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Janaína Amado (org.)

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AMADO, J., org. Livros Publicados. In: Jacinta Passos, coração militante: obra completa : poesia e prosa, biografia, fortuna crítica [online]. Salvador : Editora EDUFBA, 2010, pp. 24-210. ISBN 978- 85-232-1207-0. Available from SciELO Books .

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MIOLO.pmd 23 30/6/2010, 17:28 Apuração do texto poético de Jacinta Passos

Os originais dos livros de Jacinta Passos se perderam. Por isso, para esta edição, o princípio adotado foi o de reproduzir os poemas tal como apareceram nos quatro volumes publicados em vida da autora. Da mesma forma que nestes livros, na presente edição os poemas são apre- sentados em ordem cronológica. A data de produção aparece entre parênteses, ao final de cada poema, mesma solução adotada em Canção da partida, porém diferente da usada no primeiro livro, onde o ano de produção aparece sozinho, em folha à parte, antes de um poema ou grupo de poemas. Poemas políticos não data os poemas novos, apenas os republicados. A Coluna, que contém um único e longo poema épico, também não é datado. Nos dois últimos casos, não foi possível identificar datas precisas de produção de cada poema, porém se conse- guiu indicar, em notas, o provável período de criação do conjunto de poemas novos, no caso de Poemas políticos, e do longo poema de A Coluna. Divulgar a poesia de Jacinta Passos entre leitores contemporâneos constitui o principal objetivo da atual edição: por isso, a ortografia e a acentuação dos poemas foram atualizadas. Houve necessidade de correção de pouquíssimos er- ros gramaticais ou de impressão, o que configura apuro linguístico da parte da autora e de seus editores e gráficos. Para esses casos, corrigiu-se o erro original involuntário, sem apensar nota de rodapé a respeito. Em Canção da partida e Poemas políticos, Jacinta Passos agrupou poesias até então inéditas em livro, mas também seleções de poesias publicadas em livro(s) anterior(es), decerto aquelas que mais agradavam à autora. Nesta edição, foram evitadas repetições: cada poema aparece apenas uma vez, integrado ao conjunto/ livro onde foi originalmente publicado. O leitor é notificado disso nos locais apropriados, e em seguida remetido às páginas, neste volume, onde estão as outras poesias que originalmente fizeram parte daquele livro. Essa solução, em- bora dificulte o reconhecimento imediato do conjunto de cada livro da autora, evita o contrassenso de repetir poemas dentro de um mesmo volume, além de

MIOLO.pmd 25 30/6/2010, 17:28 representar uma economia, de espaço e preço. Não haverá prejuízo substancial para o leitor – que continua a ter acesso a toda a produção de Jacinta, podendo assim reconstituir o conjunto de cada livro. Poeta rigorosa, Jacinta Passos fez modificações, às vezes sutis, em sinais gráficos, palavras ou expressões de seus poemas, quando republicados em livro, ou quando transpostos das páginas de jornal para o livro. Por exemplo, nos três poemas de seu primeiro livro (Momentos de poesia), republicados no segundo (Canção da partida) – intitulados “Canção simples”, “Carnaval” e “Cantiga das mães” –, as aspas, indicando diálogos, foram substituídas por travessões. A atual edição reproduz a última versão de cada poema, pois ela contém modificações no texto realizadas pela autora, expressando assim a sua vontade. A adoção desse princípio, contudo, obrigou, em nome do bom senso, a substituir aspas por tra- vessões também nos poemas não republicados do primeiro livro. Ao fazer isso, creio que não fugi às intenções da poeta: se ela promoveu aquela mudança nos poemas escolhidos para serem republicados, é provável que, caso fosse publicar de novo também os outros poemas, fizesse neles a mesma alteração. Esta edição procura equilíbrio entre a vontade de oferecer ao leitor a plena 26 fruição dos poemas – que se dá quando se lê apenas poesia, sem notas explicativas – e a necessidade de informar, sobretudo por se tratar da primeira edição de toda a obra de Jacinta Passos, cujos textos há muito não circulavam; e de uma edição que tem a pretensão de fixar seu texto e de tornar seus poemas compreensíveis para os leitores de hoje. Assim, esta edição inclui notas, porém tenta evitar exces- sos, apensando-as somente quando pareceram indispensáveis. As notas forne- cem informações sobre data e local da primeira publicação de alguns poemas, pequenas alterações promovidas no texto pela autora, quando da republicação de algum poema etc. Quando foi possível, as notas identificam também referênci- as que a autora fez a pessoas e locais, geralmente a membros de sua família e a pequenas localidades da sua infância e juventude, cujos sentidos talvez se per- dessem, caso não constassem aqui. As notas esclarecem ainda referências históri- cas, abundantes em alguns poemas (especialmente em A Coluna), porém pouco familiares aos leitores de hoje, principalmente aos jovens. Espera-se que elas enriqueçam a leitura e sirvam de subsídio a futuros estudos sobre a obra da autora.

MIOLO.pmd 26 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 27 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 28 30/6/2010, 17:28 Momentos de poesia

MIOLO.pmd 29 30/6/2010, 17:28 ESCRITO POR dois autores, este livro compõe-se de duas partes: a primeira, intitulada Momentos de poesia (p. 1 a 98), reúne 38 poemas de Jacinta Passos; a segunda parte (não incluída neste volume), Mundo em Agonia (p. 102 a 144), contém 22 poemas de seu irmão, Manoel Caetano Filho.* Esta é a primeira reedição de Momentos de poesia. Em seus livros posterio- res (ver indicações em notas desta edição), Jacinta republicou alguns poemas deste seu primeiro livro. Momentos de poesia recebeu críticas muito favoráveis da imprensa baiana, lançando o nome de Jacinta Passos e de seu irmão no meio literário da Bahia.

* PASSOS, Jacinta; CAETANO FILHO, Manoel. Nossos poemas. Salvador: Ed. Bahiana, 1942. 144 p.

MIOLO.pmd 30 30/6/2010, 17:28 Poesia perdida

Ó! a poesia deste momento que passa, a grande poesia vivida neste instante por todos os seres da terra, que palpita nas coisas mais simples como um rastro luminoso da Beleza e, sem uma voz humana para eternizá-la, se perde para sempre, inutilmente... Por que existo, Senhor, quando não posso cantar?

(1933?)1

31

1 Este poema, ao contrário de todos os outros de Momentos de poesia, não está datado. Teria isso sido um lapso da edição, ou a ausência de data foi deliberada, nesse caso possivelmente para tornar “Poesia perdida” uma espécie de epígrafe de todo o livro? O poema foi escrito provavelmente em 1933.

MIOLO.pmd 31 30/6/2010, 17:28 Manhã de sol

Dia azul de Maio. Esplende um sol de ouro no céu que além se estende. Prolongam-se vibrações do arrebol na clara luz desta manhã de sol. O céu ardente, dum azul luminoso e transparente, tem doçura infinita... Um rumor de asas pelo azul palpita, palpita pelo ar. É carícia sonora, a música do mar.

32 O verde risonho das árvores é lindo como um sonho. A brisa leve e fresca em surdina cicia. Há, em toda parte, uma explosão de alegria. A natureza canta, radiosa, um hino aleluial na manhã gloriosa.

E todo esse esplendor se comunica à alma da gente, que vibrando fica e, com alta emoção esplêndida e feliz, bendiz, numa alegria incontida, a glória de viver e a beleza da vida.

(1934)

MIOLO.pmd 32 30/6/2010, 17:28 Maria

Ergue-se a cruz no cimo do Calvário. Após cumprir sua missão, Jesus, que por nós nasceu pobre e solitário, por nós, agora, vai morrer na cruz.

Já se fez o divino donatário de tudo o que era seu. Bênção de luz que desceu sobre o mundo tumultuário é doutrina de amor que ao Céu conduz.

Prisão, torturas, sede, fundas dores, desprezo, ingratidões, açoite, horrores, 33 tudo sofreu por nós, pobres mortais.

Ainda entrega no instante da agonia, imaculado, o vulto de Maria, o bem maior que todos os demais.2

(1934)

2 Este soneto foi publicado pela primeira vez na revista O Malho, Rio, ano XXXV, no 180, 12 nov. 1936, demonstrando que Jacinta já buscava conexões fora do Estado. Foi reproduzido integralmen- te, como exemplo de poema bem resolvido, na coluna literária “Homens e Obras”, de Carlos Chiacchio, no jornal A Tarde, Salvador, 6 de outubro de 1937. O renomado crítico baiano analisou poemas ainda inéditos da jovem poeta Jacinta Passos, que então usava o pseudônimo literário “Jacy Passos”. O texto integral da crítica de Chiacchio está nesta edição. Uma outra Maria, bem diferente desta, foi tema do poema de Jacinta “Canção para Maria”, escrito dezoito anos depois deste, e aqui reproduzido em “Poemas esparsos”.

MIOLO.pmd 33 30/6/2010, 17:28 Incerteza

Em meu olhar se espelha a sombra interior de incerteza angustiante. E em minha alma floriu como rosa vermelha, de um vermelho gritante como o clangor de um clarim, essa angústia que vive a vibrar dentro em mim.

É minha vida um longo, ansioso esperar num amor que há de vir. Amor, prazer que é dor e sofrer que é gozar, amor que tudo dá e sem nada pedir, e que às vezes, num segundo, resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.

34 Mas depois desse amor, o que virá? O tédio insípido e tristonho, desenganos sem cura e dores sem remédio, com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho. Não vale mais, muito mais, desejar sempre um bem sem possuí-lo jamais?

Oh! não. O coração não se cansa de amar se sabe querer bem, ter para o erro, o perdão, renunciar a si mesmo e viver para alguém. E se um motivo qualquer, imperioso e fatal, o sonho desfizer,

então eu saberei bendizer, comovida, o amor que já passou deixando uma doçura amarga em minha vida. Quando o sonho murchou, também a esperança finda, mas dentro d’alma fica uma saudade ainda.3

(1934)

3 Publicado em O malho, Rio, ano XXXV, no 185, 17 nov. 1936.

MIOLO.pmd 34 30/6/2010, 17:28 Crepúsculo

Vai lentamente agonizando o dia... O poente onde, há pouco, o sol ardia, se tingiu de cor de ouro, luminosa. Tons desmaiados de lilás e rosa listram o puro azul do firmamento – um poema de luz, neste momento. A sombra de mansinho vem caindo e o contorno das coisas, diluindo. Pesa um grande silêncio, enorme e mudo. Desce suavemente sobre tudo,

uma bênção dulcíssima de paz. 35 A treva escura que vem vindo traz uma saudade vaga, indefinida... saudade do que já passou na vida, saudade mansa, boa, imensa e triste, saudade até dum bem que não existe, nostalgia sem fim da perfeição que, nessa hora, invade o coração.

A alma das coisas que vagava a esmo parece ir recolhendo-se em si mesma, pondo-se então a meditar consigo. A silhueta de um convento antigo ergue-se negra, austera e secular, banhada em doce luz crepuscular, no fundo luminoso do poente. É a longa torre uma oração silente. Parece uma blasfêmia, o negro véu de fumaça manchando o ouro do céu.

MIOLO.pmd 35 30/6/2010, 17:28 O silêncio, de súbito, estremece e pelo ar passa um frêmito de prece. Vibrou a alma sonora da paisagem e o canto vem tangido pela aragem. Quando, do sino, a voz forte badala, Todo o rumor em derredor se cala e escuta a voz que soa, alta e vibrante, na quietude da tarde agonizante.

(1935)

36

MIOLO.pmd 36 30/6/2010, 17:28 O mar

Múrmuro e lento, o mar ao longe se espraia. Geme e brame, ruge e clama o seu tormento, e, soluçando, vem morrer na praia. O mar imenso... Quando eu escuto o seu rumor soturno, fico a cismar. Penso no destino do mar – ser eterno cantor – cantar a sua dor de eterno insatisfeito, cantar o seu sonho infinito desfeito, 37 cantar o mesmo canto que embalou a infância do mundo. O mar imenso... encarcerado dentro dos frios limites dum traçado. Ouço vozes estranhas... Vem do fundo do mar ou de dentro de mim, esse surdo clamor? São vozes obscuras, vozes desconhecidas, vozes que irrompem da parte ignorada de mim mesma. Por que esta sede imensa de saber, desvendar os segredos escondidos, despir as coisas de suas transitórias aparências, penetrar no seu âmago, ver a essência do ser? Pobre desejo humano esbarra, mudo, ante o mistério de tudo. Por que este desejar que não se cansa, por que este destino errante de correr

MIOLO.pmd 37 30/6/2010, 17:28 sempre atrás dum bem que não se alcança? Anseio de sentir-se um instante feliz, anseio de eternizar esse instante que passa, perdendo-se no passado, no infinito do tempo, como se perde um pouco de fumaça na amplidão dos espaços infinitos... Por que este desejar que não tem fim, se o mísero coração sabe que nenhum bem lhe satisfaz? Foge o minuto fugaz e no fundo de toda ventura sorvida há um gosto de cinza. Perguntas sem resposta, atiradas à toa, 38 inutilmente... Ouço vozes estranhas... Vem do fundo do mar ou de dentro de mim esse surdo clamor? São vozes de sofrimento, de amarguras, vozes de todas as criaturas que falam por minha voz. Todas as criaturas que sofreram esta ânsia indefinida – angústia milenária como a vida – de querer atingir o inatingível. Vozes de todos que sentiram, vivo, cruel, o trágico destino humano de pássaro cativo: – ter diante de si o vasto céu azul, luminoso e ardente, ter asas, asas para bem alto subir, e sentir que não pode voar, impotente... impotente...

(1935)

MIOLO.pmd 38 30/6/2010, 17:28 Solidão

Há em torno de mim muralhas glaciais. Vivo encerrada dentro de mim mesma, debruçada sobre estas profundezas abissais do meu ser, sobre esta solidão interior de um mundo fechado, áspera solidão inacessível onde existe um silêncio gelado,

amargo, 39 vazio.

(1936)

MIOLO.pmd 39 30/6/2010, 17:28 Cântico de exílio

Estou cansada, Senhor. Minha alma insaciável, a minha alma faminta de beleza, ávida de perfeição, é perseguida pelo teu amor. Puseste dentro dela esta ânsia infinita cujo ardor queima, como a sede que em pleno deserto escaldante persegue o viajor.

Esta angústia, que cresce e que vibra e palpita, 40 nasceu dentro em mim no mesmo divino instante em que, morrendo a última ilusão, só me restava afinal uma fria certeza, cortante como o gume dum punhal. A certeza de que, tendo tudo no mundo, nada pode encher o vazio do meu desejo, do meu desejo profundo. Na aridez de minha alma desolada, esta angústia brotou, como brota no solo sertanejo, no solo nu, exausto e sofredor, solo onde a seca vai matando a vida, a última flor – a flor sangrenta do cacto – cuja raiz parece que sugou todo o sangue da terra dolorida.

MIOLO.pmd 40 30/6/2010, 17:28 Compreendi, Senhor, compreendi a voz que sobe do fundo misterioso do meu ser. Esta angústia que vive dentro em mim somente há de ter fim quando nada mais existir entre nós, quando, num dia sem crepúsculo, eu me abismar em ti, no teu esplendor absoluto.

Mas apenas começo a caminhar, estou cansada, Senhor. 41 É bem longo o caminho a percorrer e sinto-me sozinha. Levanto os braços para o céu distante como a palmeira – longo anseio de infinito – que no deserto se ergue, solitária, em busca do azul. Suplico humildemente o teu auxílio. Dos meus lábios, irrompe como um grito meu cântico de exílio. Ah! Senhor, quando se há de realizar a aspiração profunda do meu ser?

(1937)

MIOLO.pmd 41 30/6/2010, 17:28 Agonia no Horto

Na solidão do Horto, quando sofrias, Senhor, e todo concentrado em tua grande dor, o teu corpo curvado para a terra, sucumbido e exangue, como um cálice cheio que transborda, suava gotas de sangue. Na solidão do Horto, quando sofrias, Senhor, abandonado, sem nenhum conforto,

42 diante do teu espírito, passava a trágica visão de toda a humanidade. Como um longo rio, o tempo em séculos se desenrolava.

Vias o mundo moderno... pobre mundo sem alma, esquecido de ti, pobre mundo indiferente, por quem pregado numa cruz, Senhor, morreste inutilmente. E mais do que a dureza dos Herodes, e a covardia dos Pilatos, devia te doer a incompreensão de teus amigos.

Os teus amigos que vivem perto de ti, mas que não te conhecem. Encerrados em seu mundo pequenino, em vez de seguirem teu vulto divino,

MIOLO.pmd 42 30/6/2010, 17:28 te fazem semelhante a eles. Deformam os traços teus, puríssimos, e fazem de tua figura, de tua figura perfeita, uma caricatura.

Nada disto, Senhor, ainda compreendemos: o sentido profundo da mensagem de paz, da mensagem de amor que, há dois mil anos, Senhor, vieste trazer ao mundo. E as verdades eternas 43 e as belezas escondidas do teu Evangelho – livro que é sempre novo apesar de tão velho, e que ninguém jamais se cansará de ler. Nada disto, Senhor, ainda compreendemos: tuas palavras divinas, de bondade, de paz e de perdão, e as dádivas infinitas do teu amor, o mistério da redenção, a vida que nos deste com tua morte, Jesus,

a loucura divina, a loucura da cruz.

(1937)

MIOLO.pmd 43 30/6/2010, 17:28 A missão do poeta

No instante inicial da criação, quando o mundo acabava de sair das mãos de Deus e quando as coisas todas palpitavam quentes ainda do seu sopro criador, escutou-se o primeiro cântico na terra, glorificando o Senhor.

Canta o poeta porque seu destino é cantar. Cantar o mesmo canto que irrompeu 44 dos lábios do primeiro homem criado, ante a maravilhosa visão da beleza, da esplêndida harmonia universal. Cantar ao Senhor bendizendo a divina perfeição, bendizendo o amor infinito que transbordou, criando as criaturas.

Canta o poeta a glória e o sofrimento do universo. Canta por todas as criaturas que não sabem cantar.

Apreende a realidade íntima das coisas, o mistério que liga os seres todos numa unidade essencial e canta as belezas dispersas pelo mundo,

MIOLO.pmd 44 30/6/2010, 17:28 fragmentos da beleza total. Sente a harmonia quebrada do universo, a desordem estabelecida pelo egoísmo do homem e canta a angústia da alma humana que procura o paraíso perdido. Sofre as durezas de sua própria resistência e canta 45 o fundo e permanente sofrimento para atingir o estado interior quando, de dentro d’alma irrompe, límpido, puro, o canto único que eleva as coisas todas para o alto, glorificando o Senhor. Canta o poeta porque seu destino é cantar.4

(1937)

4 Este poema foi publicado pela primeira vez na revista A Ordem, Rio de Janeiro, Ano XX, Vol. XXIV, jan./jul. 1940, p. 83-84. Na revista, estão assinalados local e data da criação do poema: “Baía, 26 de agosto de 1938”. Foi o primeiro poema de Jacinta publicado fora da Bahia. Fundada no Rio de Janeiro pelo intelectual católico Jackson de Figueiredo, a partir da morte deste, em 1928, a revista A Ordem passou a ser dirigida pelo escritor católico Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde). O tema do poema, assim como seu local original de publicação, demonstram a religiosidade de Jacinta à época, bem como suas conexões no meio intelectual católico.

MIOLO.pmd 45 30/6/2010, 17:28 Contrição

Perdoa-me, Senhor, por ter acreditado que todas as franquezas de minha miséria humana, que as minhas quedas e as minhas incalculáveis possibilidades de queda, que minhas fugas para longe de ti – infidelidades à minha vocação eterna –, que minhas recusas aos apelos de tua graça, que as formas todas do meu egoísmo radical, que a minha incapacidade absoluta de elevar-me para ti, que tudo isso, Senhor, fosse mais invencível, mais forte do que a onipotência do teu amor infinito.

