hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na bacia do Tapajós Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres [organizadores]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ocekadi : hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na Bacia do Tapajós / Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres, organizadores. -- Brasília, DF : International Rivers Brasil ; Santarém, PA : Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, 2016.

Vários autores. Apoio: Charles Stewart Mott Foundation. Bibliografia. ISBN 978-85-99214-04-6 (International Rivers)

1. Hidrovias 2. Impacto ambiental 3. Infraestrutura 4. Movimentos sociais 5. Rios - Amazônia 6. Tapajós, Rio, Bacia hidrográfica 7. Unidades de conservação - Amazônia 8. Terras indígenas - Amazônia 9. Usinas hidrelétricas - Projetos e construção I. Alarcon, Daniela Fernandes. II. Millikan, Brent. III. Torres, Mauricio.

16-03195 CDD-333.7

Índices para catálogo sistemático: 1. Amazônia : Projetos de infraestrutura : Impactos socioambientais : Economia 333.7 hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na bacia do Tapajós

Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres Organizadores

Apoio: Parceria: COMITÊ EDITORIAL Brent Millikan Helena Palmquist Claide de Paula Moraes Juan Doblas Daniela Fernandes Alarcon Juarez Carlos Brito Pezzutti Deborah Duprat Mauricio Torres Felício Pontes Júnior Ricardo Scoles

EXPEDIENTE Organização: Contato: Daniela Fernandes Alarcon International Rivers - Brasil Brent Millikan Endereço: CLN 214, bloco D, sala 216, Mauricio Torres Asa Norte. Brasília-DF, CEP 70873-540 Tel. (61) 3034-3007 Revisão: Natalia Ribas Guerrero Realização: Daniela Fernandes Alarcon International Rivers - Brasil www.internationalrivers.org Revisão final: Programa de Antropologia e Maria Luíza Camargo Arqueologia da Universidade Federal Mapas: do Oeste do Pará (PAA/UFOPA) Ricardo Abad Apoio/Parceria: Zachary Hurwitz Charles Stewart Mott Foundation Projeto gráfico, diagramação e arte: www.mott.org Vitor Flynn Paciornik Instituto Centro de Vida (ICV) Foto da capa: www.icv.org.br Indígenas do povo Munduruku, Operação Amazônia Nativa (Opan) na aldeia Missão, Terra Indígena www.amazonianativa.org.br Munduruku. Por Mauricio Torres, Instituto Socioambiental (ISA) abr. 2014. www. socioambiental.org Foto da primeira página: Fundo Socioambiental Casa Guerreira munduruku, na aldeia www.casa.org.br Waro Apompu, Terra Indígena Esta publicação está disponível em Munduruku. Por Mauricio Torres, formato digital no endereço: out. 2014. www.internationalrivers.org/tapajos

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional. SUMÁRIO

xi Agradecimentos

xiii Prefácio João Akira Omoto

xv Apresentação Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres

xviii Principais siglas e abreviações

xxi Resumo executivo

1 Um rio de muita gente: a luta comum de vidas plurais no vale do alto Tapajós Mauricio Torres

29 Caracterização ambiental da bacia do Tapajós Ricardo Scoles

43 “Saída pelo norte”: a articulação de projetos de infraestrutura e rotas logísticas na bacia do Tapajós Daniela Fernandes Alarcon, Natalia Ribas Guerrero e Mauricio Torres

79 Os planos para usinas hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós: uma combinação que implica a concretização dos piores impactos Philip M. Fearnside

99 Tapajós: do rio à luz Wilson Cabral de Sousa Júnior

111 Estudos de inventário: características de uma fase inicial e decisiva do planejamento de hidrelétricas na bacia do Tapajós Brent Millikan

143 Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico: o caso da avaliação ambiental integrada da bacia do Tapajós Rodrigo Folhes 167 Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas: uma análise do caso Teles Pires Evandro Mateus Moretto, Carolina de Oliveira Jordão, Edilene Fernandes e João Andrade

183 O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós Biviany Rojas Garzón, Brent Millikan e Daniela Fernandes Alarcon

211 Imprensa e barragens na bacia do Tapajós: apego ao discurso oficial e ocultamento das críticas Daniela Fernandes Alarcon, Natalia Ribas Guerrero e Vinicius de Aguiar Furuie

247 Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas: a flexibilização do licenciamento ambiental por via judicial Rodrigo Oliveira e Flávia do Amaral Vieira

257 A suspensão de segurança: peixe fora d’água diante da Constituição democrática Flávia Baracho Trindade, Gustavo Godoi Ferreira, Heidi Amstalden Albertin, Luís Renato Vedovato, Marcelo Brandão Ceccarelli, Maria Carolina Gervásio Angelini, Thaís Temer e Alexandre Andrade Sampaio

277 Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais Felício Pontes Júnior e Rodrigo Oliveira

293 Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da Terra Indígena Munduruku Daje Kapap E’Ipi e o soterramento da Constituição Federal de 1988 Luis de Camões Lima Boaventura

309 Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica dos indígenas Munduruku e sua importância para o respeito à Convenção 169 da OIT Pierre Pica, Sidarta Ribeiro, Jairo Saw e Mauricio Torres

323 Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena Andreia Fanzeres e Andrea Jakubaszko 339 O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku às barragens no Tapajós Helena Palmquist

371 Redução na medida: a Medida Provisória nº558/2012 e a arbitrariedade da desafetação de unidades de conservação na Amazônia Maria Luíza Camargo e Mauricio Torres

395 Floresta virgem? O longo passado humano da bacia do Tapajós Bruna Cigaran da Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira

417 Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos: impactos socioambientais e violações dos direitos culturais dos povos indígenas e tradicionais pelos projetos de usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós Francisco Antonio Pugliese Jr. e Raoni Bernardo Maranhão Valle

437 O garimpo hidrelétrico: impactos de Belo Monte na cidade de Altamira e subsídios para reflexão sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós Eric Macedo

455 Impactos da construção de usinas hidrelétricas sobre quelônios aquáticos amazônicos: um olhar sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós Juarez Carlos Brito Pezzuti, Marcelo Derzi Vidal e Daniely Félix-Silva

479 As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós e suas relações com as usinas hidrelétricas Ronaldo Barthem, Efrem Ferreira e Michael Goulding

495 Promessas de governança vs. realidade: consequências da implantação de megaempreendimentos no sudeste amazônico Juan Doblas

511 Crédito de carbono para usinas hidrelétricas como fonte de emissões de gases de efeito estufa: o exemplo da usina hidrelétrica de Teles Pires Philip M. Fearnside

531 Sobre os autores e membros do comitê editorial

Agradecimentos

todos os autores e membros do comitê editorial, que vêm produzin- do informação crítica e de qualidade sobre os projetos de exploração hidrelétrica na bacia do Tapajós e em outras regiões da Amazônia, e Aque generosamente colaboraram com esta publicação. Ao Vitor Flynn, pela ilustração e diagramação do livro. A Ricardo Abad e Zachary Hurwitz, pela elaboração de mapas especial- mente destinados a esta publicação. A João Andrade, Andreia Fanzeres, Bruna Cigaran da Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira, pela participação na produção desses mapas. Ao Instituto Centro de Vida (ICV), à Operação Amazônia Nativa (Opan) e ao Instituto Socioambiental (ISA), pelo apoio à produção deste livro. A Daniely Félix-Silva, Efrem Ferreira, Fábio Nascimento, Fernanda Li- gabue, Flavio Souza, Lilo Clareto, Luan Mourão, Natalia Ribas Guerrero, Opan e Ubiray Rezende, pela cessão de fotografias. A Maria Luíza Camargo e Natalia Ribas Guerrero, pela revisão da publicação. À Maria Edigete do Nascimento Souza, da International Rivers, pelo apoio na produção editorial. À Fundação Mott e ao Fundo Socioambiental CASA, pelo apoio finan- ceiro à publicação.

prefácio João Akira Omoto1

Amazônia e seus rios são, Nesse sentido, esta publicação 1. Procurador Regional de fato, a principal fronteira chega em excelente hora: é hora de da República, Ministério para a expansão do setor elé- ampliar o debate público, avalian- Público Federal Atrico brasileiro, segundo as atuais do com maturidade e percuciência prioridades do governo federal. todos os elementos envolvidos, e Com aproximadamente 43% de seu melhor refletindo sobre as nossas potencial de geração hidráulica (247 escolhas, especialmente sobre a gigawatts estimados) explorado em própria ampliação do espaço públi- nível nacional, o país conta com co, os meios e formas de participa- enorme experiência na implanta- ção democrática, e sobre as fontes ção de usinas hidrelétricas, acu- alternativas de geração disponíveis mulada ao longo de décadas, mas ou cuja disponibilidade no futuro parece ter aprendido pouco com dependa do nível de investimento, isso, principalmente sob a ótica pesquisa e planejamento atuais, socioambiental. como também sobre as oportunida- Se, por um lado, as deman- des para promover maior eficiência das para a geração de energia são e conservação de energia. crescentes, de outro, o modelo de Democracia e diversidade de expansão com foco principal na fontes de geração são, portanto, hidreletricidade, cujo processo dois ingredientes indispensáveis decisório tem se mostrado her- para o planejamento da expansão, mético e autoritário, precisa ser sendo inquestionável a necessida- democratizado. de de incluí-los na receita, muito

xiii mais quando constatado que o pla- bientais, as vê como entraves e não nejamento oficial demonstra certo como interesses inerentes ao pro- descaso com os mesmos e com a cesso: ignorando-as ou negando-as, obrigatória compatibilidade entre perpetra sistemáticas violações de políticas públicas, nos apresentan- direitos. do, como resultado, um bolo bas- A falta de diálogo entre os diver- tante indigesto, cuja cereja parece sos setores do governo tem como ter sido subtraída antes mesmo de resultado a dissociação entre o pla- sobre ele ter sido depositada. nejamento da expansão e o projeto A Constituição Federal de 1988 constitucional socioambiental. Os desenhou um projeto socioambien- enormes prejuízos são ônus que tal que exige a abertura de diálogo acabam sendo suportados por toda com todos os setores da sociedade, a sociedade, revelando a importân- por meio da ampliação da partici- cia da adoção de instrumentos de pação pública e, especialmente, da planejamento ambiental estratégi- consulta livre, prévia e informada co. As reconhecidas falhas no licen- aos povos indígenas e comunidades ciamento ambiental e a sistemática tradicionais, nos moldes previstos violação de direitos humanos na na Convenção 169 da Organização instalação dos projetos deveriam le- Internacional do Trabalho, no Sis- var ao aperfeiçoamento dos proce- tema Interamericano de Direitos dimentos, com vistas à garantia de Humanos e em outros tratados in- direitos, e não à sua flexibilização. ternacionais dos quais o Brasil é Esta publicação lança luzes sobre signatário. essas e outras importantes questões Os défices democráticos no pla- que precisam ser tratadas com se- nejamento e na tomada de decisão riedade e incorporadas ao planeja- sobre a expansão da geração hidre- mento do setor elétrico e ambien- létrica têm levado à proliferação de tal, assim como aos processos de conflitos socioambientais e à inegá- tomada de decisão. Ainda há tempo vel perda de bio e de sociodiversi- para correção de rumos. A Amazô- dade, sem falar nos prejuízos para nia é patrimônio do Brasil e da hu- o próprio setor, que, mal preparado manidade! A cereja do bolo… conti- para lidar com questões socioam- nua sendo nossa!

xiv Ocekadi APRESENTAÇÃO Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres

cekadi, termo da língua ses entrelaçaram, historicamen- Imagem 1. Noite munduruku, pode ser tradu- te, suas vidas. Hoje, esses grupos, estrelada no Tapajós, Projeto zido como “o nosso rio” ou assim como outras populações de de Assentamento O“o rio do nosso lugar”. Refere-se, ocupação mais recente, veem-se Agroextrativista aqui, ao Tapajós, situado na bacia diante de ameaças, violações de Montanha e Mangabal. Por Fábio Nascimento, hidrográfica homônima, que se es- direitos e impactos deletérios im- out. 2014. tende pelos estados do Pará, Mato postos por uma quantidade sem Grosso e Amazonas, conectando precedentes de projetos de explo- dois grandes biomas, o Cerrado e ração energética e outros grandes a Amazônia. Com o Tapajós e seus empreendimentos cogitados para tributários – Jamanxim, Juruena e a bacia do Tapajós, impulsionados Teles Pires, entre outros –, povos por órgãos governamentais e agen- indígenas, ribeirinhos e campone- tes privados.

xv Este livro tem o intuito de ofe- de 2014 e janeiro de 2016, o que se recer subsídios para o aprofunda- reflete em seus respectivos conteú- mento do debate público acerca do dos, em especial, no marco final das conjunto de hidrelétricas na bacia sequências de eventos considera- do Tapajós, planejadas, em constru- dos. Para que os leitores possam ter ção ou já implementadas. Em parti- em mente esse recorte temporal, cular, são abordadas questões rela- facilitando-se eventuais esforços de tivas a conflitos socioambientais e atualização e seguimento dos temas incompatibilidades entre políticas tratados, indicamos em cada artigo públicas – decorrentes de um mo- a data de sua finalização. Cabe no- delo de planejamento e implanta- tar, ainda, que os textos apresentam ção de grandes empreendimentos, diferentes recortes geográficos no conduzido pelo setor elétrico do go- interior da bacia do Tapajós . Alguns verno federal e por empresas priva- deles reúnem também informações das – e movimentos de resistência sobre empreendimentos hidrelétri- engendrados por povos indígenas cos em outras bacias, a exemplo do e outros grupos em defesa de seus complexo hidrelétrico de Belo Mon- territórios e modos de vida. te, no rio Xingu. Com isso, é possí- O livro reúne artigos elaborados vel analisar como um determinado por pesquisadores vinculados a di- modelo de exploração hidrelétrica ferentes instituições do Brasil e do da Amazônia vai se reproduzindo e exterior, agentes do poder público, até que ponto lições têm sido apren- de organizações não governamen- didas pelos setores pró-barragem. tais e de movimentos sociais, que Dedicamos este livro aos povos atuam nessa bacia ou em outros indígenas, ribeirinhos, campone- contextos amazônicos também im- ses e outras populações que vivem pactados por barramentos. Trata-se na bacia do Tapajós, que têm de- de uma região pouco pesquisada, o monstrado enorme criatividade que torna ainda mais relevantes os e capacidade de diálogo na busca dados produzidos pelos autores. São pelo reconhecimento de seus di- textos inéditos ou, quando indica- reitos (profundamente desrespeita- do, adaptados para esta publicação; dos) como cidadãos brasileiros. Que todos foram submetidos à análise sejam feito taoca (ou da’uk). Essa de membros de um comitê editorial pequena formiga, diz o professor composto para esse fim. munduruku Jairo Saw, derrota até Os artigos foram concluídos em onça. Seu Chico Caititu, ribeirinho, diferentes momentos entre abril grande conhecedor do Tapajós,

xvi Ocekadi completa: “É um bando de formigas que andam juntas na floresta. É coi- sa muito reimosa. Ninguém garante ficar na frente”.

Apresentação xvii Principais siglas e abreviações

AAE Avaliação ambiental estratégica AAI Avaliação ambiental integrada ACP Ação civil pública Adin Ação direta de inconstitucionalidade AGU Advocacia-Geral da União AHE Aproveitamento hidrelétrico Aneel Agência Nacional de Energia Elétrica APA Área de proteção ambiental BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CHJ Complexo hidrelétrico do Juruena CHT Complexo hidrelétrico do Tapajós CHTP Companhia Hidrelétrica Teles Pires CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos CLPI Consulta livre, prévia e informada CNPE Conselho Nacional de Política Energética Conama Conselho Nacional do Meio Ambiente DOU Diário Oficial da União ECI Estudo do componente indígena EIA/Rima Estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental Centrais Elétricas Brasileiras S.A. Eletronorte Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. EPE Empresa de Pesquisa Energética Estal Energy Sector Technical Assistance Loan EVTEA Estudo de viabilidade técnica, econômica e ambiental FAB Força Aérea Brasileira Flona Floresta nacional FNSP Força Nacional de Segurança Pública xviii Ocekadi Funai Fundação Nacional do Índio Gesel/IE/UFRJ Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Econo- mia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Natu- rais Renováveis IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ICV Instituto Centro de Vida Imazon Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Inesc Instituto de Estudos Socioeconômicos Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ISA Instituto Socioambiental LI Licença de instalação LP Licença prévia MMA Ministério do Meio Ambiente MME Ministério de Minas e Energia MP Medida provisória MPE/MT Ministério Público do Estado de Mato Grosso MPF Ministério Público Federal MPU Ministério Público da União OIT Organização Internacional do Trabalho Opan Operação Amazônia Nativa PAC Programa de Aceleração do Crescimento PAE Projeto de assentamento agroextrativista Parna Parque nacional PBA Plano básico ambiental PCH Pequena central hidrelétrica PDE Plano Decenal de Expansão de Energia PF Polícia Federal PIB Produto interno bruto PNRH Política Nacional de Recursos Hídricos

Principais siglas e abreviações xix Prodes/Inpe Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais RCID Relatório circunstanciado de identificação e delimitação Resex Reserva extrativista Sema/MT Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso SG/PR Secretaria-Geral da Presidência da República SGH Superintendência de Gestão e Estudos Hidroenergéticos da Agência Nacional de Energia Elétrica SS Suspensão de segurança STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TI Terra indígena TRF-1 Tribunal Regional Federal da Primeira Região UC Unidade de conservação UHE Usina hidrelétrica Ocekadi Hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na bacia do Tapajós1 Resumo executivo

presente livro tem o intuito grupos em defesa de seus territórios 1. Ocekadi, termo da de oferecer subsídios para o e modos de vida. língua munduruku, pode ser traduzido aprofundamento do deba- A publicação reúne 25 artigos, como “o nosso rio” ou Ote público acerca de um conjunto elaborados por pesquisadores vin- “o rio do nosso lugar”. sem precedentes de hidrelétricas culados a diferentes instituições planejadas, em construção ou já im- do Brasil e do exterior, agentes do plementadas na bacia do Tapajós, poder público, de organizações não região de enorme socio e biodiver- governamentais e de movimentos sidade que se estende pelos estados sociais, que atuam na bacia do Ta- do Pará, Mato Grosso e Amazonas, pajós ou em outros contextos ama- conectando dois grandes biomas, o zônicos também impactados por Cerrado e a Amazônia. Mais especi- barramentos. Trata-se de textos iné- ficamente, são abordadas questões ditos ou, quando indicado, adapta- relativas a conflitos socioambien- dos para esta publicação. tais e incompatibilidades entre po- Sumariamos, a seguir, os prin- líticas públicas – decorrentes de um cipais argumentos expressos nos modelo centralizado e autoritário textos, que delineiam, de forma de planejamento e implantação de abrangente e detalhada, aspectos grandes empreendimentos, condu- fundamentais do planejamento, li- zido pelo setor elétrico do governo cenciamento ambiental e implan- federal e por empresas privadas – e tação de hidrelétricas na bacia do movimentos de resistência engen- Tapajós, traçando comparações, em drados por povos indígenas e outros vários momentos, com experiências

xxi semelhantes, a exemplo do comple- ser removido ante os interesses do xo hidrelétrico de Belo Monte, na agronegócio, do hidronegócio e da bacia do rio Xingu. Em particular, mineração”. Havendo vivenciado são destacadas questões relativas diversos momentos econômicos ao dimensionamento de impactos e distintos (incluindo a exploração da riscos socioambientais, ao cumpri- borracha, a extração de peles de fe- mento do arcabouço legal sobre di- linos, o garimpo de ouro e as ações reitos humanos e proteção ambien- “desenvolvimentistas” do regime tal, e à compatibilidade com outras militar), indígenas, ribeirinhos e políticas públicas, setoriais e terri- camponeses veem-se agora frente toriais. Ao mesmo tempo, os textos aos projetos de aproveitamento hi- oferecem previsões empiricamente drelétrico da bacia. Ao menos três embasadas sobre cenários futuros, terras indígenas (TIs) deixaram de caso os inúmeros projetos de insta- ser declaradas e uma reserva extra- lação de usinas hidrelétricas (UHEs) tivista (Resex) deixou de ser criada, e pequenas centrais hidrelétricas por serem consideradas obstáculos (PCHs) sigam adiante. à implantação de tais projetos. O O histórico de ocupação do alto texto discute ainda o alinhamento rio Tapajós, a diversidade social des- político contemporâneo de indíge- sa região e os reiterados esforços, nas e ribeirinhos, em luta por re- por parte de sucessivos governos, conhecimento identitário e territo- de invisibilização de povos indígenas, rial, em um quadro profundamente ribeirinhos, camponeses e outras assimétrico, marcado pela ameaça populações que ali vivem, com o que representam os barramentos intuito de abrir o território à explo- na bacia do Tapajós. ração econômica indiscriminada, Ricardo Scoles, em sua “Caracte- são abordados por Mauricio Torres rização ambiental da bacia do Tapa- no artigo “Um rio de muita gente: a jós”, oferece informações sintéticas luta comum de vidas plurais no vale sobre o rio Tapajós e seus afluentes, do alto Tapajós”. Segundo o autor, como o Jamanxim, o Teles Pires e “a região é esvaziada pelo discur- o Juruena, especificando impactos, so, em um esforço para se ‘justifi- inclusive cumulativos, que os bar- car’ a expropriação territorial e o ramentos previstos podem acarre- solapamento dos modos de vida tar. Há fortes indícios de que a di- desses grupos”. Quando negar sua versidade biológica e o endemismo presença não é possível, são “rele- (ocorrência de espécies com distri- gados à condição de ‘obstáculo’ a buição restrita a uma ecorregião)

xxii Ocekadi sejam altíssimos na porção sul da de portos nos municípios de Itai- bacia – justamente onde se concen- tuba e Santarém (Pará); a pavimen- tra grande parte dos barramentos tação da rodovia Cuiabá-Santarém planejados. Como nota o autor, os (BR-163); e as pressões minerárias conhecimentos sobre a biodiversi- sobre a bacia, onde se situa uma das dade da bacia, especialmente para a mais ricas províncias auríferas do parte sul, ainda são escassos. Entre planeta. De acordo com os autores, os problemas socioambientais his- tais intervenções – que respondem tóricos relacionados à bacia, Scoles a pressões de determinados setores destaca a contaminação das águas econômicos, notadamente do agro- por mercúrio; o avanço da pecuária negócio, dedicado à constituição de no estado de Mato Grosso; e, na por- um novo eixo logístico para escoa- ção paraense, o garimpo e a intensa mento de commodities – concorrem extração ilegal de madeira. Contu- para a “intensificação de atividades do, salienta, a exploração hidrelé- econômicas frequentemente preda- trica da bacia – que implica “inter- tórias e ilegais, ameaçando os mo- ferências de alcance imprevisível dos de vida e a integridade dos ter- no fluxo e ciclos das águas, respon- ritórios de indígenas, ribeirinhos e sáveis pela dinâmica ecológica das camponeses, entre outros grupos”. áreas de inundação florestal, diver- “Perpetuam-se, assim, tendências sidade biológica, grandes migrações históricas – é fácil encontrar nes- e ciclos reprodutivos da fauna aquá- sa opção de desenvolvimento, fre- tica” – é, “sem dúvida, a ameaça quentemente vendida como ‘ino- ecológica de maior envergadura”. vadora’, diversos pontos de contato “‘Saída pelo norte’: a articulação com as intervenções levadas a cabo de projetos de infraestrutura e rotas pela ditadura militar na Amazônia, logísticas na bacia do Tapajós”, de cujo saldo nefasto subsiste”, con- Daniela Fernandes Alarcon, Natalia cluem os autores. Ribas Guerrero e Mauricio Torres, Os efeitos da conjugação de discute as consequências negati- UHEs, PCHs e da hidrovia Teles vas da articulação de barramentos Pires-Juruena-Tapajós são examina- e outros projetos de infraestrutura dos por Philip M. Fearnside no texto previstos ou em andamento na ba- “Os planos para usinas hidrelétricas cia do Tapajós. Mais especificamen- e hidrovias na bacia do Tapajós: uma te, debruça-se sobre os planos de combinação que implica a concreti- implementação da hidrovia Teles zação dos piores impactos”. Como Pires-Juruena-Tapajós; a construção indica o pesquisador, “o conjunto

Resumo executivo xxiii de impactos das muitas barragens e econômica de projetos de aprovei- e da hidrovia do Tapajós, incluindo tamento hidrelétrico na Amazônia. seus ramais, é muito maior que os O autor destaca, entre outras ques- danos que geralmente entram em tões, a grande ineficiência no uso discussão quando se debate qual- da energia no Brasil; os impactos quer obra específica”. A implanta- da opção de desenvolvimento ado- ção da hidrovia do Tapajós, assinala tada no país, ancorada em produtos o autor, incentivará o desmatamen- energointensivos e de baixo valor to para cultivo de soja na porção agregado, como as commodities mi- norte de Mato Grosso, assim como nerais e agrícolas; e o superdimen- o plantio do grão em áreas hoje re- sionamento da demanda energética cobertas por pastagens, provocando nas projeções oficiais. De acordo desmatamento, indiretamente, em com Cabral, as análises governa- outros lugares. As barragens asso- mentais sobre os custos e benefícios ciadas à hidrovia, enfatiza, já vêm desses projetos têm sido enviesa- acarretando intensos impactos em das, atendendo comumente a pode- TIs. Apesar disso, o governo federal rosos interesses privados. A baixa tem se furtado ao debate. “Omitir qualidade dos estudos de viabilida- a discussão sobre os componentes de leva a investimentos ineficientes mais controversos de planos hi- (ou mesmo ineficazes) e a elevados drelétricos representa um padrão custos sociais. O complexo hidre- geral, repetindo a história recente létrico do Tapajós (CHT), composto de licenciamento das barragens de por sete UHEs nos rios Tapajós e Santo Antônio e Jirau, no rio Ma- Jamanxim, seria inviável tanto em deira e Belo Monte, no rio Xingu.” um cenário mais otimista, do ponto Cumpre notar que os Planos Dece- de vista do empreendedor (gerando nais de Expansão de Energia (PDEs) um prejuízo de cerca de US$ 1,6 bi- têm estabelecido como prioridade lhão), quanto em um cenário mais barragens que compõem a hidrovia. realista (prejuízo de cerca de US$ 10 Três das cinco barragens necessá- bilhões). Os custos socioambientais rias para a construção do ramal que dos empreendimentos atingiriam, tornaria o rio Teles Pires navegável em ambos os cenários, cerca de US$ até o norte de Mato Grosso já estão 400 milhões. Nesse quadro, defen- em construção. de Cabral, seria fundamental levar “Tapajós: do rio à luz”, de Wilson a cabo no país ações para tornar o Cabral de Sousa Júnior, discute a uso da eletricidade mais sustentá- necessidade e a viabilidade técnica vel, investindo-se no aumento da

xxiv Ocekadi eficiência e na expansão da oferta tre as partes iniciais do diagnóstico de energia eólica e solar. de fragilidades e conflitos socioam- “Estudos de inventário: caracte- bientais, e os capítulos finais, sobre rísticas de uma fase inicial e decisiva diretrizes (para o setor elétrico) e do planejamento de usinas hidrelé- recomendações (para outros seto- tricas na bacia do Tapajós”, de Brent res).” Têm sido registradas pressões, Millikan, debruça-se sobre estudos por parte das Centrais Elétricas Bra- de inventário e avaliação ambiental sileiras S.A. (Eletrobras), para que integrada (AAI) realizados pelo se- elementos críticos sejam alterados tor elétrico do governo em conjunto ou suprimidos. É sintomático que com empresas privadas nas sub-ba- nenhuma AAI da bacia do Tapajós cias do Tapajós-Jamanxim, Teles Pi- tenha apontado projetos hidrelétri- res e Juruena. Tais estudos, assinala, cos que devessem ser descartados. foram marcados por diversas limi- Informado por sua atuação como tações, como o subdimensionamen- assessor da Fundação Nacional do to de impactos socioambientais, Índio (Funai) e, posteriormente, incompatibilidades entre os inven- como consultor da empresa Eco- tários e outras políticas territoriais, logy Brasil, responsável pelo estu- e a falta de espaços de participa- do de AAI da sub-bacia do Tapajós- ção cidadã na tomada de decisões. -Jamanxim, Ricardo Folhes, em Mais especificamente, os referidos “Ritual burocrático de ocupação do estudos têm menosprezado a sazo- território pelo setor elétrico: o caso nalidade dos rios e de ecossistemas da avaliação ambiental integrada associados, as complexas relações da bacia do Tapajós”, reflete sobre entre populações e território, e os o licenciamento ambiental, consi- conhecimentos tradicionais sobre o derando especificamente o estudo mesmo. Note-se que não se levou a do componente indígena (ECI). Des- cabo, ainda, um estudo compreen- crevendo os bastidores da consul- dendo a bacia do Tapajós como um toria ambiental, o autor revela que todo, permitindo a identificação de a análise de conflito com os povos impactos cumulativos e sinérgicos, indígenas por ele elaborada no âm- conforme previsto na legislação bito da AAI foi submetida a cortes e ambiental; em lugar disso, foram alterações de sentido, e que ele foi realizados estudos segmentados pressionado a focalizar os “impac- por sub-bacias e mesmo por trechos tos positivos” do projeto, elaboran- de rio. “Nas AAIs, observa-se uma do uma análise que o “impulsionas- precariedade de nexos lógicos en- se”. Trabalhando na Funai, ele já se

Resumo executivo xxv deparara com pressões de órgãos se- tadamente, violações aos direitos toriais para a obtenção de licenças indígenas. Cumpre notar que o em- ambientais sem a devida avaliação preendimento destruiu a cachoeira dos impactos sobre povos indíge- Sete Quedas, “área de reprodução nas. De acordo com Folhes, a AAI de peixes migratórios que são a do Tapajós-Jamanxim pautou-se em base da alimentação das popula- uma marcada hierarquização de sa- ções indígenas e que, ademais, tem beres, em que as questões ditas “na- importância cultural e religiosa, turais” sobrepujavam as “sociais”. por ser lugar sagrado para os Mun- “O conceito de cientista neutro, he- duruku, que consideraram que ali rança positivista, está fortemente vive a Mãe dos Peixes”. Esse caso, incrustado nesses estudos.” Nesse concluem os autores, indica uma quadro, conclui, o “discurso sobre tendência do licenciamento am- a vocação energético-econômica do biental no Brasil: a viabilidade am- país, aliado à noção de desenvolvi- biental dos projetos tem se apoiado mento sustentável”, legitimaria o cada vez mais nas condicionantes avanço sobre territórios tradicional- ambientais e menos na avaliação mente ocupados. de viabilidade ambiental, fase cru- O licenciamento ambiental de cial do processo de tomada de de- grandes projetos de infraestrutura cisão, em que deveriam ser consi- tem sido objeto de numerosas crí- deradas alternativas tecnológicas e ticas, indicam Evandro Mateus Mo- de localização, impedindo-se a im- retto, Carolina de Oliveira Jordão, plantação de projetos pouco viáveis Edilene Fernandes e João Andrade, ou mesmo inviáveis. em “Condicionantes e a viabilidade No artigo “O BNDES e o financia- ambiental no processo de licencia- mento de barragens na bacia do Ta- mento ambiental de usinas hidre- pajós”, Biviany Rojas Garzón, Brent létricas: uma análise do caso Teles Millikan e Daniela Fernandes Alar- Pires”. Como observam os autores, con discutem o envolvimento do é bastante comum que compro- Banco Nacional de Desenvolvimen- missos assumidos para garantir a to Econômico e Social (BNDES) em viabilidade ambiental dos projetos projetos de aproveitamento hidrelé- não sejam devidamente implemen- trico na Amazônia brasileira, consi- tados. No que diz respeito à UHE derando as relações entre o banco, Teles Pires, informam os autores, organizações da sociedade civil e o processo de licenciamento foi outros sujeitos envolvidos nos pro- marcado por graves problemas, no- cessos, por ocasião da análise, apro-

xxvi Ocekadi vação e contratação de emprésti- pajós, demonstrando como ela tem mos, assim como o monitoramento contribuído para a reverberação e a fiscalização da execução dos em- das construções discursivas oficiais preendimentos. De janeiro de 2011 – articuladas em torno de expres- a julho de 2014 os empréstimos do sões como “crescimento”, “desen- BNDES para aproveitamentos hidre- volvimento”, “interesse nacional” e létricos (AHEs) na bacia do Tapajós “técnica” – e para o apagamento do totalizaram cerca de R$ 4,087 bi- dissenso. Foram considerados, na lhões. De acordo com Rojas Garzón, análise, um jornal diário de circu- Millikan e Alarcon, a atuação do lação nacional (O Estado de S. Paulo), BNDES em relação às barragens do um veículo especializado em jorna- Tapajós, de certa maneira, repete o lismo econômico (Valor Econômico), que se passou com Belo Monte. “O um portal de notícias dedicado ao caso de Belo Monte demonstra cla- setor energético (CanalEnergia) e três ramente a impotência da Política de jornais de alcance local, baseados Responsabilidade Socioambiental em Santarém (Gazeta de Santarém, (PRSA) do BNDES, tanto para avaliar O Estado do Tapajós e O Impacto). Nas riscos socioambientais, evitando o matérias analisadas, predominam apoio a determinados empreendi- fontes oficiais, ao passo que as vo- mentos, como para acompanhar zes críticas aos empreendimentos eficientemente a gestão de riscos tendem a ser colocadas em suspei- e impactos socioambientais envol- ta. As barragens são comumente vidos naqueles que o banco decide apresentadas como incontornáveis apoiar.” O banco, enfatizam os au- e não são consideradas à luz de tores, tem sido leniente e omisso exemplos do passado, de UHEs que diante do descumprimento de con- acarretaram danos socioambientais dicionantes de licenças ambientais graves e irreversíveis. Na cobertura e dos direitos humanos, contribuin- jornalística hegemônica, os povos do para o agravamento de conflitos indígenas são frequentemente ca- socioambientais. racterizados como “obstáculos” ao Em “Imprensa e barragens na desenvolvimento, ao tempo que bacia do Tapajós: apego ao discurso ribeirinhos e outros atingidos cos- oficial e ocultamento das críticas”, tumam ser invisiblizados. Dessa Daniela Fernandes Alarcon, Natalia maneira, concluem os autores, tais Ribas Guerrero e Vinicius de Aguiar veículos oferecem poucas contribui- Furuie analisam a cobertura jorna- ções para a qualificação e ampliação lística das barragens na bacia do Ta- do debate público.

Resumo executivo xxvii Em “Suspensão de liminar e usi- o desrespeito ao licenciamento am- nas hidrelétricas: a flexibilização do biental está judicialmente autori- licenciamento ambiental por via zado e normas jurídicas válidas se judicial”, Rodrigo Oliveira e Flávia tornam ineficazes. É a flexibilização do Amaral Vieira demonstram que do licenciamento ambiental por via a suspensão de liminar e antecipa- judicial, sem necessidade de modifi- ção de tutela (SLAT) tem sido “um cação legislativa.” fator de desequilíbrio processual Em uma abordagem complemen- em favor do Estado”, prejudicando tar, “A suspensão de segurança: peixe a discussão sobre a legalidade dos fora d’água diante da Constituição projetos de aproveitamento hidre- democrática”, Flávia Baracho Trin- létrico e promovendo “confusão en- dade, Gustavo Godoi Ferreira, Heidi tre interesses coletivos e interesses Amstalden Albertin, Luís Renato Ve- do Estado”. Até a conclusão do arti- dovato, Marcelo Brandão Ceccarelli, go (novembro de 2014), o Ministério Maria Carolina Gervásio Angelini, Público Federal (MPF) havia apre- Thaís Temer e Alexandre Andrade sentado 14 ações judiciais questio- Sampaio analisam o “comprome- nando o licenciamento ambiental timento político” do Judiciário no de UHEs planejadas para a bacia planejamento e licenciamento de do rio Tapajós. Doze delas tiveram barragens, focalizando a utilização decisões liminares, sendo nove fa- do instrumento jurídico conhecido voráveis ao MPF. Nenhuma delas, como suspensão de segurança (SS). contudo, chegou a ser aplicada, pois Como indicam os autores, licenças todas foram suspensas. Cumpre no- ambientais de empreendimentos tar que a SLAT vigora até o trânsito de infraestrutura têm sido aprova- em julgado do processo principal, das descumprindo a legislação bra- na prática, as obras questionadas sileira. Em razão disso, o Ministério tornam-se fatos consumados. “As Público têm proposto ações, “com o decisões partem do pressuposto de intuito de frear as violações à legis- que o Brasil vive uma crise na ofer- lação ambiental”. Em alguns casos, ta de energia e, consequentemen- foram proferidas decisões judiciais te, todas as UHEs previstas para a determinando a suspensão do an- bacia do Tapajós são consideradas damento dos projetos. Contudo, o cruciais para ampliação do parque governo federal tem se valido da SS energético”, observam os autores. para barrar tais decisões, “de forma “Pelo raciocínio empregado, en- a dar continuidade a elas até o tér- quanto perdurar a crise energética, mino do processo que busca averi-

xxviii Ocekadi guar as violações alegadas”. “Agin- haviam sido autorizados. Logo que do assim, procuram obstaculizar se iniciou o processo, desatou-se a por completo a garantia do acesso Operação Tapajós, por meio da qual à justiça.” Fica evidente, dessa ma- se buscou garantir à força a realiza- neira, o “engajamento do Judiciário ção de levantamentos ambientais com determinado projeto de políti- em território indígena. Além dis- ca pública energética”. A SS, salien- so, representantes governamentais tam os autores, é um instrumento atuaram para fragmentar o povo inconstitucional, que se choca com Munduruku, desrespeitando sua o ordenamento jurídico internacio- organização e deslegitimando a es- nal e garante a preponderância dos colha de suas autoridades políticas. “interesses estatal e econômico, em Dessa maneira, enfatizam Pontes detrimento da proteção ambiental e Júnior e Oliveira, o governo federal dos direitos dos indígenas”. demonstrou que a decisão de cons- O licenciamento ambiental da truir a UHE São Luiz do Tapajós esta- UHE São Luiz do Tapajós foi inicia- va tomada, independentemente da do sem realização de consulta livre, consulta, sendo esta transformada prévia e informada (CLPI), como de- em “mero ato administrativo para termina a Convenção 169 da Orga- referendar as decisões estatais”. nização Internacional do Trabalho A UHE São Luiz do Tapajós é um (OIT). Apenas em 2013, pressionado caso de “inequívoco esforço para pela mobilização indígena e por de- internalização dos lucros e socialização cisões judiciais, o governo federal dos prejuízos”, argumenta Luis de iniciou o processo de consulta, ana- Camões Lima Boaventura, no arti- lisado no artigo “Usina hidrelétrica go “Usina hidrelétrica de São Luiz do de São Luiz do Tapajós e a consulta Tapajós: o alagamento da Terra Indí- prévia aos povos indígenas e comu- gena Munduruku Daje Kapap E’Ipi nidades tradicionais”, de Felício e o soterramento da Constituição Pontes Júnior e Rodrigo Oliveira. Federal de 1988”. Tal barramento, Como demonstram os autores, a se implementado, inundaria par- postura do governo federal na eta- te significativa da TI Sawré Muybu pa inicial do processo impediu que (Daje Kapap E’Ipi), em clara viola- a consulta fosse livre, prévia, infor- ção à Constituição Federal. Como mada, culturalmente adequada e de demonstra o autor, no âmbito do boa fé. Quando as reuniões pré-con- licenciamento ambiental da UHE, sultivas foram realizadas, os estudos o governo federal tem atuado para para a implementação da UHE já invisibilizar a existência da TI. O

Resumo executivo xxix relatório circunstanciado de iden- cia do Tapajós, e pontuam marcos tificação e delimitação (RCID) da fundamentais da mobilização indí- mesma está pronto. “Entretanto, gena, como a elaboração, em 2014, em clara afronta à Constituição, a de um protocolo de consulta. De Funai, confessadamente pressiona- acordo com o artigo, é possível ob- da por outros setores do governo fe- servar “uma profunda diferença de deral e empreendedores vinculados arquiteturas cognitivas entre esse ao setor elétrico e da construção ci- povo indígena e as sociedades oci- vil, omite-se de seu dever legal e se dentais”. Ao analisar uma imagem recusa a publicar o aludido RCID.” extraída do relatório de impacto Nesse quadro, o MPF e os Mundu- ambiental (Rima) da UHE São Luiz ruku tomaram algumas iniciativas, do Tapajós – documento que, supos- também discutidas no artigo. Em tamente, apresentaria os resultados meados de 2014, o MPF propôs uma do estudo de impacto ambiental ação civil pública (ACP), solicitando (EIA) em termos mais acessíveis –, os que a Funai e a União Federal cum- autores encontraram 14 conceitos prissem sua obrigação de demarcar (como “superfície”, “metros”, “mi- a TI. O processo recebeu decisão lhões” e “desnível”) totalmente au- favorável, mas esta foi sustada por sentes da cultura munduruku, e ter- uma SS. No final de 2014, seguindo mos parcialmente ausentes (como os parâmetros do RCID não publica- “largura” e “direita”, que, entre os do, os Munduruku iniciaram a au- Munduruku, têm outros sentidos). todemarcação da TI Sawré Muybu, O artigo apresenta, ainda, um aler- “uma empreitada inédita e que cer- ta: “As propriedades incrivelmente tamente será lembrada na história ricas da organização mental e social indigenista e fundiária do país”. dos Munduruku representam em Em “Uma nota sobre a geome- si mesmas um sinal de advertência tria e o sistema de aproximação nu- contra a destruição. O que está em mérica dos indígenas Munduruku jogo é nada menos que a preserva- e sua importância para o respeito à ção da diversidade da cognição hu- Convenção 169 da OIT”, Pierre Pica, mana – uma diversidade que, além Sidarta Ribeiro, Jairo Saw e Mauri- de ser um valor em si, pode muito cio Torres discutem as relações en- bem ser indispensável para o futuro tre as peculiaridades cognitivas dos e sobrevivência de nossa espécie”. Munduruku e a efetivação do direi- “Barragens e violações dos direi- to à CLPI a respeito dos empreen- tos indígenas na bacia do rio Jurue- dimentos de infraestrutura na ba- na”, de Andreia Fanzeres e Andrea

xxx Ocekadi Jakubaszko, oferece uma amostra das a atividades predatórias como da sociodiversidade da bacia do Ju- exploração madeireira e mineração. ruena, assim como das pressões am- “Nós somos a gente que vive nos bientais e fundiárias impostas por rios em que vocês querem construir projetos de aproveitamento hidrelé- barragens”, afirmam indígenas, ri- trico aos povos indígenas que vivem beirinhos e pescadores em carta na região, e dos vícios que têm mar- recuperada por Helena Palmquist cado o licenciamento dos empreen- em “O governo que age como a su- dimentos. No artigo, é possível co- curi e a resistência dos Munduruku nhecer a dramática situação dos às barragens no Tapajós”. Tomando Enawene Nawe, que, desde 2008, como marco inicial uma manifesta- não conseguem realizar seu princi- ção realizada em 2011 pelos povos pal ritual, o Yaokwa, caracterizado Kayabi e Munduruku para exigir a pela pesca coletiva de barragem e paralisação do licenciamento da por interações com as entidades UHE São Manoel, o artigo se debru- conhecidas como yakairiti. Em de- ça sobre as estratégias engendradas corrência do complexo hidrelétrico por povos indígenas e comunidades do Juruena, composto por dez em- tradicionais, focalizando em espe- preendimentos, os indígenas já não cial a mobilização munduruku. Do têm êxito na pescaria, dependendo painel delineado pela autora, emer- da compra de frango e peixe con- ge o largo emprego, pelo governo gelado para a realização do ritual. federal, de práticas de repressão. Cumpre notar que o Yaokwa é reco- Destacam-se o assassinato de Ade- nhecido como patrimônio cultural nilson Munduruku pela Polícia do Brasil e como patrimônio da hu- Federal (PF), durante operação na manidade. Os demais povos indíge- aldeia Teles Pires, em 2012, e a Ope- nas que vivem na bacia do Juruena ração Tapajós, desatada em 2013, no (Apiaká, Bakairi, Kayabi, Myky/Iran- âmbito da qual estudos de impacto txe, Munduruku, Nambikwara, Pa- ambiental foram realizados por pes- resi e Rikbaktsa) também têm seus quisadores escoltados por militares. territórios e modos de vidas amea- É evidente, ainda, o sistemático des- çados pelos barramentos. Para citar cumprimento, pelos órgãos oficiais, um exemplo, o território manoki, da legislação e de compromissos sozinho, é afetado por 11 PCHs. estabelecidos com indígenas e ribei- Como indicam as autoras, as bar- rinhos. Ao mesmo tempo, o artigo ragens vêm agudizando pressões deixa ver a vitalidade da mobiliza- anteriormente existentes, associa- ção munduruku, organizada princi-

Resumo executivo xxxi palmente em torno do movimento pelo Ministério do Meio Ambiente Ipereg Ayu. Os indígenas têm em- (MMA) como de prioridade extre- pregado táticas de ação direta e ape- mamente alta. Após a redução, par- los à justiça, em um contexto mar- te das áreas desafetadas foi tomada cado por uma correlação de forças por garimpos clandestinos. Cumpre sumamente desfavorável. notar que foi realizada por medida A redução de unidades de conser- provisória (MP), em clara violação à vação (UCs) com o intuito de viabili- Constituição Federal. Para os auto- zar o complexo hidrelétrico que se res, a redução expressa a “estranha quer implementar nos rios Tapajós harmonia coercitiva estabelecida e Jamanxim é analisada por Maria entre as políticas ambientais e ener- Luíza Camargo e Mauricio Torres no géticas no Brasil”. artigo “Redução na medida: a Medi- A noção de “floresta virgem”, da Provisória nº558/2012 e a arbitra- acionada frequentemente por de- riedade da desafetação de unidades fensores das barragens na bacia de conservação na Amazônia”. A do Tapajós, é um mito, indicam desafetação de porções do Parque Bruna Cigaran da Rocha e Vinicius Nacional (Parna) da Amazônia, das Honorato de Oliveira em “Floresta Florestas Nacionais (Flonas) Itaitu- virgem? O longo passado humano ba I, Itaituba II e Crepori, e da Área da bacia do Tapajós”. A Amazônia, de Proteção Ambiental (APA) do Ta- enfatizam, é modificada pela ação pajós ocorreu em 2012, “no marco humana há milênios. Devido às di- de um projeto de aproveitamento ficuldades de acesso, poucas pesqui- hidrelétrico que sequer tem seus sas arqueológicas foram realizadas estudos de viabilidade concluídos”. no alto curso do Tapajós, em seus A medida foi implementada sem a formadores e tributários. Trata- realização de qualquer estudo sobre -se, contudo, de áreas-chaves para seus possíveis impactos, sobre as es- a compreensão do passado amazô- pécies ameaçadas de extinção e os nico, sobretudo dos primeiros mi- sítios arqueológicos já registrados, lênios de ocupação. “As paisagens e sem que se considerasse a dinâ- humanizadas da bacia do Tapajós mica de degradação ambiental no representam camadas de ocupação entorno das UCs. Conforme estudo e memória”, concluem Oliveira e do Instituto do Homem e Meio Am- Rocha. Além de seu valor científico e biente da Amazônia (Imazon) referi- artístico para a sociedade em geral, do no artigo, cerca de 80% das áreas esse patrimônio possui grande rele- excluídas das UCs são classificadas vância para os povos indígenas e co-

xxxii Ocekadi munidades tradicionais que vivem postas pelo MPF. Porém, ainda que na região. Tal patrimônio, contu- decisões liminares tenham suspen- do, está ameaçado pelas barragens. dido o licenciamento e as obras em Nesse quadro, os autores alertam diferentes ocasiões, elas foram der- para os riscos representados pelas rubadas na justiça e Sete Quedas, propostas de flexibilização da pro- dinamitada. O caso não é exceção: teção ao patrimônio arqueológico diversos lugares significativos para no licenciamento ambiental e para povos indígenas e comunidades tra- os problemas envolvidos em opera- dicionais têm sido impactados por ções de “resgate” ou “salvamento” obras de infraestrutura. As escava- arqueológico. Retirando vestígios ções arqueológicas no âmbito do de seu contexto e desconsiderando licenciamento de UHEs, frequente- os conhecimentos das populações mente realizadas sem autorização que vivem na região, bem como de indígenas e ribeirinhos, também suas relações simbólicas com o pa- são comentadas no artigo. Quando trimônio, tais operações ameaça- da conclusão do texto, a retirada de riam as próprias pesquisas, além de urnas funerárias munduruku e ka- configurar formas contemporâneas yabi pela empresa Documento, res- de expropriação de povos indígenas ponsável pelos estudos arqueológi- e comunidades tradicionais. cos relacionados à UHE Teles Pires, “Sobre sítios arqueológicos e lu- era investigada pela Procuradoria da gares significativos: impactos so- República em Santarém. Trata-se de cioambientais e violações dos direi- um caso que evidencia com clareza tos culturais dos povos indígenas e as violações cometidas pela prática tradicionais pelos projetos de usinas da arqueologia “de contrato”. hidrelétricas na bacia do rio Tapa- “O garimpo hidrelétrico: impac- jós”, de Francisco Antonio Pugliese tos de Belo Monte na cidade de Al- Jr. e Raoni Bernardo Maranhão Val- tamira e subsídios para reflexão le, discute a destruição da cachoeira sobre o complexo hidrelétrico do de Sete Quedas, no rio Teles Pires, Tapajós”, de Eric Macedo, apresen- para dar lugar à UHE de mesmo ta um exemplo contundente da nome. Como indicam os autores, magnitude dos impactos urbanos trata-se de “lugar sagrado e pai- decorrentes de empreendimentos sagem de imensurável relevância de infraestrutura na Amazônia. para os povos Munduruku, Kayabi e Baseando-se em pesquisa etnográ- Apiaká”. A destruição desse marco fica desenvolvida em Altamira, em territorial foi objeto de ACPs pro- 2013, o autor elencou algumas das

Resumo executivo xxxiii transformações ocorridas na cida- ti, Marcelo Derzi Vidal e Daniely de no marco da implementação Félix-Silva discutem os potenciais da UHE Belo Monte. Destacam-se impactos deletérios dos barra- o aumento populacional decorren- mentos previstos nos rios Tapajós te do afluxo de migrantes atraídos e Jamanxim sobre a tartaruga-da- pela obra; o crescimento vertigi- -Amazônia (Podocnemis expansa) e o noso dos aluguéis e dos preços de tracajá (Podocnemis unifilis), e criti- alimentos, assim como de outros cam as limitações dos processos de bens e serviços; o aumento da pre- licenciamento ambiental das barra- cariedade dos serviços públicos; e o gens. Entre outras consequências, crescimento significativo de ocor- os barramentos podem provocar a rências relacionadas a tráfico de redução de estoques ou mesmo a drogas, furtos, roubos e exploração extinção local de algumas espécies, sexual, amplificados pela imprensa, assim como a explosão demográfica suscitando nos moradores intensa de outras, acarretando significativa sensação de insegurança. De acordo redução da biodiversidade. É possí- com Macedo, seria possível iden- vel prever também que a diminui- tificar um marcado “descompasso ção das fontes de alimentos resul- entre o ritmo das obras na barra- tará em perda individual da massa gem e as ações de infraestrutura ur- corpórea dos quelônios. Além disso, bana e todo tipo de compensações ambientes de “importância crítica” prometidas para a região”. Essas para a reprodução, como praias e transformações conformariam um barrancos utilizados para a desova, padrão que extrapolaria o caso es- serão modificados ou desaparece- pecífico de Belo Monte. “O aspecto rão. Vale notar que a mais impor- de previsibilidade dado por tal pa- tante área de desova da bacia situa- drão é urgente num momento em -se a menos de 100 km do local onde que proliferam projetos de grandes se prevê a construção da UHE São UHEs por toda a Amazônia”, indica Luiz do Tapajós. Na região influen- Macedo, apontando as propostas de ciada pelo complexo hidrelétrico, barramento do rio Tapajós como informam os autores, ocorrem 11 emblemáticas. espécies de quelônios aquáticos. Em “Impactos da construção de “Isso significa uma elevada riqueza usinas hidrelétricas sobre quelônios de espécies, produto da grande dis- aquáticos amazônicos: um olhar so- ponibilidade de ambientes distintos bre o complexo hidrelétrico do Ta- e bem conservados.” Várias delas pajós”, Juarez Carlos Brito Pezzu- são consideradas vulneráveis – a

xxxiv Ocekadi tartaruga-da-Amazônia, por exem- UHEs, como as de Jatobá e Chaco- plo, é classificada como criticamen- rão.” Como lembram os autores, a te ameaçada. pesca é uma atividade crucial na ba- No artigo “As migrações do jara- cia do Tapajós – servindo tanto para qui e do tambaqui no rio Tapajós e subsistência como para obtenção de suas relações com as usinas hidre- renda –, com importante participa- létricas”, Ronaldo Barthem, Efrem ção de peixes migradores, o que tor- Ferreira e Michael Goulding discu- na a UHE São Luiz do Tapajós e ou- tem os impactos potenciais da UHE tros empreendimentos ainda mais São Luiz do Tapajós sobre as duas preocupantes. espécies (respectivamente, Sema- “Promessas de governança vs. prochilodus spp. e Colossoma macropo- realidade: consequências da implan- mum). De acordo com eles, a deriva tação de megaempreendimentos no de ovos e o acesso dos reproduto- sudeste amazônico”, de Juan Do- res às áreas de desova devem ser blas, analisa os impactos socioam- afetados, podendo inclusive cau- bientais do asfaltamento da BR-163 sar o desaparecimento de espécies (Cuiabá-Santarém) e da construção migradoras nos trechos do rio que da UHE Belo Monte, considerando ficarão isolados. “Aparentemente, inclusive os efeitos de tais impactos o tambaqui apresenta uma forte na eficácia dos próprios empreen- dependência em relação à conexão dimentos, por meio de processos entre os trechos de montante e ju- de retroalimentação climática, que sante da cachoeira de São Luiz, ten- podem torná-los até inoperantes. As do em vista que a área de alimenta- medidas de previsão e mitigação de ção dos adultos está a montante da danos socioambientais decorrentes cachoeira, o berçário está a jusante de empreendimentos de infraestru- e a área de reprodução, exatamen- tura têm sido ineficazes, observa te na cachoeira. Por outro lado, os Doblas, estimulando a extração ile- jaraquis parecem poder manter os gal de recursos da floresta. De 2011 a ciclos migratórios independentes 2013, o aumento do desmatamento nos dois trechos. No entanto, não no entorno da BR-163 foi de 250%. é possível avaliar se a estreita área Em 2012, o entorno de Belo Monte, de floresta alagada a montante das ocupando 23% do Pará, concentrava cachoeiras de São Luiz poderia ali- 56% de toda a exploração madeireira mentar as populações que se man- ilegal do estado. Note-se que a pró- teriam acima da barragem caso esse pria obra foi grande consumidora trecho seja entrecortado por outras de madeira. Como o empreendedor

Resumo executivo xxxv desperdiçou milhares de metros cú- Fearnside, em “Crédito de carbono bicos de toras, retiradas para a insta- para usinas hidrelétricas como fonte lação dos canteiros e reservatórios, de emissões de gases de efeito estu- foram compradas enormes quanti- fa: o exemplo da usina hidrelétrica dades de madeira, incentivando um de Teles Pires”. Diversos estudos mercado majoritariamente ilegal. científicos demonstram que as bar- “As consequências da implantação ragens na Amazônia, especialmen- do complexo hidrelétrico do Tapa- te durante os primeiros dez anos de jós devem ser similares ao caso do operação, produzem grandes quan- Xingu [onde se situa Belo Monte]: tidades de gases de efeito estufa: especulação imobiliária no meio ru- metano (CH4), dióxido de carbono ral, que ocasiona um surto de des- (CO2) e óxido nitroso (N2O). O pro- matamento; degradação florestal; e, jeto de Teles Pires, porém, ignora finalmente, desmatamento massivo tais emissões. Assim, a UHE “gera nos municípios afetados pela cons- créditos de carbono sem benefício trução das usinas.” verdadeiro para o clima”. Além dis- O Mecanismo de Desenvolvi- so, quando foi contemplada com o mento Limpo (MDL) do Protoco- crédito, a barragem já estava finan- lo de Quioto concede créditos de ciada e em construção. A análise de carbono para UHEs, assentado nas Fearnside chama a atenção, ainda, premissas de que a geração de ele- para a contradição entre a preocu- tricidade por barragens apresenta- pação declarada pelo governo brasi- ria emissões de carbono mínimas se leiro em relação às mudanças climá- comparadas com a geração a partir ticas e a atuação de diplomatas do de combustíveis fósseis, e que, sem país, que “tem sido fundamental na esse financiamento, elas não seriam criação e ampliação das brechas no construídas. Nenhuma das suposi- regulamento” relativo à concessão ções procede, demonstra Philip M. de créditos de carbono para UHEs.

xxxvi Ocekadi Um rio de muita gente A luta comum de vidas plurais no vale do alto Tapajós1 Mauricio Torres

À memória de dona Santinha, índia de roupa. Leva também uma boti- 1. Um especial Munduruku casada com o beiradeiro na nova – “é para abrir a varação lá agradecimento à Daniela Fernandes Quelé e que, há 10 anos, me presenteou com os índios”. Alarcon, que com uma das seis galinhas que tinha. O Na verdade, Caititu atravessa praticamente reescreveu este maior presente que recebi. mais que o rio. Ele descende de se- texto, incorporando ringueiros que chegaram às flores- fundamentais adições Ah, aqui nesse rio já passou muita gente. tas do Tapajós na passagem do sécu- à forma e ao conteúdo, e à Bruna Cigaran da Muita. Teve tempo ruim, mas nunca foi lo XIX para o XX e, na disputa pelo Rocha, pela essencial e rio reimoso, igual tem muito por aí. Não! território, entraram em confron- generosa colaboração sobre a ocupação pré- Deus defenda. Aqui, o rio não nega. to com índios Munduruku. Assim colombiana do alto (Josué Cirino, beiradeiro do rio como os Kayapó – tradicionais ini- Tapajós. Tapajós) migos dos Munduruku –, os serin- gueiros eram pariwat, termo mun- m outubro de 2014, o ribeirinho duruku que tanto designa “aquele Chico Caititu atravessa o Tapa- que faz parte de um grupo que é de jós, saindo do “seu lugar”, em fora”, como “inimigo”. A viagem de EMontanha, na margem esquerda Caititu alegoriza uma importante do rio, e chega à Terra Indígena (TI) aliança entre beiradeiros e indíge- Sawré Muybu. Vai se unir aos Mun- nas. A TI que vão demarcar situa-se duruku nos trabalhos de autode- no exato local que o governo fede- marcação da TI. Com 65 anos, leva ral pretende alagar com a constru- na pequena “boroca” uma rede, ção da usina hidrelétrica (UHE) de um terçado e umas poucas trocas São Luiz do Tapajós. Também mora-

1 Imagem 1. Ao lado dos Munduruku, o beiradeiro Chico Caititu, de Montanha e Mangabal, abre picadas na autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. Por Mauricio Torres, out. 2014.

das ribeirinhas são ameaçadas pela ritorial, em uma dinâmica em que barragem. também se equacionam questões Por trás do alinhamento político ambientais e grandes interesses 2. Adotamos aqui a de diferentes grupos étnicos – que, econômicos2. Na verdade, pretende- toponímia usada pelas ainda assim, mantêm-se como dis- -se discutir a ocupação de índios, comunidades locais, que designam como tintos –, está a presença do inimigo beiradeiros e colonos, contextua- “alto Tapajós” toda a comum, com projetos que desterri- lizando-os em relação à ameaça porção a montante da torializariam a todos. De modo mais de expropriação anunciada pelos cachoeira de São Luís do Tapajós, até a Barra ou menos análogo, camponeses que projetos das UHEs. Esse enfoque de São Manoel. chegaram à região na década de pauta o recorte histórico que aqui 1970, em busca de terra, e entraram se apresenta. Trata-se de um proces- em disputa com beiradeiros, aproxi- so complexo, permeado por sutis mam-se destes últimos na resistên- plasticidades nas tensões internas cia às pretensões de construção de de plurais sujeitos coletivos de di- barragens. reitos. Grupos diversos fundidos Neste texto, de modo bastante pelo governo federal, como massa introdutório, espera-se apresentar amorfa, relegados à condição de a ocupação do alto rio Tapajós, sua “obstáculo” a ser removido ante os diversidade social e o movimento interesses do agronegócio, do hidro- secular de invisibilização e luta por negócio e da mineração. reconhecimento identitário e ter-

2 Torres Da ocupação pré-colombiana aos 1981/1982: 297), de modo que não se primeiros seringueiros pode afirmar, com base em relatos Ao menos desde o século XVIII, a de viajantes, a configuração étnica ocupação humana do alto Tapajós do alto Tapajós anterior a esse pe- é documentada. Ainda assim, até ríodo. O bandeirante João de Souza hoje, não falta quem insista – por Azevedo forneceu ao bispo do Grão- ignorância ou má-fé – em sua ine- -Pará, João de São José, diversos et- xistência. Altino Ventura Filho, se- nônimos para o alto Tapajós, regis- cretário de Planejamento e Desen- trados em seu relato (São José, 1847 volvimento do Ministério de Minas [1763]). Poucos anos depois, mais al- e Energia (MME), por exemplo, afir- guns etnônimos seriam registrados mou recentemente, em relação ao pelo vigário-geral da província do complexo hidrelétrico do Tapajós Rio Negro, José Monteiro Noronha (CHT), que “será a primeira vez que (2006 [1768]). se construirá uma hidrelétrica em É interessante notar que ambos região não habitada” (Nassif, 2013). mencionam os Maués, citados como Mesmo entre os burocratas envolvi- “Magués” (São José, 1847 [1763]) ou dos na febre barrageira do governo “Maué” (Noronha, 2006 [1768]). A federal, Ventura Filho não é o pri- primeira menção aos Maués teve meiro. Em maio de 2012, Mauricio Tolmasquim, presidente da Empre- sa de Pesquisa Energética (EPE), corporação pública ligada ao MME, já havia aludido à inexistência de “ocupação humana” no local, ao falar dos projetos das barragens de São Luiz do Tapajós e Jatobá (Abda- la, 2012; Cunha, 2012). O vale do Tapajós é ocupado – há muito. Presume-se que a presença humana no alto curso de seu rio principal remonta ao início do Ho- loceno, cerca de dez mil anos atrás Imagem 2. Casa de Chico Caititu, no lugar (Rocha, 2012: 29). A primeira nave- conhecido como Bozó, gação completa do rio de que se tem na margem esquerda do rio Tapajós. Por registro somente se deu em 1742 Daniela Alarcon, set. (Fonseca, 1880/1881: 76; Menéndez, 2014.

Um rio de muita gente 3 lugar quando o frei Samuel Fritz si- gues (1875), elaborado em 1872, e tuou-os no baixo Tapajós, em 1691, os de frei Pelino de Castrovalvas sugerindo que esse povo havia se (2000), registrados de 1871 a 1883, relocado rio acima e no interior do descrevem as margens do Tapajós interflúvio Madeira-Tapajós. Tam- como ocupadas por diversos povos bém vale observar que a Noronha indígenas, porém registram a pre- é atribuída a primeira menção aos sença contínua somente dos Mun- Munduruku (Horton, 1948), cita- duruku e dos Maués. Segundo esses dos como “Maturucu” (Noronha, autores, as demais etnias estariam 2006 [1768]: 37). No rol de João de extintas, haveriam migrado ou, São José, figuram Aripiuns, Magués, quando muito, estariam apenas de Muriva, Jacareuarás, Commandiz, passagem pela região. Em meio aos Bradocas, Sapupes, Motuaris, Suri- índios, já àquele tempo, também nanas, Necurias, Periquitos, Semi- notavam a presença de seringuei- curids, Urupás, Anijuariás, Apecua- ros, recobrindo-os de estigmas: riás, Amanajus (São José 1847 [1763], apud Robazzini, 2013: 85). Note-se, Algumas barracas seringueiras ap- porém, que essa lista está muito parecem pela margem: de homens longe de um inventário exaustivo. que[,] atraz de um lucro fallaz, Relatos seguintes comumente adi- sujeitam-se a passar todo o verão cionavam – ou retiravam – etnôni- na mata, sem um só companheiro, mos. Com o início das expedições vivendo vida de condemnado, e de naturalistas do século XIX, temos animal (Rodrigues, 1875: 96). registro de povos que falavam lín- guas dos troncos Aruak, Jê, Tupi e Na extração da borracha, que Karib, demonstrando alto grau de ensaiava naquela segunda metade diversidade linguística e cultural na do século XIX a grande e efême- 3 3. Bruna Cigaran da região . Portanto, quando Eduardo ra explosão que logo viria, tam- Rocha, com. pess. Galvão (1960) definiu a região entre bém percebiam o envolvimento de os rios Tapajós e Madeira como uma indígenas. “área cultural Tupi”, referiu-se a um A frequência dos encontros en- quadro do século XX. tre naturalistas e embarcações de

4. Além das referências A partir da década de 1770, os comerciantes no alto Tapajós indica citadas, leia-se também: Munduruku iniciaram seu processo uma rede consolidada já em meados Castelnau (1949), de expansão territorial em direção do século xix4. Frei Pelino de Cas- Almeida (1860/1874), Chandless (1862) e ao baixo Tapajós. Um século depois, trovalvas, em 1871, quando incum- Langsdorff (1981). relatos como os de Barbosa Rodri- bido de fundar uma missão capu-

4 Torres chinha no alto Tapajós, teve grande alternativa encontrada foi um pro- dificuldade em interpor-se entre os grama de migração nordestina para regatões5 e os índios, pois, segundo áreas de seringais, financiado pelas 5. “Regatão” é a ele, os primeiros, “tendo outrora casas aviadoras de Belém e Manaus. denominação tanto para as embarcações enganado aquela pobre gente tro- Segundo Octávio Ianni, de comerciantes que cando coisas de pouquíssimo valor transitam pelo rio, quanto para os donos e por quintais de borracha elástica, muitos foram os nordestinos leva- gerentes das mesmas. quereriam ainda hoje continuar dos para os trabalhos da borracha. tão injusto negócio” (Castrovalvas, Ao lado do caboclo e do índio ama- 2000: 75). E decide: “nenhum rega- zônicos, o nordestino representou um tão poderia negociar com os índios, contingente muito importante da a não ser em minha presença e sob mão de obra dedicada à borracha. a minha fiscalização e vigilância” Muitos eram principalmente cea- (Ibid.: 112s). Para garantir o cumpri- renses (1979: 46). mento de seus arbítrios, constrói uma “casa de punição” e monta No Pará e no Amazonas, em um pelotão de índios sob o seu co- apenas 28 anos (1872-1900), a popu- mando. Frei Pelino foi processado lação foi de 329 mil para 695 mil por comerciantes e políticos locais, habitantes (Furtado, 2000: 137). No “acusado de ter-se dedicado mais alto Tapajós, o movimento migrató- aos negócios do que às boas obras” rio parece ainda ter se prolongado (Coudreau, 1977 [1897]: 36; cf. tam- pelo menos até o final da primeira bém Brasil, s.d.). Procedente ou não década do século XX. Houve ainda, a acusação, é fato que o próprio durante a Segunda Guerra Mundial, frei apresentou dados de uma con- outro momento de intensificação siderável produção de borracha na migratória para a extração de bor- missão Bacabal, com uso da mão de racha na Amazônia e, novamente, o obra indígena (Castrovalvas, 2000: Nordeste foi a principal origem dos passim). trabalhadores. Mas, mesmo antes do século XX, a presença de seringuei- Nos tempos do “carrancismo” ros já era expressiva, como testemu- Já próximo ao final do século XIX, nhou, em 1895, o francês Henri Cou- o mercado da borracha explodia, dreau. O naturalista registou que, enfrentando como fator limitante a na área onde hoje se situa o Parque escassez de mão de obra e a resis- Nacional (Parna) da Amazônia, “no tência indígena em defesa de seus Igarapé Mambuaizinho[,] que fica na territórios e de sua liberdade. A margem esquerda, contam-se não

Um rio de muita gente 5 menos que uns 500 maranhenses, de se limitar à assimilação. Captura- todos também ocupados na extra- das e vendidas ou, então, tomadas ção da borracha” (Coudreau, 1977 como esposas, foram alvo de graves [1897]: 29). Assim, deslocaram-se violações, porém, resumi-las ao pa- para as margens do Tapajós muitos pel de vítimas é submetê-las a nova dos ascendentes das famílias de bei- violência (Wolff, 1998). A presença radeiros que lá ainda vivem. dessas mulheres na constituição Na verdade, esse enredo respon- dos grupos familiares nas zonas de mais pela chegada dos ascenden- ribeirinhas do Tapajós e de outros tes homens. A falta de mulheres en- rios é peça vital para o entendimen- tre os migrantes levou à reprodução to do modo de ocupação e de repro- do modelo de união entre homens dução naquele espaço. Também por não indígenas e mulheres indígenas isso há que se evitar o reducionismo (Galvão, 1966). São muito comuns operado na vitimização da índia, relatos como o de dona Raimunda pois, assim, sua incorporação apa- Cecília de Araújo, nascida em 1938, rece como algo moradora de Mangabal, que lembra bem da narrativa sobre como o avô que não oferece nada para o futuro, cearense roubou sua avó, uma ín- pois fala somente das derrotas, de dia. Esse padrão assimétrico de mis- subjugação e de esquecimento. […] cigenação está gravado, ainda ago- Ao contrário, pensar essas mulheres ra, no sangue de seus descendentes. também como sujeitos, que intera- Quando a composição genética da gem com outros na sociedade dos população amazônida é estudada seringais, pode nos trazer elemen- com detalhes, nota-se que as varian- tos novos para a compreensão dessa 6. Sobre as mudanças tes dos genes transmitidos ao longo sociedade (Ibid.: 169)6. culturais provindas das gerações apenas por via paterna da exogamia e sua importância (os do cromossomo Y) são em sua A ocupação ribeirinha que se se- fundamental no maioria similares às variantes ibéri- guiu no alto Tapajós é herdeira di- processo de adaptação, cas. As formas gênicas herdadas de reta de tecnologias indígenas, fato ver Moran, 1990. mãe para filha (as do DNA das mi- que se percebe nos saberes associa- tocôndrias), pelo contrário, são ma- dos à caça, pesca, manejo dos ro- joritariamente idênticas às das mu- çados, coletas e em mais inúmeras lheres indígenas (Santos et al., 1999). formas de relação com o rio e com a Note-se que a contribuição da floresta (cf. Torres, 2008, 2011). mulher indígena para a formação Ainda no que diz respeito à gê- dos grupos familiares esteve longe nese da ocupação da terra na região

6 Torres do alto Tapajós, há que se ressaltar a obra. Nesse ambiente o seringueiro situação agrária dos seringais. Eram não podia ser um trabalhador livre, terras comumente não reclamadas, um assalariado. Se fosse, um traba- 7. Uma vasta discussão terras apropriadas por seringalistas lhador livre, de posse de seu salário, sobre as dinâmicas (ou “patrões”, como eram comu- logo estaria em condições de seguir de escravização por mente chamados) com uso de vio- adiante (1979: 55). endividamento nos seringais está em lência e exploradas a partir da coer- Weinstein (1993). ção do trabalho dos seringueiros, Não era a terra que tinha valor, sem qualquer registro formal em eram a estrada de seringa e o con- relação ao título fundiário. A prin- tingente de trabalhadores para cipal forma de controle dos patrões explorá-las. “A mão de obra tudo sobre a escassa mão de obra operava vale e a terra, quase nada” (Pimen- via mecanismos de endividamento, ta Bueno, 1882: 61 apud Weinstein, 8 que derivavam em escravidão por 1993: 193) . Com o declínio do tem- 8. Pimenta Bueno, Manuel dívida7. Para garantir a permanên- po áureo da economia da borracha, Antonio. 1882. A borracha. Rio de Janeiro. cia do trabalhador, havia que se lhe após 1912, os pilares comerciais e do privar de liberdade, em função do sistema de escravização começaram endividamento, e para garantir que a ruir. ele se endividaria, a principal tática consistia na proibição de fazer ro- Os ‘barões’ da borracha perderam çados, o que o obrigava a comprar o poder absoluto e as fortunas que tudo o que consumia. Isso perdurou possuíam. Escândalos internacio- por tempos e ainda hoje, no “beira- nais atraíram a atenção do mundo dão” do Tapajós, ainda são muito para a escravização do seringueiro vivas as lembranças do “tempo do da Amazônia (Wagley, 1977: 107 apud 9 carrancismo”, como muitos se refe- Ianni, 1979: 60) . 9. Wagley, Charles. 1977. rem aos tempos da alta da borracha, Uma comunidade amazônica. São Paulo, em que, como forma de coerção, os Paralelamente a esse enfraqueci- Companhia Editora patrões se valiam livremente do ter- mento, outras formas começaram a Nacional. ror e da violência. Ianni comenta: se estruturar, em especial, um seg- mento camponês específico, nos se- O seringueiro não passava de um pri- ringais sem patrões: sioneiro do sistema de aviamento, do comércio, do crédito, da violência Em muitos lugares, ou ressurgiu, ou privada do patrão. […] na Amazônia nasceu pela primeira vez, um setor a terra era farta e livre, ao mesmo camponês. Ao mesmo tempo em tempo em que escasseava a mão de que ocorriam a crise, a estagnação,

Um rio de muita gente 7 o retrocesso ou a decadência do mo- tos extrativos, que eram essencial- noextrativismo da borracha, ocorria mente comerciais e não agrícolas, também o rearranjo das forças pro- simplesmente encerraram suas dutivas e das relações de produção. atividades. Ficaram para trás os […] Ao decair o monoextrativismo trabalhadores, dedicados à própria da borracha, voltado para o comér- subsistência e comercialização de cio e indústria externos, ocorreu a excedentes em pequena escala. Es- diferenciação das atividades produ- sencialmente, houve um refluxo da tivas voltadas para o consumo e o economia, expresso diretamente no comércio internos, principalmente retorno a uma economia baseada na locais. Diferenciou-se o extrativismo produção direta dos meios de vida em coleta, caça e pesca; ao mesmo por parte dos trabalhadores. Isso tempo, formaram-se roças e cria- tinha sentido, porque os donos de ções. Constituiu-se um setor cam- seringais e castanhais eram meros ponês razoavelmente significativo, posseiros ou foreiros que haviam mas disperso no espaço ecológico arrendado suas terras do Estado. (Ianni, 1979: 63s). Portanto, a partir desse momento, a frente de expansão ficou caracteri- A perda de poder dos patrões vai zada como uma frente demográfica alterando as relações de trabalho. de populações camponesas e pobres Joseph Woodroffe, em 1915, sinteti- residualmente vinculadas ao merca- zava: “quase todo seringueiro possui do. Em vez de estagnar, continuou agora sua roça de mandioca, feijão, crescendo e se expandindo pela che- milho ou banana” (1915: 121 apud gada contínua de novos camponeses 10 10. Woodroffe, Joseph. Weinstein, 1993: 273) . E, de fato, os sem terra originários sobretudo do 1915. The rubber empreendimentos estruturados em Nordeste, no caso da Amazônia, que industry of the Amazon. London. um momento de intenso floresci- foram ocupando as terras real ou mento de uma economia capitalista supostamente livres da região (Mar- acabaram por, contraditoriamente, tins, 1997: 178s). fortalecer formas não capitalistas de viver e de produzir, como o cam- Ainda hoje, nas comunidades pesinato florestal que se firmava do alto Tapajós, ouvimos dos mais nos seringais desvalorizados: velhos – descendentes dos serin- gueiros que acabaram por ficar na Quando a economia da borracha terra – relatos transmitidos por seus entrou em crise e decadência aí por pais e avós sobre como muitos pa- 1910, muitos desses empreendimen- trões simplesmente desapareceram

8 Torres de uma hora para a outra, ao passo látex deu-se, mais que em razão da que algumas famílias de pequenos quebra do mercado internacional seringalistas, em face da desarti- da borracha, pelo gradativo desin- culação do mercado da borracha, teresse pelo produto por parte de acabaram por se fundir social e comerciantes locais. Entre os anos economicamente aos seringueiros, de 1960 e 1970, o comércio cessou aproximando-se de uma estrutura quase que por completo no alto Ta- calcada em nucleamentos familia- pajós, por falta de compradores de res e na solidificação das relações seringa. Enquanto a borracha per- vicinais. dia preço e tinha compradores cada vez mais raros, a partir do início dos Da “mariscagem de gato” a Nilson anos de 1950, outro produto se valo- Pinheiro, “o descobridor do ouro rizava: as peles de felinos. Antigos no Tapajós” seringueiros tornavam-se, então, O processo de abandono dos serin- gateiros, caçadores de onças, jagua- gais do alto Tapajós pelos patrões tiricas e outras espécies cujas peles culminou por volta dos anos de eram procuradas. 1950. Os seringueiros que ficaram Os gateiros tiveram um período continuaram com a atividade ex- de atividade relativamente curto, trativista, associando-a à agricul- pois o comércio de peles de animais tura. O abandono do comércio do silvestres foi proibido já em 1967,

Imagem 3. Família ribeirinha que vive no interior da Floresta Nacional de Itaituba. Por Daniela Alarcon, set. 2014.

Um rio de muita gente 9 (afluente da margem direita do Ta- pajós), em 1958, por Nilson Pinhei- ro, homem que se tornaria um mito na região. Desvelava-se, então, a província aurífera (ou mineral) do Tapajós, uma das mais ricas de todo o país. Da década de 1950 até hoje, o ga- rimpo nunca cessou na região. Con- tudo, desde a época de Pinheiro, os garimpos do Tapajós conheceram diferentes momentos, em termos de relações sociais, técnicas de trabalho e produção. Na década de 1980, as balsas de mergulho, que exploram o ouro de aluvião, predominavam nos garimpos do Tapajós. As peque- nas, com motores pouco potentes e que dragam o leito do rio com man- gueiras de quatro polegadas, são co- nhecidas como “quatinhas” ou “re- queiras”, sendo exploradas, sempre, por famílias ribeirinhas. Já a partir da década de 1990, difundiu-se o sis- tema de desmonte hidráulico, que utiliza dois motores. O primeiro bombeia água para um bico, pressu-

Imagem 4. Dona pela Lei nº5.197, que dispõe sobre rizando um jato d’água, destinado a Lausminda de a proteção à fauna. Entretanto, na erodir o barranco. O segundo draga Jesus, beiradeira de Montanha e Mangabal, região do alto Tapajós, outra possi- o material que escorre misturado à preparando bolo de bilidade econômica aflorava com água, levando-o à caixa forrada por massa. Por Mauricio carpete. O ouro, mais denso, fica Torres, 2005. todo ímpeto: o garimpo. Existe um consenso em torno dos primórdios preso ao carpete, enquanto a água da exploração de ouro na bacia do e os demais materiais escorrem. Tapajós: ela teria se originado com Assim como as balsas, o sistema de a descoberta das primeiras jazidas desmonte hidráulico varia muito do mineral na foz do rio das Tropas de potência, dependendo do par de

10 Torres motores que opera o garimpo. Mo- Durante parte da década de 1960, tores pequenos, com mangueiras registra-se um período de transição de quatro polegadas, são comumen- no Tapajós, em que teriam coexisti- te empreendimentos de famílias do as três principais atividades eco- ribeirinhas. nômicas: borracha, peles de gato e As dragas escariantes, por sua ouro. Os trabalhadores apresenta- vez, perfuram o leito dos rios e vam, contudo, uma clara tendência dragam o material mais profundo. de se envolverem crescentemente Após o barramento do rio Madeira, com a última. Essa migração de ati- muitas dragas migraram para o alto vidade teria implicado uma corres- Tapajós. Mais recentemente, as es- pondente transposição do sistema cavadeiras hidráulicas, conhecidas de aviamento que predominava em na região como PCs, têm substituí- especial na borracha, para supri- do o jato d’água no desmonte do mento de alimentos, instrumentos barranco. Note-se que essa técnica de trabalho e utensílios domésti- tem grande poder de degradação e cos por parte das firmas aviadoras, que o preço das máquinas, comu- como se pode ilustrar com o depoi- mente, supera um milhão de reais. mento de Tibiriçá Santa Brígida, ex- Paralelamente a essas formas de -prefeito de Itaituba, nomeado pelo exploração, o garimpo manual, téc- ditador Castelo Branco, em 1964: nica milenar, ainda hoje é reprodu- zido no vale do Tapajós. Na tabela 1, Quando descobriam os garimpos, pode-se observar a predominância os primeiros garimpeiros foram se- das técnicas por período. ringueiros, eles foram abandonando

Tabela 1. O ouro e as tecnologias de extração no Tapajós, por período.

De 1958 a 1978 Ênfase em grotas terciárias e secundárias, trabalho essencialmente manual.

De 1978 a 1985 Ênfase na extração de leito ativo, por meio de balsas de mergulho.

De 1985 a 1992 Predominam a unidade produtiva conhecida como chupadeira (ou chupão) e, muito secundariamente, dragas escariantes e escarilanças.

De 1992 a 2008 Período de baixa histórica no preço do ouro. A atividade se dá, predominantemente, por desmonte hidráulico, balsas de mergulho, chupadeiras e, secundariamente, por dragas escariantes e escarilanças.

De 2008 até hoje Abrupto aumento no preço do ouro. Predominância de operação de dragas escariantes e escarilanças, e desmonte de barrancos com escavadeiras mecânicas conhecidas como PCs.

Elaboração do autor, a partir de Lima (1994: 21) e dados próprios.

Um rio de muita gente 11 os seringais e foram se localizando, garimpo e eles continuaram avian- ainda se descobria os garimpos. A do como garimpeiros (apud Lima, maior parte dos seringueiros das fir- 1994: 24). mas aviadoras foram passando pro

Imagem 5. Balsa de mergulho. Por Simone Albarado Rabelo, nov. 2011.

Imagem 6. Desmonte hidráulico. Por Natalia Guerrero, nov. 2011.

12 Torres Imagem 7. Draga escariante. Por Mauricio Torres, dez. 2014. Algumas especificidades do Ta- sua pista de pouso, ativas ou não, pajós propiciaram o surgimento de espalhadas na floresta, os garimpei- uma organização socioeconômica ros do Tapajós são a maior experiên- da atividade com características so- cia mineira de cunho estritamente cialmente mais equilibradas e, ao nacional e popular que já tivemos mesmo tempo, tecnologicamente neste país. Desta experiência temos inovadoras e complexas: muito que aprender (Coordenação Nacional dos Geólogos, 1984: 88

11 Durante todos esses anos de evo- apud Oliveira, 2005: 143) . 11. Coordenação Nacional lução criaram-se mecanismos pró- dos Geólogos. 1984. Em busca do ouro: Retornando ao pioneiro nas prios e regras bem estabelecidas nas garimpos e garimpeiros relações de trabalho que acabaram explorações de ouro no Tapajós, do Brasil. Rio de Janeiro, por gerar um sistema ético peculiar Nilson Pinheiro – nome que vem Marco Zero. com especificidades tapajônicas. [...] sempre acompanhado do epíteto “o Espalhados em uma área aproxima- descobridor dos garimpos no Tapa- da de 250.000 km2, os garimpeiros jós” –, vale registrar sua importân- têm ponto de convergência na ci- cia na história recente da região. So- dade de Itaituba, onde se o bre ele, pairam histórias e casos que centro operacional e financeiro do beiram a dimensão mítica. Muito se complexo. Dispondo de mais de 150 fala dos seus talentos para “desco- locais de atividades, cada um com brir ouro” e, mais ainda, de seus

Um rio de muita gente 13 dotes como galante conquistador. to. Ele nem falava mais, nem ficava Tais atributos se entrelaçam, como mais em pé. Só tremia. E foi assim no relato de seu Toti Geraldo (Anto- que ele se acabou, por causa dessa 12 12. Depoimento de seu nio Nascimento), antigo seringueiro coisa . Antonio Nascimento ao nascido e criado às margens do Ta- autor, 2005. pajós, na localidade de São Tomé de A “Transa”, o mosaico de unidades Mangabal: de conservação e os barramentos Na década de 1970, o constructo O Nilson Pinheiro não podia ver ideológico do “desenvolvimento” moça nova. E foi essa a desgraça expressava uma concepção bandei- dele. rante, que demandava um aparato Ele descobriu o ouro aqui no Tapajós político, policialesco e jurídico para depois que foi numa vidente, lá em se ordenar o território de modo a Parintins, pros lados do Amazonas. viabilizar, a grandes grupos econô- Foi ela que disse pra ele direitinho micos, o acesso à terra. Exacerbava- como era o lugar onde ele ia achar o -se a função da produtividade, que ouro. Daí ele veio varando. Varando implicava um domínio sistêmico do pela mata, de lá das águas do Ama- homem sobre o meio e sobre os ou- zonas até aqui a boca das Tropas. tros homens. Nesse contexto, busca- Achou muito ouro e também tocava va-se subjugar os povos da floresta a instrumento, que era muito bonito. um padrão tecnológico que se pre- Quando as moças ouviam o avião sumia superior, baseado em uma dele, já atiçavam. pseudomodernidade racional sem Até que ele tirou a pureza de uma qualquer perspectiva além do lucro. moça e engravidou ela e disse que A força dessa representação inibe o filho não era dele. E a mãe dela se pensar a história senão pelos pro- enfezou demais. Aí, a mãe dela dis- cessos de dominação da natureza e se: “Ele nunca mais na vida vai fazer apropriação do trabalho – processos isso com mulher nenhuma que seja que fundam na atividade produtiva filha de mulher”. E a mãe da moça o postulado explicativo da essência foi lá pro Amazonas. Foi procurar social. O processo de produção, as- certinho a vidente que tinha dito sim, firma-se como uma sequência pro Nilson Pinheiro onde estava o natural e lógica de etapas, na dire- ouro do Tapajós. Foi lá e encomen- ção evidente da maior produtivida- dou a vingança dela. E depois disso, de (cf. Bresciani, 1985/1986). logo depois, caiu um raio no Nilson Muito antes de os tecnocratas do Pinheiro e ele ficou pior que mor- MME negarem até a existência da

14 Torres gente do vale do Tapajós, no início jós, porém, nada comparado ao que dos anos de 1970, quando o regime ocorreu, por exemplo, no trecho militar decidiu que a Amazônia Altamira-Itaituba da BR-230. seria “ocupada” como saída para Uma das causas para isso pode a grave crise social das regiões Sul ser atribuída ao fato de, nas pro- e Nordeste, criando o embrião dos ximidades do alto Tapajós, não ter atuais projetos hidrelétricos, Emílio sido programado nenhum Proje- Garrastazu Médici teria proclama- to de Colonização Integrado (PIC), do: “terra sem povo para um povo como aconteceu na porção da BR- sem terra” (Torres, 2005; Cunha, 163 entre Trairão e Santarém e no 2009). Ao que parece, o ditador e referido trecho da Transamazônica, os tecnocratas de hoje, convenien- entre Altamira e Itaituba. Pese-se, temente, não consideram como ainda, o fato de as duas estradas gente os indígenas, quilombolas, terem ficado interrompidas, com ribeirinhos, varzeiros e citadinos da tráfego impossível, justamente nas região. Como no período colonial, porções que cortavam a bacia do a região é esvaziada pelo discurso, Tapajós na sua parte mais alta, du- em um esforço para se “justificar” rante cerca de dez anos, entre as a expropriação territorial e o sola- décadas de 1980 e 1990, o que cer- pamento dos modos de vida desses tamente minimizou seu impacto no grupos. alto Tapajós. Nesse contexto, e ao timbre dos Porém, não se pense que os efei- clarins da ditadura, vieram os fa- tos foram pequenos para as flores- raônicos projetos da BR-230 (a ro- tas, povos indígenas e ribeirinhos dovia Transamazônica, ou simples- do alto Tapajós. Um dos mais per- mente “Transa”, como é chamada ceptíveis foi o aquecimento do na região do Tapajós) e da BR-163 mercado de terras e, consequente- (Cuiabá-Santarém). A primeira, em mente, da grilagem. Não foram pe- seu trecho de Itaituba a Jacareacan- quenas as lutas pela terra travadas ga, cortava a porção oeste da bacia por ribeirinhos, que, muitas vezes, do Tapajós, enquanto a segunda, acabavam expropriados. A resistên- ao aproveitar o divisor de águas do cia daquela gente, porém, conduziu interflúvio Xingu-Tapajós, riscava o a vitórias sobre apropriações ilegais limite leste da bacia. A abertura das de terras públicas que se estendiam estradas e os projetos estatais de co- por centenas de milhares de hecta- lonização que lhe vieram a reboque res ou, mesmo, que passavam da impactaram a região do alto Tapa- casa do milhão de hectares, como a

Um rio de muita gente 15 sofisticada e megalômana grilagem limitação provisória (Alap), soman- da empresa paranaense Indussolo do um total de 8,2 milhões de hec- (Brasil, Ministério Público Federal, tares. As Alap resultaram, em 13 de 2006). fevereiro de 2006, na destinação de No mesmo acento de completa 6,8 milhões de hectares sob interdi- desconsideração pela ocupação lo- ção como UCs federais de diversos cal, a década de 1970 trouxe também usos, sendo 4,9 milhões de hectares as primeiras unidades de conserva- na categoria de uso sustentável e 1,9 ção ambiental (UCs) da Amazônia. milhão de hectares na categoria de Mais precisamente, em 1974, foram proteção integral (ver tabela 2). decretados o Parna da Amazônia e A decretação do mosaico – no dia a Floresta Nacional (Flona) do Tapa- seguinte ao primeiro aniversário da jós. Sem prejuízo da relevância am- morte de Dorothy Stang – aumen- biental do Parna, as ações de imple- tava em mais de 10% a área de UCs mentação do mesmo – entenda-se, de toda a Amazônia e vinha no bojo expulsão da população ribeirinha de ações mitigatórias dos impactos – deflagraram verdadeira barbárie, previstos com o asfaltamento da que se prolongaria até meados da BR-163. década de 1980 e da qual foram ví- A União declarava que a criação timas as comunidades que, havia do mosaico de UCs tinha como um gerações, habitavam a área. Comu- dos seus objetivos impedir o pro- nidades inteiras foram removidas e cesso de ocupação desordenado e poucas famílias foram indenizadas predatório e permitir a preservação – em sua maioria, as indenizações da floresta concomitantemente à tinham valores irrisórios. sua exploração em bases sustentá- Em 2004, com a intensa expan- veis. Sem questionar a importância são do agronegócio em Mato Gros- ambiental do mosaico, é bem claro so e o anúncio do asfaltamento da que o governo pensou o uso de UCs BR-163, explodem o desmatamen- como instrumento de regulariza- to e os conflitos agrários na região ção fundiária, função para a qual oeste do Pará. Em 12 de fevereiro de as UCs não foram concebidas. Pas- 2005, a missionária Dorothy Stang é sados nove anos, percebemos como assassinada. Nesse contexto de forte o mosaico de reservas surtiu efeito pressão política por respostas do go- em alguns casos, mesmo que sua verno em favor de pautas socioam- implementação não tenha ido além bientais, em 18 de fevereiro do mes- de ações cosméticas, com unidades mo ano, foram instituídas áreas sob de centenas de milhares de hectares

16 Torres Tabela 2. Unidades de conservação decretadas no vale do Tapajós em 2006.

Unidade de conservação Área (hectares) Categoria

Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim 1.301.120 Uso sustentável

Flona do Crepori 740.661 Uso sustentável

Flona do Amanã 540.417 Uso sustentável

Flona do Trairão 257.482 Uso sustentável

Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós 2.059.496 Uso sustentável

Reserva Biológica (Rebio) Nascentes da Serra do Cachimbo 342.447 Proteção integral

Parque Nacional (Parna) do Jamanxim 859.722 Proteção integral

Parna do Rio Novo 537.575 Proteção integral

Ampliação do Parna da Amazônia 167.379 Proteção integral

Fonte: Decreto s/n, de 13 de fevereiro de 2006. contando apenas com um ou dois cionais e também pelo povo Mun- gestores. Porém, como era de se es- duruku (Brasil, Ministério Público perar, a criação das UCs não logrou Federal, Segundo Ofício da Procura- o efeito de regularização fundiária doria da República no Município de esperado, continuando parte subs- Santarém, 2013; Torres & Guerrero, tantiva das áreas em mãos de gri- 2012; Torres et al., 2013) exemplifica leiros e de organizações criminosas como o discurso ambiental também ligadas à madeira. se acomoda bem aos interesses de Também a emissão, nas Flonas, grandes grupos econômicos. de concessões de florestas públi- Em 2012, por impressionante cas (Lei nº11.284/2006) vem se mos- que pareça, após o substantivo cus- trando um grande vetor de expro- to social que representou a criação priação de povos e comunidades do Parna da Amazônia, justamente tradicionais, embora a lei garanta a área da qual foram expulsos os ri- tais ocupações (cf. Brasil, Ministério beirinhos, às margens do Tapajós, Público Federal, 2009; Torres, 2012; foi desafetada por meio da Medida Torres & Guerrero, no prelo). Em Provisória nº558, que alterou os especial, a pretensão do governo de limites de todas as UCs que, de al- licitar mais de 440 mil hectares na guma forma, obstaculizariam a im- Flona do Crepori, incluindo áreas plantação do CHT. ocupadas por comunidades tradi-

Um rio de muita gente 17 A luta do povo Munduruku e dos Então, o procurador-geral da Repú- beiradeiros por terra e por água e blica encaminhou à Casa Civil um a militarização do rio Tapajós ofício inquirindo sobre o eventual A desafetação das UCs não foi o úni- descumprimento, pelo Estado brasi- co impacto socioambiental dos pro- leiro, da Convenção da Diversidade jetos de barramento que já se pode Biológica e da Convenção 169 da Or- notar. Ao menos três TIs deixaram ganização Internacional do Traba- de ser declaradas e uma reserva ex- lho (OIT), no processo de criação da trativista (Resex) deixou de ser cria- Resex. O ofício demandava, ainda, da, por colidirem com os interesses que fosse do CHT. Os beiradeiros de Monta- nha e Mangabal, localidade situada realizada requisição à Ministra da na margem esquerda do Tapajós, Casa Civil [então, Dilma Rousseff] após uma luta secular pelo seu ter- com fito de obter informações sobre ritório tradicionalmente ocupado, a tramitação dos procedimentos de em 2004 pleitearam a criação de criação da Resex mencionada [Mon- uma Resex, que seria nomeada com tanha e Mangabal], indicando os mo- os bicentenários topônimos. No dia tivos que ensejaram a remessa de tal 12 de dezembro de 2006, teve lugar procedimento para o Ministério de a consulta pública para a criação da Minas e Energia, antes da assinatu- Resex e, pela primeira vez em um ra do respectivo decreto de criação evento desses, houve aceitação unâ- (Brasil, Ministério Público Federal, nime para a criação da UC. Procuradoria Geral da República, Quando os beiradeiros acredi- 2008). tavam em uma solução definitiva, com a iminência do decreto que A resposta, encaminhada pela criaria a Resex, tudo se inverteu. então ministra da Casa Civil, Dilma O decreto foi enviado à Casa Civil, Rousseff, dimensiona a sua preocu- mas não foi assinado. A pretensão pação e o seu interesse em relação de uma UHE no rio Tapajós barrou aos danos causados àquelas comu- o processo: o reconhecimento ter- nidades tradicionais: ritorial dos ribeirinhos iria ou não “atrapalhar o projeto”? Ainda que o Os estudos de inventário em anda- obviamente razoável fosse o ques- mento, realizados pela Eletronorte tionamento inverso, assim se pau- [Centrais Elétricas do Norte do Bra- tou o governo federal. O processo sil S.A.], indicam a existência de que de criação da Resex foi arquivado. apresentarão [sic] interferência dire-

18 Torres ta na unidade de conservação caso Os beiradeiros de Montanha e ela seja criada. Mangabal acabaram por ser aten- A bacia do rio Tapajós está em fase didos, em setembro de 2013, pela final dos estudos. Os resultados es- criação do Projeto de Assentamento tão indicando a existência de 3 alter- Agroextrativista (PAE) Montanha e nativas de barramento que poderão Mangabal, modalidade diferenciada apresentar cerca de 10.000 MW de de assentamento de reforma agrá- potência instalada. A Resex Monta- ria, que lhes garantiu o direito à ter- nha-Mangabal causará interferência ra (Guerrero & Torres, 2013). Porém, em qualquer uma das alternativas as aldeias munduruku instaladas estudadas, visto que as alternativas em áreas não declaradas como TI estão inseridas na área proposta não contaram com a mesma sorte. para a unidade de conservação. Os indígenas que habitam as Desta forma, conclui-se que a unidade margens do Tapajós nas proximida- de conservação não deve ser criada (Bra- des dos projetos de barramento de sil, Ministério de Minas e Energia, São Luís do Tapajós e de Jatobá lu- Secretaria de Planejamento e De- tam há tempos pelo reconhecimen- senvolvimento Energético, Departa- to oficial de suas terras e, sem qual- mento de Planejamento Energético, quer explicação, o governo mantém 2007, grifos meus). o processo congelado. O caso da TI

Imagem 8. Meninas munduruku, na aldeia Waro Apompu, Terra Indígena Munduruku. Por Mauricio Torres, set. 2014.

Um rio de muita gente 19 Sawré Muybu é ilustrativo, já que, blicação da decisão, o Tribunal Re- apesar de a etapa técnica dos estu- gional Federal da Primeira Região dos para a declaração da mesma ter (TRF-1) concedeu efeito suspensivo sido concluída e o relatório circuns- (suspensão temporária até o jul- tanciado de identificação e delimi- gamento do recurso). Isso ensejou tação (RCID) já ter sido finalizado nova contestação, apresentada pelo (em 13 de setembro de 2013) e en- MPF ao TRF-1, e, embora até agora tregue às instâncias competentes da o caso siga indefinido, novos - Fundação Nacional do Índio (Funai), tos seguem ocorrendo, já que os nada foi publicado (Palmquist, Munduruku tomaram nas mãos 2014). o peso da autodemarcação de seu Em outubro de 2014, ao deferir território. parcialmente um pedido de liminar A Funai alegava perante a justiça ajuizado pelo Ministério Público federal que não havia data definida Federal (MPF), a justiça federal em para a publicação do RCID, pois o Itaituba determinou um prazo de órgão indigenista estaria priorizan- 15 dias para que a Funai publicas- do demarcações nas regiões Nor- se o RCID de Sawré Muybu, visto deste, Sul e Sudeste do Brasil. Em que os argumentos do órgão para setembro de 2014, em reunião com a demora careciam de qualquer lideranças Munduruku, a presiden- razoabilidade: ta interina do órgão, Maria Augusta Assirati, justificou, às lágrimas, o Observa-se que o processo está pa- não cumprimento do compromisso rado sem um fundamento válido, assumido com os índios de publicar mas tão somente invocando uma o relatório. Segundo ela, a não publi- genérica e vazia alegação de priori- cação devia-se a pressões do próprio zação das regiões centro-sul, sudeste governo federal, que antevia que o e nordeste e assim, os direitos dos reconhecimento da TI inviabilizaria 13 13. Os indígenas regis- indígenas seriam perpetuamente a UHE São Luiz do Tapajós . Em 1 traram a reunião em postergados, uma vez que as priori- de outubro, nove dias depois dessa vídeo, disponível em: . O RCID, entretanto, não foi pu- neração” havia sido blicado. Poucos dias depois da pu-

20 Torres uma manobra para licenciar a usi- ciamento das UHEs em seu territó- na de São Luiz do Tapajós, que pode rio e sofreram violentos ataques por alagar terra Munduruku. Depois de parte do governo federal, conforme analisar o caso e se comprometer detalha Valle (2013) – de rasantes de com os indígenas a publicar o rela- helicóptero que arrancavam a co- tório que delimita a terra, Assirati bertura de palha das casas ao terror diz que foi obrigada a voltar atrás. psicológico imposto pela operação “Nós tivemos que descumprir esse de guerra comandada pelo gover- compromisso em razão da priorida- no. E não foram só os indígenas de de que o governo deu ao empreendi- Sawré Muybu. Na TI Munduruku, mento. Isso é grave” (Aranha, 2015). no alto Tapajós, a reação do grupo às iniciativas da construção das bar- Sawré Muybu, na foz do rio Ja- ragens foi muito incisiva. Para am- manxim, é uma TI diretamente afe- plificarem sua voz, 140 Munduruku tada pelos projetos de barramento ocuparam o canteiro de obras da e, sem tal publicação, para fins do UHE Belo Monte por duas vezes, em licenciamento dos empreendimen- maio e junho de 2013, paralisando tos, apesar da sabida existência de as obras por 17 dias no total. indígenas no local, a área não é Pouco depois de retornarem a sequer considerada TI, de acordo sua terra, após quase dois meses com o que regulamenta a portaria de mobilização em Belo Monte e interministerial nº419/2011, que em Brasília, os indígenas detiveram estabelece: três pesquisadores que trabalhavam para a empresa Concremat, encar- X - Terra indígena: as áreas ocupadas regada da elaboração dos estudos por povos indígenas, cujo relatório para o licenciamento de uma das circunstanciado de identificação e delimi- barragens. Os pesquisadores foram tação tenha sido aprovado por portaria mantidos presos por três dias, até da FUNAI, publicada no Diário Oficial da que, em 23 de junho do mesmo ano, União, ou áreas que tenham sido ob- uma equipe enviada pela Secretaria- jeto de portaria de interdição expe- -Geral da Presidência da República dida pela FUNAI em razão da locali- (SG/PR) negociou a libertação. Os ín- zação de índios isolados (grifo meu). dios exigiram, em troca da soltura dos pesquisadores, a imediata sus- Os guerreiros de Sawré Muybu pensão dos estudos de impacto am- resistiram à realização dos estudos biental (EIA) para a implantação de ambientais relacionados ao licen- UHEs no rio Tapajós até que fosse

Um rio de muita gente 21 realizado o processo de consulta li- (FNSP), Polícia Federal (PF), Polícia vre, prévia e informada (CLPI) – que, Rodoviária Federal (PRF) e Exército. aliás, é procedimento obrigatório, Sob essa operação de guerra, os ri- de acordo com a Convenção 169 da beirinhos e indígenas são constran- OIT, da qual o Brasil é signatário. gidos e contidos, ao passo que as Os termos da negociação foram pesquisas são realizadas, deixando aceitos pelo governo e a paraliza- um preocupante precedente de uso ção dos estudos foi anunciada na da força nas relações com as popu- manhã do dia 24 de junho, pela lações locais. assessoria de imprensa da SG/PR. Porém, menos de 20 dias após o Considerações finais pacto ter sido selado, foi emitida Em julho de 2013, à margem esquer- a licença para a continuidade dos da do Tapajós, na região de Monta- estudos. Em agosto, os mesmos fo- nha e Mangabal, beiradeiros e in- ram retomados, sem que qualquer dígenas Munduruku reuniram-se providência em relação à consulta com a finalidade de, na específica prévia tivesse sido posta em prática. condição de beiradeiros e indíge- Um desproporcional e intimidador nas, construírem alianças para lu- aparato militar, desta vez, escolta os tar contra o projeto de barramento pesquisadores. São homens da For- do Tapajós. Esses grupos – que há ça Nacional de Segurança Pública poucas gerações guerreavam, em

Imagem 9. Vista do rio Tapajós. Por Daniela Alarcon, set. 2014.

22 Torres disputa pelo território – constroem um vínculo na floresta, ao longo do rio Tapajós, como ocorre em tantos outros na Amazônia. Descobrem, assim, a possibilidade de coalizão entre gente que vive sob as mes- mas intimidações: beiradeiros, qui- lombolas, seringueiros, varjeiros, camponeses, castanheiros, ribeiri- nhos, quebradeiras de coco e mais um mundo de grupos que se veem frente ao mesmo conflito, frente à continuam sendo ribeirinhos, ín- Imagem 10. Mulher mesma ameaça. dios continuam sendo índios. Sem munduruku, na aldeia Waro Apompu, Terra A ameaça é plural em nome e em prejuízo de suas respectivas perten- Indígena Munduruku. forma, mas una em seu objetivo: ças, entretanto, tornam-se iguais ao Por Daniela Alarcon, set. 2014. visa um território livre de seus ocu- olhar do estranho que chega com os pantes e aberto à exploração eco- projetos que os excluem de seus ter- nômica indiscriminada. Às vezes, ritórios. A aliança não dissimula as apresenta-se como agronegócio; ou- diferenças entre os diversos grupos. tras, como mineradora; ou, então, Mostra apenas que a forma como se como fazendeiro, grileiro, madei- veem uns aos outros transforma-se reiro, pecuarista, setor produtivo, frente à chegada do expropriador desenvolvimento sustentável… No comum. Descobrem e constroem alto Tapajós, chega com o nome de seus modos diferentes de se alinhar usina hidrelétrica. em uma luta de proporção flagran- “Nunca fomos tão próximos dos temente desigual. nossos vizinhos Munduruku.” O iní- As gentes do alto Tapajós, apenas cio da carta de apoio dos ribeirinhos em um passado recente, enfrenta- de Montanha e Mangabal aos Mun- ram o escravagismo, a decadência duruku – escrita quando estes últi- da economia da borracha e da caça mos ocupavam o canteiro de obras de peles, os garimpos, o mercúrio, de Belo Monte, em protesto contra os madeireiros, os grileiros, a ma- os projetos de barramento do Ta- lária, o desmatamento, o perigo pajós – sintetiza bem as cicatrizes constante das cachoeiras. E agora que essa aliança encobre. Sintetiza enfrentam sua maior ameaça: a bem quão grave é o pacto firmado atual política de desenvolvimento do ante o inimigo comum. Ribeirinhos governo federal.

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28 Torres Caracterização ambiental da bacia do Tapajós Ricardo Scoles

Geomorfologia da bacia do Tapajós quilômetros; considerando-se uni- ocalizada na parte central da camente o trecho após a união dos bacia da Amazônia (sentido rios tributários, a extensão é de 650 oeste-leste), a bacia do Tapajós quilômetros, quase todos navegá- Lpercorre extensos ecossistemas veis, à exceção do trecho à montan- aquático-florestais, desde os altos te da cachoeira do Chacorão (Goul- relevos do cerrado mato-grossense ding et al., 2003; Latrubesse et al., até as baixas latitudes e altitudes 2005; Hales & Petry, 2013). das terras alagáveis (várzeas) da re- A bacia do rio Tapajós percorre gião de Santarém (ver mapa-encarte). três estados brasileiros (Mato Gros- Seus principais rios são o Tapajós e so, Pará e Amazonas), conectando seus tributários ou afluentes, tais dois grandes biomas, o cerrado e como os rios Jamanxim, Teles Pires a floresta amazônica. Na sua parte e Juruena – o Tapajós recebe esse montante, atravessa serras do Escu- nome após a união destes dois úl- do Central Brasileiro, de formação timos. Considerando-se todo o sis- geológica muito antiga (3,5 bilhões tema amazônico, trata-se da quin- de anos) – daí o baixo teor de sedi- ta bacia hidrográfica em extensão mentos escoados na drenagem da (490 mil quilômetros quadrados), região, o que responde pelas águas responsável por 6% da descarga de translúcidas do Tapajós e seus água doce no rio Amazonas (Latru- afluentes. Apresentando elevado besse et al., 2005). Sua extensão, desnível altimétrico, os rios Jurue- incluindo o Teles Pires, é de 1.992 na e Teles Pires passam por platôs

29 relevos dissecados, colinas com ra- vinas e vales encaixados (Espírito- -Santo et al., 2005; Buckup & Santos, 2010). Os barramentos pretendidos para a bacia, se levados a cabo, pro- vocariam uma substantiva alteração nos perfis dos rios, como podemos notar nas imagens de 1 a 3.

Clima tropical úmido com Imagem 1. Perfis dos areníticos e graníticos. Durante variações por gradiente de altitude rios Tapajós e Teles seu trajeto descendente, o terreno e latitude Pires. Fonte: Camargo Corrêa et al. (2008: 45). é bastante acidentado, e os cursos O clima da região da bacia do rio de água desenham numerosas que- Tapajós-Juruena é quente e úmido, das d’água, corredeiras e cachoeiras com um período de baixas preci- Imagem 2. Perfil do rio Jamanxim. Fonte: (Goulding et al., 2003; Hales & Petry, pitações (menos chuvoso), entre Camargo Corrêa et al. 2013). Já em seu trecho mais baixo os meses de julho-dezembro, e um (2008: 50). (de Aveiro até a sua foz, em San- período de altas precipitações (mais tarém), o rio Tapajós apresenta-se chuvoso), entre janeiro e junho (Es- como uma planície aluvial bastante pírito-Santo et al., 2005). Na parte larga (ria fluvial), com as margens sul da bacia, a variação sazonal da arenosas e acompanhadas por um pluviometria não segue exatamente planalto rebaixado com cotas alti- o padrão da parte mais setentrional. métricas em torno de 100 metros, Além disso, nesse trecho mais me-

30 Scoles ridional, o período seco é mais pro- uma visibilidade que pode alcan- Imagem 3. Projeção longado, registrando-se mais de 60 çar cinco metros de profundidade. dos perfis dos rios Tapajós e Jamanxim dias sem chuva (Brasil, Ministério do Isso se deve à baixa concentração com os barramentos Planejamento, Orçamento e Gestão, de materiais dissolvidos e em sus- pretendidos. Fonte: Camargo Corrêa et al. Instituto Brasileiro de Geografia e Es- pensão. Por esse motivo, a con- (2008: 284). tatística, 2012). Na região do Tapajós, dutividade das águas nesse rio é a a precipitação média anual apresen- mais baixa (2,5-7,5 microssegundos ta grande variação inter-regional, – Wantzen, 2003) entre os rios de de 2.100 milímetros, na região de águas claras da Amazônia (20-30 Santarém, a 1.500, na Chapada dos microssegundos), e muito inferior Parecis, e 2.900 milímetros, na serra às altas condutividades das águas do Cachimbo (Hales & Petry, 2013). barrentas (60-100 microssegundos) (Junk et al., 2007). Como se comen- As águas claras da bacia do Tapajós tou, a baixa presença de sedimentos As águas do rio Tapajós são as mais nas águas dos rios de águas claras claras da região do Amazonas, com explica-se por fatores geofísicos, já

Caracetrização ambiental da bacia do Tapajós 31 Imagem 4 – Perfil do rio Jamanxim. Fonte: Camargo Corrêa et al. (2008: 50).

que são cursos fluviais que drenam por quilômetros, como se houvesse substratos e terrenos muito antigos uma barreira física entre os dois ti- geologicamente (Maciço Central do pos de águas. A explicação científica Brasil), que já liberaram boa parte é simples: as enormes diferenças de de suas partículas potencialmente densidade entre as águas do rio Ta- dissolvíveis em água. pajós e do rio Amazonas impedem A baixa carga de sedimentos e sua mistura. De fato, a diferença de a transparência do rio contrastam cargas de sedimentos entre águas com as águas do rio Amazonas, ca- claras e brancas é grande: na foz do racterizadas por alta concentração rio Tapajós, a descarga anual média de material em suspensão, baixíssi- de sedimentos varia entre 10 e 20 ma visibilidade e aspecto barrento. milhões de toneladas, bem menor Tais diferenças justificam a espeta- que a descarga do rio Madeira (248- cular visão do “encontro das águas” 600 milhões de toneladas), afluente em frente à cidade de Santarém, um meridional do rio Amazonas de ori- fenômeno físico em que as águas gem andina e de águas barrentas, ou claras do Tapajós (tonalidade azul ou que a do próprio rio Amazonas na esverdeada) não se misturam com as sua grande foz (600 milhões-1,3 bi- águas do rio principal (brancas ou lhão de toneladas) (Latrubesse et al., barrentas, de cor amarela-marrom) 2005; Park & Latrubesse, 2014).

