Anuário Antropológico

v.36 n.1 | 2011 2011/v.36 n.2

Edição electrónica URL: https://journals.openedition.org/aa/1079 DOI: 10.4000/aa.1079 ISSN: 2357-738X

Editora Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB)

Edição impressa Data de publição: 1 dezembro 2011 ISSN: 0102-4302

Refêrencia eletrónica Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011, «2011/v.36 n.2» [Online], posto online no dia 19 novembro 2015, consultado o 03 maio 2021. URL: https://journals.openedition.org/aa/1079; DOI: https://doi.org/ 10.4000/aa.1079

Este documento foi criado de forma automática no dia 3 maio 2021.

Anuário Antropológico is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Proibição de realização de Obras Derivadas 4.0 International. 1

SUMÁRIO

Dossiê antropologia e água Políticas públicas e vida cotidiana, pesca, corpo e gestão das águas, termalismo, saúde, simbolismo e ambiente

Antropologia e água: perspectivas plurais Carla Teixeira e Maria Manuel Quintela

A supressão da vazante e o início do vazio: água e “insegurança administrada” no Vale do Jequitinhonha – MG Andréa Zhouri, Raquel Oliveira e Klemens Laschefski

Relevâncias da Experiência e Critérios de Potabilidade: conflito de interpretações sobre a água “boa” em uma localidade do Cariri Carla C. Teixeira, Luís Cláudio Moura e Anna Davison

Gestos, águas e palavras na pesca amazônica Carlos Emanuel Sautchuk

Banhos de princesas e de lázaros: termalismo e estratificação social Cristiana Bastos

Rare ou abondante, l’eau précieuse. En France, l’exemple de la Brenne des étangs Geneviève Bédoucha

Curar e recrear em águas termais: um diálogo etnográfico entre Portugal (Termas de São Pedro do Sul e Termas da Sulfúrea) e Brasil (Caldas da Imperatriz) Maria Manuel Quintela

Community water management. Is it still possible? Anthropological perspectives Toufik Ftaïta

Representing Water: visual anthropology and divergent trajectories in environmental relations Veronica Strang

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 2

Carla Teixeira e Maria Manuel Quintela (dir.) Dossiê antropologia e água Políticas públicas e vida cotidiana, pesca, corpo e gestão das águas, termalismo, saúde, simbolismo e ambiente

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 3

Antropologia e água: perspectivas plurais

Carla Teixeira e Maria Manuel Quintela

1 A relação entre a água e os humanos é universal na vida social, sem água não há vida e a humanidade não sobrevive sem ela. Estas são premissas do senso comum e das ciências biológicas. A forma como esta relação é estabelecida e o sentido particular que lhe é atribuído em cada contexto geográfico, etnográfico e histórico são já objectos de atenção antropológica. Os estudos produzidos apresentam uma grande diversidade de perspectivas teóricas de acordo com o eixo de análise escolhido, as áreas disciplinares e com o momento social histórico e político vivido das transformações ocorridas na relação entre humanos e este elemento natural (Hipocrates, 1996). Com a disciplinarização da ciência e da química em particular, o líquido água transformou-se em H20, concepções que conviveram e convivem em simultâneo com noções “não científicas” da água e das águas, classificadas e hierarquizadas de acordo com critérios sensoriais (Strang, 2004, 2006), do domínio da experiência e do contacto com este elemento, denominado e percebido como líquido, substância, virtude, remédio, medicamento (Durand, 2003; Quintela, 2001, 2004; Marras, 2004), em todos os seus estados materializáveis (Martel, 1989). Convivem, também, com a atenção dada aos objectos que se produziram para este primeiro nível de contacto, como mediadores desta primeira relação íntima com o corpo, como banheiras, chuveiros e bidés nas suas diversas formas de uso e objectivos (Goubert, 1986; Corbin, 1986; Roche, 1997), bem como com as reflexões sobre a relação com os recursos do meio ambiente: água, rios, lagos, lagoas, mares, poças, montanhas. Essas produções de estudos sociais, geográficos, históricos e filosóficos tiveram a água como inspiradora e pretexto para escrever sobre o imaginário produzido por ela (Bachelard, 1943) na criatividade humana (Shama, 1996), sobre o simbolismo das águas e dos rios sagrados (Eliade, 1994; Hidiroglou, 1976; Feldhauss, 1995), na produção de objectos (Goubert, 1986; Wateau, 2002) e como elemento civilizatório (Elias, 1976) através de práticas de higiene e regulamentos médicos (Vigarello, 1988), marcada sobretudo a partir do século XIX na Europa pela domesticação da água, entrou dentro das casas (Goubert, 1986). Porém, não entrou em todas as casas, nem em todos os contextos geográficos, e a simples operação de abrir uma

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 4

torneira e sair um fio de água sem esforço para alguns estratos sociais significou que outros trabalhavam para construir todo um complexo hidráulico de abastecimento de águas, sobretudo em cidades e vilas (Denise Sant`Ana, 1997).

2 A ilusão de um líquido fácil não fez esquecer antropólogos e etnológos de estudarem este elemento como um recurso escasso em alguns contextos geográficos, como é o caso dos desertos e dos oásis (Ftaïta, 2006; Stern, 2003), bem como da sua regulação em sociedades e comunidades que se organizam socialmente em torno dela e nas quais a gestão da água é fonte de conflitos e de consensos (Wateau, 2000, 2010; Durand, 2003) – pondo em discussão as próprias noções de escassez e abundância – como são as situações das regiões onde foram construídas barragens, ou seja, “dar” água e “afogar” aldeias através de formas políticas de produção de energia e discussão de políticas públicas (Santos, 2003; Wateau, 2010; Saraiva, 2007; Durand, 2003). Essas reflexões vão desde a governança à sustentabilidade da água em níveis local, regional e global e têm sido objecto de estudo na última década por parte de antropólogos (Orlove & Caton, 2010; Kaplan, 2007, 2010) e outros cientistas sociais (Schneier-Madanes, 2010), as preocupações e os estudos tendo se desenvolvido, sobretudo, na perspectiva de políticas públicas de gestão da água, através do eixo analítico do conflito, do consenso, da escassez e da abundância. Não podemos analisar a focalização destas perspectivas na última década descontextualizandoas da produção de políticas globais sobre a água de o facto de 2005-2015 ter sido eleito pela Organização Nações Unidas como o decénio da água – Água, Fonte de Vida. Neste documento, a ONU tem como objectivo tornar acessível a água a todos os povos e em condições de potabilidade. Aquilo que pudemos constatar ao analisar a literatura antropológica produzida na primeira década do século XXI é exactamente a ênfase dada a estas temáticas, sobretudo às questões de “governança”, “governamentalidade” e “sustentabilidade” na segunda metade dessa década (Orlove & Caton, 2010).

3 São alguns os periódicos que têm a água como objecto temático e apresentam etnografias a partir dela. Destacamos aqui “Os usos sociais da água”, da revista portuguesa Etnográfi a, coordenada por Cristiana Bastos (2003), em que temos desde culturas de banhos (praia e termas), consensos e conflitos até barragens. Por contextos geográficos, a obra francesa coordenada por Fabienne Wateau e Patrice Cressier, publicada em 2006 e intitulada Le partage de l’eau (Espagne, Portugal, Maroc). Em 2006 a revista Worlviews: global, religions, Culture and Ecology editou um número organizado por Veronica Strang que tem como seu eixo organizador a água como produtora de paisagens, de identidades e de sentidos. A American Association of Anthropology, em início de 2010, publicou dois números da Anthropology News (vol. 51) que tem a água como questão central, com os subtítulos “Water governance and management” (n. 1) e “The meaning of water” (n. 2); e em outubro deste mesmo ano, a Cultural Anthropology Virtual Issues republica cinco artigos que fizeram parte desta revista entre 1999 e 2009. Da mesma maneira, temos acesso online a projectos que tiveram a água como tema, como são, por exemplo, os casos de levantamento sobre águas portuguesas – “O novo aquilégio” ics.ul.pt (Bastos, Quintela & Perstrelo, 2003-2006), e “Think with Water”, coordenado por Verónica Strang (2010).

4 É ainda de destacar a edição em França de uma colectânea pluridisciplinar sobre a “gestão da água num processo de mundialização” em quatro contextos geográficos (Europa, América Latina, África e Ásia), que reúne um conjunto de 27 temas sobre a água, organizada por Graciela Schneier-Madanes, intitulada “La Mondialization de

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 5

l’eau. La governance en question” (2010). Contrariamente à escassez, temos sociedades em que a abundância da água se banaliza pelos seus autóctones, mas não pelas elites que as transformam em paisagens como locais a visitar para os turistas, quer sejam as cataratas, as águas de montanha, como as dos rios, dos lagos, e ou as termais e terapêuticas, onde se desenvolvem culturas da água, destacando-se a relação entre água e lazer, que sofreu transformações sociais e históricas (Anderson & Tabb, 2002).

5 Que desafios se colocam então ao estudo da relação com a água? A leitura cuidadosa dos estudos aqui referidos e dos que compõem este dossiê indica que colocarão provavelmente os mesmos desafios e dificuldades que se colocam a outros temas da antropologia: reflectir e estudar questões universais e suas transformações em cada contexto particular histórico, social e político. Deste modo, não é abrir mais um subcampo, mas sim permitir, através de estudos etnográficos, reestabelecer o diálogo com a relação entre natureza e cultura em contextos em transformação até pela ausência deste bem, quer não só quanto à sua escassez, como quanto à sua potabilidade para eliminar as ironias da água (Kaplan, 2011), tal como outras nestes mundos de contradições e assimetrias sociais.

6 Qualificar a abordagem antropológica sobre a água, como visto no panorama apresentado, implica atentar para a necessária inserção do debate em contextos particulares, tanto de produção de conhecimento quanto de experiência com a água. A pluralidade espaço-temporal que surge deste recorte permite vislumbrar o amplo horizonte de realizações humanas propiciadoras e propiciadas por este elemento, ao qual apenas com a química e as descobertas de Lavoisier a ciência atribuiu propriedades naturais universais.

7 Motivadas por este espírito e com o intuito de produzir um dossiê sobre antropologia e água, que vem a ser o primeiro organizado no âmbito dos periódicos brasileiros de antropologia, buscamos introduzir os cientistas sociais e outros leitores interessados no tema na diversidade de problemas recortados pelos antropólogos em suas investigações, com o intuito de oferecer uma aproximação à complexidade das relações sociais que têm na água seu eixo articulador, e também contribuir para a reflexão sobre a relevância da imaginação etnográfica na articulação de diversas técnicas de pesquisa neste campo. Daí a relevância de contarmos com colaboradores que realizam pesquisas em realidades etnográficas distintas, oriundos de contextos nacionais e linhagens teóricas diferenciadas, bem como de não termos definido uma indagação, teórica ou etnográfica, que unificasse as abordagens dos artigos. Assim, embora com certa concentração de autores oriundos de Brasil e Portugal, devido à localização de suas organizadoras, contamos também com a participação de pesquisadores de inserção francesa e anglo-saxã e, graças à aceitação deste desafio pelos autores aqui reunidos, logramos agrupar investigações cuja qualidade, como apresentada a seguir, articula variedade empírica e conceitual.

8 O primeiro artigo, seguindo ordenação alfabética, de autoria de Andréa Zhouri, Raquel Oliveira e Klemens Laschefski, “A supressão da vazante e o início do vazio: água e ‘insegurança administrada’ no Vale do Jequitinhonha – MG”, aborda um conflito sociotécnico e normativo gerado pela construção da hidrelétrica de Urapé. Integra, assim, uma literatura que investiga os processos nos quais a necessidade de geração de energia para a produção, central ao projeto desenvolvimentista dos Estados nacionais, historicamente tem sido detonadora de embates e controvérsias que acionam distintos sistemas de relevâncias e põem em disputa atores em posições de força marcadamente

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 6

desiguais, reafirmando que nesses enfrentamentos a realidade vivida pelas populações locais diretamente atingidas pelos empreendimentos vem sendo profundamente alterada e suas demandas desconsideradas.

9 Contudo, os autores trazem uma contribuição singular ao debate: seu foco são os moradores ribeirinhos que residem à jusante do reservatório e não aqueles que vivem nas áreas a serem inundadas – e que, portanto, precisariam ser desterritorializados. Em pesquisa que conjuga etnografia de documentos (produzidos no confronto legal que opôs diferentes instâncias do Estado brasileiro entre si e moradores locais) e pesquisa de campo (entrevistas e observação direta), os ribeirinhos à jusante surgem como “um contingente de atingidos ignorados pelo Estado e pelas empresas do setor elétrico” brasileiros. Afinal, a alteração introduzida pela hidrelétrica em suas vidas é mais sutil, realiza-se na alteração do regime de vazão do rio fundamental para a reprodução de um modo de vida camponês que requer um fino ajustamento entre espaço, disponibilidade de água e atividade produtiva, ou seja, cuja sobrevivência requer a complementaridade entre produção no período das chuvas (roças) e produção baseada na vazante do rio durante a estiagem (hortas). Justamente esta sazonalidade é alterada na medida em que a vazante do rio Jequitinhonha tornou-se instável pelo manejo do subir e descer das águas feito pelos operadores da barragem, a paisagem tornou-se “imprevisível” e a própria matriz que organiza a vida camponesa vê-se ameaçada.

10 A esta insegurança soma-se o temor da qualidade da própria água que, ao ser represada e passar pelas turbinas da hidrelétrica, parece adquirir características estranhas à natureza e nocivas à vida. Embora os moradores assinalem sua deterioração e rejeitem esta água, são obrigados a usá-la por falta de alternativa, por não terem serviços de abastecimento de água tratada para consumo humano. É desta perspectiva que os autores apontam para o duplo registro de insegurança (Scott, 2009) aos quais os ribeirinhos à jusante estão expostos: uma exclusão permanente própria do modelo de desenvolvimento brasileiro (“insegurança estrutural”) e a exclusão específica oriunda da mudança de vazão do rio (“insegurança administrada”) – sendo esta condição agravada pelo não reconhecimento desta população como atingida pela barragem e, portanto, como não beneficiária de políticas de compensação ou ressarcimento.

11 O artigo seguinte, “Relevâncias da experiência e critérios de potabilidade: conflito de interpretações sobre a água ‘boa’ em uma localidade do Cariri”, de Carla Teixeira, Luís Cláudio Moura e Anna Davison, também aborda a ação do Estado brasileiro no que concerne ao principal manancial de água de uma pequena localidade, com cerca de 4 mil habitantes, no sertão nordestino. Diferente do Vale do Jequitinhonha (que também integra a área do polígono da seca), na cidade de Granjeiro (Ceará) trata-se do desenvolvimento de uma política de governo implantada na primeira metade dos anos 2000, cujo objetivo era fornecer água potável às residências. Para tal, a escolha técnica foi o tratamento das águas do Açude do Junco e sua canalização até a porta de entrada das casas. A pesquisa de campo, contudo, revelou a ineficiência desta política considerada de inclusão social, no vocabulário político democrático, pela recusa dos moradores em utilizarem esta água para consumo humano em prol de outra água também disponível no município (a água dos chafarizes), tida como melhor em termos de sabor, aparência e consequências para o corpo, mas cuja qualidade sanitária era duvidosa.

12 Sem cair na interpretação fácil, mas equivocada, de opor razão técnica universal à lógica sensorial local, os autores mergulharam na hierarquia das águas e investigaram a

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 7

experiência cotidiana dos moradores com sua diversidade. Levaram a sério o lugar social e moral ocupado pelo Açude na vida granjeirense, os usos diferenciados que os moradores e os políticos dele faziam, o julgamento de maior ou menor adequação desses usos e seus efeitos para a qualidade inferior de suas águas, aferidos pelo mal- estar sentido por aqueles que delas bebiam ou com elas se banhavam. Contrapuseram esta experiência, por um lado, ao reconhecimento que os moradores tinham da eficácia relativa do tratamento pelo qual a água passava antes de chegar aos seus lares e, por outro, à sua própria rejeição (dos pesquisadores) a beber desta água, embora compartilhassem do valor dos procedimentos de produção de potabilidade utilizados no Açude.

13 Por tal procedimento reflexivo, lograram construir uma compreensão que, ao invés de opor visões de mundo e racionalidades (como estratégia de análise), ou ainda patamares distintos de acesso à informação a serem superados por ações de “educação” (numa perspectiva de intervenção de governo), traçou uma configuração cujas complexidade e fronteiras permeáveis constituíram-se pela consideração dos “engajamentos distintos no mundo” experimentados pelos diferentes atores (moradores, autoridades locais, engenheiros, pesquisadores, educadores etc.). Desta forma, os autores delinearam um horizonte de entendimento em que a verdade técnica da potabilidade não resistia à verdade experimentada no cuidado de si no mundo da vida e, assim, tornaram visíveis os limites da estratégia governamental que está focada na dimensão físico-química da água em nome da promoção do bem-estar da população, bem como as relações de poder que o processo de argumentação técnica engendra ao desqualificar como ignorância os sistemas de relevância e apreensão da água, os quais se constituem por meio das ações cotidianas no mundo. E, por tal articulação, revelaram a importância dos processos de estatização na conformação dos mundos naturalizados analisados pela fenomenologia do mundo social e frequentemente por esta desconsiderados.

14 Mantendo-se, ainda, nas fronteiras nacionais brasileiras, Carlos Sautchuck nos insere no contexto amazônico da pequena Sucuriju por meio da investigação das relações entre meio hídrico e a existência de dois tipos de pescadores: os laguistas e os costeiros. Em seu artigo “Temporalidades hídricas: fluxos e sinais no estuário do Amazonas”, debruça-se sobre as nuanças locais de sentidos sobre o meio hídrico na busca por apreender como as habilidades técnicas emanam do vínculo das pessoas com o meio (a água), reafirmando a perspectiva maussiana de que as relações com o ambiente têm caráter generativo de seres e coisas. Distanciando-se, contudo, da dicotomia recorrente entre espaços terrestre e aquático, o autor nos apresenta a importância que a água encerra para a vila de Sucuriju, sobretudo no que diz respeito especificamente a dois ambientes com propriedades hídricas singulares: o Lago e o Mar. É na abordagem dos sistemas de relações propiciados por estes dois espaços que as formas distintas de pesca se apresentam como técnicas, em sentido não restritivo a funções instrumentais, que permitem encontros diferenciados entre o tempo e o espaço.

15 No ambiente lacustre, a água se apresenta como “parada” e sua temporalidade perde relevância. A água apreciada é definida como “bonita”, ou seja, propícia às percepções mútuas entre laguista e pirarucu, pescador e pesca. Já no ambiente costeiro, a água define-se principalmente pelo seu fluxo intenso, as marés e a pororoca, e suas propriedades evocadas são hidrodinâmicas: a água pode estar “macia”, “quebrar” ou “puxar”. Assim, observar o movimento das marés é central para a pesca costeira,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 8

exigindo interações físicas entre os corpos. Como destacou o autor, se no lago a água é vivida como uma interface comunicativa entre seres, no mar a água é experimentada como movimento, como um fluxo espaço-temporal. Lá estamos no campo metafórico da semiótica, aqui no da cinética. Se tais interpretações em uma leitura inicial chamam a atenção por sua inspiração conceitual, o texto trata de dar-lhes consistência etnográfica. Sautchuck apresenta delicadamente os elementos que constituem e qualificam os dois tipos de pesca, desdobra-os em várias direções e, assim, convida o leitor a adentrar nestes dois modos de vida. A qualidade de sua pesquisa de campo pode ser apreciada numa escrita que se recusa a resvalar para conclusões elegantes e ambiciosas, mas sem sustentação nos processos, fluxos e ritmos em ação na conexão entre pescadores e ambiente.

16 Os artigos de Cristiana Bastos e Maria Manuel Quintela, ambas com amplo domínio neste campo de investigação, trazem para o debate as águas termais. Embora os textos guardem pontos de convergência significativos, constituem-se a partir de recortes etnográficos distintos e ênfases reflexivas singulares.

17 Em “Banhos de princesas e de lázaros: termalismo e estratificação social”, Bastos aborda o termalismo europeu articulando fontes diversas (romances, trabalhos de historiadores, sociólogos, antropólogos etc.) e pesquisa de campo própria em Monchique (Portugal). Seu argumento central é analisar como o leque social amplo daqueles que frequentam as estações termais, bem como a convivência entre glamour e tratamento de leprosos, sifilíticos e paralíticos não constituem um paradoxo a ser explicado. Ao contrário, seria tal diversidade, ou em suas palavras, o “convívio de diferentes e diferenças”, o núcleo responsável pelo sucesso e a longevidade do termalismo europeu. Como na referência que faz a Maupassant, é a cura-espetáculo de um paralítico que garante a verdade das águas que curam, reforçando, assim, o prestígio do lugar, a ampliação da clientela e dos lucros.

18 Não há, portanto, contradição ou ambiguidade entre as duas vertentes do termalismo (luxo e tratamento), o que há é uma relação de reforço mútuo, na qual o tratar e o lazer se combinam e se traduzem em eficácia material e simbólica própria do valor central do termalismo europeu de que há “água para todos, para tudo tratar, mas a todos de modos diferentes, cada um no seu lugar”. Se em determinado momento a moderna hidrologia, com seu ethos médico e legitimada pela participação estatal em diferentes contextos nacionais europeus, pareceu romper esta complementaridade, a autora nos conduz em suas últimas páginas às novas experiências termais que vêm a atualizar os prazeres das águas suscitados pela exploração dos sentidos e os combinam com outras experiências de consumo e estilos de vida contemporâneos. Com habilidade narrativa, Bastos sustenta seu fio reflexivo e tece um texto que, sendo panorâmico, permanece ancorado nas singularidades do mundo vivido.

19 Maria Manuel Quintela em “Curar e recrear em águas termais: um diálogo etnográfico entre Portugal (Termas de São Pedro do Sul e Termas da Sulfúrea) e Brasil (Caldas de Imperatriz)”, como o título do artigo já expressa, desenvolve suas reflexões por caminhos distintos. Focalizada em contextos etnográficos estritos, a autora realiza a ambição de uma análise comparativa que permite traçar tendências afins e contrastantes entre Portugal e Brasil ao tomar como eixo articulador a relação do termalismo com os sistemas médicos em que se inserem. A depender da forma como o termalismo é considerado, seja como parte do “aparelho biomédico” (Portugal) ou como “prática complementar” apenas recentemente reconhecida (Brasil), a água

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 9

estrutura-se de maneira diferente como experiência que simultaneamente cura e recreia.

20 Desta perspectiva, a autora põe em diálogo, no eixo teórico, a literatura sobre instituições hospitalares e a literatura sobre instituições de lazer e turismo e, no eixo etnográfico, aborda as características próprias de cada estação termal e as triangula com os eixos analíticos acima referidos. Ao longo de tal empreendimento, argumenta ser a conjugação inusitada entre organização de atividades de sociabilidade facilitadoras do prazer (próprias das instituições de lazer) e de atividades nas quais o indivíduo é separado do mundo social para tratar-se (próprias das instituições hospitalares) que define a especificidade das estações termais em geral. Contudo, é a consideração dos sistemas médicos que permite a compreensão da qualidade distintiva entre estações termais portuguesas e brasileiras: se as primeiras requerem prescrição médica e não dispõem de hospedagem no local dos banhos, as segundas são estruturadas como hotéis, não sendo, portanto, reguladas medicamente e podendo ser vividas como escolhas individuais de produção de bem-estar, embora em ambas as “memórias balneares” expressem, em meio à diversidade de atores sociais e de motivações, a coexistência, por vezes tensa, de atividades terapêuticas e recreativas. Afinal, nas palavras de Quintela, “Não é esta a especificidade da prática terapêutica termal, que a recreação é um dos elementos da eficácia simbólica da cura?”.

21 Com o texto de Geneviève Bédoucha voltamos ao universo da pesca, mas agora em contexto etnográfico totalmente diverso: a exploração da piscicultura em tanques em Brenne (França). A reflexão que tal realidade suscita à autora neste artigo remete à gestão da água e seu valor em um ambiente de “abundância”, como o é a zona úmida francesa em que a cidade se localiza. Assim, por um percurso de pesquisa que combina abrangência etnográfica e histórica com profundidade de pesquisa de campo, em “Rare ou abondante, l’eau précieuse. En France, l’exemple de la Brenne dês étangs”, Bédoucha discute a construção social das noções de abundância e escassez de água argumentando que se a raridade da água não impede o desperdício (da perspectiva de observadores externos), tampouco sua fartura resultaria na desconsideração da água como algo precioso (da perspectiva dos sujeitos com ela engajados). Este é o caráter da água em Brenne, cujo valor central é não desperdiçar água, segundo uma ética que também não permite recusá-la a ninguém.

22 Ao abordar este “mundo dos tanques”, a autora descreve densamente as implicações políticas, simbólicas e econômicas da técnica de vazar a água de um tanque para o seguinte, do superior para o localizado abaixo, de modo a permitir um equilíbrio entre a água que sai e entra de um para o outro e, assim, possibilitar a pesca nos tanques que devem estar suficientemente esvaziados para que os peixes se concentrem num círculo de água reduzido (facilitando sua captura), mas não em excesso para evitar a baixa oxigenação da água. Semelhante interdependência entre tanques não pertencentes aos mesmos proprietários ou arrendatários engendra uma tensão permanente, que envolve também os agricultores e os criadores que utilizam as terras contínuas, mas também transforma a água em uma linguagem privilegiada: a água liga estreitamente as pessoas, é finalidade em si e meio que estrutura as relações sociais, enfim, um capital que não se esgota na razão econômica da exploração da piscicultura, mas possui valor afetivo, perpetua e atribui prestígio e poder aos que a “possuem”.

23 Na sequência temos o artigo “Community water management. Is it still possible? Anthropological perspectives”. De autoria de Toufik Ftaïta, o trabalho aborda as

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 10

sociedades de oásis do norte da África, mais especificamente no Marrocos. Seu foco, contudo, não é a forma como estas sociedades têm garantido sua existência por meio de um manejo da água baseado em sua organização tradicional. Ftaïta investiga o processo de transformação vivido pelas comunidades locais de oásis atravessadas por dimensões políticas, econômicas e ambientais que extrapolam suas fronteiras e envolvem agendas global e nacional. Para tal, após apresentar os três momentos históricos distintos de manejo da irrigação no Marrocos, contrasta dois modelos de governança da água: o modelo tradicional de base comunitária (sociedades oasianas) e o modelo associativista e participativo moderno (política do governo marroquino), buscando apontar os limites de tradução entre ambos.

24 Com esta mirada, o autor traça o enfraquecimento dos modelos tradicionais (propriedade individual dos direitos sobre a água e propriedade coletiva das instalações hidráulicas) que, numa matriz hierárquica, tem sido localmente propício a negociações políticas e sociais na resolução de suas tensões, em prol de um modelo individualista universal, de matriz igualitária, que legalmente se ampara na categoria de “usuários da água” e os convoca a criar associações de modo a “participarem” do manejo das redes de irrigação e “contribuírem” para os seus custos de manutenção e reparo. Os desdobramentos desta ingerência do Estado nas relações entre os agricultores de irrigação são referenciados tanto ao contexto internacional dos “ajustes estruturais” observados em diferentes contextos nacionais africanos, como às possibilidades e aos problemas da adesão dos agricultores marroquinos a um ou a outro modelo. Ao fim deste percurso, Ftaïta retoma a questão-chave do acesso à água nas sociedades oasianas nos moldes das instituições tradicionais e nos termos da modernização legal, política e econômica em curso no norte da África para avançar na compreensão do que vem sendo proposto como “boa governança” da água nesta região.

25 “Representing water: visual anthropology and divergent trajectories in human environmental relations”, de Veronica Strang, encerra este dossiê. Trata-se de um texto que tem como foco a conexão entre mudanças cosmológicas e materiais e integra um projeto mais amplo que busca processos de longa duração, considerando-os em perspectiva comparada e articulando diferentes fontes disciplinares. Assim, se insere na ambição de, por meio de uma análise sistemática temporal e espacial da imagética da água, traçar trajetórias das relações entre seres humanos e ambientes. Seu objetivo é destacar transformações-chave que levaram a divergências de percurso, a crenças, valores e práticas diversas que subjazem conflitos contemporâneos em torno da água.

26 Tomando como referência etnográfica neste artigo Austrália e Nova Zelândia, Strang constrói sua hipótese de que uma transformação-chave ocorreu na mudança histórica desencadeada pelo processo colonial em que as cosmologias naturais perderam espaço para as cosmologias humanizadas. Nesse processo de desespiritualização do ambiente teria havido uma mudança crítica na balança de poder envolvendo os seres humanos e seus ambientes: a perspectiva colaborativa entre diferentes forças da natureza na conformação do meio cedeu lugar à agência espiritual humanizada e, assim, abriu caminho para práticas materiais e formas de uso de “recursos” mais diretivas. Ciente do desafio metodológico desta empreitada, a autora referencia mutuamente três eixos de investigação considerando seus contextos específicos: crenças e valores cosmológicos; engajamentos materiais com a água; representações visuais da água e de seus seres. No contexto empírico em foco, Strang rastreia as transformações nas imagens da Rainbow Serpent (Austrália) e do (Nova Zelândia), insere-as nos seus respectivos

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 11

contextos cosmológico e político-histórico, verifica as mudanças ocorridas nos usos materiais da água e busca compreender em que medida tais alterações estruturam a forma como os povos aborígenes encaminham suas lutas políticas relativas ao ambiente nos diferentes contextos nacionais em que se inserem.

27 Gostaríamos de encerrar esta apresentação lembrando que Franz Boas, na sua tese de doutoramento, observou que cada um via as cores da água de forma diversa, cada olho, cada cor, cada água. E essa constatação levou-o a estudar antropologia e a apostar no olhar da diversidade cultural. Ou seja, a natureza e a cultura cruzaram-se. Também aqui temos diversos olhares e cores da água. Pelos artigos apresentados, o leitor poderá ver que os estudos etnográficos permanecem a acrescentar novas abordagens e criatividade sobre os contextos estudados e, de acordo com cada um, assim são as preocupações com políticas públicas, em que se destacam os eixos espaço-tempo, história, lazer, saúde, profissões, disciplinas, políticas públicas, corpos e sentidos.

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, Susan & TABB, Bruce. 2002 Water, Leisure & Culture: European Historical Perspectives. Oxford: Berg.

BACHELARD, Gaston. 1942. L’eau et les rêves. Essai sur l’imagination de la matière. Paris: Librairie José Corti.

BASTOS, Cristiana. 2003. “Comentário: Antropologias saindo da água”. Etnográfica, 7(1): 3-12 .

____. (coord.). 2003. “Usos Sociais da água”. Etnográfica, 7(1).

BASTOS, Cristiana; QUINTELA, Maria Manuel & PERESTRELO, António. 2006. “O Novo Aquilégio”. ICS-UL. Disponível em: www.aguas.ics.ul.pt. Acesso em: 03 /09/.012

CORBIN, Alain. 1986 [1982]. Le Miasme et la Junquille. Paris: Flammarion.

CRESSIER, Patrice (dir.). 2006. La maîtrise de l’eau en al-Andalus: Paysages, pratiques et techniques. Madrid: Casa de Velasquez.

DURAND, Jean-Yves. 1996. “O Hidrogeólogo, o Vedor de Água, o Etnógrafo e algumas das suas ‘Técnicas do Corpo’. In: Miguel Vale de Almeida (org.). Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo. Oeiras: Celta Editora. pp. 87-103.

____. 2003. “A Diluição do Consenso: A Água, de ‘Fonte de Vida’ a ‘Património Colectivo’. Etnográfica, 7 (1): 15-31.

ELIADE, Mircea, 1994 [1949]. “As Águas e o Simbolismo Aquático”. In: ____. Tratado das Religiões. Lisboa: ASA. pp. 243-275.

ELIAS, Norbert. 1976 [1969]. La Civilization des Moeurs. Paris: Calmann-Lévy. FELDHAUSS, Anne. 1995. Water & Womanhood. Oxford: Oxford University Press.

FTAITA, Toufik. 2006. Anthropologie de l’irrigation les Oasis de Tiznit Maroc. Paris: L’Harmattan.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 12

GOUBERT, Jean-Pierre. 1986. La conquête de l’eau. Paris: Robert-Lafond. HIDIROGLOU, Patricia. 1994. L’Eau Divine et sa Symbolique. Paris: Editions Albin Michel. HIPOCRATE. 1996. Airs, eaux, lieux, Paris: Editions Payots & Rivages.

KAPLAN, M. 2007. “Fijian Water in Fiji and New York: local politics and a global commodity”. Cultural Anthropology, 22 (4): 685-776.

____. 2011. “Lonely drinking fountains and comforting coolers: paradoxes of water value and ironies of water use”. Cultural Anthropology, 26 (4): 514-41

MARRAS, Stelio. 2003. A propósito de Águas Virtuosas. Formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil. Poços de Caldas: Editora UFMG.

MARTEL, Claude. 1989. “L’eau dans tous ses états”. Terrain, 13: 110-116.

ORLOVE, Ben & CATON, Steven C. 2010. “Water sustainability: anthropological approaches and prospects”. Ann. Rev. of Anthropology, 39: 401-415.

QUINTELA, Maria Manuel. 2001. “Turismo e Reumatismo: Etnografia de uma Prática Terapêutica nas Termas de São Pedro do Sul”. Etnográfica, 5 (2): 359-374.

____. 2004. “Práticas e Saberes Termais em Portugal e no Brasil”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 11, supl. 1, pp. 239-260.

ROCHE, Daniel. 1998. História das Coisas Banais: Nascimento do Consumo nas Sociedades Tradicionais, Sécs. XVII-XIX. Lisboa: Teorema.

SANT’ANA, Denise. 2007. Cidade das águas. Usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: Senac.

SANTOS, Silvio Coelho. 2003. “A geração hídrica de Electricidade no sul do Brasil e seus impactos sociais”. Etnográfica, 7(1): 87-103.

SARAIVA, Clara. 2007. “Um museu debaixo de água: o caso da luz”. Etnográfica, 11(2): 441-470.

SCHAMA, Simon. 1996. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras.

SCHNEIER-MADANES, Graciela (dir.). 2010. La Mondialization de l’eau. La governance en question. Paris: La Découverte.

STERN, Henri. 2003. “Anupam Mishra, de l’eau dans le désert indien (Les gouttes de lumière du Rajasthan)”. L’Homme, 166, avril-juin.

STRANG, Veronica. 2004. The Meaning of Water. Oxford: Berg.

____. 2006. “Fluidscapes: water, identity and the senses: introduction”. Worldviews: global religions, culture and ecology, 10(2):147-154.

VIGARELLO, Georges. 1988 [1985]. O Limpo e o Sujo: A Higiene do Corpo desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Fragmentos.

WATEAU, Fabienne. 2000. Conflitos e Água de Rega: Ensaio sobre a Organização Social no Vale de Melgaço. Lisboa: Dom Quixote.

____. 2002. “Object et ordre social. D’une canne de roseau à mesurer l’eau aux príncipes de fontionnement d’une communauté rurale portuguaise”. Terrain, 37: 153-161.

____. 2010. “Contester un barrage. Anthropologie d’un processus de gestion social à Alqueva (Portugal). In: Graciela Schneier-Madanes (dir.). La Mondialization de l’eau. La governance en question. Paris: La Découverte.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 13

WATEAU, Fabienne & CRESSIER, Patrice (orgs.). 2006. Le partage de l’eau (Espagne, Portugal, Maroc). 2. ed. Mélanges de la Casa de Velasquez, v. 36. Madri: Casa de Velazquez.

AUTORES

CARLA TEIXEIRA Universidade de Brasília

MARIA MANUEL QUINTELA Escola Superior de Enfermagem de Lisboa

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 14

A supressão da vazante e o início do vazio: água e “insegurança administrada” no Vale do Jequitinhonha – MG

Andréa Zhouri, Raquel Oliveira e Klemens Laschefski

NOTA DO EDITOR

Recebido em 01/08/2011. Aprovado em 12/08/2011. Raquel Oliveira Santos Teixeira é pesquisadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG). Realizou o mestrado em Sociologia na UFMG (2008), onde é atualmente doutoranda. É autora e coautora de diversos capítulos de livros e artigos sobre a temática dos conflitos socioambientais. Andréa Zhouri é professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do CNPq e coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA). Realizou o seu doutorado na Essex University-UK (1998) e o seu mestrado na UNICAMP (1992). Klemens Laschefski é doutor em Geografia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, professor do Instituto de Geociências da UFMG, atuando no Programa de Pós-graduação em Geografia e no curso Ciências Socioambientais (Bacharelado). É pesquisador sênior do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG).

Introdução

1 O atual modelo de desenvolvimento, centrado numa concepção abstrata de espaço urbano-industrial-capitalista, manifesta-se concretamente através de um mosaico de paisagens “monoculturizadas” que, no Vale do Jequitinhonha, encontra materialidade nas extensas áreas de plantações florestais e agrícolas, localizadas nas chapadas e nas

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 15

barragens de perenização dos rios ou que visam à produção de energia elétrica. As monoculturas nas chapadas e os barramentos dos rios apresentam-se como dinâmicas complementares que demandam cada vez mais os domínios espaciais mais importantes para a vida dos camponeses. A luta das comunidades locais ameaçadas pelo avanço dessa forma de apropriação territorial é – em grande parte – uma luta pelo direito de escolher o seu próprio caminho, ou seja, de realizar o seu próprio modo de produção do espaço.1

2 Numa breve retrospectiva histórica, vale a pena lembrar que, desde a chegada dos bandeirantes na região, a partir do final do século XVII, foram intensas as atividades de mineração de ouro, diamantes, turmalina e outras pedras preciosas. Essa exploração minerária trouxe certa prosperidade no século XVIII, testemunhada pelos centros urbanos que emergiram nessa época, com destaque para o Serro e Diamantina. No século XIX, o rio Jequitinhonha serviu como rota de escoamento de produtos e mercadorias até as zonas costeiras no sul da Bahia (Souza, 1997). Mas, com a abertura de novos caminhos de transporte pelos vales dos rios Mucuri e Doce, no final do século XIX e início do XX, a região sofreu declínio econômico (ibidem). Hoje, as antigas minas ainda garantem uma fonte de renda esporádica para a população local.

3 Contudo, estão em curso prospecções de minério de ferro com vistas a uma nova onda de exploração minerária baseada em moderna tecnologia, que permite a exploração em larga escala de itabiritos com baixo teor de ferro. A Serra do Espinhaço, entre Conceição do Mato Dentro e Serro, e a descoberta de jazidas em Rio Pardo de Minas, Grão Mogol e Salinas despontam como uma nova fronteira de mineração no estado (Rocha, 2008). Nesse contexto, a proximidade de grandes áreas de reflorestamento de eucalipto no Vale do Jequitinhonha é destacada como fator interessante para investimentos na indústria de aço na região. Está em discussão a construção de um mineroduto ou uma ferrovia para o escoamento da produção em direção ao sul da Bahia (Tomaz, 2010). Todas essas atividades, enfim, exigem uma infraestrutura energética adequada, algo que explica a intensificação de investimentos em hidrelétricas na região, tal como a mais alta barragem do Brasil: Irapé (Usina Presidente Juscelino Kubitschek), em funcionamento desde junho de 2006.

4 Um dos maiores dilemas vividos pelos moradores no Médio Jequitinhonha, uma região semiárida, é justamente a gestão dos recursos naturais, tendo em vista a disponibilidade e a qualidade da água para as necessidades diárias e para a agricultura. O Médio Vale do Jequitinhonha é uma área de transição entre cerrado e caatinga, onde a distribuição de chuvas é bastante irregular, com longos períodos de seca. O principal desafio é a manutenção e a recuperação das condições ambientais que garantam a produção e a reprodução do modo de vida na localidade, algo irremediavelmente ameaçado pelas barragens hidrelétricas. Neste contexto, a água, em múltiplas facetas, ocupa lugar central na maioria dos conflitos vividos pelas populações locais.

5 Os conflitos sobre a água, de modo geral, têm sido amplamente discutidos no que se refere aos serviços de distribuição de água potável e ao tratamento de esgoto, por exemplo, no contexto urbano (Castro, 2010; Heller et al., 2010). Porto-Gonçalves aborda a questão em relação ao acesso aos territórios com disponibilidade de água e à desordem ecológica, criticando o “novo discurso da escassez” que sustenta uma racionalidade instrumental dos gestores da água, meramente especialistas da área da engenharia (Porto-Gonçalves, 2008). Para o autor, a alegada escassez de água seria o resultado da urbanização, do sistema elétrico baseado em hidroenergia, da agricultura irrigada ou,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 16

em outras palavras, resultado da forma de ocupação territorial da sociedade urbano- industrial-

6 -capitalista. Os conflitos em torno da água remeteriam, pois, a uma questão relativa à distribuição e à desigualdade social mais do que à escassez natural do recurso. Isto porque o consumo nos centros urbanos é bastante elevado em relação ao consumo das populações rurais, sobretudo os grupos tradicionais.

7 Diegues (2009), numa linha semelhante de argumentação, chama a atenção para as diferentes representações culturais sobre as águas pelas comunidades tradicionais, contrapondo-as com os significados a partir da sociedade urbano-industrial, nas quais a [...] água doce é um bem em grande parte domesticado, controlado pela tecnologia (represas, estações de tratamento), um bem público cuja distribuição em alguns países pode ser apropriada de forma privada ou corporativista, tornando-se um bem de troca ou uma mercadoria (Diégues, 2009:16).

8 Como confirmam os estudos de Ribeiro e Galizoni entre as comunidades rurais do Jequitinhonha, A água não é percebida por eles como um bem mercantil, ao contrário dos produtos do trabalho e animais. Água é dom, e embora umas pessoas possam ter mais direitos a ela – aquelas em cujo terreno ela brota – são direitos relativos apenas à dosagem, pontos de captação e prioridade de abastecimento; nunca dão sustentação para negação de água a quem estiver necessitado na comunidade (Ribeiro & Galizoni, 2003:136-137).

9 Tais representações constituem o fundamento de formas particulares de uso e gestão do recurso nas comunidades, onde a “água-dom” ou “água-natureza” se distingue do modelo de bem domesticado presente nas práticas empresariais e governamentais de gestão.

10 Na visão desenvolvimentista, as hidrelétricas, fonte primordial de energia elétrica, não só no Vale, mas em todo o país, são consideradas a espinha dorsal para qualquer tipo de indústria, além de serem uma das bases fundamentais para a vida doméstica moderna. Entretanto, elas se transformam em ameaça para aqueles que têm sua moradia no local de implementação da obra.

11 Já tivemos a oportunidade de comentar a luta das comunidades rurais atingidas pelas barragens do Jequitinhonha, notadamente a UHE Irapé e a UHE Murta (Zhouri & Oliveira, 2004, 2010), concentrando nossas análises nas comunidades em risco de desterritorialização compulsória, quer dizer, aquelas situadas nas áreas a serem alagadas pelo reservatório. Mas a literatura que trata da situação da população ribeirinha localizada a jusante dos reservatórios, nas áreas consideradas não atingidas pela definição dos planejadores e dos órgãos ambientais, é quase inexistente. No entanto, mudanças nas redes de relações sociais provocadas pelo remanejamento de parentes e amigos que vivem nas áreas diretamente inundadas, ou mesmo provocadas pelas transformações do próprio regime hidrológico a partir do funcionamento da barragem a montante, sugerem drásticas transformações para aqueles que vivem a jusante, configurando um contingente de atingidos ignorados pelo Estado e pelas empresas do setor elétrico.

12 Neste texto, pretendemos abordar a situação vivida pelas comunidades localizadas a jusante da barragem de Irapé, focalizando o significado para elas da perda de suas vazantes, assim como os significados produzidos sobre a água do rio após a construção da hidrelétrica.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 17

O conflito: controvérsias sociotécnicas e normativas e a naturalização da água como mercadoria

13 Irapé é uma hidrelétrica de 208 metros de altura, construída com um reservatório de 137,16 km2. Ela inundou parcialmente sete municípios (Berilo, Botumirim, Cristália, Grão Mogol, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado e Turmalina), correspondendo a 51 comunidades rurais, uma população em torno de 1.200 famílias. Planejada nos anos 1980 como mais uma redenção do Vale da Miséria, ela encontrou uma resistência organizada por quase vinte anos que, ao final, logrou alcançar o reconhecimento de várias categorias de atingidos, até então negadas pelos empreendedores (agregados, herdeiros ausentes, posseiros e meeiros), a participação dos atingidos na escolha de áreas para reassentamento e a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta celebrado como um dos melhores da América Latina, como já discutido por Zucarelli (2006, 2011). Apesar de a situação dos reassentados estar ainda longe de exemplar (Laschefski & Zhouri, 2011),2 pouco se comenta sobre a população residente a jusante da barragem.

14 Entretanto, após o fechamento das comportas da barragem de Irapé pela Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais S.A.), no final de 2005, um conflito sobre a qualidade da água a jusante da hidrelétrica emergiu.

15 A população do povoado de Barra de Salinas e de seus arredores, nos municípios de Coronel Murta e Virgem da Lapa, percebeu o impacto através do mau cheiro da água, das alergias na pele, das manchas de ferrugem na roupa após a lavagem e pelo comportamento estranho do gado, que se recusava a beber a água do rio. Em fevereiro de 2006, o Gesta/UFMG, que desenvolvia projeto de pesquisa/extensão na região desde 2002, por meio de demanda feita pelas comunidades locais, encaminhou à Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) e à Procuradoria da República em Minas Gerais relatório sobre a situação no local, solicitando providências no sentido da restauração e da garantia das condições ecológicas e ambientais adequadas à manutenção e à reprodução das comunidades.3 Um inquérito foi instaurado no âmbito do Ministério Público Federal e os órgãos oficiais e a Cemig chegaram também a reconhecer, por meio de análises químicas, uma mudança significativa na qualidade da água, não obstante uma controvérsia sociotécnica e normativa igualmente instaurada.

16 Na esfera de tal controvérsia, para avaliar a gravidade do impacto, o perito judicial da defesa utilizou uma classificação da água baseada em critérios definidos pela Resolução Conama 357/05. Segundo os parâmetros desta Resolução, o rio Jequitinhonha teria águas enquadradas na classe 2 (boa qualidade), exigindo, contudo, tratamento convencional para abastecimento doméstico. Desta forma, na perspectiva do perito judicial, as queixas ou as questões levantadas pelas comunidades locais não seriam de responsabilidade ou competência da empresa, posto que “as águas do Rio Jequitinhonha já eram impróprias ao consumo humano, sem tratamento, antes da implantação da UHE Irapé”.4 Ademais, na percepção do perito, o Estado teria “por obrigação zelar pelo uso múltiplo das águas” e a gestão dos recursos hídricos deveria contar “com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades, conforme a Política Nacional de Recursos Hídricos”.5

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 18

17 No entanto, a denúncia das comunidades sem acesso à água tratada e que fora encaminhada pelo Gesta-UFMG tomara como base a Portaria 518/0 do Ministério da Saúde, que define critérios químicos para as exigências em relação à qualidade da água potável. Em certo sentido, esta interpretação foi compartilhada pelo Ministério Público Federal ao entender que “o perito judicial realizou seu trabalho com base em normas, não na realidade vivida pela população ribeirinha”, destacando que “O que importa são as alterações de vida, os impactos suportados por aquela população que, durante toda a sua existência, consumiu água diretamente do Rio Jequitinhonha e, a partir da construção da UHE, não pôde mais fazê-lo”.6

18 Até a conclusão deste texto, não havia uma decisão final sobre o caso, mas o conflito permite refletir sobre a inserção diferenciada dos atores sociais no mundo vivido, o que se reflete nas interpretações sobre os impactos ambientais e o meio ambiente em geral. Como os moradores do local nunca tiveram água tratada pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) e sempre viveram diretamente do meio ambiente local, ou seja, consumindo e utilizando a água do rio, eles sentiram, literalmente, o impacto na pele. Com efeito, os técnicos – a partir de métodos supostamente objetivos – vêm de um mundo urbano e, em sua maioria, de uma classe social para a qual a disponibilidade de água tratada é uma realidade cotidiana e cuja relação com o meio ambiente é mediada por instrumentos e dispositivos que são parte da tecnociência. Os serviços de tratamento de água estão apenas disponíveis para determinados grupos sociais, notadamente aqueles com poder aquisitivo suficiente para solicitá-los, e que se encontram geralmente localizados em áreas urbanas onde dispõem de infraestrutura completa. Para aqueles que foram socializados nessa parcela da sociedade, as queixas dos moradores do Vale não correspondiam ao estatuto de provas técnicas passíveis de reconhecimento por instituições “competentes” e, nessa ótica, não poderiam ser consideradas pelos órgãos ambientais. Assim, o conflito em torno da avaliação desse impacto reflete não apenas as desigualdades sociais, mas também as diferenças entre as percepções e as concepções de mundo dos sujeitos envolvidos – percepções e concepções estas construídas através do habitus de classe (Bourdieu, 1993).

19 É neste contexto que se faz necessária uma nota etnográfica sobre o modo de vida deste campesinato ribeirinho em suas relações com o meio, para que se possa entender o significado do regime hidrológico e das vazantes para a economia doméstica e, em termos mais gerais, para a organização social do grupo. Espera-se, assim, entender igualmente a dimensão das perdas sugeridas pelo funcionamento da barragem de Irapé para aqueles que vivem a jusante do reservatório, no rio Jequitinhonha.

Para compreender as vazantes: a organização do espaço

20 Nas localidades em análise, observa-se uma organização do espaço, da produção e do trabalho estruturada na discriminação de quatro unidades da paisagem:

21 Vazante: área localizada nas margens dos rios grandes (Jequitinhonha, Salinas e Vacaria) e sujeita às inundações sazonais. Nestes terrenos são feitas as hortas com o cultivo de hortaliças e verduras: alface, repolho, alho, cebola, quiabo, tomate, batata, cenoura, abóbora, entre outros.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 19

22 Baixa: área plana que tem como qualidade o fato de conservar melhor a umidade da chuva no solo. A baixa pode estar localizada em terrenos mais altos, distantes do rio, ou podem ocorrer próximas ao rio, neste caso sendo chamadas de “tabuleiros”.

23 Tabuleiros: áreas planas localizadas próximas às margens dos rios. Nos tabuleiros e baixas são feitas as roças. No espaço da roça são cultivados os mantimentos, ou seja, o milho e o feijão e, eventualmente, o arroz.

24 Chapada: áreas planas e de altitude mais elevada. São terrenos arenosos, atualmente ocupados pelas monoculturas de eucalipto (na região, existem fazendas pertencentes à Suzano). No passado, entretanto, eram utilizadas para a “solta do gado na larga”, em regime de uso comum, além da coleta de plantas e frutos, atividade denominada recursagem (Galizoni, 2000). Segundo os moradores, as áreas de chapada não são propícias para o cultivo, pois não conservam a umidade no solo. A água proveniente das chuvas escorre para os “capões” (pé da chapada) onde são encontrados os “minadouros”, isto é, as nascentes. Tais solos de chapada, na região do Médio Jequitinhonha, são caracterizados por esta elevada porosidade.

25 Esses espaços constituem unidades ecológicas distintas, mas fundamentalmente complementares, cujas diferentes potencialidades resultam na temporalidade de uma paisagem singular em que se alternam roças, hortas e mangas (parcelas de pasto fechado). Desse modo, o fluxo das atividades de trabalho e as alternâncias ecológicas sazonais se articulam produzindo condições de vida indissociáveis das relações que as pessoas mantêm com seu meio.

26 Destaca-se o conjunto de práticas e de conhecimentos que compõem uma estratégia apurada de uso dos recursos, realizando um fino ajustamento entre as capacidades ecológicas próprias do local e o potencial produtivo e de consumo dos grupos domésticos. Nesse sentido, estes ambientes diversos mobilizam trabalhos diferentes em épocas distintas do ano. A roça feita nas baixas e nos tabuleiros exige que os produtos sejam plantados no tempo das águas (período chuvoso – variavelmente de outubro ou novembro até março). Em contraste, as hortas que dependem das áreas de vazante somente produzem durante a estiagem (abril a setembro), quando o rio tem seu volume de água reduzido, possibilitando o aproveitamento das margens e o fornecimento do alimento chamado mistura ou miudeza durante o período mais crítico da seca. Observa- se, assim, a variação concomitante entre o fluxo de trabalho e a fluência das águas, compondo o movimento de uma paisagem cujo ritmo “repousa no escalonamento e na resolução de tensões, no princípio de que cada resolução é em si uma preparação para um novo escalonamento” (Ingold, 2002:197 – tradução livre). Alguns moradores explicitam essa temporalidade: Tem a área da vazante, que é uma área úmida. É plantio nessa época de mês de abril, época que não chove. E tem o tabuleiro que a gente planta, sempre é vingado o mantimento, porque também tá perto da umidade da água. Quer dizer que as terras são uma pela outra [...] Agora, essa terra que faz parte, acompanhando essa área do tabuleiro, já é uma terra de terceira classe. Quer dizer, ela é uma terra escorrida, de terceira classe [...] Agora, a cabeceira em cima já demetre boa, não é igual a de baixo. Questão da água, né? Agora, todas elas são produtivas. Dá de baixo a cima. O tempo que vem a chuva das nuve, que Deus manda para nós, ela produz (Morador da Comunidade de Morrinhos, abril de 2003).

27 Então, a gente faz esse plantio agora praticamente em abril, maio, por aí a gente tá plantando na beira do rio, chama vazante, porque é quando o rio tá baixo. Aí, quando for

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 20

lá pra julho, agosto em diante, a gente começa a colher na beira do rio, aí lá pra outubro, novembro que a gente acabou a colheita, aí o rio enche, tampa isso aí novamente a enchente, torna a fazer outra terra boa [...] Aí vem plantar no tabuleiro, que é aqui em cima, aqui, onde tá chovendo e o rio não vem (Morador da comunidade de Barra do Salinas, abril de 2003).

28 Os excertos destacam dois fatores essenciais ao modelo local de organização do trabalho agrícola: o aproveitamento das potencialidades ecológicas locais e a complementariedade das unidades produtivas que compõem essa paisagem. Primeiramente destacamos o ordenamento das capacidades produtivas segundo a localização dos terrenos e a disponibilidade de água. Nota-se a centralidade da água como elemento fundamental à produtividade, tanto na forma de enchente quanto na forma de chuva, ambas entendidas como modalidades de reconstituição da fertilidade da terra. Por outro lado, a chegada da estiagem, com a consequente redução da vazão dos grandes rios, possibilita àquelas comunidades localizadas nas margens do Jequitinhonha a realização anual das vazantes. São as alternâncias e as regularidades do ciclo hidrológico que ordenam o trabalho familiar, instituindo marcos temporais para a organização das atividades produtivas, como exemplifica um morador da Lavrinha ao precisar o início do trabalho nas vazantes: “Horta é de março pra frente, mas tem vez que encurta a chuva”, e como ilustra também o cálculo de outra moradora da Lavrinha: “ano que vem, na boca da chuva vou aumentar minha rocinha”.

29 Já a complementaridade dessas unidades produtivas é ressaltada quando o entrevistado afirma que “as terras são uma pela outra”. Neste caso, em lugar de unidades intercambiáveis, o que temos são estratos interdependentes, posto que se sucedem no ciclo produtivo, fornecendo trabalho e alimento em períodos distintos. O caráter conexo, mas não substitutivo dessas unidades também se revela quando consideramos as diferenças relativas ao tipo de recursos que proveem as famílias: o mantimento e a miudeza, produtos para a despesa e para o negócio.

30 Deve-se destacar que tal organização do espaço segundo a diferenciação de potencialidades ecológicas está assentada em uma visão estatigráfica do mundo. No ápice de tal esquema, em seu ponto mais alto, está o céu, domínio divino integrado ao registro do sagrado, de onde se origina a fertilidade representada pela água da chuva. Logo abaixo se encontram as chapadas, domínio da natureza inculta, espaço não cultivável, provedor de dádivas representadas pelos recursos extraídos, tais como frutos, ramos para o preparo de remédios e minerais preciosos. Nesse sentido, a chapada representa um espaço não passível de apropriação privada, compõe em geral uma terra comum utilizada para a criação do gado na larga, conforme revela o relato de um morador da comunidade de Mutuca de Baixo sobre a expropriação desse domínio a partir tanto da inserção de empreendimentos minerários quanto da ocupação das chapadas com os reflorestamentos de eucalipto na década de 1970: A Barra do Salinas lá, por exemplo, a Alba [empresa mineradora], hoje é da Alba lá, antes lá era assim... era natureza, como que é... vamos supor... rio é natureza. E eu via gente lá de São Paulo, lá de Belo Horizonte, ou donde for, chegava lá e ele chegava com cereais e as ferramentas, ele chegava, armava o barraco lá e ia tirar [o minério, no caso, pedras semipreciosas de turmalina]... onde é que ele marcasse, roçasse, o serviço era dele. O que ele tirasse era dele, nem porcentagem não tinha. Depois de uns certos tempo veio vindo uns povo lá de fora, veio vindo esse povo... não é do meu tempo. No tempo de meu pai, ele me fala que tinha... que eles andavam armado. Essa pessoa chegou e alojou aí e... fez... conseguiu lá um documento, sei lá como que foi, naquela época, e apossiou do lugar né... (Morador de Mutuca de Baixo, 2002).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 21

31 Em outro momento da entrevista, destaca: Agora as vazante, do rio, tanto lá no Jequitinhonha como o rio Salinas, né?, diminuiu muito... as água de primeiro.. era mais favorável, antes de ter esse eucalipto... nessa chapada aí, isso era bom porque tinha água pra todo lado. Veio esse pessoal e plantou esse eucalipal aí... Secou todas as nascentes aí, oh! Um lugar aqui oh, com nome Morro Redondo, aqui no alto aqui... o povo vivia tudo de lá, tinha água... num secava não, hoje não tem água lá... Nem os passarinhos num tá lá mais, né? Então... devastou tudo, né?... Nossa região à margem do rio aqui é melhor porque nós tá mais perto um ao outro, os vizinhos tudo pertinho, porque tá, bastante gente né? E lá nos altos já num tá tendo por causa das águas lá que num tá tendo. Aqueles que tá lá tá querendo vim pra cá... pra perto da água. Que perto da água tudo..., água é natureza, né, tudo cria, né? (Morador de Mutuca de Baixo, 2002).

32 Nessa visão estatigráfica, temos uma escala descendente que vai da chapada às vazantes, do domínio inculto à natureza domesticada representada pelas roças e hortas que materializam o universo essencialmente humano do trabalho. Conforme acentuam Woortmann e Woortmann (2004), “o processo de trabalho possui dimensões simbólicas que o fazem construir não apenas espaços agrícolas, mas espaços sociais e de gênero” (: 7). É nesse sentido que a roça designa também o espaço masculino, oposto ao domínio inferior na escala que é dado pelas vazantes onde se realizam as hortas, lugares associados ao trabalho feminino, conforme dizem: “mulher tem mais jeito pra canteiro”. Nota-se, assim, uma homologia entre a divisão sexual do trabalho e a organização do espaço:

Tabuleiro : roça : mantimento : homem : : vazante : horta : mistura : mulher

Tabuleiro/Baixa Vazante

Roça Horta

Mantimento Mistura

Trabalho masculino Trabalho feminino

Tempo das águas Tempo da seca

33 Nesse esquema local, da mesma forma que o trabalho feminino é visto como complementar e designado como ajuda no espaço da roça, a mistura, produto do trabalho feminino nas hortas, cumpre papel suplementar na alimentação. Aqui, tal como entre o campesinato goiano analisado por Brandão (1981), a chamada “mistura” representa o acompanhamento, o conteúdo modificador da “massa”, esta prioritariamente composta pelos mantimentos representados pelos cereais (Brandão, ibidem). De modo também homólogo, a mistura é servida depois do mantimento no prato, cuja base é a farinha (mandioca ou milho), o feijão e o arroz.

34 Tal modelo de organização produtiva revela ainda a centralidade do trabalho familiar para a execução da diversidade das tarefas previstas e a produção das variedades esperadas, conforme pode ser percebido no relato de um morador de Pachecos: “Quando a família tava aqui, nós plantava tudo: milho, feijão, abóbora, quiabo, melancia... Agora tô sozinho, cuido mais do tabuleiro, porque sozinho, não dou conta de vazante” (Morador de Pachecos, 2005).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 22

O papel das vazantes na organização da economia doméstica

35 Como vimos, no Médio Jequitinhonha, o sítio camponês como unidade produtiva consiste na articulação de subunidades funcionais que correspondem a estratos da paisagem. Observamos, assim, o sítio camponês como um “sistema de espaços diversificados, complementares e articulados entre si” (Woortmann, 1983:164). No caso específico das comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha, essa articulação das subunidades funcionais assume papel significativo, pois envolve não apenas a conexão entre os domínios casa-quintal e roça-pasto, como também implica a junção dos sistemas de produção lavra-lavoura. É preciso notar que os termos dessa relação lavra- lavoura se repartem em outros termos complementares, como tabuleiro-vazante; roça- horta; mantimento-mistura e despesa-negócio, caracterizando uma lógica de gestão descrita por Woortmann: Claramente, então, o sítio é um sistema de partes articuladas. O conhecimento camponês se orienta no sentido de procurar constituir seu sítio num sistema fechado de insumos-produtos em que cada parte produz elementos necessários à outra parte. O sítio em seu conjunto produz então simultaneamente elementos de consumo direto e de renda monetária para o grupo doméstico que, por sua vez, provê a força de trabalho necessária ao funcionamento desse sistema (Woortmann, Ellen, 1983:200-201).

36 Deve ser notado que nem todos os sítios possuem vazantes, mas aqueles que produzem seus canteiros são responsáveis por boa parte do suprimento de legumes e hortaliças às comunidades. Ademais, o emprego das vazantes constitui mecanismo complexo de uso comum, posto que seu uso é difundido entre famílias de comunidades vizinhas, não se restringindo à parentela: E: Vazante é tanta gente aqui que dá. Um tem um pedacinho, outro dá outro... não sei quantos dão. O ano passado... eu contei daqui, da extrema nossa aqui, em cima, na gaita do rio, até aqui onde a gente cuida, eu contei 22 pessoas que tinha vazante aí. P: Lá da Barra [de Salinas – povoado adjacente]? E: Nós e da Barra. Os amigos... um tira pra um, tira pra outro. P: Vocês fazem alguma combinação com o pessoal da Barra? E: Não. A gente passa pra eles, dá o terreno lá e eles fazem o que quer. P: E dividem lá o pedacinho pra cada um? E: Dá um pedaço pra cada um que pode dar, eles fazem o que quiser fazer, não tem negócio de meia nem nada não. O nosso é plantado, a gente mesmo é que planta (Moradora da Comunidade de Prexedes, em 2003).

37 Em alguns casos, esses lavradores residem em comunidades relativamente distantes das áreas cultivadas, como é caso de dois moradores da comunidade de Malícia que, entrevistados em janeiro de 2005, relataram que estavam produzindo numa vazante à beira do Jequitinhonha, a qual estava localizada a 1 hora e 30 minutos de caminhada. Eles visitavam e cuidavam de seu canteiro a cada três dias. Lá produziam abóbora, quiabo, cebola, alho e batata e, quando perguntados sobre possíveis dificuldades enfrentadas na região, apontaram: “O problema da água é a maior dificuldade. A roça conta com a chuva”. Ressaltamos aqui dois fatores: a interdependência dos domínios tabuleiro-vazante, roça-horta e o caráter imprescindível das vazantes, posto que a irregularidade das chuvas no Semiárido torna a produção das roças um

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 23

empreendimento de risco, no qual o investimento de recursos e de trabalho pode não corresponder às expectativas e ao cálculo familiar da despesa. Nesse quadro, as vazantes constituem um domínio produtivo que independe da pluviosidade, já que sua fertilidade está ligada à dinâmica da vazão e às águas fluviais, como explica um morador da comunidade de Prexedes ao contrastar a produção nas vazantes e nos tabuleiros, avaliando as mudanças provocadas em seu sistema produtivo a partir das alterações no regime de vazão do rio Jequitinhonha desde o funcionamento da hidrelétrica de Irapé: Porque o processo é o seguinte: a terra ficava molhada e aqui [vazante] se plantou, colheu [...] Já o alto é esse processo: se tiver chuva, você colhe, se não tiver, você não colhe. Então, como o rio molhava e o molhado conservava, então você plantava tendo certeza que colhia, e agora perdemo essa... a nossa agricultura certa nós perdemos (Morador da comunidade de Prexedes, maio de 2011).