46 (1938)

MIOLO.pmd 46 30/6/2010, 17:28 Oferenda

Senhor, eu quis fazer de minha vida meu mais belo poema em teu louvor. A minha obra mais pura de beleza, concebida num claro instante de emoção pela minha inteligência – o dom mais alto que de ti me veio, a glória de pensar. Renuncio, Senhor, alegremente, à alegria de criar, com minhas próprias mãos, o meu destino. 47 Quero apenas viver a minha vida. Quero ser a tua obra, humildemente, simplesmente, como as coisas simples são. Quero viver em mim teu pensamento, a ideia que sempre existiu em tua mente eterna e que quiseste realizar no tempo, no momento sagrado em que o amor de meus pais me concebeu. Eu quero ser nas tuas mãos divinas, a argila flexível, que aos toques do trabalho criador se deixa modelar. Quero que em mim tu realizes, pura, integral, perfeita, a tua obra, Senhor.

(1938)

MIOLO.pmd 47 30/6/2010, 17:28 Consagração

As minhas mãos, minhas humildes mãos, têm gestos puríssimos de bênção. Meus pés descobrem caminhos desconhecidos. Meus lábios dizem palavras que não são minhas, palavras divinas de amor. Minha inteligência concebe pensamentos eternos. Minha alma sofre o peso de dor infinita. E das profundezas misteriosas de minha vida transubstanciada, sobe para ti um canto de louvor perfeito.

48 (1938)

MIOLO.pmd 48 30/6/2010, 17:28 Comunhão

Meus irmãos, meus irmãos, vinde ouvir o meu cântico de amor. Num grande sopro invisível, o Espírito do amor desceu sobre mim. Circulou em ondas de fogo, penetrou nas fibras mais secretas do meu ser, comunicou-lhe a plenitude da vida infinita e transbordou sobre o mundo. Eu vos ofereço, irmãos, este amor, eu vos faço o dom integral deste amor, no meu espírito, no meu corpo, nos meus gestos, no meu canto. Homens de todas as regiões da Terra inteira, vinde ouvir o meu canto de amor universal. 49 Homens de todas as raças de todas as nações e de todas as classes, homens dos recantos longínquos do universo, filhos da velha Europa dividida e do místico Oriente, homens da África, negros filhos da raça sofredora, povos da jovem América, esperança do mundo, mestiços que trazeis no sangue o conflito de raças diversas, homens que viveis nas ilhas distantes, perdidas no mar, homens que viveis nas frias regiões de geleiras eternas, homens dos desertos ardentes, de imensos areais sem fim, povos humilhados e sofredores, povos sem liberdade, judeus que carregais o peso duma dor milenária, povos desconhecidos de bárbaras regiões selvagens, homens todos da terra toda, vinde ouvir o meu canto de amor universal. Homens ricos e pobres, pobres escravizados aos ricos e ricos escravos do dinheiro, capitalistas importantes e proletários humildes, gordos burgueses satisfeitos, operários que ruminais o surdo rancor de injustiças acumuladas, reacionários conservadores da desordem estabelecida, comunistas que tendes sede de comunhão humana,

MIOLO.pmd 49 30/6/2010, 17:28 homens cultos e sábios, homens simples do povo, criminosos e santos, crianças imaculadas, velhos que olhais com nostalgia os caminhos percorridos, prostitutas famintas de ternura humana, enfermos sofredores, miseráveis desamparados, massa anônima das ruas, multidão desconhecida, homens que sofreis dores ignoradas e silenciosas, e vós todos, poetas, meus irmãos, homens todos da terra toda, vinde ouvir o meu canto de amor universal. Eu vos ofereço, irmãos, este amor cuja força destrói as resistências mais duras, as barreiras criadas pelo egoísmo do homem 50 e que paira acima, muito acima das divisões, dos conflitos e dos ódios. Eu vos ofereço este amor que unifica, numa harmonia total, os contrastes mais ásperos, este amor que, infinito, transcende o espaço e que perdura sempre, além do tempo. Eu vos ofereço este amor que desvenda a grande realidade invisível, a comunhão da vida universal. Amor – integração dos seres no mistério do Ser, revelação da vida em sua plenitude, translúcida visão do esplendor absoluto. Meus irmãos, meus irmãos, vinde ouvir o meu cântico de amor.5

(1939)

5 “Comunhão” foi o primeiro poema publicado por Jacinta Passos na Bahia. Originalmente, foi edita- do no jornal O Imparcial, Salvador, em 17 março 1940, assinado por “Jacy Passos”, integrando a página semanal da ALA (Ala das Letras e das Artes). No jornal, após o nome de Jacinta, está escrito: “Poetisa bahiana”. E, ao final do poema: “Inédito para ALA”. É o primeiro poema de Jacinta Passos que apresenta conteúdo social, seu foco deslocando-se do eu interior da poeta para sua comunhão com todos os outros seres humanos.

MIOLO.pmd 50 30/6/2010, 17:28 Vida morta

Correm vertiginosamente as minhas horas para um negro abismo insondável.

Um desencanto total paralisa todas as energias profundas do meu ser, toda a minha infinita aspiração de amor, todo o meu humano desejo de viver. Um desencanto total imobiliza os movimentos da vida brotando dentro em mim e transmuda a minha paisagem interior em frígidas geleiras glaciais. Petrificada 51 num desespero frio, mudo, inerte, minha vida está morta em suas fontes essenciais.

E as minhas horas, as minhas horas vazias, inutilmente, rolam num negro abismo sem fim. Numa atração invencível, para o não-ser, para o nada, arrastadas, as minhas horas, as minhas horas vazias, correm vertiginosamente...

(1939)

MIOLO.pmd 51 30/6/2010, 17:28 Súplica

Como um peregrino perdido na grande noite eterna eu te peço, Senhor, um pouco de luz. No princípio, antes de todos os tempos, antes de rolarem os mundos na harmonia sideral dos espaços etéreos, no princípio, quando eu era entre as possibilidades infinitas da beleza incriada, marcaste meu ser com o sinal de fogo dos destinos sagrados. E na plenitude do teu Ser infinito, tu precisas de mim, Senhor. Precisas de mim para que realizes 52 o teu plano divino, para que, através de minha voz, as vozes todas da terra cantem o teu louvor. Como um peregrino perdido na grande noite eterna eu te peço, Senhor, um pouco de luz. Quebra todas as ásperas durezas do meu ser, identifica-me com todas as coisas, para que possa captar as mínimas vibrações da vida cósmica e elevar para ti o canto de louvor da terra toda. Crucifica o meu espírito e a minha carne. Quero experimentar todas as formas do sofrimento humano, a dor universal, para que, purificada pelo sofrimento, a minha voz se erga, clara e simples como a voz das criancinhas. Põe na minha boca o canto definitivo, o canto perfeito, o louvor perene do absoluto esplendor de tua beleza divina. Como um peregrino perdido na grande noite eterna, eu te peço, Senhor, um pouco de luz.

(1939)

MIOLO.pmd 52 30/6/2010, 17:28 Campo Limpo6

Quando vejo, ondulando ante os meus olhos, os teus campos banhados pelo sol, o ardor da seiva rebentando nessa natureza viva, a doçura do teu céu na hora crepuscular, a sombra negra das árvores que se alongam como fantasmas quando a noite desce, a profundeza insondável das tuas noites estreladas, quando vejo o esplendor de tua beleza, sinto, inesperada, uma estranha alegria, como se encontrasse um pedaço vivo de mim mesma. Campo Limpo, as tuas paisagens se identificaram 53 com todas as vibrações de minha vida amanhecente. As tuas paisagens parecem humanas. Parece humano o murmúrio do vento nas tuas árvores seculares e a branca silhueta da velha casa antiga. Tuas paisagens revivem a minha vida já morta, todos os instantes perdidos para sempre e que eu quisera integrados num momento eterno. Como a árvore que dá sombra e flor e fruto esconde as raízes na terra de onde veio, estão mergulhadas no teu solo as raízes mais profundas do meu ser.

(1939)

6 Campo Limpo: nome da fazenda, em Cruz das Almas, BA, onde Jacinta nasceu e viveu até os 10 anos de idade, e para onde retornou várias vezes, durante a adolescência e a juventude. O Campo Limpo é um espaço simbólico importante na obra de Jacinta.

MIOLO.pmd 53 30/6/2010, 17:28 Alegria

Perscrutei ansiosa a tua face. E na tua face marcada pelo sofrimento, batida por todos os ventos do mundo, trabalhada por todas as misérias da terra, na tua face onde se cruzam sulcos de fundas dores humanas, onde ficaram rastros de passos perdidos por obscuros caminhos, descobri, ó meu irmão desconhecido e anônimo, um traço de semelhança com a tua face verdadeira, a Face perfeita de todos os homens.7

54 (1940)

7 Publicado pela primeira vez na revista católica A Ordem, Rio de Janeiro, jul./dez.1940, Ano XX, Vol. XXIV, p. 82.

MIOLO.pmd 54 30/6/2010, 17:28 Ressuscitados

Por que permaneceis curvados e tristes, homens de toda a terra, por que permaneceis debruçados sobre o vosso destino, trazendo nos olhos a funda saudade de um mundo perdido e nos membros a estranha sensação duma queda de altíssima montanha? Todos os caminhos humanos já foram percorridos por aquele que viveu a experiência total. Um homem venceu o sofrimento e a morte. Luz puríssima, uma grande luz puríssima transfigura todos os seres, como se, intactos, acabassem de sair das mãos do Criador. Por que permaneceis curvados e tristes, homens de toda a terra, por que permaneceis debruçados sobre o vosso destino, 55 trazendo nos olhos a funda saudade de um mundo perdido e nos membros a estranha sensação duma queda de altíssima montanha?

(1940)

MIOLO.pmd 55 30/6/2010, 17:28 A guerra

Eu sou a humanidade que sofre. As minhas raízes profundas mergulham no ventre da terra, o meu espírito como uma antena prodigiosa domina o espaço e capta todas as vibrações, as mínimas vibrações trazidas pelos ventos que sopram de todos os lados. Eu sou a humanidade que sofre. Experimento no meu espírito e na minha carne este instante de dor universal. Sinto a realidade sangrenta dos campos de guerra, o lívido pavor diante da morte

56 que ronda sinistra nas grandes aves metálicas, nos monstros de ferro, nos peixes fantásticos do mar. Clarões que se abrem, gritos alucinados, balas que silvam, explosão de bombas, corpos que tombam. É a trágica destruição do homem pela máquina poderosa que a sua inteligência criou. Caminho pelas cidades transformadas em trincheiras. Choro com as mulheres a saudade dos lares vazios, a perda dos filhos – o próprio ser mutilado.

Fujo pelas estradas perdidas com as crianças que encontram as escolas fechadas e bebem no olhar, nas palavras, nos gestos dos homens, uma herança de ódio invencível. Vivo a tragédia apocalíptica de horrores infernais em que se transformou a grandiosa sinfonia da Terra,

MIOLO.pmd 56 30/6/2010, 17:28 o fecundo labor humano que devia transformar a Terra que a mão do Criador deixara inacabada.

Eu sou a humanidade que sofre. Sofro, nesta fornalha imensa onde se misturam homens de todos os povos, a dolorosa experiência dos meus erros milenares, do meu radical egoísmo que não aceitou a realidade total, que fez de si mesmo o centro do universo, ergueu fronteiras entre os seres humanos, dividiu o mundo em pedaços minúsculos, distribuiu injustamente as riquezas da terra, 57 organizou o reino da injustiça onde paira, terrível, sobre todos os seres, a grande ausência de Deus.

Eu sou a humanidade que sofre. Experimento no meu espírito e na minha carne este instante de dor universal.

(1940)

MIOLO.pmd 57 30/6/2010, 17:28 Poema

Aceitemos a vida, é inútil lutar. O mistério desse amor transcende o nosso ser limitado e tem a força invencível dos destinos marcados nos planos eternos. É o mesmo mistério profundo das forças elementares do cosmo, da energia insondável que faz renovar a vida na face da Terra e faz rolar os mundos nos espaços sem fim.

Meu amor, meu amor, como é longa esta espera. As minhas mãos, os meus lábios, o meu olhar, os meus gestos 58 guardam um tesouro intacto de ternura. Tua cabeça cansada repousará no meu ombro. Sentirás nos meus carinhos a frescura das fontes em que nenhum viajante bebeu. Simplesmente, tranquilamente, eu me abandonarei a ti num gesto de oferenda. Encontrarás no meu olhar a compreensão das palavras que não disseres. Uma grande luz brilhará na tua face, na tua face que as lutas da vida marcaram. Terás a visão verdadeira dos homens e das coisas e viverás o teu destino porque o teu ser, integrado no meu ser, atingirá a plenitude.

(1940)

MIOLO.pmd 58 30/6/2010, 17:28 Compreensão

As minhas mãos docemente pousaram em tua fronte. Esquecida de todas as dores do mundo, do mal profundo da vida, tua cabeça em meu regaço adormeceu. Adormeceu como um pássaro cansado, errante passarinho que vagou por céus longínquos em meio de tormentas bravias e encontrou, afinal, a doçura de um ninho. Nesse instante, as minhas mãos compreenderam por que foram feitas tão leves e macias.

59 (1941)

MIOLO.pmd 59 30/6/2010, 17:28 A dor absoluta

A plenitude do Ser infinito, Senhor, tu não podes comunicar. Desse informe plasma original onde dormem todas as realidades possíveis, nenhuma criatura, nenhuma vida, o teu ato pode fazer surgir ilimitada e perfeita. Não podes criar nenhum ser como tu.

(1941)

60

MIOLO.pmd 60 30/6/2010, 17:28 Mensagem aos homens

– Eu te esperei longo tempo de terrível solidão. Através dos meus anseios, das minhas lutas, dos meus cansaços e das minhas esperanças, através do meu fundo desalento e da minha ainda mais funda alegria de existir, através das incessantes mutações da vida, do céu, da terra, das águas, dos outros e de mim mesma, eu te esperei. Inteira, pura e livre como a luz, a livre luz das alvoradas.

– Oh! por que me trazes um coração diminuído como um seixo levado pelo rio, um seixo que muitas águas rolaram? 61

(1941)

MIOLO.pmd 61 30/6/2010, 17:28 O momento eterno

Apagaram-se todas as limitações porque tu e eu desaparecemos. Existimos fundidos num ser único que ignora a sucessão no tempo, que desconhece as fronteiras onde sua vida termina e a vida cósmica se inicia, perdido no êxtase imenso como um astro sem memória perdido no espaço sem princípio e sem fim

(1941)

62

MIOLO.pmd 62 30/6/2010, 17:28 Limitação

Nos teus gestos vibra nesta hora, hora única de amor, a minha mesma grande ânsia impossível. Nas tuas carícias sôfregas, no apelo magnético do teu olhar debruçado sobre o meu, nos teus ouvidos que parecem esperar uma palavra inefável, na tua boca ansiosa querendo sorver o sopro substancial de minha vida, nas tuas narinas ofegantes, nas tuas mãos ávidas tateando o meu corpo como se quisessem guardar nas pontas dos dedos a memória de minhas formas, nos teus gestos vibra nesta hora, hora única de amor,

a minha mesma grande ânsia impossível. 63 Ânsia de posse total. Atingir, através do teu corpo, tua essência imutável e única. Revelar-te a ti mesmo. Tocar, possuir como uma realidade tangível, minha, o mistério profundo do teu ser.

(1941)

MIOLO.pmd 63 30/6/2010, 17:28 Mulher

Diante do teu sofrimento, que vontade, amor, de ninar tuas mágoas, como embala a mãe seu filho pequenino. Quisera te amar com uma grande ternura compreensiva, a ternura das mães, apenas. Quisera não te querer com este ciúme primitivo e bárbaro que irrompe do meu ser obscuro como uma planta selvagem rasgando as entranhas da Terra. Este ciúme envolvente, solícito,

64 tenaz, que se enrola em ti como a roupa que protege o teu corpo. Ciúme do espaço onde estás sem que eu possa simultaneamente estar, do tempo que te conheceu antes de mim e onde tua presença continuará, talvez quando dele já estiver libertada. Ciúme cuja nascente se perde em ignotas origens remotíssimas, grito lúcido do instinto milenário exigindo o dom integral para integralmente se dar.

(1941)

MIOLO.pmd 64 30/6/2010, 17:28 Mistério carnal

Corpos humanos que a morte tocou. Por que esperam os corpos abandonados na branca solidão do vasto cemitério? Corpos que um dia surgiram como uma realidade surpreendente na face da Terra. E amanheceram numa esplêndida palpitação de beleza que se ignora, até o momento da grande revelação quando o amor lhes deu a consciência de existirem. Olhos, pés, mãos, boca, sexo, fronte, que encarnaram os mais fugitivos movimentos do espírito, que amaram, pensaram, sentiram, viveram, e a morte, de súbito, petrificou. Por que esperam os corpos abandonados 65 na branca solidão do vasto cemitério? Enigma terrível, tu estás em nosso sangue, herança atávica recebida através das gerações. Dormes no fundo do nosso ser como o sal nas grandes águas marinhas. Para além de nossas dores e de nossas alegrias, a vida, a vida é o dom supremo. Mas tu és a raiz envenenada, e todos os seus frutos são frutos de sabor amargo. Ah! como deve ser triste o destino dos espíritos que abandonaram os corpos. São fragmentos de seres, são seres incompletos que não se podem fixar para sempre. A carne que no fundo da terra se transforma em verme, em húmus, em flor, em fruto, a carne que era um ser com o espírito, como a semente com a árvore escondida dentro dela, não participa no seu destino final. Por que esperam os corpos abandonados na branca solidão do vasto cemitério?

(1941)

MIOLO.pmd 65 30/6/2010, 17:28 Canção simples

A flor caída no rio que a leva para onde quer, sabia disso e caiu, seu destino é ser mulher. Leva tudo e segue em frente, amor de homem é tufão, o de mulher é semente que o vento enterrou no chão. Mulher que tudo já deu, homem que tudo tomou, é mulher que se perdeu, 66 é homem que conquistou. Mulher virgem, condição para homem dar – nobre gesto – resto duma divisão se a divisão deixou resto. No sangue, a honra é lavada de homem que mulher engana, mulher que vive enganada coitado! fraqueza humana. A flor caída no rio que a leva para onde quer, sabia disso e caiu, seu destino é ser mulher.8

(1941)

8 “Canção simples” foi republicado, em versão ligeiramente modificada, nos dois livros seguintes de Jacinta, Canção da partida e Poemas políticos. Conforme explicado em “Apuração do texto poético de Jacinta Passos”, a versão publicada aqui é sempre a última revista pela autora: portanto, a destes últimos livros. O poema expressa, já em 1941, a extrema preocupação de Jacinta com a situação da mulher na sociedade brasileira.

MIOLO.pmd 66 30/6/2010, 17:28 Ressonância

Nossos espíritos se reconhecem como se através de milênios se esperassem. Nossos corpos se procuram como dois polos magnéticos de atração profunda. Tão simples deveria ser a fusão de tua vida e minha vida, nosso destino essencial, tão simples. Alegrias e dores entre os seres humanos, entre todos os seres, por que se ligam inexoravelmente? Somos dois elos, amor, numa cadeia infinita...