32 Scoles Na bacia do Tapajós, a acidez das Ecossistemas terrestres águas é variável (pH entre 4 e 7), A floresta tropical úmida ou floresta dependendo do substrato e trecho ombrófila domina a paisagem ecos- (Sioli, 1984; Junk et al., 2007; Cunha, sistêmica terrestre da região do Ta- 2008). Em geral, nos afluentes se- pajós, assim como ocorre em todo tentrionais do rio, as águas são áci- o bioma da Amazônia. Dependendo das ou levemente ácidas (pH entre 5 das condições geoclimáticas e estru- e 6,8) (Godoi, 2008). Já nas proximi- turação florestal, a floresta ombró- dades da foz, as águas são neutras fila (“amiga das chuvas”) é subdi- ou levemente alcalinas (Miranda et vidida em floresta ombrófila densa al., 2009). (FOD) e floresta ombrófila aberta Como ocorre com outros grandes (FOA), sendo a primeira maior em afluentes do rio Amazonas, o Tapajós termos de extensão territorial tem uma dinâmica fluvial marcante, (Brasil, Ministério do Planejamen- com uma época de enchente e outra to, Orçamento e Gestão, Instituto de vazante, dependentes do regime Brasileiro de Geografia e Estatísti- de precipitação estacional (perío- ca, 2012). A FOD caracteriza-se por do chuvoso e seco). Na parte mais possuir vegetação exuberante, com a montante, o rio começa a subir complexa estratificação florestal, em setembro ou início de outubro, alta biodiversidade, presença maci- alcançando os máximos níveis em ça de lianas e epífitas e alta capaci- março ou abril (imagem 4). Na parte dade de regulação climática local. do rio mais próxima a sua foz (Santa- Dependendo da faixa altimétrica, rém), o período de vazante inicia-se ela pode ser distinguida em várias mais tarde e se prolonga até o mês formações: aluvial (0-5 metros de de novembro; os níveis máximos do altitude), terras baixas (5-100 me- rio ocorrem nos meses de maio e/ou tros de altitude), submontana (100- junho, recebendo mais a influência 600 metros de altitude) e montana do rio Amazonas. A flutuação do ní- (600-2.000 metros de altitude). Nas vel dos rios da bacia pode chegar a florestas tropicais com mais de 60 quatro ou cinco metros. Nos últimos dias secos por ano, a FOD é substi- 100 quilômetros de seu trajeto, o rio tuída por FOA, sempre que as con- Tapajós é muito largo (entre 6,4 e dições topográficas e biogeográficas 14,5 quilômetros) e profundo, com permitam a manutenção da umida- margens arenosas que descobrem de ambiental mesmo nos períodos grandes praias durante o período de úmidos mais desfavoráveis (estação vazante (Hales & Petry, 2013). seca). A FOA é um tipo de formação

Caracetrização ambiental da bacia do Tapajós 33 florestal que apresenta, em com- das árvores emergentes e diversida- paração com a FOD, uma menor de das espécies vegetais. Em geral, estratificação florestal, altura mais as matas de igapó caracterizam-se baixa do dossel, maior presença de pela dominância espacial de umas clareiras (daí o nome aberta) e sub- poucas espécies e pela presença sig- -bosque mais adensado. nificativa de espécies raras, ou seja, O domínio da FOA é visível na com baixa densidade de indivíduos parte meridional da bacia do Tapa- (Wittmann et al., 2010). Segundo Fer- jós (norte de Mato Grosso), onde as reira et al. (2013), em um inventário condições bioclimáticas são mais fa- florestal realizado nas bacias do Ta- voráveis para seu estabelecimento pajós, Xingu e Tocantins, tributárias (mais de dois meses secos por ano). meridionais do rio Amazonas, so- Tal situação pode ser verificada em mente seis das 74 espécies vegetais algumas unidades de conservação lenhosas identificadas ocorreram (UCs), como o Parque Estadual Serra nos três inventários, sendo a maio- dos Parecis, o Parque Nacional (Par- ria das árvores e arbustos restritos na) do Rio Novo e o Parna do Jaman- a um dos rios, indicando uma flora 1 1. Para informações xim . Nessa região mais ao sul da ba- altamente especializada das vegeta- sobre essas UCs, cia, existem também ecossistemas ções inundadas (alto endemismo). consultar: e . da (menos de 60 dias secos ao ano), bacia, especialmente nas áreas de a FOD é o ecossistema dominante. influência de Santarém e Itaituba. Nas partes baixas da bacia do À guisa de exemplo, Oren e Parker Tapajós, áreas de florestas são inun- (1997) registraram 448 espécies de dadas durante o período chuvoso aves no Parna da Amazônia e áreas do ano, quando o nível dos cursos vizinhas; Caldwell e Araújo (2005), de água aumenta. Essas florestas 38 espécies de anfíbios na Floresta de inundação com águas claras são Nacional (Flona) do Tapajós; e Pi- denominadas matas de igapó e se menta e Souza e Silva Jr. (2005), 13 diferenciam fitofisionomicamente espécies de primatas no interflúvio das matas de várzea (florestas inun- das bacias Tapajós-Xingu. De acor- dadas por águas barrentas) pela me- do com o Instituto Chico Mendes nor estratificação florestal, altura de Conservação da Biodiversidade

34 Scoles (ICMBio), a Flona do Tapajós, UC de catalogadas na região do rio Tapa- uso sustentável localizada na parte jós era 494 (Buckup & Santos, 2010). mais baixa do rio Tapajós é a UC Não obstante, a diversidade da ic- onde, atualmente, estão se desen- tiofauna ainda é insuficientemente volvendo mais pesquisas no Brasil, conhecida na região, existindo inú- tendo sido identificada alta diversi- meros trechos inexplorados ou pou- dade de árvores e palmeiras (Espíri- co conhecidos, podendo-se afirmar to-Santo et al., 2005). que o número de espécies provavel- Por outro lado, a região sujeita mente é ainda maior. Reforçando a empreendimentos hidrelétricos esse suposto, uma rápida pesquisa (a montante de Itaituba) é bastante bibliográfica em revistas científicas desconhecida em termos biológicos. que divulgam trabalhos taxonômi- A maioria das pesquisas e levanta- cos de peixes tropicais americanos mentos da diversidade de grupo de verificou várias “descobertas”, nos organismos está sendo realizada, últimos anos, de novas espécies de atualmente, no âmbito dos estudos peixes de água doce e endêmicas da de viabilidade técnica e econômica região do Tapajós, especialmente na (EVTE), para produção do estudo de parte mais meridional da bacia (rio impacto ambiental (EIA)2. Entretan- Teles Pires, Juruena e Arinos) (tabela 2. Tais estudos estão to, há indícios de que a diversidade 1). No levantamento de ictiofauna sendo elaborados por um consórcio biológica e as espécies endêmicas realizado pelo ICMBio em 2011, em de empresas (espécies com distribuição restrita 27 pontos de coleta nos trechos do autodenominado Grupo de Estudos Tapajós. O a uma ecorregião determinada) são rio Tapajós que seriam afetados pela grupo é composto por altíssimas na região mais meridio- construção dos empreendimentos Electricité de France nal da bacia, por se tratar de uma hidrelétricos previstos, foram obti- S.A., Geração e Transmissão, Endesa área de transição entre biomas e das amostras de peixes pertencen- Brasil S.A., Construções por apresentar gradientes de alti- tes a nove ordens, 40 famílias e 205 e Comércio Camargo Corrêa S.A., tude e latitude. Tais indícios podem espécies, sendo 20 não descritas Geração e Transmissão ser comprovados estudando-se o (Britzke & Senhorini, 2011). S.A., GDF Suez Energy grupo dos peixes de água doce. Latin Participações Ltda., Neonergia Os conhecimentos taxonômicos Ameaças ambientais à bacia do rio Investimentos S.A. e ecológicos das comunidades de Tapajós e Centrais Elétricas Brasileiras S.A. peixes da bacia do rio Tapajós es- Uma grande preocupação ambien- (Eletrobras), sendo que tão mais consolidados que em rela- tal e sanitária na bacia do rio Ta- esta última lidera o consórcio. ção a outros grupos de organismos pajós é a contaminação de suas aquáticos. Em 2010, o número de águas (superficiais e freáticas) por espécies de peixes identificadas e mercúrio. Durante as duas últimas

Caracetrização ambiental da bacia do Tapajós 35 Tabela 1. Espécies endêmicas catalogadas recentemente na região meridional da bacia do Tapajós, ordenadas por família e espécie.

Espécie nova Família Referência

Leporinus moralesi Anostomidae Birindelli et al. (2013)

Cetopsis sandrae Cetopsidae Vari et al. (2005)

Astyanax utiariti Characidae Bertaco & Garutti (2007)

Hasemania nambiquara Characidae Bertaco & Malabarba (2007)

Hyphessobrycon peugeoti Characidae Ingenito et al. (2013)

Hyphessobrycon heliacus Characidae Moreira et al. (2002)

Hyphessobrycon hexastichos Characidae Bertaco & Carvalho (2005)

Hyphessobrycon Characidae Carvalho & Bertaco (2006) melanostichos

Hyphessobrycon notidanos Characidae Carvalho & Bertaco (2006)

Hyphessobrycon scutulatus Characidae Lucena (2003)

Knodus dorsomaculatus Characidae Ferreira & Netto-Ferreira (2010)

Moenkhausia plúmbea Characidae Sousa et al. (2010)

Crenicichla chicha Cichlidae Varella et al. (2012)

Steindachnerina fasciata Curimatidae Netto-Ferreira & Vari (2011)

Hassar shewellkeimi Doradidae Sabaj Pérez & Birindelli (2013)

Hisonotus bockmanni Hypoptopomatinae Carvalho & Datovo (2012)

Ancistrus parecis Loricariidae Fisch-Muller et al. (2005)

Nota: Esta lista exemplifica novas espécies catalogadas recentemente na região meridional da bacia do Tapajós (não pretende ser completa). décadas do século XX, atividades de 1980), foram liberadas 120 tone- garimpeiras informais usaram esse ladas de mercúrio por ano (Veiga et metal pesado para separar o ouro al., 1997). Não obstante o fato de a dos sedimentos argilosos na bacia atividade garimpeira na região ter do Tapajós, especialmente na re- declinado bastante no início do sé- gião de Itaituba, mas também nos culo XXI, os riscos à saúde ecossistê- cursos fluviais do rio Teles Pires. mica e humana permanecem altos, No auge da exploração informal de devido às próprias características ouro na bacia do Tapajós (década do mercúrio: uma substância não

36 Scoles 3 biodegradável, com bioacumulação ta ripária ou mata ciliar , fato que 3. Amanda Mortati, com. eficiente, de fácil penetração nas gera impactos negativos na produ- pess. membranas biológicas, lentíssima ção primária dos igarapés e riachos eliminação nos tecidos contamina- (altamente dependentes da matéria dos, alta volatilidade, e toxicidade orgânica alóctone importada da ve- neurológica e citogênica a altas do- getação circundante), colonização ses (Berzas Nevado et al., 2010). de peixes no folhiço submerso e A situação agrava-se em razão conservação do solo (Mortati, 2004). dos hábitos alimentares regionais Na porção paraense da bacia, são das populações ribeirinhas, com alarmantes o desmatamento na área alto consumo de peixes (salutar, de influência direta da BR-163 (que, por outra parte), especialmente de aliás, superou as mais pessimistas espécies carnívoras, que acumulam projeções), o aumento recente do maiores concentrações de mercúrio garimpo por conta da valorização nos seus tecidos (Passos et al., 2007; do ouro e o descontrole da extração Berzas Nevado et al., 2010). Indícios ilegal de madeira, vitimando prin- de risco à saúde humana já foram cipalmente UCs e terras indígenas detectados em monitoramentos da (TIs), as florestas onde ainda restam concentração de mercúrio em po- madeiras comercialmente valoriza- pulações humanas nas áreas rurais das. Enfim, um quadro em que se da região, constatando-se altas con- evidencia a ausência quase total de centrações de mercúrio nos cabelos governança ambiental. da população ribeirinha do rio Tapa- Ainda assim, sem dúvida, a amea- jós, bem acima dos níveis recomen- ça ecológica de maior envergadura dados pela Organização Mundial da para a bacia hidrográfica do rio Ta- Saúde (OMS), de dez microgramas pajós é a previsão de construção por grama de fio de cabelo (Passos de diversas centrais hidrelétricas a & Mergler, 2008; Berzas Nevado et montante da cidade de Itaituba. Tais al., 2010). empreendimentos provocariam in- Outra problemática ambiental terferências de alcance imprevisível atual, de influência humana, rela- no fluxo e ciclos das águas, respon- cionada com a bacia hidrográfica sáveis pela dinâmica ecológica das do rio Tapajós é o avanço da pecuá- águas de inundação florestal, diver- ria no estado de Mato Grosso e seu sidade biológica, grandes migrações impacto negativo nas cabeceiras e ciclos reprodutivos da fauna aquá- dos rios mais meridionais da bacia, tica (Ferreira et al., 2013). com perdas substanciais de flores-

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40 Scoles rio Tapajós basin, Central Bra- DIS data”. In: Remote Sensing of zil”. In: Copeia, v.2002, nº2. Law- Environment, v.147. Elsevier, pp. rence, American Society of Ich- 232-242. thyologists and Herpetologists, Passos, Carlos J.S.; Mergler, Don- pp. 428-432. na. 2008. “Exposição humana Mortati, Amanda F. 2004. Coloniza- ao mercúrio e efeitos adversos ção por peixes no folhiço submerso: à saúde na Amazônia: uma revi- implicações das mudanças na são”. In: Cadernos de Saúde Pública, cobertura florestal sobre a dinâ- v.24, nº4. Rio de Janeiro, Escola mica da ictiofauna de igarapé de Nacional de Saúde Pública Sergio terra firme, na Amazônia Cen- Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, tral. Dissertação de mestrado pp. s503-s520. (Ciências biológicas). Manaus, Passos, Carlos J.S.; Mergler, Don- Instituto Nacional de Pesquisa da na; Lemire, Mélanie; Fillion, Amazônia/Universidade Federal Myriam; Guimarães, Jean R.D. do Amazonas. 2007. “Fish consumption and Netto-Ferreira, André L.; Vari, bioindicators of inorganic mer- Richard P. 2011. “New species of cury exposure”. In: Science of the Steindachnerina (Characiformes: Total Environment, v.373. Elsevier, Curimatidae) from the rio Tapa- pp. 68-76. jós, Brazil, and review of the Pimenta, Flávio E.; Souza e Silva Ju- genus in the rio Tapajós and rio nior, José. 2005. “An update on Xingu basins”. In: Copeia, v. 2011, the distribution of primates of nº4. Lawrence, American Society the Tapajós-Xingu interfluvium, of Ichthyologists and Herpetolo- Central Amazonia”. In: Neotropi- gists, pp. 523-529. cal Primates, v.13, nº2. Arlington, Oren, David C.; Parker III, Theo- Conservation International, pp. dore A. 1997. “Avifauna of the 23-28. Tapajós National Park and vi- Sabaj Pérez, Mark H.; Birin- cinity, Amazonian Brazil”. In: delli, José L.O. 2013. “Hassar Ornithological Monographs, v.48. shewellkeimi, a new species of American Ornithologists’ Union, thorny catfish (Siluriformes: Do- pp. 493-525. radidae) from the upper Tapajós Park, Edward; Latrubesse, Edgardo basin, Brazil”. In: Proceedings of the M. 2014. “Modeling suspended Academy of Natural Sciences of Phila- sediment distribution patterns delphia, v.162, nº1. Filadélfia, The of the Amazon river using MO- Academy of Natural Sciences of

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42 Scoles “Saída pelo norte” A articulação de projetos de infraestrutura e rotas logísticas na bacia do Tapajós Daniela Fernandes Alarcon, Natalia Ribas Guerrero e Mauricio Torres

que o projeto de exploração des econômicas frequentemente energética da bacia hidrográ- predatórias e ilegais, ameaçando fica do Tapajós revela sobre os modos de vida e a integridade 1. A expressão Oos paradigmas de “desenvolvimen- dos territórios de indígenas, ribei- “desmatamento especulativo”, to” que têm regido os planos do rinhos e camponeses, entre outros formulação do Instituto governo federal e, mais especifica- grupos. do Homem e Meio Ambiente da Amazônia mente, sobre suas expressões con- Para citar um exemplo, em se- (Imazon), remete cretas na Amazônia? As denúncias tembro de 2013, o Valor Econômico ao desmatamento sobre a gravidade das violações e noticiava que o governo do Pará coligado com a grilagem de terras. dos efeitos negativos das barragens acabara de adotar medidas para Nesse caso, o grileiro já implementadas, em construção frear o desmatamento especulativo, desmata movido não pela intenção ou previstas para a bacia são nume- “resultado das obras de infraestru- de implementar rosas. Mas, para além dos impactos tura e logística estaduais e federais qualquer atividade mais diretamente conectados aos no âmbito do PAC [Plano de Ace- produtiva na área, mas para tentar, por meio projetos de aproveitamento hidre- leração do Crescimento]” (Barros, do desmatamento, létrico, há que se registrar um con- 2013d)1. “Além das hidrelétricas do consolidar a detenção de terras públicas, junto de consequências negativas rio Tapajós”, prossegue a matéria, apropriar-se delas e que advém da articulação entre os “a especulação também está sendo aferir ganhos na venda barramentos e outros projetos de motivada pela concessão de nove das mesmas, após terem sido ilegalmente infraestrutura previstos ou em an- terminais fluviais em Itaituba, a desmatadas. Ver mais damento, como hidrovias, portos e nova promessa de escoamento dos em Torres & Alarcon, no prelo. rodovias. Tal conjugação concorre grãos do Centro-Oeste para exporta- para a intensificação de ativida- ção” (Idem).

43 Essas intervenções na bacia do necta com intervenções territoriais Tapajós e, mais amplamente, na de outra ordem, como a retirada ile- região amazônica, quase nunca gal de madeira, o aquecimento do são discutidas em conjunto. Docu- mercado de terras e o consequente mentos oficiais, declarações de re- incremento da grilagem. Finalmen- presentantes do governo federal e te, há que se destacar os interesses do setor privado, assim como aná- minerários relacionados à geração lises apresentadas por jornalistas e de energia na bacia do Tapajós, uma pesquisadores engajados na defesa das mais ricas províncias auríferas desse projeto de desenvolvimento, do planeta, onde se encontram tam- comumente referem-se aos barra- bém jazidas de alumínio, bauxita, mentos sem mencionar, por exem- cobre, diamante e fosfato. plo, as altas expectativas que sobre Se tomarmos em conjunto os eles nutrem os setores do agronegó- governos de Fernando Henrique cio interessados na construção da Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós e Dilma Rousseff, veremos que os (que ligaria as áreas produtoras de paradigmas de desenvolvimento soja e outros grãos no norte de Mato impulsados nessas gestões (expres- Grosso aos terminais graneleiros de sos nos programas Brasil em Ação e transbordo, em Itaituba e Santarém, Avança Brasil, e no PAC) pautam-se, no Pará), para escoamento mais ágil grosso modo, pela valorização da da soja produzida em Mato Grosso e ampliação da infraestrutura, com de outras commodities. incentivos à exportação de commodi- Tais expectativas, acalentadas ties agrícolas e minerais. Nesse qua- também por empresas da constru- dro, as prioridades territoriais são ção civil e ramos conexos, não se ditadas pelo tráfego das mercado- limitam à hidrovia, abarcando ain- rias, e não pela garantia de direitos da o conjunto de portos previstos socioambientais. Perpetuam-se, as- para o efetivo deslocamento do eixo sim, tendências históricas – é fácil logístico, hoje majoritariamente encontrar nessa opção de desenvol- orientado aos portos de Santos (São vimento, frequentemente vendida Paulo) e Paranaguá (Paraná). Tam- como “inovadora”, diversos pontos pouco devemos esquecer a pavimen- de contato com as intervenções le- tação da rodovia Cuiabá-Santarém vadas a cabo pela ditadura militar (BR-163) até Santarém, variante de na Amazônia, cujo saldo nefasto peso para a alteração da rota de es- subsiste. Por trás de projetos de in- coamento de commodities, que se co- fraestrutura e logística, apresenta-

44 Alarcon, Guerrero e Torres dos hegemonicamente como uma Para a caracterização desse cená- justaposição de medidas exclusi- rio, baseamo-nos em fontes oficiais vamente técnicas que convergem (principalmente, planos governa- na direção de axiomas como “pro- mentais e sistemas de informação gresso” e “desenvolvimento”, há de- públicos), documentos produzidos cisões políticas que carregam uma por agentes do setor privado com série de pressupostos, dentre os interesses econômicos na bacia e re- quais, a necessidade de priorização portagens veiculadas pela impren- de determinados setores da econo- sa no intervalo entre 2011 e 2015. mia como forma de alcançar o cres- Como indicamos, trata-se de uma cimento econômico. síntese limitada, que tem como Com o intuito de contribuir para intuito principal chamar a aten- a análise das barragens na bacia do ção para a necessidade de que tais Tapajós, no presente artigo busca- iniciativas sejam submetidas a um remos descrever, de modo panorâ- debate amplo que as tome em con- mico, essa gama de intervenções junto, impedindo-se que os planos na região (tanto aquelas em curso, de desenvolvimento da Amazônia como as previstas), situando os em- sejam delineados a portas fechadas, preendimentos energéticos em seu envolvendo apenas certos setores contexto e desvelando aspectos da do poder público e agentes econô- lógica de planejamento de infraes- micos interessados. trutura e logística desenhada na úl- tima década para a Amazônia, em Uma nova forma de ver a especial para a área que abrange a Amazônia? bacia e que é alvo dos barramen- Lançado em março de 2011, o pro- tos em questão. Serão discutidas jeto Norte Competitivo2, elaborado 2. Agradecemos a Felipe as principais iniciativas logísticas pela empresa de consultoria Macro- Garcia pela indicação deste material. de transporte na bacia, voltadas ao logística, a pedido da Confederação escoamento de commodities: os pla- Nacional da Indústria (CNI) e do Fó- nos de implementação da hidrovia rum Ação Pró-Amazônia (que reú- Teles Pires-Juruena-Tapajós, a cons- ne as federações da indústria dos trução de portos nos municípios estados que compõem a Amazônia de Itaituba e Santarém, e o asfalta- Legal), constitui, segundo seus res- mento da BR-163. Comentaremos, ponsáveis, uma “contribuição que ainda, as pressões minerárias sobre o Sistema Indústria disponibiliza às a bacia, associadas a tais obras de autoridades governamentais, como infraestrutura. instrumento de fundamental im-

Saída pelo norte 45 imagem 1. Ao fundo, porto administrado pela Companhia Docas do Pará; à frente, equipamento para transbordo graneleiro no porto da Cargill. Por Mauricio Torres, ago. 2014.

portância para a formulação de po- BR-163. “Com base nos nove eixos líticas de desenvolvimento de cada de integração priorizados, é possí- estado e da Amazônia Legal” (Con- vel montar uma nova forma de ver a federação Nacional da Indústria et Amazônia Legal” (Idem, grifo nosso). al., 2011b). É de se perguntar: nova forma? Partindo de um diagnóstico da Falar em eixos de integração como infraestrutura de transporte exis- novidade é descartar a evidência tente na região (rodovias, ferrovias, histórica. Considere-se que, em hidrovias, portos e aeroportos) e 1972, como parte das comemora- considerando as cadeias produtivas ções dos 150 anos da independência de itens do agronegócio (cana-de- do Brasil, o Banco Central emitiu -açúcar, milho, soja), da pecuária uma cédula de 500 cruzeiros em bovina, minérios (aço, alumínio, cujo verso se apresentava uma se- cobre, ferro e manganês), madeira, quência de cinco cartas geográficas fertilizantes, petróleo e derivados, do território brasileiro, com os títu- entre outros, o projeto traçava um los “descobrimento”, “comércio”, conjunto de “eixos potenciais de “colonização”, “independência” e integração nacional” (Confederação “integração”. Esta última carta, en- Nacional da Indústria et al., 2011a). cerrando o que soa como uma linha Entre eles, figuravam como priori- evolutiva, representava a extensa dade (por trazer “maior competiti- malha viária a ser construída no vidade à Amazônia Legal”) a hidro- âmbito do Programa de Integração via Teles Pires-Juruena-Tapajós e a Nacional (PIN), instituído pelo De-

46 Alarcon, Guerrero e Torres creto nº1.106/1970, com ênfase na estava diante de um “apagão logís- abertura de vias através do territó- tico”3. “Caos”, “agonia”, “confusão”, 3. A reportagem, exibida rio amazônico. “miríade de problemas” foram al- em 3 dez. 2012, pode ser assistida em: . José de Freitas Mascarenhas, inicia- Valor, para narrar “o drama vivido tivas como a construção da hidro- hoje por quem produz soja e milho via Teles Pires-Tapajós ajudariam a no norte do Mato Grosso, o maior “acabar com a situação injusta que celeiro de grãos do país” (Borges, hoje penaliza o produtor” (Borges, 2013b). “Sem alternativas [logísti- 2013a). “O produtor é quem gera a cas], o produtor segue fazendo a sua riqueza. A partir dele, todos os de- parte” (Idem). O chamado ao gover- mais fazem apenas transferência no era claro. de serviços. Não é possível que esse Pouco mais de seis meses após o cidadão continue a ser o que mais lançamento do projeto Norte Com- sofre com a limitação logística do petitivo, a Folha de S.Paulo estampava país” (Idem). Declarações nessa dire- em sua capa: “Amazônia vira motor ção pululam. de desenvolvimento”. Junto à man- chete, um mapa da Amazônia Legal, Além de salvar o Produto Interno rasgado por linhas de transmissão Bruto (PIB) do primeiro trimestre, a de energia, hidrovias, ferrovias e supersafra de grãos 2012/2013, puxa- rodovias. “O governo e o setor pri- da pelo aumento surpreendente da vado inauguraram novo ciclo de de- produção de soja e de milho, eviden- senvolvimento e ocupação da Ama- ciou o que não dá mais para ocultar: zônia Legal, que tem 24,4 milhões a deficiência da infraestrutura de lo- de habitantes e representa só 8% do gística chegou ao limite do suportá- PIB” (Wiziack & Brito, 2011a). A par- vel, e pode pôr a perder esforços de tir de um levantamento na base do décadas para ganhar produtividade PAC e em torno dos “principais pro- no campo (Torres, 2013). jetos privados em andamento”, três reportagens publicadas na mesma Para indicar a “urgência” com edição discorriam sobre os inves- que deveriam ser tomadas medidas timentos planejados para a região para alterar esse cenário, um produ- até 2020. “O setor elétrico é a força tor rural entrevistado em 2012 pelo motriz dessa onda de investimento. programa Revista do Campo, da RIT As principais hidrelétricas planeja- TV, afirmou enfaticamente que se das pelo governo serão instaladas

Saída pelo norte 47 na região e, com elas, também se potencial de escoamento é de 40 mi- viabilizarão as hidrovias” (Idem). “As lhões de toneladas por ano de grãos mudanças também estimulam os do Centro-Oeste até 2020 (Batista, produtores de minérios” (Wiziack 2014). & Brito, 2011b). Um levantamento publicado Note-se que o projeto Norte pelo Instituto de Estudos Socioeco- Competitivo não é uma iniciativa nômicos (Inesc) em 2012 indicava isolada. Distintos agentes do setor que, de 82 obras de transporte ter- privado têm se movimentado inten- restre e fluvial do PAC, ao menos samente para determinar os rumos 43 afetavam uma ou mais terras das políticas de desenvolvimento indígenas (TIs) (Verdum, 2012a: 12). na Amazônia. Como indica estudo No Pará, de dez empreendimentos, da International Rivers, sete encontravam-se nessa situação – por exemplo, a pavimentação da Especialmente no Mato Grosso, as BR-163, impactando as TIs Baú (tra- elites do agronegócio controlam dicionalmente ocupada por indíge- cada vez mais o direcionamento das nas do povo Kayapó), Menkragnoti políticas regionais, exercendo forte (habitada também por indígenas do influência sobre os novos projetos povo Kayapó e isolados), Panará (ha- de infraestrutura – estradas, ferro- bitada pelo povo homônimo) e Ca- vias, barragens e hidrovias – com o choeira Seca (habitada por indíge- objetivo de reduzir os custos de pro- nas do povo Arara) (Ibid.: 14, anexo dução e transporte de commodities sem numeração de página). de baixo valor agregado, amplamen- As perspectivas de desenvol- te direcionadas ao mercado global vimento da bacia do Tapajós têm (2011: 4). alimentado diversas expectativas junto aos setores potencialmente Em 2009, entidades do agrone- beneficiados. Uma reportagem pu- gócio de Mato Grosso criaram o blicada em março de 2014 pelo Valor Movimento Pró-Logística, cuja lista ostentava números grandiosos: de prioridades é encabeçada pela hi- drovia Teles Pires-Juruena-Tapajós. Nos próximos anos, o setor privado “O rio é chamado pela indústria de ligado ao agronegócio deverá inves- grãos e de logística de o ‘Mississipi’ tir cerca de R$ 2,3 bilhões em termi- brasileiro, dado o seu potencial de nais, barcaças e empurradores para navegação e transporte” (Barros, o transporte no rio Tapajós, cujo 2013a). O movimento, como se lê

48 Alarcon, Guerrero e Torres no sítio da Associação dos Produto- Tapajós (Atap) (Antaq, 2015). Atual- res de Soja e Milho de Mato Grosso mente denominada Associação dos (Aprosoja), que o preside, teria como Terminais Portuários de Uso Priva- um de seus eixos de atuação a “arti- tivo e das Estações de Transbordo culação diretamente em Brasília e de Carga da Hidrovia Tapajós, a em Mato Grosso junto aos poderes Atap é formada por Bertolini, Brick Executivo e Legislativo”, sendo a Logística, Bunge, Cargill, Chibatão implantação de eclusas (comportas Navegações, Cianport, Hidrovias do que regulam o nível das águas para Brasil, Odebrecht Transport (OTP), permitir a navegação) nas usinas Reicon e Unirios (Menezes, 2014). hidrelétricas (UHEs) em construção Cumpre notar ainda que a nomea- ou planejadas, e a realização de ou- ção de Pagot para o DNIT deu-se por tros investimentos necessários para indicação do senador Blairo Maggi, a implementação da hidrovia (como ex-governador de Mato Grosso e im- dragagem e aprofundamento de lei- portante liderança ruralista (Aliado, to) seus principais objetos de lobby. 2007; Ida, 2007). As imbricações entre poder pú- Ainda no que diz respeito às co- blico e setor privado na condução nexões entre poder público e priva- de projetos de logística como a hi- do no caso em questão, vale notar drovia são evidentes. Veja-se o caso que a Fiagril (empresa comercializa- de Luiz Antônio Pagot, diretor-geral dora de grãos que, junto à Agrosoja, do Departamento Nacional de In- criou a Cianport, para “explorar as fraestrutura e Transportes (DNIT) oportunidades do corredor logísti- que se afastou do órgão em julho de co BR-163-Rio Tapajós”) foi a maior 2011, “arrastado pela crise de escân- doadora da campanha eleitoral de dalos de corrupção que envolveu o Otaviano Pivetta, agropecuarista Ministério dos Transportes”, como e prefeito de Lucas do Rio Verde se lê em reportagem publicada pelo (Mato Grosso), que em 2012 osten- Valor, em 2012 (Pagot, 2012). À épo- tava o título de “prefeito mais rico ca, Pagot trabalhava “numa con- país” (Freitas Jr., 2012; Cianport, sultoria para instalar uma hidrovia 2013). Conforme o sistema de con- no rio Tapajós” (Idem). Em notícia sulta às operações do Banco Nacio- veiculada no sítio da Agência Na- nal de Desenvolvimento Econômico cional de Transportes Aquaviários e Social (BNDES), em 2012, a Cian- (Antaq) em outubro de 2015, Pagot é port obteve empréstimos do fundo referido como dirigente da Associa- da marinha mercante totalizando ção dos Terminais Privados do Rio R$ 75,9 milhões para construção

Saída pelo norte 49 de empurradores fluviais e balsas jetos específicos, começando pela 4 4. Disponível em: graneleiras . hidrovia do Tapajós. (acesso: 1 out. do Rio Verde” (Jubé & Veloso, 2014). obras avançavam, o tráfego de cami- 2015). Note-se que “O senador Blairo Maggi (PR), uma nhões carregados de soja e milho, não constam, ali, das lideranças mais expressivas da que rumavam em sua maioria do informações sobre projetos em análise. região, diz que a presidente ‘será re- norte de Mato Grosso ao Pará, au- cebida com o carinho que merece’, mentava consideravelmente. Os veí- pela atenção que o governo dispen- culos percorriam o que alguns con- sou ao setor” (Idem). sideram “um dos mais importantes corredores logísticos intermodais Maggi cita o subsídio para a aquisi- do país”, formado pela rodovia (cujo ção de máquinas e equipamentos, asfaltamento ainda não terminou) que permitiu a ampliação da fro- e pela hidrovia Tapajós-Amazonas ta agrícola, e os investimentos em (Barros, 2014b). Diversos produtores infraestrutura como estímulos ao rurais de municípios como Nova Mu- negócio, que responde por parce- tum, Lucas do Rio Verde, Sorriso e la significativa do Produto Interno Sinop (todos em Mato Grosso) inver- Bruto (PIB). Os investimentos per- tiam o fluxo de escoamento tradicio- mitiram diversificar o escoamento, nalmente utilizado, adotando uma com alternativas ao Porto de Santos das três rotas a seguir. A primeira (SP). Ele cita, por exemplo, o primei- possibilidade consistia em enviar os ro embarque de soja em março, no grãos por terra até Santarém, onde Porto de Miritituba (PA), destino fi- seriam embarcados em graneleiros nal da hidrovia formada pelos rios de longo curso. Alternativamente, os Tapajós e Amazonas (Idem). grãos poderiam seguir por terra até Itaituba (mais especificamente, ao Nessas tramas é que se vão dese- distrito de Miritituba), onde seriam nhando os rumos das políticas de dispostos em balsas, que seguiriam desenvolvimento da região amazô- pelo rio Tapajós até Santarém, onde nica. Nas próximas seções, obser- as mercadorias seriam transborda- varemos mais de perto alguns pro- das para navios de maior calado,

50 Alarcon, Guerrero e Torres incapazes de subir até Miritituba. A grandes intervenções” (Idem). Por terceira possibilidade seria enviar a sua vez, os cursos médio e alto do produção por terra até Miritituba e Tapajós, e o Teles Pires são caracte- de lá, em balsas, até o porto de Santa- rizados como possuindo “potencial na (Amapá), onde é possível atracar para a implantação e desenvolvi- navios maiores que em Santarém. mento de hidrovias” (Idem). Nos últimos anos, a “saída pelo A navegabilidade do trecho de norte”, defendida por representan- Itaituba a Cachoeira Rasteira (esta tes do agronegócio, ganhou novo última, situada entre os municí- impulso, com ações governamen- pios de Jacareacanga, Pará, e Apia- tais de estruturação logística vol- cás, Mato Grosso) seria garantida tadas ao setor. Além de boa parte pela construção de três UHEs com da BR-163 já ter sido asfaltada, está eclusas (São Luiz do Tapajós, Jatobá em execução o estudo de viabilida- e Chacorão) e por “medidas adicio- de técnica, econômica e ambiental nais” nos trechos não inundados (EVTEA) da hidrovia Teles Pires-Ju- pelos reservatórios, como derroca- ruena-Tapajós, e estão sendo imple- mento, dragagem, regularização do mentados novos terminais portuá- rio e sinalização (Ibid.: 93). Ainda se- rios em Itaituba e Santarém5. gundo o plano, para que a hidrovia 5. Em novembro de 2015, o DNIT prorrogou No Plano Hidroviário Estratégico chegasse a Sinop, como querem os o contrato com as (PHE) 2013, a hidrovia Teles Pires-Ju- ruralistas, seriam necessárias mais empresas R.Peotta, ruena-Tapajós aparece como proje- três eclusas (em Cachoeira Rasteira, Hidrotopo e Enefer para o desenvolvimento do to prioritário do “vetor amazônico” São Manoel e Teles Pires) (Ibid.: 94). EVTEA da hidrovia Teles (Brasil, Ministério dos Transportes A utilização do Tapajós para a ex- Pires-Juruena-Tapajós. & Arcadis Logos, 2013a: 199). O do- portação de grãos é um desejo an- cumento enfatiza que esses rios tigo do agronegócio. Em 1999, o se- possuem “uma posição geográfica nador Blairo Maggi apresentou um estratégica, ligando os maiores cen- projeto de decreto legislativo (PDS tros de produção agrícola do Brasil nº122/1999), com o intuito de “auto- ao rio Amazonas e, consequente- rizar o aproveitamento dos recursos mente, ao Oceano Atlântico” (Ibid.: hídricos dos rios Juruena, Teles Pi- 26). De acordo com o PHE, o trecho res e Tapajós, exclusivamente para de jusante do Tapajós figura entre fins de transporte fluvial”, inclusi- os “principais rios de planícies que ve em trechos situados no interior apresentam extensos trechos com ou nas imediações de TIs. Segundo características mais propensas à a justificativa do PDS, o aproveita- navegação, sem a necessidade de mento de rios para a navegação se-

Saída pelo norte 51 ria uma “imperiosa necessidade”. Representantes de produtores agro- Em 2004, o PDS nº233/2004, propos- pecuários do Estado de Mato Gros- to pelo senador Jonas Pinheiro, foi so exigem que o governo construa apensado ao primeiro. Em 2011, o eclusas em todas as hidrelétricas PDS nº122/1999 foi arquivado. que serão erguidas nos rios Tapajós A perspectiva de implementação (PA) e Teles Pires (MT). [...] A união da hidrovia tem motivado aquisi- dos produtores vai agir em três fren- ções de terrenos e construção de ar- tes. A primeira é tentar incluir as mazéns, barcaças, estações de trans- eclusas nas duas usinas em constru- bordo e terminais fluviais, como ção no Teles Pires (Colíder e Teles Pi- transparece no noticiário. “A Ode- res), que estão em construção e não brecht Transport (OTP), braço de incluíram as eclusas no projeto. O infraestrutura do Grupo Odebrecht, movimento avalia, inclusive, entrar finaliza a formação de uma Socie- na justiça pedindo a interrupção dade de Propósito Específico com a temporária das obras. Em seguida Brick Logística, empresa que desen- haverá uma mobilização no Con- volve projetos portuários na Região gresso para tentar aprovar o projeto Norte, para investir no transporte de lei 3009/97, do deputado Homero fluvial de grãos, mais especifica- Pereira (PSD-MT), que obriga a cons- mente no Pará” (Zaparolli, 2013). “A trução simultânea de hidrelétrica e multinacional americana Bunge e a eclusa em rios navegáveis. Por fim, o Amaggi, uma das empresas do Gru- movimento quer que todas as obras po André Maggi, da família do sena- que ainda não publicaram suas lici- dor e ex-governador do Mato Grosso tações incluam as eclusas nos editais Blairo Maggi, acabam de criar uma (Veloso, 2012). joint venture de navegação fluvial no país […]. A Navegações Unidas Para Renato Pavan, da Macro- Tapajós Ltda. (Unitapajós), sediada logística, consultora com serviços em Belém, será responsável pelo prestados à CNI e ao Fórum Pró- escoamento de grãos originados no -Amazônia, é “natural” que essas Mato Grosso pela hidrovia Tapajós- obras sejam financiadas pelo po- -Amazonas até Santarém, no Pará, der público, por se tratar de “um que servirá como alternativa me- investimento alto e pouco atrativo nos custosa às empresas” (Barros, para a iniciativa privada” (Zaparol- 2014b). Os investimentos privados li, 2013). O Plano Nacional de Lo- vêm de mãos dadas com incisivas gística e Transportes (PNLT) 2011 exigências em face do governo: partilha desse entendimento: “Os

52 Alarcon, Guerrero e Torres investimentos para a expansão de Estado. Só ([o] rio) Mississipi (EUA) utilização do modal hidroviário e seus afluentes transportam mais deverão, necessariamente, ser atri- de 600 milhões de toneladas/ano. buídos à responsabilidade do setor O Brasil desperdiça essa vocação’, público, uma vez que a iniciativa afirma Carlos Fávaro, presidente da privada é capaz de suportar apenas Aprosoja” (Idem, grifo nosso). a construção de terminais privati- A tese da “dádiva divina” é par- vos para a movimentação de cargas tilhada também por representantes específicas, principalmente, granéis do poder público. Em entrevista à agrícolas e produtos siderúrgicos” NBR sobre o lançamento do Plano (Brasil, Ministério dos Transportes, Nacional de Integração Hidroviária Secretaria de Política Nacional de (PNHI), em 2013, Adalberto Tokars- Transportes et al., 2012: 39). No que ki, superintendente de Navegação diz respeito à hidrovia Teles Pires- Interior da Antaq, comparou os cus- -Juruena-Tapajós, o PHE 2013 previu tos de implantação de hidrovias e investimentos públicos de cerca de ferrovias: “Na hidrovia, você já está R$ 3,4 bilhões (de 2014 a 2024) para com o rio lá, que deus nos deu para o custear as intervenções físicas ne- Brasil, só precisa fazer uns melhora- cessárias para a implementação da mentos” (grifo nosso)6. Referindo- 6. O programa, exibido mesma, ao passo que os investimen- -se a um conjunto de projetos de em 5 de março de 2013, está disponível tos privados em terminais e frotas infraestrutura de transportes, en- em: . 2025) (Ibid.: 60-61). Pires-Juruena-Tapajós, o PNLT 2011 Os defensores da hidrovia argu- chega a afirmar que são “obvieda- mentam que é um despautério des- des nacionais” (“com razão, pro- perdiçar o “potencial pouco explo- jetos reclamados pela sociedade”) rado” dos “63 mil quilômetros de (Brasil, Ministério dos Transportes, rios” que cortam o Brasil (Borges, Secretaria de Política Nacional de 2012a). “Quatro grandes rios com Transportes et al., 2012: 37). potencial para a movimentação de Conforme as Diretrizes da Políti- carga cruzam a região de influência ca Nacional de Transporte Hidroviá- da soja mato-grossense, no senti- rio, “o desenvolvimento do trans- do Sul-Norte: Madeira, Teles Pires- porte hidroviário no Brasil deve -Tapajós, Araguaia e Tocantins”, lê- ser considerado como uma ques- -se em matéria do Valor (Caminho, tão nacional, e exige um esforço 2012). “‘É uma dádiva divina ter rios da sociedade brasileira no sentido cortando a produção de grãos do de equacionar os entraves que afli-

Saída pelo norte 53 gem o setor” (Brasil, Ministério dos além de uma redução de mais de Transportes, Secretaria de Política 60% da emissão de CO2 pelos trans- Nacional de Transportes, 2010: 5). portes” (Brasil, Secretaria de Portos, O crescimento do país, subentende- Agência Nacional de Transportes -se, depende do setor de commodities; Aquaviários, 2009). No mesmo ano, se ele enfrenta dificuldades, o país o então diretor-geral da Antaq, Fer- precisa ajudá-lo, para “se ajudar”. nando Fialho, deu declarações aná- Um argumento recorrente no dis- logas, enfatizando que “a hidrovia curso pró-hidrovia é que ela seria é um grande aliado do meio am- mais eficiente para o transporte de biente” (Brasil, Secretaria de Portos, mercadorias de baixo valor agrega- Agência Nacional de Transportes do, reduzindo os custos do produ- Aquaviários, 2011). tor (com encurtamento de rotas e Em entrevista ao Valor, Ana Cris- menor consumo de combustível, se tina Barros, da organização The Na- comparada a ferrovias e rodovias), ture Conservancy (TNC), louvou os 7. Ver, por exemplo, evitando desperdícios e acidentes7. benefícios socioambientais da hi- Pavan (2013), Zaparolli Às vésperas da Conferência das drovia Teles Pires-Juruena-Tapajós: (2013) e Caetano & Barros (2014). Nações Unidas sobre a Mudança “O uso de hidrovias no transporte Climática realizada em Copenha- de produtos agrícolas contribui para gue (Dinamarca), em 2009, notícia o desenvolvimento sustentável, afir- de O Estado de S.Paulo anunciava que ma. ‘Aquela região corre sério risco a Antaq se programava para fazer ambiental’, informa. Há por lá cerca um lobby “agressivo”, com o intuito de 50 mil garimpeiros, atraídos pelo de “transformar em realidade o uso que se considera uma das mais im- de hidrovias no Brasil” (Veríssimo, portantes reservas de ouro do país” 2009). Colocando essa disposição (Aguiar & Rockmann, 2013). Para em prática, em palestra proferida Clythio Buggenhout, gerente de por- durante o encontro, o diretor da tos da Cargill, a construção da hidro- Antaq, Tiago Lima, ressaltou a con- via Teles Pires-Juruena-Tapajós “vai tribuição que o modal hidroviário mitigar o ‘impacto socioambiental’ poderia trazer para as metas de re- que a chegada de milhares de ca- dução de emissão de carbono: “Com minhões carregados com soja teria investimentos da ordem de R$ 7,65 sobre Santarém após a conclusão da bilhões, o Brasil terá 7.530 km de BR-163 – cada comboio de barcaças seus rios em condições de navegabi- pode transportar até 30 mil tonela- lidade, 28,44% da sua produção agrí- das de grãos, substituindo mais de cola transportada pelas hidrovias, 800 caminhões” (Freitas Jr., 2013).

54 Alarcon, Guerrero e Torres As loas ao projeto atingem o pon- populações atingidas. “Um exemplo to máximo em um panfleto publici- desse problema é a ausência de con- tário publicado pelo Ministério dos sulta prévia junto aos povos indíge- Transportes, pela Administração nas Mundurucu, Kayabi e Apiaká das Hidrovias da Amazônia Oriental antes de [se] propor uma autoriza- (Ahimor) e pela Companhia Docas ção no Congresso para a construção do Pará (CDP): “O impacto ambien- de hidrovia nos rios Teles Pires e Ta- tal da obra é positivo, porque per- pajós e usinas hidrelétricas que afe- mite conciliar a natureza, a presen- tariam diretamente seus territórios, ça de reservas indígenas e florestais em desrespeito à Constituição Bra- com a hidrovia, chamada de ecovia” sileira (artigo 231)” (2011). “Apesar (s.d., grifo nosso). das possíveis vantagens ambientais Esses discursos invisibilizam os das hidrovias, os procedimentos variados e profundos impactos ne- de planejamento e licenciamento gativos da hidrovia sobre povos in- no país têm subestimado possíveis dígenas, ribeirinhos e camponeses, consequências sociais e ambien- entre outros grupos. Ao defender tais, inclusive o impacto cumulati- como uma de suas diretrizes o “uso vo com outros grandes projetos de múltiplo das águas”, compreenden- infraestrutura e atividades baseadas do-o apenas como aproveitamento em recursos” (Idem). Vale enfatizar dos rios para geração de energia e que a hidrovia atravessaria áreas para navegação, o PNLT 2011 exclui muito relevantes do ponto de vista os usos efetuados por essas popula- ambiental. Para citar um exemplo, ções e elide a importância do rio em 250 quilômetros do rio Juruena cor- seus modos de vida (Brasil, Ministé- rem no interior do Parque Nacional rio dos Transportes, Secretaria de (Parna) Juruena (Barros, 2015c). Política Nacional de Transportes et Em entrevista ao Valor, Jaime al., 2012: 22). O próprio PHE admite Binsfeld, presidente da Fiagril, ob- que a eclusa de Cachoeira Rasteira, servou que o novo eixo logístico necessária para levar a hidrovia até “deve viabilizar a expansão da fron- Sinop, inundaria a TI Kayabi (Brasil, teira agrícola para os municípios Ministério dos Transportes & Arca- localizados entre o norte de Mato dis Logos, 2013a: 94). Grosso e o sul do Pará” (Cianport, De acordo com um estudo da 2013). Nos discursos de represen- International Rivers, o planejamento tantes do agronegócio e do poder de hidrovias comumente prescinde público – ambos ancorados na pers- de participação social, inclusive das pectiva dos primeiros –, efeitos

Saída pelo norte 55 como a conversão de pastagens em óleo vazado de um total de 700 mil áreas agrícolas (e a consequente am- litros de combustível do navio. Le- pliação do desmatamento, para o vantamento da Prefeitura de Barca- estabelecimento de novas áreas de rena mostrou que 80% das pessoas pastagem) são, assim, apresentados que vivem na região do porto tive- como positivos. ram renda e saúde afetadas pelo aci- O naufrágio de um navio que dente” (Fernandes, 2015). Cumpre transportava cerca de cinco mil notar que se tratou de um desastre bois, ocorrido em Vila do Conde, anunciado. “Cinco meses antes do distrito de Barcarena (Pará) no dia acidente, os portuários da região 6 de outubro de 2015, deixou claro haviam denunciado as condições de que o transporte aquaviário tam- trabalho na amarração dos navios, bém é passível de acidentes de gra- que garante o embarque em segu- víssimas proporções, a despeito do rança das cargas do porto. A denún- que argumentam seus entusiastas. cia foi ignorada por uma sucessão De acordo com o Ministério Público de órgãos envolvidos nesse embar- Federal (MPF), o Ministério Público que, da direção do porto à agência do Estado do Pará (MPE/PA) e a De- federal que regula o transporte fensoria Pública, o porto carecia de aquaviário no Brasil (Antaq)” (Idem). plano de contingência para situa- Em razão dos danos provocados, o ções como aquela, ainda que Vila frigorífico Minerva Foods, a CDP e do Conde seja o principal ponto de a empresa Global Norte Trade, res- embarque de bois vivos do Brasil ponsável pela operação portuária, (Barros & Pires, 2015). Em razão do estão sendo processadas (Barros & atraso nas medidas emergenciais, Pires, 2015). milhares de carcaças em avançado Por fim, cumpre notar que a estado de putrefação e centenas comparação entre modais de trans- de milhares de litros de óleo diesel porte para identificar a alternativa atingiram as praias de Barcarena mais “sustentável” ofusca o cerne e de Abaetetuba, enquanto outros do debate: o que determina, em últi- animais decompunham-se no fun- ma instância, os impactos socioam- do do mar. bientais dos modais é a natureza Um mês após o acontecimento, a das atividades econômicas a eles situação continuava alarmante. “As atreladas. No caso da hidrovia Teles máscaras distribuídas a quem traba- Pires-Juruena-Tapajós, há que se tra- lha no porto não dão conta do fedor zer ao primeiro plano que se trata da carne podre que se mistura ao do da expansão de atividades econômi-

56 Alarcon, Guerrero e Torres cas predatórias, que, sabidamente, tuba é um sonho antigo, alimenta- têm avançado sobre os territórios e do há muito tempo por ruralistas modos de vida de indígenas, ribeiri- como o senador e ex-governador do nhos, camponeses e outros grupos. Mato Grosso, Blairo Maggi (PR-MT). Há 14 anos, Maggi partiu rumo ao “Apagão portuário” Tapajós com um grupo de produto- Situado à margem direita do Tapa- res e mais de 70 caminhões de soja. jós, junto à BR-230 e a 30 quilôme- Foram testar o potencial do vilarejo tros do entroncamento com a BR- como ponto de saída para os grãos. 163, o distrito de Miritituba é “um A aptidão se confirmou” (Idem). “‘De entreposto óbvio de interligação lá podemos ir a qualquer porto rodo-hidroviária” ou, em outras pa- grande da Região Norte. O projeto lavras, “um curinga”, afirma o ge- abre uma matriz de alternativas rente de portos da Cargill, Clythio logísticas’, afirma Buggenhout. ‘Es- Buggenhout (Freitas Jr., 2013). Car- tamos falando de investimentos to- los Fávaro, presidente da Aprosoja, tais de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões concorda: “Miritituba realmente nesse eixo’” (Freitas Jr., 2013). passou a ser muito estratégica para Se no caso da implementação o escoamento, porque vai dividir a da hidrovia Teles Pires-Juruena- carga que seguiria até Santarém” -Tapajós preveem-se investimentos (Borges, 2013a). “O porto de Miriti- maciçamente públicos, no que diz

Imagem 2. Orla de Santarém, com o porto da Cargill ao fundo. Por Mauricio Torres, ago. 2014.

Saída pelo norte 57 respeito aos portos, destaca-se a ini- apagão portuário que prejudica as ciativa privada – atrelada, é claro, a exportações do setor” (Nery, 2015, vultosos empréstimos de dinheiro grifo nosso). público. O PNLT 2011 defende uma Reportagens veiculadas pelo Va- “reorganização portuária” pauta- lor dão conta da intensa movimen- da na “abertura à participação de tação do agronegócio em torno dos usuários privados, assim como [n]a portos de Santarém e Miritituba. concessão da administração e ex- “Um novo terminal de granéis sóli- ploração de alguns portos menores dos de origem vegetal será construí- e de instalações específicas de gran- do [no porto de Santarém]. A obra des portos, tais como terminais de já está aprovada pela Antaq e todo contêineres, de automóveis e de o projeto tem o custo previsto em movimentação de granéis sólidos” R$ 170 milhões, alocados no PAC. O (Brasil, Ministério dos Transportes, Porto de Itaituba [localizado no dis- Secretaria de Política Nacional de trito de Miritituba], às margens do Transportes et al., 2012: 20). Ain- rio Tapajós, tem hoje 12 empresas da segundo o plano, “no que diz interessadas em instalar terminais respeito aos portos, as estatísticas para carregar barcaças com grãos comprovam o ganho de eficiência do Mato Grosso” (Camargo, 2012). das instalações concedidas ao setor “Pelo menos oito empresas já adqui- privado em relação ao período ante- ram terrenos em Miritituba para a rior às concessões” (Ibid.: 21). construção de estações de transbor- Na esteira da nova Lei dos Portos do […]. Destas, ao menos quatro – as (Lei nº12.815/2013), em dezembro de tradings americanas Bunge e Cargill 2015 foi realizado o leilão da primei- e as operadoras logísticas Hidrovias ra etapa do programa de concessão do Brasil e Cianport – possuem pro- de portos públicos (Pires, 2015). Uma jetos em estágio final de licencia- próxima arrematação, informa o mento ambiental e com obras a ini- Valor, “contará apenas com arrenda- ciar ainda em 2013” (Freitas Jr., 2013). mentos no Pará” (Idem). Também no No primeiro semestre de 2014, a es- que diz respeito aos portos, o mote tação de transbordo de carga (ETC) do “apagão logístico” é repetido à da Bunge em Miritituba entrou em exaustão. “Apesar dos avanços da operação; à época, as demais em- política portuária brasileira, para presas aguardavam a liberação das as principais entidades do agrone- licenças ambientais necessárias. gócio e do comércio exterior, o país A Cianport pretendia firmar-se levará muitos anos para pôr fim ao em Miritituba e em Santana. Se-

58 Alarcon, Guerrero e Torres gundo representantes da operadora dessas empresas em Miritituba au- logística, ela optou por estabelecer mentaria as “demandas sociais” na sua ETC em Miritituba, na expec- região, sendo necessário, portanto, tativa de que ali enfrentaria me- “garantir um processo ordenado” nos resistência que em Santarém, (Freitas Jr., 2013). À época, o secretá- principal município da região. “Há rio de Indústria, Comércio e Mine- dez anos, lembra o executivo [Jai- ração do Pará, David Leal, chegou a me Binsfeld, presidente da Fiagril, afirmar que o Estado não dispunha uma das criadoras da Cianport], a de um plano de ação para mitigar Cargill enfrentava pressões de am- os impactos socioambientais dos bientalistas para se instalar em San- portos em Miritituba. “Segundo ele, tarém (PA). ‘Percebemos que a ida o governo estadual chegou a cogitar para o Norte seria complicado [sic], um levantamento da situação e do então olhamos para Itaituba, uma que poderia ser feito para minimi- área com vários terrenos já aber- zar os impactos, mas não teve di- tos às margens do Tapajós, e resol- nheiro para pagar o trabalho” (Pará, vemos apostar’, afirma” (Cianport, 2013). 2013). Além do ETC em Miritituba, De acordo com representantes a Cianport planejava construir um do MPE/PA e da prefeitura de Itaitu- terminal de uso privativo (TUP) em ba, “as empresas têm se mostrado Santana; à época da reportagem, ela relutantes em concordar com uma possuía um contrato de uso tem- ‘agenda mínima’ de compensações porário desse porto, que é público para os milhares de caminhões que (Idem). Já a OTP previa, entre ou- passarão a transitar com carrega- tros projetos, a construção de uma mentos de milho e soja e a imigra- ETC em Santarenzinho (distrito de ção maciça” (Barros, 2013b). Maté- Rurópolis, Pará) (Barros, 2015a). O rias na imprensa deixam ver o lobby “esgotamento” dos terrenos em das empresas para acelerar o pro- Miritituba estava levando diversas cesso de licenciamento ambiental empresas a Santarenzinho, como dos portos a despeito dos questio- Amaggi, o grupo argelino Cevital namentos. Por exemplo, em julho e a Transportes Bertolini (Barros, de 2014, teria lugar uma reunião 2014b). extraordinária da Atap para “discu- Em entrevista concedida em tir uma ação conjunta que dê cele- 2013, o então secretário de Desen- ridade à liberação de licenças que volvimento do Pará, Sydney Rosa, permitirão o escoamento de parte admitiu que o estabelecimento dos grãos do Centro-Oeste pela cha-

Saída pelo norte 59 mada ‘saída Norte’ do país” (Barros, intensa circulação de caminhões 2014a). carregados de grãos, em Barcarena, Moradores de Maicá, distrito de tem suscitado protestos de mora- Santarém onde se prevê a constru- dores e tensões entre as empresas ção de um complexo portuário, de- Bunge e ADM, e as autoridades lo- nunciam que o projeto está violan- cais (Barros, 2015b). Referindo-se do o direito à consulta livre, prévia e ao preço da terra no município de informada – na área, situa-se inclu- Itaituba, o Valor informa: “sem ci- sive uma comunidade quilombola. tar cifras, a prefeitura afirma que De acordo com nota da organização praticamente dobrou” (Idem). Notí- Terra de Direitos, o projeto atinge cia publicada no jornal O Impacto, “comunidades tradicionais que se de Santarém, denuncia a ocupação estabeleceram na área urbana após ilegal de terras em Miritituba para uma série de deslocamentos força- a construção de portos, colocando dos pela ausência de políticas públi- em suspeita os títulos de proprie- cas” (Construção, 2014). dade apresentados pelas empresas Em setembro de 2015, o MPF e o (Santos, 2015). Conforme noticiou MPE/PA recomendaram à Secretaria o Valor, a OTP foi questionada ju- de Meio Ambiente e Sustentabilida- dicialmente quanto à propriedade de do Estado do Pará (Semas) que se do terreno em Santarenzinho onde abstivesse de conceder licenças pré- pretende instalar sua ETC (“Após a vias, de instalação e operação dos aquisição, a área foi reivindicada terminais portuários previstos para por um morador, que dizia ser o Miritituba, e suspendesse aquelas já dono da terra”) (Barros, 2015a). emitidas, devido à ausência de apre- Um estudo publicado pela In- sentação de avaliação ambiental in- ternational Rivers atenta para o des- tegrada (AAI) e avaliação ambiental matamento e outros problemas estratégica (AAE) dos empreendi- socioambientais acarretados pelos mentos (Bemerguy, 2015). portos: Diversos impactos estão asso- ciados aos portos. Nos períodos de Com a instalação do terminal da colheita, principalmente de soja e Cargill em Santarém, ocorreu uma milho, boa parte da zona urbana expansão sem precedentes do culti- de Santarém é cortada por numero- vo da soja (em conjunção com a es- sos caminhões carregados de grãos, peculação de terras) nas proximida- aumentando a poluição (inclusive des do chamado Planalto Santareno, sonora) e o risco de acidentes. A com um rápido aumento de cerca

60 Alarcon, Guerrero e Torres de 50 hectares em 2000 para 36.000 da afirmação ecoa as queixas do hectares em 2005. A expansão da agronegócio. Iniciado na década fronteira agrícola, principalmente de 1970, o asfaltamento do trecho da soja e da pecuária, está relacio- paraense da BR-163 não foi concluí- nada ao fenômeno de aumento da do e, após décadas de precária ma- sedimentação na bacia do Tapajós, nutenção, apresentava segmentos além de outros problemas sociais e praticamente intransitáveis. Ainda ambientais (2011: 5). que em 1991 tenham sido licitadas as obras de asfaltamento, elas não No final de 2013, o Valor noticiou foram adiante (Ecoplan Engenha- que a Atap e a prefeitura de Itaitu- ria, 2002: 18). Em 2002, o governo ba haviam chegado a um “acordo” federal tornou a anunciar que pavi- que reduzia para menos da metade mentaria a rodovia. O asfaltamento o valor inicialmente estimado para seria realizado por um consórcio as compensações relativas aos ter- de produtores de soja e outros em- minais portuários planejados para presários, que receberia a rodovia o município: de R$ 27 milhões, em concessão por um determinado o montante caíra para R$ 15 mi- tempo. Contudo, essa inciativa não lhões (Barros, 2013c). Meses antes, foi adiante e a pavimentação vol- em uma declaração que era, a um tou para as mãos do poder público. só tempo, um arroubo de sinceri- Hoje, embora os trechos faltantes dade e a expressão de um entendi- sejam pequenos, o asfaltamento mento absolutamente equivocado ainda não está concluído. sobre o que medidas mitigatórias Em entrevista ao Valor, Elso Vi- e compensatórias deveriam signifi- cente Pozzobon, conselheiro da car, Kleber Menezes, presidente da Aprosoja, lamentava que o aumen- Atap, afirmara: “Existe um abismo to da produção de soja e milho não entre o que eles [representantes do havia sido acompanhado por avan- poder público] demandam e o que ços na infraestrutura de escoamen- gente quer oferecer” (Barros, 2013b, to da safra (Borges, 2013b). “‘Inves- grifo nosso). timos em tecnologia e mais do que dobramos nossa produção. Mas nos- BR-163, a “rodovia da soja” sa estrada sempre foi a mesma, a si- “BR-163, uma promessa de rodo- tuação ficou insustentável’” (Idem). via que neste ano completa três Assim como em relação à hidrovia décadas, e que nunca se cumpriu” Teles Pires-Juruena-Tapajós, repre- (Borges, 2013b). O tom dramático sentantes do agronegócio, especial-

Saída pelo norte 61 são da rodovia. Ao se converter em uma alternativa para o escoamento, essa rota ajudaria a desafogar portos estrangulados e impactaria direta- mente no preço do frete que hoje é cobrado do produtor rural. As contas feitas pelo Movimento Pró-Logística, que representa a indústria do Mato Grosso, sinalizam para uma redução de 34% nas despesas com transporte para cada tonelada de soja e milho que saem da roça (Idem).

De acordo com os entusiastas da pavimentação, não apenas o agro- negócio seria contemplado. “A dis- tribuição de mercadorias no país também sai ganhando. A estrada beneficiaria o escoamento da Zona Franca de Manaus, que hoje segue de barco até Belém (PA), para depois enfrentar 2,9 mil km de estrada até São Paulo. Pela BR-163, essa viagem seria encurtada em dois dias” (Idem). Assim, ainda que a pavimentação Imagem 3. mente do norte de Mato Grosso, da BR-163 não fosse “a solução de Desmatamento na previam que a conclusão das obras todos os males da infraestrutura na- gleba Pacoval, próximo a Santarém. Por de asfaltamento da BR-163 possibi- cional”, ela poderia acarretar “uma Mauricio Torres, c. 2007. litaria drástica redução de custo na reviravolta no mapa logístico” do exportação de commodities: país (Idem). “‘Desde o início da soja em Mato Grosso já vislumbrávamos Um estudo, que acaba de ser reali- uma saída pelo Norte, mas o projeto zado pela Confederação Nacional só ganhou viabilidade com o avan- da Indústria (CNI), calcula que po- ço das obras de pavimentação da deriam ser economizados até R$ 1,4 BR-163’, afirma Jaime Binsfeld, pre- bilhão por ano com o transporte de sidente da Fiagril” (Cianport, 2013). cargas da região, a partir da conclu- Esse discurso, porém, passa à

62 Alarcon, Guerrero e Torres margem dos graves impactos acarre- (Ecoplan Engenharia, 2002: 18, grifo tados pela pavimentação da BR-163. nosso). Na esteira do anúncio das obras, o A mobilização levou à elabora- desmatamento e a especulação fun- ção do Plano BR-163 Sustentável, diária na área de influência da ro- que veio a público em junho de dovia cresceram substancialmente. 2006 e foi oficializado por decre- Movimentos sociais locais e entida- to presidencial em janeiro do ano des com atuação na região passaram seguinte. Inserido no Plano Pluria- a discutir os efeitos negativos do nual (PPA) 2004-2007, o plano tinha asfaltamento. Em março de 2004, o objetivo de mitigar os impactos em um amplo encontro com repre- socioambientais da pavimentação sentantes do entorno da BR-163, foi da rodovia. As mais de 200 ações es- aprovada a Carta de Santarém. En- tratégicas elencadas no documento tre outras questões, a carta denun- dão ideia do passivo da região em ciava “a gravidade dos problemas temas como infraestrutura e servi- estruturais, já existentes, associada ços básicos, ordenamento fundiário ao projeto de asfaltamento da BR- e combate à violência, gestão am- 163 numa perspectiva reducionista, biental e monitoramento de áreas como mero corredor de transporte protegidas. Contudo, como sinaliza para commodities agrícolas” (Carta de estudo da International Rivers, “essa Santarém, 2004). iniciativa foi logo abandonada em Note-se que no próprio EIA do as- consequência do crescente reali- faltamento da BR-163 as populações nhamento do governo Lula com as que vivem na região impactada pela elites políticas e econômicas tradi- rodovia são invisibilizadas. De acor- cionais, evidenciado pelo lançamen- do com o documento, “a BR-163 foi to do PAC em fevereiro de 2007” construída com a finalidade de ligar (International Rivers, 2011: 5). Um a região Centro-Oeste ao porto de balanço sobre o plano apresentado Santarém, que teve sua capacida- pelo Inesc em 2012 indica: “Passado de consideravelmente aumentada; seis anos do início da sua imple- e acelerar o desenvolvimento de mentação, apenas 43% das ações uma parte do Cerrado, permitindo a planejadas foram efetivadas e, não ocupação do grande vazio demográfico obstante isso, o desmatamento na entre os Rios Tapajós e Xingu, ensejan- região aumentou” (Verdum, 2012b: do o aproveitamento econômico de 7). Dez anos depois, o plano sequer importantes áreas, próprias para é lembrado e, mesmo ainda restan- agropecuária e ricas em minerais” do alguns trechos por pavimentar,

Saída pelo norte 63 impactos como o desmatamento já União, sendo passíveis, contudo, de superaram as piores expectativas. exploração privada. Os processos referentes à ba- Subsolo loteado: o avanço da cia do Tapajós incidem inclusive mineração no Tapajós em unidades de conservação (UCs) Na porção paraense da bacia do e TIs, ainda que, nas primeiras, a Tapajós, como se indicou, situa-se exploração mineral seja vedada (à uma das mais ricas províncias au- exceção das áreas de proteção am- ríferas do planeta, onde se encon- biental - APAs e florestas nacionais tram também significativas jazidas - Flonas que tenham especificada de bauxita, cobre, diamante e fosfa- a permissibilidade no decreto de to. Desde o século XVIII garimpa-se criação) e, nas segundas, autoriza- na bacia do Teles Pires (Menéndez, da pela Constituição, mas vincula- 1981/1982), mas a exploração da da a regulamentação, por meio de parte paraense da bacia do Tapajós lei específica, o que ainda não ocor- remonta à descoberta de jazidas de reu. Como se vê, grandes minerado- ouro em 1958, na foz do rio das Tro- ras têm se adiantado, “loteando” o pas, afluente da margem direita do subsolo das TIs, ao passo que pres- Tapajós, por Nilson Pinheiro. A par- sionam pela aprovação do projeto tir de meados da década de 2000, de lei (PL) nº1.610/1996, de autoria o preço do minério no mercado do senador Romero Jucá (PMDB), internacional começou a se elevar, que pretende regulamentar o ar- chegando ao ápice em 2011, o que tigo 176 da Constituição, abrindo 8 8. O texto integral do intensificou a exploração mineral essas áreas à exploração mineral . PL e informações sobre na bacia do Tapajós. Embora a ten- Como indicam Souto Maior e Valle, sua tramitação estão dência tenha se invertido a partir “o projeto tem sido alvo de inúme- disponíveis em: (acesso: 5 tra em um patamar muito superior mente as empresas interessadas set. 2015). ao de dez anos atrás. Hoje, a bacia e oferecer poucas garantias aos está recoberta de processos de auto- povos indígenas afetados” (2013: rização de prospecção mineral e de 90). Em março de 2013, conforme concessão para lavra de diferentes dados oficiais, os requerimentos de minérios. Como se sabe, a Consti- pesquisa mineral em TIs no país so- tuição Federal (artigos 20 e 176) de- mavam 4.519, sendo mais da meta- termina que os recursos minerais, de deles voltados à exploração de inclusive os do subsolo, são bens da ouro (Nogueira, 2013). Conforme

64 Alarcon, Guerrero e Torres levantamento recente do Instituto Socioambiental (ISA), as cinco UCs federais com mais processos loca- lizam-se todas na bacia do Tapajós (APA do Tapajós, Flona do Crepori, Flona do Jamanxim, Flona do Ama- nã e Flona de Itaituba II) (Almeida et al., 2016). No Plano Nacional de Mineração 2030, publicado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em 2011, a Amazônia é referida como “a atual fronteira de expansão da mineração no Brasil, o que desperta otimismo e, ao mesmo tempo, preocupações” (Brasil, Ministério de Minas e Ener- gia, Secretaria de Geologia, Minera- ção e Transformação Mineral, 2011: 57). Por sua vez, o reconhecimento de TIs e quilombos, e a criação de UCs e assentamentos da reforma agrária figuram como “fatores res- tritivos” à expansão da atividade mineral no país (Ibid.: 54). Entre os objetivos estratégicos do plano, en- contra-se o estabelecimento de “di- retrizes para mineração em áreas com restrições legais” (Ibid.: 126) O acesso e uso das terras indígenas Imagem 4. Extenso e, entre as “metas e investimentos foi bem definido pela Constituição garimpo no interior da Área de Proteção de 1988, porém necessita de regula- para ampliação do conhecimento Ambiental do Tapajós. geológico”, uma das prioridades é o mentação. Considerando que a de- Por Daniela Alarcon, set. reconhecimento geológico e avalia- manda por bens minerais e produtos de 2014. ção das “potencialidades” das “uni- base mineral crescerá nas próximas duas dades de conservação ambiental e décadas, as ações desse objetivo tor- terras indígenas que cobrem gran- nam urgente a elaboração de uma des extensões do território amazô- agenda de entendimentos, objetivan- nico” (Ibid.: 98). do a harmonização das diferentes

Saída pelo norte 65 competências entre órgãos federais, Além da requisição da Vale, ou- estaduais e municipais responsáveis tros processos incidem sobre a TI pela regulação ambiental, indígena, Munduruku, na porção norte, ten- quilombola, cultural (fósseis) e mi- do como requerentes empresas neral, tendo como base o ordena- como Homestake do Brasil S.A. (que mento territorial no interesse nacional também apresentou três requisi- (Ibid.: 126, grifos nossos). ções no sul da TI e algumas em sua área central), Matapi Exploração Mi- Como se pode observar no mapa neral Ltda. e Mineração Silvana In- 1, os polígonos referentes aos pro- dústria e Comércio Ltda. (ver mapa cessos de autorização mineral e 5). Conforme dados oficiais de 2013, concessão para lavra no interior coligidos pelo ISA, a Mineração Sil- da bacia do Tapajós são tão nume- vana somava, sozinha, 690 proces- rosos que sua sobreposição chega a sos incidentes em TIs de diferentes 9 9. Note-se que o dificultar a visualização . Algumas regiões da Amazônia brasileira, se- Cadastro Mineiro situações são particularmente dig- guida pela Vale, com 210 processos permite que uma mesma área seja alvo nas de nota, como a da TI Munduru- (Rolla & Ricardo, 2013: 47). de várias requisições, ku, tradicionalmente ocupada pelo Além dos processos de autoriza- o que explica a povo de mesmo nome (ver mapas 2 ção mineral e concessão para lavra sobreposição de polígonos. a 5), que teve a maior parte do sub- referentes à TI Munduruku, há ain- solo de sua porção sul requerido da concessões minerais já expedidas para exploração mineral (ouro) pela que fazem fronteira com a TI, tanto Vale S.A. Como se sabe, a empresa ao norte quanto ao sul, e outras que

10. A esse respeito, ver, protagonizou o que está sendo con- se situam relativamente próximas por exemplo, a Carta de siderado o maior desastre ecológico aos limites leste e nordeste da mes- Ouro Preto, documento da história do Brasil: o rompimen- aprovado no V Encontro ma, inclusive no interior da Reser- Internacional das to de uma barragem de rejeitos da va Garimpeira do Tapajós e da APA Atingidas e Atingidos mineradora Samarco (Vale/BHP) do Tapajós. É importante ressaltar pela Vale, realizado em agosto de 2015. em Mariana (Minas Gerais). Além que, na hipótese de que a altera- Disponível em: (acesso: Peru, Moçambique e Nova Caledô- riam à área de atuação direta das 5 set. 2015). nia, entre outros10. mineradoras: antes, impactariam a

66 Alarcon, Guerrero e Torres TI como um todo. Frise-se: uma TI a Belo Sun, mineradora canadense que já sofre as pressões da minera- que pretende desenvolver a maior ção em seu entorno, assim como do planta de mineração de ouro a céu garimpo em seu interior e em áreas aberto do país, ao lado da UHE. Con- adjacentes, e variadas violações no forme notícia veiculada pelo Valor marco da implementação do CHT. em setembro de 2012, a Belo Sun

A situação da TI Munduruku re- participava então de 42 processos Imagem 5. Garimpo pete-se em outras áreas indígenas de licenciamento junto ao DNPM no interior da Área de impactadas pelo CHT. Conforme (Borges, 2012b). “Além da área do Proteção Ambiental do Tapajós. Por Mauricio dados oficiais de 2013 organizados Xingu, a companhia analisa explo- Torres, set. 2014. pelo ISA, 19 processos incidiam so- bre a TI Sai-Cinza, também habi- tada pelos Munduruku; 70,22% da área estava requisitada para mine- ração de ouro e cassiterita (Rolla & Ricardo, 2013: 11). Entre as empre- sas titulares, figuravam a Homesta- ke e a Matapi. Ainda de acordo com a publicação, em 2013, a TI Praia do Índio, também de ocupação tradi- cional munduruku, tinha 98,91% de sua área requerida para mineração (Ibid.: 10). Cumpre notar que esse cenário ocorre também em outras porções da bacia do Tapajós que excedem o recorte deste texto. Por exemplo, em 2013, a TI Kayabi, ha- bitada pelo povo homônimo, tinha 25,51% de sua área coberta por re- quisições para exploração de ouro, de empresas como a Vale, a Homes- take e a Mineração Silvana (Ibid.: 27). Como se pode observar clara- mente no rio Xingu, grandes proje- tos hidrelétricos na Amazônia estão intimamente relacionados à mine- ração – Belo Monte trouxe consigo

Saída pelo norte 67 Processos de concessão mineral sobre o mosaico de áreas protegidas da bacia do Tapajós

68 Alarcon, Guerrero e Torres Processos de concessão mineral requeridos pela Vale na porção paraense da bacia do Tapajós

Saída pelo norte 69 Situação dos processos de concessão mineral na porção paraense da bacia do Tapajós segundo a fase

70 Alarcon, Guerrero e Torres Principais empresas requerentes e/ou titulares nos processos de concessão mineral na porção paraense da bacia do Tapajós

Saída pelo norte 71 Principais minérios de que tratam os processos de concessão mineral requeridos na porção paraense da bacia do Tapajós

72 Alarcon, Guerrero e Torres rações nas proximidades do rio Ta- críticos” para o desenvolvimento pajós, também no Pará, e no Tocan- da indústria mineral no Pará (Ibid.: tins” (Idem). E não se trata da única 129). Processos como a produção de grande mineradora com pretensões alumínio e de placas de cobre, por sobre o Tapajós. Em nota publicada serem “reféns do alto uso da ele- dois meses antes, o Valor comenta- tricidade”, necessitariam de “uma va as movimentações da ALL Ore estratégia que permita a redução Mineração, companhia controlada do custo [da energia], inclusive, por investidores alemães (All Ore, com participação direta nos inves- 2012). Na ocasião, a empresa firma- timentos em geração de energia” ra dois novos contratos para com- (Ibid.: 130). “Isso é de especial inte- pra de áreas de pesquisa de ouro no resse para a indústria do alumínio, Brasil. “Ainda pré-operacional, a ALL considerando-se os investimentos a Ore, por meio dos dois contratos, jusante, tais como cabos para ener- vai poder pesquisar e adquirir áreas gia e fabricação de utensílios, com estimada[s] em 25 mil hectares na re- amplas possibilidades de expansão gião do rio Tapajós, no Pará” (Idem). da cadeia” (Ibid.: 129). Algumas das conexões entre mi- neração, UHEs e portos são expli- Considerações finais citadas no Plano de Mineração do Como assinalam Fearnside e Lau- Estado do Pará 2013-2030. O docu- rance, “uma vez que muito da in- mento sinaliza, por exemplo, que a fraestrutura está justificada pela ex- previsão de construção de UHEs no portação de soja, uma cultura com Tapajós “representa uma demanda benefícios sociais mínimos, é difícil potencial de agregados para cons- imaginar a construção de uma rede trução civil da ordem de 1,6 milhão de infraestrutura volumosa para de m³ de brita e 1,5 milhão de m³ de apoiar a produção de soja sob a ru- areia” (Brasil, Ministério de Minas e brica de ‘desenvolvimento susten- Energia, Secretaria de Geologia, Mi- tável’” (2002: 94). Além disso, desta- neração e Transformação Mineral et cam os autores, os mecanismos de al., 2013: 68). Ainda de acordo com licenciamento ambiental em vigor o plano, o setor seria beneficiado atualmente não contemplam ade- também pela demanda gerada com quadamente os impactos ambien- a construção dos portos em Miriti- tais negativos desses projetos: tuba (Idem). A “questão da energia” figura no Os principais impactos dos projetos documento como “um dos fatores de infraestrutura, que são os danos

Saída pelo norte 73 indiretos causados pelas atividades Brasília, 14 out. Disponível em: econômicas atraídas e facilitadas pe- . Roberto. 2013. “Modelo eficien- Barros, Bettina. 2015a. “Apesar de te”. In: Valor Econômico. São Paulo, atrasos em licenças, OTP prevê 6 jun. escoar grãos pela região na safra Aliado de Blairo Maggi deve assu- 2017/18”. In: Valor Econômico. São mir DNIT. 2007. In: G1. São Paulo, Paulo, 23 mar. 30 mar. ___. 2013a. “Bunge e Amaggi criam All Ore investe em ouro. 2012. In: a Unitapajós”. In: Valor Econômico. Valor Econômico. São Paulo, 3 jul. São Paulo, 30 out. Almeida, Alana; Futada, Silvia; ___. 2013b. “Divergências ameaçam Klein, Tatiane. 2016. Mineração terminais no Pará”. In: Valor Eco- em terras indígenas e unidades nômico. São Paulo, 17 out. de conservação na Amazônia ___. 2013c. “Fechado acordo para as (infográfico). São Paulo, Institu- obras de terminais fluviais no rio to Socioambiental. Disponível Tapajós”. In: Valor Econômico. São em: (acesso: 29 jan. ___. 2015b. “Fluxo de caminhões 2016). preocupa governo do Pará”. In: Antaq participa de audiência pú- Valor Econômico. São Paulo, 11 blica no Senado para debater co- maio. brança de uso do espelho d’água. ___. 2014a. “Licenças custam a sair e 2015. Sítio da Agência Nacional ‘saída Norte’ trava”. In: Valor Eco- de Transportes Aquaviários. nômico. São Paulo, 7 jul.

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Saída pelo norte 77 Pavan, Renato Casali. 2013. “Hidro- Veloso, Tarso. 2012. “Produtores do vias da Amazônia legal pedem Mato Grosso querem eclusas nos socorro”. In: Valor Econômico. São rios Tapajós e Teles Pires”. In: Va- Paulo, 16 dez. lor Econômico. São Paulo, 3 maio. Pires, Fernanda. 2015. “Leilão de Verdum, Ricardo. 2012a. As obras de três áreas no Porto de Santos re- infraestrutura do PAC e os povos indí- cebe cinco propostas”. In: Valor genas na Amazônia brasileira. Nota Econômico. São Paulo, 9 dez. técnica nº9. Brasília, Instituto de Rolla, Alicia; Ricardo, Fany. 2013. Estudos Socioeconômicos. Mineração em terras indígenas na ___. 2012b. “Povos indígenas e comu- Amazônia brasileira 2013. São Pau- nidades tradicionais: riscos e de- lo, Instituto Socioambiental. safios no crescimento econômi- Santos, Nazareno. 2015. “Terras de co”. In: Boletim Orçamento e Política Miritituba são ocupadas ilegal- Ambiental, nº28. Brasília, Institu- mente”. In: O Impacto. Santarém, to de Estudos Socioeconômicos. 26 mar. Veríssimo, Renata. 2009. “Antaq Souto Maior, Ana Paula C.; Valle, fará lobby em Copenhague por Raul S.T. 2013. “Mineração em hidrovias no Brasil”. In: O Estado terras indígenas: impasses e pro- de S. Paulo. São Paulo, 11 dez. blemas”. In: Rolla, Alicia; Ricar- Wiziack, Julio; Brito, Agnaldo. do, Fany. Mineração em terras indí- 2011a. “Obras na Amazônia genas na Amazônia brasileira 2013. atraem 7 ‘trens-bala’”. In: Folha de São Paulo, Instituto Socioam- S.Paulo. São Paulo, 16 out. biental, pp. 89-91. ___. 2011b. “Saída pelo Norte vira Torres, Carmen Lígia. 2013. “Logís- nova opção ao porto de Santos”. tica ameaça o desempenho”. In: In: Folha de S.Paulo. São Paulo, 16 Valor Econômico. São Paulo, 6 jun. out. Torres, Mauricio; Alarcon, Danie- Zaparolli, Domingos. 2013. “Gover- la Fernandes. “Dono é quem des- no quer expandir uso de hidro- mata”: dinâmicas de grilagem e vias”. In: Folha de S.Paulo. São Pau- desmatamento no sudoeste pa- lo, 25 nov. raense. No prelo.

78 Alarcon, Guerrero e Torres Os planos para USINAS hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós Uma combinação que implica a concretização dos piores impactos1 Philip M. Fearnside

1. As pesquisas do á planos para construção caças sobre cachoeiras nos rios. Os autor são financiadas de 43 “grandes” barragens planos para hidrovias, assim, impli- exclusivamente por fontes acadêmicas: (com potência superior a 30 cam completar a cadeia de barra- Conselho Nacional Hmegawatts) na bacia do Tapajós, gens, que inclui a usina hidrelétrica de Desenvolvimento Científico e Tecnológico sendo dez consideradas priorit as (UHE) de Chacorão, que inundaria ári (CNPq) (processos pelo Ministério de Minas e Energia 18.700 hectares da TI Munduruku. nº305880/2007-1, (MME), com conclusão prevista para Nesse quadro, as proteções con- nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, até 2022 (Brasil, Ministério de Mi- tidas na Constituição Federal, na nº575853/2008-5), nas e Energia, Empresa de Pesquisa legislação brasileira e em conven- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado Energética, 2013). Entre outros im- ções internacionais são facilmente do Amazonas (Fapeam) pactos, várias represas inundariam neutralizadas com a aplicação de (processo nº708565) e terras indígenas (TIs) e unidades suspensões de segurança (SS), como Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia de conservação (UCs). Além disso, já demonstrado em uma série de ca- (Inpa) (PRJ13.03). o rio Tapajós, no estado do Pará, e sos no licenciamento das barragens Parte deste texto é traduzido e adaptado seus afluentes no estado de Mato hoje em construção na bacia do Ta- de Fearnside (2014a, no Grosso, os rios Teles Pires e Jurue- pajós. Os múltiplos impactos das prelo). Zachary Hurwitz, da International Rivers, na, também são foco de planos do barragens previstas para a bacia do forneceu arquivos shape Ministério dos Transportes (MTr) Tapajós serão o foco deste capítulo. usados na elaboração para convertê-los em hidrovias para de imagens, preparadas por M.A. dos Santos transporte de soja de Mato Grosso As barragens Jr., que subsidiaram até portos no rio Amazonas. Note- A bacia amazônica, que tem cerca a análise. Agradeço -se que a construção de represas de dois terços no Brasil, é o foco de a P.M.L.A. Graça, D.F. é Alarcon e I.F. Brown necessária para a passagem de bar- uma onda maciça de construção pelos comentários.

79 Imagem 1 Locais mencionados no texto. Barragens: 1 - São Luiz do Tapajós, 2 - Jatobá, 3 - Chacorão, 4 - Teles Pires, 5 - Salto Augusto Baixo, 6 - São Simão Alto, 7 - Colíder, 8 - São Manoel, 9 - Sinop, 10 - Magessi, 11 - Cachoeira do Caí, 12 - Cachoeira dos Patos, 13 - Jardim de Ouro, 14 - Jirau, 15 - Santo Antônio, 16 - Belo Monte. Cidades: 17 - Santarém, 18 - Cuiabá, 19 - Juína, 20 - Sinop, 21 - Sorriso, 22 - Itaituba, 23 - Miritituba, 24 - Barcarena, 25 - Brasília, 26 - Vilhena. Rodovias: 27 - MT-319, 28 - BR-230, 29 - BR-319, 30 - BR-364. Rios: 31 - Amazonas, 32 - Tapajós, 33 - Teles Pires, 34 - Juruena, 35 - Arinos, 36 - Jamanxim, 37 - Madeira, 38 - Xingu, 39 - Solimões. Elaboração: M.A. dos Santos Jr., 2014.

de UHEs, com planos que preveem versidade terrestre e aquática (San- converter quase todos os afluentes tos & Hernandez, 2009; Val et al., do rio Amazonas em cadeias de re- 2010), a emissão de gases de efeito servatórios (e.g. Fearnside, 2014a; estufa (Abril et al., 2005; Fearnside & Finer & Jenkins, 2012; Kahn et al., Pueyo, 2012; Kemenes et al., 2007), 2014; Tundisi et al., 2014). a redução de estoques pesqueiros e As barragens em áreas tropicais, de outros recursos que sustentam como a Amazônia, implicam uma a população local (Barthem et al., vasta gama de impactos ambientais 1991; Fearnside, 2014b), a metilação e sociais, incluindo a perda da biodi- do mercúrio (tornando-o venenoso

80 Fearnside para animais, incluindo os seres hu- Polícia Federal, em novembro de manos) (e.g. Fearnside, 1999; Leino 2012 é um emblema para os povos & Lodenius, 1995) e o deslocamento indígenas impactados por UHEs na forçado de população (Cernea, 1988, bacia do rio Tapajós (e.g. Aranha & 2000; McCully, 2001; Oliver-Smith, Mota, 2014). 2009, 2010; Scudder, 2006; World Os planos para construção de Commission on Dams, 2000). barragens na bacia do Tapajós são Além disso, projetos de constru- enormes, totalizando, como se indi- ção de barragens nos trópicos como cou, entre planejados e em constru- um todo têm seguido um padrão ção, 43 “grandes” aproveitamentos sistemático de violação de direitos hidrelétricos, definidos como aque- humanos – têm ocorrido, inclusive, les com mais de 30 megawatts de assassinatos, vitimando especial- capacidade instalada2 (ver mapa-en- 2. Aproveitamentos mente indígenas. Exemplos recen- carte). Quase todas essas barragens com potência de até 30 megawatts são tes de assassinatos de lideranças in- planejadas têm capacidade muito caracterizados como dígenas que se opõem às barragens superior a 30 megawatts. Três delas pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), de incluem Miguel Pabón, em 2012, no ficariam no rio Tapajós propriamen- acordo com a Resolução contexto da barragem de Hidroso- te dito e quatro, no rio Jamanxim Normativa nº343/2008 gamoso, na Colômbia, e Onésimo (afluente do rio Tapajós no estado da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Rodriguez, em 2013, no contexto da do Pará). Para os afluentes no estado barragem de Barro Blanco, no Pana- de Mato Grosso, há seis barragens má (Ross, 2012; Yan, 2013). Em 2014, planejadas na bacia do rio Teles Pi- no contexto da barragem de Santa res e 30 na bacia do rio Juruena (ver Rita, na Guatemala, duas crianças mapa-encarte). Também há planos indígenas (David e Ageo Chen) fo- para numerosas pequenas centrais ram assassinadas; os pistoleiros não hidrelétricas (PCHs), ou seja, barra- conseguiram localizar o líder que gens com capacidade instalada de eles haviam sido contratados para até 30 megawatts, que são isentas matar. O caso tornou-se emblemáti- do estudo de impacto ambiental e co (e.g. Illescas, 2014). Ironicamente, de relatório de impacto ambiental todas essas barragens têm projetos (EIA/Rima). de crédito de carbono aprovados O segundo Programa de Acele- pelo Mecanismo do Desenvolvi- ração do Crescimento (PAC 2), para mento Limpo e, supostamente, re- 2011-2015, inclui seis barragens nos 3. Ver: (acesso: 25 jul. de Adenilson Krixi Mundurku pela prioridades e os cronogramas das 2014).

Os planos para hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós 81 barragens vêm evoluindo continua- Tais barragens, como se indicou, mente, como indicam os planos acarretam múltiplos impactos – in- decenais de expansão de energia cluindo danos a TIs e inundação em (PDEs) lançados todos os anos pelo UCs (ver mapa-encarte) –, que serão MME, contendo as barragens pla- o foco deste capítulo. Há, também, nejadas para os dez anos seguintes. muitos outros efeitos negativos, Por exemplo, as barragens no rio tais como a inundação de flores- Jamanxim, presentes nos PDEs até tas, a destruição de ecossistemas o plano de 2011-2020, depois sumi- aquáticos, o bloqueio da migração ram, ou seja, foram adiadas para de peixes, a metilação de mercúrio além do horizonte de dez anos, sen- (tornando-o venenoso para animais, do substituídas por outras, como as incluindo os humanos) e a emissão megabarragens de São Simão Alto e de gases de efeito estufa (e.g. Fearn- Salto Augusto Baixo, no rio Juruena, side, 2014a). além de barragens menores, como A sobreposição de reservatórios Castanheira, no rio Arinos, um com áreas protegidas está entre os afluente do Juruena e local de um impactos ambientais das barragens dos portos planejados para embar- planejadas na bacia do rio Tapajós. que de soja (Brasil, Ministério de Mi- De fato, o governo tem realizado a nas e Energia, Empresa de Pesquisa desafetação de partes de diferentes Energética, 2013). Essas mudanças UCs mesmo antes das barragens de prioridade favorecem barragens serem avaliadas e licenciadas. Par- que compõem as hidrovias planeja- te do Parque Nacional (Parna) da das para transporte de soja, e adiam Amazônia já foi desafetada, por as barragens fora dessas rotas. O meio de uma medida provisória (MP MME não constrói eclusas, apenas nº558/2012), posteriormente con- reservando espaço para esse fim ao vertida em lei (nº12.678/2012), expli- lado de cada barragem – as eclusas citamente para abrir caminho aos ficam a cargo do MTr. Os dois minis- reservatórios de São Luiz do Tapajós térios nem sempre concordam em e Jatobá (e.g. Instituto Humanitas relação às prioridades, e a palavra Unisinos, 2012; WWF Brasil, 2012). final fica com a Casa Civil. Das 43 O governo também removeu par- barragens planejadas na bacia do te do Parna do Juruena para abrir Tapajós, dez constam no PDE 2013- caminho para as barragens de São 2022: duas no rio Tapajós, cinco na Simão Alto e Salto Augusto Baixo, bacia do Teles Pires e três na bacia no rio Juruena (WWF Brasil, 2014). do Juruena (ver mapa-encarte). As barragens planejadas inundam

82 Fearnside 15.600 hectares do Parna da Ama- e Barcarena, assim dando acesso ao zônia, 18.515 hectares do Parna do rio Amazonas e ao oceano Atlântico Jamanxim, 7.352 hectares da Flores- (Millikan, 2011). ta Nacional (Flona) Itaituba I, 21.094 Uma barragem adicional, que hectares da Flona Itaituba II, 15.819 não é mencionada no “eixo ener- hectares da Área de Proteção Am- gia” do plano, seria necessária para biental (APA) do Tapajós, ou um to- concluir a hidrovia: a de Chacorão, tal de 78.380 hectares de UCs. no rio Tapajós (Idem). Essa obra No caso da bacia do Tapajós, o também não aparece entre as bar- conjunto de impactos das muitas ragens listadas nos PDEs 2011-2020, barragens e da hidrovia do Tapa- 2012-2021 e 2013-2022 (Brasil, Minis- jós, incluindo seus ramais, é muito tério de Minas e Energia, Empresa maior que os danos que geralmente de Pesquisa Energética, 2011, 2012, entram em discussão quando se de- 2013). Por outro lado, a UHE Chaco- bate qualquer obra específica, como rão figura no estudo de viabilidade a primeira barragem planejada, São (Consórcio Nacional dos Engenhei- Luiz do Tapajós. A hidrovia tem ros Consultores, 2014) e na avalia- papel-chave para garantir a cons- ção ambiental integrada (AAI) das trução de todas as barragens neces- barragens do Tapajós (Grupo de Tra- sárias para tornar a rota navegável, balho Tapajós & Ecology and Envi- incluindo a barragem mais danosa: ronment do Brasil, 2014: 60). Além a UHE Chacorão, como veremos a disso, as eclusas dessa barragem são seguir. indicadas como “prioritárias” no Plano Nacional Hidroviário (PNH) A hidrovia do Tapajós (Ibid.: 22). A UHE Chacorão permi- Barragens inundam cachoeiras que tiria que barcaças atravessassem a dificultam a navegação, e as eclusas cachoeira de Sete Quedas. associadas às barragens permitem Chacorão inundaria 18.700 hec- a passagem de barcaças para trans- tares da TI Munduruku (Millikan, porte de commodities, principalmen- 2011); no caso das UHEs de São Luiz te a soja. O Brasil possui extensos do Tapajós e, sobretudo, Jatobá, os planos para a navegação (ver, por reservatórios alagariam terras do exemplo, Fearnside, 2001) e essas povo Munduruku que não foram barragens permitiriam a abertura ainda oficialmente declaradas como da hidrovia do Tapajós, planeja- TI (Lourenço, 2014; Ortiz, 2013). da para levar soja de Mato Grosso Note-se que o reconhecimento de para portos em Santarém, Santana TIs no Brasil encontra-se essencial-

Os planos para hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós 83 mente paralisado há alguns anos, conseguiu retirar uma menção a ele reportadamente devido a ordens do sumário para tomadores de deci- superiores, que a Fundação Nacio- são do quinto relatório de avaliação nal do Índio (Funai) não nega (ver (AR-5) do Painel Intergovernamen- Conselho Indigenista Missionário, tal sobre Mudança do Clima (IPCC) 2014). Permanece uma pergunta em (Garcia, 2014). O estímulo ao desma- aberto: se essa paralisação visa, en- tamento pela hidrovia do Tapajós tre outros objetivos, facilitar a inun- não está incluído entre os impactos dação de áreas habitadas por povos considerados no licenciamento am- indígenas que ainda não foram re- biental ou de créditos de carbono de conhecidas como TIs, como no caso projetos na bacia do Tapajós, como dos Munduruku ao longo do rio Ta- a UHE Teles Pires (Fearnside, 2013). pajós, mais especificamente daque- Em 25 de abril de 2014, a Bunge, les que vivem na área das represas uma empresa multinacional de soja planejadas de São Luiz do Tapajós e atualmente responsável por 25% da Jatobá. produção do Brasil, abriu um porto A implantação da hidrovia do Ta- para exportação do grão em Bar- pajós incentivará o desmatamento carena, na foz do rio Amazonas. A futuro para cultivo de soja na por- empresa espera que as exportações ção norte de Mato Grosso, a ser ser- do Brasil dobrem nos próximos dez vida pela hidrovia. Incentivará tam- anos, principalmente visando a bém o plantio de soja nas pastagens China (Freitas, 2014). A soja para o que atualmente recobrem áreas que primeiro navio carregado no porto já foram desmatadas nessa parte do de Vila de Conde, em Barcarena, foi estado. Tal conversão provoca des- transportada em carretas de Mato matamento indiretamente em ou- Grosso até o porto de Miritituba, no tros lugares, já que o gado e os pe- baixo rio Tapajós, e de lá seguiu até cuaristas que vendem as suas terras Barcarena em barcaças operadas pe- para “sojeiros” são deslocados de las Navegações Unidas Tapajós Ltda. Mato Grosso para o Pará (Fearnside, (Unitapajós), uma joint venture entre 2001). O aumento do desmatamento as empresas Amaggi e Bunge. No no Pará devido ao avanço da soja em futuro, espera-se que a soja a ser ex- pastagens em Mato Grosso tem sido portada a partir de Barcarena faça demonstrado estatisticamente (Ari- todo o caminho desde Mato Gros- ma et al., 2011). Esse efeito, contudo, so em barcaças através da hidrovia tem sido negado pela diplomacia do Tapajós, iniciando no ramal que brasileira, que, em março de 2014, sobe o rio Teles Pires. Essa hidro-

84 Fearnside via depende da construção de uma Juruena requer seis barragens até série de barragens, cada uma com os dois portos propostos e três dos eclusas para permitir a passagem reservatórios tocam TIs: as UHEs de das barcaças. Escondido e Erikpatsá, nas TIs de Em Mato Grosso, a hidrovia do mesmos nomes, e a UHE Tucumã, Tapajós bifurcará em ramais subin- na TI Japuíra (Consórcio Nacional do os rios Juruena e Teles Pires. O dos Engenheiros Consultores, 2014, primeiro ramal da hidrovia a ser ilustração 3.5/1). Nos afluentes for- construído tornaria o rio Teles Pires madores do rio Juruena, acima da navegável até Sinop e, posterior- parte a ser tornada navegável, são mente, até Sorriso. O ramal do Te- planejadas mais 16 UHEs (Brasil, les Pires requer uma série de cinco Agência Nacional de Energia Elé- barragens, três das quais já estão trica, 2011). Das 16 “grandes” bar- em construção (Colíder, São Manoel ragens nos formadores do Juruena, e Sinop). A barragem de São Manoel quatro atingem a TI Nambikwara está a menos de um quilômetro da (Pocilga, Jacaré, Foz do Formiga Bai- TI Kayabi e já tem provocado confli- xo e Nambiquara), e duas atingem tos com o povo indígena (Instituto a TI Tirecatinga (Salto Utiariti e Foz Socioambiental, 2013). Já a barra- do Sacre) (Consórcio Nacional dos gem Foz do Apiacás está localizada Engenheiros Consultores, 2014). a apenas cinco quilômetros da mes- Dentre as diversas PCHs planeja- ma TI. Note-se que a portaria inter- das, várias atingiriam áreas indíge- ministerial nº419/2011 considera nas (Idem, ilustração 3.5/1; Almeida, que há interferência em qualquer 2010; Fanzeres, 2013). TI situada a até 40 quilômetros de uma UHE. O impedimento à proteção No segundo ramal, que sobe o O tratamento jurídico do licencia- rio Juruena, a soja chegaria até os mento de barragens e, sobretudo, portos via estradas vindas do sul, in- dos impactos sobre povos indíge- cluindo uma nova estrada (MT-319), nas ilustra com clareza as barreiras que conecta Juína, em Mato Grosso, impedindo a aplicação das prote- com Vilhena, em Rondônia orien- ções existentes na Constituição Fe- tal, cortando duas áreas indígenas, deral, na legislação brasileira e em a TI Enawenê Nawê e o Parque In- convenções internacionais, como a dígena do Aripuanã (Macrologística Convenção 169 da Organização In- & Federação das Indústrias da Ama- ternacional de Trabalho (OIT), que zônia Legal, 2011). O ramal do rio garante o direito à consulta aos

Os planos para hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós 85 povos indígenas impactados. Deci- Ainda foi estabelecido que ne- sões desfavoráveis às barragens são nhum agravo poderia ter o efeito revertidas com a SS, que permite a de reverter temporariamente a continuidade das obras, indepen- suspensão: dentemente de qualquer violação ambiental ou social, se a paralisação Quando, a requerimento de pes- da obra implicar grave dano à “eco- soa jurídica de direito público in- nomia pública”. Uma lei promovida teressada ou do Ministério Público na ditadura militar autorizava: e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia suspensão de execução de liminares e públicas, o presidente do tribunal sentenças em ações movidas contra ao qual couber o conhecimento do o poder público e seus agentes, para respectivo recurso suspender, em de- evitar grave lesão à economia pública cisão fundamentada, a execução da (Lei nº4.348, de 26 de junho de 1964, liminar e da sentença, dessa decisão substituída pela Lei nº12.016, de 7 de caberá agravo, sem efeito suspensivo, agosto de 2009, grifos meus). no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão se- A aplicabilidade da SS foi confir- guinte à sua interposição (art. 15 da mada após a criação do Ministério Lei nº12.016, de 7 de agosto de 2009, Público pela Constituição de 1988, grifos meus). clarificando-se que: Evidentemente, qualquer UHE compete ao presidente do tribunal, tem relevância econômica, assim ao qual couber o conhecimento do efetivamente neutralizando todas respectivo recurso, suspender, em as proteções ao meio ambiente e despacho fundamentado, a execução aos povos impactados (e.g. Pruden- da liminar nas ações movidas contra te, 2013, 2014). o Poder Público ou seus agentes, a re- No caso da UHE Teles Pires, o querimento do Ministério Público ou uso da SS foi denunciado perante a da pessoa jurídica de direito público Comissão Interamericana de Direi- interessada, em caso de manifesto tos Humanos (CIDH) da Organiza- interesse público ou de flagrante ile- ção dos Estados Americanos (OEA), gitimidade, e para evitar grave lesão à em 28 de março de 2014 (Instituto ordem, à saúde, à segurança e à eco- Socioambiental, 2014). A UHE Te- nomia públicas (art. 4º da Lei nº8.437, les Pires afeta três povos indíge- de 30 de junho de 1992, grifos meus). nas (Manifesto, 2011). Há impactos

86 Fearnside sobre a alimentação, pelo dano às irregularidades no licenciamento atividades pesqueiras. E também há da obra (Monteiro, 2013a, 2013b). perda de locais sagrados associados Várias tentativas de impedir a obra às cachoeiras a serem inundadas. judicialmente foram derrubadas. Houve uma série de irregularidades Uma suspensão do leilão foi reverti- no licenciamento (Millikan, 2012) da em 13 de dezembro de 2013 (Fun- e sucessivas tentativas judiciais de dação Oswaldo Cruz & Federação parar a obra foram revertidas, geral- dos Órgãos para Assistência Social mente, em apenas dois ou três dias. e Educacional, [2013]). A história A rapidez na reversão de decisões se repetiu em 28 de abril de 2014, fundamentadas em extensa docu- quando um juiz em Cuiabá suspen- mentação de impactos e de viola- deu a obra com base na legislação, ções de leis provavelmente se deve garantindo os direitos dos povos ao fato de que a aplicação de SS não indígenas (Brasil, Poder Judiciário, leva em conta os argumentos sobre Tribunal Regional Federal da Pri- os impactos e a legalidade da obra, meira Região, 2014). Em 21 de julho dependendo apenas da demonstra- de 2014, a ação civil pública estava ção de sua importância econômi- conclusa para sentença. ca. A UHE Teles Pires foi suspensa As barragens de Sinop, Colíder e em 14 de dezembro de 2010 (Brasil, Magessi tiveram a construção blo- Poder Judiciário, Justiça Federal de queada em 2 de dezembro de 2011, Primeira Instância, Seção Judiciária quando um juiz em Sinop emitiu do Pará, 2010), em 27 de março de uma liminar, com base no descum- 2012 (Lessa, 2012; Brasil, Ministério primento de legislação sobre licen- Público Federal no Pará, 2012), em ciamento ambiental (Brasil, Poder 9 de abril de 2012 (Brasil, Poder Ju- Judiciário, Justiça Federal de Mato diciário, Tribunal Regional Fede- Grosso, Subseção Judiciária de Si- ral da Primeira Região, 2012a), em nop, 2011). Entre outras irregulari- 1 de agosto de 2012 (ver Fundação dades, o licenciamento estava sendo Oswaldo Cruz & Federação dos Ór- feito apenas pela Secretaria de Meio gãos para Assistência Social e Edu- Ambiente de Mato Grosso (Sema/ cacional, [2013]) e em 9 de outubro MT), quando barragens como essas de 2013 (Brasil, Poder Judiciário, Tri- precisam de licenciamento em ní- bunal Regional Federal da Primeira vel federal, pelo Instituto Brasileiro Região, [2013]). do Meio Ambiente e dos Recursos Já no caso da UHE São Manoel, Naturais Renováveis (Ibama) (Brasil, há uma cronologia espetacular de Ministério Público Federal no Pará,

Os planos para hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós 87 2011), já que as obras impactam po- bientais e sociais que prevalecerão vos indígenas (Monteiro, 2011). Pou- no futuro. A interdependência de co mais de um mês depois, em 16 complexos de projetos, como barra- de janeiro de 2012, um desembarga- gens e hidrovias, é parte dessa área dor em Brasília mandou arquivar o pouco debatida. Outra é a estrutu- processo, valendo-se da SS (Brasil, ra jurídica subjacente, que, no caso Poder Judiciário, Tribunal Regional do Brasil, representa uma “rede de Federal da Primeira Região, 2012b). segurança” para os proponentes de A existência de leis autorizando obras, fornecendo uma garantia fi- “suspensões de segurança” não é nal contra limitações ambientais e bem conhecida, nem pela comuni- sociais. Muitos daqueles no campo dade acadêmica, nem pelo público ambiental que têm trabalhado ar- em geral. A discussão sobre a neces- duamente para construir o sistema sidade de mudar essas leis, portan- de licenciamento e avaliação de im- to, é quase inexistente. A mesma pacto veem o ordenamento jurídico falta de conhecimento se aplica como um fato dado – parte da pai- aos projetos de alto impacto, como sagem institucional que deve sim- a UHE Chacorão, que é omitida de plesmente ser aceita. Felizmente, as praticamente toda a discussão pú- leis nacionais não são leis naturais e blica sobre os desenvolvimentos na estão sujeitas a alterações por deci- bacia do Tapajós, apesar de ser uma sões sociais. parte fundamental do plano global. Omitir a discussão sobre os compo- Considerações finais nentes mais controversos de planos Os planos para barragens e hidro- hidrelétricos representa um padrão vias na bacia do Tapajós implicam geral, repetindo a história recente grandes impactos, individualmente de licenciamento das barragens de e em conjunto, incluindo danos a Santo Antônio e Jirau, no rio Madei- TIs e UCs. A combinação de propos- ra (Fearnside, no prelo) e Belo Mon- tas para barragens e hidrovias cria te, no rio Xingu (Fearnside, 2006, ou potencializa impactos que pode- 2012). riam, de outra forma, não se con- Embora as discussões invariavel- cretizar. Um exemplo de destaque é mente se concentrem sobre os prós a prioridade conferida à construção e contras de cada projeto proposto, da UHE Chacorão, que inundará par- a maneira pela qual as decisões são te da TI Munduruku, algo que talvez tomadas determina de modo muito não ocorresse caso a barragem não mais fundamental as condições am- fizesse parte da rota da hidrovia do

88 Fearnside Tapajós. O sistema de licenciamen- pdf&nome=Juliana%20de%20 to ambiental tem sido incapaz de Almeida_Alta%20Tens%E3o%20 evitar a aprovação de projetos com na%20Floresta%20Os%20Enawe- grandes impactos e o sistema jurídi- ne%20Nawe%20e%20o%20Com- co tem sido incapaz de fazer valer plexo%20Hidrel%E9trico%20Ju- as proteções legais, devido à exis- ruena.pdf> (acesso: 25 jul. 2014). tência de leis autorizando a SS para Aranha, Ana; Mota, Jessica. 2014. permitir a continuação de qualquer “A batalha pela fronteira Mun- obra com importância econômica. duruku”. In: A Pública – Agência de reportagem e jornalismo investigati- [artigo concluído em outubro de 2014] vo. São Paulo, 11 dez. Disponível em: (acesso: 10 jan. 2015). Richard, Sandrine; Delmas, Arima, Eugenio Y.; Richards, Peter; Robert; Galy-Lacaux, Corin- Walker, Robert; Caldas, Marcel- ne; Gosse, Philippe; Tremblay, lus M. 2011. “Statistical confirma- Alain; Varfalvy, Louis; Santos, tion of indirect land use change Marco Aurelio dos; Matvienko, in the Brazilian Amazon”. In: Bohdan. 2005. “Carbon dioxide Environmental Research Letters, v.6, and methane emissions and the nº2. carbon budget of a 10-years old Barthem, Ronaldo; Ribeiro, Mau- tropical reservoir (Petit-Saut, ro César L.B.; Petrere Junior, French Guiana)”. In: Global Bio- Miguel. 1991. “Life strategies of geochemical Cycles, v.19, nº4. Wa- some long-distance migratory shington, D.C., American Geo- catfish in relation to hydroelec- physical Union. tric dams in the Amazon Basin” Almeida, Juliana de. 2010. Alta ten- In: Biological Conservation, v. 55, são na floresta: os Enawene e o nº3. Washington, D.C., Society Complexo Hidrelétrico Juruena. for Conservation Biology, pp. Trabalho de conclusão curso (Es- 339-345. pecialização lato sensu em indi- Brasil. Agência Nacional de Ener- genismo). Cuiabá, Universidade gia Elétrica. 2011. Processo Positivo/Operação Amazônia Na- nº48500.001701/2006-11. Assunto: tiva. Disponível em:

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Os planos para hidrelétricas e hidrovias na bacia do Tapajós 97

Tapajós Do rio à luz Wilson Cabral de Sousa Júnior

bacia do Tapajós é, no que diz A ocupação humana na bacia respeito a paisagens, ecossis- tem duas vertentes: os índios, de et- temas e ocupação, uma re- nias diversas, com predominância Agião singular. Sobre embasamento dos Munduruku, ao longo de toda cristalino, que confere transparên- a calha do rio; e os portugueses, cia às águas, a bacia é uma das mais os quais, desde meados do século conservadas da região amazônica, XVII, estabeleceram ali suas posses, ainda que sofra pressões antrópicas tendo adentrado pela foz do Tapa- de sul a norte, em boa parte orien- jós, no rio Amazonas. No entanto, a tadas para exploração de madeira e densidade da floresta e a dinâmica extração mineral. A ocorrência de do rio – que dificulta a navegação ambientes transicionais, bem como para embarcações maiores – foram o próprio curso e dinâmica do rio, fatores que contribuíram para uma estabelecem uma extensa varieda- baixa ocupação na bacia, situação de de hábitats, os quais suscitam, que perdurou até a descoberta de promovem e amparam uma grande ouro em maiores concentrações e diversidade biológica. A escolha de de outros minerais de interesse, já áreas extensas na bacia para fins de no início do século XX. A explora- conservação da biodiversidade, seja ção mineral marcou a região do bai- em unidades de proteção integral, xo Tapajós e, sobreposta a um pas- seja em áreas para modelos explo- sado de exploração da borracha e às ratórios sustentáveis, é, portanto, pressões mais recentes da explora- fartamente justificada. ção de madeira e agropecuária, dão

99 conformação à atual organização infraestrutura. Em outras palavras, sociopolítica regional. um determinado empreendimento Nesse contexto, caracterizado – como uma UHE – não é ambien- ainda por uma baixa capacidade talmente sustentável se a justifica- regulatória do Estado, projeta-se a tiva para sua implantação não se implantação de um complexo hi- ampara em uma base crível de sus- drelétrico de grandes proporções, tentabilidade. No caso brasileiro, composto de um arranjo de cin- embora em termos médios nosso co usinas hidrelétricas (UHEs) de consumo de eletricidade per capita médio e grande porte, o comple- seja baixo, quando comparado a ou- xo hidrelétrico do Tapajós (CHT). tros países mais desenvolvidos, ain- Anunciado como uma solução am- da há grande ineficiência no uso da bientalmente sustentável, anco- energia. Nesse sentido, cabe ques- rada em um conceito abstrato de tionar: quanto poderíamos avançar “usinas-plataforma”, o projeto pode na eficiência energética? Quanto o suscitar – e consolidar – um deter- aumento da eficiência refletiria no minado modelo de exploração da provimento da demanda, de forma a região, que incorpora outras frentes permitir uma amortização do inves- de infraestrutura (estradas, hidro- timento em novas fontes? E mais: via, portos, mineração) e está longe assumindo alcançarmos um pata- da sustentabilidade. mar razoável de eficiência energé- Este texto discute a atual neces- tica e havendo ainda demanda por sidade de projetos de geração hidre- novas fontes, quais outras fontes létrica na Amazônia, em especial poderiam ser consideradas? Quais aqueles associados à bacia do Tapa- estariam envolvidas em um contex- jós, e apresenta elementos de análi- to de maior sustentabilidade? se do CHT e seu contexto, com vis- De maneira geral, é lícito estabe- tas a subsidiar uma ampliação das lecer que o crescimento econômi- discussões em torno do projeto e da co de um país provoque também o política energética nacional. crescimento da demanda por ener- gia, como ocorre no Brasil. Diante Demanda de energia: a âncora da dessa assertiva, a projeção da de- sustentabilidade manda energética anual é baseada Um modelo de exploração que se in- no crescimento do Produto Interno titula “sustentável” não pode desco- Bruto (PIB) nacional. Essa relação nhecer a origem das demandas por tem sido utilizada para direcionar novas fontes de energia e frentes de as políticas públicas de instalação

100 Sousa Júnior e ampliação da capacidade gera- para valores menores que 1, como dora de energia elétrica no país e apontado no Plano Decenal de Ex- justificar os projetos de instalação pansão de Energia (PDE) 2020 (Bra- de grandes UHEs e/ou complexos sil, Ministério de Minas e Energia, hidrelétricos na região amazônica, Empresa de Pesquisa Energética, alvo da fronteira energética atual. 2011), acabam menosprezadas nas No caso brasileiro, o aumento da projeções de expansão do consumo. renda e da disponibilidade de ener- Sousa Júnior et al. (2014) apresentam gia para novos consumidores, como uma compilação de estudos de pro- resultados de políticas públicas in- jeção de demanda de energia elétri- clusivas, são as variáveis mais utili- ca, cuja análise aponta para um su- zadas para explicar essa ampliação perdimensionamento da demanda da demanda de energia elétrica. nos casos avaliados, com destaque No entanto, conforme indicam para a projeção utilizada no plane- Sousa Júnior et al. (2014), essa rela- jamento oficial. Os números apon- ção entre crescimento econômico e taram diferença entre o consumo ampliação do consumo de energia estimado e o real da ordem de 10% elétrica é questionável sob vários para o setor industrial, 20% para o aspectos. De antemão, embora não setor comercial e até 30% para o se- haja grande dissenso em relação tor residencial. à associação entre uma variável e Por outro lado, do ponto de vis- outra, há que se compreender me- ta tecnológico, Totten et al. (2010) lhor a relação numérica assumida. apontam que, à medida que um Por outro lado, questiona-se a op- país alcança melhores indicadores ção estratégica de desenvolvimento de desenvolvimento, tende-se a econômico, lastreada em um pacote reduzir a elasticidade-renda da de- de produtos energo-intensivos e de manda de energia elétrica, e o in- baixo valor agregado (é o caso das vestimento em usos mais eficientes commodities minerais e agrícolas), o amplia as possibilidades de redução que faz com que essa relação atinja do consumo de energia elétrica por proporções próximas à unidade, ou unidade de PIB. Estudos da organi- seja, um crescimento de 1% no PIB zação World Wildlife Fund (2006) gera uma demanda de expansão de já apontavam a possibilidade de re- 1% na oferta de eletricidade. No pla- dução de cerca de 38% no consumo nejamento do setor elétrico brasi- de energia elétrica no país, a partir leiro, previsões de redução da razão de investimentos em uso eficiente. de elasticidade-renda da demanda Os trabalhos de Sousa Júnior et al.

