felicidade bate à sua porta e leva Emilinha Borba até você nas ruas do Rio de Janeiro. Fonte: Vide índice de figuras

Outra estratégia que incorporava a cidade como elemento da “orquestra” encenada pelo rádio foram os espetáculos transmitidos de praças públicas localizadas no centro urbano do Rio de Janeiro e São Paulo, tal como o ocorrido em 1952 pelo Rei da Voz – representado por Francisco Alves, protagonista de um importante show no Largo da Concórdia, centro da capital paulista, organizado e veiculado pela Rádio Nacional de São Paulo. Na ocasião, o apresentador, ao anunciar o cantor, dedicou a primeira música do “recital” particularmente aos fãs de Francisco Alves moradores do bairro do Brás30, “pátria” dos imigrantes italianos e bairro operário com mão de obra nordestina migrante na capital, em busca de emprego e melhoria da condição de vida.

Se o espaço é condição e resultado dos processos sociais, como explica Milton Santos (2002), a utilização da praça pública para eventos coletivos que permitam a vibração de seus habitantes com e na cidade pode se revelar tão intenso como os encontros que ocorriam na

30 BRITISH BROADCASTING CORPORATION. O rádio no Brasil. 3ª edição. Londres: Serviço Brasileiro da BBC, 2005. Disco 03 da série.

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Ágora da cidade grega no século IV a. C. Como apresentado anteriormente, além das discussões coletivas para a solução de questões sociais, a praça pública grega tornou-se também espaço coletivo de trocas e apresentações artísticas. Respeitadas as devidas distinções históricas, econômicas, sociais e comunicativas, entre a praça da pólis grega e as praças das metrópoles modernas brasileiras, em especial Rio de Janeiro e São Paulo, os eventos promovidos pelas emissoras em praças e bairros dava aos moradores a possibilidade de usufruir de uma nova relação com os espaços públicos. Em 1956, a Rádio Record, inaugurada em 1931, realizou a comemoração do seu jubileu de prata na Praça da República, um dos mais emblemáticos pontos de São Paulo, construída a partir do modelo de urbanização europeia, considerada o elo entre o centro velho e o centro novo. O show atraiu uma multidão de pessoas que acompanhava entusiasmada os artistas que faziam parte do casting da emissora paulistana.

Ainda que provisória, a realização e veiculação de programas, shows, recitais pelas emissoras radiofônicas durante os anos de 1940 e 1950 em espaços públicos planejados para o deslocamento de mercadorias e mãos de obra, ou para a ostentação do poderio da classe burguesa emergente, acrescenta uma nova relação entre o espaço da cidade e as pessoas. Resultante desta interação, o próprio espaço público se reorganiza, se remodela em formas e estruturas, provisórias ou não, em função de interesses sociais, econômicos, políticos e de novas dinâmicas que, no caso da radiofonia, incluía recursos técnicos, ausência e presença, comunicação primária e comunicação mediatizada, auditórios, ruas, avenidas, praças e bairros.

Com a evolução e a disponibilidade de recursos técnicos que facilitam a transmissão de programas fora dos estúdios das emissoras, o rádio contemporâneo marca presença na vida cotidiana da cidade e abre possibilidades de novas experiências com o ouvinte e o espaço público. Estas e outras reinvenções da radiofonia na avenida mais emblemática da cidade de São Paulo são temas do nosso próximo capítulo.

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CAPÍTULO TRÊS – FONOBOLHAS URBANAS

O ressurgimento dos programas de rádio com a presença de plateia em auditórios na cidade de São Paulo ocorre em um momento no qual a radiofonia brasileira, assim como os demais meios de comunicação, procuram entender o que o atual contexto de comunicação, marcado pelas tecnologias de comunicação e informação digitais em rede, apresenta como potencialidades e desafios.

O rádio é apontado como o meio de comunicação eletrônico que melhor se integrou à internet31 e aos seus correlatos. A adesão às tecnologias digitais tem importante repercussão quando as emissoras tradicionais passam a transmitir suas programações (veiculadas analogicamente por modulações em frequência e em amplitude, as conhecidas FM e AM) pela internet. Estas ficam conhecidas como rádios online, ou seja, emissoras que transmitem por ondas e que também podem ser acessadas pela rede mundial de computadores via tecnologia streaming32, diferenciando-se das rádios web ou net rádios que existem somente na internet e não dependem de concessão do governo federal, no caso do Brasil. Ao “cair na rede” e transmitir em tempo real sua programação, o rádio online conquistou expansão para muito além do alcance do sinal transmitido pelas emissoras, que hoje alcança entre 50 e 65 quilômetros a partir da fonte33, além de integrar um complexo universo de radiodifusão que abarca a TV paga, os rádios WEB, o rádio social34 e o podcast (KISCHINHEVSKY, 2014).

Portanto, ao explorar os recursos de uma plataforma multimídia como a internet, o rádio online encontrou alternativas para contornar a efemeridade de seus signos

31 Sobre as novas práticas radiofônicas realizadas a partir da remediação (BOLTER, GRUSIN, 2000) do rádio hertziano (em ondas) e o rádio online (que usa a Internet como plataforma para a distribuição de áudio em formato digital e para interagir com sua audiência), indicamos as pesquisas de Magaly P. PRADO (2012), Nair PRATA (2012), Nélia DEL BIANCO (2012), Marcelo KISCHINNHEVSKY (2011), Luiz Arthur FERRARETTO e Marcelo KISCHINNHEVSKY (2010). 32 Streaming refere-se ao fluxo de mídia que permite a distribuição de dados (geralmente multimídia) por meio da internet. Possibilita ao usuário ter acesso a uma multiplicidade de informações sem que estas sejam armazenadas em seu dispositivo digital. 33 De acordo com dados do Ministério da Comunicação e da EBC – Agência Brasil de Comunicação, atualmente o Brasil contabiliza 9.624 emissoras de rádio nas modalidades Comunitária, Educativa e Comercial AM e FM, sendo que 80% das emissoras já disponibilizam sua programação pela internet. Disponível em , acesso em 23/07/2014. 34 De acordo com Marcelo KISCHINNHEVSKY (2014), rádios sociais são mídias sociais que têm no intercâmbio de áudio seu principal ativo.

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essencialmente sonoros. Ou seja, apropriando-se da chamada convergência de mídias35, as emissoras de rádio disponibilizam, em suas páginas na internet, conteúdos em formatos diversificados (textos, vídeos, hiperlinks, imagens) ou, ainda, arquivos em áudio (podcast ou audiocast)36 com trechos ou com a íntegra de atrações veiculadas em sua programação.

A expansão e popularização da telefonia celular37 e dos dispositivos móveis conectados em rede acentuaram ainda mais o aspecto da mobilidade radiofônica conquistada nos anos de 1970 com o uso do transistor. Naquela ocasião, a oportunidade de ouvir rádio em diferentes locais e em movimento provocou importantes transformações na estética do primeiro meio eletrônico de comunicação de tecnologia wireless (sem fio), nos modos de escuta do ouvinte e na relação de ambos com a cidade. Atualmente, o ouvinte-internauta mantém ao alcance da mão a possibilidade de ouvir e compartilhar informações por meio de gadgets (dispositivos) acoplados ao corpo ou no bolso. Neste aspecto, o acesso à programação via celular ou outro dispositivo móvel (tablet, tocador de mp3) em diferentes locais e momentos38, propicia que seja ainda mais explorada a aproximação com o internauta-ouvinte- nômade que é constantemente “convidado” a participar, interagir por meio de “ferramentas” digitais previamente programadas. A figura do pedestre que transita pelas ruas e avenidas, ou se desloca por meio de transportes coletivos, como trens, metrôs e ônibus, portando fones de ouvido discretos ou volumosos e coloridos, não nos causa mais estranhamento. Em alguns casos é possível observar como a escuta privada é apreendida pelo corpo-ouvido que se manifesta através de gestos como o ritmo do andar, o movimento dos dedos, o olhar distante

35 Convergência de Mídias: termo desenvolvido por Henry Jenkins (2008) para designar o movimento realizado pelos meios de comunicação frente às inovações apresentadas pela internet e seus correlatos. “A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros (JENKINS, 2008, p. 28).” 36 Esses arquivos de áudio são comercialmente conhecidos como podcasts (audiocasts) que, pela disponibilidade de softwares livres para gravação e edição de áudio, tornam-se facilmente produzidos e compartilhados entre os usuários da rede mundial de computadores. Além de poderem ser buscados na internet, o usuário pode assinar e receber automaticamente novas edições por meio do recurso de RSS, sem que tenha que acessar a página do podcast em questão. No entanto, um dos aspectos mais relevantes do podcast está na possibilidade de os usuários serem envolvidos em uma modalidade de comunicação predominantemente dialógica, já que borra as limitações e funcionalizações das instâncias de produção e recepção, características no contexto massivo. 37 Segundo dados da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações – em junho de 2014 o Brasil contabilizou 275,7 milhões de celulares e 136,06 cel./hab. O que significa dizer que para cada habitante há 1,3 aparelhos celulares. 38 Com a convergência de mídias, o rádio avançou para além do formato tradicional e passou a explorar o streaming, banda larga e outras plataformas para transmitir sua programação. Estas mudanças, por sua vez, fizeram com que os hábitos de consumo também se alterassem, ou seja, o ouvinte pode ouvir onde e quando desejar uma emissora que explore a internet. Embora inicial, as empresas privadas de pesquisa, como IBOPE Media e Grupo de Mídia, já integram à medição regular de rádio índices de audiência por equipamentos móveis como o celular. Em pesquisa divulgada em janeiro de 2014 pelas citadas empresas, o celular já é o segundo equipamento mais utilizado para ouvir rádio. Disponível em . Acesso em 23 de julho de 2014.

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ou o cantarolar. O fato é que, em face da intensidade, da simultaneidade e da velocidade de estímulos e informações de toda ordem que compõem a dinâmica social nos grandes centros urbanos, portar seu próprio ambiente sonoro parece ser uma estratégia para vivenciar/enfrentar este contexto de fluxo constante.

Esses dispositivos (celulares, tocadores de mp3, smartphones) passam a assumir um lugar que gera o conforto, a proteção, dos quais advém a flexibilidade de transitar pelos mundos. Eles são operadores de velocidades, seguranças, podendo criar mundos de fugas, escapes, que nos possibilitam suportar e lidar com o mundo ameaçador que nos cerca, sentido como caos. A portabilidade dos aparelhos possibilita vivenciar esse modo de vida nômade (OBICI, 2008, p. 87 – 88)

Ao observar as questões expostas acima, pode parecer que a interação entre o rádio contemporâneo, o ouvinte-internauta e a cidade acontecem essencialmente à distância e por meio de tecnologias digitais. No entanto, a realização e veiculação de programas de auditório em diferentes localidades da cidade de São Paulo indica que a radiofonia também busca por experiências que incluam a cidade e a presença concreta do denominado ouvinte-internauta- nômade. Se entendermos o rádio como um organismo vivo e dinâmico, um sistema que apesar de ser ordenado e normatizado pelas estratégias de consumo, apresenta porosidades, é cabível afirmar que ele (o rádio), ao incorporar o novo que lhe é proporcionado, patrocina sua auto- organização, procurando encorajar a participação da audiência com corpo presente e ensejando a abertura de outras interações ao ressignificar alguns hábitos comunicativos já disponíveis, como os auditórios.

É desta forma que emissoras deixam (provisoriamente) seus estúdios e buscam, na cidade que diariamente é invadida pelas ondas e bytes sonoros do rádio, locais para irradiarem determinadas programações. Motivado pelo fato de que a cidade também se manifesta sonoramente e que sua principal avenida fala, o rádio a incorpora a partir de uma outra perspectiva, ou seja, dela se apropria e cria ou descobre espaços de encontro onde os ouvintes podem participar da sua programação também presencialmente.

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3.1 Reinvenções da radiofonia na cidade de São Paulo

Embora a incorporação do formato programa de auditório nas atuais grades de programação em emissoras de rádio aconteça em momentos estratégicos, (geralmente relacionada a datas ou eventos específicos, como aniversário da cidade ou de um programa específico), a sua prática merece atenção, pois dentre as inúmeras questões que podemos inferir está a capacidade do meio em incorporar o “novo”, ou ainda de resgatar práticas e formatos em desuso. Essa capacidade de reinvenção lenta e processual de um sistema pode ser compreendida, por exemplo, pela concepção batesoniana de processo estocástico (BATESON, 2006).

O antropólogo inglês Gregory Bateson (2006), partindo da segunda cibernética e de seus estudos na área das ciências biológicas e psicológicas, nos oferece uma perspectiva da comunicação que não se submete à relação de causa e efeito postulada pela primeira cibernética de Claude Shannon (teoria matemática da informação) e Waren Weaver. Para Shannon a informação é computável, ou seja, passível de discriminação, ordenação e previsibilidade e tal compreensão está subjacente nos modos comunicativos de mediação uma vez que buscam enquadrar a ordem do real na dimensão do computável.

Se para Shannon previsibilidade e mediação são sinônimos de comunicação, para Bateson (2006) as palavras-chave deste processo complexo e dinâmico são: possibilidade e interação. A perspectiva de comunicação orquestral defendida por Bateson é resultado de uma abordagem que reuniu, após a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores de diversas áreas39, como antropologia, biologia, psicologia, cognição e cibernética. A proposta dos pesquisadores foi desenvolver uma compreensão da comunicação não como um ato individual, “mas sim, como uma instituição social. O ator social participa dela não só com palavras, mas também com seus gestos, seus olhares, seus silêncios. A comunicação torna-se assim a performance permanente da cultura” (WINKIN, 1998, p. 14). Essa rede composta por pesquisadores de diversos horizontes ao longo dos anos de 1950 fica conhecida como Escola de Palo Alto, ou Colégio Invisível, e tem como objetivo desenvolver uma concepção da comunicação como um processo contínuo, não linear, no qual a incorporação do novo (das diferenças que fazem a diferença) traz sempre, como possibilidade, o enriquecimento do sistema comunicativo em

39A chamada Escola de Palo Alto era, portanto, composta pelos psiquiatras Paul Watzlawick, Juergen Ruesch, Albert E. Scheflen e Don D. Jackson e pelos antropólogos como Erving Goffman, Edward T. Hall, Ray Birdwhwhistell.

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questão. Não se trata do esquecimento ou abandono do já incorporado ao sistema, mas de uma auto-organização ou recalibragem deste em função da novidade. Um processo que também poderia ser compreendido como uma midiamorfose, termo utilizado por Roger Fidler (1998) para explicar os processos de adaptação e auto-organização:

A midiamorfose não é tanto uma teoria, mas um modo de pensar a respeito da evolução tecnológica dos meios de comunicação como um todo [...] Ao estudar o sistema de comunicação como um todo, veremos que os novos meios não surgem por geração espontânea, nem de modo independente. Aparecem gradualmente pela metamorfose dos meios antigos. E quando emergem novas formas de meios de comunicação, as antigas geralmente não deixam de existir, mas continuam evoluindo e se adaptando. (FIDLER, 1998, p. 57)

Esse modo de pensar a comunicação nos remete à dinâmica de “cumulatividade” dos meios de comunicação descrita por Harry Pross (1999), ou seja, uma nova prática comunicativa sempre inclui cumulativamente as experiências anteriores e resulta em um sistema mais complexo. Portanto, a incorporação da concretude de corpos, que é uma característica da comunicação primária, em sistemas de comunicação que privilegiam relações à distância e mediadas por meios eletrônicos e digitais (comunicações terciárias), talvez seja o “novo” a ser observado. Ou seja, em outras palavras, a oportunidade de participação presencial em um programa de rádio em auditório neste contexto social e comunicativo ambivalente de imobilidade e fluidez, de distanciamento e proximidade, de ausência e presença, pode representar uma experiência sensorial que envolve a descoberta ou a retomada de saberes. Como nos ensina Baitello (2012, p. 35), a palavra experiência vem da raiz do indo-europeu per que dentre os seus significados está o de tentar, ou seja, ao se movimentar, ao buscar novas experiências o homem está sujeito à descoberta ou à redescoberta de saberes.