67 (1941)

MIOLO.pmd 67 30/6/2010, 17:28 O canto de amanhã

Desabem sobre mim os grandes sofrimentos. As dores elementares, a fome, o frio, o cansaço, a miséria, que marcam como fogo o ser humano total, desabem sobre mim. Fortes ventos em fúria me arrastem na tormenta. E como uma planta de estufa

68 transplantada, eu viva como vivem as plantas do mato, plantas sem nome perdidas em imensas florestas bravias onde sopram terríveis vendavais. Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem. O meu espírito se apague e a consciência do meu corpo cresça como uma realidade absorvente, a única realidade. Eu seja apenas uma boca faminta que sabe o valor de um pedaço minúsculo de pão. Eu seja apenas braços exaustos que não podem parar e pés cansados e doridos que não encontram o fim do seu caminho. Eu seja apenas mãos, ásperas mãos calejadas pelos rudes contatos cotidianos e que, trêmulas, trêmulas, tiritam de frio. Eu seja apenas uma carne nua que disputa um trapo de pano, o pão,

MIOLO.pmd 68 30/6/2010, 17:28 a água, o fogo, a terra, o ar, que disputa cada milésimo de tempo que vive. Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem, entre pedras, ferro, pai, mãe, ouro, árvores, filhos, irmãos e companheiros, entre animais, carvão, petróleo, alavancas e máquinas. Minha cabeça se curve ao peso da fria injustiça organizada e aceite e receba a piedade como último insulto. 69 Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem, e, do fundo de meu ser revolvido pelas dores elementares, nascerá, simples como desponta à flor da terra um fio das grandes águas subterrâneas, o canto dos que têm fome e sede de justiça.

(1941)

MIOLO.pmd 69 30/6/2010, 17:28 Noturno em Palmira

E tu que não vens. A noite é música apenas. Distâncias, formas e cores apagaram-se na treva. – A curva ondulante das colinas e a linha dos longos eucaliptos. Asas negras de urubus cortando a transparência do azul. O branco sanatório solitário nas montanhas e os gestos dos homens sofredores, gestos simples de homens para quem a tragédia se tornou uma forma de vida. Distâncias, formas e cores apagaram-se na treva. Somente a noite existe, a densa noite informe. Os seres são puras formas interiores, são ritmos essenciais. 70 A presença das árvores é o cântico da seiva elaborando. Os animais desapareceram dentro da espécie gloriosa. Mundos em formação latejam nos espaços noturnos e astros mortos giram a saudade da luz. Fluidos imponderáveis, ondas de energia cósmica rolando, movimentos iniciais de formas obscuras, sons, misteriosos sons nascendo de ignotas distâncias sem fim. Música pura, a vida original vibrando dentro da grande noite mágica e profunda. A noite é música apenas. E tu que não vens.

(1941)

MIOLO.pmd 70 30/6/2010, 17:28 Carnaval

Um povo surgiu, surgiu não sei donde, dançando, cantando, um povo surgiu. – Você me conhece? – Não conhece não. E a voz se perde na multidão. Eu sou a Bahia. – Viva o Rei Momo! – hoje é seu dia. Chora a menina, com medo do mandu. – Lá vem o cordão! Bate o batuque e o batuque bate. 71 Negro preto, cor de urubu, bate o batuque e o batuque bate. Negro é rei no carnaval, tem manto, tem cetro, e o chapéu de sol é pálio real. Gritos humanos, interjeições, lança-perfume, desejos sem rumo, acres, com gosto de mar, um cheiro forte de todas as raças vibram no ar. Uma massa humana, todas as cores, todas as raças, todas as classes, em confusão.

MIOLO.pmd 71 30/6/2010, 17:28 De que subsolo irrompeu, informe, nua, essa nova realidade sem nome que dança na rua? A rua Chile, a rua grã-fina, cadê os donos da rua-salão? – Madame ultrachique que tem três amantes. – O burguês graúdo, – Os vagabundos elegantes, – Os literatos de academia, carro oficial, rodas de porta de confeitaria 72 que resolvem o momento internacional. Cadê a gente de todo dia, cadê os donos da rua-salão? Passa uma “dama” de cetim vermelho que mora dos lados do Pau Miúdo. Ondas humanas que vão e que vêm, ritmo de samba até no andar. Um louro estrangeiro que samba também. – Olhe a mulata de seu Manoel Português! Passa no carro, gorda, imponente, com um chapeuzinho de chinês. Cordão do Chame-Chame. Bonde cheio. O doutor da Vitória quer tomar. – Segue o bonde, não há mais lugar. – Você me conhece? – Não conhece não. E a voz se perde na multidão. Um povo surgiu, surgiu não sei donde dançando, cantando, um povo surgiu.

MIOLO.pmd 72 30/6/2010, 17:28 Os homens do mundo estão no meu sangue. No meu sangue, as raças, as classes, os povos misturam-se. Eu sou a Bahia. – Viva o Rei Momo! hoje é seu dia.9

(1942)

73

9 “Carnaval” foi republicado no jornal O Imparcial, Salvador, 12 de março de 1943, e em Canção da partida (1945). A versão aqui transcrita é a última.

MIOLO.pmd 73 30/6/2010, 17:28 Nós, os cristãos

Senhor, na realidade eterna de tua vida divina, contemplas dentro do teu Verbo todas as criaturas. Contemplas os cristãos que não continuam através do tempo a presença do teu Verbo encarnado. Não somos a tua imagem. Somos apenas uma caricatura, nós, os cristãos

74 que aceitamos a injustiça na face da Terra.

(1942)

MIOLO.pmd 74 30/6/2010, 17:28 Cantiga das mães (Para minha mãe)

Fruto quando amadurece cai das árvores no chão, e filho depois que cresce não é mais da gente, não. Eu tive cinco filhinhos e hoje sozinha estou. Não foi a morte, não foi, oi! foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos, como cresceram depressa, 75 antes ficassem meninos os filhos do sangue meu, que meu ventre concebeu, que meu leite alimentou. Não foi a morte, não foi, oi! Foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive. Os cinco filhos que tive multiplicaram por cinco minha dor, minha alegria. Viver de novo eu queria pois já hoje mãe não sou. Não foi a morte, não foi, oi! foi a vida que roubou.

MIOLO.pmd 75 30/6/2010, 17:28 Foram viver seus destinos, sempre, sempre foi assim. Filhos juntinho de mim, berço, riso, coisas puras, briga, estudos, travessuras, tudo isso já passou. Não foi a morte, não foi, oi! foi a vida quem roubou.10

(1942) 76

10 “Cantiga das mães” foi republicado, com pequenas alterações, nos dois livros posteriores de Jacinta, versão aqui reproduzida.

MIOLO.pmd 76 30/6/2010, 17:28 Diálogo num país qualquer

– Demorei muito, não foi, mulher? E o menino, como vai o menino?

– Vai assim como Deus quer. Você arranjou o dinheiro?

– O dinheiro da receita?

– Sim. Coitado de meu filho, ficou sozinho o dia inteiro, doente como está. Fui ver se dava um jeito. Fui na casa do padrinho, que me deu umas frutas – fruta está tão caro – 77 para a dieta dele, coitadinho. E a receita, como é?

– Não arranjei, não. Ia falar com o gerente para ver se me adianta algum dinheiro. Mas estavam todos na reunião. Sabe que a guerra já esta perto da gente?

– E para que fizeram reunião?

– Foi uma espécie de comício. O diretor fez um discurso, disse que a hora é grave, que exige sacrifício. A pátria está ameaçada. Cada homem deve dar até a própria vida para defender o que é nosso, para defender a pátria estremecida.

MIOLO.pmd 77 30/6/2010, 17:28 – E ele disse o que é pátria?

– Disse que pátria é tudo o que nós temos. É a nossa terra e tudo de bom que esse nome encerra. É o alimento que nos vem do solo, é o pão, a água que bebemos, o fogo que nos aquece, a casa onde vivemos. – Pátria é tudo o que nós temos. 78 Meu filho doente, sem remédio, sem alimento, sem um cobertor para a hora do frio. Água comprada por três mil réis a lata. Fogo no candeeiro de gás que a vizinha emprestou. O dono da casa exigindo o aluguel. Será que a gente tem mesmo pátria, Manuel?

(1942)

MIOLO.pmd 78 30/6/2010, 17:28 Canto da hora presente

Os ventos que sopram do norte, os ventos que sopram do sul, que vêm do Pacífico, e que vêm do Atlântico, de todas as terras, de todos os mares, se cruzam nos ares. São ventos que trazem faíscas de fogo, que trazem sementes de vida e de morte. No Oriente velhíssimo, no berço do mundo,

na Europa – o que é hoje Europa? 79 na África humilhada que é humana também, nas ilhas perdidas que boiam nos mares, alguma coisa morre, alguma coisa nasce. A vida se renova na face da Terra.

Homens que tendes as raízes mergulhadas na terra americana. Homens em cujo sangue se plasma o homem americano. Homens de todas as cores, classes, condições, nós somos a América, somos o Brasil que tem um destino dentro do mundo, do mundo que o fogo transforma.

MIOLO.pmd 79 30/6/2010, 17:28 Os ventos que sopram do norte, os ventos que sopram do sul, que vêm do Pacífico e que vêm do Atlântico, de todas as terras, de todos os mares, se cruzam nos ares. São ventos que trazem faíscas de fogo, que trazem sementes de vida e de morte.

(1942) 80

MIOLO.pmd 80 30/6/2010, 17:28 Eu serei Poesia

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma. Quando eu não for mais um indivíduo, eu serei poesia. Quando nada mais existir entre mim e todos os seres, os seres mais humildes do universo, eu serei poesia. Meu nome não importa. Eu não serei eu, eu serei nós, serei poesia permanente, poesia sem fronteiras.

81 (1942)

MIOLO.pmd 81 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 82 30/6/2010, 17:28 Canção da partida

Que vontade de cantar: a vida vale por si.

A meu pai e minha mãe em sinal de muito amor e reconhecimento

MIOLO.pmd 83 30/6/2010, 17:28 A PRIMEIRA edição de Canção da partida* é belíssima, com apenas 200 exempla- res, numerados e assinados pela autora e ilustrados com cinco desenhos de Lasar Segall, um deles na capa. Dez exemplares especiais foram acompanhados de uma ponta-seca original de Segall. Quatro dos desenhos originais de Lasar Segall en- contram-se atualmente no Museu Lasar Segall, em São Paulo, e o quinto, que corresponde ao desenho da capa, assinado e dedicado, pertence à filha de Jacinta, Janaína Amado. Estes desenhos ilustram a presente edição, acrescentados dos que Segall fez à época, mas não foram usados na primeira edição do livro. A segunda edição de Canção da partida** contém alentado ensaio crítico sobre a obra de Jacinta Passos, “Entre lirismo e ideologia”, de autoria de José Paulo Paes, composto especialmente para a edição. No presente volume, este ensaio integra a Fortuna Crítica. Completam Canção da partida os seguintes poemas, republicados do livro anterior, e aqui transcritos nas páginas indicadas: Cantiga das mães p.75, Carna- val p.71 e Canção simples, p.66.

* Canção da partida. São Paulo: Edições Gaveta, 1945. 1ª ed. 121 p. ** Canção da partida. Salvador: Fundação das Artes, 1990, 2ª ed. 77 p.

MIOLO.pmd 84 30/6/2010, 17:28 Canção da partida1 (para Manoel Caetano Filho)

Passa passa passará derradeiro ficará. Não me prenda bom vaqueiro bom vaqueiro eh! dá licença de passar, levo a noite e levo o dia que alegria! levo tanto o que acabar. Mandioca tem veneno, 85 dá farinha e dá beiju. Campo Limpo, lobisomem,2 menina de calundu, medo de cobra e trovão, escuridão! – Traga logo o meu cavalo. – Está pronto, meu patrão. Benedito tem cem anos: negro duro! cem anos de escravidão.3 Cadê Princesa Isabel

1 Este é o mais autobiográfico dos poemas de Jacinta. É inspirado em suas experiências e em pessoas com quem conviveu durante a infância, vivida na Fazenda Campo Limpo – onde também nasceu – , e nas cidades vizinhas de Cruz das Almas, São Félix e Cachoeira, todas na região do Recôncavo baiano, bem como em algumas experiëncias da autora durante a adolescência e primeira juventu- de, vividas na cidade de Salvador. A maioria das referências é a lugares e pessoas que efetivamente existiram. Não por acaso Jacinta dedicou este poema ao irmão, seu companheiro das brincadeiras e da descoberta do mundo. 2 A referência ao lobisomem aparece também no poema “O latifúndio”, de Poemas políticos. 3 Jacinta nasceu vinte e seis anos após o término da escravidão. Deve ter convivido com ex-escravos, na fazenda do pai, nas cidades do Recôncavo baiano e em Salvador, todos locais com alta concentra- ção de população escrava, durante o século XIX. Cf. biografia de Jacinta Passos, nesta edição.

MIOLO.pmd 85 30/6/2010, 17:28 que a liberdade inventou? – Vitalina! manoca o fumo,4 menina, você hoje vadiou. É vem o velho Camilo, barbas brancas, ar de nobre. Camilo, você é pobre e nunca foi senador, mas por que é igualzinho ao retrato de vovô? Não sei, não sei se adivinho, se Venâncio adivinhou: 86 – são voltas que o mundo dá.5 Passa passa passará derradeiro ficará. – Minha madrinha, nasci em berço de ouro – (Morreu pedindo branquinha.) Era grande, era valente, gostava do bom quitute, curava o povo doente, rezava Mês de Maria mas um dia vovó Jacinta morreu.6

4 Manoca o fumo. Constrói uma espécie de boneca com as folhas de fumo, para fabricar o charuto. A economia da região de Cruz das Almas, onde Jacinta nasceu e passou a infância, baseava-se na produção de fumo de alta qualidade, para o fabrico de charutos. Havia fábricas de charutos na cidade, inclusive a famosa Suerdieck. 5 Há outra referência a Venâncio em “Franco”, texto jornalístico de autoria de Jacinta, reproduzido nesta edição. 6 A madrinha e avó paterna da autora chamava-se Jacintha Velloso Passos. O nome da neta foi homenagem à avó.

MIOLO.pmd 86 30/6/2010, 17:28 Na casa grande vazia uma sombra anda, vigia. Dade na fonte, Dade na lenha, dez filhos deu ao mundo, está plantando roça, está na casa da farinha, criou cinco filhos brancos e depois morreu sozinha. Campo Limpo. Onde é que Dade está?7 Passa passa 87 passará derradeiro ficará. Zé do Carmo, é vem o trem! Cruz das Almas. Não me prenda bom vaqueiro bom vaqueiro eh! dá licença de passar. S. Félix! olhe o rio Paraguassu, vou morar junto da ponte,8 Cachoeira Bananeira quanta água desceu do monte!

7 Dade, empregada no Campo Limpo, ajudou a criar Jacinta e seus quatro irmãos. Ela aparece também em “Elegia das quatro mortas”, do livro Poemas políticos. 8 Referência à mudança da família Passos, em 1926, para a cidade de São Felix, à beira do rio Paraguassu, em frente à cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano.

MIOLO.pmd 87 30/6/2010, 17:28 – Hoje tem sabatina? – Tem, sim senhor! – Vamos, maninha, vamos passear no jardim celeste. – O que foi que vistes lá? Giroflê, giroflá. Professor Mário! Zete! Dulce! Paulo! Zinha! 9 vamos ver a estrelinha 88 piscando no céu noturno, dar um nome a cada astro, como vai, senhor Saturno? A Terra se move – quem viu? quem viu? em torno dum eixo que nunca existiu. Vamos, maninha, passear no mapa-múndi, é bonito como um chão, todo feito de mosaicos, cada cor, uma nação. Quanto azul! Tem mais água do que terra, tem mais peixe do que homem, tem nação roxa, amarela, – dê um pulo, pule o mar! – verde, azul, cor de canela,

9 Nomes de irmãs e primo de Jacinta.

MIOLO.pmd 88 30/6/2010, 17:28 de pimenta-malagueta, cor da cara do Capeta ou de cor já desbotada tão pisada! nação velha, sem idade, como se pode saber? nasceu antes do relógio que fez o tempo nascer. Vamos, maninha, o que foi que vistes lá? Passa passa passará 89 derradeiro ficará. Me leve ligeiro, Manuel Canoeiro, este rio vai dar nas águas do mar. Rema rema remador, caranguejo peixe é, lutar contra a sua sorte é remar contra a maré. Pé de Anjo, ganhador, vou conhecer a Bahia,10 já vou tomar o vapor, eu não sei como é o mar, quero ver o Elevador.11

10 Bahia. Nome pelo qual a cidade de Salvador era (e ainda é) conhecida entre baianos. Esta estrofe, como as anteriores, remete à mudança de Jacinta e família do interior do estado para Salvador. 11 Elevador. Referência ao Elevador Lacerda, obra imponente inaugurada em 1873, para interligar as cidades baixa e alta de Salvador.

MIOLO.pmd 89 30/6/2010, 17:28 Este rio vai dar nas águas do mar. Serei rica ou serei pobre? Tomásia de Queiroz,12 minha criada! me diga o que somos nós. O meu pai é deputado13 democrata liberal – viva a eleição! terça-feira vou ao baile no Palácio Aclamação. 90 – Andar na rua sem chapéu ficará bem para nós? – Não fica! Minha irmã vai se casar com um doutor. Sou rica! – Vamos vender Campo Limpo para pagar nossa casa na Ladeira do Hospital.14 As meninas logo vão entrar na Escola Normal, é mais seguro, professora é meio de vida, ninguém sabe do futuro. Minha mãe, minha mãezinha, todo dia na cozinha,

12 Tomásia de Queiroz. Começou a trabalhar na casa da família Passos no final da década de 1910, aos 11 anos de idade, e aí permaneceu até morrer, octogenária, em 1980. 13 Em 1927, Manoel Caetano, pai de Jacinta, foi eleito deputado estadual. Seria novamente eleito em 1934 e em 1946. 14 Ladeira do Hospital. Nome popular da rua Frei Henrique, em Nazaré, onde, com recursos prove- nientes da venda da Fazenda Campo Limpo, Manoel Caetano mandou construir um sobrado, para abrigar a família. Jacinta viveu muitos anos neste sobrado, durante o final da infância, a adolescên- cia, a juventude e alguns anos da maturidade.

MIOLO.pmd 90 30/6/2010, 17:28 faz doce para vender: – Augusto Braço Cotó, vá entregar no Triunfo15 e cobre! Não diga nada a ninguém, meu bem. Sou pobre! Não sei se sou rica ou pobre, vivo lá e vivo cá, sou como a mãe de S. Pedro, entre o céu e a terra está. Passa passa 91 passará derradeiro ficará. Casa, escola, profissão, rua, igreja, multidão, vida, vida, solidão! Menina, minha menina, carocinho de araçá, cante estude reze case faça esporte e até discurso, faça tudo o que quiser menina! não esqueça que é mulher.

15 Triunfo. Bar elegante, onde eram servidos quitutes e bebidas, ponto de encontro masculino na Praça da Sé, em Salvador. O pai de Jacinta costumava frequentá-lo.

MIOLO.pmd 91 30/6/2010, 17:28 Minha terra tem gaiola onde canta o sabiá Menina minha menina, carocinho de araçá. Passa passa passará derradeiro ficará. Bernadete é preta, é preta que nem tição. Bernadete é pobre, 92 é pobre sem um tostão. Regina, Minervina, Estelita e Conceição.16 – Pelo sinal da pobreza! – Pelo sinal de mulher! – Pelo sinal da nossa cor! Nós somos gente marcada – ferro em brasa em boi zebu – ninguém precisa dizer: Bernadete, quem és tu? Nós somos gente marcada, nós temos muitos irmãos. Eu te conheço, José, José que desde menino trabalhas nas Sete Portas, teu patrão: “Seu Catarino”.

16 Bernadete, Regina, Minervina, Conceição. Nomes de serviçais da família Passos, no interior do Estado e em Salvador.

MIOLO.pmd 92 30/6/2010, 17:28 Eu te conheço, Manuel,17 tu és Manuel de Maria, meu compadre, estivador. Pelo sinal da nossa cor! Porque estás triste, Maria? deixa Manuel xingar, xingar também alivia: é uma forma de chorar. Nós somos gente marcada, nós temos muitos irmãos. Passa depressa Moisés, o Mar Vermelho secou! 93 Para a banda de lá, eu vou! Passa passa passará derradeiro ficará. Bom vaqueiro bom vaqueiro eh! dá licença de passar, já não vou sozinha agora, vou com Dade, Benedito, Pé de Anjo, com José, vou com Camilo, e com Tomásia,

17 Há outra referência de Jacinta ao mesmo Manuel, no texto jornalístico “O povo não pode mais ser enganado”, reproduzido nesta edição.