Tapajós: do rio à luz 101 (2014) estendem-se na direção da benefícios e dos fatores distributi- proposição de uma matriz elétrica vos – quem paga a conta e quem se mais sustentável. Como postulado beneficia –, podendo subsidiar a to- pelos autores, o investimento em mada de decisão em uma base mais energia solar fotovoltaica e eólica, a justa para a sociedade. partir de sistemas distribuídos, po- No entanto, essas análises, quan- deria ser o lastro de uma mudança do realizadas pelo poder público significativa para uma matriz elétri- no Brasil, têm sido enviesadas por ca de menor impacto geral, o que diversos interesses, muitos deles exigiria também redução do consu- associados a grupos privados que mo agregado de energia elétrica. apoiam partidos e políticos de Tais considerações indicam que acordo com conveniências pouco uma revisão sistemática da metodo- transparentes. No caso específico logia utilizada para projetar o com- de obras na região amazônica, as portamento da demanda por ener- dificuldades em se realizar estima- gia elétrica poderia apontar para tivas orçamentárias – dada a carên- uma redução na necessidade de cia de mão de obra e infraestrutura expansão da oferta de eletricidade de apoio – tornam o exercício ain- e, consequentemente, poder-se-ia da mais complicado. Estudos que reavaliar os investimentos em gran- avaliaram a viabilidade de arranjos des projetos de geração de energia construtivos, seus riscos e externali- na Amazônia. dades para o complexo hidrelétrico de Belo Monte (Sousa Júnior et al., Analisando o projeto do CHT 2006; Sousa Júnior & Reid, 2010) A viabilidade técnica e econômica apontaram erros de previsão orça- de grandes projetos de infraestru- mentária e projeção de cenários, tura é um dos elementos que po- que conduziram a resultados de deriam contribuir para um melhor viabilidade completamente equivo- planejamento da expansão do setor. cados. A implantação do complexo, Uma boa análise de viabilidade, em a partir de uma decisão governa- bases críveis e com a incorporação mental baseada em um estudo de das chamadas externalidades, da- viabilidade falho, demonstrou essas ria ao gestor público, especialmen- incorreções à medida que as obras te quando se discute a geração de avançaram: as estimativas iniciais eletricidade, uma referência quali- de custos de implantação foram su- ficada acerca do melhor arranjo de peradas em cerca de 300%. E atual- investimentos à luz de custos reais, mente se discute a dilatação do pra-

102 Sousa Júnior zo de construção, um dos fatores de Ainda avaliando custos e benefí- risco analisados pelos autores, que cios do CHT, porém sob a perspecti- poderia conduzir à inviabilidade do va da ecologia de sistemas, Sinisgalli empreendimento. e Jericó-Daminello (2014) desenvol- Em estudo mais recente, sobre o veram uma avaliação de custos e be- CHT, Sousa Júnior et al. (2014), em nefícios “emergéticos”, para a qual análise semelhante, constataram foram utilizadas funções de “eMer- problemas da mesma ordem. Se- gia”. Em síntese, esse método busca gundo os autores, o empreendimen- avaliar a história energética dos ele- to seria inviável sob os dois cenários mentos que compõem o empreen- analisados (ver tabela 1). dimento, uniformizando as unida- A partir das premissas analisa- des de matéria e energia sob uma das, no cenário mais otimista para a mesma racionalidade, de forma a ótica do empreendedor (cenário 1), o possibilitar sua comparação e inte- prejuízo seria da ordem de US$ 1,6 gração. Os autores também aponta- bilhão. Em um cenário mais realista ram a inviabilidade (custos em ter- (cenário 2), em razão da subestimativa mos “emergéticos” superiores aos de custos de implantação e de prazos benefícios da geração de energia de construção, o prejuízo chegaria a elétrica) de todas as cinco UHEs pre- 1. Conforme ressalva cerca de US$ 10 bilhões. Os autores vistas, analisadas caso a caso. dos próprios autores, também trouxeram à tona alguns Do ponto de vista da gestão dos muitos serviços custos socioambientais, que seriam recursos públicos, a baixa qualidade ecossistêmicos e valores sociais foram externalidades do projeto, os quais dos estudos de viabilidade pode ser desconsiderados na atingiriam, em ambos os cenários, desastrosa, conquanto possibilita análise, em função da ausência de dados e/ cerca de US$ 400 milhões, com pre- investimentos ineficientes, quando ou metodologias de domínio dos valores associados às não ineficazes, além de se incorrer valoração consolidadas, emissões de carbono e aos custos de em uma série de externalidades o que torna o custo socioambiental oportunidade do uso da terra1. (custos sociais) que pressionarão subestimado.

Tabela 1. Resultados da análise de viabilidade do complexo hidrelétrico do Tapajós

Parâmetros Cenário 1 Cenário 2 Valor presente líquido - VPL (US$ milhões) -1.586 -9.882 Taxa interna de retorno - TIR (%) 9,17% 5,15% Custos socioambientais (US$ milhões) 391

Fonte: Sousa Júnior & Ribeiro (2014: 112).

Tapajós: do rio à luz 103 os recursos públicos em outra pon- sustentáveis”, conforme o colorido ta, transferindo para a sociedade o encarte amplamente divulgado na ônus agregado desses impactos. região da bacia do rio Tapajós sob o título “Hidrelétricas do Bem”. No UHEs e outras frentes de entanto, pouco se conhece em seus infraestrutura: efeitos cumulativos detalhes, o que se pretende concei- e sinérgicos tuar como Usina-Plataforma. [...] A O CHT compõe-se de um arranjo ausência de maiores detalhes com inicial com cinco UHEs de médio respeito às informações sobre custos e grande porte distribuídas no alto e logística acaba por transformar o Tapajós. Por se tratar de uma área conceito das usinas-plataforma em propensa à conservação da biodiver- mera peça de propaganda, acarre- sidade e que, justamente por essa tando completo descrédito em rela- razão, foi objeto da implantação de ção às suas intenções. unidades de conservação (UCs) com finalidades complementares entre A região do baixo Tapajós é tam- si, a construção de UHEs nessa re- bém objeto de outros investimentos gião é potencialmente impactante. em infraestrutura: a pavimentação Nessa perspectiva, o contexto no da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santa- qual se inseririam cinco UHEs en- rém), a construção de portos e es- volve uma enorme expectativa em truturas de transbordo em Itaituba, torno dos impactos socioambien- e a expansão das atividades de ex- tais. A possibilidade de minimiza- ploração mineral. Tal fato exigiria ção desse potencial impacto a par- uma análise conjunta dos fatores de tir da racionalidade das chamadas pressão antrópica para fins de ava- usinas-plataforma é questionável. liação ambiental e decisão sobre os Como indicam Ribeiro et al. (2014: investimentos. No entanto, o licen- 97-98), ciamento ambiental tem sido uti- lizado como ferramenta estanque, Anunciadas como a grande revolu- de avaliação projeto a projeto, com ção na construção de usinas hidre- pouca ou nenhuma consideração létricas na Amazônia, as “usinas- pelo contexto regional e de múlti- -plataforma” foram apresentadas plos empreendimentos. Tendo em como um novo conceito de constru- vista essa lacuna, Inouye et al. (2014) ção e operação de hidrelétricas a ser apresentaram resultados de uma adotado pela Eletrobras para tornar análise de dinâmica espacial com- esses empreendimentos “ainda mais preensiva, envolvendo as frentes

104 Sousa Júnior de infraestrutura para a região. O estudo considerou cenário no qual se projeta sobre a região a mesma pressão de desmatamento verifica- da nos arredores do sítio de obras do complexo hidrelétrico de Belo Monte. O resultado visual é apre- sentado na imagem 1. Segundo os autores, essas pres- sões poderiam dobrar a área des- matada na região até o ano de 2030, considerando a projeção da cena de Belo Monte. No mesmo trabalho, os autores apresentam informações sobre possíveis pressões por desma- tamento nas UCs e terras indígenas (TIs) localizadas na região (tabela 2). Análise semelhante foi desenvol- vida por Barreto et al. (2014), consi- derando também a porção mais ao sul da bacia do Tapajós. O estudo projetou o impacto de desmata- mento sobre a região a partir da construção de 12 UHEs, ampliando a área considerada nos estudos de Inouye et al. (2014). Os resultados apresentados pela equipe indicam UCs, além de gerar pressões sobre Imagem 1. Projeção um poder de atração de cerca de TIs e povos indígenas, afetando seus de desmatamento para 2030 na região 63 mil imigrantes permanentes até modos de vida, crenças, instituições de implantação do 2032, gerando uma pressão por des- e cosmologia. Tal pressão pode ain- complexo hidrelétrico do Tapajós. Fonte: matamento da ordem de 950.900 da colocar em risco um importan- Inouye et al. (2014: 139). hectares no decorrer dos próximos tíssimo patrimônio cultural, histó- 20 anos. rico e arqueológico, cujos valores A construção de projetos hidre- deveriam ser considerados no âmbi- létricos e outras obras de infraes- to da tomada de decisão sobre tais trutura na região do Tapajós pode empreendimentos. trazer impactos significativos sobre

Tapajós: do rio à luz 105 Tabela 2. Impacto potencial sobre unidades de conservação (UCs) e terras indígenas - TIs (projeção de desmatamento em 2030)

Área afetada Classificação da Área afetada Área (quilômetros área (% da UC ou TI) quadrados)

Área de Proteção Ambiental (APA) Desafetada 92,85 0,46 do Tapajós

Floresta Nacional (Flona) Itaituba I Desafetada 0,46 0,02

Flona de Itaituba II Desafetada 49,64 1,25

Flona do Crepori Desafetada 4,80 0,06

Parque Nacional (Parna) da Amazônia Desafetada 54,72 0,51

Flona Altamira Não desafetada 84,92 1,17

Flona do Amanã Não desafetada 15,55 0,29

Flona do Jamaxim Não desafetada 3.145,29 24,17

Flona do Tapajós Não desafetada 865,89 15,76

Flona do Trairão Não desafetada 107,30 4,17

Parna do Jamanxim Não desafetada 901,99 10,49

Parna do Juruena Não desafetada 15,22 0,08

Parna do Rio Novo Não desafetada 384,92 7,16

Reserva Extrativista (Resex) Não desafetada 0,94 0,01 Riozinho do Anfrisio

Resex Tapajós-Arapiuns Não desafetada 1.070,80 15,88

Kayabi TI 11,87 0,10

Munduruku TI 3.796,10 15,92

Sai-Cinza TI 194,69 15,59

Total 6.807,17

Fonte: adaptado de Inouye et al. (2014: 145).

Considerações finais tos tanto no aumento da eficiência Como demonstrado no decorrer da demanda, quanto na expansão do texto, há um amplo espectro de da oferta sobre modais como a ener- ações que poderiam tornar mais gia eólica e solar. Essas duas moda- sustentável nosso uso de eletricida- lidades, associadas às possibilidades de, com a realização de investimen- de redes inteligentes de energia, po-

106 Sousa Júnior deriam contribuir para um avanço setor público, na bacia do Tapajós. da matriz elétrica do país rumo à Esse debate deveria incorporar a sustentabilidade. busca por eficiência energética, a Tais ações e investimentos pode- geração de energia com menores riam contribuir para uma reflexão impactos socioambientais e o con- sobre os grandes empreendimen- sumo sustentável, como critério tos hidrelétricos projetados para a para decisões de uma sociedade que região amazônica e, em especial, a valoriza a sustentabilidade em seu cena da bacia do Tapajós. As infor- modus vivendi. mações e a discussão apresentadas neste texto lançam um questiona- [artigo concluído em julho de 2014] mento sobre esses projetos e seu contexto, sob diversos pontos de Referências bibliográficas vista. Barreto, Paulo; Brandão Júnior, Em resumo, o CHT, assim como Amintas; Silva, Sara B.; Souza os outros grandes empreendimen- Júnior, Carlos. 2014. “O risco de tos hidrelétricos na Amazônia, ten- desmatamento associado a doze de a aumentar as pressões sobre os hidrelétricas na Amazônia”. In: ambientes conservados da região. Sousa Júnior, Wilson C. (org.). Se somados os efeitos sinérgicos Tapajós: hidrelétricas, infraestru- com outros empreendimentos pro- tura e caos: elementos para a go- jetados para a região (mineração, vernança da sustentabilidade em estradas, portos, dentre outros), as uma região singular. São José dos perdas são multiplicadas e podem Campos: ITA/CTA, pp. 147-173. vir a se transformar em passivos Brasil. Ministério de Minas e Ener- cujos ônus recairiam sobre a socie- gia. Empresa de Pesquisa Energé- dade de modo geral. Há inclusive tica. 2011. Plano Decenal de Expan- o risco de dupla penalidade: a do são de Energia 2020. 2 v. Brasília. investimento ineficiente, quando Disponível em: que se transformam em passivos (acesso: 21 maio 2014). socioambientais. Inouye, Carlos E.N.; Sousa Júnior, É oportuno ressaltar, portanto, Wilson C.; Pavani, Bruna F. 2014. a importância de se estabelecer um “Energia, estradas, mineração: debate aberto e informado sobre a efeitos sinérgicos de projetos de conveniência dos investimentos, infraestrutura na região do mé- principalmente os de origem do dio e baixo Tapajós”. In: Souza

Tapajós: do rio à luz 107 Júnior, Wilson C. (org). Tapajós: Amazon hydropower develop- hidrelétricas, infraestrutura e ment: risk scenarios and envi- caos: elementos para a gover- ronmental issues around the nança da sustentabilidade em Belo Monte dam”. In: Water Alter- uma região singular. São José dos natives, v.3, nº2, pp. 249-268. Campos, ITA/CTA, pp. 133-146. Sousa Júnior, Wilson C.; Reid, Ribeiro, Thiago C.L.; Bermann, John; Leitão, Neidja C.S. 2006. Célio; Sousa Júnior, Wilson C. Custos e benefícios do Complexo Hi- 2014. “Complexo Hidrelétrico do drelétrico de Belo Monte: uma abor- Tapajós: dados, contexto e aná- dagem econômico-ambiental. lise”. In: Sousa Júnior, Wilson Série técnica, nº4. Brasília, Con- C. (org). Tapajós: hidrelétricas, servation Strategy Fund. infraestrutura e caos: elementos Sousa Júnior, Wilson C.; Ribeiro, para a governança da sustentabi- Thiago C. 2014. “Análise econô- lidade em uma região singular. mico-ambiental do Complexo São José dos Campos, ITA/CTA, Hidrelétrico do Tapajós”. In: Sou- pp. 87-98. sa Júnior, Wilson C. (org). Tapa- Sinisgalli, Paulo A.A.; Jericó-Dami- jós: hidrelétricas, infraestrutura nello, Camila. 2014. “Análise de e caos: elementos para a gover- custos e benefícios do Comple- nança da sustentabilidade em xo Hidrelétrico do Tapajós sob uma região singular. São José dos a ótica ecológica e econômica Campos, ITA/CTA, pp. 101-117. da eMergia”. In: Sousa Júnior, Sousa Júnior, Wilson C.; Zanetti, Wilson C. (org). Tapajós: hidre- Vitor B.; Vieira, Bruna C.; San- létricas, infraestrutura e caos: tos, Lídya B.; Tschöke, Gabriele elementos para a governança da V.; Pacher, Gabriel V.; Ramos, sustentabilidade em uma região Carolina L.O.; Pimentel, Marcio singular. São José dos Campos, A.S. 2014. “Desafios e proposi- ITA/CTA, pp. 119-130. ções para a sustentabilidade da Sousa Júnior, Wilson C. (org.). 2014. matriz elétrica brasileira”. In: Tapajós: hidrelétricas, infraestru- Sousa Júnior, Wilson C. (org). tura e caos: elementos para a go- Tapajós: hidrelétricas, infraes- vernança da sustentabilidade em trutura e caos: elementos para uma região singular. São José dos a governança da sustentabilida- Campos, ITA/CTA. de em uma região singular. São Sousa Júnior, Wilson C.; Reid, José dos Campos, ITA/CTA, pp. John. 2010. “Uncertainties in 63-85.

108 Sousa Júnior Totten, Michael P.; Killeen, Timo- World Wildlife Fund. 2006. Agen- thy J.; Farrell, Tracy A. 2010. da elétrica sustentável 2020: estudo “Non-dam alternatives for de- de cenários para um setor elétri- livering water services at least co brasileiro eficiente, seguro e cost and risk”. In: Water Alternati- competitivo. Série técnica, v.12. ves, v.3, nº2, pp. 207-230. Brasília, WWF Brasil.

Tapajós: do rio à luz 109

Estudos de inventário: Características de uma fase inicial e decisiva do planejamento de hidrelétricas na bacia do Tapajós Brent Millikan

s decisões políticas sobre questões de transparência e parti- quais barragens serão cons- cipação da sociedade civil, compa- truídas no Brasil – tanto usi- tibilidade com a legislação sobre o Anas hidrelétricas (UHEs) de maior meio ambiente e direitos humanos, porte como pequenas centrais hi- e articulação com outras políticas drelétricas (PCHs) – têm se basea- territoriais. do, em grande medida, em estudos de inventário de bacia hidrográfica Estudos de inventário: arcabouço realizados pelo setor elétrico do legal e normativo governo federal em conjunto com Os fundamentos legais para a rea- empresas privadas. Assim, com- lização de estudos de inventário de preender como esses estudos são bacia hidrográfica têm como base, realizados e aprovados é fundamen- atualmente, a Lei nº9.074, de 7 de tal para entender como tem ocorri- julho de 1995, que estabelece “nor- do o planejamento de barragens na mas para outorga e prorrogações bacia do Tapajós. das concessões e permissões de Este artigo analisa algumas ca- serviços públicos e dá outras provi- racterísticas-chave da realização de dências”. O parágrafo 2º do artigo 5º estudos de inventário e avaliação dessa lei determina que “nenhum ambiental integrada (AAI) na bacia aproveitamento hidrelétrico pode- hidrográfica do Tapajós, com en- rá ser licitado sem a definição do foque na identificação de critérios ‘aproveitamento ótimo’ pelo poder adotados para a tomada de decisões, concedente”, ao passo que o pará-

111 grafo 3º considera “aproveitamen- Ao longo das últimas décadas, a 1. Segundo a Eletrobras, to ótimo” como “todo potencial maioria dos estudos de inventário o manual de 1997 foi definido em sua concepção global de bacia hidrográfica foi elaborada o resultado de uma “criteriosa revisão pelo melhor eixo do barramento, pela Eletrobras e suas filiadas, em apoiada no Manual de arranjo físico geral, níveis d’água conjunto com grandes empreiteiras, Inventário Hidrelétrico de Bacias Hidrográficas, operativos, reservatório e potência, a exemplo da Camargo Corrêa S.A., de 1984[,] e no Plano integrante da alternativa escolhida e empresas de consultoria, como Diretor de Meio para divisão de quedas de uma ba- a CNEC2. A Resolução nº393/1998, Ambiente do Setor Elétrico Brasileiro, cia hidrográfica”. em seu artigo 3º, determinou que de 1991”. Ver (acesso: 5 jun. inventário hidroelétrico de bacias hi- o necessário registro, segundo os 2015). drográficas, com orientações téc- procedimentos estabelecidos nes- 2. Criada em 1959 nicas para a realização de estudos ta Resolução”3. A partir da criação por professores da voltados para o “aproveitamento da Empresa de Pesquisa Energética Escola Politécnica da Universidade de ótimo” dos rios, ou seja, para ma- (EPE), em 2004, vinculada ao Mi- São Paulo (USP), a ximizar o potencial de geração de nistério de Minas e Energia (MME), empresa de consultoria energia elétrica1. No ano seguinte, essa também passou a participar da denominada Consórcio Nacional a recém-criada Agência Nacional elaboração de estudos de inventário de Engenheiros de Energia Elétrica (Aneel) aprovou hidrelétrico4. Consultores (CNEC) foi incorporada, dez anos a Resolução nº393, de 4 de dezem- Apesar dos avanços significati- depois, pelo grupo bro de 1998, que estabeleceu “pro- vos na legislação ambiental ocor- Camargo Corrêa. Em 2010, foi adquirida cedimentos gerais para registro e ridos durante as décadas de 1980 e pelo grupo australiano aprovação dos estudos de inventá- 1990 – como a Lei nº6.938/1981 (Po- WorleyParsons; rio hidrelétrico de bacias hidrográ- lítica Nacional de Meio Ambiente), atualmente, chama-se CNEC WorleyParsons ficas”. No artigo 1º dessa resolução, a Resolução nº01/1986 do Conselho Engenharia S.A. a Aneel conceituou como inventá- Nacional do Meio Ambiente (Co-

3. A Resolução rio hidrelétrico “a etapa de estudos nama), os artigos 23, 24 e 225 da nº393/1998 determinou de engenharia em que se define o Constituição Federal de 1988, e a ainda que, “caso os aproveitamentos potencial hidrelétrico de uma ba- Lei nº9.433/1997 (Política Nacional identificados nesses cia hidrográfica, mediante o estudo de Recursos Hídricos) –, isso parece estudos vierem a de divisão de quedas e a definição ter repercutido pouco nas políticas integrar programa de licitações de concessões, prévia do aproveitamento ótimo de do setor elétrico. Uma exceção foi a será assegurado ao que tratam os parágrafos 2º e 3º do Resolução nº393/1998 da Aneel, que autor dos estudos o ressarcimento dos art. 5º da Lei nº9.074, de 7 de julho determinou, em seu artigo 13, que respectivos de 1995”.

112 Millikan os titulares de registro de estudos governo federal e a proposta não custos incorridos e de inventário deverão formalizar avançou. No caso da política energé- reconhecidos pela Aneel, pelo vencedor da consulta aos órgãos ambientais para tica, o MME optou por desenvolver licitação, nas condições definição dos estudos relativos aos unilateralmente um instrumento estabelecidas no edital” (artigo 3º § 1º). Além aspectos ambientais e aos órgãos de planejamento vinculado aos es- disso, a resolução responsáveis pela gestão dos recur- tudos de inventário hidrelétrico de definiu condições de sos hídricos, nos níveis Estadual e bacia hidrográfica. Com assessoria preferência para os responsáveis pela Federal, com vistas a melhor defini- técnica do Banco Mundial, por meio elaboração dos estudos ção do aproveitamento ótimo e da do Projeto Energy Sector Technical As- de inventário em eventuais licitações de garantia do uso múltiplo dos recur- sistance Loan (Estal), o MME elaborou concessões. sos hídricos. o instrumento que viria a ser a AAI5. Em dezembro de 2007, o MME 4. A Lei nº10.847, de 15 de março de 2004, que Em 2004, o MME iniciou um pro- lançou uma nova edição do Manual autorizou a criação da cesso de revisão do Manual de inven- de inventário hidroelétrico de bacias hi- EPE, definiu entre suas atribuições “prestar tário hidroelétrico de bacias hidrográfi- drográficas, destacando como ino- serviços na área de cas. Nessa época, que corresponde vações a AAI e a incorporação de estudos e pesquisas ao início do primeiro mandato do “considerações sobre o uso múltiplo destinadas a subsidiar o planejamento do governo Lula, havia um debate in- da água, fazendo referência à Polí- setor energético, tais tenso sobre a necessidade de se in- tica Nacional de Recursos Hídricos como energia elétrica, petróleo e gás natural corporar dimensões de sustentabi- (PNRH)”. No novo formato do ma- e seus derivados, lidade socioambiental nas políticas nual, a AAI corresponde à última de carvão mineral, fontes energéticas renováveis “desenvolvimentistas” do governo, quatro etapas dos estudos de inven- e eficiência energética, a exemplo de grandes obras de in- tário hidrelétrico de bacias hidrográ- dentre outras” (artigo fraestrutura e do planejamento do ficas, quais sejam: i) planejamento 4º). Dispôs ainda que “os estudos e pesquisas setor elétrico, inclusive sob a ótica do estudo; ii) estudos preliminares; desenvolvidos pela de compatibilização com a legis- iii) estudos finais; e iv) avaliação EPE subsidiarão a formulação e a lação ambiental. Nesse contexto, ambiental integrada da alternativa implementação de discutia-se o desenvolvimento do selecionada. No documento, afirma- ações do MME, no instrumento da avaliação ambien- se que a AAI deve permitir “avaliar âmbito da política energética nacional” tal estratégica (AAE), a partir de ex- os efeitos cumulativos e sinérgicos (artigo 2º). periências internacionais adaptadas (de empreendimentos hidrelétricos 5. Para mais à realidade brasileira, como ferra- propostos) sobre os recursos natu- informações sobre menta de planejamento estratégi- rais e sobre as populações huma- o Estal, ver de pastas “desenvolvimentistas” do e dos recursos hídricos da bacia” e (acesso: 11 jun. 2015).

Estudos de inventário 113 “compatibilizar a geração de ener- final dos estudos de inventário de gia elétrica com a conservação da bacia hidrográfica: biodiversidade” (Brasil, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Enquanto nos Estudos de Inventário Planejamento e Desenvolvimento o foco está voltado para a compara- Energético, 2007: 597-598). ção e seleção da melhor alternati- O manual também afirma que va de aproveitamento do potencial as diretrizes e recomendações da hidroelétrico da bacia, nos Estudos AAI devem “subsidiar a concepção de Avaliação Ambiental Integrada e implantação dos empreendimen- procura-se avaliar as condições de tos […], visando a sustentabilidade suporte dos meios natural e antró- socioambiental da região” e que os pico, do ponto de vista de sua capa- procedimentos da AAI devem se cidade para receber o conjunto dos integrar “à metodologia dos estu- aproveitamentos hidroelétricos que dos socioambientais que subsidia compõem a alternativa de divisão de a seleção da melhor alternativa no queda selecionada (Ibid.: 597). Estudo de Inventário Hidroelétrico” (Ibid.: 597). As diretrizes e recomen- Assim, existe uma diferença fun- dações da AAI, indica o manual, damental entre a AAI e a AAE, sendo devem “prover informações aos ór- que este último instrumento possui gãos ambientais para o futuro licen- a finalidade de subsidiar a tomada ciamento dos projetos”, subsidiar de decisões estratégicas sobre quais “eventuais readequações de proje- empreendimentos devem ser adota- tos e programas” e contribuir para a dos ou excluídos do planejamento “implantação dos aproveitamentos governamental, em decorrência de hidroelétricos na bacia, de modo a critérios sociais, econômicos e am- reduzir riscos e incertezas para o bientais, inclusive em termos de in- desenvolvimento socioambiental e vestimentos alternativos. para o aproveitamento energético Vale observar ainda que o Manual da bacia” (Ibid.: 597-598). de inventário hidroelétrico de bacias hi- No entanto, o manual deixa drográficas menciona a importância transparecer que a AAI não possui, da participação pública: efetivamente, o papel de influen- ciar a definição de quais empreen- Visando o envolvimento do público dimentos hidrelétricos devem com- ao longo do desenvolvimento dos por a “alternativa de divisão de estudos, com participação e retorno queda selecionada” no resultado dos resultados às partes interessa-

114 Millikan das, e com a finalidade de coletar ram realizados os estudos de inven- subsídios e informações para o de- tário na bacia hidrográfica do Tapa- senvolvimento dos estudos, deve- jós? Para responder a essa pergunta, rão ser realizados seminários para cabe salientar, inicialmente, que os a apresentação, discussão e aporte estudos na bacia do Tapajós foram de contribuições aos resultados par- realizados de forma fragmentada, ciais e finais da AAI. Os locais dos tanto no tempo como no espaço. De eventos serão distribuídos espacial- fato, não se realizou nessa bacia um mente na bacia, intercalando loca- estudo único de inventário com sua lidades nas unidades da federação respectiva AAI, mas sim estudos se- abrangidas pela bacia (Ibid.: 599). parados em três sub-bacias: Tapajós- 6 Jamanxim, Teles Pires e Juruena . 6. De acordo com A nova edição do manual foi Além disso, os estudos de inven- a regulamentação adotada pela Aneel na aprovada formalmente por meio tário das sub-bacias foram levados subdivisão de bacias da Portaria MME nº356, de 28 de a cabo em épocas diferentes, por do território nacional, a setembro de 2009 (posteriormen- instituições e empresas diferentes. bacia do rio Amazonas é dividida em dez sub- te substituída pela Portaria nº372, De forma semelhante, as AAIs das bacias, numeradas de 1 de outubro de 2009), ou seja, sub-bacias do Teles Pires, Juruena e de 10 a 19. A bacia do rio Tapajós, formada quase dois anos após a sua publica- Tapajós-Jamanxim foram realizadas pelos rios Teles Pires e ção. Cabe observar que a portaria em distintos momentos, de acordo Juruena, é identificada (em ambas as edições) afirma que com o período de produção de seus como sub-bacia 17. “a escolha da melhor alternativa de respectivos estudos de inventário. A divisão de quedas para o aproveita- seguir, são apresentadas considera- mento do Potencial Hidráulico é de- ções sobre características específi- terminada a partir de critérios técni- cas dos estudos de inventários e res- cos, econômicos e socioambientais, pectivas AAIs nessas três sub-bacias levando-se em conta um cenário de do Tapajós. utilização múltipla da água”. Não foram definidas na portaria normas Estudo de inventário da sub-bacia sobre o processo de discussão públi- dos rios Tapajós e Jamanxim ca dos inventários/AAIs. Os primeiros estudos para definir o potencial hidrelétrico do eixo prin- Breve perfil dos estudos de cipal do rio Tapajós foram realiza- inventário realizados na bacia do dos pelas Centrais Elétricas do Nor- Tapajós te do Brasil S.A. (Eletronorte) e pela Considerando o arcabouço legal e empreiteira Camargo Corrêa entre normativo descrito acima, como fo- 1986 e 1991, coincidindo com a con-

Estudos de inventário 115 clusão da mega-UHE de Tucuruí, no de, em uma das regiões mais con- rio Tocantins, empreendimento em servadas da Amazônia brasileira. A que ambas foram protagonistas. maior das barragens previstas de- Nessa época, foi definido um pri- nominava-se Kararaô e deveria ser meiro projeto para barrar o rio Ta- construída na chamada Volta Gran- pajós nas proximidades de São Luiz de do rio Xingu, alagando mais de do Tapajós, prevendo duas opções 1.200 quilômetros quadrados, inclu- de cota, de 92 e 66 metros, respec- sive terras indígenas (TIs) dos povos tivamente. A primeira cota impli- Juruna e Arara. caria um reservatório gigantesco, O protesto – imortalizado pela que alagaria um longo trecho até imagem da Tuíra, indígena Kayapó, a confluência dos rios Teles Pires e colocando um facão no rosto do en- Juruena, e submergiria a cidade de tão diretor de engenharia da Eletro- Jacareacanga (Pará). Entretanto, os norte, José Lopes Muniz (ver imagem estudos foram temporariamente 1) – obteve repercussão mundial e paralisados, em uma etapa prelimi- conseguiu fazer com que os finan- nar de sua elaboração. ciadores internacionais, notada- A decisão de suspender os estu- mente o Banco Mundial, alterassem dos da Eletronorte no Tapajós rela- a decisão de aportar recursos ao cionava-se, em boa medida, a um projeto. Naquela época, marcada acontecimento na vizinha bacia pela redemocratização do país, os do rio Xingu. Em 1989, uma gran- ambiciosos projetos de barramento de manifestação indígena, lidera- do Xingu e outros rios amazônicos da pelo povo Kayapó, foi realizada foram engavetados, inclusive pelo na cidade de Altamira (Pará), para fato de o governo brasileiro não protestar contra um ambicioso pro- possuir condições de custear, sozi- jeto de engenharia concebido pela nho, os empreendimentos. Eletronorte e pela empreiteira Ca- Em dezembro de 2001, durante o margo Corrêa nos anos de 1970, em governo Fernando Henrique Cardo- pleno regime militar, que previa a so, a Eletronorte assinou um convê- construção de seis grandes UHEs ao nio com o MME para realizar uma longo do rio Xingu. O conjunto de série de atividades, entre as quais barragens alagaria quase 20 mil qui- reuniões com a Aneel, Ministério lômetros quadrados, desalojaria um do Meio Ambiente (MMA), Institu- grande número de comunidades in- to Brasileiro do Meio Ambiente e dígenas e ribeirinhas, e implicaria dos Recursos Naturais Renováveis uma enorme perda de biodiversida- (Ibama), Agência Nacional de Águas

116 Millikan Imagem 1. Tuíra, indígena Kayapó, e José Lopes Muniz, então diretor das Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte), no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (Pará). Por Paulo Jares, 1989.

(ANA) e Fundação Nacional do Índio rio do trecho do rio Tapajós entre (Funai), objetivando a retomada dos a confluência de seus formadores, projetos de barragens no rio Tapa- os rios Juruena e Teles Pires, e a jós. Os resultados do convênio, en- sua foz, no rio Amazonas, com uma tregues no início do governo Lula, área de drenagem total de 492.481 incluíram o Relatório de planeja- quilômetros quadrados, incluindo mento dos estudos de inventário também seu afluente pela margem (outubro de 2003) e o Relatório dos direita, rio Jamanxim, com área de estudos de avaliação preliminar do drenagem de 58.633 quilômetros aproveitamento hidrelétrico (AHE) quadrados. São Luiz do Tapajós (dezembro de O estudo de inventário da sub 2003). -bacia Tapajós-Jamanxim, elabora- Em 2006, a Eletronorte assinou do pela Eletronorte e pela Camargo um termo de compromisso com a Corrêa em conjunto com a CNEC, foi Camargo Corrêa, objetivando a fi- entregue à Aneel em junho de 2008. nalização dos estudos de inventá- Ele identificou sete grandes barra-

Estudos de inventário 117 mentos, três no tronco principal do três parques nacionais - Parnas rio Tapajós e quatro no rio Jaman- (da Amazônia, do Jamanxim e do xim, com capacidade instalada total Juruena) e cinco florestas nacio- de 14.245 megawatts, como sendo o nais - Flonas (Itaituba I, Itaituba “aproveitamento ótimo” para a ge- II, Jamanxim, Crepori e Altamira). ração elétrica. Os empreendimen- Além disso, TIs seriam afetadas di- tos identificados foram: São Luiz do retamente, notadamente a TI Mun- Tapajós (6.133 megawatts), Jatobá duruku, onde cerca de 18.720 hec- (2.338 megawatts) e Chacorão (3.336 tares – nos quais se situam mais de megawatts), todos no rio Tapajós; e vinte aldeias – seriam inundados Cachoeira do Caí (802 megawatts), pela UHE Chacorão. Jamanxim (881 megawatts), Ca- Nessas TIs e UCs diretamente choeira dos Patos (528 megawatts) afetadas por reservatórios de UHEs e Jardim do Ouro (227 megawatts), nos rios Tapajós e Jamanxim, seria todos no rio Jamanxim (ver mapa 1). inundado um total estimado de Para as sete UHEs identificadas 207.559 hectares. Isso sem contar no estudo de inventário dos rios a TI Sawré Muybu, habitada pelos Tapajós e Jamanxim, foram esti- Munduruku e situada no médio Ta- madas as seguintes áreas de inun- pajós, em processo de demarcação dação por reservatório: São Luiz do pela Funai desde 2001, que teria Tapajós: 722 quilômetros quadra- parte significativa de sua área inun- dos; Jatobá: 646 quilômetros qua- dada pela UHE São Luiz do Tapajós. drados; Chacorão: 616 quilômetros Ademais, o Projeto de Assentamen- quadrados; Cachoeira do Caí: 420 to Agroextrativista (PAE) Montanha quilômetros quadrados; Jaman- e Mangabal, de secular ocupação xim: 74 quilômetros quadrados; tradicional ribeirinha, seria direta- Cachoeira dos Patos: 116 quilôme- mente afetado pela inundação dos tros quadrados e Jardim do Ouro: reservatórios das UHEs São Luiz do 426 quilômetros quadrados. Tota- Tapajós e Jatobá (ver mapa 1). lizavam-se, assim, 3.020 quilôme- Apesar desses graves conflitos, tros quadrados (302 mil hectares). o superintendente de Gestão e Es- Entre as características marcantes tudos Hidroenergéticos da Aneel, dos sete empreendimentos iden- Jamil Abid, por meio do Despacho tificados no estudo de inventário, nº1.887, de 22 de maio de 2009, destacam-se as extensas áreas pre- aprovou os estudos de inventário vistas para alagação em unidades da região do Tapajós-Jamanxim, ela- de conservação (UCs), atingindo borados pela Eletronorte e pela Ca-

118 Millikan Tabela 1. Áreas previstas para inundação em unidades de conservação (UCs) e terras indígenas (TIs) por sete usinas hidrelétricas (UHEs) identificadas como de “aproveitamento ótimo” no estudo de inventário do Tapajós-Jamanxim.

Área protegida Usina hidrelétrica (UHE) Área inundada (hectares) Parque Nacional (Parna) da São Luiz do Tapajós 15.599,39 Amazônia Parna do Jamanxim Cachoeira do Caí 21.792,46 Jamanxim 11.506,61 Cachoeira dos Patos 18.515,49 Jardim do Ouro 29.698,96 Floresta Nacional (Flona) São Luiz do Tapajós 393,29 Itaituba I Jatobá 6.958,73 Cachoeira do Caí 11.472,38 Flona Itaituba II São Luiz do Tapajós 21.093,84 Cachoeira do Caí 25.236,79 Ligação UHEs Jatobá/Cachoeira do Caí 1.035,52 Área de Proteção Ambiental São Luiz do Tapajós 14.988,47 (APA) do Tapajós Cachoeira dos Patos 830,71 Jardim do Ouro 2.583,09 Flona Altamira Jardim do Ouro 2.588,91 Parna do Juruena Chacorão 4.543,59 Terra Indígena (TI) Chacorão 18.870,92 Munduruku Total (hectares) 207.559,14

Fonte: Camargo Corrêa; Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.; CNEC (2008). margo Corrêa. Logo em seguida, em Em maio de 2011, o Conselho Na- agosto de 2009, a Aneel concedeu à cional de Política Energética (CNPE), Eletronorte e à Camargo Corrêa o presidido pelo ministro do MME, registro ativo para a elaboração dos Edison Lobão, deu respaldo políti- estudos de viabilidade técnico-eco- co ainda maior para a construção nômica (EVTE) de cinco UHEs prio- de barragens identificadas como rizadas para o chamado complexo de “aproveitamento ótimo” no in- 7. Em julho de 2008, a Eletronorte e Camargo hidrelétrico do Tapajós (CHT): São ventário do Tapajós-Jamanxim. Por Corrêa já tinham Luiz do Tapajós, Jatobá, Cachoeira meio da Resolução nº3, de 3 de maio assinado um termo do Caí, Jamanxim e Cachoeira dos de 2011, o CNPE declarou as UHEs de cooperação para elaborar os estudos de 7 Patos . São Luiz do Tapajós, Jatobá, Jardim viabilidade do CHT.

Estudos de inventário 119 do Ouro e Chacorão como “proje- A direção do ICMBio posicionou- tos de geração de energia elétrica -se no sentido de que, embora não estratégicos, de interesse público, fosse admissível prosseguir com o estruturantes e com prioridade de processo de licenciamento ambien- licitação e implantação”. A resolu- tal de UHEs cujos reservatórios inci- ção do CNPE, além disso, determi- dissem sobre uma UC, não haveria nava que fossem “adotadas todas as qualquer impedimento se a área providências, no âmbito do Poder afetada fosse desafetada. Tal posi- Executivo Federal, a fim de concluir cionamento da direção do ICMBio, os estudos necessários para a licita- com aval de autoridades do Ibama ção e implantação dos mencionados e do MMA, deu respaldo para a Me- 8 8. Não houve Aproveitamentos Hidrelétricos” . dida Provisória (MP) nº558, de 9 de esclarecimento Em maio de 2009, a Eletronor- janeiro de 2012, convertida apressa- acerca dos motivos da inclusão, na Resolução te solicitou ao Ibama a abertura damente pelo Congresso Nacional do CNPE, das UHEs de processos de licenciamento na Lei nº12.678, de 25 de junho de Jardim do Ouro e ambiental para as cinco UHEs do 2012, que reduziu 75.630 hectares Chacorão, que não constam entre os cinco CHT: São Luiz do Tapajós, Jatobá, de cinco UCs federais para abrir ca- empreendimentos Cachoeira do Caí, Jamanxim e Ca- minho aos reservatórios das duas prioritários do CHT. choeira dos Patos. A sobreposição primeiras megabarragens do CHT: dos reservatórios das cinco barra- São Luiz do Tapajós e Jatobá. gens previstas com UCs criou um É importante observar que vá- constrangimento para a tramitação rios trâmites administrativos e de- dos processos de licenciamento no cisões políticas do governo federal âmbito do Ibama e do Instituto Chi- – destacando-se a entrega, pela Ele- co Mendes de Conservação da Bio- tronorte, do estudo de inventário diversidade (ICMBio). Em resposta, do Tapajós-Jamanxim em junho de o ministro Edison Lobão enviou o 2008 e sua aprovação pela Aneel Aviso nº30/2010/GM-MME, em 9 de em maio de 2009; o início de pro- março de 2010, ao então ministro cessos de licenciamento ambiental do Meio Ambiente, Carlos Minc, in- junto ao Ibama para cinco UHEs do formando-o sobre a aprovação, pela CHT, em maio de 2009; a resolução Aneel, do estudo de inventário do do CNPE sobre projetos estratégi- Tapajós-Jamanxim e solicitando que cos, em maio de 2011; a desafetação fossem “iniciados os estudos perti- de UCs que seriam atingidas pelos nentes, considerando as possíveis reservatórios das UHEs São Luiz do interferências nas Unidades de Con- Tapajós e Jatobá, em janeiro de 2012 servação na região”. – ocorreram na ausência de AAI,

120 Millikan embora ela fosse considerada parte rêa, Cemig Geração e Transmissão integrante dos estudos de inventá- S.A., Copel Geração e Transmissão, rio desde dezembro de 2007, segun- Electricité de France (EDF), Endesa do o Manual de inventário hidroelétrico Brasil S.A., GDF Suez Energy Latin de bacias hidrográficas da Eletrobras. America (atualmente Engie) e Neoe- Em julho de 2008 – um mês após nergia S.A. Houve um único even- a entrega dos estudos de inventário to público para discutir o sumário na Aneel –, Eletronorte e Camar- executivo da AAI, convocado apres- go Corrêa assinaram um termo de sadamente em Itaituba (Pará), em compromisso para a elaboração de maio de 2014. O estudo completo AAI da região do Tapajós-Jamanxim. da AAI foi divulgado pela internet Entretanto, a elaboração da AAI só somente em setembro de 2014, sem avançou efetivamente a partir de debate público. Não há informações decisão do juiz federal José Airton sobre um eventual processo de re- de Aguiar Portela, em novembro de visão e aprovação formal da AAI do 2012, em resposta a uma ação civil Tapajós-Jamanxim. pública (ACP) movida pelo Minis- Cabe ressaltar que a AAI do Ta- tério Público Federal (MPF), que in- pajós-Jamanxim não recomendou cluiu Aneel, Eletrobras, Eletronorte alterações nos empreendimentos e Ibama como réus. A decisão deter- priorizados pelo estudo de inven- minou que a licença prévia (LP) para tário, mesmo em locais como São a UHE São Luiz do Tapajós não fosse Luiz do Tapajós e Chacorão, com concedida pelo Ibama antes da rea- conflitos relacionados à inundação lização de avaliação dos impactos de TIs, o que é inconstitucional. En- cumulativos das UHEs previstas no quanto isso, a elaboração dos estu- CHT na região do Tapajós-Jaman- dos de impacto ambiental (EIAs) das xim, assim como oitivas junto aos UHEs São Luiz do Tapajós e Jatobá, povos indígenas afetados. assim como a sua tramitação no Iba- Em abril de 2014, foi divulgado ma, têm avançado rapidamente, de um sumário executivo da AAI da ba- forma absolutamente desarticulada cia do Tapajós (sub-bacia do Tapajós- em relação ao processo de elabora- Jamanxim). O estudo foi elaborado ção da AAI. pela empresa de consultoria Ecolo- Em 6 dezembro de 2012 – ou gy Brasil, por meio de contrato com seja, menos de um mês após a o Grupo de Estudos Tapajós, coorde- decisão judicial sobre a obrigato- nado pela Eletrobras/Eletronorte e riedade da avaliação de impactos tendo como parceiros Camargo Cor- cumulativos de AHEs previstos na

Estudos de inventário 121 sub-bacia do Tapajós-Jamanxim –, retomada dos estudos de inventário o superintendente de Gestão e Es- da sub-bacia do rio Teles Pires. Na tudos Hidroenergéticos da Aneel, realidade, foram realizados dois es- Odenir José dos Reis, por meio do tudos de inventário na sub-bacia: a Despacho n°3.888, resolveu “apro- Furnas Centrais Elétricas S.A. (sub- var os estudos de inventário da sidiária da Eletrobras) preparou um bacia do Rio Cupari, afluente pela estudo para o trecho do rio Teles margem direita do Rio Tapajós”, Pires entre os quilômetros 285 e elaborados pela empresa CIENGE 1.250, e para o rio Apiacás, de sua Engenharia e Comércio Ltda. Trata- foz no Teles Pires até o quilômetro -se de uma área no interior da sub- 66. Simultaneamente, a DM Cons- -bacia Tapajós-Jamanxim. Nesse trutora de Obras Ltda. elaborou um perímetro, o superintendente da “inventário hidrelétrico simplifica- Aneel aprovou nada menos que 29 do” para o rio Apiacás, no trecho a AHEs adicionais, com potencial acu- montante do quilômetro 65. mulado de 326,15 megawatts (UHE Adotando como critérios prin- Águas Lindas e 28 PCHs). A referida cipais a capacidade de geração decisão da Aneel, com profundas de energia e o custo estimado das implicações em termos de impac- obras, foram identificados cin- tos socioambientais na região, foi co barramentos no rio Teles Pires simplesmente desconsiderada nos (UHEs Sinop, Colíder, Teles Pires, estudos de AAI elaborados para a São Manoel) e um barramento no sub-bacia do Tapajós-Jamanxim. rio Apiacás (UHE Foz de Apiacás). Entre as características do resultado Estudo de inventário da sub-bacia do estudo de inventário, destaca-se do Rio Teles Pires a proximidade de três empreendi- Os primeiros estudos de inventário mentos (UHEs Teles Pires, São Ma- do potencial hidrelétrico da sub-ba- noel e Foz de Apiacás) em relação à cia hidrográfica do rio Teles Pires TI Kayabi. Os estudos de inventário foram realizados pela Eletronorte foram entregues à Aneel em outu- na década de 1980. Eles sugeriram bro de 2005 e aprovados por seu seis barramentos do rio para serem superintendente de Gestão e Estu- analisados na etapa seguinte dos dos Hidroenergéticos por meio do estudos de inventário, o que não Despacho nº1.613, de 20 de julho foi realizado na época. Em abril de de 2006. Pouco antes, a Aneel havia 2001, Eletrobras, Furnas e Eletro- emitido o Despacho nº2.152, de 20 norte firmaram um acordo para a de dezembro de 2005, aprovando os

122 Millikan Mapa 1. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário da sub-bacia hidrográfica doT apajós-Jamanxim E, BG E, unai, F unai, indígenas: terras 2015; MMA, áreas protegidas: 2015; Sigel, PCHs e UHEs: 2010; 2016. Ricardo Abad, Elaboração: 2015. ANA, hidrografia: 2015; ontes: limites municipais: I limites municipais: F ontes: 2000. Sirgas Sistema de referência geográfica:

Estudos de inventário 123 “Estudos de Inventário Hidrelétrico cho a montante do quilômetro 65. Simplificado do rio Apiacás” no tre- O maior barramento aprovado, Sal- cho a montante do quilômetro 65, to Apiacás, posteriormente teve sua contemplando cinco PCHs (Cabeça capacidade aumentada de 28,92 me- de Boi, Salto Apiacás, Da Fazenda, gawatts para 45 megawatts (deixan- Salto Paraíso e Ingarana), com po- do, assim, de ser considerado uma tência total de 83,9 megawatts. PCH). O processo de licenciamento A AAI da sub-bacia do rio Teles ambiental desse empreendimento Pires foi coordenada pela EPE, que está sendo realizado pelo governo contratou as empresas Leme En- estadual de Mato Grosso e ele cons- genharia e Concremat Engenharia ta no Plano decenal de expansão de ener- para realizá-la. Ela foi levada a cabo gia (PDE) 2024 como UHE a entrar após a aprovação dos estudos de em operação no ano de 2016 (Brasil, inventário, sendo que o relatório Ministério de Minas e Energia, Em- final foi entregue à EPE somente presa de Pesquisa Energética, 2015). em dezembro de 2009, já na época Nos processos de licenciamen- de execução dos EVTEs dos AHEs Si- to ambiental de empreendimentos nop, Colíder e Teles Pires. A AAI não desse complexo, têm sido propostas apresentou sugestões de alteração diversas ACPs, pelo MPF, motivadas na escolha dos cinco barramentos pela falta de avaliação de impactos identificados como “aproveitamen- cumulativos na bacia e pela ausên- to ótimo” no estudo de inventário. cia de CLPI junto aos povos indíge- Tampouco foi realizado um proces- nas locais. Na quase totalidade dos so de consulta livre, prévia e infor- casos, as ações do MPF receberam mada (CLPI) junto aos povos indíge- decisões liminares favoráveis em

9. Ver tabela do MPF no nas Kayabi, Apiaká e Munduruku primeira instância, porém foram Pará sobre processos que vivem logo rio abaixo, na TI inviabilizadas pelo uso autoritário judiciais relativos às UHEs da bacia do Kayabi, cujo limite se situa a poucos do instrumento de suspensão de se- Tapajós (rios Juruena, metros da última barragem propos- gurança (SS), pelo presidente do Tri- Apiacás, Jamanxim, ta no complexo hidrelétrico do Teles bunal Regional Federal da Primeira Teles Pires e Tapajós). Disponível em: (acesso: 5 jun. 2015). estudos de inventário hidrelétrico lizados dois “estudos de inventário simplificado do rio Apiacás no tre- simplificado” no alto rio Juruena,

124 Millikan Mapa 2. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário da sub- bacia hidrográfica doT eles Pires E, BG E, ontes: limites municipais: I limites municipais: F ontes: 2000. Sirgas Sistema de referência geográfica: unai, F unai, indígenas: terras 2015; MMA, áreas protegidas: 2015; Sigel, PCHs e UHEs: 2010; 2016. Ricardo Abad, Elaboração: 2015. ANA, hidrografia: 2015;

Estudos de inventário 125 por iniciativa do Grupo André Ma- Rondon (13 megawatts), Cachoeirão ggi, em uma região de expansão da (64 megawatts), Parecis (15,4 me- soja mecanizada em larga escala, gawatts), Travessão (6,5 megawatts), dominada pelo mesmo grupo. O Ilha Comprida (18,6 megawatts), primeiro estudo foi executado em Segredo (21 megawatts), Sapezal (16 2001 pela empresa Maggi Energia megawatts), Jesuíta (22,2 megawat- S.A., vinculada à Agropecuária Ma- ts), Cidezal (17 megawatts), Juruena ggi Ltda., em um trecho de 102,91 (46 megawatts) e Cristalina (sete 10. A área total dos quilômetros do rio Juruena, entre o megawatts)10. reservatórios dos 12 limite da TI Parecis (montante) e a Os dois estudos realizados pelo empreendimentos foi estimada em 3.065,6 ponte da rodovia MT-235 (jusante). Grupo Maggi seguiram as diretrizes hectares. Esse estudo resultou na identifica- para estudos de inventários hidre- ção de um AHE com potencial de létricos simplificados da Aneel vi- 7,6 megawatts (denominado Santa gentes à época. A justificativa dada Lúcia II), acoplado à PCH Santa Lú- para a realização de um inventário cia I, já instalada pelo Grupo Maggi, simplificado, em lugar de um in- com potência de cinco megawatts. ventário pleno, foram “as caracte- O estudo foi aprovado pela Aneel, rísticas geomorfológicas locais que por meio do Despacho nº513, de 31 determinaram aos aproveitamentos de julho de 2001. características semelhantes a de O segundo estudo foi realizado PCH tais como: barragem de peque- pelo Grupo André Maggi (Agrope- na altura, reservatório de reduzida cuária Maggi Ltda.) e Linear Parti- dimensão (inferior a 3,0 km2) e a fio cipações e Incorporações, em um d’água” (Grupo André Maggi et al., trecho de 130 quilômetros entre a 2002: 8). ponte da rodovia MT-235 (montan- Em uma análise sobre a ade- te) e a foz do rio Juína (jusante), quação dos estudos de inventários abrangendo uma área de drenagem hidrelétricos simplificados à reali- de 60.998,45 quilômetros quadra- dade do alto rio Juruena, chama a dos. Esse estudo identificou 12 lo- atenção, inicialmente, o fato de a cais de barramento, com potencial matriz de avaliação dos impactos total de 276,7 megawatts. Por meio ambientais dos estudos sequer ter do Despacho nº621, de 3 de outubro mencionado as consequências e de 2002, a Aneel aprovou o estudo, riscos para os povos indígenas da dando sinal verde para a implanta- região em que seria implantada ção dos 12 empreendimentos identi- uma cascata de barragens, em que ficados: Telegráfica (30 megawatts), o reservatório de um AHE pratica-

126 Millikan mente se encostaria ao do próximo, e PCHs previstas (algumas em fase rio acima (Ibid.: 244-245). Trata-se de de implantação) entre as cabecei- uma omissão grave, considerando- ras do rio e sua confluência com o se que no alto rio Juruena situam-se rio Juína, em uma extensão total onze TIs (Enawene Nawe, Erikbakt- de 287,05 quilômetros. Em maio de sa, Japuíra, Juininha, Menku, Nam- 2006, o MPF cobrou a realização de bikwara, Paresi, Pirineus de Souza, um estudo integrado de impactos Tirecatinga, Uirapuru e Utiariti) cumulativos das doze barragens do ocupadas por cinco etnias (Enawe- CHJ como condição para a continui- ne Nawe, Myky, Nambikwara, Pa- dade do licenciamento de empreen- resi e Rikbaktsa), distribuídas em dimentos individuais. mais de 80 aldeias, que, por sua vez, Com o aval da Sema/MT, a em- dependem diretamente dos recur- presa JGP Consultoria entregou, em sos e serviços ambientais oferecidos janeiro de 2007, sob encomenda dos naturalmente pelo rio para sua so- empreendedores, um documento brevivência física e cultural (Institu- intitulado Avaliação ambiental inte- to Socioambiental, 2008). grada - AAI. A Sema/MT considerou Apesar das evidências de graves os estudos insuficientes e solicitou riscos associados à implantação de complementações. Porém, renovou uma cascata de barragens no alto as LIs antes de avaliar as comple- rio Juruena, especialmente para os mentações requisitadas e sem ouvir povos indígenas e seus territórios, a área técnica da Funai sobre o com- a Secretaria de Estado de Meio Am- ponente antropológico dos estudos biente de Mato Grosso (Sema/MT) complementares, referentes à iden- emitiu, entre agosto e dezembro de tificação, prevenção e mitigação de 2002, LP e licença de instalação (LI) impactos resultantes da construção para oito empreendimentos do cha- das obras do CHJ sobre grupos indí- mado complexo hidrelétrico do Ju- genas. Em março de 2007, a Sema/ ruena (CHJ), sem exigir a avaliação MT aprovou a chamada AAI do alto dos impactos cumulativos e sequer Juruena, que, entre seis alternati- a realização de EIA (Idem). vas consideradas, recomendou a Em 2006, o MPF instaurou pro- construção de dez AHEs (8 PCHs e cedimento administrativo (proces- 2 UHEs) com capacidade instalada so nº1.20.000.000336/2006-28) para total de 263 megawatts (JGP Gestão verificar as circunstâncias do licen- Ambiental, 2007). ciamento ambiental do CHJ, consi- Em um contexto caracterizado derando toda a sequência de UHEs por sucessivos atropelos no proces-

Estudos de inventário 127 so de planejamento e licenciamen- do irregularmente pelo governo de to ambiental de barragens no alto Mato Grosso, apesar de o rio Jurue- Juruena, e em face das graves con- na ser um rio federal, cercado por sequências das primeiras barragens TIs impactadas. do alto Juruena – por exemplo, os efeitos desastrosos da PCH Telegrá- Em abril de 2008, o MPF em Mato fica para o povo Enawene Nawe Grosso obteve junto ao TRF-1 uma (Instituto Socioambiental, 2012; liminar para suspender as LIs de Almeida 2010; Fanzeres, 2008) –, o cinco empreendimentos do CHJ. Ao MPF em Mato Grosso ajuizou uma determinar a paralisação das obras, ACP, em dezembro de 2007 (proces- a desembargadora Selene Maria de so nº2008.36.00.000023-4). Dentre Almeida afirmou que a construção as irregularidades apontadas pelo das PCHs acarretaria “uma série de MPF, figuram: graves riscos para a sustentabilida- de” das aldeias e levaria uma das i) ausência de avaliação de impactos etnias da região ao que chamou cumulativos e sinérgicos da casca- de genocídio cultural: “Parece que ta de barragens propostas na bacia mais uma vez se cumpre o processo do Juruena, contrariando a Resolu- histórico de ações lesivas ao meio ção nº1/1986 do Conama; ambiente e às populações indíge- ii) desconsideração de graves riscos nas”, concluiu a desembargadora provocados pelo CHJ às populações (Instituto Socioambiental, 2008). indígenas, inclusive em relação aos Em 6 de junho de 2008, entretan- peixes, de grande importância para to, o presidente do Supremo Tribu- a sobrevivência física e cultural de nal Federal (STF), ministro Gilmar povos indígenas, como os Enawene Mendes, cassou a decisão do TRF-1, Nawe; via SS, argumentando que a parali- iii) descumprimento do artigo 231 da sação das obras do CHJ representa- Constituição Federal de 1988 e da va “grave risco de lesão à ordem, à Convenção 169 da Organização In- saúde, à segurança, à economia e à ternacional do Trabalho (OIT), no saúde pública do Estado”, além de que se refere à realização de CLPI acarretar “efeitos deletérios ao pró- junto aos povos indígenas; prio meio ambiente pela manuten- iv) falta de consulta efetiva à Funai du- ção de grande área desmatada e ca- rante os processos de licenciamen- vada, podendo até mesmo assorear to ambiental; e o próprio rio”. Sobre o argumento v) licenciamento ambiental conduzi- do MPF de que o CHJ dependeria

128 Millikan de CLPI junto aos povos indígenas, o risco ambiental advindo da imple- considerando as fortes influências mentação de todos os empreendi- do rio sobre TIs já demarcadas, o mentos supracitados no Rio Juruena ministro opinou que “as pequenas não foi devidamente mensurado na centrais hidrelétricas não serão ins- Avaliação Ambiental Integrada aqui taladas em áreas indígenas, mas em avaliada. Isto tanto em relação aos suas adjacências”. Evidentemente, a impactos na biota quanto, e tam- decisão favoreceu principalmente o bém consequentemente, no modo grupo empresarial da família do go- de vida tradicional das comunidades vernador à época, Blairo Maggi. indígenas da bacia do Rio Juruena, Em seguida, em agosto de 2008, assim como nas condições necessá- o Instituto Socioambiental (ISA) rias para a sua sobrevivência, repro- ajuizou junto ao STF uma petição dução física e cultural, garantidas na condição de amicus curiae (“amigo na Constituição Federal no seu Art. da corte”, instituto que permite que 231/88. Já foi relatado informalmen- terceiros passem a integrar uma te à FUNAI por indígenas da etnia demanda judicial) para que fosse Enawenê-Nawê, inclusive, que após juntada ao processo que tenta im- o início da instalação de cinco PCHs pedir a continuidade das obras do no Rio Juruena, a qualidade de água CHJ. Um dos argumentos do ISA foi degradou, assim como a quantida- justamente a necessidade de CLPI de de peixes diminuiu. Segue que aos povos indígenas afetados, em é minha forte recomendação que conformidade com o artigo 231 da seja suspensa a outorga do direito Constituição Federal e com a Con- de uso dos recursos hídricos para venção 169 da OIT. fins de aproveitamento do potencial Na época, um parecer técnico da hidrelétrico dos empreendimentos Funai sobre a AAI do Alto Juruena supracitados, e que sejam efetuados constatou que o estudo apresentava estudos de impacto ambiental deta- erros graves de metodologia e con- lhados para determinar a viabilida- clusões contraditórias (Brasil, Minis- de ambiental dos mesmos. tério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, Diretoria de Assistência, Nas considerações finais, o pa- Coordenação-Geral de Patrimônio recer técnico da Funai remeteu ao Indígena e Meio Ambiente, Coorde- princípio nº15 da Declaração do Rio nação de Meio Ambiente, 2008). Em de Janeiro, firmado durante a Con- suas conclusões, o parecer afirma ferência das Nações Unidas sobre o que: Meio Ambiente e Desenvolvimento,

Estudos de inventário 129 11 11. Em 2001, a de 1992, e da qual o Brasil é signatá- lômetros quadrados . A elaboração Eletronorte havia rio. O princípio estabelece: de uma AAI, como parte dos estu- completado estudos preliminares de dos de inventário, foi incorporada inventário no rio do de modo a proteger o meio ambien- ao contrato entre a EPE e a CNEC Sangue, afluente do rio te, o princípio da precaução deve ser Engenharia, tendo em vista o novo Juruena que deságua nas proximidades da amplamente observado pelos Esta- Manual de inventário hidroelétrico de cidade de Castanheira dos, de acordo com suas capacida- bacias hidrográficas, de dezembro de (Pará). Esses estudos 12 concluíram por uma des. Quando houver ameaça de da- 2007 . alternativa de divisão nos sérios ou irreversíveis ausência Os referidos estudos de inven- de queda constituída de absoluta certeza científica não tário da bacia do Juruena, sem a por 14 AHEs, perfazendo uma potência instalada deve ser utilizada como razão para AAI, foram concluídos pela CNEC total de 873 megawatts postergar medidas eficazes e econo- em setembro de 2009 e entregues (CNEC, 2010: 34). micamente viáveis para prevenir a formalmente à Aneel em maio de

12. Segundo o MME, em degradação ambiental (grifo meu). 2010 (Brasil, Ministério de Minas e julho de 2008, foram Energia, Empresa de Pesquisa Ener- suspensas as emissões Em abril de 2010, a ACP sobre ir- gética; CNEC, 2010). Tais estudos de registros para a elaboração de estudos regularidades no licenciamento de identificaram como alternativa de e projetos relativos a AHEs do CHJ foi extinta em decisão “aproveitamento ótimo” da divisão AHEs integrantes da bacia do rio Juruena, da primeira instância da Justiça Fe- de quedas um conjunto de 13 em- bem como para novos deral em Mato Grosso, desconside- preendimentos hidrelétricos, sendo inventários na referida rando os argumentos apresentados cinco no rio Juruena, um no rio Ari- bacia até que a AAI fosse concluída. pelo MPF, pela Funai e pelo ISA, as- nos, um no rio dos Peixes, quatro sim como as graves consequências no rio Juína e dois no rio Papagaio, socioambientais da construção de com um potencial estimado total de barragens no alto Juruena, já evi- 8.467 megawatts. No estudo de in- dentes na região. O MPF apelou da ventário elaborado pela EPE e pela sentença, porém em julho de 2015 CNEC, a priorização de empreen- ela ainda aguardava decisão da dimentos com graves problemas quinta turma do TRF-1. de sobreposição com territórios indígenas e UCs, bem como a des- Estudos de inventário realizados consideração de impactos cumu- no rio Juruena pela EPE e CNEC lativos entre as PCHs e UHEs do Em setembro de 2006, a EPE contra- CHJ, demonstram sérias limitações tou a CNEC para realizar os estudos inerentes à sua metodologia. Por de inventário hidrelétrico da bacia meio do Despacho nº2.318, de 13 de do rio Juruena, em uma área exten- agosto de 2010, o superintendente sa da bacia, totalizando 190.931 qui- de Gestão e Estudos Hidroenergé-

130 Millikan ticos da Aneel aprovou os referidos uma potência inventariada de cerca estudos de inventário, mesmo sem de 8.830 megawatts, distribuídos a conclusão da AAI e sem a realiza- entre 22 AHEs, incluindo as UHEs ção de processo de CLPI junto aos previamente selecionadas e as PCHs povos indígenas atingidos pelos incorporadas ao resultado final. empreendimentos. Com a aprovação desses estudos, Em setembro de 2010, a CNEC os AHEs contemplados passaram a concluiu os estudos da AAI, sem integrar a carteira daqueles disponí- apresentar propostas de modifica- veis para a elaboração dos EVTEs e ção na escolha dos barramentos projetos básicos. identificados no inventário. Em dezembro de 2010, a AAI foi discu- Análise preliminar dos estudos de tida em duas reuniões públicas no inventário realizados na bacia do estado de Mato Grosso, realizadas Tapajós nas cidades de Cuiabá e Juína. No Segundo o MME, os estudos de in- evento realizado em Juína, houve ventário hidrelétrico, incluindo protestos de representantes de po- AAIs como parte integrante de sua vos indígenas em razão dos confli- metodologia de elaboração, permi- tos envolvendo a exploração de re- tem a tomada de decisões sobre a es- cursos naturais em seus territórios. colha de empreendimentos a serem Uma versão final da AAI foi apre- construídos em uma bacia hidro- sentada pela CNEC em 7 de janeiro gráfica, utilizando como critérios de 2011, sem qualquer mudança na básicos: i) maximização do aprovei- escolha de empreendimentos ou tamento do potencial hidrelétrico; outra alteração substancial de con- ii) menor custo econômico para a teúdo, como resultado dos eventos geração de energia; e iii) minimi- realizados no mês anterior, e ainda zação de impactos socioambientais sem um processo de CLPI junto aos negativos. Além disso, o MME tem povos indígenas afetados. A Supe- ressaltado a importância da “parti- rintendência de Gestão e Estudos cipação pública” na elaboração dos Hidroenergéticos (SGH) da Aneel estudos de inventário, especialmen- aprovou, por meio do Despacho te na fase de AAIs. nº3.208, de 10 de agosto de 2011, a Certamente, os estudos realiza- “revisão” dos estudos de inventário dos no âmbito de AAIs das sub-ba- da bacia do rio Juruena, tendo em cias do Tapajós trazem informações vista a conclusão da AAI. Os resul- úteis para que se possa conhecer tados finais dos estudos totalizam melhor as características ambien-

Estudos de inventário 131 Mapa 3. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário da sub-bacia hidrográfica do Juruena E, BG E, ontes: limites municipais: I limites municipais: F ontes: 2000. Sirgas Sistema de referência geográfica: unai, F unai, indígenas: terras 2015; MMA, áreas protegidas: 2015; Sigel, PCHs e UHEs: 2010; 2016. Ricardo Abad, Elaboração: 2015. ANA, hidrografia: 2015;

132 Millikan tais da bacia hidrográfica do Tapa- hidrelétrico priorizado nos estudos jós, sobretudo em termos de com- de inventário tenha sido descartado pilação de fontes bibliográficas e marca, de forma contundente, uma sistematização de dados secundá- diferença fundamental entre AAI e rios. Entretanto, esta análise pre- AAE. liminar dos estudos de inventário Na bacia do Tapajós, a compreen- hidrelétrico realizados na bacia hi- são sobre os potenciais impactos drográfica do Tapajós – incluindo as cumulativos e sinérgicos de em- sub-bacias Tapajós-Jamanxim, Teles preendimentos hidrelétricos, um Pires e Juruena – permite concluir dos objetivos de uma AAI, foi pre- que a tomada de decisões técnicas judicada pela existência de vários e políticas sobre o “aproveitamen- estudos de AAI, elaborados de for- to ótimo” de bacias hidrográficas ma segmentada por sub-bacia (Teles a partir de estudos de inventário Pires, Juruena, Tapajós-Jamanxim) tem se baseado quase exclusiva- e até em trechos diferentes de um mente no critério de maximização mesmo rio. Além disso, os estudos do aproveitamento do potencial de AAI foram realizados em mo- hidráulico e que as consequências mentos diferentes, por instituições socioambientais negativas de em- diferentes, utilizando metodologias preendimentos, inclusive violações diferentes, sem os devidos esforços de direitos humanos e descumpri- de articulação entre si. Ficou preju- mento da legislação ambiental, têm dicada, portanto, a abordagem de sido sistematicamente menospreza- questões essenciais relacionadas à das e até ignoradas. conectividade entre as sub-bacias, Uma evidência dessa problemá- como os impactos cumulativos de tica é que, tipicamente, a definição cascatas de barragens sobre peixes de um conjunto de barramentos migratórios de altíssima importân- como “aproveitamento ótimo” de cia para a biodiversidade, meios de um rio, no âmbito de estudos de vida e economias locais. Ademais, inventário, bem como a sua aprova- não houve análise de impactos ção pela Aneel, têm ocorrido antes sinérgicos e cumulativos entre as 13. Isso tem ocorrido mesmo em casos da conclusão dos estudos de AAI, cascatas de barragens e outros gran- recentes, em que os que, por sua vez, em nada mudam des empreendimentos previstos e inventários foram finalizados após a tais decisões, em função de crité- em curso na região (por exemplo, publicação da nova rios como impactos cumulativos e hidrovias, rodovias, mineração). versão do Manual de sinérgicos13. O fato de que, em ne- Assim, as AAIs elaboradas para sub inventário hidrelétrico de bacias hidrográficas nhuma das AAIs, qualquer projeto -bacias do Tapajós não têm atendi- (dezembro de 2007).

Estudos de inventário 133 do as determinações da Resolução Outro fator que tem dificultado nº1/1986 do Conama referentes à a análise de impactos individuais análise de impactos cumulativos e e cumulativos de cascatas de bar- sinérgicos em nível de bacia hidro- ragens propostas para a bacia do gráfica, bem como às suas alterna- Tapajós, no âmbito das AAIs, tem tivas, inclusive a hipótese de não sido a indefinição sobre parâme- implantação do empreendimento. tros técnicos para a implantação No caso do Tapajós, a qualidade das chamadas “usinas-plataforma”, dos estudos de AAI tem sido pre- em contraste com as afirmações judicada ainda pelo fato de serem da Eletrobras, que procura caracte- realizados geralmente de forma rizá-las como modelo consolidado apressada, com reduzido tempo de um novo paradigma de “hidre- para atividades de campo, o que létrica do bem”. Nota-se forte ten- afeta negativamente a abordagem dência de subdimensionamento de de questões como a sazonalidade impactos e riscos socioambientais, em ecossistemas de água doce e a e a consequente externalização de compreensão das complexas rela- custos de mitigação e compensa- ções entre populações, território e ção dos mesmos, levando o setor recursos naturais. De forma seme- elétrico a conclusões distorcidas lhante, observa-se falta de clareza sobre a viabilidade econômica de sobre metodologias participativas empreendimentos. e sobre a valorização dos conheci- Em um contexto no qual as AAIs mentos de populações locais sobre não têm alterado a escolha de em- seus territórios na condução dos preendimentos definidos nos estu- AAIs, como subsídio para o melhor dos de inventário – estes últimos, dimensionamento de impactos e orientados pelo critério de maxi- riscos socioambientais de empreen- mização do aproveitamento do po- dimentos em diferentes cenários. tencial energético –, verifica-se, no Além disso, pelo menos no caso caso do Tapajós, uma série de con- da AAI da sub-bacia do Tapajós-Ja- flitos com o marco legal dos direitos manxim, tais limitações nos estu- humanos e a legislação ambiental, dos de AAI foram exacerbadas por destacando-se: pressões da Eletrobras, no sentido de alterar ou excluir elementos crí- i) A priorização de empreendimen- ticos do diagnóstico de conflitos so- tos que implicam o alagamento de cioambientais envolvendo terras e TIs e outras consequências graves povos indígenas. para as populações indígenas nos

134 Millikan estudos de inventário aprovados A intenção manifestada pelo pela Aneel – e até respaldados MME no Manual de inventário hidroe- pelo CNPE, no caso da sub-bacia létrico de bacias hidrográficas (versão Tapajós-Jamanxim; de dezembro de 2007) de que a AAI ii) De forma semelhante, a prioriza- pudesse “prover informações aos ção de empreendimentos que im- órgãos ambientais para o futuro plicam a desafetação de UCs, sem licenciamento dos projetos” tem considerar as consequências para sido prejudicada, entre outras ra- os atributos ambientais e meios de zões, pelo fato de não se constituir vida de populações locais que justi- formalmente como instrumento de ficaram a sua criação; e licenciamento ambiental no âmbito iii) O descumprimento de legislação do Sistema Nacional do Meio Am- sobre a obrigatoriedade de CLPI biente (Sisnama). Vale salientar que junto a povos indígenas e outras as AAIs têm sido elaboradas, em comunidades tradicionais, antes muitos casos, de forma concomitan- da tomada de decisões políticas te ou mesmo posterior à elaboração pela Aneel e CNPE. de EIAs para empreendimentos in- dividuais, comprometendo a sua No tocante à intenção do MME de utilidade. incorporar nas AAIs “considerações Nas AAIs, observa-se uma pre- sobre o uso múltiplo da água, fazen- cariedade de nexos lógicos entre do referência à PNRH”, destaca-se, as partes iniciais do diagnóstico de inicialmente, o déficit de implemen- fragilidades e conflitos socioam- tação da Lei nº9.433/1997 na bacia do bientais, e os capítulos finais, sobre Tapajós (assim como em outras ba- diretrizes (para o setor elétrico) e cias da Amazônia), inclusive na ela- recomendações (para outros seto- boração de planos de gestão de re- res). Em grande medida, isso reflete cursos hídricos (PGRH). A concessão, a falta de utilização de AAIs como pela ANA, de declarações de disponi- instrumento de triagem para ex- bilidade de recursos hídricos (DDRH) cluir empreendimentos com graves e sua conversão em outorgas em be- problemas socioambientais, inclu- neficio de empreendimentos hidre- sive em termos legais (por exem- létricos tem sido questionada pelo plo, as UHEs São Luiz do Tapajós e MPF, em ACPs movidas em diversas Chacorão, que alagariam extensos bacias da Amazônia (Brasil, Ministé- territórios do povo Munduruku). Na rio Público Federal, Procuradoria da concepção da AAI, suas diretrizes e República no Pará, 2014, 2015). recomendações são caracterizadas

Estudos de inventário 135 pelo setor elétrico como instrumen- que, além das limitações descritas tos que criam um “mundo ideal” acima, os poucos “seminários públi- para a implantação dos projetos cos” realizados para discutir os re- hidrelétricos, em um cenário sem sultados preliminares de AAIs têm mais conflitos sobre os recursos na- seguido o padrão típico de audiên- turais, onde há governança local e cias públicas em processos de licen- atendimento pelo Estado das prin- ciamento ambiental, sendo inócuos cipais demandas das populações no que diz respeito à tomada de de- locais. Além das desconsideração cisões, enquanto servem para a legi- de impactos e riscos socioambien- timação de empreendimentos. tais nesse cenário idealizado, falta um sistema de governança para Considerações finais garantir que as diretrizes e reco- Neste artigo, buscou-se identificar mendações propostas na AAI sejam uma série de limitações e conflitos minimamente efetivadas, de forma associados à elaboração e aprova- vinculante para o desenvolvimento ção de estudos de inventário hi- hidrelétrico. Trata-se de mais uma drelétrico (inclusive AAIs) na bacia grande diferença entre os instru- hidrográfica do Tapajós, destacan- mentos de AAI e AAE. Enquanto do-se: i) o subdimensionamento de a AAE avalia estrategicamente op- impactos e riscos socioambientais, ções, com base em benefícios e cus- inclusive cumulativos, em estudos tos (oportunidades e riscos), a AAI técnicos e, consequentemente, em pressupõe um cenário futuro em processos de tomada de decisão; ii) que se negam impactos e riscos, e a segmentação de estudos de AAI no qual todos os problemas regio- em sub-bacias, de modo a dificultar nais serão resolvidos. Nesse mundo a análise de impactos cumulativos imaginário, não há mais riscos, só em nível de bacia hidrográfica; iii) a oportunidades, e qualquer impacto desconsideração em AAIs da totali- é gerenciável, inclusive aqueles so- dade de empreendimentos selecio- bre os recursos hídricos, ecossiste- nados em diferentes estudos de in- mas aquáticos e meios de vida das ventário na mesma sub-bacia; e iv) populações locais, que se configu- a falta de espaços para participação ram entre os impactos (inclusive pública, especialmente das popula- cumulativos) mais relevantes. ções mais diretamente atingidas. Por fim, no que se refere à “parti- Claramente, essas deficiências, cipação pública” na elaboração dos em uma fase inicial e decisiva do estudos de inventário, verifica-se planejamento de AHEs, têm desen-

136 Millikan cadeado uma série de outros atrope- nos, inclusive o direito à CLPI; iii) los e conflitos em fases subsequen- a plena articulação com outras po- tes de licenciamento e implantação líticas setoriais e territoriais. Essas de empreendimentos. constatações sugerem a importân- Nesse sentido, é evidente a ne- cia da retomada de discussões sobre cessidade de um debate público instrumentos alternativos, como a aprofundado sobre a situação atual AAE, e sua incorporação entre as e sobre as necessidades de aprimo- ferramentas do Sisnama. ramento de estudos de inventário hidrelétrico de bacia hidrográfica, [artigo concluído em janeiro de 2016] inclusive no que diz respeito às AAIs, especialmente em termos de Referências bibliográficas sua compatibilização com outras Almeida, Juliana de. 2010. Alta ten- políticas públicas e com o marco le- são na floresta: os Enawene e o gal sobre direitos humanos e meio Complexo Hidrelétrico Juruena. ambiente. No curto prazo, merece Trabalho de conclusão curso (Es- atenção especial o fato de as deci- pecialização lato sensu em indi- sões políticas sobre a construção de genismo). Cuiabá, Universidade UHEs serem tomadas pelo setor elé- Positivo/Operação Amazônia Na- trico de forma isolada, sem envolvi- tiva. Disponível em: (acesso: 8 jun. 2015). tos: i) o atendimento à Resolução Brasil. Centrais Elétricas Brasilei- Conama nº1/1986, sobre a neces- ras S.A. Departamento Nacional sidade de avaliação de impactos de Águas e Energia Elétrica. 1997. cumulativos e sinérgicos dos diver- Manual de inventario hidroeletrico sos empreendimentos (barragens, de bacias hidrograficas. Brasilia. portos, hidrovias etc.) em nível de Brasil. Ministério da Infraestru- bacia hidrográfica; ii) a participação tura. Secretaria Nacional de ativa de populações locais, com o Energia. Centrais Elétricas Bra- pleno respeito aos direitos huma- sileiras. 1990. Plano Diretor de

Estudos de inventário 137 Meio Ambiente do Setor Elétrico (acesso: 10 nível em: (acesso: de maio. Brasília. Disponível em: 10 jun. 2015). (acesso: 10 ção Nacional do Índio. Diretoria jun. 2015). de Assistência. Coordenação- ___. 2005. Despacho nº2.152, de 20 -Geral de Patrimônio Indígena de dezembro. Brasília. Dispo- e Meio Ambiente. Coordenação nível em: técnico nº020/CMAM/CGPIMA/ (acesso: 12 jun. 2015). DAS/FUNAI. Brasília. ___. 2010. Despacho nº2.318, de 13 Brasil. Ministério de Minas e Ener- de agosto. Brasília. Disponível gia. 2009. Portaria nº372, de 1 de em: (acesso: (acesso: 10 ___. 2011. Despacho nº3.208, de 10 jun. 2015). de agosto. Brasília. Disponível ___. 2010. Aviso nº30/GM/MME, de 9 em: (acesso: tro do Meio Ambiente. Brasília. 11 de jun. 2015). Brasil. Ministério de Minas e Ener- ___. 2012. Despacho nº3.888, de 6 de gia. Agência Nacional de Energia dezembro. Brasília. Disponível Elétrica. 2001. Despacho nº513, em: (acesso: vel em: (aces- ___. 2009. Diretrizes para a elabora- so: 11 jun. 2015). ção de serviços de cartografia e ___. 2002. Despacho nº621, de 3 de topografia, relativos a estudos e outubro. Brasília. Disponível em: projetos de aproveitamento hi- (acesso: 11 jun. em: (acesso: 10 de julho. Brasília. Disponível em: jun. 2015).

138 Millikan ___. 1998. Resolução nº393, de 4 de Brasil. Ministério de Minas e dezembro. Brasília. Disponível Energia. Secretaria de Plane- em: (acesso: Energético. 2007. Manual de in- 10 abr. 2015). ventário hidroelétrico de bacias hi- Brasil. Ministério de Minas e Ener- drográficas. Rio de Janeiro, Cepel. gia. Agência Nacional de Energia Disponível em: (acesso: 10 abr. 2015). nº3, de 3 de maio. Brasília. Dispo- Brasil. Ministério do Meio Ambien- nível em: br/port/conama/legiabre.cfm?co- (acesso: 10 jun. 2015). dlegi=23> (acesso: 10 jun. 2015). Brasil. Ministério de Minas e Ener- Brasil. Ministério Público Federal. gia. Empresa de Pesquisa Energé- Procuradoria da República no tica. 2015. Plano decenal de expan- Pará. 2015. “Justiça de Manaus são de energia 2024. 2 v. Brasília. proíbe outorgas para empreendi- Brasil. Ministério de Minas e Ener- mentos na bacia do Amazonas”. gia. Empresa de Pesquisa Energé- Sítio da Procuradoria da Repúbli- tica; Consórcio Leme Concre- ca no Pará. Belém, 13 mar. Dispo- mat. 2009. Avaliação ambiental nível em: (acesso: 10 jun. 2015). gia. Empresa de Pesquisa Energé- ___. 2012. “MPF pede suspensão do tica; CNEC. 2010. Bacia hidrográ- licenciamento da usina São Luiz fica do rio Juruena: estudos de do Tapajós”. Sítio da Procuradoria inventário hidrelétrico. Brasília. da República no Pará. Belém, 26

Estudos de inventário 139 set. Disponível em: 1º da Lei nº 8.001, de 13 de mar- (acesso: 10 jun. 2015). ço de 1990, que modificou a Lei ___. 2014. “MPF vai à Justiça em 6 nº 7.990, de 28 de dezembro de estados para obrigar o planeja- 1989. Brasília. mento do uso de recursos hídri- ___. 2004. Lei nº10.847, de 15 de mar- cos”. Sítio da Procuradoria da Re- ço. Autoriza a criação da Empre- pública no Pará. Belém, 19 nov. sa de Pesquisa Energética - EPE e Disponível em: (acesso: 10 Amazônia, dos Campos Amazô- jun. 2015). nicos e Mapinguari, das Florestas Brasil. Poder Judiciário. Seção Judi- Nacionais de Itaituba I, Itaituba ciária do Pará. Subseção de San- II e do Crepori e da Área de Pro- tarém. 2012. Decisão. Processo teção Ambiental do Tapajós; alte- nº3883-98.2012.4.01.3902. Belém, ra a Lei nº12.249, de 11 de junho 19 nov. de 2010; e dá outras providên- Brasil. Presidência da República. cias. Brasília. 1981. Lei nº6.938, de 31 de agos- ___. 2012. Medida Provisória nº558, to. Dispõe sobre a Política Nacio- de 5 de janeiro. Dispõe sobre nal do Meio Ambiente, seus fins alterações nos limites dos Par- e mecanismos de formulação e ques Nacionais da Amazônia, aplicação, e dá outras providên- dos Campos Amazônicos e Ma- cias. Brasília. pinguari, das Florestas Nacionais ___. 1995. Lei nº9.074, de 7 de julho. de Itaituba I, Itaituba II e do Cre- Estabelece normas para outorga pori e da Área de Proteção Am- e prorrogações das concessões e biental do Tapajós, e dá outras permissões de serviços públicos e providências. Convertida na Lei dá outras providências. Brasília. nº12.678/2012. Brasília. ___. 1997. Lei nº9.433, de 8 de janei- Camargo Corrêa; Centrais Elé- ro. Institui a Política Nacional de tricas do Norte do Brasil S.a.; Recursos Hídricos, cria o Sistema Cnec. 2008. Estudos de inventá- Nacional de Gerenciamento de rio hidrelétrico dos rios Tapajós

140 Millikan e Jamanxim. Relatório final. em: ambiental integrada da alternati- (acesso: 11 jun. 2015). va selecionada, v. 25 e 26, apên- Instituto Socioambiental. 2012. dice E. “Risco de extinção de rituais e ___. 2011. Estudos de inventário hi- civilizações indígenas por hi- drelétrico da bacia do rio Jurue- drelétricas: o caso dos Enawe- na. Relatório final. Avaliação am- nê-nawê”. In: Millikan, Brent; biental integrada da alternativa Fearnside, Philip; Bermann, selecionada, v. 27, apêndice E. Célio; Moreira, Paula Franco Fanzeres, Andreia. 2008. “Parem (org.). O setor elétrico brasileiro e a as máquinas”. In: O Eco. 25 abr. sustentabilidade no século 21: opor- Disponível em: (acesso: 2 abr. 2015). 61-64. Disponível em: ventário. JUR-INV-00-01-RT. Pro- (acesso: 10 jun. 2015). cesso no48500.002970/00-72. ___. 2008. “STF pode aprovar Com- Grupo de Estudos Tapajós. 2014a. plexo Hidrelétrico do Jurue- Avaliação ambiental integrada na sem consulta aos povos in- da bacia do Tapajós (sub-bacia Ta- dígenas afetados”. In: Notícias pajós-Jamanxim). Disponível em: Socioambientais. São Paulo, 25 (acesso: 11 jun. tegrada-da-bacia-do-tapajos/> 2015). (acesso: 10 jun. 2015). Jgp Gestão Ambiental. 2007. “Se- ___. 2014b. “Sumário da avaliação ma-MT aprova a avaliação am- ambiental integrada é apresenta- biental integrada de 10 aprovei- do em Itaituba”. Sítio do Grupo tamentos hidroelétricos no alto de Estudos Tapajós. Disponível Juruena”. Disponível em:

Estudos de inventário 141 www.jgpconsultoria.com.br/no- dústria e Comércio Ltda. 2001. ticias/juruena.php?acao3_cod0= Bacia hidrográfica do rio Juruena 9e6713f58cc19349ecc794686896c (trecho alto): estudo de inventá- 1f6> (acesso: 11 jun. 2015). rio hidrelétrico, trecho MT 235. Maggi Energia S.a.; Nascentes; Processo nº48500.002970/00-72. Rischbieter Engenharia In-

142 Millikan Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico: o caso da avaliação ambiental integrada da bacia do Tapajós1 Rodrigo Folhes

convite para participar deste que fazem parte de certa tradição 1. Gostaria de agradecer livro se deu quando eu estava antropológica brasileira (cf. Tei- o desafio lançado por Brent Millikan com o começando a refletir sobre xeira & Souza Lima, 2010), minha convite para que eu Ominhas experiências no universo pesquisa de doutoramento, junto escrevesse este artigo, dos estudos de impacto ambiental ao Programa de Pós-Graduação em bem como a leitura atenta e meticulosa (EIA), particularmente do compo- Ciências Sociais da Universidade Fe- de Mauricio Torres e nente indígena (ECI). Nessa área de deral do Maranhão (UFMA), volta-se Daniela Alarcon. Apesar dos esforços conjuntos, atuação profissional, relacionei-me à análise de instituições e grupos de devo ressaltar que com povos indígenas, empresas de poder, vista ainda com muito estra- qualquer insuficiência consultoria ambiental, com o Es- nhamento por nossos pares. deve ser atribuída às minhas limitações. tado e, em menor grau, com mo- Encaro esse desafio tendo em vimentos sociais. A complexidade vista dois objetivos: 1. Participar dessas relações traz, em seu conjun- dos esforços para a amplificação to, grandes dificuldades para uma do debate sobre o uso dos recursos pesquisa que pretenda abordar os naturais e as formas de conquista exercícios de poderes de Estado sub- empregadas pelo Estado, em alguns jacentes aos processos administra- casos, violando o ordenamento ju- tivos de licenciamento ambiental rídico brasileiro e internacional – sobre o “componente indígena”, po- percebo que o descumprimento dos tencializando certos desconfortos, direitos coletivos e difusos previs- aqui em parte enunciados. Situan- tos na Constituição Federal de 1988 do-se no marco dos estudos sobre a configura-se como umcontinuum vida política e as políticas públicas, de práticas que visam expropriar

143 2. O Consórcio Tapajós territorialmente povos indígenas A história das relações entre po- é composto pelas e tradicionais, assim como a popu- vos indígenas e Estado nacional está empresas Centrais Elétricas Brasileiras S.A. lação amazônida, de modo geral; invariavelmente imbricada nas es- (Eletrobras), Centrais 2. Inserir-me nas discussões acerca truturas administrativas desenvol- Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte), das reflexões etnográficas entre bu- vidas pelo conquistador para impor Endesa Brasil S.A, GDF rocratas, elites e corporações (Casti- aos povos conquistados suas políti- Suez S.A., Copel Geração lho et al., 2014), enfrentando todo o cas de colonização, integração e de- e Transmissão, Cemig Geração e Transmissão mal-estar provocado pela realização senvolvimento. As técnicas de gover- S.A., Neoenergia S.A., de uma pesquisa antropológica a no sobre os índios no processo de EDF e Construção e Comércio Camargo partir de uma prática profissional integração de tais populações a uma Corrêa S.A. (Bronz, 2014). comunidade política imaginada ne- O que pretendo apresentar nes- cessitaram, principalmente a partir 3. Para maiores detalhes, ver a ação te texto é uma situação etnográfica de um ideal positivista, transformar civil pública (ACP) relacionada a minha participação a violência aberta em violência sim- nº1.23.002.000087/2009- 91, proposta pela no estudo de avaliação ambiental bólica. O exercício do poder tutelar, Procuradoria da integrada (AAI) da bacia do Tapa- como informa Souza Lima (1995), República no município jós, junto à empresa de consultoria serviu para que o Estado, de pou- de Santarém. Disponível em: . jós, refletindo mais especificamen- considerado nacional. O exercício da te sobre as condições de produção tutela, iniciado institucionalmente desse estudo e seus embates epis- com o Serviço de Proteção ao Índio temológicos e políticos na análise e Localização dos Trabalhadores Na- de conflitos socioambientais in- cionais (SPILTN) – órgão criado em dígenas2. Entendo que a AAI é um 19104 e sucedido pela Fundação Na- exemplo bastante elucidativo das cional do Índio (Funai), estabelecida

4. Deve-se ressaltar tentativas de conquista dos povos in- em 1967 – e, teoricamente, extinto que o poder jurídico dígenas por meio de determinados com a promulgação da Constituição da tutela só passou procedimentos administrativos le- de 1988, pode ser lido ainda na gra- a ser exercido após a aprovação da lei vados a efeito pelo Estado. Note-se mática do conflito instaurado por nº5484/1928 (cf. Souza que, nesse caso, a AAI, apesar de ter novos procedimentos administrati- Lima, 1995, 2009, 2012). sido criada pelo setor elétrico para vos. Nesse quadro, o discurso sobre atender demandas relacionadas ao a vocação energético-econômica do “meio ambiente”, só foi elaborada país, aliado à noção de desenvolvi- em razão de ordem judicial decor- mento sustentável, legitima a gestão rente de ação proposta pelo Minis- de territórios e suas coletividades tério Público Federal (MPF)3. por um corpo de especialistas, for-

144 Folhes talecendo-se a presença do Estado, relaciona-se ao modelo de gestão da com programas ambientais finan- questão indígena? ciados em grande parte pelo capital A consideração detalhada dessas privado. indagações não faz parte do escopo Podemos dizer que, assim como deste texto, mas são importantes a política de colonização do SPILTN questões de fundo na análise sobre teve como um de seus objetivos li- o caso da AAI e sobre sua maneira berar terras por meio de procedi- particular de exercer o poder de ocu- mentos de atração e pacificação, a par e gestar o território nacional. Por política econômica atual, por meio ora, procurarei pensar no enquadra- de procedimentos de licenciamento mento conferido pelo setor elétrico ambiental, procura liberar terras ao meu trabalho como consultor, de para o crescimento econômico, cal- modo a tornar o documento final da cado em parcerias entre os setores AAI cientificamente validado pelo público e privado? Podemos enten- empreendedor, pelas empresas con- der que a noção de desenvolvimento sultoras e pela administração pú- sustentável faz a intermediação sim- blica. Entendo que o resultado final bólica entre as distintas formas de da AAI, no que concerne à análise execução das políticas públicas? Os de conflito com os povos indígenas, programas ambientais poderiam se não atingiu os objetivos propostos relacionar às estratégias dos exer- no documento por mim elaborado cícios de poder do Estado para dar e tampouco aqueles constantes no marcha ao “grande cerco de paz”5? contrato firmado com a empresa 5. Para fazer alusão Estariam esses programas – mesmo consultora, que previa uma análise ao título do livro de Souza Lima (1995), que em face do fortalecimento dos mo- crítica dos conflitos do setor elétri- analisa novas formas vimentos e associações indígenas, co com os povos indígenas. Foram de controle geopolítico do território nacional, nos dias de hoje, para exercer as várias as interferências, cortes e assumindo um viés suas governanças territoriais – en- alterações de significado do texto interpretativo no qual quadrados no processo pedagógico original. Não pretendo sugerir que o poder tutelar é uma forma reelaborada de civilização (Souza Lima, 2002) as minhas análises sobre os con- de uma guerra, com de matriz evolucionista? Até onde flitos com os povos indígenas não repetições modificadas de conquista. a promoção do multiculturalismo fossem passíveis de crítica – longe como estratégia de implantação de disso. Creio, porém, que o debate políticas neoliberais por parte dos travado em torno de meu trabalho Estados nacionais e bancos multi- proporciona um caminho de refle- laterais de desenvolvimento (Barro- xão acerca das teorias e conceitos so Hoffmann, 2005; Barroso, 2014) que constituem o reservatório onde

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 145 6. Poderia estimar as equipes técnicas desses estudos ção de conflitos com as populações um número dez vezes ambientais (empresariais) parecem tradicionais e indígenas, e um nú- maior de profissionais contratados para tra- buscar seus argumentos. É possível mero muito superior de cientistas tar dos meios físicos e visualizar as práticas empresariais para os estudos do meio físico e bió- bióticos e, ainda sim, e administrativas, assim como suas tico6. É a partir do peso atribuído a subestimar o número de pesquisadores en- performances, como um campo certos saberes que se pode começar volvidos com o estudo. de lutas pela definição dos concei- a entender como se dá a participa- Tal desproporção fica ainda mais patente se tos mais relevantes para legitimar ção de cientistas sociais nos qua- levarmos em conta a uma determinada forma de conhe- dros analíticos institucionais. Como totalidade dos estudos cimento voltada à delimitação de corolário, os próprios cientistas so- de inventário hidrelé- trico, do qual a AAI se um dado território e à atuação no ciais que participam desses quadros origina. Pretendo consi- mesmo (Bourdieu, 2010: 107-132). parecem, por um lado, ser guiados derar essa equação em futuros trabalhos. Por outro lado, é possível apreender ao canal de forças das ciências ditas como se estabelecem e se executam hard e, por outro, ensacados pelos 7. Em linhas gerais, disciplinas como física, as práticas empresariais voltadas à limites da geografia física e econô- química, biologia e participação no ritual do licencia- mica, a delimitar a fronteira em que geologia são conside- 7 radas hard sciences ou mento ambiental. se dará a gestão territorial . “ciências duras”. Em Deve-se ressaltar, primeiramen- A oposição ontológica entre na- oposição, antropologia, te, que a AAI já denuncia em seu tureza e cultura é emblemática história, psicologia e so- ciologia são chamadas sumário a importância despropor- nesses estudos. Mas, afora a ope- de soft sciences, “ciên- cional atribuída às questões ditas racionalidade do pensamento dua- cias moles”. Essa divisão apoia-se basicamente “naturais” em detrimento das “so- lista, que marca tanto as ciências na suposição de que ciais”. Instaura-se desde cedo, por- naturais quanto as ciências sociais as “ciências moles”, as ciências sociais, carece- tanto, uma linha, uma fronteira, no decurso de institucionalização riam de rigor na consti- delimitada desde a elaboração do de suas disciplinas, no âmbito dos tuição de seus métodos termo de referência que orienta estudos ambientais para fins de li- científicos. Para um debate sociológico a feitura desses estudos. Trata-se cenciamento ambiental, espera-se, acerca do problema de uma hierarquização de saberes principalmente de antropólogos, da diferenciação entre as hard sciences e as muito bem marcada, que se ex- um padrão narrativo no molde ma- soft sciences, destacan- pressa, inclusive, na quantidade linowskiano, que prime pela máxi- do aspectos de natu- de profissionais das distintas áreas ma objetividade, desconfie das teo- reza organizacional da atividade científica, em que participam de estudos que en- rias e generalizações dos nativos, detrimento das discus- volvem avaliação de impactos “am- e omita as condições concretas da sões de ordem ideológi- ca e filosófica, isto é, em bientais”. A título de comparação, pesquisa antropológica (Oliveira, torno dos componentes basta observar que, no caso em aná- 1999: 61). O conceito de cientista cognitivos e prescritivos lise, foram contratados apenas dois neutro, herança positivista, está for- acerca da organização da atividade científica, cientistas sociais para fazer a avalia- temente incrustado nesses estudos.

146 Folhes E o que sobra do “desencantamen- Hoffman, 2002), e abordagens que ver Beato F. (1998). to do mundo” é o recrudescimento se aproximam da ecologia política Para uma recusa à dissociação entre do valor de verdade – uma verdade (Little, 2006; Barbosa de Oliveira, método e prática que coloque os empreendimentos 2012) –, me apoiarei no capítulo do sociológica, ver como factíveis e a custos socioam- livro Multiculturalismo, de Semprini Bourdieu et al. (2004). bientais também possivelmente (1999), chamado “O nó górdio epis- 8. “O conceito de ‘desen- manejáveis8. temológico”. O autor, ao apresentar cantamento do mundo’ [de Max Weber] repre- Refletindo sobre as redes e rela- a questão multicultural a partir das sentou a busca de um cionamentos pessoais que estrutu- diferenças que marcaram a socieda- conhecimento objetivo, ram o campo do desenvolvimento, de norte-americana, sobretudo após liberto de sabedorias ou ideologias reveladas e/ Ribeiro caracteriza o “desenvolvi- os anos de 1960, com o movimento ou aceitas. Nas ciências mento como a expansão econômica pelos direitos civis, faz uma interes- sociais ele traduziu-se na exigência de que não adorando a si mesma” (2012: 197). sante análise sobre as tradições in- rescrevêssemos a histó- Nesse sentido, quais são as carac- telectuais que alicerçam o que con- ria em nome das estru- turas de poder vigentes. terísticas do campo de poder que sidera serem uma epistemologia Tal exigência constituiu sustenta o sistema de crença de multicultural e uma epistemologia um passo fundamental uma parcela específica do campo monocultural10. No embate entre no sentido de libertar a atividade intelectual de do desenvolvimento, qual seja o ambas as tradições de pensamento, manietadoras pressões setor elétrico? Qual a perspectiva Semprini destaca: externas e da mitologia, e continua a manter-se epistemológica que se faz hegemô- válida” (Wallerstein et nica nesse campo? Tendo em vista a posição multicultural apoia-se so- al., 1996: 110). essas inquietações mais abrangen- bre uma mudança de paradigma, 9. As teorias que acom- tes9, tomo como principais pergun- ela invoca a estabilidade, a mistura, panharam o tema do desenvolvimento, dire- tas deste texto as seguintes: 1. Que a relatividade como fundamentos de cionadas a sua descons- ciência está a legitimar o processo seu pensamento. A análise monocul- trução (Ferguson, 1990; Escobar, 1995), junto às administrativo de territorialização, tural aparece assim como infinita- correntes do “pós” (pós- limitando o enquadramento analí- mente mais simples e tranquilizado- -estruturalismo, pós- tico dos conflitos com os povos in- ra. Ela garante que a verdade existe, -moderno, pós-colonial e pós-desenvolvimento) dígenas a “espaços” controláveis? 2. que é possível conhecê-la, que existe e aos estudos subal- Quais os saberes/fazeres que se espe- uma solução para cada problema e ternos, representados, principalmente, pelos ra de um “especialista em índios”? que é a ciência quem dará tal solu- trabalhos de Sachs Partindo, assim, para essas ques- ção (1999: 89). (2000 [1992]), Mignolo tões – que perpassam trabalhos (2003 [2000]), Quijano (2000), Rist (2008), Spi- reconhecidos sobre processos de Ao colocar a dualidade nesses vak (2010 [1988]) e San- territorialização no Brasil (como Oli- termos, o autor argumenta que a tos (2010), entre outros, serão essencialmente veira, 1998) e sobre novas políticas opinião pública, apoiada em uma importantes para um indigenistas (Souza Lima & Barroso desconfiança anti-intelectual, tende debate futuro.