38 Ademais, quando se considera o caráter articulado e interdependente desse sistema produtivo, compreende-se o papel das vazantes enquanto unidade funcional que colabora para a composição do fundo de manutenção, ao mesmo tempo em que constitui um domínio indispensável para a consecução de uma importante estratégia reprodutiva: a “internalização das condições de reprodução do sistema” (Woortmann, 1983:201), pois ela fornece a mistura produzida pela família, provendo elementos de consumo intermediário que sustentam a criação (porcos e galinhas) e, ocasionalmente, permitem auferir renda, dada a alternatividade de seus produtos. Conforme enfatizou uma moradora de Marimbondo, entrevistada na última visita a campo, em maio de 2011: “A vazante é que dá mais descanso”. “Descanso”, neste caso, refere-se à dispensabilidade de aquisição dos produtos fora da unidade produtiva familiar. Ao evitar a compra nos armazéns, a produção das vazantes não só atende à despesa, como possibilita a criação de uma margem de “descanso” ou folga no orçamento comprometido, ou seja, nas demandas colocadas por seu fundo de manutenção.

39 A importância das vazantes para a composição do fundo de manutenção e a consecução da estratégia de internalização das condições de reprodução do próprio sistema produtivo é evidenciada na entrevista de um morador da comunidade de Prexedes, ao relatar a articulação entre a produção das vazantes e o provimento da “criação”, além da qualidade de alternatividade de seus produtos: Tinha vazante né? Planta vazante até em cima assim, mas agora (mexe a cabeça negativamente), esse ano, ano passado mesmo não plantamos nada. Agora, esse ano mesmo, nem animei mexer mais, que cê planta só pro cê perder tempo, né? O que a gente colhia aqui antigamente dava pro cê manter o ano inteiro. Criava porco, galinha, dava rama pras vacas, cavalo, essas coisas, só que agora praticamente perdemos 100%, né? E agora para tratar da criação, como é que faz? A gente já acabou com quase tudo devido não ter condições de comprar milho pra tratar, né? Ração, essas coisas. Aí a gente acabou desfazendo porco, galinha, diminuiu muita coisa, né? Mas é difícil, né? Ali, quando era dessa época aqui oh [apontando para a outra margem do rio], começava dali oh, aquela margem estreita até lá em cima era só vazante (Morador de Prexedes, maio de 2011). [...] Acabou com o meio de vida que a gente tinha, uma ajuda pra... A gente tinha nas margens do rio, né, pra gente se manter, né? E as vazantes também ajudavam assim no orçamento da família, no dia a dia, né? Era muita fartura. Batateira, abobreira, quiabeiro... A gente, além de tratar dos animais, também a gente vendia para comprar muitas coisas, né? Nessa época aqui era [maio] carga, de cangalha, saía cavalo com as cargas: caixa de abóbora, batata, quiabo, um farturão o ano inteiro...

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 24

só que porém, como cês tão vendo né... aacccabou tudo (Morador de Prexedes, maio de 2011).

40 Tais relatos enfatizam as estratégias de controle e gerenciamento do abastecimento doméstico em que as vazantes estão relacionadas com a previsão e a segurança, distinguindo-se, pois, da lavoura de roça, posto que esta é completamente dependente da disponibilidade de chuvas no ano. Por outro lado, os produtos das vazantes também se diferenciam do domínio da lavra, já que os recursos advindos desta não são passíveis de alternatividade.

41 Em síntese, a supressão das vazantes resulta na desarticulação do sítio camponês tal como ele se encontra estruturado no Médio Jequitinhonha. O domínio das vazantes constitui um espaço produtivo que prescinde das águas pluviais, fornecendo às famílias a mistura e a complementaridade das esferas roça-horta; trabalho masculino-trabalho feminino. A vazante provê, sobretudo, o que os moradores chamam da “agricultura certa”. A perda desse domínio redunda não só no comprometimento da criação e do fundo de manutenção dessas famílias, como também as expõem a condições atuais de vulnerabilidade que, uma vez não sanadas, resultarão em insegurança alimentar,7 derivada da sua desestruturação produtiva e do desequilíbrio ecológico advindo da alteração no regime hidrológico.

Significados e usos da água

42 A organização social e produtiva das comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha vincula-se fortemente às condições do meio. As formas de vida dessas populações são consolidadas de acordo com as potencialidades e as restrições ecológicas locais, dentre as quais se destaca a disponibilidade de água. Os cursos d’água são balizas para a compreensão de aspectos como sociabilidade, relações identitárias e a geografia das comunidades. Nessa economia camponesa, os recursos hídricos são importantes para assegurar a fertilidade do solo, a produção agrícola, o consumo doméstico, bem como a dessedentação do gado e da criação (Galizoni & Ribeiro, 2003).

43 Conforme evidenciaram Galizoni e Ribeiro (2003), para os grupos locais, a água consiste em uma espécie de dádiva, um recurso de uso comum e gratuito, posto que sua existência não depende de trabalho humano: “água brota, mina, mareja e escorre por vontade de Deus” (ibidem:134). Dessa forma, evidencia-se a concepção de que a água pertence à esfera do divino e da natureza e, como dom, não pode ser negada ou privatizada.

44 No decorrer de sua história, famílias e comunidades rurais do Jequitinhonha construíram estratégias para gerir situações críticas e cíclicas de escassez de água. Os lavradores criaram, ao longo do tempo, lógicas familiares de consumo, critérios de prioridade de uso e formas de gestão comunitária. A organização da produção é pautada pela disponibilidade de água, assim como a geografia dos sítios e das comunidades, tendo em vista os critérios para a localização das moradias e das lavouras familiares: “A qualidade de vida e a fartura de alimentos também dependem da água e, assim, se estabelece uma urdidura cultural e produtiva entre famílias, espaço e água” (Galizoni et al., 2008:134).

45 A escassez de água – recurso fundamental e balizador da organização social das comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha – acarreta, portanto, a redefinição do

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 25

modo de vida dessas famílias e o recurso a maneiras de regulação do uso com vistas à hierarquização do consumo (ibidem). Em localidades cujo acesso à água pode ser realizado por várias fontes, os moradores organizam uma hierarquia de usos segundo a finalidade e a qualidade do recurso. Na perspectiva desses lavradores, a água que é impedida de circular torna-se impura e sem serventia, de modo que, como apontaram Galizoni e Ribeiro (2003), tais pessoas apenas utilizarão águas barradas em situações de escassez hídrica, estando conscientes da sua qualidade precária.

46 Essa elaborada distribuição das atividades e das águas fica evidente na fala de uma moradora às margens do rio Salinas. Quando entrevistada em 2005, relatou que utilizava a água do Salinas (rio grande) para lavar as coisas, mas a água para beber e cozinhar é obtida do outro lado do rio, em uma nascente que está localizada dentro da área de mineração da Alba, sendo necessário o uso de animal de carga para buscá-la. Essa discriminação entre águas e usos se evidencia também nos relatos de outros moradores: Pego água na cabeça no rio pra lavar vasilha, a casa... Lavo roupa no rio também, mas pra beber, nessa época, faço cacimba. A água é limpa, ela sai clarinha e limpinha (Moradora de Justinos, 2005). Tiro água do rio pro uso de casa, pra beber pego do outro lado, na chapada, lá tem nascente. A água da chapada é melhor (Moradora da Lavrinha, 2005). A dificuldade aqui às vezes é com água. Pra tomar é só de cacimba, porque a água do rio é só pra labuta de casa (Morador da Malícia, 2005).

47 Observa-se, assim, uma escala de classificação das águas e suas destinações possíveis. No entanto, a escassez do recurso implica a concorrência entre os diversos usos necessários, levando à priorização de certas atividades ou ao emprego contrariado e ressentido de um tipo de água para uma finalidade imprópria, dada a ausência de outras fontes. A restrição hídrica leva, desta forma, ao abandono ou à redução de algumas atividades produtivas. Conforme afirmam Galizoni e outros (2008), as respostas aos problemas das águas entrelaçam aspectos ambientais, sociais e culturais complexos, de modo que não é possível falar de uma escassez absoluta, mas de “escalas de escassez criteriosamente administradas pelas famílias que conhecem com exatidão suas necessidades domésticas e produtivas e criam estratégias para conviver com a escassez e superar a falta d’água” (:149). Dentre tais estratégias estão: o uso comum das vazantes, os acordos familiares para o uso e a manutenção das nascentes (como é o caso de Prexedes, em que seis grupos domésticos integrantes da parentela utilizam a mesma nascente), a demanda encaminhada às administrações municipais para o encanamento e o bombeamento da água de fontes outras que não o rio (tal como ocorre na comunidade de Limoeiro, onde a prefeitura providenciou a distribuição de água coletada junto a um represamento pertencente à Suzano), ou mesmo o bombeamento da água do próprio Jequitinhonha (como ocorreu recentemente na comunidade de Marimbondo, já que na localidade inexistem outras fontes).

Alterações introduzidas pela UHE Irapé

Perda das vazantes

48 A mudança no regime natural do rio resulta na perda de terras para o cultivo das vazantes e tem severas implicações na economia e na dieta dessas famílias. Quanto à economia, vale destacar a ampliação da despesa com o consequente comprometimento

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 26

do fundo de manutenção das famílias. Observamos essas alterações na última visita a campo, em maio de 2011, e entrevistas realizadas na comunidade de Marimbondo ilustram as dificuldades trazidas pela mudança do regime hidrológico do rio. E: A água não tá indo mais onde a gente planta. Quanto não tinha barragem, a água subia tudo ali. Mas dava, viu. Aí agora, quando planta, tem hora que dá pouquinho. Não tem mais vazante. P: O que dá hoje? E: Andu, feijão-de-corda dá. O feijão que a gente come vem do mercado. P: O que vocês plantavam? E: Batata, alface, quiabo, abóbora. Dava muito, comia. Agora é tudo comprado. Quem quer comer vai no mercado e compra. Antigamente dava muita abóbora, a gente carregava burro. Dava tudo, dava pras despesas. Agora quem pode comprar bomba (para bombear a água do rio), que planta. Aí até dá (Morador de Marimbondo, maio 2011).

49 Moradores da margem esquerda do Jequitinhonha, na comunidade de Limoeiro, também ressaltam as consequências negativas, percebidas como derivadas da implantação da Usina Hidrelétrica de Irapé: Plantava cebola, alho, essas coisas assim. Depois que veio a barragem a coisa ficou pior. Planta, planta, mas não colhe. Nós paramos de plantar. Meu marido tá em Nanuque, vem de 30 em 30 dias. E gente ainda paga dias às vezes. Os meus cunhados vão pro Sul trabalhar. Antes, todo mundo tinha horta, vazante. Uma fartura de cebola, colhia 30, 40 réstia. Batata-doce a gente planta e não dá. Até ano passado a gente plantava, aí desisti (Moradora de Limoeiro, maio 2011). E1: O problema é a barragem. Depois que fizeram, a vazante acabou. Vem água... Acabando a vazante, a gente pode dizer que acabou o rio. E: A gente plantava batata, milho, abóbora, cebola, alho. O que plantava dava. Às vezes dava pra vender. Agora, se o cara querer comer, tem que comprar. Tá muito difícil (Moradoras de Limoeiro, maio 2011).

50 No tocante à dieta, é preciso perceber que esse efeito sobre o fundo de manutenção pode redundar na restrição da dieta daquelas famílias que não possuem meios de ampliar seu trabalho ou rendimentos, pois para elas a estratégia de internalização dos custos de reprodução pode ser um imperativo impossível de ser atingido, dada a ausência de excedentes (relativos tanto à extensão de suas terras quanto à disponibilidade de mão de obra). O potencial dessa restrição fica evidente na explicação que uma moradora da comunidade de Malícia ofereceu sobre a alimentação cotidiana na família, ressaltando que só se come mistura, quando é possível produzi-la: “É difícil fazer mistura, mesmo duas ou três: abóbora, quiabo, maxixe... É sempre uma verdura só, mas quando é da produção, aí dá. Agora, o arroz é todo dia, não falha, feijão também”.

51 A mudança na dieta das famílias traduz o avesso da lógica prezada por elas, qual seja, a autonomia expressa na busca de gestão e controle interno sobre as condições de produção. A necessidade de buscar tais condições na feira, como a ração para a criação ou a mistura para a alimentação, é relatada com embaraço, revelando um sentimento de vergonha e aviltamento. E, agora, D., pra arrumar as coisas de horta? Agora praticamente quase todo mundo num tá mexendo mais [...] E isso que vocês tinham da horta, cê tava falando, abóbora, cebola, onde o pessoal arruma isso aqui agora? Praticamente assim, deixou de... (o entrevistado silencia e não completa a frase). Compra? [Ele responde afirmativamente] compra agora nas ruas, nos ferante de Coronel Murta, né?

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 27

Tem que comprar? Tem que comprar. É bem difícil, né? pro cê trazer da rua, né? [...] o melhor é você ter que colher na porta mesmo. Praticamente a gente ficou à mercê (Morador de Prexedes, maio de 2011).

52 A perda de acesso às terras de vazante implica ainda a diminuição da capacidade das famílias de controlar e gerir a mão de obra familiar. A privação da articulação funcional entre as unidades produtivas que compõem o sítio se reflete, assim, na redução da possibilidade de alocação do trabalho familiar no período crítico da estiagem, de modo que ela resulta na multiplicação de perdas e carências, tanto no que se refere à ausência da criação quanto à impossibilidade de realizar a faiscação em busca de ouro e diamante no leito rio.

53 Vale destacar que a criação funciona como complemento alimentar na dieta das famílias e constitui uma reserva de valor, permitindo às mulheres a apuração de renda proveniente da alternatividade dos seus produtos. Nessa medida, a eliminação das vazantes impõe um quadro de privação, pois limita a terra disponível para trabalhar, extingue um domínio de lavoura que prescinde das chuvas, restringe os meios de produção e reflete a perda do controle sobre a força de trabalho familiar.

54 Ademais, as alterações no regime natural de vazão do rio significam a supressão de boa parte das referências que lhes forneciam orientação espacial e temporal para condução das atividades produtivas. A regularidade do rio acompanhava o ciclo hidrológico com seu regime de estações alternantes de seca e cheia, as quais, por sua vez, organizavam o trabalho e estruturavam o próprio ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico com os sucessivos fluxos migratórios temporários que caracterizam a estiagem. Impedidos de se orientarem pelo fluxo da água, os moradores buscam compreender novamente uma paisagem que se forma à sua revelia e na qual procuram, sem êxito, produzir seus espaços de vida e trabalho, a exemplo de uma moradora da comunidade de Marimbondo que relata ter produzido seus canteiros por três vezes no último ano, porém, a cada tentativa, as águas do rio tomavam o local, obrigando-a a transplantar as cabeças de alho e cebola recém-plantadas para outros lugares, mas sem sucesso. Outra narrativa de um morador da comunidade de Prexedes também entrelaça os temas da perda, da privação e da desorientação: Devido o trabalho, a margem... que é imprevisível, se você plantar bem na margem onde que tá molhado... e a água, ele [barragem Irapé] solta a água lá. Se o M. [vizinho com a moradia na margem oposta do rio] quiser plantar, mesmo se ele lançar ali na beira de um rio..., ano passado mesmo, ele plantou mais ou menos uns quarenta canteiro, aí já tava tudo nascido, quando eles soltaram a água lá, a água subiu e tampou ó, tudinho, perdeu praticamente a horta toda. Perdeu tudo, os quarenta canteiros? [Afirma balançando a cabeça]. E antes da barragem cê tinha é.. cê podia plantar berano a água, cê sabia o tempo que o rio enchia e o tempo que ele vazava, né? Mais ou menos a época que ele tinha de encher e vazar, aí cê pegava uma base. Agora é imprevisível, né? (Morador de Prexedes, maio de 2011).

55 O ciclo hidrológico e a dinâmica do rio ordenam não só as atividades produtivas nos diferentes domínios do sítio, como também operam como um marcador da própria trajetória social. O rio que vaza é também o momento de saída dos homens, que deixam suas casas temporariamente para seguir em direção ao trabalho nos canaviais. Aqueles que preferem ficar ou não precisam sair dirigem-se ao próprio rio, dedicando-se à faiscação que fornece igualmente renda e trabalho no tempo da estiagem, quando há pouco a se fazer nas roças. De modo simétrico e inverso, a chegada das águas e a cheia

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 28

do rio significam também o retorno dos homens, a reunião do grupo doméstico para iniciar as atividades no roçado – é tempo de afluência dos recursos e de trabalho, é hora de preparar as roças. Nesse sentido, a chegada das chuvas e a volta do rio (que enche novamente) é a volta da umidade, da fertilidade, da condição de produção para um novo ciclo, como foi dito, é o tempo da afluência.

56 A afluência e a “fartura” são agora substituídas pelas perdas que se multiplicam, pela restrição da produção e do trabalho, obrigando a um esforço imperativo e constante de compreender a temporalidade de uma paisagem “imprevisível”. Nessa medida, a alteração radical do regime de vazão do Jequitinhonha traz à baila um processo de “inversão simbólica histórica” (Scott, 2009). O termo empregado por Scott (2009) aplica- se originalmente à experiência dos reassentados da barragem de Itaparica. Embora relacionada a reassentamentos, a análise de Scott (2009) nos oferece indicativos importantes para compreender as alterações provocadas no modo de vida dos agricultores familiares que, no caso avaliado por Scott, anteriormente se estabeleciam na beira do rio, sendo obrigados a retornar à caatinga, mantendo-se compulsoriamente vinculados ao cultivo em terras de “sequeiro”.

57 No caso do Médio Jequitinhonha, a inversão que se opera é da fartura à privação. O rio que não vaza dá origem a uma experiência do vazio: o esvaziamento das comunidades (como na comunidade de Pianos, em que 12 das 16 famílias deixaram a localidade), o escoamento das economias com o aumento da despesa e a multiplicação dos gastos com a feira, a desocupação das mulheres privadas de seus canteiros, a saída dos filhos em função da ampliação da migração permanente, a qual está relacionada à inoperância do horizonte de gerações.8 A nulidade dessa matriz que organiza a lógica camponesa está aí associada à insuficiência dos recursos para a manutenção da família, à esterilidade da terra, agora estritamente dependente das chuvas irregulares do semiárido. Este fato resulta no sentimento de inaptidão dos homens e chefes de família para o trabalho, com a consequente impotência que os leva compulsoriamente a deixar o direito de origem para buscar melhores condições nos arruados mais próximos (São João da Vacaria, Barra do Salinas, ou as cidades de Josenópolis e Virgem da Lapa). Como um morador de Limoeiro ressaltou quando perguntado pelos nove filhos: “Sai tudo pra fora. Não tem como viver [aqui]” (maio de 2011). O esvaziamento demográfico das comunidades à beira do Jequitinhonha relaciona-se, portanto, à perda das perspectivas tradicionais que fundamentavam as possibilidades de reprodução familiar nas localidades de origem.

58 Nota-se que a articulação entre a dinâmica produtiva dessa economia familiar e a fluência das águas constituía um campo ou panorama de ação previsível, dado pelo engajamento histórico com o ambiente, e no qual se edificavam os projetos que compunham seu “horizonte de gerações”. A ruptura dessa articulação desorganiza, por conseguinte, todo o sistema produtivo das famílias, resultando na ineficácia das tradicionais formas de gestão do seu patrimônio: No Jequitinhonha são 12 comunidades... Então, assim, é uma coisa triste, infelizmente. E todas essas comunidades, na margem do Jequitinhonha era esse mesmo processo, que se tornou a mesma coisa: era área de vazante, produzia pro consumo, e, às vezes, ainda sobrava pra vender, engordar porco, que normalmente engordava aqui com batata e abóbora, né? [...] Hoje temos alguns... e pra tratar tem que comprar milho na rua porque não tem mais produção. Diminuiu criação?

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 29

Teve que diminuir, né? Muito! Então, às vezes, quem criava dez, agora cria um ou dois só pra aproveitar os restos que sobram de cozinha mesmo, pra não ficar desperdiçando, uma coisa que estraga então... E aí, pra complementar, tem que tratar com ração que vem da cidade. Igual, fizemos um projeto no Banco do Nordeste, meu irmão fez um projeto pra criar porcos e comprou os porcos nessa época que deu bastante abóbora. O preço dos porcos, tava bom de vender, ele comprou os porcos pra aproveitar, porque deu muita abóbora; aí ele falou: “vou comprar pra aproveitar e aproveito e vendo os porcos”, porque tava um preço bom. Só que aí parou de produzir, os porcos com esse projeto do Banco do Nordeste, a região “encharcou” de porco e agora estamos com alguns aí que tão morrendo de fome e a gente não tá com condição de tratar deles, e o mercado tá cheio, não tá conseguindo vender. Tomar é prejuízo, na certa. Agora tem que lutar de outra forma pra tirar o dinheiro pra pagar o banco (E., morador de Prexedes, maio de 2011).

59 Pelas observações apresentadas, podemos considerar, então, que a população a jusante da barragem de Irapé encontra-se atualmente numa situação de liminaridade, posto que os moradores não são reconhecidos como atingidos e, portanto, encontram-se excluídos dos programas de negociação e compensação, ao mesmo tempo em que são profundamente afetados pelos efeitos da instalação e da operação da usina hidrelétrica. Essa população encontra-se no limbo do planejador,9 visto que os prejuízos e as mudanças por que passam são compreendidos tanto pela Cemig quanto pelos técnicos peritos como uma “fase transicional” já superada. Na ótica desses agentes, tudo se passa como se as condições anteriores à inserção do empreendimento tivessem sido restauradas. Contudo, para as famílias, trata-se de uma mudança de regime e não de um estado temporário, pois não há um retorno às condições iniciais de produção e trabalho que antecederam a intervenção do empreendimento. A paisagem com que agora se defrontam é completamente diversa, o que os leva a revisar compulsoriamente seu esquema de organização do trabalho familiar. No lugar do “horizonte de gerações”, o que predomina nos relatos é a referência a um passado de abundância que não retorna, a um presente de privação e a um futuro indefinido que os conduz à migração. A referência a essas perdas são aqui enfatizadas, pois configuram um sentimento generalizado de privação.

Insegurança e temor a respeito da água do rio

60 Cabem ainda algumas anotações finais sobre as dificuldades de acesso à água de qualidade e os significados que a água do rio assume a partir do funcionamento da barragem de Irapé. Como ressalta um morador da comunidade de Prexedes: “O pessoal reclama muito que quase todo mundo tem que usar é água do rio”. A percepção da piora na qualidade da água do rio Jequitinhonha é evidenciada pelos moradores que a adjetivam como “contaminada”, “envenenada” e “poluída”. Eles fala que não é pra beber, que tem veneno. Eles tudo fala. Que ela é ruim pra beber. Invisível, mas o pessoal diz que eles põem remédio lá na barragem, deve ser, né? (Moradora de Limoeiro, 2011, margem direita do rio Jequitinhonha). É bom dá uma purificada nessa água [a que vem da bomba, mas é coletada no rio] que ela tá meio atrapalhada. É só a água que corre no rio mesmo. A gente vai remando com ela aí, não tem mais o que fazer (Morador de Marimbondo, 2011).

61 Nos relatos, em geral, prevalece um sentimento de insegurança e de constante temor quanto à qualidade da água que são obrigados a utilizar. A água do rio é ainda associada a problemas estomacais ou irritação na pele e nos olhos: “A água é pegada do rio, pra

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 30

tudo. Dá coceira” (Moradora de Marimbondo, 2011). Os moradores frequentemente mencionam o seu uso como a única possibilidade, dada a ausência de outras fontes. Em outros casos, quando há fontes alternativas, administram a escassez de modo a reservar outras águas para beber, satisfazendo essa necessidade básica. Quando eu bebo essa água [do rio] – num tamo bebendo ela, não, vem de cima [da caixa que armazena a água coletada no represamento da Suzano] – mas quando eu bebo, me dá dor de barriga. Eu associo com a água. Aí, pra beber, é a da represa lá de cima, vem o moço uma vez por semana bombear a água. Por enquanto é, mas ela tá secando. Aí a gente bebe as do rio (Moradora de Santana e professora em Limoeiro, 2011). Agora que acabou a água [do reservatório da Suzano], por causa da chuva pouca, a gente usa o rio. Toma banho é aqui, porque não tem água. Coça tudo, olho, pele. Quando toma banho, a pele fica cinzenta. Muda de cor. Fica grossa. Olho vermelho. O cabelo fica ruim, né? Diferença. Num é água tratada (Moradora de Limoeiro, 2011). Os peixes não ficou foi nada. A água pra nós, ela num é o que era: água normal, doce. A gente bebe porque não tem outra. Por dentro dela [você vê] miquinha, um pó mais dourado, nos remanso. Na [água] corrida a gente não vê. Tá igual um lodo dentro d’água, viu? E qual água vocês usam? É a do rio mesmo. Num tem mais. E dá algum problema usar essa água? Coceira no corpo que só vendo. O olho arde. Ontem mesmo eu banhei e deu uma coceira... (F e M., moradores de Limoeiro, maio de 2011, margem esquerda do rio Jequitinhonha).

62 Tais relatos demonstram a contrariedade, a desconfiança e a insegurança dos moradores, agora, ao consumirem a água do rio Jequitinhonha. A água que fica represada e passa pelas turbinas antes de chegar ao local em que o rio Jequitinhonha alcança as comunidades a jusante da UHE Irapé e as modificações no ciclo de vazões do rio (anteriormente antecipadas e apreendidas nas atividades produtivas dos lavradores) representam toda a oposição ao “normal”, à “água natureza” a que eles tinham acesso. Assim, entende-se que a água está “suja” por não ser “natural”. Aí tinha que buscar [água] lá no rio. Clarino tava lavando cascalho na água com peneira de arame. A água corroeu até o arame. Aí ele brincou com o que é verdade: “se beber, morre”. Uai, mas é, né? É água que passa pelos ferros, entende? Passa pelos ferros. Dava medo. Difícil é passar um peixe e ficar vivo. Como essa água pode ser boa? A água não melhorou de tudo, não (Morador de Limoeiro, maio de 2011).

63 Nos termos de Mary Douglas (1976), a sujeira é vista como um elemento inoportuno, uma contravenção à ordenação e à classificação sistemática. A água é contaminada por ser armazenada de forma artificial, desobedecendo às leis da natureza, da renovação pela circulação livre, que orientam os modos de pensamento e a organização social dos lavradores na zona rural do Vale do Jequitinhonha. Suja, ainda, por ter que passar pelas turbinas, o que explicaria, para os moradores, as propriedades metálicas percebidas na água e o mal que faz aos seres vivos em contato com ela.

64 Características estranhas à água, como “feder a ferro”, “gosto de alumínio”, “entranhada de lodo”, “gosto muito diferente”, “sumo do mato”, “esverdeada”, “corrói arame”, relatadas por diversos moradores nas comunidades visitadas, justificam as experiências cotidianas de suspeitas de contaminação. Um morador de Prexedes mostra as mudanças em diversos quesitos, concluindo pela impureza do rio Jequitinhonha: “O aspecto da água e do rio mudou muito. Porque, além de plantar, a gente tinha praia no

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 31

rio. A cor mudou. Uma água muito fria. [...] Eu não acredito que ela tá sadia, não” (Morador de Prexedes, maio de 2011).

Considerações finais

65 Na comunidade de Mutuca de Cima, embora não afetada pela alteração no regime do rio Jequitinhonha, visto que a comunidade se encontra localizada às margens do rio Salinas,10 identificamos na fala de um dos moradores uma expressão significativa sobre a experiência das comunidades vizinhas ao rio Jequitinhonha e cujas condições de reprodução social se encontram comprometidas: “retorno do cativeiro” – um cativeiro agora distinto, porque generalizado, não mais associado à escravidão negra (experiência que marcou e organiza a memória coletiva dessa comunidade), mas relacionado a um sentimento de expropriação contínua pelo qual se vem passando e a que se assiste seus vizinhos passarem. A imagem do “cativeiro” generalizado não representa aqui uma transposição fortuita, visto que na lógica camponesa a perda do controle sobre a terra e sobre a própria mão de obra doméstica significa a supressão da autonomia das famílias, autonomia esta que dá sentido ao horizonte de gerações e que constitui um valor central na organização social dessas comunidades.

66 Desse modo, a conclusão pericial técnica de que a restauração de uma “vazão ecológica” elimina os danos imputados à população a jusante revela impertinência à luz dos dados etnográficos. Para as famílias, e considerando seu modelo de organização social e produtiva, os danos e os problemas persistem na medida em que se referem não à restituição de uma “vazão ecológica”, mas à mudança no próprio regime do rio, o que impossibilita sua reprodução social. Como visto, a dinâmica do rio se relaciona à dinâmica do trabalho e à composição do grupo doméstico. As temporalidades do ciclo hidrológico, da organização das atividades produtivas e da morfologia social estão vinculadas, compondo uma forma de engajamento bastante delicada e complexa com as condições ecológicas locais.

67 A violência dessas transformações se faz presente na alteração forçada em seu modelo produtivo, assim como na sujeição às novas condições sociais de existência, dada a ampliação de sua dependência a fontes e a estruturas externas ao próprio sítio e à família. Há, por conseguinte, um quadro de “insegurança administrada” em função das condições de vulnerabilidade e dependência a que vão sendo submetidas as famílias, o que se associa à experiência e ao sentimento de privação predominante.

68 Cabe aqui diferenciar os dois termos propostos por Scott (2009): insegurança estrutural e insegurança administrada. O primeiro se refere à exclusão sistemática a que são expostas as camadas mais pobres da população brasileira, desprovidas do atendimento por serviços adequados ou suficientes. No caso em tela, essa insegurança estrutural se dá pela ausência de serviços públicos de natureza básica, como saneamento e fornecimento de água tratada. É, portanto, uma característica estrutural do modelo de desenvolvimento brasileiro que obriga as famílias a fazerem uso direto da água do rio Jequitinhonha, sem contuuddo supprrimir seu sistema classificatório que comporta categorias diversas de água e seus possíveis usos. Conforme avaliou Galizoni (2003), e foi confirmado pelos dados etnográficos, o uso da água dos grandes rios para beber é um uso contrariado, compulsório mesmo, dada a ausência da provisão de outras fontes no local. Esse caráter compulsório foi evidenciado quando da última visita à comunidade de Marimbondo, em maio de 2011. Na ocasião, a pergunta a um morador

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 32

sobre o atual estado da água do rio Jequitinhonha foi respondida com uma interpelação dirigida à pesquisadora: “– Você beberia desta água?”.

69 A pergunta do morador é importante porque traduz a demanda por ele colocada de que é preciso colocar-se na sua situação social, na sua posição estrutural dentro do quadro atual de suas condições de vida para compreender as razões de sua ação, a violência silenciosa e a vulnerabilidade cotidiana que o levam diariamente ao consumo de uma água que a comunidade sabidamente reconhece como não adequada.

70 Particularmente, o efeito do empreendimento sobre a vida dessas famílias e, doravante, a responsabilidade do empreendedor sobre tais danos devem ser considerados tendo em vista o quadro de “insegurança administrada” – o segundo termo proposto por Scott – a que estão submetidos. Neste ponto, em contraste com a “insegurança estrutural”, a “insegurança administrada” ocorre, segundo este autor, quando eventos inusitados ou inesperados se concretizam, o que se dá, no caso em estudo, com a mudança do regime de vazão e a desarticulação do seu sistema produtivo. Aqui, o termo “administrada” se refere a efeitos desencadeados a partir de ações específicas que produzem um quadro de vulnerabilidade. Nele, “[...] a clareza das ameaças imediatas à segurança cria tanto uma intensificação das preocupações que já eram latentes quanto introduz preocupações novas” (ibidem:190).

71 As evidências etnográficas nos levam a concluir sobre a perversidade de uma dupla violência que se exerce sobre essa população: estruturalmente, quando são excluídos do provimento de serviços e condições básicas de bem-estar social, e pelo manejo de intervenções diretas sobre suas condições de vida, intervenções estas que permanecem não reconhecidas. O efeito perverso deriva não só da recusa em reconhecer os danos e imputar responsabilidades, mas também da criminalização das próprias comunidades que, segundo o perito judicial no inquérito instaurado pelo Ministério Público, são contraventoras em face do texto da Resolução Conama 357/05. Ironicamente, a responsabilidade recai, então, não sobre os autores das intervenções, mas sobre os sujeitos que compulsoriamente vão sendo arrastados para uma situação em que o consumo da água do rio é uma condição inescapável diante das ameaças de sede e das experiências de privação e vazio.

BIBLIOGRAFIA

ABRAMOVAY, Ricardo. 1998. “Os Limites da Racionalidade Econômica”. In: ____. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. Campinas (SP): Ed. Hucitec/ UNICAMP. pp. 99-131.

ANDRADE, Maristela de Paula & SOUZA FILHO, Benedito. 2006. Fome de Farinha: deslocamento compulsório e insegurança alimentar em Alcântara. São Luiz: EDUFMA.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1981. Plantar, Colher, Comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Editora Graal.

BOURDIEU, P. 1993. Outline of a Theory of Practice. London: Cambridge Press.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 33

CASTRO, E. J. 2010. “O estudo interdisciplinar dos conflitos pela água no meio urbano: uma contribuição da Sociologia”. In: A. Zhouri & K. Laschefski (orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 176-201.

DIEGUES, A.C. 2009. “Água e cultura nas populações tradicionais brasileiras”. In: W. C. Ribeiro (org.). Governança da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume.

DOUGLAS, Mary. 1976. Pureza e Perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. São Paulo: Editora Perspectiva.

GALIZONI, F.M. 2000. A Terra Construída: família, trabalho, ambiente e migrações no Alto Jequitinhonha, Minas Gerais. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.

____. & RIBEIRO, E. 2003. “Água, População Rural e Políticas de Gestão: o caso do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais”. Ambiente e Sociedade, v. V, n. 2, pp. 129-146.

GALIZONI, Flavia et al. 2008. “Hierarquias de uso de águas nas estratégias de convívio com o semiárido em comunidades rurais do Alto Jequitinhonha”. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, 39 (1). Disponível em: http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx? cd_artigo_ren=1076 Acesso em: 27/07/2011.

GALIZONI, Flávia et al. 2009. Relatório Final do Colóquio Barragem de Irapé: um balanço das consequências sociais. Montes Claros, dezembro (mimeo).

HELLER, L.; OLIVEIRA, A.P.B.V. & REZENDE, S.C. 2010. “Políticas públicas de saneamento: por onde passam os conflitos?”. In: A. Zhouri & K. Laschefski (orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed UFMG. pp. 302-328.

INGOLD, Tim. 2005b. “The Temporality of the Landscape”. In. ___. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. New York: Routledge. pp. 189-208.

LASCHEFSKI, Klemens; ZHOURI, Andréa & SOUZA, João Valdir Alves (orgs.). 2011. Vale do Jequitinhonha: desenvolvimento e sustentabilidade. Belo Horizonte: PROEX/UFMG.

PORTO, Bruno & ALENCAR, Girleno. 2011. “Falta Água em Assentamento da CEMIG”. Jornal Hoje em Dia, 22/05/2011. Disponível em: http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/falta- agua-em-assentamento-da-cemig-1.283495. Acesso em 27/07/2011.

PORTO-GONÇALVES, C.W. 2008. “Água não se nega a ninguém: a necessidade de ouvir outras vozes.” Observatório Latino-americano de Geopolítica. Disponível em: http://www.geopolitica.ws/ media_files/download/Wporto2.pdf. Em: 06/05/2011.

ROCHA, Leo. 2008. Descoberta mega reserva de minério no Vale do Jequitinhonha. Diário do Jequi, 26/08/2008. Disponível em: http://www.diariodojequi.com.br/index.php?news=270. Acesso em: 06/05/2011.

SCOTT, Parry. 2009. Negociações e Resistências Persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE.

SOUZA, J.V.A. 1997. “Luzes e sombras sobre a história e a cultura do Vale do Jequitinhonha”. In: G.R. Santos (org.). Trabalho, cultura e sociedade no norte/nordeste de Minas: considerações a partir das ciências sociais. Montes Claros/MG: Best Comunicação e Marketing.

____. 2010. “Mineração e pecuária na definição do quadro sociocultural da região do Termo de Minas Novas”. In: ___ & M.S. Henriques (orgs.). Vale do Jequitinhonha: formação histórica, populações e movimentos. Belo Horizonte: UFMG/PROEX. pp. 25-70.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 34

TOMAZ, Rafael. 2010. “Mineração deverá ter vida longa no Estado”. Diário do Comércio, 22/06/2010. Disponível em: http://www.diariodocomercio.net/index.php? id=70&conteudoId=77282&edicaoId=760. Acesso em: 06/05/2011.

SPERLING, Eduardo von. s/d. PERÍCIA Processo 2006.38.13.012165-7, Classe: 7100Ação Civil Pública. Requerente: Ministério Público Federal; Réu: Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, fls. 1393-1414.

WANDERLEY, M.N. 1997. “Raízes Históricas do Campesinato Brasileiro”. Anais. II Encontro sobre a Questão Agrária nos Tabuleiros Costeiros de Sergipe – A Agricultura Familiar em Debate, Aracaju, pp. 09-39.

WOLF, E. 1976. Sociedades Camponesas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.

WOORTMANN, Ellen. 1983. “O Sítio Camponês”. Anuário Antropológico, 81:164-203. Brasília: Editora Tempo Brasileiro.

____. & WOORTMANN, Klaas. 1997. O Trabalho da Terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora da UnB.

ZHOURI, Andrea. & OLIVEIRA, Raquel. 2004. “Paisagens Industriais e Desterritorialização de Populações locais: conflitos socioambientais em projetos hidrelétricos“.Teoria&Sociedade, n. 12(2):10-28.

____. 2010. “Quando o lugar resiste ao espaço“. In: A. Zhouri & K. Laschefski (orgs.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 439-462.

ZUCARELLI, Marcos. 2006. Estratégias de Viabilização Política da Usina de Irapé: o (des)cumprimento de normas e o ocultamento de conflitos no licenciamento ambiental de hidrelétricas. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

____. 2011. “O Papel dos Mecanismos Flexibilizantes no Licenciamento Ambiental da Usina Hidrelétrica de Irapé“. In: A. Zhouri (org.). As Tensões do Lugar. Hidrelétrica, Sujeitos e Licenciamento Ambiental. Belo Horizonte: Ed. UFMG (no prelo).

NOTAS

1. As autoras agradecem ao CNPq, à FAPEMIG e à PROEX-UFMG pelo apoio às pes- quisas e à extensão que tornaram essas reflexões possíveis. 2. Ver ainda Galizoni et al., Relatório Final do Colóquio Barragem de Irapé: um ba- lanço das consequências sociais. Montes Claros, dezembro de 2009 (mimeo) e Porto, Bruno & Alencar, Girleno. Falta Água em Assentamento da CEMIG. Jornal Hoje em Dia, 22/05/2011. 3. Correspondência do GESTA/UFMG encaminhada à DIENI/DEAM e à Procuradoria da República, em Minas Gerais, no dia 6 de fevereiro de 2006. 4. Sperling, Eduardo von. PERÍCIA Processo 2006.38.13.012165-7, Classe: 7100-Ação Civil Pública. Requerente: Ministério Público Federal; Réu: Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG (s.d.), fls. 1393-1414. 5. Sperling, Eduardo von. PERÍCIA Processo 2006.38.13.012165-7, Classe: 7100-Ação Civil Pública. Requerente: Ministério Público Federal; Réu: Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG (s.d.), fls. 1393-1414. 6. Documento de intimação com referência ao processo n. 2006.38.012165-7, en- caminhado, em março de 2011, pelo juiz federal da 1ª Vara da subseção Judiciária de Governador Valadares (MG) ao Ministério Público Federal e redirecionado ao GESTA.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 35

7. Andrade (2006) expõe que a insegurança alimentar não se dá somente em termos técnicos relativos ao suprimento nutricional, mas diz respeito, sobretudo, às alterações compulsoriamente imprimidas aos padrões de produção e de consumo dos alimentos, quando estes são modificados drasticamente, levando ao impedimento do acesso aos recursos naturais utilizados tradicionalmente para a composição da economia doméstica camponesa desses grupos. 8. Sobre o “horizonte de gerações” como elemento estruturador das trajetórias e dos projetos de vida do campesinato brasileiro, ver Wanderley (1997). 9. xpressão cunhada por Scott (2009). 10. Afluente do rio Jequitinhonha.

RESUMOS

As formas contemporâneas de inserção do país na economia-mundo resultam muitas vezes em processos conflitivos envolvendo parcelas das populações locais, do Estado e dos agentes empresariais cujos investimentos se baseiam na exploração intensiva de recursos naturais. No Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, os conflitos se multiplicam tendo por objeto a gestão das águas. Na literatura especializada, os conflitos sobre a água estão associados às condições distributivas, à desigualdade social e ao descompasso entre diferentes representações culturais. Nesse horizonte, este artigo examina, em particular, o conflito e os desafios vivenciados pelas comunidades ribeirinhas residentes a jusante da barragem de Irapé no que se refere às alterações provocadas em seu modo de vida a partir da instalação da usina no rio Jequitinhonha. Através da experiência como pesquisadores e assessores junto a essas comunidades, o texto discute as controvérsias sóciotécnicas e normativas envolvidas na naturalização da água como mercadoria, destacando seus efeitos na produção de um estado de insegurança e vulnerabilidade imposto à população local

The contemporary forms of insertion of Brazil in the world economy result gernerally in conflictive processes involving local people, the State and cooperate agents whose investments are based on intensive exploitation of natural resources. In the Jequitinhonha Valley located in the Brazilian state of Minas Gerais the conflicts about water management are multiplying. In the specialized literature conflicts about water are associated with the conditions of distribution, social inequality and the mismatch between different cultural representations. Given this horizon, the article examines the conflict and the challenges experienced by the communities of riverside dwellers downstream the Irapé hydroelectric dam with respect to changes provoked within their modes of living after the construction of the power station in the Jequitinohnha river. Based on our experiences as researchers and as political advisors of these communities, this paper discusses the socio-technical and normative controversies in the process of naturalization of water as an economic good, focusing in particular on the imposition of a state of insecurity and vulnerability upon the local people.

ÍNDICE

Keywords: conflict, water, Jequitinhonha Valley Palavras-chave: conflito, água, Vale do Jequitinhonha

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 36

AUTORES

ANDRÉA ZHOURI Gesta-UFMG

RAQUEL OLIVEIRA Gesta-UFMG

KLEMENS LASCHEFSKI Gesta-UFMG

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 37

Relevâncias da Experiência e Critérios de Potabilidade: conflito de interpretações sobre a água “boa” em uma localidade do Cariri

Carla C. Teixeira, Luís Cláudio Moura e Anna Davison

NOTA DO EDITOR

Recebido em 10/08/2011. Aceito em 19/08/2011. Carla Costa Teixeira é professora associada 1 do Depto. de Antropologia da Universidade de Brasília, no qual é coordenadora do Laboratório de Antropologia, Saúde e Saneamento (LASS); é pesquisadora 2 do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Antropologia Política da Saúde, e tem se dedicado principalmente ao estudo dos seguintes temas: etnografia da vida política, políticas públicas de saúde indígena e relações entre saúde e saneamento. Luís Cláudio de Moura é graduado em História e Ciências Sociais, com mestrado em História das Ideias. Atualmente é doutorando em História Cultural pela Universidade de Brasília. Trabalha com pesquisa na área de Antropologia da Saúde e pensamento latinoamericano. É professor de História e Bioética no Instituto Federal de Goiás campus Formosa. Anna Davison é mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Brasília (UnB), instituição onde também atuou como estagiária e bolsista de iniciação científica no Laboratório de Antropologia Saúde e Saneamento (LASS/UnB). Possui experiência nas áreas de Antropologia da Saúde e do Consumo. [A nossa terra] Tem um açude, uma beleza A água limpa e peixes mil Com suas ilhas maravilhosas Recanto verde deste país.1

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 38

Introdução

1 Granjeiro é uma pequena cidade de aproximadamente 5 mil habitantes, localizada na região do Cariri, o “oásis do sertão”, situado no semiárido ao sul do Ceará. A região é extremamente rica em arte popular, sendo um conhecido polo de cultura no estado. O Cariri passou a ser regularmente povoado em 1703, ainda que se tenham notícias de incursões à região em meados de 1600, quando o governador geral de Pernambuco se encarregou de anexá-lo à sua capitania. As principais cidades da região são Crato e Juazeiro do Norte, que exercem grande influência sobre os municípios vizinhos. Juazeiro do Norte movimenta a região por ser uma das cidades mais relevantes no cenário do catolicismo popular brasileiro, já que ali viveu o padre Cícero,2 o que levou a cidade a se tornar um centro de peregrinações. Os demais povoados da região surgiram, em sua maioria, de missões de frades capuchinhos que se instalaram ali a fim de catequizar os índios Cariri que habitavam o local.

2 Conta o “mito fundador” de Granjeiro, porém, que o município não é fruto de uma missão religiosa, mas de uma história de amor fracassada. Segundo essa narrativa, Francisco David Pereira Grangeiro (apontado por muitos granjeirenses como seu bisavô) teria saído de Barbalha (cidade próxima) em finais do século XVIII em busca de um lugar onde pudesse se fixar e desposar uma moça pobre a quem sua família não aceitara, tendo encontrado no vale onde Granjeiro se situa as condições favoráveis para seu estabelecimento. Ali, ele e os poucos homens que o seguiam ergueram as primeiras construções para se abrigar. Tempos depois, quando já havia se estabelecido, Francisco voltou à Barbalha para buscar a moça e soube que ela já havia se casado com outro. Desiludido, aceitou casar-se com uma prima, com quem os pais gostariam que ele contraísse matrimônio. Após o casamento, Francisco retornou a Granjeiro acompanhado de mais algumas famílias e iniciou o povoamento da localidade que viria a se chamar Sítio Junco, devido à abundância dessa planta na região. O “pai” de Granjeiro teve vários filhos e sua genealogia se fazia presente na memória dos granjeirenses ainda em 2005, quando a pesquisa foi realizada, posto que grande parte da população tinha esse sobrenome, sendo esta, aliás, a razão para a atual denominação do município (ainda que a grafia do nome seja ligeiramente diferente).

3 A referência ao nome inicial do povoamento permanece na denominação do principal açude do município: o Açude do Junco. A construção deste açude remonta ao período entre 1932 e 1952, tendo modificado a relação dos habitantes da localidade com a água e com a cidade como um todo.3 Hoje é às suas margens que se encontra a atual sede do município de Granjeiro,4 constituindo-se em ponto central na vida do local, atraindo turistas (mesmo que a cidade não tenha estrutura – como hotéis e restaurantes – para recebê-los) e permitindo a plantação de culturas de baixio e a pesca.

4 Na breve semana em que foi realizada a pesquisa exploratória em 2004, já foi possível perceber a grande importância do Açude do Junco na localidade. Só no primeiro dia, houve três diferentes convites para visitar este açude. As pessoas, nessas ocasiões, seguiam um roteiro parecido, mostravam a Avenida Central (uma espécie de calçadão às margens do Açude, que era assim denominada e que na época ainda estava em construção) como a menina dos olhos da cidade, toda a sua beleza ali concentrada. Essas pessoas chamavam por vezes o Açude e a Avenida de balneário, a praia no meio do sertão. O principal bar da cidade também ficava em suas margens e os grandes

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 39

acontecimentos da cidade, como o carnaval, as comemorações políticas e as festividades públicas, aconteciam ali. Há cerca de 10 anos suas águas passaram a ser tratadas e encanadas para a sede do município e o Açude consolidou-se, de fato, como o maior motivo de orgulho da população granjeirence (Figura 1).

Figura 1: Açude do Junco

5 Entretanto, a relação entre os granjeirences e seu açude é ambígua: de orgulho pela alegria, o lazer e a renda que ele proporciona, mas também de desconfiança e receio pelas mortes que nele já ocorreram e pelos usos considerados indevidos que dele alguns faziam. Essa relação levou a um singular imbricamento entre o Açude e o cotidiano dos habitantes de Granjeiro, cuja relevância pôde ser percebida já nos primeiros dias de convivência na cidade. Qual não foi a surpresa quando se constatou que a água do Açude tratada pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE), e conduzida por encanamentos até as residências, era usada para várias atividades, predominantemente para aquelas que não envolvessem ingestão humana, ou seja, não era bebida nem utilizada para cozinhar. Para tais finalidades os granjeirences utilizavam a água dos vários “chafarizes” – conjuntos de bicas construídos pela prefeitura em diferentes pontos da sede do município – que tinha que ser carregada em recipientes até os locais de moradia. Se num primeiro momento a racionalidade econômica parecia se impor como explicação para tal preferência – afinal a água dos chafarizes, embora exigisse um dispêndio de energia física e de tempo, era gratuita – o dia a dia na localidade revelou uma tessitura muito mais densa de significados, valores e interações sociais em torno das águas de Granjeiro. Compreender esta densidade e as distintas lógicas e percepções que a perpassam, tomando como fio condutor a rejeição à água tecnicamente potável,5 foi justamente o desafio que orientou a pesquisa e ensejou a escrita deste artigo.6

A pluralidade e a hierarquia das águas

6 As diferentes fontes de água de Granjeiro se dividiam principalmente em água dos açudes, do chafariz, de poços e cacimbas e água armazenada da chuva. Contudo, estas diferentes águas não têm o mesmo valor, sendo que é em relação às águas do Açude do Junco que as demais águas na sede do município, nosso foco aqui, são classificadas. Em meio a esta diversidade, algumas águas se destacavam, formando um triângulo denominado pelos granjeirences com os seguintes termos: água do açude, água do chafariz e água da chuva – a oposição entre açude e chafariz apresentando-se como a dominante. Cada uma delas era, por sua vez, possuidora de virtudes e perigos que

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 40

compunham uma paisagem cultural na qual a experiência sensória dominava, mas não excluía a consideração das qualidades de potabilidade da água. No entanto, antes de discutirmos como a percepção sensória, a interpretação cognitiva e a atribuição de significados se enredavam em Granjeiro, é preciso conhecer mais de perto essas águas.

A água do Açude

7 A água potável encanada a partir do Açude do Junco, como vimos, é algo recente, tem em torno de 10 anos para a sede e de um ou dois anos para alguns sítios próximos. Esta função do açude foi aceita diferentemente entre as comunidades da sede e as dos povoados que a receberam, estando relacionada com a disponibilidade de outras fontes de água, bem como com a apreensão que se fazia de sua ocupação humana, como veremos a seguir.

8 Em termos econômicos, as áreas mais próximas às margens do Junco eram utilizadas para o plantio de arroz, feijão, bananas, favas, milho, entre outros. Muitas famílias tiravam sua renda, ou parte dela, destas terras. A prática da pesca em suas águas fornece outra fonte de alimentos e de renda para os moradores de Granjeiro. Alguns habitantes da sede eram pescadores que, além de pescarem para o consumo próprio e o da família, promoviam o comércio de peixe em Granjeiro. No centro da cidade encontramos “banquinhas” a oferecer o pescado local na principal rua comercial. O peixe também ajudava a mover a economia granjeirense como o principal e o mais pedido “tira-gosto” dos bares localizados na Avenida, o principal local de diversão e atração turística. A atividade do turismo, embora restrita à visita ao açude nos finais de semana,7 foi reforçada com a urbanização de parte das margens do Junco (Figura 2).

9 O elogio de sua existência para o bem viver em Granjeiro convivia com usos não tão nobres de suas águas, embora importantes para uma parcela de seus moradores. Assim, em volta do Açude podiam ser avistados alguns poucos currais e chiqueiros de porcos em suas margens mais remotas, sendo corriqueiro, porém, encontrar animais passeando à beira do açude, tomando água ou defecando, ou mulas e cavalos sendo banhados por seus donos. Muitas outras coisas eram também lavadas em suas águas: bicicletas, louças, tripas de porco (“fato de porco”) e, principalmente, roupas – tanto como prática doméstica quanto como ocupação econômica (das chamadas “lavadeiras”).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 41

Figura 2: Margens do Açude do Junco

10 A marca deste grande açude na paisagem local, contudo, não se esgotava em seu domínio do horizonte espacial nem das interações cotidianas, seja pelo lazer proporcionado, seja em sua importância econômica. O Junco também inspirou um repertório de “mitos”8 e, com frequência, se ouviam comentários em que lhe eram atribuídas características humanas. Em geral, as características eram negativas, quase sempre relacionadas com a morte, mais precisamente com afogamentos, narrados por muitos como “assassinatos” cometidos pelas águas “traiçoeiras” do Junco. Contavam-se casos de incidentes no Açude nos quais apareciam frases como: “este açude é assassino”, “açude criminoso” e “quando o açude geme, alguém vai morrer”.

11 Tantas dimensões, como já se pode vislumbrar, viriam a compor o enquadramento dado pelos moradores à água tratada do Açude e, consequentemente, às demais águas de Granjeiro, como abordaremos mais adiante.

A água do Chafariz

12 A água do chafariz era distribuída em quatro pontos espalhados pela sede municipal. Os pontos de água foram construídos de forma padrão: três ou quatro torneiras, da altura de meio metro, localizadas dentro de “casinhas” de alvenaria, quase todas sem porta. Os chafarizes existentes na cidade, contudo, apresentavam diferentes estados de manutenção e a proteção dada às fontes não era suficiente para mantê-las livres dos animais (Figuras 3 e 4). Era comum ver cachorros, gatos e aves, que passeavam livremente pela cidade, tomando a água que escorria abaixo das torneiras, às vezes chegando mesmo a entrar nas casinhas para melhor se servirem.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 42

Figura 3: Chafariz na periferia da sede do município

Figura 4: Chafariz no centro da sede do município

13 Esta água não era paga, como foi dito anteriormente, pois vinha de um poço de responsabilidade da prefeitura e, segundo as autoridades locais, quando em meados dos anos 90 foi implantado o sistema de água da CAGECE, o poço da prefeitura foi fechado: “eles colocaram lá uma setazinha dizendo que estava encerrado o atendimento através daquele poço, que seria da indústria de água que tem no município, da CAGECE”.9 Posteriormente, o poço teria sido reaberto, reformado, sua água passando a ser distribuída para os chafarizes sob o alegado argumento do prefeito, conhecido como Dr. Soares – o mais popular da localidade – de que nem todos poderiam pagar pela água encanada10 e, portanto, deveriam ter acesso gratuito a ela sem precisarem se deslocar para o poço situado fora do núcleo urbano.

14 Assim, a água era coletada nas bicas em baldes ou latas e transportada até as casas, havendo à época alguns rapazes que cobravam para fazer este transporte.11 O maior movimento nestas fontes ocorria pela manhã, entre 6 e 8 horas. Nestas primeiras horas do dia, as bicas começavam a receber a visita dos moradores. Não era raro verem-se filas de baldes ou outros recipientes diversos na frente das bicas, sendo estes frequentemente lá esquecidos transbordando, enquanto as pessoas (homens, mulheres e crianças) se envolviam em outros afazeres. Apesar do fluxo se concentrar neste horário, a fonte recebia a visita de moradores durante todo o dia, pois esta era a água preferida para beber, cozinhar e banhar-se, enfim, para a maioria das atividades em que os sentidos do corpo eram acionados.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 43

A água da chuva

15 Armazenar água de chuva era um costume existente em Granjeiro e em várias outras cidades nordestinas. Sendo inicialmente feito de maneira improvisada, a coleta da chuva, a partir dos anos 2000, passou a fazer parte das estratégias governamentais de combate à falta de água. Em alguns sítios foram encontrados sistemas construídos pelo poder público local para amenizar a seca, em especial, naqueles fora da sede do município, onde não havia água encanada e cuja localização dificultava obter água através da escavação de poços. Estes sistemas consistiam na captação e no armazenamento da água da chuva em reservatórios abastecidos pela água que cai sobre o telhado. Na ocasião da pesquisa, seis meses após a estação chuvosa, tivemos acesso a uma caixa de captação,12 onde havia em torno de 20% da capacidade do reservatório.

16 Se esta solução era a mais recente a ser utilizada pelo município para a obtenção de água, pudemos constatar, no entanto, que este tipo de captação era tradicionalmente feito pela população, independente da disponibilidade de outras águas. Em uma das visitas à casa de dona Léa,13 uma das principais interlocutoras da pesquisa, observou-se que a senhora também armazenava água da chuva, mas o armazenamento era feito através das calhas do telhado e colocado em um recipiente de uns 100 litros de capacidade. Como era o costume, não armazenava a água da primeira chuva, pois, segundo dona Léa, como esta água era “suja”, sua destinação era apenas para lavar roupa. O uso da água das demais chuvas era mais diversificado e, como se ouviu diversas vezes, a água da chuva era considerada especialmente boa para lavar os cabelos (deixava-os “mais macios”). Contudo, sua relevância, até por sua intermitência, era menor em relação às águas do Junco e dos chafarizes, exercendo uma função claramente complementar nesta triangulação.

A contraposição central: as águas do Açude e do Chafariz

17 Como se observou, existia uma diversidade de águas em Granjeiro, entretanto, todas “estas águas” não estavam presentes ao mesmo tempo e na mesma comunidade (sede do município e sítios). Sua composição e sua utilização variavam conforme a localidade e a oferta dentro do município, e também de acordo com a estação climática, dividindo- se em verão (seca) e inverno (chuvas). As estações produziam diferenças significativas quanto aos usos da água devido às limitações impostas pela ausência e pela alteração da qualidade da água provocada pela estiagem.

18 Estas características, aliadas às avaliações feitas pelos moradores, nos levaram a traçar diferentes usos das águas cruzando o espaço e o tempo para observar como isto acontecia. Tais diferenças apresentam-se ou sobressaem-se em face das demais atividades quando consideradas em relação à água utilizada para beber. De início, há que compreender a polarização de atitudes diante das duas águas principais do município de Granjeiro: a qualificação como boa da água gratuita dos chafarizes em detrimento da água paga do açude, apontada como inferior. Na evitação em fazer uso da água do açude para consumo humano, frequentemente nos deparamos com explicações em que não havia a elaboração de motivos de ordem “físico-química” para a sua rejeição, já que a purificação através do tratamento era afirmada em seus discursos.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 44

Em geral, as pessoas reconheciam que o tratamento da CAGECE era efetivo e que a água poderia ser ingerida. Entretanto, nos labores cotidianos não o faziam e, apesar de respaldarem a qualidade do tratamento, se insistíssemos nas indagações, davam a entender que a água não estava, de fato, adequada a todos os tipos de consumo.

19 Tal inadequação era apreendida pelas diferentes dimensões da experiência com a água do Açude, apontadas anteriormente. Dentre os motivos declarados para não bebê-la, destacava-se a crítica às lavadeiras que frequentavam diariamente o Junco (Figura 5).

Figura 5: Lavadeira à beira do Açude do Junco

20 De fato, lavar a roupa fora de casa era uma prática comum em todo o município e aqui a alegação econômica se explicitava: lavar roupa em casa com água encanada aumentaria excessivamente o valor da conta a ser paga à CAGECE – principalmente para as mulheres que lavavam roupa para terceiros.14 Contudo, o hábito de deixar mangueiras abertas para “aguar” as plantas do quintal nos alertou para os limites deste argumento e para a necessidade de uma escuta mais qualificada das narrativas sobre a hierarquia das águas granjeirences. Foi assim que se pôde apreender em conversas com moradores que, exceto em relação à lavagem das roupas, a restrição quanto ao preço da água encanada não aparecia como um dos primeiros motivos declarados para restringir seu uso.

21 As qualidades sensórias distintivas das águas – sabor, cor e pureza visual, tátil15 – eram as alegações para a preferência pela água do chafariz: “A senhora apanha água no chafariz para beber. Disse que a água é boa, que tem um gosto bom e que as pessoas de fora falam que a água tem um gostinho doce” (notas de campo). Já em relação à água do Açude, uma estudante, cujo trabalho sobre a importância da água em Granjeiro havia sido premiado na feira de ciências da escola, nos contou que para ela o açude era poluído, sendo esta poluição proveniente do lixo jogado às margens do reservatório nos fins de semana e cujo aumento se fez sentir depois da construção da Avenida. Dentre outros aspectos repulsivos, havia também a já mencionada presença de animais em suas margens, o banho no açude e as mortes em suas águas.

22 Se tal classificação das águas não era característica de um tipo de pertença social em Granjeiro, aqueles em posições de autoridade, quando entrevistados, explicitamente a desconsideravam como produto da ignorância. Nas palavras do então prefeito: É, aqui é assim, [para] o pessoal ainda falta um pouco de consciência do entendimento de que água tratada, água potável tratada, ela acaba [com] todos os riscos de doença. Mas as pessoas por influência acham que a água que está com 60 metros [do poço que supria os chafarizes], sem ela passar pelo processo de tratamento, ela fica melhor que a do açude sendo tratada, e que eu mesmo bebo

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 45

água do açude, eu tomo água do açude todo dia, e eu acho que a água do açude é muito boa (Entrevista em 29/07/2005).

23 Cabe considerar, primeiro, a contradição de informações sobre a existência ou não de tratamento da água distribuída nos chafarizes entre os responsáveis políticos. Se nesta ocasião o prefeito sugeriu não haver tratamento da água do chafariz, em outra oportunidade o vice-prefeito afirmou serem ambas as águas sujeitas aos mesmos procedimentos de tratamento.16 O mais importante, entretanto, é observar que não se trata principalmente de uma lacuna nas informações sobre a eficácia dos procedimentos técnicos de purificação da água do Açude (quanto aos “riscos de doença”), mas de outros registros de apreensão que não parecem passíveis de alteração por meio de tais procedimentos.

24 Assim, a apreensão visual parecia constituir uma diferença significativa entre a água do açude e a do chafariz, em sentidos que não se esgotavam naqueles propiciados pela visualização dos usos considerados poluidores do açude. Se a água do açude chegava pelo encanamento da CAGECE até as casas, sendo, portanto, de responsabilidade desta companhia, no interior de cada residência os cuidados de infraestrutura e armazenamento tornavam-se atribuição de cada morador. A água que saía do açude, em geral, era armazenada nas caixas de água, onde nem sempre as condições de limpeza eram as adequadas. A água que saía do encanamento era turva, indicando que as condições da caixa d’água e do encanamento interferiam na sua qualidade. Na casa em que moramos foi necessário quebrar a parede para desentupir um cano que estava bloqueado devido, segundo o senhor que reparava o problema, ao acúmulo de barro e de lodo na caixa d’água.17 No entanto, em diversos momentos, as pessoas declararam que lavavam constantemente o reservatório,18 mas que este voltava a ficar sujo muito rapidamente, em uma valoração que parecia atribuir à água do açude qualidades impuras mais severas do que as encontradas em outras águas.

25 A água proveniente do chafariz, por sua vez, apesar de seu transporte em baldes e latões, era visivelmente mais transparente que a do açude. Do chafariz, a água era imediatamente armazenada em um jarro, sendo por vezes coada em um pano, como era comum ser feito também com as demais águas, onde, com o passar do tempo, qualquer sujeira seria decantada.19 Esta prática, deixar a água dormir, descansar de um dia para o outro, foi indicada também para a água do açude, mas com objetivo diferente. Segundo seus moradores, com o descanso do líquido, o gosto de cloro diminuía, pois ficava assentado no fundo do recipiente. Deixar a água do açude armazenada alguns dias era, assim, a solução dada por diferentes camadas sociais para o problema do gosto do cloro: É o seguinte: eu tenho, por exemplo, três tambores, que eu encho lá em casa hoje, então, hoje é que dia? Terça. Só lá para sexta-feira [é] que eu começo a utilizar, entendeu? Ela dorme esses dias todinhos por questão da... eles botam cloro, essa coisa toda, então, se usar ainda hoje, ela fica muito com um gosto diferente, né? Então, quando é lá para quinta, sexta-feira, que ela tem dormido, adormecida, fica uma beleza (secretário de gabinete de Planejamento e Coordenação; entrevista em 19/07/2005).

26 Desta perspectiva, os sentidos do paladar e da visão prevaleceram, completando-se e confirmando-se mutuamente: a água do chafariz era indicada como boa porque não tinha gosto – ou quando o tinha, era apreciado – e por ser transparente e pura; por sua vez, a do açude possuía um forte gosto, rejeitado pela população, atribuído principalmente ao tratamento do cloro e ainda à sua turbidez e sujeira. Assim, observamos que cozinhar com a água do chafariz era uma opção generalizada na sede

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 46

de Granjeiro. Os motivos para esta escolha nos foram explicados e, também, foram fáceis de serem verificados em campo. A água do açude, ao ferver, produzia dois fenômenos: a panela ia ficando negra onde a água entrava em contato com o metal e produzia uma “nata” bege sobre a sua superfície (Figura 6).