MIOLO.pmd 93 30/6/2010, 17:28 não vou só, Bernadete, Minervina, Augusto Braço Cotó. Vou de avião para S. Paulo, vou até o Orobó, Território do Alasca, vou virar um esquimó, me encontrar com Timochenko, Ludmila Pavlichencko, minha irmã, minha irmãzinha, que irmãzinha tenho eu, vou ver a estrela d’alva 94 que no céu se acendeu. Passa mato, passa rio, passa fera, passa frio, passa até Montes Cárpatos, vai custar. Quando a gente lá chegar, Venâncio! não precisas mais de pinga, Manuel nunca mais xinga, Lampião deixa o cangaço, Sinhá Anastácia não precisa mais rezar. – Que bicho hoje deu? que time ganhou? – O gato comeu O fogo queimou. O país para onde vamos, Estelita!

MIOLO.pmd 94 30/6/2010, 17:28 é uma terra tão bonita, parece até invenção. O país para onde vamos, Vitalina! fica aqui, fica na China, fica nas bandas do sul, fica lá no Polo Norte, principia onde termina, muito além daquele monte, lá na linha do horizonte, onde a terra encontra o céu. Já não vou sozinha agora, vamos, meu povo, 95 diga adeus, vamos embora.18

(1944)

18 Canção da partida” foi republicado, sem alterações, em Poemas políticos, livro seguinte de Jacinta.

MIOLO.pmd 95 30/6/2010, 17:28 Três canções de amor (para James)

I Eu fui por um caminho. Eu também. Encontrei um passarinho. Eu também. Passarinho! queres um ninho? Eu também. Passarinho virou um homem. Ai! meu bem. Agora és tu, agora eu sou, 96 amar é doce, meu corpo eu dou. Agora muda o sol. Eu também. Agora muda a terra. Eu também. Agora mudas tu. Cadê meu bem? Tão lúcido e tão puro, inseguro! Nosso amor é como tudo, um vaivém. Podes virar um passarinho. Eu também.

II Entrou por uma porta, saiu pela outra. Velha Vitória! conte o fim daquela história.

MIOLO.pmd 96 30/6/2010, 17:28 Era uma vez uma Princesa no Castelo de El-rei, na torre, vivia presa. Pronto! o resto, não sei. Cadê a Princesa? A Princesa fugiu? A terra tremeu? A torre caiu? Princesinha real, a Bruxa levou, nos ares voou, que Bruxa infernal! 97 o mundo mostrou o bem e o mal. Cadê El-rei, meu senhor? El-rei se escondeu na gruta sombria, dorme de noite, dorme de dia, parece até morto. Padre-Nosso! Ave-Maria! Meu amigo, meu amigo, companheiro! teu amor, minha alegria, – uma gruta bem sombria. Escondido lá no fundo cuidado! cuidado! está El-rei meu senhor, dormindo acordado! Nunca se fie no seu sono, sono de El-rei, meu senhor.

MIOLO.pmd 97 30/6/2010, 17:28 Não queiras nunca ser dono, negro! Ah! negro do meu amor!

III Abra a porta, queremos entrar.

Somos amantes, queremos amar. Hurra! Que porta pesada. 98 Que porta caturra. Empurra. Abra esta porta! Não somos mãos soltas, frágeis no ar. Somos punho e onda e gigante e andar. Abra esta porta! Já cresce o gigante maior que o mar! A porta de bronze vai arrombar.19

(1944)

19 A versão aqui adotada de “Três canções de amor” é a do livro Poemas políticos, onde foi republicado, com alterações muito pequenas.

MIOLO.pmd 98 30/6/2010, 17:28 Pânico no planeta Marte (A Scliar, Bernardo Zeibel, Clóvis Graciano, Guida Carone, Manuel Martins)

Acabem com isto! Façam o sol parar! Prendam Zebedeu! Esvaziem o mar! Meu Deus, que aflição! Fuzilem Maria! Tapem o vulcão! – Orai por eles, orai. Uai! Que vozes são estas? Parai! Não podemos dormir. São eles que vêm! Tapem o vulcão! 99 Será Lampião? Que vozes soturnas! Corujas piando nas trevas noturnas? Não enforcamos Tiradentes! Juro! Mula-sem-cabeça. Esconjuro! Fechem a janela. De onde sopra o vento? São uivos de cão. Agouro. Arrepio. Trememos de frio. – Orai por eles, orai. Por favor, esperai! Não queremos morrer. Prendam Zebedeu! S. Judas Tadeu! Esperai um instantinho! Estamos morrendo! Viver é tão bom, meu S. José do Quartinho! Quem é que vem lá? Não nos ouves, não? Assombração!

MIOLO.pmd 99 30/6/2010, 17:28 Uma coluna, uma coluna andando! Girando esmagando, vem para cima de nós! Eu morro! Socorro! Não queremos morrer! Vamos criar outro Hitler! Vamos virar curinga, cafuringa! Salazar! Mistura o preto com o branco, Franco! Qual o elixir que vai dar? 100 Vamos ser neutros. Acendam a luz. Escuro como breu. Como vai, irmão Laval? Que cheiro de sangue! Cão policial! Vamos inventar outra Gestapo! Sopapo! Olhem uma rosa, uma rosa vermelha! Limpem as fileiras, façam o expurgo! Uma rosa, rosa. Rosa sem cabeça. É Rosa de Luxemburgo! Quem é que vem lá? Quem bate estas portas? Almas das criancinhas mortas! Mortas de fome. Todo dia! Todo dia! Em Paris, em Santos, Feira de Santana, Oceania! Vamos rezar! Fuzilem Maria! Façam o sol parar!

MIOLO.pmd 100 30/6/2010, 17:28 Almas do outro mundo. Fantasmas! Miasmas! Olhem ali! Ali! É a alma do negro Zumbi! De quem será esta voz? É Lenine! Mateoti! Estão rindo, rindo de nós! – Orai por eles, orai. Trotsky, ressuscitai! Estamos morrendo! Ninguém arranja um remédio nem mesmo alegórico? Elixir paregórico! 101 Vacina! Mandem comprar penicilina, ligeiro! Para que serve o dinheiro? Acuda! Acuda, mamãezinha! Vamos jogar na Quitandinha! Vamos falar porcaria! Meu Deus, que aflição! Não queremos morrer. Não! É vem Rokossovsky! Nossos cavalos de corrida! Nossas Colônias de turismo! Abismo! Rádio. Avião. Tudo em vão? Nossos tapetes. Nossa fábrica! Adeus trustezinho, nunca mais! Nossa Rede de jornais!

MIOLO.pmd 101 30/6/2010, 17:28 Vamos ser sutis. O mal está é na raiz! Vamos defender a Família. Queres? Vamos ter muitas mulheres. A mulher do Ministro. A tal. A intelectual. Todas. Possíveis e impossíveis. Vamos ser irresistíveis. Quem avança na noite? São tropas marchando? Judeus massacrados? Quem avança? Europa no cárcere rumina vingança! Vamos fugir? Não adianta. 102 Vamos distribuir cachaça. Retórica e futebol. Vamos fazer Arte pela Arte. Cadê a Ciência, vamos comprar? Vamos chorar na cama. Não adianta. Vamos gritar! Que gosto de lama! Vamos ser caridosos. Anúncios luminosos! Invadiram a Europa! Berlim! Nosso fim! Estamos morrendo! Brasil! Argentina! Último refúgio! América do Sul! – Orai por eles, orai. A vida se vai! Guerrilheiros de Tito! Maldito! Quem foi que gemeu?

MIOLO.pmd 102 30/6/2010, 17:28 Prendam Zebedeu! A morte já vem! Que medo, mãezinha! Viver é tão bom! Chegou nosso dia! Tapem o vulcão! Fuzilem Maria! Depressa! Depressa! Meu Deus, que agonia! Sai, Demônio! Sai! – Orai por eles, orai.20 103 (1944)

20 Sob o título de “Pânico burguês”, somente a primeira estrofe deste poema foi republicada no livro seguinte de Jacinta, Poemas políticos. A dedicatória foi suprimida.

MIOLO.pmd 103 30/6/2010, 17:28 Canção da alegria

Urupemba urupemba mandioca aipim! peneirar peneirou que restou no fim? Peneira massa peneira, peneira peneiradinha, (Ai! vida tão peneirada) peneira nossa farinha. Olhe o rombo olhe o rombo 104 olhe o rombo arrombou! olhe o cisco olhe o risco urupemba furou! Eh! sai espantalho da ponta do galho! Escorra! Escorra! Tirai essa borra! Urupemba urupemba mandioca aipim! peneirar peneirou que restou no fim? Farinha fininha peneiradinha! Ai! vida, que vida nuinha! nuinha!

(1944)

MIOLO.pmd 104 30/6/2010, 17:28 Louvação do dinheiro

Chave do mundo, porta do céu, poder divino, submarino, louvado seja o vosso nome que mata a fome, vence a floresta, afronta a morte, asa, transporte ao reino místico, ar do cativo 105 contemplativo da pura essência da existência (bola de gude: beatitude) eixo da terra, sol do nascente, onipotente, varinha mágica do rei real, de todo o mal livrai-nos senhor mediador, venha a nós todos o vosso reino de sumo bem para sempre. Amém.

(1944)

MIOLO.pmd 105 30/6/2010, 17:28 Estrela do Oriente (para Ben Ami)

I Levantai-vos, párias de todo o mundo! Não vedes? Ela vem vindo, a Estrela do Oriente, alta, bela, imponente, os pés plantados no chão, traz o fogo no olhar e uma foice na mão.

II Canta, Jacinta, teu hino, louva a Estrela do Oriente. Mariana, Guiomar, 106 venham, venham me ajudar. Não sei a cor de seus cabelos, não posso saber, não sei as linhas do seu corpo, não posso saber.

Não posso vê-la à distância como vejo meu vizinho, serei o seu sexo ou seu dedo mindinho?

Mariana! Guiomar! Só na voz da própria Estrela podemos cantar.

(1944)

MIOLO.pmd 106 30/6/2010, 17:28 Metamorfose (A Dias, João, Divaldo Miranda, Luiz Rogério, Almir Matos, Osvaldo Peralva)

Fui moleque, jornaleiro, nunca tive opinião, ajudante de pedreiro, fui chofer de caminhão, trabalhei na Plataforma, operário de sabão, já morei oi! já morei no Taboão. Carneirinho! Carneirão! Olha pro céu! Olha pro chão! Céu é Barra, é Avenida, 107 outra vida! nunca a gente foi lá não. Nem eu sei como foi isso, foi feitiço, arte do Cão, mas um dia fiquei rico que nem o rei Salomão. Chave do mundo, tenho na mão. Desceu o céu! Subiu o chão! Minha gente venha ver coisa que nunca se viu, um mulato virou branco, subiu! subiu! A formiga criou asas, o pato passou a ganso, lagarta virou besouro, de repente virei tudo, virei até um rei mouro, virei sábio, virei gentleman,

MIOLO.pmd 107 30/6/2010, 17:28 meu cabelo virou louro, virei genro, industrial, tabu, ministro, escritor, quase viro ditador. Agora cheguei em cima, agora vi que eu sou dois. Quem sois? Minhas senhoras: Meus senhores: O meu drama começou. Serei moleque e rei mouro, 108 serei dentro e serei fora, serei ontem e serei hoje, serei noite e luz da aurora? Quem sois? Serei eu e serei tu, serei Sancho e D. Quixote, serei Deus e Belzebu? Não posso viver assim! Serei Pierrot e Arlequim, serei anjo e homem carnal, serei o ser e o não-ser, serei o bem e o mal? Serei foice e serei sigma? Enigma! Que serei eu afinal? Ai de mim! Serei o princípio e o fim?21

(1944)

21 Este poema foi republicado, após a morte da autora, na Revista da Bahia, Salvador, nº 15, dez. 1989 / fev. 1990, p. 123.

MIOLO.pmd 108 30/6/2010, 17:28 Canção do segredo

Tesouro escondido, quem foi que escondeu no cume do morro, quem é dono teu?

Tesouro escondido no cimo! no fundo!

Foi Adão, foi Adão no princípio do mundo?

Quem foi, foi Jasão?

Chi! Fale baixinho, 109 olhe o monstro-dragão!

Que medo! Que medo!

Tesouro escondido qual é o teu segredo?

Será o segredo da vida imortal?

Será liberdade achada afinal?

Não corras Dolores, também eu não corro.

Quem chega primeiro ao cume do morro?

Sozinho, ninguém!

Pelos séculos dos séculos. Amém!

MIOLO.pmd 109 30/6/2010, 17:28 Demos as mãos – mão na mão – mão na mão ligeiro primeiro matemos Ladrão, o guarda-tesouro, monstro-dragão.

Tesouro escondido segredo perdido no monte! na serra!

110 – mão na mão – mão na mão

Abri-vos montanha aos homens da terra!

(1944)

MIOLO.pmd 110 30/6/2010, 17:28 Cantiga de ninar (variação sobre um tema do Recôncavo baiano)

Su su su neném mandu, quem dorme na lagoa é sapo-cururu. Su su su cadê papai Ioiô? Dorme meu neném, mamãe já deu leitinho, boi boizinho não vem, neném dorme na cama. Su su su Dorme dorme dorme meu neném mandu. Boi da cara preta não não meu boizinho, não pegue neném, não, ele é meu filhinho. Su su su Quem dorme na lagoa 111 é sapo-cururu. Asa de morcego rabo de tatu. Menino não dorme menino faz manha, brinquedo não ganha não ganha vintém, seu papai é pobre, mãezinha também. Su su su Leve este menino para o murundu. Senhora Onda do Mar vestida de verde com franjas de luar, ninai meu filhinho fechai seu olhinho seu soninho velai que mamãe precisa fazer com papai, Senhora Onda do Mar, um planeta novo de neném morar. Su su su Quem dorme na lagoa é sapo-cururu. Sapo sapo sapo-cururu-ru-ru. Su su su22

(1944)

22 Com algumas alterações este poema foi republicado em Poemas políticos, versão aqui adotada.

MIOLO.pmd 111 30/6/2010, 17:28 Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?

– Esse gosto. Donde será que ele vem?

Corpo mortal. Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal? Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas, amor, do mar ou de mim? 23

112 (1944)

23 Republicado em Poemas políticos.

MIOLO.pmd 112 30/6/2010, 17:28 Navio de imigrantes (A Lasar Segall)

Gestos parados no limiar do céu e mar. Corpos largados desamparados, límpido tempo de primavera mora no fundo de vossa espera. Navio sombrio, que levas no bojo? – descobre o teu véu: navegas em busca da terra ou do céu? Corpos humanos 113 suportam corpos, seus desenganos. Corpo, cansaço, longa viagem, busca um regaço, terra ou miragem. Arca ou navio, nau ou galera, vens doutra era, séculos a fio. Qual o teu rumo? Levas o sumo da dor humana que se supera, vida ou quimera. No bojo teu, levas o sonho de Prometeu. Levas em ti o amanhã,

MIOLO.pmd 113 30/6/2010, 17:28 judeus do Egito a Canaã. Levas os negros, nau ou barcaça, e mais o drama de sua raça. Levas Chiquinha e sua dor, a dor que é minha. Levas Colombo, levas o povo e a descoberta 114 dum mundo novo. No limiar do céu e mar. Qual o teu rumo? Só tu resistes, as águas tristes cobriram tudo, sozinho, mudo, sinais profundos vês no horizonte, tu és a ponte entre dois mundos. Asas alerta, fim, descoberta, anunciação, ramo de paz, âncora, chão, beira de cais, ave, esperança, nau da aliança.

(1944)

MIOLO.pmd 114 30/6/2010, 17:28 Chiquinha

(Para Matilde, Maria, Regina, Lourdes, Marcelina, Tomásia e Bernadete)24

Chiquinha tão frágil, magrinha. Teu corpo miúdo o tempo secou, as formas redondas o tempo gastou. Pareces criança. Chiquinha, magrinha, que doce esperança te faz resistir? Que doce esperança mais forte que tudo, mais forte que o tempo, 115 cansaço, pobreza, mais forte que o medo, doença, tristeza, que doce esperança mais forte que tudo, à vida traz preso teu corpo miúdo? Chiquinha Chiquinha não lutas sozinha. A doce esperança te vem como herança e a luta também, do fundo dos séculos, Chiquinha, te vem. Teu corpo cansado lutou no Egito, as mãos, mãos escravas, abanaram leques e teu corpo nu,

24 Trata-se de empregadas domésticas da família Passos, no Recôncavo e em Salvador.

MIOLO.pmd 115 30/6/2010, 17:28 teus seios morenos e teus pés pequenos dançaram lascivos, ligeiros, airosos, deleitando o tédio de reis ociosos. Chiquinha, teu corpo, teu corpo cansado, foi corpo explorado na Mesopotâmia, na Pérsia e Turquia – haréns de sultão – foi pária na Índia, 116 na China e Japão. Teu corpo explorado foi mercadoria, espada e cavalo e vinho, foi orgia na Arábia lendária, de ardência e magia. Já foi, na Judeia, corpo apedrejado. Na Grécia, teu corpo vestido de túnica, foi Vênus olímpica, foi deusa na Arte, foi serva na vida. No Império Romano, teu corpo serviu a César, guerreiros, fidalgos patrícios, à flor da nobreza, miséria e grandeza, foi senhora-escrava, matrona impoluta, dama e prostituta.

MIOLO.pmd 116 30/6/2010, 17:28 Chiquinha Chiquinha durante dez séculos, teu corpo fechado nas torres feudais de imensos castelos, foi corpo arrancado da terra, da vida, corpo sem raiz, feito puro espírito, mistério e tabu, teu corpo adorado foi corpo explorado.

E quando as Nações, 117 nos , abriram caminhos ao mundo futuro, caminhos no mar em busca de terras, riquezas, escravos, teu corpo apanhado nas selvas da África chegou ao mercado vendido e comprado, teu corpo de negra, teus braços de serva, teu sexo de fêmea, teu ventre fecundo produtor de escravos dos donos do mundo. Teu corpo apanhado nas selvas da África, nas terras indígenas, nas tribos nativas das ilhas no mar, teu corpo ajudou Europa a crescer

MIOLO.pmd 117 30/6/2010, 17:28 e um mundo a nascer nas terras da América. Chiquinha Chiquinha não lutas sozinha. Chiquinha teu corpo ainda não é teu. Não é livre a vida. Não é livre o amor. Chiquinha teu corpo mudou de senhor. 118 Tu sabes Chiquinha que a máquina que move o mundo moderno te vem libertar? Tu sabes (isto sim, tu sabes) a máquina tem dono e tu tens apenas teu corpo de carne que pede comida e roupa e abrigo, teu corpo de carne agarrado à vida. A máquina precisa mover dinheiro! dinheiro! e tu precisas viver. O dono da máquina, teu dono e senhor, Chiquinha,

MIOLO.pmd 118 30/6/2010, 17:28 é teu comprador. Tu vendes teus braços, trabalho, energia, tu vendes teu tempo, descanso, alegria, vigor, juventude, beleza e saúde, futuro dos filhos, tu vendes, tu vendes, Chiquinha, que dor! tu vendes teu sexo, desistes do amor. A máquina te vem libertar. Dinheiro! Dinheiro! 119 A máquina te vem devorar. A máquina é monstro de lenda, é monstro-dragão, devora teu corpo, é bicho-papão, é monstro danado de muitas cabeças, tem corpo-serpente, rasteja no chão, seu hálito arrasa como um furacão, tem língua de fogo tem asas e voa, ligeiro, ligeiro, cuspindo dinheiro, devora teu corpo, devora teu povo, seu sangue e suor. A máquina te vem devorar.