Portanto, ao participar presencialmente de experiências onde corpos estão reunidos e presentes concretamente, encontramos caminhos possíveis para a comunicação dialógica, a troca de informações novas (FLUSSER, 2012). Experiências não compreendidas como oposição às comunicações virtuais, instantâneas e em tempo real entre sistemas, bancos de dados digitais e indivíduos em diferentes localidades, mas como uma dinâmica na qual o meio rádio, o ouvinte-internauta-nômade e a cidade (a megalópole São Paulo) se articulam em um sistema comunicativo mais suscetível ao imprevisto e à circularidade observados pelos

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pesquisadores de Palo Alto. Um processo contínuo que evidencia a cumulatividade de mídias (terciárias e primárias) e a compreensão de Harry Pross de que toda comunicação efetivamente se inicia e termina no corpo independentemente dos aparatos existentes entre eles. Reforçando ainda a percepção de que nessas mais de nove décadas, o rádio brasileiro está sempre em processo de auto-organização, midiamorfose e cumulatividade. Portanto, a concepção dos autores acima citados nos ajuda a compreender o que chamamos de reinvenções da radiofonia.

3.2 No meio do caminho tinha um... estúdio

A realização de programas de rádio fora dos estúdios, como vimos, não é uma estratégia nova. No entanto, com a necessidade de buscar alternativas para disputar espaço entre as demais mídias, conquistar interesse do ouvinte e dos anunciantes, e com a evolução tecnológica dos equipamentos utilizados para a produção e transmissão, a prática tornou-se bastante explorada e ganhou novas nuances. Em eventos como feiras, exposições, convenções, congressos e até mesmo em museus, patrimônios históricos, bienais de artes e livros, muitas rádios montam seus estúdios e transmitem diretamente do local a sua programação parcial ou integralmente. Algumas emissoras optam por unidades montadas em veículos adaptados para funcionarem como estúdio sobre rodas, outras se fixam (provisoriamente) em locais de ampla circulação. O estúdio móvel é preferencialmente montado integral ou parcialmente com material transparente, como vidro ou acrílico, seu espaço interno é cenograficamente montado com reforço de iluminação cênica e tratamento acústico, com o objetivo de reproduzir (simular) a atmosfera vivenciada no dia a dia do profissional de rádio, cuja imagem para o ouvinte é quase sempre sonora, e também de conferir visibilidade à emissora. A encenação dos envolvidos na produção e apresentação dos programas despertam olhares curiosos de passantes, há quem pare por instantes, outros quando abordados participam de algum link programado, ou ainda participam efetivamente da programação, como ocorreu com a experiência da Mobile Radio BSP em 2012, durante a 30ª edição da Bienal de Artes realizada em São Paulo.

O projeto Mobile Radio BSP ficou no ar durante 14 semanas, do dia 04 de setembro a 09 de dezembro de 2012, sob a condução dos músicos Sarah Washington e Knut

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Aufermann40. Os artistas articularam a participação de 40 rádios de vários países e estações comunitárias de São Paulo, radio-artistas e anônimos, com a proposta de produzir uma obra colaborativa, dinâmica, aberta e experimental. Instalado no mezanino do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, o estúdio da Mobile Radio BSP tinha uma de suas paredes estruturada em vidro, o que permitia ao visitante da bienal acompanhar visual e presencialmente a produção ao vivo da programação, uma vez que a mesma foi transmitida pela internet e em uma frequência provisória de baixo alcance cedida pela Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações.

Figuras 13 e 14:Veiculação ao vivo da programação da Rádio BSP: quem apresenta, quem ouve?

O visitante, ao ingressar no prédio da Bienal (que fica dentro do Parque do Ibirapuera, na zona sul da cidade de São Paulo), poderia optar por acompanhar a programação também por meio do celular, sintonizando a frequência 87,5 FM. No decorrer da programação, foi comum observar a junção de visitantes que passavam, paravam e seguiam; alguns registravam a movimentação com seus celulares, outros resolviam sentar em um dos vários bancos disponíveis no entorno do estúdio ou até mesmo entrar na estrutura que se fazia “sede” da rádio, pois em muitas ocasiões a porta ficava aberta para quem quisesse entrar e participar.

40 A Mobile Radio BSP fez parte de um projeto desenvolvido pela artista britânica Sarah Washington e o alemão Knut Aufermann. A proposta Mobile Rádio que está em atividade desde 2005 consiste em explorar as possibilidades de toda natureza a partir do rádio e sempre deslocando a sua produção do estúdio convencional para outros locais. O projeto já foi realizado em diversas cidades europeias como Berlin, Amsterdã e Lisboa. São Paulo foi a primeira experiência fora da Europa. O projeto foi apresentado em 18 de agosto de 2012 no Instituto Goethe em sessão aberta a todos os interessados. Com a sala lotada de artistas, jornalistas, radialistas, pesquisadores, a ideia também foi convidar os interessados em participar da programação por meio de peças, audiopoemas, programas musicais e outras experiências sonoras que guardassem relação com a cidade. Mais detalhes sobre a programação da Mobile Radio BSP (2012) e sobre o projeto podem ser conferidos em .

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Em muitas das apresentações, a distinção entre os artistas e o visitante se tornava difícil, pois a porta de vidro previamente pensada para incorporar, e não isolar, era aberta e envolvia todos num único acontecimento.

Sendo assim, dentro e fora, dentro ou fora, ou ainda, no entre o dentro e o fora, havia uma sinergia implícita entre todos os elementos envolvidos, o que permitia apreender o espaço delimitado pelas instalações do estúdio da Mobile Radio BSP e seu entorno para além de uma percepção que o reconhecesse somente como um suporte, um utilitário disponível para uso (FERRARA, 2008). Naquele contexto, o espaço se consolidava não só pela sua organização e construtibilidade descritas, mas também pelos valores e usos representados por meio das relações comunicativas possibilitadas, como as apropriações inusitadas e até certo ponto inesperadas de visitantes, as interações construídas entre os radio-artistas e os demais participantes presentes, nas percepções surpresas daqueles que se deparavam com um lugar, uma “lugaridade” (FERRARA, 2009), resultado de um fluxo contínuo, recursivo, que acontecia na ação dialógica de todos os vetores envolvidos (sonoros, táteis, visuais, olfativos, proprioceptivos). Portanto, o espaço delimitado para o estúdio da Mobile Radio BSP e seu entorno, em muitos momentos, se fez presente, atuante e distinto por meio da espacialidade representada também pela interação entre corpos cujos sentidos eram acionados e envolvidos naquela ambiência. Aliás, como nos faz lembrar Baitello (2008, p. 99), o corpo em si “é um catalisador de ambientes, e talvez seja sempre o catalisador inicial de um ambiente comunicacional.[...] Sua simples presença gera a disposição de interação, desencadeia processos de vinculação com o meio, com os outros seres do entorno e com seus iguais”.

Figuras 15 e 16: Estúdio da Rádio BSP – transparência e captura.

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Há sempre impacto no entorno e nas pessoas, ou seja, novas conformações socioespaçocorporais a serem observadas, quando um estúdio móvel é inserido em diferentes espaços, como ocorre, por exemplo, nos estúdios e auditórios que conhecemos na Avenida Paulista, em São Paulo.

Considerando que estamos abordando os estúdios e auditórios presentes na cidade, impacto (auto-organização da espacialidade) similar ao acima descrito também ocorre quando o Grupo Bandeirantes de Comunicação resolve instalar um estúdio de rádio em frente a um dos cartões postais da cidade, o prédio da FIESP41, localizado na altura do número 1.300 da Avenida Paulista. Montado com paredes de vidro e estrutura metálica, o cubo que simula um estúdio apresenta na parede frontal do transeunte adesivos com as marcas do grupo, das emissoras e suas respectivas frequências. Graças à transparência do material, sem que seja necessário adentrar a área interna, é possível apreender a cenografia desenhada por meio de mesa com tampão de vidro, 4 cadeiras reservadas para apresentadores e participantes, além de um sofá de 2 lugares, todos com estofamento branco. Todo o mobiliário, juntamente com equipamentos espalhados sobre a mesa, estão dispostos sobre um tapete vermelho que cobre toda a área do piso do estúdio cujo acesso é limitado e controlado por meio de uma porta lateral devidamente bloqueada. A instalação deste estúdio ocorreu em janeiro de 2014, por ocasião do aniversário da cidade. A intenção do Grupo Bandeirantes era realizar, no dia 25 de janeiro, uma transmissão radiofônica ao vivo de um dos pontos mais emblemáticos de São Paulo, no entanto, satisfeitos com a visibilidade proporcionada tanto ao grupo como à própria FIESP, que mantém diversas atividades culturais em suas instalações, o estúdio móvel está no local há quase 1 ano e é utilizado por diferentes programas da emissora ao longo da semana para transmissões ao vivo.

41 O edifício inaugurado em 1979 é sede das entidades representativas da indústria paulista – FIESP-SESI- CIESP e foi um projeto do escritório Rino Levi Arquitetos. No final dos anos de 1990, o escritório de recebeu a incumbência de reformar a parte mais baixa do edifício para incorporar um centro de exposições e um teatro. Além do Centro Cultural Fiesp Ruth Cardoso, após a intervenção a cidade ganhou a ampliação do passeio público, a integração do prédio à calçada da Paulista como uma proposta de interação entre o privado e o público.

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Figuras 17, 18 e 19: No meio do caminho tinha um... estúdio móvel da Grupo Bandeirantes de Rádio.

De segunda a sexta-feira, o programa BandNews em Alta frequência42 é apresentado pela jornalista Neli Pereira, com a participação de Bárbara Gancia, e periodicamente conta com a presença de convidados como especialistas, atores e cantores. BandNews em Alta frequência é transmitido ao vivo pela Rádio BandNews FM (96,9) do estúdio móvel e gera muitas reações dos passantes que diariamente circulam no local. Como o horário de veiculação do programa ocorre entre o final do período vespertino e início da noite, ou seja, em pleno horário de encerramento de trabalho e início de atividades acadêmicas das instituições de ensino localizadas na própria avenida e arredores, o fluxo de transeuntes é intenso. Portanto, a estratégia do Grupo Bandeirantes rende visibilidade, em especial dentre alguns dos transeuntes que se deslocam apressadamente pelas calçadas da Avenida Paulista. É verdade que possivelmente muitos destes indivíduos encontram-se pressionados pelo tempo, outros estão seduzidos pelas telas dos dispositivos móveis, ou ainda envolvidos em suas paisagens sonoras portáteis e particulares. Estes quase nunca se deixam capturar pelo entorno e tampouco pelo olhar. Diante desta constatação empírica vale registrar a observação da eutonista Tereza Gomes (2011) sobre os transeuntes da Avenida Paulista:

as pessoas caminham muito mais de cabeça baixa que olhando para frente. Elas estão caminhando e estão voltadas para dentro de si, especialmente de segunda a sexta. É mais fácil você de cima de um prédio enxergar nucas que o topo da cabeça. Porque as pessoas com o topo da cabeça erguido podem olhar para tudo, para as coisas que estão em volta.43

42 Programa Band News em Alta frequência faz parte da programação desde abril de 2012 e atualmente é transmitido pela Rádio Band News FM de segunda a sexta das 16h às 19h. 43 Teresa Gomes participou do documentário Calçada da Paulista produzido em 2011 com duração de 30 min. pela TV SESC e TV PUC como integrante da Série Objetos da Cultura. O documentário foi veiculado pelas citadas emissoras e encontra-se disponível na página do Sesc TV: .

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No entanto, como a diversidade é o que garante o exercício de múltiplas possibilidades de comunicação, há entre aqueles, os outros, os que olham, os que se mostram curiosos e até ensaiam uma breve pausa e, dependendo da encenação e dos convidados do programa, efetivamente param e transformam a espacialidade onde o estúdio móvel está instalado. Quando a presença do estúdio consegue cativar o transeunte e envolvê-lo em uma experiência sensível e de interação social, ela expande as calçadas da avenida, contaminando outros passantes e possivelmente contribuindo para a ressignificação da espacialidade em questão. É possível que a presença do estúdio “em plena calçada” da avenida provoque surpresa, estranhamento e curiosidade também pelo fato de que esta intervenção rompe com a lógica instituída pela ordem distante, a que estabelece ser, a avenida, um local de passagem, de deslocamento. De acordo com a apresentadora Neli Pereira, a experiência de transmitir ao vivo de um estúdio na avenida Paulista é quase como a de um programa de auditório, e isso se dá pelo fato deles poderem “ver a reação das pessoas na mesma hora, além de ter a oportunidade de estar com elas” (informação oral)44. É compreensível, portanto, que essa presença do outro, por sua vez, exija uma auto-organização de quem apresenta, na medida em que agencia uma postura ainda mais atenta, pois o que se passa em frente ao estúdio deve ser descrito e incorporado a fim de permitir que o ouvinte em movimento e à distância consiga acompanhar o que acontece dentro e fora do estúdio. A vibração, o feedback em relação ao que é tratado ao microfone, é visualmente observável pela apresentadora que, por sua vez em um processo recursivo, modula sua própria performance (ZUMTHOR, 2000; 2010). Neste sentido, embora destaque que o deslocamento intenso dos passantes e a falta de conforto acústico em certos momentos, causam algum inconveniente, a jornalista Neli Pereira reforça que a possibilidade de acompanhar a movimentação da cidade, de sair do estúdio e checar a informação com o público presente na calçada confere uma sinergia singular ao programa. Acrescentaríamos que esta sinergia também altera a percepção daqueles que, cotidianamente ou não, transitam pelas calçadas da Avenida Paulista, assim como sua espacialidade.

44 Entrevista gravada com a jornalista e apresentadora do programa BandNews em Alta Frequência no dia 16 de julho de 2014 no estúdio móvel da emissora na avenida Paulista, São Paulo.

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3.3 Avenida Paulista: auditórios, espaços-bolha, bolhas-acústicas

A avenida Paulista, no decorrer de sua história, passou por inúmeras reformas e, pouco mais de cinco décadas após sua inauguração, realizada em 1891, deixou sua vocação residencial, exilou grande parte de seus casarões, verticalizou-se com edificações imponentes e exuberantes, alargou seu leito carroçável, criou e reformou seus calçadões, para torna-se um dos principais centros financeiros da cidade e símbolo de progresso científico e econômico. Dependendo do horário ou de acontecimentos, previamente comunicados ou não, a via, que é um importante eixo viário ligando importantes avenidas como Dr. Arnaldo, Rebouças, 9 de Julho, Brigadeiro Luís Antônio, 23 de Maio, Angélica e rua da Consolação, transforma-se em imobilidade.

Um colapso contemporâneo que retrata a lógica do planejamento urbano da cidade de São Paulo, que durante décadas privilegiou o deslocamento por meio de transportes motorizados, o que resultou em diversas consequências, tais como o desestímulo de outros sistemas de mobilidade, a redução da qualidade de vida com o agravamento da poluição (atmosférica e sonora) e a deterioração das relações da população com o espaço público. A questão da mobilidade não é um desafio somente para a megalópole do país, mas para as grandes cidades contemporâneas em todas as partes do mundo. Inspirados ou não em práticas adotadas em outras capitais, especialistas brasileiros apresentam várias alternativas para o que se convencionou chamar de “mobilidade sustentável”. Tratam-se de medidas diversas e controversas, como a intensificação da verticalização da cidade, que hoje conta com uma população de mais de 10 milhões de habitantes45, a requalificação dos transportes públicos, implantação e ampliação de sistemas de mobilidade não motorizado (bicicleta, caminhada), dos sistemas sobre trilhos integrados às ciclovias, de corredores de ônibus e de espaços públicos, dentre outras46.