Figura 6: “Nata” na água após fervida e aspecto da panela

27 Diante de tais fenômenos, a variação dos usos da água não se dava apenas para a ingestão humana. As diferenças revelaram-se perceptíveis o suficiente para contribuir para a destinação diversa das duas fontes para outras atividades também. Assim, encontramos relatos sobre os efeitos produzidos no corpo. Para alguns granjeirences, as águas traziam reações distintas na pele e nos cabelos: a água encanada do açude ressecava-os, provocando inclusive coceira na pele, ao contrário da água do chafariz; e no interior do corpo causava dores de estômago, de intestino e problemas no fígado em função do excesso de cloro que continha. Para diversas pessoas consultadas durante o trabalho de campo, existia ainda mais um motivo para recusar a água do açude: sua poluição pela morte. Chamou-nos a atenção, contudo, o fato de que tal poluição não se daria apenas pela ocorrência de mortes em suas águas, mas também pela presença de objetos de pessoas falecidas e pela água da chuva que escorria do cemitério para lá.20 Em geral, as pessoas que relataram ser comum o Junco receber pertences de pessoas mortas percebiam esta prática como algo corriqueiro. Em certa ocasião, uma senhora qualificou suas águas como sebosas, porque roupas de mortos foram retiradas dali. De fato, o açude parece ter sido usado, por vezes, como depósito de lixo em geral. Soubemos que pouco antes de chegarmos à cidade havia sido feita uma limpeza no Açude, tendo sido removidos vários objetos; e durante o período de pesquisa na cidade vimos garrafas – de vidro e de plástico – e sacos plásticos em suas águas. No entanto, não tivemos como avaliar se jogar roupas e outros pertences de mortos no açude era uma prática de fato comum, como foi sugerido em algumas falas, importando que isto era realmente considerado por muitos.

28 Para reforçar as qualidades das águas do chafariz resta, por fim, destacar que elas eram consideradas livres desses tipos de contaminação pelo fato de serem oriundas, segundo reza o conhecimento local, de um poço cuja profundidade seria de 25 metros para alguns e de 60 metros para outros. Tal profundidade original explicaria sua qualidade (gosto e transparência), pois os contatos com humanos (por imersão de vivos e mortos)

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 47

e com animais eram tidos, junto com o cloro, como o principal componente poluidor das águas de Granjeiro. Neste caso, com a fonte do chafariz a dezenas de metros terra adentro, suas águas estariam fora do alcance de tais poluentes.

29 Se considerarmos, contudo, que as ações de abastecimento de água que levaram ao tratamento das águas do Junco e à sua distribuição para as residências faziam parte de uma política do Ministério da Saúde (o Projeto Alvorada, do então ministro José Serra), que visava diminuir a incidência de doenças através de veiculação hídrica em municípios com índice de desenvolvimento humano muito baixo (menor do que 0,5), é importante abordar as consequências dessa hierarquização das águas e a pluralidade de seus usos segundo a racionalidade sanitária, bem como o modo com que as autoridades locais agiam diante deste cenário.

Prestígio das águas, discursos e práticas

30 Durante a pesquisa de campo, a questão da oferta de água se fez presente de maneira fluente e espontânea nos discursos de nossos interlocutores. O assunto fazia parte da ordem do dia em Granjeiro. Falava-se com muita desenvoltura e conhecimento de causa sobre seca, saneamento e água. O tema era pauta na escola, nas conversas na Avenida (sendo esta também motivo de assunto) e nas ações instrutivas realizadas pela prefeitura e pela CAGECE.

31 De fato, encontramos um ambiente propício para conversas sobre água e saneamento. As obras públicas realizadas nos últimos anos haviam sido diversas (água, rede de esgoto e melhoria sanitária domiciliar21) e as ações “educativas”22 foram implantadas em vários momentos. Todos pareciam ter algo a dizer, individual e coletivamente, fornecendo pistas para desvendar as relações dos granjeirences com a água e buscar uma melhor compreensão do que diziam e como diziam. Os discursos eram muito parecidos, contribuindo para que seus conteúdos e formas alcançassem certo estatuto de verdade.23 Assim, ouvimos comentários sobre problemas de saneamento, práticas sobre coleta e armazenamento de água ou teorias sobre as distintas qualidades das fontes, tendo como referencial a diferença entre o tempo anterior e o posterior à chegada da água potável e do saneamento, ocorrida na maior parte do município. Discutimos com adolescentes, adultos, pessoas mais idosas, homens e mulheres, trabalhadores das mais diversas profissões, representantes da sociedade civil e membros do poder público. Colhemos opiniões, a partir de um amplo horizonte de perspectivas, dentro da comunidade de Granjeiro.

32 O processo ao qual creditamos a promoção deste ambiente de aparente consenso em torno das águas foi um programa exigido pelo Projeto Alvorada.24 Tratava-se do Programa de Educação em Saúde e Mobilização Social (PESMS), concebido como parte da contrapartida estadual para a efetivação das obras de saneamento empreendidas por este Projeto.25 A CAGECE ficou responsável, então, pela execução desta atividade no estado, englobando ao todo 10 municípios, sendo constituída por palestras e encontros com o apoio do município e das associações de moradores, realizados em período reduzido e focando não só no desperdício de água, mas também em sua qualidade. Em articulação com esses eventos, também foram utilizados folders e cartazes para a divulgação das ideias pretendidas.26 Talvez uma das estratégias mais criativas tenha sido um pequeno esquete (“A velha surda”) representado por um casal de adolescentes, que abordava o tema da água e no qual havia falas como: “a água é muito importante”,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 48

“a água de nossa cidade é muito boa”, “a água é patrimônio nosso” e “não lavo nem calçada pra não gastar a água”.

33 Esta última fala expressava a opinião generalizada e predominante quanto à necessidade de evitar o desperdício ou, de acordo com a expressão local, de não “istruir” a água. Esta questão era defendida pelos granjeirences (comunidades e gestores públicos) e propagada por eles. Em todas as entrevistas realizadas e nos grupos de discussão, ouvimos a respeito da importância de economizar a água e do seu papel fundamental no mundo. Nas palavras do então prefeito: Existe esse problema que é no mundo todo, o desperdício. Que é uma preocupação minha em fazer esse controle ainda. Eu acho que aqui há um desperdício de 10 a 15 por cento da água potável, aqui ainda. E eu não admito e nem eu posso admitir, porque a escassez de água está no mundo todo, vai acontecer já, já, talvez, assim, um princípio de colapso, e aqui nós temos um pouco de água e eu quero conservar esse pouco de água que existe no planeta. [...] [E]u acho que a comunidade tem que se conscientizar de que realmente isso é um bem muito precioso e não deveria desperdiçar. E nas localidades existem os projetos; o governo tem que nos ajudar a favorecer essa interligação entre o governo federal, o estadual e o município, para que nós possamos colocar a água à disposição desse povo (Entrevista em 29/07/2005).

34 Apesar de sabermos que existiam outros pontos de discussão nas atividades chamadas educativas ou de conscientização, o que era destacado nas falas de autoridades e moradores era o não desperdício da água. As falas faziam referência a questões tanto mundiais como locais, com espaço para a demonstração de uma consciência sobre a importância da água no mundo e de sua valorizada agenda. Era comum os granjeirenses, após terem comentado a situação de escassez do produto no planeta, voltarem-se para a questão no município, indicando a falta da água na localidade e seu significado fundamental para a manutenção da qualidade de vida naquela região.

35 Se no registro discursivo o foco parecia estar bem estabelecido, verificamos com o passar do tempo que este foco se fazia mais presente nos ditos do que nos feitos, a começar pelas próprias ações governamentais.

36 Assim, o carnaval de 2004 – o primeiro na recém-construída Avenida – teve como cena emblemática: o prefeito a molhar os foliões com uma mangueira, enquanto as pessoas dançavam e se divertiam por horas. Já em 2005, o Concurso Garota Molhada era o evento mais esperado e constantemente comentado. O concurso não era Miss Granjeiro, ou Rainha da Vaquejada,27 ou da Avenida, mas sim Garota Molhada, mais uma vez trazendo a força da água na vida do município. O concurso tinha o seguinte roteiro: as meninas deveriam estar molhadas na hora do desfile para serem avaliadas pela população e pelos jurados (em geral, políticos locais). Diferente do que costuma ocorrer em competições entre fisiculturistas ou nos concursos de beleza, as concorrentes não estariam untadas com óleos ou cremes; aqui a água era utilizada como agente potencializador da beleza dos corpos, tornando as curvas mais sinuosas, favorecendo que as roupas colassem no corpo e acentuando a sua transparência.28

37 Esses eventos nos fizeram refletir sobre a natureza contextual e a inserção social dos sujeitos na definição dos manejos e das moralidades da água em Granjeiro. Se no dia a dia os granjeirences eram unânimes em afirmar o valor da água e sua necessária economia, nesses eventos excepcionais era permitido e requerido que alguns exercessem usos mais generosos e não instrumentais da água, dando margem a

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 49

reafirmações e reconfigurações de poder político e de prestígio social de indivíduos, grupos e do próprio município. O valor dado à água, como bem escasso em um ambiente onde existia uma memória profunda e recente de momentos de seca, parecia estar sendo redefinido em contextos lúdicos a partir de uma nova realidade de relativa oferta. Tal redefinição, contudo, implicava um processo diferenciador entre pessoas em posições sociais diversas29 que, em determinadas situações, podiam e deviam, com legitimidade ampliada, desconsiderar a máxima rotineira de não desperdiçar água. Assim, a Avenida às margens do Junco, o lugar que se fazia palco da vida pública, tornava-se a arena onde a simbologia da fartura da água sobrepujava à da carência, e o “deve ser” cotidiano da conduta econômica cedia espaço à atitude de abundância despreocupada. Tal atitude também se fazia presente, mas de forma absolutamente distinta, nas atividades diárias. Se as práticas de limpeza de casas, calçadas e carros, de regadio de plantas e quintais eram realizadas a partir da lógica da fartura, com mangueiras abertas ou baldes de água, havia a compreensão daqueles que assim o faziam de que tais hábitos não eram moralmente aprovados. Diferente do que observamos nos eventos públicos na Avenida, havia certo zelo em ocultar tais práticas. Certa ocasião, em uma das visitas feitas à casa de Vânia, contrariando o que ocorria normalmente, ela não nos chamou para entrar em sua casa e ver seu quintal; o motivo alegado: a mangueira estava aberta continuamente para molhar as plantas. A mulher, que conhecia o tema de nossa pesquisa, nos disse de forma jocosa: “na frente de vocês não posso desperdiçar água”. Esta não foi a primeira vez que presenciamos a mangueira ligada por longos períodos e sabíamos que as plantas eram molhadas quase diariamente desta forma por vários moradores.

38 Se na agenda política que demarcava a necessária economia de água a adesão local, em sua aparente homogeneização, apresentava nuanças entre atividades rotineiras e excepcionais, lúdicas e laborais, públicas e domésticas, a pauta de ações em saúde, que afinal orientou a implantação das melhorias no abastecimento de água em Granjeiro (via Projeto Alvorada e CAGECE), parecia estar ausente das preocupações de quase todos. A referência aos riscos de adoecer por meio das águas não era muito acionada, diferente de quando falavam sobre as ações de esgotamento sanitário recentemente implantado, e a avaliação dos riscos epidemiológicos do consumo das diferentes águas tampouco se fazia presente.

39 Do ponto de vista sanitário, a água a ser consumida deveria ser a que, oriunda do Junco, passava pelo tratamento da CAGECE e era distribuída para as residências. Contudo, como exaustivamente expressado em campo, esta água não era considerada de boa qualidade, continuando a água encanada a ser chamada de “água do açude”. Tal denominação indicava que sua qualidade, na opinião dos moradores, não parecia ter sido muito alterada pelo tratamento da CAGECE e, quando tal transformação era apontada, fazia-se de forma negativa em função da presença do cloro, de sua impureza acentuada e da capacidade de tornar-se suja nas caixas d’água residenciais. Em relação à água dos chafarizes, além das dúvidas sobre se receberia ou não algum tratamento que a qualificasse para o consumo humano, observamos a vulnerabilidade das bicas e também o fato de que no transporte a água entrava em contato com recipientes e mãos que não haviam passado pelos procedimentos de limpeza, conforme prescritos pelas orientações da vigilância em saúde – nem ao menos presentes na localidade. Nas casas, grande parte dos recipientes de água não tinha torneira na base, sendo a água retirada

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 50

por meio de canecas ou outros utensílios que eram imersos na abertura superior do pote, em geral mantida coberta, e consumida sem que fosse fervida ou clorada.

40 Se tais práticas são consensualmente consideradas um risco epidemiológico e sanitário, 30 isto não foi verificado nas falas dos moradores, das autoridades locais e nas mensagens das ações “educativas” da CAGECE. O meio de transporte e o armazenamento da água não eram vistos como elementos contaminadores importantes ou como pontos favoráveis à poluição da água, não havendo muita preocupação com o seu manuseio. Se o tratamento pelo qual a água do açude passara após ser de lá retirada não logrou modificar positivamente sua qualidade original, tampouco o manejo posterior da água extraída do poço da prefeitura e levada até os chafarizes parecia ter a capacidade de transformar negativamente sua pureza. Assim, esses procedimentos e a própria estrutura física dos chafarizes eram, se considerarmos as noções epidemiológicas, agravados pelo fato de os granjeirences (moradores em geral e autoridades locais e estaduais) não concebê-los como um risco a ser evitado.

41 Do ponto de vista da engenharia sanitária ou de saneamento, na opinião de vários engenheiros a quem os resultados da pesquisa foram apresentados,31 os moradores teriam razão em recusar a água da CAGECE pelo fato de o “manancial” (o Açude do Junco) de onde era captada não ser “protegido”, ou seja, ser utilizado para lazer, ser de fácil acesso para os animais etc. A dificuldade surgia quando destacávamos que qualquer proteção ao açude ou, melhor, restrição ao seu uso, embora pudesse ser considerada apropriada do ponto de vista técnico, teria de levar em consideração sua centralidade na vida local, sob o risco de não se obterem os efeitos almejados. Aqui o convívio entre preceitos técnicos e dinâmicas sociais da água já anunciava impasses que pareciam irredutíveis.

42 Se havia o reconhecimento da razoabilidade da rejeição da água tratada do Açude do Junco, em função das condições de exposição em que o açude se encontrava, a recusa à cloração da água e as queixas expressas sobre os efeitos sentidos no seu consumo eram descartadas. O argumento da eficácia química do cloro na eliminação de organismos patogênicos, aliado à alegada relação custo-

43 -benefício desse processo, parecia impermeável à realidade local que apresentávamos.32 Diante da ponderação de que esta eficácia ficava totalmente anulada pela não ingestão da água clorada, a reflexão era que se deveria investir na mudança deste comportamento por meio de ações “educativas” ou de “conscientização”, desconsiderando que a cloração era claramente reconhecida pelos moradores como uma ação que visava melhorar a água, mas não era experienciada desta forma por eles.

44 Afinal como podemos compreender tal conflito de interpretações sem desconsiderar as distintas posições e pretensões de verdade em disputa quanto às águas de Granjeiro?

Sobre o que estamos falando: lógicas, visões ou experiências no mundo?

45 Como descrito ao longo deste artigo, a investigação feita em Granjeiro nos permitiu esboçar um complexo de significados e práticas em traçados que se definiram a partir de percepções, relevâncias, relações, posições, valores, espaços e tempos orientadores da e orientados pela diversidade das águas. Tal complexo, por sua vez, nos revelou um desencontro entre ações de governo (federal, estadual e municipal) e mundo da vida

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 51

dos granjeirences: de um lado, recursos públicos foram aplicados no tratamento de água e em sua distribuição até os locais de moradia, em ações “educativas” que orientassem a população quanto ao seu uso, sendo ao mesmo tempo disponibilizado um tipo de água que requeria que os moradores a transportassem até suas casas, gratuita, mas cuja potabilidade para consumo não parecia estar claramente estabelecida; por outro, os moradores se recusavam a beber, a cozinhar e a banhar-se com a água tratada, preferindo a água duvidosa tecnicamente, mas apreciada sensitivamente.

46 Numa mirada exotizante, tudo poderia indicar certa incomensurabilidade entre mundos: o mundo das águas definido positivamente em termos técnicos não conseguia se tornar compreensível ao mundo das águas constituído em termos sensoriais e pragmáticos. Tal incomensurabilidade, como sempre tem se verificado no desenvolvimento das chamadas políticas públicas,33 haveria de ser sanada pela superação da ignorância sobre a eficácia técnica, ou seja, mais ações educativas.

47 Contudo, esta impossibilidade de tradução entre racionalidade técnica e razoabilidade experiencial foi vivida também pelos pesquisadores e não apenas pelos granjeirences. Houve por parte dos universitários, que lá permaneceram por cerca de um mês, a rejeição à água considerada tecnicamente adequada ao consumo humano pelas mesmas razões apresentadas pelos moradores: sabor, aparência, efeito sobre o corpo, animais nas margens do açude etc. Quando falamos aqui, portanto, de desencontro entre perspectivas, não estamos nos referindo à oposição nós (urbanos, esclarecidos, conhecedores) e eles (interioranos, desinformados, ignorantes). De modo análogo, a complexidade a que nos referimos acima não é devida à diferença de inserção social, econômica ou cultural, mas é constituída por engajamentos distintos no mundo particular em questão.

48 Dito de outra forma, a imersão no fluxo da vida rotineira, a distância e a proximidade com esta vida, o tipo de relação com a água e os conhecimentos sobre ela que estavam em disputa nos pareceram ser centrais à compreensão do desentendimento observado. Um desentendimento que, é relevante destacar, se dava entre pessoas que viviam em Granjeiro (inclusive os recém-chegados, como os pesquisadores) e aqueles que lá iam para desenvolver empreendimentos de política pública. Como se observou nas entrevistas com as autoridades locais, embora discursivamente se distanciassem dos demais moradores (qualificados como ignorantes), elas mantinham práticas semelhantes (como deixar a água “descansar” e elogiar a água dos chafarizes) e sabiam descrevê-las, com frequência, minuciosamente.

49 Desloquemo-nos, agora, para a polaridade que mapeamos como central ao conflito sobre os usos da água em Granjeiro. Observamos, de um lado, engenheiros da CAGECE e da Funasa, não residentes neste lugar, expondo as suas verdades absolutas sobre as relações entre saneamento (tratamento e abastecimento de água para consumo humano) e saúde (redução das doenças de veiculação hídrica), mas apartadas da experiência com a água especificamente de Granjeiro; de outro, seus moradores afirmando suas verdades sobre a relação entre as qualidades e os usos das diversas águas disponíveis, verdades estas construídas cotidianamente através do uso de suas diferentes águas. Se todo enquadramento dual da realidade é reducionista, tal estratégia visa aqui dar destaque à tensão considerada fundante no universo etnográfico investigado. Desde já assumimos a limitação de suspender a diversidade interna aos polos e às nuanças que os conectam, confiando que os ganhos a superam e a justificam.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 52

50 Assim, o que nos pareceu estar em jogo no que diz respeito às águas de Granjeiro não era a expressão de lógicas antagônicas ao lidar com esta realidade (lógica sensitiva versus lógica técnica), mas sistemas de relevância cujo maior ou menor distanciamento do manejo cotidiano das águas parecia definir o tipo de verdade acionada (Schutz, 1967, 1979). Viver em Granjeiro e provar, beber as diferentes águas, banhar-se ou cozinhar com elas – com seus sabores, transparências e aparências, profundidades, ambientes e redes de relações diferenciadas – produziriam, esta é nossa aposta interpretativa, antecipações próprias sobre suas qualidades e usos apropriados. Assim, no conhecimento à mão acionado, embora seu horizonte contivesse critérios técnicos, a experiência vivida do sabor desagradável da água tratada, do mal-estar físico por ela propiciado ou da sua maior capacidade de sujar a caixa d’água, por exemplo, revelou-se muito mais adequada para o cuidado de si e o bem viver cotidianos do que a informação de que esta água era tecnicamente mais saudável. Uma adequação que, por sua vez, parecia apropriada também para os outsiders que por lá permanecessem tempo suficiente para compartilhar este cotidiano. O desafio interpretativo que se impunha aos investigadores não se resolveria na busca por enquadrá-lo nos termos de sistemas de pensamento distintos e distintivos de coletividades.

51 Tampouco o recorte deste complexo de significados em termos de visões de mundo ou representações de mundo em conflito surgiu como apropriado, pois, tal qual a ordenação em termos de lógicas antagônicas, estas abordagens privilegiam os esquemas interpretativos (valores, sensações, sentimentos, opiniões etc.) consolidados e não permitem apreender a dinâmica central para a constituição de significados: sua relação com a ação no mundo e o potencial a ser validado ou não a cada experiência. Desta perspectiva, a análise por meio da oposição entre lógicas, visões ou representações do mundo, com sua ênfase sincrônica e atemporal, não se apresentou rentável em um contexto etnográfico que, como o da vivência das águas em Granjeiro, exigia uma abordagem que permitisse apreender o processo da negociação conflituosa em curso no dia a dia.

52 O aparato conceitual da fenomenologia voltada para a compreensão do mundo social, nos termos propostos por Schutz (1967, 1979), que permite articular a sociologia compreensiva de Max Weber com as fenomenologias de Husserl e Bergson e o pragmatismo de James,34 possibilitou-nos abordar as práticas sociais em seu poder de constituição de sentidos que se processa no ir e vir entre ações no mundo, percepções do mundo e verificação de conhecimentos sobre o mundo.35 No caso específico aqui abordado, a qualidade superior da água do Açude para o consumo, afirmada pelos especialistas (engenheiros e educadores em saúde), não logrou ser confirmada no seu uso cotidiano pelos residentes em Granjeiro, ao provocar mal-estar físico e desconfiança sensorial. Não se tratava, portanto, de crenças, representações, visões ou lógicas cuja razoabilidade não resistiria ao escrutínio científico de suas bases ou que sucumbiria ao bombardeio de informações técnicas, mas sim de um tipo de veracidade que foi estabelecida a partir dos efeitos negativos obtidos no mundo da vida quando a água clorada, oriunda do Açude, foi submetida à experiência.

53 Este contexto de negociação e conflito em torno de um procedimento novo de manejo técnico-sanitário da água nos possibilitou lembrar ainda que qualquer artefato técnico – em nossa pesquisa um processo de tratamento da água de um determinado manancial – implica uma política tecnológica sujeita à atribuição de significados destoantes e requer tomadas de decisão localizadas em múltiplos mundos hierarquizados, em termos

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 53

de valores (materiais e simbólicos), e que envolvem sujeitos (indivíduos e instituições) em distintas posições de poder. A relevância desta lembrança está em tornar visível a disputa que, uma vez resolvida, tenderia a desaparecer na naturalização própria da vida cotidiana – mas que nesta não se esgotaria, podendo vir a reverberar e a ganhar novas traduções, inclusive nas teorias sociais.36

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Manuel Correia de. 1986. “A invenção do estado e a seca no nordeste do Brasil”. Revista de Economia Política, v. 6, n. 4, out.-dez.

BARBOSA, José Policarpo de Araújo. 1994. História da saúde pública do Ceará: da Colônia a Vargas. Fortaleza: Edições UFC.

CURTIS, Valerie & CAIRNCROSS, Sandy. 2003. “Effect of washing hands with soap on diarrhoea risk in the community: a systematic review”. Lancet Infectious Diseases, 3(5):275-281.

DAVISON, Anna. 2006. “Morte como fator poluidor: o caso de Granjeiro, CE”. Monografia de graduação, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília.

DUARTE, Renato. 2001. “Seca, pobreza e políticas públicas no nordeste do Brasil”. In: Alicia Ziccardi. Pobreza, desigualdad social y ciudadanía. Los límites de las políticas sociales en América Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/pobreza/duarte.pdf. Acesso em: 10/07/2009.

GERSCHMAN, Sílvia. 1995. A Democracia Inconclusa: Um Estudo da Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz.

HARMAN, Graham. 2010. “Thecnology, objects and things in Heidegger”. Cambridge Journal of Economics, 34:17-25.

HOCHMAN, Gilberto. 1998. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec.

HOWES, David. 1991. The varieties of sensory experience. A sourcebook in the anthropology of the senses. Toronto: University of Toronto Press.

LIMA, Nísia T. et al. 2005. Saúde e Democracia: história e perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

MEYER, Sheila T. 1994. “O uso de cloro na desinfecção de águas, a formação de trihalometanos e os riscos potenciais à saúde pública”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 10(1):99-110, jan./ mar..

MINAYO, Cecília de S. & MIRANDA, Ary C. (orgs.). 2002. Saúde e ambiente sustentável: estreitando nós. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz..

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Avaliações de impacto na saúde das ações de saneamento: marco conceitual e estratégia metodológica. Organização Pan-Americana da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 54

MOURA, Luís Cláudio Rocha H. 2010. “Entrando água na política: saneamento, representações e poder em uma pequena comunidade do Cariri”. Monografia de graduação, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília.

PINHEIRO, Maria Evânia C. de Brito. 1992. Retalhos do Cariri: Granjeiro 1910-1992. Fortaleza: Multigraf Editora.

PINTCH, Trevor. 2010. “On making infrastructure visible: putting the non- to rights”. Cambridge Journal of Economics, 34:77-89.

PORCELLO, Thomas et al. 2010. “The reorganization of the sensory world”. Annual Review of Anthropology, 39:51-66.

RIBEIRO, Rafael Winter. 2002. “A construção da seca como problema: administração pública e representações da natureza durante a seca de 1877/1879 no Ceará”. In: Antônio Carlos de Souza Lima (org.). Gestar e gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Núcleo de Antropologia da Política/ UFRJ.

SCHUTZ, Alfred. 1967. The phenomenology of the social world. Evanston: Northwestern University Press.

____. 1979. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.

SHORE, Cris & WRIGHT, Susan (orgs.). 1997. Anthropology of Policy. Critical perspectives on governance and power. London: Routledge.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos de & MACEDO E CASTRO, João Paulo. 2008. “Política(s) Pública(s)”. In: Osmundo Pinho & Livio Sansone (orgs.). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia/ Editora da Universidade da Bahia.

STRANG, Veronica. 2004. The meaning of water. Oxford: Berg.

TEIXEIRA, Carla C. & SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2010. “A Antropologia da Administração e da Governança no Brasil: área temática ou ponto de dispersão?”. In: Carlos B. Martins & Luiz Fernando D. Duarte (orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil. Antropologia. São Paulo: Instituto Ciência Hoje/ Editora Barcarolla/ Discurso Editorial.

TEIXEIRA, Carla C. et al. 2010. “Percepções e Usos da Água em Pequenas Comunidades: Uma Perspectiva Antropológica”. 5º Caderno de pesquisa em engenharia de saúde pública / Fundação Nacional de Saúde. Brasília: Fundação Nacional de Saúde.

WHITEFORD, Linda & Whiteford, Scott (eds.). 2005. Globalization, water, and health: resource management in times of scarcity. Santa Fé: School of American Research Press.

NOTAS

1. Pinheiro, M. (1992:106). Na ocasião da implementação oficial de Granjeiro como município, durante as comemorações de 1958, conheceu-se uma “Marcha”, de autoria de seu morador e comerciante José Dantas, na qual se cantava esta estrofe de exaltação à cidade. 2. Cícero Romão Batista, o padre Cícero, nasceu no Crato, em 1844, e faleceu em Juazeiro do Norte, em 1934. Conta-se que em 1889, durante uma comunhão, a hóstia por ele consagrada sangrou na boca de uma beata e o povo considerou o fato um milagre. A notícia espalhou-se e Juazeiro passou a ser visitada por peregrinos, interessados nos poderes do padre. O Vaticano, por sua vez, considerou o tal milagre um embuste e sus- pendeu-o. Posteriormente, padre Cícero ingressou na política e chegou a ser prefeito de Juazeiro. Após sua morte, sua fama e seus feitos foram divulgados entre as camadas popu- lares e, embora ainda banido pela Igreja, tornou-se, de

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 55

fato, um santo entre os sertanejos. Em 2001, padre Cícero foi eleito o Cearense do Século, em pesquisa organizada pela Rede Globo e a TV Verdes Mares. Até hoje a Igreja não o reabilitou. 3. A questão da falta de água é essencial para a compreensão do valor da água no dia a dia, como também do seu valor como “moeda” para políticas públicas. Adotamos neste artigo o entendimento da seca como um fato social, político, não apenas fruto de condi- cionantes naturais (vide Andrade, 1986; Ribeiro apud Lima, 2002). 4. Além da sede, foco da análise aqui realizada, o município conta com outros sítios (o município oficialmente não tem distritos) que também surgiram da fixação de famílias vindas de Barbalha ou Crato, em cuja diocese está o município, exceção feita ao Sítio Serrinha (maior que a sede em número de habitantes, mas sem sua centralidade na vida do município). Os moradores deste sítio descendem de famílias de Altos, no Piauí, que foram para o Cariri em busca do padre Cícero, que lhes teria indicado o local para se fixarem. 5. Este fio condutor se revelou profícuo pelo fato de o município ter sido alvo de ações governamentais (numa articulação entre governos federal e estadual) ligadas à in- fraestrutura de abastecimento de água e que incluíram campanhas “educativas” sobre o uso adequado das águas do Açude do Junco que abasteciam as residências. 6. A pesquisa de campo em Granjeiro foi realizada pelos pesquisadores Anna Davison e Luís Cláudio Rocha Henrique de Moura, sob a coordenação de Carla Costa Teixeira, en- tre julho e agosto de 2005, tendo sido precedida por uma breve pesquisa exploratória em 2004 efetuada por Anna Davison. A realização do trabalho de campo em 2005 integrou um projeto de pesquisa mais amplo, e contou com o apoio da Fundação Nacional de Saúde por meio de edital público de pesquisa. Para maiores informações sobre a preparação e os resultados desta pesquisa, ver Ministério da Saúde, 2004 e Teixeira et al., 2010. 7. Este foi o caso de um grupo de uns 10 jovens de Caririaçu, cidade próxima, com aproximadamente 15.000 habitantes, que haviam ganhado um concurso de quadrinhas e recebeu como prêmio um dia passado à beira do Açude. Nos finais de semana, o Junco recebe algumas visitas de banhistas de outras cidades e moradores. À noite, quando não há festas em outros sítios ou em outras cidades, ocorre um movimento maior em seu princi- pal bar (a Churrascaria), com caixas de som com forró a todo volume. 8. No livro Retalhos do Cariri (Pinheiro, 1992), existe um subcapítulo sobre os mitos do açude. Em nossa pesquisa encontramos alguns. Um destes mitos é sobre um bebê que, ainda pagão, fora jogado pela mãe no açude. Por não ser batizada, essa criança tornou- se uma cobra muito grande, como costumava ser enfatizado pelos moradores. Além de grande, esta cobra também era considerada perigosa. De acordo com depoimentos, exis- tiam casos de ataques do réptil às pessoas no Açude. Uma das informantes acabara de fazer recentemente um trabalho para a escola no qual um capítulo era denominado “Mistérios sobre as águas de Junco”. 9. Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação do município. Entrevista dada em 17 de julho de 2005. 10. Segundo se pôde averiguar, a água custava na ocasião R$ 9,30 (nove reais e trinta centavos) se o consumo fosse até 10 mil litros. 11. O transporte de dois baldes ou latões, carregados nas pontas de uma madeira sobre os ombros, custava cinquenta centavos (julho/agosto de 2005). 12. Não conseguimos obter junto aos moradores e às autoridades locais informações sobre a capacidade de armazenamento das cisternas. O dimensionamento destas requer a consideração de variáveis, tais como extensão do telhado, índice pluviométrico, número de residentes, hábitos de consumo e custo; podendo variar de 420l a 12.000l (Terry s/d, disponível em: http:// www.abcmac.org.br/files/simposio/3simp_terrytomas_escolha-decisternas.pdf. Acesso em 02/02/2012). 13. Dona Léa residia na sede do município, ou seja, dispunha de água encanada em sua casa e também gozava da proximidade dos chafarizes. Os nomes reais dos moradores de Granjeiro foram

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 56

substituídos por nomes fictícios; apenas as personalidades públicas tiveram suas denominações mantidas. 14. Outra questão de fundo econômico levantada foi a duração do sabão que, segundo relatos, poderia durar até 4 vezes menos se fosse utilizado em água encanada. Soubemos que o preço da água iria aumentar na época de 30 centavos para 40 centavos o m³. 15. Para os interessados na discussão antropológica sobre as percepções sensórias na experiência de diferentes formações sociais, ver a coletânea já clássica organizada por Howes (1991) e, para uma apresentação mais atual deste campo de discussão, ver Porcello et al. (2010). No que se refere a um aprofundamento das várias dimensões da água em um contexto particular, consultar Strang (2004). 16. Tal conflito de informações não logrou ser resolvido em campo, pois não conseguimos ter acesso a medições da qualidade da água do poço ou a algum técnico que fosse por ela responsável. Conseguimos apenas o resultado da análise da água do açude propiciada pela CAGECE. 17. Poucos dias antes, tivemos a visita de um “agente da SUCAM” que veio inspecionar a casa, especificamente a caixa d’água, onde colocou uma substância preventiva de larvas de mosquito. Depois do trabalho, afirmou que estava tudo bem com a caixa d‘água. No dia seguinte, quando fomos cozinhar, aparamos na panela uma “pequena lesminha” junto com a água colhida da torneira. 18. Ouvimos falar também de um método para manter a água da caixa livre de larvas de mosquito, que consistia em colocar ali pequenos peixinhos (“piabinhas”) para comerem as larvas depositadas nesse tipo de reservatório. 19. De maneira geral, as pessoas não ferviam a água e era raro ver casas que possuís- sem filtro de barro. Um dos motivos prováveis da ausência de filtros era o seu preço que, à época, dependendo do tamanho, custava em torno de R$ 40, R$ 60. 20. O cemitério da sede Granjeiro está localizado na zona central da cidade, pouco acima da igreja, em uma área em um nível muito mais alto do que o nível do açude, pro- vavelmente derramando suas águas de chuva no reservatório. Segundo Retalhos do Cariri (Pinheiro, 1992), o cemitério foi fundado em 1877, quando a “Seca dos Dois Setes” as- solou a região, produzindo um elevado número de vítimas. Antes desta data, os mortos de Granjeiro eram levados a pé até as cidades vizinhas, principalmente para os cemitérios de Lavras e Várzea Alegre. Em 1818, houve uma gripe, forte e generalizada, denominada bailarina, que causou grande mortandade entre a população local. Os túmulos mais antigos que encontramos são datados da segunda década do século XX. Hoje, não há mais espaço para novas lápides, é já há uma discussão quanto à construção de um novo cemitério. Para maiores reflexões sobre a poluição por morte em Granjeiro, consultar Davison (2006). 21. A expressão “melhoria sanitária domiciliar” refere-se à construção de banheiros (vaso sanitário e pia) com caixa d’água e esgotamento (fossa séptica) próprios. 22. Uso o termo “educativo” por este ser utilizado no município, mas não concorda- mos ser ele o melhor termo a ser empregado. 23. Foram realizadas cinco entrevistas com representantes do poder público e cinco grupos de discussão (Fishman, 1977) com habitantes do município. O primeiro grupo ocorreu em 18/07, contando com a participação de três homens adultos e quatro mulheres, além de dois adolescentes que encenaram uma peça. Do segundo, em 28/07, fizeram par- te sete moças e um rapaz, todos adolescentes. O terceiro grupo foi realizado na Serrinha, em 30/07, comparecendo quatro homens e três mulheres. O quarto encontro ocorreu no Colégio Gonzaga Mota, no dia 04/08, e teve a presença de três professoras, quatro alunos e duas alunas. Vimos também uma fita de vídeo VHS, na qual tivemos a oportunidade de assistir a um amanhecer em tempos de seca. 24. Para maiores informações gerais sobre o Projeto Alvorada, consultar http:// bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/projeto_alvorada.pdf

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 57

25. O tema do saneamento e sua vinculação com políticas públicas possui uma rica bibliografia. Entre alguns trabalhos consultados, destacamos os de Barbosa, 1994; Duarte, 2001; Lima, 2005; Gerschman, 1995; Ribeiro apud Lima, 2002; Hochman, 1998. 26. É notável como o material distribuído e trabalhado com a população infantiliza a percepção do adulto, trazendo figuras pouco explicativas e direcionadas a crianças como, por exemplo, uma cartilha com personagens coloridos no estilo revista em quadrinhos, cuja capa apresenta o título “Pingo e Gota D’água em Esquadrão contra o Desperdício”. 27. Tivemos a oportunidade de presenciar uma vaquejada em Várzea Alegre. A festa teve a duração de uma semana e estava bastante cheia. 28. Infelizmente, não tivemos a oportunidade de observar o evento, pois este acon- teceria em setembro de 2005. No entanto, soubemos mais tarde que o concurso foi sus- penso, devido às disputas políticas em torno da cassação do prefeito. 29. Para uma análise sobre o uso da água e a construção de suas representações como capital político em Granjeiro, vide Moura (2010). 30. Para uma discussão específica sobre a relevância de lavar as mãos para a saúde humana, ver Curtis & Cairncross (2003); para reflexões mais abrangentes sobre a relação entre saúde e ambiente, consultar, para o Brasil, Minayo & Miranda (2002) e, para as conexões entre água e saúde em diferentes contextos, ver Whiteford & Whiteford (2005). 31. Referimo-nos aos engenheiros da Fundação Nacional de Saúde que participaram do comitê de avaliação dos relatórios parcial e final desta pesquisa (financiada através de edital pela Funasa) e a alguns engenheiros com quem tivemos a oportunidade de discutir a pesquisa em Fortaleza, um deles alto funcionário da CAGECE. 32. É importante aqui mencionar que há controvérsias sobre os efeitos da cloração da água para a saúde humana no próprio campo disciplinar da epidemiologia e da engenharia sanitária ou da saúde pública (Meyer, 1994). 33. Sobre o desenvolvimento de uma antropologia das políticas públicas, consultar Shore & Wright (1997). Para uma discussão desta categoria e seus desdobramentos na antropologia brasileira, ver Souza Lima & Macedo e Castro (2008), e Teixeira & Souza Lima (2010). 34. Agradecemos a generosidade de Igor Zeredo de Cerqueira por ter compartilhado conosco suas reflexões sobre as obras de William James e Henri Bergson. 35. Para uma reflexão no âmbito da fenomenologia da técnica mais ancorada na obra de Heidegger, consultar Harman (2010). 36. Inspiramo-nos aqui em Pinch (2010) e sua crítica à abordagem de Latour no que se refere à técnica como um processo de delegação aos não humanos de uma forma de morali- dade formalmente exercida por humanos, pois esta abordagem desconsideraria o processo de deliberação entre humanos que se encontra na origem da técnica.

RESUMOS

Este artigo apresenta uma análise dos usos e das percepções da água em Granjeiro (CE), localidade que conta com uma interessante pluralidade de ofertas de águas. Tal pluralidade permitiu que os granjeirences formulassem estratégias diversificadas para a sua utilização, dependendo da fonte, da localidade no município e da estação do ano, ou ainda das experiências sensoriais advindas do manejo das águas e que levavam à atribuição de adjetivos para cada tipo de água e findaram por determinar seus usos. Estas variáveis sensoriais, no entanto, não são reconhecidas pelo serviço

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 58

técnico de saneamento do estado, o que gerou desentendimentos. Para dar conta do descompasso entre moradores e responsáveis técnicos pelas águas, este artigo lança mão de uma perspectiva fenomenológica que permite perceber como a proximidade com o manejo cotidiano das águas ou o distanciamento dele define o tipo de verdade acionada pelos diferentes atores, já que torna possível compreender as práticas sociais em seu poder de constituição de sentidos, que se processa no ir e vir entre ações no mundo, percepções do mundo e verificação de conhecimentos sobre o mundo. Viver em Granjeiro e lidar com as diferentes águas produziram, esta é a nossa aposta interpretativa, antecipações próprias sobre suas qualidades e usos apropriados.

This paper analyses the uses and perceptions of water in Granjeiro, Ceará, a city marked by an interesting plurality regarding water supplies. Such plurality allowed the people from Granjeiro to develop diversified strategies to use water according to its source, locality, the season of the year and even the sensorial experiences resulting from its usage, which have led to the attribution of adjectives to each type of water and eventually determined its uses. Those sensorial variables, however, are not recognized by the State’s sanitation technical service, resulting in misunderstandings. In order to bridge the gap between dwellers and technicians responsible for the water, this paper makes use of a phenomenological perspective that allows the understanding of how the proximity with the daily use of waters or the detachment from that use defines the kind of truth recalled by different actors, since the use of water will make it possible to understand the social practices and their ability to constitute meanings that are processed in the to-and-fro between actions in the world, perceptions of the world and the verification of knowledge regarding the world. Living in Granjeiro and dealing with its different waters – according to our interpretative bid – produced particular assumptions regarding its qualities and adequate uses.

ÍNDICE

Palavras-chave: hierarquia das águas, experiência sensória, fenomenologia, política pública, Brasil Keywords: water hierarchy, sensory experience, phenomenology, public policy, Brazil

AUTORES

CARLA C. TEIXEIRA Universidade de Brasília

LUÍS CLÁUDIO MOURA Doutorando do Departamento de História, UnB

ANNA DAVISON PPGAS, UnB

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 59

Gestos, águas e palavras na pesca amazônica

Carlos Emanuel Sautchuk

NOTA DO EDITOR

Recebido em 03/09/2011. Aceito em 12/09/2011. Carlos Emanuel Sautchuk é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Realiza pesquisas sobre pesca, caça e sociedades caboclas amazônicas. Também empreende estudos no campo da antropologia da técnica e do corpo. E-mail: [email protected] Essa visão [estática do espaço geográfico] é inaceitável porque o conteúdo técnico do espaço é, em si mesmo, obrigatoriamente, um conteúdo em tempo – o tempo das coisas [...] Milton Santos (2008 [1996]:46)

1 As ciências sociais aliam-se à literatura e ao cinema ao concederem ao meio hídrico lugar de destaque na compreensão dos pescadores, de modo geral, e dos ribeirinhos amazônicos, em particular. Provavelmente não consiste exagero dizer que esses grupos são em boa parte das vezes caracterizados em função da relação com a água. No caso da antropologia, o vínculo com o meio hídrico aparece em geral como um aspecto definidor dos modos de vida, a tal ponto ser comum que surja como traço característico de uma população. Paradoxalmente, o mesmo movimento que assume e valoriza essa centralidade – chegando a instituí-la como critério de tipificação – parece muitas vezes induzir a preocupação mais detalhada do pesquisador para outros temas que não a relação com a água. Ainda que trazendo conclusões valiosas, muitas dessas abordagens acabam considerando tais sociedades segundo alguns pressupostos demasiado genéricos. Um dos exemplos é a insistência em privilegiar como estratégia compreensiva, muitas vezes de modo implícito, o contraste do universo haliêutico com o mundo da terra firme (e com o universo agrícola ou urbano, comumente). Talvez isso

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 60

derive do fato de que as teorias sobre espaço, de modo geral, o assumem enquanto espaço terrestre. É bem verdade que as etnografias demonstram certa difusão das elaborações relativas aos ambientes terrestre e aquático, sugerindo uma dicotomia. Mas eleger tal contraste como oposição central pode ofuscar a apreciação de configurações locais mais nuançadas sobre o meio hídrico e seus sentidos.

2 Tendo em vista essa preocupação, abordo a relação com o meio hídrico de dois grupos de pescadores que habitam a vila Sucuriju, situada na região do estuário do Amazonas – os laguistas e os pescadores costeiros. A proposta aqui desenvolvida considera a água enquanto ambiente inspirada em duas ideias, cujos traços principais foram apresentados por Marcel Mauss no Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós (2003 [1906]). Em primeiro lugar, trata-se de assumir também para o meio hídrico a seguinte proposição de Mauss: “o solo só age misturando sua ação à de inúmeros outros fatores dos quais é inseparável” (ibidem:428). Isto implica, por um lado, que o ambiente não é inerte; por outro, que sua forma de ação só existe integrada a outros aspectos, como a pesca, o que aponta para a necessidade de se considerarem ambiente e técnica num mesmo conjunto.

3 É certo que ideia semelhante aparece em outras tradições do pensamento antropológico, como faz ver Julian Steward (1955), ao defender que o ambiente deve ser interpretado a partir dos aspectos relevantes para uma dada cultura, segundo sua tecnologia. Contudo, observe-se que, ao valorizar os fatores geográficos negando que eles tenham um sentido fora da relação que a sociedade estabelece com ele, Mauss não só rejeita difusionismos e determinismos, como também fixa um paralelismo entre a vida social e natural: “o movimento que anima a sociedade é sincrônico aos da vida ambiental” (ibidem:473). Ainda que os termos usados sejam menos acionados contemporaneamente, o deslocamento empreendido por Mauss no sentido de privilegiar um tratamento homólogo na consideração da relação entre sociedade e ambiente guarda todo o seu vigor.1

4 Pode-se, é bem verdade, detectar intento similar em Evans-Pritchard, quando defende que o idioma Nuer é um “idioma bovino”, ou seja, a forma como esse povo nilota entende o mundo e a si mesmo passa pelos termos que regem a vida do gado. Ou ainda quando afirma que os Nuer e o gado formam uma única comunidade. Mas também neste ponto Mauss guarda uma singularidade a ser notada. Ele estava interessado não em evidenciar o tipo de sociabilidade entre humanos a partir de sua relação com aspectos do ambiente, mas em evidenciar o caráter generativo dessas relações. Para Mauss, “cada estação serve para definir todo um gênero de seres e de coisas” (2003:480). Além desse pressuposto de ordem ontológica, também adoto no presente trabalho o princípio metodológico seguido por Mauss ao comparar a mesma sociedade em duas estações, usando o contraste para conhecer o papel de diferentes formas de relação com o ambiente. Trata-se aqui, porém, de contrastar dois modos sincrônicos de relação com o meio hídrico estuarino empreendidos por uma população que habita o mesmo local, no mesmo contexto econômico, histórico e social, mas divididos entre especialistas nos espaços costeiro e lacustre.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 61

As águas do Sucuriju

5 Com mais de 500 habitantes, a Vila de Sucuriju (ou, simplesmente, o Sucuriju) está localizada na foz do rio homônimo, a norte do estuário do Amazonas, no Cabo Norte, costa do estado do Amapá, Brasil.

Figura 1: Mapa da região do estuário do rio Amazonas

6 Sendo continental, ela apresenta características insulares, já que a ligação com outras vilas e centros urbanos ocorre apenas através do mar (em ao menos 12 horas de viagem). Isto porque a região em torno – compreendida pela Reserva Biológica do Lago Piratuba, criada em 1980 – é composta por mangues, várzeas e lagos, que praticamente inviabilizam o contato com os campos do interior do estado.

7 Nos lanços (marés de sizígia) a água salgada cobre todo o terreno, chegando a encontrar, nos meses de inverno, o mangue que fica atrás da Vila. Portanto, todas as construções são elevadas cerca de um metro e meio em relação ao solo. Essa altura diminui periodicamente e deve ser restabelecida com a elevação da ponte e das demais construções (todas em madeira), já que “a terra de ano a ano ela tem uma diferença, ela cresce”, conforme se diz localmente, sintoma este da constante transformação física desta região litorânea (cf. Costa, 1996; Silveira, 1998 e Gabioux, 2002).

8 A água do rio é salobra, em função da forte e constante entrada das marés, e as águas da chuva é que são utilizadas para o consumo. No inverno as precipitações são armazenadas em duas cisternas para suprir as necessidades do período de estiagem, de agosto a dezembro, através de um sistema de cotas semanais. Em 2009 começou a funcionar um sistema de “fabricação” de água através da dessalinização realizada na própria vila. A água é um tema muito importante no Sucuriju pela dificuldade de obtê-

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 62

la para o consumo, mas também porque é um elemento central na diferenciação dos três ambientes que compõem a cosmologia local – a Vila, o Lago e o Mar.

9 O mito de origem do Sucuriju refere-se diretamente ao modo de experimentar o tempo na vila, que conjuga ritmos diferentes, devido ao posicionamento da vila entre o mar e os lagos. No evento primevo, a Cobra-Grande, animal pertencente ao lago – domínio das águas paradas – desce para abrir a boca do rio, possibilitando a entrada da maré e dando origem ao trânsito e ao comércio necessários à fundação da vila. O fato de que a vila surge juntamente com o rio, ambos levando o nome do animal mítico, indica a importância da relação entre o lago e o mar em sua configuração. Se o rio Sucuriju é, em toda a sua extensão, espaço de encontro da água doce, limpa e calma – que desce vagarosamente dos lagos – com a água salgada, barrenta e movimentada – que sobe em golpes vigorosos a partir do mar – a Vila do Sucuriju expressa em seu cotidiano as influências destes dois ritmos diferentes. Além do ambiente, das técnicas e do aporte econômico distintos, o lago e o mar envolvem temporalidades particulares, que se fazem sentir no dia a dia. Ademais, esses dois ambientes são fundamentais para a vida local, pois a especialização dos pescadores nas atividades lacustres e costeiras se reflete na singularidade de suas formas de socialidade.

10 O rio Sucuriju assume dimensões e propriedades variáveis, não se definindo pela estabilidade de sua margem ou direção da corrente. Trata-se, na verdade, de uma passagem ( furo), por onde a água dos lagos escorre para o mar e onde as marés adentram, percorrendo toda a sua extensão, até o trecho mais próximo da região de lagos (as cabeceiras), sem ultrapassar este ponto. A vazão dos lagos – que alimenta o rio com água doce, limpa e grossa – é contínua, tendo variação significante em escala anual, marcada pelas estações verão e inverno que remetem à quantidade de chuvas que alimentam a região de lagos. Já a entrada das marés rio acima, trazendo água salobra, barrenta e fina, combina dois ciclos – um diário (cheias e vazantes) e outro quinzenal (lanços e mortas) – que implicam intensidades e direções particulares de corrente.

Espaço, tempo e técnica

11 O modo como a conjunção entre esses fluxos hídricos se apresenta no Sucuriju não deve, porém, ser tomado meramente como o resultado de alterações físicas, mas através do tipo de interação que se estabelece em cada uma dessas situações. Ou seja, é necessário tratar as propriedades hídricas em associação com as principais atividades desempenhadas, que são as expedições de pesca no lago e na costa e os deslocamentos fluviais, lacustres e costeiros. Afinal, pescadores e caboclos elaboram sobre a água não apenas porque vivem perto dela, mas porque seus principais modos de relação estão integrados a ela.

12 Nesse ponto, recorro ao geógrafo Milton Santos para articular a ênfase na ação na compreensão do tempo e do espaço com a proposição maussiana – da qual este texto parte – a respeito do aspecto relacional do meio geográfico. Santos é explícito quanto à necessidade de se fazer uma geografia da ação, já que “é o espaço em seu conjunto que redefine os objetos que o formam, por isso o objeto geográfico está sempre mudando de significação. Ele é instável e seu sentido aparece nas situações pragmáticas” (Santos, 2008:97). Explique-se que isso não remete obrigatoriamente a alterações físicas, pois a ênfase do argumento está no fato de que o espaço é um sistema de relações (ibidem:29).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 63

13 Por isso, Santos sublinha a necessidade de se ter em conta a técnica ao tratar do espaço, considerando que tal medida leva a dois movimentos importantes tanto para a geografia como para as ciências sociais: tomar o humano e o não humano inseparavelmente e rever dicotomias tão tenazes quanto incômodas, como natureza/ cultura e objetivo/subjetivo (ibidem:24). Ele pensa ainda que a noção de técnica: a) permite empiricizar o tempo, o que é fundamental ao intento etnográfico; e b) se encontra com a noção de meio geográfico, visto que este só pode ser compreendido como um fluxo de ações e objetos. É o caso, entretanto, de notar a definição que Santos dá ao termo: “As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (ibidem:29). Seguindo a concepção maussiana sobre o tema (cf. Mauss, 2009), Santos enfatiza que não está se referindo às técnicas no sentido instrumental-utilitário (ou tecnologias, no jargão anglo-saxão que se difunde no Brasil), e sim ao fenômeno técnico, como conjunto mais amplo de fatores, acrescentando que essa forma de conceber o tema ainda não foi completamente explorada (ibidem:29 e 47).

14 Retomo assim a pista etnográfica já indicada, apontando para a necessidade de se abordar a realidade técnica da costa e do lago para compreender o sentido da água enquanto ambiente ou, numa formulação mais genérica, para dar conta do espaço e do tempo associados ao meio hídrico. Pensando a partir da abordagem de Santos, a simples constatação de que o ambiente costeiro tem propriedades constitutivas distintas das do lacustre seria insuficiente para explicar, por exemplo, as formas de vida dos diferentes pescadores e as semelhanças e as proximidades na maneira com que se referem ao lago e à costa. De fato, no lago, quando a água é apreciada, diz-se que ela está bonita, significando que ela reúne condições de turbidez e quietude diretamente relativas à interação perceptiva entre laguista e pirarucu. Na costa, as propriedades acionadas não têm fundamento estético, mas são relativas à hidrodinâmica, afinal, a água pode estar macia (sem ondulações), e ela quebra (muda de direção) ou puxa (acelera a correnteza). O mais significativo, contudo, é que termos comuns, como buiado e fundo, são acionados diferentemente no lago e na costa, justamente porque, mesmo sendo substantivos, dizem respeito a processos distintos.

15 Antes de detalhar estes aspectos, digamos a título de síntese que isto envia a uma constatação mais geral: se nos lagos a água integra uma espécie de semiótica, num jogo de percepções mútuas entre os seres, na costa diríamos que o fluxo hídrico compõe uma cinética, constituída de interações físicas entre os corpos. Como se pode notar, e em que pese o propósito comparativo, o arranjo (termino)lógico acionado para a aproximação antropológica a cada um destes contextos deve ser distinto. Assim, é possível comparar conjuntos de relações, e não elementos isolados, evitando recair no recurso analítico corriqueiro em estudos sobre cultura material e ecolologia, que consiste em tomar a materialidade a partir dos termos ocidentais, adicionando-lhe um plano simbólico que seria, este sim, propriamente nativo. Mas tal distinção na abordagem das situações etnográficas do lago e da costa não pode constituir empecilho, visto que, como expressou Peirano (1992), na antropologia a pesquisa de campo tem implicações nas escolhas e nos desenvolvimentos teóricos. Neste caso, os dois ambientes hídricos expressam relações distintas, inclusive nos termos locais, demandando, portanto, estratégias particulares de tradução antropológica.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 64

A água como interface comunicativa

16 Lago é uma expressão que remete a uma grande região alagada, no interior da Reserva Biológica do Lago Piratuba, onde existem vários lagos e enseadas com nomes diferentes e de onde surgem igarapés e rios, como o próprio Sucuriju (figura 2). A principal referência temporal no lago são os astros (noite/dia), e não a maré, pois a água não se movimenta. Há uma variação de cerca de dois metros em seu nível entre a época seca e a chuvosa, mas a água apresenta um fluxo que incide no trabalho da pesca, como no mar. Apenas na época da seca as marés lançantes invadem os lagos periféricos, deixando a água salobra. Nas palavras de Macó, “no Lago a maré é parada, a água não corre. Lá você pode andar toda hora; qualquer hora é hora”.

Figura 2

17 O Lago, além de estar associado à ancestralidade da Vila – é onde habitavam os Antigos – é reputado um local extremamente aprazível em função de sua beleza, para a qual concorrem com grande importância as características de sua água – sem sal, sem barro e sem movimento. Ali há sempre água potável, em contraste com a vila, onde a água do rio é salobra em boa parte do tempo. Se, em face do rio e da costa, o lago é considerado o lugar da fruição estética, do conforto, ele é também o domínio das visagens, das malinezas, e é onde existe a possibilidade de confronto com os animais – não se negligencia jamais o risco da agressividade do jacaré-açu (Melanosuchus niger), do sucuriju (Eunectes murinus) e da onça (Pantera onca). No lago, o trabalho se desenrola em associação com a luminosidade, o calor, o vento e o comportamento dos animais. Os horários preferenciais para topar (encontrar) o pirarucu são o início da manhã e o fim da tarde, em função dos hábitos do peixe, mas sobretudo porque nesses períodos o vento diminui e os sinais na superfície da água podem ser mais bem distinguidos. A captura é realizada em canoas (montarias) a remo para duas pessoas, utilizando especialmente o arpão, e o peixe mais importante é o pirarucu (Arapaima gigas). A forma de captura também põe em relevo o papel central do arpoador (ou proeiro), já que ela

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 65

resulta de seu duelo pessoal com o pirarucu, que envolve enfrentamento, esperteza e sedução. Assim como vários animais do lago, a exemplo do jacaré, do sucuriju, da piranha, do macaco, o pirarucu é dotado de personalidade singular, caracterizada pela interação ativa e criativa com o laguista, ainda que não o ameace fisicamente como os dois primeiros. Sua capacidade para fugir e lograr o laguista ou, inversamente, o fato de se entregar em alguns momentos, tem como correlato o engajamento pleno do arpoador nesse jogo de percepções e habilidades. Na proa da montaria, ele se mantém atento aos sinais do peixe, traçando estratégias e guiando o piloto através dos seus sinais, no mais absoluto silêncio. Chegado o momento oportuno, ele se ergue de haste em punho e lança, para em seguida aproximar-se do peixe através da arpoeira, a corda presa ao arpão. Eis o gesto principal dessa atividade de captura, entre pesca e caça, que consiste no paradigma das relações estabelecidas no lago.

18 Observe-se que a água dos lagos é turva, e que o laguista deve estimar a posição do pirarucu com base em sinais emitidos por seu comportamento: a siriringa, bolhas brancas que emergem conforme o peixe se arrasta na matéria orgânica do fundo; o carculo, ondulações na superfície quando ele se desloca a meia água; a mexida da vegetação quando o peixe arrasta plantas aquáticas; e o buio, ação com um som característico, quando o pirarucu vem à superfície para efetuar a necessária respiração aérea. São vários os tipos de buio, classificados de acordo com o comportamento do peixe: brabo, dobrado-manso, bem manso etc.

19 A caçada ganha outra intensidade a partir do momento em que o laguista identifica o pirarucu através destes sinais. O objetivo é encontrar a melhor aproximação e posição para lançar a haste sem ser percebido pelo peixe. Se, porém, o animal nota a presença do pescador, então todos os cuidados para passar despercebido são suspensos. A situação é outra, pois o peixe tentará fugir e é preciso persegui-lo. Este confronto pode ser considerado uma espécie de duelo na medida em que o laguista respeita o pirarucu, valorizando suas capacidades e considerando-o um rival capaz de vencê-lo. Ele se defende. Deus o livre! as vez você tá enxergando ele assim, “pô, eu acerto esse rumo aqui”, no que você solta a haste das mão, ele já dobrou, já dobrou, já não pega mais nele! O bicho é tão veloz, o pirarucu, que é um peixe muito péssimo mesmo. [...] Na tua vista você tá enchergando que [ele] vai andando, vai atravessado, vai de proa, vem de rabo, mas se tu for arpoar ele, no choque da tua arpoada, se tu não souber arpoar, ele já se espantou lá na frente, já não pega mais, vai pegar só o rasto dele. Ele já foi muitos tempo. Na água clara, um pirarucu de buio, na água clara, é muito ruim de arpoar ele. É ruim porque o peixe quando ele buia, ele buia manso, a gente levanta aqui com força, é levantar e ele bater logo lá, não deixa nem a gente soltar a haste da mão. Já bateu, já percebeu a gente aqui.[...] Ele vê no choque da montaria [na água] que a gente levanta, ele conhece. Pirarucu é! As vez a gente arpoa, que quando a gente solta a haste da mão... Pirarucu buia como essa vara aí ó [a cerca de 15 metros], a gente levanta daqui, quando a gente vai soltar a haste da mão, que já vai enviar a haste, ele já bateu lá, a haste já não pega mais nada. [...] Ele ouve, não pode falar. Por isso que a gente não fala quando a gente topa um pirarucu, por causa disso. Ele é muito vivo, ele sente. A intenção dele é só lograr a gente. Pirarucu é. Ele não tem outra saída pra ele se não for lograr a gente.

20 Não fossem o bastante a aguçada sensibilidade e a fineza (esperteza) do pirarucu, a arpoada apresenta ainda duas nuances. É que durante a trajetória do arpão o peixe também se desloca, fazendo com que o lançamento deva dirigir-se a um ponto futuro, onde o peixe estará, e contar com sua convergência. Além disso, o arpão não perfura sua carne, a menos que o peixe se espante, torcendo o corpo e abrindo as escamas. Quando o espanto ocorre antes, ele desvia da arpoada, quando ocorre depois, o arpão

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 66

não penetra. Tudo isso confere às disposições do peixe (e do dono, espírito que o controla) em relação ao proeiro um papel capital em sua própria captura, fazendo da destreza com o arpão um aspecto condicionante, porém nunca definitivo.

21 O potencial agressivo é, portanto, constituído junto com o peixe, ou melhor, depende de intenções e variantes alheias ao próprio proeiro. É possível atribuir a mesma constituição relacional à competência perceptiva, que requer a assunção do ponto de vista do peixe (ou de outros animais), isto é, envolve, mais do que o conhecimento objetivo sobre seu comportamento, a habilidade para saber o que o animal percebe ou não, viabilizando assim a aproximação. Estes dois aspectos apontam para uma constituição do espaço dos lagos totalmente permeada pelo tipo de relação venatória estabelecida com os animais. Entretanto, além da configuração de uma competência perceptiva e de um potencial agressivo, o proeiro depende também da prática do caminho adquirida em ao menos uma década de experiência, possibilitando que ele se movimente pelos intricados percursos entre mangais, escavados e lagos sem se perder.

22 A configuração mesma desta hidrografia (de suas fronteiras e características) fundamenta-se na relação de predação e remete às ações gerativas e destrutivas de seres como os donos dos animais e as cobras grandes. Mas notemos antes que a espacialidade dos lagos se dá pelas formas de interação. Além dessa toponímia baseada nos modos de deslocamento aquático, as localidades também recebem nomeações de ordinário por algum evento, pelo nome de um laguista, animal ou planta cuja frequência ou morada num local são significativas. Assim, por exemplo, o escavado do Justo, o rego da Cobra, a ilha das Guaribas, a enseada do raio etc. Os deslocamentos através desse ambiente pessoalizado são realizados pelos caminhos, que transpassam e conectam os lugares.

23 O próprio caminho resulta do trânsito, humano e não humano, dadas as transformações que o movimento opera no ambiente. Os diversos seres – como jacarés, pirarucus, sucurijus e laguistas – têm uma batida, isto é, um rastro que altera o local com sua passagem. O laguista, por exemplo, revolve a vegetação aquática e o barro do fundo, além de cortar pedaços das raízes aéreas e dos galhos com o terçado (facão). Os caminhos de humanos e animais são mantidos pelo uso constante, a ausência os tapa. Na verdade, mesmo quando passam a ser ignorados, os caminhos apenas ficam esmaecidos, desativados, pois se trata da ligação entre dois lugares cuja existência é sabida; ocorre que, pela falta de hábito ou por outras razões, como a má vontade de um dono, os laguistas não podem discerni-

24 -los ou atravessá-los. A Cobra-grande, contudo, é o ser que detém em maior intensidade essa capacidade generalizada para gerar caminhos – onde ela passa surgem cursos d’água, onde ela mora aparecem poços profundos, onde ela não mais transita a água seca.

25 Embora se deva partir de uma associação entre os caminhos e os seres, consiste imprecisão pensar nos termos de uma cartografia plana, por duas razões. Em primeiro lugar, não é apenas que os espaços ganhem significado em função de eventos ocorridos, mas eles são sempre qualificados pela presença dos seres. Isto porque cada ser é dotado de um campo operativo em torno de si, relativo às suas capacidades perceptivas e agressivas, e esse campo imbrica-se com os de outros seres. A rigor nunca se deixa de estar posicionado no campo de interação de outro ser – um animal, outro humano, um dono de certa localidade etc. – e o grande problema nos deslocamentos nos lagos é lidar com esse contato perpétuo, mantendo arpão a postos e olhos e ouvidos atentos. Uma

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 67

complexa gramática de disposições visuais se desdobra desse princípio, remetendo às inúmeras formas em que a visão pode colocar dois ou mais seres em interação.

26 Por outro lado, observo que não basta apenas visualizar o que aparece, mas deve-se sondar também o que está oculto sob a flor d´água. Não é inapropriado dizer que nesse contato contínuo entre seres deve ser incluída uma espécie de quarta dimensão dotada de parâmetros próprios, e que tem meios de comunicação com o mundo rotineiro. Afinal, tudo se concentra na passagem entre o fundo – que designa todo o meio líquido, não somente a camada inferior – e o buiado – que denota o meio aéreo adjacente à água. Laguista e pirarucu vivem e se movimentam em seus próprios meios, e isto implica, claro, formas particulares de respiração, de deslocamento e de percepção – sonora, visual, olfativa e tátil. Porém, ambos estão obrigatoriamente ligados ao outro meio, por dois motivos. Primeiro, porque não podem deixar de avançar sobre ele: o proeiro está apoiado todo o tempo na água e só se move quando adentra o meio líquido com o remo; o pirarucu tem de ir à tona respirar e, ao se deslocar no fundo, produz alguns sinais. Depois, porque a forma de perceberem um ao outro é voltando a atenção para os sinais que emanam do outro meio. Por isso a flor d’água, além de fronteira entre os meios aquático e aéreo, é uma interface comunicativa da maior importância. Ali os laguistas evitam inscrever sua presença e se guiam pelo conjunto de índices produzidos pelo peixe e demais seres aquáticos.