MIOLO.pmd 119 30/6/2010, 17:28 Chiquinha Chiquinha tu sabes que a máquina te vem libertar? A máquina conquista a terra e o céu e o mar, a máquina, Chiquinha, te vem libertar. A máquina 120 prolonga teus braços, liberta teu corpo de serva doméstica, te arranca de casa, derruba as paredes limites, fronteiras do lar, doce lar – prisão milenar – e faz do teu corpo, cansado explorado e multiplicado na luta, esse mundo difícil, Chiquinha teu reino será. Chiquinha tu sabes que a máquina que move o mundo moderno te vem libertar?25

(1943)

25 Republicado em Poemas políticos, versão aqui reproduzida. A dedicatória só foi publicada na edição original.

MIOLO.pmd 120 30/6/2010, 17:28 Canção da liberdade

Eu só tenho a vida minha. Eu sou pobre pobrezinha, tão pobre como nasci, não tenho nada do mundo, tudo que tive, perdi. Que vontade de cantar: a vida vale por si. Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha. Eu sou planta sem raiz que o vento arrancou do chão, já não quero o que já quis, livre, livre o coração, 121 vou partir para outras terras, nada mais eu quero ter, só o gosto de viver. Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha. Sem amor e sem saúde, sem casa, nenhum limite, sem tradição, sem dinheiro, sou livre como a andorinha, tem por pátria o mundo inteiro, pelos céus cantando voa, cantando que a vida é boa. Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha.26

(1943)

26 Este poema foi republicado no jornal O Momento, Salvador, 11 de Junho de 1945, e no livro Poemas políticos, em versão aqui adotada.

MIOLO.pmd 121 30/6/2010, 17:28 Sangue negro (para Jorge Amado)27

Terras curvas do Recôncavo onde adormece o oceano, no teu subsolo circula sangue negro cor da noite, da cor do preto africano, preto cujo sangue escravo regou o solo baiano.

Terras curvas do Recôncavo onde adormece o oceano, de tuas veias abertas escorre 122 o petróleo baiano, sangue negro do Brasil.

Operário mestiço! tuas ásperas mãos – e tu não sabes disso – tuas mãos quando movem as máquinas do Poço movem forças latentes, movem forças criadoras, movem o Brasil, tuas mãos libertadoras.

Teu gesto inicial se transmite e propaga, repercute longe até nas selvas do Oeste e cresce, desdobrado como cresce uma onda de mar, cresce e acelera o ritmo de Volta Redonda, gerando máquinas sem parar, e gera usinas onde o ferro e os metais tirados das minas do ventre da terra,

27 Jorge Amado, à época intelectual comunista, residente em Salvador e já de grande sucesso, era amigo de Jacinta; ambos escreviam para o jornal O Imparcial. A partir de 1945, Jacinta tornou-se cunhada de Jorge, ao se casar com o irmão dele, James Amado. Cf. biografia de Jacinta Passos, nesta edição.

MIOLO.pmd 122 30/6/2010, 17:28 se transformam em carros e trens, navios e aviões, em armas de guerra. E as máquinas nascidas do teu movimento, rápidas mensagens humanas levarão, mensagens de conhecimento, mensagens de aproximação entre todos os brasileiros irmãos que a distância isolou, como estrangeiros, em plena solidão. O gaúcho galopando nos pampas do sul, freará o cavalo e vai, surpreso, descobrir no vale amazônico onde dormem forças primordiais, 123 que irmãos nortistas modelam um mundo novo, com a borracha, a borracha que desce dos longos seringais. No Nordeste, o vaqueiro cantará: O homem tira da terra, a chuva que o céu não dá. Rã quando canta não erra, é chuva que vai chegá, o homem tira da terra, a chuva que o céu não dá. Boi gordo pasta na serra, tão contente a gente está, o homem tira da terra, a chuva que o céu não dá. Quando venceu nossa guerra logo peguei a cantá, o homem tira da terra, a chuva que o céu não dá.

MIOLO.pmd 123 30/6/2010, 17:28 O lavrador largará a enxada que dos pais recebeu e moverá os arados mecânicos que os homens de outras terras lhe ensinaram através da distância e dos ventos oceânicos. Operário mestiço! teu gesto inicial que faz brotar os frutos e nascer as grandes cidades, teu gesto move as máquinas da indústria, move o Brasil, move o povo crescendo, amadurecendo, se tornando viril. 124 Terras curvas do Recôncavo onde adormece o oceano, no teu subsolo circula sangue negro cor da noite, da cor preto-africano, preto cujo sangue escravo regou o solo baiano. Terras curvas do Recôncavo onde adormece o oceano, de tuas veias abertas escorre o petróleo baiano,

sangue negro do Brasil.28

(1943)

28 Este poema foi publicado pela primeira vez na revista Seiva, Salvador, Ano V, Nº 18, Julho 1943, p. 10 a 13, e republicado no jornal O Imparcial, Salvador, 1o de Agosto de 1943, Suplemento, p.3. No jornal, a dedicatória não aparece. A versão do poema publicada em O Imparcial e em Seiva é a mesma, e difere desta. Naquela versão, está indicado que o poema foi escrito em Cruz das Almas.

MIOLO.pmd 124 30/6/2010, 17:28 Mensagem às crianças do mundo

Crianças da Ásia, a velha escrava lendária que embalou o berço dos primeiros homens do mundo, crianças da Ásia, a velha escrava lendária de cujo seio escorre a riqueza como um leite precioso que os outros homens do mundo arrancam da boca dos seus filhos. Crianças chinesas, pequeninos heróis de olhos oblíquos, na célula inicial do vosso ser ficou impresso o heroísmo cotidiano da resistência que já se tornou uma forma de vida do vosso povo, crianças da China. Crianças da Europa,

da França, Polônia, Itália, Bélgica, Suécia, 125 vossas pátrias entregaram-se ao invasor como mulheres que se entregam com medo, sem amor, vossas pátrias são escravas silenciosas, crianças da Europa.

Crianças alemãs, fabricadas, mecanizadas, exatamente iguais como soldadinhos de chumbo, que aprendem somente a odiar, que não conhecem um brinquedo, crianças sem infância, vós não sois vós mesmas, crianças da Alemanha. Crianças judias, vosso povo continua a sofrer, sobre vós pairam as mesmas mãos assassinas que degolaram, como há dois mil anos na Judeia, centenas de cabecinhas infantis e risonhas como as vossas, crianças judias. Crianças da Rússia, a pátria misteriosa cujo roteiro os donos do mundo ocultavam

MIOLO.pmd 125 30/6/2010, 17:28 como os antigos roteiros dos tesouros que os bandeirantes, ávidos, buscavam, crianças da Rússia, a pátria misteriosa que Stalingrado revelou ao mundo. Crianças nativas das ilhas oceânicas, vossos olhos descobrem que para além das praias e dos coqueiros não existe apenas o mar. Vossos olhos espiam assustados as grandes aves metálicas e os monstros marinhos carregados de homens, homens dos continentes distantes que vêm matar e morrer nas vossas ilhas oceânicas.

126 Crianças da África, dessa África que no deserto e nas selvas luta há milênios, luta para ser, luta elementar e titânica contra o sol, o vento, as águas, as feras bravias e o homem branco. Crianças da América mestiça, a mulher nova e livre que concebeu Juarez, Castro Alves, Whitman e Bolívar.

Crianças do mundo, guardai esta mensagem até o dia em que vossos olhos descubram que não é apenas um papel rabiscado ou uma lição difícil de soletrar. Muito além desta hora terrível, o pão, o fogo, a água, a terra, o ar, alegrias elementares pelas quais os homens lutam, permanecem.

MIOLO.pmd 126 30/6/2010, 17:28 Muito além das dores e dos ódios milenares, muito além de todas as coisas, muito além do bem e muito além do mal, a vida permanece.

Muito além desta hora terrível, chegará um tempo no tempo em que a polícia, a moral, as leis e todas as coisas acidentais serão inúteis para a comunidade humana como remédios para um organismo que recuperou a saúde.

Chegará um tempo no tempo 127 em que na terra conquistada, os homens, todos os homens, como vós, minhas puras criancinhas receberão a vida, a vida simplesmente, como o dom supremo.29 e 30

(1942)

29 Este poema foi publicado primeira vez, com outra versão, na revista cultural Seiva, Salvador, Ano IV, Nº 15, dezembro 1942, p. 12 e 13. 30 Completam o livro Canção da partida os seguintes poemas, republicados do livro anterior: Cantiga das mães, p.75, Carnaval, p.71 e Canção simples, p.66.

MIOLO.pmd 127 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 128 30/6/2010, 17:28 Poemas políticos

Canto y cuento es la poesía. Se canta una viva historia, cantando su melodía. Antonio Machado

Para James esta lembrança do Pontal do Sul

MIOLO.pmd 129 30/6/2010, 17:28 O TERCEIRO livro de Jacinta Passos* reúne poemas inéditos, além de uma coletâ- nea de poemas do Canção da partida. Os inéditos, subdivididos em “Poemas políticos” e “Canções líricas”, foram compostos entre 1946 e 1950, mais provavel- mente entre 1948 e 1950, quando Jacinta viveu em uma fazenda no sul da Bahia. Os poemas políticos acrescentam inovações temáticas e formais à obra da autora. E as canções líricas desenvolvem ao limite experiências poéticas que ela vinha exercitando desde o livro anterior. Primeiro livro de Jacinta editado no Rio, Poemas políticos reforçou o prestígio da autora junto aos círculos de esquerda e tornou seu nome conhecido no meio literário da então capital do país. Completam Poemas políticos os seguintes poemas, republicados dos livros anteriores: Canção da partida p.85, Três canções de amor p.96, Pânico no planeta Marte (com o título Pânico burguês) p.99, Cantiga de ninar p.111, Diálogo na sombra p.112, Chiquinha p.115, Canção da liberdade p.121, Cantiga das mães p.75, e Canção simples p.66.

* POEMAS POLÍTICOS. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951. 87 p.

MIOLO.pmd 130 30/6/2010, 17:28 Poemas políticos

O latifúndio

Aqui o lugar. Na meia-noite de sombras e selva, ruminam bois, ele chega sonâmbulo. – Te esperava, filho. (Velhos conhecidos, o monstro e a grande jaqueira verde-negro maternal de cúpula folhuda.) Quem chega é um homem ah! mas que face terrível, no olhar que ferida funda de animal sozinho e a dor, desabrigo e frio, doenças, sol de verão, pobre corpo minado, ah! crua dor de fome, dor de terra sem fruto, animal com sua dor antiga sozinho no latifúndio. 131 Aqui o mistério acontece e a grande jaqueira guarda segredo; mas contam que esse monstro macilento, nu, come da terra e fica espojando no chão. Depois cresce a noite. Depois o segundo canto do galo: eis o lobisomem correndo na estrada, seu uivo longo, ouviste? A coruja e o rio, quando ele passa, já sabem: a noite se abriu em duas. Pernas de cão feito lebre correm como o vento no vale estreito entre serras. – Mãe, quem pisou na cumeeira? (o menino corta o sono de choro mal-assombrado) Rastro de vingança e cinza e sangue nas fazendas dos crimes oligárquicos. Madrugada de reses mortas. Águas barrentas, a flor

MIOLO.pmd 131 30/6/2010, 17:28 do café no chão. Oh! quem fez o cacau pecar e abriu em feridas a folha felpuda do fumo? Corre-léguas vai no faro das cidades longe. (Diz o povo que é Mãe-Velha quem sabe? aquela que mora só, com seus sapos, na cabeceira do rio. Teve filhos, mas se foram, oh! faz tanto tempo que emigraram para o sul. Quantas luas ela viu? Ninguém sabe. Mora ali há cem anos? Muito mais, 132 do tempo dos donatários daquela capitania. Vive a era do cavalo. Seus olhos não viram nunca uma rua. Tudo em vão. Trem de ferro passaste, máquinas, ó flor elétrica dessa era, velocidade, passaste em vão. Diz o povo que é Mãe-Velha. Ó terra de tanto sofrer.)

Corre-léguas vai no faro das cidades longe na orla do mar, metrópoles maciças, altas de cimento e luz, corpo de aranha faiscante. Cidade que dormes envolvida em fluido manto de ópio, acorda. Teu sono tem muitos séculos, ó cidade, não sentes as veias secando? Vais morrer, virgem louca, o bicho da terra sugando na noite teu sangue, respiras ainda? Teu crescimento

MIOLO.pmd 132 30/6/2010, 17:28 parou, vais morrer, virgem louca, cidade de ópio. Corre-léguas vai no faro das cidades longe carregando seu segredo: – uma gota de meu sangue com esta faca terás sou a tua outra metade desencanta o meu encanto ou eu vou te devorar. Depois vem a barra do dia, sete cores no céu, a fala da jaqueira e uma faca enterrada no chão. 133 – Até outra hora, filho.1

1 Este poema foi republicado, em vida da autora, na revista Violão de rua, edição extra, 1963, p.86- 88. Não se sabe se Jacinta, então vivendo em Sergipe, tomou conhecimento da edição.

MIOLO.pmd 133 30/6/2010, 17:28 O rio

Tantos rios como eu abriram leito de pedras e pranto. Um dia perguntávamos:

– Dizei-me, curva, aonde vou? casa tronco rocha sois aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva, falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros na garganta no útero, pranto de mulher, água de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, aonde vou?

Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo, atravessou olhai, ele! 134 ali na frente, vivo, tão vivo, ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa.

nascimento

O ano foi vinte e dois.2 Criatura de desejo e sonho. Carne e luar na boca das profecias.

Aqui está recém-nascido úmido de lágrimas e leite, filho das dores, criança concebida

na injustiça.

fala materna

Te contarei muitas coisas, filho. Te criarei tão forte

2 Vinte e dois. Referência ao ano de 1922, quando foi fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

MIOLO.pmd 134 30/6/2010, 17:28 e tão sábio que serás um herói novo do século, filho, proletário, punho meu libertador.

Não tenho dote nem joias nem tapete de veludo para amaciar caminho. Só tenho mesmo é um livro. Um livro para te dar. Como se eu te desse olhos novos. E exatos, filho. Aqueles olhos com que Marx viu a História e saudou teu nascimento.

(Baixinho agora, vamos conversar baixinho, são dramas de família. 135 Tenho uma irmã rica,3 filho, e poderosa, nasceu muito antes de mim. Quando vi a luz, ela já era grande dama senhora minha. Dona da lei e da alegria no mundo. Por isso nasceste, filho, fora da lei. Teu avô, o velho rei caduco,4 não se governa mais. Ficou possesso. Essa dama é velha bruxa criminosa avara. Vai morrer. Sabe que vai morrer. Morrerá, meu filho, por tuas mãos. Está escrito. Por isso te farei de ternura e aço. Por isso ela te persegue tanto, quis te matar no meu ventre. Ela não é gente, filho, não tem veias nem músculos. Só tem a pele seca, é oca por dentro, a bruxa sustentada de veneno como cobra na fúria.)

3 Tenho uma irmã rica. Referência à burguesia. 4 Teu avô, o velho rei caduco. Referência à aristocracia e à monarquia.

MIOLO.pmd 135 30/6/2010, 17:28 Serás tão forte e tão sábio, filho.

Zumbi dos Palmares. Tiradentes. As primeiras greves. Os dezoito do Forte.

Muitos rios correram antes. Tu, maior que todos.

sumidouro

Vinte e três anos:5 águas fermentaram 136 na terra.

Cavou chão. Fez leito. Abriu tocas e cavernas feito bicho teimoso.

Caminhando foi crescendo águas iguais recebeu as raízes conheceu viu semente começar.

Viu a mão do camponês Por cima das catacumbas ouviu os pés da Coluna6 e os passos da Aliança.7

5 Vinte e três anos. 23 anos após sua fundação, em 1945, o PCB foi legalizado. 6 Coluna. A chamada “Coluna Prestes”, marcha de um grupo de pessoas, durante dois anos, por 13 Estados brasileiros, contra a República Velha e seus governantes; foi liderada, entre outros, por Luiz Carlos Prestes, que à época ainda não era comunista. Ver A Coluna, quarto livro de poemas de Jacinta, integralmente dedicado ao tema, reproduzido nesta edição. 7 Aliança. Aliança Nacional Libertadora (ALN), frente ampla contra o fascismo e o imperialismo. Fundada em 1935 e neste mesmo ano posta na ilegalidade, foi liderada pelos comunistas, mas dela participavam também socialistas, católicos e democratas, preocupados com o avanço internacional e interno do fascismo.

MIOLO.pmd 136 30/6/2010, 17:28 Rio de suor e silêncio.

Agora é rio da terra. Amazonas. São Francisco. Rio da Prata. Carregado de cobras e piranhas e madeira boiando. Lutas. Dramas e coisas. Do Brasil.

1935 8

Tenso como rede de nervos pressentindo ah! novembro de esperança e precipício. 137 Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta, soluço seco dor sem nome. Ferido. De morte ferido. Como um animal ferido. Luta de entranhas e dentes. Natal. Sangue. Praia Vermelha.

Sangue. Sangue. É quase um fio escorrendo sangrento tenaz por dentro dos cárceres,

8 1935. Data da rebelião militar liderada pelos comunistas que, planejada para explodir em todo o Brasil em novembro de 1935 e tomar o poder, eclodiu apenas, e de forma muito tímida, em Natal, Recife e Rio de Janeiro, sendo rapidamente esmagada. Seus líderes, inclusive Prestes, foram presos.

MIOLO.pmd 137 30/6/2010, 17:28 nas ilhas e nos corações que a esperança guardaram.

na praça

Europa treme até nas águas e no ar.

(Nações em carne viva sangrando machucadas sob as botas do rei. Nas areias do deserto

rodam tanques de morte. Dakar fica mais perto do que nunca. Torpedos mancham de sangue as portas 138 de nossos mares. FEB do povo nasce. Vem

a peleja final. Os aliados vacilam,

Rússia cresce indômita. Só. Perante o mundo recém-despertado.)9

A força do terremoto chegou até aqui. Noite densa, reuniu águas desagregadas, marés de lua cheia forçaram portas ferrenhas de prisões. Povoou as ruas, vinde ver as ruas! Que festa de palavras e bandeiras e flores e desfiles nas grandes capitais.

Maio de S. Cristóvão. Palavra inédita de gume e fogo e rumo e onda se espraiando nos confins da pátria comovida. Pacaembu de arena clara. Não mais o grande Capitão da lenda. Fulgor na bruma.

9 Esta estrofe refere-se à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e à participação do Brasil nela, via Força Expedicionária Brasileira (FEB).

MIOLO.pmd 138 30/6/2010, 17:28 É Prestes próximo concreto lúcido sofrido, conosco, crescendo.

Visão de mar nas ruas, ah! comícios de pétalas e palmas e multidões crescendo ávidas de nordeste a sul.10

Quinze cadeiras.11 Lodo e sangue nas escadarias. Ouro nos portais. Quinze cadeiras. Voz implacável no Parlamento, acesa.

Veio a curva.

(Fôlego, pulso, rumo. E o livro materno e mágico. 139 Para trás ficaram águas. Efêmeras. Paradas outras, nas margens podres, larvas gerando.)

as fúrias e a carta

I

– Estas mal traçadas linhas Mister, são carta de puro amor. Tive notícias do rei. Será verdade? Lunático?

Ai que vida tão patética meu pobre pai sorumbático.

10 A estrofe canta o final da Segunda Guerra mundial e, no Brasil, o fim da ditadura do Estado Novo em 1945, assim como a grande popularidade alcançada, neste ano, pelo PCB e por Luiz Carlos Prestes, libertado da prisão. 11 Quinze cadeiras. Referência ao número de cadeiras (14 deputados e um senador) conquistadas pelo PCB na Assembléia Nacional Constituinte de 1946.