45 De acordo com dados do IBGE, a população estimada em 2014 do município de São Paulo é de 11.895.893 habitantes. Se incluirmos a região metropolitana, ou seja, os 38 municípios, a população sobe para 19.611.862 milhões de habitantes. Disponível em: , acesso 28/07/2014. 46 Em 30 de junho de 2014, foi aprovada a nova lei que apresenta as diretrizes para a cidade de São Paulo. A lei (16.055/2014), que foi sancionada pelo prefeito Fernando Haddad em 31 de julho de 2014, teve como objetivo central estabelecer um “novo modelo de desenvolvimento urbano diretamente ligado ao enfrentamento das expressivas desigualdades socioterritoriais presentes na cidade de São Paulo”. Foi incensado como um consenso possível entre diferentes pontos de vistas de diversos atores de uma cidade repleta de conflitos. O novo Plano Diretor estratégico (PDE) de São Paulo prevê uma cidade mais densa, tendo os eixos do transporte coletivo com

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O que se observa na avenida Paulista em relação à mobilidade é um reflexo com muitos atenuantes do que ocorre na cidade como um todo, pois além de contar com leito amplo e a diversidade de transportes coletivos (terrestre e sobre trilhos), a via oferece ao transeunte, que a percorre a pé, calçada larga (cerca de 7 m)47, confortável e segura, fachadas ativas, ou seja, prédios “abertos” que permitem a circulação do pedestre entre as ruas adjacentes, como ocorre no Conjunto Nacional, ou que convidam para uma pausa, como o edifício do MASP e seu vão livre. Portanto, caminhar pelas calçadas da avenida, além de ser, em muitos momentos do dia, uma opção mais rápida, pode colocar o pedestre diante de uma aventura desafiadora para os seus sentidos e para a descoberta do mundo e do entorno (BAITELLO, 2011)48.

Ao transitar pela avenida Paulista, seja no sentido Consolação (Praça Marechal Cordeiro de Farias) ou no sentido Paraiso (Praça Oswaldo Cruz), o transeunte atento e sensível aos estímulos que podem surgir de diferentes fontes e direções percorre uma via elevada, de natureza híbrida e dinâmica. A diversidade de usos e pessoas já havia sido apontada nos anos de 1960 por Jane Jacob, em Morte e vida de grandes cidades, como uma das importantes bases para a vitalidade e segurança das ruas e avenidas. É certo, portanto, que uma avenida plural como a Paulista, oferece ao pedestre uma fruição com suas diversas configurações (formas) e funções (comercial, residencial, de lazer), propiciando um deslocamento mais prazeroso. Uma realidade muito diferente da vivida em outros pontos da cidade, onde o pedestre disputa espaço com os veículos automotores, mobiliários urbanos (lixeiras, telefones públicos e outros) e se desloca entre estreitas calçadas de conservação questionável.

Nos seus quase 3 km, o planalto, que ainda figura como o mais emblemático da megalópole paulistana, apesar das modernas avenidas Faria Lima e Luís Carlos Berrini, frequentemente é cenário e personagem de manifestações e celebrações de toda natureza reverberadas pela mídia. Sede de empresas (de diversos setores, como telemarketing e

os novos vetores do crescimento. PDE disponível em , acesso dia 18 de agosto de 2014. 47 De acordo com a Lei Municipal no 15.442, 09/09/2012, Cap. 03, Artigo 8º, a calçada, independentemente da sua largura, deve ter a faixa livre mínima de 1,20m, destinada a livre circulação de pedestres. No novo Plano Diretor Estratégico da cidade, a conservação da calçada continua sendo responsabilidade do proprietário, mas vias muito importantes têm sido tratadas pela prefeitura. 48 Norval Baitello Junior participou do documentário Calçada da Paulista produzido em 2011 com duração de 30 min. pela TV SESC e TV PUC como integrante da Série Objetos da Cultura. O documentário foi veiculado pelas citadas emissoras e encontra-se disponível na página do Sesc TV:

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radiodifusão), a avenida Paulista conquista destaque e preferência também como centralidade cultural e de lazer, abrigando museus, teatros, salas de cinema e institutos.

As vitrines e as torres, de projetos arquitetônicos arrojados e expressivos, que disputam o status de marco referencial da avenida, mantêm, dos padrões urbanísticos de origem, o alinhamento da fachada com a testada do terreno, o que rende à via uma amplidão espacial particular. Desta forma, para o pedestre, seu olhar não encontra obstáculos significativos e consegue antecipar o que os seus pés vão percorrer, aliás, a paisagem visual parece ser o aspecto mais valorizado na organização espacial da avenida. Será a avenida Paulista mais um exemplar do “ocularcentrismo” arquitetônico e paisagístico identificado e criticado por Juhani Pallasmaa em Os olhos da pele – A arquitetura e os sentidos? Conforme apresentamos no capítulo dois, o paradigma visual apareceu de forma preponderante nas obras dos arquitetos modernistas e desencadeou o que Pallasmaa denomina de “autismo arquitetônico”. Para o autor finlandês, a supervalorização das dimensões intelectual e conceitual da arquitetura de imagens visuais, a transformou em um “meio de expressão e um jogo artístico intelectual desvinculado das conexões sociais e mentais essenciais, perdendo a temporalidade quando busca impacto instantâneo” (PALLASMAA, 2011, p. 37). Esta percepção é compartilhada pelo autor de Spaces speak, are you listening? Experience aural architecture (2009), Barry Blesser, para quem a cultura contemporânea orientada para a comunicação visual tem pouco apreço pela audição e, portanto, atribui pouco valor à consciência espacial sonora. A arquitetura sonora, ou “arquitetura aural” (aural architecture), como denomina Blesser, refere-se às propriedades de um espaço que pode ser experimentado através do audição. Trata-se de um importante e negligenciado aspecto da estrutura espacial que “além de fornecer pistas acústicas que podem ser interpretadas como objetos e superfícies, pode influenciar nosso humor e associações. Embora possamos não estar conscientes de que a arquitetura aural seja em si um estímulo sensorial, reagimos a isso” (2009, p. 2)49.

No caso da avenida Paulista, muitas das edificações que se tornaram sua referência foram construídas por renomados escritórios de arquitetura entre os anos de 1950 e 1970, tais como o MASP, Museu de Arte de São Paulo, em 1947, o Conjunto Nacional em 1958, a Fundação Cásper Líbero e a Gazeta, em 1944 e 1950 respectivamente, e o Teatro Popular do

49 Tradução livre. No original: “In addition to providing acoustic cues that can be interpreted as objects and surfaces, aural architecture can also influence our moods and associations. Although we may not be consciously aware that aural architecture is itself a sensory stimulus, we react to it.” (BLESSER, 2009, p. 2)

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SESI em 1977. Período em que a economia baseada na produção industrial, no trabalho assalariado e no consumo de bens materiais se consolidava, ao mesmo tempo em que imortalizava na cidade seus valores e estrutura cognitiva por meio de símbolos arquitetônicos funcionais e visualmente exuberantes/memoráveis. Portanto, o cuidado e o apreço em relação aos aspectos visuais da avenida foram e continuam sendo notáveis e tendem a capturar e direcionar o olhar do transeunte. Vale destacar que, em maio dos anos de 2010, 2011 e 2014 (em um contexto de economia estruturada em serviços e consumismo impulsionados pela economia global) foram inauguradas imponentes lojas-vitrine de departamento na Paulista. As fachadas das flags store, ou lojas-conceito, das marcas Renner, Marisa e Riachuelo são criações estruturadas em vidro cuja transparência, juntamente com a iluminação, objetivam seduzir inicialmente o olhar dos transeuntes50. No entanto, considerando que “toda experiência comovente com a arquitetura é multissensorial” (PALLASMAA, 2011, p. 39) e sem ignorarmos os aspectos táteis, olfativos e gustativos, nos perguntamos: afinal, quais são as propriedades espaciais do planalto mais emblemático da cidade que podemos experimentar por meio de suas manifestações sonoras? Ou então, quais são as sonoridades que compõem a arquitetura aural ou sonora da avenida Paulista do século XXI? O que sabemos é que, previamente pensada ou não, a dimensão sonora também se manifesta, se mistura e atua na percepção, no humor, na relação comunicativa entre o transeunte e a própria avenida.

Ao inclinarmos nossos ouvidos e corpos para a Paulista, reconhecemos que cada cidade, avenida e rua têm características sonoras particulares, resultantes da articulação entre técnicas, funções e usos do espaço vivido. Portanto, a arquitetura aural ou a dimensão sonora da avenida Paulista é essencialmente plural e composta por materialidades, formas e padrões que a constituem, pelo desenho de sua topografia e também pelas relações político-sociais normatizadas ou reinventadas no cotidiano pelos seus cidadãos51. Como observamos anteriormente, tanto pelos aspectos históricos e arquitetônicos como pelos políticos e econômicos, há uma preocupação com a visualidade, mas que não impossibilita a

50 A potencialidade comercial da avenida Paulista contribuiu para que ela se tornasse também uma importante vitrine para diversas marcas, como Renner, Marisa e Riachuelo. Internamente, o design arrojado, decoração e projeto arquitetônico imponentes pretendem propiciar uma experiência do cliente com a marca. Para tal, além do apelo visual, recorrem aos estímulos sensoriais acionados através de aromas e paisagem sonora exclusivos que são estrategicamente articulados com inovações tecnológicas e atendimento especializado e individual. Uma experiência sinestésica. 51 Como observamos, a topografia das cidades helênicas e os valores democráticos da cultura grega foram fundamentais para a criação de espaços públicos que propiciassem o encontro, o embate de ideias sobre questões de interesse da coletividade. E o teatro grego é exemplo claro deste fato, pois, escavado nas encostas das montanhas, foi construído como um espaço aberto e extenso que, além de abrigar uma numerosa audiência, deveria, com sua acústica, garantir clareza e entendimento para todos – plateia e apresentadores.

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manifestação de outras dimensões, como a sonora. Localizada em um dos pontos mais altos da cidade, a avenida, que até os anos de 1950 abrigava residências dos barões do café e posteriormente da elite da indústria, era percorrida por bondes, carruagens e sentida pelos pés. Passados mais de 120 anos, as dimensões sonoras da avenida Paulista acompanham a sua dinâmica e multiplicidade de funções e por vezes disputa com as imagens o protagonismo da saturação com seus signos sonoros. A média de 75 dB (decibéis) aferida em 25 de abril de 2014 na avenida confirmou o que já se sentia no corpo, o excesso de ruídos. Comandado pelo transporte público e veículos de carga, a polifonia da avenida Paulista é composta também por buzinas, britadeiras, helicópteros, vendedores ambulantes e transeuntes52. A média apresentada ultrapassa os 55dB recomendados pela Organização Mundial da Saúde para evitar prejuízos à saúde, como perda progressiva da audição, estresse, insônia, problemas cardíacos, dentre outros. Durante o período mais ruidoso, ou seja, das 8h às 9h, os sons se sobrepõem, concorrem pela atenção do transeunte que se desloca sobre rodas e acompanha a cidade através do enquadramento de um veículo automotor particular ou coletivo, ou do pedestre quando este não está “protegido” por sua paisagem sonora particular.

Os ruídos dos passos dos pedestres se confundem e se misturam com as diversas arquiteturas aurais que continuamente se formam e se dissolvem ao longo da avenida, cujo desenho se assemelha a um corredor que sedia diversos acontecimentos previamente determinados como passeatas, manifestações, paradas, marchas, comemorações de diversas naturezas que, além de estratégias visuais, quase sempre recorrem a recursos de produção, amplificação e reprodução sonora – de apitos, vociferações, instrumentos de percussão a potentes amplificadores de sons. Mas as dimensões sonoras da avenida Paulista também são compostas por acontecimentos espontâneos e provisórios que redesenham seus quarteirões e suas esquinas compondo diversas espacialidades singulares. São exemplo as ações protagonizadas por aspirantes a artistas, ou artistas de rua que, ao se instalarem provisoriamente em pontos estratégicos, insistem em conquistar a atenção e o ouvido de quem circula pela avenida, criam o que Elizabeth Goldfarb Costa denominou de “espaço-bolha”. De acordo com as definições da arquiteta, o referido conceito está relacionado justamente a este redesenho do espaço urbano promovido pelas ocupações provisórias. No caso analisado pela autora, os espaços-bolhas são realizados por vendedores ambulantes nos entornos dos locais

52 A medição dos níveis de ruídos da avenida foi realizada pela primeira vez no vão livre do MASP no Dia Internacional da Conscientização sobre o Ruído pela ProAcústica – Associação Brasileira para a Qualidade Acústica. Disponível em: . Acesso em 07 de junho de 2014.

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onde se realizam eventos coletivos, como os estádios de futebol. Trata-se de um processo que amplia a gama de usos do espaço urbano onde “os repertórios em jogo (o do espaço dado e o do espaço criado) permeiam-se, permitindo que ele se torne lúdico, imprevisível, perceptivo e passível de adquirir mais informação e significação” (COSTA, 1989, p. 52).

Na avenida Paulista, o redesenho provisório do espaço tem a imagem e o som como importantes vetores, sendo os artistas de rua e a heterogeneidade do público, os personagens que provisoriamente povoam e compõem o espaço-bolha. Alguns artistas, pela insistência e periodicidade, já se tornaram personagens “habituais”, como é o caso dos covers de Elvis Presley e Michael Jackson.

Figuras 20 e 21: Palco ou calçada? Espaços-bolha, Bolhas-acústicas da e na avenida Paulista

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No gráfico53 abaixo é possível identificar os pontos da avenida ocupados por artista de rua aos sábados.

Figura 22: Tentativa de pontuar o espontâneo, o inesperado, o surpreendente da e na avenida Paulista.

Os artistas delimitam visualmente seus espaços de encenação e coordenam suas performances por meio do ritmo, da melodia e da sonoridade cuidadosamente amplificada através da caixa acústica que os acompanha. Por instantes, naquele trecho, o espaço urbano configura-se como um auditório provisório, resultado da aproximação de corpos cuja mobilização tem o som como vetor de captura, de persuasão. Em outras palavras, o som tecnicamente amplificado atua como um magneto que, em diálogo com os recursos visuais do artista e do entorno, cativa a atenção dos transeuntes e redesenham a esquina da avenida

53 O gráfico acompanha a matéria Covers de Michael Jackson e Elvis Presley disputam calçada no cartão postal de SP, publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em 10 ago. 2014.

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Paulista com a rua Augusta em frente ao shopping Center 3. O aparecimento de artistas, de forma aleatória ou programada, em plena avenida não pode ser considerado uma novidade, pois basta caminhar pelas suas calçadas, principalmente aos finais de semana, para encontrar diversas atrações que disputam entre si o espaço, com artesões e outros vendedores ambulantes.

Figuras 23 e 24: Na valorizada esquina da avenida Paulista com a Rua Augusta, artesanatos, sons e corpos redesenham a calçada.

No entanto, com motivações e intensidade de transgressão diferenciadas, a ocupação de determinados trechos da avenida Paulista pode ser entendida como uma ampliação da gama de usos e funções do espaço público estabelecidos pela tecnosfera. Psicosfera e tecnosfera são as categorias anunciadas por Milton Santos (1994) para abordar as manifestações do espaço, em especial o urbano. A tecnosfera refere-se às técnicas e tecnologias usadas pelo homem na sua relação com o espaço e a psicosfera refere-se ao espaço vivido, dinamizado pelos usos. A articulação entre as duas categorias é inevitável e passível de tensões, em especial quando há uma “subversão” do uso previsto, como é o caso da ocupação da calçada da Paulista, sobretudo por artistas de rua.