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 147 10. Para o primeiro caso, a se posicionar pela existência do era como empreender uma micror- Semprini (1999: 81-96) “bom senso”, das coisas “como elas resistência, nos termos de Scott passa em revista as principais correntes de são”, e não do lado do multicultura- (2002), dentro da própria estrutura pensamento pós-Au- lismo. Nesse sentido, e a partir do criada pelo setor elétrico. guste Comte, chegando rótulo criado em torno dos apoia- Na verdade, minha inquietação até os pós-modernos, esquematizando qua- dores do multiculturalismo, “para tinha origem nas tratativas ocor- tro pilares principais a opinião pública norte-americana ridas entre a Coordenação Geral da epistemologia multicultural. Seriam atual, não existe conflito entre duas de Gestão Ambiental (CGGAM) eles: a realidade é uma epistemologias, mas entre a Améri- da Funai e a Superintendência de construção, as interpre- ca autêntica e seus inimigos” (Ibid.: Gestão e Estudos Hidroenergéticos tações são subjetivas, os valores são relativos, 90). Acredito que o cenário acerca (SGH) da Agência Nacional de Ener- o conhecimento é um das representações políticas e cien- gia Elétrica (Aneel) acerca das si- fato político. Para o segundo caso, recorre a tíficas sobre os aproveitamentos hi- tuações de conflito vivenciadas nas termos do filósofo e es- drelétricos (AHEs) no Tapajós, assim terras indígenas (TIs) da bacia do Ta- critor norte-americano como em outras bacias, possa ser pajós e que reverberavam em nosso John Searle, como uma espécie de síntese sobre percebido de forma bastante pró- trabalho como técnicos da Funai. a herança intelectual xima às “aporias conceituais” que Os registros ativos fornecidos pela ocidental, destacando- -os: a realidade existe circunscrevem o espaço intelectual Aneel às diferentes empresas para a independentemente e político descrito por Semprini. realização de estudos de inventário das representações humanas, a realidade hidrelétrico causavam uma série de existe independente- Situando-me no campo do impactos aos povos indígenas, em mente da linguagem, razão dos métodos de concorrência a verdade é uma desenvolvimento questão de precisão Em dezembro de 2012, aceitei o con- estabelecidos pelas empresas já no de representação, o vite da empresa de consultoria am- primeiro procedimento para avaliar conhecimento é obje- tivo. O encadeamento biental Ecology Brasil, sediada no a potencialidade energética de um lógico dessas premissas Rio de Janeiro, para participar do rio11. Na ocasião, os representantes levaria a outros quatro estudo da AAI da bacia Tapajós-Ja- da SGH/Aneel deixaram claro que o pontos: uma redução do sujeito às suas manxim. Pelo lado do contratante, principal objetivo do órgão é conhe- funções intelectuais e havia a expectativa de que a minha cer o potencial hidroenergético que cognitivas, uma desva- lorização dos fatores participação na avaliação de confli- os rios podem oferecer. E, basean- culturais e simbólicos tos com os povos indígenas fosse do-se em uma prerrogativa que pre- da vida coletiva, a um fator positivo, tendo em vista za pela concorrência entre os em- crença em uma base biológica do comporta- a experiência acumulada nos anos preendedores, o órgão não impõe mento, orgulho pelas em que trabalhei como assessor da restrições aos pedidos de registro conquistas do pensa- mento ocidental. Funai, acompanhando procedimen- para a realização dos inventários. tos administrativos de licenciamen- Àquela altura, procurávamos to ambiental. Para mim, o desafio (técnicos da CGGAM) entender a

148 Folhes atuação e controle dessa agência dos órgãos setoriais de Estado para a 11. Isso ocorria princi- relativos aos estudos de inventário, obtenção da licença ambiental sem palmente nas bacias hidrográficas situadas para melhor responder às pressões a devida identificação e avaliação no estado de Mato e demandas que nos chegavam no dos impactos sobre terras e povos Grosso, onde inúmeras âmbito dos procedimentos de li- indígenas na fase de licenciamento, empresas (com a parti- cipação de representan- cenciamento ambiental. Tratava-se e das postergações das mesmas, por tes do agronegócio) se de compreender os procedimentos meio de um dos termos utilizados lançaram no potencial mercado energético, adotados por cada instituição, com na gramática do licenciamento: as com a expectativa de vistas a projetar um procedimento condicionantes15. Antecipar as avalia- construção de centenas de pequenas centrais comum e anterior à fase de licencia- ções de impacto e a participação hidrelétricas (PCHs). mento ambiental. Foram dessas re- das populações indígenas nos pro- Quando da aprovação uniões promovidas pela Funai com jetos e estudos, em minha cabeça, de despacho do estudo de inventário do rio a Aneel que surgiu meu incômodo ainda tomada pelo ordenamento Tapajós (em que foram em relação à noção autoevidente e de políticas públicas, era essencial. identificados sete AHEs 12 com potência de 14.245 nada natural de “vocação energéti- Observava, também, a arena públi- megawatts de capaci- ca”, bem como a constatação de que ca em torno dos empreendimentos dade instalada), publi- se aplicavam critérios meramente e a apropriação de algumas ideias e cado no Diário Oficial da União (DOU) no dia receituários de avaliação dos impac- diretrizes, identificáveis nas formas 25 de maio de 2009, tos ambientais13. de ação coletiva e nos argumentos a agência reguladora informou que de 1999 Vislumbrei assim no trabalho de empregados, buscando interferir a 2009 tinha aprovado consultoria a possibilidade de in- no processo decisório que estabe- 430 estudos de inven- serir na AAI outros pontos de vista lece normas e regras de utilização tário hidrelétrico no país, entre UHEs e PCHs, sobre o ambiente, que fossem defi- de recursos naturais, no sentido de com potencial de 62,8 nidos pela análise das relações so- ampliá-lo. mil megawatts (ver: ). Desse mon- distanciaria de nexos passivos de nha participação nesse estudo – que tante de estudos, uma quantidade bastante vocações econômico-energéticas. não significa aceitação do mesmo, expressiva foi realizada Nesses termos, imaginava apontar como veremos mais à frente – possi- próximo a TIs, ou dentro delas. – em um documento que, em tese, bilitou-me um pouco mais de inser- deveria anteceder os EIAs – impac- ção no campo empresarial que atua 12. O paradoxo é pro- tos e diretrizes que pudessem ser na burocracia do desenvolvimento posital. Quando afirmo que a noção é autoe- levados em consideração pelos ges- (Barroso, 2014). Pude acompanhar vidente, relaciono-a à tores competentes. Era conhecedor um pouco das rotinas e exercícios perspectiva do setor elétrico, a partir de um das pressões e exercícios de poder de poder que se situam na relação

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 149 determinismo vindo entre Estado, empresas privadas e quando o procedimento adminis- de certa apropriação povos indígenas e tradicionais. Em- trativo de licenciamento ambiental da geográfica física e econômica que ca- bora meu lugar como consultor te- correspondente já está em anda- racteriza o rio como nha propiciado um contato maior mento. No entanto, muitas articu- vocação energética. A com funcionários de cargos técnicos lações advindas de planejamentos meu ver, não se trata de uma noção natural, já e gerenciais da empresa de consul- e estudos são realizadas pelo setor que ela oculta em suas toria, participei de reuniões com a elétrico até que se chegue aos EIA produções cartográficas e em outras formas de presença do alto escalão do setor elé- propriamente ditos. Grande parte discurso as ligações trico16. E pude, de maneira mais inci- das UHEs que barraram ou estão (inclusive simbólicas) siva, ter contato com o uso de uma em vias de barrar os principais rios das populações indíge- nas e ribeirinhas com o gramática própria para lidar com os da Amazônia para fins de produção ambiente. Não se trata conflitos na bacia do Tapajós, tanto energética é resultado de estudos de um espaço natural inerte e silencioso, por meio de discursos proferidos em iniciados nos anos de 1970. De lá como informa Barbosa reuniões, quanto de comentários es- para cá, pouco ou quase nada mu- de Oliveira (2012: 163), critos em resposta aos documentos dou no que diz respeito às defini- recuperando reflexões de Tim Ingold, mas de que entreguei à empresa. ções acerca da melhor alternativa um ambiente que só Acredito que, por ter sido um de aproveitamento de potencial hi- pode ser definido em função dos seres vivos observador direto do ambiente po- drelétrico das bacias hidrográficas. que ali habitam e com lítico-administrativo dos aparelhos Não fosse a determinação normati- o qual estabelecem relações. estatais de poder, via Funai, e das va de se realizar a AAI, esses estu- empresas privadas (em escala bem dos possivelmente continuariam 13. A Aneel não mais reduzida), via consultoria am- sendo analisados unicamente por questiona a análise de biental, em seu exercício junto aos técnicos e gestores do setor elétri- avaliação dos impactos levantados pelos dife- povos indígenas, posso trazer algu- co, respeitando-se os interesses nacio- rentes estudos; parte-se mas questões para o debate sobre a nais, bem longe de ideologias políticas. do pressuposto de que doxa ambiental, sobre a qual Zhouri Evitar-se-ia, assim, a participação de a equipe técnica que assina os estudos tem (2012) discorre (ver também Zhouri pessoas supostamente “sem quali- responsabilidade sobre et al., 2005), e sobre o poder tutelar, ficação técnica para tecer críticas os dados apresenta- dos. Após os estudos questão analisada por Souza Lima ao setor elétrico”, como explicitou entregues, a agência (1995), mas, principalmente sobre a Empresa de Pesquisa Energética apenas confere-os com um check list, para as práticas empreendidas cotidiana- (EPE) ao antropólogo contratado então aceitá-los, não se mente por certas elites para gestar e pela mesma – que ousou considerar detendo na avaliação gerir territórios (Souza Lima, 2002)17. o AHE São Manoel inviável na pers- de impactos. O que se faz é uma ponderação pectiva do ECI – ou de acordo com acerca do custo x bene- O poder de controle social da AAI as ênfases dadas pela Coordenação fício de cada repartição de queda. Para melhor Normalmente, tomamos conheci- Técnica de Meio Ambiente (CTMA) visualização técnica mento da existência de um AHE à minha análise sobre os conflitos

150 Folhes 20 dos empreendimentos com os po- ambientais se fazem necessárias . dessa relação, consulto- vos indígenas. Minha observação, porém, não foi res desenvolvem tabelas comparativas, com A incorporação da AAI aos es- aceita, uma vez que a CTMA consi- distintos vetores asso- tudos de inventário é um exemplo derou-a “subjetiva”. ciados ao que seria, ou bastante emblemático do que Lei- Também foram inseridas no ma- quais seriam, o custo e o beneficio. A repartição te Lopes chamou de processo de nual de 2007 orientações sobre os de queda que apresen- ambientalização18. A obrigatoriedade usos múltiplos da água, em conso- tar melhor relação entre ambos será escolhida dessa avaliação decorreu de um “es- nância com a Política Nacional de como a melhor e, pos- forço” de revisão do conteúdo rela- Recursos Hídricos (PNRH), e sobre sivelmente, será apro- tivo ao Manual de inventário hidroe- novos sujeitos de direito, a saber, vada pela Aneel como aproveitamento ótimo. létrico de bacias hidrográficas (1997), populações tradicionais. Para o primei- Como se vê, o fato de iniciado pelo Ministério de Minas e ro caso, em observação ao manual, a questão ambiental ser analisada exclusi- Energia (MME) em 2004, para aten- escrevi no documento intitulado vamente com base em der às “mudanças ocorridas, nestes “Conflitos com povos indígenas - dados secundários pode levar a conclusões par- últimos dez anos [1997-2007], no parte II”21 um item na perspectiva ciais, que subestimem setor elétrico brasileiro, particular- de ser incorporado na AAI, intitula- os potenciais impactos. mente nas áreas da legislação, do do “Vocação, usos múltiplos e ‘etc’: A partir do aceite de um dos estudos, são meio ambiente, dos recursos hídri- conflitos socioculturais e cosmoló- estabelecidos prazos cos e dos aspectos institucionais” gicos”22, que foi categoricamente para que todos que solicitaram o registro (Brasil, Ministério de Minas e Ener- desconsiderado no resultado final do trecho inventariado gia, Secretaria de Planejamento e do estudo. Abaixo, reproduzo um também os entreguem. Desenvolvimento Energético, 2007: pequeno trecho desse item: A fixação desses crité- rios está estabelecida 3). Elaborado pelo MME e pelo Cen- nas resoluções nor- tro de Pesquisas de Energia Elétrica Para o setor elétrico, a bacia tem mativas nº393/1998 e nº412/2010. (Cepel), no âmbito do projeto Energy uma vocação. E essa vocação é a ge- Sector Technical Assistance Loan (Proje- ração de energia, que precisa ser ve- 14. Note-se que o tra- to de Assistência Técnica ao Setor rificada, estimada em seu potencial balho de consultoria apoia-se, em grande 19 Elétrico - Estal) , do Banco Mundial, hidrelétrico. O estudo de inventário medida, em relações o manual estabelece em seu capítu- é responsável por determinar esse pessoais com inte- grantes das redes do lo 6 as instruções para a elaboração potencial, estabelecendo a melhor licenciamento ambien- da AAI. Em linhas gerais, como ob- divisão de queda por meio da rela- tal. Para um debate servei no produto entregue à Ecology ção custo x benefício, ou seja, má- sobre as “amizades instrumentais”, ver intitulado “Conflitos com os povos ximo de energia ao menor “custo” Wolf (2001). Já para indígenas”, procurou-se adequar as e “com mínimo de impacto ao meio uma reflexão acerca do capital específico do políticas e linhas de financiamento ambiente”. O inventário hidrelétrico campo ambiental, ver à rubrica de desenvolvimento sustentá- dos rios Tapajós e Jamanxim é bem Zhouri (2012). vel, no marco do qual as garantias claro a respeito da suposição acima

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 151 15. Como havia nota- relatada, tomemos como exemplo o se criado as condições para que o ho- do na elaboração das seguinte texto: mem dela se apropriasse e pudesse diretrizes da AAI para a questão indígena, “a “A exemplo de seus congêneres, os gerar crescimento econômico, por defesa de que o licen- rios Tocantins, Xingu e Madeira, a isso o termo “vocação”, expressando ciamento ambiental faixa de transição entre os sedimen- tanto ideologicamente o domínio tem sido uma ferra- menta preventiva entre tos Terciários e o Embasamento Cris- do homem sobre a natureza, quanto o desenvolvimento talino permite a exploração de queda economicamente a incorporação de econômico e social e a proteção ao meio em trechos aquinhoados com vazão de um ativo. ambiente não parece valor considerável, resultando em se enquadrar na ga- aproveitamentos de economicidade ga- rantia da não violação É interessante notar que esse de direitos indígenas rantida. O mesmo ocorre no rio Tapa- item, especificamente, traçava uma legalmente constituí- jós, justamente no trecho das corre- relação direta entre o caso em aná- dos, como pudemos observar a partir dos deiras de São Luiz, onde é possível a lise e os resultados do ECI do AHE procedimentos instituí- implantação de um empreendimen- São Manoel, que, à época, havia dos na região da bacia do Tapajós que foram to com 6.133 MW [megawatts], com sido modificado pela EPE. Essa é a licenciamento, uma um mínimo de impacto no Parque uma questão importante, uma vez vez que todos tiveram Nacional da Amazônia” (ELN/CNEC, que todas as análises no texto que problemas bastante graves, infringindo o 2008:9, grifo meu). faziam referências a outros em- caráter da precaução, Embora deva ser ressaltado que exis- preendimentos da bacia do Tapajós dos direitos humanos, da necessidade de tem leis de regulação de mercado e e que extrapolavam o recorte geo- reprodução social e que estabelecem a necessidade de gráfico adotado nesse estudo não cultural indígena, de custos econômicos reduzidos visan- foram consideradas pertinentes participação e controle social, e da proteção ao do o interesse público, os próprios para a versão final da AAI. Todas as meio ambiente” (texto termos e categorias utilizados são análises críticas aos procedimentos original entregue pelo autor à Ecology, intitu- reveladores da filosofia que opera administrativos de licenciamento lado “Diretrizes e reco- nesses procedimentos de ocupação, ambiental, ou mesmo simples men- mendações”). conquista e domínio territorial, com ções aos empreendimentos de Belo

16. Não se tratava de relações pragmáticas totalmente Monte, Teles Pires, São Manoel e uma novidade, já que avessas aos relacionamentos que Juruena, foram retiradas do texto. ocupei cargo de direção e assessoramento su- os índios mantêm com os rios. Não As primeiras alegações da CTMA perior (DAS) na Funai, importam as relações que possam partiram do pressuposto de que as havendo encontrado existir entre as pessoas e o ambien- descrições dos conflitos envolvendo os mesmos atores que pertencem a essa “elite te. São externalidades arbitrárias os povos indígenas estavam deta- político-administrativa” demais para conceber políticas de lhadas demais em comparação com (Barroso, 2014) em outras reuniões de desenvolvimento econômico. Do os outros conflitos existentes na governo. ponto de vista da economia, grosso bacia. Ademais, entenderam que as modo, é como se a “natureza” tives- análises que consideravam outros

152 Folhes AHEs – em sua maioria, em estágios de, necessita de assinatura técnica. 17. Almejo, em um exer- avançados do licenciamento am- Além disso, como consta no termo cício posterior, a partir dos trabalhos de Bar- biental – estavam sendo orientadas de referência elaborado pela Eletro- roso Hoffmann (2005, por “juízos de valor” e, portanto, bras, “quaisquer alterações meto- 2011) e Barroso (2014), discorrer empiricamen- não corresponderiam à “verdade” dológicas que sejam necessárias no te sobre como as mobi- dos fatos. Chamou-me atenção o es- desenvolvimento do estudo deverão lizações dessa elite são forço considerável para que não fos- ser previamente acordadas e auto- feitas, levando-se em conta a especificidade sem retomadas críticas a AHEs em rizadas pela Coordenação Técnica desses grupos domi- andamento. de Meio Ambiente”, sem necessa- nantes. Por meio de um breve exercício riamente envolver a participação comparativo acerca das interferên- do antropólogo responsável. Isso 18. O termo ambientali- cias das equipes técnicas do setor quer dizer que, no caso da AAI, exis- zação é um neologismo desenvolvido por homo- elétrico em estudos de seu inte- te um controle social muito mais logia a outros usados resse, creio ser importante desta- explícito, com vistas a atender as nas ciências sociais, tais car também as diferenças entre as orientações do cliente, que no caso como industrialização e proletarização. Designa alterações realizadas pela EPE no do ECI. São duas situações distintas o processo de consti- ECI do AHE São Manoel e aquelas de interferência no resultado dos tuição de uma questão coletiva e pública, a empreendidas pela Ecology e pelo estudos, mas com objetivos teórico- “questão ambiental”, CTMA no meu trabalho. No primei- -metodológicos e políticos muito que emerge como fonte de legitimação e argu- ro caso, trata-se de um estudo vol- próximos. mentação nos conflitos tado à avaliação de impactos junto Os limites deste artigo não me sociais, bem como de aos povos indígenas, observando permitem realizar uma “etnografia uma interiorização de comportamentos e as diretrizes da Funai, cuja norma mais densa” (para usar uma das ale- práticas por meio da administrativa legal estabelece que gações da CTMA contra o meu traba- promoção da educação ambiental (Leite Lopes, o mesmo seja coordenado por um lho) sobre as condições de produção 2006). antropólogo e que a equipe técnica do documento, de forma a detalhar deve assinar o estudo. Temos, para o campo no qual me inseri. Entre- 19. Esse mesmo projeto esse caso, uma desconsideração tanto, a partir do percurso do docu- financiou a contrata- ção de 84 estudos, que tripla da norma, pois o estudo não mento original escrito por mim e serviram de base téc- foi coordenado pelo antropólogo, a dos embates travados na defesa dos nica para a elaboração do Plano Nacional de equipe técnica não assinou o estu- meus argumentos junto ao CTMA e Mineração 2030 (PNM do e a EPE suprimiu trechos impor- à Ecology, é possível observar um 2030), pela Secretaria tantes das análises do antropólogo pouco dos bastidores do “mercado de Geologia, Minera- ção e Transformação sem a sua permissão. No meu caso, de projetos” e a consequente gestão Mineral (SGM/MME). trata-se de um estudo do setor elé- de territórios e populações promo- Ver: .

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 153 Note-se que, para Primeiramente, é importante o cliente, passa em grande medida compor o grupo de notar que, para trabalhar como pela capacidade de gestão institu- trabalho responsável pela revisão e elabora- consultor, é necessário, na maioria cional, econômica e técnica desse ção do novo manual, das vezes, estar inscrito junto ao ca- gerente de projetos24. Tais gerentes foram convidados vá- rios órgãos de governo, dastro nacional de pessoa jurídica costumam se dividir em áreas de relacionados a distintas (CNPJ), para que a empresa contra- atuação: socioeconomia, biótica e áreas temáticas. A tante possa pagar pelo seu serviço. física. No entanto, possuem em sua Funai, contudo, não foi um deles, a despeito Isso é emblemático, pois já delimi- prática experiências multidiscipli- de o componente-sín- ta os possíveis participantes desses nares bastante relevantes. tese “povos indígenas” figurar na estrutura projetos, privilegiando pessoas que Uma pergunta a se responder: o analítica dos critérios se voltam para essa atividade, para que esses gerentes têm a ver com socioambientais para esse campo de atuação profissio- o poder de controle social da AAI? os estudos de inven- tário e AAI. Tampouco nal. Ter CNPJ é um dos principais Considero importante destacar mi- a Fundação Cultural requisitos para fazer parte da rede nimamente o capital institucional Palmares participou do grupo de trabalho – os de consultores externos do mercado da dos gerentes da Ecology (que, em quilombolas estão inse- consultoria. No meu caso, após me outras empresas de consultoria ridos no componente- -síntese “populações tornar uma pessoa jurídica, o proce- ambiental, podem receber outras tradicionais”. dimento inicial consistiu em apre- classificações), para indicar que são sentar uma proposta de trabalho atores relevantes na construção e 20. O próprio cresci- que, uma vez aprovada, gerou, por defesa de argumentos utilizados no mento dos aparelhos de parte da empresa, uma autorização estudo. Normalmente, possuem for- Estado para lidar com essa nova agenda am- de trabalho (AT). Esse era o contrato mações em grandes centros de pes- biental, em que atuam entre as partes, que estabelecia ati- quisa nacional e internacional, com novos e velhos atores sociais da cena política, vidades, produtos e pagamentos. De especializações na própria área ou faz parte do paradoxo maneira geral, cada uma dessas ATs títulos de Master of Business Adminis- que envolve as questões está relacionada a um elemento de tration (MBA)25, e estão inseridos em ambientais no Brasil. Se, por um lado, a formula- custo, que se vincula a um projeto, uma rede muito bem mapeada de ção de políticas públicas bem como a um gerente de proje- empresas de consultoria ambiental tem incorporado cada vez mais os preceitos tos (project manager). Essa figura ad- e órgãos de governo. Tais gerentes de sustentabilidade ministrativa, que está amarrada à assumem um papel de mediação ambiental, de modo a cadeia hierárquica da empresa, será bastante complexo junto a todos tornar possível o cres- cimento econômico a pessoa responsável por acompa- os outros atores técnicos e políticos com a conservação dos nhar “tecnicamente” o trabalho de que estão inseridos no projeto. A recursos naturais, por outro, percebe-se que todos os consultores contratados começar pela própria empresa con- a adoção de uma nova para realizar o mesmo projeto23. O sultora, passando pelo cliente – que “mentalidade ambien- sucesso do projeto, em termos de pode se ramificar por um número tal” nos dispositivos e normas legais resultado e relacionamento com bastante expressivo de empresas

154 Folhes consorciadas e seus acionistas – e dência, por sua vez, possui conta- não necessariamente chegando aos órgãos de controle to direto com os chefes, diretores implica a garantia de cumprimento dos direi- do Estado e aos consultores externos e presidentes das empresas para tos constituídos (Folhes, contratados. No caso em questão, as quais a empresa de consultoria 2013). o cliente era o Consórcio Tapajós, oferta seu trabalho. Não raro, esses 21. Esse documento foi cujas empresas possuem interesses gerentes acompanham de forma di- escrito a partir de uma base previamente ela- diretos nos AHEs da bacia – muitas reta as reuniões entre ambos – mes- borada por cientistas delas haviam investido somas con- mo quando não as acompanham, sociais, funcionários da Ecology. sideráveis de recursos para a reali- são articuladores diretos das nego- zação de estudos de licenciamento ciações realizadas. Enquanto respon- 22. Na ocasião, observei ambiental já em andamento no rio sáveis técnicos pelo estudo, receberão que, na “maioria dos casos onde se apre- 26 Tapajós . Desse consórcio, que ar- críticas de seus clientes em torno das senta ou se discute ticula diferentes grupos de poder, condições ideais em que pretendem diretrizes sobre usos múltiplos da água, criou-se a CTMA27. A princípio, os que o produto seja entregue à publi- observa-se que as ativi- gerentes, junto com os coordenado- cidade. Em uma comparação com a dades que devem estar res de núcleos (como vegetação, fauna dinâmica na academia, o gerente de contempladas recaem sobre feições socioeco- e socioeconomia), bem como alguns projetos seria como um orientador, nômicas, ambientais e consultores externos, estabelecem a opinar sobre o trabalho do consul- estratégicas, relativas à pesca, abastecimento tor e, eventualmente, sugerindo al- contato direto com os técnicos da urbano, saneamento CTMA, discutindo os resultados de terações. No entanto, embora assu- básico, irrigação, aqui- cada produto. Em suma, era a partir ma uma posição técnica, insere-se cultura, transporte, uso industrial, turismo, desse debate técnico que, a princí- no campo de atuação empresarial. lazer e etc. É justamen- pio, se aprovava ou não os produtos Uma série de outros “orientado- te sobre essa expressão de origem latina, que de cada desembolso. res”, ligados ao cliente, dirão para significa “e os res- Dito isso, temos a seguinte es- ele como e por onde deverá seguir tantes” ou “e outras trutura: eu, antropólogo, contrata- para o sucesso da redação final do coisas mais”, que nos deteremos na análise do como consultor externo, na figura estudo, mesmo que os gerentes não deste tópico, de modo de uma pessoa jurídica, apresento considerem as escolhas pertinen- a evidenciar outras concorrências ao uso de o meu trabalho, que consiste na tes. Os gerentes, algumas vezes, re- um rio, do curso d’água, produção de conhecimento sobre correm a estratégias opostas às dos da água, da morada”. as populações indígenas, para ser funcionários e assessores da equipe avaliado pelo gerente de projetos da técnica do empreendedor, mas usam 23. Na tese de douto- empresa de consultoria ambiental. categorias e discursos semelhantes. rado de Bronz (2011), é possível observar de Este, por sua vez, tem o seu desem- Era no marco dessa hierarquia maneira mais detalha- penho avaliado pela diretoria ad- empresarial e tecnocrática bastante da as funções e organo- gramas das empresas ministrativa e pela presidência da complexa que eu me situava para consultoras e os em- empresa em que trabalha. A presi- defender o meu trabalho analítico preendedores.

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 155 24. No caso da AAI, três sobre conflitos com os povos indí- to ambiental dos AHEs de Teles gerentes de projetos genas em torno do uso dos recursos Pires e São Manoel28. E o segundo, foram mobilizados para elaborar o produ- naturais, especificamente do rio Ta- de forma mais autoral, a partir de to, sendo dois da área pajós, para fins de geração energéti- dados também provenientes de mi- das ciências naturais e um da socioeconomia. ca. Além da equipe técnica formada nha experiência na Funai. Assim, Em um projeto como por funcionários da empresa con- procurei a AAI, estão em jogo sultora Ecology, havia ainda a equi- alguns milhões de reais, somente para a pe técnica formada pelo empreen- indicar os processos sociais engen- sua elaboração. dedor, o Consórcio Tapajós. Todos drados na ‘questão ambiental’ refle- esses sujeitos elaboravam e reelabo- tidos nos procedimentos adminis-

25. Principalmente os ravam estratégias para a condução trativos que objetivam construções consultores formados dos estudos que antecedem ou pro- de hidrelétricas na Amazônia e de em ciências naturais e físicas. Os consultores movem o licenciamento ambiental. procedimentos administrativos que das ciências sociais É interessante notar que, embora se buscam garantir direitos à terra, dificilmente possuem empreguem esforços para diluir as como modo de identificação de ques- pós-graduação em sua área. Uma das justifi- identidades autorais envolvidas na tões que subjazem os conflitos29. cativas pode residir na produção de conhecimento, o docu- pouca atratividade e/ ou receptividade de mento final deve ter o selo e a auto- Pretendi abordar a noção de certos setores da aca- ria do setor elétrico. conflito com populações indígenas demia a essas práticas. Minha estratégia de avalição de a partir do próprio processo social As universidades não se constituem, portan- conflitos com os povos indígenas se- que conforma o licenciamento am- to, na principal base guiu por dois caminhos. Um de or- biental e a linguagem sobre impac- organizativa de apoio à investigação para os dem mais simbólica, no qual tento tos ambientais, em sua pretensa egressos das ciências minimamente apontar outras voca- objetividade no que diz respeito à sociais que atuam em ções de uso do rio pelas populações mediação de relações sociais. Tra- empresas privadas, bem como em empresas indígenas, e outro de natureza emi- tava, assim, de colocar em debate públicas. nentemente política, embora não uma análise que provinha da mi- os tratasse como coisas distintas. O nha experiência como formulador, 26. Esse conjunto de agentes e grupos primeiro foi realizado com a ajuda avaliador e participante de proce- sociais, com grande de dados levantados por cientistas dimentos de licenciamento am- capacidade de lobby em face das instituições sociais do quadro de funcionários biental. Parti do entendimento de públicas, constitui o da Ecology, como já informado an- que o conflito mais abrangente, no campo de disputas e teriormente, acrescidos de informa- que diz respeito a povos indígenas, pressões-chave para dotar de legitimidade e ções de que eu já dispunha, que re- situava-se nos meandros da “agenda viabilidade os empreen- montavam a minha atuação, como ambiental” e na luta pela terra. Ou dimentos, no marco da retórica sobre o “inte- assessor da Funai, nos procedimen- seja, procurei chamar atenção para resse nacional”. tos administrativos de licenciamen- o histórico dos procedimentos ad-

156 Folhes ministrativos de licenciamento am- oportuna por parte do governo, em 27. Como informa Bronz, biental de UHEs na própria bacia do todos os âmbitos, e por parte de em- em relação aos proce- dimentos administra- Tapajós e para os conflitos já exis- presas públicas e privadas, em rela- tivos de licenciamento tentes e potenciais, devidos à im- ção a planos de gestão e programas ambiental, os empreen- dedores “contam com posição de outro uso de um recur- ambientais. Como na maioria das equipes selecionadas de so natural extremamente valioso, TIs não foram construídos, com a consultores, assessores, em múltiplos sentidos e contextos, participação das populações locais, advogados e funcioná- rios administrativos de para as populações indígenas. Bus- planos de gestão adequados – justa- variadas funções, que quei, ainda, atentar para as pressões mente o que se espera com a execu- ademais de trabalha- rem para cumprir com existentes nos procedimentos de ção da Política Nacional de Gestão os requisitos formais demarcação de TIs na bacia. Note-se Territorial e Ambiental de Terras do procedimento admi- que os procedimentos administrati- Indígenas (PNGATI) –, prevalecem nistrativo, formulam e adotam as estratégias vos de demarcação de diversas TIs os programas ambientais. Isso, em propriamente empre- situadas na bacia estão inconclusos, muitos casos, alimenta e/ou repro- sariais para a obtenção das licenças” (2011: 50). sem que haja perspectivas de finali- duz um modelo de política compen- zação no horizonte temporal mais satória criado antes da introdução 28. Vale destacar que imediato. dos procedimentos administrativos grande parte desse tex- to, intitulado original- Os “novos” conflitos produzidos de licenciamento ambiental. Segun- mente “Conflitos com pelo setor elétrico possuem diferen- do Zhouri, “os conflitos expressam povos indígenas - parte II”, foi utilizada no item tes conformações, mas têm suas raí- processos em que a luta ocorre não “Diagnóstico socioam- zes na mesma perspectiva de con- somente pela conformação ótima biental” e uma pequena quista territorial pelo Estado. Como de uma ‘aritmética das trocas e das parte, no item “Conflitos com povos indígenas”, desdobramento, tenta-se inserir os reparações’, mas, sobretudo, pela ambos integrantes do índios no mercado do desenvolvi- legitimidade de outras formas de documento final da AAI. Cabe notar, em relação mento, por meio dos procedimen- visão e divisão do ambiente e do a esse documento final, tos de licenciamento ambiental, espaço social” (2012: 115). Por esse que o item “Análise de particularmente a partir de medi- caminho, as disputas em torno da conflitos” foi elaborado com a participação de das de mitigação e compensação. definição do que seja uma gestão outro consultor externo Esse jogo duplo de ações de cunho territorial indígena passam pelos da área das ciências sociais, para atender às desenvolvimentista e de ação indi- novos instrumentos de licencia- questões relacionadas genista já foi observado por outros mento ambiental. às populações tradicio- autores, para outros momentos Nas primeiras avaliações sobre nais. 30 históricos da política indigenista . meu produto, não foram realizadas 29. O trecho dessa cita- Outrossim, com o incremento e a críticas mais substanciais e nenhu- ção foi originalmente escrito na introdução sistematização dos procedimentos ma grande mudança foi solicita- do documento que de licenciamento ambiental em da. Com a consolidação maior do apresentei à Ecology, TIs, percebo que há uma confusão documento e a necessidade de a intitulado “Análise de

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 157 conflitos com os povos Ecology faturar os produtos acorda- não tratava de impactos positivos indígenas situados no dos em contrato, a análise de con- dos empreendimentos. Destacou-se, ‘complexo Tapajós-Ja- flitos por meio da CTMA começou de maneira bem clara, que a divul- manxim’”. Apesar das muitas alterações rea- a circular por todas as holdings do gação dos impactos positivos é uma lizadas, essa passagem Consórcio Tapajós, suas diretorias das estratégias mais eficazes para foi mantida na versão final do item “Conflitos e superintendências. Como bem a concretização dos AHEs. Quando com povos indígenas” demonstrado por Ribeiro, em rela- não se adota tal perspectiva, sus- da AAI, mas, a meu ver, descaracterizada, fun- ção à construção de instituições de tentaram, está-se negando o ideal cionando apenas como desenvolvimento, estas possuem de desenvolvimento para a região. instrumento retórico, em sua racionalidade burocrática Uma das técnicas deixou transpare- uma vez que deslocada de seu contexto. estruturas que possibilitam acessar cer que existe uma ala no setor elé- “uma grande quantidade de coo- trico que luta para que se efetivem

30. Ver, por exemplo, peração técnica e monitoramento” os impactos positivos, pois, para Corrêa (2008). para “domesticar o ambiente im- muitos, “se não der para colocar 50 previsível em que ocorre o ‘desen- mil operários trabalhando na obra, volvimento’” (2012: 205-206). Não à que se dane”. É interessante notar toa, a partir do momento em que que não existe uma homogeneida- surgiram as críticas mais incisivas, de no setor elétrico e que o mes- politicamente falando – dirigidas, mo é composto por muitas forças. em um primeiro momento, à Eco- Por fim, solicitaram à Ecology que logy e, em seguida, a partir das ten- retirasse as justificativas para não tativas de enquadramento técnico tratar de impactos positivos. Ribei- por parte da equipe de cientistas ro, ao explicitar o processo que en- 31. Seria muito sociais do grupo Eletrobras31, aos tende por “consorciação”, esclarece interessante se pontos considerados críticos do que, esses cientistas sociais pudessem meu trabalho, no tocante à integri- refletir sobre a sua dade do setor elétrico –, a Ecology por meio de diferentes discursos so- realidade profissional, bre o potencial de um projeto para pois não faltam foi bombardeada pelo alto escalão constrangimentos, do consórcio, que não titubeou em o desenvolvimento regional e nacio- embates, perdas e se valer de seu poder de contratan- nal, parceiros mais fracos na corren- ganhos no decurso de suas atividades. te para forçar o contratado a acatar te associativa legitimam suas reivin- as mudanças solicitadas no texto dicações de maior participação. O da análise de conflitos, sob pena de desenvolvimento regional é, assim, rescindir o contrato. um argumento comum entre com- Uma das principais críticas da panhias que operam em nível local equipe da CTMA à Ecology deveu-se ou regional competindo com corpo- à adoção de uma metodologia que rações nacionais ou internacionais.

158 Folhes […] dada a característica de mão técnicas – que, para nós, consulto- 32. Reuniões técnicas dupla da consorciação, os discursos res internos e externos da Ecology, são reuniões internas das equipes da consul- sobre desenvolvimento regional ou deveriam ser observadas como uma toria e/ou das equipes nacional podem ser um argumento coisa só, ao passo que se questiona- das consultorias com o empreendedor. que os parceiros mais fortes, isto é, va a politização do documento por aqueles representando concentra- questões técnicas. Há muito se dis- 33. Seguindo os passos ções maiores de capital ou poder, cute que os efeitos de obras de AHEs de Bourdieu, tendo a entender esse enqua- usem para legitimar a necessidade de grande porte não são simples- dramento da seguinte do projeto. A eloquência do argu- mente ou principalmente “ambien- maneira: “a função de todas as fronteiras mento desenvolvimentista é eviden- tais” ou “socioeconômicos”: são es- mágicas […] consiste te quando a cooptação de unidades sencialmente políticos (Viveiros de em impedir os que se menores é necessária (2012: 210s). Castro & Andrade, 1988: 10). A des- encontram dentro, do lado bom da linha, de politização da questão ambiental é saírem, de saírem da Antes de as ameaças se tornarem encarada, na grande maioria dos ca- linha, de se desclassifi- carem. Segundo Pareto, mais críticas, participei de uma re- sos, como um dogma, não podendo as elites estão fadadas união técnica, na qual estavam pre- sequer ser questionada. a ‘extinção’ quando sentes diretores e funcionários da Diziam, por exemplo: “para que deixam de acreditar em si mesmas, quando Leme Engenharia, GDF Suez, Ele- mencionar que a Funai não partici- perdem seu moral e trobras, Eletronorte, Endesa Brasil pa da AAI?”. Ou ainda, no que diz sua moral, dispondo- -se a cruzar a linha no 32 e Ecology . Entre as muitas críticas respeito a outros licenciamentos, mau sentido” (1996: realizadas, destaco aquelas que fo- como o de Belo Monte: “não existe 102). Em linhas gerais, o ram direcionadas ao meu trabalho. nenhuma condicionante não aten- consórcio deixou claras as posições do jogo: as De modo geral, afirmaram que “o dida”. Em relação aos AHEs São Ma- críticas devem ser feitas documento questiona[va] a validade noel e Teles Pires, afirmaram que por quem está do outro lado da linha (movi- 33 do próprio documento” . Além dis- todas as solicitações da Funai esta- mentos sociais, índios so, sustentaram que “o documento vam sendo acatadas pela EPE e pela ou quem quer que seja), não por quem está no está [estava] desequilibrado, a ques- Companhia Hidrelétrica Teles Pires “lado bom da linha”, por tão indígena entrou num nível de (CHTP) e que, portanto, não havia quem, ao fim e ao cabo, detalhamento muito maior do que por que tratar desses empreendi- dita as normas do jogo. Vale lembrar uma frase 34 os outros pontos” . Observou-se mentos na AAI sobre o Tapajós. que escutei muitas ve- que “não se trata de tese acadêmica, Seguiram-se, então, questões como zes em Brasília, durante os anos como assessor mas sim de um projeto hidrelétrico a seguinte: “a Ecology está dizendo da Funai: “não podemos com foco para [sic] impulsionar esse que o licenciamento ambiental está dar tiro no nosso pró- projeto”35. Para tanto, “tem que sair desacreditado?”. De maneira mais prio pé”. do conforto intelectual. É preciso enfática, observaram: “não sei por 34. Os “outros pontos” referem-se ao espaço deixar de lado esse misticismo”36. que os comentários feitos até agora que cabia às questões As falas políticas se seguiam de falas não foram mudados pela Ecology”. sociais.

Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 159 35. O ideal de produzir Um “ponto de convergência en- ordem estabelecida e revelar, assim, resultados práticos tre o pessoal do CTMA” foi a neces- “um poder que lhe é próprio de agir traduzidos em utilidade imediata acompanha sidade de revisão radical do texto, sobre o real ao agir sobre a repre- as ciências naturais especialmente em relação às críti- sentação do real” (1982: 124). bem antes da revitaliza- cas ao setor elétrico, ao governo, às ção das universidades no século XIX. A uni- empresas e aos processos de licen- Considerações finais versidade é vista desde ciamento citados. Ficou claro, para À guisa de conclusão, parece-me essa época como um lugar de tensão entre mim, que a partir do envolvimento que, como a AAI é construída por as artes (humanidades) da diretoria das empresas do con- perspectivas metodológicas distin- e as ciências (naturais) sórcio e da superintendência da tas, vez ou outra escapam constru- (cf. Wallerstein, 1996: 17-22). Eletrobras, dificilmente as análises ções sociais divergentes – no caso críticas, previstas em meu contrato em questão, o meu texto. No mo- 36. “Misticismo” é uma com a Ecology, poderiam perma- mento em que a Ecology teve de categoria bastante necer em um documento do setor consolidar o produto – realizando emblemática para pensarmos justamente elétrico. Outro fator que potenciali- diversas reuniões com a equipe da na legitimidade e na zava as interferências nas análises CTMA e fazendo ajustes para tornar luta epistemológica sobre o que se considera realizadas diz respeito ao estágio o documento homogêneo, neutro, conhecimento legítimo. avançado dos procedimentos de li- incorporando as percepções e expe- Para alguns dos cenciamento ambiental dos AHEs riências de diversos técnicos (políti- participantes dessa reunião, tratar os povos Jatobá e São Luís do Tapajós, cujas cos) –, foi preciso limitar tais pers- indígenas como sujeitos estratégias institucionais para o an- pectivas. O resultado é um melting diferenciados de direito, que estabelecem damento das licenças ambientais pot, que carrega em si a falsa ideia relações com o estavam bem encaminhadas. Por- de incorporação dos conflitos, vi- ambiente marcadas por tanto, quaisquer novas diretrizes sando a imposição de perspectivas uma territorialidade totalmente avessa, que porventura o documento apon- próprias de pensar, organizar e fa- em sua maioria, às tasse gerariam um problema para zer a gestão de territórios alvos de ideologias utilizadas para justificar o o consórcio e para o governo. Ou interesses nacionais. modo de apropriação seja, a AAI estava sendo encarada Seria possível notar nessas con- territorial para pelo consórcio apenas como parte dutas persistências dos primórdios fins capitalistas, é mero “misticismo” de suas obrigações jurídicas e pela do processo de institucionalização acadêmico. Leia-se: empresa consultora, como parte de das ciências naturais e sociais, em crença de cientistas sociais, de antropólogos. sua competência técnica, vendida que passou a preponderar a busca Diria Dumont que “a ao cliente e observada à luz dos en- por conhecimento objetivo sobre nossa profissão não é nem um misticismo tendimentos políticos com o mes- a realidade? Estaríamos operando nem uma arte de mo. Já para mim, a AAI fazia parte ainda sob a perspectiva que, desde concordância ou da de um “rito de instituição”, nos ter- princípios do século XIX, procurou conversação. Assim, se justifica uma definição mos de Bourdieu, a consagrar uma conformar uma hierarquia cien-

160 Folhes tífica, chancelando determinados parte do esforço de organização de da antropologia que conhecimentos como “certos”, em uma nova ordem social, apoiada em coloca em plena luz, oposição a conhecimentos consi- uma ciência exata e positiva. A do- em seu princípio, suas vinculações ideológicas” derados “não científicos”? Esses minação epistemológica da ciência (2000: 205). questionamentos mereceriam uma tem raízes profundas, na busca pela discussão mais ampliada. Por ora, legitimação de ações e projetos de proponho que, nesse caldeirão, Estado, bem como por prestígio so- manter a distinção entre as ciências cial no mundo do conhecimento. naturais e sociais é um fundamento Em suma, quando se analisa os primordial desses estudos. Pois, se caminhos técnicos e políticos adota- ambas as “ciências” considerassem dos na AAI do Tapajós, assim como que desenvolvimentos futuros re- nas demais realizadas até o pre- sultam de processos temporalmen- sente momento, depreende-se que te irreversíveis, como então levar se trata de lançar as bases de mais adiante projetos de desenvolvimento? uma ingerência na vida coletiva das É preciso confundir a inteligibilida- populações indígena, ribeirinha e de do mundo para orientar o futuro amazônida, de modo geral. que se quer gestar. Afinal, não é pos- sível discutir alternativas de futuro [artigo concluído em setembro de 2015] em torno de empreendimentos que são considerados como dados. Referências bibliográficas Está em vigência uma política Barbosa de Oliveira, Frederico C. que demanda a utilização de de- 2012. Quando resistir é habitar: lu- terminados recursos naturais, ba- tas pela afirmação territorial dos seada na necessidade, ainda vital, Kaiabi no Baixo Teles Pires. Brasí- do Estado pós-moderno de produ- lia, Paralelo 15. zir resultados práticos, traduzidos Barroso, Maria M. 2014. “Moedas em utilidade imediata. A AAI pode de troca, sinceridade metodoló- aceitar aqui ou acolá algumas reco- gica e produção etnográfica no mendações e diretrizes, desde que trabalho com elites”. In: Casti- visões “subjetivas” não distorçam lho, Sergio Ricardo R.; Souza fatos “objetivos”. A rejeição da “es- Lima, Antonio Carlos de; Teixei- peculação” e da “dedução” – carac- ra, Carla C. (org.). Antropologia terizadas como práticas desprovi- das práticas de poder: reflexões et- das de qualquer justificação teórica nográficas entre burocratas, eli- ou empírica – pode ser observada tes e corporações. Rio de Janeiro, desde a Revolução Francesa, como Contra Capa/Faperj.

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Ritual burocrático de ocupação do território pelo setor elétrico 165

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas Uma análise do caso Teles Pires Evandro Mateus Moretto, Carolina de Oliveira Jordão, Edilene Fernandes e João Andrade

á mais de três décadas, o li- cursos naturais, sejam agentes eco- cenciamento ambiental de nômicos ou não. E não poderia ser grandes projetos de infraes- diferente, haja vista que a LP é que Htrutura é objeto de diversas críticas, declara a viabilidade ambiental de provenientes de distintos setores da um determinado empreendimen- sociedade, especialmente quando to, de acordo com as Resoluções está associado ao suporte técnico- nº01/1986 e nº237/1997 do Conselho -científico da avaliação de impacto Nacional do Meio Ambiente (Cona- ambiental. O que muitos retratam ma). Ela está atrelada a uma deter- como momentos históricos de “cri- minada localização, a uma concep- se do licenciamento ambiental bra- ção técnica de projeto, a requisitos sileiro” pode ser interpretado como básicos e a condicionantes ambien- o resultado legítimo do funciona- tais, que deverão ser executadas nas mento da arena de disputas que fases de implantação e de operação se instituiu no centro desse instru- do projeto, com a finalidade de ga- mento, onde o que está em jogo é rantir a própria viabilidade ambien- quem fará valer o seu direito de uso tal do empreendimento. dos recursos naturais. No caso de empreendimentos Dentre as fases do licenciamento ou atividades efetiva ou potencial- ambiental, aquela anterior à licença mente causadores de significativa prévia (LP) é normalmente quando degradação ambiental, são o estudo ocorrem as mais intensas disputas de impacto ambiental e seu respec- entre os diversos usuários dos re- tivo relatório de impacto ambiental

167 (EIA/Rima) que têm o papel de ava- vez, lastreiam a própria viabilidade liar os cenários futuros de impactos ambiental do projeto. ambientais esperados com a ocor- Nesse contexto, os problemas rência do projeto e apresentar as referentes ao conjunto de condicio- medidas preventivas, mitigadoras nantes das LPs têm chamado cada e compensatórias que serão neces- vez mais a atenção dos diversos sárias para que a viabilidade am- setores da sociedade relacionados biental seja garantida durante todo ao licenciamento ambiental, es- o ciclo de vida do projeto (Sánchez, pecialmente no que diz respeito a 2006). Porém, é bastante comum grandes empreendimentos de in- que muitos desses compromissos fraestrutura, como as usinas hidre- sejam alterados após a emissão da létricas (UHEs), que constituem ca- LP e, inclusive, não implantados de- sos bastante atuais e didáticos para vidamente, o que representa uma reflexões acerca do problema. ameaça à própria viabilidade am- Como exemplo, tem-se o caso das biental do projeto. UHEs Jirau e Santo Antônio, no rio Em 2004, o Ministério Público Madeira, cuja viabilidade ambiental da União (MPU) analisou 70 EIA de depende de cada uma das 32 condi- diversas tipologias de empreendi- cionantes definidas pela LP, instituí- mentos e atividades licenciadas no da em 2007. A mesma dependência Brasil e alertou para recorrentes ocorre no caso da UHE Teles Pires, deficiências encontradas na fase cuja LP, de 2010, traz 28 condicio- prévia do licenciamento ambiental, nantes como sustentação da viabi- destacando-se aquelas relacionadas lidade ambiental do projeto. Ou, aos estudos de alternativas tecno- ainda, no caso da UHE Belo Monte, lógicas e locacionais, à mitigação que tem sua viabilidade ambiental e compensação de impactos e aos sustentada por nada menos que programas de acompanhamento 40 condicionantes, estabelecidas e monitoramento ambiental (Bra- na respectiva LP, também de 2010. sil, Ministério Público da União & Todos esses casos têm em comum Brasil, Ministério Público Federal, o fato de estarem alocados em rios 4ª Câmara de Coordenação e Revi- da Amazônia brasileira, revelando a são, 2004). Assim, grande parte das importância que essa região tem ad- deficiências apontadas pelo estudo quirido no planejamento hidrelétri- refere-se a medidas mitigadoras e co brasileiro – cerca de 150 UHEs de compensatórias que irão compor as diversas dimensões estão previstas condicionantes da LP, que, por sua para serem instaladas na região.

168 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade Especificamente na bacia do Ta- mesmo a inviabilidade ambiental pajós, está em desenvolvimento um do empreendimento. Mais especifi- complexo hidrelétrico constituído camente, busca explicitar a relação por 43 UHEs, com potencial de ge- entre condicionantes e viabilidade ração de cerca de 28 mil megawatts, no caso do licenciamento ambien- contemplando 25% do potencial de tal da UHE Teles Pires, no que tange geração de energia hídrica da Ama- aos impactos sobre as populações zônia (Brasil, Ministério de Minas indígenas do entorno. e Energia, Empresa de Pesquisa Energética, 2009; Brasil, Ministério O sentido da viabilidade ambiental de Minas e Energia, Empresa de e suas condicionantes Pesquisa Energética & Consórcio O conceito de viabilidade ambien- Leme-Concremat, 2010; Grupo de tal é essencial para que se possa Estudos Tapajós & Ecology Brasil, compreender o processo de licen- 2014). Na porção da bacia localizada ciamento ambiental amparado pela no norte de Mato Grosso, situam- estrutura completa da avaliação de -se as sub-bacias dos rios Teles Pires impacto ambiental, o qual está mui- e Juruena, onde estão previstas ou to distante de um sentido meramen- em execução sete UHEs com capa- te cartorial, muitas vezes sugerido, cidade para gerar um total de 8.200 pretendido e até empregado no megawatts, representando cerca de debate público sobre o instrumen- 27% do total previsto a ser gerado to. Para esta análise, consideram-se em toda a bacia do rio Tapajós (Bra- apenas os momentos anteriores à sil, Ministério de Minas e Energia, emissão da LP, compreendida como Empresa de Pesquisa Energética, o próprio atestado da viabilida- 2009; Brasil, Ministério de Minas e de ambiental de um determinado Energia, Empresa de Pesquisa Ener- projeto. gética & Consórcio Leme-Concre- De forma geral, a viabilidade mat, 2010). ambiental é um conceito bastante Nesse quadro, o presente artigo familiar e intuitivo para aqueles tem como objetivo refletir sobre a envolvidos em avaliação de impac- relação de dependência existente to ambiental, remetendo sempre entre as condicionantes ambientais à ideia de um dado projeto que é e a viabilidade ambiental de um de- exequível ou realizável em função terminado empreendimento, con- de um conjunto de condições am- siderando que o grau dessa depen- bientais requeridas. No caso de em- dência pode indicar a viabilidade ou preendimentos e atividades efetiva

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 169 ou potencialmente causadores de de decisão cercado de incertezas. significativa degradação ambiental, Aqui, não se trata de explorar o mo- o licenciamento ambiental ocorre delo decisório estabelecido no licen- com o suporte da avaliação de im- ciamento ambiental brasileiro, mas pacto ambiental em seu formato sim enfatizar que a decisão acerca completo (Sánchez, 2006). Nesse da viabilidade ambiental depende percurso, a LP é a decisão do órgão de uma construção técnico-científi- ambiental resultante e dependente ca e política que ocorre durante o de um conjunto de procedimentos processo de avaliação de impacto técnico-científicos, como se apre- ambiental completo. É importante senta de forma simplificada na ima- ressaltar que, se por um lado, a de- gem 1. cisão sobre a viabilidade ambiental Nesse sentido, a viabilidade de uma determinada proposta re- ambiental é uma derivação do re- quer que se considere o conjunto lacionamento entre componentes dos elementos técnico-científicos técnicos, científicos e políticos, que e políticos, por outro, é plausível constituem um cenário de tomada que apenas um dos componentes

1. Apresentação da proposta pelo empreendedor ao órgão ambiental competente

2. Proposta classificada como efetiva ou potencialmente causadora de significativa degradação ambiental pelo órgão ambiental competente

3. Emissão do termo de referência pelo órgão ambiental competente

4. Elaboração do estudo de impacto ambiental

5. Análise pelo órgão ambiental 6. Consulta pública e de outros competente órgãos públicos

Imagem 1. Estrutura do processo de 8. Decisão do órgão ambiental competente licenciamento 7. Análise ambiental brasileiro, inconclusiva pela apoiado em avaliação necessidade de Proposta viável Proposta inviável de impacto ambiental complementação ambientalmente e ambientalmente e completa, até a decisão dos estudos e/ou emissão da licença negativa da licença sobre a licença prévia. oitivas prévia prévia Elaboração dos autores.

170 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade já seja, per se, o elemento determi- inconclusiva (momento 7), é necessá- nante da decisão acerca da inviabi- rio que o órgão ambiental solicite lidade ambiental da proposta. Isso complementação de estudos ou a é bastante comum para o caso de realização de novas consultas públi- critérios técnicos de localização que cas, não havendo nesse momento, conflitam com padrões ambientais ainda, qualquer classificação sobre estabelecidos em zoneamentos, por a viabilidade ou inviabilidade da exemplo (Montaño & Souza, 2008; proposta. Montaño et al., 2012). A decisão sobre a viabilidade am- O conceito de viabilidade am- biental de uma proposta, portanto, biental, assim como o de viabilida- pretende ser o próprio testemunho de econômica, não é unívoco e suas de um processo técnico-científico e possíveis classificações (viável e in- político construído pela avaliação viável) dependem dos critérios de de impacto ambiental, o qual está referência que forem estabelecidos muito distante de ser um expedien- – como padrões legais, por exemplo te meramente cartorial. O conjunto – e de hipóteses que se assumem final de condicionantes ambientais para a prospecção de cenários futu- estabelecido por uma LP é uma ros (Sánchez, 2006). decisão do órgão ambiental com- Observando-se o fluxograma que petente (momento 8) que pretendeu representa o processo de licencia- observar as ações propostas pelo mento ambiental brasileiro (imagem EIA (momento 4), as ações requeridas 1), é preciso considerar que só é pos- na consulta pública (momento 6) e as sível que a decisão final do órgão ações apontadas pelo próprio órgão ambiental competente (momento 8) ambiental (momento 5). Nesse con- culmine em uma declaração de via- junto de condicionantes, estão as bilidade ou inviabilidade ambiental ações de prevenção de impactos po- da proposta, não cabendo qualquer tenciais, as de mitigação de impac- classificação transiente entre esses tos efetivos e as de compensação de estados. Ou seja, o uso do conceito danos diversos que a implantação e de viabilidade ambiental não admi- operação do empreendimento ense- te adjetivações que remetam a gra- jam, sendo natural que a viabilida- dações intermediárias, sendo inade- de ambiental do empreendimento quado, por exemplo, o emprego das seja dependente das condicionantes expressões “pouco viável”, “muito definidas na própria LP. viável”, “menos viável”, “mais viá- Porém, a ideia de que o conjunto vel” etc. No caso de uma avaliação de condicionantes seja o principal

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 171 elemento que determina a viabili- preendimento. Na imagem 2 é pos- dade ambiental é armadilha tão da- sível verificar que a definição de nosa para o adequado planejamento uma localização com maior vulne- e gestão ambiental de um empreen- rabilidade ambiental (localização 1 no dimento quanto a simplificação se- tempo 0) acaba vinculando uma qua- mântica do licenciamento ambien- lidade ambiental inicial menor que tal enquanto mero ato cartorial. O a escolha de uma localização com fato de a viabilidade ambiental de menor vulnerabilidade ambiental uma determinada proposta depen- (localização 2 no tempo 0). Indepen- der, sobretudo, de condicionantes dentemente de onde esteja a linha ambientais de mitigação e compen- que determina a condição de viabi- sação pode ser o resultado do enfra- lidade ambiental, é óbvio que na lo- quecimento de uma das fases mais calização 1 a proposta poderá assu- importantes de qualquer processo mir ser viável ambientalmente com de tomada de decisão, qual seja o menor esforço de condicionantes estabelecimento e avaliação de al- que a localização 2. Nesse contexto, ternativas tecnológicas e de locali- o esforço de condicionantes neces- zação no momento de elaboração sário para que a proposta seja viável do EIA. na localização 2 é superior ao esfor- Por exemplo, a escolha de uma ço necessário para que a proposta determinada localização para a seja viável na localização 1. É pos- proposta também acaba fixando sível inferir, portanto, que a depen- qual será a linha base de impactos, dência da viabilidade ambiental em a partir da qual o conjunto de con- relação às condicionantes ambien- dicionantes atuará para melhorar tais na localização 2 é maior que na a qualidade ambiental decorrente localização 1. Ainda assim, é preciso da implantação e operação do em- considerar a possibilidade de que a

Qualidade ambiental

Condição de viabilidade ambiental Imagem 2. Cenário de variação da qualidade ambiental em Localização 1 função da escolha de alternativas locacionais Localização 2 (t0) e de implantação das condicionantes (t1). Tempo Elaboração dos autores. t0 t1

172 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade localização 2 ou mesmo ambas as 32 municípios mato-grossenses e localizações estejam tão distantes três paraenses que utilizam os re- da linha de viabilidade ambiental cursos hídricos da bacia, principal- que não haveria conjunto de con- mente para o abastecimento públi- dicionantes possível que as fizesse co, agropecuária, pesca, turismo, assumir a condição de viabilidade lazer e produção industrial. O rio ambiental. Teles Pires tem suas nascentes no Este exercício revela que, no município de Primavera do Leste mínimo, a ocorrência de um gran- (Mato Grosso) e suas águas banham de conjunto de condicionantes em dois importantes biomas brasilei- uma LP pode ser uma evidência de ros: o cerrado e a floresta amazôni- que o empreendimento ou atividade ca (Arruda, 2003). esteja bastante distante da condição A dinâmica territorial dessa área de viabilidade ambiental. Indica, está organizada ao longo das rodo- além disso, que a probabilidade da vias MT-208, MT-320 e BR-163 (Cuia- inviabilidade ambiental da propos- bá-Santarém), que são responsáveis ta, nesse caso, aumenta na medida pelo incremento dos corredores da baixa efetividade da implantação comerciais da região, considerada das condicionantes ambientais, seja uma fronteira de expansão em dire- por sua complexidade planejada ou ção à região norte do país (Araújo et por sua não execução efetiva. al., 2014). Assim, a bacia sofre inten- A seguir, discutimos o contexto sa pressão de desmatamento – até das UHEs da sub-bacia do rio Teles 2012, 41% da área original de flores- Pires e como as viabilidades am- ta já havia sido desmatada, segundo bientais dos projetos são intensa- dados do Programa de Cálculo do mente dependentes das condicio- Deflorestamento da Amazônia do nantes ambientais definidas nas Instituto Nacional de Pesquisas Es- respectivas LPs, que são de natureza paciais (Prodes/Inpe). As principais e execução complexas. atividades econômicas desenvolvi- das na região que concorrem pelo As UHEs da sub-bacia do Teles Pires uso dos recursos naturais são a pe- A sub-bacia do rio Teles Pires per- cuária de corte e leite, a agricultura tence à porção alta da bacia do Ta- extensiva (soja, milho e algodão) e, pajós e ocupa uma área de aproxi- em menor escala, a agricultura di- madamente 146.600 quilômetros versificada, além do turismo, que quadrados, incluindo porções dos tem como atrativos as belezas na- estados de Mato Grosso e Pará. São turais (por exemplo, as cachoeiras

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 173 e corredeiras do Teles Pires e seus da demanda por serviços e produtos afluentes) e o patrimônio histórico locais, entre outros; e um negativo, da região (Instituto Centro de Vida, representado pela diminuição do 2009; Araújo et al., 2014). estoque de peixes e da renda dos Desde o início desta década, a pescadores, aumento da criminali- região vem sofrendo alterações so- dade, pressão ocasionada pela ocu- ciais, econômicas e ambientais devi- pação desordenada do espaço, des- do à implantação de grandes UHEs, matamento, aumento de doenças que acabam concorrendo com os endêmicas e deslocamento de po- usos de recursos já existentes. Essas pulações ribeirinhas, entre outros. obras movimentam bilhões de reais Na sub-bacia do Teles Pires, exis- e mobilizam milhares de pessoas tem quatro UHEs em fase de licen- nos municípios do entorno dos em- ciamento prévio e de instalação preendimentos, provocando dois (Teles Pires, São Manoel, Colíder e grandes conjuntos de impactos lo- Sinop), e duas em fase de planeja- cais: um positivo, em função da in- mento (Foz do Apiacás e Magessi) jeção de novos recursos financeiros, (ver mapa-encarte). As UHEs estão do aumento da oferta de emprego e em diferentes fases de licencia-

Imagem 3. Situação Licença de do licenciamento Licença prévia ambiental das usinas Empreendi- Órgão instalação Licença de Localização hidrelétricas da sub- mento licenciador operação EIA/ PBA/ -bacia do rio Teles Pires. TR AP AF AF Rima PCA Elaboração dos autores, jul. 2014. Instituto MT e PA X X X X Brasileiro do Meio Ambiente UHE São e dos Recursos Manoel Naturais Renováveis (Ibama) Legenda UHE - Usina hidrelétrica Ibama MT e PA X X X X X X TR - Termo de referência UHE Teles aprovado Pires EIA/Rima - Estudo de impacto ambiental e Secretaria de MT X X X X X relatório de impacto Estado de Meio ambiental UHE Sinop Ambiente de AP - Audiência pública Mato Grosso AF - Análise final (Sema/MT) PBA - Projeto básico Sema/MT MT X X X X X X ambiental UHE PCA - Plano de controle Colíder ambiental

174 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade mento (imagem 3), sendo que em e à falta de consulta prévia aos indí- todos os processos de emissão das genas no caso das UHEs São Manoel LPs e das licenças de instalação (LIs) e Teles Pires. Já no caso de Sinop, o houve ações do Ministério Público, MPF interveio devido ao descum- no sentido de defender os interes- primento da LP. Pode-se considerar ses socioambientais coletivos re- que o Ministério Público tem obtido lacionados aos empreendimentos bons resultados, com número sig- hidrelétricos. nificativo de decisões liminares de- Em uma região como o norte de feridas em primeira instância: das Mato Grosso, com carência institu- 12 ações propostas, nove obtiveram cional e de organização da socieda- decisões favoráveis ao pedido de de civil, o Ministério Público é uma concessão de liminar. das poucas instâncias que têm atua- Contudo, ao chegar ao Tribunal do para expressar juridicamente os Regional Federal (TRF), as ações anseios sociais, no âmbito admi- têm enfrentado um procedimento nistrativo e na proposição de ações judicial arcaico e autoritário, com civis públicas (ACPs), visando a ga- o uso da ferramenta de suspensão rantia de conformidade no licencia- de segurança (SS). Esse mecanismo, mento (Maia, 2013). Nesse quadro, amplamente utilizado pela Advo- o Ministério Público Federal (MPF) cacia-Geral da União (AGU), atribui tem proposto diversas ações, que ao presidente do tribunal poder de vão desde a busca por garantia da suspender a eficácia de uma decisão regularidade dos EIA/Rima – que, liminar concedida, permitindo que em muitos casos, não contemplam esse efeito suspensivo perdure até os requisitos previstos pela legisla- o trânsito em julgado da ação prin- ção – até a defesa da participação cipal. Na prática, isso significa que, social no processo de licenciamen- uma vez concedida a SS, mesmo 1. No caso da UHE to e a garantia de acesso a direitos, que a decisão de mérito seja favo- Colíder, não há ações apresentadas pelo MPF, principalmente no que concerne à rável à paralisação das obras, para mas o município de participação dos povos indígenas. se sanar uma irregularidade, essa Itaúba, diretamente A importância da intervenção decisão não terá efeito enquanto impactado, propôs diversas ações. Dentre dos Ministérios Públicos nos licen- houver possibilidade de recurso. No os objetos dessas, ciamentos da sub-bacia do rio Teles caso das UHEs na sub-bacia do Teles estão principalmente o descumprimento Pires pode ser observada na ima- Pires, das nove decisões favoráveis de diversas gem 41. Foram apresentadas diver- ao pedido de liminar, oito sofreram condicionantes, como as relacionadas à área sas ACPs, principalmente relaciona- os efeitos da SS. Em função disso, as de saúde e apoio aos das às irregularidades no EIA/Rima obras das UHEs São Manoel e Teles municípios.

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 175 - Estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima). Estudo do componente indígena (ECI) insuficiente. (liminar concedida e suspensa. Decisão de mérito favorável com eficácia suspensa até o trânsito em julgado.) -Suspensão de audiências públicas. EIA/Rima sem tradução para língua indígena. São Manoel (liminar concedida e suspensa.) - Cautelar. EIA/Rima irregular. ECI insuficiente. (Liminar concedida e suspensa.) - Revogação/concessão de licença ambiental por falta de consulta aos povos indígenas. Aguardando decisão da liminar

- Irregularidades do EIA/Rima. (Liminar concedida e suspensa.) - Licença concedida sem manifestação da Assembleia Legislativa de Mato Grosso e sem participação do Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Con- sema/MT). (Liminar indeferida, processo em andamento.) Teles Pires - Ausência de consulta prévia. (Liminr concedida e suspensa.) - EIA/Rima irregular por ausência de ECI (Liminar concedida e suspensa.) - Suspensamento do licenciamento por ausência de estudos de impacto sobre unidades de conservação (UCs) afetadas. (Aguardando decisão da liminar.)

Imagem 4. Atuação do Ministério Público no - Usinas hidrelétricas (UHEs) de Sinop, Colíder e Magessi. Licenciamento estadual irregular. Liminar concedida e suspensa. Decisão de mérito pela improcedência. licenciamento ambien- tal de usinas hidrelétri- Sinop - UHE Sinop. Descumprimento das condicionantes da licença prévia (LP). Sus- pensão da licença de instalação (LI). (Liminar concedida e mantida pelo relator do cas na sub-bacia do rio Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) em sede de agravo de instru- Teles Pires. Elaboração mento. Aguardando julgamento da segunda turma do TRF-1. dos autores.

Pires estão em andamento, mesmo tituto Nacional de Colonização e Re- sob o risco de, em caso de decisão fa- forma Agrária (Incra), o que levou vorável, não ser mais possível a con- a questão para o âmbito da justiça cretização dos direitos requeridos. federal. Nesse caso, a União não foi A UHE Sinop, por sua vez, en- incluída no processo – somente o contrava-se, em julho de 2014, com foram o governo do estado de Mato liminar vigente suspendendo a LI Grosso, a Companhia Energética Si- até o cumprimento das condicio- nop S.A. (CES) e o Banco Nacional nantes da LP. Das ações propostas de Desenvolvimento Econômico e pelo MPF em relação a empreendi- Social (BNDES) –, impossibilitando a 2. Agravo de mentos na sub-bacia, o caso da UHE atuação da AGU. Na ação, só houve instrumento é o recurso Sinop é peculiar: como o licencia- recurso por parte da CES, que im- usado como exceção, em caso de decisões mento ambiental é realizado pela petrou um agravo de instrumento, suscetíveis de causar Secretaria de Estado de Meio Am- que obteve parecer favorável à ma- lesão grave e de difícil biente de Mato Grosso (Sema/MT), nutenção da decisão liminar2. reparação a uma das partes, cuja apreciação a participação do MPF somente foi As intervenções do MPF nos li- deve ser feita de legitimada por se tratar de conflito cenciamentos das UHEs na sub-ba- imediato pela instância superior. de interesse de assentados pelo Ins- cia do Teles Pires deram-se muito

176 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade em razão da baixa efetividade da A complexidade do licenciamento implantação das condicionantes da UHE Teles Pires ambientais pelos empreendedo- O processo de implantação da UHE res, seja por irregularidades téc- Teles Pires (imagem 5) se iniciou em nicas e mau planejamento desde julho de 2006, quando a Agência os estudos de impacto ambiental, Nacional de Energia Elétrica (Aneel) seja pela própria complexidade de divulgou o estudo de inventário execução para a garantia da condi- hidrelétrico da bacia hidrográfica ção de viabilidade ambiental dos do rio Teles Pires. O documento empreendimentos. identificou os locais com potencial Um exemplo disso é apresenta- para produção de energia hidrelé- do a seguir. Trata-se do caso da UHE trica no rio Teles Pires e nos seus Teles Pires, mais especificamente, afluentes, apresentando seis possí- de sua relação com os povos indíge- veis barramentos: Magessi, Sinop, nas Kayabi, Apiaká e Munduruku. A Colíder, Teles Pires, São Manoel e viabilidade ambiental do empreen- Foz do Apiacás. A partir dessa iden- dimento foi atestada pelo Institu- tificação, iniciou-se o procedimento to Brasileiro do Meio Ambiente e de licenciamento ambiental, com dos Recursos Naturais Renováveis a realização do EIA/Rima, que pre- (Ibama), mesmo sem uma análise viu o barramento do rio Teles Pires, completa dos impactos sobre esses com a formação de um lago de 70 povos, presentes na sub-bacia, e quilômetros de comprimento, ocu- tampouco dos programas ambien- pando uma área de 152 quilômetros tais necessários. Isso levou à pro- quadrados, para a produção de 1.820 Imagem 5. Linha posição de uma ACP pelo MPF, em megawatts de energia. do tempo da usina hidrelétrica (UHE) de conjunto com o Ministério Público Em dezembro de 2010, o Ibama Teles Pires. Adaptada do do Estado de Mato Grosso (MPE/ emitiu a LP e, em seguida, realizou- sítio na internet da UHE MT), para a suspensão do licencia- -se o leilão de concessão, de que o Teles Pires (Linha do tempo, s.d.). Elaboração mento até a finalização dos estudos. Consórcio Teles Pires Energia Efi- dos autores.

Licença prévia (LP) nº386/2010 Estudos de inventário da bacia concedida pelo Instituto Licença de instalação (LI) e hidrográfica do rio Teles Pires Brasileiro do Meio Ambiente começo das obras da usina aprovados pela Agência Nacional de e dos Recursos Naturais hidrelétrica (UHE) Teles Pires Energia Elétrica (Aneel) Renováveis (Ibama), leilão para ago. 2011 jul. 2006 construção dez. 2010

Realização de estudo de impacto Última revisão do plano ambiental (EIA) pela Empresa de básico ambiental (PBA) Pesquisa Energética (EPE) mar. 2011 ago. 2006

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 177 ciente – formado pelas empresas integrante da avaliação de impacto Neoenergia S.A. (50,1%), Furnas ambiental. Note-se que a não reali- Centrais Elétricas S.A. (24,5%), Ele- zação do estudo ocorreu a despeito trosul Centrais Elétricas S.A. (24,5%) de ele estar previsto no termo de e Odebrecht Participações e Investi- referência, que apresenta um item mentos S.A. (0,9%) – foi o vencedor. especifico sobre “Populações indí- Assim, constituiu-se a sociedade de genas” (4.3.10), devendo, portanto, propósito específico (SPE) denomi- estar obrigatoriamente presente no nada Companhia Hidrelétrica Teles EIA (Brasil, Ministério Público Fede- Pires (CHTP). Já em agosto de 2011, ral & Mato Grosso, Ministério Públi- a LI foi emitida, permitindo o início co do Estado, 2012). da obra, orçada em cerca de 3,5 bi- A ausência de um ECI específico lhões de reais. Desse total, menos para a UHE Teles Pires deve-se à rea- de 10% eram previstos para despe- lização de acordo entre a Fundação sas com compensação por perda Nacional do Índio (Funai) e a Empre- de terras e ações socioambientais sa de Pesquisa Energética (EPE), no para mitigação e compensação dos início de 2009, para a dispensa do impactos negativos, conforme os estudo, considerando que as TIs a planos básicos ambientais (PBA) nos serem estudadas são as mesmas do municípios diretamente impacta- ECI realizado para as UHEs Foz do dos: Alta Floresta e Paranaíta (am- Apiacás e São Manoel. Nesse acor- bos no Mato Grosso) e Jacareacanga do, os dois órgãos não considera- (Pará). ram os impactos significativos e es- Ao longo de todo o processo de li- pecíficos da UHE Teles Pires, como cenciamento, houve problemas em aqueles relacionados à inundação relação à identificação de impactos da cachoeira Sete Quedas, área de nas terras indígenas (TIs) próximas reprodução de peixes migratórios ao barramento e à falta de consulta que são a base da alimentação das aos grupos Kayabi, Apiaká e Mun- populações indígenas e que, ade- duruku que vivem no sul do Pará mais, tem importância cultural e e norte de Mato Grosso, e que utili- religiosa, por ser lugar sagrado para zam e dependem do rio Teles Pires os Munduruku, que consideraram para a manutenção de seus modos que ali vive a Mãe dos Peixes. de vida. O aceite do EIA pelo Ibama Contudo, em 2010, a própria e a emissão da LP e da LI ocorreram Funai considerou insuficiente o ECI sem a realização do estudo do com- das UHEs Foz do Apiacás e São Ma- ponente indígena (ECI), como parte noel, ressaltando à EPE a necessi-

178 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade dade de revisão da viabilidade dos ficiente com todos os indígenas”; empreendimentos, a partir da con- ii) “dificuldades dos indígenas em se- sideração dos impactos sobre os po- rem ouvidos e terem seus direitos vos indígenas. Conforme o órgão in- respeitados”; digenista, o ECI não trazia subsídios iii) “a importância cultural que o Sal- conclusivos sobre a relação entre o to Sete Quedas tem para os Kaya- empreendimento e o componente bi e Mundurucu, que não pode ser indígena. Assim, a Funai solicitou, desconsiderada”[;] em ofício ao Ibama, que o estudo iv) “os estudos não registraram a real fosse reformulado, incorporando importância cultural que o Salto todos os pontos apresentados e os Sete Quedas tem para os povos in- impactos identificados na análise dígenas e isso precisa ser assumido do órgão. Com isso, as falhas e pen- e corrigido nos estudos”; dências do ECI “emprestado”, iden- v) “a correção tem que ser feita nos tificadas pela Funai, foram converti- estudos de que os Kayabi ape- das em uma das 28 condicionantes nas aceitaram a realização dos da LP da UHE Teles Pires, emitida estudos e não a construção da pela Ibama. O empreendedor refor- hidrelétrica, pois são contra o mulou o ECI e produziu um docu- empreendimento”; mento específico para a UHE Teles vi) “(os indígenas) deixaram claro que Pires. estão sendo atropelados por todo Porém, as deficiências relacio- o processo, não havendo tempo nadas à avaliação de impacto am- para entender, discutir e ter suas biental permaneceram e não foram posições ouvidas e respeitadas so- sanadas até a emissão da LI, em bre todos os pontos e programas 2011. Alguns dias antes da emissão envolvidos”; da licença, em reunião realizada na vii) “nos estudos, vários temas ficaram aldeia Kururuzinho, na TI Kayabi, faltando, como os impactos sobre com a participação de indígenas as plantas medicinais e as matérias Kayabi e Munduruku, servidores da primas que os povos indígenas uti- Funai e representantes do empreen- lizam”; e dedor, os índios fizeram as seguin- viii) “que estes desenvolvimentos que tes constatações em relação ao ECI: dizem que as hidrelétricas vão tra- zer não são voltados para os povos Na ata da reunião, destacam-se indígenas, para estes, os empreen- como constatações: dimentos só vão trazer destruição” i) “falta de informação e discussão su- (Idem).

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 179 Todos esses problemas com a LP da UHE, ratificando a prevalên- avaliação dos impactos ambientais cia inadequada das condicionantes sobre as populações indígenas, que ambientais como lastro da viabili- se arrastam pelas diferentes fases dade ambiental do projeto. do licenciamento, são derivados do Assim, se o planejamento hidre- fato de o órgão licenciador não obri- létrico avança para a região ama- gar a revisão e complementação zônica pelo fato de lá ainda haver do EIA/Rima com uma adequada 51% do que se considera o potencial análise do componente indígena, brasileiro disponível para ser ex- previamente à emissão da licença plorado, avança também com ele prévia. Trata-se de algo que traria uma grande probabilidade de que elementos importantes para a de- a viabilidade ambiental dos proje- finição da viabilidade ambiental do tos seja cada vez mais lastreada nas empreendimento. condicionantes ambientais e menos na própria avaliação de viabilidade Considerações finais ambiental, baseada nas alternati- O caso aqui relatado – o licencia- vas tecnológicas e de localização do mento ambiental da UHE Teles Pi- projeto e necessária para garantir res – é um exemplo contundente de a legitimidade técnica do processo como o tratamento dado às condi- de licenciamento ambiental am- cionantes ambientais pode ser um parado pela avaliação de impacto revés para a própria avaliação de ambiental. viabilidade ambiental do projeto. Considerando-se que o ECI foi [artigo concluído em julho de 2014] produzido para um caso e transpos- to para outro, é possível inferir que Referências bibliográficas não houve a adequada inserção do Araújo, Adélia A.; Nogueira, Eli- componente indígena na avaliação sângela N.; David, Fabiane S.; de impacto ambiental da UHE, im- Silva, Flávia de A.; Ventura, Ro- pedindo principalmente sua consi- sangela M.G.; Figueiredo; Sérgio deração no momento de avaliação B. 2014. Relatório de monitora- de viabilidade ambiental da locali- mento da qualidade da água da zação proposta para a referida UHE, região hidrográfica amazônica: durante a elaboração do EIA. Como 2010 e 2011. Coleção Monitora- solução, muitos dos problemas mento Ambiental. Cuiabá, Supe- identificados apenas foram tratados rintendência de Geoinformação como uma das 28 condicionantes da e Monitoramento Ambiental, Se-

180 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade cretaria de Estado do Meio Am- aspx?CategoriaID=101> (acesso: biente de Mato Grosso. 10 jul. 2014). Arruda, Bianca. 2003. “Consórcio Brasil. Ministério de Minas e Ener- do Teles-Pires será criado ofi- gia. Empresa de Pesquisa Energé- cialmente em Alta Floresta”. In: tica; Consórcio Leme-Concre- Estação Vida. Cuiabá, 18 jul. Dis- mat. 2010. Estudo de impacto ponível em: Teles Pires. 7 v. Brasília/Rio de (acesso: 10 jul. 2014). Janeiro. Disponível em: (acesso: 10 Sítio do Programa de Cálculo do jul. 2014). Desflorestamento da Amazônia Brasil. Ministério do Meio Am- do Instituto Nacional de Pesqui- biente. Conselho Nacional do sas Espaciais (Prodes/Inpe). Dis- Meio Ambiente. 1997. Resolução ponível em: (aces- pectos de licenciamento ambien- so: 10 jul. 2014). tal estabelecidos na Política Na- Brasil. Ministério de Minas e Ener- cional do Meio Ambiente. Brasília, gia. Empresa de Pesquisa Energé- 19 dez. Disponível em: (aces- do rio Teles Pires. Relatório fi- so: 10 jul. 2014). nal. Sumário executivo. Brasília. Brasil. Ministério Público da União; Disponível em: (acesso: 10 jul. 2014). Público da União. Disponível ___. 2014. Avaliação ambiental inte- em: . www.epe.gov.br/MeioAmbiente/ Brasil. Ministério Público Federal; Paginas/AAI/BaciadoRioJuruena. Mato Grosso. Ministério Público

Condicionantes e a viabilidade ambiental no processo de licenciamento 181 do Estado. 2012. Ação civil pública na América Latina/Hidroeléctricas com pedido de liminar. Processo y actuación del Ministerio Público nº3947-44.2012.4.01.3600. Cuia- en Latinoamérica. Porto Alegre, bá. Disponível em: Montaño, Marcelo; Ranieri, Vic- (acesso: 10 jul. 2014). tor E.L.; Schalch, Valdir; Fon- Grupo De Estudos Tapajós; Eco- tes, Aurélio T.; Castro, Marcus logy Brasil. 2014. Avaliação C.A.A.; Souza, Marcelo P. 2012. ambiental integrada da bacia “Integração de critérios técnicos, do Tapajós. Sumário executivo. ambientais e sociais em estudos Disponível em: (acesso: 10 jul. tal, v.17, nº1. Rio de Janeiro, Asso- 2014). ciação Brasileira de Engenharia Linha do tempo. [s.d.]. Hidrelétri- Sanitária e Ambiental, pp. 61-70. ca Teles Pires. Disponível em: Montaño, Marcelo; Souza, Marcelo no licenciamento de empreendi- (acesso: 10 jul. 2014). mentos perigosos no estado de Instituto Centro de Vida. 2009. São Paulo”. In: Engenharia Sanitá- Avaliação ambiental integrada: ria e Ambiental, v.13, nº4. Rio de território Portal da Amazônia. Janeiro, Associação Brasileira de Alta Floresta, ICV. Engenharia Sanitária e Ambien- Maia, Leonardo Castro. 2013. “Hi- tal, pp. 435-442. drelétricas e o Ministério Públi- Sánchez, Luis Enrique. 2006. Avalia- co brasileiro”. In: Maia, Leonar- ção de impacto ambiental: concei- do C.; Cappelli, Sílvia; Pontes tos e métodos. São Paulo, Editora Júnior, Felício (org.). Hidrelétri- Oficina dos Textos. cas e atuação do Ministério Público

182 Moretto, Jordão, Fernandes e Andrade O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do tapajós1 Biviany Rojas Garzón, Brent Millikan e Daniela Fernandes Alarcon

financiamento da usina hi- indicando tendências que parecem 1. O presente artigo é drelétrica (UHE) de Belo Mon- se repetir com os projetos de barra- uma versão traduzida e adaptada de Rojas gens na bacia do Tapajós. te, no rio Xingu, por meio de & Millikan (2014). Ver Oum conjunto de empréstimos que Procuramos, neste texto, apontar também Millikan & Rojas (2015). somam R$ 25,4 bilhões, é a maior questões-chave que possam subsi- operação já aprovada para um úni- diar discussões sobre a atuação do co empreendimento na história do BNDES como instituição financeira Banco Nacional de Desenvolvimen- pública, especialmente no que diz to Econômico e Social (BNDES). respeito a suas limitações e às mu- Este artigo tem por objetivo ana- danças necessárias em suas políticas lisar o envolvimento do BNDES de transparência e responsabilidade com empreendimentos voltados socioambiental. O debate é premen- ao aproveitamento hidrelétrico da te, já que novos e vultosos investi- Amazônia brasileira, recuperando mentos do BNDES no setor hidrelé- informações sobre o caso Belo Mon- trico estão no horizonte. Conforme te – em especial, em torno das re- recentemente divulgado pelo ban- lações entre o banco, organizações co, sua perspectiva de investimento da sociedade civil e outros sujeitos no setor elétrico brasileiro para o envolvidos no processo, por ocasião período de 2015 a 2018 é de R$ 192,2 da análise, aprovação e contratação bilhões, considerando-se projetos a de empréstimos, assim como do serem finalizados até 2022 (Brasil, monitoramento e fiscalização da Banco Nacional de Desenvolvimen- execução do empreendimento – e to Econômico e Social, 2014: 97).

183 Essa estimativa tem por base os lei- [BNDES Participações S.A.]. Dentro lões de geração e transmissão de do governo, há gestões também energia já realizados, bem como as para que o InfraBrasil, fundo que indicações do planejamento realiza- reúne recursos do próprio BNDES do pela Empresa de Pesquisa Ener- e de fundações, como Previ [Caixa gética (EPE) da expansão da geração de Previdência dos Funcionários do e da transmissão de energia elétri- ] e Funcef [Fundação ca para o horizonte decenal. […] dos Economiários Federais], partici- O destaque é a geração de energia pe dos grupos vencedores dos leilões elétrica, cujos investimentos foram (Governo, 2011). estimados em R$ 118,8 bilhões, en- tre os quais R$ 56,3 bilhões referentes Os primeiros contratos entre o a empreendimentos hidrelétricos, sendo BNDES e empreendedores ligados mais da metade já contratada por aos barramentos na bacia do Tapa- leilões públicos (Idem, grifo nosso). jós viriam entre o fim de agosto e o começo de setembro do mesmo Nesse quadro, destacam-se as ano, totalizando R$ 84,4 milhões, barragens na bacia do Tapajós. Em destinados à implantação de cin- meados de 2011, a participação des- co pequenas centrais hidrelétricas 2. As informações sobre esses e os demais tacada do BNDES nos empreendi- (PCHs) na bacia do rio Juruena (ver contratos relacionados mentos hidrelétricos planejados tabela 1)2. Ainda em dezembro de à bacia do Tapajós para a bacia do Tapajós já estava em 2011, a Companhia Hidrelétrica Te- apresentadas aqui foram obtidas através pauta. À época, baseando-se em um les Pires (CHTP), a cargo da implan- do sistema de consulta “relatório reservado” e referindo-se tação da UHE Teles Pires, no rio de às operações do BNDES. Disponível em: (acesso: 18 dez. verá entrar na operação com dupla Já em abril de 2013, a Inxu Gera- 2014). Note-se que missão. De um lado, financiará até dora e Comercializadora de Energia não constam, ali, 60% dos investimentos previstos Elétrica S.A. firmaria contrato com informações sobre projetos em análise. para a construção das usinas; do ou- o BNDES no valor de aproximada- tro, participará como acionista dos mente R$ 99,5 milhões, destinados consórcios por meio da BNDESPar à PCH Inxu, também na sub-bacia

184 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon Tabela 1. Investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em barragens na bacia doTapajós de jan. 2011 a jul. 2014

Data do Empreendedor Aproveitamento hidrelétrico Valor financiado (R$) Forma de apoio contrato

Pequena central hidrelétrica Telegráfica Energia S.A. 13.000.000,00 31/08/2011 Direta (PCH) Telegráfica

Campos de Julio Energia PCH Cidezal 9.350.000,00 31/08/2011 Direta S.A.

Sapezal Energia S.A. PCH Sapezal 7.350.000,00 31/08/2011 Direta

Parecis Energia S.A. PCH Parecis 6.500.000,00 31/08/2011 Direta

Rondon Energia S.A. PCH Rondon 6.000.000,00 31/08/2011 Direta

Indireta não Telegráfica Energia S.A. PCH Telegráfica 13.000.000,00 01/09/2011 automática

Campos de Julio Energia Indireta não PCH Cidezal 9.350.000,00 01/09/2011 S.A. automática

Indireta não Sapezal Energia S.A. PCH Sapezal 7.350.000,00 01/09/2011 automática

Indireta não Parecis Energia S.A. PCH Parecis 6.500.000,00 01/09/2011 automática

Indireta não Rondon Energia S.A. PCH Rondon 6.000.000,00 01/09/2011 automática

Companhia Hidrelétrica UHE Teles Pires 450.000,00 14/12/2011 Direta Teles Pires

Companhia Hidrelétrica UHE Teles Pires 1.212.000,00 27/09/2012 Direta Teles Pires

Companhia Hidrelétrica Indireta não UHE Teles Pires 1.200.000,00 27/09/2012 Teles Pires automática

Inxu Geradora e Comercializadora de PCH Inxu 99.560.220,00 05/04/2013 Direta Energia Elétrica S.A.

Copel Geração e UHE Colíder 1.041.155.000,00 04/12/2013 Direta Transmissão S.A.

TOTAL (R$) = 1.227.977.220,00

Elaboração dos autores, 2014. Fonte: Sistema de consulta às operações do BNDES. Disponível em: (acesso: 18 dez. 2014). Note-se que o sistema não apresenta informações sobre projetos em análise. Sabe-se que o BNDES aprovou empréstimo para a UHE Sinop, no rio Teles Pires, mas informações a esse respeito não constam no sistema de consulta.

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 185 do Juruena. No mesmo ano, em de- de ações civis públicas (ACPs) ter zembro, a estatal paranaense Copel sido ajuizada pelo Ministério Pú- Geração e Transmissão S.A. fechou blico Federal (MPF) e por organiza- um contrato de aproximadamente ções da sociedade civil, apontando R$ 1,04 bilhão, para implantação da irregularidades na concessão da UHE Colíder, no rio Teles Pires. Em licença prévia de Belo Monte (LP evento fechado à imprensa, promo- nº342/2010) e o descumprimento de vido pela JPMorgan, em dezembro condicionantes que deveriam ante- de 2014, o presidente do BNDES, Lu- ceder o certame, especialmente no ciano Coutinho, demonstrou expec- tocante à proteção de terras e popu- tativa quanto à realização do leilão lações indígenas, conforme exigên- da UHE São Luiz do Tapajós ainda cia da Fundação Nacional do Índio em 2015 (Machado, 2014), anteci- (Funai), respaldada na LP. A pedido pando um provável apoio do banco da Advocacia-Geral da União (AGU), ao empreendimento. o presidente do Tribunal Regional Nas próximas sessões, discuti- Federal da 1a Região (TRF-1) suspen- remos a participação do BNDES no deu unilateralmente liminares a fa- financiamento da UHE Belo Monte, vor de diversas ACPs na véspera do retomando, no final do artigo, o de- leilão, lançando mão da suspensão bate sobre a bacia do Tapajós e apre- de segurança (SS), artifício legal e sentando algumas recomendações. uma espécie de relíquia da ditadu- ra militar, invocando o fantasma de O BNDES e a UHE Belo Monte um suposto apagão no setor elétri- O caso de Belo Monte demonstra co e ameaça à “ordem social e eco- claramente a impotência da Política nômica” no caso de atrasos na cons- de Responsabilidade Socioambien- trução de Belo Monte. tal (PRSA) do BNDES, tanto para No leilão, concorreram apenas avaliar riscos socioambientais, evi- dois consórcios, montados apressa- tando o apoio a determinados em- damente sob a coordenação do Mi- preendimentos, como para acom- nistério de Minas e Energia (MME) panhar eficientemente a gestão de e das Centrais Elétricas Brasileiras riscos e impactos socioambientais S.A. (Eletrobras). O vencedor foi a envolvidos naqueles que o banco Norte Energia S.A. (Nesa), liderada decide apoiar. O leilão da UHE foi pela Companhia Hidro Elétrica do realizado pela Agência Nacional de São Francisco (Chesf), do Grupo Energia Elétrica (Aneel) em 20 de Eletrobras, tendo como parceiros abril de 2010, apesar de uma série principais a construtora Queiroz

186 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon Galvão, Gaia Energia e Participa- da pecuária – já se previa, portanto, ções (do grupo Bertin) e J. Malucelli a atuação do banco como principal Construtora de Obras. Logo após a financiador. O grupo foi substituído realização do leilão, iniciou-se uma como autoprodutor pela Vale, em- intensa “dança de cadeiras” na com- presa estatal privatizada, mas ainda posição da Nesa, destacando-se a saí- fortemente influenciada pelo gover- da de construtoras (Queiroz Galvão, no federal via a participação acioná- J. Malucelli, Mendes Junior, Galvão ria do Previ. Engenharia, Contern, Serveng) e a Em março de 2010 – ou seja, no entrada de estatais vinculadas à Ele- mês seguinte à concessão da LP e trobras, fundos de pensão (Funda- anterior à realização do leilão –, ção de Seguridade Social vários movimentos sociais de Al- - Petros, Funcef, Previ) e outros fun- tamira, Pará, com apoio de organi- dos de investimento controlados zações nacionais, entregaram uma pelo governo. A grande maioria das notificação extrajudicial ao BNDES, construtoras migrou para o Consór- advertindo sobre a fragilidade da re- cio Construtor Belo Monte (CCBM), ferida licença ambiental, que contratado pela Nesa para realizar as obras. não oferece nenhuma garantia de Esse fenômeno pode ser com- que a obra é viável do ponto de vista preendido como reflexo de vários socioambiental, uma vez que a con- fatores: i) os elevados riscos finan- clusão da avaliação técnica do Ibama ceiros para investidores no consór- [Instituto Brasileiro do Meio Am- cio concessionário de Belo Monte; biente e dos Recursos Naturais Re- ii) a preferência das empreiteiras nováveis] de que “não há elementos por atuar como contratadas para as suficientes para atestar a viabilidade obras, a sua especialidade, em um ambiental do empreendimento” foi ambiente de baixo risco; e iii) o po- desconsiderada no ato do licencia- der de fogo do governo federal so- mento (Notificação, 2010). bre os fundos de pensão de empre- sas estatais. Outro fato notável nas Citando a Constituição Fede- mudanças de composição da Nesa ral e a Lei da Política Nacional do foi a saída da Gaia Energia e Parti- Meio Ambiente (Lei nº6.938/1981), cipações. Ela se deu, aparentemen- o documento advertiu o BNDES de te, em decorrência de problemas de que, caso aprovasse o financiamen- inadimplência do grupo Bertin em to para Belo Monte, o banco seria financiamentos do BNDES no setor passível de ser cobrado pelos im-

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 187 Tabela 2. Composição inicial e atual da Norte Energia S.A. (Nesa) e do Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM)

Composição da Nessa na Composição da Nesa (2014) Composição do CCBM época do leilão (abr. 2010)

Grupo Eletrobras: Grupo Eletrobras: Centrais Elétricas Andrade Gutierrez (18%) Companhia Hidro Elétrica do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) Odebrecht (16%) do São Francisco (Chesf) (19,98%), Centrais Elétricas Brasileiras Camargo Corrêa (16%) (49,98%) S.A. (Eletrobras) (15%), Chesf (15%), OAS (11,5%) Empresas privadas: Entidades de previdência Queiroz Galvão (11,5%) Construtora Queiroz complementar: Fundação Petrobras Contern (10%) Galvão (10,02%), J. de Seguridade Social (Petros) Galvão Engenharia (10%) Malucelli Construtora de (10%), Fundação dos Economiários Serveng (3%) Obras (9,98%), Cetenco Federais (Funcef) (5%) Cetenco (2%) Engenharia (5%), Galvão Fundo de investimento em J. Malucelli (2%) Engenharia (3,75%), Mendes participações: Caixa FIP Cevix (5%) Junior Trading Engenharia Sociedade de propósito específico: (3,75%), Serveng- Belo Monte Participações S.A. Civilsan (3,75%), Contern (Neoenergia S.A.) (10%, sendo: Caixa Construções e Comércio de Previdência dos Funcionários do (3,75%) Banco do Brasil - Previ [49%], Iberdrola Autoprodutores: Gaia [39%] e Banco do Brasil [12%]) Energia e Participações Autoprodutoras: Amazônia (10,02%) (Companhia Energética de Minas Gerais - Cemig e Light Serviços de Eletricidade S.A.) (9,77%), Vale S.A. (9%), Siderúrgica Norte Brasil S.A. (Sinobras) (1%) Outras sociedades: J. Malucelli Energia (0,25%)

Elaboração dos autores. Fontes: Nesa e Valor Econômico. pactos socioambientais do projeto, bro de 2009, antecipando a realiza- não equacionados pelo processo de ção de análises técnicas do projeto licenciamento, marcado por irre- pelo banco e a concessão da LP pelo gularidades. O banco responderia, Ibama (BNDES financia, 2009; Gan- inclusive, por custos decorrentes de dra, 2010). O documento lembrou danos sobre a fauna, flora e pessoas que, como gestor de recursos públi- da região, independentemente de cos, em conformidade com seu es- seu valor estimado. tatuto social, o BNDES deve realizar A notificação questionou o fato “exame técnico e econômico-finan- de autoridades do BNDES anuncia- ceiro de empreendimento, projeto rem o financiamento desde setem- ou plano de negócio, incluindo a

188 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon avaliação de suas implicações so- No mais, houve contradição entre a ciais e ambientais” antes de apro- resposta do BNDES e uma nota emi- var qualquer operação financeira. tida no dia 16 de abril de 2010 (qua- Em resposta datada de 22 de abril tro dias antes do leilão), em que o de 2010 (dois dias após o leilão), o banco afirmava que financiaria até chefe de gabinete da presidência do 80% do investimento total de Belo BNDES afirmou que o banco Monte, estimado na época em R$ 19 bilhões (Lage, 2010). desconhece as especificidades do Segundo informações levantadas empreendimento UHE Belo Mon- pelo MPF à época, a Nesa apresen- te, especificidades essas somente tou ao BNDES, em 24 de setembro conhecidas após a apresentação do de 2010, carta-consulta relativa ao pedido de financiamento da even- pedido de financiamento de longo tual beneficiária que resultará do prazo para a implantação da UHE leilão público a ser promovido pelo Belo Monte. Em 8 de outubro do poder concedente. Como o projeto mesmo ano, o pedido de financia- da usina de Belo Monte não percor- mento foi “enquadrado”, o que ha- reu nenhuma das etapas internas de bilitou a Nesa a iniciar o processo de tramitação do BNDES, e ainda não envio de informações e documentos foi licitado pelo poder concedente, necessários à análise da solicitação o BNDES não analisou os condicio- de financiamento pelo banco. Em nantes do licenciamento prévio da dezembro de 2010, o presidente do usina, e tampouco verificou a con- BNDES, Luciano Coutinho, já anun- formidade do empreendimento no ciava que o banco atuaria para re- que toca à Politica Nacional de Meio passar à Nesa “um financiamento Ambiente e ao normativo do Co- viabilizador do projeto”. Na época, nama [Conselho Nacional do Meio segundo estimativa da Nesa, o custo Ambiente]. total de Belo Monte já teria aumen- tado para R$ 25 bilhões. No entan- Além de desconsiderar a reali- to, o BNDES não divulgou qualquer zação do leilão, em 20 de abril de informação à sociedade brasileira 2010, a resposta do chefe de gabine- a respeito dos critérios e análises te da presidência não fez referência técnicas utilizados para embasar tal às críticas da notificação extrajudi- afirmação. cial às declarações públicas de auto- Em janeiro de 2011, as entidades ridades do BNDES efetuadas em se- civis International Rivers e Amigos da tembro de 2009 e fevereiro de 2010. Terra – Amazônia Brasileira lança-

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 189 ram o relatório Mega-projeto, mega- uma “LI parcial”, inexistente na le- -riscos: análise de riscos para investido- gislação ambiental brasileira, com res no Complexo Hidrelétrico Belo Monte o objetivo de acelerar a instalação (Hurwitz et al., 2011). O documento de canteiros e estradas de acesso de apresentava uma análise criteriosa Belo Monte, enquanto não saía a “LI de riscos financeiros, legais e de re- completa”. putação para investidores públicos Em face da ausência de divulga- e privados, atualmente ou poten- ção pública de informações míni- cialmente envolvidos com a UHE mas pelo BNDES sobre o emprésti- Belo Monte, baseando-se em um mo-ponte, o MPF no estado do Pará extenso material produzido por solicitou oficialmente dados sobre diversas fontes: empreendedores, os critérios de análise e aprova- órgãos governamentais, cientistas ção do financiamento, a utilização e acadêmicos, entidades da socieda- prevista dos recursos e a posição de civil, MPF, dentre outras. Apesar do banco quanto à legalidade de de o relatório ter sido entregue for- uma “LI parcial” para fins de finan- 3. Os questionamentos malmente ao BNDES e de os autores ciamento de Belo Monte. Mesmo do MPF e as respostas terem informado seu interesse em sem informar a posição do BNDES do BNDES podem ser encontrados em: dialogar sobre o conteúdo do mes- quanto à legalidade da LI parcial, a Em dezembro de 2010, o BNDES i) Para fins de aprovação do primei- (acesso: 5 dez. 2014). anunciou a aprovação de um primei- ro empréstimo-ponte, o BNDES

4. Essa afirmação do ro empréstimo-ponte de R$ 1,087 bi- considerou desnecessária a fase de BNDES contrasta com lhão para a Nesa, voltado a adiantar análise técnica de viabilidade eco- normas do Banco Central (Bacen) e do ações de implantação de Belo Mon- nômica e financeira do empreen- Conselho Monetário te, enquanto se aguardava a apro- dimento, inclusive em termos de Nacional (CMN), vação do financiamento principal. análise do custo das obras e de mi- que estabelecem a obrigatoriedade Tal anúncio chamou a atenção do tigação e compensação de impac- de análise de MPF, uma vez que, na época, o con- tos socioambientais (e seus respec- níveis de risco de 4 empreendimentos pela sórcio não possuía licença de insta- tivos riscos) ; instituição financeira lação (LI) para o empreendimento. ii) Os recursos do empréstimo-ponte como condição para Além disso, o Ibama dava sinais de seriam utilizados para “adianta- qualquer concessão de crédito. que iria conceder, no início de 2011, mento de pagamentos a fornece-

190 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon dores de equipamentos e materiais to de longo prazo deverá prever a nacionais, bem como a prestadores suspensão do processo de liberação de serviços de projetos e de estu- de recursos até que a situação seja dos para a implantação da usina”; regularizada. iii) As condições do empréstimo in- cluiriam “o estabelecimento de Como se demonstra na presente obrigação de não intervenção no análise, essa afirmação contrasta sítio do AHE [aproveitamento hi- com a atuação do BNDES no finan- drelétrico] Belo Monte, sem que ciamento da UHE Belo Monte, desde seja emitida a licença de instalação o início. referente à implantação do apro- Em novembro de 2010, o MPF no veitamento hidrelétrico como um Pará enviou uma recomendação ao todo”. presidente do Ibama, solicitando que o órgão A última afirmação do BNDES claramente criou constrangimen- se abstenha [abstivesse] de emitir to para a Nesa, que contava com qualquer licença, em especial a de os recursos do empréstimo-ponte instalação, prévia ou definitiva, do para iniciar as obras dos canteiros empreendimento denominado AHE e estradas de acesso a Belo Monte. Belo Monte, enquanto as questões Nesse contexto, a opção da Nesa, relativas às condicionantes da LP com o respaldo político de seu só- nº342/2010 não forem [fossem] de- cio governamental (Eletrobras), foi finitivamente resolvidas de acordo por pressionar o Ibama para liberar com o previsto. a “LI parcial” no início de 2011, para acelerar as obras preliminares de Desconsiderando a recomenda- Belo Monte, e aguardar a conces- ção do MPF, e sob forte pressão do são da LI completa, para assinar o setor elétrico do governo, em 26 de contrato do empréstimo-ponte com janeiro de 2011, o presidente interi- 5. Poucos dias antes, o o BNDES. Cabe ressaltar que, em no do Ibama assinou a “LI parcial” então presidente do Ibama, Abelardo Bayma 5 correspondência enviada ao MPF (LI nº770/2011) . No dia seguinte, Azevedo, tinha pedido no Pará em 18 de janeiro de 2011, o o MPF no Pará ajuizou uma ACP demissão do cargo, BNDES afirmou que contra a concessão irregular da “LI aparentemente por motivos que incluíam parcial”, figura inexistente na legis- desgaste em face das no caso de não cumprimento de lação ambiental, em um contexto pressões para conceder a “LI parcial” para Belo condicionantes de caráter socioam- de grave descumprimento das con- Monte. Ver, entre outras, biental, o contrato de financiamen- dicionantes da LP de Belo Monte. Presidente (2011).

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 191 No final de fevereiro de 2011, a Em 1 de junho de 2011, apesar de ação recebeu uma liminar favorável um persistente quadro de descum- do juiz federal Ronaldo Destêrro, primento de condicionantes da LP, da Nona Vara de Belém, o que sus- o presidente do Ibama assinou a LI pendeu tanto a LI nº770/2011 como nº795/2011, a “LI completa”, que per- uma autorização de supressão de mitiu o início das obras principais vegetação concedida pelo Ibama. A de Belo Monte. Cinco dias depois, o decisão, além disso, determinou “ao MPF no Pará ajuizou nova ACP, soli- BNDES que se abstenha de transferir citando à justiça federal a declara- recursos à Nesa, tudo até o advento ção da nulidade da LI nº795/2011; a da sentença ou até que, à vista da obrigação de a Nesa cumprir todas comprovação das condicionantes, as condicionantes previstas da LP 6. De lá para cá, outras esta decisão seja revogada”6. O juiz nº342/2010 antes de requerer nova- decisões judiciais, declarou ainda: mente a LI; e a obrigação de o Ibama não apreciadas neste artigo, também não emitir nova LI para Belo Monte determinariam a Em lugar de o órgão ambiental con- enquanto as condicionantes previs- suspensão das obras e do financiamento duzir o procedimento, acaba por tas na LP não fossem integralmente concedido pelo BNDES à ser a Nesa que, à vista dos seus inte- cumpridas pela Nesa. Nesa, sendo alvos de SS. resses, suas necessidades e seu cro- Nesse contexto, o BNDES assi- nograma, tem imposto ao Ibama o nou, em 16 de junho de 2011, o con- modo de condução do licenciamen- trato do primeiro empréstimo-pon- to de Belo Monte. te para Belo Monte, no valor de R$ 1,1 bilhão, a favor da Nesa. Apesar Poucos dias depois, o presiden- de já concedida a LI nº795/2011, o te do TRF-1, desembargador Olindo contrato do empréstimo-ponte in- Menezes, a pedido da AGU, assi- cluiu um item sobre a obrigação de nou uma SS para invalidar a limi- a beneficiária nar, permitindo a continuação das obras de Belo Monte baseadas na LI não realizar qualquer intervenção nº770/2011, independentemente do na área de implantação da UHE Belo cumprimento das condicionantes Monte, antes da obtenção e apresen- da LP. Na decisão, o desembargador tação ao BNDES da Licença de Ins- concluiu que “não há necessidade talação relativa à integralidade do de cumprimento de todas as condi- referido projeto… cionantes listadas na licença prévia para a emissão da licença de insta- Além disso, o referido contra- lação parcial do empreendimento”. to incluiu como itens padrão: i) a

192 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon obrigação de a Nesa “manter em MPF e incompatibilidades da UHE situação regular suas obrigações Belo Monte com o arcabouço legal junto aos órgãos do meio ambien- sobre instituições financeiras e dire- te…” (cláusula nona, item IV); e ii) trizes de responsabilidade socioam- como condição de vencimento an- biental do BNDES. O documento tecipado, “a existência de sentença concluía reiterando que o empreen- condenatória transitada em julgado dimento apresentava “graves riscos em razão da prática de atos, pela financeiros, legais e de reputação BENEFICIÁRIA, que importem em para as instituições que venham a trabalho infantil, trabalho escravo participar, direta ou indiretamente, ou crime contra o meio ambiente” de seu financiamento”. Nesse sen- (cláusula 14o, item “b”). Nessa épo- tido, questionava-se a aprovação, ca, já era evidente que tais cláusu- pelo BNDES, do primeiro emprésti- las contratuais não evitariam graves mo-ponte, em dezembro de 2010, e problemas na implantação de Belo a assinatura do contrato relativo ao Monte, marcada pelo descumpri- mesmo, em junho de 2011. A noti- mento de condicionantes das licen- ficação não recebeu do banco mais 7. O Banco ABC Brasil ças ambientais, o que provocou o que uma resposta genérica, em 16 S.A. é uma subsidiária ajuizamento, pelo MPF, de diversas de novembro de 2011. do Arab Banking Corporation, com sede ACPs (inviabilizadas, no entanto, Em 7 de fevereiro de 2012, a dire- na Líbia. Quando o pelo artificio jurídico da SS). toria do BNDES aprovou um segun- BNDES foi indagado pela International Em outubro de 2011, o BNDES do empréstimo-ponte para a UHE Rivers, via lei de acesso recebeu uma segunda notificação Belo Monte, em favor da Nesa, no à informação, sobre os critérios utilizados para extrajudicial sobre a sua participa- valor de R$ 1,8 bilhão, prevendo o escolher a CEF e o Banco ção no financiamento da UHE Belo seguinte esquema de repasse de re- ABC Brasil S.A. como Monte, assinada por mais de 170 or- cursos: R$ 1,5 bilhão via Caixa Eco- instituições financeiras repassadoras do ganizações da sociedade civil, com nômica Federal (CEF) e R$ 300 mi- segundo empréstimo- a finalidade de “reiterar e compro- lhões por meio do Banco ABC S.A.7. ponte, o banco var” graves problemas no processo respondeu que no Estranhamente, o segundo emprés- caso de “operações de planejamento, licenciamento e timo-ponte não foi divulgado pelo realizadas através de implementação do empreendimen- BNDES na época de sua aprovação – repasse de recursos por intermédio de Agentes to. A notificação apresentou infor- só foi descoberto em maio de 2012, Financeiros (chamadas mações atualizadas sobre desvios na como resultado de um pedido de in- de ‘operações indiretas’) a responsabilidade concessão de licenças ambientais e formação apresentado pela Interna- pela análise de risco descumprimento de suas condicio- tional Rivers, utilizando a lei de aces- da Beneficiária é dos nantes, violações de direitos indíge- so à informação (Lei nº12.527/2011). bancos repassadores, não cabendo ao BNDES nas, as diversas ações judiciais do Indagado pela International Rivers, efetuar tal análise”.

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 193 em agosto de 2012, sobre a moti- O dinheiro relativo a este segundo vação para não ter divulgado o se- empréstimo-ponte só começou a gundo empréstimo-ponte na época ser desembolsado após comprovada de sua aprovação e sobre as datas a regularidade ambiental. A Norte de suspensão e retomada dos de- Energia apresentou ao Banco no fi- sembolsos do empréstimo (explici- nal de março ofício do Ibama ates- tando os principais fatos que justi- tando que, embora tivesse sido apli- ficaram tais decisões), o banco não cada a multa, a licença de instalação respondeu. do projeto continuava válida e que Naquela época, as inadimplên- a empresa permanece autorizada cias da Nesa em relação ao cum- a prosseguir com as obras para im- primento de condicionantes das plantar a usina (Leitão & Maniero, licenças ambientais foram se con- 2012). firmando, nos relatórios de sete vistorias realizadas por técnicos do Nesse raciocínio, a existência de Ibama, que chegaram ao ponto de graves irregularidades no cumpri- verificar a apresentação de informa- mento de condicionantes e outros ção inverídica nos relatórios da em- aspectos da legislação ambiental presa. Assim, em janeiro de 2012, não seriam motivo para o BNDES técnicos do órgão ambiental reco- interromper o repasse de recursos mendaram a imposição de sanções para um empreendimento, desde ao empreendedor. Em 15 de feverei- que a LI não fosse suspensa pelo ro de 2012, o Ibama aplicou à Nesa Ibama. uma multa de R$ 7 milhões, por 8. A Nesa contestou descumprimento de condicionan- Financiamento de longo prazo administrativamente tes das licenças ambientais, inclusi- No final de novembro de 2012, o a multa junto ao Ibama; até o presente, ve quanto à preparação do projeto BNDES anunciou a aprovação de ela não foi paga pelo básico ambiental (PBA)8. um pacote de R$ 22,5 bilhões para consórcio. O PBA deve Quando a jornalista Míriam Lei- o financiamento de longo prazo de apresentar um plano executivo para a tão indagou o BNDES por que ele Belo Monte, apesar de todas as po- operacionalização de aprovara o segundo empréstimo- lêmicas judiciais e administrativas planos, programas e projetos, assim como as -ponte, em fevereiro (assinado em relacionadas ao empreendimento demais condicionantes março), apesar de a multa do Ibama (Brasil. Banco Nacional do Desen- estipuladas pela LI, volvimento Econômico e Social, associadas à mitigação ter sido aplicada naquele mês, o e compensação de banco alegou que, ao ser informado 2012). Segundo o informe do banco, impactos identificados da sanção do Ibama, teria suspendi- o pacote financeiro incluiria: i) um no licenciamento do empreendimento. do a liberação dos recursos: empréstimo direto para a Nesa, no

194 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon valor de R$ 9,8 bilhões; ii) uma ope- ações ambientais e sociais (relacio- ração indireta no valor de R$ 9 bi- nadas ao PBA e ao cumprimento de lhões, repassada via dois agentes fi- outras condicionantes de licenças nanceiros, CEF (R$ 7 bilhões) e BTG ambientais) na ordem de R$ 3,2 bi- Pactual (R$ 2 bilhões); e iii) outro lhões, assim como a destinação pelo 9. No caso do empréstimo direto à Nesa, no valor empreendedor de R$500 milhões ao empréstimo de R$ 3,7 bilhões no âmbito do de R$ 3,7 bilhões, destinados à com- Programa de Desenvolvimento Re- PSI, o contrato com a pra de equipamentos, no Programa gional Sustentável do Xingu (PDRS Nesa foi assinado pelo BNDES em março de de Sustentação do Investimento Xingu), que teria o objetivo de “me- 2011, ou seja, antes do (PSI)9. Trata-se da maior quantia já lhorar a qualidade de vida da popu- primeiro empréstimo- concedida na história do banco, lação da região” (Idem). ponte (junho de 2011), com o objetivo de abrangendo cerca de 80% do valor No dia 4 de dezembro de 2012, aproveitar uma janela total do empreendimento, confor- foi entregue na sede do BNDES, no de financiamento com juros subsidiados. me uma nova estimativa, de R$ 28,9 Rio de Janeiro, uma carta aberta No contrato do bilhões. Entre as características dos assinada por Antônia Melo, coor- PSI, a efetivação empréstimos, destacaram-se, além denadora do Movimento Xingu do empréstimo ficou condicionada do montante, os encargos financei- Vivo Para Sempre (MXVPS), e por à aprovação do ros e prazos de carência e amorti- cerca de 70 organizações brasilei- financiamento principal de longo prazo para zação (30 anos), indisponíveis entre ras e internacionais, chamando Belo Monte. outras fontes do mercado. atenção para uma extensa lista de Considerando os dois emprés- irregularidades e problemas econô- timos-ponte (R$ 1,1 e 1,8 bilhões) – micos, jurídicos e socioambientais cujos prazos de amortização foram de Belo Monte, instando o presi- prorrogados por sucessivos adendos dente do banco, Luciano Coutinho, contratuais, de 15 de dezembro de a não efetuar o empréstimo de R$ 2011 e 15 de julho de 2012, respecti- 22,5 bilhões anunciado na semana vamente, para 12 de março de 2013, anterior. O documento apresentou no intuito de facilitar o fluxo de cai- evidências da inviabilidade econô- xa da Nesa em relação à entrada de mica da UHE Belo Monte; atentou recursos do financiamento de lon- para a falta de análise de viabilida- go prazo –, o valor total dos finan- de econômica e de classificação de ciamentos concedidos pelo BNDES risco em empréstimos já efetuados para Belo Monte chegou a R$ 25,4 pelo BNDES; a inexistência do guia bilhões, em dezembro de 2012. So- socioambiental com diretrizes para bre a destinação dos recursos dos orientar financiamentos para o se- novos empréstimos, o BNDES anun- tor hidrelétrico, determinado por ciou a previsão de investimentos em resoluções internas do banco; o des-

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 195 cumprimento crônico de condicio- Pactual, os contratos de financia- nantes das licenças ambientais pela mento de longo prazo, possibilitan- Nesa; e o quadro de ilegalidades do do o repasse de R$ 22,5 bilhões para empreendimento, que havia resul- Belo Monte. A facilidade do banco tado, até aquele momento, no ajui- para se comunicar com as emprei- zamento de 15 ações pelo MPF, 21 teiras contrasta com a ausência de ações pela Defensoria Pública e 18 diálogo com as populações atingi- ações de organizações da sociedade das, sobretudo povos indígenas e 10 10. Em 28 de civil, entre outros . comunidades tradicionais. novembro de 2013, Diante desse quadro, os signa- Afinal, quais os critérios e pro- o MXVPS e parceiros protocolaram uma tários da carta solicitaram ao pre- cedimentos de análise técnica uti- representação junto sidente do BNDES que nenhum lizados pelo BNDES para aprovar o ao MPF no Pará, de desembolso do financiamento prin- pacote de financiamento de longo conteúdo semelhante, solicitando a tomada cipal Belo Monte, anunciado no prazo para Belo Monte, de valor iné- de medidas preventivas dia 26 de novembro de 2012, fosse dito na história do banco? Antes de e investigativas sobre a atuação do BNDES realizado antes do cumprimento de aprovar os empréstimos, quais os em Belo Monte. medidas urgentes, em sua grande parâmetros utilizados para atestar a Disponível em: (acesso: 5 dez. das leis nacionais e internacionais e de seus empreendedores, em ter- 2014). aplicáveis sobre direitos humanos mos de cumprimento da legislação e meio ambiente, e determinações atinente aos direitos humanos e à do Banco Central (Bacen) sobre a proteção ambiental, e das condi- necessidade de avaliação e cálculo cionantes das licenças ambientais? do risco decorrente da exposição a Quais as garantias estabelecidas nos danos socioambientais do empreen- contratos de empréstimo para asse- dimento. Por fim, as organizações gurar o cumprimento da legislação solicitaram uma audiência com a ambiental e dos direitos humanos presidência do banco para tratar de populações atingidas, assim das questões levantadas e da im- como as condicionantes das licen- plementação das medidas urgentes ças ambientais, ao longo da execu- propostas. No dia 18 de dezembro ção do projeto? de 2012, sem ter dado retorno para Mesmo com uma série de limita- os signatários da carta, Coutinho as- ções de acesso a informações – rela- sinou, pessoalmente, junto com os cionada, sobretudo, a intepretações representantes da Nesa, CEF e BTG questionáveis do BNDES sobre a

196 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon aplicação da lei de sigilo bancário sicionamento ficou evidenciado no (Lei Complementar nº105/2001) –, é contrato principal de financiamen- possível chegar a algumas respostas to de longo prazo e no comporta- preliminares, dentre as quais cabe mento do BNDES desde meados de destacar: 201111. Em outras palavras, via acor- 11. Cláusula 20ª do contratual, o banco declara que (Condições de utilização do crédito): i) Em decorrência do limitado acesso a inadimplência socioambiental do “Comprovação, a informações, faltam elementos beneficiário é irrelevante para a pela BENEFICIÁRIA, da regularidade para avaliar a qualidade das aná- operação creditícia, desde que não socioambiental do lises realizadas pelo BNDES no to- implique suspensão da LI; PROJETO perante os cante à viabilidade socioambiental iv) No que se refere à influência de de- órgãos ambientais”. No caso de “sanção, e econômica de Belo Monte, inclu- cisões judiciais nas suas operações, multa, advertência e/ sive o cumprimento da Resolução o BNDES utiliza como parâmetro ou penalidade pelo órgão licenciador, único a necessidade de decisão nº2.682/1999 do Conselho Monetá- comprovação […] de que rio Nacional (CMN) sobre riscos fi- com trânsito em julgado, o que dá a LI continua válida” nanceiros e da Circular nº3547/2011 respaldo para a utilização indevida (grifos nossos). do Bacen, no que se refere à neces- da SS por presidentes de tribunais sidade de avaliação e de cálculo do para invalidar decisões favoráveis risco decorrente da exposição a da- a ACPs sobre violações de direitos nos socioambientais; humanos e da legislação ambien- ii) No caso de empréstimos-ponte, tal, incluindo o descumprimen- preparados e executados apressa- to de condicionantes de licenças damente para acelerar o início de ambientais; empreendimentos como Belo Mon- v) O BNDES não possui posiciona- te, o BNDES não tem realizado aná- mento e política operacional so- lises prévias de risco e de viabilida- bre a aplicação da legislação sobre de, em contraste com as normas consulta livre, prévia e informa- bancárias vigentes; da (CLPI) junto a povos indígenas iii) Sobre a regularidade ambiental e outras populações tradicionais do empreendimento, para fins de atingidas por empreendimentos, aprovação e manutenção de de- em conformidade com o artigo 231 sembolsos, o único parâmetro efe- da Constituição Federal e com a tivamente utilizado pelo BNDES Convenção 169 da Organização In- é a existência de uma LI vigente, ternacional do Trabalho (OIT); independente do grau de cumpri- vi) Conforme se indicará na próxima mento ou descumprimento de suas seção, os mecanismos estabeleci- condicionantes (e as da LP). Tal po- dos nos acordos contratuais para

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 197 monitorar e fiscalizar a implemen- pareceres técnicos do Ibama refe- tação de condicionantes de licen- rentes ao acompanhamento de Belo ças ambientais e outras obrigações Monte, não há qualquer menção a dos empreendedores são altamen- manifestações do órgão indigenista. te insuficientes. Em outros órgãos governamentais, existem fragilidades institucionais Monitoramento e fiscalização semelhantes. A precariedade dos arranjos insti- Nesse contexto de precariedade tucionais de monitoramento e fis- institucional, verifica-se uma eleva- calização da implantação da UHE da dependência dos órgãos gover- Belo Monte, especialmente no to- namentais, inclusive do BNDES, em cante à implementação e à efetivi- relação aos relatórios do empreen- dade de condicionantes das licenças dedor, como fonte principal de in- ambientais, é algo surpreendente, formação. Por outro lado, pode-se considerando que se trata do maior afirmar que existe um conflito de empreendimento do Programa de interesse inerente, já demonstrado Aceleração do Crescimento (PAC), pela Nesa, na medida em que o em- com o maior financiamento da his- preendedor tende a subdimensionar tória do BNDES. ou mesmo ocultar problemas rela- Essencialmente, o BNDES depen- cionados ao cumprimento de condi- de de relatórios técnicos da Nesa e cionantes e suas outras obrigações do Ibama para monitorar a execu- socioambientais. Além disso, perce- 12. Em 2009, o Tribunal ção de Belo Monte, inclusive quan- be-se a ausência de transparência do de Contas da União (TCU) publicou acórdão to ao cumprimento de condicio- empreendedor sobre suas ações, de- sobre os processos nantes das licenças ambientais e à monstrando resistência em respon- de licenciamento tramitação de ações na justiça. No der a requerimentos de informação ambiental, concluindo que “o Ibama não entanto, é notória a precariedade da sociedade civil, inclusive para realiza de maneira do Ibama para realizar o acompa- tornar público o orçamento execu- sistemática o acompanhamento nhamento das licenças ambientais tado na implantação de cada uma dos impactos e riscos de Belo Monte e de outros grandes das ações previstas no PBA. Para ambientais em todas as empreendimentos12. Por sua parte, negar o acesso à informação, a Nesa fases do licenciamento. […] muitos dos a Funai, encarregada de monitorar argumenta ser uma empresa priva- compromissos as obrigações do licenciamento re- da, que não está obrigada a prestar assumidos pelos empreendedores não ferentes a terras e povos indígenas, esclarecimentos à sociedade, apesar são satisfatoriamente não possui um mínimo de estrutura da participação preponderante do cumpridos, chegando logística, nem capacidade técnica às vezes a serem setor elétrico do governo e de fun- ignorados”. para acompanhar o processo. Nos dos de pensão de empresas estatais.