MIOLO.pmd 139 30/6/2010, 17:28 Dizei-lhe do meu pesar pela perda do Império Alemão, que Deus console, e dos povos infiéis. Alteza, que importa a China? Por detrás desta cortina faremos te coroar.

Salve rei! O Novo Mundo é teu novo pedestal.

Recebi os mensageiros 140 Mister, do rei venerável. Beijei-lhe a mão no Palácio Tiradentes. Dei discursos castiços salamaleques e banquetes até rosa eu lhe cedi, respeitosa.

(Ó povo, cala esta boca de injúria e maldição. Sou vendida e prostituta?

Tu falas porque não sentes meu dilema: as portas abro da casa ou as graças perderei.

Ó povo, cala esta boca. Eu sou herdeira do rei.)

Minha casa tem riquezas de petróleo e manganês

MIOLO.pmd 140 30/6/2010, 17:28 sou a bela anfitriã Mister, que mais quereis? Cacau? Cristal? Paulo Afonso? Prazer de servir o rei.

Generais de traição? Tenho alguns. Bases? Soldados? Mais difícil. Explicarei.

Tenho ferro bem barato prazer em servir o rei.

Agora meus instrumentos 141 de uso revelarei. Meu olho policial, togas sujas, meus partidos, os inventores da lei e cabeça sifilítica do meu curto presidente.

Agora aqui lembrarei com licença, nosso dólar. Prazer de servir o rei.

Ora, direis, tudo certo, e a chave de segurança?

Tenho a chave, caro Mister, é pedra fundamental, sobre ela repousando o país mudará. Nação em duas metades o campo suga as cidades,

MIOLO.pmd 141 30/6/2010, 17:28 o país não crescerá. Pedra de fato e de lei Deus conserve o latifúndio yes, Deus salve o rei.

Vou terminar com palavras de puro devotamento. Dizei ao rei como sinto seu crucial sofrimento. Ai vida tão dilemática! Paz? é a crise crescendo povos infiéis crescendo. 142 Paz? é a Rússia maior. É o desemprego aqui. Guerra? mas guerra é a força da correnteza mais rápida circulando no planeta. Guerra? espada de dois gumes salvai o peito do rei.

Digamos com Mister Truman: salvai o peito do rei.

Brasil de quarenta e nove. Assinado, a grande dama.12

12 Todo o Canto I de “As fúrias e a carta” refere-se, de forma crítica, à aliança entre o imperialismo e a burguesia nacional, que é a narradora deste canto. O PCB, a partir do chamado “Manifesto de Agosto”, de 1950, radicalizou posições, pregando o final da política de alianças com outros setores e a luta armada contra o latifúndio e o capital estrangeiro.

MIOLO.pmd 142 30/6/2010, 17:28 II

Lenine, do outro mundo ri com seus olhos oblíquos. (Até rasgaram o Livro da Lei para enterrar o rio)

Mas ele agora é a lei viva nova nas ruas, impávido crescendo. Olho policial presente. Fúrias

e sangue nas praças.

Praça da Sé, Patriarca, S. Jerônimo das Minas, ferrovias de Bauru. Fernandópolis, Tupã, canaviais S. Amaro. 143 Metalúrgicos do Rio, Morro Velho dos mineiros, tecelões de Sorocaba. Do Largo da Carioca pela estiva de Santos vem caindo florescendo o sangue vem bradando por minas e ferrovias por asfaltos e muros, cárceres e casas, campos fábricas e metalúrgicas bradando vem pelos canaviais13

coral

– Forte como um touro, dizem.

– Na passagem de seus pés nascem caminhos.

Sua palavra não viste descer do céu nos quatro ventos? Semente no bico dos passarinhos.

13 Os dois cantos de “As fúrias e a carta” foram publicados pela primeira vez no jornal O Momento, Salvador, 17 de dezembro de 1949, p. 5 e 6. O segundo canto exalta greves e movimentos populares da época.

MIOLO.pmd 143 30/6/2010, 17:28 – Tão forte e tão sábio, dizem.

– Alta madrugada, sua mão escreve nos muros: cidade, vigiai comigo, na casa de minha mãe conheço dor de fome e de frio. Tanta fartura dorme cidade, o progresso dorme, preso onde? na mão dos poderosos. Em verdade vos digo. Tempo de crescer. Cidade, vamos. Vinte e oito anos: avançai comigo. 144 – Louvado seja seu poder de frutos.

– Louvado. Que estes campos nunca viram tanta esperança. Nem depois das chuvas viram.

– Sua voz, ouviste? “A terra será da mão que planta e colhe”.

– Custei de acreditar.

– E eu. Tanto viveu meu pai e nunca teve espera. Só cansaços e penas.

– Na terra sem trato até ouvir se pode alvoroço de grão. Espigas de milho e laranjais se ouvem.

–Ah! não morrerei sem ver com estes olhos que a terra há de comer.

MIOLO.pmd 144 30/6/2010, 17:28 (Louvado seja teu nome e tua raça. Tens um irmão em cada pátria, louvado seja. O ventre de tua mãe louvado seja. De pura luz tua coroa será.)14

o salto

Água funda rio maduro homens do leme eis o mar.

Água funda, rio maduro e força para saltar. 145

mar

Cidade e campo. Branco e negro.

Mar.

Mulher e homem. Mar.

Burguesia e homens. Tudo é mar. Aqui o rio deságua e a história do homem principia.

14 O coral celebra o trabalho desenvolvido pelo PCB à época, sobretudo na área rural.

MIOLO.pmd 145 30/6/2010, 17:28 A morte do coronel

I Era figura de proa sim senhor, esse varão soberano. Já foi rei de Madragoa. Sangue quente, pele cor de caraíba. Era figura de proa. Como o pai herdara título, reino, chicote e coroa. – Pobre dele, está nas últimas. 146 Na sala dos comentários se reza cochicha lá no quarto de telha-vã ele pena no sofá. Agora já não é mais que triste carne sumindo, força de lua minguando. Dizem até que carregava algumas mortes, coberto de ouro e prata. (A doença entrou no corpo, feitiço pela boca dos rendeiros.) Candeia, cadê teu lume força do corpo viril? Patrão cacique de grei, dez filhos dentro de casa e sete fora da lei. Lá se vai. Ó corpo, cadê teu lume? Ó candeia, alumiai. Parentes de sentinela, exército de salvação:

MIOLO.pmd 146 30/6/2010, 17:28 – Vinde, ó poderes divinos salvai os pés da nação. – Este homem é uma coluna não pode morrer assim, vinde, estrangeiro do dólar vosso amigo está no fim, movei polícia e tirano com cara de querubim movei ralé da colônia, mares de whisky e de gin Ó Santa Igreja Católica vosso amigo está no fim.

II 147 Gente, que olho é aquele espiando na vidraça? (Será delírio febril cadeia mortiça e baça?) Não é um olho sozinho. Que se passa? São dois são dez um milhão na vidraça. Vinte milhões espiando o sinal de morte enfim dessa figura de proa. (É povo de Madragoa na vidraça.) Ó rei chicote e coroa triste rei de fim de raça.

MIOLO.pmd 147 30/6/2010, 17:28 O enforcado

Ninguém viu a face. Seus longos cabelos de mártir, alumiando o mar. Contam que ele desce das montanhas, noite alta e vigia. Anda sobre as ondas e o velho Atlântico vem muitas coisas lhe contar: – Das montanhas recebo também amigo, os grandes rios carregados de drama. Vês o Mississipi? (Povo, ó povo do país do norte minhas águas são de espanto sacudidas.) 148 Vês este perfil de montes e areia ondulando e a cintura tão fina? Pois cresce neste corpo bem-amado um tumor de morte, devorante. (Ah continente meu rosa de outubro espada de dois gumes, América.) O crime se prepara aqui em casa o crime maior indústria de sangue que se chama guerra. (Aurora dos povos ó múltipla que tua unidade amadureça logo. Fitai o norte! o crime cresce contra nós seus poderes malignos contra ti, ó povo do norte, estás conosco.) Das cabeceiras dos rios descem chamas e cólera. Que se passa? perguntam. Mas eu, eu conheço estas terras por dentro.

MIOLO.pmd 148 30/6/2010, 17:28 Aqui é Brasil. A infâmia outra vez. Te lembras, Tiradentes? o quinto do ouro, a família real, e o vinte e um de abril? Eu sei do medo e da cobiça. O demônio nascendo no turvo. O demônio da guerra nascendo no cérebro dos cavaleiros do lucro: – Não podemos parar. Não queremos morrer e a terra sob os pés estrangeiros. Aqui é Brasil: ódio puro ódio, florestas e cidades acesas, punhos altos se multiplicando. Ah! cavaleiros do lucro, como sois pequenos. Sangue do asfalto de Esplanada aos campos de Tupã. O operário desperta e comanda. Ágil como um gato salta até junto das minas. Monta guarda ao petróleo: – alto lá, traidores. Disto não fareis semente de morte. Rosa 149 e fartura nascerão daqui. Sessenta famílias de ganância e crime. Até a Paulo Afonso, ó servos da infâmia? São Francisco insultado vem rugindo: assanhai piranhas! caatingas do serão, espinheiros de jurema, de tocaia! para engolir os gringos invasores. (Sabia dessas coisas, Mister Truman? – aqui quem lhe fala é o velho Atlântico. Ah! Excelência, quantas surpresas na casa de José Joaquim, o Enforcado.) Contam que ele desce das montanhas, noite alta e vigia. Longe, além do tempo, o que fica a olhar? Anda sobre as ondas. Seus longos cabelos de mártir, alumiando o mar.15

15 Este poema, em versão ligeiramente diferente, foi lido por Jacinta na sessão de encerramento do III Congresso Brasileiro de Escritores, em Salvador, 1950. Cf. suplemento Congresso Brasileiro de Escritores, s.d.

MIOLO.pmd 149 30/6/2010, 17:28 Elegia das quatro mortas

I Chegas de manhã, tranquila. (Não estás morta, morta, amiga, no chão, desfeita, de um país de brumas?) De manhã, tranquila. Quando a luz do dia vem clareando o céu, as coisas e a lembrança. Olga,16 de manhã. (Não estás morta, morta, amiga, não te levaram num navio, sofrendo?) 150 Tu, aqui, tranquila: teu vulto claro de alemã, tão nosso, tão do Brasil teus olhos bem amados, translúcidos, e o rosto longo e os cabelos finos. (Não estás morta, morta, amiga, crime de feras contra flor tão pura?) De manhã conosco: aquela mesma luta antiga e dura, tão dura às vezes, bem sabes como exige. Tranquila, conosco: muita coisa, Olga, foi mudando depois daqueles tempos: num campo de suplícios, tua filha nascendo. Não, não esquecemos

16 Olga. Olga Benario (1908-1942), alemã e judia, desde muito cedo ligada aos comunistas. Muito jovem, fugiu com o namorado e líder comunista Otto Braun da Alemanha para a URSS, onde recebeu treinamento militar. Em 1934, foi encarregada de acompanhar Luiz Carlos Prestes, foragido na União Soviética, de volta ao Brasil, e de protegê-lo. Durante a viagem de navio, os dois se apaixonaram. Viveram clandestinamente no país, mas, após a derrota da Revolta de 1935, liderada pelos comunistas, Prestes foi preso, e Olga, grávida, foi deportada por Getúlio Vargas para a Alemanha. Lá, na prisão, deu à luz, em 1936, à filha, Anita Leocádia, entregue à avó paterna. Transferida em 1938 para um campo de concentração nazista, Olga Benário foi executada numa câmara de gás.

MIOLO.pmd 150 30/6/2010, 17:28 o Estado Novo, os crimes do fascismo e teu corpo de bravura resistindo: mas a luta é cada vez mais uma só: lembras da Alemanha em tua juventude de sonho e combate? Um lado de sombra ainda, de luz, outro lado: tudo será luz una, de alegria que da barra do Oriente vem raiando, da Rússia vem como de um sol a pino, e de nós, os povos duros, sugados, na sombra, duros, combatendo.

Prestes. Prestes. Ah! 151 nunca se viu tanta esperança terrena. (Não estás morta, morta, amiga, de tantas dores com que te mataram?) Chegas de manhã, tranquila.

II Também tu: de crespa cabeleira viva, de onde vens morena de manhã? – Pelas costas. Me mataram pelas costas. Covardia. Pois se mata assim um ser humano? Ah! Zélia.17 O cão policial teve medo de olhar teus olhos. Foi no ano de quarenta e nove. Foi na rua. No Rio de Janeiro, capital.

17 Zélia. Zélia Magalhães, militante comunista. Durante violenta repressão do governo Dutra a um comício organizado pelos comunistas na Esplanada do Castelo, centro do Rio, em novembro de 1949, Zélia, que estava grávida, foi morta por um tiro da polícia.

MIOLO.pmd 151 30/6/2010, 17:28 – Meu filho ia nascer: mundo mais humano, o que eu queria. Tão simples. Assim teu sonho era, o nosso, de fartura e paz. Será feito pela mão dos pobres (pobres não eram tuas mãos de mulher irmã das mãos do negro, do camponês e do trabalhador?) Pela mãos dos pobres que têm fome e sede de justiça na terra. 152 III Flor de tristeza, vagarosa, Dade,22 Foi assim que te vi no campo, um dia. Tu vens chegando, tua fala, lenta: – não sou de natural assim tão triste mas labutei demais e me acabou. Treze homens levaram teu caixão por cinco léguas de caminho ingrato. Flor de existência malograda, flor (não conseguiste nem as miudezas de teu desejo: ah! era de uma volta de ouro, como gostavas! E um vestido de seda verdadeira. Ouço teu riso, risada ruidosa, da garganta)

18 Dade. Empregada doméstica na residência da família Passos, Dade é citada também no poema “Canção da partida”, do livro homônimo: Dade na fonte,/ Dade na lenha,/ dez filhos deu a mundo,/ está plantando roça,/está na casa da farinha,/criou cinco filhos brancos/e depois morreu sozinha./ Neste “Elegia das quatro mortas”, Jacinta traz a figura anônima de Dade para junto de três mulheres que, à época, eram heroínas da esquerda brasileira.

MIOLO.pmd 152 30/6/2010, 17:28 Treze homens levaram teu caixão. – Morreu de quê? – perguntam. A doença já encontrou teu corpo consumido: onze filhos, pobreza, mais a roça, mais água e lenha e casa de farinha. Morreste sem remédio como um bicho: desconhecias o poder das letras, da medicina e da luz elétrica. Nenhum relógio marcou teu passamento. Treze homens levaram teu caixão. Flor de tristeza, vagarosa, Dade, foi de morte matada que morreste 153 e bem sabias. O crime não tem data: morte lenta geral antiga fria: o latifúndio acabou contigo. – Não sou de natural assim tão triste. Tu vens chegando, tua fala, lenta acusa e tua voz se anima agora (“a terra será da mão que planta e colhe”) é de esperança flor recuperada.

IV Na frente. Na frente maduros. Caminhando na frente maduros. Era o dia Primeiro de Maio. Na frente. No Rio Grande, cidade do sul.

MIOLO.pmd 153 30/6/2010, 17:28 De repente. De repente, atiraram. (– Onde estamos? – Foi da sombra. Atiraram. – A polícia? Da sombra? Covardes!) De repente. De metralha e fuzil. (– Mas quem foi que mandou atirar? – Foi a sombra. Estrangeiros do dólar.) Atiraram. Mataram Operários sem armas, mataram. 154 (– Ah! governo sem lei nem vergonha!) Foi assim. Angelina19 mataram. Quatro mortos. Maduros. Caminhando na frente maduros. Levantando e bandeira, Angelina. Era o dia da classe operária. Na frente. Protetora da pátria, Angelina. Foi no ano feroz de cinquenta. Foi no ano feroz do fascismo. Era o dia Primeiro de Maio. No mundo. No Rio Grande, cidade do sul.20

19 Angelina. Angelina Gonçalves, tecelã, morta a tiros pela polícia em 1º de maio de 1950, na cidade de Rio Grande, RS, durante comício organizado pelo PCB. Angelina retomara a bandeira do Brasil que a polícia arrancara dos manifestantes. Tinha 30 anos. 20 Fragmento deste poema foi publicado na revista Violão de rua, edição extra, s.d., p. 89-90.

MIOLO.pmd 154 30/6/2010, 17:28 Canções líricas

Canção atual

Plantei meus pés foi aqui amor, neste chão. Não quero a rosa do tempo aberta nem o cavalo de nuvem não quero as tranças de Julieta. Este chão já comeu coisa tanta que eu mesma nem sei, bicho pedra lixo lume muita cabeça de rei. 155 Muita cidade madura e muito livro da lei. Quanto deus caiu do céu tanto riso neste chão, fala de servo calado pisado soluço de multidão. Coisas de nome trocado – fome e guerra, amor e medo – Tanta dor de solidão. Muito segredo guardado aqui dentro deste chão. Coisa até que ninguém viu ai! tanta ruminação quanto sangue derramado vai crescendo deste chão. Não quero a sina de Deus nem a que trago na mão. Plantei meus pés foi aqui amor, neste chão.

MIOLO.pmd 155 30/6/2010, 17:28 Canção para Jana

Riso de abril rompe a neblina, rosa menina.

Crescei, ó cabelos de chama, carne de rosa e pudim.

Cor de pitanga boca miúda riso, alfazema, patchuli.

(Água do rio eu te darei 156 leite com mel chapéu de rei limão caixinha e datacum. Passearei com lô-lô-lô bilu-bilá nane ninou.)

Flor buliçosa rosa crescei.

Água dos mares da Bahia.

Na sombra aqui destas asas até um dia.21

21 Estranhamente, o poema parece prenunciar o afastamento entre Jacinta e sua filha Janaína, a Jana, que efeteivamente aconteceu, a partir do final de 1951. Cf. biografia de Jacinta Passos, neste volume.

MIOLO.pmd 156 30/6/2010, 17:28 Canção do amor livre

Se me quiseres amar não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta feita de escamas de pedra e limo dentro de ti, pelo sangue recebida tecida de medo e ganância má. Ar de pântano diário nos pulmões. Raiz de gestos legais 157 e limbo do homem só numa ilha.

Eu digo: também a crosta essa que a classe gerou vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto. Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre. Madeira e água deslizante, fuga ai rija cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso sem memória, noturno.

MIOLO.pmd 157 30/6/2010, 17:28 Canção de brinquedo

Reino da terra riso será. Menina, esse riso não é de graça, tempo virá. Ó riso custoso rei e rainha em teu lugar. Ó flor de sangue tempo virou tempo virá. Abre, ó roseira 158 reino da terra riso será. Tens medo do risco? Segura o novelo Entra na roda e dança, ó menina. Tens medo do risco? Não és flor sozinha: um olho aceso entre as mulheres criatura minha. Um grão de milho cravo criança camaradinha. Araçá-mirim. Segura o novelo. Agora sim. Flor no cabelo entra na roda e dança, ó jasmim.

MIOLO.pmd 158 30/6/2010, 17:28 Chamado de amor

Tanta laranja madura ai tanta! que aroma vem do quintal.

A maré já deu passagem cresce meu canavial

minha vara de condão cavaleiro, teu punhal.

Jasmim da noite floriu.

Jasmim. 159 Acabou-se o bem e o mal.

Já tirei os meus sapatos, Vesti meu manto real.22

22 Completam Poemas políticos os seguintes poemas, republicados dos livros anteriores: Canção da partida p. 85, Três canções de amor p. 96, Pânico no planeta Marte (com o título Pânico burguês) p. 99, Cantiga de ninar p. 111, Diálogo na sombra p. 112, Chiquinha p. 115, Canção da liberdade p. 121, Cantiga das mães p. 75 e Canção simples p. 66.

MIOLO.pmd 159 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 160 30/6/2010, 17:28 A Coluna

Coluna, tu és a herança que os pais transmitem aos filhos como abc de criança

Dedico este livro a todos aqueles que possibilitaram escrevê-lo e publicá-lo..