Programada para funcionar como passagem, deslocamento, o uso pelos artistas de rua promove o ajuntamento de corpos que compromete parcialmente a circulação local e motiva as reclamações de alguns pedestres. Ao mesmo tempo, as atrações redesenham temporariamente trechos da calçada, ora como bolha-acústica quando o som é a atração principal, ora como um palco quando o artista de rua realiza sua performance embalado por

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sonoridades programadas. A dimensão sonora de cada espaço-bolha, parcialmente absorvida pelas paredes-corpos, reverbera ao longo das quadras, mistura-se residualmente com outras fontes e eventos sonoros, e compõe a arquitetura aural da avenida. Portanto, de lugar de passagem, diferentes trechos da avenida Paulista são transformados provisoriamente em espaços-bolha, lugares privilegiados, lúdicos, e coletivos de pausa, de aproximação de corpos.

Figura 25: Calçada da avenida Paulista - para passagem e para paragem.

Nos diferentes trechos da avenida Paulista onde ocorrem as atrações que envolvem algum tipo de elemento sonoro, amplificado ou não, o ajuntamento de pedestres desafia os limites do espaço interpessoal, ou seja, na disputa por um melhor ângulo de visualização ou em decorrência do envolvimento com o ambiente criado, em muitos momentos a distância social é ultrapassada em direção à distância pessoal. O antropólogo Edward T. Hall (1977, p. 106 - 108), em suas pesquisas sobre seres humanos em situações sociais, identifica quatro tipos de distâncias – a íntima, pessoal, social e pública; e nos chama a atenção para o fato de que as distâncias medidas em suas pesquisas variam um pouco de acordo com as diferenças de personalidade e fatores ambientais. Hall (1977, p. 111) define distância social como aquela

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praticada em negócios impessoais, reunião social informal, nas quais há pleno domínio visual do ambiente e interlocutor(es), mas os recursos do tato não são acessíveis e/ou previstos. Para se referir à distância pessoal, Edward Hall nos convida a imaginarmos “uma pequena esfera ou bolha protetora, que o organismo mantém entre si e os demais” (1977, p. 110). Nesta aproximação, o tato pode ocorrer com facilidade, o olfato pode identificar odores que, juntamente com os demais sentidos, coordena a movimentação do corpo no espaço coletivo. Esta consciência da movimentação do corpo em um espaço compartilhado, Hall (1977, p. 110) chama de senso “cinestésico da proximidade”, que decorre das possibilidades em relação ao que cada participante possa causar ao outro, com as suas extremidades corporais. Tais considerações nos permitem deduzir que o ambiente, construído por meio de sonoridades, visualidades e dos estímulos produzidos pela corporeidade concreta, inaugura uma distância intermediária entre a social e a pessoal. A bolha-protetora de Hall (1977) é relativizada nos auditórios provisórios da avenida Paulista, pois o corpo emerge como catalisador da comunicação humana, conforme destacado anteriormente.

Os programas radiofônicos que compõem o corpus desta pesquisa são realizados nesta avenida de funções, usos diversificados e inesperados como intentamos demonstrar. Os programas são realizados mais exatamente no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura do Conjunto Nacional e na Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú, espaços previamente preparados para um outro tipo de experiência sensorial entre pessoas envolvidas em algum nível de vinculação, como veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO QUATRO – CORPO E AMBIENTES EM MULTÍSSONO

Quando dois seres falam a mesma linguagem, nunca se abandonam totalmente. E como, felizmente, nem tudo foi dito, subsiste para nós o melhor de todos os alentos: o de um próximo encontro. (TOMATIS, 1969, p.185)54

Os três programas eleitos para compor o corpus de análise desta tese são produzidos e veiculados em espaços localizados na avenida Paulista. Fim de Expediente e No Divã do Gikovate acontecem, na maioria das edições, no Teatro Eva Herz, localizado no interior da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, número 2073 da avenida Paulista. De acordo com a agenda dos apresentadores, os programas também são gravados e apresentados de outras localidades, como Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Os programas integram a programação da Rádio CBN – Central Brasileira de Notícias, que faz parte do Sistema Globo de Rádio e disponibiliza seus conteúdos por meio de ondas hertzianas (rádio tradicional em AM e FM) e pela plataforma da emissora na internet. A Rádio CBN é, portanto, também uma rádio online, conforme definições anteriores. Já o Mergulho no Escuro é sempre produzido e transmitido diretamente da Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú, que fica no número 149 da avenida. O programa é transmitido ao vivo pela web-rádio hospedada na página da internet da instituição e posteriormente disponibilizado no formato de podcast.

O acesso para participar presencialmente dos programas acontece mediante a apresentação de ingressos retirados gratuitamente nas respectivas bilheterias do Teatro Eva Herz da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, no caso dos programas da CBN, e do Instituto Cultural Itaú, para o Mergulho no Escuro. O horário de realização da gravação e veiculação dos programas supostamente corresponde ao encerramento das atividades comerciais, ou seja, ao fim de expediente. Portanto, entre 18h e 20h a avenida, que reúne inúmeros atrativos de consumo que reforçam a cidade como valor de troca, surge também como constituinte de espaços que podem ser transformados em ambientes de comunicação, resultado e condição da copresença de corpos. Desta forma abre-se a oportunidade para que a

54 Tradução da autora. No original: “cuando dos seres hablan el mismo lenguaje, nunca se abandonan por completo, Y como, afortunadamente, no todo ha sido dicho, subsiste para nosotros el mejor de los alimentos: el de un próximo encuentro” (TOMATIS, 1969, p. 185).

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cidade seja usufruída também como valor de uso, como cidade-obra (Lefebvre), como lugar que abriga as diferenças e a diversidade socioespacial que lhe são inerentes.

Neste contexto, não se trata de valorizar o tridimensional em detrimento do nulodimensional (uma situação em detrimento da outra), ou seja, a comunicação à distância mediada por aparatos técnicos eletrônicos ou digitais não acontece em oposição às comunicações primárias, presenciais; elas não se excluem necessariamente. Como intentamos reforçar anteriormente, ao contrário, elas ocorrem misturadas e reforçam-se como se formassem um ecossistema que mescla corpos e equipamentos. Indícios de uma ecologia da comunicação (ROMANO, 2004) que não se limita a reclamar da falta de relações presenciais, mas aponta, em nossas observações durante a pesquisa, para o fato de que, mesmo usando mídias digitais, às vezes o corpo irrompe e pede corpo. Pois como nos lembra Baitello:

o corpo é algo da ordem da presença com toda a sua sensorialidade. Como existência de tal ordem das coisas presentes (com o duplo sentido de presença física e de um tempo específico do presente), o corpo é muito mais complexo que suas abstrações. (2012, p. 105)

Portanto, nesta discussão destacamos a importância dada por James Hillman (1993) para os lugares onde os corpos possam ver uns aos outros, encontrar-se, tocar-se, enfatizando a relação do corpo com a vida cotidiana da cidade, levando o corpo físico para a cidade. E, como exemplo deste tipo de lugar, destacamos os teatros e auditórios da avenida Paulista, onde emissoras de rádio paulistanas produzem e transmitem programas radiofônicos com plateia.

4.1 Teatro e Auditório da Paulista: ambientes para ver, ouvir, tatear...

Muitos participantes dos programas de auditório55 em análise afirmam que os frequentam com regularidade, pois encontram, no apresentador e nas demais pessoas que integram a plateia e a

55 Com o objetivo de identificar as principais motivações que mobilizam os integrantes da plateia a participarem dos programas de auditório em questão, recorremos ao recurso metodológico de entrevista e da aplicação de questionário estruturado com perguntas abertas. Para os participantes dos programas Fim de Expediente e No Divã do Gikovate, recorremos à rede social Facebook para o envio do questionário. Nesta rede social virtual,

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produção, uma comunidade. Muitos produtores responsáveis pelo programa relatam que algumas pessoas são presenças contínuas e fazem questão de estender o vínculo construído para as redes sociais digitais, como é o caso do grupo virtual “secreto” Cultura é Minha Casa!56, cujos integrantes se conheceram em programas de auditório realizados pela Rádio CBN de São Paulo. A admiração pelos apresentadores e convidados são citados como fatores que motivam o deslocamento para o auditório. No entanto, “fazer parte do programa” e “ter contato com outros ouvintes”57 estão entre os principais motivos que conduzem a participação dos integrantes do grupo em programas de auditório como Fim de Expediente e no Divã do Gikovate, ambos realizados pela Rádio CBN de São Paulo. A possibilidade de “fazer parte” se relaciona à perspectiva de contato com os demais participantes, à eventual interação por meio de perguntas e também ao simples desejo de integração ao programa.

Mesmo quando o participante não explicita sua interação por meio de perguntas e respostas, ele vivencia e participa de um sistema complexo que é constituído por uma multiplicidade de modos de comunicação, como o olfato, o tato, o tempo e o espaço, além da gestualidade e da palavra. O antropólogo Ray Birdwhistell, integrante da citada Escola de Palo Alto, em suas pesquisas interdisciplinares sobre o corpo e a gestualidade, chega a algumas conclusões. Dentre elas, destacamos duas: a comunicação é um processo plural permanente; não é possível determinar uma hierarquia dos modos de comunicação segundo sua suposta importância no processo interacional. “Se o modo verbal carrega o mais das vezes a informação intencional explícita, outros modos garantem funções também necessárias ao bom desenvolvimento da interação” (apud WINKIN, 1998, p. 78). Portanto, não nos atendo ao conteúdo, mas ao sistema que propicia a troca, cada integrante da plateia participa do processo de comunicação que acontece no auditório ou no teatro, ambientes polissensíveis.

localizamos um grupo fechado, Cultura é Minha Casa!, composto por espectadores que se conheceram no local de veiculação ou gravação dos programas. Em relação ao Mergulho no Escuro, optamos por realizar entrevistas qualitativas e presenciais. 56 Cultura é Minha Casa! é um grupo fechado criado na plataforma da rede social virtual Facebook. Criado em 2007, até o momento do fechamento desta pesquisa contava com 16 membros. Além de informações sobre a programação da Rádio CBN, os integrantes compartilham a agenda de atividades culturais da cidade de São Paulo. Todos se conheceram em programas radiofônicos com plateia produzidos e veiculados pela emissora do Sistema Globo de Rádio. 57 O período entre o envio e o retorno do questionário com perguntas abertas respondido pelos integrantes do grupo Cultura é Minha Casa! ocorreu entre os dias 03 de setembro e 14 de outubro de 2014 por meio da rede social digital Facebook.

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A realização de programas em espaços previamente pensados para ver e ouvir propicia uma relação social58, comunicativa, que tem como potencialidade incorporar e abrigar todos os sentidos que naturalmente se fundem entre si, ampliando a experiência sensível dos participantes e podendo, ainda, propiciar uma experiência memorável.

Cabe pontuar que o paradigma que assumimos para a compreensão do espaço está diretamente vinculado à sua construtibilidade, ou seja, ao modo como o espaço é construído e como este dialoga com a cultura e a história de uma sociedade, pois, como explica Ferrara (2008, p. 9), este espaço “se mostra e se deixa apreender no modo como se constrói e, portanto, através do modo como se ilumina e se torna evidente enquanto elemento que se comunica e, desse modo, interfere na história da cultura”. Neste sentido, entendemos que os aspectos visuais e sonoros do teatro e do auditório onde acontecem os programas em questão comunicam a preocupação arquitetônica em construir um espaço de acolhimento que represente valores e papéis sociais.

Com variações em relação à capacidade de acomodação, estofamentos e localização do acesso principal à plateia, tanto o teatro (Eva Herz) como o auditório (Sala Vermelha) onde são realizados os programas, em seu design visual recuperam certos aspectos da construtibilidade arquitetônica dos teatros gregos. De antemão é importante reforçar que a Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú não é um teatro. Trata-se de um auditório, onde a área delimitada para o apresentador e seu apoio é uma plataforma elevada, um “palco” que não conta com elementos característicos da arquitetura cênica de um teatro, como profundidade, proscênio, coxias, urdimentos, pano de boca ou cortina, como é o caso do Teatro Eva Herz. Ambos, teatro e auditório, mantêm o desenho geométrico da arquitetura grega que determina espaços para quem faz parte da plateia e para quem apresenta. A disposição côncava das fileiras de cadeiras da plateia instaladas em piso inclinado também dialoga com a arquitetura do teatro grego, enquanto que a existência de assentos individuais

58 O “fazer parte do programa” e “ter contato com outros ouvintes” nos remete ao estar-com que é inerente à natureza humana segundo Cyrulnik (1997). De acordo com as pesquisas do autor sobre a etologia humana o estar-com é condição para ser, tanto do aspecto biológico como do intelectual. Ao nascer o homem depende de cuidados para sobreviver e se desenvolver socialmente, portanto, prematuramente aprende a se relacionar para satisfazer suas necessidades de alimentação e afeto. À medida que conquista ‘autonomia’, o estar-com ganha novas nuances evidenciando a natureza relacional do homem, a sua codependência de natureza vincular com o outro e seu entorno. Como afirma Cyrulnik (1997, p. 91) o estar-com é uma decorrência de possuirmos “em nós a loucura de viver e por isso buscamos situações em que somos atravessados por elementos biológicos – água, oxigênio, alimentos, (91), pelos elementos sensoriais – o tato, a visão de um rosto familiar, a audição de um relato por meio de palavras que encantam, por elementos sociais como a família, os amigos...Neste sentido, entendemos que a participação presencial nos programas em questão encontra ressonância na natureza humana que é relacional e vinculadora.

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dele se distancia. As cadeiras, ao mesmo tempo em que são fronteiras que reservam o espaço para cada participante, revelam-se como demarcações frágeis, propícias a serem ultrapassadas. Além dos aspectos físicos, o diálogo dos espaços em questão com o teatro grego envolvem a dimensão cultural, simbólica, que também é representada na organização espacial. Ao determinar lugares diferenciados para quem faz parte do espetáculo e quem compõe a plateia, fica evidente que há separação entre o sujeito da escuta e o da fala, o que detém o poder de anunciar. Ainda na plateia, quando se estabelece que as fileiras mais próximas do palco são reservadas para um grupo de pessoas ligadas ou não às esferas de poder e decisão, evidencia-se uma estrutura social estratificada. Vale lembrar que as fileiras mais próximas da orquestra e do palco no teatro grego eram destinadas aos sacerdotes e autoridades da democracia grega, enquanto que as últimas fileiras eram ocupadas pelas mulheres e crianças. Esta lógica é reproduzida na valoração dos assentos comercializados em teatros, auditórios, anfiteatros, casas de espetáculo em diferentes lugares do mundo. É possível que dentre aproximações e distanciamentos entre o teatro grego e os espaços onde ocorrem os programas em análise, a perspectiva de que são ambos pontos de encontro seja a que mereça destaque. Cada técnica é testemunha de seu tempo mas não ignora as anteriores, ao contrário, modifica, acrescenta, tornando-a mais ou menos complexas. Neste sentido, um importante elemento cênico aperfeiçoado a partir da eletricidade é a iluminação. Tanto o teatro Eva Herz como o auditório (a Sala Vermelha) recorrem à iluminação como elemento expressivo. A disponibilização de recursos de iluminação por meio de varas fixadas acima do palco e na plateia são recursos técnicos fundantes para a construção de diferentes ambientações capazes de exprimir e reforçar hierarquias, intensidade e dramaticidade das ações realizadas no palco e também na plateia, conforme o projeto poético da peça, no nosso caso, dos programas. Embora se aproxime das artes pictóricas que recorrem à luz, sombra, formas e cores, à iluminação cênica se acrescenta a tridimensionalidade do espaço. Ou seja, enquanto a comunicação pictórica manifesta-se no espaço bidimensional (FLUSSER, 2008), a iluminação constrói espaços com profundidade, ou seja, tridimensionais, graças a recursos como ângulo, direção e intensidade da luz trabalhada. Das inúmeras possibilidades que a iluminação cênica oferece enquanto recurso expressivo, a exploração das dimensões emocionais, ou seja, o “clima”, a representação das hierarquias e revelação de formas por meio de luz e sombras são os mais recorrentes nos programas em análise. Portanto, no auditório e teatro, como nos sugere Pallasmaa, sombra e luz criam “o ambiente no qual surgem as fantasias e os sonhos [...] A escuridão inspira e a iluminação expira a luz [...] a escuridão cria uma sensação de solidariedade e reforça a força da palavra falada” (2011, p.