A água como fluxo espaço-temporal

27 No Sucuriju ressaltam-se três características da região costeira do Cabo Norte, que consistem sinais diacríticos em face do rio, dos lagos e das demais águas alhures. Uma delas é água barrenta, resultado da grande quantidade de partículas sólidas despejada pelo Amazonas; outra é o fluxo intenso das águas, que determina uma das maiores amplitudes de maré do mundo e o fenômeno da pororoca; por fim, a pouca profundidade e as constantes modificações físicas da região costeira fazem com que a navegação seja bastante arriscada, pois estritamente dependente da maré e implicando o contato frequente com o solo, seja intencional ou inesperado.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 68

Figura 3

28 A costa é tida como perigosa e inóspita, onde o ritmo do trabalho e das atividades em geral associa-se à temporalidade da maré, pelo que o simples fato de estar embarcado exige esforço e disposição. São utilizados barcos motorizados, de 8 a 12 metros de comprimento, com três ou mais tripulantes, para a captura sobretudo da gurijuba (Arius parkerii) com rede fixa ou espinhel (linha com centenas de anzóis). A entidade que organiza o trabalho no mar é o barco, termo que denota, além da embarcação em si, o motor, os apetrechos e a tripulação. Sendo a unidade de produção e de crédito, o barco é também o elemento que se movimenta, tanto em busca do peixe através do mar quanto em sua dinâmica interna de trabalho. Seu nome, suas características específicas, como a velocidade e a maneira de enfrentar a maresia (ondulações), suas estórias, a qualidade de seus apetrechos e da tripulação que o compõe, tudo isso opera em conjunto para delinear a identidade do barco. O barco é que seca, que vira, que pega o fundo. O relato do naufrágio de um barco diz que ele “secou na costa do Pará”. E eles têm características que os singularizam: “este é um barco certo”, ou que “tomba muito”, ou que “é bom de porrada” etc. Estas características são determinantes no âmbito do trabalho.

29 A passagem pela barra do rio Sucuriju só é possível quando a maré avoluma as águas, facultando aos barcos transitarem sem tocar o fundo. À exceção do momento mais intenso das chuvas, entre fevereiro e abril, a entrada e a saída do Sucuriju ocorrem exclusivamente de acordo com o fluxo da maré. Considerando as consequências importantes que as marés, a geografia e as manobras náuticas acarretam às possibilidades de navegação no percurso entre o Sucuriju e as cidades do estuário Amazônico (principalmente Macapá e Amapá), é que se deve compreender a afirmação de um pescador, impaciente com os questionamentos de um grupo de funcionários sobre os horários do transporte desde Macapá: “Aqui é tudo por maré!”. Assim também, para dar a entender, em sentido figurado, que alguém esteve rapidamente no Sucuriju, diz-se que “veio e voltou na mesma maré”.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 69

30 Deve-se conceder então um valor preeminente à relação com as marés na constituição da temporalidade do Sucuriju, já que ela fixa momentos favoráveis, e mesmo exclusivos, de passagem entre a vila, os lagos e a costa. A saída de um barco envolve fundamentalmente a preocupação com o momento da maré. As marés mortas (ou de quarto) são aquelas mais atenuadas, dos dias de lua crescente ou minguante. Já as marés de lanço (ou de lua) são as de sizígia, que atingem o ápice (cabeços) no terceiro dia após a lua cheia ou nova. Para uma dada localidade, a forma da Lua, que determina o momento de sua fase, associada à sua posição no céu, indica o momento das principais inflexões da maré.2

31 Essa terminologia fixa períodos que são delimitados por momentos de inversão. Quando as marés começam a subir, diz-se que a água está puxando, e quando baixam ao final do lanço, quebrando. O ciclo diário também é indicado pelas tendências e variações. Os termos enchente e vazante dizem respeito aos movimentos da água que levam à maré cheia e à baixa. Mas os estados em que ela se encontra são colocados sempre no âmbito de uma mudança. Assim, a maré pode estar baixa de vazante ou cheia pra vazar. Também quando se diz a maré encheu ou vazou, significa apenas que já se iniciou (e não que se completou) o movimento de encher ou vazar. Os próprios movimentos de enchente e vazante não são invariáveis. A enchente começa vigorosa (às vezes com pororoca) e para, depois de elevar o nível até acima da metade. Perto de uma hora depois vem a dobra da enchente, correnteza muito forte e com mais volume, que eleva o nível quase ao máximo. Em seguida a velocidade diminui e a água se eleva vagarosamente até atingir o ápice, quando ela para pra vazar. A enchente dura de três a quatro horas, já a vazante cobre um período de oito a nove horas e começa lenta, mas logo aumenta a velocidade, principalmente nos locais em que o fluxo fica limitado a um canal à medida que o nível da água baixa.

32 Além da regularidade cíclica da maré ser considerada mais pelas inflexões e pelos movimentos do que pelos estados propriamente ditos, a intensidade variável através da qual ela se apresenta é algo tão importante quanto imprevisível. Isto fica expresso nas qualificações que recebem os termos que delineiam os ciclos. Uma enchente pode estar tardando muito, ou ser caracterizada como preguiçosa, assim como um lanço é porrudo (grande) ou jito (pequeno). As preocupações centradas na maré e no seu fluxo são, aliás, muito mais importantes do que qualquer consideração mais generalizante sobre o mar. Ainda que vez ou outra alguém fale do mar como um ambiente, este termo se refere o mais das vezes a um estado de agitação das águas – diz-se que dada localidade tem muito mar, ou seja, muitas ondulações. O domínio costeiro é denotado comumente pelos termos fora ou costa. Nisto reside, creio, um indício precioso sobre a espacialidade da navegação e da atividade pesqueira, que passa mais por enfatizar um espaço-tempo em transformação do que por fixar um domínio territorial. É de se notar também que não se estabelece ali nenhuma distinção clara entre o fluvial e o marinho. Um bom exemplo é o termo maresia, que se refere às ondulações causadas pelo vento, não apenas marinhas, mas fluviais e também lacustres.

33 O próprio termo maré não se restringe a uma propriedade das águas do mar, mas indica movimento. Nas ocasiões em que é possível perceber algum fluxo de água nos lagos, diz-se que a maré está correndo, mesmo que não haja ligação com os movimentos marinhos. É verdade que também se diz que a maré não passa das cabeceiras para o lago e que a entrada do salgado nos lagos a noroeste é tida como uma invasão. Isto aponta para as diversas formas de ação da água que estão reunidas sob o termo maré,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 70

quais sejam: salgar, correr e tufar. Em rios volumosos, como o Amazonas e o Araguari, e mesmo no Sucuriju no auge do inverno, notam-se claramente os limites sucessivos que estas características alcançam ao longo de seu curso. A salinidade é a que tem menor penetração; em seguida vem a alteração ou mesmo a inversão da corrente fluvial; e o aspecto que se nota mais a montante é a variação no nível da água.

34 Ainda que no Sucuriju muitos já tenham visto e sejam conhecidas as imagens do Oceano – referindo-se ao local a partir de onde a água é azul, depois da parte barrenta do estuário – e do médio e do alto Amazonas, a oposição entre rio e mar não é operativa para seus deslocamentos e atividades.3 Os rios da região são tão caracterizados pela influência das marés que as propriedades de suas águas não justificariam essa cisão. Tal oposição faz ainda menos sentido em se tratando da região da desembocadura do Amazonas – entre o Cabo Maguari, na Ilha de Marajó, e o Cabo Norte e a Ilha de Maracá – onde os sucurijuenses pescam e realizam os deslocamentos para Macapá, Belém e Amapá. As formas de orientação não se referem a ambientes demarcados, mas às variações dos fluxos e das propriedades hídricas, considerando os rios mais como braços, onde a maré assume um comportamento particular.

35 Na costa do Amapá a maré enche de norte para sul e vaza no sentido contrário, e nisto consistem dois termos de orientação muito importantes – pra cima e pra baixo, respectivamente – aos quais se somam outros dois, indicando se a corrente se distancia ou se aproxima da embocadura do Sucuriju – pra fora e pra beira. Os termos são sempre acompanhados da preposição pra, designando direção, justamente porque não são propriamente lugares específicos no espaço que balizem um deslocamento, mas fluxos que aproximam ou apartam os lugares. De tal modo que tanto a direção quando a distância de um lugar não dizem respeito à topografia, mas ao fluxo hídrico, que abre a possibilidade e dita a forma de se deslocar. Para ir à cidade de Amapá (pra baixo), a saída do Sucuriju ocorre na vazante e o retorno na enchente. Para Macapá (pra cima), o inverso. As relações entre localidades se dão também em termos da quantidade de vazantes ou de enchentes necessárias para se ir de um lugar a outro, o que depende também do período da maré, da potência do motor e dos atributos da embarcação e dos tripulantes.

36 É pertinente interpretar este quadro a partir da ideia de ativação, que Cordell (1974) emprega para caracterizar os pontos de pesca no estuário de Valença, na Bahia. Ele mostra que os pesqueiros são “zonas de pesca atividadas pela maré” (:387), operando nos momentos em que a maré favorece conjunções entre o movimento dos peixes, o funcionamento dos apetrechos e o deslocamento das embarcações: “escolher um ponto de pesca é em grande medida uma questão de gestão do tempo – colocando juntas informações sobre marés, técnicas e áreas de pesca” (:383). No Sucuriju a noção de pesqueiro não existe dessa maneira, numa relação pontual com trechos do fundo e circunscrita a eles. Não obstante, a ideia de que a conjunção de vários fatores é acionada pelo fluxo hídrico permite sublinhar o estatuto absolutamente central da maré sem recorrer ao vocabulário dos fatores limitantes ou adaptativos, mas enfatizando seu aspecto criativo. Ademais, desse modo, é possível assinalar o caráter multifacetado e dinâmico da maré, fazendo jus à variedade e à variação das possibilidades que ela apresenta aos pescadores nas diversas situações, não apenas de captura ou deslocamento.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 71

37 As posições, as referências temporais, a captura do peixe, os movimentos em geral implicam a tal ponto a associação com os fluxos hídricos que não é exagero tratar a costa como um espaço-tempo fluido.

38 Mas tudo isso só pode ser tomado em relação com as estratégias náuticas e haliêuticas acionadas. Sim, pois é justamente o fato de ser uma pesca fixada ao solo – estacada (com rede presa ao solo) ou escorada (com apetrecho e barco fixos) – que faz da hidrodinâmica algo essencial da atividade dos pescadores. É que o ambiente costeiro pode ser caracterizado pelo fluxo intenso do espaço (o meio líquido) em que todos os elementos estão situados. Por isso, a posição estática representa, na verdade, a exposição máxima ao deslocamento do ambiente – água, troncos, peixes. Neste aspecto, os pescadores do Sucuriju acham muito menos problemática a pesca de bubuia dos barcos paraenses, que envolve soltar à deriva uma rede flutuante, com o barco conectado à sua extremidade, onde todo o conjunto acompanha o fluxo da água e suas variações. Para configurar, ao contrário, artefatos e técnicas capazes de permanecerem fixos, isto é, no antifluxo radical (ou no fluxo máximo, dependendo do ponto de vista), a operação da estacada ou da linha escorada envolve interações complexas e intensas com o regime hídrico. Nessa arte de permanecer estático para capturar o que passa, é preciso lidar com os efeitos mais intensos do movimento de todo o ambiente; daí a propriedade-chave da pesca de fora, que é a atenção ao horário, ou seja, aos movimentos da maré. É no horário que ele [o pescador] tem que estar exatamente baseado. A ciência dele é no horário. A hora que ele tem que colocar a linha ou a rede, ele tem que escolher. Principalmente a linha, o espinhel. A linha, ela está escorada, você depende de puxar ela antes da hora. Se você não puxar, ela corre perigo. Principalmente se ela começar a arrebentar (Manoel Vales).

39 A rede não corre perigo nas transições entre marés, mas sua produtividade sim. O fato de o peixe ficar morto no aparelho e exposto quando o nível da água diminui exige agilidade na revista, para evitar a ação dos urubus e os efeitos deteriorantes do sol ou da lua. Em alguns locais a rede não chega a se descobrir por completo, principalmente nas marés mortas, havendo então menos tempo para revistar e fazer os reparos. Nas praias distantes da beira, há também um risco para os próprios pescadores quando saltam ao solo. Na pesca de rede estacada, diz Pelado, “tem que tá atento no horário que a maré enche, horário que dá pra gente ir pra estacada, horário que dá pra gente chegar na embarcação”, caso contrário a maré pode surpreender e levar alguém.

40 Possivelmente não seria inapropriado dizer que os barcos do Sucuriju são preparados para uma atividade anfíbia. Ainda que estar buiado seja a posição ideal, eles estão sujeitos a todo tempo a ficar em seco ou a bater no solo. Os naufrágios de barcos do Sucuriju em função da pororoca ocorreram em casos em que a embarcação estava em seco ou num local de pouca profundidade. Nessas situações, o barco fica preso ao solo e a pororoca e a correnteza ulterior podem fazê-lo tombar antes que ele consiga flutuar e sair da situação embaraçosa: Se tiver buiado não, mas se tiver em seco, ou numa parte bem rasa, onde [a pororoca] consiga bater um pouco o casco dele [no solo], ela vira. E vira mesmo. Agora, na parte funda, não, ela não vira. [...] [Nessa parte] o perigo não é a pororoca, o perigo é a correnteza: se você pegar uma correnteza e a embarcação vier bater no seco. Enquanto a pororoca, não, ela pode vir alta como ela vier, a embarcação entra nela, ela cobre a embarcação, mas não vira. Só no seco: se ela bater uma embarcação no seco ela vira mesmo, porque ela não tem apoio de se defender, ela fica indefesa (Manoel Vales).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 72

41 A preocupação ao enfrentar a pororoca expõe a questão central dessa navegação costeira, que se dá em torno do tipo de apoio em que o barco se sustenta. As possibilidades de estar flutuando (buiado) ou apoiado ao solo (em seco) orientam as manobras da navegação nessa região, cujos principais elementos são justamente a intensidade do fluxo hídrico e a pouca profundidade. Nas marés mais pronunciadas, com preamares elevadas e baixa-mares diminuídas, as correntes são muito fortes e em algumas dezenas de minutos um local onde se passava com folga já não permite mais o trânsito. Nesses casos, o barco que enseca durante uma maré vazante fica em posição desprotegida, pois ele não pode se movimentar e a enchente o encontrará provavelmente com a pororoca, restando então posicionar suas amarras para voltá-lo de proa e esperar que a onda não seja muito forte.

42 O que a pororoca traz é o peso de maré, diante do que o barco tem de usar suas capacidades de movimento, dadas também na vela, mas principalmente no motor. Ou então fixar-se ao solo numa posição conveniente para resistir ao seu ímpeto. Essas alternativas são avaliadas in loco, a depender das possibilidades de movimentação, tanto mais que a pororoca é rápida e imprevisível.

43 Isto incide não apenas no movimento do barco enquanto unidade, mas também no serviço, que indica a dinâmica a bordo. No trabalho no barco as atividades individuais são coordenadas em função de uma ação do conjunto. O lançamento ao mar da linha com os anzóis, mesmo não sendo executado por um especialista, é considerado a principal atividade da pesca no mar. Tarefa arriscada, seu sucesso depende da habilidade do pescador em incorporar-se ao sistema do barco, fechando o ciclo de um movimento fundado em sofisticada coordenação. Sobre o convés embalado pelas ondas, jogando cada anzol ao mar em menos de um segundo, o pescador deve sintonizar precisamente seus movimentos com a tensão ótima da linha, que é o resultado da atuação dos outros camaradas (que jogam os ferros e as boias conectados à linha) e da velocidade do motor e da maré.

O fundo, o buiado e as temporalidades no Sucuriju

44 Manoel Vales, um dos pescadores que já trabalharam tanto no lago quanto pra fora, expressa assim a sua diferença: A pesca do pirarucu é uma das pescas mais silenciosas que existem. Na pesca do pirarucu [o laguista] tem que depender da prática e do silêncio. Você tem de depender da calma do vento e da calma da maresia. Tem de depender do rastreamento, como a siriringa, que nós chamamos, que esse aí é o nosso guia principal, é o guia do pescador que trabalha na área da pesca do pirarucu. Sem isso aí nós não somos quase nada, sem esse guia. E sem a prática também não seria nada, não adiantaria eu ir pro lago, dizer que eu ia mariscar pirarucu se eu não tivesse a prática de trabalhar com a espécie. Então, existe uma diferença muito grande de quem trabalha pra fora, na pesca da gurijuba, [onde] a prática depende de você conhecer o rumo que você vai trabalhar, a distância que você está trabalhando, pra baixo, pra cima, o horário... Essa é uma prática assim ampla, onde você olha a planície, não é no caso do pirarucu que você tem de ver a prática mais pro fundo, como se você tivesse um aparelho de mergulho pra poder encontrar a coisa lá no fundo.

45 Pensando nestes termos, é o caso de dizer que no lago o espaço é uma função do tempo, pois a percepção da hidrografia se atém às interações entre os seres, que constituem o

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 73

ritmo da vida nesse local. Na costa, ao contrário, o tempo é uma função do espaço, pois é o próprio ambiente que está em movimento e estabelecendo possibilidades de interação entre o barco, o solo e o peixe, resumidas na noção de horário.

46 A propósito ainda da diferenciação perspicaz citada acima, lembro as dificuldades que os pescadores enfrentam quando buscam atuar na atividade contrária (cf. Sautchuk, 2007, cap. 3) – uma espécie de comparação vivencial. Sem poder detalhar este aspecto aqui, é necessário dizer que não se trata apenas de um problema de competência, mas da constituição de conexões distintas com os ambientes. Recorrendo à noção de Umwelt, ou mundo próprio, trabalhada por Uexkull (1982), poderíamos pensar que de fato os aspectos de dado ambiente são considerados pelos outros pescadores de uma maneira até certo ponto exótica. Até porque não seria possível acessar do mesmo modo o que seja a relação com o ambiente para o outro, que se caracteriza por diferentes modos de articulação com os movimentos. Isto porque detectamos na etnografia do Sucuriju dois gêneros de seres e coisas, nos termos maussianos. Na perspectiva de Ingold, poder-se-ia entender que: perceber o ambiente não é olhar para as coisas a serem encontradas nele, ou discernir suas formas e desenhos congelados, mas juntar-se a eles no fluxo material e nos movimentos que contribuem para sua – e nossa – formação contínua (Ingold, 2011:88).

47 Ingold pensa assim sobre as habilidades técnicas, reportando-se a LeroiGourhan, outro dos alunos de Mauss, que afirmava que os gestos técnicos não são ações sobre um mundo inerte, mas derivam da sinergia das ações humanas em diferentes redes de movimentos (Leroi-Gourhan, 1991). Para Ingold, isto signifca que a habilidade não emana da pessoa, mas de seu vínculo com o meio. Por isso, uma abordagem meramente centrada no ambiente ou atenta apenas às habilidades do ponto de vista do indivíduo enfrenta dificuldades para dar conta dos processos mais complexos de engajamento como os encontrados na pesca.

48 Dito isso, notemos que fundo e buiado são categorias centrais no Sucuriju, mas de modo distinto para laguistas e pescadores costeiros, pois afinal remetem a formas diferentes de associação. Para falar da diferença na consideração sobre o fundo, tratemos dos temores relativos a certos aspectos dessas pescas. Enquanto os pescadores costeiros ressaltam o perigo das malinesas e dos animais dos lagos, que são vistos pelos laguistas como ameaçadores, mas controláveis, estes receiam a relação com a maré e com o anzol na costa, cuja habilidade para lidar é exatamente a característica do pescador. Se fôssemos pensar por meio das duas entidades que concentram os temores no lago e no mar, teríamos de contrastar a Cobra-grande e a pororoca. No caso do lago, quanto maior a profundidade, mais risco, pois os cursos d’água são habitados pelo grande predador aquático. Já no mar, quanto maior a profundidade, menos risco, pois a pororoca se forma no raso, a menos de 7 metros de profundidade. Isto implica que a noção de fundo se reverte em sentidos distintos.

49 A imersão no fundo representa também certo risco em ambas as situações. Mas o risco do pescador costeiro ao entrar na água é a fusão completa e letal com esse fluxo que, entretanto, o constitui. Já pular na água no lago é sempre uma incógnita, pois é a exposição extrema ao desconhecido espaço do outro. No limite, o laguista poderia inclusive tornar-se pirarucu. Por isso, quando vai ao fundo por algum motivo, o laguista normalmente amarra uma corda na cintura, que assegura seu vínculo ao mundo buiado.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 74

50 Por outro lado, há uma atividade lúdica em que tanto laguistas quanto pescadores imergem nas águas do rio. Trata-se do jô, um jogo de pique na água. Ainda que joguem muitas vezes em conjunto, é notável como os laguistas elaboram a atividade preferencialmente nos termos dos deslocamentos dos animais aquáticos, enquanto os pescadores falam sobretudo na linguagem dos fluxos hídricos e da resistência a ele.

51 Em suma, fundo e buiado são termos que transitam nas duas localidades com diferenças fundamentais, assim como humanos e artefatos. Tanto é assim que suas aparições na forma de verbos – fundear e buiar – têm importância maior em um dos ambientes. Fundear é mais acionado na costa, e tem relação com a operação de fixar embarcação e apetrecho ao solo. Já o ato de buiar é absolutamente central nos lagos, visto que é a ação por meio da qual os animais emergem, interagindo diretamente com o laguista. Estes dois verbos dizem respeito às principais questões derivadas do modo de relação nos dois ambientes. Na costa, como parar diante de um ambiente em fluxo intenso e constante? No lago, o que fazer quando se apresenta a ocasião para interagir explicitamente e não mais se imbricar de maneira subjacente? Trata-se da questão da força, ou de sua anulação, de um lado, e do problema de pré-sentir e de reagir ao contato repentino, de outro. Eis dois modos de vida muito díspares, cujo vocabulário semelhante a partir do qual se elabora sobre eles não deve confundir. Isto porque, ao que tudo indica, o sentido das palavras dos pescadores, assim como das águas em que vivem, só se pode saber ao certo quando vistos em ação, integrados aos ritmos e aos movimentos dos processos técnicos.

BIBLIOGRAFIA

COSTA, L.T. 1996. Sedimentação holocêntrica no estuário do rio Araguari-AP. Dissertação de Mestrado, Centro de Geociências/UFPA.

EVANS-PRITCHARD, Edward E. 2007 [1937]. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva.

GABIOUX, M. 2002. Influência da lama em suspensão sobre a propagação da maré na plataforma amazônica. Dissertação de Mestrado, UFRJ, COPPE, Rio de Janeiro. GEISTDOERFER, P. 2002. Océanographie générale. Paris: InfoMer.

HAUDRICOURT, A-G. 1962. “Domestication des animaux, culture des plantes et traitement d’autrui”. L’Homme, v. 2, n. 1, pp. 40-50.

INGOLD, T. 2011. Being Alive: essays on movement, knowledge and description. Londres: Routledge.

LEROI-GOURHAN, A. 1991 [1965]. Le geste et la parole II La mémoire et les rythmes. Paris: Albin Michel.

MAUSS, M. 2009. Techniques, technology and civilization. Edited and introduced by Nathan Schlanger. New York, Oxford: Durkheim Press/ Berghahn Book.

MAUSS, Marcel. 2003 [1906]. “Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós”. In: ___. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 75

OPEN UNIVERSITY. 2000. Waves, tides and shallow water processes. Oxford: Butterworth-Heinemann.

SANTOS, Milton. 2008 [1996]. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da USP.

SAUTCHUK, Carlos E. 2007. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá). Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade de Brasília.

SILVEIRA, O. 1998. A planície costeira do Amapá: dinâmica de ambiente costeiro influenciado por grandes fontes fluviais quaternárias. Tese de Doutorado, Centro de Geociências/UFPA.

STEWARD, J. 1955. Theory of culture change. Illinois: Univ. of Illinois Press.

UEXKULL, J. von. 1982. Dos animais e dos homens (Digressões pelos seus mundos-próprios e Doutrina do Significado). Lisboa: Edição Livros do Brasil.

NOTAS

1. Ver também as elaborações posteriores de seu aluno A.-G. Haudricourt (1962). 2. Há de se dizer algo sobre o fato de que o dia de maiores marés tem um atraso em relação ao dia de lua cheia ou nova. Em oceanografia essa decalagem é chamada “idade da maré” e é atribuída à inércia das águas marítimas e ao seu atrito com o fundo, o que as leva a responder com retardo à atração lunar. Há também outra decalagem importante, chamada de “estabelecimento do porto”, entre o instante em que a lua cheia atravessa o meridiano e o momento da preamar (Geistdoerfer, 2002:149; Open University, 2000:66). Na foz do rio Sucuriju, registrei variação de aproximadamente oito horas, ou seja, no dia de lua cheia (o astro no zênite a 0h), as preamares ocorrem por volta de 8h e 20h. Como essas decalagens são regulares, a forma da lua e sua posição no céu indicam com segurança os pontos-chave do ciclo da maré numa dada localidade. 3. Numa clara afirmação da visão contraposta, na região do estuário amazônico é comum nomearem barcos como Riomar.

RESUMOS

O presente trabalho contrasta duas formas de relação com o meio hídrico no estuário do Amazonas – os lagos e a costa. Argumenta-se que a abordagem sobre o ambiente não pode prescindir de um tratamento das relações técnicas, o que envia ao problema do ritmo e do tempo. Ao fim, demonstra-se como nos lagos a pesca de pirarucu envolve relações semióticas, enquanto na costa a relação das técnicas com a maré resultam numa cinética (força, resistência etc.).

This paper contrasts two forms of relation with the water environment in the Amazon River estuary – the lagoons and coast. It is argued that the approach toward the environment cannot prescind dealing with the technical relations, which send to the problem of rhythm and time. At the end, it is demonstrated how, in the lagoons, the fishing of piraracu (Arapaima gigas) involves semiotic relations, whereas, on the coast, the relation of the techniques with the tide result in a kinetic force, resistance etc.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 76

ÍNDICE

Palavras-chave: pesca, técnica, Amazônia, água, ambiente Keywords: fishing, technique, Amazon, water, environment

AUTOR

CARLOS EMANUEL SAUTCHUK Universidade de Brasília

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 77

Banhos de princesas e de lázaros: termalismo e estratificação social

Cristiana Bastos

NOTA DO EDITOR

Recebido em 23/08/2011.Aprovado em 31/08/2011. Cristiana Bastos (CUNY 96) é antropóloga e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais (Lisboa), com interesses na confluência da antropologia, história social da saúde e estudos sociais da ciência, e ainda nos estudos de colonialismo e migrações. mail: [email protected]

À flor da pele, na água: encontros de princesas e lázaros1

1 Não se engane o leitor: este não é um conto de princesas e de sapos que afinal são príncipes enclausurados em corpo de bicho à espera da redenção por um beijo na beira do lago; tão pouco é uma evocação das moiras encantadas que se escondem nas fontes das montanhas e dos vales, ou um episódio da noite de São João, quando o reflexo das águas devolve o futuro a quem nelas se olha. As princesas e os lázaros que aqui evocamos não pertencem às lendas e narrativas de águas e encantamentos que abundam no folclore europeu.

2 As nossas princesas e lázaros2 são de carne e osso, de nervos e pele, têm nomes humanos, vida social, existência histórica; e vão a banhos nas termas europeias. São princesas, duquesas e cortesãs aprisionadas em espartilhos que lhes trazem os nervos à flor da pele, procurando nas águas o refrigério para as suas hipocondrias e reais padecimentos; elas e eles, príncipes, duques e outras celebridades que as acompanham, buscando também no pretexto dos banhos o momento dos encontros, o terreno dos matrimónios, das alianças, das cumplicidades, dos negócios e até da criação literária.3

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 78

Igualmente reais são os leprosos e outros intocáveis que, descamando a pele e perdendo a integridade dos sentidos e dos órgãos, procuram nas águas a possibilidade de atenuar as incompletudes, as dores, o ardor das chagas; ou os paralíticos, apopléticos e reumáticos que, apoiados em bengalas ou transportados em macas, querem nos banhos aliviar dores e recuperar alguma da mobilidade perdida.

3 Entre monarcas e párias, príncipes e mendigos, clientes de todas as castas e qualidades partem para banhos, termas, caldas, vilas de águas, estações termais ou spas, como se têm chamado, em diferentes contextos da Europa e do mundo, os lugares em que a fama curativa das águas e a qualidade dos ares apelam a visitas e estadias de doentes, peregrinos, turistas, enfim, aquistas e termalistas. Ao longo dos séculos, com a pele descamada, os nervos inflamados, os membros paralisados, os efeitos da sífilis fazendo- se anunciar, as articulações toldadas, a gota latejando, ou simplesmente os sentidos postos numa estadia de intenso convívio e rituais de sociabilidade, muitos acorreram às águas – sagradas, santas, de virtudes, minerais, mineromedicinais, medicinais. Todos usam das mesmas águas, mas talvez não das mesmas tinas, ou das mesmas banheiras, ou sequer das mesmas nascentes. Neste partilhar e separar das águas se concentra, como mostrarei, a essência do termalismo europeu: água para todos, para tudo tratar, mas a todos de modos diferentes, cada um no seu lugar.

4 Tal é o argumento deste artigo: embora expurgado das representações sobre o termalismo – que ora se alinham numa narrativa de luxo e glamour, ora num recitativo de dores e tratamentos – e embora sujeito a segregações de índole múltipla, espaciais, temporais, rituais, é o convívio de diferenças e diferentes que constitui o núcleo no qual assentam o sucesso e a longevidade do termalismo no continente europeu. Desenvolverei o argumento fazendo referência a trabalhos de pendor antropológico (Quintela, 1999, 2003, 2008, 2011; Cátedra, 2009, no prelo; Speier, 2011), histórico (Porter, 1990; Brockliss, 1990; Mackaman, 1998; Adams, 2006), literário (Maupassant, 1885; Bancquart, 2002; Hurley, 2006; Cossic, 2006; Gorman, 2006), sociológico (Ferreira, 1995), e de estudos de ciência (Weisz, 2001), todos relativos ao termalismo europeu, e analisarei dados empíricos das termas de Monchique, no Algarve (Portugal), cujas águas são usadas há vários séculos para fins curativos e cujo lugar é igualmente estimado para efeitos de lazer e prazer (Bastos, 2011). Também aí, na longínqua serra de Monchique, de difícil acesso e longe das rotas tradicionais de mercadores e peregrinos, mas nem por isso menos procurada, se dava no passado o simbólico encontro de princesas e de lázaros, de príncipes e mendigos.

5 No lugar de príncipes e princesas estavam os latifundiários alentejanos, as suas mulheres e filhas, que ali se deslocavam a banhos tal como a corte e a alta aristocracia se deslocavam às mais longínquas e luxuosas termas de Vidago e Pedras Salgadas, em Trás-os-Montes, quando não às afamadas vilas termais francesas e alemãs, e tal como as elites de cada cidade e região portuguesa se deslocavam às variadas termas do país: Caldas da Rainha, Luso, Curia, Cucos, Caldelas, São Pedro do Sul, Vizela, Felgueira, e muitas mais, celebradas como de sociedade e elegância pelo escritor da urbanidade oitocentista Ramalho Ortigão (1875).

6 Pelo lado dos mendigos estavam eles mesmos, os indigentes da serra, os pobres a quem as dores e a devoção sempre tinham levado a procurar nas águas remédio e alívio sem outro custo que não o do seu empenho (Cossic & Galliou, 2006). Entre uns e outros estava o completo leque social, incluindo lavradores e elites urbanas da orla algarvia, proprietários andaluzes, engenheiros das minas, bispos e padres da igreja católica,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 79

médicos, militares, estudantes, artesãos, trabalhadores rurais e um largo número de domésticas (Bastos, 2011).

Banhos de reis e subalternos

7 Não faltam no imaginário europeu as idas a banhos por parte de monarcas e poderosos. As estações de águas mais famosas – et pour cause – serviram a reis e rainhas, a duques e duquesas, e paulatinamente a todos a quem o dinheiro e a disponibilidade assim permitiam e proporcionavam (Brockliss, 1990; Mackaman, 1998; Weisz, 2001). Nas termas e caldas procuravam alívio e cura para os seus achaques, padecimentos, incompletudes, da infertilidade e histeria às dores da gota e artrite, dos incómodos da dispepsia às chagas visíveis da pele e à ocultada mas omnipresente sífilis.4 Ali se encontravam águas com reputação de curar, aliviar, transformar, onde eles e elas se banhavam ou de outros modos se lhes sujeitavam: do simples acto de beber de um copo ou vasilha – mas sempre em quantidades, ritmos e intervalos prescritos – aos complexos rituais de aspersão, inoculação, injeção, clister, inalação (Mackaman, 1998; Weisz, 2011).

8 Mas não bastavam as águas, se é que eram mesmo as águas o motivo da ida a banhos; havia também os ares, o encanto dos lugares, os cenários, naturais e construídos, os jardins, as alamedas, as extravagantes buvettes e os monumentais balneários, os grandes hotéis, os seus luxuosos salões; e os casinos, os bailes, as orquestras, as indumentárias, os encontros, as sagas familiares, os namoros, os negócios, o divertimento, a parada de vaidades.

9 Sobre eles escreveram os cronistas do high life europeu dos séculos XVIII e XIX, e ninguém melhor que Jane Austen, que em Persuasion e em Northanger Abbey (1816, 1818) nos leva ao glamour de Bath de setecentos para oitocentos, com os seus enredos, encontros, tensões e as microdiferenças de classe que determinavam aproximações, afastamentos, consentimentos e amores dos jovens ingleses que ali acorriam para acompanhar pais, tios, padrinhos e outros familiares, e que, na sala da fonte de manhã ou no salão de baile à noite, passavam os dias nos rituais de ver e ser vistos.

10 Nas ilhas britânicas ou no continente, muitos são os famosos cujos nomes se associam às estações de águas que frequentam, e não poucos estudos se dedicam a analisar os efeitos das suas estadias: Montaigne (Majer, 1982; Healy, 2005); Luís XIV, Mme de Sévigné (Brockliss, 1990), Voltaire, Diderot (Balcou, 2006), Napoleão III (Toulier, 2006), Darwin (Browne, 1990), para falar apenas de alguns.

11 Dos descamisados, leprosos e outros de pele descamada, chagas abertas ou movimentos toldados não nos falam as narrativas de luxo e lazer das termas; mas eles também lá estavam, bebendo, banhando-se, procurando nas águas alívio temporário para as suas dificuldades e o seu sofrimento, aspirando talvez à redenção da cura. Da sua experiência de excluídos e exilados da representação (Cruz, 2008), do modo como eram e são acolhidos nas estações de águas, tentam dar-nos conta historiadores e antropólogos.

12 Depois de uma notável ausência de artigos e livros académicos sobre termalismo, como apontam Roy Porter (1990) e George Weisz (2001), toda uma vaga de publicações surge a partir dos anos 1990 e dá destaque à experiência das camadas subalternas e médias nas termas. Temos em primeiro lugar a colectânea de Porter (1990), cobrindo a experiência

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 80

britânica, com a contrapartida, para França, de Mackaman (1998) e de Weisz (2001). Para Portugal, temos os trabalhos precursores de Ferreira (1995), sobre as Termas da Curia, Mangorrinha (2000), sobre as Caldas da Rainha, e sobretudo Quintela (1999, 2003, 2008, 2011), sobre as Termas de São Pedro do Sul e Cabeço de Vide – bem como das Caldas da Imperatriz, no Brasil. Ainda com ênfase nas camadas populares, veja-se Perestrelo (2004) sobre o acesso de pobres e indigentes portugueses às águas termais em quatro legislaturas diferentes, de 1820 aos nossos dias; Adams (2006) sobre a assistência aos pobres nas termas inglesas; Catedra (2009, no prelo) sobre o acesso a tratamentos termais por trabalhadores e aposentados em Espanha, e Bastos (2011) sobre artesãos e camponeses pobres do Algarve e Alentejo em Monchique no século XIX. Veja-se também o artigo de Speier (2011) sobre banhos checos de Marienbad, aliás Marienska Lane, uma das mais celebradas estações termais europeias, lugar de eleição de príncipes e imperadores, cenário de enredos cinematográficos,5 onde hoje se vive a tensão entre a clientela local, de menor poder aquisitivo, e a mais abonada clientela alemã, que sempre tomou aquelas termas como suas e as tornou conhecidas na sua língua – Marienbad, tal como Carlsbad. Para contextos não europeus, veja-se a análise de Jennings (2006) sobre os usos médicos e simbólicos do termalismo e da hidroterapia por parte dos funcionários coloniais franceses no século XIX, e de La Fauci (2011) sobre os banhos de senhores e de escravos nos tempos da economia de plantação no sul dos Estados Unidos.

13 Fora da disciplina institucionalizada nas estações termais pela hidrologia médica, ou antes dela pela igreja, ou depois dela pelos mercados, persiste toda uma tradição popular de uso das águas termais em autoadministração.6 Posta longe da vista e classificada fora do aceitável, era designada de “crenoterapia clandestina” (Almeida, 1964) pelos médicos hidrologistas implicados na institucionalização do termalismo, que caricaturavam os utilizadores ao descrever que “uns entram em cuecas, seguros por um cinto de correia […]; as mulheres frequentemente vão todas vestidas, tirando só a roupa íntima de baixo e ao mergulharem a saia faz balão […] vão chapinhando e rodando […] triste ballet de velhinhas doentes”, como cita Perestrelo (2004:15)

14 Estas práticas lembram-nos, até hoje, que as águas são procuradas e são investidas de poderes por parte de muitos dos que ficam fora de todos os anéis do privilégio e do consumo. Lázaros, párias, pobres ou simplesmente marginais aos circuitos dominantes, todos procuravam nas águas – tal como os elegantes e poderosos – a promessa de algo que lhes faltava.

Párias e rainhas

15 Neste artigo não excluiremos da análise nem os pobres nem os nobres, já que ambos eram a clientela das termas: aristocratas e descamisados frequentavam os mesmos lugares e bebiam das mesmas águas, mesmo sem se enxergarem mutuamente. O termalismo de glamour exclui da vista a lepra e a sífilis de que alguns são portadores; a ideologia do tratamento pelas águas não faz concessão aos luxos e ao uso prazenteiro e festivo das temporadas termais. Mas é a combinação destas duas vertentes, que alguns veem em ambiguidade, ou mesmo paradoxo (Quintela, 1999; Cossic, 2006), que constitui o fenómeno termal.

16 Se as termas são um lugar de princesas e do que estas simbolizam – poder, beleza, nobreza, lazer, classe – são também o lugar dos leprosos e do que estes simbolizam, isto

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 81

é, o radical sofrimento humano, os limites da integridade física, a dissolução da pele, dos órgãos, dos sentidos. As termas são de uns e de outros, e a sua associação é de tal modo central que aparece nas narrativas de origem de alguns lugares termais – seja em histórias de rainhas e indigentes, como nas Caldas da Rainha, em Portugal, ou de imperatrizes e índios, como nas Caldas da Imperatriz, Brasil.

17 Veja-se a história de Caldas da Rainha, a mais famosa e frequentada estação termal portuguesa, largamente estudada e conhecida (Mangorrinha, 2000): a sua origem é atribuída ao acto piedoso da rainha D. Leonor (1458-1525) que, ao vislumbrar alguns pobres acolhidos de reumático e outras aflições do corpo a banharem-se a céu aberto nos charcos de águas sulfúreas da região de Óbidos, teria mandado erigir um hospital – reputadamente o primeiro hospital termal do mundo – para lhes ser prestada condigna assistência.

18 É também num jogo de contrastes e oposições que assenta a história das Caldas da Imperatriz, em Santa Catarina, Brasil (Quintela, 2008), cujas águas passaram de um uso “silvícola”, por parte dos indígenas da região, ao toque civilizado que lhe confere a visita da mais elevada figura feminina do jovem império: nada menos que Leopoldina, a princesa austríaca que desposou Pedro I, a voz, o corpo e o nome da independência do Brasil, seu primeiro monarca e imperador. Reza a história que esta estação de águas deve o nome à visita de Leopoldina e Pedro que, à semelhança do que faziam os seus congéneres europeus nas estações do velho continente, procuraram nas águas a bênção da fertilidade que a monarquia impunha e não consentia que tardasse.

Imagem: Caldas da Rainha

19 Pouco importa se o lugar das Caldas da Rainha era um secular destino dos leprosos de várias regiões, institucionalizado e conhecido, como se prova pelo édito do rei D. Sancho II em 1223, concedendo direitos aos internos da gafaria de Santarém para se deslocarem e banharem naquela região. Pouco importa se o mítico vislumbre da rainha piedosa sobre os indigentes banhando-se em charcos fétidos não tenha tido a espontaneidade fundadora que a história lhe atribui. Como pouco importa que as Caldas

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 82

da Imperatriz, no Brasil, contendo no nome a superação simbólica das velhas Caldas da Rainha portuguesas, tenham mesmo sido visitadas por uma Leopoldina em busca da fertilidade.

20 É o que o mito de origem nos diz sobre o presente, a identidade colectiva, a autorrepresentação dos lugares termais que mais importa, analogamente ao que os antropólogos têm mostrado para outros mitos de outras origens em outras ocasiões. O que se passa nas narrativas de origem de Caldas da Rainha e de Caldas da Imperatriz é o reconhecimento da simultaneidade dos diferentes usos das águas, da possibilidade de os acomodar num mesmo projecto, dandolhes lugares distintos, tal como as distintas camadas de passageiros a bordo dos grandes navios, e tal como se veio a consolidar na arquitectura dos lugares termais, assumindo a subjacente estratificação social.

Um pobre paralítico entre marqueses e burgueses

21 Toda a panóplia de posições sociais sobrepostas e entrelaçadas está presente no curto e incisivo romance de Guy de Maupassant Mont-Oriol (1886),7 uma comédia de costumes sobre uma vila termal francesa emergente. Temos a jovem marquesa suspirante, o marido banqueiro pagando caro pelo seu lugar numa sociedade preconceituosa, o cunhado perdulário e parasita, o amigo rico e sedutor, o velho marquês calculista e pronto a ceder às novas classes, os médicos mercadores, as suas teorias e as suas largas clientelas, os doentes e os pseudo-doentes, os hoteleiros e os serviçais, os camponeses proprietários das terras, e as nascentes, claro, as fontes de onde jorra a água que a todos promete a redenção – seja em saúde, dinheiro ou amor e alianças sociais.

22 Mas uma personagem discretamente se destaca, pois dela depende a garantia, o testemunho, a prova da excepcionalidade das águas locais, e dessas depende a fama do lugar e o proveito de quase todos: dos proprietários que venderão as terras a preços elevados, dos investidores que ganharão chorudos dividendos, dos hoteleiros que terão clientes, dos médicos que aumentarão a clínica e os proventos, dos pacientes que ali vão adquirir a cura, dos acompanhantes que ali passarão temporadas e construirão os cenários de encontros e de festa. Dessa personagem dependerá a nova vila termal, pronta a suplantar as outras, a ter a seus pés os médicos e as suas centenas de doentes parisienses, que se multiplicarão em outras centenas e noutras tantas vantagens para os promotores.

23 E quem é esse de quem vão depender proprietários, banqueiros, médicos ilustres e seus mais ilustres clientes? Nada menos que o velho Clovis, um paralítico que “se arrasta como caranguejo sem patas” apoiado em muletas e atribui o seu padecimento a longas noites de água pela cintura nas ribeiras em que pescava e a muitas horas acocorado em erva húmida para catar lenha.

24 Da autenticidade dos seus males duvidavam os jovens que o teriam visto ágil como um cervo nos bosques, quando à noite se esgueiravam pela floresta na senda de encontros e aventuras. E tal ambiguidade melhor se prestava ao propósito do pai Oriol, dono dos terrenos onde se situam as nascentes, que se propõe a fazer de Clovis testemunha e espectáculo das virtudes da água. Se Clovis se apresentasse sem muletas dando crédito ao banho, ninguém mais resistiria ao poder das águas de Oriol, e o destino da nova Vila Termal estava traçado.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 83

25 Clovis torna-se assim o pária a quem as águas redimem, que exibe o efeito miraculoso do banho, e que não deixa de, em segredo, colher os dividendos dessa propaganda junto de potenciais beneficiários, como o proprietário Oriol, que gere apertadamente os seus bens e não se deixa enganar pelos forasteiros que de todos os modos e maneiras o tentam comprar; e o banqueiro Andermatt, marido da jovem marquesa, recém- admitido em uma família tão aristocrata e perdulária quanto decadente e falida, que a todos vai sustentando e tudo vai aguentando, inclusive o aberto adultério da consorte e os insultos antissemíticos com que de quando em vez o brindam personagens e narrador – e, por que não também, os abusos do velho Clovis.

26 A cura-espectáculo de Clovis garante a verdade das águas, daquelas águas, para que todos, capitalistas, proprietários, hoteleiros, clientes e médicos, possam prosseguir nos seus bons negócios de cura, hotelaria, estação de banhos. Mas Clovis não se vende por pouco, e excede-se na sua própria representação dos progressos e dos retrocessos da cura termal, que admite todas as recaídas, todas as crises, todas as involuções como parte do processo de cura. Ele melhora, para depois piorar; anda sem muletas a seguir aos banhos, para meses depois se anunciar em pior estado, maledicente, ameaçador, aumentando assim o preço da sua chantagem, e sem querer epitomizando a circularidade da cura termal, que pede renovação a cada ano e repetição a cada temporada.

“Ao terceiro banho deixou as muletas”

27 A cura do paralítico não é uma invenção literária de Maupassant, mas um velho tema de mudança radical que tem particular expressão no catolicismo europeu. Aos grandes altares de Lourdes, em França, e Fátima, em Portugal, bem como a muitos outros lugares de peregrinação, fé e virtude acorrem anualmente centenas de paraplégicos em busca de redenção. Muitos regressam pelo seu pé, deixando para trás cadeira de rodas, maca, muletas e bengalas.

28 A igreja só reconhece como “milagres” algumas das curas assim reportadas, sendo que a maior parte é interpretada como autoinduzida reparação sobre males eventualmente autoinduzidos e de alguma forma ultrapassáveis por meios que não o do milagre. Não é aqui o lugar para aprofundar os mecanismos da cura autoinduzida, que tem levado a apaixonantes pesquisas (e.g. Moerman, 2002); o que interessa sublinhar é o lugar central do resgate do paralítico enquanto símbolo de redenção e cura na cultura europeia. Essa centralidade extravaza os lugares de crença e, como se verá abaixo, entra nos espaços laicos da medicina e impõe-se à narrativa de eficácia médica.

29 Assim acontecia nas Caldas de Monchique, no interior da província portuguesa do Algarve (Bastos, 2011). Após séculos de livre acesso às águas por parte de camponeses e transeuntes, a que não faltaram restos arqueológicos romanos e a evocação da passagem por um ou dois monarcas em digressão para o sul, como D. João II e D. Sebastião, a administração destas águas fora conferida aos bispos do Algarve, que desenvolveram algumas estruturas básicas para acomodação dos aquistas, tanques, banheiras, acessos, pomares e jardins (Acciaiuoli, 1944).

30 Desde 1649, com obras de melhoramento em 1672, que ali existiam três edifícios para acomodar os banhistas: um deles para os banhos, um outro para alojamento, com três camas e chaminé de cozinha, e um alojamento extra “para criados e pobres”, dando

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 84

evidência da diversificação social da clientela. Em 1691-2 as instalações são ampliadas e acrescidas de uma enfermaria para pobres, à qual se somam, em 1731, uma enfermaria e um dormitório para mulheres; ao longo do século XVIII várias obras de melhoramento se sucedem, e nos inícios do XIX havia três zonas de banhos socialmente diferenciadas: a de São João de Deus, com capacidade para 12 pessoas; a de Santa Teresa, albergando até seis pessoas; e a da Pancada, na qual a água caía de uma bica elevada, que podia ter até 40 aquistas, segundo a descrição de Francisco Tavares publicada em 1810; é também ele que nos dá uma panorâmica dos edifícios que remete para a diversificação social da clientela. Ao longo de um corredor Norte-Sul haveria quartos separados para particulares de maior capacidade económica, que aliás deixavam uma esmola para o Hospital pela sua estadia; e à entrada haveria “uma casa grande para homens pobres, e outra tal no fim para mulheres, nas quais se acomodam sem separação de quartos”. Haveria ainda “mais cinco ou seis pequenos albergues de pobre gente que ali assiste, e cultiva algum terreno” e “uma casa maior, residência do provedor que de ordem do Prelado governa o Hospital” (Tavares, 1810).

31 A coexistência de ricos e pobres e a sobreposição de serviços diferenciados são reconhecidas em várias épocas; no início do século XX, São João de Deus é descrito como um serviço de primeira, com banheiras individuais; Santa Teresa seria a segunda classe e a terceira classe correspondia a mais ampla piscina da Pancada (Sarzeda, 1903).

32 Com santos a presidir e entidades da água subsumidas no culto, tudo indica que os elementos pagãos associados ao uso das águas (Cossic & Galliou, 2006) tenham sido adaptados aos rituais e fé católicos então vigentes na Península Ibérica, atravessando acomodações materiais definidas por classe e género.

33 A omnipresença da Igreja tinha porém os seus dias contados. O seu poder temporal é posto em causa durante as grandes mudanças políticas que ocorreram em Portugal no século XIX: em 1834 os bens eclesiásticos são confiscados, e as águas de Monchique voltam provisoriamente à administração directa e ao uso livre, sem supervisão ou apoios estruturados. Pouco sabemos sobre as práticas desse período; sabemos apenas que em meados do século as instalações ali existentes eram mínimas e desqualificadas (Bonnet, 1850) e que, nas palavras dos políticos algarvios que pleiteavam pela intervenção pública em Monchique, reinavam “ignorância e superstição.”

34 É contra a superstição e pela ciência que clama o deputado Braklamy no Parlamento, em Lisboa, no ano de 1840. Segundo ele, as águas de Monchique teriam já curado “milhares de paralíticos e de reumáticos”; impunha-se uma intervenção pública sob a égide da medicina e da ciência.

35 E assim vem a acontecer, embora lentamente. O governo promove desde os anos 1860 arranjos que permitem ali criar um estabelecimento termal qualificado, garantindo que os pobres continuarão a ter assistência gratuita, como no tempo dos bispos, mas serão supervisados por médicos com critérios científicos e modernos. E quem ocupa primeiro esse cargo vem a ser um Lázaro – mas apenas de nome. É o Dr. Francisco Lázaro Cortes, médico residente a partir de 1872. Monchique torna-se então um centro termal que corresponde aos requisitos da moderna hidroterapia, e ao qual acorrem ricos e pobres.

36 É Francisco Lázaro que regista nomes, idades, constituição, padecimentos, causas próximas e remotas, tratamentos, resultados – um manancial que nos permite ter uma percepção aproximada dos perfis demográficos da clientela de Monchique nos anos 1870, do seu estado de saúde, das razões mórbidas que os levaram ao tratamento, das terapias ministradas, da duração da estadia. É também este médico que assinala

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 85

marginalmente os pequenos milagres que ocorrem com alguns dos aquistas que aparecem no seu caminho de muletas e as largam ao fim de uma série de três banhos.

37 E é um “ao terceiro banho deixou as muletas” que finaliza a ficha clínica de Pedro António, um cordoeiro de Portimão, com 35 anos de idade; de João Brigadeiro, alfaiate de Lagos, com 24 anos; Manuel José Passarinho, trabalhador de Lagos, 34; Agostinho José, trabalhador de Odemira, 30; Maria Henriques, doméstica de São Brás, 32; e José da Silva, trabalhador de Monchique, 30 anos. Milagres, curas pagãs e curas cristãs eclodem assim distraidamente por entre o mais insuspeito dos mais científicos registos, o do médico residente.

Medicalização, homogeneização, diversificação

38 Francisco Lázaro Cortes introduziu a homogeneização da clínica e a medida do registo, permitindo-nos chegar a muitos elementos do passado das Caldas de Monchique. Analisando os dados do ano de 1874, ficamos a saber que foram admitidos 749 banhistas, dos quais uma meia dúzia fez repetição da temporada. São 346 do sexo masculino, 402 do sexo feminino. Começam a chegar em MarçoAbril, embora a temporada se inaugure oficialmente em Maio; e, embora esta encerre oficialmente em Setembro, persistem em chegar até Outubro Novembro.

39 Vêm caminhando pelo seu pé, de burro, a cavalo, em charrettes e galeras. Ainda não estão abertos os melhores caminhos para a serra, e o caminho de ferro é algo que só chegará no século XX ao Algarve. Estamos, portanto, longe do fenómeno do desenvolvimento combinado das estações termais e ferroviárias que se conhece para França e também para o norte de Portugal.

40 A clientela das termas de Monchique, seja rica ou pobre, é dominantemente regional, vem do próprio Algarve: a maioria vem mesmo de Monchique (88 banhistas), ou de distância inferior a 25 km (320 banhistas); vêm do vizinho Alentejo (92), e ocasionalmente de Espanha (7). Vêm ricos e pobres: proprietários e lavradores (122), donas de casa a quem o médico distingue com um “Dona” (84). Vêm da Mina de São Domingos – os administradores. Vêm também médicos, militares, eclesiásticos, estudantes, funcionários. Vêm das cidades da costa de Lagos e Portimão: cordoeiros, carvoeiros, alfaiates, sapateiros, carpinteiros e outros artesãos. Vêm do concelho limítrofe de Odemira, no Alentejo, lavradores e trabalhadores rurais. Muitos trabalhadores rurais (75), muitas domésticas a quem não aparece a distinção de “Dona” (84), algumas costureiras e tecedeiras da Serra. E vêm criados, pedintes, pobres. Num total de 155, cobrindo mesmo algumas designações de profissão, muitos doentes são marcados como pobres e se deduz que recebem tratamento grátis.

41 O atendimento gratuito àqueles que apresentam atestado de pobreza é matéria de legislação e não é exclusivo de Monchique. O mesmo foi apontado por Mackaman (1998) para França e por Cátedra (2009) para Espanha, sendo aqui motivo de contestação por parte dos investidores locais que queriam maximizar os seus lucros e pouco se importavam com a tradição da caridade e o tradicional livre acesso dos banhistas às nascentes. Mas em Monchique, como noutros lugares, manteve-se historicamente o acolhimento dos pobres, mesmo que lhes estivessem destinados lugares cada vez mais longe da vista dos utentes de maior fortuna que ali procuravam, também, os prazeres do lazer e do entretenimento postos em moda nas termas mais afamadas e elegantes. Das crónicas não reza o entretenimento dos pobres, mas não nos é difícil imaginar que

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 86

também eles se divertiam, cantavam e dançavam nas sombras e nas encostas da encantadora Monchique. Tal como os trabalhos de antropologia e sociologia têm vindo a mostrar (Ferreira, 1995; Quintela, 1999, 2003, 2008; Cátedra, 2009), tratar e curar não são só penar, são também folgar, e folgas há para todos os gostos e posições sociais.

42 O alargamento do imperativo de tratar os pobres terá sido, em parte, o motor da expansão de um sistema de apoio estatal às estadias termais que se banalizou na Europa continental, como mostra Weisz (2001) para a França e a Alemanha, Portugal e Espanha não são excepção (Ferreira, 1995; Quintela, 1999; Catedra, 2009). Diferente é o caso britânico, cujo termalismo decaiu no século XX (Porter, 1990; Weisz, 2001), e diferente é também a situação nas Américas, incluindo o Brasil (Quintela, 2008), onde as termas se mantiveram de acesso livre e fora da regulamentação médica – e também fora dos subsídios regulares do Estado ou da segurança social.

43 É aliás a existência do reembolso para as estadias termais que explica, segundo Weisz, a longevidade do termalismo francês – e também o seu declínio como imediata decorrência da suspensão destes subsídios. De algum modo, durante umas alargadas décadas do século XX, todos foram tratados como pobres, todos foram socialmente assistidos: o termalismo do glamour deu lugar a um termalismo medicalizado com comparticipação estatal. Onde tinha havido salões de baile e grandiosos casinos havia agora um lugar de prestação de cuidados de saúde e de prevenção, ficando como memória do passado o tempo das orquestras e dos banquetes de lagosta (Quintela, 1999). Mas também o tempo das termas enquanto lugar de assistência a um número crescente de idosos e um número quase inexistente de veraneantes de lazer – que entretanto migraram para as praias – iria ter um fim.

44 E o que viria em seu lugar?

Novas tendências: a ressacralização dos spas e a nobilitação do consumo

45 Se os vários artigos da colectânea de Porter The Medical History of Waters and Spas parecem transmitir um tom de fim de época, como se se tratasse de algo que já não existe mais (Weisz, 2001), e se o fim do termalismo europeu como o conhecemos se fez várias vezes anunciar, algo surgiria em seu lugar e, em vez de o sufocar, permitiu a sua continuação (Bastos, 2006, 2011). Esse algo foi a reinvenção das estações termais em lugares de prazer e consumo, os spa,8 em parte reabilitando uma antiga tradição de prazer dos sentidos, em parte apelando a novas inclinações de apreciação da natureza e dos seus elementos, em parte jogando com as tendências new age de ressacralização das águas e da invocação das suas entidades, em parte investindo no consumo puro e duro dos novos produtos, que nos aparecem como fins de semana de relax, contacto com a natureza, tomas de águas, mas também provas de vinhos, gastronomia, e os novíssimos produtos que reinventam benigna e festivamente a pele descamada de outrora nos peeling dos mais exóticos produtos, que incluem chocolate, vinho, café e frutos comestíveis, como se os novos templos da água passassem quase bem sem água, diversificando e desafiando a imaginação, e negando a pobreza e a exclusão na aparente universalidade do dinheiro e do crédito.

46 Se esta é a reinvenção das termas, como apontam as tendências de muitos lugares europeus, então podemos dizer que Monchique se antecipou: desde 2002 que se recriou

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 87

como vila termal e spa moderno que apela a um turismo inventivo e de qualidade em que as águas continuam a ser centrais, mas não são o único elemento. E ora tirando da pele as camadas comestíveis que o envolveram numa sessão de “chocoterapia”, ora gozando de um perfumado “banho de Cleópatra”, todos são convidados a ser, simultaneamente ou à vez, lázaro e princesa...

BIBLIOGRAFIA

ACCIAIUOLI, Luís de Meneses. 1944. Águas de Portugal: minerais e de mesa: história e bibliografi . Lisboa: Direcção Geral de Minas/Soc. Tipográfica.

ADAMS, Jane. 2006. “Accommodating the Poor: The role of the voluntary Hospital in Nineteenth century English Spas”. In: Annick Cossic & Patrick Galliou (eds.). Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press. pp. 161-191.

ALMEIDA, Amaro de. 1964. A Crenoterapia Clandestina. Lisboa: s.n. AUSTEN, Jane. 1816. Persuasion. London: John Murray.

____. 1818. Northanger Abbey. London: John Murray.

BASTOS, Cristiana. 2006. “Das Termas aos ‘Spas’: reconfigurações de uma prática terapêutica”. Disponível em http://www.aguas.ics.ul.pt/docs/dinamicas.pdf. Acesso em: 1/8/2011

____. 2011. “From sulphur to perfume: spa and SPA at Monchique, Algarve”. Anthropology and Medicine, 18(1):37-53.

BASTOS, Cristiana & BARRETO, Renilda (eds.). 2011. A Circulação do Conhecimento: Medicina, Redes e Impérios. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, Livros On-Line.

BALCOU, Jean. 2006. “Deux Philosophes aux Eaux: de Voltaire à Diderot”. In: Annick Cossic & Patrick Galliou (eds.). Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press. pp. 227-238.

BANCQUART, Marie-Claire. 2002. Preface à Maupassant – Mont-Oriol. Paris: Gallimard. pp. 7-31.

BONNET, Charles. 1850. Algarve (Portugal): description géographique et géologique de cette province. Lisbonne: Typ. de la Acad. Royale des Sciences.

BROCKLISS, L.W. 1990. “The Development of the Spa in Seventeenth-century France”. Medical History – Supplement 10:23-47.

BROWNE, D. 1990. “Spas and sensibilities: Darwin at Malverne”. Medical History – Supplement 10.

CATEDRA TOMAS, Maria. 2009. “El agua que cura/Healing Waters”. Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, LXIV(1):177-210.

CATEDRA TOMAS, Maria. Prejubilados en el agua. No prelo.

COSSIC, Annick. 2006. “The female invalid and Spa Therapy in Some Well-Known 18th century Medical and Literary Texts”. In: Annick Cossic & Patrick Galliou (eds.). Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press. pp. 115-138.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 88

COSSIC, Annick & GALLIOU, Patrick (eds.). 2006. Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press.

CRUZ, Alice. 2008. A Lepra entre a opacidade do véu e a transparência do toque: interstícios de sentido na última leprosaria portuguesa. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Programa de Pós- colonialismos e Cidadania Global da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/handle/10316/9701. Acesso em: 01/08/2011.

FERREIRA, Claudino. 1995. “Estilo de vida, práticas e representações sociais dos termalistas. O caso da Curia”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 43:93-122.

GORMAN, Anita. 2006. “Seeking Health: The city of Bath in the Novels of Jane Austen”. In: Annick Cossic & Patrick Galliou (eds.). Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press. pp. 315-334.

HEALY, Margaret. 2005. “Journeying with the stone: Montaigne’s Healing”. Travel Journal – Literature and Medicine, 24(2):231-249.

HURLEY, Alison E. 2006. “A conversation of their own: Watering-place correspondence among the bluestockings”. Eighteenth-Century Studies, 40(1):1-21.

JENNINGS, Eric T. 2006. Curing the Colonizers: Hydrotherapy, Climatology, and French Colonial Spas. Durham: Duke University Press.

LA FAUCI, Lauren. 2011. “Taking the (southern) waters: science, slavery, and nationalism at the Virginia springs”. Anthropology and Medicine, 18(1):7-22.

MACKAMAN, Douglas Peter. 1998. Leisure Settings: Bourgeois Culture, Medicine, and the Spa in Modern France. Chicago: University of Chicago Press.

MANGORRINHA, Jorge. 2000. O lugar das termas: património e desenvolvimento regional: as estâncias termais da Região Oeste. Lisboa: Livros Horizonte.

MAJER, Irma S. 1982. “Montaigne’s Cure: Stones and Roman Ruins”. MLN, 97:958-974.

MARTINS, Augusto. 2008. Ortopedia – São Lázaro. Disponível em: http://sites.google.com/site/ augustomartinsortopedia/s-l%C3%A1zaro. Acesso em 01/08/2011.

MAUPASSANT, Guy de. 2002 [1885]. Mont-Oriol. Édition presentée, et établie par Marie-Claire Bancquart. Paris: Gallimard.

MOERMAN, Daniel. 2002. Medicine, Meaning and the “placebo effect”. Cambridge: Cambridge University Press.

ORTIGÃO, Ramalho. 1875. Banhos de caldas e águas mineraes. Porto: Magalhäes & Moniz.

PERESTRELO DE MATOS, António. 2004. Pobres, indigentes, aquistas e turistas – em 4 regimes sobre 4 leis. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais “A Questão Social no Novo Milénio”. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel37/ AntonioPerestreloMatos.pdf. Acesso em: 01/08/2011.

PORTER, Roy (ed.). 1990. The Medical History of Waters and Spas. Medical History – Supplement 10.

PORTER, Roy & ROUSSEAU, G. S. 1998. Gout: The Patrician Malady. New Haven: Yale University Press.

QUINTELA, Maria Manuel. 1999. Entre Curar e Folgar: etnografia das termas de S. Pedro do Sul. Dissertação de Mestrado, ISCTE, Lisboa.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 89

QUINTELA, Maria Manuel. 2003. “Banhos que Curam: Práticas Termais em Portugal e no Brasil”. Etnográfica, 7(1):171-185.

____. 2008. Águas que curam, águas que “energizam”. Etnografia comparada das Caldas de Imperatriz (Brasil) e Cabeço de Vide (Portugal). Tese de Doutoramento, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.

____. 2011. “Seeking ‘energy’ vs. pain relief in spas in Brazil (Caldas da Imperatriz) and Portugal (Termas da Sulfúrea)”. Anthropology and Medicine, 18(1): 23-35.

SPEIER, Amy. 2011. “Health tourism in a Czech health spa”. Anthropology and Medicine, 18(1):55-66.

TAVARES, Francisco. 1810. Instrucções e cautelas practicas sobre a natureza, diferentes especies, virtudes em geral, e uso legitimo das águas mineraes, principalmente de Caldas; com a noticia daquellas, que são conhecidas em cada huma das Provincias do Reino de Portugal, e o methodo de preparar as aguas artificiais. Coimbra: Real Impr. da Universidade.