198 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon Note-se, ainda, que a maioria trimestrais e anuais elaborados das empresas concessionárias ou pela empresa contratada, abordan- executoras das grandes UHEs são do as obrigações socioambientais sociedades de propósito específi- do empreendimento e indicadores co (SPE), pessoas jurídicas criadas quantitativos de desenvolvimento exclusivamente para executar um humano dos municípios atingidos projeto e ser posteriormente dissol- pela obra. Conforme o anexo 2 do vidas. Portanto, elas não têm histó- contrato principal, os relatórios tri- rico de atuação suscetível de verifi- mestrais devem informar sobre cação, mesmo que as empresas que componham a SPE sejam grandes o cumprimento adequado e tempes- violadoras de direitos socioambien- tivo das condicionantes socioam- tais. Além disso, as beneficiárias bientais incluídas nas licenças, au- dos empréstimos geralmente sub- torizações, outorgas, permissões, contratam empresas construtoras ordens judiciais, termos de ajusta- – comumente, também elas SPEs –, mento de conduta e de compromis- que serão as reais responsáveis pela sos e ofícios expedidos pelos órgãos instalação dos empreendimentos. competentes referentes ao proje- Essas empresas subcontratadas são to, de acordo com o cronograma as responsáveis por contratar e ge- neles estipulado ou outro que ve- rir diretamente os trabalhadores, nha a ser definido por autoridades sendo, portanto, as empresas com competentes. maior probabilidade de violar direi- tos trabalhistas, por exemplo. Apesar da relevância desse tipo O reconhecimento pelo BNDES de informação, suas consequên- das limitações do Ibama para moni- cias para a gestão do empreendi- torar a implantação de Belo Monte mento ainda estão nebulosas. Por teria levado o banco a estabelecer, exemplo, existem diversas ações como acordo contratual do emprés- de cunho preventivo relacionadas timo principal, a obrigatoriedade de a terras e povos indígenas contem- contração pela Nesa de uma “audi- pladas entre as condicionantes das toria socioambiental”, cujo objetivo licenças ambientais, cuja execução principal seria “averiguar a regula- está atrasada em mais de dois anos, ridade socioambiental do projeto”. a exemplo da implantação do Pla- Nos acordos contratuais, consta no de Proteção às Terras Indígenas. como obrigação da Nesa o encami- Essa inadimplência está diretamen- nhamento ao BNDES de relatórios te relacionada ao fato de que as ter-

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 199 ras indígenas (TIs) do entorno de qualquer efeito jurídico sobre os Belo Monte estão entre as líderes de relatórios produzidos pela audito- ocupação e desmatamento ilegal da ria14. A obrigação da Nesa limita-se 13 13. Segundo Amazônia . à apresentação dos relatórios, inde- informações da Funai, Mesmo confirmando a persis- pendentemente do conteúdo dos 18 meses depois de aprovada a LI de tência de situações de grave ina- mesmos. O contrato de empréstimo Belo Monte, o órgão dimplência, por parte da Nesa, no tampouco prevê a publicização dos indigenista não possuía que diz respeito ao cumprimento relatórios da auditoria socioambien- condições de fazer uma avaliação sobre de condicionantes, o Ibama tem tal. Apesar de se tratar de assunto o andamento das adotado cada vez mais a postura de de natureza e interesse público, o medidas de mitigação e compensação de evitar sanções administrativas ao BNDES já alegou sigilo bancário impactos da UHE sobre empreendedor, no que se refere à para se negar a informar se a audi- os povos indígenas, aplicação de multas e, sobretudo, toria tinha sido contratada ou não – porque o plano básico ambiental do de suspensão da LI. Em vez disso, o o próprio contrato estabelece como componente indígena órgão ambiental tem apenas notifi- prazo-limite 31 de março de 2013 (PBA-CI) sequer tinha sido contratado. cado à Nesa as irregularidades iden- para sua contratação e 30 de julho tificadas, concedendo novos prazos de 2013 para a apresentação do pri- 14. A cláusula 20ª do para o atendimento dessas pendên- meiro relatório. Recorrendo à lei contrato principal cias pela empresa. de acesso à informação, o Instituto reitera o fato de que só o cancelamento Para efeito de desembolsos e uti- Socioambiental (ISA) obteve da Con- administrativo ou lização de recursos, o contrato de troladoria-Geral da União (CGU), em judicial das licenças Belo Monte estabelece que a com- setembro de 2014, autorização para pode comprometer a utilização dos recursos provação do cumprimento das con- ter acesso ao relatório da auditoria desembolsados. dicionantes socioambientais se dê independente e aos relatórios tri- mediante envio trimestral de outro mestrais da obra. Contudo, o BNDES relatório, elaborado pela própria tornou públicos apenas trechos dos Nesa. Ou seja, embora esteja pre- documentos (Apesar, 2014). vista uma auditoria socioambiental, Os relatórios solicitados pelo ISA a verificação do cumprimento das possuem informações independen- obrigações socioambientais é auto- tes, exigidas pelo BNDES, sobre o declaratória (Cláusula 13ª, III). efetivo cumprimento de normas Para efeitos de utilização de re- ambientais na construção de Belo cursos financeiros e de vigência dos Monte. Após a decisão da CGU de se- contratos de empréstimo, os resul- tembro, o BNDES enviou um extrato tados da auditoria socioambiental do relatório de auditoria socioam- não possuem qualquer valor contra- biental, contendo apenas a lista de tual. Ou seja, o contrato não prevê capítulos do relatório e reuniões

200 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon realizadas pelos auditores, mas tal são considerados tão sigilosos omitindo por completo o conteúdo pelo BNDES, que esse ousa desafiar dos resultados finais da auditoria. a própria CGU, em vez de permitir Segundo o banco, o envio do extra- sua publicização para a sociedade to seria “a única forma de garantir civil interessada. Aos argumentos que não sejam divulgadas informa- relativos à natureza e interesse pú- ções de interesse estritamente pri- blicos da informação solicitada pelo vado” (BNDES descumpre, 2014). ISA, o BNDES contrapõe argumen- Nessa categoria, o banco inclui tan- tos de sigilo bancário e de cláusu- to os dados de caráter financeiro e la de confidencialidade existente estratégico do beneficiário quanto em contrato assinado pela Nesa e qualquer nova informação coletada a empresa de auditoria socioam- pelos auditores sobre o cumprimen- biental independente. O BNDES é to de condicionantes. O argumento, totalmente refratário a qualquer porém, contradiz a decisão da CGU, discussão sobre sua obrigação de para quem “informações sobre o transparência em torno dos com- cumprimento de obrigações assu- ponentes socioambientais de suas midas com o Estado, com efeitos so- operações financeiras. Isso demos- bre a coletividade e decorrentes de tra, na prática, a ausência absoluta instrumentos públicos” seriam pú- de compromisso do BNDES com o blicas (Brasil, Presidência da Repú- controle social dos empreendimen- blica, Controladoria-Geral da União, tos que ele financia, assunto parti- Ouvidoria-Geral da União, 2014b). cularmente preocupante diante do Na prática, o banco ignorou a amplo portfólio de investimentos decisão da CGU e mandou informa- em infraestrutura que o BNDES tem ções irrelevantes para uma análise para os próximos anos. do conteúdo dos relatórios socioam- A precariedade, assimetria e ana- bientais. O processo de reclamação cronismo da fiscalização ambiental do ISA terminou com a decisão do fazem com que o BNDES seja fon- Ouvidor-Geral da União de encami- te exclusiva de informação privile- nhar ao ministro-chefe da CGU pe- giada para acompanhar o efetivo dido de apuração de responsabilida- cumprimento de ações de preven- de do BNDES por descumprimento ção, mitigação e compensação de de decisão dessa instância de con- impactos socioambientais. A in- trole administrativo (Idem ). formação sistematizada no BNDES O fato aqui demostrado é que os sobre cumprimento de obrigações relatórios de auditoria socioambien- e o acompanhamento pari passo da

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 201 execução física financeira dos em- ras governamentais sobre a cons- préstimos têm funções tanto em re- trução do empreendimento e após lação à verificação de regularidade a concessão da LP pelo Ibama. socioambiental do empreendimen- As etapas iniciais de planejamen- to – que o banco tem a obrigação de to e licenciamento de Belo Monte, fazer – quanto na geração de subsí- que antecederam o envolvimento dios para as ações de controle social do BNDES, caracterizaram-se por realizadas por comunidades locais graves problemas, destacando-se: e organizações da sociedade civil i) o subdimensionamento crônico interessada. de riscos e impactos socioambien- tais, e deficiências em análises de Considerações finais viabilidade econômica nos estudos A UHE Belo Monte é um caso em- técnicos realizados por empreen- blemático para análise e debate pú- dedores; ii) desconsideração dos di- blico sobre importantes aspectos da reitos de povos indígenas e outras atuação do BNDES como instituição populações tradicionais do Xingu, financeira pública. Assim, vale res- inclusive quanto ao direito à CLPI saltar as seguintes considerações sobre o empreendimento; iii) sé- finais sobre questões que se desta- rias deficiências em mecanismos de caram ao longo da presente análise, diálogo e participação da sociedade relacionadas à inserção do BNDES civil, a exemplo das audiências pú- em estratégias governamentais e blicas conduzidas pelo Ibama; iv) no ciclo de seus projetos, e às limi- intervenções políticas para a con- tações e à necessidade de mudanças cessão da LP, independentemen- nas políticas e procedimentos do te do posicionamento de técnicos banco referentes à análise de proje- do Ibama e órgãos intervenientes, tos, transparência e responsabilida- como a Funai; e v) a utilização de de socioambiental. artifícios no Judiciário, originários O início do envolvimento do do regime de exceção, para suspen- BNDES com Belo Monte ocorreu em der decisões em defesa dos direitos uma fase avançada de planejamen- humanos e da proteção ambiental. to e licenciamento do empreendi- Considerando o início do envol- mento, após a realização de estudos vimento do BNDES com Belo Monte técnicos conduzidos pelo setor elé- em uma fase avançada do planeja- trico do governo e seus parceiros mento e licenciamento do projeto, do setor privado, após a tomada e o papel do banco como executor de decisões políticas em altas esfe- (e não formulador) de políticas go-

202 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon vernamentais, que desempenha obra com aproximadamente R$ 2,4 uma função estratégica no financia- milhões, desconsiderando que, em mento de longo prazo para grandes março do mesmo ano, a justiça fe- empreendimentos de infraestrutu- deral concedera liminar suspenden- ra, pode-se concluir que a margem do a LI da UHE, em razão da não para influenciar o desenho do em- realização de consulta livre, prévia preendimento e a aprovação ou não e informada aos povos indígenas e de empréstimos era muito reduzi- comunidades tradicionais atingi- da. Por outro lado, a falta de trans- dos. O banco tampouco levava em parência do banco sobre critérios e conta o fato de a obra ter sido nova- procedimentos de análise de riscos mente suspensa, em agosto de 2012, e de viabilidade socioambiental e por decisão do TRF-1. econômica de grandes empreendi- Em agosto de 2013, a Internatio- mentos como Belo Monte tem redu- nal Rivers apresentou ao BNDES um zido enormemente as possibilida- pedido de informação a respeito da des de uma atuação construtiva do UHE em questão, mencionando as BNDES. A injeção de elevados recur- duas paralisações das obras deter- sos financeiros públicos na Nesa, minadas pela justiça até então. Em em combinação com posturas de sua resposta, o BNDES afirmou ter leniência e omissão do banco peran- “ciência dos questionamentos rela- te situações de descumprimento de cionados ao licenciamento, inclu- condicionantes de licenças ambien- sive quanto à oitiva de população tais e dos direitos humanos (por sua indígena” e explicou que “se abste- vez, sustentadas por intervenções ve de efetuar qualquer liberação de políticas no Judiciário, via SS), tem recursos ou contratação de finan- contribuído para o agravamento de ciamento” enquanto as decisões ju- conflitos na região do Xingu e para diciais “produziram efeito”. Como a fragilização de instituições do Es- de praxe, ambas as decisões foram tado democrático de direito, sobre- rapidamente derrubadas por SS. Ne- tudo no âmbito do governo federal. nhuma das ações judiciais relativas Nos projetos na bacia do Tapajós a Teles Pires chegou à fase final de já apoiados pelo BNDES, tendências trânsito em julgado. Para o banco, observadas em Belo Monte parecem independentemente da existência se repetir. O caso da UHE Teles Pires de ações na justiça, desde que a serve como exemplo. Em setembro CHTP estivesse em “situação regu- de 2012, como se indicou, o banco lar” junto aos órgãos ambientais, o firmou contrato para financiar a financiamento não seria afetado.

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 203 Por isso, foi incluída obrigação espe- cionantes não sejam cumpridas (grifos cífica para que a Beneficiária man- nossos). tenha o BNDES informado sobre quaisquer desdobramentos proces- Importante notar que o finan- suais que tenham efeito sobre a vali- ciamento em questão não figura no dade do licenciamento. sistema de consulta às operações do BNDES, o que evidencia, mais uma A interpretação do BNDES vai vez, a falta de transparência do ban- na contramão daquela apresentada co. Ainda sobre o imperativo de sus- pelo MPF em Sinop, em ACP relati- pensão do financiamento, a ACP, va à UHE Sinop (rio Teles Pires), em cuja liminar foi deferida em abril que o banco figura como réu, jun- de 2014, enfatizava: to à Companhia Energética Sinop S.A. e ao Estado de Mato Grosso. Não se pode admitir o financiamen- Motivada pelo descumprimento das to público de um empreendimento condicionantes previstas na LP da privado que viola flagrantemente UHE e proposta em março de 2014, a legislação ambiental, comprome- a ação solicitava a suspensão da LI tendo o meio ambiente sadio e equi- e do financiamento concedido pelo librado, que é um direito de todos. BNDES ao empreendimento: Além disso, a aprovação pelo O BNDES, grande financiador de em- BNDES de diversos empréstimos preendimentos desse porte, estará para os empreendimentos hidrelé- direcionando recursos públicos para tricos na bacia do Tapajós – come- uma obra que pode ser paralisada çando com três UHEs no rio Teles a qualquer momento, face à exis- Pires e várias PCHs no rio Juruena tência potencial de diversas ações –, assim como para a implanta- civis públicas […]. Nessa hipótese, ção de uma hidrovia de grãos en- teríamos um empreendedor privado tre Miritituba (distrito de Itaituba, de posse de recursos públicos, sem Pará) e Vila do Conde (distrito de poder utilizá-los. Razoável, então, Barcarena, Pará), prescindiu da em defesa do patrimônio público, análise de impactos cumulativos que o BNDES seja judicialmente proibido e sinérgicos entre esses e outros de repassar qualquer tipo de recurso (ou empreendimentos. celebrar qualquer pacto nesse sentido) Assim, considerando o exemplo enquanto os processos estejam tramitan- de Belo Monte e as informações pre- do, ou, pelo menos, enquanto as condi- liminares aqui reunidas acerca da

204 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon participação do BNDES nos projetos tras instituições financeiras. Nessa de barragens na bacia do Tapajós, discussão, poderia ser abordada a recomendamos: questão da retomada da elaboração de guias socioambientais setoriais i) O BNDES poderia assumir um pa- e subsetoriais, inclusive para em- pel significativo no fomento de preendimentos hidrelétricos; soluções para o setor elétrico bra- iii) É necessário um debate aprofun- sileiro, pautadas em princípios de dando sobre políticas do banco sustentabilidade ambiental, justiça relativas à “regularidade socioam- social e eficiência econômica. Esse biental”, com destaque para ques- papel poderia incluir o apoio a es- tões de direitos humanos e acesso à tudos e diálogos entre o governo, justiça. Não é admissível que situa- setor privado e organizações da ções de violação de direitos huma- sociedade civil sobre temas fun- nos e da legislação ambiental – as- damentais, como: custo-benefício sociadas a fatores como a leniência de estratégias alternativas, incor- do Ibama para impor sanções em porando variáveis sociais, econô- face do descumprimento de condi- micas e ambientais; análise de im- cionantes de licenças ambientais e pactos cumulativos de barragens a utilização exacerbada da SS por (e projetos associados, como hi- presidentes de tribunais contra

15 drovias e mineração ); e métodos ações do MPF – sejam tratadas com 15. Nesse sentido, um de avaliação ambiental estratégica “normalidade” pelo banco; caso alarmante é a instalação da empresa iv) Nesse sentido, um assunto que me- em nível de bacias hidrográficas, canadense Belo Sun na eficiência energética, geração, dis- rece discussão aprofundada é o de- Volta Grande do Xingu, tribuição e estruturação de cadeias senvolvimento de uma política do com a intenção de implantar a maior mina produtivas de fontes renováveis BNDES para a garantia do direito de ouro do país. A esse não convencionais, em especial a à CLPI junto aos povos indígenas respeito, ver Leite (2013). energia solar; e outras populações tradicionais a ii) O BNDES precisa abrir um diálogo respeito dos empreendimentos por aprofundado com organizações da ele financiados; sociedade civil e especialistas sobre v) Outro assunto fundamental para critérios e procedimentos de análi- debate é o desenho, publicidade se e gestão de riscos socioambien- e implementação de estratégias tais ao longo do ciclo de projetos, de monitoramento e “auditoria aproveitando lições de Belo Monte socioambiental independente”, e outros casos emblemáticos, as- abordando questões-chave como a sim como as experiências de ou- utilização de métodos participati-

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 205 vos, aproveitamento de resultados -de-ordem-da-cgu-bndes-divul- na gestão de projetos e divulgação ga-dados-incompletos-sobre-be- pública de informações; lo-monte.shtml> (acesso: 5 dez. vi) Os casos aqui analisados demons- 2014). tram a necessidade de maior BNDES descumpre decisão da Con- transparência do BNDES no acesso troladoria da União e nega acesso público a documentos básicos de a dados sobre Belo Monte. 2014. In: empreendimentos – como relató- Notícias Socioambientais. Brasília, rios de análise de riscos, contra- 24 nov. Disponível em: cláusulas de confidencialidade en- (acesso: 5 dez. 2014). tre empreendedor e terceiros; BNDES financia Belo Monte. 2009. vii) Por fim, é preciso avançar na cria- In: Energia Hoje. Rio de Janeiro, ção de mecanismos para garantir 22 set. Disponível em: (acesso: 5 dez. 2014). possam ser ouvidas e suas preocu- Brasil. Banco Nacional de Desen- pações, incorporadas à tomada de volvimento Econômico e Social. decisões, objetivando garantias de 2012. “BNDES aprova financia- acesso à justiça, hoje extremamen- mento de R$ 22,5 bilhões para te precárias. Belo Monte”. Sítio do Banco Na- cional de Desenvolvimento Eco- [artigo concluído em janeiro de 2015] nômico e Social. Brasília, 26 nov. Disponível em: Folha de S.Paulo. Brasília, 14 (acesso: 5 dez. 2014). nov. Disponível em:

206 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon Brasil. Justiça Federal. Nona Vara nº795/2011. Brasília, 1 jun. Dis- da Seção Judiciária do Estado do ponível em: (acesso: 5 dez. 2014). Brasil. Justiça Federal. Primeira ___. 2010. Licença prévia nº342/2010. Vara da Subseção Judiciária de Si- Brasília, 1 fev. Disponível em: nop. 2014. Decisão liminar. Pro- Brasil. Justiça Federal. Segunda (acesso: 5 dez. 2014). Vara da Seção Judiciária do Esta- Brasil. Ministério Público Federal. do de Mato Grosso. 2012. Decisão Procuradoria da República em Si- liminar. Processo nº0003947- nop. 2014. Ação civil pública com 44.2012.4.01.3600. Cuiabá, 26 pedido de tutela antecipada. Si- mar. nop, 31 mar. Brasil. Justiça Federal. Tribunal Brasil. Ministério Público Federal. Regional Federal da Primeira Procuradoria da República no Região. 2011. Suspensão de li- Estado do Pará. 2011. Ação civil minar ou antecipação de tutela pública com pedido de liminar nº12208-65.2011.4.01.0000/PA. em face da Norte Energia S.A., do Brasília, 3 mar. Instituto Brasileiro do Meio Am- ___. 2012. Ata de julgamento. Agra- biente e dos Recursos Naturais vo de instrumento nº0018341- Renováveis e do Banco Nacional 89.2012.4.01.0000/MT. Brasília, 1 de Desenvolvimento Econômico ago. e Social. Belém, 27 jan. Brasil. Ministério do Meio Am- ___. 2011. Ação civil pública com pe- biente. Instituto Brasileiro do dido de liminar em face da Norte Meio Ambiente e dos Recursos Energia S.A. e do Instituto Bra- Naturais Renováveis. 2011a. Li- sileiro do Meio Ambiente e dos cença de instalação nº770/2011. Recursos Naturais Renováveis. Brasília, 26 jan. Disponível em: Belém, 6 jun. (acesso: 5 dez. 2014). Recomendação nº05/2010-GAB2. ___. 2011b. Licença de instalação Altamira, 9 nov.

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 207 Brasil. Presidência da República. diante abertura de crédito Controladoria-Geral da União. nº12.2.1238.1, que entre si fazem Ouvidoria-Geral da União. 2014a. o Banco Nacional de Desenvol- Despacho CGU s/n. Assunto: De- vimento Econômico e Social núncia. Descumprimento de de- - BNDES e a Norte Energia S.A., cisão da CGU em acesso à infor- com interveniência de tercei- mação. Brasília, 17 dez. ros. 2012. Rio de Janeiro, 18 dez. ___. 2014b. Parecer nº3.454. Pro- Disponível em: (acesso: 5 dez. mação, com fundamento no art. 2014). 23 do Decreto nº7.724, de 16 de Gandra, Alana. 2010. “Coutinho maio de 2012. Brasília, de 1 set. diz que BNDES está preparado Disponível em: agenciabrasil/noticia/2010-02-18/ (acesso: 5 dez. 2014). coutinho-diz-que-bndes-esta-pre- Brasil. Tribunal de Contas da União. parado-para-financiar-hidreletri- 2009. Acórdão nº2212/2009. Pro- ca-de-belo-monte> (acesso: 5 dez. cesso nº009.362/2009-4. Brasília, 2014). 23 set. Governo define participações da Carta aberta ao presidente do Eletrobras e do BNDES nos leilões BNDES sobre o financiamento das usinas do Tapajós. 2011. Sítio de Belo Monte. 2012. Altamira, do Grupo de Estudos do Setor 4 dez. Disponível em: (acesso: 5 nuca.ie.ufrj.br/blogs/gesel-ufrj/ dez. 2014). index.php?/archives/20286-Go- Contrato de financiamento me- verno-define-participacoes-da-

208 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon -Eletrobras-e-do-BNDES-nos-lei- posts/2012/07/17/credito-com- loes-das-usinas-do-Tapajos.html> -risco-455818.asp> (acesso: 5 dez. (acesso: 5 dez. 2014). 2014). Hurwitz, Zachary; Millikan, Brent; Leite, Letícia. 2013. “Conselho Esta- Monteiro, Telma; Widmer, Ro- dual do Meio Ambiente do Pará land. 2011. Mega-projeto, mega-ris- ignora denúncias de ilegalida- cos: análise de riscos para investi- de e vota por mineração”. In: dores no Complexo Hidrelétrico Notícias Socioambientais. Brasília, Belo Monte. São Paulo, Interna- 2 dez. Disponível em: (acesso: 5 se_0.pdf> (acesso: 5 dez. 2014). dez. 2014). Lage, Janaina. 2010. “BNDES vai fi- Machado, Tainara. 2014. “BNDES nanciar até 80% do projeto de prevê investimento de R$ 600 Belo Monte”. In: Folha de S.Paulo. bi em infraestrutura de 2015 a São Paulo, 16 abr. Disponível em: 2018”. In: Valor Econômico. São (acesso: 5 mento-de-r-600-bi-em-infraestru- dez. 2014). tura-de-2015-2018> (acesso: 5 dez. Leitão, Míriam. 2012. “Mundo obs- 2014). curo”. In: O Globo. Rio de Janeiro, Millikan, Brent; Rojas, Biviany. 22 jul. Disponível em: (acesso: 5 cia do BNDES”. In: Villas-Bôas, dez. 2014). André; Rojas Garzón, Biviany; Leitão, Míriam; Maniero, Valéria. Reis, Carolina; Amorim, Leonar- 2012. “Crédito com risco”. In: do; Leite, Letícia (org.). Vozes do O Globo. Rio de Janeiro, 17 jul. Xingu: coletânea de artigos para Disponível em:

O BNDES e o financiamento de barragens na bacia do Tapajós 209 165-169. hidroeléctrico Belo Monte”. In: Notificação extrajudicial. Notifi- Derecho, Ambiente y Recursos cado: Banco Nacional de Desen- Naturales. Casos paradigmáticos volvimento Econômico e Social. de inversión del Banco Nacional de 2010. Altamira, 22 mar. Disponí- Desarrollo Económico y Social de Bra- vel em: (acesso: 5 dez. 2014). ción Ambiente y Sociedad/Aso- Notificação extrajudicial. Noti- ciación Interamericana para la ficado: Banco Nacional de De- Defensa del Ambiente/Centro de senvolvimento Econômico e Derechos Económicos y Sociales/ Social. 2011. Altamira, 25 out. Centro de Estudios para el De- Disponível em: (acesso: dano de Participación por la Jus- 5 dez. 2014). ticia y los Derechos Humanos/ Presidente do Ibama pede demis- Fundación Ambiente y Recursos são do cargo. 2011. In: Folha de Naturales/Proyecto sobre Orga- S.Paulo. São Paulo, 12 jan. Dis- nización, Desarrollo, Educación ponível em: (acesso: 5 dez. 2014). www.dar.org.pe/archivos/publi- Rojas, Biviany; Millikan, Brent. cacion/137_Casos_Paradigmati- 2014. “El BNDES y el complejo cos.pdf> (acesso: 5 dez. 2014).

210 Rojas Garzón, Millikan e Alarcon Imprensa e barragens na bacia do Tapajós: Apego ao discurso oficial e ocultamento das críticas Daniela Fernandes Alarcon, Natalia Ribas Guerrero e Vinicius de Aguiar Furuie

debate sobre Belo Monte Não está no escopo deste artigo parece uma discussão so- analisar o texto de Moreira Leite – bre meio ambiente. Não aliás, pródigo em motivos discur- “Oé. A questão envolve nosso desen- sivos conhecidos, como a paranoia volvimento e o bem-estar da popu- da ameaça à soberania nacional. O lação, em especial a mais humilde”, que se pretende é indicar como par- escreveu o jornalista Paulo Morei- te significativa da cobertura jorna- ra Leite, em sua coluna no sítio da lística acerca dos aproveitamentos revista IstoÉ (Moreira Leite, 2013). hidrelétricos (AHEs) na Amazônia, “Faça um teste de sinceridade: an- mais especificamente, aqueles si- tes de seguir a leitura deste texto, tuados na bacia hidrográfica do Ta- desligue o computador por um mi- pajós, contribui para a reverberação nuto e, no escuro, tente adivinhar das construções discursivas oficiais qual o tema em discussão”, provoca. e para o apagamento do dissenso. Sustenta, com isso, que a não cons- Tais construções articulam-se em trução da usina hidrelétrica (UHE) torno de expressões como “cresci- acarretaria “apagão”, encarecimen- mento”, “desenvolvimento”, “inte- to da tarifa de energia (“Neste exer- resse nacional”, “técnica”, que com- cício interativo, é só multiplicar portam sentidos diversos, mas cuja sua conta de luz por seis para se ter definição não é efetivamente expli- uma ideia do que estamos falando”) citada – nem oficialmente, nem nos e, no limite, “a regressão forçada à espaços da imprensa que as fazem vela e à lamparina”. circular mais amplamente, como

211 veremos. Desse modo, a aura de analisados, para debater a reverbe- positividade que essas expressões ração do discurso hegemônico a res- carregam, e que foi historicamente peito das barragens e a caracteriza- construída, torna a argumentação ção efetuada por tais veículos acerca crítica a aspectos da construção de do campo crítico aos empreendi- barragens na Amazônia uma difícil mentos. Nas três seguintes, debru- tarefa, pois não somente implica de- çamo-nos, em cada uma delas, sobre fender argumentos, como demanda um tipo de periódico (tratando, res- deslindar os pressupostos do campo pectivamente, do Valor, CanalEnergia, a que se contrapõe. O Estado de S. Paulo e os três jornais Para compor o universo de aná- locais tomados em conjunto). lise, selecionamos um jornal diário de circulação nacional (O Estado de S. Tudo pelo “interesse nacional” – 1. As expressões de Paulo), um veículo também diário e busca utilizadas menos o debate, a pluralidade ou para a realização de abrangência nacional mas espe- a história da pesquisa nesses cializado em jornalismo econômico No Plano Decenal de Expansão de veículos consistiram na articulação (Valor Econômico), um portal de no- Energia (PDE) para o período de 2011 de termos mais tícias dedicado exclusivamente ao a 2020, elaborado pelo Ministério de abrangentes, como setor energético (CanalEnergia) e três Minas e Energia (MME) e pela Empre- barragem, hidrelétrica, UHE e usina, com a jornais de alcance local, baseados sa de Pesquisa Energética (EPE), lê-se designação de projetos em Santarém (Pará) (Gazeta de Santa- que a justificativa para a construção previstos ou em curso na região, nomeados rém, O Estado do Tapajós e O Impacto). de um conjunto de projetos hidrelé- a partir de rios ou Como se almejava uma análise emi- tricos e linhas de transmissão, para lugares. Compuseram nentemente qualitativa, o recorte a expansão da produção de petróleo as expressões buscadas os seguintes nomes: temporal foi definido em função e gás natural, assim como da ma- Cachoeira do Caí, das possibilidades técnicas de busca lha de gasodutos, e para o aumento Cachoeira dos Patos, Chacorão, Colíder, Foz junto a cada veículo. Os jornais lo- da produção de biocombustíveis é de Apiacás, Jamanxim, cais mostraram-se particularmente “atender ao crescimento da deman- Jardim do Ouro, Jatobá, Juruena, Santo Augusto limitados nesse sentido, oferecendo da e à necessidade de infraestrutura Baixo, São Luiz do acesso apenas ao último ou aos dois para o desenvolvimento” (Brasil, Mi- Tapajós, São Manoel, últimos anos de cobertura indexa- nistério de Minas e Energia, Empre- São Simão Alto, Sinop, Tapajós e Teles Pires. da. Considerando-se todos os veícu- sa de Pesquisa Energética, 2011: 319, Foram analisados 62 los, foram pesquisadas edições que grifo nosso). Note-se que “desenvol- textos de O Estado de S. Paulo, 177 do Valor, 179 circularam entre o final de 2009 e o vimento” – sem adjetivos, intransiti- do CanalEnergia, 39 da começo de 20141. Nas duas primei- vo – é representado no discurso do Gazeta de Santarém, 46 ras seções do artigo, apresentamos órgão de governo como uma meta de O Estado do Tapajós e 40 de O Impacto. exemplos dos diferentes veículos que prescinde de justificativas. O

212 Alarcon, Guerrero e Furuie conceito aparece, como aponta Es- perativo para outras esferas da vida teva, “incapaz de dar substância social e também para outras formas e significado ao pensamento e ao de organização social. comportamento” (2000: 61). E, no A necessidade inelutável da cons- entanto, segundo essa passagem do trução das barragens surge como documento oficial, temos claro que uma consequência lógica. Note-se construir UHEs seria uma necessida- que a noção de “segurança energé- de inconteste do “desenvolvimento”. tica”, presente no texto de Moreira Esteva é um dos autores que re- Leite referido no início deste artigo, flete sobre a sociogênese e a evolu- é frequentemente acionada no dis- ção da noção de desenvolvimento, curso hegemônico acerca dos pro- e sobre os efeitos de sua utilização jetos hidrelétricos na Amazônia, pelo discurso hegemônico. Segun- instando à adesão automática aos do ele, aludir a desenvolvimen- mesmos, em face da iminência de to nos dias de hoje é sinalizar um uma crise de suprimento de ener- sentido de mudança favorável, de gia. “Quando você for ligar a luz avanço “segundo uma lei universal da sua casa, pense em Belo Monte”, necessária e inevitável e na direção declarou, em entrevista ao Valor, o 2. Ainda no Plano Decenal de Expansão de uma meta desejável” (Ibid.: 64). diretor de Promoção ao Desenvol- de Energia (PDE) para Teríamos, em suma, um processo vimento Sustentável da Fundação o período de 2011 pelo qual o desenvolvimento (e sua Nacional do Índio (Funai), Aloysio a 2020, é possível ver a caracterização contrapartida, o subdesenvolvimen- Guapindaia (Borges, 2012d). “A dis- do governo como to) traria uma série de significados cussão não é ser contra ou a favor, protagonista na idealização e amplos e inclusivos para resguardar mas sim ter uma consciência da implementação desse seu objetivo último, o “crescimento necessidade daquele empreendi- projeto: “Finalmente, econômico”. A construção social da mento. […] Não tem como ser contra cumpre ressaltar a importância noção, operada ao longo do século um projeto como Belo Monte” (Idem, deste Plano como XIX, estaria calcada, segundo o au- grifo nosso). A construção de UHEs instrumento de planejamento para tor, em um plano político: extrair contribuiria, ainda segundo essa o setor energético da sociedade e da cultura uma esfe- linha de raciocínio, para melhorar nacional, contribuindo para o delineamento ra autônoma, a esfera econômica, e as condições de vida da população, das estratégias de instalá-la como eixo da política e da ao universalizar o acesso a direitos. desenvolvimento do ética (Ibid.: 73). A operação, portan- Nesse quadro, o governo federal, país a serem traçadas pelo Governo Federal” to, faz com que o imperativo de uma como impulsor dos megaprojetos, (Brasil, Ministério esfera – o crescimento econômico, figuraria como o garantidor do “in- de Minas e Energia, Empresa de Pesquisa nos moldes do modo de produção teresse geral” dos brasileiros (Ber- Energética, 2011: 16, capitalista – seja definido como im- mann, 2012: 86)2. Esse arvoramento grifo nosso).

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 213 Teles Pires foram paralisadas, a pedido do Ministério Público Fede- ral (MPF), para que fosse realizado o estudo do componente indígena (ECI). Nessa ocasião, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a decisão que inter- rompia as obras, permitindo seu prosseguimento. À época, a consi- deração do ministro Ricardo Lewan- doski, responsável pela suspensão, também remetia aos imperativos do desenvolvimento: Imagem 1. Menina munduruku, na aldeia Waro Apompu, Terra Por outro lado, lembrou o ministro, Indígena Munduruku. o aproveitamento do riquíssimo potencial Por Daniela Alarcon, set. 2014. hidrelétrico do País constitui imperativo se estenderia também às empresas de ordem prática, que não pode ser des- envolvidas no processo, como se de- prezado em uma sociedade em desenvol- preende da fala de Evandro Vascon- vimento, cuja demanda por energia celos, diretor de Energia da Light, cresce a cada dia de forma exponen- em depoimento ao CanalEnergia: cial. Nesse sentido, frisou que não se pode esquecer a crise registrada “Porque a energia elétrica é um bem no setor elétrico em 2001, “a qual que está sendo produzido, seja pela tantos transtornos causou aos bra- iniciativa privada ou pela estatal, para sileiros” (STF suspende, 2013, grifo o interesse público do país. É muito di- nosso). ferente. Então, o licenciamento am- biental daquele empreendimento Note-se também que a defesa tem que ser visto pela ótica global das UHEs nesses marcos demanda e não só pela ótica local”, observou escamotear a história. No discurso o executivo (Medeiros, 2012, grifo hegemônico, os projetos hidrelétri- nosso). cos contemporâneos não tendem a ser considerados à luz dos exemplos No poder Judiciário, também se do passado, das numerosas UHEs encontram emanações desse dis- envoltas em escândalos políticos e curso. Em 2013, as obras da UHE econômicos, e que acarretaram da-

214 Alarcon, Guerrero e Furuie nos socioambientais irreversíveis; te os projetos na bacia do Tapajós a tampouco se costuma aludir aos uma obra do passado, Balbina (Bor- problemas envolvendo outras obras ges, 2013b e Chiaretti, 2013b). No em construção. Quando se trata de texto de autoria de Chiaretti, lê-se: estabelecer comparações, o mais “Há quem suspeite que a conversão comum é que sejam acionadas ca- dos rios brasileiros em megawatts racterizações peculiares das obras pode não dar certo em muitos ca- do passado, recortando-se aspectos sos. […] A safra de grandes hidrelé- supostamente positivos, como se vê tricas do passado produziu uma sé- na declaração de João Pimentel, di- rie de erros tenebrosos. O fantasma retor socioambiental da Norte Ener- da hidrelétrica de Balbina é o que gia, ao CanalEnergia: mais assombra” (Idem). Ainda que a escolha pelo verbo suspeitar seja Ele disse ainda que a ideia da empre- questionável, ao menos o texto é sa é fazer na região de Belo Monte o contundente na caracterização de mesmo que foi feito pela hidrelétri- Balbina e atualiza esse “erro tene- ca de Itaipu no Paraná. Todas as cida- broso” no presente. Em uma tercei- des no entorno de Itaipu tinham um ra reportagem do mesmo veículo, índice de desenvolvimento humano São Luiz do Tapajós e Jatobá são muito baixo. “Hoje, depois de Itaipu comparadas a Belo Monte, com o in- estar lá há alguns anos, todos esses tuito de se dimensionar os impactos municípios tem um IDH superior a dos empreendimentos: [sic] média do estado do Paraná, que já é bastante alta. No Pará, onde fica O custo ambiental para o Tapajós Belo Monte, a gente já pode observar […] faz os impactos de Belo Monte que a construção de postos de saú- parecerem modestos. Enquanto a de, de projetos na área de educação, hidrelétrica que está em construção reforma de hospitais, construção de no rio Xingu vai alagar uma área de estradas, tudo isso deve contribuir 512 km quadrados, São Luiz e Jato- bastante para que aquela região se bá preveem que uma área de 1.368 desenvolva e se torne um local ainda quilômetros quadrados de floresta mais seguro do que é hoje”, avaliou virgem fique embaixo d’água, uma o diretor (Godoi, 2013). área quase do tamanho da cidade de São Paulo (Borges, 2014). No universo de 177 matérias do Valor analisadas, identificamos ape- No CanalEnergia, entre as 179 ma- nas duas que conectam criticamen- térias analisadas, não é possível en-

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 215 contrar qualquer menção explícita do Ministério de Minas e Energia” (Me- a problemas decorrentes da imple- deiros, 2012, grifo nosso). mentação de projetos de exploração Referindo-se à ausência de deba- hidrelétrica no passado. Há apenas te no processo de tomada de deci- uma sugestão, ainda assim revesti- são acerca dos projetos de infraes- da de eufemismo, na fala do diretor trutura em curso ou planejados de Geração das Centrais Elétricas para a América Latina, Bermann do Brasil S.A. (Eletrobras), Valter aponta a existência, em pleno Esta- Cardeal, quando defende o conceito do democrático de direito, de uma de usinas-plataforma: “O conheci- “autocracia energética” (2012: 95). mento adquirido na construção de Como assinala o autor, as críticas à nossas hidrelétricas já permite que emblemática UHE Belo Monte, para usinas como Itaipu e Tucuruí sejam citar um exemplo – notadamente verdadeiros laboratórios de estudos aquelas formuladas por grupos im- e pesquisas de alto nível sobre sus- pactados pelo projeto, no marco de tentabilidade”, afirmou (Eletrobras, audiências públicas e ações judi- 2012). ciais, e aquelas sistematizadas pelo Cumpre notar ainda, no discurso painel de especialistas conformado oficial, a tensão entre caracterizar para esse fim – foram desconside- algo como um imperativo a priori e radas nas decisões. Leonel, por sua transmitir a imagem de um espaço vez, atenta para o “descolamento” de debate, que consideraria as alter- e o “hermetismo” do setor elétrico, nativas disponíveis e seus respecti- que, mesmo financiado em grande vos impactos, tendo como resultado medida por fundos públicos, não se uma escolha informada, protago- submeteria ao controle da socieda- nizada pela própria sociedade. Al- de, gozando de “autonomia decisó- tino Ventura Filho, secretário de ria quase completa” (1998: 186). Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME, em entrevista O argumento da “técnica” como ao CanalEnergia, sintetiza de forma estratégia de silenciamento bastante emblemática essa esquizo- Outro ponto em torno do qual o frenia, quando diz que o setor elé- discurso oficial se articula, para trico “tem procurado se comunicar obter legitimidade para suas de- com a sociedade de uma maneira a cisões, é o de que se trata de uma ter a aceitação dela para os nossos “discussão técnica”. Como explica programas energéticos que, no fundo, Leonel, os critérios de decisão são são programas dela [da sociedade], não apresentados como “determinados

216 Alarcon, Guerrero e Furuie pela relação custo/benefício, pela ve do ponto de vista técnico, essas definição técnica da potencialidade obras são questionáveis. Exemplo energética, sem o necessário equa- de como isso não está no debate é cionamento com o seu impacto a posição do superintendente da socioambiental ou sequer confron- Aneel, em matéria do CanalEnergia: tado com alternativas” (Ibid.: 186). Locatelli, por sua vez, chama a aten- O superintendente da Aneel afirma ção para o fato de que a segmenta- que o projeto básico de uma usina é ção das instâncias de planejamento sempre um aprimoramento do estu- e gestão do setor energético ligadas do de viabilidade. Frisa que estudos ao Estado – EPE, Agência Nacional podem ser desenvolvidos para com- de Energia Elétrica (Aneel), Conse- plementações ou até mesmo não lho Nacional de Política Energética aprovados pela agência, mas, uma (CNPE), MME – acabou diluindo o vez aprovados, têm qualidade técnica ônus político das decisões, contri- inquestionável. (Medeiros, 2012, grifo buindo para recobrir as decisões de nosso). governo com a aura de escolhas ex- clusivamente “técnicas” (2011: 120). Os efeitos desse tipo de discur- Além de ocultar a dimensão política so e prática política são considera- das decisões, essa operação também dos por Zhouri, em sua análise em escamoteia o fato de que, inclusi- torno do que seria o “paradigma

Imagem 2. Menino munduruku. Por Fábio Nascimento, set. 2014.

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 217 da adequação ambiental”. Todas as mou: “Uma discussão mais técnica e ações, explica a autora, são voltadas menos emocional sobre os grandes em- a garantir a viabilidade do projeto preendimentos seria a melhor for- técnico, prevendo a incorporação ma de lidar com a questão dos im- de “algumas ‘externalidades’ am- pactos provocados por essas usinas” bientais e so­ciais na forma de medi- (Montenegro, 2012a, grifo nosso). das mitigadoras e compensatórias, A fala de Menel propicia uma boa des­de que estas, obviamente, não síntese do argumento da técnica inviabilizem o projeto do ponto como instrumento de significação e de vista econômico-orçamentário” de imposição de ordem no mundo (Zhouri, 2012: 49). (Zhouri, 2012: 55), e antecipa outro Ocorre que as críticas que não se ponto articulador do paradigma da enquadram no paradigma da ade- adequação ambiental: a desqualifi- quação ambiental, ainda que trava- cação do campo que se contrapõe. das de um ponto de vista técnico, Na sequência, Menel admite que são descartadas com a desqualifica- os empreendedores precisam “me- ção de seus autores. Em artigo sobre lhorar a abordagem ambiental nos Belo Monte publicado no Valor, que projetos”, mas que isso não deve cita as UHEs da bacia do Tapajós de ser justificativa para se alimentar passagem, Nivalde de Castro, Gui- “uma discussão ideológica e apaixo- lherme Dantas e André Leite, do nada” (Montenegro, 2012a). Empre- Grupo de Estudos do Setor Elétrico sários e governos concordam nesse do Instituto de Economia da Uni- ponto: “É uma discussão que não versidade Federal do Rio de Janeiro pode ser simplesmente manipulada (Gesel/IE/UFRJ), escreveram: “Por por aspectos ideológicos, até externos se tratar [Belo Monte] de uma obra aos interesses da sociedade brasileira”, estratégica, que afetará o bem estar afirmou o secretário executivo do futuro de milhões de brasileiros, a MME, Márcio Zimmermann, em en- discussão deve se pautar em análises téc- trevista ao Valor (Rockmann, 2013a, nicas, econômicas e jurídicas, evitando grifo nosso). Em linha análoga, em uma avaliação sem a necessária raciona- entrevista para o CanalEnergia, Mar- lidade (Castro, Dantas & Leite, 2012, celo Moraes, presidente do Fórum grifo nosso). Na mesma direção, em de Meio Ambiente do Setor Elétrico, entrevista ao CanalEnergia, o presi- afirmou que o governo está tendo dente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de dificuldades no trato com as comu- Energia (Abiape), Mário Menel, afir- nidades indígenas. Recentemente,

218 Alarcon, Guerrero e Furuie eles proibiram os estudos no Ta- Recebem tratamento jornalísti- pajós. O governo teve que entrar co muito mais positivo “as grandes com proteção da [F]orça [N]acional ONGs [organizações não governa- [de Segurança Pública] para poder mentais] ligadas à causa ambiental fazer os estudos de viabilidade. En- no Brasil” que se caracterizam por tão, se percebe que é algo muito mais uma abordagem “mais pragmáti- ideológico do que socioambiental pro- ca”, como define reportagem do priamente dito (Medeiros, 2013, grifo Valor (Vialli, 2013). “Agora, as ONGs nosso). articulam parcerias. Se antes de- nunciavam os crimes, agora elas O raciocínio é claro: só há uma buscam soluções com prefeituras, matriz de conhecimento possível, empresas e comunidades” (Idem). e é a que sustenta os estudos con- Uma delas, segundo a matéria, seria duzidos com a chancela do gover- a WWF-Brasil, que teria na “produ- no. Qualquer outro conhecimento ção de conteúdo científico” uma de que embase uma decisão – como suas vertentes de atuação (Idem, gri- a que tomaram os Munduruku, no fo nosso). caso em questão – é forçosamente ilegítimo, reflexo de anseios carac- No Tapajós, por exemplo, a ONG terizados como interesses particula- [WWF-Brasil] preparou um estudo res, contrários ao interesse público, sobre a biodiversidade de espécies encarnado nas ações do governo ao longo da bacia. O objetivo é dar federal. Nas palavras de Zhouri, subsídios às empresas do setor elé- “como capital específico do campo trico para que adotem estratégias de ambiental, o conhecimento técnico redução dos impactos, uma vez que se torna um elemento central de o governo federal pretende cons- mar­ginalização das outras formas truir um complexo de hidrelétricas de conceber e de expressar vi­sões na bacia (Idem)3. 3. Para uma reportagem e projetos distintos para o mesmo mais detalhada sobre a colaboração da território” (2012: 56). Assim, prosse- Aceitando os empreendimentos WWF-Brasil e de The gue a autora, as falas que provêm de antemão e “contribuindo” para Nature Conservancy (TNC) com os planos de dos moradores atingidos são obje- torná-los “melhores”, a organização exploração hidrelétrica to de desqualificação por parte dos afasta-se do campo crítico às bar- na Amazônia brasileira, membros de conselhos de meio ragens, sendo alçada, pela reporta- ver também Chiaretti, 2013a. ambiente como “verdadeiras ‘cho- gem, à posição de produtora de co- ramingas’ daqueles que têm “inte- nhecimento “científico”. Operando resses” a perder’ (Idem). dentro do paradigma da adequação

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 219 ambiental, ela fica imune, assim, à portagens. Uma notícia de O Impacto grande clivagem que atua para es- sobre uma audiência pública a res- tigmatizar e silenciar outros agen- peito da UHE São Manoel ilustra a tes. Ao mesmo tempo, suas ações dificuldade de os indígenas se faze- contribuem para caracterizar as rem ouvir: empresas e o governo como aber- tos ao diálogo. Como síntese, temos Inicialmente mais de 150 índios da que as decisões do governo nunca etnia Mundurucus, pintados a carac- refletem interesses que não sejam terísticas de guerra, armados de ar- “interesse público”, nem ideologias, cos e flechas, fecharam as portas do apenas critérios técnicos; os críticos ginásio não permitindo a entrada de aos projetos, em contrapartida, são ninguém. Depois de muito diálogo retratados de forma espelhada: são entre índios e os responsáveis pelo movidos por interesses particula- projeto, foram liberadas as portas e res, por ideologia, e seus argumen- foi realizada a audiência. Alguns ín- tos nunca são técnicos. dios entraram, outros continuaram Cabe notar que, entre as fontes do lado de fora do ginásio (Consór- ouvidas para a produção das re- cio, 2013). portagens analisadas, indivíduos e grupos críticos às barragens estão Nem a ação direta protagoniza- subrepresentados. O CanalEnergia é da pelos Munduruku, nem o fato um caso extremo: somente em uma de uma audiência pública ter por matéria do universo pesquisado foi objetivo ouvir a opinião de todas as realizada entrevista com represen- partes impele o jornalista a relatar tante de organização ligada à defesa o ponto de vista contrário à barra- dos direitos de grupos impactados gem. A voz é dada aos proponentes (Montenegro, 2012b). Quando se tra- da UHE – a notícia reproduz deta- ta de tornar presente o campo críti- lhes técnicos da obra, apresentados

4. O campo crítico às co aos empreendimentos, os jornais na audiência –, enquanto aos indí- barragens no Tapajós ouvem preferencialmente repre- genas resta escolher entre ficar den- tem produzido sentantes do MPF e de ONGs, em tro ou fora do auditório. A carta lida numerosos manifestos e notas de repúdio, mas lugar de membros dos próprios gru- por um Munduruku durante a au- os jornais não têm por pos afetados (indígenas, ribeirinhos diência é apenas mencionada, sem hábito repercuti-los. 4 Dentre as matérias do e camponeses, entre outros). Nesse que conheçamos seu conteúdo . Na Valor analisadas, Borges quadro, os ribeirinhos tendem a ser última parte da matéria, a questão (2012e, 2012g, 2013a) e o segmento mais invisibilizado de indígena reaparece: Chiaretti (2013c) são exceções. todos, mencionado em escassas re-

220 Alarcon, Guerrero e Furuie Os estudos apresentados na audiên- como “obstáculos”: fala-se menos cia, [sic] revelam que a UHE São Ma- dos impactos dos projetos sobre nuel [sic] não interfere diretamente os indígenas que da “interferência com terras indígenas, isto é, NÃO indígena” sobre os projetos. Em tal INUNDA TERRAS atualmente de- operação, direitos constitucionais marcadas ou declaradas pela FUNAI são torcidos e reduzidos à figura do como Reserva INDÍGENA [sic] (Idem, “componente indígena”, um con- grifos em maiúscula no original). junto de exigências indesejáveis, fonte de “desentendimentos” e res- Como se vê, para o jornalista, ponsável por aumentar custos e pra- só há interferência direta quando zos de execução de grandes obras. terras indígenas (TIs) são alagadas. No que talvez seja a passagem mais Tal pressuposto – que não encontra constrangedora das matérias publi- amparo antropológico ou jurídico – cadas pelo Valor no intervalo consi- serve como justificativa para o apa- derado, lê-se: “Em outubro de 2011, gamento da perspectiva indígena, durante processo de audiência pú- ainda que o empreendimento se si- blica de discussão da obra [São Ma- tue “a menos de 2 km do limite de- noel], quatro funcionários da Funai, clarado da TI KAYABI” e haja “indí- dois da EPE e um antropólogo fo- cios da presença de índios isolados” ram sequestrados pela tribo indígena na área, como informa o mesmo Kururuzinho, que não quer a usina” texto (Idem, grifos em maiúsculas (Rockmann, 2013c, grifo nosso). no original). Como destaca Ber- Confundindo nome de aldeia (Kuru- mann, referindo-se a Belo Monte, ruzinho) e povo indígena (Kayabi), o a redução interessada da noção de repórter lança mão ainda de um ter- “impacto” é uma estratégia recor- mo colonial (“tribo”) para se referir rente na construção de UHEs: “Ao à ação política dos indígenas. não inundar diretamente os territó- Ao noticiar alterações legais rios indígenas, o projeto se adequa que flexibilizavam exigências em à concepção dos projetos hidrelé- relação à passagem de linhas de tricos em voga, de desconsiderar as transmissão em TIs, o jornalis- consequências sociais e ambientais ta André Borges, do Valor, tomou das populações não inundadas ou para si o discurso dos setores que ‘afogadas’ pela formação dos reser- defendiam a medida, por imprimir vatórios” (2012: 76). mais “agilidade” ao processo de Nos textos, os povos indígenas licenciamento: são comumente caracterizados

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 221 O impacto em áreas indígenas tam- Rodrigo Polito – enfrentado pelas bém ganhou definições mais claras. Até empresas: o ano passado era preciso apresen- tar relatórios antropológicos toda A Neoenergia, controladora da Com- vez que uma linha de transmissão panhia Hidrelétrica de Teles Pires, passasse pela região de uma aldeia, sofreu um novo revés em seu pro- não importava a distância que essa es- grama de geração hidrelétrica, com trutura ficasse do povoado (Borges, a liminar concedida ontem pela Jus- 2012b, grifos nossos). tiça Federal do Mato Grosso determi- nando a suspensão do licenciamen- Como se vê, a matéria é infor- to ambiental e das obras da usina, mada pela noção de senso comum de R$ 3,6 bilhões e 1.820 MW de po- segundo a qual índios têm “direitos tência instalada. A empresa passou demais” e constituem “entraves” ao pelo mesmo calvário para licenciar desenvolvimento. Mais uma vez, o as hidrelétricas de Dardanelos (MT), jornalista arroga-se a tarefa de in- de 261 MW, e Baixo Iguaçu (PR), de dicar critérios para a determinação 361 MW. […] Dardanelos sofreu inú- dos impactos das obras (a distância meras invasões indígenas durante a das linhas de transmissão em rela- sua fase de construção (Polito, 2012, ção à aldeia) que colidem com a le- grifo nosso). gislação, já que, no que diz respeito às TIs, ocupação tradicional não se Note-se que a matéria recém-ci- 5 5. “São terras limita a moradia . Na mesma dire- tada, de 28 de março, não informa a tradicionalmente ção, o estudo de impacto ambiental razão da liminar, concedida na vés- ocupadas pelos índios as por eles habitadas (EIA) aparece, na voz do jornalista, pera. Apenas em 10 de abril o leitor em caráter permanente, como “complexo” e “demorado” é informado da acusação que pesa as utilizadas para suas (Idem). Repercutindo Nelson Hub- sobre o consórcio construtor: não atividades produtivas, as imprescindíveis ner, presidente da Aneel e única ouvir os povos indígenas impac- à preservação dos fonte da matéria, o repórter fala em tados antes de iniciar o empreen- recursos ambientais necessários a seu bem- “entraves ambientais”, que “com- dimento, sendo que, entre outras estar e as necessárias a prometem” cronogramas e pro- consequências, a UHE destruirá um sua reprodução física vocam “atrasos” (Idem). Em outra lugar sagrado, a cachoeira de Sete e cultural, segundo seus usos, costumes e reportagem do Valor, episódios de Quedas (Borges, 2012c). Omitir as tradições” (Constituição mobilização indígena e decisões ju- acusações contra consórcios cons- Federal, art. 231, § 1º). diciais contrárias às UHEs aparecem trutores – ocultando-as sob expres- como etapas do “calvário” – é essa sões como “restrição ambiental” ou a palavra escolhida pelo jornalista, “irregularidades” – é expediente re-

222 Alarcon, Guerrero e Furuie corrente, não só no Valor. Três maté- tre índios e ruralistas não é o único rias do CanalEnergia sobre a suspen- reflexo da incapacidade do governo em são do licenciamento de Teles Pires definir critérios objetivos para o proces- trazem a mesma frase (“Esta é a so de demarcação de terras indígenas” quarta ação na Justiça que a hidrelé- (Borges & Peres, 2013). Replicando trica enfrenta por supostas irregula- um dos argumentos esgrimidos com ridades”), sempre sem indicar quais mais frequência pelo campo contrá- são elas (Ministério, 2012; Medeiros, rio ao reconhecimento dos direitos 2012; Consórcio, 2012). Ao noticiar territoriais indígenas, os repórteres liminar impedindo a participação simplesmente desconhecem que da UHE Sinop no leilão A-5, a agên- os procedimentos administrativos cia utiliza quatro vezes o termo “ir- de demarcação de TIs em curso no regularidades” (Medeiros, 2013). país são regidos por uma legislação Outra estratégia de ocultamento específica, que determina critérios 6 consiste em apresentar fatos como objetivos para os mesmos . 6. Ver o Decreto se fossem interpretações, colocan- Em outra reportagem do Valor, a nº1.775/1996, que dispõe sobre o procedimento do sob suspeita vozes críticas aos Fundação Nacional do Índio (Funai) administrativo de empreendimentos. Em matéria do foi caracterizada como sorrateira e demarcação de TIs. CanalEnergia sobre estudos de viabi- arbitrária, em razão da publicação lidade de UHEs, lê-se que promoto- de uma instrução normativa (IN) res do MPF resistem a determinada relacionada ao licenciamento de obra pois “veem” um local impac- obras de infraestrutura. Duramen- tado como área indígena (Canazio, te criticado por um fórum do setor 2012). O jornalista não informa, elétrico e pelo próprio jornalista, o mas o leitor que tiver oportunidade órgão indigenista sequer foi procu- de pesquisar logo descobrirá que a rado para se pronunciar. No texto, área em questão é reconhecida pelo lê-se: Estado como de ocupação tradicio- nal indígena, não se tratando, pois, […] de acordo com sua instrução da “visão” do MPF. normativa nº 1, de 2012, a Funai es- Ainda no que diz respeito aos di- tabeleceu procedimentos que pega- reitos territoriais indígenas, o Valor ram os empresários de surpresa. O Rima chega ao ponto de afirmar: “O go- – relatório simplificado do estudo verno tem sentido na pele os refle- de impacto ambiental que precisa xos da falta de uma política indigenis- ser feito para cada projeto – deverá ta” (Borges, 2013c). E ainda: “A crise ser encaminhado às tribos afetadas aguda que se espalha pelo país en- “em linguagem acessível ou com

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 223 tradução para línguas indígenas”. se regem por critérios quantitati- Além disso, segunda [sic] a norma, as vos? Note-se ainda que, às palavras comunidades poderão opinar sobre do indígena entrevistado, segue-se os futuros empreendimentos em sua caracterização como ingênuo consulta “prévia, livre e informada”. ou mesmo intelectualmente limita- […] Devido à complexidade das lín- do: “Essas são questões complexas guas indígenas e à falta de profissio- para o entendimento de Antônio nais com conhecimento delas, a re- Daice Munduruku, isolado no Mé- gra pode acabar encarecendo todo o dio Tapajós”. processo de licenciamento, além de Nas notícias dos diferentes veí- ter reflexos nos seus prazos (Rittner, culos analisados neste artigo, rara- 2012, grifo nosso). mente a decisão de construir uma UHE é tratada como uma decisão po- Como se vê, as passagens citadas lítica em torno da qual o dissenso é da instrução normativa nada mais legitimo (e saudável, diriam alguns fazem que repetir o que determina partidários da democracia). Em um a Convenção 169 da Organização exemplo que sai da curva das notí- Internacional do Trabalho (OIT), da cias ancoradas nos aspectos econô- qual o Brasil é signatário. Com essa mico e jurídico da construção de omissão do jornalista, determina- UHEs, a jornalista Marta Salomon, ções legais são apresentadas como do Estado de S. Paulo, opta por abor- se fossem excentricidades da Funai, dar a decisão de construir UHEs que exigências que visam “travar” o afetariam o Parque Nacional (Parna) desenvolvimento. da Amazônia e o Parna do Jamanxim Mesmo em uma matéria que dá como uma ação em um campo volú- a conhecer as preocupações de in- vel de possibilidades e interditos: dígenas e indigenistas, e aponta a existência, na área a ser impactada A possibilidade de construção de por barragens, de territórios tradi- usinas nessas áreas era um tabu até cionalmente ocupados ainda não menos de um mês atrás. No início de reconhecidos pelo Estado, a crítica abril, o presidente Luiz Inácio Lula vem enfraquecida sob o título “Re- da Silva assinou decreto autorizan- gião tem poucas aldeias indígenas” do estudos de viabilidade ambiental (Borges, 2012f). É de se perguntar: de novas hidrelétricas em unidades “poucas” segundo que critério? E de conservação, assim como a insta- mais que isso: qual o sentido de lação de redes de transmissão e dis- “poucas” se direitos indígenas não tribuição nessas áreas.

224 Alarcon, Guerrero e Furuie Dias antes, o PAC 2 lançou projetos mais de dois anos, tentamos obter de construção de usinas-plataforma, o licenciamento”, declarou o pre- onde o impacto ambiental seria re- sidente da EPE, Mauricio Tolmas- duzido. O Plano Decenal de Energia quim, em entrevista ao Valor (Rock- transformou o que era uma possibi- mann, 2013b, grifo nosso). Tomando lidade em projetos de hidrelétricas a asserção de Tolmasquim como com datas de inauguração definidas verdade, na introdução à entrevis- (Salomon, 2010). ta, o repórter afirmou: “Mesmo usi- nas sem impacto em áreas indígenas e O que antes aparecia travestido sem reservatórios, como a de São de abstrata racionalidade aqui assu- Manoel, no rio Teles Pires, têm en- me a forma de operação simbólica, frentado obstáculos para seguir em explicitando-se as relações de poder frente” (Idem, grifo nosso). E cravou envolvidas no processo de constru- na manchete: “É preciso avançar ção de uma UHE. A ação política (a com hidrelétricas”, sem aspas. Con- canetada elocutória) emprega estra- vencido pelas palavras de Tolmas- tegicamente termos instáveis como quim, o jornal aderia ao projeto? “usina-plataforma” para operar No material publicado pelo Va- uma mudança de paradigma que lor no período analisado, ainda que torna politicamente possível o que haja exemplos como esse, encon- antes era um tabu. O governo, as- tram-se algumas reportagens assi- sim, opera como um sujeito político nadas por André Borges e outras, capaz de mudar não apenas as leis, menos numerosas, de autoria de mas também um suposto consenso Daniela Chiaretti que destoam da sobre o direito à proteção ambien- tônica geral, considerando os bar- tal na região. ramentos sob outras perspectivas. Nesse conjunto de textos, os perfis Valor Econômico: dos entrevistados são mais varia- compartimentação que não con- dos, não se restringindo a repre- textualiza os interesses em jogo sentantes do governo federal e do “Temos de aumentar a aceitação setor empresarial. Figuram entre desses projetos em toda a socieda- eles lideranças indígenas, ribeiri- de. Um exemplo é o da hidrelétrica nhos, representantes de municípios de São Manoel, no rio Teles Pires. O impactados por empreendimentos, empreendimento não tem reserva- técnicos ambientais do Instituto tório, e seu impacto sobre a comunida- Chico Mendes de Conservação da de indígena é nulo. Mesmo assim, há Biodiversidade (ICMBio) mobiliza-

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 225 dos contra atropelos ambientais sabe sobre esse modelo; a matéria na condução dos projetos hidrelé- informa também que a energia ge- 7 7. Apesar de serem tricos , pesquisadores críticos aos rada por esses empreendimentos se servidores públicos barramentos e representantes de destinará principalmente à indús- federais, esses quadros introduzem uma entidades como International Rivers, tria, e não ao consumo doméstico dissonância no coro Instituto de Estudos Socioeconô- (Borges, 2012a). dos representantes micos (Inesc) e Instituto Centro de Em outra reportagem assina- do governo federal comumente ouvidos Vida (ICV), entre outros. da por André Borges, os relatos pelos jornais. A introdução de tais perspecti- de ribeirinhos da vila de Pimental vas faz com que emerjam dos tex- (Itaituba, Pará) ouvidos pelo jor- tos aspectos que costumam estar nalista, em apuração in loco, põem ausentes da cobertura, como a falta em xeque o discurso hegemôni- de transparência do governo fede- co – reproduzido exaustivamente ral na tomada de decisões sobre os pelo mesmo Valor – que assevera o projetos hidrelétricos na bacia do “rigor”, o “cuidado”, o “controle”, Tapajós, as violações aos direitos in- a “tecnologia”, o “respeito” com dígenas no âmbito desses empreen- que estariam sendo conduzidos os dimentos, a desafetação de unida- estudos técnicos relacionados aos des de conservação (UCs) por meio empreendimentos: de medida provisória (MP) para viabilização dos projetos, o fato de Para levantar as informações sobre eles gerarem impactos cumulativos o impacto ambiental da hidrelétrica desconsiderados no licenciamento [São Luiz do Tapajós], empresas con- ambiental, as pressões exercidas tratadas pela Eletrobras têm recor- pelo governo federal sobre a Funai rido à experiência da população da durante o processo de licenciamen- vila para entrar na floresta e percor- to, o não cumprimento de condi- rer os rios. O Valor conversou com cionantes e os efeitos negativos ob- alguns “mateiros”, como são chama- serváveis em obras que já estavam dos esses guias. Cada um recebe R$ em andamento. A panaceia das 35 para ficar rodando o dia inteiro usinas-plataforma, defendidas pelo pela mata com os pesquisadores. governo federal como solução para Não há qualquer tipo de formaliza- fazer frente aos problemas socioam- ção ou contrato de serviço. Também bientais derivados da instalação de não existe nenhum tipo de seguro, UHEs na bacia do Tapajós, também assistência médica ou mesmo roupa é colocada em questão em um dos e sapatos adequados. O pagamento é textos, que indica que pouco se feito no dia, em dinheiro. […]

226 Alarcon, Guerrero e Furuie De maneira geral, a principal queixa austríaca Andritz Hydro, produtora é a falta de informação. A população de equipamentos para geração de vê os pesquisadores cruzarem o rio energia, conhecemos as expectati- por todo lado, com mapas nas mãos, vas da empresa acerca de São Luiz fazendo perguntas e anotações, mas do Tapajós, “a ‘menina dos olhos’ ainda não compreende o que será do setor”: “O projeto é fundamental feito (Borges, 2012h). para a Andritz ultrapassar suas duas concorrentes”, a alemã Voith Hydro Cumpre notar ainda uma pecu- e a francesa Alstom (Fernandes, liaridade do Valor, atrelada ao fato 2013b, grifo nosso). Aqui, São Luiz de se tratar de um veículo voltado do Tapajós aparece distante do de- ao mercado, que frequentemente bate sobre o “bem comum”, enre- publica reportagens sobre as ques- dada em uma disputa no interior tões em jogo em determinado ramo de um ramo econômico específico. econômico, assim como longos per- Uma matéria sobre a Alstom é ainda fis de empresas, dando a conhecer mais clara: as estratégias declaradas por seus executivos no momento. Tal perfil “A realização dos leilões, principal- de cobertura faz com que se tornem mente da [usina de São Luiz dos] Ta- visíveis, em certas matérias, alguns pajós (PA), que nós esperamos para nós da rede de interesses que sus- 2014, é fundamental para não preju- tentam os projetos hidrelétricos na dicar a capacidade das nossas fábricas”, bacia do Tapajós e que nada têm de disse [Marcos] Costa [presidente da ver com o tão propalado “interesse Alstom no Brasil], argumentando público”. O lapso cometido por um que é importante aumentar a cele- repórter para se referir à conces- ridade das aprovações ambientais. sionária da UHE Colíder parece-nos Além de Tapajós, projetada para ter pertinente quando se trata de refle- mais de 6 mil MW de potência, é tir sobre as relações entre público prioritário para a indústria que sejam e privado: “A companhia de energia licitadas, na avaliação do executivo, paranaense Copel espera obter si- as usinas de Sinop e São Manoel, no nergias operacionais e antecipar o rio Teles Pires (Fernandes, 2013a, gri- fornecimento de energia da usina fos nossos). Colíder – sua hidrelétrica no rio Teles Pires” (Laguna, 2012). Vejamos ou- Emergem, desses textos, agentes tros exemplos. Em reportagem so- de distintos setores econômicos, o bre a atuação no Brasil da empresa que dá mostras da amplitude dos in-

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 227 teresses diretos e indiretos em tor- sua estratégia para o Brasil.[…] A no dos projetos hidrelétricos. “Espe- EDF também tem planos de dispu- ra-se que a construção de linhas de tar o leilão da hidrelétrica de São transmissão de energia gere mais Luiz do Tapajós, de 6.133 MW, no demanda a produtores de cabos [de Pará. […] ‘É um projeto apaixonante alumínio] durante o segundo semes- para nós’, explicou [Olivier] Orsini tre. Ele [Luis Carlos Loureiro Filho, [vice-presidente de Desenvolvimen- coordenador da comissão de econo- to Internacional da EDF]” (Polito, mia e estatística da Associação Bra- 2013). sileira do Alumínio - Abal] cita como Dispersas, porém, em maté- exemplo o linhão que vai escoar a rias altamente especializadas, que energia da usina de Teles Pires, cujo atraem leitores de perfil bastante uso de alumínio é estimado em específico, informações dessa na- 55 mil toneladas” (Alonso & Lagu- tureza não são articuladas em ma- na, 2013, grifo nosso). “As grandes térias dedicadas especificamente obras de infraestrutura são merca- aos empreendimentos. Assim, deli- do expressivo para as soluções mo- neiam-se no Valor dois grandes con- dulares metálicas. Quem opera com juntos de textos sobre os projetos a transformação de contêiner marítimo hidrelétricos na bacia do Tapajós: está de olho nos canteiros de obras no primeiro, eles aparecem subsu- espalhados pelo país. […] Placas me- midos em disputas no interior de tálicas recheadas com poliuretano diversos ramos econômicos, sem são as bases dos ambientes cons- que a consideração de tais inte- truídos pela Odebrecht no canteiro resses seja articulada a um debate de obras da usina Teles Pires, na di- de fundo sobre os projetos e sobre visa de Mato Grosso e Pará” (Menos, opções de “desenvolvimento”; no 2012, grifo nosso). “[…] a EDP Brasil segundo, essa multiplicidade de avalia disputar a hidrelétrica de São agentes interessados é esmaecida Manoel. […] O maior acionista da e a discussão é operada em termos ex-estatal portuguesa hoje é o grupo muitas vezes abstratos, girando em chinês China Three Gorges (CTG), que torno dos constructos do “desenvol- comprou 21,3% do capital da EDP vimento”, do “interesse público” e em 2011. […] A hidrelétrica de São da “técnica”. Manoel também interessa à gigante Assim, ainda que a cobertura do estatal chinesa State Grid” (Facchini, Valor sobre os empreendimentos 2013, grifos nossos). “[…] a gigante seja frequente e a mais diversifica- elétrica francesa EDF está retomando da entre os veículos analisados aqui,

228 Alarcon, Guerrero e Furuie proporcionando ao leitor interessa- Os pontos que Santos nominal- do informações relevantes, a ausên- mente cita como exemplos são: cia de articulação entre as aborda- “governos, ministérios, órgão regu- gens jornalísticas que caracterizam lador, congresso, associações seto- os dois conjuntos de matérias indi- riais, órgãos ambientais, tribunais cados há pouco reduz em muito o de Justiça (STF, STJ [Superior Tribu- potencial explicativo do veículo e as nal de Justiça], MPs e TCU [Tribunal possibilidades de contribuição para de Contas da União]), indústrias, a qualificação e ampliação do deba- empresas, mercado financeiro, enti- te público. dades de fomento, como Banco Na- cional de Desenvolvimento Econô- Agência CanalEnergia: mico e Social (BNDES), fabricantes, os pontos cegos da cadeia etc.” (Idem). Note-se que represen- “Tínhamos de conquistar engenhei- tantes de movimentos sociais não ros, técnicos, executivos, governo, figuram na lista. jornalistas, todos aqueles envolvidos Destacamos certos pontos das com o setor.” Assim definiu Rodrigo falas acima para refletir sobre al- Ferreira, fundador e diretor-execu- guns pressupostos da cobertura do tivo do Grupo CanalEnergia, que CanalEnergia, nos próprios termos abriga a Agência CanalEnergia, o de- de seus idealizadores. Temos, de safio que se impunha nos primeiros princípio, que o veículo deve sua passos do portal de notícias, criado existência a um convencimento de em 2000, com base no Rio de Janei- empresas ligadas ao setor energé- ro (Pires et al., [201?], grifo nosso). tico, que tornaram a aposta finan- Júlio Santos, seu sócio, indica que o ceiramente viável – estão entre os meio para tal conquista foi vender patrocinadores do portal empresas às empresas a ideia de que elas, “na como Siemens, Odebrecht, Queiroz posição de agentes do setor, preci- Galvão, BTG Pactual, CPFL Energia savam investir em uma iniciativa e Thymos. Isso situa segmentos do em prol da comunicação, informação setor empresarial em dois pontos e debate para esse setor que come- do processo: como patrocinadores çava a apontar para a competição” e como público consumidor do ma- (Idem, grifo nosso). A empreitada te- terial produzido pelo portal. Essa ria prosperado, complementa, pelo última posição, contudo, é dividida esforço do canal com a “busca de com outros sujeitos, como jorna- notícia em todos os pontos da cadeia” listas, órgãos ligados ao governo, (Idem, grifo nosso). associações setoriais e demais inte-

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 229 ressados em acompanhar mais pro- fonte realizadas por repórteres da ximamente a temática do setor de própria agência. A maior parte do energia. Como atrativo, a promessa material pesquisado é constituída a 8. No jargão jornalístico, de um canal dedicado à “comuni- partir de press releases8 de empresas press release é um cação, informação e debate”, por ou notas veiculadas por assessorias comunicado produzido por órgãos do poder meio da “busca da notícia em todos de comunicação, quando de órgãos público, empresas os pontos da cadeia”. ligados ao Executivo ou Judiciário. e organizações não governamentais, entre Os resultados da análise conduzi- Não foram registrados artigos outros, e comumente da junto ao portal contradizem essa expressamente de opinião, seja de transmitido a imagem que o CanalEnergia apresen- colaboradores ou do próprio corpo jornalistas, com o objetivo de anunciar ta a seu público-leitor, apontando de editores do CanalEnergia. No en- algo “noticiável”, para uma cobertura extremamente tanto, as reportagens, elaboradas transmitindo a versão oficial a esse respeito. aderente aos motivos discursivos frequentemente a partir da cober- oficiais e pouco propícia ao debate tura de congressos e encontros do de versões. É sem dúvidas o veículo chamado “setor energético”, legam que menos abriu espaço ao campo significativo espaço para a exposi- crítico às barragens. Por outro lado, ção de pontos de vista e análises de tal como observado na cobertura conjuntura das fontes selecionadas. do Valor, extensa parte da cobertura Nesse ponto, emerge um primeiro do portal permite identificar a mo- aspecto que remete à reverberação vimentação de setores econômicos de motivos discursivos oficiais na diversos interessados direta ou indi- cobertura do CanalEnergia: a seleção retamente nas barragens. Tais movi- de fontes. Cabe aqui refletir tanto mentações no campo empresarial, sobre as fontes diretamente entre- porém, como ocorre no Valor, não vistadas, no caso das poucas repor- são apresentadas de forma contex- tagens, como também as origens de tualizada com a discussão sobre as releases e notas, motivadores das ou- decisões envolvidas nos projetos de tras notícias analisadas. exploração hidrelétrica. No primeiro caso, tomando as Para este artigo, foram analisa- onze matérias do CanalEnergia que das 179 matérias, de um intervalo trataram da construção de usinas de aproximadamente dois anos. A no Tapajós, destaca-se a participa- leitura mostrou que pouco conteú- ção de fontes ligadas a empresas do emana do próprio veículo. Den- do setor elétrico, a associações que tre as 179 ocorrências, apenas oito articulam empresas desse setor ou eram reportagens, textos que en- de escritórios de consultoria que volviam entrevista de mais de uma trabalham junto a esses grupos.

230 Alarcon, Guerrero e Furuie Nessa categoria, presente em todas dores dos canteiros ou a resistência as matérias, estavam 55 das 78 fon- de indígenas, ribeirinhos e campo- 9. Registre-se que, no tes registradas (70% do total). Em neses, em atos públicos vários. Nes- cômputo das fontes ouvidas nessas 11 seguida, note-se a participação de ses casos, o discurso desses grupos matérias, figuraram fontes oriundas de representantes surge, no máximo, por intermédio duas fontes ligadas a institutos de pesquisas 10 do governo, ouvidos 17 vezes (22% eventual dos MPs . e um parlamentar. do total), em nove das 11 matérias. Observa-se, assim, que o elen- Apenas uma fonte de governo não co de fontes, diretas ou indiretas, 10. No CanalEnergia, estava ligada ao MME, constituída desvia a cobertura do CanalEnergia somente em uma matéria, entre o por representante da Funai. Por fim, da busca da notícia em “todos os universo pesquisado, a terceira categoria de fontes, com- pontos da cadeia” – ou, no míni- foi realizada entrevista com representante posta por entidades ligadas à defe- mo, o que se entende por “todos” e de organização da sa do meio ambiente ou dos direi- por “cadeia”, sugerindo que alguns sociedade civil ligada tos de grupos atingidos, participou grupos são alheios ao processo e ao à defesa dos direitos dos povos indígenas. com apenas três fontes registradas, debate. Trata-se de peça de 21 em somente três das 11 matérias, A reverberação dos motivos dis- set. 2012, em que se entrevista Saulo Feitosa, compondo menos de 4% das fontes cursivos oficiais vai além, contudo, do Conselho Indigenista ouvidas, de modo geral9. do espaço ocupado por opiniões de Missionário (Cimi). Quando nos debruçamos sobre agentes do governo ou da recor- Além de desaparecer no universo pesquisado, a origem de notas e releases para as rência do material produzido pelas a fala ainda teve um notícias do veículo, vemos que as assessorias de comunicação. Nossa tratamento lamentável, ao receber um adendo fontes se repetem. Há os informes pesquisa sugere que o tratamento que, desvinculado de de movimentações e interesses das desse material também merece re- contexto, parece lançar empresas – lucros, fusões, migra- flexão. Tomaremos, inicialmente, a um questionamento à legitimidade ções de ramo etc. Além disso, há questão da reprodução do material do discurso do cobertura das ações de órgãos do de assessorias de comunicação. Das entrevistado. Diz a matéria: “Outro ponto governo – MME, Aneel, EPE, AGU. 179 matérias analisadas, foram re- defendido pelo conselho Por fim, há informes provindos dos gistradas 22 reproduções de assesso- é o cumprimento da Convenção 169, tribunais e das ações do Ministério rias de comunicação apresentadas da Organização Público (MP) estadual ou federal. como se fossem material produzido Internacional do Verifica-se, assim, que nenhum pelo próprio veículo. Como a fonte Trabalho, que assegura a consulta prévia às material oriundo de organizações estivesse ausente das matérias, a re- comunidades indígenas ou movimentos sociais é retratado produção do conteúdo foi constada impactadas por obras ou serviços. A no universo da cobertura analisada, a partir do lançamento de excertos instituição, vinculada nem mesmo quando a notícia é mo- das matérias em mecanismos de à igreja católica, tivada por uma ação desse campo, busca e cotejamento com os resul- considera que esse processo assegura às como as paralisações de trabalha- tados apontados, permitindo iden- comunidades afetadas

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 231 o poder de veto ao tificar a peça original. Acerca da nucioso do universo pesquisado empreendimento” origem dos textos copiados, 12 se permitiu divisar uma diferença de (Montenegro, 2012b, grifo nosso). originaram no MPF ou em MPs esta- tratamento nessas reproduções. duais, quatro da assessoria do MME, Embora as reproduções do MP, quatro da AGU, um da Secretaria- federal ou estadual, ocorressem em -Geral da Presidência da República maior número, das 12 reproduções, (SG/PR) e um do Grupo de Estudos dez apresentam a supressão de um do Tapajós. ou mais parágrafos. Entre as pas- Os textos do portal mostraram- sagens suprimidas, há em comum -se, na maioria absoluta, uma repro- a característica de se constituírem dução literal – e, reiteramos, não in- por afirmações mais incisivas a formada – das notas originais. Uma respeito dos processos de licencia- análise mais imediata poderia suge- mento e das violações aos direitos rir que a dinâmica acelerada de pro- de povos e comunidades da região. dução de uma agência de notícias Entre as outras dez cópias de asses- faz com que essa seja uma prática sorias, somente duas passaram por corrente no meio jornalístico, inse- edição por parte do CanalEnergia. rido nas demandas de produtivida- Tomemos, como exemplo, matéria de e competitividade das empresas. acerca dos estudos de viabilidade Ocorre que muitas das notícias em realizados no Tapajós, veiculada em questão versavam sobre conten- 23 de maio de 2013, “MPF interpõe ciosos, disputas em andamento. Se recurso ao STJ pedindo reconside- acatássemos a justificativa da pro- ração de liminar que permite pes- dução massiva de notícias para re- quisa no rio Tapajós”. O texto é in- produção integral desse conteúdo, tegralmente o da nota do MPF, mas teríamos ainda o significativo resul- o seguinte parágrafo foi suprimido: tado da incorporação, pelo veículo, da versão de uma das partes, sem a “Além de flagrante desrespeito aos sinalização de que se tratava de tal. direitos fundamentais assegurados Caberia, aqui, argumentar que aos indígenas pela Constituição da a reprodução de matérias do MP, República, o procedimento adotado principal porta-voz das demandas pela União, pela Aneel e pelo Ibama dos grupos afetados pelos projetos contraria a Convenção 169 da OIT, das barragens, contrabalançaria a sujeitando o Estado brasileiro a san- cobertura, com visões da diversi- ções da Corte Interamericana de Di- dade dos campos em conflito. No reitos Humanos”, argumenta Augus- entanto, um cotejamento mais mi- to Aras (MPF interpõe, 2013).

232 Alarcon, Guerrero e Furuie Essa é uma das quatro menções terial nº419/2012 que proíbe, duran- à Convenção 169 da OIT que é supri- te os estudos, “a coleta de qualquer mida das reproduções do CanalEner- espécie nas terras indígenas”. O gia. Em outros casos, a edição é ain- Ibama, no entanto, autorizou a cap- da mais “cirúrgica”, como na nota tura, coleta e transporte de material que termina com a seguinte afirma- biológico para o EIA da usina São ção: “A usina de Cachoeira dos Pa- Luiz do Tapajós, dentro das terras tos, se construída, afetará o Parque indígenas e áreas de uso tradicional Nacional do Jamanxim, a Área de dos ribeirinhos, o que revolta essas Proteção Ambiental do Tapajós e o populações (MPF pede, 2012, grifo corredor Ecótonos Sul-Amazônicos nosso). (área de alta riqueza biológica entre os biomas do Cerrado e da Amazônia)” Em contrapartida, outra repro- (MMA atende, 2013, grifo nosso). A dução de material de assessoria so- reprodução da agência de notícias bre o assunto – desta vez, do MME suprimiu os parênteses destacados, –, resultando em matéria veiculada que se referem a uma característica em agosto de 2013, não apenas fi- ambiental ameaçada pela constru- gura sem supressão alguma, como ção da UHE. faz acréscimos corroborando o ar- Os conflitos envolvendo a rea- gumento do órgão. Ao passo que lização dos estudos de viabilidade o material do MME informava, na das barragens na bacia do Tapajós chamada linha fina, abaixo da man- propiciam exemplos emblemáticos chete, que “no domingo (15) pesqui- desse tratamento diferenciado. Em sadores começaram os trabalhos setembro de 2012, o CanalEnergia re- em Itaituba e Trairão”, o CanalEner- produzia nota do MPF suprimindo o gia publicou uma linha fina incisi- seguinte parágrafo: va, que não deixa dúvidas sobre o ponto de vista defendido: “Nenhu- Ou seja, a chegada dos pesquisadores ma frente de trabalho está localiza- contratados pelas empreiteiras para fa- da em terras indígenas. Retomada zer Estudos de Impacto sem nenhuma de atividades vai permitir conclu- consulta já causa danos e viola os direi- são de estudos de impacto que au- tos indígenas. A previsão de respeito xiliarão audiências públicas” (Es- aos direitos de propriedade cultural tudos, 2013b). Sem apuração in loco e imaterial dos índios consta até na que embasasse a opção por aderir a última portaria do governo federal um ou outro argumento, o veículo sobre o tema, a portaria interminis- escolhe e, para não se contradizer,

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 233 suprime o contraditório em seu tra- razão pela qual encontramos um balho de edição. grau de polissemia no projeto de Importante lembrar que, alguns barrar o rio mais difícil de enqua- meses antes, em maio de 2013, o drar em um regime de significação CanalEnergia chegou a veicular di- definido por técnicas discursivas retamente, sem edição alguma, recorrentes. um release do Grupo de Estudos Ta- Embora alguns textos, como o pajós, defendendo a importância da jornalista Marta Salomon citado dos estudos. Na matéria, diz-se que no início deste artigo, demonstrem referidos estudos “incorporam os certa complexidade no tratamento conceitos de usina-plataforma, que do significado de ações políticas em reúne todas as melhores práticas projetos de desenvolvimento, exis- socioambientais” (Grupo, 2013). A te no caso do Estado uma despropor- escolha do adjetivo positivo e gené- ção no que tange às fontes usadas rico – “melhores” – torna qualquer nas matérias publicadas. Em pou- crítica impossível, já que chancela, cas ocasiões o diário investe os re- de antemão, o que se faz. De um re- cursos necessários para enviar um lease, é o que se espera, mas em um repórter à região do Tapajós para veículo que “busca a notícia” e pro- escrever reportagens sobre as barra- mete “comunicação, informação e gens – o mais comum é que o jornal debate”, o efeito é outro. reverbere informações obtidas de uma terceira parte. Assim, a cober- O Estado de S. Paulo: tura diária dos conflitos envolvendo pouca apuração e apego às fontes a questão é produzida por meio de institucionais notícias sobre as contestações feitas A cobertura do jornal O Estado de S. à Justiça, por exemplo. Nesse pro- Paulo sobre os projetos de hidrelétri- cesso, algumas vozes dentre a mul- cas na bacia do Tapajós mostrou-se tiplicidade de opiniões envolvidas substancialmente diferente das que são preteridas por outras cuja insti- encontramos nos outros dois veí- tucionalidade garante fácil trânsito culos de circulação nacional, o que em um jornal de grande circulação. levou a uma adaptação da propos- A análise das fontes usadas em ta metodológica deste artigo para a 62 matérias publicadas pela equi- análise desse jornal em específico. pe do jornal O Estado de S. Paulo e da Em contraste com o CanalEnergia e o Agência Estado no intervalo de 2009 Valor, é mais difícil precisar o públi- até 2014 demonstra a prevalência co-alvo de um diário como o Estado, de opiniões do governo e de compa-

234 Alarcon, Guerrero e Furuie nhias ligadas ao setor elétrico. Fon- produzida nas próprias cidades que tes governamentais foram citadas concentram poder político e econô- 39 vezes, enquanto companhias de mico no Brasil. eletricidade, construtoras e federa- ções industriais ou do agronegócio Jornais locais: tão perto, tão longe apareceram 27 vezes. Representan- Dois jornais locais analisados, Gaze- tes de movimentos sociais, ONGs e ta de Santarém e O Estado do Tapajós, povos indígenas tiveram suas pala- veiculavam com certa frequência vras reproduzidas 12 vezes. Fontes artigos (assinados ou não) critican- do Judiciário e do Ministério Pú- do a inserção subordinada da Ama- blico foram usadas seis vezes cada; zônia no sistema capitalista, to- dois parlamentares deram declara- mando as UHEs como expressão do ções, assim como um pesquisador colonialismo interno (González Ca- universitário. sanova, 2006), isto é, da existência, Em especial, uma pessoa, Maurí- no interior do país, de assimetrias cio Tolmasquim, presidente da EPE, regionais, pautadas em relações so- é a fonte principal ou secundária de ciais de tipo colonial (por exemplo, 13 matérias. Por outro lado, no uni- A Plantinha, 2012, Dutra, 2013a, Pin- 11 verso pesquisado, em apenas seis to, 2013a, 2013b) . Vale notar como 11. Como indica ocasiões uma liderança indígena a constatação dessa assimetria pode Bermann, após a Segunda Guerra foi fonte de informação. A determi- ensejar vertentes distintas de análi- Mundial, a inserção nadas partes do governo também é se e crítica, como sugere o material da região amazônica alocada mais voz do que a outras: coligido. Em alguns artigos da im- no capitalismo globalizado dá-se como no mesmo universo de matérias, re- prensa local, a reflexão incorpora fornecedora de bens presentantes do Ibama, do ICMBio mais explicitamente a defesa dos primários de origem mineral, exportados e do MMA, somados, foram citados grupos diretamente impactados na forma bruta ou seis vezes. pelos projetos de infraestrutura, le- como metais primários – estes últimos, O fato de a maior parte das in- vando a crítica a pôr em questão as- produtos de alto formações sobre o Tapajós vir de pectos da própria ideia de desenvol- conteúdo energético, Brasília e de um reduzido número vimento. A exploração hidrelétrica baixo valor agregado e ocasionadores de de fontes institucionais restringe o figura nesses textos como atividade intensa degradação regime discursivo às possibilidades econômica predatória, que aprofun- ambiental (2012: 68-9). que emanam justamente dos cen- daria as desigualdades regionais e a tros de produção de discursos sobre pobreza na Amazônia. Em artigo de desenvolvimento do país. A Amazô- 23 de dezembro de 2011, a Gazeta nia que circula pelos centros urba- alude aos “bilhões de KW da energia nos é a imagem de um lugar que é exportada pelas hidrelétricas daqui

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 235 Imgem 3. Meninas e [de] toda esta Amazônia saqueada, expressando a prioridade política munduruku, remando deixando o povo faminto de eletri- concedida à “economia para fora”, no rio Cururu. Por Fábio Nascimento, set. 2014. cidade, pagando preços absurdos em detrimento da “economia de pela permanente interrupção de dentro e para dentro” (A Economia, energia em suas casas e barracos” 2013). (A Casa, 2011, grifo nosso). Por outro lado, alguns outros Na mesma direção, um artigo textos que abordam as UHEs suge- de um blog regional reproduzido rem que o principal problema resi- pela Gazeta lembra que municípios diria na distribuição desigual entre do Pará, “um dos Estados que ilu- as regiões, relevando a produção da minam e movem os parques indus- assimetria ocorrida no contexto da triais de outras regiões do Brasil”, própria região. Em outras palavras, registram “cortes súbitos [de ener- esses textos levam a entender que, gia] todos os dias”, evidenciando o havendo segmentos locais suficien- “desprezo” do governo federal pela temente “atendidos”, não haveria Amazônia (Dutra, 2013b). Ainda problemas se a conta pesasse muito conforme o jornal, as UHEs se inse- mais para outros grupos da região. rem em um “projeto que petrifica Em O Estado do Tapajós, por exem- a Amazônia como almoxarifado do plo, um articulista situa a constru- Brasil e do mundo” (Cargill, 2013), ção de UHEs ao lado de atividades

236 Alarcon, Guerrero e Furuie econômicas comumente associadas construção de UHEs, a despeito das à exploração predatória de “rique- críticas ao colonialismo interno, é zas ainda abundantes nesta região, “Energia cara inviabiliza o benefi- minérios, água, madeira, agronegó- ciamento de bauxita” (Muniz, 2013). cio”. Segundo o texto, por trás des- A adesão ao ponto de vista da em- sas atividades, “o que visa o governo presa surge já na manchete, uma é utilizar os lucros das exportações vez que a chamada não menciona a das riquezas da Amazônia, em vista origem da informação – algo como do crescimento econômico do país. “diz diretor da Alcoa” –, sugerindo Os povos da Amazônia não entram que a manchete é o resultado de nas preocupações do governo nacio- um trabalho de apuração do jornal, nal” (Sena, 2013). Em contrapartida, e não uma afirmação de uma fonte em artigo assinado por José Carlos específica. O alinhamento do jornal Lima, pré-candidato do Partido Ver- com a empresa prossegue no corpo de (PV) ao governo do Pará, e veicu- do texto, quando o jornalista fala lada pelo mesmo jornal, vê-se como que o preço seria “um dos maiores não se questiona a forma como os vilões na produção de energia do projetos são implementados: país” e que a porção oeste do estado do Pará “já provou que possui voca- O Pará caminha para ser o maior ção para receber uma indústria de produtor nacional de energia hi- beneficiamento de bauxita” (Idem, droelétrica do Brasil. Acontece que grifo nosso). Indica também que a a energia gerada pela força dos nos- Alcoa “faz a sua parte”, buscando sos rios, movimenta a máquina eco- reduzir o consumo de energia nas nômica dos estados do centro-sul. operações e, finalmente, conclui: O imposto da energia é recolhido “Apesar dos desafios encontrados nos estados onde se destina a ener- nos últimos anos, a Alcoa emprega gia produzida. Aqui, embaixo dos mais de seis mil pessoas e proporcio- linhões ou perto das barragens, pa- na benefícios sociais, ambientais e econô- gamos um preço alto pela nossa pró- micos nas comunidades em que está pria energia. Você pretende lutar como inserida” (Idem, grifo nosso). e com quais propostas para que o Pará Nos jornais analisados, as crí- receba os benefícios da produção de sua ticas apresentam-se majoritaria- energia? (Lima, 2013, grifo nosso). mente em textos de opinião, não lastreados em material noticioso Outra peça de O Estado do Tapa- produzido pelos próprios veículos. jós que corrobora o imperativo da O conteúdo publicado acerca dos

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 237 projetos hidrelétricos no Tapajós Entre as peças reproduzidas pela pela Gazeta, por exemplo, divide- Gazeta, figuram também reporta- -se, de um lado, em textos próprios gens exclusivamente baseadas em de natureza predominantemente declarações de fontes governamen- opinativa e, de outro, em reprodu- tais. Em uma delas, reproduzida do ções de textos predominantemente G1, a incorporação do discurso ofi- noticiosos de blogs, grandes meios cial – apresentado como verdade, e agências de notícias, assim como e não como expressão de uma das notas produzidas por instâncias ofi- partes interessadas no processo de ciais e ONGs. Dos 39 textos desse construção das UHEs – é evidente jornal analisados no presente arti- (Estudos, 2013a). O texto em questão go, ao menos 30 provêm de outras noticiava a controversa retomada, fontes. Reproduções de textos da em agosto de 2013, dos levantamen- ONG Terra de Direitos, da revista tos em campo para a elaboração dos Ciência Hoje e de instâncias como estudos de impacto ambiental e re- a Procuradoria da República no latórios de impacto ambiental (EIA/ Pará introduzem notas críticas à Rima) para a obtenção de licença cobertura. Predominam, contudo, prévia (LP) para as UHEs São Luís do reproduções da Agência Brasil e do Tapajós e Jatobá, suspensos desde Valor, e registram-se, ainda, textos junho daquele ano, em decorrência reproduzidos de veículos mais cla- da pressão contrária aos empreen- ramente alinhados com o campo dimentos, notadamente por parte pró-barragem. Um deles, por exem- do povo Munduruku. Objetivos ale- plo, reproduz matéria de AgroNotí- gados por fontes oficiais tornam-se cias, portal especializado do jornal objetivos de fato e previsões apre- SóNotícias, de Mato Grosso, que tem sentadas por essas mesmas fon- entre seus anunciantes entidades tes tornam-se o próprio futuro, de como o Sindicato Rural de Sinop modo que a matéria mais se asse- e o Sindicato das Indústrias Ma- melha a um press release. deireiras do Norte de Mato Grosso (Sindusmad) (Produtores, 2012). A A continuidade dos estudos é necessária matéria em questão é uma defesa para a complementação de levanta- enfática da instalação de eclusas mentos de dados e coletas de cam- durante as construções das UHEs pos na região que não foram con- São Luiz do Tapajós, Jatobá e Cha- cluídos anteriormente nos períodos corão, para permitir o estabeleci- de vazante, seca e enchente. Os tra- mento de hidrovias. balhos precisam ser realizados nesses

238 Alarcon, Guerrero e Furuie períodos para aproveitar as janelas para acompanhar o trabalho dos pesqui- hidrológicas do rio, evitando assim sadores não tem o objetivo de intimidar que os estudos sofram atraso de um ano ou interferir no cotidiano do Povo Mun- já que essas janelas só ocorrem uma duruku e outras comunidades indígenas, vez a cada doze meses. tradicionais e extrativistas que habitam a […] região do Tapajós. Não houve e, não ha- A investigação possibilitará um planeja- verá durante todo o período de avaliação mento ambiental detalhado que consi- ambiental, ingresso de pesquisadores ou dere a construção de usinas e de outros de equipes de segurança em terras indí- empreendimentos (Idem, grifos nossos). genas ou comunidades locais. […] Note-se que, em abril daquele Os profissionais que estão partici- ano, noticiando outra suspensão pando da avaliação da biodiversida- dos mesmos estudos, o jornal repro- de no Tapajós são ligados a institutos duzira, sem crédito de autoria, um de pesquisa e universidades de todo texto da assessoria de comunicação o País, em sua maioria biólogos. Mui- 12 social do MME (Prossegue, 2013) . tos são doutores e mestres formados pelas 12. O Estado do Tapajós Ao fazê-lo, a Gazeta – talvez inadver- melhores instituições de ensino do Bra- fez exatamente o mesmo, com a notícia tidamente – informava seus leitores sil, com grande experiência em pesquisa “AGU irá recorrer de acerca de um acontecimento muito e em estudos ambientais (Idem, grifos liminar que determina interrupção de estudo conflituoso, apresentando apenas nossos). ambiental no Tapajós” a versão de um dos lados. Falando (AGU irá, 2013). mais claramente, oferecia uma peça Prática análoga também foi iden- de propaganda estatal travestida de tificada na análise da cobertura de O notícia. Cabe reproduzir algumas Estado do Tapajós, referente a um as- passagens do texto: pecto do episódio acima. Nesse caso, a versão oficial emanava do campo Para garantir o apoio logístico e a se- empresarial, e não de um órgão do gurança dos pesquisadores e auxilia- governo. No mesmo endereço da res, o trabalho conta com a colabora- internet onde se apresenta uma ção de equipes da Polícia Federal, da reportagem do jornal sobre audiên- Polícia Rodoviária Federal e da Força cia pública voltada à discussão das Nacional de Segurança Pública. Isso UHEs na bacia do Tapajós, é repro- porque os estudos serão realizados duzida, na sequência, matéria cuja durante cerca de 30 dias, inclusive autoria é simplesmente indicada em período noturno. Portanto, a ini- como de “Felipe Figueiredo, FSB Co- ciativa de deslocar equipes de segurança municações”. Em realidade, a FSB

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 239 Comunicações é uma empresa de nalistas do quadro de O Estado e 16 assessoria de imprensa que man- eram reproduções de outras fontes, tém, entre seus clientes, o Grupo de entre agência de notícias e assesso- Estudos Tapajós, consórcio de em- rias de comunicação de empresas presas responsável pelos estudos de ou do governo. Embora a proporção viabilidade do complexo hidrelétri- de conteúdo produzido pelo pró- co do Tapajós (CHT). A matéria, in- prio veículo seja maior que a cons- titulada “Eletrobras diz que última tatada para a Gazeta, mantém-se a palavra sobre usinas do Tapajós é baixa participação de material noti- do Ibama”, ressalta o caráter demo- cioso produzido pelo próprio veícu- crático da audiência, afirmando que lo. Além disso, entre as 14 matérias “os participantes elogiaram a opor- jornalísticas, nenhuma envolveu tunidade de diálogo sobre as usi- pesquisa jornalística mais aprofun- nas”, bem como exalta a importân- dada, que se beneficiasse da proxi- cia dos estudos para o processo de midade espacial para, por exemplo, implementação da obra, afirmando fazer contato com as comunidades que “resultarão num conjunto de atingidas pelas UHEs. informações científicas de um úni- O Impacto, por sua vez, apresen- co empreendimento que balizarão tava entre os 40 textos analisados os debates nas audiências públicas 25 originados fora da redação. Tais obrigatórias que serão agendadas matérias incluíam reproduções in- pelo Ibama [Instituto Brasileiro do tegrais ou parciais de press releases e Meio Ambiente e dos Recursos Na- notícias de outros veículos. Entre os turais Renováveis], bem como da- fornecedores de texto destacam-se rão base à decisão do órgão sobre a as assessorias de imprensa da Norte concessão das licenças” (Figueiredo, Energia (três ocorrências) e do Gru- 2013). po de Estudos Tapajós (duas), que, Em O Estado do Tapajós, a propor- assim como nos outros dois veícu- ção entre os tipos de conteúdo en- los, não são devidamente identifica- contrada na pesquisa para este arti- dos como origem das matérias em go é ligeiramente distinta daquela questão. Uma rápida busca na inter- referente à Gazeta. De 46 textos ana- net dos nomes dos autores, contu- lisados, 16 eram artigos opinativos do, evidencia a filiação aos consór- produzidos para o próprio jornal cios. Outro texto, por sua vez, era (em sua maior parte, oriundos de reprodução de material provenien- dois colunistas, apenas), 14 eram te do Movimento Xingu Vivo Para notas ou matérias feitas por jor- Sempre (MXVPS) e, somente nesse

240 Alarcon, Guerrero e Furuie caso, a fonte foi nomeada. Já as 15 sobre um tema que envolve múlti- matérias produzidas pela redação plas visões e grupos interessados é de O Impacto trazem certa diversida- reduzido a uma discussão dicotômi- de de perspectivas. Três entrevistas ca e assimétrica, em que um campo com a liderança de um movimento de ideias não apenas vê restrito seu social local, Edilberto Sena, e a co- espaço para exposição de argumen- bertura de um seminário e de um tos, como frequentemente acaba protesto organizados por opositores caracterizado, de forma unilateral das UHEs – incluindo a publicação e desfavorável, pelos que a ele se de uma carta de demandas – indi- opõem. A cobertura jornalística he- cam momentos em que o lado ge- gemônica dos projetos hidrelétricos ralmente ignorado teve suas aspira- na bacia do Tapajós, como se viu, ções e críticas representadas. tem oferecido vasto espaço ao cam- De todo modo, quando se consi- po favorável aos barramentos – tor- deram os três jornais em conjunto, nando ainda mais amplo o alcance parece altamente improvável a pos- de seu discurso –, ao tempo em que sibilidade de a imprensa de alcance contribui para silenciar o campo estadual e nacional ser pautada pela contrário. imprensa local, com uma aborda- Sem levar a cabo uma análise sis- gem que documentasse os impactos temática da cobertura de imprensa concretos dos projetos e conside- dos AHEs, o que buscamos, neste arti- rasse perspectivas locais a esse res- go, foi indicar alguns procedimentos peito, prestando importante contri- operados pelos veículos jornalísticos buição ao debate público. Embora selecionados (procedimentos varia- pudesse pôr peso nos problemas en- dos, em função dos perfis das publi- frentados pelas populações locais, cações), que atuam na conformação que teriam oportunidade, assim, de do debate público sobre os empreen- enunciar suas perspectivas políti- dimentos. Considerações mais deti- cas, a maioria das notícias e colunas das em torno da atuação dos meios de opinião reverbera os temas de de comunicação (incluindo o campo política econômica pautados pelos da radiodifusão e veículos de comu- grandes jornais. nicação públicos) a respeito de em- preendimentos de infraestrutura na Considerações finais Amazônia brasileira e também do Os expedientes identificados nos aparato de propaganda oficial pare- veículos de imprensa analisados cem-nos fundamentais para a com- neste artigo ilustram como o debate preensão dos rumos que têm toma-

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 241 do as políticas de “desenvolvimento” ___. 2012b. “Governo quer licitar 8 da região. mil km de linhas de transmissão em 2012”. In: Valor Econômico. São [artigo concluído em dezembro de 2015] Paulo, 5 jan. ___. 2013a. “Indígenas ameaçam Fontes e referências bibliográficas guerra para barrar hidrelétricas A casa da fartura, o Natal e os dados no rio Tapajós”. In: Valor Econômi- do IBGE. 2011. In: Gazeta de Santa- co. São Paulo, 25 fev. rém. Santarém, 23 dez. ___. 2014. “Leilão de usinas do Tapa- A economia engarrafada na terra do jós está ameaçado”. In: Valor Eco- provisório. 2013. In: Gazeta de San- nômico. São Paulo, 8 jan. tarém. Santarém, 17 set. ___. 2013b. “Localização e modelo Agu irá recorrer de liminar que de- de novas usinas desafia país”. In: termina interrupção de estudo Valor Econômico. São Paulo, 10 out. ambiental no Tapajós. 2013. In: O ___. 2012c. “Municípios irão à Justi- Estado do Tapajós. Santarém, 17 abr. ça cobrar obras de Teles Pires”. Alonso, Olivia; Laguna, Eduardo. In: Valor Econômico. São Paulo, 10 2013. “Consumo de alumínio abr. pode subir 3,7%”. In: Valor Econô- ___. 2013c. “Ocupações, como a de mico. São Paulo, 6 jun. Belo Monte, podem se espalhar”. A Plantinha da discórdia avança In: Valor Econômico. São Paulo, 8 no oeste do Pará. Um novo ciclo? maio. 2012. In: Gazeta de Santarém. Santa- ___. 2012d. “Para Funai, usinas hi- rém, 10 fev. drelétricas são caminho irrever- Bermann, Célio. 2012. “Os projetos sível”. In: Valor Econômico. São Pau- das megaobras hidrelétricas na lo, 13 jun. Amazônia: sociedade e ambiente ___. 2012e. “Redução de área de flo- frente à ação governamental”. In: resta é inconstitucional, diz pro- Zhouri, Andréa (org.). Desenvolvi- curador”. In: Valor Econômico. São mento, reconhecimento de direitos e Paulo, 25 maio. conflitos territoriais. Brasília, Asso- ___. 2012f. “Região tem poucas al- ciação Brasileira de Antropolo- deias indígenas”. In: Valor Econô- gia, pp. 66-97. mico. São Paulo, 26 jul. Borges, André. 2012a. “Governo ad- ___. 2012g. “Técnicos do ICMBio mite rever algumas das usinas”. protestam contra usinas no Ta- In: Valor Econômico. São Paulo, 26 pajós”. In: Valor Econômico. São jul. Paulo, 30 jul.

242 Alarcon, Guerrero e Furuie ___. 2012h. “Vila teme impacto de careacanga. 2013. In: O Impacto. obra e expulsa pesquisadores”. In: Santarém, 03 out. Valor Econômico. São Paulo, 25 jul. Consórcio vai recorrer da suspen- Borges, André; Peres, Bruno. 2013. são do licenciamento da UHE “Indecisões sobre áreas indíge- Teles Pires. 2012. In: CanalEnergia. nas atrasam usinas”. In: Valor Eco- Rio de Janeiro, 27 mar. nômico. São Paulo, 5 jun. Dutra, Manuel. 2013a. “Cargill e Brasil. Ministério de Minas e Ener- Vale: apito, poeira e fumaça”. In: gia. Empresa de Pesquisa Energé- Gazeta de Santarém. Santarém, 15 tica. 2011. Plano Decenal de Expan- maio. são de Energia 2020. Brasília. ___. 2013b. “O motor de luz do mi- Canazio, Alexandre. 2012. “EPE rea- nistro Edison Lobão e o desprezo liza estudos de viabilidade de 13 pela Amazônia”. In: Gazeta de San- hidrelétricas”. In: CanalEnergia. tarém. Santarém, 8 nov. Rio de Janeiro, 21 maio. Eletrobras defende o conceito de Cargill e Vale: apito, poeira e fu- usinas-plataforma. 2012. In: Canal-​ maça. 2013. In: Gazeta de Santa- Energia. Rio de Janeiro, 20 jun. rém. Santarém, 15 maio. Esteva, Gustavo. 2000. “Desenvol- Castro, Nivalde J.; Dantas, Gui- vimento”. In: Sachs, Wolfgang lherme de A.; Leite, André da (org.). Dicionário do desenvolvimento: S. 2012. “A real questão de Belo guia para o conhecimento como Monte: ter ou não ter”. In: Valor poder. Petrópolis, Vozes. Econômico. São Paulo, 3 jan. Estudos ambientais no rio Tapajós Chiaretti, Daniela. 2013a. “Área serão retomados a partir de hoje. central da bacia do Tapajós tem 2013a. In: Gazeta de Santarém. San- de ser preservada, diz estudo”. tarém, 12 ago. In: Valor Econômico. São Paulo, 16 Estudos no Tapajós prosseguem a maio. partir desta segunda-feira, 12. ___. 2013b. “O discurso, as entre- 2013b. In: CanalEnergia. Rio de Ja- linhas e os fantasmas”. In: Valor neiro, 12 ago. Econômico. São Paulo, 24 jun. Facchini, Claudia. 2013. “Lucro da ___. 2013c. “Usinas no Tapajós ge- EDP aumenta 20 vezes, para R$ ram tensão entre índios e poli- 199 milhões”. In: Valor Econômico. ciais”. In: Valor Econômico. São Pau- São Paulo, 31 out. lo, 1 abr. Fernandes, Ana. 2013a. “Alstom Consórcio apresenta projeto hi- tem queda na receita no Brasil, drelétrico de São Manoel em Ja- mas dobra a carteira”. In: Valor

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 243 Econômico. São Paulo, 9 maio. Locatelli, Carlos Augusto. 2011. Co- ___. 2013b. “Andritz busca a lideran- municação e barragens: o poder da ça no Brasil”. In: Valor Econômico. comunicação das organizações e São Paulo, 21 jan. da mídia na implantação da Usi- Figueiredo, Felipe. 2013. “Eletro- na Hidrelétrica Foz do Chapecó bras diz que última palavra sobre (Brasil). Tese de doutorado (Co- usinas do Tapajós é do Ibama”. municação e Informação). Porto In: O Estado do Tapajós. Santarém, Alegre, Universidade Federal do 2 set. Rio Grande do Sul. Godoi, Mauricio. 2013. “País sofre Medeiros, Carolina. 2013. “Meio com a falta de novas hidrelétri- ambiente: o outro lado das hidre- cas com reservatórios”. In: Cana- létricas”. In: CanalEnergia. Rio de lEnergia. Rio de Janeiro, 02 set. Janeiro, 2 set. González Casanova, Pablo. 2006. ___. 2012. “Reservatórios: flexibili- “Colonialismo interno [una re- dade na operação”. In: CanalEner- definición]”. In: Boron, Atilio gia. Rio de Janeiro, 13 abr. A.; Amadeo, Javier; González, Menos resíduos e mais segurança Sabrina (org.). La teoría marxista são as vantagens dos canteiros hoy: problemas y perspectivas. de obras. 2012. In: Valor Econômico. Buenos Aires, Consejo Latinoa- São Paulo, 21 mar. mericano de Ciencias Sociales, Ministério Público quer suspensão pp. 409-434. de licenciamento e da obra da Grupo de estudos Tapajós disponi- UHE Teles Pires. 2012. In: CanalE- biliza hotsite. 2013. In: CanalEner- nergia. Rio de Janeiro, 19 mar. gia. Rio de Janeiro, 27 maio. Mma atende mpf/pa e suspende Laguna, Eduardo. 2012. “Copel es- licenciamento da UHE Cachoeira pera antecipar fornecimento da dos Patos. 2013. In: CanalEnergia. usina Colíder”. In: Valor Econômi- Rio de Janeiro, 25 set. co. São Paulo, 12 mar. Montenegro, Sueli. 2012b. “Ques- Leonel, Mauro. 1998. A morte social tão indígena se opõe ao setor”. dos rios. São Paulo, Perspectiva/ In: CanalEnergia. Rio de Janeiro, Instituto de Antropologia e Meio 21 set. Ambiente/Fapesp. ___. 2012a. “UHE São Manoel: difícil Lima, José Carlos. 2013. “Quem será caminho para o leilão”. In: Canal-​ o próximo governador do Pará?”. Energia. Rio de Janeiro, 13 jul. In: O Estado do Tapajós. Santarém, Moreira Leite, Paulo. 2013. “Quem 10 set. perde na guerra de Belo Monte”.