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44-46). Ao mergulhar em um auditório ou teatro um jogo de luz e sombra acontece e constrói um lugar propício para o acionamento dos sentidos, para o envolvimento corporal. A plateia, parcial ou completamente escurecida, e o palco, difusamente iluminado, podem sugerir um senso de participação ritual, próprio dos ambientes permeados por mitos. Pode nos remeter às reuniões realizadas à noite pelas comunidades de oralidade primária (ONG, 1987) em torno da fogueira, ou pelas de tradição oral, que convivem com diversos tipos de oralidade, como a mista e mediatizada (ZUMTHOR, 2010), cuja penumbra do ambiente com luzes menos intensas e mais heterogêneas abrem espaço para “a capacidade extraordinária do ouvido de imaginar um volume côncavo no vazio da escuridão” (PALLASMAA, 2011, p. 47).

Esta capacidade extraordinária do ouvido, sentido diretamente ligado às emoções, à paixão, como nos lembra Baitello (2010), é convocada em um ambiente como o teatro, o auditório, pois todo espaço tem também uma dimensão sonora que é determinada pela eleição e combinação de formas/geometrias, volumetria, objetos e materiais empregados na sua edificação. No caso do teatro e do auditório em questão, além do desenho arquitetônico, os materiais incorporados no estofamento dos assentos, no revestimento dos pisos e das paredes são muito mais que decorativos ou exclusivos da concepção visual. Portanto, madeiras, carpetes, espumas, tecidos e outros materiais são selecionados segundo as diretrizes básicas de acústica do projeto, ou seja, em função de suas propriedades de absorção e reverberação dos sons que, por sua vez, irão impactar na arquitetura aural do ambiente, na percepção e apreensão sensorial dos espectadores.

Embora Blesser (2009) considere que a dimensão sonora não receba a devida preocupação por parte dos arquitetos, na concepção de espaços para ver e ouvir, como é o caso do auditório e do teatro, este é um aspecto cuja relevância não permite negligência, e mais uma vez a arquitetura grega nos fornece “régua e compasso”, pois mesmo sendo aberto e extenso, a volumetria e a geometria do teatro grego permitiam que a audiência ouvisse com clareza a atuação dos atores, da orquestra e do coro, independentemente do lugar que se ocupasse na plateia. A harmonia, ou apoio mútuo (BLESSER, 2009, p. 2), entre as dimensões visual e sonora contribui para que a experiência de cada espectador seja única e particular. A contribuição da audição, juntamente com os demais sentidos, está associada às características do ouvido e do ouvir em si e também à relevância que os mesmos têm no contexto histórico, cultural e pessoal. Por isso, neste momento, para melhor entendermos o contexto do

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desenvolvimento do ouvido e do ouvir, podemos retomar o desenvolvimento filogenético e ontogenético da espécie humana.

O caminhar, o andar ereto, nos remete ao desenvolvimento filogenético da espécie humana que, ao descer das copas das árvores, liberou braços e mãos – que se tornaram essenciais para atividades de sobrevivência, como alimentação e comunicação; ergueu o tronco, o que ativou ainda mais a percepção tátil através dos pés, favoreceu uma perspectiva visual à distância e liberou a região da glote para o posterior aperfeiçoamento dos órgãos da fala. A adoção de tal postura, como nos explica Baitello (2011), foi fundamental para o desenvolvimento dos sentidos, com especial destaque para a visão e a audição, consideradas como sentidos de distância. O pesquisador francês Alfred Tomatis (1969), ao estudar as funções e caraterísticas do ouvido e do escutar, destaca a função de “radar” que tal sentido desempenhava no processo de localização espacial e defesa, uma vez que por meio dele se poderia deduzir a proximidade de uma presa ou do perigo. “Seu papel inicial foi possivelmente de uma antena de largos tentáculos cuja preocupação essencial era orientar-se acerca da distância ou da proximidade de onde em qualquer momento poderia surgir o acontecimento que poderia ser fatal” (TOMATIS, 1969, p. 45). Portanto, para o homem ancestral, o ouvido se revela como a primeira arma de sondagem e de controle do que ocorre perto ou à distância.

Sob a perspectiva ontogenética, a audição também pode ser compreendida como um sentido de proximidade, assim como o tato, o paladar e o olfato; pois a vibração das ondas sonoras envolve o corpo como um todo, na medida em que massageia seu maior órgão, a pele (MONTAGU, 1988), despertando ações, reações e interações diversas. Conforme observa o antropólogo Christoph Wulf (2007), integrante do Centro Interdisciplinar para Antropologia Histórica da Universidade Livre de Berlim, o sentido do ouvido e do movimento são os primeiros a serem desenvolvidos durante o processo de gestação:

A partir de quatro meses, um feto é capaz de reagir a estímulos sonoros [...] O feto ouve a voz de sua mãe, sua respiração, os barulhos da circulação do sangue e da digestão [...] O sentido do ouvido se desenvolve muito antes que o sentido da visão, e muito antes dos outros sentidos começarem a funcionar [...] Ouvimos os outros antes de vê-los, senti-los ou tocá-los [...] O sentido do ouvido é o sentido social. Nenhuma comunidade social se forma sem que os membros aprendam a se escutar. Crescemos em uma cultura com a ajuda

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da percepção dos barulhos, das sonoridades, das tonalidades e das palavras. (2007, p. 58)

Outra singularidade da audição reside no fato de que este sentido pré-natal funciona a todo o momento, portanto, nos coloca permanentemente ligados ao mundo exterior. Dito de outra forma, através das considerações de Joachim-Ernest Berendt (1993, p. 175), quando dormimos, podemos fechar nossos olhos e boca, mas não conseguimos fazer o mesmo com nossos ouvidos. Portanto, se os ouvidos não têm pálpebras, estamos sempre imersos em sons e de certa forma suscetíveis às sensações por eles provocadas, mas nem sempre conscientemente assimiladas.

As sutilezas da audição dão a chance de captar detalhes simultâneos temporalmente, ou seja, sem perder a dimensão integral do fenômeno é possível distinguir as inúmeras camadas sonoras que o compõem, assim como apreender o aspecto tridimensional do entorno. Tais peculiaridades são especialmente interessantes para a experiência do ouvir e ver presenciais dos programas de auditório em questão, pois com a diminuição da intensidade da luz da plateia e do palco, há a possibilidade de resgatar a “democracia dos sentidos”, comprometida pela hipertrofia dos olhos anteriormente apontada. É como se a luz, que preponderantemente solicita o sentido da visão, ao tornar-se difusa, abrisse espaço para o acionamento das “imagens interiores” em cada participante. Acionados pelos estímulos sonoros, mas não exclusivamente, essas “imagens interiores”, segundo a perspectiva de Joachim-Ernest Berendt (1997, p. 175), são as que produzem experiências e enriquecem, enquanto que as visuais, as “imagens exteriores”, são carregadas de informação. As imagens exteriores, mesmo carregadas de muita informação, se apresentam de forma persuasiva, de maneira veloz, de maneira marcada, em muitos casos, por certa imposição de como devem ser lidas, quase que impondo um tema comum a ser decifrado de forma linear. As imagens interiores são articuladas à memória, ao repertório de uma pessoa e um ambiente, por isso são altamente criativas, marcantes, particulares e geradoras de novas associações. A concepção de imagens exteriores e imagens interiores elaborada por Berendt (1997) encontra ressonância no conceito de imagens exógenas e imagens endógenas desenvolvido pelo antropólogo Hans Belting na obra Antropología de la imagen (2010).

Como compartilham a mesma espacialidade, os participantes a transformam em ambiente progressivamente mais caloroso e acolhedor. Nesse contexto, os corpos pedem

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contatos com outros corpos, percebe-se que os sentidos estão misturados, articulados sensorialmente, atuam em sinergia entre si e com o ambiente. Se os sentidos estão abertos a perceber, os corpos estão abertos a perceber e vivenciar ambientes nos quais o processo comunicacional tem dimensões orquestrais (WINKIN, 1998) e apresenta vivências que progressivamente tendem para o aumento de vínculos entre os participantes. Em alguns momentos, a tensão progressiva em um ambiente comunicacional assume características, ou ao menos resquícios, dos antigos rituais, que, nas culturas arcaicas, e ainda hoje, reúnem pessoas para vivências de experiências que dão alguma forma de sustentação narrativa para suas vidas. No auditório e no teatro dos programas em questão, desejamos compreender se há lugar para uma mistura entre os sentidos e entre o ambiente e os participantes.

4.2 Programa Fim de Expediente

Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que está por ser realizado. Sabemos que onde há qualquer possibilidade de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse contexto, não é possível falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. (SALLES, 2006, p. 20)

Como observamos no capítulo anterior, os programas radiofônicos de auditório ou com plateia contemporâneos acontecem em um contexto no qual o próprio medium é articulado com os mecanismos digitais de produção, veiculação, disponibilização de conteúdos em diferentes linguagens e com as diversas possibilidades de interação com o ouvinte-internauta portador de inúmeros dispositivos móveis. No entanto, não é possível ignorar que os programas de auditório de hoje trazem em seu percurso procedimentos e recursos de criação já explorados anteriormente, ao mesmo tempo em que incorporam outros, revelando-se como um fenômeno em constante construção.

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O conceito de criação como “rede de conexões em processo”, apresentado por Cecília Salles (2006), nos permite entender os programas de auditório como um formato dinâmico que se modifica ao longo de seu percurso, reiterando estratégias já conhecidas e testando outras resultantes de observações/nexos e da interação entre os seus vários elementos constituintes. Portanto, permite-nos olhar para este formato de programa sob a perspectiva de devir, um inacabamento, ou ainda, nas palavras de Salles, “como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado” (2006, p. 20).

Durante relato dos criadores do Programa Fim de Expediente59, fica evidente como a proposta que antecedeu sua produção e veiculação teve variações contínuas60, evidenciando um projeto em movimento, sujeito às incertezas, aos erros e ao acaso. De acordo com os apresentadores Luís Gustavo Medina, e José Godoy, depois de um ano dedicado às experimentações e reformulações da proposta, eles decidiram gravar uma versão do programa, que posteriormente seria entregue para apreciação de algumas emissoras de rádio. Depois de quase um ano, os autores do projeto recebem a notícia de que a Rádio CBN São Paulo iria investir na ideia, introduzindo algumas alterações, dentre elas a inclusão do convidado e do papel de âncora para a condução da entrevista. O objetivo era proporcionar dinâmica e ritmo ao programa. A abertura de espaço para os comentários não previstos em roteiro, assim como o tom coloquial que predomina durante o programa atualmente, são também resultados de indicações realizadas pela emissora e assimiladas pelos apresentadores. O economista Luís Gustavo Medina, o escritor José Godoy e o comunicólogo e ator Dan Stulbach não tinham experiência com a estética radiofônica, portanto, a porosidade da proposta e a capacidade de ajuste, de recalibragem, foram fundamentais para a perenidade do Fim de Expediente, evidenciando o seu caráter de programa inacabado, como explica Cecília Salles ao apresentar a dinâmica que envolve o projeto e a efetiva realização de uma obra.

Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que está por ser realizado. Sabemos que onde há qualquer possibilidade de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse

59 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 17 de dezembro de 2012 no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura localizada no Conjunto Nacional da Avenida Paulista, São Paulo. Participaram desta entrevista os apresentadores Luís Gustavo Medina, Dan Stulbach e José Godoy. 60 Quando o programa Fim de Expediente estreou em 2006, na Rádio CBN de São Paulo, havia quatro apresentadores: Luís Gustavo Medina, José Godoy, Dan Stulbach e Rodrigo Guerreiro Bueno de Medeiros Moraes. Em 2007, o cirurgião dentista Rodrigo Guerreiro deixou a equipe.

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contexto, não é possível falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. (2006, p. 20)

Num processo contínuo de ajustes, a introdução da plateia é apontada pelos idealizadores como resultado de um amadurecimento gradual do programa e ocorreu no mesmo ano de estreia, 2006, tendo o jornalista Fernando Gabeira como convidado. De acordo com Luís Gustavo Medina, a participação dos ouvintes presencialmente no teatro toda última sexta-feira do mês61, abriu novas perspectivas e impulsionou o programa. A presença física da plateia é entendida como portadora de uma sinergia singular que se beneficia da performance do ator Dan Stulbach, para quem o palco é um lugar muito mais natural que o estúdio. “Esta sinergia também foi assimilada por nós, eu e José Godoy, que passamos a entender a dinâmica do programa como um jogo realizado em parceria com os ouvintes que compõem o auditório”62.

Figuras 26 e 27: Luís Gustavo Medina, Dan Stulbach e José Godoy. Plateia do Programa Fim de Expediente.

A dinâmica dos apresentadores e a performance de Dan Stulbach também são reconhecidas e destacadas pelos integrantes do grupo Cultura é minha casa! como um fator de aproximação. A circulação entre as fileiras da plateia, conhecida como “volta olímpica”, e

61 Toda última sexta-feira do mês, o programa é veiculado ao vivo com a presença de convidado e do ouvinte, que têm a entrada franqueada e podem participar dentro dos mecanismos propostos. A realização não está limitada ao auditório do Teatro Eva Herz, podendo acontecer em outros teatros e espaços coletivos de São Paulo, como o MASP, ou em outra cidade, como o Rio de Janeiro. 62 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 17 de dezembro de 2012 no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, localizada no Conjunto Nacional da avenida Paulista, São Paulo. Participaram desta entrevista os apresentadores Luís Gustavo Medina, Dan Stulbach e José Godoy.

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a performance vocal (a energia da voz viva com entonações e pausas que conferem ritmo à postura de palco do ator) são apontados como contagiantes pelos integrantes do citado grupo. São ingredientes inerentes às performances que ocorrem face a face, como as destacadas por Paul Zumthor (2000, 2010) ao estudar os artistas das sociedades baseadas na voz. Para o estudioso das poéticas da voz, “performance implica em um ‘saber-ser’. Um saber que implica e comanda uma presença e uma conduta [...] uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (ZUMTHOR, 2000, p. 35-36) no qual residem inúmeras possibilidades comunicativas. Neste sentido, o corpo

É que detém os primordiais meios de comunicação, os meios primários, que lhe possibilitam alimentar elos com os outros. Entre os meios primários de comunicação, Pross [1972] enumera os sons, inarticulados e articulados (entre estes, a voz), os gestos, os odores, as fisionomias, os movimentos. (BAITELLO, 2008, p. 96)

As inúmeras possibilidades comunicativas dos meios primários que emanam dos corpos de plateia e apresentadores são articuladas com os demais elementos que compõem o jogo, tais como as dimensões sonoras e espaciais do teatro, no entanto, como nos adverte Baitello (2008), é da materialidade corporal que mina “toda seiva da comunicação que possibilita a sociabilidade humana. É aí que nasce toda a necessidade e a predisposição que temos para criar elos e relações com outros seres humanos desde que nascemos” (2008, p. 96). A advertência nos chama a atenção para que não reduzamos o corpo a mero meio de comunicação ou mídia, mas que o compreendamos como germinador, catalisador inicial de um ambiente comunicacional propício à interação, ao estabelecimento de vínculos com os outros. Sobre a necessidade de vinculação inerente à natureza incompleta e dependente do homem desde seu nascimento, Norval Baitello, baseando-se em estudos da etologia humana, explica que tal condição é que nos predispõe a “favorecer ambientes nos quais se realizam os vínculos que nos possibilitam sobreviver apesar de nossas muitas carências e fragilidades” (2005, p. 99).