TOULIER, Bernard. 2006. “Les Villes d’Eaux en France (1850-1914)”. In: Annick Cossic & Patrick Galliou (eds.). Spas in Britain and France in the Eighteen and Nineteenth Centuries. Newcastle: Cambridge Scholars Press. pp. 69-93.

WEISZ, George. 2001. “Spas, Mineral Waters and Hydrological Science in Twentieth Century France”. Isis, 92(3):451-483.

WEISZ, George. 2011. “Historical reflections on medical travel”. Anthropology and Medicine, 18(1): 137-144.

NOTAS

1. A pesquisa sobre águas termais iniciou-se no âmbito dos projectos “A água como agente terapêutico” e “Das termas aos Spas”, cujos resultados estão parcialmente publicados em www.aguas.ics.ul.pt; as investigações continuaram enquanto secção do projecto mais amplo “Impérios, centros e províncias: a circulação do conhecimento médico” (ver Bastos & Barreto, 2011), e neste momento prolongam-se no projecto “A ciência, a clínica e a arte da sífilis no Desterro” (FCT – HC/0071/2009). O meu reconhecido agradecimento às instâncias que tornaram possível a pesquisa e a todos os que de um modo ou outro nela colaboraram. 2. Até ao século XIX, o termo “lázaro” era preferido ao de “leproso” e o nome de “Hansen” não era ainda utilizado para esta patologia. “Gafo” era outro dos termos utilizados; e os lázaros e gafos, internos das gafarias (leprosários), eram tradicionais utilizadores das águas termais. Dos internos da gafaria de Lisboa, em São Lázaro, se diz que iam tratarse às águas de São João do Deserto, no Baixo Alentejo (Martins, 2008). Na sua análise dos debates parlamentares portuguesese sobre águas, António Perestrelo descreve um projecto apresentado em 1821, mas nunca concretizado, para transferência da gafaria de São Lázaro, em Lisboa, para as termas do Estoril (Perestrelo, 2004:5) O mesmo autor mostra quanto é recorrente, até ao século XIX, a existência, nas termas portuguesas, de banhos à parte para lázaros e “outras doenças asquerosas” (2004:6). 3. O estudo histórico e literário da produção epistolar feminina tem demonstrado o papel particular das estadias termais no desenvolvimento de todo um género de literatura e na consolidação de redes particulares de diálogo e interacção que se destacaram desde o século XVIII (Hurley, 2006; Cossic, 2006). Para as demais dimensões apontadas, vejamse as colectâneas coordenadas por Porter (1990), Cossic & Galliou (2006), Naraindas & Bastos (2011), bem como os trabalhos monográficos de Mackaman (1998) e de Quintela (1999, 2003, 2008), entre outros.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 90

4. Também na apresentação das doenças se inscreve a estratificação social, sendo a gota (Porter & Rousseau, 1998) a quintessência dos efeitos nefastos da abastança no género masculino, dando- se-lhe o qualificativo de “gota nervosa” quando aparecia em mulheres, que aliás tinham o seu fardo na histeria (e.g. Cossic, 2006). Quanto à sífilis, que em certos momentos se tornou uma inevitabilidade de boémios, famosos e escritores – incluindo o próprio Maupassant, que nos dá um dos mais mordazes retratos do fenómeno termal francês (Maupassant, 1886) – ela está omnipresente em várias das suas manifestações secundárias e terciárias, mas nunca chega a tema eleito para conversa de salão, como alguns outros padecimentos, que de escondidos passam a tema público no contexto das estadias termais (ver Cossic, 2006; Quintela, 2008; Naraindas & Bastos, 2011). 5. O conhecido e intrigante filme de Resnais, O último ano em Marienbad, não é propriamente sobre termalismo, mas usa em abundância os seus magistrais cenários para criar os efeitos de óptica surreal de que vive o filme. 6. Veja-se www.aguas.ics.ul.pt 7. Agradeço a Anne-Marie Moulin esta inspiradora referência. 8. Embora “spa” seja o termo inglês para termas e caldas (veja-se Porter, 1990; Cossic & Galliou, 2006), provavelmente originado nas famosas termas de Spa, na Bélgica, a indústria do spa, ou “SPA”, reinventou a sua etimologia para uma origem presumivelmente romana de “Saúde Pela Água” (ver Bastos, 2011).

RESUMOS

Este artigo analisa dois tipos de narrativa sobre o termalismo europeu – a do luxo, glamour e lazer, por um lado, e a do tratamento de doenças “asquerosas”, por outro – para argumentar que, embora negando-se mutuamente e definindo-se por oposição, estas vertentes são indissociáveis e coexistem formando estratos e camadas que acomodam diferenças de interesses, de propósitos e de classe. Fazendo uso de literatura recente sobre termalismo vinda da antropologia, da sociologia, da história, dos estudos de ciência e dos estudos literários, e de pesquisa empírica relativa a Monchique (Algarve, Portugal), estudaremos a coexistência de diferentes classes de utilizadores de águas termais e analisaremos enquanto fenómeno mediador entre as duas vertentes contrastantes aquilo que chamamos de “cura do lázaro”, ou do indigente paralítico – aquele que, dispensando as muletas “ao terceiro banho”, veicula e materializa a promessa terapêutica, o prestígio simbólico do lugar termal e, por conseguinte, amplia as suas clientelas e os lucros dos empreendedores.

This article analyses two opposed narratives regarding water spas in Europe: as sites of glamorous leisure for posh and wealthy classes and as places of relief for dreadful scourges. I argue that these contrasting narratives, and the actual uses of spa waters they refer to, are not mutually exclusive but in fact co-dependent. They coexist and create a stratified use of the waters, accommodating differences in social class, culture, purpose and goal. Making use of recent literature on water spas from disciplines as varied as anthropology, sociology, history, literary studies, and social studies of science, and using empirical data from the traditional spa of Monchique (Algarve, Portugal), I analyse the coexistence of different classes of spa consumers and the way the “leper cure” or redeeming (third) bath, appears as a mediator and a device to expand the symbolic value – and therefore the demand and the market value – of those waters.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 91

ÍNDICE

Palavras-chave: banhos, caldas, cura, estratificação, placebo, Europa, hidrologia médica, termalismo Keywords: Spa, bath, water, healing, cure, hydrotherapy, placebo, class, Europe

AUTOR

CRISTIANA BASTOS ICS, Universidade de Lisboa

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 92

Rare ou abondante, l’eau précieuse. En France, l’exemple de la Brenne des étangs

Geneviève Bédoucha

NOTE DE L’ÉDITEUR

Recebido em 22/07/2011. Aprovado em 04/08/2011. Les travaux de Geneviève Bédoucha, directeur de recherche au CNRS en anthropologie sociale, portent sur les rapports entre gestion de l’eau et société. Elle a longtemps mené des enquêtes en zone aride ou semi-aride sans l’aire tribale du monde arabe, notamment en Tunisie et au Yémen, où elle a effectué des analyses comparatives, avant de s’intéresser aux zones humides continentales.

1 Avant même que n’ait été véritablement entreprise l’analyse en Brenne d’un système de gestion des eaux d’étangs voués à l’exploitation piscicole depuis l’époque monastique et qu’en ait été mesurée l’importance, surgissaient différentes questions stimulantes.

2 En cette région du cœur de la France où se trouvent d’innombrables étangs, classée zone humide d’importance internationale, le lien entre gestion de l’eau et société serait-il aussi signifiant qu’il est avéré en zone aride ou semi-aride ? En d’autres termes, la gestion de l’eau pouvait-elle y structurer le social, et la société se projeter dans l’organisation hydraulique, comme cela a pu être observé à maintes reprises en différents lieux du monde1 ? Ligne fructueuse de déchiffrement du social là où elle est essentielle à la survie d’une société, l’eau peut-elle permettre d’accéder au social là où l’on ne saurait prétendre qu’elle soit condition de survie, ou encore là où elle existerait même en abondance ?

3 Le paradoxe d’une gestion rigoureuse des eaux, alors que l’on semblerait bien être en situation d’abondance, a été souligné dans des travaux récents menés au sein d’aires géographiques et culturelles très diverses, et portant sur des sociétés où se pratique

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 93

une agriculture irriguée. Ces travaux, dont j’interprèterai ici en partie les résultats, amènent à discuter de la notion même d’abondance, dont on verra qu’elle peut être toute relative, et dès lors de la perception que peuvent avoir à différents moments de leur histoire les différentes sociétés de la notion de rareté, du sens qu’elles lui donnent.

4 Que la rareté de l’eau même en région aride n’exclut en rien une déperdition objective d’eau, seule évaluée par des scientifiques extérieurs, est d’ailleurs hautement significatif de la perception que peuvent avoir les sociétés de la rareté. Aussi, observer des déperditions d’eau, des « gaspillages », dans une société pratiquant l’irrigation dans un contexte d’eau abondante, ne saurait non plus être la preuve du caractère non précieux de l’eau aux yeux des hommes.

Paradoxes apparents

5 Le choix, délibéré, d’une société située au Portugal, dans le canton de Melgaço où l’eau existe véritablement en abondance, a été celui de Fabienne Wateau (2002) pour laquelle il s’agissait clairement « d’écarter la question de la rareté de l’eau », l’eau qui, dans la vision économiste, et parce qu’elle suscite la convoitise, « légitime les conflits ». Abondance flagrante de l’eau avec toutefois la mise en œuvre, exclusivement durant la saison d’été — même s’il repose sur des infrastructures simples — d’un système d’irrigation complexe dans la diversité même des types de partage, les modes de comptage minutieux des droits d’eau, la logique de répartition des eaux.

6 L’aménagement de ce système, qui — cela a toute son importance, ne concerne pas l’ensemble de la population —, date du xviie siècle. La richesse en eau provenant de sources et de ruisseaux des montagnes proches avait alors permis de diversifier et d’intensifier la production agricole, avec notamment l’introduction de la culture du maïs, grande consommatrice d’eau mais aussi celle du haricot et de la courge. L’inauguration d’une « irrigation intensive », qui a vu se multiplier forages de galeries drainantes et rigoles avec organisation de tours d’eau et un partage strictement réglementé, daterait de cette époque. Irrigation intensive par une « eau d’abondance » pour une production agricole accrue et diversifiée qui aurait entraîné un essor démographique notoire: telle se présente la situation à Melgaço.

7 Au Népal, dans la région d’Aslewacaur, alors que l’eau s’y trouve en quantité suffisante pour alimenter toutes les rizières, une distribution stricte en est pourtant observée (Aubriot 2004). L’organisation des tours d’eau connaît un ordonnancement rigoureux en quatre quartiers d’irrigation par canal — auxquels sont attribués des temps d’irrigation fixes —, ainsi qu’une alternance des tours d’eau entre amont et aval, jour et nuit, qui garantit l’accès à l’eau dans une parfaite égalité des groupes lignagers. Le partage précis de l’eau y est d’autant plus contraignant que l’on a recours à l’horloge à eau ordinairement utilisée dans les milieux arides. Et l’on peut légitimement s’interroger dans un premier temps sur une telle minutie du partage de l’eau en général associée à la rareté de l’eau.

8 A contrario, dans une société oasienne située, elle, en zone aride, au Ladakh, région des hautes vallées de l’Himalaya, le partage de l’eau ne fait aucunement l’objet d’une réglementation précise (Labbal 2001). Discutons-en d’emblée le paradoxe. Ici, on peut avancer qu’elle ne s’avère pas nécessaire, car l’interdit de troubler l’ordre d’irrigation auquel veillent les maîtres de l’eau, chargés chaque mois des rituels honorant les divinités, relève du sacré; il est si profondément intégré qu’extrêmement rares sont les

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 94

fauteurs de trouble. Un des mots-clefs de la pensée religieuse apparaît de façon récurrente dans les discours, qui renvoie à la fois à d’heureux auspices et à la notion d’interdépendance, celle des hommes, des dieux, des forces de la nature étroitement liés dans la recherche de la prospérité: « tous participent à un ordre du monde qui, s’il n’est pas préservé, laissera place au chaos aux malheurs et aux calamités. » (Labbal, 2001:196).

9 L’eau passe de champ en champ et le débit attribué correspond aux besoins précis de la parcelle selon les cultures pratiquées, évalués par les maîtres de l’eau. Autrefois entre les mains de fonctionnaires du roi qui se la transmettaient par héritage, la charge revient de nos jours par rotation aux membres de la communauté souvent réticents à l’accepter du fait des compétences fines qu’elle exige, de la lourdeur de la charge et de la responsabilité qu’elle suppose. Chaque parcelle a ainsi ce qu’il lui faut mais il est entendu que personne n’abusera, ou risquera de gaspiller l’eau. Personne n’y a intérêt, celui qui enfreint les règles tacites se verrait mis au ban de la société et les conséquences peuvent être graves pour l’ensemble de la communauté qui craint les représailles des divinités en colère.

10 Ainsi, nul besoin dans cette société, me semble-t-il, et malgré un contexte de rareté de l’eau, de recourir à un partage strict. Les valeurs profondément ancrées et partagées, éventuellement la pression de la communauté sur les individus, sont suffisamment fortes pour que soit respectée la discipline par l’ensemble de la communauté. Les divinités ont seules le véritable pouvoir sur l’eau comme sur l’ensemble des ressources du territoire, seules elles peuvent assurer à l’oasis l’eau suffisante pendant toute la saison.

11 L’abondance énoncée de l’eau à Aslewacaur ou à Melgaço trouve cependant dans les deux cas, ici très rapidement présentés, chaque fois d’évidentes limites qui selon moi pourraient amener à relativiser la notion d’abondance.

12 À Aslewacaur, le canal principal d’irrigation, creusé sur 6 kms à flanc de montagne avant sa partition en trois canaux secondaires, est menacé par de fréquents glissements de terrain qui provoquent des interruptions brutales de l’alimentation en eau. Dans un contexte d’abondance, un risque bien réel de manque d’eau existe donc, pendant certaines périodes — précisément lorsqu’un apport d’eau est essentiel à la riziculture —, qui peut induire une tension sociale. Et les hommes ne l’ont pas négligé. C’est bien le risque de pénurie du fait de la rupture possible du canal qui aurait amené à une distribution extrêmement stricte, à un découpage du temps précis et rigide, chaque parcelle ayant un droit bien défini. L’ordre aurait été établi de façon à éviter tout conflit en cas de pénurie soudaine, il est fixe, et sans égard pour le manque d’eau provoqué l’irrigation se poursuit selon un ordre immuable, indifférent aux incidents. Les ayants droits lésés devront, eux, attendre le tour suivant. Aussi les règles de partage ont-elles pu être aménagées au sein d’un même lignage afin de diminuer l’écart entre deux tours.

13 L’utilisation de l’horloge à eau ne vient que conforter, accentuer ce caractère rigoureux et indiscutable du partage. Le recours à cette technique savante de mesure du temps ordinairement utilisée au Népal par les astrologues viendrait par sa référence spirituelle « marquer l’influence cosmique » sur la gestion d’ensemble (Aubriot, 2004:15). Il a dans cette société une portée symbolique qui aurait aidé à lever les réticences et à l’acceptation du système mis en place, non sans mal, par un seul homme.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 95

14 Situation toute différente dans le cas portugais: l’extension au xviie siècle à Melgaço de cultures très exigeantes en eau pourrait bien avoir rendu caduque la notion d’abondance durant la saison d’été. Fortement mobilisée, l’eau devient une ressource précieuse que l’on se répartit dès lors avec vigilance. Mais il y a là incontestablement un choix de la société melgacense, à un moment précis de son histoire, d’exercer une plus grande pression sur l’eau.

15 « Donnée naturelle ou question sociale » ? L’interrogation, suscitée plus largement à propos de la pénurie d’eau, n’est pas nouvelle et se poursuit, approfondie par des géographes lors d’une publication collective. L’une des contributions (Jacob-Rousseau, 2005) analyse avec précision comment, dans le bassin de l’Ardèche du xixe siècle, on a ainsi pu passer d’une pénurie conjecturelle et saisonnière à une pénurie structurelle et chronique, du fait même de besoins accrus, et d’une forte augmentation de prélèvements, tant agricoles qu’industriels qui sont allés au-delà des ressources disponibles notamment durant la saison chaude. Naturels ou sociaux, les « facteurs limitants » ont été nombreux, et l’économie hydrique, qui aggravait les étiages, avait sa part dans la production de pénurie que différents aménagements hydrauliques relativement modestes sont venus ainsi atténuer.

16 Partout dans le monde lorsque le contexte est celui d’une pénurie d’eau, les sociétés ne manquent pas d’inventivité, de nombreux travaux d’ethnologues l’ont démontré, qui sont devenus essentiels aujourd’hui à une réflexion plus large sur le manque d’eau à grande échelle et la perception qu’ici ou là on peut en avoir.

17 S’appuyant sur les travaux de Latour (1993), Julie Trottier (2005:198) reprend à juste titre le terme « hybrid », pertinent pour qualifier une crise de l’eau qui ne saurait être exclusivement naturelle: « It includes a non-human object, water, as well as a complex array of values, intentions and expectations that lead a material situation to be defined as a crisis. » Mais différents travaux encore le démontrent2, le manque d’eau peut aussi résulter d’une décision, la rareté de l’eau peut en grande partie être le produit d’une construction sociale. Si l’on n’a jamais dû connaître une véritable crise de l’eau dans la région étudiée par F. Wateau, l’eau n’est-elle pas au xviie siècle devenue indispensable en été à l’irrigation de cultures nouvelles, et considérée suffisamment précieuse pour que les hommes aient estimé impératif d’élaborer un système d’irrigation destiné à en contrôler sévèrement la répartition ?

18 Aujourd’hui, alors même que la production agricole ne présente plus le même intérêt, et que le nombre d’usagers est plus restreint, le système d’irrigation demeure dans toute sa complexité de détails foisonnante, avec les mêmes contraintes en saison d’été où une gestion rigoureuse d’une eau strictement rationnée continue de prévaloir: elle a été établie à un certain moment et bien, me semble-t-il, parce que l’eau est alors devenue un enjeu. L’irrigation, en permettant une production accrue, a amené une prospérité nouvelle, qui a permis à certaines familles de se développer plus largement et d’affirmer leur position. Elle reste nécessaire en saison d’été pour les « héritiers » qui n’entendent pas rompre avec l’ancestrale habitude des cultures irriguées. L’enjeu ainsi peut ensuite se transformer, changer de nature et si l’eau n’a plus la même importance économique, devenir par exemple, comme à Melgaço un enjeu exclusivement et fortement identitaire. Qualifiée aujourd’hui d’abondante, de abundância,3 destinée d’ailleurs à une production que l’on pourrait qualifier de superflue, l’eau d’irrigation à Melgaço est chargée d’une valeur précieuse entre toutes, dans cette société parce que signe de prestige et de distinction sociale : personne, parmi ceux que l’on nomme « les

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 96

héritiers », et qui seuls possèdent l’eau durant la saison, ne songerait à se séparer de ses droits. Tous se retrouvent au moment du cycle d’irrigation inauguré chaque été, se montrant pointilleux sur les règles de distribution connues de tous, et dont tous d’ailleurs se réclament, et perpétuent une à laquelle ils sont toujours attachés. Dans l’un des films tournés par F. Wateau (2008), un des « héritiers » évoque à propos du fonctionnement des mares « qui, sans aucun doute, dit-il, existent depuis qu’il y a des cultures », « un système primitif », « très ancien », des « partages originels ». Avec une sorte de fatalisme car il n’a pas prise sur les choses, il énonce déjà, de façon significative, qu’ « en principe elles existeront tant qu’il y aura les cultures », celles-là mêmes qui ont exigé la mise en place d’un système d’irrigation, et qui sont bien au fondement de leur privilège. Et peut-être faut-il entendre dans sa voix qui laisse percer impuissance désabusée et regret : tant que subsisteront des héritiers intéressés aux cultures. Car il ne doute pas qu’ « on arrivera à un point où la terre cessera d’être cultivée et où les mares perdront leur raison d’être ».

19 Parce que, désormais, elle « participe de la construction identitaire des groupes » (Wateau, 2002:13), l’eau a cependant gardé un rôle capital dans cette société. Abondante certes,4 mais fortement mobilisée et dès lors précieuse. Précisément distribuée, et dès lors éminemment conflictuelle. Dans le climat agonistique général de cette société, l’eau, même abondante, n’échappe pas au conflit. Au contraire, elle y apparaît le lieu privilégié, et pour l’ethnologue attentive aux conflits et au défi un des moyens d’accès privilégié au social, comme dans de nombreux autres exemples de sociétés où l’eau pour une raison ou une autre a une place essentielle.

20 En Brenne dans le centre de la France (cf. Fig. 1),5 on dénombre des milliers d’hectares en eau et des étangs par milliers, mais ici encore, alors que rien ne pouvait le laisser supposer a priori, l’analyse précise et en profondeur du système technique d’utilisation des eaux laisse apparaître une gestion de l’eau comme d’une ressource précieuse (Bédoucha 2011).6 Cela sera démontré de façon plus détaillée : tout est pensé et fait dans le système d’exploitation piscicole des étangs pour perdre le moins d’eau possible, en gaspiller le moins possible. L’exercice est d’autant plus difficile qu’il n’existe aucune instance collective de gestion de l’eau. Le système d’ailleurs se révèle de ce fait d’une grande complexité de gestion, à l’évidence elle-même liée au caractère précieux de l’eau qu’il nous découvre.

21 Pas d’organisation centralisée de l’irrigation non plus dans le canton de Melgaço au Portugal, ni contrôle de l’ensemble du groupe d’ayants droits, mais il s’agit là d’une communauté paysanne, vivant et exploitant un terroir dans la continuité, et dans la continuité elle perpétue une tradition. Ce n’est pas le cas en Brenne, terre de grande propriété foncière où les étangs ont longtemps été la propriété exclusive de familles à la tête de grands domaines, où ces familles enfin, hormis quelques-unes d’entre elles, ancrées dans l’espace depuis un à deux siècles, n’ont cessé de se renouveler, et prisent toujours au plus haut point l’indépendance au sein de leur domaine. Indépendance illusoire, nous le verrons, car le lien effectif des étangs entre eux amène ou contraint les hommes à accepter un minimum de discipline dans l’intérêt collectif.

22 Précieuse dans la gestion des étangs pour les propriétaires qui continuent à privilégier la pisciculture mais à des fins qu’ils nous reste ici à explorer, l’eau l’est aussi éminemment pour le monde agricole alentour. Depuis des siècles, qu’elle fasse l’objet d’un droit lié aux terres riveraines ou d’une tolérance de la part des propriétaires d’étangs, elle est un appoint essentiel, souvent vital pour l’abreuvage des bêtes durant

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 97

la saison sèche. Les pacages plus humides qui jouxtent l’eau des étangs, ont tout leur prix, comme la possibilité de faucher les joncs qui, longtemps, jusqu’après la deuxième guerre et faute de paille suffisante, étaient nécessaires aux litières des étables. En cela, les agriculteurs sont dépendants des propriétaires d’étangs qui se révèleront eux- mêmes dépendants à différents égards du monde paysan. Ainsi, autour des étangs, se sont noués des rapports étroits et durables.

Une économie stricte de l’eau dans l’exploitation piscicole

Un vaste système d’étangs solidaires

23 Par la nature de ses terres, par l’omniprésence anciennement attestée des eaux d’étangs et le fait que les eaux, au sein de groupes d’étangs reliés entre eux par un réseau complexe de fossés et de ruisseaux, rejoignent l’une ou l’autre rivière, Claise ou Creuse, qui enserrent le pays, la Brenne centrale forme sans conteste un ensemble bien particulier (cf. Fig. 2). Cette « pleine Brenne », à laquelle les hommes se réfèrent aussi si fréquemment, définirait de façon plus restreinte, plus condensée, le cœur même d’un pays, en ce qu’il a de plus singulier : ses étangs les plus vastes, les plus anciens, les plus prestigieux, qui en ponctuent et en marquent l’espace et gardent une forte prégnance symbolique dépassant largement ses frontières.

24 Le fonctionnement du système d’exploitation des eaux d’étangs est analysé non pas seulement sur un groupe particulier d’étangs, mais bien de proche en proche, dans sa totalité et sa cohésion à l’échelle de la région telle que la société la dessine elle-même, avec pour hypothèse que la gestion des eaux, dans la tension même qu’elle suppose, structure l’ensemble de la société. Un système dont le fonctionnement, paradoxalement dans une région de propriété privée et sans organisation communautaire, exigerait justement un contrôle — ou au moins une discipline — collectif.

25 Pour parler de la Brenne, les gens du pays aiment à en définir avant tout les limites, ils en visualisent immédiatement des frontières claires, précises, parfois invisibles à l’œil profane. Avec une sorte d’évidence, que ce soit dans une cuisine paysanne, dans le salon d’un château ou d’une demeure bourgeoise, elles sont fermement dessinées. Au sein de cet espace auquel s’identifie fortement la société locale, une réelle densité d’étangs existe : un très grand nombre, et les plus importants des plus de deux milliers d’étangs aujourd’hui dénombrés,7 s’y voient concentrés. La représentation cartographique qui les fait seuls apparaître offre au regard une extraordinaire constellation, plus chargée encore en son centre (cf. Fig. 3).

26 Des limites, le discours passe parfois instantanément à la nature particulière de la terre. Car leur dessin que tout le monde a à l’esprit, lui est lié, et l’on ne peut mieux définir le pays que par sa terre, dont progressivement les agriculteurs ont bien dû abandonner la culture au profit du seul élevage… De la terre, ils parlent avec véhémence tant ils tiennent à en faire comprendre la spécificité. En quelques mots concrets, et comme pour résumer et parler au mieux du pays, ils en déclinent les caractéristiques: « Du sable tout cru, le roc en dessous », « Ça d’terre, au-dessus: d’l’argile », ou encore, une sorte de « sorbet de sable et argile mêlés », et en dessous du grès, qui parfois affleure ou, en certains endroits, lorsqu’il a résisté à l’érosion, surgit en tertres, buttons larges de quelques dizaines de mètres où s’accrochent ajoncs et bruyères, dispersés sur la

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 98

partie la plus haute de la Brenne. « Aussi vite sec que mouillé », « Quatre gouttes d’eau c’est mouillé, deux coups de soleil c’est grillé », « Dès qu’il fait chaud, ça grille », « Noyée ou brûlée, c’est ça, la Brenne ». Mouillé/grillé, noyé/ brûlé: d’une paire de mots, tout est dit. Les agriculteurs associent toujours les mots extrêmes ensemble, résumant ainsi de façon plus frappante leur propos.

27 Terre mouillée, trempée, ennoyée: l’eau est immédiatement présente dans le discours. Décrire la terre, c’est aussitôt en même temps parler de l’eau, des étangs et de leur densité. Les hommes évoquent une terre humide, tout de suite argileuse sous la mince couche arable, qui capture et retient l’eau mais sans l’absorber, une terre dont les moindres creux se transforment en « mouillères » car l’eau y stagne, une terre qui se défonce sous le poids des bêtes, et dans laquelle les tracteurs s’enlisent. À peine passée la Claise au nord, on fait la différence : « Ici on patine un peu, là-bas on se défonce pour un rien. »

28 On n’a cessé en Brenne d’évaluer le nombre des étangs et l’espace qu’ils occupent. Sans doute la forte présence des eaux dans le paysage a-t-elle toujours été si frappante qu’elle amenait au désir d’en avoir une mesure. L’obsession de compter les étangs traverse les siècles, à des moments différents de l’histoire et pour des causes diverses. Bien avant que l’État ait réellement besoin de les recenser pour intervenir, bien avant que l’on ait à s’alarmer de leur création « anarchique », déraisonnée, on dénombrait les étangs. C’est aujourd’hui un exercice nécessaire pour les organismes d’État, les particuliers s’y livrent aussi. Et le nombre d’étangs est toujours saisissant par l’extraordinaire densité qu’il révèle.

29 Bien sûr les chiffres varient, même dans des textes contemporains, selon l’espace pris en considération. Et ils ne cessent d’évoluer, car il reste difficile pour les organismes d’État de véritablement contrôler la création d’étangs de superficie inférieure à 3 hectares, et l’on n’est toujours pas en mesure de contrôler celle d’étangs de superficie inférieure à 1 hectare. Les hommes enfin ont toujours le moyen de ruser avec la loi. Mais qu’importe pour notre propos le nombre exact : retenons un phénomène large de création récente des étangs et ses conséquences dans la gestion de l’eau.

30 En « chaînes », en « chapelets », en « lignées », ces étangs s’agencent dans l’espace. Termes d’un usage courant dont on signalera juste ici la forte connotation symbolique:8 ils désignent des suites d’étangs qui se vident les uns dans les autres au sein d’un même bassin versant. Pour garder une certaine distance, le terme plus neutre de « lignes », qui décrit de façon tout aussi juste et imagée l’inscription des étangs dans l’espace, sera retenu.

31 Nombreux, ces étangs sont aussi très proches les uns des autres. Pour ceux qui y habitent, la particularité encore de la Brenne par rapport à d’autres régions d’étangs (comme la Sologne notamment, autre région du centre de la France), outre la densité des étangs et l’importance des surfaces en eau comparée à la surface des terres, c’est aussi cette très grande proximité des étangs les uns des autres, cette présence de l’eau partout dans les terres. Des étangs qui souvent même se jouxtent, ou que parfois une simple digue sépare. Exploitants, pisciculteurs ou gardes, les hommes d’étangs en général,9 parlent d’étangs « à la queue leu leu », « en cascade », qui « se bousculent » les uns les autres. Dans leur vocabulaire, dans le rythme des phrases, ils transmettent d’emblée ce « stress », terme récurrent lui aussi, lié à la période des pêches concentrées sur quelques mois, de la fin octobre à février-mars, et qui exige, pour que soit

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 99

récupérée le plus d’eau possible, le vidage successif et planifié des étangs rendus solidaires les uns des autres par un réseau dense de fossés et de ruisseaux.

32 Les étangs ont évidemment des configurations très différentes, et cela n’est pas anodin. La forme, la profondeur, la qualité du fonds, l’origine et la quantité des eaux que reçoit un étang, l’exposition : de tout cela, va dépendre la façon dont il se vide (et le temps que l’on mettra pour parvenir à le vider), le taux d’évaporation, le type d’empoissonnement que l’on privilégiera. Tant de paramètres entrent en jeu que l’on s’entend généralement pour dire qu’il n’est pas un étang qui ressemble à un autre.

33 Différentes catégories d’étangs permettent de diversifier la production, et de suivre « l’élevage » à ses différentes étapes. Les petits étangs, d’à peine quelques hectares, ceux destinés à la ponte ou au développement des « feuilles », sont idéalement situés le plus haut en amont, de façon à ce que l’on puisse en contrôler le fond, et être sûr de pouvoir éviter la présence de prédateurs, perches ou brochets, puisque, tout en haut de la ligne, ils ne recevront que les eaux de pluie ou de ruissellement, et non l’eau d’autres étangs avec ses risques.

34 Tout cela est de la plus grande importance pour comprendre le monde des étangs : le contrôle du cycle de la pisciculture n’est pas un mince enjeu.

Perdre le moins d’eau possible

35 Au Portugal, dans la région de Melgaço évoquée, pas d’organisation centralisée, ni de contrôle du groupe des ayants droits, mais des règles connues de tous, vivement revendiquées, perpétuées d’année en année durant la saison d’été qui inaugure la réglementation. En Brenne le coutumier a longtemps eu force de loi, et s’il ne l’a plus depuis à peine deux décennies, on s’y réfère toujours. Mais beaucoup de ceux qui ont acheté des étangs récemment l’ignorent: les propriétaires en Brenne n’ont pas tous une attache locale comme c’est le cas à Melgaço.

36 Car pour parvenir à pêcher l’ensemble des étangs, il existe bien une façon de faire, un ordre, précisément prescrit par les us et coutumes, un droit coutumier écrit qui s’est formulé et affiné avec le temps: il permet une organisation de la gestion de l’eau à une échelle large. Tous reliés entre eux par des fossés d’écoulement de l’eau10 et de ce fait fortement dépendants les uns des autres, les étangs doivent théoriquement — introduisons d’emblée une réserve — être vidés au fur et à mesure des pêches, d’aval en amont.

37 Le premier étang vidé en aval recevra les eaux de l’étang situé plus haut, et ainsi de suite d’étang en étang. L’eau se voit ainsi chaque fois récupérée de façon à ce que, du moins dans le système idéal et dont le fonctionnement serait relativement simple, il n’y ait que l’eau d’un seul étang qui soit perdue, celle de l’étang le plus en aval, pêché en premier, qui se jette dans la rivière. L’étang situé le plus en amont ne pourra, lui, être rempli que par les eaux de pluie et de ruissellement.

38 Et la gestion des eaux s’opère ainsi à différents niveaux. Les propriétaires des grands étangs qui jalonnent le cours d’un même ruisseau ont à se concerter et à coordonner leurs dates de pêche; ils sont d’ailleurs en relation, parfois se fréquentent, ou, si ce n’est pas le cas, parviennent éventuellement à s’entendre par l’intermédiaire de leurs négociants respectifs ou surtout de leurs gardes qui vivent sur place. Ces derniers eux- mêmes bien entendu se connaissent, peuvent aussi faire partie d’un même réseau

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 100

d’amitié et d’entraide, ils sont en contact de toute façon, se préviennent, s’informent les uns les autres.

39 Mais chacun des grands étangs a également sa propre ligne d’étangs, dont les eaux vont à un moment ou à un autre venir se rassembler pour le remplir.

40 Cette technique de vidage des étangs, qui opère de proche en proche, est précisément décrite et recommandée dans la dernière version du code coutumier publié, celle de 1967, notamment en ses articles 88 et 89 : Article 88. Lorsque des étangs se commandent, c’est-à-dire se vident l’un dans l’autre, le propriétaire de l’étang inférieur doit pêcher le premier son étang. S’il ne veut pas le pêcher, il doit au moins en baisser le niveau de manière à rendre possible la pêche de l’étang supérieur.

41 La deuxième phrase de ce même article laisse évidemment toute latitude à l’aval, nous sommes en régime de propriété privée, et il n’a jamais été question en ses propres terres de ne pas agir à sa guise. Libre au propriétaire donc de ne pas pêcher et ainsi de ne pas vider son étang, mais il ne doit pas pour autant oublier l’autre, il a obligation de ne pas entraver le droit de l’amont à pêcher, et devra baisser son niveau de façon à ce que l’eau puisse passer.

42 L’article suivant toutefois oppose une condition qui peut justement sembler paradoxale en ce qu’elle vient limiter la priorité de l’aval: Article 89. Celui qui veut pêcher l’étang supérieur doit avertir un mois à l’avance le propriétaire ou le fermier de l’étang inférieur.

43 Aucun des termes utilisés aujourd’hui (chaîne, lignée, chapelet) et qui traduisent le lien ou la dépendance entre les étangs, n’est repris dans le coutumier, mais dans l’article 88, une phrase entière marquée par le verbe « se commander » indique, de façon on ne peut plus claire et assurée, leur interdépendance.

44 La juxtaposition des deux articles successifs alimente le débat en Brenne: de deux choses l’une en effet, ou il y a absolue priorité de l’aval telle qu’elle semblait annoncée, ou non. Aucune ambiguïté ne devrait être possible. S’il y a toujours priorité de l’aval, comment admettre qu’il suffise au propriétaire de l’amont de prévenir un mois à l’avance pour avoir le droit pour lui ?

45 Dans cette région où les étangs ne bénéficient que des eaux du ciel, l’ordre de vidage des différents étangs pour les pêches a bien été conçu en vue de perdre le moins d’eau possible. En cela, et par la communauté d’obligations et de devoirs (certes différents selon les périodes historiques) qu’il suppose, il relève d’une véritable gestion hydraulique d’ensemble. L’esprit s’en est transmis, il s’est affiné, précisé, non sans tâtonnements, et parfois, on le voit dans les articles 88 et 89, avec des ambiguïtés qui en font aussi l’extrême fragilité.

46 Perdre le moins d’eau possible, parvenir à ne jamais en gaspiller: la notion d’économie de l’eau est dans cette société une préoccupation constante, elle est essentielle à l’intelligence du système.

47 L’allusion à la période monastique, et à une perfection hydraulique qui lui serait associée, est récurrente dans le discours de certains grands propriétaires aujourd’hui. Sans doute parce que dans le contexte de désordres accrus, dus notamment à l’accroissement du nombre de propriétaires dans un territoire qui se morcelle, l’image mythifiée d’une harmonie originelle dans la conception d’ensemble du système d’étangs reprend force. Il est évident pour tous, en ce qui concerne les anciens étangs,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 101

que situation topographique de plans d’eau, pentes et écoulements possibles et équilibre entre arrivée d’eau et déversoirs permettant de résorber les surplus, ont été minutieusement pensés et calculés pour utiliser l’eau au mieux. Certaines conventions très anciennes établies entre étangs en sont à leurs yeux la preuve.

48 Les termes de ces conventions se voient parfois consignés dans les actes mêmes de propriété et réitérés à chaque transaction de biens. Il en est ainsi, et je ne prendrai que cet exemple, le plus remarquable, pour deux grands étangs prestigieux très proches l’un de l’autre, mais situés sur deux bassins versants différents, et dont l’un, le Gabriau, est très pauvre en eaux de ruissellement, et l’autre, la Gabrière,11 situé sur un large bassin versant, peut se remplir aisément. Pour pallier ce défaut, un droit de prise d’eau du Gabriau sur la Gabrière a été prévu par une bonde de surface située sur la Gabrière, afin de permettre un passage d’eau d’un étang à un autre, jusqu’à « recouvrir d’eau » le Gabriau, après qu’il ait été vidé pour la pêche, et au cas où il n’aurait pas assez d’égout pour se remplir. Une répartition des eaux plus équitable a ainsi été prévue et rétablie.

Interdépendances

49 Les deux opérations, dites « mise en tire » et « mise en pêche », sont essentielles au bon fonctionnement du système. Il faut, pour arriver à pêcher un étang, parvenir à le vider progressivement de la presque totalité de son eau de façon à ce que le jour de la pêche toujours fixé à l’avance avec les négociants, le ramassage des poissons à la filanche12 ou à l’épuisette au sein d’un espace restreint enserré par un filet, soit aisé. La mise en tire désigne cette opération de vidage qui doit s’effectuer en douceur pour ne pas malmener le poisson. Elle suppose une diversité de savoir-faire liée aux différences des étangs.

50 Les dates de début de mise en tire, où l’on commence à lever les bondes, et les temps de mise en tire diffèrent d’un étang à l’autre, surtout selon leur ampleur. Ce sont des éléments essentiels à prendre en compte pour arriver à ce qu’un étang soit prêt à être pêché le jour convenu. Mais un bon déroulement de l’opération suppose aussi une bonne volonté de l’amont qui doit retenir ses eaux.

51 Les documents d’archives nous laissent percevoir durant tout le XIXe siècle, les réactions vives des hommes d’étangs à toute intervention de l’administration d’État dans leurs pratiques.13 Car l’administration, dans le noble projet d’« assainissement de la Brenne » qu’elle s’est fixé, est contrainte d’interdire à maintes reprises la levée des bondes des étangs pour pourvoir procéder au curage des ruisseaux alors encombrés de déchets végétaux. Ou bien encore elle ordonne de fermer les bondes d’un grand étang, car des plaintes lui sont parvenues d’émanations fétides et jugées dangereuses pour la santé. Chaque fois les hommes se rebiffent: ils veulent être totalement libres de déterminer à quelle date ils doivent commencer à vider leurs étangs pour les amener en pêche, et s’évertuent à expliquer à une administration souvent ignorante, au xixe du moins, les impératifs de respecter les dates de mise en tire pour arriver à pêcher à la date juste et ainsi ne pas troubler l’ordre de vidage, ne pas risquer de perdre l’eau: là est bien l’enjeu.

52 L’équilibre entre propriété privée et réglementation publique reste toujours délicat de nos jours. Et cette extrême sensibilité des propriétaires exploitants d’étangs à toute intervention administrative dans les décisions concernant leurs étangs, et particulièrement les dates de vidage, est la même aujourd’hui. Elle a eu l’occasion de s’exprimer avec force lors de la parution de la loi sur l’eau de 1992, où il était question,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 102

entre autres, de réglementation du vidage des étangs. Les énoncés sur les demandes préalables d’autorisation de vidage, qui semblaient devenir obligatoires, avaient provoqué de vives réactions du Syndicat des exploitants d’étangs. Il y voyait une immixtion intolérable dans la gestion des étangs.

53 « Mettre en pêche » un étang consiste à le vider suffisamment la veille même de la pêche pour rendre possible le travail des pêcheurs l’aube venue. Si l’opération se passe bien, à l’aube, l’étang est presque entièrement vide d’eau, sauf en sa partie plus profonde, « la pêcherie », où le poisson sera puisé. Mais durant toute la journée encore, les hommes restent vigilants, inquiets, surveillent le ciel, se méfient toujours d’une manœuvre de l’amont: que la pêche se passe au mieux dépend aussi toujours, et jusque pendant le déroulement de la pêche, de ceux du dessus. Qu’un propriétaire ou un garde d’étang juste en amont vide sans prévenir, et sans se poser la question de savoir ce qui se passe à l’aval, et le déroulement de la pêche est menacé, « Trois heures de pluie et vous ne pouvez pas pêcher, alors si on vous vide un étang de 3 hectares… ».

54 Le jour de la pêche, la pêcherie, qui ne fait pas plus que quelques ares près de la bonde, forme comme un cercle d’eau où tout le poisson se voit concentré. Une courante d’eau est alors nécessaire, le plus souvent pendant la pêche même, afin d’oxygéner le poisson réuni dans une aussi faible quantité d’eau et en souffrance, pour peu que le temps en tout début de saison soit encore trop chaud, ou que la pêche s’avère plus longue que prévu ; ou encore juste après la pêche, pour sauver le fonds de poisson resté dans l’étang qui ne se remplira que progressivement. Sur les grands étangs, le seul égout des vases découvertes, l’égout naturel, peut suffire, mais pas toujours, et sur les petits étangs une arrivée d’eau est indispensable. Une petite pluie en fin de pêche peut aussi être très utile, elle est toujours la bienvenue, l’étang demeure cependant tributaire de l’amont. Et l’on doit s’assurer déjà la veille de la pêche, en dehors des pluies imprévisibles, que l’on ne manquera pas d’une arrivée d’eau.

55 Si le propriétaire qui pêche possède également l’étang en amont, l’opération est évidemment plus simple, il peut avoir commencé à vider cet étang avant de pêcher celui de l’aval, il est ainsi certain de disposer d’eau pendant la pêche, d’avoir un filet d’eau qu’il peut régler lui-même, mais un propriétaire le dit en riant : « On ne peut pas avoir toute la Brenne à soi ! » Alors le plus souvent, on doit demander au propriétaire de l’étang de l’amont de lever un peu sa bonde avant la pêche de l’aval. Outre la démarche, sur laquelle nous reviendrons, cela n’est pas si aisé, car il faut connaître les temps d’écoulement de l’eau d’un étang à l’autre – ce sont là des données capitales –, qu’il s’agisse exceptionnellement pour une raison imprévue d’envoyer un gros coup d’eau, ou que l’écoulement se fasse en douceur pour un apport d’eau nécessaire au moment de la pêche.

56 Ainsi la maîtrise de l’eau, dans ce territoire où l’on ne dispose pas d’eau de sources mais seulement des eaux de pluie, ce serait de posséder l’étang du dessus pour disposer d’une courante d’eau lors de la pêche. Mais la maîtrise de l’eau s’avère tout aussi importante pour pratiquer véritablement le cycle de la pisciculture, car elle permet de contrôler le fonds de l’étang supérieur et d’être sûr que des espèces indésirables ou des prédateurs ne s’y trouvent pas et ne passent plus bas. La vraie maîtrise de l’eau que tout propriétaire rêve d’avoir serait de pouvoir disposer d’une « chaîne » d’étangs qui se suivent depuis le tout premier en amont et de pouvoir mettre en œuvre le cycle de la pisciculture dans son ensemble, sans avoir affaire aux autres: c’est ainsi qu’il faut comprendre les stratégies foncières des grandes familles installées dans les terroirs qui,

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 103

durant tout le xixe siècle, pratiquent une politique d’échanges de biens. Ne pas avoir d’enclaves dans ses terres, être maître chez soi aussi bien pour la chasse que pour l’exploitation d’étangs, tous les propriétaires exploitants d’étangs y aspirent, certains d’entre eux en ont connu un temps le privilège.

57 Si l’on y parvient, la maîtrise de l’eau est essentielle. Assurer sa propre production est associé chez les grands propriétaires à un privilège plus large : « autrefois, on avait tout, le filet, le matériel, les caisses, la main-d’œuvre, les domestiques. » Une sorte de fierté était attachée à cette priorité qui marquait aux yeux de tous qu’on était maître chez soi, que l’on avait la parfaite maîtrise du cycle piscicole, que l’on ne dépendait pas des autres et encore moins de négociants pour se procurer de l’alevin.

58 Pouvoir être maître de l’eau chez soi en Brenne est aussi ce qui pousse certains propriétaires aujourd’hui à vouloir créer sur leurs terres de petits étangs qui se suivent, ou qui viennent s’intercaler entre d’autres qui leur appartiennent; ou encore un propriétaire d’étangs et de bois, à louer étangs et bois qui jouxtent ses terres, de façon à inclure des étangs dans sa propriété et lui permettre, par le contrôle d’un certain nombre d’étangs, de diversifier sa production, en même temps que d’avoir un domaine de chasse suffisamment vaste.

59 Aux conventions entre étangs, notifiées par écrit dans les actes de vente des étangs, comme celle dont il a été question et qui lie intimement les deux étangs Gabriau et Gabrière, s’ajoutent les arrangements qui, eux, ont une place décisive dans le fonctionnement du système. Ils peuvent être de toutes sortes.

60 On a souligné l’importance de pouvoir disposer d’une courante d’eau venue de l’amont pour l’étang que l’on pêche, et qui permet d’oxygéner le poisson réuni dans l’espace restreint de quelques ares d’eau, ou après la pêche pour sauver le poisson que l’on a laissé en empoissonnement. En amont, lever les bondes pour permettre une petite arrivée d’eau en aval: cette faveur n’est jamais refusée, elle relève d’une solidarité dans le monde des étangs: « En cas de pépin, en cas de besoin, il n’y a pas de propriétaire qui refuse d’ouvrir plus haut et de laisser couler l’eau. » Elle s’accompagne, dans le discours, de l’énoncé maintes fois réitéré d’un principe éthique fondamental dans cette société: « On ne refuse pas l’eau », principe dont on verra ultérieurement qu’il peut avoir une large acception, qu’il joue en différents espaces et différents lieux de la gestion de l’eau, et en cela contribue fortement à la cohésion de la société locale.

61 Toujours au moment de pêcher, le propriétaire de l’étang en aval, cette fois, peut demander à ceux de l’amont de baisser un peu le niveau, de « faire une marge », une marge de sécurité afin d’éviter que leurs étangs ne débordent le jour de la pêche de l’étang situé en aval. Cela était encore possible sur certaines lignes d’étangs lorsque les propriétaires étaient moins nombreux. Mais aujourd’hui, on s’adresse au propriétaire le plus proche en amont, on lui demande de retenir quelque peu les eaux de son étang qui reçoit toutes celles encore au-dessus, pour que l’on parvienne à pêcher sans surprise.

62 Il paraît inadmissible, inimaginable qu’on ne permette pas à l’autre de vider son étang, en somme qu’on ne respecte pas les usages, au point que dans le discours, les usages prennent force de loi.

63 Ces types d’entente très précieux — retenir l’eau pour permettre à l’aval à pêcher, envoyer, « donner » de l’eau le jour de la pêche — se transmet de génération en génération parmi les grandes familles vivant en Brenne, ou entre ces dernières et les familles d’agriculteurs auxquelles elles sont liées, et de part et d’autre, on y tient

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 104

doublement: pour des raisons techniques à l’évidence capitales et par tradition. « Déjà du temps de mon grand-père, prévenir celui de dessous qu’on lève l’étang, lui donner un peu d’eau quand il a pêché son étang, c’était l’habitude, on continue… », « Son père était là avant lui, mon père était là avant moi, on se connaît et on fait ce qu’ont fait nos pères ». Ainsi se dit la transmission d’usages que l’on respecte par égard aussi pour une tradition familiale.

64 Même si l’idéal reste toujours de ne pas avoir affaire aux autres, de posséder soi-même plusieurs étangs successifs.

Décalages entre ordre coutumier et pratiques

65 Lorsque les hommes parlent de l’ordre du vidage des étangs d’aval en amont pour la pêche sur une ligne d’étangs, ils utilisent un vocabulaire qui relativise d’emblée l’ordre coutumier et place les choses sur le terrain bien concret des aléas toujours possibles, des accommodements et arrangements divers ou, au contraire, de manœuvres individuelles conduisant au plus grand désordre dans la gestion des eaux : « En principe, on devrait d’abord pêcher… », « La logique voudrait que… mais… », « Théoriquement, on devrait… ». Les mêmes termes sont employés pour évoquer l’obligation, qu’impose à l’amont l’article 89 du droit coutumier, d’avertir un mois à l’avance le propriétaire ou le fermier de l’étang inférieur. Longtemps, et du fait évident de difficultés, cet article a dû être pris par certains avec le plus grand sérieux, au point que l’usage était plus précisément d’envoyer une lettre recommandée au propriétaire de l’aval pour l’avertir que l’on allait pêcher et qu’il devrait se préparer à recevoir, le jour fixé, l’eau de l’étang. Dans la pratique, la lettre recommandée avait dans les esprits fini par relever du coutumier lui-même qui n’indique pourtant pas de procédé précis pour prévenir l’aval. L’arrangement intervient ou non dès le début, « On s’arrange, c’est une entente tacite », on se rencontre, ou l’on se prévient par téléphone, on en parle, ou les gardes des étangs se préviennent. Mais, avec ceux qui ont un caractère peu accommodant et font des histoires, la lettre recommandée est un moyen qui s’est, ici et là, progressivement imposé.

66 En principe donc, selon l’article 88 du droit coutumier, et en toute logique si l’on veut perdre le moins d’eau possible, c’est l’étang le plus en aval qui doit être pêché le premier. Mais des dérogations ont lieu, cela arrive par commodité et pour toutes sortes de raisons dont on peut convenir entre soi. Lorsque sont évoquées ces situations très précises, on se démarque avant toute chose de ceux qui ne respectent pas l’ordre coutumier, le méprisent ou l’ignorent. Il ne s’agit que d’essayer, ponctuellement, entre voisins, par courtoisie, de s’adapter, une année d’accepter les craintes ou les souhaits de l’autre, ou de trouver la solution qui s’avère la meilleure pour tous sur le terrain avec les étangs que l’on connaît, de déroger à la règle tout en essayant de préserver le plus d’eau possible dans le système: on est là dans le domaine concret des pratiques.

67 Ainsi, tel propriétaire a empoissonné cette année en nourrains14 un petit étang qu’il aimerait pêcher tardivement du fait que l’étang, proche de chez lui, peut être surveillé de la prédation des cormorans, et il préfère attendre un peu plus qu’à l’accoutumée et pêcher après l’amont; tel autre aimerait qu’une partie de sa famille puisse être là au moment de la pêche, or cette année exceptionnellement, elle ne pourra venir en Brenne qu’à telle date, ce qui amènerait à pêcher plus tard qu’à l’accoutumée… Tout se passe à l’amiable, « d’un commun accord », on trouve la solution.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 105

68 Le système est évidemment en constant mouvement, et des réajustements sont toujours nécessaires. Du fait d’héritages ou de ventes, des étangs changent de mains, de nouveaux étangs se créent, de nouvelles relations entre propriétaires doivent être établies, d’autres arrangements trouvés sur des fondements différents, les exigences bien sûr pouvant ne plus être les mêmes et le nombre des étangs concernés évoluer. Aussi, les accords, comme les moments de tension et les conflits, ne durent-ils qu’un temps, mais ils se renouvellent, se transforment éventuellement: ensemble et dans leur diversité, ils restituent l’esprit du système.

69 Sur certains étangs les propriétaires font tout pour que les propriétaires des terres en amont, souvent des agriculteurs qui ont créé des étangs sur leurs terres, respectent l’ordre du vidage des étangs, et pêchent après eux. Car l’eau accaparée, et retenue par les nouveaux étangs en amont, ne doit pas être perdue pour ceux de l’aval qui, avant la création d’étangs, la recevaient sous une autre forme. Les propriétaires d’étangs comptabilisent en effet les hectares d’eau retenus en amont évaluent la différence de qualité d’une eau qui autrefois leur arrivait de façon continue par ruissellement après les pluies. Mais ils vont plus loin dans le raisonnement et leur comptabilité: cette eau retenue ne correspond pas à la totalité de l’eau qu’ils auraient reçue si les nouveaux étangs en amont n’avaient pas été créés. L’eau qui, dans le meilleur des cas, leur sera finalement envoyée après avoir été longtemps retenue, se sera en partie déjà évaporée et sera un peu moins importante que l’eau de ruissellement. Il y a bien ainsi déperdition. Du côté des agriculteurs en amont, propriétaires d’étangs du même bassin versant, cela paraît excessif, on est un peu interloqués par un discours aussi argumenté et une telle énergie mise en œuvre pour contrôler l’eau que les propriétaires traditionnels en viennent selon eux à « sacraliser ». Il est vrai que dans les anciennes familles, l’ordre coutumier visant à préserver l’eau est tellement intériorisé que l’on accepte difficilement que certains y dérogent.

70 Ailleurs, il faut chaque année « jongler » pour ne pas perdre d’eau. « Jongler », le mot revient fréquemment lorsque l’on parle de l’organisation du vidage pour les pêches, jongler avec les dates, jongler pour récupérer le plus d’eau possible, jongler avec les aléas de toutes sortes comme l’arrivée de pluies ou un gel soudain qui paralyse les pêches. Sur une autre ligne d’étangs où les étangs sont en nombre, de l’avis de tous, « si on ne s’entend pas, c’est invivable ». Et l’on n’imagine pas que l’on puisse ne pas être solidaires.

71 Mais même sur un bassin versant où le ruissellement est largement suffisant, où l’on ne risque pas de manquer d’eau, si en amont un propriétaire propose une année de pêcher avant l’aval, alors en aval on ne peut s’empêcher de penser qu’il s’agit là d’une eau malheureusement « perdue ».

72 « Sauvage » : c’est ainsi qu’est significativement désigné le vidage intempestif d’étangs auquel on procède sans que l’on prévienne son voisin de l’aval, vidage qui, dès lors, peut avoir lieu aussi bien pendant que l’aval est en pêche. Sauvage en ce qu’il ne respecte pas les autres, en ce qu’il ignore ou méprise l’ordre coutumier élaboré par les hommes. Le terme est fréquemment repris dans les mémoires ou les rapports officiels qui existent sur le sujet mais aussi en Brenne lorsque est évoqué le vidage par de nouveaux propriétaires. De même les écrits se font-ils écho de la création anarchique d’étangs. « Sauvage », « anarchique » : les termes sont du même ordre qui renvoient de façon éloquente à des comportements hors normes qui ne sauraient être supportés par la société des étangs et auxquels pourtant, pour parvenir à survivre, elle doit s’adapter.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 106

73 L’image d’une perfection hydraulique ancienne et perdue, qui reste une référence pour les grands propriétaires, les hommes dans la Dombes, autre région d’étangs, semblent la partager. Eux aussi, ils l’évoquent avec nostalgie, déplorant que, avec le morcellement foncier, le démantèlement des chaînes et l’apparition de tous ces nouveaux propriétaires qui ne respectent pas les usages, le système d’eau soit « cassé »15. Ce dernier terme est en lui-même éloquent quant à la perception que l’on se fait d’un système comme d’un mécanisme sans faille, parfait, immuable comme s’il n’était pas toujours soumis à des ruptures possibles.

En zone humide, l’eau précieuse

74 Reprenons ce qui vient d’être rapidement décrit: l’ordre strict que recommande le droit coutumier pour parvenir à récupérer au mieux l’eau d’étang à étang, et lorsque l’ordre est quelque peu bousculé, les tentatives d’arrangements dans lesquelles on s’épuise parfois pour ne pas perdre d’eau, cette attention aiguë portée à la pluviométrie, les calculs, auxquels se livrent certains exploitants d’étangs, des déperditions d’eau causées par la création d’étangs en amont qui détournent les eaux de ruissellement, et dès lors la prise en compte précise des pertes par évaporation l’été, les efforts déployés pour récupérer malgré tout le plus d’eau possible, « en tête de chaîne », pêcher de bonne heure, le plus tôt possible pour pouvoir bénéficier des pluies de printemps… Ce sont autant d’éléments qui démontrent, aussi paradoxal que cela puisse paraître en zone humide, le caractère précieux de l’eau, l’importance qu’on lui accorde, l’attention extrême qu’on lui porte. Il est toujours question de ne pas gaspiller l’eau ou du moins d’en gaspiller le moins possible, surtout de ne pas la perdre, d’où toutes les manœuvres lorsque l’ordre d’aval en amont ne peut être respecté, pour l’« emmagasiner », la « stocker », la garder en attente avant de la lâcher afin de remplir ultérieurement les étangs : « jongler », c’est cela.

75 Lorsqu’on s’insurge contre l’inconscience de ceux de l’amont qui agissent sans prévenir et ne se préoccupent pas des conséquences pour l’aval, qu’une manœuvre incontrôlable a eu lieu et que l’eau est perdue, c’est bien la valeur de l’eau qui est mise en avant : « Il s’agit de ne pas perdre l’eau qui est notre richesse tout de même! »

76 Parfois, pour que tous parviennent à pêcher sur une ligne, être contraints de laisser passer dans son étang l’eau de l’amont, la laisser se perdre ensuite dans le ruisseau, sans qu’elle ait pu être récupérée par l’aval qui n’a pas encore pêché, cela fait véritablement mal au cœur à ceux qui s’y résignent et l’admettent très difficilement. Parmi les membres des anciennes familles, le caractère précieux de l’eau est si fortement intégré qu’ils éprouvent une vraie douleur à gâcher l’eau, pas seulement pour leurs propres étangs mais pour ne pas nuire à l’économie d’ensemble. Même sentiment exprimé avec force dans une autre société à étangs comme la Dombes où, pour un propriétaire, « perdre de l’eau équivaut à lui arracher le cœur »16.

77 Il arrive que, par un souci d’éthique déclaré, l’on cherche à tout prix à s’adapter aux souhaits de son voisin: « Je ne pêcherai jamais sans m’entendre avec l’aval, je ne pêcherai jamais s’il ne récupère pas mon eau. » Il arrive aussi que de nouveaux propriétaires agriculteurs par exemple, qui se mettent à faire de la pisciculture, au début se révoltent contre tel grand propriétaire qui veut faire la loi sur la ligne d’étangs, mais ressentent ensuite le même sentiment de perte et de gâchis si eux- mêmes ont des problèmes avec l’amont, et adoptent vite alors le même discours… « Une

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 107

averse et il ouvre son étang, vous vous rendez compte ! Ça, c’est tout de l’eau gâchée ! Bonne pour la rivière celle-là ! »

78 Le « détournement » de l’eau par des étangs créés en amont peut être vécu comme une véritable usurpation, sentiment qu’il faut surmonter toutefois, car la loi ne l’entend pas ainsi: l’eau recueillie sur les terres en amont relève bien du propriétaire du fonds. Le sentiment est d’autant plus amer si les nouveaux propriétaires ne partagent pas les mêmes valeurs. Que l’eau dans cette société soit « sacrée », et qu’elle soit la richesse commune, les membres des anciennes familles aimeraient au moins que cela soit reconnu par tous.

79 Une richesse commune : si dans le discours on emploie le possessif lorsqu’il s’agit de l’eau, « Je lui envoie mon eau », « Je récupère son eau », « Je ne pêcherai jamais s’il ne récupère pas mon eau », ou encore « Je lui donne de l’eau » comme si l’eau était à soi, il est clair pour chacun que l’eau n’est propriété de personne mais bien de tous. L’eau ne fait que passer dans son étang, et si, à un moment précis, on la fait sienne au point de dire qu’on la donne, on sait que ce n’est jamais que pour un moment.

L’eau pour se parler

80 Rien de ce qui est évoqué et regretté — la faveur d’accorder de l’eau, les arrangements, les rapports courtois et respectueux entre les hommes — n’était strictement honoré par les hommes auparavant, pas plus que n’étaient strictement respectés les usages ancestraux, l’ordre dans le vidage. Sauf peut-être pour ce dernier point, il y a des siècles, lorsque tous les biens étaient dans les mains d’un même seigneur, ou aux temps monastiques lorsqu’un véritable système d’étangs se mettait en place sous le contrôle d’un seul, mais alors cela n’avait évidemment pas le même sens, ni la même valeur.

81 Ici et là, un ordre ancien auquel est associée l’harmonie dans la gestion des eaux est illusoire, les tensions et le désordre qui se sont incontestablement accentués aujourd’hui font partie de l’ordre même des choses. Mais l’image d’un ordre ancien, de l’entente si ce n’est de la perfection, de la cohésion tranquille du système, est forte, et se transmet. Elle n’est jamais que l’image que s’en font les hommes à un moment donné, une représentation des choses, rien de plus, qui ne résiste pas longtemps à l’analyse du fonctionnement réel du système.

82 Les attitudes égoïstes, les comportements individualistes, les caractères imprévisibles pourraient bien ne pas être exclusivement le fait de propriétaires des nouveaux étangs. Il en était sans doute de même entre les anciens propriétaires issus de grandes familles locales. Car cette notion d’ordre idéal, à laquelle les hommes se réfèrent si souvent, a toujours été indissociable du désordre possible, dont les divers coutumiers d’ailleurs et jusqu’aux plus anciens se font l’écho à travers le temps.

83 Un texte du début du xixe siècle fait ainsi très explicitement allusion à « l’incurie ou aux mauvais procédés des usagers »: Le premier pêché sur chaque ligne – ordinairement le plus bas se remplit lorsque celui placé immédiatement au-dessus est mis en pêche. Sans cette précaution, quelquefois négligée par suite d’incurie ou de mauvais procédés des usagers, le fond d’une partie des étangs ne se couvrirait qu’imparfaitement dans les années sèches.

84 L’incurie pourrait correspondre à l’insouciance, à la non considération des autres, à l’individualisme, qui se sont assurément affirmés ces toutes dernières décennies. Tandis que « les mauvais procédés », ainsi désignés par un homme réservé et courtois

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 108

de l’époque, pourraient renvoyer, plus qu’à une méconnaissance des usages, déjà à un refus de les reconnaître ou, pire encore peut-être, à quelque manœuvre dans le but de nuire à l’autre. Rien que de très actuel.

85 Difficiles relations de voisinage, vieilles inimitiés, rancunes ou jalousies du moment se répercutent dans la gestion même des étangs, y trouvent le moyen efficace de s’exprimer, l’occasion renouvelée de se dire. Et l’on mesure mieux alors, en dehors des prescriptions du coutumier, l’importance essentielle des arrangements, car il y a bien dans la gestion des eaux une possibilité de réplique immédiate, de brimade bien concrète, de pression, de revanche, cela fait partie de l’ordre même des choses, au point qu’il n’est pas de conflit dont les traces restent durables.

86 Et à suivre les étangs et ce qui se passe sur chacun d’eux, mais aussi sur la totalité du réseau, de proche en proche, tout s’éclaire. Silencieusement, à travers l’eau, les faits prennent sens. Les répercussions des conflits, ayant trait à l’eau ou pas, les ressentiments suscités se lisent dans la gestion même de l’eau.

87 Mais cela va plus loin encore: les arrangements, eux-mêmes présentés comme le fait d’une société solidaire et qui agit au mieux pour la meilleure gestion des eaux, apparaissent intrinsèquement liés aux représailles possibles s’ils sont refusés… Les propriétaires de l’amont envoient bien une petite courante d’eau le jour de la pêche de l’étang en aval, alors que le propriétaire en aval par ailleurs se plaint sans cesse des agissements de l’amont… mais sur le service rendu, le propriétaire de l’aval, lui, a les idées claires: « ils y sont bien obligés, c’est normal ! Et s’ils ne l’avaient pas fait, je peux après très bien refuser que l’eau passe! »

88 Ainsi, en cette terre de propriété privée, on est tenu les uns aux autres. Si « on ne refuse pas l’eau », beau principe énoncé avec conviction et noblesse et qui fait l’unanimité, c’est aussi qu’on ne peut prendre le risque de la refuser. La tension est au fondement de l’équilibre auquel on parvient et qui s’instaure du fait même des pressions entre amont et aval: le coutumier, dans le paradoxe apparent des deux articles qui se suivent, n’exprime rien d’autre.

89 Comme dans toute société où elle est une ressource précieuse, parce qu’elle l’est, l’eau se révèle être aussi, dans cette société à étangs solidaires, un langage privilégié. Par l’eau on sait pouvoir faire entendre sa voix, régler ses comptes: d’amont en aval, d’aval en amont, les hommes sont étroitement liés par l’eau. Efficace, le langage de l’eau est aussi le mieux entendu, et il atteint toujours son but.