244 Alarcon, Guerrero e Furuie In: IstoÉ. São Paulo, 30 out. Tapajós. 2013. In: Gazeta de Santa- MPF interpõe recurso ao STJ pe- rém. Santarém, 10 abr. dindo reconsideração de liminar Rittner, Daniel. 2012. “Licença fica que permite pesquisa no rio Ta- mais difícil em terras indígenas”. pajós. 2013. In: CanalEnergia. Rio In: Valor Econômico. São Paulo, 12 de Janeiro, 23 maio. abr. MPF pede suspensão do licencia- Rockmann, Roberto. 2013a. “Defini- mento da UHE São Luiz do Tapa- ção de base”. In: Valor Econômico. jós. 2012. In: CanalEnergia. Rio de São Paulo, 12 ago. Janeiro, 27 set. ___. 2013b. “É preciso avançar com Muniz, Alaílson. 2013. “Energia cara hidrelétricas”. In: Valor Econômico. inviabiliza beneficiamento de São Paulo, 2 set. bauxita”. In: O Estado do Tapajós. ___. 2013c. “Futuro agora”. In: Valor Santarém, 12 jun. Econômico. São Paulo, 26 jul. Pinto, Lúcio Flávio. 2013a. “Belo Salomon, Marta. 2010. “Construção Monte: a guarda do paraíso”. In: de usina era tabu até menos de O Estado do Tapajós. Santarém, 15 um mês atrás”. In: O Estado de S. jun. Paulo. São Paulo, 6 maio. ___. 2013b. “Eletronorte: em 40 anos, Sena, Edilberto. 2013. “Direitos hu- uma destinação colonial”. In: O Es- manos e desenvolvimento na tado do Tapajós. Santarém, 6 set. Amazônia”. In: O Estado do Tapajós. Pires, Adriano et al. [201?.]. Setor elé- Santarém, 15 maio. trico brasileiro: passado e futuro: STF suspende decisão que deter- 10 anos. Rio de Janeiro, Editora minou paralisação das obras da CanalEnergia. hidrelétrica em MT. 2013. In: STF Polito, Rodrigo. 2013. “Ex-dona da Notícias. Brasília, 27 set. Light, a francesa EDF volta a dis- Vialli, Andrea. 2013. “ONGs e em- putar ativos no Brasil”. In: Valor presas se mobilizam para prote- Econômico. São Paulo, 20 set. ger a água”. In: Valor Econômico. ___. 2012. “Neoenergia esbarra em São Paulo, 22 mar. restrição ambiental em Teles Pi- Zhouri, Andréa. 2012. “Belo Monte: res”. In: Valor Econômico. São Paulo, crise do sistema ambiental e da 28 mar. democracia”. In: Zhouri, Andréa Produtores querem eclusas junto (org.). Desenvolvimento, reconheci- com hidrelétricas. 2012. In: Gaze- mento de direitos e conflitos territo- ta de Santarém. Santarém, 6 jul. riais. Brasília, Associação Brasilei- Prossegue estudo ambiental no ra de Antropologia, pp. 45-65.

Imprensa e barragens na bacia do Tapajós 245

Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas A flexibilização do licenciamento ambiental por via judicial Rodrigo Oliveira e Flávia do Amaral Vieira

Poder Judiciário tem se cons- do de impacto ambiental (EIA); não tituído como importante elaboração ou irregularidade do es- campo de disputa em torno tudo de componente indígena (ECI); Oda legalidade dos megaprojetos na ausência de consulta prévia, livre Amazônia brasileira. Apesar de con- e informada aos povos indígenas e 1. Há discussão em nível teórico e nos tarmos com um sistema jurídico comunidades tradicionais possivel- tribunais sobre a que, em tese, atende às necessidades mente impactados; e nulidade das natureza jurídica da suspensão de liminar, de prestação jurisdicional pela ga- licenças concedidas. se é um recurso rantia de direitos, ele tem sido alvo Ocorre que a discussão da lega- jurídico, assim derivado de investidas de distintos atores in- lidade desses projetos no âmbito do direito ao duplo grau de jurisdição, teressados no modelo de desenvolvi- do Judiciário – ou seja, o debate de ou se é um incidente mento econômico imposto pelo Es- mérito – vem sendo prejudicada pelo processual com efeitos de contracautela, que tado e por grandes grupos privados. uso da suspensão de liminar, instru- se diferencia do recurso No caso das grandes usinas hi- mento judicial que permite suspen- pela peculiaridade de não discutir o mérito drelétricas (UHEs) planejadas para der decisões e sentenças contrárias da ação, tendo apenas a bacia do rio Tapajós (Teles Pires, ao poder público quando estejam efeito de sustação da São Manoel e São Luiz do Tapajós, presentes os motivos políticos ense- liminar concedida quando identificados por exemplo), somente o Ministério jadores, quais sejam evitar “lesão à os critérios dispostos Público Federal (MPF) apresentou, ordem pública” e “lesão à economia pela lei. Tal discussão não é objeto deste até novembro de 2014, 14 ações judi- pública”, sem que o assunto de fun- artigo, de forma que ciais questionando aspectos cruciais do seja debatido1. nos reservamos a do licenciamento ambiental, em Tomando como universo essas 14 tratar a suspensão de liminar como instituto especial: vícios e carências do estu- ações propostas, este artigo tem por processual.

247 2. A suspensão de fim o estudo das decisões judiciais empresas de capital privado – como liminar e a suspensão em suspensão de liminar. Em um a mineradora Vale S.A., no caso da de segurança (SS) se equivalem em primeiro momento, analisaremos duplicação da Estrada de Ferro Ca- procedimento e como os juízes definem os termos rajás – fizessem uso do recurso, sob finalidade. No entanto, “lesão à ordem pública” e “lesão à o argumento de que prestariam ser- a segunda se aplica especificamente às economia pública”, identificando-se viços de “interesse público” (Brasil, decisões em mandado um padrão nas definições. Em se- Justiça Federal, Tribunal Regional de segurança, conforme 4 previsto no artigo 15 guida, tais definições serão proble- Federal da Primeira Região, 2013b) . da Lei nº12.016/2009. matizadas, considerando sua reper- Enquanto decisões comuns perma- | N.E. Ver ainda, neste cussão para a garantia de direitos necem válidas até que sobrevenha volume, “A suspensão de segurança: peixe e da legalidade do licenciamento nova decisão (provisória ou definiti- fora d’água diante ambiental de grandes barragens no va), a decisão em SLAT perdura até da Constituição democrática”, de Flávia Brasil. que o processo principal tenha uma Baracho Trindade et al. sentença de caráter irrecorrível (Lei Suspensão de liminar e nº8.437/1992, artigo 4º, § 9º). antecipação de tutela Essas características tornam A suspensão de liminar e antecipa- a SLAT um fator de desequilíbrio ção de tutela (SLAT)2 é um instru- processual em favor do Estado. Ve- mento judicial que permite ao pre- jamos sua aplicação nos processos 3. “Art. 4º Compete sidente de um tribunal suspender a referentes às UHEs previstas para ao presidente do execução de sentenças e liminares a bacia do Tapajós. Do total de 14 tribunal, ao qual couber o conhecimento assinadas por juízes de instância ações propostas, 12 tiveram decisões do respectivo inferior para evitar “grave lesão à liminares, das quais nove foram fa- recurso, suspender, ordem, à saúde, à segurança e à eco- voráveis ao MPF5. Isso significa que em despacho fundamentado, a nomia públicas” (Lei nº8.437/1992, em 75% das ações decididas, o Poder execução da liminar artigo 4º)3. Judiciário reconheceu que o licen- nas ações movidas contra o Poder Público Diferentemente dos instrumen- ciamento desrespeitou as leis brasi- ou seus agentes, a tos processuais comuns, que podem leiras. Essas decisões determinaram requerimento do Ministério Público ser manejados por qualquer parte a suspensão do licenciamento – ou ou da pessoa jurídica do processo, a SLAT só pode ser uti- da obra, conforme o caso – até que de direito público lizada por pessoa jurídica de direito a ilegalidade fosse corrigida. No en- interessada, em caso de manifesto interesse público (União, estados, municípios, tanto, nenhuma delas chegou a ser público ou de flagrante autarquias e fundações públicas) aplicada, pois foram suspensas via ilegitimidade, e para evitar grave lesão e pelo Ministério Público. Embora SLAT, sem qualquer alteração quan- à ordem, à saúde, à a lei só preveja esses dois casos de to à ilegalidade. segurança e à economia legitimidade ativa, os tribunais brasi- Outro importante indicador prá- públicas.” leiros admitiram recentemente que tico de desequilíbrio processual é a

248 Oliveira e Vieira diferença no tempo médio de julga- nheçam ilegalidade nas barragens 4. Note-se que é comum mento das decisões liminares e das é a possibilidade de “lesão à ordem nas regiões onde são implementados decisões em SLAT. Para calcular essa pública” e “lesão à economia pú- grandes projetos – diferença, consideramos o intervalo blica”. Os termos “ordem pública” muitas vezes marcadas pela ausência do Estado entre a data da autuação6, seja do e “economia pública” são conceitos e da prestação de processo principal ou da SLAT, e a jurídicos indeterminados – isto é, eles serviços públicos – que data da decisão judicial, excluindo- não possuem conteúdo determina- haja confusão entre o papel do Estado, do -se o primeiro dia e incluindo-se o do a priori, cabendo aos julgadores poder público e das último. No universo considerado, atribuírem sentido a partir da in- empresas privadas. Quando as empresas as liminares demoraram em média terpretação em um caso concreto. se instalam, elas são 160,3 dias para serem decididas, Por isso, é fundamental investigar obrigadas a prover enquanto as decisões em SLAT, ape- como os juízes definem tais expres- obras de infraestrutura e/ou oferecer serviços nas 3,9 dias. Chama atenção a ação sões. Assim, passamos a analisar as públicos, que são judicial que contesta os impactos SLAT das barragens previstas na ba- condicionantes legalmente da UHE São Manoel sobre o povo cia do Tapajós. impostas, fruto da indígena em isolamento voluntá- responsabilidade rio referido como Isolados Apiaká jurídica pelos impactos Flexibilização do licenciamento socioambientais (Brasil, Ministério Público Federal, ambiental por via judicial decorrentes da própria 2013c). A liminar que exigiu a para- Após o levantamento da íntegra natureza impactante dos seus projetos. lização da obra levou 144 dias para de todas as decisões, procedeu-se à Historicamente, ser decidida (a ação foi autuada em leitura dos argumentos utilizados tem-se percebido 5 de dezembro de 2013 e a liminar, pelos juízes. Os argumentos foram que essas medidas compensatórias não concedida em 28 de abril de 2014), transcritos para um quadro e siste- conseguem fazer enquanto a SLAT foi autuada e de- matizados a partir de três grupos: i) frente aos impactos provocados pelos cidida no mesmo dia (26 de maio definição de lesão à ordem pública; empreendimentos. de 2014) (Brasil, Justiça Federal, Tri- ii) definição de lesão à economia bunal Regional Federal da Primeira pública; e iii) argumentos relaciona- 5. Decisão liminar é Região, 2014). dos ao mérito da ação principal, ou a decisão provisória proferida no início do Embora esse debate processual seja, à existência ou não de vício no processo; tem caráter seja relevante, não nos aprofunda- licenciamento ambiental. de urgência e objetiva remos nele aqui, já que o presente Essa metodologia permitiu ob- evitar a consumação de um dano para a parte artigo se propõe a refletir sobre o servar que o mérito não é discutido autora: “Art. 273 - O juiz conteúdo das decisões em SLAT. Cir- satisfatoriamente, mas de maneira poderá, a requerimento da parte, antecipar, cunscrevendo a análise às nove de- limitada e subordinada à argumen- total ou parcialmente, cisões mencionadas, verifica-se que tação de lesão à ordem e economia os efeitos da tutela o fundamento jurídico acionado públicas, o que se justifica pela na- pretendida no pedido inicial, desde que, para suspender decisões que reco- tureza legal da SLAT. Em três casos, existindo prova

Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas 249 inequívoca, se convença não há qualquer argumento de mé- A razão de decidir das SLAT (ratio da verossimilhança rito (Brasil, Justiça Federal, Supre- decidendi), isto é, o argumento jurí- da alegação e: I - haja fundado receio de mo Tribunal Federal, 2013; Brasil, dico que fundamenta a decisão, é a dano irreparável ou de Justiça Federal, Tribunal Regional possibilidade de “lesão à ordem pú- difícil reparação” (Lei Federal nº5.869/1973). Federal da Primeira Região, 2013c, blica” e “lesão à economia pública”. O levantamento foi 2014). O tempo médio de decisão Nos casos estudados, as expressões realizado em 1 nov. 2014. (3,9 dias) sugere a impossibilida- são empregadas como sinônimos, 6. Data em que de de discutir os temas complexos o que denota ausência de critérios o processo é formado, recebendo que envolvem as ações judiciais, e conceituais que orientem a inter- uma numeração os próprios magistrados enfatizam pretação, abrindo espaço para a padronizada. que a discussão de mérito é restrita. confusão entre interesses coletivos 7. “Por outro lado, como se sabe também, o Portanto, no julgamento da SLAT, e interesses do Estado. Nota-se tam- aproveitamento do a discussão sobre a violação de di- bém que os intérpretes não fazem riquíssimo potencial reitos é residual e não repercute so- referência à gravidade da lesão, qua- hidrelétrico do País constitui imperativo de bre a decisão a ser tomada, o que é lificador exigido pela lei. ordem prática, que não chamado no direito de argumento As decisões partem do pressu- pode ser desprezado em uma sociedade em obiter dictum. posto de que o Brasil vive uma crise desenvolvimento como Esse aspecto tem produzido deci- na oferta de energia e, consequente- a nossa, cuja demanda sões paradoxais, como o julgamento mente, todas as UHEs previstas para por energia cresce dia a dia de forma da SLAT da UHE Barra Grande, cons- a bacia do Tapajós são consideradas exponencial. Afinal, truída no rio Pelotas (Santa Catari- cruciais para ampliação do parque não se pode olvidar 7 a crise registrada no na). No caso, mesmo diante de uma energético . Para os magistrados, as setor elétrico que incontroversa violação de direitos – decisões suspensas causam lesão à ocorreu em 2001, a pois o próprio empreendedor (Ener- ordem e economia públicas unica- qual tantos transtornos causou aos brasileiros” gética Barra Grande S.A.) admitiu a mente por reconhecerem a ilegali- (Brasil, Justiça Federal, fraude no EIA, ao assinar um termo dade e ordenarem a interrupção do Supremo Tribunal Federal, 2013: 2-3). de ajustamento de conduta (TAC) –, licenciamento ou da obra, atrasan- “Os graves prejuízos o Poder Judiciário concedeu a SLAT e do o cronograma energético brasi- que a decisão autorizou o enchimento do reserva- leiro8. Esse é o padrão de definição ocasiona, somados aos pontos aqui tório da barragem (Brasil, Justiça Fe- identificado. levantados relativos deral, Tribunal Regional Federal da Embora a existência da crise ao mérito da ação principal, evidenciam Quarta Região, 2004). Com isso, con- energética seja fato complexo – que, a necessidade de sumou dano ambiental irreversível a para ser comprovado, demandaria suspensão da decisão, em face da sua aptidão áreas remanescentes de Mata Atlân- não só confrontação dos valores de atentar contra a tica em estágio primário de conser- da energia produzida e consumi- ordem e a econômica vação, desrespeitando a proibição da, mas discussão sobre fontes al- públicas, máxime por retardar as medidas legal do Decreto Federal nº750/1993. ternativas, diversificação da matriz

250 Oliveira e Vieira energética, linhas de transmissão, uma das mais avançadas do mundo. tangentes à ampliação desperdício, eficiência, impactos Ela se aplica a todos os empreendi- do parque energético do País, previsto no etc. –, essa informação é veiculada mentos ou atividades que empre- Plano de Aceleração unilateralmente pelos Estados, am- gam recursos naturais ou que pos- do Crescimento (PAC 2), empreendimentos plificada pela imprensa hegemôni- sam causar algum tipo de poluição energéticos ca e reproduzida pelos magistrados ou degradação ao meio ambiente. O competitivos, sem exigência de prova ou reflexão fato de o empreendimento atender renováveis e de baixa emissão de carbono, mais consistente. eventualmente ao interesse públi- que movimentam Mas, para os fins deste artigo, va- co não o autoriza a desrespeitar as bilhões de reais e representam milhares mos admitir que a crise energética e regras de controle. Quando, através de empregos diretos a ameaça de apagão sejam fatos notó- da SLAT, afastam-se os efeitos de e indiretos” (Brasil, Justiça Federal, Tribunal rios, verdades que dispensam produ- decisão que reconhecia irregulari- Regional Federal da ção de prova, segundo nosso Códi- dades, sinaliza-se que os empreen- Primeira Região, 2012: go de Processo Civil9. Sendo assim, dimentos destinados à expansão da 7). “[A decisão] atenta contra a ordem e a toda obra direcionada à ampliação oferta energética não estão sujeitos economia públicas, da oferta de energia, como é o caso às normas do licenciamento. sobretudo em face da realidade do setor das UHEs, atende à ordem e econo- O que resulta dessa prática é a energético do País, mia públicas. Os magistrados consi- concretização da obra questionada, em que a demanda deraram que as decisões violaram a que se transforma em fato consu- de energia equivale à oferta desse insumo, ordem e economia públicas, por or- mado, pela própria demora judicial ou até mesmo já a denarem a interrupção do licencia- que representa o trânsito em julga- supera. Já a suspensão do procedimento mento e da obra das barragens. Essa do de uma decisão de mérito, único [leilão da UHE Teles definição de lesão à ordem e econo- meio de cessar os efeitos da SLAT. O Pires], a pretexto de mia públicas formulada pelos juízes sistema jurídico nacional se mostra salvaguardar o meio ambiente, traduz é genérica, a ponto de justificar a incapaz de intervir no planejamento medida precipitada suspensão de toda decisão contrária energético e econômico do governo, e excessiva – sem observância do às UHEs. Pelo raciocínio empregado, mesmo que para garantir o respeito princípio da enquanto perdurar a crise energéti- à Constituição e às leis vigentes. razoabilidade, que ca, o desrespeito ao licenciamento deve nortear todas as decisões judiciais –, ambiental está judicialmente auto- Considerações finais capaz de atentar contra rizado e normas jurídicas válidas se A SLAT tem sido bastante critica- a ordem e a economia públicas, máxime por tornam ineficazes. É a flexibilização da e denunciada por organizações retardar as medidas do licenciamento ambiental por via e movimentos sociais, como lei de tendentes à ampliação do parque energético judicial, sem necessidade de modifi- exceção e como violação de direitos do País” (Brasil, Justiça cação legislativa. humanos no caso concreto. O Esta- Federal, Tribunal A legislação brasileira sobre li- do brasileiro foi questionado publi- Regional Federal da Primeira Região, cenciamento ambiental é tida como camente em audiência na Comissão 2010: 7).

Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas 251 8. “No meu entender, Interamericana de Direitos Huma- taria uma tentativa de mudança interromper o nos (CIDH), em Washington (EUA), na legislação – com consequências planejamento do Governo destinado ao no dia 28 de março de 2014, por jurídicas (declaração de inconstitu- setor energético do utilizar a SLAT (OEA critica, 2014)10. cionalidade, violação do princípio país, estratégico para Organizações de defesa de direitos da proibição do retrocesso ecológi- o desenvolvimento da nação, causa humanos solicitaram à CIDH que co, desrespeito às leis internacio- grave lesão à ordem analisasse o instrumento à luz da nais ratificadas pelo país) e políticas pública, em sua esfera administrativa, Convenção Americana de Direitos (prejuízo à imagem do governo) –, o especialmente por Humanos, declarando sua incom- Poder Executivo adota uma série de poder comprometer a prestação dos serviços patibilidade e requerendo ao Brasil mecanismos administrativos e judi- públicos que dependem sua abolição. ciais que enfraquecem as normas dessa fonte de energia” Nos casos referentes às barragens de comando e controle do licencia- (Brasil, Justiça Federal, Superior Tribunal de previstas para a bacia do Tapajós, o mento e viabilizam a implantação Justiça, 2013: 9). Judiciário deixou de atuar como po- dos projetos extrativistas. 9. “Art. 334 - Não der contramajoritário, em defesa No plano administrativo, ob- dependem de prova dos direitos das minorias, ao impe- serva-se a redução do orçamento os fatos: I – notórios […]” (Lei Federal dir o acesso de grupos vulneráveis e a perda de autonomia de órgãos nº5.869/1973). e vítimas de violações de direitos envolvidos, como o Instituto Brasi-

10. A audiência comple- às garantias judiciais asseguradas leiro de Meio Ambiente e Recursos ta consta no canal da pela liminar suspensa. Distantes Naturais Renováveis (Ibama) e a CIDH no YouTube. Dis- ponível em: radas frente ao discurso construído tos são concedidas em contrarieda- (acesso: 27 abr. 2014). da necessidade de aumento da gera- de aos pareceres técnicos dos espe- 11. Note-se que essa ção de energia11. Esse contexto tem cialistas responsáveis pela análise afirmação vem sendo como base uma opção política esta- dos estudos de impacto. O corpo de contestada, uma vez que, para analistas do tal de desenvolvimento pautado no servidores desses órgãos se mostra planejamento energéti- neoextrativismo, que se traduz na insuficiente para acompanhar e fis- co brasileiro, a energia gerada por essas bar- conversão dos territórios étnicos e calizar a execução das obras. Por ragens não terá como florestas em fronteiras econômicas outro lado, é crescente o número de destino final os pe- para mineração, exploração de pe- TACs, contratos administrativos fir- quenos consumidores individuais, e sim ser- tróleo e agropecuária. mados entre Ministério Público, Es- virá ao capital privado, A ascensão do modelo neoextra- tado e empresas privadas, que mui- notadamente às indús- trias eletrointensivas tivista no Brasil tem sido marcada tas vezes têm por efeito “legalizar” que têm se instalado na pela flexibilização do licenciamen- projetos que violam as leis. região amazônica desde os anos de 1970 to ambiental de maneira sofisticada. Esse cenário de enfraquecimen- (Sevá Filho, 2005: 29-54). Evitando o desgaste que represen- to administrativo tem como um de

252 Oliveira e Vieira seus reflexos a crescente judicia- e antecipação de tutela nº18625- lização do licenciamento ambien- 97.2012.4.01.0000/MT. Brasília, 9 tal. Em julgamentos de mérito, o abr. Judiciário tem reconhecido suces- ___. 2014. Suspensão de liminar e sivas violações às leis. No entanto, antecipação de tutela nº28467- o Poder Executivo vale-se de regras 33.2014.4.01.0000/MT. Brasília, 26 processuais desiguais, como a SLAT, maio. como estratégia para fazer frente à ___. 2011. Suspensão de liminar e judicialização (Silva, 2004) e evitar antecipação de tutela nº45964- que seus projetos sejam embarga- 65.2011.4.01.0000/MT. Brasília, 8 dos, sem que precise corrigir as nov. práticas ilícitas. Conforme se pro- ___. 2013a. Suspensão de liminar e curou demonstrar no presente arti- antecipação de tutela nº55938- go, a interpretação conferida pelos 24.2014.4.01.0000/MT. Brasília, 30 magistrados às expressões “lesão à nov. ordem pública” e “lesão à econo- ___. 2013b. Suspensão de liminar e mia pública” cria uma categoria de antecipação de tutela nº56226- empreendimentos que não estaria 40.2012.4.01.0000/MA. Brasília, obrigada a respeitar as regras do 26 mar. licenciamento, diante da suposta ___. 2013c. Suspensão de liminar e necessidade de expansão do setor antecipação de tutela nº58115- elétrico. 92.2013.4.01.0000/MT. Brasília, 26 nov. [artigo concluído em novembro de 2014] ___. 2013d. Suspensão de liminar e antecipação de tutela nº75520- Referências bibliográficas 44.2013.4.01.0000/MT. Brasília, 12 Brasil. Justiça Federal. Superior Tri- dez. bunal de Justiça. 2013. Suspensão ___. 2010. Suspensão de liminar e de liminar e antecipação de tute- antecipação de tutela nº79621- la nº1745/DF. Brasília, 22 abr. 32.2010.4.01.0000/PA. Brasília, 16 Brasil. Justiça Federal. Supremo dez. Tribunal Federal. 2013. Suspen- Brasil. Justiça Federal. Tribunal são de liminar e antecipação de Regional Federal da Quarta tutela nº722/DF. Brasília, 26 set. Região. 2004. Suspensão de li- Brasil. Justiça Federal. Tribunal minar e antecipação de tutela Regional Federal da Primeira Re- nº2004.04.01.049432-1/SC. Porto gião. 2012. Suspensão de liminar Alegre, 5 nov.

Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas 253 Brasil. Ministério de Minas e Ener- Montgomery, Alexandra; Sampaio, gia. Empresa de Pesquisa Energé- Alexandre; Millikan, Brent; tica. 2013. Plano Decenal de Expan- Chammas, Danilo; Baker, Eduar- são de Energia 2022. Brasília. do; Amorim, Leonardo; Veramen- Brasil. Ministério Público Federal. di, María J.; Amanajás, Roberta; 2012a. Ação civil pública nº3947- Oliveira, Rodrigo. 2014. Situação 44.2012.4.01.3600. Cuiabá, 8 mar. do direito ao acesso à justiça e a sus- ___. 2012b. Ação civil pública nº5891- pensão de decisões judiciais (ação de 81.2012.4.01.3600. Cuiabá, 16 abr. suspensão de segurança) no Brasil. ___. 2011. Ação civil pública nº6910- Relatório apresentado durante o 50.2011.4.01.3603. Sinop, 20 out. 150º período ordinário de sessões ___. 2012c. Ação civil pública nº3883- da Comissão Interamericana de 98.2012.4.01.3902. Santarém, 25 Direitos Humanos. Washington, set. D.C., Justiça Global/Justiça nos ___. 2013a. Ação civil pública Trilhos/Sociedade Paraense de nº13839-40.2013.4.01.3600. Cuia- Direitos Humanos/Terra de Di- bá, 19 set. reitos/Instituto Socioambiental/ ___. 2013b. Ação civil pública Asociación Interamericana para nº14123-48.2013.4.01.3600. Cuia- la Defensa del Ambiente/Inter- bá, 26 set. national Rivers, 28 mar. Dispo- ___. 2013c. Ação civil pública nível em: (acesso: bá, 6 dez. 17 nov. 2014). ___. 2010. Ação civil pública nº33146- Oea critica Brasil por manter le- 55.2010.4.01.3900. Belém, 23 nov. gislação editada na ditadura mi- Brasil. Presidência da República. litar. 2014. In: Correio do Brasil. Rio 1973. Lei Federal nº5.869, de 11 de Janeiro, 29 mar. Disponível jan. Institui o Código de Proces- em: medidas cautelares contra atos (acesso: 27 abr. 2014). do Poder Público e dá outras Sevá, Oswaldo. 2005. “Povos indíge- providências. nas, as cidades, e os beiradeiros

254 Oliveira e Vieira do rio Xingu que a empresa de Silva, Carlos Augusto. 2004. O pro- eletricidade insiste em barrar”. cesso civil como estratégia de poder: In: Sevá Filho, A. Oswaldo (org). reflexo da judicialização da po- Tenotã-Mõ: alertas sobre as conse- lítica no Brasil. Rio de Janeiro, quências dos projetos hidrelétri- Renovar. cos no rio Xingu. São Paulo, In- ternational Rivers Network, pp. 29-54.

Suspensão de liminar e usinas hidrelétricas 255

A suspensão de segurança Peixe fora d’água diante da Constituição democrática Flávia Baracho Trindade, Gustavo Godoi Ferreira, Heidi Amstalden Albertin, Luís Renato Vedovato, Marcelo Brandão Ceccarelli, Maria Carolina Gervásio Angelini, Thaís Temer e Alexandre Andrade Sampaio

m um contexto nacional pauta- Não há dúvidas de que a constru- do por incentivos econômicos e ção de obras desse porte no bioma políticos para a construção de amazônico traz reflexos ambien- Egrandes obras, no marco do Progra- tais altamente preocupantes, que ma de Aceleração do Crescimento deveriam ter sido minuciosamente (PAC), do Plano Nacional de Ener- analisados e levados em conside- gia (PNE) e do Plano Decenal de Ex- ração antes mesmo de se cogitar a pansão de Energia (PDE), surgem elaboração dos planos e programas inúmeras preocupações acerca dos mencionados. Não obstante, não impactos e potenciais danos que está no escopo deste artigo aden- tais empreendimentos podem oca- trar as questões ambientais e anali- sionar, tanto no plano ambiental sar a viabilidade de fontes alterna- quanto em relação aos princípios tivas. O que se pretende é analisar básicos da dignidade humana. o comprometimento político do Ju- Dentre os empreendimentos diciário no planejamento e licencia- planejados e os que já estão sendo mento dessas obras, focando, espe- 1. N.E. Ver ainda, neste construídos, destaca-se uma série de cialmente, a falta de celeridade e a volume, “Suspensão grandes obras na bacia hidrográfica utilização do instituto da suspensão de liminar e usinas do Tapajós, tais como as usinas hi- de segurança (SS)1. hidrelétricas: a flexibilização do drelétricas (UHEs) de São Luiz do Ta- De forma bastante simplificada, licenciamento pajós, Jatobá, Chacorão, Jamanxim, é importante esclarecer que a rea- ambiental por via judicial”, de Rodrigo Cachoeira do Caí, Colíder, Teles Pi- lização de tais obras não prescinde Oliveira e Flávia do res, São Manoel e São Simão Alto. da concessão de licenças ambien- Amaral Vieira.

257 tais por parte do poder público. A ráveis às ações propostas pelo Mi- concessão de tais licenças está – nistério Público, a Advocacia-Geral ou deveria estar – subordinada ao da União (AGU) e as instituições de preenchimento de requisitos, den- direito público vêm se utilizando, tre eles o respeito à legislação bra- de forma política, do instituto da sileira referente ao meio ambiente. SS, visando esvaziar a eficácia das Ao mesmo tempo, deveria se pau- decisões que determinaram a sus- tar por pareceres e recomendações pensão das obras, de forma a dar imparciais elaborados por órgãos continuidade a elas até o término como o Instituto Brasileiro do Meio do processo que busca averiguar as Ambiente e dos Recursos Naturais violações alegadas. Agindo assim, Renováveis (Ibama), o Instituto do procuram obstaculizar por comple- Patrimônio Histórico e Artístico to a garantia do acesso à justiça. Nacional (Iphan) e a Fundação Na- É justamente nesse ponto que se cional do Índio (Funai). Entretanto, tem observado a falta de compro- em inúmeros casos, isso não vem metimento do Poder Judiciário (ao sendo observado. Como relatado menos das instâncias superiores) nas ações judiciais que questionam com a questão, uma vez que, não tais empreendimentos, várias licen- obstante saltarem aos olhos as ile- ças ambientais têm sido aprovadas galidades que permeiam as obras, sob pressão política, em flagran- a SS vem sendo concedida pelos te descumprimento à legislação membros dos tribunais superiores, brasileira. priorizando-se a continuidade das Nesse panorama, o Ministério obras e aspectos econômicos em de- Público vem propondo inúmeras trimento das questões ambientais e ações com o intuito de frear as vio- dos direitos humanos. lações à legislação ambiental. Pro- Os casos das UHEs Teles Pires e postas as ações, cabe ao Poder Judi- São Manoel, que serão melhor abor- ciário exercer corretamente as suas dados oportunamente, são típicos funções, averiguando de forma céle- exemplos dessa situação, na medida re a existência ou não de violações em que, em ambos, é patente a vio- no caso concreto e, em caso positi- lação da legislação ambiental. Tanto vo, determinando a cessação da ile- é assim, que foram ordenadas a pa- galidade constatada. Alguns juízes ralisação das obras de Teles Pires e a proferiram decisões determinando suspensão do leilão de São Manoel. a suspensão de diversas obras. Ocor- Mas, não obstante, a utilização polí- re que, diante de tais decisões favo- tica e indevida da SS proporcionou

258 Trindade et al. a continuidade das obras e a reali- escopo resguardar direito líquido e zação do leilão, mesmo sob o risco certo, violado ou na iminência de de ocasionar danos imensuráveis e ser atacado por ato de uma autori- irreversíveis. dade coatora, sempre com a ressal- Com efeito, o que se busca, aqui, va de que ele é descabido se o direi- é mostrar como a utilização des- to for amparado por habeas data ou se instituto e a sua concessão por habeas corpus. Esse remédio constitu- parte dos presidentes dos tribunais cional se ampara no art. 5º, LXIX, da brasileiros pode delinear uma falta Constituição Federal, sendo regula- de compromisso do Poder Judiciário mentado pela Lei nº12.016/2009. com as questões ambientais e de di- Tal instituto surgiu inicialmente reitos humanos, especialmente dos na Constituição de 1934, que previa, povos indígenas diretamente afeta- em seu art. 113, que: dos pelas construções. Ao mesmo tempo, busca-se também demons- Dar-se-á mandado de segurança para trar o engajamento do Judiciário defesa do direito, certo e incontes- com determinado projeto de políti- tável, ameaçado ou violado por ato ca pública energética. manifestamente inconstitucional Para tanto, inicia-se o trabalho ou ilegal de qualquer autoridade. com uma explicação jurídica sobre O processo será o mesmo do habeas o que constitui a SS, sua regulamen- corpus, devendo ser sempre ouvida tação, aplicabilidade e demais ca- a pessoa de direito público interes- racterísticas, para que seja possível sada. O mandado não prejudica as uma compreensão integral do argu- ações petitórias competentes. mento ora construído. Em seguida, passa-se à exposição dos motivos Posteriormente, em 1936, houve pelos quais se entende tratar-se de o advento da Lei nº191, que passou um instituto político e inconstitu- a regulamentar o mandado de segu- cional. Após, são analisados dois ca- rança constitucional e criou a figura sos em que houve a utilização da SS da SS, tornando possível suspender (os casos Teles Pires e São Manoel) e, a eficácia de uma decisão que con- ao final, observa-se o histórico dos cedesse segurança ao particular, descaminhos de tal recurso. quando ela pudesse ocasionar gra- ve lesão à ordem, à segurança ou à Breve análise do instituto da SS saúde pública. Tal instituto ganhou O mandado de segurança é um re- força na ditadura militar, tendo a médio constitucional que tem como Lei nº4.348/1964 incluído no rol das

A suspensão de segurança 259 hipóteses cabíveis de suspensão curso suspender, em despacho fun- a grave lesão à economia pública. damentado, a execução da liminar Assim, se alguém vier a se socorrer nas ações movidas contra o poder junto ao Judiciário para proteger di- público ou seus agentes, a requeri- reito líquido e certo contra ato de mento do Ministério Público ou da autoridade coatora e for bem suce- pessoa jurídica de direito público dido, alcançando decisão favorável, interessada. Interessante observar é possível que o órgão público lance que a SS só pode ser concedida em mão da SS para afastar a aplicação desfavor da pessoa jurídica de direi- da decisão favorável ao cidadão. to público ou do Ministério Público, Não é difícil entender, portanto, o conforme se depreende do art. 15 da encanto que tal instituto desperta Lei nº12.016/2009, o que demonstra em regimes autoritários. uma clara vantagem recursal para Não obstante, trata-se de um uma das partes: o Estado. Destaca- instituto que ainda existe, mesmo -se que, uma vez negado o pedido após a abertura democrática. A Lei de suspensão, ele poderá ser nova- nº4.348/1964 foi revogada pela Lei mente requerido no mesmo caso, o nº12.016/2009, que passou então a que demonstra seu caráter perma- regular – de forma bastante seme- nente, conforme § 9º do art. 4o da lhante – o instituto da SS, juntamen- Lei nº8.437/1992, no qual se estatui te com outros dispositivos, existen- que, uma vez concedida a suspen- tes na Lei nº8.038/1990, que trata são, ela vigorará até o trânsito em do procedimento nos tribunais su- julgado da ação principal. periores, e na Lei nº8.437/1992, que As tabelas a seguir demonstram aborda a concessão de medidas cau- a estrutura processual atual do man- telares contra o poder público. dado de segurança e da suspensão: A Lei nº8.038/1990, art. 25, § 3º, estabelece que a suspensão de se- gurança “vigorará enquanto pen- der o recurso, ficando sem efeito se a decisão concessiva for mantida pelo Superior Tribunal de Justiça ou transitar em julgado”. Por sua vez, o art. 4º da Lei nº8.437/1992 deter- mina que é competência do presi- dente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo re-

260 Trindade et al. Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição.

§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.

§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1º deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo.

§ 3º A interposição de agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o poder público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.

§ 4º O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida.

§ 5º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a

Lei nº12.016/2009 (mandado de segurança) Lei nº12.016/2009 liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.

Art. 16. Quando o habeas data for concedido e o Presidente do Tribunal ao qual competir o conhecimento do recurso ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, desse seu ato caberá agravo para o Tribunal a que presida. Lei nº9.507/1997 ( habeas data )

Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

§ 1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.

§ 2º O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em setenta e duas horas.

§ 3º Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição.

§ 4º Se do julgamento do agravo de que trato o § 3º resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso

Lei nº8.437/1992 (medidas cautelares contra Lei nº8.437/1992 (medidas cautelares contra atos do poder público) especial ou extraordinário. (Incluído pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)

A suspensão de segurança 261 § 5º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 4º, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra liminar a que se refere este artigo. (Incluído pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)

§ 6º A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.

§ 7º O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida. (Incluído pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)

§ 8º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. (Incluído pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)

§ 9º A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal. (Incluído pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)

Art. 25. Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria constitucional, compete ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, a requerimento do Procurador-Geral da República ou da pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, suspender, em despacho

F e Superior fundamentado, a execução de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança, proferida, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.

§ 1º O Presidente pode ouvir o impetrante, em cinco dias, e o Procurador-Geral quando não for o requerente, em igual prazo.

§ 2º Do despacho que conceder a suspensão caberá agravo regimental.

§ 3º A suspensão de segurança vigorará enquanto pender o recurso, ficando sem efeito, se a decisão concessiva for mantida pelo Superior Tribunal de Justiça ou

Lei nº8.038/1990 (processos perante o (processos perante Lei nº8.038/1990 – ST Tribunal F ederal Supremo 25 art. Tribunal de Justiça – STJ), transitar em julgado.

Art. 297. Pode o Presidente, a requerimento do Procurador-Geral, ou da pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar, ou da decisão concessiva de mandado de segurança, proferida em única ou última

F instância, pelos tribunais locais ou federais.

§ 1º O Presidente pode ouvir o impetrante, em cinco dias, e o Procurador-Geral, quando não for o requerente, em igual prazo.

§ 2º Do despacho que conceder a suspensão caberá agravo regimental.

§ 3º A suspensão de segurança vigorará enquanto pender o recurso, ficando sem efeito, se a decisão concessiva for mantida pelo Supremo Tribunal Federal ou transitar

Regimento interno do ST em julgado.

262 Trindade et al. Poderá o Presidente do Tribunal, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada ou do Procurador-Geral da República, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança, proferida, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.

Igualmente, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, poderá o Presidente do Tribunal suspender, em despacho fundamentado, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes que for concedida ou mantida pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal, inclusive em tutela antecipada, bem como suspender a execução de sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, em processo de ação popular e em ação civil pública, enquanto não transitada em julgado. (Redação dada pela Emenda Regimental nº7, de 2004)

§ 1º O Presidente poderá ouvir o impetrante, em cinco dias, e, o Procurador-Geral, quando este não for o requerente, em igual prazo. (Redação dada pela Emenda Regimental nº1, de 1991)

§ 2º Da decisão a que se refere este artigo caberá agravo regimental, no prazo de cinco dias, para a Corte Especial. (Redação dada pela Emenda Regimental nº12, de 2010)

§ 3º A suspensão vigorará enquanto pender o recurso, ficando sem efeito se a decisão concessiva for mantida pelo Superior Tribunal de Justiça ou transitar em julgado.

Regimento interno do STJ (Incluído pela Emenda Regimental nº1, de 1991)

Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.

§ 1º A requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da publicação do ato.

§ 2º A multa cominada liminarmente só será exigível do réu após o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver Art. 297. Pode o Presidente, a requerimento do Procurador-Geral, ou da pessoa jurídica Lei nº7.347/1985 (ação civil (ação Lei nº7.347/1985 pública) configurado o descumprimento. de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar, ou da decisão concessiva de mandado de segurança, proferida em única ou última Art. 5º Conforme a origem do ato impugnado, é competente para conhecer da ação,

F instância, pelos tribunais locais ou federais. processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com a organização judiciária de cada § 1º O Presidente pode ouvir o impetrante, em cinco dias, e o Procurador-Geral, quando Estado, o for para as causas que interessem à União, ao Distrito Federal, ao Estado ou não for o requerente, em igual prazo. ao Município.

§ 2º Do despacho que conceder a suspensão caberá agravo regimental. § 1º Para fins de competência, equiparam-se atos da União, do Distrito Federal, do Estado ou dos Municípios os atos das pessoas criadas ou mantidas por essas pessoas § 3º A suspensão de segurança vigorará enquanto pender o recurso, ficando sem jurídicas de direito público, bem como os atos das sociedades de que elas sejam efeito, se a decisão concessiva for mantida pelo Supremo Tribunal Federal ou transitar acionistas e os das pessoas ou entidades por elas subvencionadas ou em relação às Lei nº4.717/1965 (ação Lei nº4.717/1965 (ação popular) Regimento interno do ST em julgado. quais tenham interesse patrimonial.

A suspensão de segurança 263 § 2º Quando o pleito interessar simultaneamente à União e a qualquer outra pessoas ou entidade, será competente o juiz das causas da União, se houver; quando interessar simultaneamente ao Estado e ao Município, será competente o juiz das causas do Estado, se houver.

§ 3º A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações, que forem posteriormente intentadas contra as mesmas partes e sob os mesmos fundamentos.

§ 4º Na defesa do patrimônio público caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado. (Incluído pela Lei nº6.513, de 1977)

O esquema abaixo demonstra, Da inconstitucionalidade do de forma mais detalhada, a estrutu- instituto e sua utilização política ra processual referente à utilização Conforme visto, a SS pode ser utili- do mandado de segurança. zada a favor do Estado, sendo que Havendo-se esclarecido o que é sua fundamentação não tem como o instituto da SS, suas previsões no objeto a controvérsia da qual trata o ordenamento jurídico e as formas processo, mas sim fatores externos de utilização processual, passa-se ao mesmo, a saber “manifesto inte- então a uma breve análise dos moti- resse público ou de flagrante ilegiti- vos pelos quais é possível entender midade, e para evitar grave lesão à se tratar de um dispositivo que não ordem, à saúde, à segurança e à eco- é compatível com a nossa Constitui- nomia públicas” (Lei nº8.437/1992, ção Federal. art. 4º). Percebe-se, de antemão, que

Provido Liminar/ execução Agravo (§ 3º, art. 14) SS para o Imagem 1. Estrutura Improvido tribunal superior processual referente (§ 2º, art. 15) (§ 1º, art. 15) à utilização do mandado de segurança. Provido SS para o tri- bunal superior Elaboração dos autores. Concessória Deferida Agravo (§ 1º, art. 15) Suspensão de (art. 15) segurança - SS Improvido Sentença (art. 15) Indeferida Denegatória (§ 1º, art. 15) SS para o tribu- Petição inicial nal superior deferida Apelação (§ 1º, art. 15) Se houver limi- Mandado de nar, cabe agravo segurança de instrumento (§ 1º, art. 7º) Apelação Petição inicial indeferida Cabe apelação ao agravo (§ 1º, art. 10)

264 Trindade et al. a vagueza e amplitude das hipóteses lutamente político do instituto, em de cabimento constituem um sério detrimento de qualquer análise ju- problema, vez que permitem pouco rídica palpável. Uma vez conhecida controle, possibilitando que as mais sua natureza jurídica, parte-se para diversas situações sejam incluídas a análise da constitucionalidade. na noção de “grave lesão à saúde, à Há quem defenda que se tra- segurança e à economia públicas”. ta de assegurar direitos difusos e Essa abstração das hipóteses em fundamentais, com a falsa ideia que é possível valer-se da SS acaba da prevalência do interesse públi- dando margem para a utilização co (Rodrigues, 2010: 125). Contudo, do instituto de forma política, exis- entendemos que a medida, em que tindo, dessa forma, um acirrado pese ser reconhecida por algumas debate acerca da natureza jurídica correntes como constitucional, ou política da suspensão. A fim de viola inúmeros princípios constitu- sedimentar esse debate, o Supe- cionais, como: segurança jurídica, rior Tribunal de Justiça (STJ) con- acesso à justiça, devido processo cluiu tratar-se de um instrumento legal, proibição ao retrocesso ao político, com base no art. 4º da Lei juízo de exceção, razoável duração nº4.348/1964, aduzindo que: do processo e celeridade (Pruden- te, 2013: 5-6). Outros princípios da De outro lado, também sustento que Constituição também incompatí- as razões que autorizam o presiden- veis com o instituto da SS são: dig- te do Tribunal, competente para o nidade humana, inafastabilidade do recurso, a suspender efeitos de limi- Poder Judiciário, impossibilidade nares ou de segurança concedidas, de existência de juízo ou tribunal são razões políticas: para evitar grave de exceção, aplicação imediata dos lesão à ordem, à saúde, à segurança direitos fundamentais, proteção e à economia públicas (Lei 4.348/64, ambiental e desenvolvimento eco- art. 4º; RISTF, art. 297) (Brasil, Justiça nômico com proteção ambiental. Federal, Supremo Tribunal Federal, E, se não bastasse isso, como des- 2000, 2007, grifos nos originais). taca Cássio Scarpinella Bueno, a suspensão dispensa a oitiva da par- Parece bastante acertado esse te que ingressou com o pedido de entendimento, especialmente se segurança, cerceando a defesa des- considerarmos que, nos casos con- se litigante (2002: 179). Ora, como cretos, como os das construções alegar a constitucionalidade de um das UHEs, transborda o viés abso- instrumento que infringe diversos

A suspensão de segurança 265 princípios da Constituição, sendo privadas. Nota-se que a SS, ao per- que alguns são cláusulas pétreas? O mitir uma decisão monocrática que que parece é que a SS é uma forma não analisa o mérito da lide, está in- de garantir que o ato coator, mesmo terferindo abusivamente na vida do após ser reconhecido como tal pelo indivíduo, sendo que, nesse caso, a Judiciário, possa ser mantido sem proteção da lei contra tais ingerên- serem discutidos os fundamentos cias, prevista no item 3 do referido jurídicos para seu afastamento, vez artigo, só acontecerá após o trânsito que, conforme dito, a decisão é es- em julgado, ou seja, não será efeti- sencialmente política. vada, tendo em vista o tempo de du- Além das supramencionadas ração do processo. afrontas ao ordenamento jurídico A utilização da SS impede a interno, tal instituto entra em con- aplicabilidade de tais proteções à flito também com o ordenamento parte prejudicada, criando uma si- jurídico internacional ao qual o Bra- tuação de total desequilíbrio, em sil se submete, por ser signatário que apenas o Estado acaba por de tratados internacionais. Como gozar de tais garantias. É, assim, exemplo, vale citar o Pacto de San inconstitucional. José da Costa Rica, que dispõe, já em seus primeiros dois artigos, que A SS e a UHE Teles Pires é dever do Estado o respeito às liber- A construção da UHE Teles Pires ini- dades e direitos daquelas pessoas ciou-se no dia 22 de agosto de 2011. por esse jurisdicionadas, sem dis- Em março de 2012, o Ministério Pú- tinção de qualquer natureza, sendo blico Federal (MPF) e o Ministério que o Estado, em caso de eventual Público do Estado de Mato Grosso incompatibilidade do tratado com o (MPE/MT) ajuizaram uma ação civil ordenamento interno, deve modifi- pública (ACP) postulando a suspen- car o segundo, para permitir então são do licenciamento da usina até a a efetividade dos direitos previstos realização de consulta prévia, livre no primeiro. e informada aos povos indígenas O art. 11 do mesmo diploma Kayabi, Munduruku e Apiaká. Tan- elenca a dignidade e a honra como to a Constituição Federal do Brasil, valores a serem protegidos pelos quanto a Convenção sobre os Povos países signatários, de forma que, Indígenas e Tribais (Convenção 169 além desse reconhecimento, é ga- da Organização Internacional do rantida a todos a não ingerência Trabalho - OIT) determinam que os arbitrária ou abusiva em suas vidas povos indígenas possuem o direito

266 Trindade et al. de participar livremente das deci- rência direta aos povos indígenas e sões, legislativas e executivas, refe- ocasionará danos irreversíveis para rentes a políticas e programas que a sua qualidade de vida e o seu pa- lhes afetem diretamente. De forma trimônio cultural. bastante específica, o art. 15 da Con- Dentre os impactos possíveis, os venção 169 dispõe que: autores da ação destacaram os se- guintes pontos: i) a inundação das Em situações nas quais o Estado re- corredeiras de Salto Sete Quedas, tém a propriedade dos minerais ou área de notável importância para dos recursos do subsolo ou direitos a reprodução do modo de vida dos a outros recursos existentes nas povos indígenas afetados, por duas terras, os governos estabelecerão razões principais: a) trata-se de área ou manterão procedimentos pelos de reprodução de peixes migrató- quais consultarão estes povos para rios, base alimentar dos povos indí- determinar se seus interesses se- genas que vivem na bacia do rio Te- riam prejudicados, e em que medi- les Pires; b) cuida-se de local sagrado da, antes de executar ou autorizar para os Munduruku, onde vivem a qualquer programa de exploração Mãe dos Peixes, o músico Karupi, desses recursos existentes em suas o espírito Kaubixexé e os espíritos terras. Sempre que for possível, os dos antepassados; ii) aumento dos povos participarão dos benefícios fluxos migratórios, a implicar maio- proporcionados por essas atividades res pressões sobre terras indígenas e receberão indenização justa por (TIs); iii) especulação fundiária; iv) qualquer dano que sofram em de- desmatamento e pressões sobre os corrência dessas atividades. recursos naturais (pesca predatória e exploração ilegal de madeira e re- Não obstante, como indicam o cursos minerais, por exemplo). MPF e o MPE/MT, o Ibama emitiu Note-se que a violação de áreas sa- a licença prévia (LP) e a licença de gradas para os povos indígenas afe- instalação (LI) da usina nos dias 13 tados afronta os artigos 216 e 231 da de dezembro de 2010 e 19 de agos- Constituição Federal, bem como vá- to de 2011, respectivamente, sem a rios diplomas internacionais, como consulta livre, prévia e informada o Pacto Internacional sobre Direitos aos povos indígenas afetados, o que Econômicos, Sociais e Culturais, a seria inadmissível, tendo em vista a Convenção Internacional de Prote- proteção legislativa e o fato de que ção ao Patrimônio Cultural Imate- o empreendimento causará interfe- rial e o Protocolo de San Salvador.

A suspensão de segurança 267 Segundo o manifesto Kayabi, sileiro, que vem até nossas aldeias Apiaká e Munduruku formulado na para nos impor empreendimentos e TI Kayabi, de 30 de novembro a 1º diz que este ato de pura VIOLÊNCIA de dezembro de 2011, é ato de CONSULTA. Exigimos […] Abrir um diálogo na- A construção desta hidrelétrica, afo- cional entre o governo, sociedade gando as cachoeiras de Sete Quedas, civil e setor privado sobre a políti- poluindo as águas e secando o Teles ca energética no Brasil, baseado em Pires rio abaixo, acabaria com os princípios de justiça ambiental, res- peixes, que são a base de nossa ali- peito à diversidade cultural, eficiên- mentação. Além disso, Sete Quedas cia econômica e participação demo- é um lugar sagrado para nós, onde crática (apud Brasil, Justiça Federal, vive a Mãe dos Peixes e outros espí- 2012a). ritos de nossos antepassados – um lugar onde não se deve mexer. Tendo em vista tais violações, foi Tudo isso já está sendo destruído requerida a abstenção do prossegui- com as explosões de dinamite sem mento do licenciamento e das obras qualquer processo de consulta livre, da UHE Teles Pires, até que fosse prévia e informada junto às comu- realizada, pelo Congresso Nacional, nidades indígenas, desrespeitando a oitiva constitucional dos povos in- nossos direitos assegurados pelo dígenas afetados, nos termos do art. artigo 231 da Constituição federal 231, § 3º da Constituição Federal. e pela Convenção 169 da OIT (…). Em decisão liminar, a justiça fede- Agora, o governo nos convida para ral do Mato Grosso houve por bem participar de reuniões sobre o PBA determinar a paralisação das obras, [projeto básico ambiental], mas pontuando a existência de violação como vamos discutir mitigações e ao direito de consulta prévia, livre e compensações de um projeto cujos informada, e o fato de que não hou- impactos sobre nossas comunidades ve o devido reconhecimento de que nem foram estudados e discutidos, e se trata de local sagrado, desconsi- que foi licenciado ilegalmente? […] derando-se, consequentemente, os Exigimos a regulamentação do Direi- desdobramentos que tal reconheci- to ao Consentimento Livre, Prévio e mento impõe. Além disso, atentou Informado, conforme as recomenda- para a irreversibilidade dos impac- ções da Organização das Nações Uni- tos da obra sobre os povos indíge- das (ONU) e não conforme vem se nas e seus territórios e para o fato tornando a prática do Governo bra- de que a suspensão não geraria apa-

268 Trindade et al. gão energético no Brasil, tanto pelo Ademais, a decisão afirmou, ao fato de haver inúmeras outras UHEs final, que o licenciamento ambien- em construção, bem como por en- tal concedido seria totalmente vi- tender que talvez fosse o caso de se ciado e nulo de pleno direito, por considerar a utilização de alterna- agredir os princípios constitucio- tivas energéticas que acarretassem nais de ordem pública, da impessoa- menor custo ambiental, social e lidade e da moralidade ambiental cultural. (Constituição Federal de 1988, art. Em razão da paralisação deter- 37, caput). minada, a Companhia Hidrelétrica Diante de tal panorama, a Agên- Teles Pires (CHTP) requereu, por cia Nacional de Energia Elétrica meio de agravo de instrumento, a (Aneel) e a União formularam pe- reversão do determinado, de modo dido de suspensão da segurança a possibilitar a continuidade das concedida, afirmando que a parali- obras até o julgamento final da ação sação acarreta lesão grave à ordem ajuizada. Em tal ocasião, a Quinta econômica e administrativa, argu- Turma do Tribunal Regional Federal mentando que a sua manutenção: i) da 1ª Região (TRF-1) não acolheu o provoca desequilíbrio no mercado pedido formulado pela companhia, de distribuição de energia elétrica; entendendo como correta a decisão ii) joga por terra todo o planejamen- proferida em primeira instância e, to da expansão da oferta de energia consequentemente, mantendo a prevista no PDE; iii) sinalizaria um paralisação das obras. Vale ressaltar acentuado risco regulatório; iv) im- que, em tal decisão, foi enfatizado plica afronta à segurança jurídica; e o entendimento de que ocorre uma v) acaba por afetar a credibilidade proliferação abusiva de procedi- do Brasil como país capaz de atrair mentos como a SS, os investimentos em infraestrutura necessários para garantir o cresci- instrumento fóssil dos tempos do re- mento sustentável de sua economia. gime de exceção a cassar, reiterada- Tal pedido foi levado à análise da mente, as oportunas e precautivas presidência do Supremo Tribunal decisões tomadas em Varas Ambien- Federal (STF), tal como determina a tais, neste país, [e que] atenta contra legislação referente ao mandado de os princípios regentes da Política segurança, ocasião em que o minis- Nacional do Meio Ambiente (Brasil, tro Ricardo Lewandowski, em de- Justiça Federal, Tribunal Regional cisão monocrática, concedeu a SS, Federal da Primeira Região, 2012). afirmando que o aproveitamento

A suspensão de segurança 269 do riquíssimo potencial hidrelétri- Por ser uma construção de grande co de nosso país porte – a intenção é que ela tenha potência de 700 megawatts –, há (ou constitui imperativo de ordem prá- deveria haver) uma preocupação es- tica, que não pode ser desprezado pecial com a sua instalação e com em uma sociedade em desenvolvi- os impactos daí decorrentes. mento como a nossa, cuja demanda O MPF, ao fiscalizar o andamen- por energia cresce dia a dia de forma to do procedimento de concessão exponencial. de licença para a construção da usi- na, constatou a existência de irre- Argumentou, além disso, que gularidades com relação à emissão a paralisação da obra poderia cau- da mesma, quais sejam: i) estudo do sar prejuízos econômicos de difí- componente indígena (ECI) incom- cil reparação ao Estado e também pleto; ii) falta de consulta prévia, li- aos particulares envolvidos na vre e informada aos povos afetados empreitada. pela obra; iii) o impacto que será Em decorrência de tal decisão, causado em comunidades de ín- proferida em 26 de setembro de dios isolados. Nesse cenário, foram 2013, as obras da UHE Teles Pires se propostas ACPs visando discutir a encontram em andamento e assim legalidade da LP concedida, tendo prosseguirão até que ocorra o julga- em vista a presença dessas irregula- mento final da demanda ajuizada ridades. Juntamente, foi requerida pelo MPE/MT e pelo MPF. Tendo em a suspensão do leilão que determi- vista a notória ausência de celerida- naria quais seriam as empresas res- de da justiça brasileira, talvez o jul- ponsáveis pela realização do em- gamento só venha a ocorrer quando preendimento (2º Leilão de Energia as obras já estiverem concluídas ou A-5/2013 da Aneel). prestes a tanto, o que impossibilita- Os estudos nos quais o MPF se rá a garantia de todos os direitos sus- baseou para discutir tal situação de- citados, bem como poderá produzir monstram que a construção da UHE danos ambientais irreversíveis. trará inúmeros impactos negativos e irreversíveis para o meio ambien- A SS e a UHE São Manoel te e para a população em geral, es- A UHE São Manoel é mais um em- pecialmente para os povos indíge- preendimento previsto para a bacia nas da região (Munduruku, Kayabi, hidrográfica dos Tapajós, mais espe- Apiaká e comunidades isoladas). cificamente para o rio Teles Pires. Vale destacar alguns impactos iden-

270 Trindade et al. tificados no relatório de revisão e sidade – baixa; significância – alta; complementação dos estudos do importância – média. componente indígena da UHE São 5 Criação ou intensificação de confli- Manoel e Foz dos Apiacás, de julho tos territoriais: natureza do impac- de 2011: to – negativa; prazo de permanên- cia – permanente; reversibilidade 1 Interferência sobre a fauna e flora – reversível; probabilidade de ocor- terrestre e os recursos de caça: na- rência – pouco provável; intensi- tureza do impacto – negativa; pra- dade – baixa; significância – alta; zo de permanência – permanente; importância – média. reversibilidade – irreversível; pro- 6 Alterações nas relações dos índios babilidade de ocorrência – pou- com as atividades econômicas: na- co provável; intensidade – baixa; tureza do impacto – ambivalente; significância – alta; importância prazo de permanência – perma- – baixa. nente; reversibilidade – reversível; 2 Interferência sobre a disponibilida- probabilidade de ocorrência – pro- de dos recursos de pesca à jusante vável; intensidade – baixa; signifi- da barragem: natureza do impacto cância – baixa; importância – baixa. – negativa; prazo de permanência 7 Alterações na paisagem e perda – permanente; reversibilidade – ir- de referenciais socioespaciais e reversível; probabilidade de ocor- culturais: natureza do impacto – rência – certa, intensidade – alta; negativa; prazo de permanência significância – alta; importância – permanente; reversibilidade – ir- – alta. reversível; probabilidade de ocor- 3 Alteração da dinâmica fluvial: na- rência – certa, intensidade – baixa; tureza do impacto – negativa; pra- significância – alta; importância – zo de permanência – permanente; média (apud Brasil, Justiça Federal, reversibilidade – irreversível; pro- 2012a). babilidade de ocorrência – certa, intensidade – baixa; significância Além disso, o ECI constatou que – alta; importância – média. provavelmente haverá um aumento 4 Aumento da incidência de doenças de incidência de doenças na popula- na população indígena: natureza ção indígena. Nesse sentido, descre- do impacto – negativa; prazo de ve o relatório que: permanência – permanente; rever- sibilidade – reversível; probabilida- […] Uma das questões preocupantes de de ocorrência – provável; inten- no contato das populações indíge-

A suspensão de segurança 271 nas com não índios é a sua expo- atividades produtivas, como indica sição a novos agentes de contami- a Caracterização de Microbacias e nação, para os quais podem não Indicação das Áreas de Vulnerabi- possuir qualquer tipo de imunidade. lidade (uma das frentes de ameaça No caso dos novos empreendimen- identificada exerce pressão ao Sul tos, esse contato tende a aumentar da TI Kayabi). De um lado, a luta dos significativamente, em função dos índios pela demarcação e homologa- contingentes populacionais atraídos ção das terras que afirmam ocupar e do consequente aumento na circu- há mais de dois séculos e, do outro, lação de pessoas nas proximidades a reivindicação de não índios para da Terra Indígena Kayabi. No que se que seja reconhecida a legitimidade refere aos recursos hídricos, a dete- de suas atividades e o direito à pro- rioração da qualidade da água, a ju- priedade de áreas que, no passado, sante das barragens[,] pode expor os foram incentivados a ocupar. Além índios a contaminações de diversas do alcance político desta questão, naturezas, uma vez que se trata de que extrapola o âmbito regional, um recurso importante para muitas tais conflitos se traduzem, local- atividades, inclusive para o consu- mente, em ocupações irregulares mo humano direto […] (Idem). e invasões, ou na extração ilegal e uso de recursos disponíveis dentro Ademais, o ECI prevê ainda que dos limites das Terras Indígenas, em o empreendimento ocasionará a um ambiente de ameaças e crescen- criação ou a intensificação de con- te tensão. Os conflitos obedecem a flitos territoriais. Nesses termos, uma dinâmica particular de uma concluiu-se que: rede de relações complexas entre as diversas etnias e entre índios e não Este impacto está relacionado à dis- índios que desenvolvem diferentes puta por território entre os índios atividades na região, como pousa- e os não índios presentes nas pro- deiros, garimpeiros, posseiros, fa- ximidades das Terras Indígenas, e zendeiros e madeireiros. aos conflitos pelo uso dos recursos Acredita-se que a introdução de um naturais disponíveis na região. Tra- novo vetor de desenvolvimento em ta-se de um contexto fundiário com- uma região tensa e frágil, do ponto plexo, conforme descrito de forma de vista fundiário, poderá desenca- detalhada na Revisão do Conteúdo dear novos conflitos e acirrar aque- Antropológico e também exposto a les existentes, uma vez que provoca frentes de ameaça pela expansão de um aumento significativo da popu-

272 Trindade et al. lação e tende a estimular as ativida- deferiu o pedido de suspensão da des ali presentes, como a pecuária, liminar. O leilão foi realizado no dia o turismo, a pesca, o garimpo e a seguinte (13 de dezembro de 2013), extração de madeira, assim como a saindo como vencedor o consórcio compra e venda de terras para fins Terra Nova, formado pelas empre- especulativos […] (Idem). sas EDP e Furnas. Dessa forma, podemos ver, no- Nesse contexto, o juiz federal vamente, que o instituto da SS foi Ilan Presser determinou, em sede utilizado de forma política, privile- de liminar, a suspensão do leilão, giando questões econômicas em de- afirmando que trimento das questões ambientais e de direitos humanos. seria temerário, no estado em que o ECI se encontra, prosseguir na reali- Considerações finais zação do leilão, já que se corre o ris- Diante de tudo que foi analisado, é co de posteriormente serem declara- indubitável que, no mínimo, o insti- dos nulos os atos de Licença Prévia tuto da SS vem sendo utilizado pelo e leilão realizado, com vilipêndio ao Estado brasileiro na contramão da princípio da segurança jurídica de efetivação de direitos fundamen- todas as partes envolvidas. tais, camuflando-se na justificativa de atender o bem comum quando, Diante de tal liminar, a AGU re- em realidade, está atendendo inte- correu ao TRF-1 (Mato Grosso), ale- resses meramente econômicos. gando que a decisão causaria grave Não bastasse o fato de a existên- lesão à ordem administrativa eco- cia de tal instituto privilegiar, por nômica da execução da medida. si só, a proteção de interesses eco- Afirmou que a não participação nômicos, a atuação do Judiciário no leilão tumultuaria o mercado brasileiro, mais especificamente a de distribuição de energia elétri- falta de celeridade e de comprome- ca, prejudicaria o planejamento do timento de alguns membros, acaba PDE 2010-2019, entre outros riscos por reforçar a parcialidade da SS. Os à segurança jurídica da adminis- casos analisados demonstram clara- tração pública e à credibilidade do mente essa situação, na medida em Brasil para atrair investimentos em que foi permitida a continuidade infraestrutura. O vice-presidente do das obras ou do licenciamento, pre- TRF-1, Daniel Paes Ribeiro, no exer- ponderando os interesses estatal e cício da presidência do tribunal, econômico, em detrimento da pro-

A suspensão de segurança 273 teção ambiental e dos direitos dos Disponível em: (acesso: tais, sendo inegável sua incompati- 20 abr. 2014). bilidade com a Constituição Federal Brasil. Presidência da República. de 1988 e com tratados internacio- 1936. Lei nº191, de 16 de janeiro. nais de direitos humanos. Regula o processo do mandado de segurança. Rio de Janeiro. [artigo concluído em agosto de 2014] ___. 1964. Lei nº4.348, de 26 de ju- nho. Estabelece normas proces- Referências bibliográficas suais relativas a mandado de Brasil. 1934. Constituição da Repú- segurança (revogada pela Lei blica dos Estados Unidos do Bra- nº12.016/2009). Brasília. sil, de 16 de julho. ___. 1990. Lei nº8.038, de 28 de maio. Brasil. Justiça Federal. 2012a. Proces- Institui normas procedimentais so nº0018625-97.2012.4.01.0000/ para os processos que especifica, MT. Cuiabá. perante o Superior Tribunal de ___. 2012b. Processo nº17643- Justiça e o Supremo Tribunal Fe- 16.2013.4.01.3600/MT (distribuí- deral. Brasília. do por dependência ao proces- ___. 1992. Lei nº8.437, de 30 de ju- so nº13839-40.2013.4.01.3600). nho. Dispõe sobre a concessão de Cuiabá. medidas cautelares contra atos Brasil. Justiça Federal. Supremo do Poder Público e dá outras pro- Tribunal Federal. 2000. Reclama- vidências. Brasília. ção nº1.705, julgada em 9 out. ___. 2009. Lei nº12.016, de 7 de agos- Brasília. to. Disciplina o mandado de se- ___. 2007. Reclamação nº5.082. Deci- gurança individual e coletivo e são do Ministro Gilmar Mendes, dá outras providências. Brasília. julgada em 3 abr. Brasília. Bueno, Cássio Scarpinella. 2002. Brasil. Justiça Federal. Tribunal Mandado de segurança. São Paulo, Regional Federal da Primeira Re- Saraiva. gião. 2012. Agravo de instrumen- Craide, Sabrina. 2013. “Justiça sus- to nº18341-89.2012.4.01.0000/MT. pende leilão de hidrelétrica mar-

274 Trindade et al. cado para sexta-feira”. In: Agência Prudente, Antônio Souza. 2013. “O Brasil. Brasília, 10 dez. Disponível terror jurídico-ditatorial da sus- em: (aces- Magister de Direito Civil e Processual so: 20 maio 2014). Civil, v.1. São Paulo, pp. 5-203. Organizacão Internacional do Rodrigues, Marcelo Abelha. 2010. Trabalho. 2011. Convenção 169 Suspensão de segurança. 3. ed. sobre povos indígenas e tribais e São Paulo, Editora Revista dos Resolução referente à ação da OIT. Tribunais. Brasília. Disponível em: (acesso: 30 abr. 2014).

A suspensão de segurança 275

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais Felício Pontes Júnior e Rodrigo Oliveira

rasil, Amazônia, estado do Este artigo tratará do projeto de Pará. O governo federal dá construção da usina hidrelétrica início aos trabalhos para cons- (UHE) de São Luiz do Tapajós. Ao Btruir um complexo hidrelétrico de que tudo indica, o processo repete grande porte em um dos maiores os vícios que se fizeram presentes afluentes do rio Amazonas. Movi- em Belo Monte, sobretudo a ausên- mentos sociais, sociedade local, cia de consulta aos povos interes- organizações não governamentais, sados. No entanto, após constantes comunidade acadêmica e Ministé- mobilizações dos povos indígenas, rio Público alertam para debilida- em especial dos Munduruku, e de des nos estudos técnicos e para os parciais vitórias junto ao Poder Judi- graves impactos socioambientais ciário, o governo federal deu início que o projeto acarretaria. Povos in- ao processo de consulta prévia, livre dígenas serão os principais impac- e informada em março de 2013. tados pelo empreendimento, que Buscaremos discutir se essa con- ameaça suas atividades tradicio- sulta reúne as condições mínimas nais, como pesca, caça e transporte para que seja considerada prévia, fluvial. A despeito disso, o licen- livre, informada e de boa-fé, como ciamento tem início sem consulta determinam os padrões interna- prévia, livre e informada, como cionais. O objetivo é concluir se o manda a Convenção 169 da Orga- caso representa um divisor de águas nização Internacional do Trabalho na relação entre Estado e povos in- (OIT). dígenas no cenário da construção

277 1. Processo nº3883- de grandes projetos ou se apenas Várias fases do planejamento e do 98.2012.4.01.3902. reproduz erros do passado, sem licenciamento ambiental da usina

2. “[…] Art. 1º - possibilitar a real participação dos foram ultrapassadas sem que os po- Indicar os seguintes indígenas. vos interessados fossem consulta- Aproveitamentos dos. Os estudos de inventário foram Hidrelétricos [AHE] como projetos de Antecedentes do processo realizados entre os anos de 2006 e geração de energia de consulta: a mobilização 2008, sem sequer indicar as terras elétrica estratégicos, de interesse público, Munduruku e a atuação judicial indígenas (TIs) afetadas. Em maio de estruturantes e com do Ministério Público Federal 2011, o Conselho Nacional de Políti- prioridade de licitação e O Ministério Público Federal (MPF) ca Energética (CNPE) editou a Reso- implantação: I - AHE São Luiz do ingressou em 2012 com uma ação ci- lução nº3, que determina a adoção Tapajós, localizado no vil pública (ACP) contra o Instituto de providências para a implantação Rio Tapajós, Estado do 2 Pará; Brasileiro do Meio Ambiente e dos da UHE São Luiz do Tapajós . II - AHE Jatobá, Recursos Naturais Renováveis (Iba- Os estudos iniciais apontaram as localizado no Rio Tapajós, Estado do Pará; ma), Agência Nacional de Energia unidades de conservação (UCs) que III - AHE Jardim do Elétrica (Aneel), Centrais Elétricas seriam afetadas pelos reservatórios Ouro, localizado no Rio Brasileiras S.A. (Eletrobras) e Cen- das usinas planejadas para a bacia Jamanxim, Estado do Pará; e trais Elétricas do Norte do Brasil do Tapajós. Nesse quadro, a solução IV - AHE Chacorão, S.A. (Eletronorte), com o intuito de encontrada pelo governo federal localizado no Rio Tapajós, Estados do suspender o licenciamento da UHE foi reduzir os limites das UCs – al- Amazonas e Pará. São Luiz do Tapajós1, primeira hi- gumas contíguas a TIs – através da Art. 2º - Determinar drelétrica a ser construída no rio Medida Provisória (MP) nº558/20123, que sejam adotadas todas as providências, Tapajós, tendo potência nominal ato contestado pelo MPF no Supre- no âmbito do Poder estimada oficialmente em 8.040 mo Tribunal Federal (STF)4. Executivo Federal, a fim de concluir os estudos megawatts e área de inundação de Diante das notícias em veículos necessários para a 722 quilômetros quadrados. A ação de imprensa relatando as preten- licitação e implantação questiona, dentre outras ilegalida- sões do governo federal de iniciar dos mencionados Aproveitamentos des, a falta de consulta prévia, livre os estudos para a construção da Hidrelétricos. e informada aos povos indígenas e UHE São Luiz do Tapajós, os povos Art. 3º - Fica assegurado que os custos populações tradicionais indígenas na região, especificamen- relativos à eventual te os Munduruku, divulgaram carta construção de obras localizados na área de influência do pública, em 24 de fevereiro de 2012, de navegabilidade, bem como os custos de empreendimento São Luiz do Tapa- solicitando reunião com o Ministé- operação e manutenção jós e afetados pelas medidas admi- rio de Minas e Energia (MME): das instalações associadas não serão nistrativas e legislativas já execu- imputados ao vencedor tadas no âmbito do licenciamento Nós indígenas Munduruku não en- da licitação ambiental. tendemos o que é hidrelétrica, quais

278 Pontes Júnior e Oliveira os benefícios e prejuízos que trarão cluiu qualquer exigência de estudos dos Empreendimentos para a nossa população. Os estudos de impactos sobre os povos indíge- de que trata esta Resolução. apresentados até hoje, sempre nos nas da região. A Fundação Nacional Art. 4º - Caberá ao deixou muita dúvida, não temos do Índio (Funai) alertou para o fato Ministério de Minas e conhecimentos dos impactos e das de que a usina afeta as TIs Andirá- Energia, juntamente com o Departamento medidas que o governo pretende to- -Marau, Km 43, São Luiz do Tapajós, Nacional de Produção mar para minimizar esses impactos. Praia do Índio e Praia do Mangue, Mineral - DNPM, praticar todos os Uma certeza nós temos, os peixes, e que as TIs Km 43, Pimental e São atos necessários as caças e as plantas medicinais das Luiz do Tapajós encontram-se em à desoneração da quais servem para a nossa sobrevi- processo de demarcação6. Com isso, área a ser afetada com a exploração do vência ficarão mais escassas. Muitos o estudo do componente indígena potencial hidráulico lugares sagrados desaparecerão, é o (ECI) foi acrescido às exigências do dos Empreendimentos de que trata esta caso da cachoeira sete quedas que termo de referência. Resolução, podendo, tanto falamos e o governo nunca Como consequência, o empreen- inclusive, bloquear a área e extinguir os deu importância. dimento passou a depender de con- títulos minerários que […] sulta prévia aos povos potencial- sobre ela incidam. Desta forma, nós lideranças mun- mente afetados. Indiferente a isso, Art. 5º - Esta Resolução entra em vigor na data duruku, abaixo relacionadas e em em 2012, o Ibama concedeu autori- de sua publicação nome da população relacionada em zação para abertura de picada, cap- […]” (Brasil, Ministério de Minas e Energia, anexo, solicitamos discutir sobre es- tura, coleta e transporte de material Conselho Nacional de ses empreendimentos em reunião biológico de áreas habitadas por po- Pesquisa Energética, entre o Ministério de Minas e Ener- pulações tradicionais. Em seguida, 2011).

gia, as empresas Concessionárias os primeiros pesquisadores começa- 3. A MP foi, Construtoras e todo o Povo Mun- ram a circular nos territórios indí- posteriormente, convertida na Lei duruku a ser realizada na cidade de genas, para a elaboração do estudo nº12.678/2012. Jacareacanga-PA. de impacto ambiental e relatório de

Caso este pleito não seja atendido, impacto ambiental (EIA/Rima). Não 4. Ação direta de o Povo Munduruku não aceita a rea- houve qualquer consulta. Os Mun- inconstitucionalidade (Adin) nº4717. lização de nenhum tipo de estudo duruku, mais uma vez, reagiram, ambiental e/ou econômico de viabi- em carta datada de 26 de setembro 5. Termo de referência lidade do empreendimento. de 2012: é o documento elaborado pelo órgão licenciador que O projeto seguiu em frente sem Onde os estudos do licenciamento contém os parâmetros mínimos que devem que a solicitação tivesse resposta. No ambiental e os pesquisadores estão ser contemplados pelo primeiro semestre de 2012, o termo nas áreas territórios munduruku, estudo de impacto ambiental e relatório de referência5 relativo à usina foi fazendo estudos sem permissão das de impacto ambiental aprovado pelo Ibama, que não in- lideranças indígenas, desrespeitan- (EIA/Rima).

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 279 6. No caso da TI do os nossos direitos. Queremos que deranças aptas e legitimadas” para Pimental, aguarda- os nossos direitos sejam respeitados participação, dos locais e datas da se relatório de por governos e outras instituições, 8 delimitação, que consulta . Todavia, não ordenou a indicará eventual como um povo verdadeiro. suspensão do licenciamento. Como sobreposição do Nós estamos defendendo os nossos a decisão judicial não conteve os reservatório. rios, nossas florestas, os animais, a avanços dos estudos, os Munduru- mãe dos peixes, principalmente os ku interceptaram os pesquisadores locais sagrados que nossos antepas- e impediram que dessem continui- sados deixaram para a geração de dade à pesquisa enquanto não fosse hoje. Não queremos destruir e sim realizada a consulta prévia, livre e conservar como local sagrado. informada:

O licenciamento ambiental da No dia 23 de setembro a equipe de UHE São Luiz do Tapajós estava em campo da CNEC Worley Parsons, pleno andamento. O anúncio da au- hospedada no barco Comandante 7. A esse respeito, torização do empreendimento fez Wesley, ancorado na margem es- ver Brasil, Ministério com que muitos garimpeiros, ma- querda do rio Jamanxim, foi aborda- Público Federal no Pará (2012). deireiros e grileiros invadissem os da por um grupo de índios Munduruku territórios indígenas7. Com isso, as com questionamentos sobre a razão pela violações dos direitos indígenas se qual estavam ali sendo executados estu-

8. “[…] que o Ministério intensificaram. dos sem sua prévia autorização uma vez Público Federal, em Na ação proposta, o MPF susten- que, segundo essa etnia, tais atividades 60 (em sessenta) dias ta que a consulta prévia não po- adote providências estariam acontecendo dentro de área in- para a oitiva das deria ser preterida para momento dígena (Brasil, Centrais Elétricas Bra- comunidades posterior à fase de elaboração dos sileiras S.A., 2012, grifo nosso). indígenas referidas no item ‘b’, indicando estudos ambientais, mas deveria forma (formato), quais preceder a autorização para a cons- O MPF recorreu da decisão. O são suas lideranças aptas e legitimadas a trução da usina, que se deu com a relator do processo no Tribunal Re- representá-las, locais e edição da Resolução nº3, em 3 de gional Federal da 1ª Região (TRF-1), datas de sua audiência maio de 2011, pelo CNPE. A justiça em resumo, determinou a suspen- (sendo que neste último caso podem ser federal em Santarém deferiu em são do licenciamento ambiental ajustadas por acordo parte o pedido liminar, impedindo da UHE São Luiz do Tapajós até o entre as partes)” (Brasil, Justiça Federal, 2012). a emissão de qualquer nova licença julgamento do mérito da ação. O 9. Para saber mais sem consulta prévia e atribuindo governo recorreu ao presidente do sobre o instituto da SS, ao MPF, equivocadamente, a obri- Superior Tribunal de Justiça (STJ), ver Montgomery et al. (2014). gação de adotar providências para através da suspensão de segurança a oitiva, como a indicação das “li- (SS)9, e conseguiu barrar a decisão

280 Pontes Júnior e Oliveira favorável às comunidades indíge- Arbitrariedade estatal e resistência nas e ribeirinhas, sob o argumen- indígena: a consulta prévia da UHE to de risco de grave lesão à ordem São Luiz do Tapajós pública: A história possui infinitas possibili- dades de reconstrução. A mesma se- No meu entender, interromper o quência de fatos pode ser registrada planejamento do Governo desti- sob diferentes perspectivas. No caso nado ao setor energético do país, da consulta prévia da UHE São Luiz estratégico para o desenvolvimen- do Tapajós, todavia, o relato históri- to da nação causa grave lesão à or- co que pretenda ser minimamente dem pública […] (Brasil, Justiça Fe- verossímil deve, necessariamente, deral, Superior Tribunal de Justiça, ter presentes duas circunstâncias: 2013: 9). a arbitrariedade do governo fede- ral e a resistência dos povos indíge- Embora tenha garantido a con- nas. Esses elementos entrecortam tinuidade do licenciamento, a de- todos os acontecimentos e ajudam cisão do ministro Felix Fischer, do a compreender os descaminhos da STJ, ressalta a impossibilidade de consulta prévia aos povos indígenas concessão de qualquer licença en- potencialmente afetados pela cons- quanto não efetuada a consulta: trução da usina. Em meio às constantes mobiliza- Nada obstante, entendo que, para se ções dos Munduruku e ao processo dar fiel cumprimento aos dispositi- judicial levado a cabo pelo MPF, o vos da Convenção, o Governo Fede- governo federal deu início ao diá- ral deverá promover a participação logo para a construção da consulta de todas as comunidades, sejam elas prévia, livre e informada. O pro- indígenas ou tribais, a teor do seu cesso já se inicia com a violação do art. 1º, que podem ser afetadas com caráter prévio (Convenção 169, art. a implantação do empreendimen- 15.2). Em 15 de março de 2013, quan- to, não podendo ser concedida a licença do o governo realiza as primeiras ambiental antes da sua oitiva (Ibid.: 10, reuniões pré-consultivas, a autori- grifo nosso). zação para a conclusão dos “estudos necessários para a licitação e im- Em meio à resistência dos Mun- plantação dos mencionados Apro- duruku e ao processo judicial, o go- veitamentos Hidrelétricos” já havia verno federal iniciou o procedimen- sido concedida (Brasil, Ministério de to de consulta, em março de 2013. Minas e Energia, 2011). Funcionários

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 281 10. “[…] 167. Puesto do Estado, pesquisadores e agentes coleta de materiais no território que el Estado debe da Força Nacional de Segurança Pú- enquanto não consultados. Diante garantizar estos derechos de consulta blica (FNSP) transitavam no territó- do embate, o governo federal tinha y participación en rio tradicional dos Munduruku. duas opções para dar sequência ao todas las fases de Tal postura vai de encontro à ju- seu plano: anular os atos praticados planeación y desarrollo de un proyecto que risprudência da Corte Interamerica- e negociar um processo de consulta pueda afectar el na de Direitos Humanos (Corte IDH), prévia, livre, informada e de boa-fé, territorio sobre el cual se asienta una que fixou o entendimento de que o ou fazer o uso da força estatal para comunidad indígena Estado deve consultar as comunida- garantir o ingresso dos pesquisa- o tribal, u otros derechos esenciales des “desde as primeiras etapas da dores. Optou pela última. Ao final para su supervivencia elaboração ou planejamento da me- de março de 2013, a FNSP chega à como pueblo, estos dida proposta”10 e “não unicamente região com o intuito de garantir o procesos de diálogo y búsqueda de acuerdos quando surja a necessidade de ob- sucesso dos levantamentos ambien- deben realizarse desde ter a aprovação da comunidade”11. tais. A Operação Tapajós, como foi las primeras etapas de la elaboración o O argumento do governo é de que a designada a investida, planificación de la realização de estudos não causa im- medida propuesta, a pactos e, por isso, a consulta não se- conta, segundo informações do pró- fin de que los pueblos indígenas puedan ria necessária. Tal declaração atesta prio Governo Federal, com um nú- verdaderamente o desconhecimento da história e do mero aproximado de 250 agentes, participar e influir en el proceso de contexto da Amazônia, onde a mera dentre os quais estão pesquisadores, adopción de decisiones, declaração de intenções é capaz de integrantes do Exército, da Polícia de conformidad provocar migrações, conflitos fun- Rodoviária Federal e da Polícia Fede- con los estándares internacionales diários e invasões territoriais. Além ral. A Operação está, neste momen- pertinentes […]” (Corte disso, para a Corte IDH, a comuni- to, ainda sendo realizada, sem prazo Interamericana de Direitos Humanos, 2012: dade deve participar ativamente da estabelecido para término (Brasil, 49-50). elaboração do EIA/Rima, de modo Ministério Público Federal, 2013: 6).

11. “[…] Asimismo, se que a consulta não pode ser prete- debe consultar con el rida para outro momento (Corte In- A operação fulmina qualquer pueblo Saramaka, de conformidad con sus teramericana de Direitos Humanos, possibilidade de diálogo livre, so- propias tradiciones, 2012: 64). bretudo quando se recorda que a en las primeras etapas A ausência de consulta anterior última operação policial na região del plan de desarrollo o inversión y no à autorização e aos estudos ambien- (Operação Eldorado, de novembro únicamente cuando tais incrementou a resistência dos de 2012) culminou no assassinato do surja la necesidad de obtener la aprobación indígenas. Em várias oportunida- Munduruku Adenilson Krixi: de la comunidad, si éste des, os Munduruku impediram a en- fuera el caso. El aviso trada de expedições para realização Em novembro de 2012 uma operação temprano proporciona un tiempo para la de pesquisas, pois não admitiam a desencadeada pelo Exército brasilei-

282 Pontes Júnior e Oliveira ro, Força Nacional e Polícia Federal, consultada define a metodologia do discusión interna denominada “Operação Eldorado”, processo, incluindo sua duração, dentro de las comunidades y para cujo suposto objetivo seria o de re- data, local, língua, representação, brindar una adecuada tirar garimpeiros ilegais das terras forma de deliberação, dentre outros respuesta al Estado […]” Munduruku, teve como resultado a aspectos que devem ser necessaria- (Corte Interamericana de Direitos Humanos, invasão de aldeias, agressões morais mente respeitados ao longo da con- 2007: 42). e físicas contra idosos, mulheres e sulta. Essa etapa tem por objetivo até mesmo crianças indígenas, cul- garantir que a consulta seja “cultu- 12 minando com a morte de um índio ralmente adequada” . 12. “Las consultas Munduruku, Adenilson Krixi, assas- A reunião de apresentação da deben realizarse de buena fe, a través sinado com um tiro na cabeça desfe- proposta do plano de consulta foi de procedimientos rido pelo delegado da Polícia Fede- sediada na cidade de Jacareacanga, culturalmente ral Antonio Carlos Muriel [Moriel] estado do Pará, local diverso do es- adecuados y deben tener como fin llegar a Sanchez, comandante da operação. colhido pelos indígenas, como cons- un acuerdo” (Idem). Crime até hoje impune (Nota, 2014). ta na página da internet da própria SG/PR: A consulta precisa ser livre de qualquer pressão, por parte do Es- Apesar de terem combinado este tado ou de atores privados. A deli- diálogo, outras lideranças indígenas beração dos indígenas não pode ser não compareceram. No dia anterior induzida ou coagida. Nesse sentido, essas lideranças exigiram mudar o a presença armada é incompatível local do encontro, da cidade de Jaca- com o cenário em que deve trans- reacanga para a aldeia Sai-Cinza [na correr a consulta livre, idônea e de TI homônima], localizada a cerca de boa-fé. Ao contrário, impõe-se ao Es- 40 minutos de barco. Essa exigência tado que garanta a integridade físi- não foi aceita pela comitiva, pois ca da comunidade para que delibere todo o encontro – incluindo con- livremente. tatos, convites, tempo de duração, Nesse contexto altamente confli- espaço na escola municipal e divul- tivo, a Secretaria-Geral da Presidên- gação – havia sido organizado para cia da República (SG/PR) apresenta ser naquela cidade, com a pauta fo- em abril de 2013 um documento in- cada na construção do processo de titulado Proposta do plano de consulta consulta (Brasil, Secretaria-Geral da para os aproveitamentos hidrelétricos de Presidência da República, 2013b). São Luiz do Tapajós e Jatobá. Tal pro- posta deveria dar início à etapa pré- Em carta, a Associação Indíge- -consultiva, na qual a comunidade na Pusuru contradiz a informação.

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 283 Desde o início, os indígenas exigi- a consulta tem uma dimensão tem- ram que as reuniões ocorressem na poral, que, novamente, depende das 13. A coordenação da aldeia Sai-Cinza13. A exigência é per- circunstâncias precisas da medida Associação Indígena feitamente razoável: os Munduruku proposta, tendo em conta o respeito Pusuru, organizadora do encontro, repudiou possuem organização social descen- às formas indígenas de decisão (Cor- a atitude e apresentou tralizada e o imperativo de desloca- te Interamericana de Direitos Hu- um documento manos, 2012: 62-63, tradução livre confirmando que mento para Jacareacanga significou a aldeia foi o local impedir que grande parte dos mais dos autores)15. acordado desde o início. de 13 mil indígenas participasse da A associação também negou a acusação de reunião. As vicissitudes da consulta ini- que haveria violência No que diz respeito ao conteúdo ciada redundaram na intensificação e que eles fariam os representantes do da proposta, o governo fixou uni- das mobilizações indígenas. No dia governo reféns na lateralmente os prazos do procedi- 29 de maio de 2013, 150 indígenas Sai-Cinza, conforme mento, na tentativa de ajustá-los ao participaram de passeata em Jaca- ameaça que teria sido veiculada pela cronograma de urgência com que reacanga e criticaram a Operação internet (Movimento conduz os grandes projetos (tabela Tapajós e a falta de diálogo com dos Atingidos por Barragens, 2013). 1). o governo. O cacique Juarez Saw Ambas as posturas do governo denunciou: 14. No original: “La impedem que a consulta seja cultu- CEACR ha afirmado ralmente adequada. As decisões da O governo quer impor seu projeto que ‘una consulta efectiva requiere que etapa pré-consultiva precisam ser mesmo sem nos consultar. Deixa- se prevean los tiempos respeitadas. Isso não significa que mos nossos parentes doentes em ou- necesarios para que tras aldeias para ouvir o que as auto- los pueblos indígenas o Estado não possa negociar datas del país puedan llevar e prazos com a comunidade; o que ridades têm a nos dizer. Mas eles não a cabo sus procesos ele não pode, nunca, é impô-los vieram. […] Não queremos ameaça de toma de decisión y pueden participar unilateralmente, como ocorreu. A nem confronto, queremos que eles efectivamente en las Comissão de Especialistas na Apli- venham falar conosco e nos ouvir. decisiones tomadas O rio é nossa vida, e nossa vida não de una manera que se cação de Convenções e Recomenda- adapte a sus modelos ções (CEACR), órgão da OIT, afirma tem preço. O governo não pode nos culturales y sociales’”. que “uma consulta efetiva requer comprar. Deixem nosso rio em paz, é 15. No original: “la que sejam previstos os tempos ne- isso que pedimos (Clark, 2013b). consulta tiene una dimensión temporal, cessários para que os povos indíge- que de nuevo depende nas” decidam, adaptando o processo Os Munduruku reivindicaram, de las circunstancias precisas de la medida “a seus modelos culturais e sociais” ademais, que o governo parasse de propuesta, teniendo en (Garavito Rodríguez et al., 2010: 73, “tentar dividir e manipular, pres- cuenta el respeto a las tradução livre dos autores)14. Igual- sionando individualmente nossas formas indígenas de decisión”. mente, a Corte IDH decidiu que lideranças […]. Somos um povo

284 Pontes Júnior e Oliveira só, todas as nossas decisões são de lideranças ou do estabelecimen- sempre coletivas” (Movimento dos to de lideranças paralelas, ou por Atingidos por Barragens, 2013). A meio de negociações com membros negociação direta e individualizada individuais das comunidades que desrespeita a organização política são contrários aos estandartes inter- da comunidade e viola o caráter nacionais (Corte Interamericana de adequado que deve ter a consulta. A Direitos Humanos, 2012: 56-57, tra- 16 tentativa de fragmentar o povo, por dução livre dos autores) . 16. No original, sua vez, desrespeita a boa-fé, que é: “incompatible con prácticas tales como O ambiente tornava-se cada vez los intentos de […] incompatível com práticas tais mais conflituoso. No dia 2 de maio desintegración de la cohesión social como os intentos de desintegração de 2013, os Munduruku ocuparam o de las comunidades da coesão social das comunidades canteiro de obra da UHE Belo Mon- afectadas, sea a través afetadas, seja através da corrupção te, para exigir a suspensão imedia- de la corrupción de los líderes comunales o del establecimiento de liderazgos paralelos, Tabela 1. Prazos do processo de consulta o por medio de negociaciones con Quadro resumo das etapas da consulta miembros individuales de las comunidades Etapas Envolvidos Objetivo Prazos que son contrarias a los estándares Apresentação Secretaria-Geral da Presidência Abrir o diálogo e definir março internacionales”. da intenção da República (SG/PR), representação dos povos Fundação Nacional do Índio afetados (Funai) e Ministério Público Federal (MPF)

Pactuação do SG/PR, Funai, Ministério Pactuar o processo e abril processo do Meio Ambiente (MMA), constituir as bases de Ministério de Minas e Energia um ambiente aberto de (MME) e MPF interação

Consultiva MMA, Funai, MME, Ministério Apresentar, ouvir, abril a junho do Planejamento, Orçamento debater e absorver os e Gestão (MPOG), SG/PR, posicionamentos dos Advocacia-Geral da União participantes (AGU) e MPF

Devolutiva MMA, Funai, MME, MPOG, SG/ Assimilar e elaborar julho PR, AGU e MPF resposta do governo ao processo e apresentá-la às comunidades.

Fonte: Brasil, Presidência da República (2013: 7).

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 285 ta das barragens nos rios Xingu, “pretensas” significa deslegitimar Tapajós e Teles Pires. Em resposta, os próprios indígenas na escolha o governo divulgou nota chamada de suas autoridades políticas. No “Esclarecimentos sobre a consulta caso do processo de consulta, isso aos Munduruku e a invasão de Belo viola o princípio e norma que re- Monte”, em que desqualifica as lide- conhecem ao povo a atribuição de ranças Munduruku e as acusa de en- estabelecer suas instituições repre- 17. “Si bien está volvimento com o garimpo ilegal: sentativas17. As acusações, por sua reconocido que la vez, não se coadunam com o respei- forma representativa de los pueblos No dia 25/04, essas mesmas preten- to mútuo que deve caracterizar o indígenas en sí misma sas lideranças deixaram de compa- procedimento18. es diversa, y que la representatividad no recer a uma reunião que tinham No mês seguinte, após nova debe ser un concepto marcado com a Secretaria-Geral em ocupação do canteiro de obras, o rígido, los órganos Jacareacanga e publicaram nos sites governo federal enviou dois aviões de control de la OIT han establecido que de seus aliados uma versão mentiro- da Força Aérea Brasileira (FAB) lo importante es sa e distorcida sobre esse fato. Agora para buscar 150 Munduruku para que las instituciones representativas ‘sean invadem Belo Monte e dizem que se reunirem na Secretaria-Geral da el fruto de un proceso querem consulta prévia e suspen- Presidência da República, com o propio, interno de los são dos estudos. Isso é impossível. ministro Gilberto Carvalho. O caci- pueblos indígenas’” (Garavito Rodríguez et A consulta prévia exige a realização que-geral, Arnaldo Kaba, sinalizou al., 2010: 69). anterior de estudos técnicos quali- a vontade de dialogar, desde que ficados. Se essas autodenominadas no território indígena, “sem acu- 18. Ver Organização lideranças não querem os estudos, sações e sem força policial” (Brasil, Internacional do como podem querer a consulta? Na Secretaria-Geral da Presidência, Trabalho, Comissão de Especialistas verdade, alguns Munduruku não 2013c). Para tanto, o governo teria na Aplicação de querem nenhum empreendimento que aceitar suspender o licencia- Convenções e em sua região porque estão envol- mento da usina. Não houve acordo Recomendações (2005). vidos com o garimpo ilegal de ouro e Valdemir Munduruku, liderança no Tapajós e afluentes. Um dos prin- da aldeia Teles Pires (TI Munduru- cipais porta-vozes dos invasores em ku), anunciou a continuidade das Belo Monte é proprietário de seis manifestações: balsas de garimpo ilegal (Brasil, Se- cretaria-Geral da Presidência da Re- Se não parar [as obras], com certe- pública, 2013a). za, vamos fazer novas ocupações. Se não parar, não vamos aceitar as con- Caracterizar as lideranças Mun- sultas, que deveriam ter sido feitas duruku responsáveis pelo ato como antes de qualquer coisa. Já que as

286 Pontes Júnior e Oliveira obras estão em andamento, é preci- Nós, entidades e organizações do so que elas parem, o governo faça a movimento social da região do Ta- consulta, para só depois dar encami- pajós, estamos muito preocupados nhamento (Leitão, 2013). com as arbitrariedades do Governo Federal, obstinado em destruir nos- Apesar de toda a resistência dos so belo rio e seus povos. […] Munduruku, o governo não renun- Conscientes de que a Presidente da ciava à sua posição e prosseguia República e seus ministros/as têm com o licenciamento. Novas expe- o dever de respeitar a Constituição dições circulavam no território in- Federal e os tratados internacionais dígena. Três biólogos contratados dos quais o Brasil é signatário, como por empresa terceirizada pela Ele- é o caso da Convenção 169 da Orga- trobras para a elaboração do EIA/ nização Internacional do Trabalho Rima foram detidos e mantidos (OIT), reivindicamos que o IBAMA pelos Munduruku, que condiciona- assuma decididamente a aplicação ram a liberação dos pesquisadores das leis ambientais, não permitindo à suspensão dos estudos. O governo que as obras e o licenciamento do cedeu, paralisou o licenciamento Complexo Hidrelétrico do Tapajós e se comprometeu a agendar nova sejam iniciados sem que haja CON- reunião para julho de 2013, a fim SULTA PRÉVIA aos povos indígenas de pactuar um plano de consulta e comunidades ribeirinhas ameaça- (Clark, 2013a). Contudo, o acordo das por tais empreendimentos. foi descumprido e, em agosto, o governo enviou aviões e tropas da Seguiu-se um longo período sem 19. “O governo aguarda FNSP para garantir o trabalho de qualquer tentativa de diálogo. Ape- que os Mundurukus, 130 técnicos no território Munduru- nas em março de 2014, o governo etnia que reúne 11.600 índios espalhados ku (Santana, 2013). indica que ainda pretende realizar a na região, façam sua No dia 4 de julho, o Movimento consulta19. A violação de direitos dos assembleia de caciques e elejam seus legítimos Tapajós Vivo, o Conselho Indígena indígenas se intensifica na medida representantes. ‘Temos Tapajós Arapiuns e o Grupo Cons- em que o licenciamento avança e, posição aberta e ciência Indígena, entre outras orga- em maio de 2014, a Aneel aceita os queremos dialogar’, diz o antropólogo Thiago nizações locais, divulgaram a “Car- estudos de viabilidade da usina. Garcia, assessor técnico ta aberta ao IBAMA, em defesa do da secretaria. ‘Não estamos rompidos. Rio Tapajós e dos seus povos”, em Considerações finais Houve tensão de parte que criticavam as arbitrariedades A postura do governo federal na eta- a parte, como em qualquer processo de do governo federal e o desrespeito pa inicial do processo de consulta negociação’” (Leitão, à Constituição e à Convenção 169: deixa claro que a decisão pela cons- 2013).

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 287 trução da UHE São Luiz do Tapajós A consulta aos povos indígenas está tomada. Nessa perspectiva, é sobre a UHE São Luiz do Tapajós indiferente o momento de realiza- vem reproduzindo os erros do pas- ção da consulta, uma vez que a de- sado. O caso só representará um di- liberação dos indígenas não modi- visor de águas se o Estado tomar a ficará os intentos da administração sério cada uma de suas obrigações. federal. O primeiro processo de consulta, no Tal proceder é incompatível com âmbito federal, não pode ser mero a boa-fé exigida. A consulta não engodo para referendar decisão go- pode ser transformada em mero vernamental já tomada. Ainda há ato administrativo para referendar tempo para fazer diferente. as decisões estatais. Ainda há tem- po para aprender com os erros do [artigo concluído em julho de 2014] passado (e do presente) e regulari- zar o processo iniciado. Para tanto, Referências bibliográficas o governo deve mudar de postura Brasil. Centrais Elétricas Brasi- e assumir algumas obrigações. A leiras S.A. 2012. Ofício. CTA- primeira é anular os atos editados, -DG-9397/2012. Rio de Janeiro, 20 a exemplo da Resolução CNPE nº3 dez. e do aceite aos estudos de viabili- Brasil. Justiça Federal. 2012. Pro- dade. A segunda é a reparação aos cesso nº3883-98.2012.4.01.3902. povos indígenas pelas violações de Santarém. direitos consumadas e a retirada de Brasil. Justiça Federal. Superior Tri- forças armadas dos territórios. A bunal de Justiça. 2013. Suspensão terceira, e mais delicada, é a criação de liminar e de sentença nº1.745 de um clima favorável à consulta. É - PA. Brasília, 18 abr. 20. “[…] los gobiernos preciso estabelecer a confiança e o Brasil. Justiça Federal. Tribunal tienen la obligación de respeito mútuo, para que a delibe- Regional Federal da Primeira crear las condiciones que permitan ração seja livre e de boa-fé. Conside- Região. 2013. Agravo de instru- a estos pueblos rando o acirramento dos conflitos mento nº19093-27.4.01.0000/PA. contribuir activa y eficazmente en el decorrentes das arbitrariedades e Brasília, 12 abr. proceso de desarrollo” violência da ação estatal, a obriga- Brasil. Ministério de Minas e Ener- (Organização ção exigirá grande esforço. No en- gia. Conselho Nacional de Pes- Internacional do Trabalho, Guía de tanto, é chave lembrar que cabe ao quisa Energética. 2011. Resolução aplicación del Convenio Estado o dever de criar as condições nº3. Indica os projetos de geração 169 apud Garavito Rodríguez et al., favoráveis à participação ativa do de energia elétrica denominados 2010: 81). povo consultado20. Aproveitamentos Hidrelétricos

288 Pontes Júnior e Oliveira São Luiz do Tapajós, Jatobá, Jar- sulta aos Munduruku e a inva- dim do Ouro e Chacorão como são de Belo Monte”. Brasília, 6 projetos estratégicos de interes- maio. Disponível em: (acesso: 28 gov.br/mme/galerias/arquivos/ maio 2013). conselhos_comite/CNPE/reso- ___. 2013b. “Governo apresenta lucao_2011/Resoluxo_3_CNPE_ a líderes do povo Munduruku Complexo_Tapajxs_07_06_11. plano de consulta sobre hidre- pdf> (acesso: 28 maio 2014). létricas no Tapajós”. Sítio da Brasil. Ministério Público Federal. Secretaria-Geral da Presidência 2013. Agravo de instrumento da República. Brasília, 26 abr. na ação civil pública nº3883- Disponível em: (acesso: 28 maio na São Luiz do Tapajós”. Sítio 2014). da Procuradoria da República ___. 2013c. “Governo federal reafir- no Pará. Belém, 26 set. Disponí- ma diálogo com lideranças Mun- vel em: (acesso: jun. Disponível em: pajós e Jatobá. Brasília, abr. (acesso: 28 maio 2014). Brasil. Secretaria-Geral da Pre- Carta aberta ao Ibama, em defesa sidência da República. 2013a. do Rio Tapajós e dos seus povos. “Esclarecimentos sobre a con- Santarém, 4 jul. 2013.

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 289 Chiaretti, Daniela. 2014. “Governo ris, Meghan; Orduz Salinas, quer retornar diálogo com índios Natalia; Buriticá, Paula. 2010. La do Tapajós”. In: Valor Econômico. consulta previa a pueblos indígenas: São Paulo, 28 mar. los estándares del derecho inter- Clark, Nathália. 2013a. “Governo nacional. Bogotá, Universidad de suspende estudos no Tapajós”. los Andes. Sítio do Greenpeace. 24 jun. Leitão, Thais. 2013. “Mundurukus Disponível em: Disponível em: (acesso: 28 www.greenpeace.org/brasil/pt/ maio 2014). Blog/juntos-pelo-tapajs-livre/ Montgomery, Alexandra; Sam- blog/44975/> (acesso: 29 maio paio, Alexandre; Millikan, 2014). Brent; Chammas, Danilo; Baker, Corte Interamericana de Direi- Eduardo; Amorim, Leonardo; tos Humanos. 2012. Caso del Veramendi, María José; Amana- Pueblo Indígena Kichwa de Sara- jás, Roberta; Oliveira, Rodrigo. yaku vs. Ecuador. Sentencia Serie 2014. Situação do direito ao acesso C nº245 (Fondo y reparaciones). à justiça e a suspensão de decisões San José, 27 jun. Disponível em: judiciais (ação de suspensão de se- (acesso: 1 ago. 2013). ordinário de sessões da Comis- ___. 2007. Caso del Pueblo Saramaka são Interamericana de Direitos vs. Surinam. Sentencia Serie C Humanos. Washington, D.C., Jus- nº172 (Excepciones preliminares, tiça Global/Justiça nos Trilhos/ fondo, reparaciones y costas). Sociedade Paraense de Direitos San José, 28 nov. Disponível em: Humanos/Terra de Direitos/Insti- (acesso: 1 ago. 2013). sa del Ambiente/International Garavito Rodríguez, César; Mor- Rivers, 28 mar. Disponível em:

290 Pontes Júnior e Oliveira (acesso: 28 abr. listas na Aplicação de Conven- 2014). ções e Recomendações. 2005. Movimento dos Atingidos por Observação individual sobre a Con- Barragens. 2013. “Munduruku venção 169, Bolívia. reafirmam luta contra barragens Povo indígena Munduruku. 2012. no Tapajós”. Sítio do Movimen- Carta aberta dos Munduruku. Al- to dos Atingidos por Barragens. deia Sawre Muybu, 26 set. 30 abr. Disponível em: Santana, Renato. 2013. “Governo (acesso: 28 maio 2014). quebra acordo com povo Mun- Nota em defesa dos Munduruku do duruku e inicia operação mi- Tapajós. 2014. Belém, 20 maio. litar no Pará”. In: Brasil de Fato. Disponível em: (acesso: 29 maio -tapajos> (acesso: 28 maio 2014). 2014).