Portanto, quando os integrantes do grupo Cultura é minha casa! apontam “a possibilidade de conhecer novas pessoas e de rever amigos” como um dos fatores que os mobilizam a participarem com frequência dos programas com plateia realizados pela Rádio

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CBN – São Paulo, esta predisposição para a vinculação nos parece ficar evidente. Não é possível ignorar que, ao ouvinte, que acompanha à distância, por meio do rádio ou da internet, é prevista interação por meio de e-mail e de diferentes redes sociais digitais que são acessadas pelos apresentadores no momento da transmissão do programa. Ainda neste contexto, há também a interação resultante do potencial da estética radiofônica em acionar as imagens internas ou endógenas naquele que escuta à distância o programa nos mais diferentes locais. Vinhetas, músicas, efeitos sonoros, ruídos imprevistos, manifestação da plateia (aplausos, assovios, risos) e performance criam a atmosfera sonora que descreve e envolve o ouvinte que acompanha através das ondas ou bytes do rádio. No entanto, a materialidade corpórea (com seu peso, calor e volume), seus sentidos e sensorialidades envolvidos em um ambiente comunicacional, fértil de possibilidades vinculadoras, encontram no programa mensal presencial (toda última sexta-feira do mês) do Fim de Expediente, uma chance para a “redução da fragilidade do estar só” (BAITELLO, 2005, p. 100) que é a condição do homem finito.

4.3 Programa Divã do Gikovate

Os corpos são exímios geradores de vínculo quando auscultam e deixam-se auscultar por outros, porque só eles preenchem os espaços de falta de outros corpos. (BAITELLO, 2005, p. 51)

A palavra auscultar, em latim, auscultare, é definida como o ato de escutar com atenção, sendo que a sua raiz aus, auris, significa ouvido. Auscultar geralmente se refere à prática médica de escutar os sons internos produzidos pelos diferentes órgãos do corpo, com o uso de equipamentos próprios ou por meio da inclinação do ouvido sobre o corpo do paciente. Mas auscultar como proposto na citação que abre esta análise nos remete ao ato de escutar atentamente o outro dentro de uma perspectiva de alteridade, de dar ouvidos e de ser acolhido na escuta do outro, de andar na contramão das exigências contemporâneas de contatos velozes, mediados à distância e quase sempre visuais. Este “auscultar” de Baitello dialoga com o conceito que Roland Barthes (2009) apresenta sobre o “escutar”, ao diferenciá-lo do simples ouvir:

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Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico. É possível descrever as condições físicas da audição (os seus mecanismos), pelo recurso à acústica e à fisiologia do ouvido, mas a escuta só pode definir-se pelo seu objeto, ou se preferirmos, pelo seu desígnio. (2009, p. 235)

Para Barthes existem três tipos de escuta. A primeira é a escuta indicial, que atua como alerta, ou seja, o ser vivo orienta a sua audição (o exercício da sua faculdade de ouvir) para indícios. Neste nível, não há diferença entre o homem e o animal. A segunda escuta é a de signos, uma escuta que decodifica o que é captado segundo códigos aprendidos “escuto como leio”, ou seja, o que se escuta são signos. Exemplo: ao ouvir a sirene da Fundação Cásper Líbero que soa todos os dias na avenida Paulista em São Paulo, o transeunte que conhece a história deduz que o relógio marca meio-dia. E, finalmente, a escuta moderna, que consiste na escuta do outro que ocorre quando o que está em questão não é o que é dito, mas quem fala, quem emite.

De acordo com Barthes (2009, p. 236), supõe-se que a escuta moderna se desenvolva em um espaço intersubjetivo onde “eu escuto” quer dizer também “escuta-me”. Apoiando-se nos estudos da psicanálise, o autor detalha esta escuta como uma “atitude descodificadora”, ou seja, que busca sentidos ocultos naquilo que é dito ou omitido. Nas palavras do próprio Barthes, a escuta moderna “é pôr-se em postura de descodificar o que é obscuro, confuso ou mudo, para fazer aparecer na consciência o ‘abaixo’ do sentido” (2009, p. 239). Nesta escuta, há a interpelação total de um sujeito pelo outro, é como se este outro fosse impelido a concentrar-se integralmente no sujeito por meio de uma escuta ativa. Escute-me! Esta escuta também propõe uma metamorfose do homem em sujeito dual, ou seja, “a interpelação conduz a uma interlocução, na qual o silêncio do que escuta será tão ativo como a palavras do locutor: a escuta fala” (BARTHES, 2009, p. 241). Os papéis implicados no ato desta escuta não são fixos, alienados e restritos, pois, como explica o autor, já não há de um lado aquele que fala, se expõe, e de outro aquele que escuta, se cala, julga e sanciona. Cada vez mais os “espaços” da fala são institucionalmente menos protegidos e tal realidade é determinante para assegurar uma escuta livre, que por sua mobilidade circule e permute papéis, pois, como finaliza Barthes, “a liberdade de escuta é tão necessária como a liberdade de palavra” (2009, p. 248).

Ao falar da interpelação da escuta e da alternância de papéis nesta relação intersubjetiva, Barthes (2009) menciona o telefone como um “instrumento arquétipo da escuta moderna”, pois, por meio dele, os demais sentidos são praticamente suspensos e aquele que

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escuta troca de papel com o que fala. Àquele que escuta segue a convocação para que concentre todo o seu corpo na voz do falante e se disponibilize por completo através do ouvido. A própria dinâmica interpelativa de uma conversa por telefone propõe a circulação de papéis e demonstra como o uso das tecnologias podem abrir para a prática de diferentes tipos de escuta. Na radiofonia, durante a chamada Era de Ouro (1940–1950), existiam programas cuja proposta era abrir os microfones para que o ouvinte à distância e geralmente por telefone, pudesse expor questões pessoais a um apresentador cuja credibilidade lhe autorizava escutar e opinar, quase sempre de forma espetacular. No filme A Era do rádio, de Woody Allen, citado no capítulo dois, a cena em que os pais do garoto Joe recorrem ao apresentador do programa radiofônico de aconselhamento para discutirem conflitos conjugais, narra descritivamente a dinâmica do formato que simula uma escuta. Pelo tom irônico do narrador e pela reação de espanto do apresentador-escutante diante do casal, fica evidente que a prática da escuta proposta pelo programa se aproxima da descodificadora, que resulta em respostas padrão baseadas em convenções estabelecidas social e culturalmente.

Apesar da evidente limitação da escuta oferecida, o que um olhar histórico e cultural nos revela é que este formato de programa radiofônico iria ser repetido em outras emissoras e diversos países, e que mesmo diante das inúmeras possibilidades de fala e escuta que a disseminação das tecnologias de informação e comunicação em rede digital abrem contemporaneamente, a escuta presencial é uma busca que permanece, sendo o Programa No Divã do Gikovate um possível exemplo.

O Programa No Divã do Gikovate é pré-gravado, transmitido aos domingos, das 21h às 22h pela Rádio CBN – Brasil e faz parte da grade de programação da emissora desde 2007. Quando estreou, o apresentador interagia por telefone com o ouvinte e a realização com a presença da plateia ocorria uma vez por mês. No entanto, desde 2009 o programa ocorre exclusivamente em auditórios e teatros, ou seja, inclui a participação ativa dos integrantes que compõem a plateia durante as gravações que ocorrem prioritariamente no Teatro Eva Herz do Conjunto Nacional da avenida Paulista em São Paulo. Para participar presencialmente, o interessado retira no local o ingresso com uma hora de antecedência. À distância e durante a semana, ele pode acompanhar a transmissão posterior do programa através do rádio ou da internet e pode registrar sua pergunta por meio das ferramentas digitais indicadas no portal.

Antes de iniciar a gravação do programa no auditório com 168 lugares, o apresentador explica a dinâmica e as regras, enfatiza a importância da participação da plateia e salienta que

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prefere as perguntas orais as escritas. A gravação transcorre com pausas previamente determinadas que correspondem à finalização dos blocos que estruturam o programa e à entrada da barra comercial63. No palco, o apresentador é auxiliado pela produtora que controla o tempo, encaminha algumas das perguntas enviadas à distância64 por ouvintes como uma estratégia para criar a “atmosfera” e instigar a participação da plateia que se manifesta por escrito ou oralmente. Este procedimento assegura que o programa não passe por processos de edição, o que poderia comprometer o tom espontâneo e a credibilidade. A temática proposta e as questões levantadas pela plateia contribuem para que cada programa seja diferente dos demais. Como define o próprio apresentador, “trata-se de um programa que depende dramaticamente do nível das perguntas. A produção faz uma seleção das perguntas por escrito, o que permite algum direcionamento, mas o programa é refém das perguntas da plateia”65. À medida que o programa acontece, o slogan do programa – não há assunto proibido no Divã do Gikovate – ganha força e incentiva a participação dos presentes, que rompem a timidez inicial e expõem-se diante do apresentador e da plateia, que assumem a postura de escuta atenta. Neste ambiente comunicacional, cuja espacialidade foi construída por meio de materialidades específicas, como apontamos – geometria, volumetria, aproximação dos assentos, iluminação, revestimentos acústicos e outros, e pela concretude do corpo, diferentes emoções são manifestadas pela plateia durante os relatos. Portanto, a tentativa de nos posicionar essencialmente como observador de um fenômeno, como o programa radiofônico de plateia em um auditório ou teatro, revela-se frustrada. Pois, à medida que adentramos na experiência do encontro e vivenciamos a sua intensidade presencial, nos tornamos parte do ambiente e das experiências relatadas. Tal fenômeno ocorre devido ao fato de sermos um sistema vivo, poroso, e tal característica é inerente à natureza humana, como nos ensina Bóris Cyrulnik:

O indivíduo é um objeto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar a ponto de se tornar ele mesmo um bocado de meio ambiente. (1997, p. 92)

63 Sobre as peças publicitária que integram a barra comercial, indicamos a obra desenvolvida por Clóvis Reis, Propaganda no rádio: os formatos de anúncio, editado pela Edifurb e o livro Rádio a oralidade mediatizada: o spot publicitário e a linguagem radiofônica, editado pela Annablume, São Paulo, de autoria da pesquisadora. 64 De acordo com o apresentador e médico psiquiatra Flávio Gikovate, o programa recebe em torno de 200 e- mails por mês, totalizando 2 mil por ano. 65 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 17 de dezembro de 2013 no Teatro Eva Herz do Conjunto Nacional da avenida Paulista em São Paulo.

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Alguns indícios apontados a seguir permitem o entendimento da construção do ambiente comunicacional de No Divã do Gikovate. A começar pela entrada do auditório. Formada sem muito rigor defronte ao teatro, a fila reúne algumas pessoas que já se conhecem e são frequentadoras assíduas e outras que vão pela primeira vez. Há também quem chegue sozinho, mas logo abraça uma outra pessoa (posicionada na fila) com quem marcou horário e local. Desta forma, o entorno que antecede a entrada do auditório aos poucos vai ganhando espacialidade. Entrar no auditório e encontrar a cadeira adequada gera um movimento corporal marcado pelas sonoridades, tanto das pessoas como da programação da CBN, transmitida ao vivo pelas caixas acústicas espalhadas pelo auditório. A entrada da produtora e depois do próprio Gikovate no palco motiva o encerramento da movimentação na plateia, das conversas entre os participantes e dos registros fotográficos. A curiosidade e a admiração direcionam a atenção da plateia para o palco, de onde se ouve as boas-vindas do apresentador e as orientações sobre o funcionamento da gravação. A diminuição da luz da plateia, o direcionamento do foco para o palco (montado com duas poltronas, uma mesa de apoio e um anteparo com o logotipo da emissora) e a entrada da vinheta de abertura informam que a partir daquele instante todos estão No Divã do Gikovate da CBN. Quanto aos integrantes da plateia, há aqueles que se envolvem silenciosamente, outros participam por meio de perguntas realizadas ao vivo, por escrito ou oralmente, através do microfone sem fio. Naturalmente, são perguntas subjetivas que podem ou não estar relacionadas à temática do dia. O tom confessional e a relação de confiança entre os participantes e o apresentador são marcas que evidenciam e diferenciam o programa dos demais.

Figuras 28 e 29: Abertura do Programa No Divã do Gikovate e Visão da Plateia para o palco ocupado pelo apresentador e pela produtora.

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Figura 30: Participante interage com apresentador sob olhares atentos da plateia

Tais observações indicam que No Diva do Gikovate se configura como um ambiente progressivamente envolvente. Ou mesmo um ambiente no sentido das investigações de Norval Baitello Junior (2008, 2010). Tal ambiente gera uma tensão, possibilidade ou, ao menos, desejo de vínculo. Os corpos ocupam a porosidade do ambiente, tocam mesmo que discretamente os corpos dos vizinhos de cadeira, compartilham o som que vai e vem entre os presentes, vivenciam talvez mais as vibrações afetivas que os envolvem do que a racionalidade das respostas. São pessoas que sorriem, aplaudem, olham para o vizinho confirmando o que estão ouvindo, assentem com a cabeça de forma a expressar concordância, receio, discordância ou envolvimento com a situação comentada. Curiosamente a experiência ocupa as capilaridades (2010, p. 102-113) da comunicação presencial, ao mesmo tempo em que produtora e apresentador seguem uma pauta escrita com as características da capilaridade da comunicação alfabética, frases que identificam o programa, por exemplo, são repetidas quase que como memorizadas ou cifradas de forma a envolver persuasivamente os presentes e garantir a atenção dos que acompanharão à distância. No mesmo momento, no fundo do

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auditório, a equipe técnica se ocupa da luz e do som, aciona equipamentos eletrônicos de gravação que permitem o acesso da experiência humana/sonora aos que não estão presentes e aos que já estiveram presentes e possivelmente voltarão em outra ocasião. Trata-se de uma organização que gera uma economia de recursos graças às capilaridades elétricas à medida em que um número maior de pessoas poderá participar, ainda que com alguns limites, da experiência.

Pode-se levantar a possibilidade de relações entre as capilaridades presencial, a alfabética e a elétrica que de alguma forma permitem diferentes níveis de vinculação entre as pessoas. Em outro momento da semana, por exemplo, os participantes presentes ou os que só ouvirão pelas ondas da emissora, em AM ou FM, reviverão, de alguma forma, através da codificação e descodificação de sinais eletrônicos, aquela experiência. Esta possibilidade de acionar a imaginação do ouvinte por meio da materialidade sonora é uma importante característica da radiofonia apontada por Rudolf Arnheim em Estética Radiofônica, obra publicada em Londres, em 1936. No capítulo Elogio da cegueira: liberação de corpos, o autor salienta o potencial expressivo do rádio em criar “um mundo acústico da realidade” (ARNHEIM, 1980, p. 88) e de instigar a imaginação do ouvinte. A “cegueira do rádio”, que poderia ser entendida como limitação, é apresentada por Arnheim como potencialidade. Portanto, para o autor, os recursos expressivos dos elementos – voz, música, palavras e ruídos – que compõem a linguagem radiofônica têm condições para criar narrativas e favorecer a fantasia e a imaginação do ouvinte. Tal concepção dialoga com o entendimento que Christoph Wulf (2014, p. 16) tem sobre o caráter representativo da imaginação. Para o antropólogo, a imaginação é “uma energia com cuja atuação pessoas ausentes, objetos ausentes e sensações ausentes podem estar presentes” e é esta força representativa que permite ao ouvinte, a partir do que apreende pelas ondas ou bytes do rádio, imaginar o programa, criar suas imagens internas particulares. Não podemos nos esquecer de que, pelo fato das gravações serem hoje também organizadas no formato digital, os mesmos sons acessíveis nos sinais de AM e FM são disponibilizados para dispositivos como tablets, celulares e aplicativos que poderão reproduzir o programa acessando o site da emissora, completando aquilo que Baitello (2010, p. 113) denomina capilaridade eólica, ou seja, vivências sentidas na pele compartilhadas por meios digitais que invadem como o vento os espaços distantes, recriam de alguma forma uma experiência comunicativa vivida presencialmente.