L’eau des étangs précieuse pour les agriculteurs

Droit ou tolérance

90 Le caractère précieux de l’eau apparaît de façon plus immédiate, lorsqu’on quitte l’exploitation piscicole des étangs pour aborder les alentours, le monde rural. Car l’eau des étangs est d’une importance capitale dans l’univers paysan, pour la possibilité qu’elle offre d’y laisser pacager et s’abreuver le bétail en saison chaude, et de faucher les joncs nécessaires aux litières des étables ou aux toits des habitations.17 Cet usage plus particulier, dans une région où les céréales n’étaient pas assez abondantes et où dès lors manquait la paille, était loin d’être secondaire. Aujourd’hui, on se souvient

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 109

encore de l’époque pas si lointaine, quelques décennies seulement, où les herbes aquatiques — joncs, rauches et roseaux — étaient toujours recherchées pour les litières.

91 Pacage, abreuvage et fauchage peuvent faire l’objet de droits écrits, parfois de conventions temporaires, qui valorisent de façon significative les terres autour des étangs. Mais ils relèvent aussi, et le plus souvent, de simples tolérances de la part des propriétaires de l’eau, si essentielles toutefois pour les agriculteurs, que ces derniers ont tendance à les considérer comme des droits. De même, les servitudes qui grèvent les étangs et qui ne devraient être que saisonnières, sont-elles souvent considérées comme permanentes par ceux qui font de l’élevage. De là, et cela est une constante, les protestations des propriétaires d’étangs contre ce qu’ils jugent des pratiques abusives.

92 L’ambiguïté plane toujours localement dans les esprits entre droits et simples tolérances, mais toute une palette subtile d’arrangements tacites a été possible parce que les hommes qui travaillent sur les terres en bordure des étangs ont à subir les inconvénients de cette proximité: les crues soudaines, l’inondation des prés, et, pire, lorsque la terre était encore travaillée, l’inondation des champs avec la perte sûre d’une partie des cultures. Aussi la tolérance, au moment de la saison d’été ou de périodes sévères de sécheresse, de laisser pacager les bêtes sur l’étang et de leur permettre de s’abreuver, est-elle vécue du côté des propriétaires comme une compensation légitime pour les dommages causés par les eaux, « une sorte de monnaie d’échange » comme l’avancent certains.

93 Les contraintes qu’imposent les périodes de crue et de sécheresse dans leur alternance, et la question toujours litigieuse des limites entre eaux et terres, lient ainsi étroitement les hommes de la terre et les hommes d’étangs. Elles sont au fondement du système social en Brenne. La nécessité vitale de l’eau des étangs pour l’élevage – et longtemps pour la survie même des hommes –, que les décisions politiques d’assécher les étangs à l’époque révolutionnaire, puis encore au xixe siècle, avaient révélée de façon brutale, scelle jusqu’à nos jours la dépendance plus large des agriculteurs par rapport au monde des étangs.

94 Cette latitude précieuse pour le riverain de laisser s’abreuver et pacager ses bêtes autour d’un étang, lorsqu’elle fait l’objet d’un droit, est toujours mentionnée dans les actes notariés lors des transactions diverses qui concernent l’étang frappé de servitudes ou les terres qui bénéficient du droit. Le propriétaire de l’étang se voit expressément interdit d’assécher l’étang, et lorsqu’il choisira de le laisser en chômage, l’étang ne devra pas le rester plus d’une année pour ne pas nuire au bénéficiaire; bien entendu, le droit sera suspendu pendant l’année où l’étang est en assec et éventuellement cultivé.

95 La différence avec la Dombes, qui connaît une alternance régulière sur ses étangs entre exploitation de la terre et évolage, est flagrante. On ne peut en Brenne mettre à sec fréquemment un étang et en enlever l’eau à ceux qui en ont un besoin vital durant la saison d’été, ni suspendre à intervalles rapprochés les possibilités d’abreuvage, qui sont depuis toujours la condition du maintien de l’élevage.

96 Le plus souvent l’abreuvage relève d’une tolérance du propriétaire de l’étang. Mais alors tous les arrangements tacites existent, eux-mêmes constamment susceptibles de nouvelles négociations et d’aménagements selon l’évolution de la relation entre propriétaires d’étangs et agriculteurs riverains ou proches. Ainsi dans un contexte tout récent, un exploitant agricole a-t-il demandé au propriétaire d’un petit étang de le

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 110

laisser mettre ses bêtes en pacage sur les rives. Le propriétaire lui a accordé cette faveur, mais à la condition, et la transaction prend alors toute sa valeur pour le propriétaire, de pouvoir hausser le niveau ordinaire de l’étang de 15 centimètres. L’agriculteur accepte, car pour lui l’avantage est aussi important, mais il n’est pas dupe et, très vite, il évalue la superficie de prairie gagnée par l’eau avec l’exhaussement du niveau.18

97 Autrefois, jusqu’à il y a quelques décennies, lorsque les hommes étaient disponibles dans les domaines et suffisamment nombreux pour que l’un d’eux aille garder les bêtes sur les étangs, pacage et abreuvage étaient des pratiques différentes. Alors, les hommes se souviennent, « les vaches naviguaient dans les étangs ». Mais comme partout, avec la raréfaction de la main-d’œuvre et la disparition des bergers ou vachers, les hommes ont dû installer des clôtures et laisser les bêtes seules dans les prés, sauf qu’ici, les délimitations se font dans l’eau de l’étang aux formes irrégulières que la clôture vient trancher, et les propriétaires sont vigilants. Rectiligne, une clôture risquerait de marque les limites de propriété, aussi, rappeler aux agriculteurs qu’abreuvage et pacage sont le fruit d’une tolérance et non pas d’un droit, ou, plus justement, car ainsi on ménage les riverains, le leur faire sentir (et chacun le fait à sa façon), est un souci partagé des propriétaires. Et il est vrai que nombre d’exploitants agricoles, lorsqu’ils sont fermiers, ne se préoccupent guère de savoir si l’abreuvage des bêtes est un droit ; à leurs yeux il l’est, alors qu’importe si, lors de la lecture des baux, on ne trouve pas trace d’une phrase sur les droits éventuels; la question n’est pas à discuter. Ainsi aux droits et arrangements possibles, s’ajoutent les pratiques sans concertation aucune.

98 Compensation légitime pour les dégâts causés par les débordements d’étangs sans doute, mais cette tolérance à son tour devient une faveur dont le propriétaire attend d’autres avantages: la surveillance de l’étang, un coup de main éventuel, surtout la participation active et toujours bénévole aux pêches d’étangs qui exigent une mobilisation de main-d’œuvre. Participation longtemps vécue comme un privilège, reçu ou accordé. Le terme d’ « invitation » par le propriétaire est d’ailleurs en usage. Des clauses particulières existent aussi pour certains étangs, explicites quant aux services qui peuvent être rendus lors des pêches. On le voit, la relation entre propriétaires d’étangs et agriculteurs alentour ne se réduit pas au lien créé du fait des usages d’abreuvage et de pacage, elle s’élargit encore au-delà. Droit ou tolérance de laisser les bêtes sur l’étang supposent encore une grande diversité d’échanges.

99 La présence du bétail sur les étangs a aussi en retour des avantages pour l’eau d’étang qui s’en trouve fertilisée, et dès lors pour la pisciculture. Les propriétaires exploitants ne l’ignorent pas, ils en tirent profit, et les agriculteurs sont conscients que la tolérance qui leur est accordée n’est pas elle-même sans contrepartie. Bénéfiques pour le poisson, les effets du pacage le sont également pour le gibier d’eau comme la bécassine et les petits échassiers. Les propriétaires profitent aussi du pacage des bêtes pour la chasse sur les étangs, et ils y trouvaient encore un autre avantage, avant que le faucardage ou les ragondins ne suppriment la végétation : les bêtes empêchaient les pousses de se développer et libéraient une part de surface d’eau.

100 Mais avec l’apparition d’une nouvelle catégorie de propriétaires, amateurs de chasse au gibier d’eau, et les transformations des pratiques d’élevage, les choses ont changé. Le troupeau des bêtes qui paissent est aujourd’hui beaucoup plus important, comme les agriculteurs éleveurs le reconnaissent. Non seulement le prélèvement en eau est loin d’être négligeable,19 mais les vaches qui ne sont plus surveillées peuvent monter sur les

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 111

chaussées, les endommager, abîmer les bordures, par leur piétinement trop important, et y former des trous; si la terre est argileuse, un troupeau de soixante bêtes défonce le sol, les vaches s’y empêtrent jusqu’au ventre.

101 Le développement de la chasse, qui ouvre les étangs à une fréquentation nouvelle, est aussi vite devenu une source de conflit entre agriculteurs et chasseurs. Ces derniers se plaignent auprès des propriétaires qui leur louent des étangs, que le bétail peut survenir brusquement dans l’étang, effrayer et chasser le canard, et de façon générale de ce qu’il dérange le gibier d’eau. Les propriétaires aménagent tant bien que mal la cohabitation.

102 Parfois d’ailleurs, à l’occasion d’un changement de propriétaire ou d’une succession, les droits peuvent être transformés, le droit de pacage tombe, on ne conserve que l’abreuvage, et l’abreuvage lui-même s’aménage. Le « couloir d’abreuvage » est encore une étape dans l’évolution des accords à propos de l’utilisation des eaux d’étangs. Il restreint l’accès à l’étang, évite la dispersion des bêtes dans les eaux. Les agriculteurs, eux, en mesurent déjà les désavantages, nombreux.

103 Le lien entre les inconvénients dus aux débordements des eaux d’étangs, les dommages qui en résultent et la tolérance sur les étangs de la fréquentation des bêtes, propriétaires d’étangs et agriculteurs éleveurs l’ont clairement à l’esprit. Si ces derniers ont l’art, sans entrer dans le détail, du raccourci évocateur, « l’hiver, on a un mètre de flotte, l’été, nos bêtes boivent dans ces étangs », les uns et les autres connaissent parfaitement les différentes causes possibles des crues. Et les propriétaires, qui évoquent la tolérance de pacage et d’abreuvage comme « compensation », voire « monnaie d’échange » pour les dommages causés par les eaux, ne sont pas vraiment sereins, car ils savent aussi leur part de responsabilité dans certaines inondations. Soit qu’ils n’aient pas entretenu les fossés en aval de l’étang, soit que les déversoirs des étangs ne suffisent pas à évacuer l’eau en cas de fortes pluies, ou que les grilles au- dessus des déversoirs ne soient pas régulièrement libérées de ce qui entrave le passage de l’eau, soit que les bondes ne soient pas suffisamment importantes, soit, plus grave encore, que le propriétaire d’un étang, à l’occasion de travaux sur les ouvrages, ait fait remonter le niveau de l’étang en rehaussant la grande pierre plate qui se trouve à la base du déversoir...

104 Les choses ont changé plus largement. L’abandon des terres cultivées au profit des prairies rend le problème des débordements moins grave, les agriculteurs eux-mêmes en conviennent et en parlent spontanément: une prairie inondée, même si la crue dure plusieurs jours, ce n’est pas comme une parcelle de blé sous l’eau, et l’on est plus tolérant. L’amélioration relativement récente des ouvrages, l’invention notamment des bondes à déversoir intégré par lesquelles s’effectuent à la fois le vidage et l’évacuation du trop-plein, ont résolu en grande partie l’éventualité d’inondations. Les reproches constants faits au propriétaire ou au garde, de lever les bondes trop brutalement ou de ne pas surveiller les déversoirs, n’ont plus lieu d’être.

Limites entre eaux et terres

105 Lors même que l’abreuvage et le pacage relèvent d’un véritable droit, ce dernier a ses limites que les bénéficiaires ont tendance à oublier et à outrepasser. Il peut lui-même faire l’objet d’abus, aussi doit-il être surveillé par le propriétaire de l’étang.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 112

106 Durant le xixe siècle, lors de la réglementation des ouvrages d’étangs, l’administration avait eu toutes les difficultés à déterminer des frontières précises entre l’espace de l’étang et les terres. Dans l’impossibilité d’agir avant que la situation soit éclaircie par l’intervention de géomètres, elle se faisait l’écho des contestations des propriétaires de part et d’autre et des litiges récurrents: les procès jalonnent tout le xixe siècle. Il y est question d’emplacement d’ouvrages, de hauteur du déversoir, des usages reconnus de pacage et d’abreuvage, de surfaces de terre gagnées sur l’eau et contestées par les propriétaires riverains… Comme on ne peut trancher sans la connaissance de la réalité sur le terrain, des géomètres sont dépêchés sur les lieux, puis plus tard des « arpenteurs géographes » qui effectueront le bornage.

107 Il arrive aussi que, par souci de clarification et de tranquillité – car tant que le bornage d’un étang n’est pas établi, les protestations des riverains ne s’apaisent jamais longtemps –, ce soit le propriétaire de l’étang lui-même qui demande la détermination juridique des contours. Celle-ci ne se définit pas sans enquêtes minutieuses auprès de tous les riverains, et elle fait parfois l’objet, car les points de vue sont différents, d’une longue procédure.

108 Les faits ne sont pas bien différents aujourd’hui, et le cas de figure se répète: les eaux d’un étang submergent-elles une parcelle cultivée, ou l’agriculteur a--t-il exagérément avancé ses cultures dans l’espace de l’étang qui a du mal à se remplir ? « L’étang est dans ma récolte ! – Non c’est votre récolte qui est dans mon étang ! », la joute est habituelle, mais elle s’atténue si un relevé des contours de l’étang « eaux tendues » a été établi. Document exhumé, la querelle s’apaise, mais un moment seulement, car il y a là justement le lieu même de la tension entre monde paysan et propriétaires d’étangs, tension elle-même créatrice des liens qui fondent la société brennouse.

109 De façon générale, ces droits de pacage et d’abreuvage paraissent, aux yeux des propriétaires d’étangs, mal déterminés. Les animaux peuvent pacager en bordure, boire dans l’étang, mais dès lors que les étangs sont très bas, il n’est pas rare de voir les bêtes avancer dans l’étang, ou bien des parties de l’étang, non recouvertes d’eau, labourées et ensemencées. Juste revanche pour ceux qui exploitent les terres : lorsque l’eau, qui a avancé et inondé s’est retirée, alors ce sont les terres qui prennent le dessus.

110 Et de même que les agriculteurs savent évaluer les hectares qui leur sont ravis par ne serait-ce qu’une dizaine de centimètres de rehaussement du niveau des eaux, de même les hommes d’étangs savent, eux, très vite évaluer selon les étangs, selon les bordures, quelle surface en eau peut être découverte, si le niveau de l’étang est maintenu plus bas de quelques centimètres.

111 On assiste ainsi à une sorte de va-et-vient, de balancement entre eaux et terres, à l’image d’un rapport de forces qui toujours s’inverse entre propriétaires d’étangs et agriculteurs. L’eau qui inonde, s’étale, recouvre les terres d’où elle chasse les hommes, puis se rétracte. Ces derniers reprennent alors les terres, mais jusqu’à la surface qui n’est pas encore couverte d’eau, « rentrent dans l’étang », pour peu qu’une année soit sèche, et s’aventurent encore. Ce petit jeu est emblématique d’une rivalité dans l’emprise sur l’espace, et de l’équilibre qui parvient à s’installer, qui fait que l’on se supporte et que l’on cohabite tout en se surveillant de près.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 113

Par les étangs, le lien entre deux mondes

112 La densité des étangs est telle en Brenne que tous les agriculteurs y vivent auprès d’étangs. À un moment ou à un autre, ils en ont subi les débordements, ou ils y ont mené leurs bêtes, mais aussi, ils ont prêté main-forte. Nombreux sont ceux qui aujourd’hui s’occupent d’étangs, soit parce que, fermiers sur les terres qui environnent l’étang, leur aide active est sollicitée, soit parce que propriétaires, gardes ou négociants comptent éventuellement sur les exploitants riverains ou fermiers, ou encore sur les agriculteurs retraités, pour jeter un œil en passant et le surveiller, durant par exemple les opérations délicates de mise en tire puis de mise en pêche. Lorsque l’on n’est pas agriculteur soi-même, le père l’était et, métayer ou fermier, il avait forcément eu affaire aux étangs. Dès lors, une population large d’hommes se voit concernée par les étangs. Toute sa vie aussi, on a côtoyé le maître des domaines et du père métayer, comme ensuite les fils du propriétaire ont pu à leur tour être les « patrons » pour lesquels on a travaillé.

113 Il en est ainsi parfois sur plusieurs générations, et l’on ne peut comprendre la nature complexe des liens qui s’établissent autour des étangs aujourd’hui, sans prendre en compte cette donnée essentielle. D’un côté et de l’autre, la force de la relation, issue de cette transmission générationnelle même, est énoncée, sans que pour autant, d’un côté comme de l’autre, on ignore la distance qu’il ne s’agit jamais d’abolir.

114 Aussi, lorsque le lien est déjà établi et ancien, on ne saurait refuser un service demandé, que l’on soit fermier sur les terres de celui qui demande, exploitant à son compte ou fermier d’un domaine proche de l’étang. Les services ou coups de main rendus sur les étangs, rémunérés ou pas, sont innombrables. Parfois l’agriculteur en vient à s’occuper lui-même plus largement des étangs. Cela arrive tout naturellement, et cela est d’autant plus « normal » que déjà lorsque le père était métayer, il avait à prendre soin de l’étang, assurait la mise en tire, la mise en pêche, la pêche elle-même; cela faisait partie des tâches qu’il avait à accomplir dans le cadre du contrat qui le liait au propriétaire, et, pour avoir toujours suivi et aidé son père, l’agriculteur d’aujourd’hui sait y faire. Ce dernier peut aussi être d’un réseau plus large d’amitié et d’entraide d’agriculteurs et de gardes qui ont la charge de l’exploitation piscicole sur certains étangs; une diffusion de savoir-faire plus élaborés s’opère ainsi, dont profitent les propriétaires exploitants. Le moment venu, l’agriculteur saura trouver la main-d’œuvre nécessaire aux différentes tâches pour la pêche de l’étang à laquelle il participe bien sûr.

115 Lorsqu’on ne vit pas dans la région et qu’on ne dispose pas d’un garde, on peut aussi demander à l’agriculteur proche de l’étang de s’occuper entièrement de l’étang. À la mort de l’agriculteur, on s’adresse au fils, qui se voit alors appeler à « prendre la relève ». Le fait que les agriculteurs soient sur place, installés non loin des étangs, est d’ailleurs utile pour tous, propriétaires, négociants ou gardes, qui ont souvent de nombreux étangs à surveiller.

116 Avant même le jour de pêche à laquelle participent nombre d’agriculteurs, la veille de la pêche, les hommes dorment sur la chaussée pour surveiller le niveau des eaux ou chasser les oiseaux; le garde de la propriété, lui-même le plus souvent d’origine paysanne, passe la nuit avec des amis, des parents, des voisins: beaucoup sont agriculteurs.

117 Ainsi les relations entre agriculture et exploitation des étangs sont fortes, diverses et complexes. Les propriétaires parlent des tolérances accordées de pacage et d’abreuvage

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 114

des bêtes sur les étangs en compensation des débordements d’étangs, tolérances qui en retour ne sont pas sans avantages aussi pour les propriétaires exploitants piscicoles eux-mêmes. L’« invitation » offerte, de participer aux pêches, est également à leurs yeux comme une contrepartie des inconvénients liés aux crues, ou vient en remerciement pour les services rendus, tandis que, de leur côté, les agriculteurs, qui se considèrent eux-mêmes redevables de la tolérance accordée de pacage et d’abreuvage, estiment ne pouvoir refuser de rendre service, ou de participer aux pêches, comme on les y « invite ».20 Les obligations multiples et réciproques, véritables ou ressenties, donnent une plus grande densité encore au lien.

« On ne refuse pas l’eau. »

118 Même s’il y a restriction des tolérances dans l’utilisation de l’eau des étangs, il semble difficile à un propriétaire traditionnel de penser que l’accès à l’eau puisse être refusé à des agriculteurs. À la différence des propriétaires récents qui achètent essentiellement en Brenne pour le loisir et n’entrent pas dans les préoccupations locales, les propriétaires exploitants piscicoles, souvent aussi à la tête de domaines anciennement cultivés, ou possédant des fermes encore exploitées, n’ignorent pas l’importance de l’eau en saison d’été pour l’élevage, ni les difficultés causées aux éleveurs par l’assec d’étangs aux abords desquels sont ordinairement tolérées les bêtes. Aussi ont-ils du mal à ne prendre en compte que les impératifs des chasseurs au gibier d’eau sur les étangs, et ils estiment l’abreuvage prioritaire. Et s’ils font sentir aux agriculteurs qu’ils ne doivent pas abuser de la tolérance accordée, par exemple ne pas pomper l’eau comme cela a pu se faire ici et là, s’ils vont parfois jusqu’à menacer de clôturer, la possibilité donnée de profiter de l’eau de l’étang n’est pas remise en cause: « Il faut bien, lorsque l’eau est si rare, leur en laisser l’usage: on ne peut tout de même pas refuser l’eau ! »

119 La même formulation revient, avec la même véhémence: pas plus entre propriétaires d’étangs que de propriétaire d’étang à agriculteur éleveur, l’eau ne se refuse. Les hommes de Brenne partagent une égale considération pour l’eau.

120 Mais là encore, comme dans les relations d’étang à étang, le principe éthique énoncé cache de véritables contraintes: parce qu’ils ont éminemment besoin de leurs services et de leur tolérance, les propriétaires d’étangs ne sauraient refuser l’eau aux agriculteurs dont d’une certaine façon ils dépendent à leur tour.21

121 Ainsi à tous les niveaux du social, les hommes sont tenus les uns aux autres. Reconnu par tous, le caractère précieux de l’eau entraîne une gestion de l’eau comme d’un bien rare qui fédère exploitants piscicoles sur les lignes d’étangs et exploitants piscicoles et agricoles autour des étangs. Organisation rationnelle des eaux et survie de l’élevage ne sont possibles que du fait même de ces obligations multiples et réciproques dont la complexité apparaît comme en condensé sur les étangs eux-mêmes.

L’étang, un capital symbolique

122 Au Portugal, dans la région de Melgaço, seuls ceux qui se disent et que l’on nomme des héritiers possèdent des droits d’eau, et ils tiennent fortement à ce statut privilégié constructif d’une identité prestigieuse. Un système hydraulique complexe se perpétue, plus pour ce qu’il représente à leurs yeux que pour le rapport d’une agriculture que n’est plus nécessaire à personne.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 115

123 Sur ce dernier point, la situation est comparable en Brenne où prestige et pouvoir sont associés déjà anciennement à la propriété des étangs et à leur exploitation, longtemps activité lucrative, longtemps aussi privilège des seigneurs religieux ou laïques. Et les grandes familles locales tiennent à l’exploitation piscicole également pour des raisons tout autres qu’économiques. La connotation symbolique des étangs, à l’œuvre depuis toujours, se révèlera avec force durant la période révolutionnaire où les paysans s’attaqueront aux étangs pour eux si emblématiques d’une classe sociale.

124 Aucun document écrit n’atteste de l’existence en Brenne d’un véritable système d’exploitation d’étangs en termes de pisciculture avant le xve siècle. Des recherches récentes22 toutefois suggèrent que l’existence de la carpe, espèce courante dans l’est de l’Europe, n’était pas inconnue en France au début du xiiie siècle. À la fin du siècle, l’élevage en était déjà introduit à une échelle large, et la carpe, en quelques décennies, devenue un poisson commun. Dès le début du xive siècle, l’élevage de cette espèce robuste, tolérant des milieux naturels très divers, en était déjà largement répandu et avait une place de choix dans l’exploitation piscicole.

125 L’analyse des documents d’archives montre d’ailleurs sans conteste que la production des étangs était, déjà avant le xve siècle, une production rentable à laquelle on accordait la plus grande attention. Et l’on a pu même parler pour la Brenne du xve siècle d’une véritable « politique des étangs23 » mise en œuvre au sein du prieuré local de Loups, à l’époque des prieurs Pierre et Guillaume de Fougères, qui furent aussi un temps abbés de Fongombault.

126 Des documents d’archives de tous ordres abondent pour les xve et xvie siècles.24 Ils nous donnent une mesure sûre de la production des étangs et révèlent un intérêt affirmé pour l’exploitation piscicole, aussi bien de la part des ordres religieux monastiques que des seigneurs et propriétaires laïcs. Ils témoignent clairement aussi d’une conception d’ensemble d’un système d’étangs déjà bien en place et des nombreuses précautions qu’elle suppose, éclairent sur les préoccupations et le savoir partagés dans l’aménagement des étangs, l’exigence qu’il impose, et les tentatives enfin, déjà à l’époque, de s’entendre pour une gestion raisonnée qu’illustrent aussi amplement les différents coutumiers locaux qui peu à peu se sont élaborés. Une construction maîtrisée des étangs en vue d’une gestion raisonnée des étangs, une production vite devenue rentable : l’ensemble des documents l’attestent avec certitude. Plus discrètement, ça et là, ils dévoilent déjà aussi le caractère précieux de l’eau des étangs pour le monde paysan alentour.

127 Dans les siècles suivants, la pisciculture en étangs ne va cesser de prendre de l’ampleur. Selon les historiens, l’économie des étangs, dans la France du xviiie siècle plus largement, repose pour une grande part sur l’approvisionnement des villes en poissons destinés essentiellement à une élite, friande de ce poisson qui arrive vivant. Car le poisson d’eau douce dont les espèces sélectionnées sont résistantes au point de supporter un long cheminement, est toujours livré en vie, tradition qui demeure jusqu’à nos jours. Et il y aurait bien désormais et de façon générale dans la pisciculture des régions d’étangs et du fait de la consommation urbaine « une activité hautement spéculative.25 »

128 En Brenne, à la fin du xixe siècle puis surtout dès les premières années du xxe siècle, avec l’accession plus large à la propriété de familles aristocratiques ou d’origine bourgeoise, les propriétaires qui exploitent leurs étangs s’emploient avec vigueur à développer et moderniser une production piscicole délaissée. L’analyse des écrits de

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 116

l’époque laisse toutefois aussi paraître un lien à l’étang qui dépasse largement l’intérêt pour sa production.

129 Ainsi, et pour ne prendre qu’un exemple, un roman publié au début du xxe siècle par un écrivain local situe bien les choses. L’étang qu’évoque l’auteur par l’intermédiaire de son personnage, propriétaire en Brenne, n’est pas hérité et vient d’être acquis, mais il est d’emblée inscrit dans la transmission future, aimé déjà pour cela. Le procédé anthropomorphique, lorsque le romancier évoque l’étang, est appuyé et sans détour: l’auteur parle de l’étang comme d’un être vivant pour lequel on éprouve un sentiment, avec lequel s’établit un échange et, le temps passant, une connivence. Au maître, il semble que son étang lui sourit, de son « serviteur », le maître attend qu’il réponde à ses devoirs et supporte le moment du sacrifice, celui de la pêche qui le défigure, sans en vouloir à son maître dont il accepte l’exigence.

130 Le devoir est réciproque; si les propriétaires des grandes familles locales expriment, en même temps que leur intérêt pour la pisciculture, un lien affectif sûr à l’étang, ils disent aussi leur devoir par rapport à l’étang qui leur a été transmis et que certains d’entre eux, avec les difficultés de la pisciculture aujourd’hui et ses exigences, n’ont plus toujours plaisir à honorer: on s’occupe des étangs parce que l’on en a hérité et parce qu’on se doit de léguer à son tour ses étangs entretenus et productifs. La charge et la responsabilité de la transmission excluent toute légèreté. Perpétuer l’exploitation piscicole est aussi dans cette société se perpétuer soi-même, son nom, sa famille, son existence sociale.

131 Il y a dans la pisciculture, telle qu’elle est pratiquée au sein d’un monde qui a considérablement changé et devient incertain, le sentiment rassurant d’une continuité, et, dans le lien aux étangs, l’attachement à une tradition que l’on voudrait parvenir à transmettre en même temps que l’on transmettra ses étangs. Mais aujourd’hui les désillusions, les inquiétudes sont si fortes, la pisciculture considérée si menacée, que cela ne se fait pas toujours en toute sérénité. Alors que pour certains propriétaires récents, sans véritable insertion locale, peu encombrés du poids de l’histoire, venus en Brenne pour le plaisir de chasser, pratiquer le cycle de la pisciculture est une distraction: cette façon de voir les choses ne saurait être celle des propriétaires traditionnels.

132 Pour les membres des vieilles familles locales en l’occurrence, l’étang n’est pas seulement partie du patrimoine hérité et qu’il faut préserver, il est aussi intimement lié à la vie familiale. Qu’on le voit ou pas depuis chez soi, il est, dans la représentation que l’on en a, partie intégrante de la maison familiale, et on l’exprime parfois le plus clairement du monde: « L’étang, pour vous dire, c’est une pièce de la maison. » L’attachement sentimental à l’étang est manifeste. Héritiers de ces familles qui ont agi sur la nature, transformé et modelé le paysage, on continue, lorsqu’on agit sur les étangs à laisser son empreinte dans l’espace, on pérennise celle de ses ascendants. Qu’un ouvrage soit réparé, on grave quelque part la date de la restauration, parfois simple incision; ou encore, elle est sculptée dans le bois de la bonde d’un grand étang, et un cœur lui est associé.

133 Ainsi, par les étangs et leur agencement, s’exprime l’emprise des familles sur l’espace. L’univers familial s’y projette. On nomme un nouvel étang du nom d’un enfant, ou lorsqu’on n’a pas de descendant direct, du nom de ses nièces ; on le nomme aussi du nom d’un être aimé, celui de l’épouse pour laquelle le sentiment s’inscrit ainsi dans le

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 117

territoire et par là même se dit au grand jour et s’impose à tous, devenant d’une certaine façon publique.

134 Mais, lorsque survient le moment de la succession, c’est un ébranlement. Il arrive d’ailleurs que l’on ne partage pas les biens, que l’on préfère garder intact le territoire d’un seul tenant, mais cela n’est pas longtemps possible et le risque est déjà, outre le morcellement, que l’on ne poursuive pas ce qui était auparavant, ou que les habitudes changent, et notamment que d’autres conceptions de la chasse apparaissent sur le territoire.

135 Aussi une succession peut-elle être vécue comme un large bouleversement. Énoncer qu’« à chaque succession, le paysage de la Brenne change » n’est pas faux lorsque la propriété a quelque mille hectares. Les familles se font une juste représentation de leur emprise sur le territoire: avec la division des biens qui suit un héritage, ce n’est plus une page mais en effet « des pages d’histoire qui se tournent ». Tant dans cette société, histoire familiale et histoire du territoire se confondent.

136 Mais si l’étang a été et demeure un capital essentiellement symbolique, et avant tout la marque familiale d’une présence dans l’espace, le signe d’une emprise, si la rentabilité de l’étang n’est finalement pas ce qui prime, il n’en reste pas moins qu’il s’agit, même aux yeux des propriétaires issus des vieilles familles locales, d’en tirer si possible un bon revenu – cela a longtemps été le cas, et l’est encore parfois –, sûrement de ne pas perdre d’argent, au minimum de rentrer dans ses frais pour perpétuer l’exploitation des étangs. Mais aujourd’hui, les difficultés s’accumulent: à la sécheresse qui s’aggrave, s’ajoute la présence sur le territoire de nouvelles espèces qui détruisent la végétation de l’étang et ses ouvrages. Il devient difficile, dans un tel contexte, et pour parvenir à maintenir l’exploitation qui n’est plus rentable, de résister à louer ses étangs pour la chasse, surtout lorsque la location dans cette région préservée et sur des étangs cachés au sein des domaines peut atteindre des prix sans commune mesure avec ce que rapporte la pisciculture. Certains étangs sont loués depuis longtemps, la chasse semble être alors la condition pour continuer à pratiquer la pisciculture et l’entretien par là même de l’étang auquel on lie son propre destin.

137 Dès lors, rester chez soi dans son domaine où l’on a tout fait pendant des générations pour ne pas avoir d’enclaves, garder les étangs exclusivement pour soi, continuer à les exploiter sans les louer, deviennent des privilèges incommensurables, auxquels seuls ont accès encore quelques très rares propriétaires de grandes familles de Brenne, et certainement les propriétaires récents et à venir, disposant de grandes fortunes leur permettant d’acheter en Brenne de vastes espaces, mais, eux, pour le plaisir exclusif d’y chasser sur les eaux de leurs étangs ou dans leurs bois.

Conclusion: les priorités qu’une société se donne

138 Ainsi à un moment ou à un autre de son histoire, une société peut être amenée à exercer une pression telle sur ses ressources qu’elles en deviennent rares et sont bien considérées telles: pour l’eau, un système rigoureux de gestion est aussitôt mis en place qui peut persister, alors que les conditions socio-économiques ont profondément et depuis longtemps changé. Au Portugal, bien loin de la Brenne dont a été privilégié l’exemple, l’eau est toujours abondante. Mais, consacrée en saison d’été à une production que l’on peut désormais aujourd’hui se procurer aisément par ailleurs, elle reste précieuse, et le système, avec sa stricte organisation, perdure dans toute sa

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 118

complexité pour d’autres raisons auxquelles les hommes demeurent tout autant attachés. En cela on ne peut parler de l’inertie d’un système hydraulique originel dont les hommes auraient perdu le sens (Berque, 1955:157-159 ; Bédoucha, 1987:43-46) et auquel ils se contraindraient sans le comprendre: le système est au contraire surinvesti de valeurs fortement sensibles et d’enjeux socio-politiques locaux. Les hommes se plient certes à un ordre ancien mais pour d’autres raisons toutes actuelles.

139 Alors que dans de nombreuses sociétés hydrauliques,26 la société se projette dans l’organisation de la distribution de l’eau qui dès lors en vient à refléter l’organisation sociale, c’est l’inverse qui, dans la société brennouse, semble bien s’être produit. Le système mis en place il y a bien longtemps au sein d’une même propriété seigneuriale, qu’elle soit laïque ou religieuse, pour l’organisation de la gestion des eaux de ses étangs solidaires, et qui n’a cessé de s’élargir et de s’affiner, agit sur les hommes. Les propriétaires ont changé, les grandes propriétés se sont morcelées ; très nombreux, les étangs toujours reliés les uns aux autres sont en de nombreuses mains. Mais les grandes familles qui semblent toujours associer leur sort à celui des étangs, dans des conditions aujourd’hui difficiles s’astreignent à leur exploitation, non pour survivre économiquement puisqu’elles n’ont jamais véritablement vécu de leurs étangs mais pour que les étangs survivent en ce qu’ils représentent symboliquement pour elles.

140 La dépendance des étangs entraîne par la force des choses celle des hommes, et ils le tolèrent, du moins tant qu’ils considéreront l’exploitation piscicole comme essentielle à leurs yeux, et pour cela même l’eau comme une ressource précieuse, ce qu’elle demeure pour le monde rural alentour.

Figure 1: La Brenne, au coeur de la France

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 119

Figure 2: Le réseau hydrographique d’ensemble

Figure 3: Une constellation d’étangs

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 120

BIBLIOGRAPHIE

ABAD, Reynald. 2006. La conjuration contre les carpes. Enquête sur les origines du dessèchement des étangs du 14 frimaire an II. Paris: Fayard.

AGUILERA-KLINK, Federico, PÉREZ-MORIANA, Eduardo et SANCHEZ-GARCIA, Juan. 2000. “The Social Construction of Scarcity: the Case of Water in Tenerife (Canary Islands)”, Ecological Economics, 34 (2):233-245.

AUBRIOT, Olivia. 2004. L’eau, miroir d’une société. Irrigation paysanne au Népal central Paris: CNRS Editions, collection Monde Indien, Sciences sociales 15e-21e siècle.

BASCHER, Dom Jean de. 1980. Le prieuré de Loups, première fondation de l’Abbaye de Fontgombault et les seigneurs de Brenne. 1096-1791. Châteauroux: Imprimerie Laboureur.

BÉDOUCHA, Geneviève. 1987. L’eau l’amie du puissant, une communauté oasienne de l’extrême Sud tunisien. Paris: Éditions des archives contemporaines (Collection Ordres sociaux).

____. 2011. Les liens de l’eau. En Brenne, une société autour de ses étangs. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’homme/ Éditions Quae (Collection Natures sociales).

BENARROUS, Renaud et MARINVAL, Marie-Christine. 2006. « La carpe, Cyprinus carpio, cette orientale qui séduit l’Occident au Moyen Âge ». In DEREX, J.-M. (éd.). La production des étangs du Moyen Âge à l’époque contemporaine. Actes de la Journée d’étude 2005 du Groupe d’Histoire des Zones Humides. pp. 9-22.

BERQUE, Jacques. 1955. Structures sociales du Haut Atlas. Presses universitaires de France.

BUCHS, Arnaud. 2009. « Crise de l’eau et construction sociale de la pénurie. L’exemple de l’usage de l’eau à Almeria (Andalousie) ». In Forum de la régulation 2009: Les défis analytiques et pratiques posés en économie par les crises et les problèmes de régulation: terrains et méthodes en question. 1-2 décembre 2009, Paris.

FERNEA, Robert-Alan. 1970. Shaykh and Effendi: Changing Patterns of Authority among the El Shabana of Southern Iraq. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press (Harvard Middle Eastern Studies, 14).

HONEGGER, Anne, et BRAVARD, Jean-Paul (éds). 2005. « La pénurie d’eau: donnée naturelle ou question sociale ». Géocarrefour, 80 (4):3-4.

JACOB-ROUSSEAU, Nicolas. 2005. Aspects de la pénurie hydrique et de sa gestion dans la Cévenne vivaraise (I : le xixe siècle), in Honneger et Bracard (éds). Géocarrefour, 80 (4), [En ligne], mis en ligne le 01 juin 2009. URL: http://geocarrefour.revues.org/1278.

LABBAL, Valérie. 2001. ‘Travail de la terre, travail de la pierre’. Des modes de mise en valeur des milieux arides par les sociétés himalayennes. L’exemple du Ladakh. Thèse de doctorat, Université Aix-Marseille 1, Université de Provence.

LATOUR, Bruno. 1993. We have never been modern. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press.

MANCERON, Vanessa, 2005. Une terre en partage. Liens et rivalités dans une société rurale. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’homme (Collection Ethnologie de la France).

RIBEIRO, Orlando. 1987. Portugal. O Mediterrâneo e o Atlântico. Esboços de relações geográficas. 5ème édition. Lisbonne: Livraria Sá da Costa Editora.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 121

TROTTIER, Julie. 2008. “Water crises: political construction or physical reality? “. Contemporary Politics, 14 (2):197-214.

WATEAU, Fabienne. 2002. Partager l’eau: irrigation et conflits au nord-ouest du Portugal. Paris: CNRS Éditions/Éditions de la Maison des sciences de l’homme).

____. 2008. La canne à mesurer l’eau, http://videotheque.cnrs.fr/index.php? urlaction=doc&id_doc=1809

NOTES

1. Berque 1955, Fernea 1970, Bédoucha 1987, Aubriot 2004. 2. Ainsi et par exemple, Aguilera-Klink, Pérez-Moriana, Sánchez-García, 2000; Buchs, 2009. 3. Le terme est emprunté à O. Ribeiro (1987) par F. Wateau (2004) et sans doute ici peut-on l’entendre dans les deux acceptions possibles, abondance de d’eau et prospérité de ceux qui en bénéficient. 4. Le gaspillage d’eau constaté par ailleurs de nos jours n’induit en rien qu’il en ait été de même autrefois. La gestion au XVIIe siècle a pu être plus rigoureuse. 5. La cartographie a été réalisée en collaboration avec Anne Le Fur de l’AFDEC à Paris. 6. Une enquête de terrain en Brenne a eu lieu de façon continue de septembre 1998 à mai 1999, elle s’est ensuite prolongée sur plusieurs années jusqu’en 2008 au cours de nombreux séjours d’un à deux mois à différentes saisons. 7. Mais le chiffres varient encore selon l’espace pris en compte. 8. Pour une analyse plus approfondie, je renverrai à Bédoucha, 2011. 9. Lorsque je parlerai d’hommes d’étangs, il s’agira de tous ceux qui s’occupent des étangs et de la gestion des eaux, qu’ils soient propriétaires exploitants, négociants-pisciculteurs, gardes, ou même simplement agriculteurs à qui est parfois confié le soin des étangs. 10. Hormis ceux dont l’eau part directement dans un ruisseau. Il existe par ailleurs en Brenne très peu de fossés de dérivation connus dans la Dombes sous le nom de « rivières de ceinture » ou « rivières de détourne », qui dévient en effet l’arrivée de l’eau amenée plus loin et donnent plus d’indépendance aux étangs. 11. On notera qu’il s’agit du même nom mais au féminin. 12. Sorte d’épuisette sans manche. 13. Archives départementales de l’Indre, série S. 14. Alevins de carpe. 15. Manceron, 2005:119. 16. Ibid : 158. 17. On a manqué de paille pour les litières jusqu’après la Seconde Guerre mondiale. La Champagne berrichone toute proche a alors développé la céréaliculture, suffisamment pour que les besoins en paille aient pu être couverts localement, on se souvient pour cette époque d’« acheteurs de paille » dont l’existence atteste de l’ampleur des besoins. 18. 15 centimètres de niveau peuvent prendre 50 mètres de prairie de chaque côté de l’étang. Cela finit par faire 2-3 hectares de gagnés sur la prairie. 19. Il est évalué à 5 000 litres par jour pour un troupeau de trente bêtes. Et sur un petit étang, pour peu que l’été soit sec, « les bêtes pourraient bien mettre l’étang à nu ! », dit un agriculteur lui-même. 20. Cette complexité de la notion d’invitation est analysée dans tous ses aspects par G. Bédoucha, 2011.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 122

21. Sans compter que les enjeux municipaux ont dû sans doute avoir leur place. Maires des communes, les membres de ses grandes familles locales ont aussi certainement été attentifs au vote dans le monde paysan, autre type de dépendance. 22. Benarrous et Marinval, 2006. 23. Bascher, 1980:38. 24. Archives départementales de l’Indre, séries E, G, H. 25. Abad, 2006:14. 26. J’entends par société hydraulique une société structurée en lien étroit avec la gestion de l’eau qui y tient une place essentielle.

RÉSUMÉS

Est interprété le paradoxe d’une gestion rigoureuse de l’eau en différents lieux du monde où l’eau se trouve pourtant en abondance. L’analyse porte plus particulièrement sur un système d’exploitation d’étangs mis en place déjà au Moyen-Âge en Brenne, région du cœur de la France, où existent de nos jours des étangs par milliers répartis sur plusieurs milliers d’hectares, et montre qu’en cette zone humide l’eau est bien considérée comme une ressource précieuse. L’importance symbolique des étangs a traversé les siècles, et les propriétaires exploitants tiennent à perpétuer la pisciculture pour des raisons tout autres qu’économiques. Mais une meilleure gestion du système d’ensemble leur impose de s’entendre afin de gaspiller le moins d’eau possible. L’eau des étangs s’avère également précieuse pour les agriculteurs éleveurs alentour, qui, en saison chaude y trouvent un appoint capital pour l’abreuvage des bêtes. Dès lors, le caractère précieux de l’eau pour les uns et les autres structure l’ensemble de la société.

Este artigo pretende explorar o paradoxo da existência de uma gestão rigorosa da água em diferentes lugares do mundo onde a água é, no entanto, abundante. A análise focaliza a região de Brenne, no centro da França, onde milhares de tanques existem hoje em milhares de hectares. A análise do sistema de exploração dos tanques, inaugurado na Idade Média, demonstra que a água nesta zona úmida é valorizada como um recurso precioso. A autora argumenta que a importância simbólica dos tanques atravessou os séculos e que claramente os proprietários desejam manter os tanques de piscicultura por outras razões além das econômicas. Uma vez que uma melhor gestão do sistema em sua totalidade exige desperdiçar o mínimo de água possível, eles têm que trabalhar em conjunto. A água dos tanques também é valiosa para os agricultores que, na estação quente, dela dispõem como um complemento fundamental para dar de beber ao gado.A preciosidade da água é, portanto, de interesse comum para todos: ela organiza toda a sociedade.

INDEX

Mots-clés : Rareté ou abondance de l’eau, gestion de l’eau, étangs, pisciculture, Brenne Palavras-chave : Escassez ou abundância de água, gestão da água, tanques, piscicultura, Brenne

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 123

AUTEUR

GENEVIÈVE BÉDOUCHA CNRS, Paris

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 124

Curar e recrear em águas termais: um diálogo etnográfico entre Portugal (Termas de São Pedro do Sul e Termas da Sulfúrea) e Brasil (Caldas da Imperatriz)

Maria Manuel Quintela

NOTA DO EDITOR

Recebido em 15/08/2011. Aceito em 20/08/2011. Maria Manuel Quintela é doutorada em Antropologia Social e Cultural, professora adjunta no Departamento de Saúde Comunitária da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, onde leciona a discipina de mestrado Antropologia e Saúde Pública. Investigadora no Centro Integrado de Antropologia em Rede (CRIA ISCTE-UL). Tem desenvolvido a sua investigação na área da antropologia da saúde sobre termalismo, água, práticas terapêuticas e dor em Portugal e Brasil.

Apresentação

1 O termalismo em Portugal e no Brasil é uma actividade que se desenvolveu entre a medicina e o turismo, à semelhança do que ocorreu noutros países europeus (Weisz, 2001; Mackman, 1998). Contudo, o seu processo histórico de formação seguiu caminhos diferentes nos dois países, em função dos sistemas médicos que o enquadram, bem como da relevância dada a cada uma das actividades que o termalismo intersecta, medicina e/ou turismo, e das tensões existentes entre elas.1 Em Portugal e no Brasil as práticas termais são classificadas de diferentes modos de acordo com os respectivos sistemas de saúde nacionais. Em Portugal, à semelhança do que se passa nalguns países

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 125

europeus, estas práticas são comparticipadas pelo sistema nacional de saúde e enquadradas no aparelho biomédico. Já no Brasil, elas são comparticipadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) como práticas complementares e/ou integrativas desde 2006. Resultantes de processos sociais e históricos particulares de cada país (Quintela, 2004, 2008, 2011), estas diferenças permitem pensar o termalismo enquanto actividade reguladora e de desenvolvimento das práticas termais, bem como geradora de terapias que se têm adequado a novas configurações sociais no campo da saúde, onde a noção de bem-estar é cada vez mais central. Com efeito, é com base nesta categoria que surge um conjunto de novas terapias associadas às tradicionais termas, terapias estas que vão para além do tratamento da doença (Nairandas & Bastos, 2011) e passam a focalizar-se na prevenção. É disto exemplo a legislação portuguesa de 2004 relativa à regulação do termalismo, pois inclui as duas vertentes – o “segmento de bem-estar” e o segmento de “termalismo clássico”.

2 Pensar na relação entre medicina e turismo e nas suas finalidades leva-nos a questionar dimensões da experiência que, aparentemente, à luz de uma visão redutora da biomedicina, se não são inconciliáveis, serão pelo menos de associação ambígua. A medicina tem como finalidade curar a doença e aliviar o sofrimento. O turismo é uma actividade que visa promover o lazer, o recrear, o prazer. O meu interesse inicial pelo estudo do universo termal nasceu justamente da curiosidade que me despertaram estas aparentes contradições, notórias no próprio terreno etnográfico. Em 1995, data da minha primeira incursão etnográfica nas Termas de S. Pedro do Sul (Portugal), estas eram um lugar que se construía em ambiguidades: a de receber doentes – por ter água termal – mas de querer simultaneamente receber turistas; a de ter como santos de culto a Senhora da Saúde e o São Martinho; a de pertencer à Região Vinícola Dão-Lafões, cruzando assim água e vinho, a primeira associada à cura e o segundo à diversão; a coexistência de um balneário2 – lugar de tratamento – e uma discoteca de nome Pecados – lugar de recreação. Não era fácil classificar o lugar perante o conjunto de actividades que aí se desenrolavam e as pessoas que aí se encontravam. Escrevi então: “Local de férias? Local de tratamento? O ambiente fazia lembrar ao mesmo tempo um espaço balnear marítimo e um espaço terapêutico. O primeiro era sugerido pelos calções, pelas toalhas de praia sobre os ombros, bem como pelas vendas de boias e fatos de banho; o segundo, pela quantidade de bengalas e de corpos envolvidos em toalhas turcas, xailes, gorros, roupões e luvas. Mas, então, que locais são estes? Cura-se? Folga-se? Recreia-se e cura-se! Pode-se sofrer e recrear simultaneamente?” (Quintela, 1999:5).

3 O que seriam afinal umas termas? O que faziam as pessoas nas termas? Era um lugar aparentemente organizado por categorias de doença e de lazer, em que as dimensões recreativa e terapêutica coexistiam na organização social do espaço e do tempo. Terreno privilegiado, sem dúvida, para reflectir sobre tópicos como a dor, o sofrimento, a doença, a saúde e também o lazer. Por outro lado, tornava-se um desafio estudar estas dimensões num cruzamento entre duas áreas disciplinares em que raramente tinha sido efectuado: a antropologia da saúde e a antropologia do turismo.

4 O estudo das Termas de São Pedro do Sul permitia ainda compreender o processo de formação do termalismo em Portugal, uma vez que elas são consideradas as primeiras termas portuguesas, associadas à fundação da nação, e um seu balneário foi edificado pelo primeiro monarca português, D. Afonso Henriques, e tem o seu nome. Eram, além disso, também as termas mais frequentadas do país.3

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 126

5 A partir das questões levantadas neste primeiro estudo,4 realizei depois uma etnografia comparativa sobre práticas termais em Portugal, noutras termas (Cabeço de Vide), e no Brasil (Caldas da Imperatriz, Santa Catarina). A escolha desta estância termal brasileira teve como principal justificação o facto de esta ser considerada a mais antiga do Brasil, mandada construir ainda no reinado de D. João VI. Parecia por isso o local mais indicado para acompanhar o processo de formação do termalismo brasileiro (Quintela, 2004, 2008) e para permitir uma comparação diacrónica com o caso português.

6 Pretendo neste artigo estabelecer um diálogo entre a primeira etnografia que realizei em Portugal e a que realizei no Brasil. Tal permitirá discutir comparativamente a relação entre curar e recrear como dimensões constituintes da formação das estâncias termais e do termalismo em torno da água enquanto eixo estruturante das práticas termais.

7 Tomarei como estratégia narrativa a apresentação do primeiro estudo de caso e das questões então colocadas, dialogando com a etnografia realizada na estância termal brasileira. Pretendo explorar novas questões que a comparação suscitou, estabelecendo interlocução com a biomedicina, a antropologia da saúde e alguns estudos das ciências sociais sobre termalismo inexistentes à data da minha primeira etnografia (1999).

A formação das estâncias hidrominerais e do termalismo: entre a medicina e o turismo

8 A descoberta e o uso das águas termais com fins terapêuticos deram origem a cidades que foram designadas, conforme o período histórico e os contextos nacionais, como estâncias hidrominerais, hidroclimáticas, de cura, termais. As estâncias termais começam por organizar-se enquanto locais de vilegiatura na medida em que o termalismo, como terapêutica para doenças crónicas, implica a repetição cíclica de uma estadia relativamente prolongada nesses locais (Quintela, 1999, 2004). Em geral, a estadia prolongada para tratamento faz-

9 -se nos hospitais. Estes espaços “oficiais” de cura são habitualmente instituições “fechadas” (Goffman, 1966; Foucault, 1991), regulamentadas por um conjunto de normas que estruturam um período de evitamento social e que se inscrevem no corpo “doente” durante o internamento. Os comportamentos são ordenados pela doença ou pelos sinais que ela manifesta, inscritos no corpo. Constrói-se assim uma identidade – a do doente – a quem são atribuídos papéis e comportamentos associados a uma performance de sofrimento. Estar doente, neste contexto, é a negação do prazer e do bem-estar. As termas portuguesas são também espaços de cura, concessionados e cientificamente legitimados pela biomedicina através da criação de estabelecimentos termais específicos (os balneários). Tratase assim de um sistema terapêutico cujo fulcro é a água, que é apropriada como dispositivo de cura, mas também como motivo de lazer e recreação. As estâncias termais acabam por organizar-se em função desta dupla apropriação da água.

10 Se a instituição hospitalar, centrada na doença, cria uma separação entre o indivíduo e o mundo social, a organização de actividades de lazer pressupõe a sociabilidade, centrando-se na oferta de práticas de diversão facilitadoras de estados de prazer. As termas configuram-se por isso plasticamente entre os modelos da instituição hospitalar (Goffman, 1966) e da organização recreativa (MacCannell, 1976). Analisar a formação

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 127

das estâncias termais à luz destes dois modelos pode parecer paradoxal, mas é exactamente aí que reside a especificidade daqueles lugares e o desafio a pensá-los e a discutir algumas categorias analíticas estabelecidas sobre terapias e sistemas médicos, designadamente a biomedicina.

11 A legislação portuguesa de 1919 é indicativa da relação entre estas duas actividades ao determinar que em cada estância mineral existisse um médico director clínico, com a especialização em hidrologia médica e que teria como função, para além de vigiar a higiene da povoação termal, promover o lugar do ponto de vista turístico (Quintela, 2004, 2008, 2011). As Termas de São Pedro do Sul são um exemplo disto.

12 Já no Brasil, Caldas da Imperatriz foi um hospital transformado em hotel termal.5

Memórias, banhos e tratamentos: curar e recrear nas Termas de São Pedro do Sul

13 As Termas de São Pedro do Sul estão situadas no centro de Portugal e são a estância portuguesa mais frequentada. Foram recentemente palco de novas reestruturações. Há uma grande assimetria entre a população residente e a população flutuante – os hóspedes e os termalistas.6 Foi em torno da água termal que a localidade se edificou. A água, sulfurosa, brota à temperatura de 68º centígrados e o lugar da sua nascente é um ponto de atracção turística. Os habitantes locais inventaram a este propósito um hino, a que chamam o “hino dos escaldados”.

14 Para se poder realizar tratamento, nesta tal como noutras estâncias portuguesas, é necessário obter primeiro prescrição médica. Os tratamentos e/ou banhos são realizados nos balneários, estabelecimentos regulados medicamente e onde se efectua um conjunto de técnicas balneoterápicas como, por exemplo, duches, banhos de imersão em cabines individuais ou em piscina. Aqueles que aqui se dirigem para efectuar um “tratamento” são designados por aquistas, banhistas, termalistas, curistas e doentes conforme a época. Os balneários não possuem espaço para hospedagem. Esta faz-se em hotéis, pensões e casas de hóspedes.

15 Os hóspedes (nome mais frequentemente empregue pelos escaldados – habitantes das termas – para denominar aqueles que lá vão fazer tratamento), “banhistas” ou “aquistas” desempenham um papel central na edificação das memórias locais e dos espaços para eles construídos – o espaço do tratamento e o espaço da hospedagem. As memórias balneares compõem-se e reproduzem-se em torno das actividades realizadas pelos “hóspedes”, “banhistas” ou “aquistas” e pela relação estabelecida com os “escaldados” nos espaços onde decorrem os tratamentos e a recreação. De acordo com os grupos sociais, encontramos traços distintivos que nos permitem identificar memórias geracionais constituídas em volta dos objectos e da relação social que com eles é estabelecida. Consoante as diferentes identidades, assim as memórias se centram em objectos (banheiras, roupas) e em eventos distintos (refiro-me aqui especialmente à história de alguns edifícios, como hotéis e balneários, e às actividades de cariz recreativo ou terapêutico que neles se realizavam, como bailes, concertos, cinema, banhos e tratamentos).

16 As memórias balneares dependem das motivações de cada actor social e da sua identidade de grupo: hospedeiros, hóspedes, funcionários, hoteleiros e comerciantes. Os eventos são lembrados e é dada maior ou menor ênfase àqueles recreativos e/ou

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 128

terapêuticos em conformidade com a pertença social relativa aos grupos de idade e de género. Assim, para “os de S. Pedro”, as termas representavam o lugar onde eram realizadas as festas e onde, no Verão, havia raparigas “novas” e de “fora” e as senhoras “iam tomar chá”, ou ainda o lugar dos “banhos”. Os locais evocam a sazonalidade do trabalho, a animação do Verão – pois “o Inverno era muito triste” – a “qualidade dos hóspedes”, a construção de alguns edifícios, a relação com a água quente e com os tratamentos. Os aquistas relembram as filas de espera para os tratamentos, o balneário, os médicos, os estabelecimentos hoteleiros e a animação. Quanto aos funcionários do balneário – denominados “banheiras” ou “banheiros” – lembram alguns “banhistas”. Os hoteleiros referem os “hóspedes”. Destaca-se, porém, um denominador comum: são lembrados os bailes e assinalados os traços distintivos das práticas recreativas e balneares, desde a roupa que se usava, a classe de tratamento, o local de hospedagem até a própria chegada dos hóspedes.

17 Era no Balneário da Rainha D. Amélia, mais precisamente no átrio, que se iniciava o rito de passagem de “turista”7a “aquista”, através da inscrição na consulta médica. Aí o médico ou a médica passava “a prescrição” que permitia o acesso ao Centro Termal, momento que marcava a passagem do indivíduo a aquista, banhista. Contudo, no Balneário “velho”, a dimensão terapêutica cruzava-se com outras duas: a recreativa e a religiosa. Estas podiam, de imediato, ser observadas no átrio e são indicativas da trifuncionalidade deste edifício: quer pela diversidade de informação inscrita na parede, expressa na cor, nos diferentes letterings, nos conteúdos das respectivas mensagens, quer pelo mobiliário, bancos brancos de madeira evocando um hospital, quer ainda pelas funções dos funcionários que ali se encontravam. Conforme registei na segunda metade da década de 1990, no mês de Agosto, quando entrava neste edifício, eu tinha a sensação de estar perante uma manta de retalhos humana. Havia simultaneamente pessoas que, conforme o local a que se dirigiam, procuravam actividades típicas de diferentes esferas da vida social. Se se dirigiam ao guichet – situado do lado direito de quem entra – podiam inscrever-se na consulta médica, ou pedir informações no Posto de Turismo8 (a distinção residia, apenas, nas/os funcionárias/os a quem se dirigiam). Mas alguém que se encaminhasse para o lado esquerdo poderia ser um simples curioso ou admirador do artesanato senegalês (Quintela, 1999:121).

18 Quem se encaminhasse à parede oposta à porta central poderia ler um cartaz informativo do horário da missa, uma vez que ali se encontra a porta que dá acesso ao primeiro andar, onde estava instalada, provisoriamente, a igreja de Nossa Senhora da Saúde, enquanto a nova igreja estava em construção. Ali era celebrada diariamente missa por padres eles próprios aquistas, que beneficiavam, em troca da prestação deste serviço, de direito a tratamentos gratuitos.

19 A coexistência neste espaço das dimensões terapêutica, recreativa e religiosa era reiterada pela diversidade de cor e das mensagens das inscrições que se viam nas paredes: desenhos alusivos aos sete sacramentos feitos por crianças; cartazes da exposição de artesanato senegalês; informações sobre o procedimento para a inscrição nas consultas médicas e, ainda, um cartaz com a palavra “Silêncio”9 – tal como acontece frequentemente nos locais associados a actividades terapêuticas e religiosas. Além do sentido da visão, também o da audição apontava a coexistência das dimensões acima referidas. Quem entrava no átrio para visitar a exposição ou aguardava a consulta médica podia ouvir, entre as 18 e as 19 horas, cânticos religiosos, sinal de que decorria a missa.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 129

20 O espaço religioso estava separado física e simbolicamente por uma porta que dá acesso à igreja, situada no primeiro andar. Como me disse um médico, referindo-se a uma época anterior, “esta era a porta que separava o Balneário do Casino e os dois lados: o tratamento e a animação”.

21 A ambiguidade da coexistência destas dimensões, agudizada pela vizinhança e a separação em que se encontram, produz discursos contraditórios, que são foco de tensão social local, sobretudo por parte de alguns médicos, para quem as duas dimensões devem permanecer separadas, pois “ali não é para lazer, mas para tratar; se querem fazer animação, que façam longe do balneário, pois também não há turismo em cima de um hospital”.

22 Se, por um lado, esta distinção tem sido reiterada historicamente pelo discurso médico, como se constata nos relatórios clínicos, por outro lado, as práticas contradizem-na, sendo ilustrativa a dupla função dos próprios funcionários do balneário: “banheiros” durante o dia e empregados do casino à noite, no bar ou no bengaleiro. No entanto, não são só os médicos que acentuam a separação destas dimensões, mas também alguns hospedeiros das casas de aluguer, como a título exemplificativo fazia o Sr. Pontes, que se insurgia com o barulho produzido durante a noite pela música num bar de gente nova: “pois isto são umas termas, é para descansar, são doentes!”.

23 É a porta que opera a separação física e simbólica das dimensões terapêuticas e recreativas, ou será o horário diurno ou nocturno que introduz a distinção? O dia era para os “tratamentos” e a noite para o casino, como está ainda presente nas memórias de alguns aquistas e residentes. É o caso da Sra. Ariana, de 85 anos, que não revisitava as termas desde os 15 anos, e que guardava delas duas recordações principais: do casino, onde tinha aprendido “a dançar o minuete” (“um salão muito bonito onde eu namoriscava um rapazito”), e da água quente (“toda a vida me lembrei da água quente a sair do chão, onde não havia nenhuma protecção, e o medo que eu tinha que aí caísse alguma criança...”). Mas, por vezes, a alternância entre o dia e a noite não introduziam a clivagem entre estes tratamentos e a recreação. Como lembra o Sr. Mendes, de 68 anos e que não vinha a estas termas havia 30 anos: no tempo em que os tratamentos eram feitos no Balneário da Rainha D. Amélia, era necessário irmos para a bicha muito cedo, às 4 horas, para comprar as senhas. E então, depois de andarmos na farra, de ter ido ao pão quente, íamos directamente para o balneário. Nessa altura a bicha chegava a dar a volta ao jardim, e o último a chegar recebia um raminho de oliveira. Agora não, é tudo diferente!

24 Porém, o espaço onde se realizam os “tratamentos”, e que descreveremos no ponto seguinte, estava bem demarcado, sem ambiguidades aparentes, num edifício cujos objectivos eram meramente terapêuticos: o Centro Termal. O centro – também chamado “Balneário Novo”10 – dista aproximadamente cem metros do “Balneário Velho”. Aqui os aquistas eram designados, nomeadamente pelos funcionários mais novos, por “utentes”, e não mais por “doentes”, mudança sintomática de uma nova terminologia que se introduzia também nas instituições de saúde portuguesas e que pretendia retirar do doente o cunho de “paciente”, sujeito passivo de cuidados, para passar a ser actor.

25 Se a actividade central que caracteriza e organiza o ciclo termal – os tratamentos – se efectua em torno destes edifícios, é também no seu perímetro que se situam as “nascentes” de água termal e se desenrolava um conjunto de dimensões da vida social

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 130

decorrentes da estadia neste lugar – que contribuíam para a integração dos hóspedes, por meio da rede de sociabilidades que aí se estabeleciam entre banhos.

Os “tratamentos”: entre “banhos” e “brincadeiras”

26 Embora as funcionárias do balneário se referissem a alguns aspectos penosos do trabalho “no tempo do Balneário Velho” – o número excessivo de horas de trabalho, a “grande disciplina” – o que elas ressaltavam eram as dimensões lúdicas que existiam no estabelecimento. As memórias focavam-se nos mediadores do trabalho, digamos que as suas ferramentas – as “banheiras”. Estas eram um dos objectos recorrentes nas memórias tanto dos residentes como dos hóspedes e banhistas, e elas próprias introduziam traços sociais distintivos, materializados nas classes de tratamento, como relembra a Sra. D. Mariana: Entre a 1.ª, a 2.ª e a 3.ª, a diferença estava nas banheiras, pois na 1.ª as banheiras eram de mármore e o chão, em vez de cimento, era de azulejos... Mas havia muitas pessoas que compravam bilhetes de 1.ª e depois iam para a 2.ª, ou porque gostavam mais das empregadas ou do ambiente.

27 Quando era abordada a disciplina do balneário, dois registos eram mencionados em simultâneo, a disciplina e o lúdico. Uma antiga funcionária do balneário recordava, a propósito de uma aquista: “no Balneário Antigo, na 2.ª classe havia uma senhora que cantava, dançava e fazia teatro, era uma alegria quando ela chegava!”. Contudo, não só as aquistas eram lembradas como “animadoras”; também as próprias funcionárias o eram: “havia mesmo uma empregada do balneário que perguntava às aquistas se podia cantar, e cantava enquanto fazia tratamentos!”. São várias as descrições do espaço do balneário como um sítio de “barulho” e de “animação”, onde a “disciplina era apenas para os funcionários”. A mesma pessoa recordava o tratamento desigual para com os empregados: Não era possível andar com brincadeiras... Havia lá uma senhora, que era a chefe do pessoal, de grande categoria... andava tudo ali na linha! E havia um médico que era todo mesuras para as senhoras, mas para as funcionárias era muito exigente.