MIOLO.pmd 161 30/6/2010, 17:28 O LIVRO A coluna * nunca foi republicado. Na edição original, sob o título, há estes dizeres: “(Poema em 15 Cantos) Escrito em São Paulo – 1953-1954.” Na última página, abaixo da palavra “Índice”, esta explicação: “(A Coluna, poema composto 162 de 15 Cantos, é uma parte do livro “Histórias do Brasil e outros poemas”)”. É provável que a edição do livro tenha sido financiada, parcial ou integral- mente, pelo PCB, pois sua temática era de grande interesse para o partido, e Jacinta quase não dispunha de recursos financeiros à época. O tema do poema épico é a Coluna Prestes, marcha de cerca de 25.000 km empreendida por homens e mulheres que, sob o comando entre outros de Miguel Costa e Luiz Carlos Prestes, percorreu, entre 1924 e 1927, grande parte do interior do Brasil, perseguida por forças governamentais e privadas. Embora nunca tenha sido vencida pelas tropas do governo, a Coluna também não conseguiu o objeti- vo de comandar uma rebelião popular para depor os governos Arthur Bernardes e Washington Luiz. Sem perspectiva de vitória, acabou se embrenhando na Bolívia. A Coluna recria, em tom épico e evocações líricas, episódios acontecidos durante a marcha, cantando cenas de batalhas e do cotidiano da gente humilde que aderiu à revolta. O livro estabelece um diálogo poético com O cavaleiro da esperança: a vida de Luiz Carlos Prestes, de Jorge Amado. Lançado em 1942 na Argentina (sob o título Vida de Luiz Carlos Prestes) e em 1945 no Brasil, o livro de Amado também narrou personagens e episódios da Coluna Prestes, como os que Jacinta versejou.

* Passos, Jacinta. A Coluna. Rio de Janeiro: Ed. A. Coelho Branco F.º, 1957. 47 p.

MIOLO.pmd 162 30/6/2010, 17:28 A partida

I Ó céus e terras, tremei que a Coluna já partiu neste ano de Vinte e Quatro todo o Brasil sacudiu será Coluna de fogo1 que o viajante já viu? Coluna de vento e areia dos desertos desafio? Ó céus e terras, tremei

que a Coluna já partiu. 163

II Partiu das terras do sul, dos descampados sem fim o gaúcho indaga atento: para onde marcham assim? – Adeus cidades que ficam, Santo Ângelo de onde vim,2 arredai serras, adeus a quem fica atrás de mim – Partiu das terras do sul, dos descampados sem fim.

1 Coluna de fogo. Para explicitação dessa imagem, cf. o ensaio “A coluna de fogo”, de Ildásio Tavares, nesta edição. 2 Santo Ângelo de onde vim. Referência à cidade de Santo Ângelo, na região das antigas Missões jesuíticas, oeste do Rio Grande do Sul, onde em 1924 eclodiu o primeiro levante gaúcho contra o governo federal, liderado por Luiz Carlos Prestes, que também era gaúcho.

MIOLO.pmd 163 30/6/2010, 17:28 III Através da terra imensa abrindo caminho no chão, seus cavalos, cavaleiros e seu grande Capitão, Coluna dos revoltosos Coluna da decisão, espinha dorsal no corpo do Brasil, Insurreição. Através da terra imensa 164 abrindo caminho no chão.

IV Quem deixou essas pisadas? Foi a Coluna que passou. Quem na mata abriu picadas? Foi a Coluna e viajou e no seu rastro, cavalos, homens e armas levou atrás um feixe de luz e de esperanças deixou. Quem deixou essas pisadas? Foi a Coluna que passou.

V Provectas autoridades dessa cidade tranquila ó Juiz, ó Escrivão,

MIOLO.pmd 164 30/6/2010, 17:28 ó Intendente da vila, quem perturbou vosso sono e o de Dona Domitila? – Confiai, irmãos, em Deus e nos jagunços da vila – diz o Padre, e o Coronel assanha seus cães de fila.3 Provectas autoridades dessa cidade tranquila.

VI 165 João Ferreira diz: bravura! segue a Coluna que passa é Cabo da Guarda e leva mulher, espingarda e cabaça, roceiro deixa roçado, vaqueiro, a corda que laça, adeus mulher, adeus filhos, a seus vizinhos abraça. João Ferreira diz: bravura! segue a Coluna que passa.

3 Referências críticas da autora às autoridades que, nos locais por onde passava a Coluna, em geral lhe davam combate: autoridades judiciais (juiz, escrivão), políticas (intendente, ou seja, prefeito, e “coronel”, chefe político municipal) e religiosas (padre), além de seus “cães de fila”, isto é, homens armados – jagunços - que combatiam sob as ordens dos coronéis e políticos locais.

MIOLO.pmd 165 30/6/2010, 17:28 O capitão

Cavaleiro que passa a galope tão veloz no cavalo alazão

o seu nome é Luiz Carlos Prestes4 Comandante sem par, Capitão,

Capitão de oitocentos soldados que mais logo serão mais de mil,

Comandante da marcha e batalhas, o seu nome guardai, ó Brasil,

bravo jovem de vinte e seis anos 166 tão veloz no cavalo alazão

o seu nome é Luiz Carlos Prestes Comandante sem par, Capitão.

4 Nascido em 1898 em Porto Alegre, engenheiro militar formado no Rio de Janeiro, o jovem Luiz Carlos Prestes dera apoio ao movimento paulista de 1924, de oposição ao governo federal. Em 1925, liderou rebeliões militares no Rio Grande do Sul contra o governo de Arthur Bernardes e a República Velha, indo depois unir-se no Paraná às forças remanescentes da revolta paulista de 1924, para formar o que ficou conhecido na história como “Coluna Prestes”. A participação na Coluna tornou Prestes figura muito conhecida em todo o Brasil. Apenas em 1934, quando já morava na URSS, ele ingressaria no Partido Comunista Brasileiro.

MIOLO.pmd 166 30/6/2010, 17:28 A curva de Maria Preta

I – Coluna ao Norte! Marchar!5 Atrás de nós, legalistas são cães de faro na pista, veio a noite, foi o dia e esses cães na teimosia. São pagos para matar. Viva o exército popular!

II – Tristes novas, Comandante. 167 – Que seja breve, soldado. – Inimigo à vista! à frente! à direita! legalistas! – Ferroviários avante! (Por ordem do Comandante) – Do traçado siga a sina suba Santa Catarina6 até um ponto alcançado Maria Preta chamado, neste lugar combater e retirar, à boca da noite pelo lado esquerdo em cotovelo quebrar.

5 Após vencer muitos combates no Rio Grande do Sul, sob o comando geral de Isidoro Dias Lopes e de homens como Juarez Távora, Siqueira Campos, João Alberto e Luiz Carlos Prestes, os rebelados rumaram do Rio Grande do Sul para o Paraná, para ali se unir aos revoltosos paulistas, chefiados por Miguel Costa. 6 Os combates em Santa Catarina foram renhidos. Na localidade de Maria Preta, as forças legalistas se confudiram, atacando-se mutuamente, no chamado “fogo amigo”.

MIOLO.pmd 167 30/6/2010, 17:28 Depois seguir adiante. Coluna ao Norte! Marchar!

III Dito e feito. A noite esconde tropas, tiros. Quem? Aonde? Dois inimigos. Quem são? Luta de morte. Escuridão. Silvos, balas. Não responde? Matou. Morreu. Quem? Aonde? Foi-se a noite e de manhã 168 ó cegueira humana vã! Quando em Santa Catarina a luz primeira ilumina jazem restos e destroços, carne, sangue, armas, ossos, de legalistas. Legalistas se encontraram e enganados se mataram. Ó Maria Preta ó sorte ó curva de engano e morte.

IV Longe, voz a comandar – Coluna ao Norte! Marchar!

MIOLO.pmd 168 30/6/2010, 17:28 O encontro

– Soldados, onde acampamos? – No oeste do Paraná. – Soldados, e aquela tropa que vem vindo para cá? – Patrulha de segurança que partiu e volta já mais ligeiro do que o vento no oeste do Paraná. – Portadora de notícias? – De notícias e reforço, mantimento e montaria. 169 Portadora que vem lá mais ligeira do que o vento no oeste do Paraná. – Às suas ordens, senhor. – Eram forças inimigas? – Eram paulistas rebeldes contra o governo Bernardes, eram paulistas que o Cinco de Julho já revoltara, paulistas que o General Miguel Costa comandara.7

7 O militar Miguel Crispim da Costa Rodrigues participara do levante paulista que, em 1924, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes, insurgira-se contra o governo do presidente Arthur Bernardes. Após tomarem S.Paulo por algumas semanas, três mil rebeldes paulistas foram obrigados a se retirar para o Paraná, onde, em 1925, receberam reforço de tropas insurgentes do Rio Grande do Sul. No encontro do Paraná, Prestes foi feito chefe do estado-maior da Coluna; os quatro destacamentos eram chefiados por João Alberto, Siqueira Campos, Djalma Dutra e Cordeiro de Farias.

MIOLO.pmd 169 30/6/2010, 17:28 – Que é feito dos desertores?

– Os desertores passaram do Paraguai a fronteira, foram esconder da vergonha a face, em terra estrangeira.

– Esses que marcham, soldados revoltosos de honra e bem que venham para a Coluna serão Coluna também.

170

MIOLO.pmd 170 30/6/2010, 17:28 A marcha

– Soldados, rumo a São Paulo Levantar acampamento! – E a Coluna se levanta é agora movimento de cavalos nas estradas mulas, éguas e jumentos que levam homens e armas de guerra carregamento.

Burros lerdos, resistentes que força de marcha fria! levam no dorso o Segundo 171 Grupo de Artilharia. Subindo serras abruptas de penedo e mataria lá vai um Grupo de Obuses lá, outro de Infantaria.

Lá vai num Grupo de treze um fuzil metralhadora um fuzileiro e mais dois com munição matadora. É um Grupo de combate, lá, Corpo metralhadora pesada, em quatro seções de oito peças, portadora.

Esse vai do Paraguai através em destacado até sul de Mato Grosso

MIOLO.pmd 171 30/6/2010, 17:28 e de armas carregado8 é um Grupo de Artilharia por Tenente comandado por ser um material de guerra muito pesado. Paraguai também guardou um General alquebrado.

Isidoro Dias Lopes, votos de saúde e paz!9 Vamos embora, Coluna 172 Comandante e oficiais neste ano de Vinte e Cinco nunca esquecido jamais, mil e duzentos soldados vamos embora sem mais neste ano de Vinte e Cinco nunca esquecido jamais.

8 Do Paraná, a Coluna entrou no Paraguai, rumo a Mato Grosso. No total, percorreu 13 estados brasileiros. 9 O general Isidoro Dias Lopes rumou sozinho para a Argentina.

MIOLO.pmd 172 30/6/2010, 17:28 Quatro combates

Batalhão ferroviário10

– Estás preso, Major! Vinte e Oito de Outubro foi assim que começou e o Major prisioneiro na própria casa ficou. Donde partiram ordens tais? Era a revolta. Eram dois oficiais. Foram depois ao quartel. 173 – Oficial de dia? – Sim. Entregaram-lhe um papel, um telegrama, uma ordem do General Comandante da Região (Mandava passar o comando do Batalhão) E na ausência do Major foi o oficial do dia quem o comando passava e o Boletim escrevia: “Em virtude do telegrama 484

10 O 1º Batalhão Ferroviário, situado em Santo Ângelo, oeste do Rio Grande do Sul, foi o primeiro a insurgir-se no Estado, seu comando passando então ao rebelde Luiz Carlos Prestes. Após vários combates no sul, os destacamentos rebeldes gaúchos seguiram para Foz do Iguaçu, para ali se encontrar com os insurgentes paulistas. Percebe-se que a ordem seguida por Jacinta na disposição dos cantos é a poética, não a cronológica.

MIOLO.pmd 173 30/6/2010, 17:28 passo nesta data na cidade de Santo Ângelo, o comando do Batalhão Ferroviário ao Sr. Luiz Carlos Prestes, Capitão”. E assinou. Vinte e Oito de Outubro. Foi assim que começou.

O cerco

174 – Comandante, aguardo ordens. – Demorar no Piauí. – Até quando demorar? – Até que seja o Governo obrigado a retirar suas forças do Nordeste e Ceará, Bahia, caminho de Minas, livre será. Era o cerco. Urussuí. Nas margens do Parnaíba entrincheirados ali na margem esquerda defronte e vilas do Piauí, lá, Teresina ocupada, era o cerco.11 Urussuí.

11 O combate em Teresina, assim como outros ocorridos no Piauí, foi dos mais difíceis para os rebeldes.

MIOLO.pmd 174 30/6/2010, 17:28 Que batalhão é aquele? “Vinte e Três de Caçadores” Polícia do Ceará Piauí também. Vapores. Cangaceiros. Munição. Mil e quinhentos senhores inimigos. São Luís e Piauí. – Não temes Coluna o cerco fechado em volta de ti? – Ó senhores, quem já viu, senhores do Piauí, 175 Coluna Prestes temer um cerco um cerco de Urussuí? Ah! noite escura de breu. Cruzeiro do Sul, Cruzeiro, a quem foi que protegeu? Foi quando a noite já vinha. Fim da tarde. De tardinha. Balas. Tiros, tiroteio. Onde? De onde veio? Doutra margem, dum lugar começaram a disparar. Fogo. Fogo. Legalistas concentrados jogam forças na luta desatinados.

MIOLO.pmd 175 30/6/2010, 17:28 Nem perguntam: quem atirou? Foi uma patrulha e léguas já andou (Do Destacamento Dutra, não foi um Destacamento) Ah! noite escura de breu. Legalista legalista só fantasmas combateu. Quando veio a madrugada bateram em retirada.

176 Ó águas do Parnaíba vê quanto covarde arriba! Balsas, canoas no rio, que um esquadrão perseguiu. Ó sossego doce vila à beira do rio tranquila outrora. Um vapor? Sim, nesta hora a pé, cavalo, vapor, tudo é fuga, medo, horror. Retaguarda legalista logo alcançada na pista da covardia. Ah! xereta de Governo que outra sorte merecia? Longe dali, a Coluna no ataque à Capital, quatro dias de combate e Teresina afinal.

MIOLO.pmd 176 30/6/2010, 17:28 Munições, armas, recrutas, Piauí entregue está, uma faixa do Maranhão e o caminho do Ceará. Ah! noite escura de breu. Cruzeiro do Sul, Cruzeiro a quem foi que protegeu?

Piancó

Da ladeira na descida 177 quando entre nuvens de pó já se avista na baixada a vila de Piancó, das casas e da Cadeia, da Igreja Matriz da praça, rebentam tiros e balas entre estouros e fumaça. – Avançar Destacamento! Quem será esse inimigo mortal? Um padre e cem cangaceiros e mais sessenta da Força. Policial. Foi da Coluna a vanguarda foi da vanguarda o seu guia o primeiro que avançava e o que primeiro caia, onze balas recebera mais três balas recebia,

MIOLO.pmd 177 30/6/2010, 17:28 seu nome, Capitão Pires, foi da vanguarda o seu guia defronte à Cadeia Pública o que primeiro caía. (Desde as oito da manhã) Combate duro e cruel! cinco mortos já caídos, dois Capitães, dois Tenentes, mais oito Praças feridos. Depois... silêncio de tréguas.

178 – Que será? – Olhai, soldado, bandeira branca! em cima! além! no telhado! Agora a luta cessou e marcha o Destacamento mas eis que alguém atirou. Quem? De onde? Um momento de confusão se passou. Uma cilada. Emboscada. Abrem fogo, começou da casa do Padre Aristides12 um tiroteio rebentou. Uma cilada. Emboscada. João Bahiano, uma lata de gasolina tomou com ordem de incendiar aquela casa, marchou.

12 Trata-se do padre Aristides Ferreira da Cruz, chefe político tradicional de Piancó, Paraíba, que, auxiliado por forças armadas privadas, opôs forte resistência à Coluna Prestes e acabou sendo morto.

MIOLO.pmd 178 30/6/2010, 17:28 Uma cilada. Emboscada. De repente a porta abriu, Sargento Lino, o primeiro que avançou e caiu, avança o Destacamento e aquela sala invadiu. – Quem será essa figura de batina e carabina e de faca na cintura? – Senhor padre, até que enfim! e o padre nem teve tempo de respirar, foi o fim! 179 Foi o fim de seu capanga celerado que trinta anos cumpria. Foi o fim. Naquele dia. Piancó da Paraíba. Já quando a noite caía.

O São Francisco

Ó São Francisco, barreira entre o Oeste e o mar tu vais servir ao Governo para a Coluna cercar?! Eu, nunca! Responde o rio sou até capaz de secar como outrora o Mar Vermelho para a Coluna passar.

MIOLO.pmd 179 30/6/2010, 17:28 Quanto rifle quanta pose quanto homem de boné são vinte mil na Bahia, polícia, jagunço e mé, até do sul chegou gente paulista e gaúcho até tropa do Rio, federal gente de pose e boné. – Coluna, eu te pego Coluna, onde estás? Coluna, é agora 180 ou nunca jamais. – Estou nas catingas Coluna, onde estás? Tiririca dos Bodes? Nas Minas Gerais? – Achei a batida Coluna, onde estás, do sertão para Oeste? no rastro, eu atrás. – A Coluna atravessou? Ó São Francisco, dizei! vim de Bahia até Minas e a maldita não achei – E o São Francisco calado não deu nenhuma ousadia suas águas turvas ficaram e praguejando corria. Curva dum laço a Coluna nesse tempo descrevia,

MIOLO.pmd 180 30/6/2010, 17:28 de novo à beira das águas, Pernambuco e Bahia. Travessia. Agora sim neste lugar, oportuna travessia. “Destacamento João Alberto” da Coluna. Quatro paquetes do lado de Pernambuco – Reúna a tropa que for preciso e a tropa deles se muna! um pelotão nas canoas e velas que o vento enfuna. 181 Travessia, os paquetes vão carregando a Coluna. São Francisco São Francisco águas de novo a roncar. Meia légua de largura, das três até madrugar. Adeus, ó Coluna Prestes na outra margem e a marchar.13 Ó São Francisco, barreira entre o Oeste e o mar.

13 Após atravessar o rio São Francisco, em Pernambuco, próximo à cachoeira de Paulo Afonso, a Coluna entrou no sertão da Bahia.

MIOLO.pmd 181 30/6/2010, 17:28 Jagunços e coronéis

– Sopra a lenha da fogueira assa o churrasco, Tadeu! na carabina e no rifle ninguém maior do que eu, minha fama de valente este cabra mereceu, sopra a lenha da fogueira assa o churrasco, Tadeu! – Você conta é muita prosa mas diga quem pode mais jagunço do São Francisco aqui nas Minas Gerais, 182 jagunço, de tudo a mando do Coronel, é capaz mas diga por que respeita os revoltosos, rapaz. Sopra a lenha da fogueira assa o churrasco, Tadeu, na carabina e no rifle ninguém maior do que eu. – Pois agora eu vou contar foi que nestas redondezas chegou antes da Coluna seu nome e suas proezas, abaixo de Deus sagrado, só Coronel tem grandezas mas se ouço um nome – Coluna – não sou mais homem, franquezas. Sopra a lenha da fogueira assa o churrasco, Tadeu, na carabina e no rifle ninguém maior do que eu.

MIOLO.pmd 182 30/6/2010, 17:28 Foi nessa noite, que susto! já tarde da noite em meio que o jagunço caiu morto foi depois dum tiroteio. “Golpe de mão” da Coluna, num minuto aconteceu e, como presas de guerra, carabinas e Tadeu. Fazendeiro que já foi quantas léguas possuía! senhor da vida e da morte no sudoeste da Bahia. 183 Agora presa de guerra para serviço miúdo – Quem persegue esta Coluna? Responda! não fique mudo. – Coronel manda em jagunço, cacique de taba e tuba, aqui, Horácio de Matos,14 Coronel de Condeúba. Coronel manda em jagunço o Governo em Coronel Jequié, Lençóis, Conquista, são dessas forças, quartel. Jagunço de carabina e rifle (pior que o Cão!) rifle de papo amarelo dos que usa Lampião.