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Diante de inúmeras possibilidades de participação à distância mediadas por aparatos eletrônicos e digitais como apontado, e envolvidos em uma dinâmica de produção acelerada que caracteriza o universo ativo e potente do trabalho (KAMPER, 1998), a ocupação completa da plateia durante as gravações nos despertam para a permanência da necessidade do corpo presencial. De acordo com a produção do programa e o apresentador, cerca de 2/3 da plateia é formada por pessoas que já participaram em outras ocasiões, ou seja, se identificam com a proposta e a consideram relevante. Para o apresentador, a procura pelo programa também está ligada à natureza gregária do homem e ao fato de a cidade de São Paulo oferecer raras oportunidades para o encontro: “Fico triste em constatar que a cidade (São Paulo) seja tão árida... Aqui é carro para lá, carro para cá (...) Uma cidade com potencial econômico monumental, que tem uma grande pujança cultural, mas totalmente individual, sem nenhuma possibilidade de agregação”66.

Como intentamos demonstrar a materialidade corpórea com seus sentidos, a construtibilidade do espaço do teatro, a performance de todos os integrantes do programa, a credibilidade e habilidade do apresentador, acrescidos da natureza gregária e as consequências da aridez da cidade são fatores relevantes para a perenidade do programa. Resta-nos acrescentar que o fato de o programa se estruturar a partir da escuta, o caráter acolhedor e receptivo do sentido em si contribui para a construção de um ambiente comunicacional propício ao auscultare. Retomando a ideia de que o gradual escurecimento da plateia contribui para a potencialização da percepção auditiva sem anular as demais, mergulhamos no universo das emoções, do sentir, da paixão. Baitello (2005), ao tratar das interações e singularidades do ver e do ouvir, explica que a percepção visual é resultado de uma ação, do direcionamento do olhar, já o ouvir requer a recepção passiva e que, portanto, “as implicações decorrentes de atividade e passividade, de invasão ou de receptividade estariam presentes nos contextos em que ocorre o predomínio da visão ou da audição” (2005, p. 106). No programa em questão, a escuta do relato e posteriormente o comentário do apresentador abre a possibilidade para o envolvimento, o “sentir” caraterístico da percepção auditiva, o que reforça o sentimento de vinculação que sustenta o interesse no programa e nas pessoas que o frequentam. Não há emoção proibida no Divã do Gikovate.

66 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 17 de dezembro de 2013 no Teatro Eva Herz do Conjunto Nacional da avenida Paulista em São Paulo.

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4.4 Programa Mergulho no Escuro

Localizado na avenida Paulista há 26 anos, o Instituto Cultural Itaú desenvolve atividades voltadas à produção, mapeamento, pesquisa e divulgação de manifestações artístico- intelectuais. Todas as atividades desenvolvidas pelo instituto têm entrada franca e podem representar “uma pausa” para os transeuntes que se deslocam apressadamente pela avenida como pedestres, passageiros dos transportes coletivos ou condutores dos automotores que disputam cada centímetro da via.

Se entendermos a cidade como interação, ou seja, geradora de relações, e como lugar de fluxos comunicativos sociais e culturais, podemos afirmar que entre os transeuntes que circulam pela avenida Paulista e a própria via se estabelece uma dinâmica ambiental híbrida, de troca constante entre ambos, gerando relações ainda mais complexas. A avenida, como intentamos demonstrar anteriormente, é exemplo de uma dinâmica ambiental híbrida, pois de um lado temos a verticalização dos edifícios envidraçados e das antenas das empresas de telecomunicações, assim como os deslocamentos acelerados propostos pelos transportes subterrâneos, terrestres e aéreos. E do mesmo lado, ou seja, lado a lado, convivendo neste ambiente dinâmico e plural, há os casarões remanescentes, os cafés e bares que invadem as calçadas, galerias, museus, parque, bancas de jornal e institutos culturais cujas arquiteturas e propostas convidam para um “flanar” contemplativo, para interações horizontais. Convidam o transeunte para “uma pausa”. E o Instituto Cultural Itaú estende o convite e propõe um jogo, um mergulho no escuro juntamente com o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello.

Mergulho no Escuro é um programa de rádio com participação presencial do público, transmitido ao vivo e online pelo site do Instituto Cultural Itaú67 e ocorre sempre na primeira terça-feira do mês. O programa estreou dia 5 de março de 2013, e consiste em uma experiência de rádio em que cada participante traz CDs e LPs, indicando qual faixa gostaria que o apresentador comentasse. O crítico mergulha literalmente no escuro ao escolher aleatoriamente da caixa depositada no palco, os álbuns cujas faixas indicadas são tocadas e comentadas em diálogo com o participante que escolheu a obra e os demais integrantes da plateia. Conforme orientação do próprio apresentador, somente a última música fica ao seu critério, as demais são indicações dos ouvintes que participam presencialmente no auditório.

67 O programa Mergulho no Escuro é transmitido ao vivo pelo portal do Instituto Cultural Itaú toda primeira terça-feira do mês. Posteriormente, o áudio é disponibilizado. O programa, que se estrutura a partir da participação efetiva da plateia, tem uma hora de duração. Disponível em: .

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Zuza Homem de Mello explica ainda que a ideia de propor um programa de auditório em plena era da comunicação digital em rede surgiu a partir de sugestão de um amigo. Quanto ao seu ouvinte-participante, o músico não ignora que juntamente com ele, ou melhor, nele, adentram o auditório: a aceleração, a comunicação instantânea, a dinâmica da comunicação em tempo real e sem lugar que molda e é moldada pelas trocas e fluxos comunicacionais da cidade. Portanto, quem adentra o auditório vermelho do instituto são pessoas da megalópole que carregam consigo a alma deste ambiente multicultural e dinâmico. Afinal, “cidade e alma ocorrem simultaneamente numa relação de interinfluência entre sujeitos e cidade” (HILLMAN, 1993, p. 41). O economista Nilton dos Santos Arruda é frequentador assíduo do programa, já participou cinco vezes. Na ocasião em que cedeu entrevista à pesquisadora68, Mergulho no Escuro estava na oitava edição. O espectador-ouvinte, que se considera fã do apresentador, relata que já teve sua música “pescada” em duas oportunidades, o que lhe rendeu a satisfação de sentir-se participante. Ele nunca ouviu o programa pela internet.

É, portanto, novamente a natureza gregária que impulsiona este sujeito a aceitar o convite para uma pausa e para participar de um programa de auditório, como indica o músico: “Esta sensação de se conhecer, uma coisa meio gregária69, tenho a impressão que é natural do ser humano. O ‘cara’ que vem ao auditório sabe que pode encontrar alguém com quem pode comentar sobre música além de se divertir”.70

Ao desenvolver a ideia de um programa de auditório para este público, o jornalista sabia que deveria propor algo que pudesse provocar o interesse. Zuza relata que este diferencial surgiu do seu cotidiano:

Em diversas situações, ao receber os amigos em casa, eles visitavam a minha discoteca (tenho de mais de 10 mil LP´s) e então eu os desafiava pedindo que escolhessem aleatoriamente qualquer LP, escolhesse qualquer música. Eu a colocaria para tocar e comentaria sobre a música escolhida. Para mim isso não é um grande problema. Então propus o programa no qual o próprio frequentador do programa leva o disco sem que eu conheça qual é.71

68 Nilton dos Santos Arruda cedeu entrevista à pesquisadora no dia 02 de julho de 2014 na Sala Vermelha do Instituto Cultural Itáu em São Paulo. 69 Zuza Homem de Mello apresentou na Rádio Jovem Pan de São Paulo, entre os anos de 1977 e 1988, de segunda a sexta, o “Programa do Zuza”, e havia um dia em que a programação era composta com músicas escolhidas pelos ouvintes por meio de cartas. Zuza relata que os ouvintes, movidos por esta natureza gregária e relacional do ser humano, formaram uma espécie de clube, se conheceram e fizeram amizade. 70 Entrevista concedida à autora no Instituto Cultural Itaú, São Paulo, no dia 02 de abril de 2013. 71 Idem.

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Zuza apostou no inesperado por acreditar que o acaso é um dos ingredientes mais poderosos que existem, pois “pode acontecer um lance inesperado que poderá ser o lance mais surpreendente do programa ao vivo”72. A surpresa, o inesperado, este grande ponto de interrogação é o que gera a curiosidade, o interesse pelo programa cuja dinâmica dá origem ao seu nome, Mergulho no Escuro, pois cada participante é incentivado a trazer um CD ou LP que deverá ser entregue à produção antes de entrar no auditório. Cada álbum recebe uma etiqueta com o nome do participante e da faixa escolhida para ser ouvida e comentada. Todo material é colocado em caixas e depois disponibilizado na bancada dentro do auditório, onde apresentador e DJ comandam o programa que é transmitido ao vivo pelo site do instituto.

A produção e o próprio Zuza Homem de Mello asseguram que não há nenhum contato prévio com a plateia ou com as músicas escolhidas, tudo é uma surpresa. Por sua vez, cada integrante da plateia vive a interrogação e a expectativa do sorteio do seu álbum, dos possíveis comentários ou ainda da convocatória para sua manifestação sobre a escolha.

A proposta do programa Mergulho no Escuro pode ser pensada como uma tentativa de superação do modelo linear de causa e efeito que predomina na ordenação e no funcionamento dos meios de comunicação, inclusive do rádio comercial. Do embate entre uma estrutura fixa, normativa, e um sistema comunicativo aberto, marcado pelo indeterminismo e o acaso, torna-se pertinente perguntar se estamos diante de uma experiência que supera a rigidez, a funcionalidade das comunicações com efeitos determinados, enfim, mais um exemplo de processo estocástico em ação.

As emissoras de rádio (em especial as online) organizam suas programações em “grades” que procuram estabelecer gêneros e formatos de programas que atendam a objetivos determinados. Para cada atração e formato, modelos, estruturas e horários são previamente delimitados, fixados e repetidos. Ajustes são possíveis, desde que não alterem o caráter do sistema previamente estabelecido. Uma eventual novidade que se apresente ao programa é modelada sem que haja alterações significativas. Como se trata de grades e modelos, há pouca variabilidade na estrutura e, portanto, poucas novidades nas programações, que se repetem como um sistema fechado.

72 Idem.

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Neste sentido, a proposta do programa de Zuza Homem de Mello ganha notoriedade e merece reflexão, pois incorpora o transitório (aleatório), o imprevisível (acaso) e o indeterminado num jogo marcado pela incerteza, coordenado pelo alea e que propõe a permuta de papéis entre apresentador e plateia.

A percepção do programa em questão como um jogo de alea encontra subsídios nos estudos de Rogers Callois (1990)73 sobre este importante elemento da cultura que, ao mesmo tempo em que revela as contradições do humano, oferece indicações sobre suas preferências, valores, debilidades e forças. Para Callois, o jogo pode ser encarado como uma intensa expressão social que está intrinsecamente ligada e forjada pelas ações dos indivíduos, portanto, o jogo é visto como uma forma de cultura. As categorias fundamentais de jogo para Callois (1990) são: agôn (jogos de disputa, competição), alea (jogos de azar, marcados pelo aleatório, pressupõem o pleno abandono ao capricho da sorte, nome de jogos de dados em latim) mimicry (simulacro) e ilinx (jogos de vertigem). As atitudes elementares que regem os jogos são competência, sorte, simulacro e vertigem e não se encontram sempre isoladas, pois inúmeros jogos são constituídos pela sua capacidade de associação.

Os jogos de agôn e alea traduzem atitudes opostas e simétricas, ou seja, se o primeiro é marcado pelo mérito do jogador, o segundo é regido pela arbitrariedade do destino. Em seu estudo de natureza sociológica sobre os jogos, Callois (1990) não faz aproximação com a comunicação. No entanto, entendemos que tal aproximação é possível, ao considerar que as categorias fundamentais do jogo poderiam nos fornecer aporte heurístico para compreender a dinâmica do programa Mergulho no Escuro como um modo de jogo, dado que é realizado em um momento de ócio e é coordenado pelo aleatório, acaso, como relatado anteriormente.

O mérito e a competência do apresentador estão diretamente ligados à sua formação e experiência com o universo da música por meio de vivências, pesquisas, do comando e organização de festivais, eventos e de programas anteriores. Aos ouvintes-espectadores cabe a construção da programação musical e em muitos casos, a partilha de informações sobre sua escolha conforme a interpelação (inesperada) de Zuza Homem de Mello. O componente do alea está relacionado à própria natureza do programa: nem apresentador e nem plateia sabem o que será sorteado e qual será o encaminhamento. A única certeza nesta dinâmica em fluxo é

73 Rogers Callois parte da pesquisa de Johan Huizinga publicada em 1937 com o livro Homo Ludens.

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que nenhum programa é igual ao outro e que a cada edição temos uma obra, ou melhor, um programa novo marcado pela surpresa, pelo acaso.

O acaso, o aleatório e o indeterminado já foram explorados em outras manifestações com a meta de abrir espaço para a manifestação da comunicação como um processo complexo marcado pela incerteza e pelo imprevisível. Tomando o programa Mergulho no Escuro como um sistema comunicativo poroso no qual plateia e apresentador participam de um processo marcado pelo acaso e pela indeterminação, é possível analisá-lo como uma proposta voltada para uma comunicação oposta ao modelo determinista, linear e fechado.

Neste sentido, recorremos novamente à concepção orquestral de comunicação desenvolvida por Bateson e demais integrantes da Escola de Palo Alto para compreendermos as possibilidades comunicativas apresentadas no programa Mergulho no Escuro. Na proposta do programa não há oportunidade para a fixidez de papéis, ou seja, não há um emissor e vários receptores na plateia, e tampouco a Sala Vermelha do instituto é apenas um suporte, um espaço insípido. Aliás, com capacidade para acomodar 70 participantes, toda a atmosfera do auditório é construída para a imersão, ou seja, para a escuta atenta da música, do apresentador e participante. A dimensão visual do programa é cenograficamente construída por meio da iluminação, da bancada que simula um aparelho típico dos anos dourados da radiofonia brasileira e pelo vermelho do estofamento e revestimento do piso. Nesta espacialidade, apresentador, integrantes da plateia e auditório, todos desempenham papéis intercambiantes e interinfluentes. Trata-se, portanto, de uma compreensão que evidencia a natureza cíclica (contínua), imprevisível e ambivalente da comunicação humana, que não pode ser confundida como transmissão de dados. Se, em muitos casos, o que importa não é o conteúdo propriamente dito, mas o que fica subentendido e exige um movimento de metacontextualização para a compreensão da sua mensagem, é possível compreender que a comunicação não pode ser previsível em seus resultados pragmáticos. Dito em outras palavras, tão ou mais relevante quanto o que é dito (conteúdo) é o como é dito. O aspecto relacional que se revela na corporeidade de linguagens verbais e não verbais concretizadas em palavras vocalizadas, gestualidades e pela proximidade dos corpos, compõem o jogo comunicacional interativo que, por sua natureza, é imprevisível. Portanto, o acaso e a indeterminação que estruturam a dinâmica do programa de Zuza Homem de Mello, revelando-o como imprevisível, o aproxima de uma comunicação orquestral, circular, recursiva, dialógica.