28 A Sra. Laurinda recordava também alguns episódios menos agradáveis quanto à disciplina imprimida por aquela senhora. Todavia, não deixava de referir os aspectos agradáveis e lúdicos do trabalho (“havia senhoras que à tarde iam para, ao pé de nós, contar anedotas”) e descrevia também como, apesar de estarem marcados espacialmente, os géneros se cruzavam, tendo como mediadores a “água quente” e os equipamentos onde esta deslizava. Um dos episódios que esta senhora recordava era o das brincadeiras com os duches e com alguns banhistas mais “atrevidos”. Relatou o caso de um médico novo, de Coimbra, que estava fazendo tratamento e que todos os dias se lhe dirigia pedindo-lhe para lhe “dar um duche”: “Eu depois disse: ‘Ó minha senhora, ele é que o pediu. Ele queria um duche e eu dei-lho’”. E acrescentava, divertida, que alguns homens que estavam a fazer tratamento – “no lado dos homens” – iam ao lado das senhoras: “iam lá para se rir e para brincar, mas aquele tomou um duche que se consolou. Saiu todo molhado”. Mas quando perguntei se eram pessoas doentes ou vinham só fazer banhos, aí não havia dúvidas quanto à identidade dos banhistas: Não! Eram mesmo doentes... Precisavam! Não eram muito de vias entupidas,11 mas havia um tratamento que faziam à sífilis. Eram umas massagens com uma pomada. Faziam aquelas massagens. Havia mesmo pessoas especializadas nisso, e depois tomavam banho de imersão. Dizem que fazia muito bem à sífilis (Quintela, 1999:15).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 131

29 E assim eram lembrados alguns tratamentos que se faziam “no tempo do Balneário Velho”, como era o caso das irrigações vaginais utilizadas para as “inflamações”. E eram evocadas pela Sra. D. Laurinda algumas senhoras que se submeteram a este tipo de tratamento e as razões que as levavam a tal – como o caso de uma senhora que não engravidava, mas que após o tratamento com estas irrigações “começou a ter filhos”, e o de uma outra, “de Lisboa, que teve uma menina”. E ainda relembrava uma senhora espanhola: Já não foi comigo que ela fez tratamento, foi com a minha tia que Deus tem. Era espanhola, também conseguiu ter uma menina. Durante muitos anos ela veio, e depois, quando foi aquela grande guerra em Espanha, aquela senhora deixou de vir.

30 Um das doenças em que era utilizado este tratamento era a sífilis. O tratamento não era ministrado apenas no Balneário, sendo-o, no entanto, com alguma discrição. É lembrada uma senhora “que tinha uma malinha” e andava pelas pensões e hotéis a aplicar a “pomada”: Ela andava pelos hotéis, pelas pensões, tinha uma malinha e uma bata branca, e andava pelos hotéis e fazia as massagens. Eram umas fricções, uma espécie de massagens. Davam-nas aqui nesta parte de baixo, era nas pernas.

31 Já o banho era feito no balneário e antecedia a aplicação da “pomada”, “pois o banho abria os poros e depois davam aquelas massagens”.

32 Além das memórias da doença associada à sífilis, a Sra. Laurinda recordava as crianças que faziam tratamento (naso-faríngeo). Lembrava que havia também crianças – umas “meninas” – cujo pai lhe ia “entregar” para fazerem os “tratamentos” e com as quais estabelecia cumplicidade, permitindo que elas não os fizessem e que assim “pudessem ir para a brincadeira”.

33 Já algumas crianças locais, “para não andarem na brincadeira nas férias”, trabalhavam no balneário, o que correspondia em vários casos ao início de uma carreira profissional. Há então, nos funcionários autóctones, um trajecto profissional comum que se inicia em criança – aos 9 anos – as raparigas na buvette12 e os rapazes como grooms. Na buvette, o único requisito “era saber ler os números”, para poderem administrar aos aquistas a graduação exacta de água. Aos rapazes da mesma idade cabia a função de groom, inscrita na roupa que usavam – “uma farda amarela com um boné” – e que consistia em transportar os “doentes” que não se podiam mobilizar, do local onde estavam hospedados até ao balneário, numa cadeira de rodas de madeira. De acordo com a idade, assim iam mudando as funções dentro do balneário, e a sua relação com o corpo. Desta forma, após estas actividades iniciais, passavam a distribuir as “fichas” – que introduziam uma ordem no tempo dos banhistas. Seguidamente passavam para a zona dos banhos, mas apenas para “encher” e “lavar” as “banheiras”, pois administrar os duches só acontecia por volta dos 18 anos.

34 Esta divisão de tarefas por grupos de idades evidenciava assim uma distinção marcada entre um corpo público e privado. Contava a rir a Sra. Laurinda, então com 80 anos, um episódio de quando tinha os seus 15, 16 anos: “As outras senhoras diziam-me: ‘Ó Laurinda, anda cá pôr água quente’; se lá estavam as senhoras nuas eu não ia lá!”. Esta relação com a nudez era uma das razões apontadas por algumas funcionárias, que entretanto tinham outras funções, como justificação para “não gostar de dar duches”. Havia porém um saber que era construído com a idade e transmitido pelas pessoas “mais velhas”, situação, aliás, que serve de termo de comparação com o que acontece hoje com a formação acelerada dos funcionários actuais: “Não é como agora em que

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 132

qualquer uma dá banhos ou duches; não, era preciso saber e demorava anos a aprender!”.

35 Todavia, havia outros tipos de banhos administrados no balneário que eram lembrados, para os quais não era necessária nenhuma preparação, pois não implicavam a intervenção directa dos funcionários. Eram estes os “banhos higiénicos” e os “banhos santos”. Como a própria denominação indica, os banhos têm funções diferentes de acordo com o uso social da água termal, a que correspondem distintos rituais, que acentuam as propriedades de transmutabilidade deste líquido. Deste modo, a função atribuída à água quente mudava no espaço balnear de acordo com o dia da semana e com a época do ano. Os domingos eram o momento para o banho higiénico, denominação dada ao banho do qual os autóctones e a população de S. Pedro do Sul podiam usufruir. 13 Para os primeiros este era gratuito. Havia apenas um funcionário que ficava com a chave e abria as portas do balneário. Os casais podiam até tomar banho em quartos de duas banheiras. Contudo, uma vez por ano era chegada a altura do “banho santo”, no dia de S. Pedro (29 de Junho14). E aí o banho decorria de uma forma diferente, pois não era já a higiene que estava em causa, mas o facto de a “bênção” daquele banho “valer por sete”. Havia porém quem discordasse: O Banho Santo era num dia de Junho. Vinham tomar banho ao rio, era gente da vertente do Douro. Lembro-me das excursões, os homens em ceroulas e as senhoras com camisas de dormir, com roupa interior. Havia uma tradição, não era no Balneário!

36 Sobressai nas memórias balneares a relação estabelecida entre hóspedes e hospedeiros, marcada por clivagens sociais expressas no tipo de alojamento utilizado e nos marcadores sociais inscritos no corpo. O que permanece é um espaço que tem como palco a relação com o corpo, quer seja numa performance de tratamento ou de recreação, onde a água é protagonista. Ela condiciona, conforme a actividade profissional que se desempenha, a ênfase, numa ou noutra dimensão, na forma como se recorda e vive a época balnear nas Termas de S. Pedro do Sul. Ela também constrói socialmente o lugar como um destino terapêutico na busca da “cura de águas” e um destino turístico na busca da natureza e na fuga da cidade.15 Foi isto que encontrámos também nas Caldas da Imperatriz, no Brasil.

O Hotel Caldas da Imperatriz: um lugar terapêutico

Isto é muito terapêutico! Porque as pessoas vêm de grandes cidades, e estão correndo atrás dos horários, estão atravessando cidades para chegar ao seu trabalho. Aqui não, aqui não tem nada disso. É comer, é beber, tomar banho e dormir, passear, pronto! Quer dizer, o hotel cria um ambiente de paz, de relaxamento! (António, 65 anos, Curitiba).

37 O Hotel Caldas da Imperatriz fica situado nas Caldas da Imperatriz, no município de Santo Amaro, estado de Santa Catarina. O lugar deve a sua existência à descoberta de águas termais com propriedades terapêuticas e à construção de um hospital termal na primeira metade do século XIX. Este hospital, que teve o nome da Imperatriz, foi reconvertido em hotel na década de 1920 (Quintela, 2004, 2008). Nestas termas brasileiras, as práticas termais decorrem no espaço de um hotel, não estando incluídas no sistema oficial de saúde brasileiro, tal como anteriormente referimos.16 O uso da água termal tem estado neste contexto associado a práticas classificadas como “medicinas alternativas” ou “complementares”. Os espaços termais não são

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 133

aparentemente medicalizados, não são hospitalizados, isto é, não são regulados medicamente, ao contrário do que acontece nas termas portuguesas estudadas.

38 Não há médico no espaço balnear termal e, consequentemente, não é necessária prescrição médica para efectuar os “banhos” – os tratamentos. O estabelecimento dos banhos coincide com o estabelecimento de hospedagem, o hotel, contrariamente ao que acontece nas termas portuguesas. No hotel termal Caldas da Imperatriz, os hóspedes, designação aqui utilizada, podem fazer uso dos banhos livremente nas banheiras existentes em seis cabines individuais durante a estadia termal e/ou temporada, designação local.

39 Se em Portugal a designação para o período de permanência numas termas é a quinzena, uma vez que corresponde ao número de dias de que os aquistas necessitam para fazer os tratamentos, nas Caldas da Imperatriz, bem como noutras termas brasileiras, a expressão usada é a temporada (ou estação). Esta corresponde ao período também considerado necessário pelos hóspedes, e encontramo-la nalguns textos de médicos que escreveram sobre o uso das águas minerais como o período indicado para fazer um tratamento numa estância termal. Mas aqui não nos deparamos com homogeneidade nos discursos sobre a duração de uma temporada. Nestas caldas, varia entre uma semana e um mês. Esta variabilidade parece estar associada, por um lado, ao facto de este espaço não estar, aparentemente, medicalizado e, por outro lado, a idiossincrasias e a questões geracionais.

40 Para os mais velhos, a temporada corresponde aos 21 dias, acrescidos de uma semana para descansar (do tratamento), concepção que encontramos presente em termas portuguesas e europeias. Para os mais jovens, por limitações de ordem laboral, esta varia entre uma semana e dez dias, uma vez que o tempo de férias não permite mais. Os casais mais jovens evocam como razão para uma estadia de três ou quatro dias a vontade de “descansar do foleiro da praia”, dedicando assim o último período de férias ao “descanso”.

41 E em que consiste a temporada? A temporada implica fazer o uso da água como tratamento. Esta é assim denominada por aqueles que pretendem alcançar nesta estadia, através do uso da água termal e/ou mineral, um objectivo terapêutico, seja ele a cura, o alívio da dor ou a prevenção. Deste modo, nesse período os dias são organizados em função dos banhos. É esta a unidade temporal de referência – “antes do banho”, “depois do banho” – o que denota uma diferença relativamente ao que verificámos em Portugal, onde é usada a designação “tratamento” – “antes do tratamento”, “depois do tratamento”.

42 O objectivo terapêutico da temporada é conseguido não apenas através do uso da água – em banhos e bebida – mas também de um conjunto de actividades que o complementam, como a alimentação, o sono, o exercício físico e também aquelas que possuem uma dimensão religiosa e espiritual. A este conjunto poderemos chamar em tal contexto, por similitude com as terminologias turísticas, um pacote termal, composto por banhos, refeições, passeios, repouso e ainda a bênção de saúde do Frei Hugolino. Estas dimensões estão presentes tanto nos fundamentos da Higiene, enquanto disciplina médica orientadora das práticas de vida do quotidiano, como nos fundamentos da teoria hipocrática da Água, Ares e Lugares. Elas são, igualmente, as dimensões organizadoras de uma estadia neste espaço para aqueles que não têm explicitamente um objectivo terapêutico ou não permanecem toda uma temporada, mas apenas um fim de semana.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 134

43 A organização do dia termal é feita pelos hóspedes e os banhos não estão sujeitos a uma estrutura regulada por um dispositivo médico-sanitário que aponte para a hospitalização (Zola, 1972) da estadia termal. O espaço termal, neste caso entendido aqui como aquele relativo ao hotel, não é um “espaço disciplinar” (Foucault, 1991) em que se destaque o controlo sobre o uso do corpo, como acontece num hospital ou até nos balneários portugueses estudados. Nestes, para além de haver uma tentativa de “disciplinar o espaço”, com indicações precisas da função e dos papéis de cada um (dos funcionários aos aquistas), há regras sobre o uso do corpo, relativas ao traje considerado próprio – o fato de banho – ou ao modo como são feitos os tratamentos (como a pessoa se deve colocar na banheira), de acordo com a prescrição médica. Já no Hotel Caldas da Imperatriz, as normas dizem apenas respeito aos horários das refeições e ao não uso de “traje de banho” no refeitório, ou ao silêncio que deve ser respeitado, pedidos feitos em cartazes.

44 Não podemos, de acordo com a observação realizada, afirmar que se trata de um processo de hospitalização, mas antes da incorporação por parte dos hóspedes de discursos medicalizados sobre como gerir o quotidiano (B. Turner, 1996), o que se reflecte nas suas práticas durante a estadia termal, a “temporada”. Esta organiza-se nas dimensões referidas pelo senhor António: banhos, comer, descansar e desintoxicar num lugar concebido como terapêutico. E, nessa medida, a estadia termal é também concebida por alguns hóspedes como um programa de desintoxicação da “civilização”, tal como o era no final do século XIX, ou como é apresentado actualmente nalguns folhetos turísticos portugueses e brasileiros – a estadia termal seria “um regresso à Natureza”, e que se encontra na base das novas concepções dos lugares termais como lugares de “bem-estar”. A água termal gera um lugar terapêutico porque permite recriar o quotidiano e a vida através de uma água que pelas suas propriedades virtuosas, na percepção de alguns hóspedes, para além de relaxar, tratar e energizar, “adianta” – um ano de vida em condições de saúde, retomando velhas concepções sobre as águas termais como o elixir da juventude, contrariamente a alguns termalistas portugueses que as usam, sobretudo, com a finalidade de “atrasar”.

As águas tratam; “não curam”, “atrasam”: concepções de saúde, doença, lazer e envelhecimento

45 Nas termas portuguesas estudadas, sendo a “água” um dos elementos que entram na construção destes lugares como um destino terapêutico, é recorrente a afirmação feita pelos aquistas de que “a água não cura, atrasa, empata, empaleia!”. O que de imediato sugere a questão – “atrasa” o quê?

46 O entendimento desta questão é variável: para uns é a doença e, neste caso particular, é referido o reumatismo; para outros, o “caruncho” da velhice. Daí a resposta – atrasa o desenvolvimento da “história natural” da doença, tal como ele é conceptualizado no modelo biomédico, sendo este também responsável pela construção social da “velhice” como associada a um estado patológico. Deste modo, podemos compreender que a expressão acima citada seja empregue, também, no sentido de “atrasar” o desenrolar “natural” da vida – a velhice – permitindo que a vida se prolongue em melhores condições. As metáforas utilizadas pelos termalistas no discurso sobre o corpo são analogias com a “máquina” e, desta forma, utilizando a mesma lógica, poderemos dizer

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 135

que a água é o “óleo” que permite regenerar a “máquina”, e o sítio termal é a “oficina” de reparação.

47 Uma das formas de reparar a “máquina” é diminuindo os estados de não funcionalidade dos ossos gastos e do mal-estar provocado pelas dores do reumatismo. E este, vivenciado enquanto doença crónica, não é suposto ser curado, mas sim tratado. Neste sentido, os aquistas justificam por que a água não cura, mas apenas atrasa. Ela é concebida como um medicamento natural que substitui os anti-inflamatórios: “a água não cura, mas alivia as dores!”. Encontramos entre estes aquistas, sobretudo mulheres rurais, noções de tratamento termal que nos permitem sugerir que há nesses discursos e práticas concepções sobre a saúde e a doença que incluem também uma noção de prevenção. Para todos os efeitos, aquilo que é procurado, embora não explicitado no discurso, é também o bem-estar.

48 Nas termas portuguesas de S. Pedro do Sul, tal como nas Termas da Sulfúrea, regista-se uma perspectiva diferente da dos hóspedes das Caldas da Imperatriz relativamente ao efeito que as águas produzem sobre os anos de vida. Para uns “atrasa-os”, para outros “adianta-os”, ou seja, encontramos duas concepções da doença, da velhice e do tratamento e da estadia termal, tal como do lugar onde estas práticas se desenvolvem (Quintela, 2008, 2011). Se nas termas de S. Pedro do Sul e nas da Sulfúrea os tratamentos e os banhos se processam num balneário em edifícios regulamentados medicamente e a hospedagem se faz em lugares separados do lugar de tratamento, nas Caldas da Imperatriz o hotel é ao mesmo tempo local de hospedagem e de banhos.

49 Analisemos então as práticas termais e as suas motivações nestes contextos etnográficos para compreendermos as actividades que os sustentam à luz dos modelos hospitalar (Goffman, 1996) e recreativo (MacCannell, 1976). O “doente”, referido no contexto português como aquista, banhista ou hóspede, faz um internamento voluntário por um período de tempo que varia de acordo com o lugar e as possibilidades, em locais particulares designados como termas ou caldas – e nisto consiste a estadia termal, a “quinzena”.

50 Os processos de cura, no senso comum, são frequentemente associados a espaços de recolhimento designados nos sistemas oficiais de saúde como hospitais, que são também, por excelência, lugares para a expressão do sofrimento. Nestes estabelecimentos, enquanto “instituições fechadas”, usualmente não há campo para o lúdico e a recreação, porquanto são regulamentados por um conjunto de normas que estruturam um período de evitamento social e que se inscrevem no corpo “doente” durante o internamento. Os comportamentos são ordenados pela doença. São regulamentados o horário e o número de visitas, as horas das refeições, da higiene e do sono, e ainda a forma como se usa o corpo, por exemplo, quanto ao vestuário (nuns casos não se pode utilizar a roupa pessoal, noutros apenas se podem vestir “trajes de dormir”).

51 Enquanto a instituição hospitalar cria uma separação entre o indivíduo e o mundo social a que ele pertence, as organizações recreativas tomam forma a partir do pressuposto de que uma sociabilidade intensa, vivida sobretudo em lugares aprazíveis, frequentemente adjectivados como “calmos” e com “boas paisagens”, gera estados de prazer, de divertimento, lúdicos. Apresentada a equação deste modo, parece não nos restar outra solução que não pensar em curar e recrear como dois opostos inconciliáveis. No entanto, como a natureza humana é mais criativa do que lógicas do tipo maniqueísta, há práticas sociais que conjugam estas dimensões no espaço e no

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 136

tempo. São disso exemplo as práticas termais, tal como já tivemos a oportunidade de mostrar na etnografia realizada sobre as Termas de S. Pedro do Sul (Quintela, 1999). Como é feita essa conjugação?

52 Como o próprio termo indica, as práticas termais têm a sua expressão em lugares designados como termas, balneários ou caldas. A nomeação do lugar é, por vezes, coincidente com a do estabelecimento, isto é, dizer “vou às termas” pode significar vou ao estabelecimento termal ou vou para um lugar onde existe um balneário termal, o qual poderei ou não utilizar. Os balneários termais têm sido em Portugal estabelecimentos que funcionam à semelhança do modelo hospitalar. Só tem acesso aos banhos e restantes tratamentos, inclusive à ingestão das águas, quem submeter o seu estado de saúde a uma avaliação médica, através de uma consulta prévia. É neste acto que é prescrita a água mineral natural – água termal – enquanto medicamento, razão primeira do acto médico. Há aqui uma particularidade relativamente aos doentes que são alvo dessa prescrição no quadro de uma consulta hospitalar ou de um centro de saúde. Neste contexto, os doentes não buscam um diagnóstico médico, mas apenas a prescrição de um tratamento para os seus sintomas, diagnosticados por si como “males” da coluna, do “reumático”, da “velhice”, da “osteoporose”, ou seja, procuram alívio para o seu mal-estar. Há nestas consultas, frequentemente, uma negociação entre médico e doente quanto à modalidade do tratamento a fazer, o que cria uma distinção em face de outros serviços de saúde.

53 Esta situação faz-nos pensar como classificar o tipo de medicina que aqui se pratica: será uma medicina centrada no sujeito, no diagnóstico ou na terapia (Luz, 2005)? Não será esta mais uma medicina centrada na terapia, em que há uma aproximação ao doente enquanto sujeito? E o aquista/banhista, um doente especial, aqui se torna ou não sujeito, segundo a geração, a classe social, a idade e o género? Nota-se nos aquistas/ banhistas mais jovens e nos mais letrados uma maior incorporação do discurso oficial da saúde centrado nos estilos de vida saudável (não fumar, não beber, praticar exercício, seguir cuidados alimentares), ou seja, uma maior adesão aos consumos que promovem um “corpo saudável” e o “bem-estar”. Nesta medida, o aquista/banhista torna-se sujeito numa prática que integra o “cuidado de si”.

54 Esta é uma prática de consumo primário, tal como o são o ginásio, a natação, a dança e outros. Contudo, se nas termas portuguesas estudadas só é notado este cuidado com o corpo entre os mais jovens ou aqueles com maior capacidade económica, já nas termas brasileiras estudadas esta é uma preocupação transversal a todos os grupos etários e sociais, apesar de se manifestar em diferentes práticas de cariz geracional, caracterizadas por uma maior incidência em discursos e práticas New Age (Maluf, 1996) ou nas práticas tradicionais associadas ao “regime” – entendido aqui como um conjunto de normas relativas à alimentação, à higiene, a práticas diárias de vida que foram concebidas enquanto tal desde a medicina hipocrática. Digamos que a “higiene”, no sentido hipocrático do termo, foi precursora dos “estilos de vida saudáveis”.

55 A procura de um “estilo de vida saudável” choca por vezes com os regulamentos de um espaço “hospitalizado”. Foram várias as situações em que os aquistas pretenderam fazer a marcação dos tratamentos para o período da manhã, tal como acontecia nas Termas de S. Pedro do Sul (1997) ou na Sulfúrea (2003). Quando os funcionários administrativos o negavam, os aquistas insistiam e explicavam as razões desta preferência: “Olhe, sabe, é para poder ficar com o dia livre”, ou “quero de manhã, que é para de tarde poder passear”. Estes argumentos pareciam enfurecer os receptores da

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 137

mensagem, que de imediato respondiam inquisitorialmente: “Está aqui para se tratar ou para passear?”. Do mesmo modo, encontrámos nas Termas de S. Pedro do Sul a afirmação da separação destes espaços por parte dos funcionários, quer na marcação dos tratamentos, quer na piscina termal. Nesta última pude igualmente ouvir da parte de ajudantes de fisioterapia, em face do barulho e da diversão aparentes dos aquistas, frases como “isto aqui não é para brincar, é para tratar!”.

56 Por que é que se demarca tão enfaticamente a dimensão lúdica da dimensão terapêutica? Será então que “passear”/”brincar” e “tratar” são actividades mutuamente exclusivas? Não o são com certeza para aquistas ou para os hospedeiros, actores sociais protagonistas também da organização desta estadia. Se é no balneário que estão os médicos e são feitos os tratamentos, é contudo nos locais de hospedagem que estes últimos são concluídos. As casas de hóspedes, as residenciais, as pensões são como que uma extensão do balneário, na medida em que após os tratamentos – os banhos – e o “arrefecimento” e o “repouso” no balneário (na sala de arrefecimento), o ritual do tratamento só termina com o “descanso” na cama (por períodos que variam entre os trinta minutos e as duas horas). Esta acção faz parte da terapia e visa a perda de suor e a “penetração da água no corpo”, através da pele. Este é um dos momentos centrais do processo terapêutico termal, ao qual se atribui grande parte da eficácia do mesmo, tal como foi e é concebido nas teorias médicas termais desde o século XVII, que encontram os seus fundamentos na medicina hipocrática e humoral (Nutton, 2001).

57 Para David Greenwood (1984), o uso das águas minerais insere-se num tipo de “medicina naturalista” em que se conjugam a filosofia naturalista e a teoria humoral. Para este autor, a organização da vida diária de forma a criar um regime equilibrado faz parte do tratamento, que não é “intervencionista”: “no balneário (termas) trata-se a pessoa total, porque o balneário é um meio-ambiente total. O descanso, a vida social, a falta de tensão são um refúgio do mundo e fazem parte da cura naturalista” (Greenwood, 1984:77-78). Greenwood acrescenta ainda que o balneário não se parece em nada com o hospital moderno. Será que esta afirmação se aplica às termas estudadas? Relembremos que nas termas portuguesas o balneário é o estabelecimento onde apenas se administram os tratamentos e se realizam as consultas médicas.

58 Nessas casas (de hóspedes) e nesses estabelecimentos (residenciais), descansa-se, dorme-se, come-se. Eles são o prolongamento do balneário – nas Termas de S. Pedro do Sul podíamos até observar nalgumas casas de hóspedes cartazes solicitando o silêncio, tal como acontece em estabelecimentos hospitalares e outras instituições de saúde. E é nesses espaços que se opera o ritual que faz pensar que uma prática terapêutica se metamorfoseia numa prática recreativa. É o mmooomento em que os aquistas, neste contexto já designados como hóspedes, mudam de roupa após o descanso. Destapam-se, retiram as toalhas, os roupões, os xailes e vestem-se para passear, sair de casa, do quarto. A forma como as senhoras estão vestidas pode indicar-nos se elas vão permanecer nos locais onde estão hospedadas ou se vão passear. Estas mudanças significam que o tratamento, concluído pelo “suadouro”, acabou. Terminou, então, usando uma analogia, a fase da hospitalização, e começa uma nova etapa: a recreação. E não será que uma e outra fase, que aparentemente são opostas, fazem parte do mesmo pacote, o tratamento termal? Não é esta a especificidade da prática terapêutica termal, que a recreação é um dos elementos da eficácia simbólica da cura?

59 As refeições nem sempre são tomadas no espaço onde se dorme, onde se descansa. Quando tal se verifica, este é um momento em que os aquistas se conhecem e trocam

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 138

impressões sobre as respectivas experiências termais (que vão desde os banhos à hospedagem, aos passeios, às dores), conversas que se prolongam depois já no jardim, espaço de mediação e extensão entre o balneário e o “hotel”. Fala-se sobre os tratamentos, sobre as doenças que para ali os direccionam e sobre as dores que os acompanham no quotidiano. Se quisermos fazer uma analogia com um internamento em estabelecimento hospitalar, verificaremos que é no respeitante à sociabilidade que se traça a principal fronteira de demarcação entre os dois tipos de internamento, hospitalar e termal. No primeiro, a sociabilidade é afectada ou até interdita, pois há horas previamente estabelecidas para o contacto social; no segundo, ela é promovida. Nalguns casos poderemos afirmar que há até, ou é procurada, uma exacerbação da sociabilidade. Este destino, assumido como terapêutico, traça novos figurinos, sobretudo para as mulheres que se encontram sozinhas nas termas (quer sejam casadas, viúvas ou solteiras).

60 A etnografia realizada nas termas portuguesas nos permitiu observar e constatar que para as mulheres, as frequentadoras mais numerosas, esta prática terapêutica permite sair dos espaços quotidianos da família e possibilita assim a afirmação da individualidade e da autonomia. São ilustrativas algumas das expressões pronunciadas: “é bom ter férias dos maridos”, “aqui estou livre dos tachos”. Porém, este não é um tempo de total isolamento, em termos físicos, das famílias. Aos fins-de-semana podemos observar as famílias (maridos, filhos, netos) que se deslocam a estas termas para almoçar e fazer uma visita àqueles que estão em “reclusão” termal. Nalguns casos, pouco frequentes, pude observar que os maridos vêm passar o fim-de-semana. Segundo algumas mulheres, os maridos não as acompanham porque “estão a trabalhar”, ou “porque é difícil entretê-lo aqui”, “isto aqui não há nada para ele fazer”.

61 No entanto, se a suspensão da vida social foi por nós associada ao quadro de um internamento hospitalar, também durante a estadia termal há uma interrupção da vida social, pois é introduzida uma mudança no quotidiano neste nível. No caso brasileiro, o período de internamento de algum modo sugere ainda a caracterização de Goffman (1966) das instituições fechadas de tipo “religioso”. Lembremos que alguns desses hóspedes referem a estadia termal como um “retiro espiritual” que lhes permite “fugir do mundo”. Ora, para o conseguir é necessário desencadear uma acção que inclua uma deslocação e introduza uma ruptura no quotidiano. Refiro-me aqui à viagem, associada preferencialmente a tempos de férias e de lazer, mas também a objectivos terapêuticos, o que se verifica historicamente, por exemplo, relembrando as palavras de Ramalho Ortigão (1875).

62 Do mesmo modo, as férias e o lazer são frequentemente classificadas como formas de “turismo”, sendo este definido por alguns antropólogos como um tipo de lazer que estrutura o ciclo de vida, ao ser alternado com períodos de trabalho (Smith, 1989). Aquele que desenvolve essa actividade seria então o “turista”, referido como uma pessoa desocupada, que voluntariamente visita um lugar longe de casa, com o objectivo de experimentar uma mudança, praticando actividades através das quais igualmente se introduz uma ruptura no quotidiano. No entanto, e na situação portuguesa em análise, mais do que de uma ruptura, trata-se de uma suspensão particular, de fazer um intervalo no sofrimento do quotidiano, tal como é expresso nas narrativas de vida que estas mulheres partilham com as colegas neste espaço. Contudo, se algumas das práticas do quotidiano que são indicadas ou sugeridas como as causas do sofrimento (o trabalho, as relações com a família ou a ausência destas, a solidão) estão suspensas, já a

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 139

verbalização e a evocação destas se mantêm, designadamente em torno das “dores”. São as “dores” o idioma, a palavra-chave para comunicar e estabelecer relações de sociabilidade nesse espaço (Quintela, 1999, 2008, 2011).

63 A decisão de ir até umas termas está associada a episódios críticos da vida – perdas (mortes, divórcios, separações), doenças do próprio ou de familiares. Nas entrevistas realizadas, quando perguntava a alguém quando tinha vindo pela primeira vez, surgia espontaneamente uma narrativa sobre os eventos da vida que, de alguma forma, eram identificados como causas desencadeadoras da doença ou do mal-estar actual. Episódios que nos sugerem que a procura da “cura de águas” e dos espaços onde estas existem é também uma busca de re-criar a vida, uma vez que “tudo se devia curar com água”.

Epílogo: águas que curam, recreiam e recriam

64 A partir da água, como organizadora de lugares e práticas termais, colocámos a questão de saber se seria possível curar e recrear nos mesmos espaço e tempo medicamente regulados. A questão, porém, parece ter sido de uma forma falaciosa, pois o que a etnografia comparativa nos mostra é que aquilo que está em causa não é a coexistência destas dimensões. O que está em causa é que estas actividades ou dimensões existenciais apenas são desenvolvidas de uma forma fragmentada, digamos que em gavetas (a da doença, a do tratamento, a da religião, a da recreação, a do trabalho) por imposição de regulamentos institucionais e convenções sociais historicamente constituídos.

65 Em Portugal, a ida para “banhos”, para alguns aquistas, sobretudo mulheres, além de responder à motivação de “aliviar as dores do reumatismo” e “atrasar” o desenvolvimento natural da doença e do envelhecimento, permite também aliviar condições existenciais decorrentes de assimetrias sociais, designadamente de género – “ver-se livre dos tachos” – e desenvolver outro tipo de sociabilidade num tempo excepcional em que a recreação tem lugar para recriar o quotidiano. O mediador desta situação é o medicamento água, que só pode ser consumido no lugar da sua emergência e que assim obriga a uma deslocação. Tratando-se de uma viagem terapêutica, ela permite uma estadia legitimada pela família e pelos médicos, o que para algumas destas mulheres significa uma oportunidade única de se deslocarem sós. E no lugar das águas, aliviam os seus sofrimentos recreando e recriando. Sofre-se e cura-se? Não, a etnografia, através das narrativas recolhidas, permite dizer que neste contexto fala-se do sofrimento, mas vive-se a recreação e experimenta-se a recriação. Pois apesar de o lugar termal estar organizado de forma a que estas dimensões não se cruzem nos espaços, promove ainda assim actividades que permitem vivê-las em tempos diferentes, como é o caso das noites e da animação termal.

66 Já a comparação com o contexto brasileiro possibilita constatar que, aqui, estas dimensões coexistem no espaço e no tempo, que os hóspedes assumem a recriação de um tempo para si, e que tratar e recrear estão concebidos de uma forma holística no sentido do bem-estar assumido num balneário total, onde a água é compreendida como tendo uma função de integração de uma cosmologia individual, de relação com o corpo individual e social, que não é o sistema de regulação médica que condiciona, mas sim as condições individuais. Pois não há intermediários, mas apenas um mediador e epítome – a água termal.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 140

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. 1991. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.

GOFFMAN, Erzing. 1966. Asyles. Études sur la Condition Sociale des Malades Mentaux et autres Reclus. Paris: Éditions de Minuit.Petrópolis: Vozes.

GREENWOOD, David J. 1984. “Medicina Intervencionista vs. Medicina Naturalista: História Antropológica de una Pugna Ideológica”. Arxiu d’Etnografia de Catalunya, 3:59-81.

LUZ, Madel T. 2005. “Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX”. Physis: Revista de Saúde Colectiva, v. 15:145-176.

MACCANELl, Dean. 1976. The Tourist. A new theory of the leisure class. London: The Macmillan Press Ltd.

MACKAMAN, Douglas Peter. 1998. Leisure Settings. Bourgeois culture, medicine and the spa in modern France. Chicago: Chicago University Press.

MALUF, Sónia Weidner. 1996. Les enfants du verseau au pays des Terreiros: Les cultures therapeutiques et spirituels alternatives au sud du Brésil. Tese de Doctarat en Anthropologie Sociale et Ethnologie, EHESS, Paris.

MARRAS, Stélio. 2004. A propósito de águas virtuosas: formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

NAIRANDAS, Harisch & BASTOS, Cristiana (edits.). 2011. “Healing holidays? Itinerant Patients, therapeutic locals and the quest for health”. Anthropology & Medicine, 18, (1):1-6.

NUTTON, Vivian, 2001 [1993]. “Humoralism”. In: W. F. Bynum & Roy Porter (eds.). Companion Encyclopedia of The History of Medicine. Vol. I. Londres e Nova York: Routledge. pp. 281-291.

PORTER, Roy. 1990. Medical History of Waters and Spas. London: Welcome Institute for the History of Medicine.

QUINTELA, Maria Manuel. 1999. Curar e Folgar: Etnografia das experiências termais nas Termas de São Pedro do Sul. Master Dissertation, ISCTE, Lisbon.

____. 2001. “Turismo e Reumatismo: etnografia de uma prática terapêutica nas Termas de São Pedro do Sul”. Etnográfica, 5(2):137-158.

____. 2004. “Práticas e Saberes Termais em Portugal e no Brasil”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 11, suplem. 1, pp. 239-260.

____. 2004a. “As termas um lugar de consumo de saúde”. In: Maria Cardeira Silva (org.). Outros trópicos. Novos destinos turísticos. Novos terrenos de antropologia. Lisboa: Livros Horizonte.

____. 2008. Águas que Curam, Águas que ‘Energizam’: etnografia das práticas terapêuticas termais em Portugal (Sulfúrea) e Brasil (Caldas da Imperatriz). Tese de Doutoramento, Universidade de Lisboa, Lisboa.

____. 2011. “Seeking ‘energy’ vs. pain relief in spas in Brazil (Caldas da Imperatriz) and Portugal (Termas da Sulfúrea)”. Anthropology & Medicine, v. 18, n. 1, Abril.

SMITH, Valéne. 1989. “Introduction”. In: ___. Hosts and Guests. The Anthropology of Tourism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. pp. 1-17.

TURNER, Byron. 1996. The Body and Society. Explorations in social theory. London: Sage Publications.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 141

WEISZ, George. 2001. “Spas, Mineral Waters, and Hydrological Science in TwentiethCentury France”. Isis, 92:451-483.

ZOLA, Irving Kenneth. 1972. “Medicine as an Institution of Social Control”. Sociological Review, 20(4):170-185.

NOTAS

1. Agradeço ao João Vasconcelos a leitura do texto e as sugestões. 2. Balneário é a designação dada em Portugal ao estabelecimento onde são realizados os tratamentos termais, entre os quais se destacam os “banhos”. 3. Estas são as termas portuguesas mais frequentadas nas últimas décadas, com aproximadamente 19.500 aquistas/ano, o triplo das segundas (Termas de Chaves). 4. A pesquisa de campo nas Termas de S. Pedro do Sul foi realizada em 1997, com incursões prévias ao terreno em 1995 e 1996, durante os meses de Verão, correspondendo a seis “quinzenas” (período de um “tratamento termal” em Portugal). No Brasil, o trabalho de campo decorreu durante doze meses (Agosto 2002–2003) e entre Fevereiro e Março de 2004, tendo sido antecedido de visitas exploratórias em Agosto de 2000 e Setembro de 2001 (nesse período usufruí de uma bolsa mista de doutorado da FCT). Nas Termas da Sulfúrea (Portugal), foi realizada durante três quinzenas (meses de Setembro a Novembro de 2003). Outras termas portuguesas foram visitadas no âmbito do doutorado e enquanto investigadora nos projectos coordenados por Cristiana Bastos: “A água como agente terapêutico” (2002-2004) e “Das termas aos spas: reconfigurações de uma prática terapêutica” (2003-2006) 5. O processo de formação desta estância e do hotel em particular está desenvolvido em Quintela (2008). 6. Em 1997 eram aproximadamente 300 habitantes e 19.500 aquistas anuais. 7. Utilizo a denominação de turista, no sentido de Valéne Smith (1989), para quem está no lugar termal mas não faz tratamento, e de “aquista”, uma das categorias locais, para quem faz tratamento. A legislação portuguesa que regula a actividade termal, posteriormente publicada (2004), adopta e define o termo termalista. 8. Até Junho de 1997, o Posto de Turismo estava situado numa sala existente no primeiro andar. Este espaço, em 1885, era denominado Club, e a partir de 1910, de Casino. A sala dedicada primeiramente ao Posto de Turismo e posteriormente à sala de exposições era no tempo do casino a sala de jogos. A sala contígua a esta – o salão de baile – era onde estava instalada provisoriamente a igreja. A nova igreja foi inaugurada em 21 de Maio de 1998 e tem o nome de ”Igreja de N.ª Senhora da Saúde”. 9. O silêncio é mais uma das ambiguidades que cruzam o sítio termal. O barulho feito pelos aquistas, nomeadamente nos espaços de tratamento e mais precisamente na piscina, era a “guerra” para quem ali trabalhava. Pedia-se sistematicamente silêncio, pois, como referiam alguns funcionários, “isto parece uma feira”. 10. Hoje, 2011, o Balneário Rainha D. Amélia é o “novo”, onde se fazem as terapias de “bem-estar” e Spa Real, possíveis depois da legislação de 2004. O Centro Termal recuperou o nome do primeiro balneário conhecido – D. Afonso Henriques. 11. Esta senhora referia-se a problemas respiratórios (e as “vias”, ao nariz e à garganta). 12. A buvette era uma fonte existente no interior do balneário, onde era distribuída água termal sob a forma de bebida, mediante prescrição médica. 13. Note-se que nessa época a maioria das habitações locais não tinha água quente canalizada. 14. No jornal local, ATribuna de Lafões, é noticiado o “Banho Santo”: “É tradicionalíssimo o ‘Banho Santo’, que inúmeros forasteiros aqui vêm fazer no dia 29 de Junho. E, no passado 29 de Junho, cá

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 142

tivemos diversos autocarros transportando os ‘fiéis’, dando um certo movimento a estas Termas” (Tribuna de Lafões, 15/7/1954). Jorge Dias refere os Banhos Santos como um ritual que se realiza em várias localidades do país no dia de S. João (24 de Junho). 15. A representação das termas como um lugar de natureza e consumo de saúde foi desenvolvido num outro texto (ver Quintela, 2004a). 16. A situação mudou após a realização do trabalho de campo (2002-2004). Desde Junho de 2006, o “termalismo social” e a crenoterapia foram incluídos a par com outras práticas terapêuticas no SUS, mas enquanto “terapia complementar”.

RESUMOS

O termalismo em Portugal e no Brasil é uma actividade que se desenvolveu no século XX entre a medicina e o turismo, à semelhança do que ocorreu noutros países. Contudo, o processo histórico de institucionalização das “curas de águas” nos dois países assumiu diferentes orientações, em função dos sistemas médicos em que elas estão inseridas, de acordo com a importância dada aos fenómenos que as justificam: curar e recrear. Pretende-se neste artigo discutir a relação entre curar e recrear enquanto dimensões constituintes da formação das estâncias termais e do termalismo em torno da água como eixo estruturante das práticas termais, a partir de uma etnografia comparativa entre Portugal (São Pedro do Sul e Cabeço de Vide) e o Brasil (Caldas da Imperatriz). Através desta comparação são analisadas concepções de saúde, doença, sofrimento, lazer, bem-estar e “tratamento termal”, o que permite estabelecer o diálogo entre diferentes terapias e sistemas médicos. É ainda relevante considerar aqui as propriedades atribuídas à água termal por termalistas, médicos e populações locais, tentando compreender em que medida os sistemas médicos que enquadram as práticas termais interferem na experiência termal, fazendo dos “banhos” e da estadia uma oportunidade de curar e/ou, recrear e re-criar quotidianos.

Thermalism in Portugal and Brazil is an activity that has developed during the twentieth century midway between medicine and tourism, as has also happened in other countries. However, the institutionalization of water cures in both countries has taken different routes due to the medical systems they were part of. This is related to different ways of emphasizing what characterizes it: either curing or leisure. In this paper I intend to analyze both the relation between curing and leisure as the constituting dimensions of spa settings and the way thermalism, centered on water, organizes thermal practices. I approach these topics using data from my field research in Portugal (São Pedro do Sul and Cabeço de Vide) and in Brazil (Caldas da Imperatriz). I discuss local conceptions of health, illness, suffering, welfare and water cure looking for establishing a dialogue between different therapies and medical systems. Examining the qualities attributed to water by local populations, doctors and spa clients I try to understand how medical systems interfere with the spa experience by making bathing and the very sojourn an opportunity for curing, leisure and recreating everyday life.

ÍNDICE

Keywords: thermalism, water, therapies, leisure, curing, Portugal, Brazil, ethnography Palavras-chave: termalismo, água, terapias, recrear, curar, Portugal, Brasil, etnografia

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 143

AUTOR

MARIA MANUEL QUINTELA Escola Superior de Enfermagem de Lisboa

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 144

Community water management. Is it still possible? Anthropological perspectives

Toufik Ftaïta

EDITOR'S NOTE

Recebido em 07/08/2011. Aprovado em 20/08/2011. O antropólogo Toufik Ftaïta é docente pesquisador da Universidade de Nice Sofphia Antipolis e membro do laboratório CIRCPLES EA 3159. É especialista na questâo da água e do desenvolvimento sustentável e autor de muitos artigos e livros sobre o tema da água e sua gestão. Toufik Ftaïta é responsável pelo curso Eau, sociétés et développement durable: gestion sociale de l’eau et médiation institutionnelle no mestrado em Etnologia Transformations des sociétés contemporaines da Universidade de Nice. É ainda editor responsável da coleção Ressources Renouvelables da editora l’Harmattan.

Water as an eminently anthropological issue

1 The topic of water has several dimensions: ecological, economic, technical, social, political, and religious. The ecological dimension has received greater attention due to the geographical and climatic conditions that affect water availability or scarcity, which in turn contribute to its uneven distribution between countries and even within the same country.

2 However, the economic dimension is increasingly critical as water changes from being a popular representation as a heavenly free gift (religion and about water are quite important) to the object of property by the state or by the powerful. As such, water becomes an issue of political power and economic capital that excludes the poorest sectors of society. A critical aspect of this inequality is that over one billion

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 145

people worldwide have no access to drinking water. The Millenium Development Goals aiming at improving the poor’s access to clean water and sanitation are at a standstill due to bureaucratic delays and profiteering maneuvers that structure investment projects and donations.

3 Despite protests from some NGOs at global World Water Forums, access to drinking water as a fundamental human right is far from being secured. Water is now perceived as a commodity. Production and distribution of drinking water is a highly profitable business to specialized companies, as there is no competition, unlike other economic activities (very few specialized companies in the world share the profits, France being an exception with two strong companies). However, there are some mobilization efforts against water privatisation and commodification. The Cochabamba events and the struggles of poor farmers remind us that water is not reduced to pipes and concrete, but a social and political issue of the utmost importance. Conflicts over use and ownership of this resource are not new. The social and political history of several communities is a constant reminder that water is not only a source of life, but also of conflict and death. Studies that include oasis communities in North Africa show that water was and continues to be constitutive of oasis societies. Their models for water appropriation and distribution bring to the fore their political and religious structures. In these arid areas, where water is an object of desire, its massive and extensive ownership by some oasis families has helped establish their political and religious authority (Pascon, 1984a; Bédoucha, 1987; Ftaïta, 2006a,b).

4 Water scarcity and waste have prompted the need for new management technologies and institutional reforms. In the South, irrigation in agriculture is now widely used and has become the largest consumer of water (between 70% and 80%). There is, however, a growing competition between industry, tourism and drinking water production. The latter threatens some areas where water resources formerly used for irrigation are transferred to meet the drinking water needs of urban and rural populations. In turn, tourism has brought about serious problems for farmers, especially, where water resources are limited. Several examples illustrate the overconsumption of water in tourism development and its impact on the sustainability of local farming activities. Two such examples are the Tozeur oasis in Tunisia and the city and surrounding region of Marrakech in Morocco.

5 The new challenges posed by the current concern with climatic change and greater water scarcity have become a major concern for the rational management of water. But what does the notion of «sound water management» really mean? Is it a kind of publicity for new technologies, including new irrigation techniques, allegedly more effective in saving water than traditional techniques? The anthropological literature has shown that the notion of rationality is not exclusive to modern water management models. Moreover, abundance or scarcity of water does not affect the willingness of local communities to efficiently manage their water resources (Geertz, 1972; Ftaïta, 2006a). Likewise, when we talk about rational management of water, we often forget to focus on the hierarchical structure of water ownership and distribution (Bédoucha, 1987; Ftaïta, 2006b).

6 Moreover, what does the idea of “good governance” of water imply? Could it be the need to supersede old community-based models of water management (largely structured by local customary law), regarded as unsuitable for modernity, by imposing a new national legal framework to regulate water ownership and access warrantied by

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 146

the state? What happens to the communities faced with these institutional changes? How do local actors behave viz-à-viz state interventionism? What strategies and logic do they deploy to enter or evade the system? These are questions that show how the water issue surpasses the narrow technological or ecological framework that constrains it. The present situation calls for an anthropological analysis, now that local communities experience significant changes and conflicts increase over the use and ownership of water, undermining the sustainability of oasis systems, and hence, their very existence. I shall focus on the recent establishment of WUAs (Water Users Agricultural Associations) in Morocco as an institutional innovation to participatory irrigation management. The country’s social and political history shows that for centuries irrigation management was carried out by the communities in collective projects for water appropriation. A detailed analysis of community management models of water irrigation reveals their diversity and the importance of customary rights in local production and reproduction of oasis systems. I follow the lines proposed in the anthropology of Water and Irrigation. Frequently studies of irrigation communities focus on the technical and legal aspects of irrigation, neglecting the social and political issues involved in the ownership of and access to water. The introduction of new management models of irrigation reveals the serious challenges entailed in the establishment of an imposed and enduring model for water management that disregarded local realities and knowledge, as well as traditional irrigation skills. It may be easy to set up a model for managing irrigation in a newly developped area, but it is difficult to replace older models of community water management. The difficulties lie in the fact that these local models have been socially, historically, technically and politically shaped by local agents. Moreover, it is the diversity of these models – providing a variety of rules and both formal and informal practices for the communities – that is responsible for the functioning of oasis systems. In fact, any new model of water management involves the renegotiation/social reconstruction and redefinition of the local power structure (Hunt, 1989; Ostrom, 1992; Ftaïta, 2006a,b).

The foundations of community management of oasis irrigation water: the salience of customary rights

7 In the history of Moroccan irrigation, we can distinguish three periods of water ownership and management. The first covers the pre-colonial period during which water ownership and management were structured around Islamic law (shariaa) and local custom (orf ). As in many Muslim countries, the principles of water management in Morocco intertwined these two legal codes (shariaa and orf ), thus offering different practices and rules from one region to another and even within a single geographical area. This overlap of rights reveals Islam’s ability to conduct former practices without questioning religious orthodoxy (Sonnier, 1933; Roché, 1956; Bouderbala, 1984; Ftaïta, 2006a). It is clear that the notion of ijmaa (consensus doctorum) leaves much room for local custom, provided it is not inconsistent with Shariaa guidelines. This situation continued until the French protectorate, which marked out a new phase in the process of ownership and management of irrigation water. With the arrival of the French, a new hydraulic reform deeply modified the previous one, by introducing the concept of public domain. However, the principles of public ownership of water resources were soon to clash with those of the local communities. Indeed, to recognize state ownership

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 147

of water was to incur in the expropriation from oasis communities of their customary and inherited water rights. Faced with protests, the new Water Code has finally recognized customary water rights.

8 The third phase covers the independence period. Morocco has maintained the state model of water management inherited from the French. Farm programs have privileged large-scale irrigation systems characterized by the construction of big dams and the modernization of irrigation techniques. In 1967, a major reform created the Regional Offices for Agricultural Development (ORMVA) and decentralized administrative structures in charge of irrigation. Unlike followers of the oasis models, farmers were regarded as mere users of water and had to pay a fee to use it. This situation lasted until 1992 when a new law established associations of agricultural water users (WUAs).1 The purpose of this legislation is to encourage water users to form associations to support the management of irrigation networks and thus contribute to the costs of rehabilitation and maintenance. It is a participatory approach to irrigation. This new model of water management and irrigation systems has been beneficial to farmers who up until then had to face the hurdles of bureaucracy and the authority of the Regional Offices for Agricultural Development. Participation in WUAs could have resulted in a new institutional framework that allowed farmers to act and be recognized by the state, but, as we shall see, this is not the case. Moreover, legally speaking, this associative model cannot be limited to areas managed by ORMVA. It must cover all irrigated areas, including those where irrigation water is collectively managed, namely, the oases.

9 The associative model of water users clearly unveils the bankruptcy of the state model for the management of water resources. In the case of Morocco, as elsewhere in the world, the associative model results from structural adjustments imposed by funding agencies (Herzenni, 2002). The deficit in management on the part of regional offices for agricultural development and their inability to cover the fees required for financial balance and investment returns has forced the state to gradually withdraw and charge water users for the cost of maintenance and rehabilitation networks, appealing to the principles of participatory irrigation management. However, the principle of user participation is not new in Morocco. Traditionally, local communities that collectively acquired hydraulic works are obliged to share the repair and maintenance costs. The oasis example is a significant model of community-based management of irrigation water. How novel, then, is this new institutional model? To understand the differences between the associative model and the various community-based models, we need a thorough analysis of both institutional forms.

10 The community management model is characterized by individual ownership of water rights and collective ownership of water works. Owning water rights involves certain rights and duties. One becomes a water owner by participating in the installation of water works. Owners are then responsible for repairs and maintenance when necessary. Needless to say, individual appropriation is only meaningful in the context of collective ownership of the hydraulic works: if the community recognizes the individual right of water owners, these cannot dodge their collective duties as inscribed in customary law. As common law varies from one community to another, only a coomunity’s social and political history can shed light on the conditions that led to its development. This is a social construct that can be amended or modified according to the community’s situation. Not all oasis-based farmers own water rights. The status of

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 148

water owner is transmitted either by inheritance or by capitalization. A share of water may be directly bought from another water owner, provided the transaction complies with the requirements of local customary law (prohibition to sell water to a stranger) or when the rehabilitation of water points requires large sums of money the community cannot afford. In this case, the community sells one or more days of water by extending the water cycle to as many days as necessary (the sale of two days of water in a cycle of seven days will result in the extension of the water cycle; for instance, in a two-day extension of a new water cycle, there will be nine days instead of the previous seven).

11 Community water management involves both the technical handling of the irrigation network and the social control of water distribution and allocation among the rights holders. We cannot understand the management of water in the oasis without considering the social and political dimensions of water ownership and distribution. Technical management of water involves setting up the entire infrastructure, all the way from the hydraulic plant to the distribution channels to the plots.2 We can only understand this system in the context of the social management of irrigation water because of the diversity of practices and models offered by oasis-based farmers. It is not unusual to observe different practices and ways of appropriation and distribution of water in the same geographically and culturally homogeneous area. These practices are formalized by legal rules deriving from common law. For this reason, the rich oasis hydraulic heritage must be preserved. Therefore, the technical, agronomical and legal knowledge and expertise offered by the material and immaterial heritage is anything but outdated. It reveals the intimate connection between oasis societies and their environment and the delicate balance between the resources available and access to them. Local customary rights pay close attention to the conditions of access to natural resources. There are penalties to punish abuses. Control is exercised by the djemaa, a traditional assembly with social and political power in North African oasis communities. The major advantage of these legal practices is the space they give local communities for social and political negotiation. Rules over water ownership, access and sharing may be strict, but they make room for negotiation without which any cooperation would be impossible. This is perhaps the reason why Clifford Geertz’s (1972) attempt to compare the Balinese and Moroccan models failed. Whereas water distribution in Bali is tightly controlled, in Morocco, it allows water owners to engage in considerable negotiations and arrangements. Social negotiation is necessary for the survival of the system, given oasis climatic conditions and water scarcity. It also allows farmers without water rights to benefit either from renting or from Rahn.3 For example, small holders of water rights are often forced to transfer their share of water to the water guards in charge of allocation when they cannot take it that day, because the right amount of water might be lost in the canals before reaching their plot. On these occasions, water guards must redistribute that water. The situation becomes more complex when a farmer owns parts of water from several sources with different irrigation cycles. Some farmers negotiate intensely to have all their shares on the same day and thus be able to irrigate large tracts or plots that are far apart (Ftaïta, 2006). These negotiations are maintained by the water owners while clearly observing the local customary rules that define the terms of water distribution among the owners. Sustainability of the oasis system cannot be maintained without this joggling with rules. The djemaa assembly, socially and politically legitimized by social contract, complies with these negotiations and does not consider them to be an impediment to

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 149

oasis life. The djemaa guarantees the social cohesion that is essential for the production and reproduction of oasis society.

12 The legal content of customary law allows the djemaa to ensure the smooth running of the oasis. Order enforcement and conflict resolution among water owners have been major concerns in the oases. To ensure the safety of property and persons, representatives of the djemaa appointed auxiliary staff or assistants, ineflass. The legal system could not be efficient without the garden police (ineflass), responsible for suppressing any exaction; only official djemaa members could dispense the designated staff.

13 Distribution of water among beneficiaries is often entrusted to water guards4 (locally called abbar, turjjmani, amazal, or amghar). They must meet specific criteria, such as seniority as water owners, or sensitivity to negotiate and mediate, honesty and fairness. The position of water guard is transmitted from father to son, but the community can remove him from office at any time. Rare cases of water theft or fatal quarrels have occurred at water distribution points (majless) and severely punished by customary law. Water guards receive compensation directly from the owner. In the past, farmers offered them a part of their harvest, but nowadays, they are paid either in water taken directly from the share distributed, or in cash corresponding to the share of water distributed. Monetarization of social relations has changed the water distribution system. For example, in the oasis of Talaïnt (SW Morocco), the water distribution unit is the clepsydra/water clock (tassa or tighira), a 12-minute water unit (Ftaïta, 2010a). Currently, the water owner receives only 11 minutes of water, the twelveth minute being used to pay the water guard. In this oasis, a 12-hour day ( ferdia) contains 60 tassa, hence, the water guard actually gets five tassa of 12 minutes each, that is, one hour of water per ferdia distributed.5 In addition, there are the shares from small holders who are unable to use water on a given day and thus leave it to the water guard who, in turn, leases it to other farmers. This practice, called tafwit (temporary concession of water portions) confers the water guards considerable power. In some oases, the release of large amounts of water bring about huge sums to water guards, thus increasing their power over small owners. We can better appreciate this point if we consider that small water owners make up the majority of owners, while only a few notable and rich families hold almost all of the water. The power of water guards is even greater for those who are obliged to rent water. In these circumstances, it is understandable that some oases do not trust water guards.

14 Besides these aspects related to power issues, the social management of water also reveals the ability of irrigators to deal with social, political and even ecological constraints. For example, droughts and water scarcity are managed by decreasing irrigation time. If, under normal circumstances, one has a 60-minute irrigation time, the djemaa can shorten it to only 20 minutes so as to contemplate all the farmers. Collective interest and the constant quest for social cohesion and conflict resolution make djemaa a historically legitimized social and political institution. Oasis communities take climate hazards into account when they manage natural resources, thus showing a perfect knowledge of the environment and its constraints. We cannot really understand how oasis communities manage natural resources without paying close attention to the methods of production and transmission of their knowledge and expertise in all areas – technical, agronomical and legal. Long despised and considered obsolete, such knowledge and traditional skills reveal not only the foundations of the

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 150

social and political structures of oasis communities, but shed light on the relationship between their society and environment.

15 The sustainability of oasis systems, some dating back several centuries, is a striking proof of the intrisinc bond between Society and Environment, and the need for a rational management of access to natural resources. The oasis model contains an enormous amount of information. For this reason, natural resource management must, necessarily, deal with local realities. The diversity of local communities is reflected on the diversity of their management models. Again, each model takes into account ecological, political, religious and social conditions. We should also bear in mind that the ability to cope with local constraints is mandatory for community water management. On the other hand, such management cannot be effective without the traditional institution of djemaa. Its social and political legitimacy is guaranteed by the vitality of its common law. Nevertheless, here and there we witness a process of disintegration of oasis social structures. Growing individualism is on the verge of supplanting the founding principle of oasis society, namely, the community of interests. There are various reasons for this, not simply the fragility of the environment and weather conditions. Institutional changes, such as the modernization of irrigation techniques and a new mode of economic organizationimposed by the modern State, aggravate the changes experienced by the oasis communities.These changes contribute to the profound transformation of social and political relations between the farmers.

Community-based models of water management confront institutional innovations

16 The community model of water management and natural resources could be maintained as long as there is political and legal ability to meet the needs of local communities and to control conflicts. We have seen that the role of the djemaa and local customary law guaranteed the rights of each farmer, but also reminded him of his duties towards the community. This cohesion must not blind us to the extreme hierarchy in social and political relations. Oasis traditional society is by no means egalitarian. The appropriation of natural resources – water being the supreme item of wealth – was structured by political, religious and fratricidal conflicts between lineages. Intensive and extensive appropriation of water allowed the holder to accummulate economic capital that projected him onto the political scene (Pascon, 1984a; Bédoucha, 1987; Ftaïta, 2006b). This pattern continued through Morocco’s independence in 1956. The modern state could not undermine a secular lifestyle. The strength of customary and Islamic law in rural areas forced the state to negotiate reforms with local communities. Even the principle of customary water ownership could not be openly challenged, despite the fact that, since the period as a French protectorate, Morocco has a water code affirming the principle of public domain. Examples in which the state has applied this principle of public property to expropriate irrigators are rare, because the issue remains politically and socially highly sensitive and can cause conflicts with uncertain consequences. Some requirements for the use of public utilities, such as meeting the need of drinking water to urban populations, justify expropriations. The example of the irrigators in the former Tiznit oasis in southwest Morocco, expropriated in order to have their irrigation water transferred to

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 151

supply drinking water to the town of Tiznit, is significant. The farmers benefitted from the treated city wastewater to irrigate their plots. However, the treatment plant broke down shortly afterward, leaving them with raw sewage for irrigation, causing environmental, health and economic impacts on the irrigators (Ftaïta, 1999).

17 Furthermore, national preference for modern agriculture with irrigation to reach the target of one million irrigated hectares has excluded areas where irrigation management is communal. Hence, the areas irrigated with smaller systems (in oasis zones) did not benefit from the same investments as the larger systems (ORMVA). However, both the number of hectares irrigated and the concentration of rural population in the oasis areas are far from negligible. Nonetheless, the modern state sent administrative services to this territory to keep its political and legal authority. The new government has gradually weakened the traditional djemaa, slowly preemptying its activities in local communities.

18 The principles guiding communities in technical and social water management have resisted state power, but the legal customary provisions for conflict resolution with regard to use and ownership of water among farmers are at odds with modern jurisdiction. Now conflicts are no longer resolved on the spot by the djemaa in accordance with local customary law, and the disputing parties are brought to court. Quarrels that only took a few days to be resolved, now can last several weeks or even months.

19 Gradually, the traditional djemaa are losing power and legitimacy. The latest blow was the 1992 law that created the Associations of Agricultural Water Users (WUAs). Although it was not specifically aimed at traditional communities of irrigators, its implementation had important implications for the future of community models for managing irrigation. In fact, the purpose of creating an associative model was to involve agricultural water users in the financial recovery of water projects and irrigation systems. These associations must include two-thirds of irrigators or be formed by state administration, such as the Regional Office of Agricultural Development (ORMVA), or the Provincial Directorate of Agriculture (DPA). The novelty of these WUAs as an institutional experiment is that they are not exclusively catered to users of large or medium irrigation works (under ORMVA control). They also include those oasis communities whose irrigators do no simply use water, but are owners with water rights.

20 The establishment of the Associations (WUAs) will change the management of water resources profoundly and, hence, the relationship between water users, on the one hand, and between water owners and local administrations, on the other. The situation is more complex for irrigators in areas where water management meets local criteria regarding participation in the management of adequate collective development programs. Another serious contradiction results from the fact that this new law provides for one single associative model, in stark contrast to the community model whose main characteristic is precisely its diversity of practices that interconnect the communities and are related to their specific historical and political conditions. Therefore, the single WUA model will progressively and insidiously replace the diversity of local practices. Consequently, only this WUA type of associative model would comply with the new regulations for the management of irrigation water and the financial participation of water users in agriculture. This WUA institutional innovation

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 152

is certainly tempting to farmers in major irrigation schemes who strive for recognition, but would be devastating for the social cohesion of local community irrigators.

21 We must beware of the ideological and political dimension of any legal reform, particularly regarding the access, ownership and management of water. These reforms proposed by funding agents to change, or even privatize public water infrastructures, primarily met an economic need, for the state could not absorb the chronic deficit of large irrigated areas. It is also a disguised way for the state to withdraw without acknowledging the autonomy and ownership of water users. The experience of the WUAs in the area of Haouz in Marrakech is far from being conclusive. Bureaucracy is rampant and farmers cannot cope with administrative authorities (Mellakh, 2004 ; El Faïz, 2008). The ORMVA is still present and increasingly engaged in technical development and irrigation.

22 The novelty lies in the fact that it is the users themselves, trained in WUAs, who are in charge of collecting contributions. They must also participate financially in the maintenance of the irrigation network, while the state funds only a small percentage of the total. It is this principle of financial «participation» that legally justifies the WUAs. Even if water users failed to contribute financially to the development and reclaiming of irrigation schemes under ORMVA orientation for modern agriculture, collective participation would still continue to be a founding principle for community management of irrigation water. Indeed, each water owner must physically and financially participate in the maintenance of water works.Where there are traditional dams, after each flood, irrigators must participate in dam repairs and floodwater canals in preparation for the next flood. Where the water infrastructure is a khettara (qanat), each water owner must contribute financially to the cleaning of wells and underground drainage tunnels. Without their participation, the oasis system would collapse. This maintenance is part of the irrigators’ duties where the infrastructure is a collective good. We have previously noted that the private share of water only makes sense as part of the collective ownership of water points. This being so, what benefits can local communities obtain by adopting the system of associative management of water, and hence the new law, and renouncing ancestral models that have amply proven their technical, social and ecological effectiveness? Can we consider this new association as a modern method to comply with the principles of “good governance” of water?