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e a consulta prévia 291

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: O alagamento da Terra Indígena Munduruku Daje Kapap E’Ipi e o soterramento da Constituição Federal de 1988 Luis de Camões Lima Boaventura

ste artigo tem por intuito de- pulacional que habita os centros monstrar que a construção da urbanos sem condições dignas de usina hidrelétrica (UHE) de São moradia, saúde e educação, dentre ELuiz do Tapajós causará, a um só outros serviços públicos. Isso, se tempo, a inundação significativa de sobreviverem. Algo é induvidoso: território tradicionalmente ocupa- tanto indígenas quanto ribeirinhos do e utilizado pelo povo indígena enfrentarão sérias dificuldades de Munduruku e a violação da Consti- manutenção de seus costumes, há- tuição Federal de 1988, na medida bitos próprios, organizações sociais em que seu artigo 231, § 5º, estabe- e modos de subsistência. Perderão, lece ser vedada a remoção forçada em larga medida, suas autonomias de povos indígenas de suas terras. e integrarão o já inchado quadro A propósito, não apenas os de brasileiros que dependem, úni- Munduruku serão expulsos de seu ca e exclusivamente, de programas território. Inúmeras outras comu- assistencialistas. nidades tradicionais amazônicas A UHE São Luiz do Tapajós está (vulgarmente denominadas de ri- projetada para ser construída no rio beirinhas), que possuem relação Tapajós, a cerca de 330 quilômetros de todo intrínseca com a natureza da sua foz, no rio Amazonas. Abran- circundante, serão diretamente gerá áreas pertencentes aos municí- impactadas pelo aludido empreen- pios de Itaituba e Trairão, no oeste dimento e passarão a engrossar, do Pará; o eixo do barramento situa- forçosamente, o contingente po- -se próximo à vila Pimental, na mar-

293 1. Vale destacar que tais gem direita do Tapajós. O aludido tado com a utilização por parte de dados são extraídos aproveitamento hidrelétrico inte- indústrias que já se movimentam do estudo de impacto ambiental e do gra o Plano Decenal de Expansão de para se instalar na região próxima relatório de impacto Energia (PDE) 2021 e compõe, junta- ao empreendimento, o que reforça ambiental (EIA/Rima) mente com outras seis UHEs plane- as suspeitas de que estamos diante da UHE. A história recente – em especial, jadas (Jatobá, Jamanxim, Cachoeira de um inequívoco esforço para in- o caso do rio Madeira – do Caí e Cachoeira dos Patos, todas ternalização dos lucros e socialização dos mostra-nos que quase sempre esses dados em estudos; Chacorão e Jardim do prejuízos. Em troca, a UHE ocupará são subestimados. Ouro, inventariadas), o complexo uma área fluvial de 729 quilôme- Vejamos a cheia que hidrelétrico do Tapajós (CHT). Sua tros quadrados, dos quais 376 serão assolou Rondônia no primeiro semestre estrutura física compreenderá bar- de área efetivamente inundada1. O de 2014. Inúmeros ragem, reservatório, casa de força, reservatório se estenderá por 123 estudos apontam que as construções vertedouros e linhas de transmis- quilômetros do rio Tapajós e outros das UHEs de Jirau e são, além de diversas outras obras, 76 do rio Jamanxim. Segundo espe- Santo Antônio foram fatores determinantes provisórias ou definitivas, de in- cialistas, se levado em consideração para a cheia, que fraestrutura de apoio e de conexão todo o CHT, a área a ser inundada ganhou repercussão ao sistema interligado nacional equipara-se à dimensão da maior internacional. 2. Tais informações (SIN), tais como canteiros de obras, metrópole brasileira, a cidade de podem ser encontradas acampamentos, acessos ao local do São Paulo, e equivale a duas vezes e no sítio Barragens na empreendimento, acessos internos meia a inundação causada pela UHE Amazônia. Disponível em: (acesso: 20 Os estudos entregues aos órgãos Xingu, também no Pará2. fev. 2015). Esse sítio reúne as principais licenciadores estimam a geração de Pois bem, no caminho da mas- informações, a partir apenas 4.012 megawatts de ener- sa d’água que restará acumulada de dados oficiais, gia firme, isto é, a máxima energia com a construção da UHE São Luiz sobre as inúmeras UHEs previstas, que pode ser produzida de forma do Tapajós está uma terra indíge- em planejamento, continuada, mesmo nos períodos na (TI) de ocupação tradicional da em construção e em operação na mais secos do rio. Isso representa- etnia Munduruku: a TI Daje Kapap Amazônia. Caso haja rá o atendimento de pouco mais E’Ipi (denominada pelos pariwat3 de curiosidade, basta que seja selecionada de 5% da suposta demanda ener- Sawré Muybu). Tal afirmação se ex- a bacia hidrográfica gética nacional, que, segundo es- trai do próprio estudo de impacto correspondente. No timativas, gira em torno de 70 mil ambiental (EIA) da UHE. A propó- caso, estamos a tratar da bacia hidrográfica megawatts. Detalhe: a expressão sito, a Fundação Nacional do Índio do Tapajós. correta é mesmo “suposta”, tendo (Funai), em três pareceres técnicos 3. Pariwat é o termo em vista que há fortes indicativos que avaliam os estudos de viabili- utilizado pelo povo de que o potencial energético a dade, conclui, enfaticamente, que o Munduruku para se referir ao não índio. ser produzido pela UHE será esgo- empreendimento é inconstitucional,

294 Boaventura recomendando a suspensão imediata b) Envio de ofício ao Ibama [Instituto 4. Importa destacar do licenciamento. Vejamos o que ob- Brasileiro do Meio Ambiente e dos que a imagem aqui inserida (imagem 1) serva a Funai: Recursos Naturais Renováveis] infor- não é a mesma que mando a inviabilidade de análise do consta do documento citado. Isso se deve d) O produto confirma a incidência processo[,] tendo em vista a incons- apenas à necessidade do empreendimento em terra indí- titucionalidade do projeto face a [à] de maior clareza, uma vez que o mapa gena em processo de regularização necessidade de remoção de aldeia[,] utilizado pela autarquia fundiária e indica a necessidade de conforme já citado (Brasil, Ministé- indigenista apresenta remoção de aldeia. rio da Justiça, Fundação Nacional do certas dificuldades de visualização, muito Na matriz de impactos do produto Índio, 2014). embora tenha sido consta: “Necessidade de remaneja- ele o único parâmetro utilizado. mento da população indígena da Há de se salientar, de antemão, aldeia Boa-Fé (Sawré Muybu, Dace que aqui não se está tratando de 5. No documento citado Watpu e Karu Bamaybú)” (pp. 235); eventual remoção forçada indireta, há pouco, a Funai elenca um rol de catorze Em outro trecho, o estudo afirma em decorrência dos possíveis im- impactos negativos às que: Diante da possibilidade de im- pactos negativos e irreversíveis no populações indígenas existentes na área modo de vida dos indígenas, que plementação do empreendimento de influência do AHE [aproveitamento hidrelétrico] poderiam ensejar, uma hora ou ou- empreendimento, SLT [São Luiz do Tapajós] os Mundu- tra, o êxodo de seu espaço tradicio- sendo seis deles irreversíveis, mesmo 5 kuru estão conscientes que a mar- nal . Cuida a hipótese de remoção que implementadas as gem direita do rio terá o reservató- forçada direta, com a inundação mais eficazes medidas compensatórias ou rio alcançando as terras deixando significativa do território indígena, mitigatórias. Seriam inviável a permanência das famílias submergindo-se aldeias, cemitérios, eles: i) geração de expectativas quanto ao no local (p. 243); áreas de roça e caça, sítios arqueoló- futuro da população Os mapas que compõem o produto gicos e lugares sagrados. Basta uma indígena e da região; (localização de áreas de influência simples leitura da Carta Magna para ii) aumento do fluxo migratório para a do ECI [estudo do componente in- que facilmente se perceba que a re- cidade, interferindo dígena] – biótico e mapa de des- moção de povos indígenas de suas nas TIs Praia do Mangue, Praia do matamento e uso do solo no mé- terras é expressamente vedada: Índio, Sawré Apompu dio Tapajós) indicam claramente (Km 43) e Sawré Juybu aldeias dentro do reservatório do Art. 231. São reconhecidos aos índios (São Luiz do Tapajós); iii) necessidade de 4 empreendimento . sua organização social, costumes, remanejamento da 3. Diante do exposto, sugerimos: línguas, crenças e tradições, e os di- TI Daje Kapap E’Ipi; iv) aumento das a) Suspensão do processo de li- reitos originários sobre as terras que transformações em cenciamento ambiental[,] uma tradicionalmente ocupam, compe- diferentes esferas vez que o mesmo apresenta óbice tindo à União demarcá-las, proteger da vida: social, política, econômica e constitucional. e fazer respeitar todos os seus bens. cosmológica; v)

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 295 possibilidade de […] prios. Assim, privados de suas ter- aumento da incidência § 5º – É vedada a remoção dos grupos ras, os índios tendem a se dispersar. de doenças nas áreas indígenas; vi) alteração indígenas de suas terras, salvo, ad re- Nesse sentido, de referências culturais feredum do Congresso Nacional, em do patrimônio histórico, caso de catástrofe ou epidemia que a perda da identidade coletiva para cultural e paisagístico; vii) alteração no ponham em risco sua população, ou os integrantes destes grupos costu- deslocamento fluvial no interesse da soberania do País, ma gerar crises profundas, intenso nos igarapés, rios Jamanxim e Tapajós; após deliberação do Congresso Na- sofrimento e uma sensação de de- viii) alteração dos locais cional, garantido, em qualquer hi- samparo e de desorientação, que di- de caça; ix) alteração pótese, o retorno imediato logo que ficilmente encontram paralelo entre dos locais de coleta de produtos vegetais; cesse o risco (grifo meu). os integrantes da cultura capitalista x) alteração das de massas. Mutatis mutandis, romper espécies de pescado; xi) aumento na pressão A Constituição, assim, assegurou os laços de um índio ou de um qui- de extração sobre os aos indígenas o direito à manuten- lombola com o seu grupo étnico e recursos naturais; ção e preservação de suas culturas xii) perda de áreas de com território tradicionalmente cultura; xiii) alteração específicas, vedando a remoção ocupado é muito mais do que impor de locais para a pesca; justamente por serem as terras tra- o exílio do seu país para um típico e xiv) perda de recursos alimentares (Brasil, dicionalmente ocupadas o espaço ocidental (Sarmento, 2007). Ministério da Justiça, vital e indispensável para a preser- Fundação Nacional do Índio, 2014). vação da identidade desses grupos. Para o povo Munduruku, não é Conforme visto, estão excetuadas diferente. Vejamos o que disse o in- apenas as hipóteses de catástrofe dígena Ademir Kaba Munduruku, ou epidemia que ponham em risco em reunião ocorrida no Palácio do a população indígena, assim como Planalto, em Brasília, no dia 31 de as de interesse da soberania do janeiro de 2015: 6. O Supremo Tribunal país, após deliberação do Congresso Federal (STF), ao julgar o Nacional e garantido, em todos os A terra pra nós significa a garantia habeas corpus nº80.240, foi enfático ao casos, o retorno dos povos quando da nossa existência enquanto seres asseverar a necessidade cesse o risco6. humanos, enquanto indígenas. Pra irrefutável de O território, para as sociedades nós a terra não é vista apenas como observância do art. 231, § 5º, da Carta Magna. indígenas, configura-se como im- um instrumento para enriqueci- portante instrumento para a manu- mento. Nós queremos a terra pra so- 7. Este autor estava tenção da coesão do grupo, possibi- presente na reunião e breviver, pra existir enquanto seres testemunhou a fala. litando, assim, sua continuidade ao humanos (Fasolo, 2015)7. longo do tempo, a preservação de sua cultura diferenciada, bem como Naquela ocasião, cerca de trinta de seus valores e modos de vida pró- lideranças munduruku e algumas

296 Boaventura Imagem 1. Aldeias indígenas no reservatório da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Adaptada de Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2014. lideranças das comunidades de bei- se perceba que a remoção do povo radeiros (ribeirinhos) de Montanha Munduruku em virtude da constru- e Mangabal entregaram, nas mãos ção da UHE São Luiz do Tapajós não do ministro da Secretaria-Geral da se enquadra em qualquer das exce- Presidência da República (SG/PR), ções previstas no texto constitucio- Miguel Rossetto, os protocolos de nal. Afinal, não se trata de catástro- consulta produzidos por indígenas fe ou epidemia – aliás, catastróficas e beiradeiros, por meio dos quais serão as consequências derivadas explicitam, dentre outras questões, da instalação da UHE. Nem mesmo a forma em que desejam dialogar se pode afirmar que a obra é impe- com o governo federal acerca das riosa para o interesse da soberania propostas de barramento dos rios nacional, já que nem todas as situa- Tapajós e Jamanxim. ções que supostamente traduzem Não se faz necessária uma digres- tal interesse podem ensejar a re- são analítica mais detida para que moção de populações indígenas. Tal

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 297 expressão – “interesse de soberania cesse o risco. Nesse contexto, Anjos do país” – deve ser interpretada de Filhos pontifica: forma restritiva, no afã de se evitar distorções e o afastamento da real Pode-se inferir, da leitura do texto intenção do constituinte. Nesse sen- constitucional, que foi adotado tam- tido, Robério Nunes dos Anjos Filho bém o subprincípio da provisorieda- afirma que: de, segundo o qual a remoção é sem- pre provisória e deve durar o menor […] interesse da soberania nacional tempo possível, cessando imediata- é expressão demasiada ampla e que mente assim que não houver mais por isso mesmo permite uma enor- risco (Ibid.: 2415). me gama de variações hermenêuti- cas, o que pode levar à insegurança Em 10 de dezembro de 2014 (Dia e a situações de deliberada distor- Mundial dos Direitos Humanos), ção do texto constitucional com o a Comissão Nacional da Verdade propósito de violar direitos indíge- (CNV) publicou o relatório final de nas, razão pela qual seu conceito seus trabalhos, de todo relevantes deve ser preenchido pelo legislador para resgatar a memória dos tris- ordinário, à luz dos princípios da tes fatos que sucederam durante o máxima proteção às comunidades período ditatorial brasileiro. Mais indígenas e do in dubio pro indígena, especificamente no volume 2 (texto não sendo possível determinar a 5, item 5) do relatório, a CNV traz remoção antes dessa providência le- um chocante breviário de algumas gislativa, cuidando-se, nesse ponto, remoções forçadas de povos indíge- de norma constitucional de eficácia nas em virtude da implantação de limitada e conteúdo programático obras de infraestrutura no decurso (Anjos Filho, 2009: 2417). do referido regime de governo (Bra- sil, Comissão Nacional da Verdade, Ainda que o Congresso Nacional 2014). Algumas sociedades indíge- venha a deliberar favoravelmente nas foram dizimadas, outras tive- à remoção do povo Munduruku de ram sua população drasticamente seu território, essa remoção seria reduzida. O mesmo volume (texto inconstitucional, diante da previ- 5, no item E, intitulado “Mortanda- são de que apenas situações tem- des e massacres”) destaca o caso da porárias a justificam, assegurando UHE Tucuruí, construída em mea- expressamente o retorno imediato dos da década de 1970, também no dos índios às suas terras assim que estado do Pará, e que impactou em

298 Boaventura cheio duas etnias, os Parakanã e os eventual argumento de que basta- Akrãtikatêjê, que ainda hoje encon- ria uma simples transferência das tram sérias dificuldades de recupe- aldeias para porção territorial mais ração. Estaríamos, então, aceitando recuada em relação ao curso d’água, regressar a esse passado sombrio, dentro da mesma TI. que tão nefastas marcas deixou no Segundo o parecer técnico país, visíveis ainda hoje? nº04/2014 da lavra do analista peri- A UHE São Luiz do Tapajós, defi- cial em antropologia do Ministério nitivamente, não encarna a “sobera- Público da União (MPU) Raphael nia nacional”. Muito pelo contrário: Frederico Acioli Moreira da Silva, trata-se de uma obra caríssima, com baseado em dados disponíveis no sí- resultados pífios em termos de ge- tio eletrônico do Ministério da Saú- ração de energia, sobretudo quando de (MS), existem no Brasil meios mais efica- zes e viáveis de produção energé- os Munduruku possuem uma popu- tica. A simples repotenciação das lação de 13.243 pessoas, dentre as turbinas e linhas de transmissão já quais 8.721 estão contabilizadas nas existentes geraria uma quantia sig- terras indígenas referenciadas pelo nificativamente maior de energia. Distrito Sanitário Especial Indígena E o que falar do investimento em (DSEI) Rio Tapajós: TI Munduruku e fontes alternativas que utilizam re- TI Sai-Cinza (alto Tapajós), TI Sawré cursos naturais inesgotáveis, como Muybu, TI Sawré Juybu, TI Sawré o sol e o vento? Apompu, TI Praia do Índio, TI Praia Vale repisar: no que diz respei- do Mangue e família residente na to a São Luiz do Tapajós, estamos localidade Tucunaré (médio Tapajós) a tratar de remoção forçada direta de (Brasil, Ministério Público Federal, população indígena. Em outras pa- Procuradoria da República no Muni- lavras, haverá alagamento significa- cípio de Santarém, 2014b). tivo de território tradicionalmente ocupado pelos índios, com a expul- A presença histórica do povo são direta (e não consequente no Munduruku na bacia hidrográfica decurso do tempo). Somado a isso, do rio Tapajós é tão significativa conforme visto acima, haverá alte- que Aires de Casal, na primeira me- ração substancial do ecossistema, tade do século XIX, referia-se à re- tornando inviável a manutenção do gião como Mundurucânia (Rocha, povo Munduruku na região, razão 2014). É bem verdade que a TI Daje pela qual não se sustenta qualquer Kapap E’ipi (Sawré Muybu), até a

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 299 conclusão deste texto, não foi ain- estes, que a própria Constituição de- da reconhecida oficialmente pelo clarou como “nulos e extintos” (§ 6º Estado brasileiro – o que, diga-se de do art. 231 da CF) (Brasil, Poder Ju- passagem, ratifica o perfil do Brasil diciário, Supremo Tribunal Federal, como um Estado violador de diretos 2009). humanos. No entanto, não se pode olvidar que o procedimento admi- Em oportunidade posterior, o nistrativo de demarcação de TIs não STF ratificou sua jurisprudência, possui caráter constitutivo, sendo ocasião em que o ministro Luis Ro- apenas um ato declaratório de um berto Barroso, no julgamento do direito que precede inclusive a pro- mandado de segurança nº32.262/DF, mulgação da própria Constituição asseverou: Federal de 1988, conforme já reite- radamente pacificado pelo Supre- Além disso, e em segundo lugar, a mo Tribunal Federal (STF). Vejamos jurisprudência deste Tribunal já as- o que restou decidido pela corte no sentou que a demarcação de terras julgamento do caso da TI Raposa indígenas é um ato declaratório, Serra do Sol: que se limita a reconhecer direitos imemoriais que vieram a ser chan- DIREITOS ORIGINÁRIOS. Os direitos celados pela própria Constituição. dos índios sobre as terras que tradi- O que cabe à União, portanto, não é cionalmente ocupam foram cons- escolher onde haverá terras indíge- titucionalmente “reconhecidos”, e nas, mas apenas demarcar as áreas não simplesmente outorgados, com que atendam aos critérios constitu- o que o ato de demarcação se orna cionais, valendo-se, para tanto, de de natureza declaratória, e não pro- estudos técnicos (Brasil, Poder Judi- priamente constitutiva. Ato declara- ciário, Supremo Tribunal Federal, tório de uma situação jurídica ativa 2013). preexistente. Essa a razão de a Carta magna havê-los chamado de “origi- A propósito, os estudos técnicos nários”, a traduzir um direito mais mencionados no julgado acima já antigo do que qualquer outro, de foram devidamente confeccionados maneira a preponderar sobre pre- em relação à TI Daje Kapap E’Ipi tensos direitos adquiridos, mesmo (Sawré Muybu). Trata-se do relató- os materializados em escrituras pú- rio circunstanciado de identificação blicas ou títulos de legitimação de e delimitação (RCID), um conjunto posse em favor de não-índios. Atos, de estudos antropológicos, etno-his-

300 Boaventura tóricos, sociológicos, jurídicos, car- costumes e tradições, estando aten- tográficos, ambientais e fundiários didos, portanto, os critérios estabe- realizados pela Funai e que carac- lecidos pelo texto constitucional, terizam e fundamentam a declara- no artigo 231. Entretanto, em cla- ção da terra como tradicionalmente ra afronta à Constituição, a Funai, ocupada pelos índios, conforme os confessadamente pressionada por preceitos constitucionais, apresen- outros setores do governo federal tando elementos visando à concre- e empreendedores vinculados ao tização das fases subsequentes à setor elétrico e da construção civil, regularização total da terra. É com omite-se de seu dever legal e se re- base nesses estudos, que são apro- cusa a publicar o aludido RCID. Tal vados pelo/a presidente/a da autar- assertiva acima não decorre de me- quia indigenista, que a área será de- ras ilações deste autor. Depreende- clarada (não constituída, repise-se) -se, diretamente, de declarações de ocupação tradicional pelo grupo prestadas pela ex-presidenta da 8 indígena a que se refere, por ato do Funai, Maria Augusta Assirati , e de 8. Vide Brum (2014) e ministro da Justiça – portaria de- documentos oficiais, como a me- Aranha (2015). claratória a ser publicada no Diário mória de uma reunião realizada na Oficial da União (DOU) –, reconhe- sede da autarquia indigenista em cendo-se, assim, formal e objetiva- Brasília em 17 de setembro de 2014, mente, o direito originário indígena que informa que o RCID da TI Daje sobre uma determinada extensão Kapap E’Ipi (Sawré Muybu) já estava do território brasileiro. devidamente produzido, mas não No caso do RCID da TI Daje Ka- fora ainda publicado em virtude tão pap E’Ipi (Sawré Muybu), importa somente da coincidência geográfica destacar que o mesmo foi devida- com a área que será eventualmente mente estruturado nos moldes es- inundada com a construção da UHE tabelecidos pela Funai por meio da São Luiz do Tapajós. portaria nº14/1996, e aponta que a Nesse quadro lastimável de vio- área reivindicada, equivalente a lação de direitos e em virtude da 178.173 hectares e com perímetro insegurança jurídica cujos ônus aproximado de 232 quilômetros, estavam sendo suportados exclu- é de ocupação tradicional da etnia sivamente pelos índios (haja vista Munduruku e reúne as condições toda sorte de vilipêndios à higidez necessárias e indispensáveis à repro- de seu território), o Ministério Pú- dução física e cultural desse grupo blico Federal (MPF) viu-se obrigado indígena, de acordo com seus usos, a apresentar, em maio de 2014, pe-

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 301 rante a Subseção Judiciária Fede- ço de 2015 o julgamento definitivo 9. Cabe notar ainda ral de Itaituba, a ação civil públi- antecipado da lide, o que foi aten- que tramitam no MPF ca (ACP) nº1258-05.2014.4.01.3908, dido pelo juiz federal Ilan Presser. diversos procedimentos administrativos que tencionando que a Funai e a União Em sentença de 29 de abril de 2015, versam acerca de Federal cumpram o seu dever cons- o magistrado confirmou a liminar sérios problemas enfrentados pelo povo titucional e legal de delimitar e de- anteriormente deferida. Assim, o Munduruku habitante marcar a TI Daje Kapap E’Ipi (Sawré direito territorial dos indígenas da TI Sawré Muybu, Muybu)9. Em louvável compreen- estaria assegurado. Ocorre que a cuja razão basilar é justamente a ausência são de seu mister constitucional, o representação judicial da Funai, de conclusão da juiz federal Rafael Leite Paulo, em utilizando-se de um instrumento demarcação. Destaque- se, nesse sentido, o 15 de outubro de 2014, deferiu par- processual criado no período ditato- inquérito civil público cialmente a liminar pugnada, deter- rial brasileiro, a famigerada suspen- nº1.23.002.000625/2011- minando que no prazo máximo de são de segurança (Lei nº8.437/1992, 62, que busca apurar denúncia de extração quinze dias, contados da intimação, art. 4º), conseguiu, junto à presidên- ilegal de produto a Funai avaliasse o RCID e o publi- cia do TRF-1, a sustação dos efeitos florestal no interior da TI por pessoas estranhas casse, caso aprovado, no DOU e no da sentença. A decisão, datada de à comunidade. A partir Diário Oficial do Estado do Pará. Tal 24 de agosto de 2015, fundamenta- da documentação ato seria o suficiente para delimitar -se em escassos e genéricos sete colacionada aos autos do aludido inquérito, formalmente a área e reconhecê-la, parágrafos e se sustenta apenas na em especial do ofício oficialmente, como TI. Ocorre que, assertiva de que o Poder Judiciário nº99/2012/ICMBio/CR3/ STM, de 7 de dezembro incidindo em provável incompreen- não pode intervir no mérito das de- de 2012, facilmente se são em relação ao que determinara cisões administrativas. Detalhe: o percebe que a ausência a decisão judicial de primeira ins- instituto da suspensão de seguran- de demarcação da área é utilizada pelos tância, o desembargador federal ça foi o mesmo que possibilitou, no órgãos competentes Kassio Nunes Marques, do Tribunal plano judicial, a construção da UHE como fundamento para não cumprir o seu Regional Federal da Primeira Re- Belo Monte. Cumpre informar que mister de proteção da gião (TRF-1), em decisão monocráti- a decisão que foi suspendida em ne- integridade territorial e dos recursos naturais ca proferida em 7 de novembro de nhum momento interveio no mé- lá existentes. Ressalte- 2014, apreciando agravo de instru- rito administrativo da Funai, uma se ainda que, no curso mento manejado pela Funai, sus- vez que não determinou a aprova- da autodemarcação empreendida pendeu os efeitos da decisão até o ção do RCID, e sim sua apreciação, pelo próprio povo julgamento final do recurso ou até haja vista o desarrazoado prazo já Munduruku, foram encontrados inúmeros a prolação da sentença, o que ocor- decorrido. garimpos ilegais e focos resse primeiro10. Fica claro, sobretudo a partir de extração ilegal de Retomado o curso do referido das declarações da ex-presidenta madeira dentro dos limites da TI. processo judicial, o MPF, através da Funai e da decisão da Presidên- deste autor, requereu em 31 de mar- cia do TRF1, que há uma inequívoca

302 Boaventura inversão de valores no Estado bra- nutenção da vida do grupo. A esse 10. Na decisão sileiro. Afinal, não cabe à autarquia propósito, vários laudos antropoló- que determinou a suspensão, o indigenista o dever legal de delimi- gicos dão conta da vital importân- desembargador tar territórios indígenas? Por que cia do território compreendido pela federal trouxe, razão suplantar as leis, em especial TI Daje Kapap E’Ipi (Sawré Muybu) como fundamento primacial, limitação de a Constituição Federal de 1988, e para todo o povo Munduruku que cunho orçamentário. condicionar um direito absoluto a habita a calha do rio Tapajós. A Entendeu que a decisão do juízo federal de interesses e atores estranhos ao pro- título de exemplo, destaque-se o primeira instância cedimento normatizado? Só mesmo parecer técnico nº01/2014 elabora- teria determinado em um país onde as leis são descar- do pelo analista pericial em antro- extrusão de terceiros e indenização de táveis um direito constitucional- pologia do MPF Raphael Frederico eventuais posseiros mente assegurado é simplesmente Acioli: de boa-fé. Não se apercebeu o relator negligenciado face à ingerência de de que a decisão interesses políticos e econômicos. Para os Munduruku, a existência suspendida apenas determinava que Esse quadro causa espanto e estar- humana se faz possível graças ao a Funai cumprisse recimento àqueles que confiam nas funcionamento de uma delicada o prazo legal e leis e na justa e necessária luta pelo teia de interdependências entre hu- concluísse a primeira fase do processo de reconhecimento de direitos. manidade e natureza, mediada por demarcação, qual Cansado de esperar o cumpri- espíritos protetores de espécies ve- seja a delimitação, que, por óbvio, não mento do dever legal do Estado, o getais e animais, conhecidos como enseja qualquer povo Munduruku se lançou em uma Mães, da Caça, da Pesca, e outras. As gasto público. Ao empreitada inédita e que certamen- antigas expedições guerreiras pelas contrário, desperdício de recursos públicos te será lembrada na história indi- quais se tornaram conhecidos no ocorre na medida em genista e fundiária do país: estão passado, em que capturavam e mu- que um documento produzido por técnicos fazendo a autodemarcação de seu mificavam as cabeças dos inimigos, da autarquia, que território, seguindo como parâme- tinham como objetivo justamente necessariamente tro justamente o RCID que aguarda agradar esses espíritos, por meio receberam diárias para se deslocarem apenas o ato formal de publicação. do qual garantiam a abundância à área, permanece Com esse expediente, querem eli- alimentar (fl. 103 dos autos do ICP indevidamente “engavetado”. minar qualquer dúvida de que o ter- nº1.23.002.000546/2013-13). Mesmo ritório reivindicado é de ocupação com o fim das guerras tribais, esse tradicional munduruku e garantir princípio de interdependência per- a proteção territorial que caberia manece vivo na cultura Munduru- à Funai realizar. Simultaneamente, ku, e o risco da escassez de recursos afirmam: não abrimos mão de nos- naturais devido às pressões sofridas sas terras! Mais: ratificam que o ter- em seu território pode significar da- ritório é meio indispensável à ma- nos incalculáveis para as condições

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 303 de sua existência como grupo. futuras gerações? Sem elas, o que Além disso, a TI Sawré Muybu com- será de nossa sociedade? A Consti- põe, junto com as outras terras indí- tuição não deixa dúvidas: devemos genas do médio Tapajós, um ponto respeitá-las, protegê-las, defendê- vital das redes de sociabilidade que -las. Nós, os pariwat (não índios), na articulam o conjunto de aldeias maioria das vezes, falamos com os Munduruku em toda a calha do índios acerca de leis. Já os índios Tapajós, seja ao receber os desloca- ensinam-nos humanidade, respeito mentos de indígenas provenientes ao próximo e à natureza. Quem sai do alto Tapajós, seja ao possibilitar ganhando? Certamente os não ín- aos indígenas do médio Tapajós o dios. O triste é perceber que, nesse acesso a recursos naturais e o enga- jogo de perde e ganha, é a sociedade jamento em festas e rituais impor- mundial que sai derrotada. Derrota- tantes para seu sentimento de iden- da pelos grandes interesses econô- tidade coletiva (fls. 108-110 dos autos micos, pela inoperância do Estado, do ICP nº1.23.002.000546/2013-13) pelo descarte injustificável das leis e (Brasil, Ministério Público Federal, pela subserviência das instituições. Procuradoria da República no Muni- No segundo semestre de 2014, cípio de Santarém, 2014a). o Ministério de Minas e Ener- gia (MME) publicou a portaria Nesse quadro, alguns indaga- nº485/2014, agendando o leilão da riam: por qual razão se colocaria UHE São Luiz do Tapajós para 15 de em risco a suposta segurança ener- dezembro de 2014. Pelo cronograma gética do país em respeito à vida de legal de implantação de um apro- alguns milhares de índios amazôni- veitamento hidrelétrico (AHE), a li- cos? A resposta é simples: a ordem citação é etapa posterior à emissão está na Constituição da República de licença prévia (LP). Diante disso, e em tratados internacionais ado- restam algumas indagações. Como tados pelo Brasil. Bom seria se o agendar um leilão sem a LP sequer mundo preservasse mais as socieda- ter sido emitida? Como agendar um des indígenas. Certamente haveria leilão sem que a avaliação técnica mais respeito, mais sabedoria, mais dos estudos de viabilidade tenha amor, mais solidariedade, sobretu- sido realizada integralmente pelos do com aquilo que é tão caro à hu- órgãos competentes? Como agen- manidade: o meio ambiente e nos- dar um leilão sem que a consulta sos antepassados. Sem elas, como livre, prévia e informada (CLPI) te- contaremos nossa história para as nha sido devidamente pactuada

304 Boaventura com as comunidades tradicionais há de se perguntar: os pareceres da que serão diretamente impactadas Funai mencionados neste artigo pelo empreendimento? Estaria o seriam simplesmente desconsidera- MME utilizando bola de cristal e an- dos? Seria o “acordo” mencionado tevendo o resultado das avaliações por Carvalho hierarquicamente su- técnicas dos órgãos competentes? perior à lei suprema do país? Onde Estaria o MME pressupondo que fica a hierarquia no ordenamento haveria mero e fácil consentimen- jurídico brasileiro? Seria o caso de to das comunidades tradicionais revermos todas as bases hermenêu- impactadas? ticas de compreensão normativa? Em entrevista concedida em no- Além de ter em mente o óbice vembro de 2014, o então ministro- constitucional acima estudado – -chefe da SGP/PR, Gilberto Carva- que, destaque-se, é intransponível lho, declarou que o governo federal –, faz-se necessário e urgente que não abriria mão de construir as hi- as instituições (Poder Executivo Fe- drelétricas no Tapajós (Fellet, 2014). deral, Poder Judiciário e Ministério Já em 2015, em entrevista ao jornal Público) e a sociedade brasileira O Estado de S. Paulo, o presidente das como um todo reflitam sobre a UHE Centrais Elétricas Brasileiras S.A. São Luiz do Tapajós, considerando (Eletrobras), José da Costa Carvalho, quatro vertentes: ambiental, social, afirmou que estava sendo “costura- econômica e de geração de energia, do” um “acordo” interinstitucional propriamente dita. Seria ambien- entre a estatal, a Funai e o Ibama, talmente viável uma obra que cer- para que a UHE São Luiz do Tapa- tamente colocaria em extremado jós recebesse as licenças ambien- risco um ecossistema de altíssima tais o mais rápido possível e que o relevância mundial e indispensável leilão fosse realizado ainda no pri- à manutenção da espécie humana, meiro semestre de 2015 (Acordo, a Amazônia? Seria socialmente viá- 2015). Isso nos leva a um prognós- vel uma obra que impactaria nega- tico: mais uma vez a Constituição tivamente e de forma significativa, Federal de 1988 será considerada definitiva e irreversível, inúmeras letra morta em virtude da sanha de populações tradicionais amazôni- concretizar um empreendimento cas, alterando drasticamente seus “desenvolvimentista”. Para os em- modos de vida, inclusive de uma preendedores, não importa se ele numerosa etnia indígena, o povo é viável ou constitucional; importa Munduruku, que corre o risco de so- que ele tem que sair. Diante disso, frer um verdadeiro etnocídio? Seria

Usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: o alagamento da TI Munduruku 305 economicamente viável uma obra Disponível em: (acesso: 13 jan. 2015). energética do país)? É razoável/jus- Anjos Filho, Robério N. 2009. “Ar- tificável que 74% da energia gerada tigos 231 e 232”. In: Bonavides, no Brasil (um país tão rico em diver- Paulo; Miranda, Jorge; Agra, sos recursos naturais renováveis) Walber M. (org.). Comentários à provenha de fontes hidráulicas e Constituição Federal de 1988. Rio de que não sejam feitos investimentos Janeiro, Forense. substanciais em fontes bem menos Aranha, Ana. 2015. “‘A Funai está impactantes, como a solar e eólica? sendo desvalorizada e sua au- Estaria o governo federal deveras tonomia totalmente descon- comprometido com os empreende- siderada’, diz ex-presidente” dores interessados na construção (entrevista com Maria Augusta da UHE, os mesmos que financiam Assirati). In: A Pública – Agência as campanhas políticas e que no de reportagem e jornalismo inves- presente momento estão vendo tigativo. São Paulo, 27 jan. 2015. descortinados seus laços ilícitos a Disponível em: (acesso: 2 mos capítulos, atentos a como serão fev. 2015). respondidas as indagações acima. Brasil. Comissão Nacional da Verda- de. 2014. Relatório, v.2. Brasília. [artigo concluído em setembro de 2015] Brasil. Ministério da Justiça. Funda- ção Nacional do Índio. 1996. Por- Referências bibliográficas taria nº14, de 09 de janeiro. Abrão, Paulo de Tarso Siqueira. ___. 2014. Informação nº249/COEP/ 2010. Constituição Federal interpre- CGLIC/DPDS/FUNAI-MJ. Brasília, tada. Barueri, Manole. 25 set. Acordo sobre Tapajós está pró- Brasil. Ministério Público Fede- ximo, diz Eletrobrás. 2015. In: ral. Procuradoria da Repúbli- Agência Estado. São Paulo, 9 jan. ca no Município de Santarém.

306 Boaventura 2014. Ação civil pública nº1258- ponível em: ___. 2014a. Parecer nº01/2014/ (acesso: 20 fev. 2015). Pericial. Ref. Inquérito ci- Fellet, João. 2014. “Dilma deixou a vil nº1.23.002.000546/2013- desejar no diálogo com a socie- 13 e inquérito civil dade, diz ministro”. In: BBC Brasil. nº1.23.002.000625/2011-62. Santa- Brasília, 10 nov. Disponível em: rém, 9 maio. (acesso: 20 ca nº0003883-98.2012.4.01.3902. jan. 2015). Santarém, 5 dez. Novos esquemas na mira. 2014. Sí- Brasil. Poder Judiciário. Supremo tio da Associação Nacional dos Tribunal Federal. 2013. Decisão. Delegados de Polícia Federal. Mandado de segurança nº32.262/ Brasília, 8 dez. Disponível em: DF. Brasília, 20 ago. segundo o governo Dilma Rous- (acesso: 10 jan. 2015). seff”. In: Desacontecimentos. São Rocha, Bruna C. 2014. Arqueologia Paulo, 27 nov. Disponível em: regional no Alto rio Tapajós. Relató- (acesso: 10 dez. 2014). nescentes de quilombos antes Bulos, Uadi Lammêgo. 2007. Curso da desapropriação”. In: Revista de de direito constitucional. São Paulo, Direito do Estado, v.2, nº7. Rio de Saraiva. Janeiro, Instituto de Direito do Fasolo, Carolina. 2015. “‘A terra pra Estado e Ações Sociais/Editora nós significa a garantia da nossa Renovar, pp. 345–360. existência’, dizem Munduruku ao ministro Miguel Rossetto”. In: Cimi Notícias. Brasília, 30 jan. Dis-

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Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica dos indígenas Munduruku e sua importância para o respeito à Convenção 169 da OIT Pierre Pica, Sidarta Ribeiro, Jairo Saw e Mauricio Torres

1 ntes de a Organização das Na- Davis, 1978; Ribeiro, 1979) . A partir 1. A Convenção 169 foi ções Unidas (ONU) proclamar, de então, o Estado deveria consul- levada ao Congresso Nacional em 1991, mas em 2007, a primeira Declara- tar povos indígenas e comunidades só foi ratificada em 20 Ação sobre os Direitos dos Povos In- tradicionais antes de tomar deci- de junho de 2002, pelo Decreto Legislativo dígenas, outra agência internacio- sões que os afetassem. E mais: tal nº143, entrando em nal, a Organização Internacional do consulta deveria ser livre, prévia e vigor em 2003. Trabalho (OIT) – que, desde a década informada, de modo que teria como de 1920, preocupava-se com os po- pressuposto o domínio dos povos vos e comunidades tradicionais –, consultados sobre as ações preten- adotou a Convenção 169 sobre Po- didas e seus impactos. Em outras vos Indígenas e Tribais em Países palavras, a consulta livre, prévia e Independentes (Convenção 169), informada (CLPI) só se faz quando em 1989 (Figueiroa, 2009). Ao ratifi- seu propósito resta compreendido car o documento, em 2002, o Brasil pelo grupo consultado, o que torna parecia avançar no reconhecimento imperativo que esteja situada em dos direitos indígenas conquistados termos de língua e linguagem (Du- com a Constituição Federal de 1988 prat, 2014). e dar mais um passo importante na Contudo, o Brasil pouco ou inversão da política indigenista ofi- quase nada caminhou no que diz cial, historicamente marcada por respeito à aplicação da CLPI. Os di- integração forçada, expropriações, versos povos indígenas afetados, extermínios, esterilizações compul- por exemplo, pelo megaprojeto da sórias, entre outras violações (e.g. usina hidrelétrica (UHE) de Belo

309 Monte, no rio Xingu, apesar do um vocabulário reduzido para de- substantivo impacto que sofrem, ti- signar números foi observado des- veram solapados seus direitos e em de os primeiros contatos com os momento algum foram consultados Tupinambá. Isso despertou o inte- – muito menos, nos termos da CLPI resse de filósofos como Locke (1961 (Beltrão et al., 2014). No caso das [1690]), que argumentou que o con- pretensões de barramento do rio ceito básico de número pode ser re- Tapajós, a resistência do povo Mun- duzido à ideia de “um” (a ideia mais duruku, expressa em diversos atos universal que temos) e sua repeti- de enfrentamento, teve como uma ção, estando disponível para nós das principais pautas a exigência de mesmo sem a ajuda da cultura, em- serem consultados (Torres, 2014). A bora esta possa ser útil em algumas pressão social decorrente da mobili- circunstâncias (como apontado por 2 2. Ver também zação munduruku contribuiu para Butterworth, 2005) . A tensão entre comentários de Wallace que, em 2012, o Ministério Públi- o que é universal e o que depende (1864), segundo o qual a emergência co Federal (MPF) obtivesse, junto à para o seu desenvolvimento de uma de números, bem justiça federal, decisão que proibiu determinada cultura tem sido o cer- como a existência de a concessão da licença prévia (LP) ne de muitos debates desde então. sociedades com poucos números, levantam para a UHE São Luiz do Tapajós Esta breve nota salienta a importân- sérias questões enquanto não fossem realizadas cia dos conhecimentos atuais a esse sobre a evolução tal como proposta por as CLPI aos índios e demais comu- respeito, tendo em conta a distinção Darwin (também nidades tradicionais afetadas pelo entre competência e desempenho citado em Chomsky, empreendimento. Entretanto, se o (Dehaene et al., 2007), para a efetiva- 2010). Os numerais munduruku são pûg povo Munduruku tem hoje assegu- ção da etapa informativa acerca das (um), frequentemente rada a realização da CLPI, o mesmo pretensões de barramento do rio Ta- associado com o marcador de foco ma não se pode dizer de sua efetividade pajós – etapa imprescindível à CLPI, (como em pûg ma, para além de um brilhante verniz. conforme prescrito pela Convenção “único”); xep xep (dois); ebapûg (três); ebadipdip As complexas peculiaridades da or- 169. (quatro); e pûg pôg bi ganização mental e social dos Mun- Curiosamente, essas lacunas lexi- (literalmente “uma duruku fazem com que a tarefa de cais (para adotar a terminologia de mão”, i.e. cinco). Para análise, ver Pica & informar acerca do megaempreendi- Hale em seu seminal artigo de 1971) Lecomte (2008). mento não seja algo direto e ime- foram um tanto esquecidas ou sim- diato. É disso que trata este texto. plesmente aceitas como naturais, até o artigo de Pica et al. (2002), que Um sistema cognitivo distinto levantou evidências de que as mes- O fato de que as populações indíge- mas não seriam um acidente, mas nas que habitam o Brasil possuem deveriam ser vinculadas ao fato de

310 Pica, Ribeiro, Saw e Torres os Munduruku possuírem um siste- ma de aproximação aritmética rico e complexo3. Esse tipo de sistema é parte da herança genética de todos os seres humanos, sendo frequente- mente bem desenvolvido em socie- dades ditas “primitivas”. Em diver- sas sociedades com limitado acesso a tecnologias, as pessoas fazem uso de estruturas matematicamente sofisticadas – que, em nossa socie- dade, são muitas vezes utilizadas por especialistas –, para elaborar, por exemplo, as complexas estru- turas de parentesco que permitem Imagem 1. Léxico dos números em munduruku. Extraído de Pica et al.: 2005. a um grupo distinguir-se de outros “Apresentávamos aos participantes quadros de 1 a 15 pontos, por ordem (ver Chomsky, 2002, ecoando Hale, aleatória, e pedíamos-lhes para dizerem quantos pontos haviam. Para cada quantidade no eixo dos x, o gráfico mostra a fração das vezes em que foi 1971). designada por uma palavra ou expressão dada. Apresentamos unicamente A estrutura fina desse sistema os dados para as palavras e locuções produzidas em mais de 2,5% de todos os cognitivo é hoje muito bem estu- ensaios. Para os números superiores a 5, a soma das frequências é inferior a 100%: isto vem do facto de muitos participantes terem produzido locuções dada, graças ao trabalho pioneiro ou frases raras ou idiossincráticas como ‘todos os meus dedos dos pés’ (os de Dehaene (2001) sobre senso nu- autores têm disponível uma lista completa)” (Ibid.: 206). mérico e aritmética aproximada. 3. Do ponto de Essa pesquisa já produziu grande os Munduruku não têm etiquetas vista dos autores, quantidade de resultados acerca da lexicais reais são “mais próximos” as características da matemática relação entre tal sistema e o chama- uns dos outros que os números pe- munduruku não são do mapeamento logarítmico da re- quenos. Os numerais munduruku, acidentais. Elas só lação espaço-número (ver Dehaene com a possível exceção de palavras podem existir porque a matemática indígena et al., 2008, e sua informação suple- para “um” e “dois”, não se referem é a “origem” de todas mentar). Esse mapeamento equiva- a quantidades exatas e têm apenas as matemáticas, até a do mundo digital, le a dizer que a “distância” entre os uma interpretação aproximada que a “apagou”. Para poucos números pequenos de que (para uma abordagem voltada ao concepções diferentes os Munduruku dispõem não é igual público leigo, ver Bellos, 2010). da variação, ver o estudo crítico de Barany para diferentes números. Ao con- É um tanto misterioso que os (2014) sobre teorias de trário do mundo digital, em que to- Munduruku, grupo contatado des- “números selvagens” no caso da pré-história dos os números são equidistantes, de meados do século XVIII (Noro- vitoriana. os grandes números para os quais nha, 2006 [1768]), tenham mantido

Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica 311 esse sistema mesmo depois de um não possuem em sua língua pala- contato tão longo com a sociedade vras para números maiores que cin- ocidental (ver Ball, 2008, para uma co. Foi surpreendente para todos os 4 4. Sobre a natureza tentativa de explicação) . A nature- investigadores, bem como para os do mapeamento za desse sistema cognitivo, de que Munduruku, descobrir que a maio- logarítmico e a sua relação com a são dotados todos os seres humanos ria dos sujeitos Munduruku bilín- psicofísica, ver Dehaene antes de serem expostos à educação gues junto aos quais pesquisamos (2003). A propriedade e/ou à tecnologia, é bem estuda- utiliza numerais em português tam- de proporcionalidade do mapeamento da. Pode-se afirmar com segurança bém de forma aproximada. logarítmico parece ser, que os Munduruku não estão “so- A ausência de um sistema de de uma forma mais geral, relacionada zinhos” na utilização desse sistema representação exata, em conjunto ao fato de que os (ver Gilmore et al., 2007, para uma com a presença de intuições uni- Munduruku usam informações sensoriais perspectiva cognitiva, e Gordon, versais sobre a aritmética, não é para interpretar seu 2002, para fatos relacionados aos in- um fato isolado. Pesquisas poste- ambiente e tomar dígenas Pirahã). riores documentaram que, embora decisões, muito no espírito de Akre e O autor principal desta nota tem os Munduruku possuam intuição Johnsen (2014). documentado em detalhes a arqui- geral sobre geometria, não dis- tetura cognitiva dos Munduruku põem de vocabulário para figuras no domínio da aritmética (ver Pica como “quadrado exato” ou “triân- 5. Estamos realizando, et al., 2002). Embora o desempenho gulo exato” (Dehaene et al., 2006, atualmente, um projeto dos Munduruku na tarefa de apro- ver informações suplementares). no curso superior do rio Cururu (Ribeiro; ximação numérica (comparação do Essa população, temos mostrado, Pica, 2013), com o número de pontos) seja equivalente desenvolveu um rico sistema, com- intuito de determinar em que condições os ao do grupo controle, os Munduruku posto por “intuições flexíveis”, que Munduruku podem não conseguem bom desempenho transcendem o perceptível. Como ter acesso a conceitos em tarefas de aritmética envolven- no caso de números aproximados, matemáticos exatos que queiram apreender, do operações como subtração. Eles essas intuições, que parecem ser sem sofrer as quedas são capazes de comparar e adicio- parte de nossa herança genética, cognitivas que estão normalmente nar grandes números aproximados desenvolvem-se na ausência de tec- associadas à que estão muito além de sua gama nologia e/ou educação formal, mas aprendizagem dessa matemática (cf. de nomeação. No entanto, não con- não permitem o desenvolvimento Dehaene; Cohen, 2007). seguem fazer cálculos exatos com de geometria e aritmética exatas, Para um estudo sobre números maiores que 2 ou 3. como é habitual em nossas socieda- o impacto da educação formal entre os Pode ser necessário sublinhar des (ver também Frank et al., 2008 e Munduruku, com base neste ponto que o desempenho dos Butterworth et al., 2008, entre mui- em investigações em 5 aldeias no alto Cururu, Munduruku não pode ser inteira- tos outros) . Assim como o concei- ver Piazza et al. (2013). mente reduzido ao fato de que eles to de reta numerada linearmente

312 Pica, Ribeiro, Saw e Torres parece ser uma invenção cultural É preciso ter em mente que os que não consegue se desenvolver numerais munduruku estão asso- na ausência de educação formal, ciados a um rico sistema de uni- os Munduruku não desenvolvem o dades (classificadores) relacionado conceito de figuras aritméticas exa- à cognição visual, de modo que as tas, como quadrados ou círculos, unidades são diferenciadas segundo como exemplifica a palavra iwake- suas propriedades sensoriais. Por tkut, que significa “objeto arredon- exemplo, unidades são diferencia- dado imperfeito”. das de acordo com a sua forma, em Tais fatos antropologicamente termos de objetos compridos seme- intrigantes têm implicações con- lhantes ao braço (ba) (como em ako- cretas na empreitada de informar -ba, uma banana), objetos redondos ao grupo sobre os complexos me- semelhantes à semente (como em gaprojetos que impactam seu terri- kasop-ta, uma estrela) ou objetos em tório e seu modo de vida. Portanto, grupo (como em ako-dot, um cacho relacionam-se diretamente à efeti- de banana), entre muitos outros vação da CLPI. Eles indicam que a (veja as informações suplementares dificuldade encontrada pelos Mun- de Dehaene et al., 2006)6. Não deve, 6. Ver nota 4. Os duruku quando lidam com aritmé- portanto, causar surpresa que ine- Munduruku dependem (mais que nós) de tica e geometria exatas é real. Pelas xista, entre os Munduruku, a noção informação sensorial mesmas razões, a peculiaridade do de “potência” no sentido matemá- para interpretar seu ambiente, como, por vocabulário munduruku, em que tico do termo, que noções como exemplo, para contar não há unidades exatas de medi- metro quadrado ou metro cúbico itens ou navegar da para espaço, tempo ou número sejam completamente ausentes da espacialmente. (como “metro”, “quilo”, “segundo” cultura desse povo, e que noções etc.), deve ser seriamente conside- como muwegun (medida) tenham rada. As dificuldades que um Mun- apenas um significado aproximado. duruku encontra não podem ser Cabe salientar mais uma vez que reduzidas a uma série de lacunas a questão não pode ser reduzida a lexicais acidentais, mas sim a uma um problema de tradução, já que profunda diferença de arquiteturas o entendimento dessas noções faz cognitivas entre esse povo indígena referência implícita a certo tipo de e as sociedades ocidentais; à preva- cognição que está totalmente au- lência, entre os primeiros, de um sente da cultura oral indígena, tanto sistema aproximativo universal; e à quanto a maioria dos conceitos da relação ainda pouco compreendida física contemporânea – em termos entre cognição e tecnologia. de “compressão temporal”, “entre-

Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica 313 Imagem 2. Páginas do laçamento quântico” e quejandos sobre o que está em jogo atualmen- relatório de impacto – está ausente da cognição dos au- te, dadas as grandes modificações ambiental (Rima) da usina hidrelétrica (UHE) tores deste pequeno texto. Apenas em suas vidas e ambiente causadas de São Luiz do Tapajós. na imagem 1, extraída de um do- pelos atuais projetos tecnológicos O documento tenta tornar mais acessíveis cumento que pretende traduzir os em curso na Amazônia, requer mui- os dados técnicos do estudos em termos mais acessíveis, to trabalho e raciocínio – muito EIA, levando-os ao encontramos uma série de mais de provavelmente, em conjunto com entendimento do público geral (Brasil, 14 conceitos – como “superfície”, os próprios Munduruku. Apenas a Centrais Elétricas “metros”, “quilômetros,” “quilôme- reformulação de todos os documen- Brasileiras S.A., [2014]). tros quadrados”, “milhões”, “me- tos destinados aos Munduruku em gawatts”, “vazão remanescente”, termos adequados a sua aritmética “vertedouro”, “desnível”, “mínimo” e geometria aproximadas garantirá – que estão totalmente ausentes da que todos os Munduruku tenham cultura munduruku, além de ter- acesso às informações contidas mos parcialmente ausentes, como nesses documentos, independente- “largura”, “comprimento” e “direi- mente de status social ou político, ta”, que, entre os Munduruku, têm e da existência de maior ou menor outros sentidos. contato com a sociedade envolven- Com base no exposto, pode-se te. Essa constatação reveste-se de facilmente concluir que a comuni- importância ainda maior no atual cação adequada com os Munduruku contexto, dado que os próprios

314 Pica, Ribeiro, Saw e Torres Munduruku, como se indicará a se- Os Munduruku, entretanto, não guir, estipularam que todo o grupo, se espantaram quando, transcorri- independentemente de idade, sexo dos menos de dez dias da reunião, ou posição social, deve ser informa- o governo federal desrespeitou ab- do e consultado acerca das preten- solutamente o que fora acordado e, sões de barramento que os afetam. por meio do Ministério de Minas e Energia (MME), publicou a Portaria O protocolo de CLPI aos nº485, agendando o leilão da (pre- Munduruku tensa) UHE São Luiz do Tapajós para Como se indicou, a aceitação do go- 15 de dezembro seguinte. Note-se: verno federal de realizar a CLPI não o leilão só poderia ocorrer após a se deveu à presumível disposição do LP, a ser conferida pelo Instituto Estado em cumprir a lei – no caso, Brasileiro do Meio Ambiente e dos a Convenção 169 da OIT –, mas à Recursos Naturais Renováveis (Iba- derrota no Judiciário, que proibiu ma), ao passo que a LP, por ordem qualquer emissão de licença à UHE judicial, deveria ser necessariamen- São Luiz do Tapajós antes que a CLPI te precedida pela CLPI. Ou seja, sem Imagem 3. Indígenas fosse realizada. Apenas após ter considerar todas as dificuldades Munduruku em seus recursos judiciais indeferidos, de comunicação entre os Mundu- oficina sobre o direito o governo aceitou dialogar com os ruku e os não índios, algumas das à consulta livre, prévia e informada, na aldeia Munduruku sobre a realização da quais elencadas no presente texto, Waro Apompu, Terra consulta. E detalhes do processo o governo pretendia tomar por “en- Indígena Munduruku. Por Mauricio Torres, set. justificam os temores de que se pre- tendido” pelos indígenas, em ques- 2014. tenda, com a CPLI, apenas um efeito cosmético. Nos dias 2 e 3 de setembro de 2014, na aldeia Praia do Mangue, em Itaituba, o governo federal reu- niu-se com os Munduruku para dis- cutir como seria feita a consulta. Na ocasião, graduados funcionários do governo alardeavam que a consulta seria algo inédito no Brasil e inau- guraria um novo patamar na rela- ção entre Estado e povos indígenas. Comprometeram-se, na ocasião, a respeitar a Convenção 169.

Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica 315 tão de dias, um projeto de escalas nais, raiz, folha, aqueles senhores megalômanas. que sabem os lugares sagrados”. As- Novamente, a mobilização do sim como também devem ser con- povo Munduruku, com o apoio do sultados os caciques (que “reúnem MPF, conseguiu fazer com que a todo mundo para discutirmos o que portaria fosse revogada e o leilão, vamos fazer”), guerreiros e guerrei- desmarcado. O governo, com isso, ras. Do mesmo modo, devem ser não tinha como se furtar à reali- escutadas “as mulheres, para dividi- zação da CLPI. Entretanto, deixava rem sua experiência e suas informa- transparecer sua pretensão de que a ções”, inclusive as pajés, parteiras e consulta se limitasse a algo cosméti- artesãs. “Elas cuidam da roça, dão co. Os Munduruku, então, tomaram ideias, preparam a comida, fazem a dianteira e resolveram não espe- remédios caseiros e têm muitos co- rar que o modelo da CLPI viesse de nhecimentos tradicionais.” Ainda cima. No mesmo mês de setembro, segundo o protocolo, devem ser ou- realizaram a primeira reunião em vidos “os estudantes universitários, que, junto com o MPF, teceram um pedagogos Munduruku, estudantes documento em que pautavam, em do Ibaorebu [projeto de educação detalhes, quem deveria ser consul- executado pela Fundação Nacional tado, onde a consulta deveria ocor- do Índio (Funai) junto aos Mundu- rer, como e em que ritmo. ruku], e os jovens que andam acom- O protocolo, concluído na aldeia panhados das criancas”. Sai-Cinza, na Terra Indígena (TI) de Como se vê, a tendência gover- mesmo nome, em 13 e 14 de dezem- namental a reduzir a CLPI a uma bro de 2014, evidencia o interesse e sequência de ritos formais, os mais a disposição do povo Munduruku abreviados possíveis e alheios às es- para conhecer os projetos de barra- pecificidades do povo Munduruku, mento do rio Tapajós e ser ouvido contrasta frontalmente com a am- a esse respeito. No documento, es- plitude e complexidade que emer- pecificam, por exemplo, que jamais gem da caracterização do processo a consulta pode se dar por meio de de consulta efetuada pelos indíge- suas associações ou dos vereadores nas em seu protocolo. munduruku (“que não respondem pelo nosso povo”). Devem ser ouvi- Considerações finais dos “os sábios antigos, os pajés, os É evidente que, para ouvir a todos, senhores que sabem contar histó- há que informar a todos acerca do ria, que sabem medicinas tradicio- projeto em pauta. Resta saber, en-

316 Pica, Ribeiro, Saw e Torres tretanto, se o governo federal, res- mesmas um sinal de advertência ponsável por empreender a CLPI, contra a destruição. O que está em está disposto a, ao menos, conhecer jogo é nada menos que a preserva- as dificuldades do diálogo em ques- ção da diversidade da cognição hu- tão ou se entende a consulta apenas mana – uma diversidade que, além como mais um item de um burocrá- de ser um valor em si, pode muito tico checklist. bem ser indispensável para o futuro Os estudos de viabilidade técnica e sobrevivência de nossa espécie. e econômica das UHEs foram uma autoritária exibição de desrespeito [artigo concluído em fevereiro de 2015] aos Munduruku. Os índios exigiam – como lhes garante a lei – serem Referências bibliográficas consultados antes da entrada de akre, Karin L.; Johnsen, Sönke. pesquisadores em seu território. 2014. “Psychophysics and the Porém, ante a resistência que im- evolution of behavior”. In: Trends puseram, a resposta do governo foi in Ecology & Evolution, v.29, nº5. El- montar uma verdadeira operação sevier, pp. 291-300. de guerra, com um desproporcional Ball, Philip. 2008. “Why we should número de homens do exército e love logarithms”. In: Nature. da Força Nacional de Segurança Pú- Londres, 29 maio. Disponí- blica (FNSP), escoltando os pesqui- vel em: (acesso: 10 Esses acontecimentos revelam jan. 2015). como povos e comunidades tra- Barany, Michael. 2014. “Savage dicionais continuam sendo vistos numbers and the evolution of como um “obstáculo” a ser removi- civilization in Victorian prehis- do, para permitir o desenvolvimen- tory”. In: The British Journal for the to da dita “sociedade nacional”. History of Science, v.47, nº2. Cam- Entretanto, mostram também a re- bridge, Cambridge University sistência do povo Munduruku, quer Press, pp. 239-255. seja pela sua língua, pelo seu rio Bellos, Alex. 2010. Alex’s adventures ou simplesmente pelo seu direito a in Numberland: dispatches from existir em sua alteridade. the wonderful world of mathe- As propriedades incrivelmente matics. Londres, Bloomsbury. ricas da organização mental e social Beltrão, Jane F.; Oliveira, Assis da dos Munduruku representam em si C.; Pontes Júnior, Felício. 2014.

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Uma nota sobre a geometria e o sistema de aproximação numérica 321

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena Andreia Fanzeres e Andrea Jakubaszko

Antigamente matavam o índio com ao sul, os Paresi (Aruak). Vinte ter- doença. Hoje é o próprio governo. ras indígenas (TIs) incidem aí, esten- Tentaram matar pela espada, pelo fogo e dendo-se por uma área equivalente pela cruz. Hoje a gente não pode brigar a 21% da bacia (Brasil, Ministério de contra o governo porque está tudo feito. Minas e Energia, Empresa de Pes- (Nicolau Rikbaktsa, dez. 2013) quisa Energética, 2010). Das aproximadamente 300 et- s corpos d’água da bacia do nias indígenas encontradas no Bra- rio Juruena, um dos princi- sil, em torno de 47 estão presentes pais formadores do rio Ta- no estado de Mato Grosso, expres- Opajós, drenam uma área de cerca sas em mais de 30 diferentes lín- de 191 mil km2, quase em sua tota- guas, faladas por 42.538 indígenas lidade no estado de Mato Grosso. (Brasil, Instituto Brasileiro de Geo- Situada na Amazônia meridional, grafia e Estatística, 2010). Assim, essa bacia corresponde a uma área Mato Grosso é, simultaneamente, o de transição entre cerrado/savana e terceiro estado do Brasil em socio- Amazônia/floresta, abrigando ime- diversidade étnica e polo econômi- morialmente os povos Myky/Irant- co de referência na produção agro- xe (língua isolada), Enawene Nawe pecuária. Os contextos de pressão (Aruak), Nambikwara (outra língua ambiental e fundiária que esse de- isolada), Bakairi e Rikbaktsa (tron- sordenado e acelerado processo de co linguístico Macro-Jê), Kayabi, ocupação produz, por meio de seus Apiaká e Munduruku (todos Tupi) e, modelos de exploração econômica,

323 têm afetado diretamente as condi- na região, totalizam-se mais de 80 ções de vida das populações indíge- intervenções na bacia do Juruena, nas que habitam ancestralmente o um dos principais formadores do território. Tapajós. A região, caracterizada por O potencial de geração de ener- diversas nascentes, tem por isso gia na bacia do Juruena, consideran- mesmo recebido o maior número do-se todos os estudos de inventário de pequenas centrais hidrelétricas 1 1. De acordo com a disponíveis, está estimado em apro- (PCHs) . Essas, aos olhos dos ór- resolução nº652/2003 ximadamente 10,95 mil megawatts, gãos licenciadores – notadamente da Agência Nacional de Energia Elétrica segundo a avaliação ambiental inte- a Secretaria de Estado de Meio Am- (Aneel), enquadra-se grada (AAI) da bacia do rio Juruena, biente de Mato Grosso (Sema/MT) na condição de PCH elaborada pela Empresa de Pesquisa –, acarretam impactos pontuais e o aproveitamento hidrelétrico com Energética (EPE) em 2010 (Brasil, Mi- pouco significativos. Percebemos, potência superior a nistério de Minas e Energia, Empre- no entanto, que as várias usinas 1 megawatt e igual ou inferior a 30 sa de Pesquisa Energética, 2010). A formam verdadeiros conjuntos de megawatts. região do Juruena-Tapajós é divisa empreendimentos, com localização entre duas importantes sub-regiões próxima e sequencial, que geram zoogeográficas ou centros de ende- efeitos cumulativos e sinérgicos em mismo e sua degradação acarreta sua área de incidência. Esses im- o isolamento das populações que pactos são sentidos pelas diversas caracterizam esses centros, inter- populações que vivem nas proximi- ferindo diretamente em processos dades dessas usinas, notadamente geradores e mantenedores de diver- os indígenas, e também são regis- sidade biológica. Nesse contexto, as trados pelo próprio governo. Entre regiões de cabeceiras são apontadas os empreendimentos, destacamos: como particularmente importantes para a manutenção de tais proces- i) Sacre/Papagaio – quatro PCHs, si- sos, pois os fluxos no sentido norte- tuadas parcialmente na TI Utiariti, -sul garantiriam a conservação de posto que o rio Sacre constitui um todo o complexo gradiente cerrado- dos limites da mesma; -Amazônia, onde comunidades bio- ii) Sangue – sete aproveitamentos hi- lógicas bastante diferenciadas en- drelétricos (AHEs), sendo quatro tram em contato. acima de 30 megawatts. Dois dos Levando em consideração todos AHEs apresentam-se a montante e os empreendimentos em opera- a jusante do limite da TI Manoki, ção, em instalação e previstos nos dado que o próprio rio do Sangue diversos inventários já realizados constitui um dos limites da mes-

324 Fanzeres e Jakubaszko ma, e um dos AHEs situa-se parcial- um dos principais tributários do mente na TI Erikpatsa; rio Juruena, registra um índice de iii) Cravari – quatro AHEs, sendo dois desmatamento na casa dos 40%; próximos ao patamar de 30 mega- trata-se de uma região com vastas watts. Um dos AHEs localiza-se no lavouras e intensa aplicação de interior das TIs Irantxe e Manoki, agrotóxicos (Idem). A área é consi- e outro, a jusante, sendo que parte derada prioritária para a proteção do reservatório pode afetar essas da biodiversidade e para a criação duas TIs; de áreas protegidas no estado. Ape- iv) Peixes – uma PCH (Juara), próxima sar disso, se todos os AHEs planeja- à TI Apiaká-Kayabi, a montante de dos pelo governo federal forem de seu limite; fato consumados, o rio do Sangue v) Cabeceira do Juruena – dez usinas, terá sofrido, na próxima década, sendo três equivalentes ou acima uma redução na sua capacidade de de 30 megawatts. Constituem um transporte de sedimentos da ordem conjunto de AHEs muito próximos de 88,6%. Esse dado tem sido con- e sequenciais. Embora não afetem siderado insignificante no âmbi- diretamente áreas legalmente to dos licenciamentos ambientais protegidas, localizam-se imediata- conduzidos em Mato Grosso, que mente a montante da TI Enawene costumam não enxergar a cumula- Nawe; tividade entre empreendimentos, vi) Baixo Juruena (São Simão e Salto liberando-os, um a um, como se Augusto) – empreendimentos de não tivessem conexão alguma en- grande porte, no interior do Par- tre si. que Nacional (Parna) do Juruena. No dia 19 de junho de 2013, em uma votação apertada, o presidente Quando se consideram os diver- em exercício do Conselho Estadual sos conjuntos de empreendimentos de Meio Ambiente de Mato Grosso sequenciais que afetam direta ou in- (Consema/MT), Ilson Sanches, deu diretamente as áreas protegidas da seu voto de minerva, favorável ao bacia do Juruena, salta aos olhos o referendo da licença prévia da usi- cercamento das TIs. Nesse sentido, na hidrelétrica (UHE) de Paiaguá, destacamos o território Manoki, afe- projetada para gerar 28 megawatts, tado por nada menos que 11 usinas, ao custo do alagamento de 2,2 mil situadas nos rios Cravari e Sangue. hectares e perda de 19 quilômetros De acordo com a AAI do Jurue- do rio do Sangue (Global Energia na, a sub-bacia do rio do Sangue, Elétrica S.A., 2011).

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 325 Perto de tantos outros empreen- gia de pesquisa e à identificação de dimentos de maior magnitude na espécies. Além disso, os peritos des- bacia do Tapajós, o caso poderia cobriram que trechos inteiros do passar despercebido. Aliás, não pa- estudo de impacto ambiental (EIA) rece interessar mesmo que a socie- eram cópias ipsis literis de uma tese dade saiba que tanto a UHE Paiaguá, de doutoramento, facilmente en- como os outros 80 empreendimen- contrada na internet, sem ser feita tos previstos para a bacia do rio Ju- sequer menção ao autor. ruena são usinas sequenciais que As audiências públicas, ademais, geram impactos irreversíveis a 20 continham vícios insanáveis, pois TIs, que, juntas, protegem quatro privaram a população de esclareci- milhões de hectares. mentos básicos sobre o projeto da Na quase totalidade dos proces- usina, de acordo com os próprios sos de licenciamento ambiental registros das atas. Elas continham, em curso na bacia, identificam- em quase sua totalidade, trechos -se enxurradas de erros técnicos e que revelavam que as perguntas da desleixo nos estudos apresentados população não foram respondidas, pelos empreendedores. No caso da não foram devidamente registra- votação histórica que daria a licen- das ou foram respondidas de forma ça prévia à UHE Paiaguá, os estudos incompleta ou, ainda, incorreta. ambientais relacionados à masto- Como se lê na ata da audiência pú- fauna, ictiofauna, herpetofauna e blica realizada em Nova Maringá, avifauna foram feitos, em tempo em 2012, quando perguntado se os recorde, por um único profissional, peixes iriam conseguir subir o rio sem especialização. para procriar, o empreendedor ex- De acordo com manifestação for- plicou, por exemplo, que mal do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE/MT) no proces- os peixes se adaptarão à nova reali- so, essas pesquisas foram feitas com dade, mais [sic] somente foi identifi- pressa e sem a menor precisão. E cado [sic] 5 (cinco) espécies migrató- essa é, por assim dizer, apenas uma rias, e que o local onde está sendo gota em um rio de absurdos com construída a usina não afetará mui- os quais compactua a Sema/MT. O to esta rota migratória. MPE demonstrou que o empreen- dedor se baseou majoritariamente Vale observar que, de acordo em dados secundários e cometeu com a AAI Juruena, ignorada no erros primários quanto à metodolo- processo, os resultados das análises

326 Fanzeres e Jakubaszko de coleções de peixes do rio Juruena (Probio), apesar de já enfrentar in- e seus afluentes Arinos, Papagaio, tenso processo de ocupação, espe- Peixes e Sangue compreendem uma cialmente pelas culturas vinculadas listagem de 146 espécies, com des- ao agronegócio. taque para as famílias Anostomidae Outro fato concerne à manifes- (piaus), Charicidae (pacus) e Lorica- tação realizada pela Fundação Na- ridae, indicadoras de elevada biodi- cional do Índio (Funai) à Sema/MT versidade. Essa listagem, contudo, e ao empreendedor no contexto da pode ser considerada incompleta e, UHE Paiaguá, 15 dias antes das au- provavelmente, muito distante do diências públicas, determinando a número de espécies existentes na realização de estudo do componen- bacia (Brasil, Ministério de Minas e te indígena (ECI), com consulta pré- Energia, Empresa de Pesquisa Ener- via às comunidades afetadas – ação gética, 2010). que, pelos procedimentos internos Por causa da especificidade dos da Funai, deve ser iniciada com rios transparentes da bacia, a AAI uma primeira comunicação entre o ressalta a importância de haver um empreendedor e os indígenas. termo de referência que proponha Como se vê, a Funai – tão recor- a aplicação de técnicas de coleta rentemente criticada pelo próprio adequadas para os peixes de cada Consema/MT em suas reuniões or- região, o que não tem sido obser- dinárias, por supostamente não res- vado nos licenciamentos estaduais. ponder aos pedidos de manifestação As espécies de piracema são as mais encaminhados pelo setor de licen- influenciadas negativamente pelos ciamento da Sema/MT – deu, sim, impactos da construção de barra- orientações para a consulta aos po- gens, com geração a fio d’água ou vos Manoki e Paresi, potencialmente não. afetados se instalado o empreendi- Além disso, as áreas mais preser- mento. Mas invisível ficou esta mani- vadas nessa porção da bacia corres- festação da Funai no parecer técnico pondem ao interflúvio das sub-ba- da Sema/MT, que, à revelia, reco- cias do rio do Sangue e rio Arinos, mendou a liberação da licença. No área proposta para conservação, âmbito do Consema/MT, a Sema/MT tanto no Zoneamento Sócio-Eco- induziu os conselheiros à interpreta- nômico-Ecológico (ZSEE) do estado ção de que a Funai não tinha dado de Mato Grosso, quanto no Projeto importância ao empreendimento e Nacional de Ações Integradas Pú- não havia se manifestado. Mas, mes- blico-Privadas para Biodiversidade mo de posse de comunicação por

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 327 escrito e após contato por telefone as instituições e as leis vigentes no com a Funai, o órgão licenciador do país”. O cacique fez outra pertinen- estado de Mato Grosso omitiu-se, te contribuição ao Consema/MT, re- não exigindo do empreendedor o latando os impactos subestimados cumprimento do rito determinado da PCH Bocaiúva, no rio Cravari. Si- pela Funai. Esse, segundo o órgão in- tuada a 30 quilômetros da TI, a PCH digenista federal, era requisito para reduziu drasticamente a vazão do a emissão do termo de referência rio, causando severo impacto sobre para o ECI – diga-se, parte integrante os peixes. O relato dessa experiên- do EIA, sem o qual o estudo não de- cia – que seria de imensa valia para veria ter sido considerado completo. o órgão licenciador estadual, caso Apenas seis meses depois do ofício levasse esse tipo de informação em da Funai, a Sema/MT enviou uma consideração nas próximas vezes comunicação formal ao empreende- em que licenciasse hidrelétricas na dor – que, desde setembro de 2012, mesma bacia do rio Juruena – não sabia, mas discordava da necessida- surtiu efeito. A Sema/MT preferiu de de ECI, alegando que, em razão manter seus olhos vendados para de o empreendimento localizar-se a os graves impactos das usinas do Ju- mais de 10 quilômetros da TI Mano- ruena às áreas protegidas. ki (situa-se a 25 quilômetros, segun- Mesmo após tamanha decepção do ele mesmo aferiu), não haveria com o licenciamento ambiental da qualquer impacto sobre o território UHE Paiaguá, os Manoki não desis- indígena. tiram de protestar. Protocolaram Nem mesmo a presença de di- manifestações ao Ministério Pú- versos indígenas no plenário da Or- blico Federal (MPF), continuaram dem dos Advogados do Brasil (OAB), monitorando as áreas e buscando, onde foi realizada a referida reu- através de trabalhos de vigilância nião do Consema/MT, constrangeu territorial por rio e por terra, mais os empreendedores, a Sema/MT ou subsídios para uma discussão na os conselheiros que votaram pela li- comunidade sobre os impactos vin- beração da licença da UHE Paiaguá. douros de tantas usinas cercando Representados pelo cacique geral seu território. E não somente delas, do povo Manoki, Manoel Kanunxi, mas de diversos outros empreendi- 2. PBA é o conjunto de programas com os os índios disseram que “não são mentos, como ferrovias, estradas e quais o empreendedor contra o progresso, mas desejam linhas de transmissão que, apesar se compromete visando que os estudos para as usinas sejam de seus planos básicos ambientais mitigar o impacto de 2 sua atividade. feitos com qualidade, respeitando (PBA) , têm provocado incontáveis

328 Fanzeres e Jakubaszko consequências ao bem-estar e cultu- a apontar com confiabilidade os ra indígenas na região. A insistência impactos socioambientais sobre as dos indígenas em suspender licen- comunidades indígenas afetadas, ciamentos ambientais nessas condi- antes da marcação de audiências pú- ções surtiu efeito concreto cerca de blicas (Idem). três meses depois, quando a justiça Imagem 1. Jovens Manoki em trajes federal determinou a paralisação Importa lembrar que o Código de festa. O território do processo, evocando o princípio Estadual de Meio Ambiente de Mato manoki é afetado por 11 usinas, situadas nos rios da precaução, considerando tam- Grosso, alterado pela Lei Comple- Cravari e Sangue. Por bém que o empreendimento pode mentar nº70, de 15 de setembro de Flavio Souza/Opan. representar uma “devastação cultu- ral e ambiental que perigosamente se avizinha” (Brasil, Justiça Federal, Primeira Vara Federal da Seção Ju- diciária do Estado de Mato Grosso, 2013). O juiz Ilan Presser, em manifes- tação que se destaca em meio a tan- tas sentenças em que o Judiciário se rende ao apelo da necessidade do “progresso”, alertou textualmente que

o poder judiciário não pode tolerar, sob o pretexto da necessidade de de- senvolvimento célere, a desconside- ração do marco regulatório vigente à construção de usinas, em que haja povos indígenas afetados (Idem).

Acrescentou, ainda, que

é inadmissível a imposição da ace- leração de um procedimento com- plexo de licenciamento, que ignore a necessidade de um consistente Estudo de Componente Indígena,

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 329 2000, determina que a elaboração impacto de uma usina considerada do EIA e do relatório de impacto pequena para os parâmetros do li- ambiental (Rima) apenas é obriga- cenciamento ambiental (e, ainda, tória nos casos de hidrelétricas com distante). A PCH Bocaiúva foi cons- capacidade acima de 30 megawatts. truída para gerar 30 megawatts, Essa medida é alvo de ação direta de mas só tem fôlego para 12 mega- inconstitucionalidade (Adin), pois watts, porque suas duas turbinas contraria os termos da Resolução foram superdimensionadas para a Conama nº1/1986. Apesar de ques- vazão real do rio. Por óbvio: quan- tionada por organizações socioam- do se copiam dados sobre vazão de bientais do estado, ela continua sen- outros rios que sequer pertencem à do livre e apressadamente aplicada sub-bacia em licenciamento, o em- nos processos de licenciamento. preendedor e, pior, as populações No entorno do território Mano- afetadas ficam sujeitas a despropó- ki, verifica-se que os projetos das sitos como esse. PCHs Bocaiúva, Cedro, Mogno, Fa- E não se trata de conclusão ape- veiro, Garganta da Jararaca, Inxú e nas dos índios. Em julho de 2013, Baruíto têm potência superior a 10 eles ouviram essa explicação de téc- megawatts (Brasil, Ministério de Mi- nicos e engenheiros que participa- nas e Energia, Empresa de Pesquisa ram das obras e que hoje estão en- Energética, 2010). Portanto, con- volvidos justamente na construção forme a resolução Conama recém- da PCH Inxú, a montante de seu ter- -mencionada, dependem da elabo- ritório, na mesma sub-bacia do rio ração de EIA/Rima, a ser submetido do Sangue. Um dos técnicos entre- ao órgão, algo que só ocorreu para vistados pelos indígenas afirmou: as PCHs Mogno (cujo licenciamento encontra-se parado por desistência A máquina fica parada ali seis me- do empreendedor) e Bocaiúva, em ses. Ela devia gerar 15 MW, mas gera operação. 10 MW, 12 MW. Quando construíram lá, não tinha vazão, não tinham fei- Bocaiúva, o antiexemplo to esta avaliação. Os estudos falha- Após uma série de avaliações consi- ram. O maior prejuízo foi descobrir derando o funcionamento da PCH que o rio não tinha água (Operação Bocaiúva, localizada a 30 quilôme- Amazônia Nativa, 2013b). tros do território manoki, os indí- genas compreenderam de modo Ele completou: “Tivemos que cristalino quão elevado pode ser o mudar o projeto. Na hora que cava-

330 Fanzeres e Jakubaszko mos, só tinha areia. Ficou mais caro. água corrente; então, isso para mim Estimamos um valor e gastamos o não serve. Eles estão mentindo. dobro”. Os indígenas já sabiam dis- so. Moradores da aldeia Cravari (TI Ao longo do tempo, o acúmulo Irantxe) questionam: de experiências com PBAs tem evi- denciado a distância entre as pro- Esse rio [Cravari] não é para colocar messas associadas à compensação muita usina, essa água não toca as ambiental dos empreendimentos quatro turbinas que tem na Bocaiú- no entorno do território Manoki e o va, na seca toca só duas. Eles desli- que efetivamente acontece, confor- gam duas. Para que quer mais usina? me revela o cacique geral Manoki, Manoel Kanunxi: A decepção com os impactos da PCH Bocaúva ficou ainda mais Isso é impacto de uma vida. Se fosse concreta quando os indígenas deci- possível a gente debater e não dei- diram, em julho de 2013, percorrer xar isso acontecer… Isso é uma coi- de barco a distância entre a usina sa que estraga muito. Acho que não e o limite de sua terra. Ao contrá- compensa ter um carro se o leito do rio do que estavam acostumados, rio acaba. não conseguiram visualizar nem Primeiro a gente apanha, na segun- pescar um peixe sequer. A esse res- da a gente não acredita mais. Já era peito, o indígena José Paulo (Kunik) para ter feito uma coisa bem feita observou: para a gente acreditar no que vem depois. A gente vai cobrar do gover- Isso que eles montam escada para no uma coisa bem feita. Para falar peixe subir; não sobe, porque peixe desse jeito, não queremos. Energia não tem pé. Depois que monta a bar- é bom, é progresso, mas ao mesmo ragem, eles falam que não prejudica tempo traz prejuízo para a gente, nada. Mas prejudica, porque antes traz as consequências. aqui no rio Cravari tinha matrinchã, A compensação, ela não é tão favorá- pacu, piau, pintado, que a gente pe- vel como ela está. A compensação é gava. E hoje em dia não tem. Um uma pequenina coisa, ela não vai pa- dia eu e outros parentes fomos pes- gar tudo do jeito que estava. A gen- car perto da Bocaiúva. Vimos cada te, com essa experiência, vai receber pacuzinho deste tamanho, morto, o quê? São só dois anos e acabou. E o porque não tinha oxigênio na água resto? Eu sei que essa energia vai du- e eles não são de água parada, são de rar pra sempre. Mas a compensação

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 331 Imagem 2. Barragem construída pelos Enawene Nawe para pesca coletiva durante o Yaokwa. Desde 2008, as pescarias não têm sido exitosas, em decorrência do complexo hidrelétrico do Juruena. Por Ubiray Rezende/Arquivo Opan.

é muito pequena, não compensa. É Segredo, Sapezal, Jesuíta, Cidezal e

3. O Yaokwa é melhor deixar do jeito que estava UHEs Juruena e Cachoeirão) (Brasil, considerado a antes do que compensar uma coisa Ministério de Minas e Energia, Em- principal cerimônia do calendário ritual que não vai ser compensada. presa de Pesquisa Energética, 2010). dos Enawene Nawe. O MPF ingressou com uma ação Caracteriza-se pela No caso Enawene Nawe, desde civil pública (ACP) após constatar pesca coletiva de barragem , realizada 2008, é público e notório que os indícios de ilegalidade no licencia- durante o período indígenas não conseguem realizar mento ambiental de todas essas de seca, e é marcado por interações com pescarias exitosas, dependendo usinas. Em 2002, as empresas Maggi os yakairiti, seres da compra de frango e peixe con- Energia e Linear Participações e In- naturais do patamar gelado para a realização do ritual corporação Ltda. solicitaram à ex- subterrâneo que 3 necessitam que Yaokwa . Isso ocorre em função dos tinta Fundação Estadual do Meio os Enawene Nawe dez empreendimentos propostos Ambiente (Fema) licença prévia satisfaçam seu desejo voraz por sal pela Juruena Participações e Inves- às PCHs Sapezal, Divisa Alta, Ilha vegetal, peixe e outros timentos S.A. e Maggi Energia S.A., Comprida, Rondon, Parecis, Segre- alimentos, derivados do com total de 263,2 megawatts, que milho e da mandioca. do, Cidezal e Telegráfica, no rio Ju- compõem o complexo hidrelétrico ruena. Para embasar o pedido, um do Juruena - CHJ (PCHs Telegráfica, diagnóstico ambiental foi entregue. Rondon, Parecis, Ilha Comprida, Em apenas três meses, as licenças

332 Fanzeres e Jakubaszko prévias estavam nas mãos dos em- que não era necessário realizar um preendedores. E, um mês depois, só processo para todas as usinas. Se- saíram as de instalação. De acordo gundo ela, com o MPF, só então a Funai tomou conhecimento das usinas, supri- Não haverá impactos diretos às ter- mindo-se qualquer possibilidade de ras indígenas. A PCH mais próxima o órgão indigenista intervir no pro- fica a 40 quilômetros e existe um do- cesso de licenciamento (Fanzeres, cumento do próprio Ibama dizendo 2008). que a competência do licenciamen- Segundo a ação, enquanto o ór- to é mesmo da Sema (Idem). gão ambiental solicitava estudos ambientais complementares, os Note-se que o grupo econômico empreendedores já pediam a reno- integrado por nove construtoras vação das licenças de instalação. responsáveis pela construção de Mas, por causa do descumprimento PCHs em Mato Grosso respondeu, das condicionantes das licenças an- ainda em 2009, a uma ACP movida teriores, a Fema notificou-os sobre pelo Ministério Público do Trabalho a impossibilidade de atendê-los. (MPT), no município de Sapezal. Fo- Na época, a Funai havia considera- ram encontrados nos canteiros de do como insuficientes os estudos obras das PCHs Cidezal, Parecis, Ron- antropológicos feitos para as po- don, Sapezal e Telegráfica 78 traba- pulações das TIs Enawene Nawe, lhadores em condição degradante, Myky, Nambiquara, Tirecatinga, Pa- alojados em barracos de lona, sem resi, Juininha, Utiariti, Erikbaktsa e água potável, sem alimentação con- Japuíra. dizente com a dignidade humana e Em maio de 2006, o MPF pediu a sem carteira de trabalho assinada. realização de um estudo integrado Os trabalhadores foram resgatados de bacia hidrográfica como condi- pelo grupo móvel de fiscalização; ção para a continuidade do licencia- depois disso, foram localizados ain- mento, que foi entregue em 2007. É da outros cinco empregados que importante frisar que, nessa época, também denunciaram maus tratos não havia a AAI da bacia do Juruena. (Construtoras, 2009). A então superintendente de infraes- Em 2011, os Enawene Nawe con- trutura da Sema, Lílian Ferreira dos seguiram o registro do ritual Yaokwa Santos, garantiu que foram feitos como patrimônio cultural do Brasil, os procedimentos normais de licen- apesar de os trabalhos de avaliação ciamento e seus técnicos avaliaram terem sido finalizados em 2008 (em

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 333 tese, ainda em tempo hábil para governo a utilização do discurso da influenciar o processo de licencia- energia para angariar votos. mento das usinas). Para cumprirem Os planos decenais de expansão esse importante ritual, também de energia (PDEs) têm se restringido reconhecido como patrimônio da a uma visão “ofertista”, sem entrar humanidade pela Organização das no mérito do necessário questiona- Nações Unidas para a Educação, mento de suas previsões de deman- a Ciência e a Cultura (Unesco), os da. De acordo com dados do Movi- indígenas encontram sérias difi- mento dos Atingidos por Barragens culdades, em virtude do desapare- (MAB), o Brasil tem mais de 2 mil cimento de peixes, decorrente da barragens, com um número supe- implantação do CHJ. Em 2008, eles rior a 1 milhão de pessoas atingidas, chegaram a incendiar o canteiro de das quais 70% não foram indeni- obras da PCH Telegráfica e, mesmo zadas. Hoje, são 1.443 projetos em assim, não foram ouvidos em seus construção, inventariados ou em protestos em relação à implantação estudo de viabilidade. das usinas. Segundo diagnóstico realizado pela Funai no estado de Mato Gros- Considerações finais so, ao menos 20 povos indígenas Sob a influência de grandes grupos serão afetados pelos empreendi- econômicos nacionais e internacio- mentos programados no eixo Ener- nais, e de seus aliados políticos, que gia do Programa de Aceleração do formam a base da “indústria das Crescimento (PAC) 1 e 2, que prevê barragens”, o governo federal cons- a construção de 63 PCHs e 17 gran- truiu um sistema elétrico que prio- des usinas na sub-bacia do Juruena. riza a geração hidrelétrica. Criou-se, Além disso, a Funai considera que assim, um emaranhado de interes- praticamente 90% das TIs afetadas ses, que indicam a inexistência de por empreendimentos desse eixo uma real capacidade de planeja- já se encontram, hoje, em situação mento, e o menosprezo pela eficiên- de risco. Essa situação é decorrência cia energética e pela diversificação da presença de madeireiras, mine- da matriz. Nesse campo, encon- ração, empreendimentos e invasões tram-se empreiteiras, indústrias de para fins diversos (Verdum, 2012). equipamentos, geradoras, comer- Percebemos que as etapas de in- cializadoras, agências reguladoras, ventário, aprovação, licenciamen- grupos políticos e econômicos que to, construção e operação dos em- conflitam entre si e disputam com o preendimentos hidrelétricos vêm

334 Fanzeres e Jakubaszko ocorrendo rapidamente na bacia do Não podemos falar em desenvolvi- Juruena, sem a participação dos in- mento da Amazônia sem considerar dígenas – infelizmente, uma carac- os povos que estão lá. Eles são vistos terística para toda a Amazônia. Em como externalidades, obstáculos e vez de serem considerados sujeitos não [como] cidadãos. e principais impactados pela maio- ria desses empreendimentos, de- Como observou Gilmar do Car- vendo ser ouvidos e respeitados, os mo Kutop Kayabi, da aldeia Nova indígenas têm sido invisibilizados Munduruku (TI Apiaká-Kayabi), em pelos estudos de impacto ambien- dezembro de 2013, tal. Bem como outros segmentos da sociedade civil, eles não têm tido Não adianta pensar que isso não qualquer possibilidade de partici- vai nos atingir. Vai acabar castanha, par da discussão acerca da política açaí, patuá, cacau. Se houver cons- energética nacional e do modelo trução, temos medo de não ter mais de desenvolvimento pensado para isso. Vai matar outros tipos de plan- a bacia do rio Juruena. Aos indíge- ta. O governo está vindo com todas as nas, restam seus direitos violados, forças. Com arco e flecha não temos os impactos e a diminuição drástica como enfrentar metralhadoras. Nós da qualidade de vida das comunida- temos que procurar nos defender des dentro e fora de seus territórios para que os impactos não destruam tradicionais. tudo que temos hoje. A fazenda está Como destaca Paul Little, a mil metros da nossa aldeia. Nossa cachoeira fica na divisa da reserva Estamos enfrentando um surto de com a fazenda. Era para sair uma empreendimentos energéticos. É o PCH. Não deram andamento. Os ma- neodesenvolvimentismo dos anos teriais estragaram. Temos medo que 70 e 80, com a diferença de haver a soja e os agrotóxicos intoxiquem mais dinheiro em jogo e mais im- nossa comunidade. A devastação lá pacto, e um quadro novo de finan- está grande. Hoje batemos timbó na ciamento, com protagonismo de lagoa, tiramos o sustento da natu- Brasil e China4. reza. Se for construída a usina, se a 4. Conservação barragem se romper, nossos filhos e Estratégica. Curso sobre megaprojetos para As comunidades, aponta o pes- netos podem nunca ver isso. jornalistas. Brasília, nov. quisador, só estão recebendo os im- 2012. Com. oral. pactos, os conflitos sociais, ambien- [artigo concluído em julho de 2014] tais e fundiários.

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 335 Referências bibliográficas gia. Empresa de Pesquisa Energé- Ata de audiência pública sobre a tica. 2010. Estudos de inventário usina hidrelétrica Paiaguá. 2012. hidrelétrico da bacia do rio Jurue- Nova Maringá. na. Relatório final, v. 25, apêndi- Brasil. Conselho Nacional do Meio ce E. Avaliação ambiental inte- Ambiente. 1986. Resolução Co- grada da alternativa selecionada. nama n°1/1986. Dispõe sobre Brasília. Disponível em: (acesso: ponível em: (acesso: 2 abr. pondem por trabalho escravo. 2014). 2009. In: Gazeta Digital. Cuiabá, Brasil. Instituto Brasileiro de Geo- 20 out. grafia e Estatística. 2010. Censo Ecotrópica. 2012. Resposta ao pe- 2010. Características gerais dos dido de vistas referente ao li- indígenas: resultados do univer- cenciamento ambiental da UHE so. Tabela 1.14 - Pessoas indíge- Paiaguá, a ser construída no rio nas, por sexo, segundo o tronco do Sangue, bacia do rio Juruena linguístico, a família linguística (MT). Processo nº98103/11. Cuia- e a etnia ou povo - Brasil - 2010. bá, 6 jun. Disponível em: (aces- Censo_Demografico_2010/Carac- so: 2 abr. 2014). teristicas_Gerais_dos_Indigenas/ Fanzeres, Andreia. 2008. “Parem pdf/tab_1_14.pdf> (acesso: 2 abr. as máquinas”. In: O Eco. 25 abr. 2014). Disponível em: (acesso: 2 abr. 2014). nº4529. Global Energia Elétrica S.A. 2011. Brasil. Justiça Federal. Primeira Estudo de impacto ambiental e Vara Federal da Seção Judiciária relatório de impacto ambiental - do Estado de Mato Grosso. 2013. UHE Paiaguá. Cuiabá. Decisão. Processo nº0010798- Mato Grosso. Conselho Estadual 65.2013.4.01.3600. Cuiabá, 30 set. do Meio Ambiente. 2013. Reso- Brasil. Ministério de Minas e Ener- lução Consema nº42/2013. Cuia-

336 Fanzeres e Jakubaszko bá, 19 jun. 2013. In: Diário Oficial Operação Amazônia Nativa. 2013a. de Mato Grosso, nº26070. Cuiabá, Relatório interno: Encontro em 21 jun. Disponível em: dição Rio do Sangue. Cuiabá. (acesso: 2 abr. 2014). Verdum, Ricardo. 2012. As obras de Mato Grosso. Governo do Estado infraestrutura do PAC e os povos indí- de Mato Grosso. 2000. Lei Com- genas na Amazônia brasileira. Nota plementar n°70, de 15 de setem- técnica 9 (Observatório de Inves- bro. Altera dispositivos da Lei timentos na Amazônia). Brasília, Complementar nº38, de 21 de Inesc. Disponível em: (acesso: so de licenciamento ambiental 2 abr. 2014). nº98103/11 – Novo Norte Energia e Consultoria Ltda. Cuiabá.

Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do rio Juruena 337

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku às barragens no Tapajós Helena Palmquist

Nós, povo Munduruku, aprendemos com ter com os Munduruku qualquer nossos ancestrais que devemos ser fortes eventual barramento –, o primei- como a grande onça pintada e nossa ro momento em que a resistência palavra deve ser como o rio, que corre indígena aos projetos de aprovei- sempre na mesma direção. O que nós tamento hidrelétrico da bacia do falamos vale mais que qualquer papel Tapajós aparece para o Brasil é em assinado. Assim vivemos há muitos outubro de 2011, quando os Kayabi séculos nesta terra. e os Munduruku, reunidos na aldeia O governo brasileiro age como a sucuri Kururuzinho (Terra Indígena - TI Ka- gigante, que vai apertando devagar, yabi), no Teles Pires, anunciam que querendo que a gente não tenha mais sete funcionários da Empresa de força e morra sem ar. Vai prometendo, Pesquisa Energética (EPE) e da Fun- vai mentindo, vai enganando dação Nacional do Índio (Funai) são (Comunicado dos Munduruku ao reféns. Considerando esse e outros governo federal sobre a demarcação episódios ocorridos desde então, o da Terra Indígena Sawre Muybu, presente artigo tem por objetivo 2014). apresentar alguns marcos cronoló- gicos da resistência de povos indíge- pesar de haver registros des- nas e comunidades tradicionais aos de a década de 1980 de confli- numerosos aproveitamentos hidre- tos com as Centrais Elétricas létricos (AHEs) previstos e em cons- Ado Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) trução na bacia do Tapajós, com – que prometeram, na época, deba- ênfase na mobilização munduruku.

339 Ele recupera, ainda, informações sa gaiola. Muito embora levássemos sobre a participação dos Munduru- a sério as ameaças, procurávamos ku na resistência à usina hidrelétri- nos convencer de que a situação não ca (UHE) de Belo Monte. chegaria às últimas consequências. Os funcionários da EPE e da Funai No final do dia, a notícia de que te- estavam na região fazendo estudos ria havido uma reunião no Palácio para o complexo Tapajós-Teles Pi- do Planalto: uma comissão chefiada res, que previa dez UHEs, quatro pelo Secretário Geral da Presidên- das quais (Teles Pires, São Manoel, cia da República seria enviada. Essa Jatobá e São Luiz do Tapajós) afeta- perspectiva não impediu que nas riam diretamente os territórios dos reuniões noturnas os discursos fi- Munduruku, Kayabi e Apiaká. Foi cassem ainda mais inflamados. Pela um momento muito tenso e até as- primeira vez, foi aventada a possibi- sessores de Raoni Metuktire, conhe- lidade de cortarem nossos pescoços cida liderança kayapó, foram para a (Silva, 2011). aldeia reforçar o movimento. O an- tropólogo César Maurício Batista da Naquele momento, o governo já Silva, um dos reféns, registrou: tinha avançado muito no empreen- dimento de Belo Monte, no Xingu. Na quinta-feira o dia raiou sob a O leilão havia sido realizado em expectativa da chegada do cacique abril de 2010 e, em junho de 2011, Raoni. À tarde, chegaram quatro foi concedida a licença de instala- kaiapós, assessores dele, que insti- ção (LI), que permitiu o financia- garam ainda mais os ânimos. Nós, mento da UHE pelo Banco Nacional que já estávamos proibidos de usar de Desenvolvimento Econômico e o telefone, fomos impedidos tam- Social (BNDES) e o início das obras bém de circular. Passaríamos os dias no Xingu. Em um dos formadores e noites dentro do posto da Funai. do Tapajós, o Teles Pires, a situação Adolescentes que vigiavam as duas também era grave. Já estavam em entradas do cativeiro eram nomea- obras as UHEs Sinop, Colíder e Teles dos guerreiros, o que soa estranho a Pires, e avançavam apressadamente olhos brancos, moldados à constru- os estudos para o licenciamento da ção social da juventude como hiato UHE São Manoel. Além da imensa entre a infância e a idade adulta. Ain- barragem do Xingu e das cinco do da sem respostas do governo, vimos Teles Pires, o governo brasileiro já a tensão aumentar no dia seguinte havia anunciado outras cinco para quando começaram a construir nos- o Tapajós (São Luiz do Tapajós, Ja-

340 Palmquist tobá, Jamanxim, Cachoeira do Caí Decenal de Expansão de Energia e Cachoeira dos Patos). A preocu- (PDE) 2020, 85% da expansão hidrelé- pação crescia entre os povos da ba- trica planejada pelo governo federal cia – índios, mas também beiradei- entre 2016 e 2020 ocorrerá na Ama- ros e pequenos garimpeiros –, não zônia. Essa expansão poderá trazer só em relação à movimentação de sérios riscos às Áreas Protegidas, já pesquisadores na região, mas tam- que a maioria das UHEs planejadas bém com as notícias de que cinco para a Amazônia está próxima ou unidades de conservação (UCs) que dentro dessas áreas (Instituto do “atrapalhariam” as UHEs haviam Homem e Meio Ambiente da Ama- sido reduzidas pela presidência da zônia, 2012). República, por meio de medida pro- visória (MP). Na negociação para a libertação dos reféns, em outubro de 2011, fi- Nos próximos oito anos, o governo cou muito claro o intento do mo- brasileiro planeja investir R$ 96 bi- vimento dos Kayabi e Munduruku: lhões para construir 22 hidrelétricas eles reivindicavam a demarcação na região amazônica e a maioria dos territórios tradicionais e a para- desses empreendimentos está próxi- lisação do processo de licenciamen- ma ou dentro de áreas protegidas já to de São Manoel, com a suspensão estabelecidas. Um total de 1.500 km² das audiências públicas previstas de florestas já perderam proteção para pouco depois, organizadas legal em janeiro deste ano, quando sem qualquer respeito à Convenção a Presidente da República aprovou 169 da Organização Internacional uma medida provisória (MP nº558) do Trabalho (OIT) ou à Constituição para facilitar a construção de quatro brasileira, textos que as lideranças hidrelétricas. O Instituto do Homem conhecem bem. O governo acenou e Meio Ambiente da Amazônia (Ima- com uma reunião na cidade mais zon) analisou os riscos jurídicos e próxima, Alta Floresta (Mato Gros- socioambientais associados às redu- so), mas os índios não aceitaram. ções com foco na Bacia do Tapajós, Exigiam a presença das autorida- no Pará, que concentrou 70% (1.050 des na aldeia. Queriam ser ouvidos. km²) da área reduzida. Foram cinco O governo enviou representantes Unidades de Conservação diminuí- à aldeia Kururuzinho, vários com- das sem a realização de estudos de promissos foram apalavrados e os impactos sociais e ambientais e sem reféns foram libertados. Depois, al- consulta pública. Segundo o Plano gumas lideranças foram levadas a

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 341 Brasília, onde também ouviram pro- a Constituição, vamos lutar contra messas. De concreto, as audiências essas barragens”, finalizou. públicas de São Manoel realmente Elenildo Kayabi acrescentou seu es- foram suspensas pelo Instituto Bra- panto com a rapidez dos projetos. sileiro do Meio Ambiente e dos Re- “Eles estão atropelando a gente, cursos Naturais Renováveis (Ibama). quando começamos a entender a Mas os estudos para todas as outras usina de Teles Pires, eles já vieram UHEs prosseguiram. com a usina de São Manoel”, disse. Ainda em 2011, no início de de- E ironiza as soluções da engenharia zembro, o Ministério Público Fe- para os problemas que as usinas vão deral (MPF) foi convidado pelos ín- causar: “falam pra gente que o peixe dios Kayabi e Munduruku a visitar vai subir normalmente, que eles vão a aldeia Kururuzinho, para ouvir as fazer elevador, a gente até faz piada demandas dos três povos afetados com isso: se tem gente que se perde pelos empreendimentos. Em comu- em elevador lá em Brasília, imagine nicado publicado no sítio eletrônico os peixes aqui”. do MPF (Brasil, Ministério Público “O governo e a Funai nunca vieram Federal no Pará, 2011), foram divul- aqui falar sobre demarcação, saúde, gadas as falas das lideranças indí- educação. Só vêm aqui falar sobre genas que se encontraram com os barragem”, se admirou Floriano procuradores da República Felício Munduruku. “A gente acredita que Pontes Júnior e Márcia Zollinger. um dia vai ter um limite, branco vai parar, estudar outra forma de “Pra quê todos os governos do mun- energia para deixar a gente em paz. do assinaram a Convenção 169?”, Nossa vida era muito fácil, agora vai questionou Jairo Munduruku, refe- ficar muito difícil”, disse. rindo-se à convenção internacional da qual o Brasil é signatário, que Em 2012, as obras de Belo Mon- obriga consulta aos povos indígenas te estão a todo vapor, com Altami- para projetos de infraestrutura que ra repleta de migrantes. A vida dos afetem suas terras. “Se o governo tá povos indígenas do médio Xingu desrespeitando a lei, a Constituição, vai se deteriorando notavelmente e, a Convenção 169, tá desrespeitando cada vez mais, surgem notícias de também todos os caciques. E pra nós prostituição infantil de indígenas, isso é questão de vida ou morte, por- chegada de doenças antes desco- que a água é a nossa vida”, discur- nhecidas na região, desagregação sou. “Enquanto tiver cacique e tiver cultural, dificuldades crescentes

342 Palmquist no acesso à saúde e educação. Os ver a enormidade do canteiro de Munduruku fazem alguns protestos obras de Belo Monte com o movi- em Jacareacanga, falando das UHEs mento incessante das máquinas; ou- e dos problemas no licenciamento, viam-se as sirenes que anunciavam sem receber muita atenção, seja da os estrondos e as detonações que ex- mídia paraense, da nacional ou da plodem terra e pedras; e sentia-se o internacional. Em junho, chefes de seu tremor. Estado do mundo todo se reúnem na Rio+20. Um grupo de ativistas, A cerca de 300 metros da comu- pescadores, agricultores e índios nidade, duas ensecadeiras barraram afetados por Belo Monte promove o Xingu, mudando sua cor para um acampamento em Santo Antô- marrom estagnado. As matas que nio, uma das comunidades que vai protegiam as margens do rio foram desaparecer com a construção da arrancadas, sobrando apenas uma UHE. Batizam o evento de Xingu grande área nua de terra revolvida. +23, em alusão ao histórico encon- Após o encontro, como resulta- tro de 1989 em Altamira, quando do de um acesso coletivo de fúria, Tuíra, indígena Kayapó, passou o os escritórios da Norte Energia S.A. facão no rosto do hoje diretor das (Nesa) nos canteiros de obra foram Centrais Elétricas Brasileiras S.A. destruídos. Conforme registra a (Eletrobras), Antonio Muniz Lopes, Agência Brasil, veículo de mídia da então presidente da Eletronorte. Os Empresa Brasileira de Comunicação Munduruku participam do evento. (EBC), Na carta final do Xingu +23, o re- lato do que todos, inclusive os Mun- De acordo com o Consórcio Constru- duruku, presenciaram: tor Belo Monte (CCBM), durante a ocupação, pelo menos 50 computa- Na vila de Santo Antônio, pratica- dores foram quebrados, notebooks, mente deserta após as desapropria- celulares e radiocomunicadores fo- ções compulsórias de seus morado- ram furtados, dezenas de aparelhos res, sobraram ruínas e madeirames de ar-condicionado foram danifica- empilhados das antigas casas de dos e móveis, documentos e proje- seus moradores. Sobrou também o tos foram queimados. A estimativa, pequeno cemitério, com suas tum- segundo o consórcio, é que o prejuí- bas tomadas pelo mato após o em- zo ultrapasse R$ 500 mil. bargo da Norte Energia. Para justificar o pedido de prisão Da vila de Santo Antonio podia se dos ativistas[,] que, segundo a polí-

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 343 cia, são ligados ao Cimi [Conselho grantes seus e que a caminhonete, Indigenista Missionário] e ao Movi- de fato, foi dirigida pelo assessor do mento Xingu Vivo para Sempre, fo- Xingu Vivo para transportar ferra- ram apresentadas imagens, relatos mentas, mas com outros propósitos. testemunhais e laudos periciais que As duas entidades questionaram a comprovariam o envolvimento des- isenção da Polícia Civil nas investi- sas entidades na incitação à depre- gações. De acordo com a assessoria dação. O material conta, também, de comunicação do Movimento Xin- com gravações feitas por policiais gu Vivo, prova disso é o fato de algu- infiltrados no acampamento do mas viaturas policiais circularem na Xingu+23. cidade com adesivos da Norte Ener- “Não há dúvidas de que integrantes e gia, empresa responsável pela cons- assessores do Movimento Xingu Vivo trução e operação da usina. encabeçaram esses atos criminosos. A assessoria do Cimi concorda e diz Entre os indícios, há filmagens e fo- que “esses adesivos são o símbolo de tos de um assessor deles entregando, quanto o Estado está atrelado aos aos índios, as picaretas, pás e enxa- interesses de grupos econômicos das usadas na depredação. Essas fer- privados”. Prova disso, acrescenta o ramentas estavam em uma caminho- Cimi, é que “todas as condicionan- nete Mitsubishi L-200 preta, alugada tes para beneficiar a polícia, que é por uma missionária do Cimi. Temos o órgão opressor do Estado, foram inclusive o recibo da transferência cumpridas [pelo consórcio da usina], bancária que registrou o pagamento o que não se aplica às [condicionan- da caminhonete, feito pelo próprio tes] relativas aos afetados pela obra”. Cimi”, disse à Agência Brasil o supe- Segundo o superintendente da Polí- rintendente regional da Polícia Ci- cia Civil, os adesivos não comprome- vil em Altamira, delegado Cristiano tem a investigação. “Eles foram co- Nascimento (Peduzzi, 2011). locados apenas nas viaturas doadas como parte de um acordo de coope- E mais à frente, no mesmo ração técnico-financeiro, previsto registro: em condicionantes para a segurança pública como um todo. Não apenas Tanto o Xingu Vivo quanto o Cimi para a Polícia Civil”, argumentou negam qualquer incitação ao que- (Idem). bra-quebra, mas confirmam que os nomes do assessor e da missionária Minha interpretação é que a te- citados pela Polícia Civil são de inte- nacidade dos Munduruku ao longo

344 Palmquist de 2011 e 2012 fez o Planalto Central do a realização de consulta prévia, tirar da gaveta algumas das piores livre e informada (CLPI), conforme práticas repressoras contra povos determina a Convenção 169 da OIT, indígenas, que tinham caído em de- e de avaliação ambiental integrada suso após o fim da ditadura militar. (AAI) de todas as UHEs do Tapajós Ou pode ser mera coincidência, no (Brasil, Ministério Público Federal, que é difícil acreditar. Mas o fato é 2012). Mas em 2013, em resposta, o que, em 6 novembro de 2012, uma governo refina estratégias e recru- operação da Polícia Federal (PF) é desce a repressão contra os índios, iniciada para desativar garimpos e inaugurando o licenciamento am- explodir balsas de garimpeiros den- biental manu militari. tro da TI Munduruku, no rio Teles Durante uma das primeiras mo- Pires. A operação é feita dentro da bilizações que fizeram em 2013, em legalidade, com ordem judicial e fevereiro, índios Kayabi e Mundu- conduzida por um delegado tido ruku viajaram mais uma vez a Bra- como expert em assuntos indígenas. sília, para entregar suas reivindica- E termina em tragédia. ções referentes às UHEs no Tapajós A aldeia Teles Pires é invadida e no Teles Pires. Mais uma vez, ten- pelos homens da PF, que atiram in- taram ser recebidos todos juntos e discriminadamente, após um inci- o impasse se estabeleceu, porque dente com um cacique. Adenilson o governo só aceita receber comis- Munduruku é morto com quatro sões de representantes. Os ânimos tiros: três nas pernas, que o imobi- ficaram mais tensos e o ministro lizaram, e o quarto, fatal, na parte Gilberto Carvalho, secretário-geral de trás da cabeça. O assassinato tem da Presidência, resolveu falar com todos os sinais de execução e foi re- os índios. O diálogo foi registrado centemente denunciado pelo MPF à por jornalistas de O Globo: justiça. A PF sequer abriu inquérito para apurar o crime. Ao contrário: — Vocês tem [têm] duas opções: abriu inquérito para investigar os uma delas é inteligente: é dizer ok, índios (ver Brasil, Ministério Públi- nós vamos acompanhar, vamos exi- co Federal, 2014d). gir direitos nossos, vamos exigir pre- Após o assassinato de Adenilson, servação disso e disso e benefícios ainda em novembro de 2012, uma para nós. A outra é dizer não. Isso notícia dá alento. A justiça federal vai virar, infelizmente, uma coisa de Santarém responde positivamen- muito triste, e vai prejudicar muito te a ação judicial do MPF, ordenan- a todos, ao governo, mas também a

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 345 vocês. A hidrelétrica a gente não faz ta prévia prevista na Convenção 169 porque a gente quer, (mas) porque e ordenada pela justiça, o governo o país precisa — explicava Gilberto. lança a Operação Tapajós, com en- — A natureza também o país precisa vio de centenas de militares da For- — respondeu o representante da tri- ça Nacional de Segurança Pública bo, insistindo para que o interlocu- (FNSP) para a região, para escoltar tor da presidente Dilma assinasse o cerca de 80 pesquisadores que fa- recebimento da reivindicação deles. riam os estudos de impacto ambien- — Eu assino. O que eu tô querendo tal (EIA). Interessante notar que a dizer pra vocês é olho no olho. Eu manobra é possível com uma alte- não quero enganar. Nós vamos fazer ração, possivelmente inconstitucio- tudo dentro da lei, nós vamos fazer nal, da natureza da própria FNSP. O as oitivas, vamos fazer as audiências advogado e membro do Grupo Tor- — ponderou Gilberto Carvalho. tura Nunca Mais (GTNM) João Rafael — Tem que olhar o nosso lado tam- Diniz compara a alteração com a bém — pediu o índio. criação de uma guarda pretoriana. — Tamo (sic) olhando — afirmou o ministro. Instituída por César Augusto, pri- — Nós viemos na casa de vocês... — meiro dos grandes imperadores de insistiu o índio. Roma, a Guarda Pretoriana foi um — A casa é de todo mundo do Brasil corpo militar especial, destacado — observou Gilberto. das legiões romanas ordinárias, que — Mas nossa área é nossa vida. E se serviu aos interesses pessoais dos a gente quebrar tudo aqui? — amea- imperadores e à segurança de suas çou o índio. famílias. Era formada por homens Neste momento, Gilberto, tenso, co- experientes, recrutados entre os le- meçou a andar em direção à mesa gionários do exército romano que de recepção do Planalto, para assi- demonstrassem maior habilidade e nar o documento: inteligência no campo de batalha. — Eu vou receber (o documento). Eu No seu longo período de existência vou pedir a vocês que subam lá, ou- (mais de três séculos) a Guarda no- vir meu compromisso e levar meu tabilizou-se por garantir a estabili- compromisso. Eu vou assinar (Alen- dade interna de diversos imperado- castro & Souza, 2013). res, reprimindo levantes populares e realizando incursões assassinas Em março de 2013, sem nem si- em nome da governabilidade do nal ou intenção de realizar a consul- império.