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Figura 31: Zuza Homem de Mello conduz com bom humor a participação da plateia do Mergulho no Escuro

Figuras 32 e 33: participante do CD sorteado pelo apresentador explica o porquê da sua escolha musical. Plateia na Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú

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Sob a perspectiva de outras manifestações que exploraram esta dimensão do novo e do imprevisível, destacamos a contribuição do poeta e crítico literário Stéphane Mallarmé que, em 1865, com a obra Le livre, instrument spirituel, inaugura uma nova física para o livro, cuja leitura poderia acontecer com o intercâmbio das suas folhas e sob certas orientações de combinação de um autor com autonomia relativa em relação à construção dos sentidos da obra. O poeta destaca que Le livre, instrument spirituel é uma obra que:

Faz da categoria do provisório a sua própria categoria da criação, pondo em questão, constantemente, a ideia mesma de obra conclusa, instalando o transitório onde, segundo uma perspectiva clássica, vigeria a imutabilidade perfeita e paradigmal dos objetos eternos, acabou suscitando consequências no campo da música de nossos dias. (1969, p. 69)

É na música concreta de Pierre Boulez e John Cage que a raiz mallarmaica ganha expressão. A proposta do compositor e maestro francês Pierre Boulez é a incorporação do acaso: “Não estou interessado na obra fechada, de tipo diamante, mas obra aberta, como um Barroco Moderno” (apud CAMPOS, 1969, p. 19). Mas para Boulez o acaso deve estar sob vigilância da inteligência criadora para não ceder lugar ao puro automatismo e ao caos. Já para John Cage até mesmo esta “vigilância” deveria ser questionada.

O artista e compositor americano John Cage, conhecido por suas experimentações com sons e ruídos incorporava o “acaso” como um procedimento de composição de suas peças, tornando-se um dos pioneiros da música aleatória. A execução de suas peças era marcada pela “indeterminação”, ou seja, suas composições eram constituídas de tal forma que permitiam ao intérprete executá-las de diversas maneiras, segundo suas habilidades, obtendo, portanto, a cada execução, uma nova e complexa obra.

Assim como a inclusão de objetos nas cordas dos pianos, o uso do I Ching74 no processo de composição, os sons das ruas, as vozes das máquinas e dos transeuntes que compunham a paisagem sonora das cidades eram incorporados em suas peças que adquiriam uma dimensão orgânica, informal e imprevisível. Desta forma, todos os sons não intencionais ou acontecimentos sonoros considerados pelos músicos como ruídos inutilizáveis adquiriam

74 “Music of Changes”, de 1951, é composta por meio de operações do acaso a partir do livro de oráculos chinês, I Ching.

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uma materialidade artística nas produções musicais de John Cage, marcadas pelo “acaso” e pela “indeterminação”.

A concretização das obras de Cage apresenta-se como uma constelação de possibilidades que acontece em interação com o executor (maestro) e os demais integrantes do evento – músicos e até mesmo a plateia. Guardadas as devidas singularidades, a proposta do programa Mergulho no Escuro de Zuza Homem de Mello nos apresenta uma dinâmica similar. O programa, em sua estrutura, abre-se para possibilidades imprevisíveis e indetermináveis, sendo o participante da plateia coautor de um jogo cuja sintaxe se apresenta porosa, aberta à metabolização75 do aleatório por seus integrantes. Entre plateia e apresentador, institui-se um diálogo marcado pelo acaso e executado com certo grau de indeterminismo. Portanto, não se trata de mais um programa rigidamente pré-estabelecido, definido e acabado, mas de um jogo complexo de possibilidades que a cada edição ou acontecimento, revela-se único.

Para Zuza Homem de Mello, Mergulho no Escuro é um programa “para trás” e “para frente” ao mesmo tempo. Resultado de uma midiamorfose (FIDLER, 1998), o músico explica que ele é “para trás”, pois explora uma fórmula inaugurada no rádio dos anos 1940 e 50, só que ao invés de música ao vivo, são discos. Ele é “para frente graças à internet. A transmissão pela rede mundial de computadores é um caminho novo em termos de tecnologia e interage diretamente com a juventude que está cada vez mais ligada na internet”76. Acrescentaríamos que Mergulho no Escuro pode ser também um convite, uma oportunidade de encontro, de discussão, onde os corpos presentes, os elementos cênicos do auditório interagem para propiciarem aos participantes uma experiência multissensorial, potencialmente vinculadora que pode extrapolar o próprio auditório. Para a cientista social Flávia Fernandes Belletati, que na ocasião em que cedeu a entrevista77 participava pela primeira vez do programa, o convite surge já na calçada da avenida Paulista. Ao avistar o edifício do Instituto, estruturado em aço e vidro, o pedestre pode ser cativado e motivado a conhecer um espaço que se apresenta como um centro de referência cultural da produção artística brasileira. Flávia comentou que visitou

75 Vilém Flusser, em A História do Diabo, e mais exatamente no capítulo “A Gula”, faz um paralelo entre a obtenção do conhecimento e o metabolismo. De acordo com o autor “o mundo fenomenal é devorado pela mente (estágio do aprender). Em seguida é engolido (estágio do aprender englobante). O próximo passo é a digestão (estágio do compreender), e os detritos são expelidos (estágio da ação transformadora)” (2008, p. 122). 76 Entrevista concedida à autora no Instituto Cultural Itaú, São Paulo, no dia 02 de abril de 2013. 77 Flávia Fernandes Belitatti, cedeu entrevista à pesquisadora no dia 02 de julho de 2014 na Sala Vermelha do Instituto Cultural Itaú em São Paulo.

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no piso térreo do instituto a exposição do músico Jards Macalé78 antes de participar do programa Mergulho no Escuro. A partir deste depoimento e da dinâmica que observamos da avenida Paulista, questionamos se há uma relação entre o programa de Zuza Homem de Mello, estruturado a partir da surpresa (no “escuro”) e a própria avenida. Esta com suas surpresas, seus espaços-bolha ou bolhas-acústicas, tencionam e modificam provisoriamente (ou não) o entorno e a percepção dos pedestres. De forma horizontal e em muitos casos inesperadamente, os diferentes estímulos da Paulista podem contribuir para uma relação vibrante com o espaço público e quiçá com os espaços coletivos privados, mas de acesso à população, como é o caso da Sala Vermelha e o Teatro Eva Herz.

É possível que o fato do programa de Zuza Homem de Mello acontecer em um auditório dentro de um instituto que reúne pessoas interessadas pelas múltiplas manifestações artístico-intelectuais gere interesse singular. Para quem passa pela avenida, a formação de filas em frente ao edifício pode gerar curiosidade e talvez uma paragem, uma visita não programada. Esta captura também pode ser aventada quando se observa que pessoas interessadas em adquirir os produtos oferecidos pela Livraria Cultura do Conjunto Nacional podem se sentir atraídas para participar dos programas a partir do que veem no ajuntamento de pessoas na entrada do teatro Eva Herz.

São possibilidades de pausas no ritmo constante sob o qual os corpos são submetidos diariamente graças a fatores como a sobreposição de tempos. São possibilidades de surpresas, de movimentos do corpo em espacialidades que também podem ser alcançadas virtualmente por meio de mídias digitais em redes que “nos deslocam” para inúmeros espaços, inclusive os auditórios, sem que tenhamos de nos deslocar da cadeira de nossas casas, escritórios e etc.

Os participantes em questão integram um ambiente comunicativo orquestral (WINKIN, 1998), ou seja, um ambiente no qual os protagonistas e as espacialidades são constantemente envolvidos de forma recursiva durante o acontecimento dos programas. No entanto, não é possível observá-los de forma ingênua, pois como fenômenos da cultura e inseridos em uma estrutura socioeconômica, os acontecimentos integram as dinâmicas de marketing, os modelos de negócios e os investimentos das instituições que o promovem. Desta forma, compreendemos que os programas também são pensados segundo as demandas de mercado e que, portanto, apresentam limites que pretendem organizar a participação das

78 A exposição Jards Macalé aconteceu no Instituto Cultural Itaú durante o período de 31 de maio a 06 de julho de 2014, foi uma homenagem do programa Ocupação e teve a criação do quadrinista Lourenço Mutarelli.

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pessoas. No entanto, com possibilidade decrescente de controle, a proposta dos programas Fim de Expediente, No Divã do Gikovate e Mergulho no Escuro, nesta ordem, nos fornecem pistas para entender que a interação propiciada pela materialidade de corpos não permite previsibilidades. Portanto, aqui nos interessa observar os programas de auditório como possíveis ambientes de vinculação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na última sexta-feira de abril de 2008, participamos como integrantes da plateia de um programa de auditório produzido e veiculado ao vivo em um teatro com capacidade para 1.000 pessoas. O programa ao vivo comemorava dois anos no ar e foi disponibilizado pela primeira vez também pela internet. A disputa pelo ingresso foi intensa e inesperada, mas a surpresa maior foi perceber a crescente interação entre a plateia, os apresentadores e os convidados no decorrer do programa, que durou o dobro do tempo regular, ou seja, duas horas. Não foi possível perceber a saída de pessoas durante a realização do programa, portanto, quem estava em pé nos corredores assim permaneceu até o encerramento.

Em agosto de 2009 o jornal O Estado de S. Paulo publicou, no caderno Metrópole, a matéria Auditórios voltam à moda nas rádios de SP. A publicação apresentava um levantamento das emissoras de rádio que veiculavam programas com a presença de plateia em diferentes locais da capital paulista, como pizzarias, restaurantes, teatros e auditórios. A matéria, além de fazer uma breve menção aos programas de auditório da chamada era de ouro do rádio, destacava a repercussão do formato junto ao departamento comercial e aos ouvintes- participantes.

Entre a experiência vivenciada em 2008 e a matéria publicada praticamente um ano depois, a busca das pessoas por experiências em espaços coletivos concretos e o desejo de fazer parte do programa de rádio preferido por meio de participação presencial permaneceram como as principais motivações apresentadas e observadas. A constatação por meio de conversas informais no decorrer dos intervalos, de breves abordagens na fila de ingresso ou na saída do teatro ou auditório, onde ocorriam as gravações ou veiculações ao vivo, nos desafiou a compreender os programas de auditório como um fenômeno da comunicação complexo onde corpo pede corpo.

A complexidade já se revelava de início ao considerarmos que tratava-se de um formato de programa radiofônico, cujo elemento fundante é a comunicação presencial ou primária, que acontece em um contexto no qual as tecnologias de comunicação e informação nos deslocam para inúmeros locais e nos conectam com diversas pessoas a um click, tudo sem que tenhamos de sair de nossa cadeira.

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A força comunicativa/catalisadora, vinculadora do corpo presente, a conjunção dos sentidos, a performance – o desenho do gesto do corpo e da voz, a interação, o pacto entre quem fala e quem ouve por meio da alternância e da simultaneidade de papéis, a construtibilidade do espaço, a surpresa e o improviso – reúnem uma arquitetura de códigos, que anunciam a outra face da complexidade dos programas de auditório contemporâneos que procuramos discutir no decorrer desta tese.

Ainda assim, outras faces do fenômeno foram se apresentando e tornando sua rede ainda mais complexa, afinal os programas em análise acontecem em uma megalópole onde é possível estar sozinho ainda que inserido em uma multidão de indivíduos, também sozinhos. Esta perspectiva nos permitiu compreender a problemática de forma mais ampla, ou seja, participar presencialmente de um programa de rádio que incorpora a presença de uma plateia em locais determinados, não ocorre desvinculada da cidade e da sua lógica de urbanização.

Neste sentido, as mobilizações e ocupações do espaço público que ocorreram nos últimos dez anos na cidade de São Paulo parecem apontar para a necessidade de pensar caminhos para a retomada do princípio germinador da cidade, qual seja: ser um lugar de encontros. Tomando como partida a realização da primeira Virada Cultural em 2005, organizada pela Prefeitura Municipal da cidade, que ocupou diversos espaços da região central com 24 horas de ações de entretenimento, observamos uma crescente adesão da população a eventos públicos realizados na cidade de São Paulo, tanto por iniciativas governamentais como privadas. Os carnavais de rua de 2014, as viradas culturais, gastronômicas e esportivas, a realização de shows e projeções no Vale do Anhangabaú e nos parques, as festas espontâneas e abertas do Buraco da Minhoca realizadas esporadicamente e embaixo do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, os Protestos de junho de 2013, são algumas das práticas pontuais que propiciam a vivência na e com a cidade.

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Figuras 34, 35 e 36: Carnaval de Rua no Bairro da Vila Madalena, Buraco da Minhoca no Elevado Costa Silva e Virada Cultural em São Paulo

Assim como os espaços-bolha ou as bolhas acústicas que ocorrem de forma provisória e espontânea na avenida Paulista, está claro, que por serem pontuais, as iniciativas acima descritas não dão conta de resolver as distâncias sociais impostas pela diferença social e econômica, mas ao observá-las e até mesmo vivenciar concretamente algumas delas, tornou- se possível refletirmos sobre dois aspectos. O primeiro é que a adesão da população às atividades coletivas realizadas em espaços públicos, sejam elas programadas e normatizadas, ou espontâneas, clandestinas e até mesmo desconhecidas, apontam para a defasagem da lógica urbana cujo projeto parece ainda apostar na segregação dos espaços79 e na sedação dos corpos (BAITELLO, 2012) seduzidos pela praticidade da vida conectada80. Portanto, quando parte expressiva da população adere às atividades em questão, tal atitude nos pareceu reforçar/corroborar a vocação da cidade como lugar de encontro, de trocas comunicativas ou,

79 Os Rolezinhos, como ficaram conhecidos os encontros promovidos por jovens da periferia em shoppings centers de várias cidades, inclusive São Paulo, promoveram inúmeras discussões sobre a questão do direito à cidade, do racismo e da segregação. Estas discussões se aproximam das realizadas no documentário brasileiro: Hiato, de Vladimir Seixas, 2008, 20min. Disponível em: . Acesso em Janeiro de 2013. 80 As questões relacionadas às implicações das tecnologias digitais em rede e à influência do planejamento arquitetônico das grandes cidades na vida social das pessoas é retratada no filme Medianeras – Buenos Aires na era do amor virtual. Uma produção de 2011 do argentino Gustavo Taretto. A certa altura o protagonista narra em voz off o trecho que consideramos resumir a proposta do filme: “que gênios esconderam o rio com prédios e o céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir... ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar?”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8ja-vEbiY1c>. Acesso em: Janeiro de 2013.

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nas palavras de James Hillman, como lugar de alma que “precisa propiciar o encontro de olhar, portanto, precisa de lugares para o contato humano do olhar” (1993, p. 41).

Tal apropriação dos espaços públicos pela população nos pareceu estar diretamente ligada à natureza gregária, relacional e social do ser humano, características que o impulsionam na busca por experiências que propiciem o sentimento de vinculação a um grupo. Portanto, entendemos que a participação em programas radiofônicos, realizados com plateias reunidas em locais determinados na cidade de São Paulo, seja uma possível resposta ao corpo que pede para ver, tatear, cheirar, ouvir, conversar, estar junto e em diálogo, ainda que às vezes em aparente silêncio. Pois, como nos lembra Baitello, “corpo pede corpo” (2012, p. 106).

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