14 Horácio de Matos, poderoso coronel de origem goiana fixado no sertão da Bahia, organizou um batalhão de 600 homens para perseguir os revoltosos da Coluna.

MIOLO.pmd 183 30/6/2010, 17:28 O inimigo

A Coluna descansou da marcha, na noite fria. Ficaram olhos acesos e a fogueira, de vigia. Su su su menino mandu dorme na lagoa sapo-cururu15 Soldados dormem quietos Debaixo deste telheiro

184 em cima pia a coruja com seu piado agoureiro. Su su su menino mandu Soldados dormem quietos no bivaque de improviso até as armas descansam que este descanso é preciso. Dorme na lagoa sapo-cururu Soldados dormem quietos na barraca e na varanda, eis de repente o inimigo – Depressa, levanta e anda! Depressa, são feras, depressa ou quiseras

15 No original, esta e as demais estrofes da canção de ninar estão entre aspas.

MIOLO.pmd 184 30/6/2010, 17:28 nas mãos do inimigo cair, que o perigo de perto ameaça de morte ou mordaça cadeia ou degredo. Galopa sem medo! Legalista do Inferno! donde o Governo tais feras tirou? Ah! raiva que eu sou.

Depressa e a trote 185 esporas, chicote, as crinas revoltas, de rédeas bem soltas e bridas também (Que medo não tem!) depressa e a trote mão no cabeçote o pé na estribeira encilha e carreira! esquipa montado depressa, soldado que medo não tem. Legalista do inferno não vale um vintém! A Coluna descansou da marcha na noite fria. Ficaram olhos acesos. E de repente partia.

MIOLO.pmd 185 30/6/2010, 17:28 A troca

– Teu nome, camponês? – Joel, seu irmão. – Que desejas da Coluna? – Falar com Seu Capitão.

– É Vosmicê? – Luiz Carlos Prestes. – Sou daqui, Seu Capitão, eu nasci foi mesmo aqui no Piauí, no sertão, queria fazer uma troca 186 se for sua opinião, são duas coisas que tenho, mais nada, Seu Capitão, esta cuia de farinha e um burrinho de estimação.

– Por qual troco quer trocar?

– Por um lugar na Coluna mais um fuzil de atirar.

E foi assim que Joel, o camponês do sertão, um dia virou soldado de Prestes, Seu Capitão.

MIOLO.pmd 186 30/6/2010, 17:28 Os heróis e as feras

José Tomaz

Treze anos tão valentes menino do Piauí, o teu cavalo tem pés ou asas de colibri? Dezoito léguas custosas andou entre as tropas inimigas passou assim dois Destacamentos em doze horas ligou. (Dos soldados era um simples servidor). 187 José Tomaz, anspeçada, menino do Piauí, o teu cavalo tem pés ou asas de colibri?

Zé Viúvo

Quem passar pelos caminhos na moita de mato e espinhos cerrada, úmida, escura, nem vê aquela figura de homem sempre sentado. Quem será? Parece quieto dormindo se não fosse o olhar luzindo aceso na escuridão. Zé Viúvo é um ferido de guerra, no Maranhão perdeu um pé,

MIOLO.pmd 187 30/6/2010, 17:28 de muleta nos joelhos, sentado, vigia é. Parece quieto dormindo mas se no mato bulindo alguma folha estalou que fujas, ó inimigo daquele tiro certeiro da carabina o primeiro.

Juventude

Combateu duro combate 188 em Flores de Pernambuco. Combateu. Oliveira, juventude que o perigo não venceu, no meio do fogo das balas combateu viu seu pai morto cair no chão tomou das armas paternas e esgotou a munição. Foi só depois da batalha: – Comandante, eis as armas do meu pai que faleceu – Em Flores de Pernambuco combateu.

Quarenta mulheres

Mulheres guerreiras quem viu teu valor?

MIOLO.pmd 188 30/6/2010, 17:28 na marcha ligeiras que a guerra provou. Passagem difícil! Mulheres não passam além deste rio! Por ordem! O Comando que tal proibiu. No rio Uruguai quem pode passar? Raiou a manhã – Soldados marchar! Quarenta mulheres 189 nas tropas estão. Mas como? E agora o Comando diz, não? Diante do fato novo decidir, outra ordem foi dada – mulheres seguir! Mulheres guerreiras quem viu teu valor? na marcha ligeiras que a guerra provou. “Onça” mulata de belos quadris que dança maxixe carrega fuzis. “Onça” mulata quem viu teu valor? não vales somente na dança no amor.

MIOLO.pmd 189 30/6/2010, 17:28 Na luta ligando salvou do inimigo feroz e maior, uma tropa menor. Mulheres guerreiras quem viu teu valor? na marcha ligeiras que a guerra provou. Hermínia perita do laço no jogo Hermínia estrangeira Hermínia enfermeira a linha de fogo 190 passou. Na trincheira inimiga, doentes salvou. Ó valentes. Mulheres guerreiras quem viu teu valor? na marcha ligeiras que a guerra provou. Nasceu um menino. Sua mãe se chamava Santa-Rosa e logo depois cavalgava. E dizem que podes o corpo fechar às balas, ó tia Maria, depois de rezar? Mulheres guerreiras quem viu teu valor? na marcha ligeiras que a guerra provou.

MIOLO.pmd 190 30/6/2010, 17:28 O sargento

Sangue na noite a clamar. Polícia da Paraíba, quantos crimes a pagar! – Sargento, então te recusas a própria cova cavar? – Alugado dos infernos, quem te deu a ousadia? Pobre corpo do Sargento novos golpes recebia até que desfalecido no chão sem forças caía, 191 depois retalhado à faca mais um valente morria. Sangue na noite a clamar. Polícia da Paraíba, quantos crimes a pagar!

A fuga

Carreira desabalada nas catingas sem fim que triste figura! de que foges assim? Foi depois de Imburanas: aonde vais, Coronel João Nunes, que triste que triste papel! Eram cento e cinquenta os teus comandados e mais caminhões ó abandonados!

MIOLO.pmd 191 30/6/2010, 17:28 Quinze mortos, feridos eram quinze também, que triste figura Coronel sem ninguém! Polícias de Més chefe tal merecia, lábias, bravatas, e agora fugia. Pernambuco. Imburanas. Aonde vais, ó fujão? as vilas mais próximas a dois dias estão. 192 Nas catingas de mato ralo e rasteiro, roto e ferido nos espinhos de espinheiro. Carreira desabalada nas catingas sem fim, que triste figura! de que foges assim?

Os trinta

Eram trinta. Eram tão fortes. Desciam do Ceará. Tão belos dessa beleza que a juventude é quem dá. Agora só a lembrança dos trinta jovens restou. Duas polícias ou feras? A disputa começou.

MIOLO.pmd 192 30/6/2010, 17:28 Paraíba ou Pernambuco, qual das duas afinal sabe mais tortura e morte na ponta do seu punhal? Eram trinta. Eram tão fortes. Sangrados como animal. Somente um ficou vivo pois ao sicário pagou quinhentos contos. Dos trinta só a lembrança restou.

O leilão 193

– Quem dá mais? – Quem dá mais? Dona Cassimira, quatro mil réis! Quatro mil réis por cabeça! Meus senhores, Dona Cassimira! Dona Cassimira, a chefe do sertão! Tia de Horácio de Matos. Quanto dão? Quatro mil réis! Quatro mil réis por um “patriótico”! Vai nascer um batalhão! Lá vai uma... Lá vai duas... Lá vai três... Pela primeira... Receberá Mercê... Seu Franquilim, dez mil réis! Dez mil réis! Seu Franquilim, de Pilão Arcado! Seu Franquilim, das Lavras! Seu Franquilim, do São Francisco!

MIOLO.pmd 193 30/6/2010, 17:28 Seu Franquilim chefe de jagunços que mais mortes cometeu, o que bate no peito e diz: que jagunço maior que eu? Quem dá mais? Receberá Mercê... O Governo, meus senhores, do Estado e da Nação! ante tal poder se cala o poderoso Janjão Coronel de Mato Grosso, Êmulo de Lampião – 194 Quem dá mais? O Governo, meus senhores, já não se fala em tostão, o preço dum diamante, proclamai ante a Nação, por uma cabeça, senhores, de revoltoso! Já não se fala em tostão. Receberá Mercê... Catete!... Quinhentos contos! pela boca de Seu Mé através dos oligarcas que mandam em Caetité. Palavra de Artur Bernardes. Quem atesta? Quem dá fé? O senhor Geraldo Rocha, quem, senão ele, outro Mé? Quem dá mais? Quinhentos contos! Que esteja o país ciente da fala do presidente! Que excelsa virtude e zelo! Oh! flagelo Oh! Coluna

MIOLO.pmd 194 30/6/2010, 17:28 Oh! caminho da perdição. Quinhentos contos de prêmio a quem livrar a Nação. Lá vai uma... Lá vai duas... Lá vai três... Pela primeira... Receberá Mercê... Quem fala agora sou eu natural deste sertão, os graúdos já falaram (defender Pátria e Nação!) Ó Cassimira! 195 Ó Janjão! Será que pátria é Catete? Governo de Més, Nação? Diz que não, toda gente como eu natural deste sertão, pátria, uma casa tão grande onde moram onde moram mais de cinqüenta milhões. Lá vai uma... Lá vai duas... – Quem dá mais? – Quem dá mais? Receberá Mercê...

MIOLO.pmd 195 30/6/2010, 17:28 Seca

Cavalos e cavaleiros onde pouso de abrigar? é tudo chapada só deserto de esturricar. – Ai quem me dera um balanço balanço de embalançar ai quem me dera um balanço na rede de caroá – Cavalos e cavaleiros fazem força de marchar secaram até as cacimbas ai! as frutas do ingá. 196 – Ai quem me dera um balanço balanço de embalançar ai quem me dera um balanço na rede de caroá – Cavalos e cavaleiros ai! se pudessem avistar um pé de mandacaru para esta sede matar. – Ai quem me dera um balanço balanço de embalançar ai quem me dera um balanço na rede de caroá –

MIOLO.pmd 196 30/6/2010, 17:28 Fome

Que anjos são esses que vivem nos seguindo de noite e de dia? Padre-Nosso! Ave-Maria!16 – Não são anjos não senhor são homens do Ceará são retirantes da seca que viviam ao deus-dará. – E por que nos seguem assim? – Porque desejam comida que não existe mais lá não são anjos não senhor 197 são homens do Ceará. – E aqueles de corpo nu, escuro, cabeça longa, que correm mais do que lebre e gritam mais que araponga? – Do Vale do Tocantins são índios são mais de cem que, por armas e comida, nos vêm seguindo também. Que anjos são esses que vivem nos seguindo de noite e de dia? Padre-Nosso! Ave-Maria!

16 No original, a primeira e a última estrofes estão entre parêntesis, provavelmente por invocarem quadrinha popular.

MIOLO.pmd 197 30/6/2010, 17:28 Potreadas17

Hoje eu vou correr cem léguas eh! cem léguas de arrepiar.

No lombo deste cavalo nem que custe o que custar.

Eh! desertão da Chapada, Passagem Ruim, Icó, Lagoa do Mulungu, Aracuan e Cipó, Uauá, Várzea da Ema, Ipueiras, Cocobocó. 198 Hoje eu vou correr cem léguas eh! cem léguas de arrepiar.

Vou vencer o sergipano sozinha, no potrear.

Nem que não ache o caminho de volta para contar nem que me assalte o jagunço da moita de gravatá nem que firam os espinhos de jerema e de joá.

Hoje eu vou correr cem léguas eh! cem léguas de arrepiar.

17 Potreadas. Investidas feitas por alguns membros da Coluna, que se afastavam dos outros para saquear e arrebanhar animais, a fim de alimentar e transportar os rebeldes.

MIOLO.pmd 198 30/6/2010, 17:28 Vou tirar o bicho da toca, Seu Mano, desalojar.

Vou com quinze, senhores, tirem o facão da bainha, arrebanhar os cavalos na redondeza vizinha eh! potreada relâmpago tirem o facão da bainha!

Hoje eu vou correr cem léguas eh! cem léguas de arrepiar. 199

Gritar eh! eh! catingueiros eh! polícia. E debandar.

Vou queimar livros de impostos daquela Coletoria dizer ao preso: sois livre, palmatória foi um dia, polícia, ninguém te salva, cadê a Virgem Maria?

No lombo deste cavalo nem que custe o que custar.

Hoje eu vou correr cem léguas eh! cem léguas de arrepiar.

MIOLO.pmd 199 30/6/2010, 17:28 Serras e pântanos

Serra do Sincurá

Dentro da noite, uma vela de cera de carnaúba com sua luz amarela um fio de luzes subindo que procissão é aquela? na Serra do Sincurá soldados caminham nela subindo a pé vão puxando os animais vão naquela marcha lenta, padiolas 200 da chama à luz amarela os homens de sete fôlegos ofegam, que marcha aquela! dentro da noite, Coluna, dentro da noite, uma vela.

Estrada cruel

Aqui começa a estrada que o povo chamou de cruel, doze léguas de chão seco só de espinhos e de fel.

Espinheiro abraça a pedra plantada na terra nua desse abraço nascem flores ó vida que força a tua!

Coroas-de-frade e só cactos, mandacarus,

MIOLO.pmd 200 30/6/2010, 17:28 mais adiante umbuzeiros sem folhas e sem umbus.

Chapadão entre as bacias do Verde e do Jacaré, por aqui marcha a Coluna desmontada, marcha a pé.

Nem animais, nenhum pássaro ó água que falta fazes! Só répteis. Gitiranas que surpresa! os tons lilases.

Já quando a noite era negra 201 e impossível o caminhar ó lua-cheia no céu ó aguada neste lugar.

Aqui Boca da Picada três léguas do Jacaré, Estrada Cruel, adeus outro caminho aqui é.

Cem homens e um telegrama

– É Mato Grosso deserto chamado Camapuã daqui a Coluna em duas deve partir amanhã.

– São ordens do Comandante?

– Sim, soldados, que a Coluna deve alcançar a fronteira

MIOLO.pmd 201 30/6/2010, 17:28 da Bolívia. Necessário é despistar. E Siqueira Campos vai comandar essa missão derradeira.18 Enquanto isso, a Coluna numa defesa ligeira, deve alcançar a Bolívia e entrar na terra estrangeira. * * * – A Coluna passou por aqui? – Agorinha. 202 – O que foi que comeu? – Carne-seca e farinha. – A Coluna passou por aqui? – E seguiu. – Muito longe? – Só seis léguas a fio... – A Coluna passou por aqui? – Se passou... – O que foi que levou? – Mosquetões. – Mosquetões do Exército? – Venderam ao patrão. – A Coluna passou por aqui? * * * Cem homens velozes de nuvem e de vento

18 Com homens cansados, sedentos e famintos, e já sem perspectiva de vitória contra o governo federal, os chefes da Coluna optaram por ingressar em território estrangeiro e aí dispersar-se; parte entrou na Bolívia, parte no Paraguai.

MIOLO.pmd 202 30/6/2010, 17:28 que pegues se podes pegar movimento! Legalista sujo sujo e peçonhento! Cem homens velozes de nuvem e de vento que pegues se podes pegar movimento! * * * O trem trafega no trilho extremo para o oeste. 203 Estação Pires do Rio Eis que contra o trem, investe um Grupo ousado e armado, 3º Destacamento e é trem tomado de assalto, cem homens de nuvem e vento. * * * – Soldados, marchar! rumo à Casa da Estação um telegrama a passar. (Presidente Washington Luiz Catete – Rio) “Antes deixar país fronteiras atravessar seus escravos governar votos Governo feliz.

MIOLO.pmd 203 30/6/2010, 17:28 Casa da Estação assinado – Comandante da Missão”. * * * Um Grupo ousado e armado 3º Destacamento e o Paraguai alcançado. Cem homens de nuvem e vento.

Marcha final 204 Cavalos lentos lerdos suados olhos mortiços quase apagados. Homens de ferro curvos cansados. Os pés afundam no atoleiro caminho de visgo, o derradeiro. (Como resina de cajueiro) Bois também servem de montaria os cascos grossos na lama fria. Onde acampar no fim do dia?

MIOLO.pmd 204 30/6/2010, 17:28 Ó Mato Grosso19 rio Araguaia! copas de árvores de samambaia. Que é de o pouso antes que a noite caia? Cimo dos montes fogo e descanso aqui das tropas breve remanso. Que é de as caças, galos e gansos? 205 Carne e palmito raro ou nenhum nem mais a sopa de jerimum. E a rapadura? Ai jatium! Ai muriçoca! que longe estás ó Carolina, a de Goiás do Tocantins, princesa. E mais as filarmônicas, flauta e pistom bombos, dobrados, longe teu som.

19 Após atravessar o Mato Grosso pela segunda vez é que a Coluna optou pelo ingresso em territó- rio estrangeiro.

MIOLO.pmd 205 30/6/2010, 17:28 Adeus palanque flauta e pistom. As vestes rotas, malas e linhos, que é de os mascates nos seus burrinhos? Que é de os ciganos? Ninguém. Sozinhos. Neste ano Vinte e Sete embarca, Rio Araguaia, 206 Porto da Barca. Em Fevereiro já desembarca na outra margem em Capin Blanco, já é Bolívia, último arranco. (Armas depostas em Capin Blanco Depois La Gaiba20 exílio teu) Coluna, quem quem te venceu? Ninguém, ó filha do povo meu.

20 La Gaiba foi o local boliviano onde Prestes e mais duzentos homens se exilaram.

MIOLO.pmd 206 30/6/2010, 17:28 Canto de despedida

I Adeus Coluna que pisas fronteiras de terra estranha o que vais buscar tão longe passando rio e montanha? Coluna de mil guerrilhas21 sempre vence e nunca apanha manda a defesa buscar a tal distância tamanha garantias sem demora. Boa viagem! Soldado parte e não chora. 207

II Que Bolívia e Paraguai te sejam pátria também as sombras de heróis antigos valem teus passos além e os braços desses dois povos, abertos te digam: vem estreitar lutas e ódios num mesmo dia que vem do Continente, ó aurora! Boa viagem! Soldado parte e não chora.

III Que medida para medir os teus feitos de andarilha

21 O constante emprego da tática de guerrilhas foi um dos maiores trunfos militares da Coluna.

MIOLO.pmd 207 30/6/2010, 17:28 de vinte e seis mil quilômetros teu roteiro e tua trilha? Combates, cinquenta e três, sem cair numa armadilha. Vencidos foram dezoito Generais. Só de guerrilhas, mais de mil Brasil afora. Boa viagem! Soldado parte e não chora.

IV 208 Que medida para medir esse caminho de esperanças e lutas que abriu tão fundas sementeiras de lembranças e lições para teu povo? Coluna, tu és a herança que os pais transmitem aos filhos como abc de criança. Cartilha de toda hora. Boa viagem! Soldado parte e não chora.

V Boa viagem, Coluna, que a planta deitou raízes no chão, na gente, no tempo, até quando? também dizes, cavalos e cavaleiros voaram como perdizes cem mil cavalos no lombo

MIOLO.pmd 208 30/6/2010, 17:28 te levaram a outros países, Coluna. Até outra hora. Boa viagem! Soldado parte e não chora.

VI Teu povo dizia adeus: até quando? em que dia? cavaleiro da esperança que libertar prometia. Teu povo agora te vê como outrora não te via 209 do Partido Comunista olhos, mão, palavra, guia, Capitão. Até outra hora. Boa viagem! Soldado parte e não chora.

MIOLO.pmd 209 30/6/2010, 17:28 MIOLO.pmd 210 30/6/2010, 17:28