23 These questions call for a reconsideration of the principle of adherence to a specific form of social organization, be it community-based (traditional communities of irrigators) or association-based (association of agricultural water users), but also for the analysis of the impact of the WUAs as the new organisational model for the relations between irrigators. In the traditional model, all water owners are ex officio members of the community. It has to do with a commoninterest membership, sometimes more lively as a form of affiliation than ethnicity or linguistic identity. In the case of the water users association, membership must be accepted and approved by means of an annual fee. Moreover, the association’s rules of organization and operation differ from those of the community of irrigators. By law, any association must be organized according to one model: an association committee made up of six members, plus a representative of the local administrative authority with voting rights (El Alaoui, 2004). This form of organization, and especially the presence of an administrative authority intruding in the business of irrigators may cause problems. Field experiments have revealed that farmers are suspicious of local authorities. This reaction is

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 153

exacerbated when the authorities decide to intervene directly in their affairs. Moreover, the very creation of the WUAs is problematical. By law, the water users’ association can be constituted either on the initiative of two thirds of irrigators, or by the local administration (ORMVA or DPA). There is a clear potential for the local administration to press for decisions that may supplant the community model of water management, traditionally more resistant to public authority than the associative model (apparently more receptive to local government impositions). Moreover, for a community of irrigators to have public support for the restauration of its water development project, it must organise as a WUA. Again, we can only guess the risks of financial penalties which await traditional communities that resist this form of organisation.

24 The second sticking point has to do with the practical arrangements for water management and the participation of irrigators if community models are replaced by WUA system. Field tests have shown how difficult it is to install the WUA model in areas of communal irrigation. The association is not easily accepted by elderly irrigators. The situation becomes more complicated when several villages get water from the same river (mountain irrigation). In this case, it is necessary to create as many WUA as there were djemaa, and a federation of the new WUAs is often required to join them together. In other communities, some WUAs put the oral customary rules in writing, which led to their redéfinition.This inscription was only possible with the support of local authorities (Bekkar et al., 2008). Occasionally, we see some local elites take over the management of water, gradually excluding the old people who had been in charge of water distribution (amghar, abbar, water guards). It is not surprising that challenging the authority of the amghar responsible for water distribution inevitably leads to conflicts of interest. In fact, the establishment of WUAs in the Haouz region is hardly a successful experience. Its tribal composition and the distance between tribal and village membership prevent cooperation external to the models recognized by the ancient djemaa (Raki & Ruf, 2006). Elsewhere, WUAs oscillate between a real WUA and a contractual association that is only activated when there is work to be done. The example of the WUAs in rural Ain Leuh (Province of Ifrane) is significant (Bekkar et al., 2008). It mediates between irrigtors and the administration. We believe that this sort of association, we may describe as contractual, must be legally recognized in such a way as not to undermine the traditional model of irrigation management, because it stays close to local realities and thus better able to meet the irrigators’ needs.

25 We believe that in old community irrigation areas where there has been a shift in social structure in recent years, this type of association may revive the old djemaa practices, and thus strengthen cohesion in the communities of irrigators. Without being unduly pessimistic, we notice that some oases undergo seri ous problems that threaten their sustainability. The causes for this are many. However, the social and environmental degradation and imbalance that have been observed do not involve all oases. Some imbalances are purely environmental (droughts, low flux of groundwater, salinization), while others are due to socioeconomic and institutional changes (population growth and pressure on natural resources, particularly on water resources, new agricultural ventures demanding greater water consumption, urbanization and fragmentation of irrigable land, new uses of water and state intervention without actual knowledge of oasis societies). The real problem is the issue of access to water. Faced with water scarcity in collectively owned hydraulic plants, some farmers rush to heavy investment in individual pumping. Admittedly, these pumps have improved the living conditions of

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 154

some farmers, allowing them to irrigate additional land and enter the market economy. They grow more vegetable crops that are economically more profitable than the traditional cereals. However, this does not benefit those who are bitterly disappointed as they see water beds getting lower and the foretold demise of their oasis. In some oases, khettara has been abandoned due to overexploitation of upstream ground water with wells equipped with motor pumps, and the use of collective pumping for the survival of the oasis (Ftaïta, 2010a).

26 We have analyzed the social, economic, legal and political implications of customary law and traditional institutions. What is the real scope of these customary rights today? Needless to say, the modernization of political and legal institutions in North Africa has resulted in the delegitimation of the old djemaa system and, therefore, of community- based models of water management. As we talk about decentralization policies and «good governance,» it would be wise to consider that the organizational structures of oasis communities are better able to respond to local constraints, and help them revitalizing both their material and immaterial heritage. The knowledge and expertise of oasis communities are instructive. They have demonstrated that these ecosystems are sustainable even under the extreme environmental conditions that characterize their habitat. Environment degradation and shifts in social structure accompany the absence or loss of legitimacy of traditional institutions and their customary rights.

BIBLIOGRAPHY

BÉDOUCHA, G. 1987. L’eau, l’amie du puissant, el-Mâ’ sâhib al-sultân. Une communauté oasienne du Sud tunisien. Paris: Édition des Archives contemporaines, coll. Ordres sociaux.

BEKKARI, L ; KADIRI, Z & N. FAISSE, N. 2008. « Appropriations du cadre de l’association des usagers des eaux agricoles par les irrigants au Maroc. Analyse comparative de cas au Moyen Atlas et Moyen Sebou ». In: M. Kuper & A. Zairi (éds). Economies d’eau en systèmes irrigués au Maghreb. Actes du troisième atelier régional du projet Sirma, Nabeul, Tunisie, 4-7 juin 2007 / http:// hal.cirad.fr/docs/00/26/20/57/PDF/16_Bekkari.pdf.

BOUDERBALA, N. 1984. « Le régime juridique des eaux à usage agricole au Maroc ». In: PASCON, Paul et al. (eds). La question hydraulique. Petite et moyenne hydraulique au Maroc. Graphitec: Rabat. pp. 45-117.

BOUDERBALA, N. 2000. « La loi nationale entre ciel et terre ». Etudes Rurales, 155-156. http:// etudesrurales.revues.org/document13.html

CHICHE, J. 1984. « Description de l’hydraulique traditionnelle ». In: PASCON, Paul Pascon et al. (eds). La question hydraulique. Petite et moyenne hydraulique au Maroc. Graphitec: Rabat. pp. 119-319.

EL ALAOUI, M. 2004. « Les pratiques participatives des associations d’usagers de l’eau dans la gestion de l’irrigation au Maroc: étude de cas en petite, moyenne et grande hydraulique ». Revue H.T.E, 130:75-84.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 155

EL FAIZ, M. 2008. « Les Innovations Sociales et Institutionnelles de L’irrigation au Maroc: Diagnostic et Résultats Du Projet ISIIMM ». http://www.medawater-rmsu.org/meetings/SMWRE/ Presentations/Les_résultats_du_projet_ISIIMM-Maroc.pdf.

FTAITA, T. 2010a. « Les Oasis entre tradition et modernité ». In: Gestion durable et équitable de l’eau douce en Méditerranée. Mémoire et traditions, avenir et solutions, Actes des Vème Rencontres Internationales Monaco et la Méditerranée, Monaco, 26-28, mars 2009, pp. 173-189.

____. 2010b. « L’hydraulique arabe, innovations techniques et transmissions des savoirs et savoir- faire ». In: T. Ftaita. (ed.). Ce que l’Occident doit aux Arabes. Cultures et sociétés, n°14. Editions Téraèdre.

____. 2006a. Anthropologie de l’irrigation. Les oasis de Tiznit. Maroc: Éditions l’Harmattan.

____. 2006b. « Structures politiques et irrigation dans le Maroc précolonial et colonial. Le cas des oasis de la tribu arabe des Oulad Jerrar ». Socio-anthropologie, n°17-18: 227-244.

____. 1999. « De l’eau d’irrigation à l’eau de la ville ». In: R. Ragain & E. Auphan. L’eau et la ville. Éditions CTHS. pp. 197-206.

GEERTZ, C. 1972. “The wet and the dry: traditional irrigation in Bali and Morocco”. Human Ecology, 1 (3):23-39.

HERZENNI, A. 1984. « Problématique de droits d’eau et d’irrigation ». In: PASCON, Paul Pascon et al. (eds). La question hydraulique. Petite et moyenne hydraulique au Maroc. Graphitec: Rabat. pp. 321-397.

HERZENNI, A. 2002. « Les ORMVA, les AUEA et la gestion participative de l’irrigation ». H.T.E., 124:37-47.

HUNT ROBERT, C. 1989. “Appropriate Social Organization? Water User Associations in Bureaucratic Canal Irrigation Systems”. Human Organization, 48(1):79-90.

LABONNE, M. 1995. « Ajustement structurel au Maroc: le secteur agricole en transition? » Options Méditerranéennes, Série B, 14:297-305.

OSTROM, E. 1992. Crafting institutions for self-governing irrigation systems. San Francisco: ICP Press, Institute for Contemporary Studies.

PASCON, P. 1984a. La maison d’Iligh et l’histoire sociale du Tazerwalt. Rabat: SMER.

PASCON, P. 1984b. La question hydraulique. 1Petite et moyenne hydraulique au Maroc. Rabat: Graphitec.

RAKI, M. & T. RUF. 2006. « La participation des usagers de l’eau des périmètres irrigués méditerranéens. Regards croisés sur deux modèles marocain et égyptien ». In: RICHARD, A. Richard et al. (eds). Coordinations hydrauliques et justices sociales. Actes du séminaire, novembre 2004, Montpellier, France. Cirad, Montpellier France, Colloques.

ROCHÉ, P. 1965. « L’irrigation et le statut juridique des eaux au Maroc. Géographie humaine, droit et coutumes ». Revue Juridique et Politique, Indépendance et Coopération, 1: 55120, 255-84 et 537-61.

MELLAKH, K. 2004. « État des lieux des Associations d’Usagers des Eaux Agricoles dans la Grande Hydraulique du Haouz ». Rapport provisoire projet MEDA-ISIIMM. Montpellier: Agropolis. SONNIER, A. 1933. Le régime juridique des eaux au Maroc. Édition Sirey.

WITTFOGEL, K. 1964. Le despotisme oriental. Paris: Édition de Minuit.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 156

NOTES

1. In Morocco, the experience of management association is not new. The 15 June 1924 Law establishing the ASP (Syndicated Associations Preferred) also authorized the establishment of free associations. These legal forms are the same as in France: ASA (Syndicated Associations Authorized eligible for public aid) and ASL (Free Union Associations). The latter aknowledges legal groups of irrigators by the administration. However, the ASPtype of association could not really work after Morocco’s independence. The experience of some associations formed by certain Regional Offices for Agricultural Development (Haouz, Sous), after consulting local authorities, had legal limits (Pascon, 1984b). 2. There are different types of oasis hydraulic works: springs, traditional dams, khettara or foggara called qanat in the Middle East (a kind of subterranean channel that collects groundwater and directs it to surface canals that irrigate agricultural fields [Ftaïta, 2010b]). 3. In the past, Rahn, or security transfer, was at the basis of real solidarity between oasis creditors and debtors. Any kind of property was subjected to Rahn (house, plot, fruit trees, water, etc.). This form of cooperation was fully consistent with the precepts of Islam’s governing credit. Both creditor and debtor had their interests preserved. At the end of each Rahn period, they could reclaim their property with no interest paid. Today Rahn is no longer tolerated, only leases are allowed in the modern legal frame. 4. This provision is not a general rule. In some oases, the water owners themselves divide ther water. 5. Unlike with other holders, these five tassa cannot be sold by the water guards who can only rent them. These water parts are called chemachi in reference to the sun (chemess). They only last one day (Ftaïta, 2006a).

ABSTRACTS

The social management of irrigation has emerged from local experiments where the social, religious, and political history of the communities involved is a determining factor for the understanding of the various methods of social and technical management of water and other natural resources. For this reason, oasis knowledge and expertise constitute an important material and immaterial heritage that has contributed to the establishment of several models for the collective management of water access, appropriation, and distribution. Nevertheless, far from living in a perpetual ethnographic present, local oasis communities are going through many transformations the consequences of which are already felt. This article describes, from an anthropological perspective, the models of oasis irrigation management, emphasizing their advantages in the context of the current institutional innovations in the field of participatory management of irrigation areas, biodiversity safeguards, climatic change, and effective water governance.

A gestão social da irrigação emergiu de experiências locais nas quais a história social, religiosa e política das comunidades envolvidas é um fator determinante para a compreensão dos vários métodos de manejo social e técnico da água e outros recursos naturais. Por esta razão, o conhecimento e a experiência oasianas constituem uma importante herança material e imaterial que tem contribuído para a criação de vários modelos para a gestão coletiva do acesso à água, sua

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 157

apropriação e distribuição. No entanto, longe de viver em um eterno presente etnográfico, as comunidades locais de oásis estão passando por muitas transformações cujas consequências já são sentidas. Este artigo descreve, a partir de uma perspectiva antropológica, os modelos oasianos de manejo de irrigação, enfatizando suas vantagens no contexto das inovações institucionais vigentes no campo da gestão participativa de áreas de irrigação, das salvaguardas da biodiversidade, alterações climáticas e governança eficiente da água.

INDEX

Keywords: oasis, irrigation, social management of water, local communities, water users associations, Morocco Palavras-chave: oásis, irrigação, gestão social da água, comunidades locais, associações de usuários da água, Marrocos

AUTHOR

TOUFIK FTAÏTA University Nice Sophia Antipolis

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 158

Representing Water: visual anthropology and divergent trajectories in human environmental relations

Veronica Strang

EDITOR'S NOTE

Recebido em 08/06/2011. Aprovado em 15/06/2011. Veronica Strang is an environmental anthropologist and Executive Director of the Institute of Advanced Study at Durham University. Her research focuses on human- environmental relations, and in particular on people’s relationships with water. She is the author of The Meaning of Water (Berg, 2004); Gardening the World: agency, identity and the ownership of water (Berghahn, 2009) and (co-edited with Mark Busse) Ownership and Appropriation (Berg, 2010). Named as one of UNESCO’s Lumieres D’Eau in 2007, she has published extensively on water issues in the UK and in Australia.

1 Because of the centrality of water in all aspects of human life, visual, textual and other representations of water are useful in articulating the cosmological beliefs and values – and the concomitant practices – that compose societies’ broader relationships with the material world. Anthropologists and scholars in related disciplines have therefore made comparative analyses of such representations to elucidate human-environmental relationships, cultural engagements with water and the cosmological principles that these express (eg. Davis, 1986; Drewal, 2008; Giblett, 1996; Morphy, 1991; Strang, 2002).

2 Similarly, earlier images of water and water beings help to illuminate people’s historic and even prehistoric relationships with water, and their cosmological frames (Chaloupka, 1993; Layton and Ucko, 1999; Oestigaard, 2005). This suggests that an analysis of water imagery has some potential not only to enable cross-cultural comparison, but also to assist efforts to understand historical changes in human-

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 159

environmental relations. Although there is a wealth of research concerned with changes in technology and material practices (eg. Juuti et al. 2007) and a broad literature describing religious and social developments (eg. Boomgaard, 2007; Harrison, 1999), the articulation between these remains somewhat elusive. This research therefore entails a systematic temporal and spatial comparative analysis of water imagery, with a view to drawing out important connections between cosmological and material changes in human engagements with water and with the broader ecosystems that societies inhabit. Thus it aims to trace the trajectories of human-environmental relationships by examining water imagery and its transformations in conjunction with contextual ethnographic, historical, archaeological and ecological data. This process will help to define the factors that have led to very different trajectories of development, and which continue to influence human-environmental engagements. The major goal of the research is to highlight key transformations and turning points that have led to divergences and to the diverse beliefs, values and practices that underlie contemporary conflicts over water.

Origins

3 Early images of water in many cultural and geographic contexts often focused on water beings: river gods and goddesses, dragons1 and leviathans. Emerging from origin centering on the creative, generative role of water, these beings possessed supernatural powers. Like the primal waters they represented, through involvement in hydrological cycles and through the generation of water and thus resources, they held a vital creative role in the ongoing production of people and environments. Classic examples include Mesopotamian figures such as Osiris; Celtic river beings; and the Australian Rainbow Serpent. Such figures inhabited animated, sentient land and water scapes, in which spiritual forces were seen as immanent aspects of the material world, to be engaged with and propitiated. They were thus integral to environmental relationships in which non-human and supernatural forces were positioned as collaborative (and sometimes more powerful) partners with human actors.

4 The preliminary research described here, which is part of a broader project, suggests that in many cultural contexts a key historical transition was a shift away from this focus on what may be called “nature religions” towards increasingly humanised religious cosmologies led by human or human-like figures. In Durkheimian terms,2 this indicates a fundamental change in human-environmental relationships, as perceptions of agency shifted from a location in ‘natural’ or supernatural forces to an assumption of human or superhuman direction. Indicative of a cosmological separation between humankind and other species, such changes form the basis for a more dualistic vision of nature and culture which, as various writers such have observed, has led to a distancing alienation in human-environmental relations (Descola and Palsson, 1996; Ingold, 2000). This, in turn, has enabled more competitive, adversarial modes of environmental engagement.

5 These divergent trajectories are evident in contemporary differences between those groups who have maintained notions of sentient environments with whom they interact collaboratively, and those for whom spiritual being has been abstracted from their immediate material surroundings and relocated in humanised spiritual beings. Central to this research is a question about how critical changes in water use – the

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 160

introduction of irrigation and other managerial technologies – intersect with these transformations in religious and secular ideas. Earlier research hinted at some important conjunctions between such transformative events, and suggested a useful “triangle” of foci of investigation, examining the relationships between cosmological ideas, material engagements with water, and representations of water and water beings. A fuller analysis of these key areas will test the hypothesis that a disembedding of spiritual beliefs from local material environments is linked with more directive – and increasingly exploitative – material practices and forms of resource use. This hypothesis implies a critical shift in a perceived balance of power, from relationships between societies and sentient co-directive environments, to relationships in which spiritual agency is humanised and human agency becomes dominant.

6 Diverse environmental relationships, and thus conflicts over resource use and management, are common in post-colonial societies, where indigenous peoples and their traditional belief systems have been engulfed by larger settler societies whose visions of the world have taken a more environmentally directive turn. In both Australia and New Zealand, for example, indigenous groups are now engaged in struggles to uphold their own cosmological concepts and values in societies that have adopted a much more managerial and utilitarian approach to the material environment. But the roots of such conflicts lie in the past.

Tracing the Past

7 Using water imagery to trace changes in environmental relations, and thus to illuminate past worlds, raises a number of theoretical and methodological challenges. The methods central to visual anthropology, which are so useful in deconstructing the relationships between people and environments, rely heavily on understanding the specific ethnographic context in which images and objects (as well as performative media) are produced and used. The analytic process of deconstructing textual and other discursive forms is equally reliant upon context: like images, these are ‘embedded and continually emergent phenomena’ (Barber, 2012: in press). Both visual and non- visual representational processes are ‘communicative acts’ which are dynamically co- produced between artists, speakers, performers and their audiences (Gal, 2012: in press).

8 A theoretical approach recognising this dynamism is illustrated, for example, by Morphy’s analysis of Aboriginal art in Australia (2010), which makes it clear that art production is not merely concerned with making ‘pretty pictures’, but is primarily a form of social action directed towards political goals and the protection of indigenous lifeways. Once produced, such images also have their own “life story”, acquiring new meanings and purposes as they move through different spatio-temporal contexts (Appadurai, 1986). Thus, as I have noted elsewhere, traditional images of water beings, once created primarily for the internal intergenerational transmission of knowledge, now have broader uses, as educational media that promote indigenous interests in contemporary political arena (Strang, 2010).

9 While maintaining an anthropological aim to contextualise representations as fully as possible, the temporal depth necessitates a more interdisciplinary methodology. It therefore also draws upon the analytic approaches of archaeology, art history, environmental history and religious history. As noted above, there are three key foci

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 161

for the investigation. First, by focusing primarily on visual images of water, it adopts deconstructive methods from visual anthropology and art history to consider the form of these images and their transformations over time. Where non-visual imagery – ie. related documentary evidence – is available, the same principles are applied to ask “how does this describe water and human relationships with it; how do these descriptions alter over time; what is their particular life story?” Second, it considers the broader cosmological beliefs and values particular to that temporal and spatial context. Third, the research juxtaposes these analyses with temporally concurrent evidence relating to societies’ material engagements with water. There is a wealth of archaeological and historical research on water use practices, such as the development of irrigation schemes, canals and so forth, which can assist this process (eg. Christie, 2007; Tvedt and Jacobsson, 2006).

10 By examining particular societal trajectories comparatively, the analysis seeks to reveal recurrent patterns of change and transformation. This comparative approach is essential to the project: there are some limitations as to how much context can be gleaned from historical material, particularly in trying to track changes over very long periods of time. Evidence is patchy and there are inevitably large gaps. Comparison provides further “triangulation” to the material, thus building a more robust analytic process.

11 The trajectories of human societies and their representational images are both temporally and spatially dynamic. Populations have shifted across geographic territories in steady trickles and sometimes in great waves of migration. Ideas and images have moved and changed with them, and sometimes without them, carried by travellers, traders, émigrés and into new contexts. Thus images of water now widely separated in location may share some common geographic and cultural origins. It is clear that ideas and images from the ancient world flowed in a number of different directions, and the way these developed in different temporal and spatial environments is telling. How, for example, did Mesopotamian ideas about creative water beings (Nommos) become the Mami Wata cult across Africa? What happened as these ideas crossed Asia? Why is there apparently such strong continuity in Aboriginal Australian images of the Rainbow Serpent? And what happened to ideas about Maori taniwhas as they sailed across the Pacific? To some extent, human-environmental relationships and the cosmological ideas that support them may be seen as the outcome of a process in which people, scattering around the globe from their original clusters, took with them understandings of the world that, like “Chinese whispers”, became transformed as they travelled through different times and places. Yet, even with multiple adaptations, they may retain vestigial links with common sources. Charting the movements of populations and ideas is therefore an important element of my project.

12 There are other potential commonalities. Anthropologists have written extensively about how humans use the material objects and processes of the world “to think with”. Thus Levi-Strauss observed that animals are “good to think” because they provide metaphorical imagery for a host of characteristics and behaviours applicable to humans (1966). Rival and others have described how different societies “think with” trees to imagine concepts such as growth and kinship (1998). Lakoff and Johnston have considered how the material world provides the basis for a plethora of metaphors (1980), and Bourdieu has pointed to human cognitive tendencies to form “scheme

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 162

transfers” that transpose one conceptual frame to another (1977). In my own work, I have considered how the particular characteristics of water and hydrological processes are used ubiquitously to imagine concepts of flow, movement, connection and creativity, observing that this cognitive employment of water’s material qualities has persisted over time as well as space (Strang, 2004b, 2005). In examining water imagery and water beings, therefore, it is useful to extend this thinking to consider how these embody both the material characteristics of water and hydrology, and the imaginative concepts that these facilitate.

13 This ‘material logic’ is evident in the characteristics of the beings seen to personify water. Many take the form of serpents which, as well as tending to disappear underground or into water bodies like streams of water, share the serpentine movements and shimmering colours of such streams, and their capacity for transformation into different forms. Some, like dragons and Rainbow Serpents, are also expressive of the abilities of water to rise into and descend from the skies; some, like leviathans and sea monsters, are more located in and expressive of the powerful undercurrents of rivers and seas. Like other supernatural creatures, water beings are often composites, and many contain the characteristics of local aquatic fauna: eels, crocodiles, and so forth. For example, Tacon et al (1996) suggest that the earliest Rainbow Serpent images in Australia are based on a ribboned pipefish Haliichthys Taeniophora found on the northern coastline of the continent.

Fig. 1: Pipefish, from Tacon et al 1996

14 The commonalities that recur in the form of water beings and the ideas they express can therefore be supposed to have a dual basis: in the spatio-temporal transmission of ideas and practices, and in the common material characteristics of water, water-like creatures, and local aquatic fauna, and the use of these as an imaginative resource.

15 The widespread historical presence of water beings and the consistency of their forms provides a wide range of potential lines of inquiry, to the extent that one could begin almost anywhere. A logical way forward is to consider a geographically and cultural diverse “sample” of locations, seeking out those which have the fullest historical records available. Preliminary research suggests that usefully comparative historical and pre-historical representational “threads” can be picked up in India, Latin-America, Africa, Canada, Japan, the UK, Scandinavia, Australia and New Zealand, There is no space here to embark upon a wide range of examples, but taking these last two cases, it is possible to draw out a couple of usefully illustrative strands.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 163

Tracking the Rainbow Serpent

16 Aboriginal people comprise about 2.5 percent of the Australian population. They are believed to have “beachcombed” and possibly boated their way to Australia along the coast of the Indian subcontinent and Indonesia, first crossing the (then much narrower)3 Torres Straits from Timor around 65,000 years ago, possibly in several waves of migration (Oppenheimer, 2003). Some of their earliest surviving images, for example the Gwion Gwion (Bradshaw) rock art paintings in the northern Kimberleys, are dated as being at least 17,000 years old, and depict people in boats, as well as offering pictures of deer, which have never been part of Australia’s fauna.

17 Like the groups that remained in Africa at that time, and the societies that settled en route, Aboriginal Australians were hunter-gatherers, making use of diverse local resources and living in small and widely scattered groups that moved systematically around their clan estates in seasonal patterns. Their environmental management was subtle, relying primarily on regular burning (to clear away snake-infested scrub and encourage “green pick” for game) and minor and rapidly biodegradable technologies such as small fish traps and weirs. The effects of “firestick management” have been much debated, but over many millennia it doubtless led to some alteration in the Australian landscape, favouring some plant and animal species over others, and possibly (along with hunting) leading the demise of some of these. But in migrating to an ecologically very fragile continent, it seems that Aboriginal population control and careful resource use enabled long-term sustainability, as well as a luxury of time in which to develop a highly sophisticated system of religious beliefs and practices which played a central role in managing this fine-tuned interaction between people and resources.

18 Through paintings of rituals and a range of natural and supernatural beings, early Aboriginal art works suggest that their cosmology constituted a classic “nature religion”. The earliest recorded rock art depicting Rainbow Serpents has been dated at approximately 6000 years ago (Chaloupka, 1993). As noted above, Tacon et al (1996) argue that this is modelled upon a local pipefish species. A plethora of such images then appeared across Australia, often incorporating elements of local fauna, but remaining fundamentally serpent-like.

19 The majority of the renditions of this figure are very serpentine in their form, expressing the formal qualities described previously and echoing the movements and characteristics of water. The recurrence of Rainbow Serpent beings in various forms in many parts of Australia, articulates core creative processes within Aboriginal cosmology: The belief in the Rainbow Snake, a personification of fertility, increase (richness in propagation of plants and animals) and rain, is common throughout Australia. It is a creator of human beings, having life-giving powers that send conception spirits to all the waterholes. It is responsible for regenerating rains, and also for storms and floods when it acts as an agent of punishment against those who transgress the law or upset it in any way. It swallows people in great floods and regurgitates their bones, which turn into stone, thus documenting such events. Rainbow snakes can also enter a man and endow him with magical powers, or leave ‘little rainbows’, their progeny, within his body which will make him ail and die. As the regenerative and reproductive power in nature and human beings, it is the main character in the region’s major rituals (Chaloupka, 1993:47).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 164

Fig. 2: Arnhem Land bark painting, showing Rainbow Serpent with ancestral beings inside. Pitt Rivers Museum Oxford

Fig. 3: Rainbow Serpent bark painting by Jimmy Njiminjuma in Tacon et al 1996

20 As this quote implies, there are multiple “Rainbow Story Places” all over Australia, containing serpents of various kinds. These can be female or male, and are often apparently androgynous. Not only does their dual gender underline their role as equal life creators, it also contrasts with more dualistic visions in which “nature” is envisaged as female.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 165

Fig. 4: Arnhem Land painting of the daughter of the original female Rainbow Serpent,Yingarna. Artist Bardyal Nadjamerrek. Aboriginal Art Online

21 The Rainbow Serpent (or Rainbow as it is sometimes called) is not merely expressive of water, it may be said to be composed of water, representing aquatic flows through the environment (Strang, 2002, 2009a. See also Barber, 2005; Morphy and Morphy, 2006). Thus in Cape York, indigenous elders explain that the visible semi-circle of the rainbow, which arches over the land, is linked with its invisible “other” half, which inhabits the underground domain of the ancestral forces. Like water – as water – these forces creatively generate everything that is materialised and “becomes visible” in life and which, at death, returns to this immanent pool to be hydrologically recycled.In the Dreamtime, the Serpent generated the totemic species, usually animals and birds,4 who became the ancestors of subsequent human clans. It carved out rivers, pushed up hills, and created whole species of plants and animals before pouring back into the ground, where it remained, emanating power that even now has to be approached with care. Thus the most dangerous sacred sites (or poison places as they are called in northern Queensland) are those of Rainbow Serpent beings.

Fig. 5: Rock art serpents in Mungana Caves, north Queensland

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 166

22 In an oral culture these are contemporary or recent explanations of course, but the rock art and other archaeological evidence indicates considerable longterm stability in ideas and practices. That is not to say that Aboriginal ideas and lifeways have remained unchanged since the first migrants made their way across the Straits: merely that these seem to have been intensely conservative. This is borne out by descriptions of cosmological principles in which human beings, emerging spiritually from ancestral water sources, are exhorted to relive the lives of their totemic ancestors, learning their lexicon of bush lore, practising their rituals, and making use of local resources according to the blueprint provided by the ancestral stories, songs and images through which these ideas are transmitted intergenerationally. Within this mode of engagement, the ancestral beings, and the Rainbow Serpent in particular, define who belongs where, who has what rights, who can access resources, when and how. The Rainbow Serpent acts as a protective being, enforcing the Law if necessary. Thus there are multiple parables about how those who transgress (for example by entering places or taking resources without permission) will be swallowed by an angry Rainbow Serpent.

23 Thus one of the key things to be generated by the Serpent is knowledge and power. For example, ethnographies of Cape York describe a traditional ritual that entails being swallowed by the Rainbow Serpent. Unsurprisingly this centres upon immersion in water. In the swallowing and regurgitation process the initiate is given secret, sacred knowledge that opens the door to becoming a shaman or “clever doctor” (Taylor, 1984). Along with this ritual, traditionally undertaken only by a few people, all members of a community undergo various stages of initiation into the deeper sacred knowledge that lies at the heart of the Law. Provided at various stages of life, this gives elders the highly egalitarian gerontocratic power that constitutes Aboriginal forms of governance. It is the collective responsibility of the elders to ensure that such knowledge is passed on. In this sense, the regenerative powers of the Rainbow Serpent, and the circularity of the hydrological cycle, provide a perfect metaphor for the way that cosmologies and cultural heritage are perpetuated over time (Strang, 2011).

24 This reliable intergenerational process was obviously much disrupted by the arrival of European settlers in the late 1700s. There was an intensely traumatic period of violence in which indigenous populations were both decimated and dispossessed of their land, then dragooned into providing unpaid labour for colonial economic endeavours. There was no Treaty acknowledging their rights, as occurred in New Zealand; nor did they live in large and powerful tribal groups, being scattered widely and vulnerably in small clans. Missionaries went to considerable lengths to separate young people from the elders responsible for holding and transmitting traditional knowledge, and forbade the enactment of indigenous rituals.

25 With the settlers came a combination of Christian ideas of dominion and stewardship over “nature”, and a secular, pragmatically managerial view of the material environment. The long struggle for Aboriginal rights in Australia, which began with resistance to the colonial invasion, was followed by a long period of subjugation. Indigenous communities, pushed into enforced labour or missionisation, often led “double lives” in which traditional beliefs and practices were quietly maintained. Rather than replacing local belief systems, Christianity was overlaid like a larger umbrella over these. Traditional beliefs were already “underground” in a way, and

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 167

could quite readily be rendered invisible to colonial eyes, at least until the ancestral landscape was more directly threatened.

26 But early European settlement in many areas was also driven by a desire for gold, and this aggressive invasion, not just of the land, but into the ancestral domain itself, was agonising to the indigenous population. For much of the colonial period their protests went unheard, but following the civil rights movement in Australia in the 1960s, which gave voice to indigenous concerns, there were many anguished protests about rapidly increasing mining activities and the dangers of penetrating the domain of the Rainbow Serpent. Indigenous protesters argued that such intrusion could kill generative ancestral beings (Kolig, 1987; Merlan, 1998; Strang, 2004a); it could threaten the health of their related human clans; and it could undermine the capacity of the land to provide resources for people and other species. It might even rile the Rainbow Serpent to the extent that it would emerge apocalyptically: “If the rocks of the mountain are disturbed the giant snake will emerge and destroy everyone in the world” (Lea and Zehner, The Australian Financial Review, 16 July, 1973). In indigenous terms, as this apocalyptic vision demonstrates, because the Rainbow Serpent “holds” and embodies the Law that constitutes Aboriginal society, the idea of its destruction is indeed “the end of the world”. The Serpent and the hydrological cycles it represents are essential to the proper flow of events. Thus, in more recent years, proposals to dam waterways have elicited similar concerns, with activists protesting that such impediments to the movement of water will have dire effects (Strang, 2009b).

27 In the context of these protests, visual, textual and performative images of the Rainbow Serpent acquired multiple uses. They retained their traditional purpose in encapsulating the key elements of Aboriginal cosmology, describing a human- environmental relationship in which a material environment, imbued with sentient ancestral forces, worked in partnership with the human groups whose spiritual and social identity arose from and remained connected to the water circulating in and out of the land. But rising concerns about mining, as well as the land rights movement which gathered force in the 1970s, necessitated the outward explanation of Aboriginal culture. Images of the Rainbow Serpent therefore became integral to an educational process via which indigenous people hoped to communicate an understanding of their world to the wider Australian society. This, they believed, would engender greater respect for their beliefs and values and assist their claims for the restitution of lost lands.

28 This communicative effort has had some real effect, enabling sufficient understanding of how ancestral beings constitute relations between people and places to provide the basis for the Native Title Act in 1993. This – after 200 years of denial – acknowledged that had indeed had a system of land ownership prior to European settlement, and (building on earlier legal efforts)5 attempted to enshrine key indigenous principles in contemporary legal forms. This opened the door to a land claim process which, though it created an intense conservative backlash, has gone some way towards the restoration of rights to indigenous communities. Thus the Rainbow Serpent is not only used to speak for indigenous interests, it continues, in a contemporary setting, to play a key role in the creative regeneration of their lifeways.

29 Indigenous people in Australia now have what Altman calls a “hybrid” economy (2006), based on the maintenance of some traditional economic practices along with income from welfare and other forms of employment. But many communities, and particularly

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 168

those who have retained or regained their traditional “country”,6 continue to promote beliefs and values that express key elements of a longstanding egalitarian human- environmental partnership. That is not to say they haven’t learned (as they put it) to “talk the talk” of mainstream, much more human-centred approaches to environmental management: they have done so very effectively. For example, in the Mitchell River area of Cape York in the early 1990s, the indigenous community of Kowanyama initiated one of the first river catchment management groups in Australia. The same community has astutely reformed the traditional role of young “warriors” in protecting clan land to create “Aboriginal Rangers”, making use of the language and authority of park rangers in a way that succeeded in protecting a whole range of indigenous interests (Strang, 1998, 2001). Rather than merely controlling tourist activities, these Rangers protect local resources, tracking down illegal fishers and ensuring that sacred sites are protected. They look after small groups relocating to “homelands”, as well as the broader interests of the community. They also provide a useful interface with other land and water managers in the area, and are central to the community’s efforts to regain ownership or at least some control of land and water appropriated in the colonial era.

30 While there have been some efforts to promote the idea of bi-cultural governance in Australia, the small Aboriginal population, for the most part, retains aims that sit outside rather than in partnership with those of state and national governments. In a variety of ways, indigenous people continue to resist the imposition of governance, creating, in their own communities, what Scott describes as areas of Zomia which in subtle ways try to evade state and federal control (2009). Their aspirations are to maintain their own trajectory of development, and to support lifeways that adhere to their own beliefs and values. In this context it could be said that the Rainbow Serpent continues to maintain a powerful presence, resisting mainstream flows and regenerating a subaltern cosmos.

Fig. 6: Rainbow Serpent on water tank in Kowanyama, north Queensland

Across the Tasman

31 Maori people constitute about 16 percent of the New Zealand/ population. Mitochondrial DNA evidence indicates that their ancestors came from south-east Asia, via Taiwan, island southeast Asia and the southwest Pacific (Chambers, 2008; Whyte et

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 169

al. 2005). Evidence provided by Lapita pottery locates them in the Bismarck Archipelago, east of New Guinea, about 3,500 years ago, and it appears this population expanded eastwards from there, with their East Polynesian descendents possibly travelling as far as South America. They left a trail of Lapita materials through Melanesia, and into Fiji, Tonga and where, in the first millennium BC, they established what is now recognised as (Sheppard et al. 2009). There is further contention as to exactly when and how this population came to New Zealand: longstanding stories of a single “Great Fleet” arriving in about 1350 have been questioned by suggestions of several waves of migration from Tahiti and the Marquesa Islands about 1000 years ago and by recent evidence that various groups made their way from the Cook and Society Island region (Howe, 2006). 7The idea of a Great Fleet is central to Maori traditions though, describing the arrival of a number of canoes (wakas) from a mythical place of origin called Hawaiiki, whose particular crews provided the basis for subsequent tribal groups.

32 These groups settled first around the more temperate eastern coasts of New Zealand/ Aotearoa, making a living through a mix of hunting and gathering and crop cultivation, the proportion of each depending on local conditions. The hunting resulted in the extinction of some of some species, most notably the various types of , a massive, flightless bird whose meat, bones and feathers were much in demand.8 Some large areas of forest were burned too, to clear land for horticulture, and this had impacts on a number of species; but, overall, Maori economic activities remained fairly low key and thus sustainable.

33 However, cultivation was a meaningful part of the Maori economy, and distinguished the Polynesian migrants from the hunter-gatherers across the Tasman in several key ways. It both required and enabled a greater degree of settlement and larger clusters of people, which encouraged the development of a more hierarchical set of social arrangements. Compared to Aboriginal Australians’ more subtle managerial activities, it involved somewhat more directive environmental engagement. As well as some land clearing and levelling, cultivation meant fences,9 agricultural tools, planting and harvesting. The Maori settlers had brought with them a variety of plants, including sweet potatoes, , gourds and yams, and (with what must have been careful planning) less readily portable plants, such as mulberry trees. Though there is no evidence that they brought rice, Best suggests that they retained linguistic terms for it (ari and vari) (1941: 355), presumably from earlier use of this crop in South-east Asia. Rice had been brought to that region in the late Neolithic period by Austronesian speaking peoples, and it is there that archaeologists have found the first evidence of rice cultivation (Christie, 2007). In fact, South-east Asia was the home of some of the world’s earliest irrigation schemes. Swamps and wetlands were modified for taro production both there and in the New Guinea highlands at around 7000 BCE (Ibid.). The forebears of the Maori were thus part of one of the first human ventures into more directive forms of engagement with water.

34 Having arrived in New Zealand with an orientation towards cultivation, Maori groups had some practices in common with the European settlers who followed only a few hundred years later. Though the latter were farmers rather than shifting cultivators, and their technologies were more diverse than those of the Maori, their production was initially small in scale and focused heavily on subsistence-level provision of food for a small community of settlers. Thus, at least at the beginning, their economic practices

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 170

didn’t differ massively from those of the indigenous population. Obviously this changed as cattle and sheep were imported from Europe in larger numbers and farming began to intensify. The rapid forest clearance caused by a hungry timber trade also presented radically different ways of using resources. But, at least at the outset, there was some common ground in the respective economic modes of both communities, which may have made it more feasible for their developmental trajectories to converge. Unfortunately, common ground was also a problem: as European settlement expanded, competition for land grew fiercer, leading to violent conflicts over territory. But compared to events in Australia this colonial conflict was much more equal in force. Though European technologies allowed the later colonists to prevail and to subjugate the Maori people to some extent, they also had to negotiate and make agreements with them, based in part on the , signed in 1840 in an effort to bring the violent conflicts to an end. The meanings and translation of this treaty remain much contested but, whatever its limitations, it opened a potential path to bi-cultural governance between the Maori and the European settlers, and led events towards the potential co-ownership and management of resources. It has consequently been possible for Maori groups to participate in social, political and economic practices at a national level. Though rural communities still struggle economically and educationally, there is now a large Maori middle class which participates fully in these processes, taking the lead in multiple negotiations about land, water and resources. This engagement seems to have had a considerable effect on indigenous relationships with the material environment, and these effects are discernible in changing cosmological ideas, discourses and representations.

35 The traditional cosmology contextualising and directing Maori lifeways was reflective of the mixed economy brought by from the Pacific. It describes both non-human and human agency. Water is portrayed as a primal source of power and creativity, and origin myths describe a water god called forming the world out of an era of creative chaos (te kore).There were other major gods, both male and female, representing the various aspects of the environment. And there were also human – or rather superhuman – figures in this creative era: ancestors who journeyed, hunted, fished and so forth. For example, New Zealand itself was pulled up out of the water by Maui, a major creative figure.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 171

Fig. 7: House post (epa) in , 1919.The figure at the top is a marakihau, or sea taniwha. Carving by Te Tuiti-Moeroa. Puke Taranaki Museum & Library

36 As well as comprising a key element in origin myths, water contained other supernatural beings, water serpents such as taniwha and marakihau (sea taniwha). In the creative era, it formed vital connections between people. Muru-Lanning describes, for example, how ancestral beings created the rivers of the Waikato region, establishing critical social and spiritual connections between the (tribal communities) along their banks (2010).

37 The generative era also produced a world imbued with a sentient ancestral force, mauri, which, like the ancestral forces across the Tasman, remains immanent in all aspects of the material environment. Water’s powerful mauri is indicated by a belief that the human spirit returns to water upon death: each must journey to the very tip of New Zealand, where the Pacific and Tasman seas meet, to slide down a pohutakawa tree root into an aquatic spiritual realm. The material environment is also regarded as being inhabited by a variety of spiritual beings, including the kaitiaki: guardian spirits whose role is to protect sacred places. The serpentine taniwha is one of these guardians, a water being whose powerful nature is indicated by the fact that this word can also be translated as ‘chief”. Thus a tribal saying (pepeha) about the Waikato River, “He piko he taniwha, he piko he taniwha, Waikato taniwharau”, is translated as “At every bend a taniwha or chief, at every bend a taniwha or chief, the Waikato River of one hundred taniwha (chiefs)” (Muru-Lanning 2010:116).

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 172

Fig. 8: Taniwhaon the Main Gates at TurangawaewaeMarae in Ngaruawahia. Photo: MaramaMuru- Lanning

38 Images of taniwha appear recurrently in Maori artworks, most particularly in the traditional carvings that decorate meeting houses () and other key places. There is evidence of earlier usages, for example in the rock paintings in a cave shelter beside the Ōpihi River in South Canterbury.The form of the taniwha varies, but these are all variations on a theme: it remains a classic water being, sinuously combining elements of serpent and dragon, and sometimes other aquatic species. It may be plumed or feathered, but it is indubitably a water creature, with shimmering and sometimes multi-coloured scales, and a long, snake or eel-like tail which sometimes ends in a fishtail.

39 Its powers come into play when the sites of which it is a guardian are threatened. A taniwha called Tuhirangi was said to have accompanied a mythical explorer, , in his voyage to New Zealand, and to have been placed by him as a guardian in the Cook Strait. In the period since European colonisation, taniwhas have often been called upon to express resistance to the damming or diversion of waterways. Echoing indigenous protests across the Tasman, Maori activists have articulated concerns that such interference with water and its mauri runs contrary to the principles of order underpinning their traditional beliefs, impeding the proper movements of human and environmental processes.

40 In many ways, the notion of mauri, like descriptions of the Australian Rainbow Serpent’s creative and retributive powers, provides a clear assertion of the agency located in water, as does the presence of taniwha who may be interpreted as a concentrated, personified manifestation of ancestral forces. To this extent, it is clear that like Australian Aboriginal belief systems, Maori cosmology locates considerable agency in non-human things, and promotes values of reciprocal care between people

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 173

and their material surroundings. But there has also been some apparent divergence in the trajectories of each group, most particularly in recent years.

Becoming Human

41 The Australian Rainbow Serpent is depicted as a non-human creative figure which is only “ancestral” to the extent that it generates human spirit beings (usually spewing them into the world). It also generates all of the other totemic ancestral beings, the animals and birds, whose creative journeys across the landscape combine accounts of the physical and behavioural characteristics of those species with more human kinds of events and practices. These beings are often transformed from animal to human form, or vice versa. Such transformations can also occur in Maori mythology. For example, Orbell recounts a from the Waikato region which describes how an ancestral chief, Tuheitia, was drowned by a jealous brother-in-law and became a taniwha who has since reappeared to the local to warn them of impending danger (1995:224).

42 However, the taniwha comes from a somewhat more humanised religious tradition, and unlike the rainbow serpent it is often depicted with a human face (usually decorated with traditional (moko). In the Waikato region, the language describing the river as a “river ancestor”, Tupuna Awa, also implies human characteristics, locating this ancestry alongside customary genealogies, which describe in detail each family’s long lines of connection back to the original waka of the Great Fleet. Thus not just rivers, but also mountains, and other features of the local environment, are placed within a single genealogical system. This incorporation is clear in evidence presented to the Environment Court in an earlier dispute over the Waikato river: This genealogical relationship is one of the foundations upon which the Maori culture is based. It is known as “whanaungatanga”. Whanaungatanga in its broadest context could be defined as the interrelationship of Maori with their ancestors, their whanau, hapu, and iwi as well as the natural resources within their tribunal boundaries e.g. mountains, rivers, stream, forests etc (Ngati Rangi and Ors decision, 2004:28, in Muru-Lanning, 2010:56).

43 The inclusion of aspects of the material world into this single genealogy is indicative of some sense of shared human-environmental agency, but it involves an incorporation of non-human things into a human system, rather than – as in Australian indigenous cosmological ideas – the incorporation of human groups into a totemic system defined by non-human figures. Though they sometimes take the form of animals and birds, key Maori ancestral beings are most often human or semi-human. And the way of life described in their ancestral stories places greater direction and power over the material world in human hands.

44 As well as being more inclined to give the balance of agency to humans, traditional Maori cosmology has been greatly influenced by Christianisation. efforts in the Pacific were either more forceful or persuasive than in Australia. Possibly Christianity simply meshed more readily with the Maori cosmos, with its greater emphasis on humanised religious figures and its relatively steep hierarchies which already contained notions of higher ranking gods and even a supreme being (Io). At any rate, Christian evangelism achieved a much more integrated, tighter hold on people’s lives, being fully and enthusiastically adopted in many Pacific communities, including those who came to New Zealand.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 174

45 As I have observed elsewhere (Strang, 1997), though there are vestiges of previous, more nature-oriented belief systems in the early parts of the Bible, Christianity places the agency in human-environmental relationships squarely in the hands of a humanised and male God, framing the material environment, including water, as subject to and an expression of His will. Thus God sends the rain to fertilise the earth and feed the world – or sends floods to punish unruly human societies when they transgress. In Biblical mythology, paganism, in the form of the serpent, is invariably slain by male culture heroes. The relevance of this assertion of human authority over water beings is well expressed by Maori interpretations of the figure of St George and the Dragon, an image which appeared on the gold sovereigns brought to New Zealand by British settlers: In Te Ao Hou in March 1959, Leo Fowler, born in 1902, described a story told to him about how the dragon slain by St George on the sovereign represented a taniwha: “Personally, I have never seen a taniwha, nor I expect have readers. I have met some who told me they had seen one, and they were people I had every reason to respect and to believe. My old friend Nepia Pomare, (a Ngapuhi and my Maori godfather) once told me that the taniwha on our gold sovereigns was not unlike a taniwha he had once seen. This taniwha, whose name he could not utter, (so tapu was it) had a body very like that of the taniwha on the sovereign, but the wings were only partly formed and the head was the head of a manaia [stylised carving of a supernatural being]” (Basil Keane. ‘Taniwha’, Te Ara the Encyclopedia of New Zealand, updated 1-Mar-09URL: http://www.TeAra.govt.nz/en/taniwha/7/3).

Fig. 9:The British gold sovereign. (Basil Keane.‘Taniwha’,Te Ara the Encyclopedia of New Zealand, updated 1-Mar-09 URL: http://www.TeAra.govt.nz/en/taniwha/7/3)

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 175

Fig. 10:Tāmure defeating the taniwha. Artwork by Manu Smith (in Bacon 1996:12)

46 There is a Maori myth which echoes this subjugation of a powerful water being. It describes how a hero called Tāmure wrestled with a man-eating sea taniwha that lived in an underwater cave at Piha (a beach just west of , where rip tides regularly drown swimmers). He hit it with his greenstone weapon (mere ) which had the power to overcome any taniwha, injuring it so that it no longer ate people (Bacon, 1996). Such epic battles are common in Maori myths, valorising human dominance over other species or the elements, and, like the St George legend, presenting an image of powerful masculine culture triumphing over “the other”.

47 However, St George and Tāmure are the least of the threats to the survival of water serpent beings. Growing out of Judao-Christian moves to valorise rationality, science has overtaken St George and the other dragon slayers in killing off mythological water beings and establishing the dominance of male “culture” over (increasingly) female “nature”. Though vestigial ideas about energies and consciousness persist, a rationalist perspective has also had a dampening effect on ideas about sentience and agency in land and waterscapes. Most contemporary water management deals with the material environment in secular Cartesian terms, adopting a techno-managerial mode of engagement which is more concerned with measurement than with meaning. The influence of this scientific worldview, along with the embracing of Christianity, have given rise to some changes in Maori relations with water, and this is reflected in some striking differences between the images of water beings produced in the first half of the 20th century, and contemporary art works, which are more clearly humanised, suggesting a further shift in the location of agency.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 176

Fig. 11: Marakihau in the meeting-house called Poho-o-Rawiri at Gisborne. Carved by the late Tama te Kapua Raihi (Journal of the Polynesian Society, 1957: 3)

Fig. 12: Contemporary Marakihau by Lisa Reihana, Museum of New Zealand Te Papa Tongarewa

48 Though taniwha are still called upon regularly in New Zealand to attest to the subaltern belief system subsumed by Christianisation, unlike Rainbow Serpents, they do not

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 177

propose a wholly “other” way of engaging with land and water, in which agency is shared equally between humans and non-humans. The image of the taniwha is employed, instead, to support the authority of human groups. In recent years this difference has become more pronounced. MuruLanning observes that powerful contemporary leaders can be represented (or represent themselves) as taniwha: The symbolism of taniwha, chiefs, kaitiaki and guardians are also manipulated by core members of the Kingitanga to denote Waikato iwi and the Kingitanga’s authority in relation to the river. Indeed, many people perceived Robert Mahuta as a great taniwha when he was alive as he was not only a well known chief but also a self-professed kaitiaki of the river (2010:116).

49 Writing about contemporary negotiations over the control and management of the Waikato River, she notes that there has been a key discursive shift in the terminology used to describe the ancestral role of the river: Tupuna Awa defined the Waikato River as an important tribal ancestor. In contrast, Waikato-’s river negotiators and Crown officials subsequently embraced the idiom of Te Awa Tupuna, translated as “ancestral river”, which redefines Waikato Maori understandings of the river. This discourse emphasises iwi identity, iwi partnerships with the Crown and a vision of co-managing the Waikato River (2010:ii).

50 This shift towards a more managerial mode of engagement is also illustrated by the replacement of the phrase “Guardians of the Waikato River”, agreed as the descriptor for a joint management agreement between the Crown and Waikato-Tainui Maori in 2008, with “Waikato River Authority”, which is quite literally more authoritative in its reframing of the relationship between people and water (Muru-Lanning, 2010:11).

51 It appears, therefore, that Maori groups are not just “talking the talk” in relation to introduced notions of environmental management, they are also “walking the walk”, by integrating its precepts into their own activities. Their political efforts to regain ownership or control over land and water are aimed not at a separate Zomia in which their own subaltern traditions are revived and upheld, but towards the achievement of equal bi-cultural management of the country’s resources. Building on the initial Treaty of Waitangi (1840), they have been successful in ensuring that this role has been legally recognised, for example in the Resource Management Act (1991) which includes various provisions for the consultation and inclusion of Maori in decision-making processes.

Conclusion

52 It appears that the worldviews of indigenous communities in both New Zealand and Australia have been considerably influenced by the introduction of European ideas and practices in the period since colonisation. These influences are apparent not only in their representations of water beings, but also in their use of these in legal and political arena to promote indigenous aims and interests. However, it is also clear that, although their cosmologies have some important common elements, there has been a much lengthier divergence in the trajectories of their particular human-environmental relationships. Aboriginal Australians have maintained an intensely conservative belief system, which has proved highly resistant to change, even in the most traumatic of colonial circumstances. The underlying precepts of this system, which comprise a true “nature religion” in giving significant agency to non-human species and things, continue to guide their lifeways. Thus, though willing to “talk the talk” sufficiently to

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 178

co-manage resources and have a voice in the decision-making processes of a wider Australian society, they are unwilling to discard the close, affective and egalitarian relationships with places that provide core meanings in their lives.

53 Maori groups in New Zealand arrived on its shores with a religious cosmology that, although it gave considerable agency to non-human species and things, was more hierarchical in its form, had already incorporated more directive modes of environmental engagement, and was more inclined to place the balance of power in human and particularly in male hands. This worldview resonated more readily with the ideas introduced by Christian missionaries and colonists, providing sufficient common ground to form the basis of a potential co-managerial approach. It may therefore be seen that, rather than seeking to diverge radically, the trajectory of Maori human- environmental relations has run in a direction that, if not quite parallel, has shifted increasingly to run in accord with that of the European settler society in New Zealand, albeit with some intention of pulling the latter towards its own aims.

54 As these case studies illustrate, a comparative examination of changing ideas and representations of water over time in two indigenous communities provides some insights into the parallels and divergences in the trajectories of their respective human-environmental relationships. It illuminates the ways that they balance power and agency in these interactions, with concomitant effects on the human and non- human participants.

BIBLIOGRAPHY

Aboriginal Art Online. Accessed 29.5.11. D:\Documents and Settings\loanpool\My Documents\Research\Dragons\Dragons pics (all)\Rainbow Serpent and the Dreamtime Aboriginal Art Online.mht

ALTMAN, J. 2006. “Nomads Triumphing Today: how some hunters in Arnhem Land engage with the State, the market and globalisation”. Seminar paper. University of Auckland, May 3rd 2006.

APPADURAI, A. 1986. The Social Life of Things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press.

BACON, R. 1996. A Me Te Taniwha. Auckland: Waiatarua.

BARBER, K. 2012. “Interpreting Texts and Performances”. In: R. Fardon et al. (eds). A Handbook of Social Anthropology. London: Sage.

BARBER, M. 2005. “Where the Clouds Stand: Australian Aboriginal Relationships to Water, Place and the Marine Environment in Blue Mud Bay, Northern Territory”. PhD Thesis, Australian National University.

Best, E. 1941. The Maori. Volume II. Wellington: The Polynesian Society.

BOOMGAARD, P. (ed.). 2007. A World of Water: rain, rivers and seas in Southeast Asian histories. Leiden: KITLV Press.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 179

BOURDIEU, P. 1977. Outline of a Theory of Practice. Transl. R. Nice. Cambridge: Cambridge University Press.

CHALOUPKA, G. 1993. Journey in Time: the 50,000-year story of the Australian Aboriginal rock art of Arnhem Land. Chatswood, N.S.W.: Reed.

CHAMBERS, G. 2008. “Genetics and the Origins of the ”. In: Encylopedia of Life Sciences. Chichester UK: John Wiley.

CHRISTIE, J. 2007. “Water and Rice in Early Java and Bali”. In: Peter Boomgaard (ed.). A World of Water: rain, rivers and seas in Southeast Asian histories, Leiden: KITLV Press. pp. 235-258.

DAVIS, W. 1986. The Serpent and the Rainbow. London: Collins

DESCOLA, P. and PALSSON, G. (eds). 1996. Nature and Society: anthropological perspectives. London: Routledge.

DREWAL, H. 2008. Sacred Waters: arts for Mami Wata and other divinities in Africa and the diaspora. Bloomington: Indiana University Press.

DURKHEIM, E. 1966. The Elementary Forms of the Religious Life. New York: Collier Books.

GAL, S. (in press). “The Role of Language in Ethnographic Method”. In: R. Fardon, O. et al. (eds.). A Handbook of Social Anthropology. London: Sage.

GIBLETT, R. 1996. Postmodern Wetlands: culture, history, ecology. Edinburgh: Edinburgh University Press.

HARRIS, R. 2003. “Making a Place for Taniwha in Culture and Law”. Resource Management Journal, 11(1):18-22.

HARRISON, P. 1999. “Subduing the Earth: Genesis 1, early modern science, and the exploitation of nature”. The Journal of Religion, 79(1):86-109.

HOWE, K. 2006. Vaka Moana. Voyages of the ancestors: the discovery and settlement of the Pacific. Auckland: Bateman.

INGOLD, T. 2000. The Perception of the Environment. London: Routledge.

JUUTI, P.; KATKO, T. and VUORINEN, H. 2007. Environmental History of Water: global views on community water supply and sanitation. London: IWA Publishing.

KOLIG, E. 1987. The Noonkanbah Story. Dunedin N.Z.: University of Otago Press.

LAKOFF, G. and JOHNSON, M. 1980. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago Press.

LAYTON, R. and UCKO, P. (eds.). 1999. The Archaeology and Anthropology of Landscape: shaping your landscape. London: New York: Routledge.

LEA, J. and ZEHNER, R. 1986. Yellowcake and Crocodiles: town planning, Government and society in northern Australia. Sydney, Boston, London: Allen and Unwin.

LÉVI-STRAUSS, C. 1966. The Savage Mind. Chicago: University of Chicago Press.

MERLAN, F. 1998. Caging the Rainbow: places, politics and Aborigines in a north Australian town. Honolulu: University of Hawai’i Press.

MORPHY, H. 1991. Ancestral Connections: art and an Aboriginal system of knowledge. Chicago: Chicago University Press.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 180

____. 2010. “Not Just Pretty Pictures”: relative autonomy and the articulations of Yolngu Art in its context”. In: V. Strang and M. Busse (eds.). Ownership and Appropriation. Oxford, New York: Berg. pp. 261-286.

MORPHY, H. and MORPHY, F. 2006. “Tasting the Waters: discriminating identities in the waters of Blue Mud Bay”. Journal of Material Culture, Vol 11(1/2):67-85.

MURU-LANNING, M. 2010. “Tupuna Awa and Te Awa Tupuna: competing discourses of the Waikato river”. PhD Thesis. University of Auckland.

OESTIGAARD, T. 2005. Water and World Religions: an introduction. Bergen: SFU and SMR.

OPPENHEIMER, S. 2003. Out of Africa’s Eden: the peopling of the world. Johannesburg: Jonathan Ball.

ORBELL, M. 1995. Maori Myth and Legend. Christchurch: Canterbury University Press.

RIVAL, L. (ed.). 1998.The Social Life of Trees: anthropological perspectives on tree symbolism. Oxford, New York: Berg.

SCOTT, J. 2009. The Art of Not Being Governed: an anarchist history of upland Southeast Asi. New Haven: Yale University Press.

SHEPPARD, P., THOMAS, T. and SUMMERHAYES, G. 2009. Lapita: Ancestors and Descendants. Auckland: New Zealand Archaeological Association.

STRANG, V. 1998. “The Strong Arm of the Law: Aboriginal Rangers and Anthropology”. Australian Archaeology, December 1998, nº 47:10-29.

____. 2001. “Negotiating the River: cultural tributaries in Far North Queensland”. In: B. Bender & M. Winer (eds.). Contested Landscapes: movement, exile and place. New York: Berg. pp. 69-86.

____. 2002. “Life Down Under: water and identity in an Aboriginal cultural landscape”. Goldsmiths College Anthropology Research Papers, nº. 7. London: Goldsmiths College.

____. 2004a. [2001] “Poisoning the Rainbow: cosmology and pollution in Cape York”. In: A. Rumsey & J. Winer (eds). Mining and Indigenous Lifeworlds in Australia and Papua New Guinea. Wantage: Sean Kingston Publishing. pp. 208-225.

____. 2004b. The Meaning of Water. Oxford, New York: Berg.

____. 2005. “Common Senses: water, sensory experience and the generation of meaning”. Journal of Material Culture, 10 (1):93-121.

____. 2009a. “Water and Indigenous Religion: Aboriginal Australia”. In: T. Tvedt and T. Oestigaard (eds.). The Idea of Water. London: I.B Tauris. pp. 343-377.

____. 2009b. Gardening the World: agency, identity and the ownership of water. Oxford, New York: Berghahn.

____. 2010. “The Summoning of Dragons: ancestral serpents and indigenous water rights in Australia and New Zealand”. Anthropology News, Special Issue, The Meaning of Water: 5-7. http:// blog.aaanet.org/2010/02/03/ the-meaning-of-water-february-an-now-online/

____. 2011.“LivingWater, Living Culture: the Rainbow Serpent andAboriginal heritage in Cape York”. Public Lecture for International Day for Monuments and Sites, hosted by Cairns Institute, the Ministry of Environment and Resources and the International Council on Monuments and Sites, James Cook University, Cairns, April 18th 2011.

TACON, P., WILSON, M. and CHIPPINDALE, C. 1996. “Birth of the Rainbow Serpent in Arnhem land rock art and oral history”. Archaeology in Oceania, 31:103-124.

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 181

TAYLOR, J. 1984. Of Acts and Axes: an ethnography of socio-cultural change in an Aboriginal community, Cape York Peninsula. PhD thesis, James Cook University.

TVEDT, T. and JACOBSON, E. 2006. A History of Water. London: I.B. Tauris.

WHYTE, A., MARSHALL, S. and CHAMBERS, G. 2005. “Human Evolution in ”. Human Biology, 77:157-177.

NOTES

1. Though popular contemporary mythology has downplayed this aspect of dragons, they have always been associated with water historically. Some inhabit water itself, others are associated with underground caves, wetlands and swamps. 2. I refer here to Durkheim’s well known assertion that societies make their religions in their own image (1966). 3. Changes in temperature and thus sea levels form a key part of the picture of population movements, providing a set of pressures and opportunities for migration. 4. Totemic ancestors could also be plants and other aspects of the environment. 5. For example the seminal Land Rights (NT) Act of 1976. 6. “Country” is a term used to describe clan estates, ie land traditionally owned by a specific group. 7. Earlier theories have been challenged by a range of evidence: radio-carbon dating of archaeological sites; DNA analysis of people and also of the Pacific Rat; and analyses of volcanic ash. 8. Some of these birds reached a height of 3.7 metres and weighed about 200 kg. 9. Initially – before pigs were introduced by Europeans – these were simple reed fences to keep out swamp hens (pukekos) (Best, 1941:358).

ABSTRACTS

This paper describes research concerned with visual representations of water beings and their capacity to articulate human-environmental relationships. Water beings (such as rainbow serpents and taniwhas) play a role in many different cultural cosmologies, most particularly those oriented towards ‘nature religions’ in which land and water scapes are seen as being animated by sentient beings. Analyses of these visual images, and their transformations over time, suggest that as reflection of cosmological beliefs and values, they can illuminate the past and provide useful insights into key changes in human relationships with water. As representations of the worldviews of particular groups, they also have a vital function in contemporary debates about environmental management and the ownership and control of water resources. Drawing on examples in Australia and New Zealand, this paper therefore considers the role of such images as temporal indicators of change, and as symbolic representations of subaltern cosmologies in post-colonial societies. It also examines the potential implications of the research for theory and method in visual anthropology. By retaining an ethnographically situated approach it aims to demonstrate that transformations in human

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011 182

relations with water, as expressed through visual imagery of water beings, continue to direct contemporary conflicts over water ownership, management and use.

Este artigo baseia-se em pesquisa sobre representações visuais de seres aquáticos e sua capacidade de articular relacionamentos humano-ambientais. Seres aquáticos (como serpentes arco-íris e taniwhas) são relevantes em muitas cosmologias culturais diferentes, mais particularmente aquelas que se orientam no sentido de “religiões da natureza”, nas quais as paisagens terrestres e aquáticas são vistas como animadas por seres sensíveis. As análises destas imagens visuais, e suas transformações ao longo do tempo, sugerem que, como reflexo de crenças cosmológicas e valores, elas podem iluminar o passado e fornecer insights úteis para mudanças fundamentais nas relações humanas com a água. Como representações das visões de mundo de grupos particulares, elas também têm uma função vital nos debates contemporâneos sobre gestão ambiental, propriedade e controle dos recursos hídricos. Baseando-se em exemplos da Austrália e Nova Zelândia, este artigo considera, portanto, o papel das imagens como indicadores temporais de mudança e como representações simbólicas de cosmologias subalternas em sociedades pós- coloniais. Examina também as implicações potenciais da pesquisa para a teoria e o método em antropologia visual. Ao manter uma abordagem etnograficamente situada objetiva, demonstra que as transformações nas relações humanas com a água, expressas através de imagens visuais de seres aquáticos, continuam a dirigir os conflitos contemporâneos sobre a propriedade da água, sua gestão e utilização.

INDEX

Keywords: water beings, cosmology, human-environmental relations, representations of water Palavras-chave: seres aquáticos, cosmologia, relações humano-ambientais, representações da água

AUTHOR

VERONICA STRANG University of Auckland

Anuário Antropológico, v.36 n.1 | 2011