346 Palmquist Passou quase despercebido mas, há tir pela força) o trabalho de 80 téc- algumas semanas, a Presidência da nicos contratados pela Eletronorte República publicou no Diário Oficial para os levantamentos de campo ne- o decreto nº7.957/2013, que, dentre cessários à elaboração do Estudo de outros, alterou o decreto de criação Impacto Ambiental dos projetos de da Força Nacional de Segurança Pú- barramento do rio Tapajós, para fins blica. A partir daí, o Executivo pas- de aproveitamento hídrico (constru- sou a contar com sua própria força ção de hidrelétricas, pelo menos 7 policial, a ser enviada e “aplicada” delas) (Diniz, 2013). em qualquer região do país ao sabor de sua vontade. Enquanto a tensão cresce na re- Numa primeira análise, chamou a gião, com a chegada das tropas for- atenção de alguns jornalistas e pro- temente armadas, o MPF vai à justi- fissionais da causa ambiental a cria- ça, acusando o governo de ignorar ção da “Companhia de Operações a ordem judicial em favor da reali- Ambientais da Força Nacional de zação da consulta prévia. A justiça Segurança Pública”. Essa nova divi- ordena a suspensão da Operação Ta- são operacional dentro da Força Na- pajós. Em resposta, o governo lan- cional terá por atribuições: apoiar ça mão então de outro instrumen- ações de fiscalização ambiental, to autoritário, desta vez jurídico, atuar na prevenção a crimes ambien- já testado com sucesso no caso de tais, executar tarefas de defesa civil, Belo Monte: pede ao Superior Tribu- auxiliar na investigação de crimes nal de Justiça (STJ) a suspensão de ambientais, e, finalmente, “prestar segurança (SS). auxílio à realização de levantamen- A SS é um instituto do ordena- tos e laudos técnicos sobre impactos mento jurídico da ditadura que so- ambientais negativos”. brevive no país. Prevê que ordens Não é preciso lembrar que uma das judiciais em processos regulares po- notícias mais importantes da se- dem ser suspensas pelo presidente mana passada foi o envio de tropas de um tribunal superior, sem exa- militares da Força Nacional de Segu- me do mérito – ou seja, sem que rança Pública para os municípios de qualquer argumento ou direito seja Itaituba e Jacareacanga, no sudoes- manejado – por razões de ordem, te paraense. O objetivo da incursão segurança ou economia. Com esse militar, solicitada pelo ministro das método de atuação jurídica, o go- Minas e Energia, Edison Lobão, é verno brasileiro avança no licen- exatamente “apoiar” (leia-se: garan- ciamento e construção das UHEs

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 347 que afetam diretamente povos in- da vez que decisões judiciais bem dígenas, sem respeitar os direitos fundamentadas, emitidas por juízes protegidos pela Convenção 169 da concursados e no pleno exercício de OIT e pela própria Constituição Fe- suas funções, são cassadas por tribu- deral. Foram as SS que permitiram nais superiores por representarem as obras de Belo Monte e Teles Pi- “ameaça à ordem e economia públi- res, assim como o licenciamento de cas”, independentemente do mérito São Manoel e São Luiz do Tapajós, jurídico das decisões (Rojas & Valle, sem que a CLPI e a oitiva prevista na 2013). Constituição fossem até hoje aplica- das, apesar de decisões judiciais em No caso do Tapajós, a SS começa todos os casos reconhecendo a obri- a ser adotada, também com suces- gação de consultar. so, a partir da Operação Tapajós. O Em artigo para o Instituto So- governo federal obtém a suspensão, cioambiental (ISA), os advogados mas há um detalhe na decisão do Raul Telles do Valle e Biviany Rojas ministro Félix Fischer, do STJ, que afirmam: importa anotar desde já, porque faz toda a diferença no momento atual. Criado pela lei 4.348 de junho de O ministro permite a continuidade 1964 com o intuito de controlar da operação e dos estudos relaciona- politicamente as decisões judiciais dos à UHE São Luiz do Tapajós. Mas contrárias ao regime militar, esse assinala que a CLPI é obrigatória e o entulho autoritário permite a tri- licenciamento não poderá ser con- bunais suspenderem decisão de ins- cluído sem que ela se realize. tância inferior diante do perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, Sem embargo, ao contrário do à saúde, à segurança e à economia que decidido pelo em. Relator do públicas”. Em resumo, permite aos Agravo de Instrumento nº0019093- Presidentes dos Tribunais cassarem 27.2013.4.01.0000, não vislumbro decisões que julguem impertinen- como meros estudos preliminares, tes, mesmo que estas não façam atinentes tão-somente à viabilidade mais do que aplicar a lei em vigor do empreendimento, possam afe- no país. tar, diretamente, as comunidades Podemos afirmar que Belo Monte envolvidas. só está sendo implantada porque O que não se mostra possível, no existe a Suspensão de Segurança. meu entender, é dar início à execu- Essa não é a primeira nem a segun- ção do empreendimento sem que

348 Palmquist as comunidades envolvidas se ma- os pesquisadores da EPE) e, a pedra nifestem e componham o processo de toque do discurso governista, de participativo com suas considera- apoiar o garimpo ilegal na bacia do ções a respeito de empreendimento Tapajós. A nota oficial da Secretaria- que poderá afetá-las diretamente. -Geral da Presidência da República Em outras palavras, não poderá o (SG/PR) não deixa dúvidas: o Planal- Poder Público finalizar o processo to declara os Munduruku subleva- de licenciamento ambiental sem dos em Belo Monte como inimigos cumprir os requisitos previstos na públicos do progresso da nação. Convenção nº169 da OIT, em espe- cial a realização de consultas pré- Em sua relação com o governo fe- vias às comunidades indígenas e deral essas pretensas lideranças tribais eventualmente afetadas pelo Munduruku têm feito propostas empreendimento (Brasil, Justiça Fe- contraditórias e se conduzido sem deral, Superior Tribunal de Justiça, a honestidade necessária a qual- 2013). quer negociação. Em outubro de 2012, junto com indígenas Kayabi e Ainda sob o impacto do trauma Apiacá, sequestraram e ameaçaram da morte de Adenilson e da mili- de morte nove funcionários do go- tarização da região onde vivem, verno que realizavam um processo os Munduruku adotam uma nova de diálogo na aldeia Teles Pires. Em estratégia para reivindicar seus di- fevereiro de 2013, vieram a Brasília reitos frente aos empreendimentos. e recusaram-se a fazer uma reunião Em maio de 2013, eles se dirigem aos com o ministro Gilberto Carvalho, canteiros de Belo Monte, para ocu- afirmando que o governo iria usar par, pela primeira vez, a maior obra esse encontro para dizer ter feito de engenharia civil das Américas. A uma consulta prévia. No dia 25/04, ocupação de Belo Monte pelos Mun- essas mesmas pretensas lideranças duruku provoca reações imediatas deixaram de comparecer a uma re- do governo federal e da Nesa. O dis- união que tinham marcado com a curso dominante é que eles não são Secretaria-Geral em Jacareacanga e índios do Xingu, portanto não têm publicaram nos sites de seus aliados por que ocupar os canteiros de Belo uma versão mentirosa e distorcida Monte. São acusados de intrusos, sobre esse fato. Agora invadem Belo de pretensos líderes, de oportunis- Monte e dizem que querem consulta tas, de sequestradores (em alusão prévia e suspensão dos estudos. Isso ao episódio de outubro de 2011 com é impossível. A consulta prévia exi-

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 349 ge a realização anterior de estudos veiculação da carta (Munduruku et técnicos qualificados. Se essas au- al., 2013). todenominadas lideranças não que- rem os estudos, como podem querer Mesmo com a reação virulenta a consulta? Na verdade, alguns Mun- do governo, mesmo após a nota ofi- duruku não querem nenhum em- cial acusatória e enfrentando a pre- preendimento em sua região porque sença de tropas da FNSP (a guarda estão envolvidos com o garimpo ile- pretoriana não falha nunca), a ocu- gal de ouro no Tapajós e afluentes. pação de Belo Monte prossegue e se Um dos principais porta-vozes dos comunica com a nação por meio de invasores em Belo Monte é proprie- cartas muito poéticas. Diz a carta tário de seis balsas de garimpo ilegal nº1 da ocupação de Belo Monte, da- (Brasil, Secretaria-Geral da Presidên- tada de maio de 2013: cia da República, 2013). Nós somos a gente que vive nos rios Os Munduruku, com o apoio do em que vocês querem construir bar- Cimi, respondem às acusações do ragens. Nós somos Munduruku, Ju- ministro Gilberto Carvalho e ajuí- runa, Kayapó, Xipaya, Kuruaya, Asu- zam no STJ uma interpelação con- rini, Parakanã, Arara, pescadores e tra o ministro, em que pedem que ribeirinhos. Nós somos da Amazô- ele nia e queremos ela em pé. Nós so- mos brasileiros. O rio é nosso super- 1.1) Apresente, no prazo estipulado mercado. Nossos antepassados são por lei, o nome de lideranças indíge- mais antigos que Jesus Cristo. Vocês nas as quais se dirigem suas ofensas estão apontando armas na nossa ca- contidas na Carta de Esclarecimento beça. Vocês sitiam nossos territórios postada no site da Secretaria Geral com soldados e caminhões de guer- da Presidência, para que estas te- ra. Vocês fazem o peixe desaparecer. nham a oportunidade de processá-lo Vocês roubam os ossos dos antigos criminal e civilmente. 1.2) Que in- que estão enterrados na nossa terra. forme se a Presidente da República Vocês fazem isso porque tem medo Dilma Roussef [Rousseff] avalizou de nos ouvir. De ouvir que não que- a infeliz carta ou informe se o con- remos barragem. De entender por- teúdo da mesma é de sua exclusiva que não queremos barragem. responsabilidade. 1.3) Que nomine quais são os seus assessores direta- A ocupação dura sete dias, de 2 a mente envolvidos na elaboração e 9 de maio de 2013, e se encerra por

350 Palmquist causa de medidas de reintegração A empresa manda desligar o for- de posse obtidas pela Nesa junto à necimento de água e luz para os justiça federal em Altamira. Os ín- canteiros, deixando todos em situa- dios ficam acampados na cidade, ção complicada – as mobilizações aguardando negociações com o go- dos Munduruku sempre incluem verno federal e o empreendedor. mulheres, crianças, velhos e até ca- Sem resposta, ainda em maio, no chorros – e forçando o MPF a pedir dia 27, eles retomam a ocupação do à justiça a garantia de fornecimento principal canteiro de obras de Belo de água e alimentos, por questões Monte. Narra o sítio do Movimento humanitárias. Novamente, a empre- Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS): sa obtém uma ordem de reintegra- ção de posse. Os índios anunciam Entraram no canteiro por volta das que vão resistir a qualquer tentativa 4 horas da manhã – e ao contrário da de desocupação. Diz a carta nº8 da outra ocupação, todos os acessos do ocupação: sítio, dessa vez, ficaram sob o con- trole dos indígenas. Isso impediu Nós exigimos a suspensão da reinte- toda a operação do canteiro. Desde o gração de posse. Até dia 30 de maio início do dia, a comunidade enfren- de 2013, quinta-feira de manhã, o tou o assédio e a pressão de um con- governo precisa vir aqui e nos ou- tingente de ao menos 50 policiais da vir. Vocês já sabem da nossa pauta. Força Nacional (FNSP), Polícia Rodo- Nós exigimos a suspensão das obras viária Federal, Tropa de Choque da e dos estudos de barragens em cima Polícia Militar, Rotam [Ronda Os- das nossas terras. E tirem a Força tensiva Tática Motorizada], Polícia Nacional delas. As terras são nossas. Civil e seguranças privados de ao Já perdemos terra o bastante. Vocês menos duas empresas diferentes li- querem nos ver amansados e quie- gadas ao Consórcio Construtor Belo tos, obedecendo a sua civilização Monte. A polícia tem pressionado os sem fazer barulho. Mas nesse caso, piquetes a permitirem a entrada de nós sabemos que vocês preferem mais policiais no empreendimento, nos ver mortos porque nós estamos mas os ocupantes não permitiram. fazendo barulho. “Agindo assim, vocês estão declaran- do guerra contra a Força Nacional”, Por fim, em 4 de junho de 2013, ouviram os manifestantes (Sposati, após um total de 17 dias de ocupação 2013a). de Belo Monte, o governo federal cede e envia um avião da Força Aé-

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 351 rea Brasileira (FAB) para levar todos cais e à imprensa que não admitiam os 145 índios para Brasília para ne- a entrada dos pesquisadores para os gociar com autoridades do governo estudos das UHEs. Os próprios ín- federal (Sposati, 2013b). Em Brasília, dios registram em vídeo a chegada 1 1. Disponível em: o ministro Gilberto Carvalho se re- dos pesquisadores a Jacareacanga . (acesso: 5 dez. 2014). entre índios e autoridades planal- SS do ministro Félix Fischer, do STJ, tinas ou seus representantes, de e ocorre sob os fuzis da FNSP. Segue- que é preciso criar uma comissão -se um fim de semana de tensão e a (Conselho Indigenista Missionário, SG/PR, mais uma vez, envia repre- 2013). Os Munduruku, sobretudo, se sentantes para negociar em Jacarea- recusam, porque todos os presen- canga. A despeito da declaração do tes, incluindo as crianças, devem Grupo de Estudo Tapajós, responsá- participar das negociações. vel pelo estudo de impacto ambien- Após uma semana de impasse tal e relatório de impacto ambiental e ocupação do prédio da Funai em (EIA/Rima), de que os pesquisadores Brasília, os índios retornam para a não estavam em TI (o que só pode- Amazônia sem qualquer garantia de ria ocorrer com autorização dos ín- que o governo realizará a consulta dios, mesmo com a SS), os Mundu- prévia para as UHEs do Tapajós ou ruku afirmam que os limites foram resolverá os graves problemas cau- violados e o grupo estava pescando sados pelas ações voltadas à mitiga- nas áreas de pesca deles. ção de impactos da usina do Xingu Os pesquisadores foram liberta- (Santana & Sposati, 2013). dos no dia 23 de junho, após o anún- A luta dos Munduruku, contudo, cio de que o governo suspenderia os não para. No mesmo mês de junho estudos sobre UHEs no Tapajós. Ficou de 2013, no dia 21, três biólogos se acordado que se aguardaria a CLPI aproximaram da TI Munduruku, para que se desse prosseguimento mais especificamente, de um terri- aos estudos (Rodrigues, 2013). Em tório que os índios consideram sa- vez disso, porém, no dia 3 de agosto grado, para coletar amostras para de 2013, abate-se sobre os Munduru- os EIA das UHEs do Tapajós, e de- ku toda a capacidade de cooptação ram de cara com um grupo de guer- e pressão do governo federal e seus reiros. Foram colocados em barcos e aliados na prefeitura de Jacareacan- levados para Jacareacanga, onde os ga (governada por um ex-funcioná- guerreiros declararam a políticos lo- rio da Funai, Raulien Queiroz, do PT).

352 Palmquist A resistência munduruku, que os indígenas definissem pelo de- não havia se dobrado diante das tro- senvolvimento do município, o pas da FNSP, nem diante do assassi- que seria bom para todos. E disse nato de Adenilson Munduruku, tem que todos eram bem vindos, menos dificuldades até hoje para se recupe- aqueles que vieram com intenção rar de uma reunião em Jacareacan- de tumultuar, num recado velado ga, que deveria ser um encontro dos às ONGs [organizações não governa- caciques e lideranças para tratar do mentais] que observavam o evento futuro e acabou se tornando o cená- (Monteiro, 2013). rio de um golpe, dirigido pelo pre- feito Raulien Queiroz. Após a che- Lideranças que haviam leva- gada dos índios à cidade, lideranças do faixas expressando indignação vindas de todas as 118 aldeias da TI contra as UHEs foram ameaçadas Munduruku, em uma mobilização pelo secretário de assuntos indí- em parte financiada pela Funai, em genas (vou repetir: de assuntos parte por apoiadores da sociedade indígenas) da prefeitura, Ivânio civil, o clima começa a ficar tenso. Alencar. “Quem não se adequar às Apoiadores e até pesquisadores condições, que assuma as despesas que estavam com câmeras foram do evento”, bradou, intimidando obrigados a deixar o recinto, sob os caciques com a possibilidade de ameaças, intimidados por policiais não terem combustível para retor- militares e capangas sem identifica- nar às aldeias nem alimento para os ção, acusados de baderneiros, obri- que tinham ido à cidade. A reunião gados a apagar quaisquer registros prosseguiu quase toda em língua em vídeo da reunião. Claudemir portuguesa, de difícil entendimen- Monteiro, do Cimi, é uma das tes- to para a maioria dos Munduruku. temunhas do que se passou em Ja- E o objetivo foi alcançado: a desti- careacanga naquele 3 de agosto. Ele tuição de toda a diretoria da asso- narra os acontecimentos em texto ciação indígena Pusuru, substituída publicado no sítio da entidade. por nomes que agradavam aos go- vernos federal e municipal, e que Na fala do prefeito já [se] mostrava poderiam dar apoio à instalação das quem era o patrocinador do evento. UHEs (Santana, 2013). A reunião tinha apoio da Prefeitura, Ato contínuo, os EIA foram reto- porque ele acreditava na unidade mados, apenas dez dias depois da entre não índios e os Munduruku. troca de direção da Pusuru. O pes- Disse que esperava que na reunião quisador Mauricio Torres registrou:

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 353 Um desproporcional e intimidador mos riqueza. Nós não entendemos aparato militar, desta vez, escolta os pra que branco quer produzir tanta pesquisadores. São homens da For- soja, se no Brasil não se come soja. ça Nacional de Segurança, Polícia Nós não entendemos pra que branco Federal, Polícia Rodoviária Federal quer tanto dinheiro, se não vai po- e exército. E, sob esta operação de der levar dinheiro quando morrer. guerra[,] os ribeirinhos e indígenas Nós não entendemos vocês porque são constrangidos e contidos à força somos diferentes de branco. E que- e as pesquisas são realizadas, dei- remos continuar assim”, resumiu xando um preocupante precedente Ademir Kaba Munduruku (Brasil, de uso da força no diálogo com as Ministério Público Federal, 2013). populações locais (Torres, 2014: 58). Nesse momento, fundam uma A recomposição da resistência nova associação, Da’uk (que, em munduruku, após a assembleia de Munduruku, significa taoca, espé- 3 de agosto, é um esforço delicado cie de formiga conhecida por cami- e difícil, com ataques se somando nhar em grupo), e anunciam que a a cada tentativa. Em novembro de Pusuru não mais os representa. 2013, reunidos no movimento Ipe- Os guerreiros se reúnem no iní- reg Ayu, 400 índios de 62 aldeias cio de 2014 para uma ação de lim- fazem uma nova assembleia, con- peza do território. Durante várias vocam os aliados, inclusive a nova semanas perseguem garimpeiros direção da associação Pusuru, que ilegais que atuam em suas terras, não comparece. Na assembleia, em uma resposta a um só tempo anunciam a intenção de continuar às acusações do governo federal de resistindo (Amazônia em Chamas, que favorecem o garimpo e à inação 2013). Estive na assembleia e regis- desse próprio governo quando se trei as falas dos indígenas: trata de resolver os problemas dos indígenas. Vários acampamentos “Não são as pessoas que moram na de garimpeiros e máquinas são des- cidade que podem decidir, somos truídos, e todos são expulsos da TI. nós, quem mora dentro do mato, que caça, que pesca, que tem roça”, – Vocês tem dez minutos para ir em- disseram várias vezes os Munduru- bora. Pega as coisas de vocês, vão ku durante o debate. “Os brancos embora e não voltem mais. Isso aqui falam que tem muita terra para é terra dos Munduruku – ordenou pouco índio e que nós não produzi- Paigomuyatpu, chefe dos guerrei-

354 Palmquist ros, enquanto os garimpeiros arru- jornalista Renato Santana, do Cimi, mavam as mochilas e se preparavam denuncia o ataque: para abandonar a área (Saud, 2014a). Cerca de 500 garimpeiros, comer- A reação é imediata e sintomá- ciantes e membros do Poder Públi- tica: continuam sendo acusados de co de Jacareacanga (PA) atacaram 20 baderneiros e vândalos infiltrados munduruku na manhã desta terça, (qualquer semelhança com a re- 13, durante ação contra a presença pressão aos movimentos urbanos dos indígenas no município. Dois de contestação às obras da Copa munduruku acabaram feridos nas não é mera coincidência). A prefei- pernas depois de atingidos por ro- tura de Jacareacanga não desiste do jões lançados pelos manifestantes intento de dividir para conquistar e, anti-indígenas. Os munduruku te- logo depois da expulsão dos garim- mem por novos ataques nas pró- peiros, em ato de clara retaliação, ximas horas e a Polícia Federal foi demite 70 professores indígenas, acionada. praticamente inviabilizando o fun- “Não podemos nem levar os dois fe- cionamento das escolas munduru- ridos ao hospital porque tem ódio ku. O argumento é que eles não são contra a gente por todos os lados. graduados e, portanto, não podem Manifestantes diziam que índios continuar ministrando aulas, o que não têm direitos aqui em Jacarea- contraria todas as normas sobre a canga”, afirmou uma indígena mun- educação escolar indígena em vigor duruku, presente durante o ataque, no país. Os índios da resistência são que aqui não é identificada por mo- obrigados a voltar a Jacareacanga tivos de segurança. Os feridos são: para protestar, mesmo sob o risco Rosalvo Kaba Munduruku e Franci- – logo confirmado – de serem acu- neide Koru Munduruku. A Polícia sados novamente de vandalismo e Militar estava durante o ataque, po- atacados com violência, o que, desta rém ficou na retaguarda dos mani- feita, de fato ocorreu (Saud, 2014b). festantes que atacavam os indígenas É o próprio secretário de assun- e nada fez. tos indígenas, Ivânio Alencar, quem O ataque contra os indígenas não é comanda uma turba de comercian- aleatório, mas orquestrado e progra- tes e garimpeiros contra os Mundu- mado. No final da tarde desta segun- ruku da resistência, atacados com da, 12, cerca de 200 indígenas mun- palavras e rojões no dia 14 de maio duruku desocuparam a prefeitura de 2014, nas ruas de Jacareacanga. O de Jacareacanga […]. Conseguiram

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 355 um acordo com o Poder Público. Du- comanda e divulga uma manifesta- rante uma semana, os munduruku ção da associação Pusuru, em que se reivindicaram o retorno às aulas de pede genericamente paz, delimitan- 70 professores indígenas, que este do que tipo de mobilização é aceita ano não tiveram o contrato renova- e estimulada pela prefeitura e sem- do pelo município (Santana, 2014). pre reforçando o discurso, a essa altura corrente em todo o país, por O discurso do secretário no dia conta das manifestações massivas dos ataques é extremamente racis- que ocorriam em várias capitais, ta: “Nós vivemos hoje oprimidos dos vândalos infiltrados e das ONGs por meia dúzia de índios encren- parasitas que influenciam índios en- queiros, patrocinados por ONGs”. crenqueiros. “SEM AS ONGS E ATI- Ou: “Queremos evitar uma grande VISTAS, os índios Munduruku dão chacina nessa cidade onde a socie- a maior prova de respeito ao povo dade branca vai enfrentar os ín- de Jacareacanga”, diz a postagem dios”. “Faço parte do governo, sou do secretário, mais uma vez em seu secretário de assuntos indígenas, perfil no Facebook, mais uma vez mas não vamos compactuar com tratando os índios que resistem às essa anarquia, com essa palhaçada”, UHEs como manipuláveis4. prossegue, em vídeo que ele pró- Apesar das bravatas do secretá- prio compartilhou na sua página rio, o MPF refuta o entendimento 2 2. Disponível em: do Facebook . O resultado das pala- da prefeitura sobre a necessidade Munduruku, também registrada em sores indígenas na justiça federal, (acesso: 5 dez. 2014). vídeo3. que ordena a recontratação de to- dos (Brasil, Ministério Público Fe-

3. Disponível em: “Bora lá pessoal, tem que acabar deral, 2014c). A ordem só foi cum- sair agora, bando de baitolas. Nós te- 2014, com grande prejuízo para os (acesso: 5 dez. 2014). mos direito, nós temos direito, nós estudantes. temos direito”, grita o secretário en- Enquanto os esforços para deses-

4 Disponível em: quanto os Munduruku são atacados truturar a resistência Munduruku Jacareacanga e as escolas funcio- (acesso: 5 dez. 2014). Logo depois dos ataques, para nam precariamente durante todo confirmar o sentido da política de o ano, o licenciamento das UHEs dividir os Munduruku, o secretário da bacia do Tapajós segue a toque

356 Palmquist de caixa. No início de setembro de uma reunião com o governo federal, 2014, em plena campanha eleitoral representado por pessoas da Advo- para a presidência da República, o cacia Geral da União, Ministério do governo brasileiro enviou convite Planejamento, Secretaria Geral da aos Munduruku para que participas- Presidência da República, FUNAI, sem de uma reunião para tratar da Ministério da Justiça e Ministério de CLPI a que está obrigado por força Minas e Energia. A reunião foi con- de decisão judicial. Na reunião, os vocada pelo governo para discutir a Munduruku conseguiram arrancar Consulta Prévia, Livre, Informada e do governo o compromisso de que Consentida prevista na Convenção teriam tempo e condições para se 169 da OIT, depois que a Justiça Fe- preparar para a consulta. O gover- deral obrigou o governo a cumprir a no tentou impor um cronograma, e Convenção. razões econômicas de Estado foram Os Munduruku explicaram ao go- levantadas. Mas os índios argumen- verno que estavam preparando uma taram que precisavam fazer a roça formação sobre a Convenção 169, em outubro e não poderiam parar porque o assunto é muito comple- tudo para discutir a UHE (Brasil, Mi- xo, e que só depois disso vão decidir nistério Público Federal, 2014a). quando e como será feita a consulta. Logo depois da reunião, para sur- Este é o direito que temos, garanti- presa de todos os presentes – índios, do pela Convenção 169, e o governo apoiadores, MPF –, o Ministério de se comprometeu de fazer o dialogo Minas e Energia (MME) publica no com nós de acordo com OIT e respei- Diário Oficial da União (DOU) a data tar a nossa decisão no processo de para o leilão do empreendimento diálogo. São Luiz do Tapajós: 15 de dezembro Na sexta-feira dia 12 de setembro, fi- de 2014 (Fariello, 2014). A resposta camos sabendo que o governo publi- dos Munduruku é imediata. Enviam cou no Diário Oficial da União que carta ao governo federal, divulgada fará o leilão da usina de São Luiz do na imprensa. Tapajós no dia 15 de dezembro deste ano. Nós Munduruku estamos indigna- Ficamos muito bravos com o fato de dos com o governo. Nos dias 2 e 3 a presidente Dilma, o Gilberto Car- de setembro, guerreiros e guerrei- valho, o Paulo Maldos, o Nilton Tu- ras Munduruku e outras populações bino, o Tiago Garcia, representantes ameaçadas pelo projeto de constru- de ministérios e outras autoridades ção de usinas no rio Tapajós, tiveram dizer que iam respeitar o direito

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 357 do povo Muduruku, e depois pare- dade de “compatibilização” dos ce que este compromisso não vale interesses do setor elétrico com o nada. Agindo assim o governo não direito dos indígenas ao território. esta cumprindo suas palavras, não Os Munduruku gravaram em vídeo está agindo com boa-fé e não está a fala de Assirati, que terminou em respeitando a Organização Interna- lágrimas, e as palavras foram trans- cional do Trabalho. critas pela jornalista Eliane Brum.

A reação surtiu efeito, talvez por Mas quando a gente conseguiu con- ocorrer em plena campanha eleito- cluir o relatório, existia um conjun- ral para a presidência da República. to de questões que estavam sendo Em comunicado seco à imprensa, o decididas na região que fizeram com governo brasileiro desiste de fazer que a gente precisasse discutir o re- o leilão em 2014, sem menção ex- latório não só no âmbito da Funai e pressa à indignação dos Munduru- vocês, povo Munduruku, mas outros ku, mas aludindo à “necessidade de órgãos do governo passaram a tam- adequações aos estudos associados bém discutir essa proposta de relató- ao tema do componente indígena”. rio, discutir a situação fundiária da Porém, mesmo com a suspensão região. Por quê? Porque vocês sabem do leilão, a pressão sobre os Mun- que ali tem uma proposta de se reali- duruku pelo governo brasileiro não zar um empreendimento hidrelétri- dá sinais de esmorecer. Ao mesmo co, né, uma hidrelétrica ali naquela tempo em que o MME e o Ministé- região, que vai contar com uma rio do Planejamento, Orçamento barragem pra geração de energia[,] e Gestão (MPOG) procuram correr e essa barragem tá muito próxima com o licenciamento da UHE, citan- da terra de vocês. E quando a gente do planilhas e organogramas feitos concluiu o relatório surgiram dúvi- em Brasília, outros órgãos de gover- das se essa área da barragem, se esse no criam mais ameaças ao território lago que essa barragem da hidrelé- Munduruku. trica vai formar, vai ter uma inter- A própria presidente da Funai, ferência na terra indígena de vocês. Maria Augusta Assirati, em reunião Na área de vocês, na vida de vocês, com lideranças em Brasília, admite né? Então começou-se a estudar que o Relatório Circunstanciado de isso. A reunir elementos para que Identificação e Delimitação (RCID) se tivesse uma definição realmente da TI Sawré Muybu não havia sido concreta de que essa barragem, esse publicado até então, pela dificul- lago não vai causar um prejuízo pra

358 Palmquist vida do povo que tá vivendo ali, pra gente aguarda esses elementos téc- essa terra indígena. nicos, para poder realizar essa com- (corte) patibilização: permitir que o setor O empreendimento tem uma im- elétrico faça seu empreendimento, portância, porque vai gerar energia a barragem, e com isso beneficie um para um conjunto grande de pessoas número grande de pessoas no país, no país, né, enfim, e também, so- e permitir que a terra de vocês seja bretudo do ponto de vista da nossa reconhecida, e que vocês tenham o atuação da Funai, né, que é o nosso direito de vocês assegurado, e que a papel, do órgão indigenista, né, a gente cumpra o nosso dever, como gente acha fundamental que o terri- Estado brasileiro e como Fundação tório de vocês também esteja garan- Nacional do Índio, que pertence ao tido, né? Principalmente, né, por- governo, que pertence a um órgão que, como vocês colocaram, aquela de Estado, é um órgão público de região já tá tendo pressão madei- Estado. Por isso a gente ainda não reira, garimpeira, de uma série de conseguiu publicar. Essa notícia[,] outros elementos que tão em volta ela é ruim ainda. Ela é uma notícia da [de] onde vocês moram, que o que não é ainda positiva, não é a que empreendimento não pode ser mais a gente gostaria de dar (Brum, 2014). um fator de dificuldade para a vida de vocês. Então a gente tem que ga- A recusa em publicar o relatório rantir o território, a gente tem que levou o MPF à justiça, onde obteve garantir que vocês tenham proteção liminar para obrigar o andamento suficiente para viver tranquilos, né? do processo de demarcação. A Funai Pra desenvolver o modo de vida tra- recorreu da decisão ao Tribunal Re- dicional de vocês naquela região, gional Federal da 1a Região (TRF-1) né, que é uma região [em] que histo- e conseguiu um efeito suspensivo ricamente, né, vocês vivem. O povo – diferente da SS, porque será obri- Munduruku[,] ele é originalmente gatoriamente derrubado pela pró- daquela região, né. Isso a gente sabe, xima decisão judicial no processo, isso nosso estudo, ele comprova, en- seja de primeira ou segunda instân- tão trata-se de uma ocupação tradi- cia (Brasil, Ministério Público Fede- cional. Então, e a gente tem busca- ral, 2014b). Com isso, a Funai ganha do defender essa posição, de que é tempo para prosseguir com o esfor- possível ter essa compatibilização. E ço de “compatibilização” de que As- por isso que a gente não conseguiu sirati falava aos Munduruku? Pode até hoje publicar. Por quê? Porque a ser, mas a notícia da derrota, ainda

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 359 que temporária, da ação do MPF, Assirati declarou publicamente provoca sofrimento aos indígenas. que iria se dedicar à vida acadêmica. No momento da suspensão, os Os Munduruku voltaram para as al- Munduruku já haviam decidido as- deias para fazer a autodemarcação. sumir o trabalho de demarcar a TI. Com o apoio de aliados, se embre- O projeto das usinas uniu os Mundu- nharam nas matas da região para ruku aos ribeirinhos, que também delimitar o próprio território, logo vão sofrer impactos. Na picada, a após a confissão de Assirati, como aliança foi selada com a fundamen- narram as jornalistas Ana Aranha e tal ajuda de Francisco Firmino Silva, Jéssica Mota: o Chico Catitu, um sábio mateiro da comunidade Montanha e Mangabal. A autodemarcação teve início de- O primeiro a se embrenhar no mato, pois de uma tensa discussão com ele deixava marcas para que os Mun- a ex-presidente interina da Funai, duruku soubessem onde abrir a pi- Maria Augusta Assirati. Em reunião cada. Sua técnica de mateiro era filmada pelos indígenas em setem- aliada às orientações do cientista bro, Maria Augusta admitiu que as social Mauricio Torres e do historia- usinas são o principal impedimento dor Felipe Garcia, voluntários que para a demarcação da Sawré Muybu. manuseavam o aparelho GPS. Como “Eu acho que essa terra indígena já referência para a picada, o grupo se- deveria estar demarcada, o relatório gue as coordenadas exatas do mapa já deveria ter sido publicado, mas para demarcação feito pela Funai e isso não depende da vontade de um parado em Brasília. só órgão”. Ao ouvi-la ponderar sobre Fora o caráter oficial, são poucas as a importância da usina, o porta-voz diferenças entre o trabalho dessa Roseninho Saw Munduruku pediu equipe e uma demarcação oficial. sua renúncia: “No meu pensamen- O que mais difere as atividades é a to, se você não quer trabalhar na ausência de condições mínimas de Funai, eu entregaria o cargo. Você segurança. Sem a chancela do gover- não tem interesse em defender a no, são muitos os riscos na rota da nossa causa”. Maria Augusta chorou equipe da autodemarcação (Idem). e garantiu que só permanecia por- que acreditava ser possível reverter Enquanto os Munduruku ten- esse caso. Nove dias depois, ela dei- tam defender como podem o terri- xou a presidência da Funai (Aranha tório que é deles há séculos, novos & Mota, 2014b). golpes vêm de Brasília. O Serviço

360 Palmquist Florestal Brasileiro (SFB), em 2014, aos interesses das pretensas con- já havia leiloado uma Floresta Na- correntes, na medida em que pode cional (Flona), a do Crepori, muito haver resistência das comunidades próxima das terras munduruku, indígenas e pedido judicial de anu- sem qualquer espécie de consulta lação do certame”. ou menção à existência de indíge- A recomendação lembra também nas nas proximidades, o que é irre- que, de acordo com a legislação bra- gular, de acordo com a Lei de Con- sileira, antes de qualquer concessão, cessão de Florestas Públicas (Brasil, as florestas públicas ocupadas ou Ministério Público Federal, 2014e). utilizadas por comunidades deverão Em meio à tensão crescente com os ser destinadas aos próprios morado- problemas na demarcação e com o res por meio da criação de reservas avanço do licenciamento da UHE, o ou por concessão de uso. SFB anuncia o leilão de novas áreas O edital viola ainda a Convenção em duas outras Flonas, Itaituba I e 169 da Organização Internacional II, que incidem diretamente sobre o do Trabalho, que assegura a consul- território não demarcado de Sawré ta prévia, livre e informada aos po- Muybu. O MPF reage. vos interessados, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou ad- O MPF considera que o edital de ministrativas suscetíveis de afetá-los licitação é irregular por afirmar a diretamente. O Instituto do Patrimô- inexistência de população indígena nio Histórico e Artístico Nacional ou ribeirinha na região, quando está (Iphan) também não foi ouvido pelo em trâmite na Fundação Nacional do SFB, o que deveria ter ocorrido pela Índio (Funai) a demarcação do terri- existência de vários sítios arqueoló- tório tradicional dos índios Mundu- gicos no perímetro das duas flores- ruku na mesma região e o próprio tas em licitação (Brasil, Ministério plano de manejo das duas florestas Público Federal, 2014f). reconhece a existência de comuni- dades ribeirinhas e extrativistas. A reportagem de Ana Aranha e Para o MPF, o edital “ofende a boa- Jéssica Mota sobre a autodemarca- -fé objetiva, constituindo violação ção traz a público, pela primeira ao dever de informação com as em- vez, a íntegra do relatório que o go- presas concorrentes que não estão verno tenta manter escondido des- sendo esclarecidas adequadamente de 2013, para não dar andamento à quanto à existência de povos indí- demarcação. O relatório deixa bem genas representando iminente lesão claro que a ocupação pelos Mundu-

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 361 ruku da região que o governo quer da semente de tucumã (Aranha & alagar é ancestral – há registros Mota, 2014b). de presença indígena pelo menos desde o século XVIII e evidências Como em outros momentos de arqueológicas muito anteriores. As grande tensão entre as pretensões jornalistas, baseando-se no relató- do Planalto Central e os direitos rio, informam: dos Munduruku, durante a autode- marcação, os índios se comunicam Em sítios arqueológicos de Monta- com a sociedade por meio de cartas. nha e Mongabal [Mangabal], comu- Dizem, na primeira carta, de 17 de nidade de ribeirinhos próxima à novembro de 2014: Sawré Muybu, foram encontrados artefatos com desenhos similares Nossos antigos nos contavam que o às pinturas corporais Munduruku. tamanduá é tranquilo e quieto, fica O grupo de trabalho da Funai tam- no cantinho dele não mexe com nin- bém encontrou diversos artefatos guém, mas quando se sente amea- arqueológicos na terra em questão. çado mata com um abraço e suas Por essas evidências, o relatório in- unhas. dica que “os ancestrais destes índios Nós somos assim. Quietos, tranqui- podem ter ocupado a calha do mé- los, igual o tamanduá. É o governo dio Tapajós antes do século XIX, e que está tirando nosso sossego, é o até mesmo antes da conquista”. governo que está mexendo com nos- Para os Munduruku, isso não é no- sa mãe terra – nossa esposa. vidade. A Sawré Muybu é circun- Hoje, 17 de novembro, faz três me- dada por cemitérios, localizados ses que reunimos com a FUNAI e no rio Jamanxim e nos igarapés representantes do governo em Bra- Prainha e São João; e inclui locais sília-DF exigindo a publicação do de grande importância simbólica[,] relatório da demarcação da Terra como a região do Fecho e a Ilha da IPI` WUYXI`IBUYXIM`IKUKAM; DAJE Montanha, onde morava, segundo KAPAP EYPI – I`ECUG`AP KARODAY- sua tradição oral, o primeiro Mun- BI. Em setembro de 2013 o relató- duruku do mundo, chamado Karo- rio delimitando nosso território foi sakaybu. Foi ali na região do Fecho, concluído, mas não foi publicado e dentro da Sawré Muybu, que para escutamos como resposta da então os Munduruku se deu a origem dos Presidente da FUNAI, Maria Augus- homens, mulheres, animais e do ta, dizendo que a nossa terra é uma próprio rio Tapajós, criado a partir área de empreendimentos hidrelé-

362 Palmquist tricos, e que por causa do interes- está chorando, pelas árvores que en- se de outros órgãos do governo o contramos deixados por madeirei- relatório não foi publicado. Após ros nos ramais para serem vendidos duas semanas da reunião de Brasília de forma ilegal nas serrarias e isso o recebemos notícias de que o Minis- IBAMA não atua em sua fiscalização. tério Público Federal entrou com Só em um ramal foi derrubado o ação obrigando a FUNAI a publicar equivalente a 30 caminhões com to- o relatório, o que a mesma não fez, ras de madeiras, árvores centenárias e semana passada ficamos sabendo como Ipê, áreas imensas de açaizais que o desembargador do TRF-1 ca- são derrubadas para tirar palmitos. çou a referida liminar. Mas isso não Nosso coração está triste. foi novidade para nós Munduruku. Nesses 30 dias da autodemarcação Nunca abaixaremos a cabeça e abri- já caminhamos cerca de 7 km e fize- remos a nossa mão, a luta continua! mos 2 km e meio de picadas. Encon- Somos verdadeiros donos da Terra, tramos 11 madeireiros, 3 caminhões, já existimos antes da chegada dos 4 motos, 1 trator e inúmeras toras de portugueses invasores. madeiras de lei as margens dos ra- Hoje também fez um mês que ini- mais em nossas terras, e na manhã ciamos a autodemarcação da nossa do dia 15 fomos surpreendidos em Terra IPI`WUYXI`IBUYXIM`IKUKAM nosso acampamento por um grupo DAJE KAPAP EYPI, por não confiar de 4 madeireiros, grileiros liderado nas palavras enganosas do governo pelo Vilmar que se diz dono de 6 e de seus órgãos. lotes de terra dentro do nosso terri- Garantir o nosso território sempre tório, disse ainda que não irá permi- vivo é o que nos dá força e coragem. tir perder suas terras para nós e na Sem a terra não sabemos sobreviver. segunda próxima estaria levando o Ela é a nossa mãe, que respeitamos. caso para a justiça. Sabemos que contra nós vem o go- Agora decretamos que não vamos verno com seus grandes projetos esperar mais pelo governo. Agora para matar o nosso Rio, floresta, decidimos fazer a autodemarcação, vida. nós queremos que o governo respei- Esse território atende às populações te o nosso trabalho, respeite nossos do Médio e Alto Tapajós. antepassados, respeite nossa cultu- Esperamos pelo governo há décadas ra, respeite nossa vida. Só paramos para demarcar nossa Terra e ele nun- quando concluir o nosso trabalho. ca o fez. Por causa disso que a nossa SAWE, SAWE, SAWE. terra está morrendo, nossa floresta

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 363 A última carta que veio a públi- plorados de manhã até a noite por 4 co, no momento em que escrevo, é donos estrangeiros. datada de 28 de novembro de 2014 Primeiro o governo federal acabou e anuncia que não há prepotência Sete Quedas, no Teles Pires, que foi contra a qual os Munduruku não destruído pela hidrelétrica, matan- ofereçam resistência: do o espírito da cachoeira. E agora, com seu desrespeito em não publi- Aldeia Sawré Muybu, 28 de novem- car o nosso relatório, acaba também bro de 2014 com Daje Kapap Eypi. “Quando nós passamos onde porcos Sentimos o chamado. Nosso guer- passaram, eu vi, eu tive uma visão reiro, nosso Deus, nos chamou. Ka- deles passando. Eu tenho 30 anos. rosakaybu diz que devemos defen- Quando eu era criança minha mãe der nosso território e nossa vida do me contou a história dos porcos. grande Daydo, o traidor, que tem É por isso que devemos defender nome: O Governo Brasileiro e seus nossa mãe terra. As pessoas devem aliados que tentam de todas as for- respeitar também. Todas as pessoas mas nos acabar. devem respeitar porque a história Nós estamos lutando pela nossa de- está viva ainda, estamos aqui, somos marcação há muitos anos, sempre nós”, Orlando Borô Munduruku, al- que a gente vai pra Brasília a Funai deia Waro Apompu do Alto Tapajós. inventa mentiras e promessas pra Hoje, pela primeira vez durante a nos acalmar. Sabemos que a Funai autodemarcação, chegamos ao local faz isso para ganhar o tempo para sagrado Daje Kapap Eypi, onde os construção da hidrelétrica do Tapa- porcos atravessaram levando o filho jós, agora nós cansamos de esperar. do Guerreiro Karosakaybu. Senti- Sem chorar ou transformando as mos algo muito poderoso que envol- lágrimas em coragem, em Assem- veu todo nosso corpo. bleia tomamos a seguinte decisão: A Outra emoção forte que sentimos Funai tem três dias para publicar o hoje foi ver nossa terra toda devas- nosso relatório e dar continuidade à tada pelo garimpo bem perto de demarcação, homologação e desin- onde os porcos passaram. Nosso san- trusão da nossa terra. tuário sagrado está sendo violado, Caso não sejamos atendidos, vamos destruído 50 PCs (retroescavadeiras) dar continuidade ao trabalho da em terra e 5 dragas no rio. Para cada autodemarcação até o final. Por en- escavadeira, 5 pobres homens, em quanto só estamos avisando os inva- um trabalho de semiescravidão, ex- sores que eles devem sair do nosso

364 Palmquist território, mas, se a Funai não fizer lho-tem-dialogo-tenso-com-in- o que tem que ser feito, ou seja, pu- dios-contrarios-usina-de-teles- blicar o nosso relatório e demarcar -pires-7642233#ixzz3EAU4i82q> nossa terra, a mesma, com sua omis- (acesso: 5 dez. 2014). são, estará provocando um conflito Amazônia em chamas. 2013. com proporções inimagináveis en- “2ª reunião do Movimen- tre Munduruku e invasores, que já to Ipereg Ayu: mais um pas- é anunciado há muito tempo, com so na resistência Munduruku. todas as denúncias de ameaças que Sawe!”. 13 nov. Disponível em: estamos sofrendo. (acesso: 5 dez. 2014). I Carta da autodemarcação do ter- Aranha, Ana; Mota, Jéssica. 2014a. ritório Daje Kapap Eypi. 2014. “A batalha pela fronteira Mun- Aldeia Sawré Muybu, 17 nov. duruku”. In: A Pública – Agência de Disponível em: (acesso: 5 dez. 2014). batalha-pela-fronteira-munduru- Iii Carta da autodemarcação do ku/> (acesso: 5 dez. 2014). território Daje Kapap Eypi. 2014. ___. 2014b. “Exclusivo: Relatório Aldeia Sawré Muybu, 28 nov. da Funai determina que terra é Disponível em: (acesso: 5 dez. org/2014/12/relatorio-funai-deter- 2014). mina-que-terra-e-dos-munduru- Alencastro, Catarina; Souza, An- ku/> (acesso: 5 dez. 2014). dré de. 2013. “Gilberto Carvalho Brasil. Justiça Federal. Superior tem diálogo tenso com índios Tribunal de Justiça. 2013. Sus- contrários à usina de Teles Pires”. pensão de liminar e de sentença In: O Globo. Brasília, 21 fev. Dispo- nº1.745 - PA. Brasília, 18 abr. Dis- nível em:

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 365 Suspensao.pdf/view> (acesso: 5 concessão de licença para a usi- dez. 2014). na São Luiz do Tapajós”. Sítio da Brasil. Ministério Público Federal Procuradoria da República no no Pará. 2011. “Índios Kayabi e Pará. Belém, 20 nov. Disponí- Munduruku anunciam que vão vel em: 5 dez. Disponível em: ku”. Sítio da Procuradoria da Re- (acesso: 5 dez. 2014). pública no Pará. Belém, 1 jul. Dis- ___. 2014a. “Índios Munduruku vão ponível em: (acesso: 5 (acesso: duruku”. Sítio da Procuradoria da 5 dez. 2014). República no Pará. Belém, 8 nov. ___. 2014b. “Justiça Federal dá prazo Disponível em: pública no Pará. Belém, 29 out. (acesso: 5 dez. 2014). Disponível em: (aces-

366 Palmquist -adenilson-munduruku> (acesso: dez. 2014). 5 dez. 2014). Brum, Eliane. 2014. “Como rasgar a ___. 2014e. “MPF pede a suspensão Constituição e massacrar índios, da concessão da Floresta Nacio- segundo o governo Dilma Rous- nal do Crepori, em Itaituba”. seff”. In: Desacontecimentos. São Sítio da Procuradoria da Repú- Paulo, 27 nov. Disponível em: blica no Pará. Belém, 27 nov. Dis- (acesso: 5 dez. 2014). -itaituba/?searchterm=crepori> Carta da ocupação de Belo (acesso: 5 dez. 2014). Monte. 2013. Vitória do Xin- ___. 2014f. “MPF recomenda imedia- gu, 2 maio. Disponível em: ta suspensão de leilão de flores- República no Pará. Belém, 21 nov. (acesso: 5 dez. 2014). Disponível em: (acesso: 5 -sao-luiz-do-tapajos-o-governo- dez. 2014). -mentiu-para-os-munduruku/> Brasil. Secretaria-Geral da Presi- (acesso: 5 dez. 2014). dência da República. 2013. “Es- Carta nº8 [da ocupação de Belo clarecimentos sobre a consulta Monte]: o massacre foi anunciado aos Munduruku e a invasão de e só o governo pode evitar. 2013. Belo Monte”. Sítio da Secretaria- Canteiro de obras de Belo Monte, -Geral da Presidência da Repúbli- Vitória do Xingu, 29 maio. Dispo- ca. Brasília, 6 maio. Disponível nível em: -2013-esclarecimentos-sobre-a- (acesso: 5 dez. 2014). -consulta-aos-munduruku-e-a-in- Conselho Indigenista Missioná- vasao-de-belo-monte> (acesso: 5 rio. 2013. “Ministro Gilberto

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 367 Carvalho se recusa a receber in- (acesso: 5 dez. 2014). dígenas; na Funai, grupo avalia Instituto do Homem e Meio Am- postura do governo em assem- biente da Amazônia. 2012. “Re- bleia”. Sítio do Conselho Indi- dução de áreas protegidas para genista Missionário. Brasília, a produção de energia”. Sítio do 10 jun. Disponível em: (acesso: 5 dez. cao-de-areas-protegidas-para-a- 2014). -producao-de-energia> (acesso: 6 Declaração final do Xingu +23. jun. 2012). 2012. Vila de Santo Antônio, 16 Monteiro, Claudemir. 2013. “Des- jun. Disponível em: careacanga, sul do Pará”. Sítio (acesso: 5 dez. 2014). do Conselho Indigenista Missio- Diniz, João R. 2013. “A nova guarda nário. Belém, 9 ago. Disponível pretoriana de Dilma Rousseff”. em: (acesso: 5 porterbrasil.org.br/2013/04/a-no- dez. 2014). va-guarda-pretoriana-de-dilma- Munduruku, Arnaldo C. Kaba; -rousseff/> (acesso: 5 dez. 2014). Munduruku, Arlindo Kaba; Fariello, Danilo. 2014. “Governo Munduruku, Candido Waro; marca leilão para hidrelétrica no Munduruku, Maria Leusa C. Rio Tapajós, mas não consulta Kaba; Munduruku, Josias Ma- Funai”. In: O Globo. Brasília, 13 set. nhuary; Munduruku, Valde- Disponível em: indigenas-reclamam-de-calunia- (acesso: 5 dez. 2014). -e-protocolam-interpelacao-cri- Grupo de Estudos Tapajós. [2013]. minal-contra-ministro-gilberto- Nota à imprensa. Disponível em: -carvalho/> (acesso: 5 dez. 2014). duruku, Maria Leusa C. Kaba;

368 Palmquist Munduruku, Arlindo Kaba; Monte”. Sítio do Instituto So- Munduruku, Francisco Waro; cioambiental. Brasília, 6 nov. Munduruku, Adalto J. Akay; Disponível em: (acesso: 5 3 nov. Disponível em: e lideranças Munduruku denun- (acesso: 5 dez. 2014). ciam intervenção do governo fe- Peduzzi, Pedro. 2011. “Polícia Civil deral para forçar construção de conclui inquérito sobre depre- usina”. Sítio do Conselho Indige- dação da Usina Hidrelétrica de nista Missionário. Brasília, 9 ago. Belo Monte”. In: Agência Brasil. Disponível em: (acesso: 5 dez. 2014). policia-civil-conclui-inquerito-so- ___. 2014. “Munduruku são ataca- bre-depredacao-da-usina-hidrele- dos com rojões por garimpeiros, trica-de-belo-monte> (acesso: 5 comerciantes e prefeitura de Ja- dez. 2014). careacanga (PA)”. Sítio do Con- Rodrigues, Alex. 2013. “Mundu- selho Indigenista Missionário. rukus libertam biólogos após Brasília, 13 maio. Disponível em: governo anunciar suspensão de (acesso: 5 Disponível em: (acesso: 5 dez. Sítio do Conselho Indigenista 2014). Missionário. Brasília, 11 jun. Dis- Rojas, Biviany; Valle, Raul T. 2013. ponível em:

O governo que age como a sucuri e a resistência dos Munduruku 369 (acesso: 5 dez. 2014). Sposati, Ruy. 2013a. “Belo Mon- Saud, Larissa. 2014a. “No Pará, in- te: nova ocupação, mesmas de- dígenas apreendem máquinas mandas, mesmos problemas”. e expulsam garimpeiros”. Blog Sítio do Movimento Xingu Vivo da Amazônia. 3 fev. Disponí- Para Sempre. Vitória do Xin- vel em: (acesso: 5 -mesmos-problemas/> (acesso: 5 dez. 2014). dez. 2014). ___. 2014b. “Professores Munduru- ___. 2013b. “‘Não estamos indo a ku trancam secretaria de educa- Brasília negociar’, afirmam indí- ção após demissão em massa”. genas”. Sítio do Conselho Indi- In: Repórter Brasil. São Paulo, 12 genista Missionário. Altamira, 4 mar. Disponível em: (acesso: 5 dez. 2014). -apos-demissao-em-massa/> Torres, Mauricio. 2014. “De se- (acesso: 5 dez. 2014). ringais, gateiros e garimpos: o Silva, César M.B. 2011. “O refém cor- Alto Tapajós e a resistência de dial”. Blog do Arnaldo. Disponível suas gentes”. In: Sousa Júnior, em: (acesso: 5 dez. singular. São José dos Campos, 2014). ITA/CTA, pp. 37-59.

370 Palmquist Redução na medida A Medida Provisória nº558/2012 e a arbitrariedade da desafetação de unidades de conservação na Amazônia Maria Luíza Camargo e Mauricio Torres

Parque Nacional (Parna) da populações originais, bem como na Amazônia, localizado no oes- exploração predatória dos recursos te do Pará, é uma das primei- naturais (Oliveira, 1997, 2005). Oras unidades de conservação (UC) da O parque estava encravado em Amazônia brasileira. Sua criação foi uma área de seis milhões de hec- iniciada pelo Grupo de Operações tares, desapropriada pelo Incra em da Amazônia (GOA), organização 1971 e denominada Polígono de Alta- governamental de consultoria com mira. O objetivo da desapropriação interesse na Amazônia, que incluía era estimular a ocupação de terras vários órgãos, dentre eles o Instituto sob a influência da rodovia Transa- Nacional de Colonização e Reforma mazônica e estabelecer programas Agrária (Incra), a Superintendência agropecuários. O GOA recomendou, do Desenvolvimento da Amazônia então, que um milhão de hectares (Sudam) e o Ministério da Agricultu- do Polígono fossem destinados à ra (Brasil, Ministério da Agricultura, preservação ambiental, especifica- Instituto Brasileiro de Desenvolvi- mente na categoria de Parna. Em mento Florestal, 1979). A gênese do 1974, por meio do Decreto nº73.683, parque veio atada aos projetos do o Parna da Amazônia foi criado. governo militar de colonização e re- Nos anos que se seguiram, as co- forma agrária – projetos marcados munidades de seringueiros que ocu- pelas alianças do Estado com o gran- pavam a margem esquerda do rio de capital nacional e estrangeiro, e Tapajós, na porção afetada pelo Par- que resultaram na expropriação das na, sofreram uma violência que, até

371 hoje, ecoa na memória da região. de Mangueira, às margens do rio Ao timbre dos clarins e do autori- Tapajós, ainda hoje tem a máqui- tarismo da ditadura militar, com as na de costura que, com uma cama primeiras providências para a im- de casal, consumiu todo o valor da plementação do parque, deflagrou- indenização. O aposentado do IBDF -se a barbárie que se prolongaria até explica: “Pagar indenização para meados da década de 1980 e da qual quem? Só se for para deus. Eles foram vítimas as famílias que, ha- não tinham benfeitoria nenhuma, via gerações, habitavam a área e, no e viviam de tirar seringa que deus período, foram violenta e arbitraria- plantava. Às vezes, a gente até aju- mente expulsas. Formalmente, es- dava, dizendo que eles tinham des- ses moradores deveriam ser indeni- matado uma área maior, para eles zados e relocados após a criação da pegarem alguma coisa”. Ainda que UC, em 1974; na prática, as medidas com uma indenização razoável, o foram apenas cosméticas. desrespeito seria muito grande. Seu “Contra a força, não há resistên- Porcidônio Pereira, ao ser informa- cia: eu nunca fui homem de receber do, em fevereiro de 2005, sobre o ordem duas vezes quando era para direito que um dia tivera à indeni- tirar essa gente daqui”, lembrava, zação pela expropriação que sofrera com indisfarçável orgulho, um fun- havia 25 anos, quando vivia na loca- cionário aposentado do Instituto lidade chamada Os Fechos, correu Brasileiro de Desenvolvimento Flo- interessado a perguntar não sobre o restal (IBDF), referindo-se ao traba- dinheiro, mas se, de algum modo, lho na expulsão dos moradores do ainda poderia voltar para sua casa, parque. Já estes últimos não se re- às margens do rio Tapajós. Outros, feriam com o mesmo sentimento como Jorge, Samuel e Lausminda, ao episódio: a experiência de sujei- depois de empurrados para a zona ção à intimidação e a violência são urbana, acabaram por voltar, o mais motivos comuns nos discursos dos que puderam, para perto de seus lo- ex-moradores sobre a imposição so- cais de origem e hoje ocupam, res- frida para que abandonassem não pectivamente, a ilha da Montanha, só a terra, mas todo um modo de a ilha de Lorena e o São Vicente, no vida. Comunidades inteiras foram entorno imediato do parque. 1. Todos os trabalhos de 1 campo referidos neste removidas e poucas famílias foram Em entrevistas com antigas texto foram realizados indenizadas. Além disso, a maioria famílias do parque, hoje residen- em expedições das indenizações era de valor irri- tes no perímetro urbano de Itai- ocorridas entre abril de 2004 e abril de 2005. sório. Dona Suzana, ex-moradora tuba ou na comunidade Pimental,

372 Camargo e Torres Imagem 1. Dona Lausminda de Jesus, expropriada pela criação do Parque Nacional da Amazônia, hoje vive no Projeto de Assentamento Agroextrativista Montanha e Mangabal, ameaçado pelo complexo hidrelétrico do Tapajós. Por Mauricio Torres, ago. 2008. no mesmo município, notou-se o Enfim, foi alto o passivo social quanto a expulsão alterou-lhes o para se ter o Parna da Amazônia. modo de vida e, consequentemen- Entretanto, o fato parece pesar te, sua relação com o meio. Foram pouco e, em 1985, a UC sofre sua comuns à fala de todos a desestru- primeira mutilação: o Decreto turação da vida, as dificuldades de nº90.823/1985, assinado pelo pre- adaptação às cidades e, principal- sidente João Figueiredo, exclui o mente, as dificuldades na educação “dente” de seis mil hectares de seu dos filhos. A exclusão dos morado- limite leste. O parque é reduzido res da UC gerou um sério conflito. arbitrariamente em favor de gran- Imagine-se a situação de famílias des interesses econômicos, mais que nasceram e viveram, por gera- especificamente do então Grupo ções, naquele local, que lá tinham João Santos, que pretendia implan- suas vidas – e também seus mortos tar uma mineradora na área. A con- – e, após a criação do parque, fo- dição imposta pela empresa para ram relegadas, da noite para o dia, a realização do investimento foi a uma situação de irregularidade. a desafetação dos limites do par- Suas formas de explorar os recur- que de uma área onde havia uma sos naturais e assegurar a própria rica jazida de calcário, que termi- reprodução sociocultural foram nou não sendo explorada (Torres & criminalizadas. Figueiredo, 2005).

Redução na medida 373 Os interesses sociais não pesa- ocupado por camponeses sem terra, ram em nada, pois, antes da decre- justamente enquanto o órgão ges- tação da exclusão da área em favor tor aplicava desmedida energia na da mineradora, já havia uma ocupa- expulsão dos ribeirinhos. ção camponesa no local, que mais Tais famílias camponesas da área tarde viria a formar a comunidade limítrofe leste do parque, conheci- Novo Arixi. A presença dessas famí- da como a porção do arco, lutaram lias era entendida, pela gestão do anos pela alteração de limites da parque, como incompatível com os UC, até que, inesperadamente, em ideais de conservação da unidade e 12 de agosto de 2011, é publicada a sua permanência, proibida. Porém, Medida Provisória (MP) nº542, que os enormes impactos da exploração “dispõe sobre alterações nos limites mineral foram, de tal forma, tão do Parque Nacional Amazônia, do bem-vindos, que se “tirou” a UC de Parque Nacional dos Campos Ama- cima do traçado da área de interes- zônicos, do Parque Nacional da [sic] se (ver detalhe no mapa 1). Mapinguari”. No que diz respeito ao Quase três décadas depois, o Par- Parna da Amazônia, houve a redu- na da Amazônia – desta vez, ao lado ção de cerca de 25 mil hectares na de diversas outras UCs – sofre nova região do arco. investida. E, com constrangedora A redução do parque objetiva- semelhança, o interesse do grande da pela MP nº542/2011, apesar de capital atropela qualquer razão so- ir ao encontro das pretensões dos cial ou ambiental. Em 2012, no mar- camponeses (e também de alguns co de um projeto de aproveitamen- grileiros) que ocupavam a borda da to hidrelétrico, que sequer tem seus reserva, vinha na verdade preparar estudos de viabilidade concluídos, o o terreno para futuras desafetações, parque e outras UCs do mosaico da de interesse da amplamente anun- bacia do Tapajós são reduzidos. ciada construção de um megacom- plexo hidrelétrico, que submergi- A Medida Provisória nº542/2011 e o ria porções da UC. Ainda que essa simulacro de preocupação social desafetação, especificamente, em Se, como dissemos, as comunidades nada interferisse nos planos de bar- tradicionais que ocupavam a porção ramento do Tapajós, entendemos do Parna da Amazônia às margens que o governo valeu-se de um argu- do Tapajós foram expulsas, o mes- mento com legitimidade (a deman- mo controle não se dava no limite da social) para criar o precedente do leste da unidade, que acabou sendo uso de MP para redução de UCs, com

374 Camargo e Torres olhos postos em nova MP, que traria Também havia um antigo argu- outras e maiores desafetações, então mento técnico para a desafetação totalmente focadas nas barragens. dessa faixa: levar os limites do par- Corrobora com este pensar o ar- que aos marcos naturais, quais se- gumento da Procuradoria Geral da jam os igarapés Tracoá e Arixi. Essa República (PGR), em ação judicial alteração foi proposta por ocasião impetrada contra a MP nº542/2011, da elaboração do plano de manejo de que trataremos adiante, onde do parque, em 1979, e foi tão bem se demonstra que mesmo o aten- aceita na época, que o próprio órgão dimento às famílias que viviam na gestor, até o início dos anos 2000, área do parque não justificaria a entendia que o plano de manejo edição de uma MP: havia de fato mudado os limites, e chegou a orientar a população de Para justificar a edição da MP, o colonos que lá estava a ocuparem Executivo também se baseou na a porção, tudo na crença de que a necessidade de regularizar a situa- área havia deixado de ser UC a par- ção de famílias que vivem nas áreas tir daquele documento. abrangidas pelos parques, que se Ainda outro ponto sempre foi encontram impedidas de acessar alegado, com fundamento: o traça- benefícios previstos em programas do do arco que se desenhava nos sociais do governo, o que, para a mapas do Instituto Chico Mendes PGR, não configura situação de ur- de Conservação da Biodiversida- gência. “Em que pese seja possível de (ICMBio) era uma aproximação admitir a relevância da questão, ela grosseira. A forma plotada não coin- não pode ser definida como urgente, cide com o memorial descritivo do pois demanda a análise qualificada e parque, pois, seguindo-se a descri- fundamentada das medidas a serem ção do memorial, o polígono é uma adotadas”, sustenta o órgão. Confor- forma impossível e não se fecha. me destaca a autora na inicial, “a Enfim, em que pese o permanen- própria Lei 9.985/2000 oferece meca- te perigo de cada vez mais se tornar nismos ao Poder Executivo para que prática constante a desafetação de as populações tradicionais não so- UCs, não se pode negar que a re- fram qualquer tipo de prejuízo em dução do Parna da Amazônia – e é decorrência da criação de unidades importante lembrar que nos referi- de conservação, mesmo de proteção mos somente a esta UC – responde integral” (Brasil, Justiça Federal, Su- a um apelo social. Mas é justamen- premo Tribunal Federal, 2011). te nisso, nessa virtual legitimidade,

Redução na medida 375 que está o perigo, já que ela confere Durante a tramitação da MP – alguma razão de ser e sedimenta o convertida, no Congresso Nacional, uso de um instrumento nocivo: a em projeto de lei de conversão (PLV) MP como ferramenta para redução nº12/2012 –, foram apresentadas 52 de UCs. Ao reduzir UCs por meio de emendas, muitas das quais supri- uma MP em um caso em que hou- mindo os artigos que determina- vesse, no ato, alguma razoabilidade, vam a desafetação de UCs para se menor seria a oposição ao fato de atender aos interesses na produção se fazer da desafetação por MP um de energia. Alguns parlamentares modus operandi e, a partir daí, abrir justificavam a recomendação de su- caminho para abocanhar do mesmo pressão com o fato de a desafetação modo um naco maior do mosaico de não observar os estudos técnicos e 2. Cf. MS 24.184/DF, UCs do Tapajós que obstaculizam as consultas públicas previstos em lei2. Relação. Ministra Ellen usinas hidrelétricas (UHEs) projeta- Em outros casos, pediam a inclusão Gracie, DJ 27 fev. 2004 apud Brasil, Ministério das para o rio, em função de serem na lei desses estudos e consultas Público Federal diretamente afetadas pelos projetos como condição para a alteração dos (2012: 10). de barramento. limites das UCs. Essas emendas não A MP nº542/2011 não foi votada foram incluídas na lei. e, após ter sido prorrogada por 60 Na MP nº558/2012, era desafetada dias, perdeu sua validade em 12 de do Parna da Amazônia não só a área dezembro de 2011. Contudo, não do arco, ocupada por camponeses, cessou aí a iniciativa de reduzir re- mas também a extensa área de in- servas ambientais por MPs. teresse do projeto do complexo hi- drelétrico do Tapajós - CHT (mapa 1). A MP nº558/2012 e a diminuição Aliás, o Parna da Amazônia não foi das UCs que “atrapalhavam” a única UC do oeste paraense atin- Logo em seguida, em 6 de janeiro gida pela MP: isso aconteceu com de 2012, o governo federal explicita todas as outras reservas ambientais suas intenções com a promulgação que, de algum modo, seriam afe- da MP nº558/2012, que “dispõe so- tadas pelas barragens e, portanto, bre alterações nos limites dos Par- dificultariam sua implementação ques Nacionais da Amazônia, dos (mapas 2 a 5). Campos Amazônicos e Mapinguari, O argumento do então presiden- das Florestas Nacionais (Flona) de te do ICMBio – figura bem distante Itaituba I, Itaituba II e do Crepori e da realidade local, cujas decisões da Área de Proteção Ambiental do políticas comumente eram tomadas Tapajós, e dá outras providências”. à revelia da razoabilidade técnica,

376 Camargo e Torres social e ambiental – deixava claro Logo após a promulgação de que as desafetações provinham de cada uma das MPs, a nº542/2011 e a interesses hidrelétricos: nº558/2012, a PGR interpôs, no Su- premo Tribunal Federal (STF), ações Para o presidente do Instituto Chico diretas de inconstitucionalidade Mendes, Rômulo Mello, o proces- (Adin), ambas com pedido de limi- so é um exemplo da conciliação de nar, argumentando que o ato sobre diferentes interesses, como os de o qual se legislou não era de natu- geração de energia para o país, os reza urgente, ou seja, não se jus- de criação de novos assentamentos tificaria a edição de uma MP para agrícolas sustentáveis e de melhoria implementar empreendimentos na gestão efetiva dessas Unidades de hidrelétricos que sequer contavam Conservação. com os respectivos licenciamentos […] ambientais concluídos. A Adin tam- A Floresta Nacional de Itaituba I bém argumentou que a MP feria a teve seus limites redefinidos para Constituição Federal, como se indi- viabilizar os Aproveitamentos Hi- cará mais adiante. drelétricos de São Luiz do Tapajós Se a PGR alegava ser precipita- e de Jatobá, excluindo 2,5% de sua da a desafetação das reservas antes área original. A redefinição de limi- dos estudos e licenciamentos per- tes da Floresta Nacional de Itaitu- tinentes – que especificariam onde ba II elimina a sobreposição com o seriam as áreas afetadas pelas pre- Aproveitamento Hidrelétrico de São tensões de barramentos e, mesmo, Luiz do Tapajós, com a exclusão de se de fato tais barramentos seriam 7,9% de sua área original. Já a Flores- viáveis –, a legislação vigente à épo- ta Nacional do Crepori teve sua área ca obstaculizava o licenciamento excluída em 0,2% de sua área origi- de projetos hidrelétricos em UCs, nal para o Aproveitamento Hidrelé- principalmente nas de proteção in- trico do Jatobá. tegral. Inclusive, em 2009, o ICMBio Por fim, a redefinição de limites da já havia se manifestado contrário Área de Proteção Ambiental do Ta- à abertura do processo de licencia- pajós elimina a sobreposição com o mento em função de os projetos de Aproveitamento Hidrelétrico do Ja- barramentos preverem reservató- tobá, com a exclusão de 1,3% de sua rios que se sobreporiam a UCs de área inicialmente decretada (Brasil, proteção integral (Monteiro, 2014). Instituto Chico Mendes de Conser- O governo federal tentou contornar vação da Biodiversidade, 2012). os empecilhos da legislação vigente

Redução na medida 377 com um novo aparato legal, cons- das. Em março de 2011, os processos truído justamente com o propósito das cinco hidrelétricas foram oficial- de viabilizar, a qualquer custo, o mente encerrados (Monteiro, 2014). processo de licenciamento das bar- ragens. Tratava-se, então, do Decre- A “solução definitiva” veio, en- to nº7.154, de 9 de abril de 2010, que tão, com a desafetação das UCs flexibilizava, em prol do setor ener- afetadas pelos eventuais lagos. Re- gético, a efetividade das UCs. Nesse duzidas as reservas, o ICMBio te- sentido, o decreto dispunha-se a: ria condições cômodas para não se opor à continuidade do processo de Sistematiza[r] e regulamenta[r] a licenciamento. atuação de órgãos públicos federais, Documento elucidativo acer- estabelecendo procedimentos a se- ca da estranha harmonia coerciti- rem observados para autorizar e rea- va estabelecida entre as políticas lizar estudos de aproveitamentos de ambientais e energéticas no Brasil potenciais de energia hidráulica e é a exposição de motivos da MP sistemas de transmissão e distribui- nº558/2012. Ali se aclara a subordi- ção de energia elétrica no interior nação da questão ambiental ao inte- de unidades de conservação bem resse energético, ao se expor sem o como para autorizar a instalação de menor constrangimento a defesa da sistemas de transmissão e distribui- prévia redução de UCs em favor do, ção de energia elétrica em unidades ainda por estudar, interesse energé-

3 3. A existência do de conservação de uso sustentável . tico, pois “o aproveitamento hidre- decreto foi inicialmente létrico somente é possível com a re- denunciada por Monteiro (2014). Porém, segundo Telma Montei- definição dos limites da unidade de ro, editora de blog especializado em conservação” (Brasil, Ministério do questões infraestruturais na Ama- Meio Ambiente et al., 2012). Chama a zônia, o ICMBio teve outra interpre- atenção, ainda, o fato de a exposição tação do decreto, percebendo que, de motivos ser assinada também pelo Ministério do Meio Ambiente [n]a verdade, ele não autorizava os (MMA), que a princípio não deveria órgãos ambientais a concederem o compartilhar da lógica de preponde- licenciamento ambiental de usinas rância da política energética sobre hidrelétricas (UHEs) em unidades de avaliações de impactos ambientais. conservação, apenas regulamentava As consequências da desafetação os estudos de aproveitamento de po- das UCs foram totalmente subesti- tenciais de energia em áreas protegi- madas, de modo que a medida foi

378 Camargo e Torres implementada sem qualquer estu- do Tapajós [pela MP nº558/2012] são do dos impactos que dela poderiam classificadas como de prioridade ex- provir. A dinâmica de degradação tremamente alta no Mapa de Áreas ambiental no entorno das UCs dava Prioritárias para a Conservação acento à necessidade de uma cri- da Biodiversidade, elaborado pelo teriosa avaliação das desafetações, MMA (Araújo et al., 2012). pois, desde a década de 1970, os pro- gramas de colonização em todo o O governo federal propagandeia entorno dessas unidades, incluindo o fato de a porção das UCs da bacia parte da rodovia Transamazônica, do Tapajós a ser supostamente ala- trouxeram, além de grandes impac- gada pelos pretensos barramentos tos sociais, uma aceleração sem pre- ser pequena. Uma verdade em ter- cedentes no ritmo de degradação da mos, pois se percentualmente a área área. Isso aumenta a importância a ser submergida não é grande, em do papel desempenhado pelas UCs. números absolutos o quadro muda, E, com efeito, estudos afirmam que sendo afetado o substantivo qui- nhão de 75.630 hectares (tabela 1), vi- cerca de 80% das áreas excluídas das sando apenas os empreendimentos unidades de conservação da Bacia hidrelétricos na bacia do Tapajós.

Tabela 1. Alterações promovidas pela Medida Provisória (MP) nº558/2012 em unidades de conservação (UCs) da bacia do Tapajós

Motivo das alterações Área oficial pré- Área pós-MP Unidade de Usina MP nº558/2012 Regularização nº558/2012 conservação hidrelétrica (hectare) (hectare) (hectare) (hectare)

Parque Nacional da 1.114.496 -18.700 -25.060 1.070.736 Amazônia

Floresta Nacional do 740.661 -856 - 739.805 Crepori

Floresta Naciona de 220.034 -7.705 - 212.329 Itaituba I

Floresta Naciona de 440.500 -28.453 - 412.047 Itaituba II

Área de Preservação 2.059.496 -19.916 - 2.039.580 Ambiental do Tapajós

Fonte: Instituto Socioambiental (2012).

Redução na medida 379 Enfim, bem claras eram, por Em notícia de 24 de junho de um lado, a inexistência de estudos 2014, a WWF-Brasil denunciava ou- conclusivos acerca dos impactos tro relevante problema do CNPE: oriundos da desafetação das UCs a falta de transparência sobre seu 4. A notícia, aliás, trata e, por outro, a pressa para consu- funcionamento4. Presidido pelo mi- do início dos trâmites, mar tal redução. A motivação para nistro de Minas e Energia, o CNPE é no âmbito do CNPE, para a redução de UCs essa pressa pode ser encontrada no responsável por assessorar a presi- no rio Juruena, também tom da Resolução nº3 do Conse- dência da República na formulação na bacia do Tapajós, para se liberar caminho lho Nacional de Política Energéti- de políticas e diretrizes de energia. para a construção de ca (CNPE), de 3 de maio de 2011. A Como aponta a nota, mais duas UHEs. resolução criado em 1997, o Conselho prevê a indica os projetos de geração de participação da sociedade civil e da energia elétrica denominados Apro- academia desde 2006. Até hoje, po- veitamentos Hidrelétricos São Luiz rém, essas vagas não foram preen- do Tapajós, Jatobá, Jardim do Ouro chidas (WWF-Brasil, 2014). e Chacorão como projetos estraté- gicos de interesse público, estrutu- E, além disso, as “pautas não são rantes e prioritários para efeito de divulgadas antecipadamente e as licitação e implantação. atas são conhecidas somente meses após cada reunião” (Idem). Ao me- Além disso, diz que nos desde 2013, um grupo de orga- nizações vem pedindo explicações a estudos de planejamento do setor respeito da falta de representantes elétrico indicam que as primeiras da sociedade civil no conselho, sem unidades geradoras desses Empreen- obter resposta. dimentos deverão estar disponíveis O principal argumento da Adin para a operação comercial a partir nº4717 contra a MP nº558/2012 é o da segunda metade da década [entre de “ofensa ao princípio da reserva 2015 e 2020]. legal”. De acordo com a PGR, a MP fere o art. 225, § 1º, da Constitui- A resolução já dá como certa a ção Federal, que incumbe ao poder construção das UHEs, mesmo antes público: dos estudos de impacto ambiental e social, e mesmo antes de con- […] III - definir, em todas as unidades cluídos os estudos de viabilidade da Federação, espaços territoriais e técnico-econômica. seus componentes a serem especial-

380 Camargo e Torres mente protegidos, sendo a alteração parte da área desafetada não ser, de e a supressão permitidas somente fato, atingida pelas UHEs, e já deter- através de lei, vedada qualquer utili- minava que tais eventuais porções zação que comprometa a integrida- voltassem a ser incorporadas às res- de dos atributos que justifiquem sua pectivas UCs, como se lê no art. 14 proteção […]. da Lei nº12.678, de 25 de junho de 2012, na qual foi convertida a MP. A PGR aponta também o fato Daí, simplesmente não há como de a redução das UCs ser efetivada justificar a urgência das questões diante apenas da possibilidade de tratadas pela MP, pois, como ex- 5 construção dos empreendimentos , pressa a Adin nº4717, 5. No caso do uma vez que aproveitamento hidrelétrico de Tabajara, eventual impedimento legal para que afeta o Parna dos apenas o procedimento de licen- funcionamento das usinas no Rio Ta- Campos Amazônicos, na bacia no rio ciamento ambiental poderá vir a pajós nada tem a ver com as unida- Madeira, o processo de autorizar a instalação do empreen- des de conservação, mas, sim, com o licenciamento estava dimento […], definindo, inclusive, a fato de que o licenciamento ambien- suspenso na época da publicação da MP localização que promova menor im- tal está em fase embrionária ou nem nº558/2012, a pedido pacto ambiental (Brasil, Ministério sequer foi iniciado. do ICMBio. Ele também não havia sido incluído Público Federal, 2012). no Plano Decenal de A indignação e o vazio das Expansão de Energia Sendo assim, não faria sentido (PDE) 2020 (cf. Brasil, respostas Ministério Público desafetar as unidades previamen- Além da judicialização, manifesta- Federal, 2012; Sevá et te, sem que se soubesse onde exa- ções de repúdio e inconformidade al., 2010. tamente os empreendimentos se- partiram da sociedade civil orga- riam instalados e o quanto iriam nizada. Em carta aberta, datada de afetá-las. Ademais, nenhum dos maio de 2012, diversas entidades empreendimentos hidrelétricos que atuam local e nacionalmente planejados para o rio Tapajós pos- reagiram energicamente à MP, des- suía sequer a licença ambiental pré- tacando que a redução das UCs deu- via no momento da promulgação da -se de modo autoritário, carecendo MP; apenas para a UHE São Luiz do de qualquer racionalidade provinda Tapajós havia se iniciado o procedi- de estudos técnicos: mento para sua obtenção. Na verdade, a própria MP já con- A MPV [Medida Provisória] nº558 fessava o caráter precário do que exclui ilegalmente, sem estudos téc- decidia, ao prever a possibilidade de nicos e qualquer consulta às popula-

Redução na medida 381 ções afetadas e à sociedade brasileira os princípios fundamentais de ges- em geral, vastas áreas de Unidades tão das unidades de conservação. de Conservação (UCs) na Amazônia Acreditamos igualmente que a prio- para abrigar os canteiros e reserva- rização de empreendimentos frente tórios de grandes hidrelétricas que, à conservação da biodiversidade e ao planejadas de forma autoritária, modo de vida das populações tradi- ameaçam ecossistemas de biodiver- cionais, utilizando-se da desafetação sidade única, as metas brasileiras de áreas protegidas sem levar em de redução de emissões de gases de conta critérios científicos e socioam- efeito estufa e, principalmente, os bientais, coloca em risco não apenas direitos humanos e a qualidade de a integridade do mosaico de Unida- vida de milhares de brasileiros que des de Conservação gerenciado pelo vivem na região. ICMBio em Itaituba, mas a própria integridade do bioma amazônico. Após a promulgação da Lei nº12.678/2012, a indignação foi ex- Note-se que essa não foi a primei- pressa também pelos próprios servi- ra reação dos analistas ambientais dores do ICMBio lotados em Itaitu- do ICMBio em Itaituba. Antes da ma- ba. Tratava-se daqueles diretamente nifestação pública, em memorando envolvidos com as UCs reduzidas de maio de 2011, o grupo de gesto- e, mais que qualquer burocrata de res já havia se dirigido à instância Brasília, preocupados com as conse- superior do órgão, elencando, com quências deletérias do ato. O grupo conhecimento de causa, sólidas ra- vem a público e argumenta: zões que obstavam a desafetação das UCs. Entre os problemas levan- Entendemos que o atual processo de tados, destacavam: informações va- desafetação de unidades de conser- gas sobre as áreas a serem desafe- vação na bacia do Rio Tapajós, rea- tadas, insuficientes para a emissão lizado sem nenhum estudo técnico de um parecer técnico; UCs não preliminar, em áreas de significativa totalmente implantadas, sem pla- biodiversidade ainda desconhecida, no de manejo e, assim, sem estudos a favor de um empreendimento que sobre a biodiversidade ali existente não comprovou minimamente a que permitissem minimamente di- sua viabilidade técnica, econômica, mensionar os impactos da redução; social e ambiental, subverte grave- nenhuma consideração a respeito mente as normas constitucionais de das espécies ameaçadas de extinção proteção ao patrimônio ambiental e já registradas e aos sítios arqueoló-

382 Camargo e Torres gicos já mapeados nas áreas a serem região, seguia para as barragens desafetadas, ou ao alargamento dos projetadas para o rio e findava com cursos d’água existentes no caso de o tema da desapropriação por inte- barramento dos rios e seu impacto resse social e por utilidade pública sobre os peixes e a pesca; ausência e o reassentamento de populações de qualquer estudo de viabilidade tradicionais. econômica, ambiental, social ou ar- Infelizmente, no último perío- queológica e conflito com usos, pro- do, os alertas dos setores críticos jetos e investimentos planejados ou às UHEs vêm se confirmando: em em andamento nas UCs. um lapso de tempo muito curto, as Independentemente da consis- áreas desafetadas do Parna da Ama- tência das alegações – expressas zônia e das Flonas Itaituba I e II fo- tanto no memorando, como em ram tomadas por garimpos clandes- manifestações públicas –, o gover- tinos (imagens 2 e 3). no limitou-se a dar de ombros, ig- norando por completo toda e qual- Uma linha de tendência quer contrarrazão argumentada. As desafetações ocorridas no mo- Mais que isso, deu sinais de que es- saico de UCs da bacia do Tapajós tava pouco inclinado a aumentar o em função dos interesses do se- rigor com a avaliação de impactos tor energético e outros segmentos ambientais, considerando as UHEs econômicos não são casos isolados um fato consumado. Isso ficou cla- e representam a aceleração de um ro quando, em janeiro de 2014, o processo longo, contínuo e preo- ICMBio publicou edital de concurso cupante. A jornalista Daniela Chia- público para o órgão, com 30 vagas retti, em maio de 2014, informou para o cargo de analista ambiental, que, por pressão desses interesses, todas voltadas exclusivamente a nos últimos 33 anos, o Brasil teve unidades da bacia do Tapajós. Entre 5,2 milhões de hectares de UCs de- os conhecimentos específicos de- safetados ou recategorizados para mandados para o processo seletivo, categorias menos restritivas, que constava o item “aspectos históri- permitem, por exemplo, a imple- cos e sociais da ocupação humana mentação de grandes empreendi- na região do complexo do Tapajós”. mentos econômicos. Trata-se de De forma sugestiva, o detalhamen- uma área equivalente ao estado to desse item iniciava-se com a do Rio Grande do Norte ou à Costa ocupação humana na bacia, passa- Rica (Chiaretti, 2014). E as perspec- va pelas atividades garimpeiras na tivas não animam. Estudos do Ins-

Redução na medida 383 Imagem 2. No rio Tapajós, próximo à foz do Jamanxim, dragas infestam a área que, até a edição da Medida Provisória nº558/2012, era unidade de conservação. A margem que se vê (esq.) integrava a Floresta Nacional Itaituba I e a margem oposta, o Parque Nacional da Amazônia. Por Lilo Clareto, ago. 2013.

tituto do Homem e Meio Ambiente Ambiente e dos Recursos Naturais da Amazônia (Imazon) registram Renováveis (Ibama) em relação ao que, apenas entre 2008 e 2009, 37 protocolo de licenciamento am- propostas (incluindo algumas go- biental para empreendimentos vernamentais) foram formalizadas que afetem UCs. Segundo Maurício com o objetivo de alterar 48 UCs na Tolmasquim, presidente da Empre- Amazônia (Araújo & Barreto, 2010). sa de Pesquisa Energética (EPE), a O impacto da redução de áreas pro- portaria abriria brecha para que o 6 6. A esse respeito, ver tegidas é intenso . governo efetivasse estudos de via- Martins et al. (2014). Além dos protocolos de redução, bilidade técnica, econômica e am- propriamente ditos, outros apare- biental (EVTEA) ou relatórios de lhos normativos instrumentalizam impacto ambiental (Rima) no inte- o governo para fazer com que as rior de UCs sem a necessidade de UCs deixem de ser um embaraço reduzi-las. Mais uma portaria em a empreendimentos de significa- prol do interesse do hidronegócio: tivo impacto ambiental. Falamos, “Ela pode ajudar a agilizar a realiza- por exemplo, da Portaria nº55, de ção dos estudos”, disse Tolmasquim 17 de fevereiro de 2014, que esta- (Borges, 2014). belece procedimentos para o ICM- A possibilidade, conferida pela Bio e o Instituto Brasileiro do Meio portaria, de realização dos estudos

384 Camargo e Torres Imagem 3. Draga em atividade no alto rio Tapajós. Por Daniela Alarcon, set. 2014. no interior das UCs, dispensando a ternativa, senão recortar a unidade necessidade de reduzi-las na etapa de conservação impactada para que dos inventários e pesquisas, parece- seja construída a usina. Esse expe- -nos ter efeito meramente cosméti- diente foi usado [em] 2012 [com a MP co, pois, como vimos, a conclusão nº558/2012] (Idem). dos estudos não é fator tão relevan- te na decisão política de efetivação Enfim, seja por meio da redução das obras. Além do quê, a portaria de UCs, seja por meio de instrumen- não deixa de ser um atalho para o tos normativos que flexibilizem a licenciamento de grandes obras que efetividade das reservas que detêm impactem áreas protegidas. Como a implementação de barragens na indica André Borges, em matéria Amazônia, assistimos ao que Almei- sobre o assunto, da e Marin caracterizaram como uma agroestratégia, em que se apesar de o governo argumentar intensificam que pretende ter acesso às flores- tas apenas para realizar estudos medidas que objetivam remover técnicos, o fato é que, caso um em- obstáculos jurídico-formais e políti- preendimento venha a passar pelo co-administrativos que impedem o crivo do Ibama, não resta outra al- ingresso de novas extensões de ter-

Redução na medida 385 Imagem 4. Vista aérea do rio Mamuru, no Parque Nacional da Amazônia. Por Mauricio Torres, abr. 2005.

ras no mercado (Almeida & Marins, territorial. “Sem esses elementos, as 2010: 141). UCs não cumprem sua função bási- ca, que é a conservação da natureza São vários os casos em que as para esta e para as futuras gerações”, redelimitações reduziram UCs e, critica o subprocurador-geral da Re- incompreensivelmente, devolve- pública Mario Gisi, coordenador da ram à terra destinada o caráter de 4ª Câmara de Coordenação e Revisão devoluta. do MPF, que trata da atuação da ins- Note-se que o movimento de re- tituição nas áreas do meio ambiente dução das UCs soma-se à precarie- e patrimônio cultural (Brasil, Minis- dade da implementação das unida- tério Público Federal, Procuradoria des já criadas: Geral da República, 2014).

Das 313 UCs federais – grupo cuja No caso específico do alto Ta- área representa 50% do total das pajós, como visto, já se pagou um UCs e em que a atribuição de fisca- preço altíssimo para ter UCs como o lizar a atuação dos órgãos públicos Parna da Amazônia, com a violenta e promover medidas que garantam expulsão das comunidades tradicio- o respeito ao meio ambiente são do nais que ali viviam. Pense-se, agora, MPF –, 173 não têm plano de mane- na situação das famílias expropria- jo, 60 não têm conselho formado e das que se relocaram em Montanha 297 não concluíram a consolidação e Mangabal ou na comunidade Pi-

386 Camargo e Torres

mental, por exemplo. Se os planos Vejmelka, Marcel. Amazônia: re- do governo federal seguirem adian- gião universal e teatro do mun- te, essas famílias serão novamente do. São Paulo, Globo, pp. 141-159. expropriadas, sofrendo e expondo a Araújo, Elis; Barreto, Paulo. 2010. esquizofrenia e a arbitrariedade do “Ameaças formais contra as áreas processo. protegidas na Amazônia”. In: O estado da Amazônia, v.6, nº16. Be- [artigo concluído em julho de 2014] lém, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Dispo- Referências bibliográficas nível em: (aces- zônia: o agronegócio e a reestru- so: 12 fev. 2011). turação do mercado de terras”. Araújo, Elis; Martins, Heron; Bar- In: Bolle, Willi; Castro, Edna; reto, Paulo; Vedoveto, Maria-

Redução na medida 389 na; Souza Jr., Carlos; Veríssi- (acesso: 15 Ambiente da Amazônia. Dispo- mar. 2012). nível em: (acesso: na Amazônia”. Sítio do Supremo 10 maio 2014). Tribunal Federal. Brasília, 18 nov. Borges, André. 2014. “União quer Disponível em: Econômico. São Paulo, 2-4 maio. (acesso: 2 maio 2014). Caderno Brasil, p. A3. Brasil. Ministério da Agricultura. Brasil. Instituto Chico Mendes de Instituto Brasileiro de Desenvol- Conservação da Biodiversidade. vimento Florestal. 1979. Plano 2011. Memorando nº31/2011 – de manejo do Parque Nacional APA DO TAPAJÓS/CR3/DIPLAN/ da Amazônia (Tapajós). Brasília, ICMBio/Itaituba. Resposta ao IBDF. Memorando nº011/2011-CR3/DI- Brasil. Ministério de Minas e Ener- PLAN/ICMBio/ITB. Itaituba, 20 gia. Conselho Nacional de Polí- maio. [Assinado por gestores da tica Energética. 2011. Resolução Área de Proteção Ambiental do nº3/2011. Indica os projetos de Tapajós; das Florestas Nacionais geração de energia elétrica de- do Jamanxim, Altamira e Itaitu- nominados Aproveitamentos ba I e II; e dos Parques Nacionais Hidrelétricos São Luiz do Tapa- da Amazônia e do Jamanxim, to- jós, Jatobá, Jardim do Ouro e das unidades de conservação da Chacorão como projetos estra- bacia do rio Tapajós.] tégicos de interesse público, es- ___. 2012. “Redefinição de limites truturantes e prioritários para em UC representa conciliação efeito de licitação e implanta- de interesses”. Sítio do Institu- ção, e dá outras providências. to Chico Mendes de Conserva- Brasília, 3 maio. Disponível em: ção da Biodiversidade. Brasília,

390 Camargo e Torres mite/CNPE/resolucao_2011/Re- 2010. Decreto nº7.154, de 9 de soluxo_3_CNPE_Complexo_Ta- abril. Sistematiza e regulamen- pajxs_07_06_11.pdf> (acesso: 12 ta a atuação de órgãos públicos maio 2014). federais, estabelecendo procedi- Brasil. Ministério do Meio Am- mentos a serem observados para biente; Brasil. Ministério do De- autorizar e realizar estudos de senvolvimento Agrário; Brasil. aproveitamentos de potenciais Ministério do Planejamento, Or- de energia hidráulica e sistemas çamento e Gestão; Brasil. Minis- de transmissão e distribuição de tério das Minas e Energia. 2012. energia elétrica no interior de Exposição de motivos intermi- unidades de conservação bem nisterial nº2 - MMA/MDA/MP/ como para autorizar a instalação MME. Brasília, 5 jan. Disponível de sistemas de transmissão e dis- em: (acesso: 5 maio sustentável. Brasília. 2014). ___. 1974. Decreto nº73.683, de 19 de Brasil. Ministério Público Federal. fevereiro. Cria o Parque Nacional 2012. Petição inicial. Ação direta da Amazônia e dá outras provi- de inconstitucionalidade nº4717. dências. Brasília. Brasília. ___. 1985. Decreto nº90.823, de 18 Brasil. Ministério Público Federal. de janeiro. Altera os limites do Procuradoria Geral da República. Parque Nacional da Amazônia, 2014. “Meta é efetivar implemen- criado pelo Decreto nº73.683, de tação das 313 unidades federais, 19 de fevereiro de 1974. Brasília. que abrangem 9% do território ___. 2012. Lei nº12.678, de 25 de ju- brasileiro”. Sítio da Procurado- nho. Dispõe sobre alterações nos ria Geral da República. Brasília, limites dos Parques Nacionais da 3 jun. Disponível em: (acesso: 4 de 2010; e dá outras providên- jun. 2014). cias. Brasília. Brasil. Presidência da República. ___. 2011. Medida Provisória nº542,

Redução na medida 391 de 12 de agosto. Dispõe sobre al- ção de Unidades de Conserva- terações nos limites do Parque ção”. In: Notícias Socioambientais. Nacional Amazônia, do Parque 26 jan. Disponível em: (acesso: 27 pinguari e dá outras providên- maio 2014). cias. Sem eficácia. Brasília. Martins, Heron; Araújo, Elis; Ve- Carta aberta dos servidores do Ins- doveto, Mariana; Monteiro, tituto Chico Mendes de Conser- Dyeden; Barreto, Paulo. 2014. vação da Biodiversidade lotados “Desmatamento em áreas pro- em Itaituba. Itaituba, [2012]. tegidas reduzidas na Amazônia”. Carta aberta sobre irregularidades Belém, Instituto do Homem e da medida provisória nº558/12 e Meio Ambiente da Amazônia. do projeto de lei de conversão Disponível em: (acesso:6 jun. 2014). Disponível em: pot.com.br/2014/03/o-escandalo- (acesso: 14 maio 2014). -do-licenciamento-ambiental. Chiaretti, Daniela. 2014. “Em 33 html> (acesso: 15 maio 2014). anos, país perdeu mais que uma Oliveira, Ariovaldo U. 1995. Ama- Costa Rica em áreas verdes pro- zônia: monopólio, expropria- tegidas”. In: Valor Econômico. São ção e conflito. 5. ed. Campinas, Paulo, 13 maio. Disponível em: Papirus. (acesso: 15 maio 2014). Universidade de São Paulo. Instituto Socioambiental. 2012. ___. 2005. “BR-163 Cuiabá-Santarém: “ISA revisa notícia sobre redu- geopolítica, grilagem, violência e

392 Camargo e Torres mundialização”. In: Torres, Mau- Torres, Mauricio; Figueiredo, Wil- ricio (org.). Amazônia revelada: os sea. 2005. “Yellowstone Paroara”. descaminhos ao longo da BR-163. In: Torres, Mauricio (org.). Ama- Brasília, CNPq, pp. 67-183. zônia revelada: os descaminhos ao Sevá, Arsênio Oswaldo; Garzon, longo da BR-163. Brasília, CNPq, Luís Fernando Novoa; Nóbrega, pp. 321-395. Renata da Silva. 2010. “Rios de WWF-Brasil. 2014. “Hidrelétricas Rondônia: jazidas de megawatts podem alagar parque nacional e passivo social e ambiental”. na Amazônia”. Disponível em: Disponível em: (acesso: 1 ago. 2014). voa_dez2010.pdf> (acesso: 11 jun. 2014).

Redução na medida 393

Floresta virgem? O longo passado humano da bacia do Tapajós1 Bruna Cigaran da Rocha e Vinícius Honorato de Oliveira

1. Agradecemos aos beiradeiros de Montanha e Mangabal e aos Munduruku de Sawre Muybu pela hospitalidade, ajuda e ensinamentos. Agradecemos a arqueologia é, por natureza, ao longo do trecho encachoeirado Francisco Noelli, um dos campos de investiga- do rio Tapajós e seus tributários, Fernando Almeida e Francisco Pugliese pelas ção mais profícuos para estu- como os rios Rato e Jamanxim, e cuidadosas leituras, Adarmos o passado, particularmente seus formadores, os rios Juruena sugestões e críticas. Erros são de nossa de sociedades ágrafas; no Brasil, ela e Teles Pires, a partir dos registros responsabilidade. também nos fornece indícios para existentes2. Além da arqueologia, Agradecemos à contemplar interações de diversos fontes históricas e a memória oral Coordenação de Aperfeiçoamento tipos entre sociedades ameríndias nos informam sobre o passado – fre- de Pessoal de Nível e as maneiras como esses povos al- quentemente turbulento – da bacia Superior (Capes) por apoiar a pesquisa teraram a paisagem, imbuindo-a de do Tapajós após a conquista portu- doutoral de Bruna significados e tornando o ambiente guesa (Menéndez, 1981/1982, 2006 Cigaran da Rocha. mais produtivo. A ideia de que a [1992]). Também nos fornecem indi- 2. N.E. Ver também, Amazônia é modificada pela ação cações sobre a possível localização neste volume, humana há milênios – e de que a de sítios arqueológicos: a partir de “Sobre sítios arqueológicos e lugares noção de floresta virgem não passa levantamento de fontes históricas e significativos: impactos de um mito – tem prevalecido em arqueológicas, Alexandre Robazzi- socioambientais e debates sobre o assunto, ao ponto ni (2013) compilou uma tabela não violações dos direitos culturais dos povos de estudiosos já assumirem esse exaustiva na qual constam 423 sítios indígenas e tradicionais pressuposto como ponto de partida arqueológicos na bacia do Tapajós. pelos projetos de usinas hidrelétricas (UHEs) na (e.g. Balée, 1989; Denevan, 1992a; Não obstante o baixo volume de bacia do rio Tapajós”, Heckenberger et al., 1999, 2003). pesquisas arqueológicas de campo de Francisco Antonio Neste artigo, nosso foco recairá realizadas na região onde o governo Pugliese Jr. e Raoni Bernardo Maranhão sobre o patrimônio arqueológico pretende construir o complexo hi- Valle.

395 3. Ver, por exemplo, drelétrico do Tapajós (CHT) – e con- povoamento ameríndio das áreas Abdala (2012), em que trastando com a ideia promovida de interflúvio na bacia. Antigas ocu- Maurício Tolmasquin, presidente da Empresa pelo discurso oficial, de que a área pações ceramistas foram identifica- de Pesquisa Energética em questão é vazia e sem história3 –, das em Parauá, uma área de terra (EPE), defende o apresentamos aqui evidências que firme localizada a oeste da margem conceito de usinas- plataforma para o apontam para a riqueza e a singula- esquerda do baixo curso do rio (Go- Tapajós como uma ridade do patrimônio arqueológico mes, 2008). Isso chama a atenção alternativa verde para a área, “onde não há ali existente. Longe de se situarem ao fato de que, além dos vestígios ocupação humana. em uma floresta virgem, o Tapajós de ocupações ao longo da calha ‘Praticamente e seus afluentes banham uma área dos rios, existem centenas de sítios não tem impacto ambiental porque vai antropizada há milhares de anos. arqueológicos nas áreas de terra se reflorestar tudo As pesquisas arqueológicas no firme, algo que também tem sido em volta e vai ficar a hidrelétrica no meio da rio Tapajós têm se concentrado no comprovado a leste do rio Tapajós floresta. A ideia é não baixo curso do rio (e.g. Gomes, 2001; (Martins, 2012; Stenborg et al. 2012; ter cidades em volta. Guapindaia, 1993; Kroeber, 1942; Perota, 1979, 1982). Temos que criar essas inovações para usar MacDonald, 1972; Palmatary, 1960; nossos recursos’, disse” Roosevelt et al., 1991); artefatos cerâ- (grifo nosso). Primeiros habitantes micos típicos da área hoje se encon- Os primeiros grupos humanos na tram espalhados em museus do Bra- região viveram em um ambiente 4. O etnólogo, linguista sil e exterior4. Em parte, isso se deve mais semelhante às matas de cerra- e arqueólogo Curt à maior facilidade de acesso ao baixo do atuais que à floresta amazônica Nimuendajú (1953, 2004) foi o primeiro Tapajós, que é facilmente navegável. (Rossetti et al., 2004). Esses grupos a compreender a Todavia, lembramos a observação de nômades, de tamanho reduzido, magnitude dos Almeida, segundo o qual, iniciaram processos de modificação sítios arqueológicos depositados no do ambiente com o uso do fogo e local e adjacências, As cachoeiras são áreas-chave para geraram “ilhas de recursos”, fei- e relacioná-los com os Tapajó, que então a compreensão do período pré-co- ções fitogeográficas resultantes de dominavam boa parte lonial da Amazônia. Tratam-se de restos vegetais e de sementes con- da região. lugares que durante milênios foram centradas em seus acampamentos e ocupados de maneira persistente trilhas, a exemplo do que foi veri- por grupos indígenas, que transfor- ficado entre os caçadores-coletores maram tais lugares (entre outros) Nukak, na Amazônia colombiana em entroncamentos de redes de (Politis, 1996). contato (2013: 354). É possível que tenham sido es- ses primeiros habitantes que nos Nesse sentido, há ainda dados legaram a arte rupestre encontra- que apontam para a antiguidade do da no Tapajós, em seus afluentes e

396 Rocha e Honorato de Oliveira nas áreas de interflúvio. Originado fecção distintas (picoteamento em 5. Em 2009, Fábio no Planalto Central Brasileiro, o Ta- traços largos e raspamento em sul- Mozzer passou em frente às pinturas pajós é um rio geologicamente an- cos finos), com representações de do Cantagalo tigo, com águas cristalinas e solos figuras geométricas, zoomorfas e e as registrou, disponibilizando-as arenosos criados por processos ero- antropomorfas (Pardi, 1995-1996: no seguinte endereço sivos (Morais, 2008); tais caracterís- 3). Na comunidade de São Luiz do online: abundância de suportes para a arte létrica (UHE) de mesmo nome, re- (acesso: 4 fev. 2014). rupestre. Além de seu valor científi- gistraram-se figuras antropomorfas Edithe Pereira percebeu que a foto retrata co e artístico para a sociedade bra- e zoomorfas em matacões rochosos o registro feito por sileira em geral, esse patrimônio (Camargo Corrêa et al., 2008, v.19- Tocantins (com. pess., 22 possui significados simbólicos de 22: 354, 355). Porém, ainda estamos jan. 2013). grande relevância para os povos longe de conhecer o conjunto de re- 6. Ver carta redigida ameríndios que vivem hoje na re- presentações rupestres ao longo do pelos Munduruku ao governo em junho de gião, sendo assim indissociável das alto Tapajós e seus afluentes. 2013. Considerado “o pai paisagens nas quais está inserido. Outro problema a ser encarado é da escrita”, Muraycoko É o caso das pinturas rupestres em que a região que o governo federal teria deixado sua história registrada para um paredão rochoso no Cantagalo, pretende atingir pela construção as gerações do povo situado na margem esquerda do do CHT é uma das mais promis- Munduruku que o sucederiam. alto Tapajós, oito metros de altura soras para o estudo dos primeiros acima do nível máximo do rio nas milênios de ocupação da Amazô- 7. As pinturas podem ser cheias (Tocantins, 1877), no qual es- nia8. As características geológicas observadas no seguinte endereço online (ver as tão representadas, em tons de ver- supracitadas resultam em uma fotos nº29 e 31): (acesso: 4 fev. 2014). do Muraycoko”6. No rio Juruena, perecíveis mais antigas feitas pelo outras pinturas rupestres de figuras homem no continente americano. aparentemente abstratas, também Diversas pontas de projétil e outros 8. É interessante em vermelho ocre, foram fotografa- artefatos de pedra lascada já foram observar que, entre as 13 pontas de 7 das recentemente . encontrados em diferentes pontos projétil citadas para Sabemos ainda de gravuras ru- do Tapajós. Esses instrumentos não a Amazônia brasileira por Klaus Hilbert no II pestres na região: na ilha do Cal- são tão frequentes na Amazônia; Simpósio Internacional deirão, no rio Teles Pires, aproxi- portanto, são fundamentais para o sobre o Povoamento madamente 30 blocos rochosos estudo dos processos mais antigos das Américas, oito são oriundas da bacia do rio apresentam duas técnicas de con- de ocupação da região. Em frente à Tapajós (Hilbert, 2008).

Floresta virgem? 397 sede do município de Itaituba, uma Embora ainda não tenhamos da- ponta de projétil de ágata foi loca- tações para essas ocupações no Ta- lizada ainda no século XIX (Rodri- pajós, é razoável assumir que ocor- gues, 1876). Outra ponta de projétil reram entre o final do Pleistoceno e feita de quartzo hialino foi encon- o início do Holoceno, se tomarmos trada próximo à cachoeira do Cha- a Gruta do Gavião, na Serra dos Ca- corão (Simões, 1976), onde se prevê rajás, ou o Abrigo do Sol, na Serra a construção da terceira barragem dos Parecis – ambos localizados na no rio Tapajós, a hidrelétrica Cha- Amazônia meridional –, como bali- corão. Na região de interflúvio e ca- zas. No Abrigo do Sol, as primeiras beceira dos rios Curuá e Jamanxim, ocupações humanas foram datadas sabemos de outras oito pontas de a partir de 14.700 ± 195AP (Miller, projétil, uma das quais está sob a 1987: 61), enquanto as mais antigas guarda do Museu Aracy-Paraguaçu, datações para a Gruta do Gavião re- de Itaituba (Roosevelt et al., 2009; montam a 8.140AP ± 130AP (Silveira, Honorato de Oliveira & Rocha, 1995). Há ainda a Caverna da Pedra 2013). Atividades garimpeiras arte- Pintada, em Monte Alegre, situada sanais frequentemente resultam ao norte do rio Amazonas, cujas ocu- em achados fortuitos. Uma ponta pações foram datadas entre cerca de projétil de sílex, hoje abrigada de 11.200AP e 10.000AP (Roosevelt et pelo Museu Paraense Emílio Goel- al., 1996, 380). Essas datas antigas ao di, foi resgatada em um garimpo redor do rio Tapajós, aliadas a carac- de cassiterita chamado Grota do terísticas tecnológicas dos artefatos Caçaba, nas cabeceiras do igarapé líticos encontrados na região do Tucano, afluente do igarapé Mu- alto Tapajós, reforçam que a região tum, que adentra o rio Tapajós em possivelmente foi ocupada ainda no sua margem direita (Simões, 1976). Pleistoceno tardio. Do sambaqui de Mais recentemente, uma ponta de Taperinha, situado a leste de Santa- lança lítica, de argilito silicificado, rém, no baixo Amazonas, provêm foi encontrada pelo filho de Gei- os exemplares cerâmicos mais anti- zy Ribeiro do Azevedo, enquanto gos conhecidos nas Américas, data- brincava entre as pedras no porto dos em aproximadamente 8.000AP da comunidade Pimental, também (Roosevelt et al., 1991). ameaçada pela construção da bar- ragem de São Luiz do Tapajós. No Indícios de intensificação local ainda identificamos outros ar- Há cerca de 4.600AP, a umidade da tefatos líticos (Rocha, 2012). região já era maior e a vegetação

398 Rocha e Honorato de Oliveira muito mais parecida com o que en- de processos de ocupação intensi- contramos na região nos dias atuais vos, denotando maior grau de se- (Rossetti et al., 2004). A seguir, sele- dentarização, além de evidenciar cionamos algumas das evidências substancial alteração humana do arqueológicas registradas que deno- ambiente (e.g. Arroyo-Kalin, 2010; tam processos de aumento popula- Petersen et al., 2001). As terras pre- cional e domesticação do ambiente tas são um importante recurso na região. Testemunhos desses pro- agrícola até hoje e constituem um cessos podem incluir terras pretas legado deixado pelos povos amerín- de índio, machados de pedra polida dios do passado (Idem). Há diversos e vestígios cerâmicos. locais próximos a Itaituba que apre- Sítios arqueológicos contendo sentam manchas de terra preta na terras pretas de índio são conheci- margem ocidental do Tapajós, tanto dos por toda a Amazônia (Neves et a jusante (e.g. Hartt, 1885: 14; Pero- al., 2003); a bacia do Tapajós não é ta, 1979: 5; Simões, 1983), quanto a exceção (e.g. Kern et al., 2003; Smith, montante, como no Parque Nacio- 1879; Woods & McCann, 1999). Por nal (Parna) da Amazônia (Oliveira et Imagem 1. À esq., ponta de projétil acanalada definição, áreas de terras pretas al., 2010) e nas localidades de Mon- de sílex encontrada constituem sítios arqueológicos. tanha e Mangabal – onde, dentre os por garimpeiros e atualmente abrigada Hoje em dia, há consenso geral 24 sítios arqueológicos registrados, pelo Museu Aracy entre arqueólogos e pedólogos de os seis situados em áreas planas Paraguaçu, Itaituba. que terras pretas são decorrentes mais extensas e livres de inunda- Desenho de Vinícius Honorato de Oliveira. À dir., ponta de lança lítica (sua extremidade proximal está quebrada) encontrada pelo filho de Geizy Ribeiro Azevedo no porto da comunidade Pimental, na margem direita do Tapajós, próximo à cachoeira de São Luiz do Tapajós. A ponta foi doada aos autores, que a encaminharam para o Laboratório de Arqueologia Curt Nimuendaju da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Desenho de Claide de Paula Moraes.

Floresta virgem? 399 9. Além do material ção apresentam terra preta (Rocha Teles Pires, quanto no Juruena (Par- cerâmico e lítico, os & Honorato de Oliveira, 2011). No di, 1995-1996; Perota, 1982; Stuchi, autores encontraram no local artefatos em lado oriental do rio, pouco pros- 2010). madeira – propulsores, pectado, sabemos de outros sítios: Machados de pedra eram uti- borduna, lança e uma o Pajaú, nas cercanias da comuni- lizados anteriormente à introdu- peça antropomorfa. dade Pimental (Rocha, 2012); o sí- ção de ferramentas de metal, para

10. Datadas a partir tio arqueológico de Sawre Muybu, limpar áreas que seriam utilizadas de 3.800-3.600AP, situado sob a aldeia munduruku para plantio ou no manejo de áreas as cerâmicas de Parauá podem estar homônima, próximo à foz do rio Ja- usadas para a horticultura. Ainda correlacionadas com manxim; e o sítio Piririma (PA-IT-28) hoje, machados de pedra são encon- o período de adoção – que possui uma “mancha de ter- trados por toda a bacia do Tapajós. da agricultura na Amazônia (Gomes, ra preta de vários hectares” (Lisboa Eles eram fabricados através de um 2008). & Coirolo, 1995: 9)9 –, localizado a processo de polimento nos pedrais

11. Entretanto, boa dois quilômetros da confluência do localizados às margens do rio, como parte desses vestígios igarapé do Rato com o rio Tapajós. é possível constatar nas proximida- foi destruída, inclusive Lembramos também dos diversos des do porto do Buburé (Oliveira et pela abertura da pista de pouso do aeroporto sítios arqueológicos com terra preta al., 2010; Rodrigues, 1875). local (Perota, 1979: 8). na área de interflúvio (e.g. Gomes, Por fim, a prática de enterra- 2008; Martins, 2012; Stenborg et al., mento em urnas cerâmicas está Imagem 2. Exemplo 2012)10. Outro local com terra preta associada a esse momento de in- do motivo de losangos encontrado na conhecido é a Missão São Francisco tensificação do uso do ambiente. cerâmica do sítio Terra do Cururu (Hilbert, 1957). Subindo Tais enterramentos são comuns na Preta do Mangabal, em direção aos formadores do Tapa- região, sendo encontrados em di- com arte de Marcos Brito Castro. jós, o quadro se repete, tanto no rio versos pontos, por leigos e especia- listas. Na própria cidade de Itaituba – que, assim como Santarém, está assentada sobre um sítio arqueoló- gico –, na década de 1920, urnas fo- ram encontradas em frente à então intendência da cidade (Nimuenda- jú, 2004)11. A jusante (Hartt, 1885) e a montante (Hilbert, 1957; Martins et al., 2010) de Itaituba, urnas já foram identificadas e escavadas. O que aconteceu com essas ocu- pações ameríndias que antes popu- lavam densamente a região?

400 Rocha e Honorato de Oliveira A colonização portuguesa e seus trados por viajantes do século XIX, 12 A descoberta de impactos falantes de línguas Aruak, Karib, muiraquitãs em Guarantã do Norte Os primeiros europeus a passarem Tupi e Jê, apontam para uma situa- levou Méndes (2003) pela boca do rio Tapajós, em 1542, ção de mosaico linguístico13. a sugerir que essas avistaram “a três léguas do rio pela Embora os Tapajó tenham resisti- redes de interação se estenderiam muito terra adentro… grandes populações do ferrenhamente aos europeus em mais ao sul. que branqueavam” (Carvajal [1546] seus primeiros encontros, o efeito apud Porro, 2007: 92). A atual cidade da presença e colonização europeia 13. O predomínio de de Santarém constituía um grande seria nefasto para os povos amerín- falantes de línguas Tupi-Guarani e da centro ameríndio, conectado com dios da Amazônia. É estimado que língua Munduruku áreas longínquas por redes de troca. cerca de 90% da população amerín- ao longo do Tapajós parece ter ocorrido A existência de tais rotas na região dia nas Américas tenha sido dizima- após a conquista, é comprovada pela similaridade de da nos primeiros 150 anos após o nos séculos XVII- certos padrões decorativos que po- contato (Denevan, 1992b: xxix). Essa XVIII. Similarmente, a chegada de grupos dem ser observados nas cerâmicas mortandade, sem precedentes na Jê está associada às encontradas em diversos pontos do história da humanidade, teria sido mudanças territoriais ocasionadas direta primeiramente causada por doen- rio Tapajós (Gomes, 2008; Martins, ou indiretamente 2012; Rocha, 2012; Stenborg et al., ças contagiosas (Crosby, 1976; Dene- pela chegada dos 2012) e na bacia dos rios Nhamundá- van, 1992a). Relatos missionários da portugueses, após o século XVII (Francisco -Trombetas (Guapindaia, 2008; Hil- época mencionam repetidamente a Noelli, com. pess., 16 abr. bert, 1955; Hilbert & Hilbert, 1980), desolação causada pela varíola, gri- 2014). nos permitindo inferir a existência pe, sarampo e tuberculose14. A fal- 14. Ver Betendorff de redes de interação entre os povos ta de imunidade aos contágios foi (1910 [1693-1699]). Antigamente, os 12 que as produziram . No rio Orino- agravada por uma série de fatores, portugueses referiam- co, na atual Venezuela, cerâmicas como o desconhecimento de formas se às diferentes formas de varíola como dessa tradição, conhecida no Bra- de tratamento e a morte dos mem- “bexigas”, por causa sil como Inciso-Ponteada (Meggers bros produtivos das sociedades, das pústulas que se & Evans, 1961), foram associadas a levando-as à fome (Crosby, 1976). O formavam na pele. Os que sobreviviam às falantes de línguas do tronco Karib alastramento de doenças sequer ne- formas mais brandas (Cruxent & Rouse, 1958; Lathrap, cessitava de contato interpessoal, já ficavam com o “rosto bexiguento”, por causa 1970; Zucchi, 1985). Porém acredita- que artefatos (como penas deixadas das cicatrizes; porém, mos que, diferente do que aponta o em varas seladas com cera de abe- frequentemente, a mapa elaborado por Eriksen (2011: lha em locais pré-combinados, por doença era letal. 72), no século XVI havia grande di- exemplo) poderiam facilmente hos- versidade linguística e cultural ao pedar agentes transmissores, como longo da bacia do rio Tapajós. Os piolhos, bactérias ou vírus, como o distintos grupos ameríndios encon- ocorrido com os Gorotire Kayapó da

Floresta virgem? 401 parecido nas décadas seguintes. No século XVII, Santarém se tornou o centro das operações jesuíticas na Amazônia. Outras missões seriam estabelecidas no baixo rio Tapajós e na região entre os rios Madeira e Ta- pajós (Leite, 1943). Os descimentos efetuados pelos missionários leva- ram a novos processos de desterrito- rialização, selando o esvaziamento demográfico e o enfraquecimento político das sociedades ameríndias que viviam na região. Esse processo é indicado pela rápida mudança de etnônimos registrados por clérigos da época (Menéndez, 1981/1982; Ro- bazzini, 2013).

Fontes históricas Devido ao embargo à navegação do rio Tapajós pela Coroa portuguesa até meados do século XVIII – sendo que, pelo Tratado de Tordesilhas, boa parte do curso do rio ainda per- Imagens 3 e 4. Amazônia no período pós-conquista tencia à Espanha –, possuímos pou- Aquarelas do pintor (Posey, 1987). As enfermidades fo- cos registros escritos para a região15 francês Hércules Florence retratando ram facilmente propagadas através anteriores ao Tratado de Madri, assi- índios Munduruku das antigas rotas comerciais ame- nado em 1750, que deslocou as fron- em 1828. Fonte: Centro Cultural Banco do Brasil ríndias (Myers, 1988). teiras luso-castelhanas para o oeste. (2010). Situados próximo à margem di- Isso resultou em um desconheci- reita do rio Amazonas, entre os rios mento quase total acerca dos povos 15. Uma das exceções Tapajós e Madeira, os Tupinambá – ameríndios que até então viviam notáveis é a “Relação” que até então se encontravam em na região. Com a instalação do Di- de Jacinto de Carvalho, de 1719 (apud Porro, pleno processo de expansão – dei- retório Pombalino, as fontes escri- 2012). xaram de ser referidos como etnia tas passaram a ser produzidas pri- já em 1690 (Menéndez, 1981/1982). meiramente por administradores Os Tapajó encontrariam destino ou militares (Porro, 2006); mesmo

402 Rocha e Honorato de Oliveira religiosos encontravam-se subor- dinados à administração colonial. Naquela época, inicia-se um tráfego pelo rio – ainda que intermitente – de membros da sociedade colonial, cujos interesses centravam-se na busca pelo ouro e na abertura de uma rota comercial entre Belém e Cuiabá (Menéndez, 1981/1982). Em 1768, José Monteiro de Noro- nha (2006 [1768]), o vigário-geral da província do Rio Negro, registrou que no trecho encachoeirado do Tapajós

as suas terras ainda são povoadas de muitas nações de índios infiéis, das quais as mais conhecidas são: Tapa- kurá, Cararí, Maué, Jacaretapiya, Sa- pupé, Hiauahim, Urupá, Suarirana, Piriquita, Uarapiranga.

Noronha ainda fez menção aos “Maturucu”, nas cercanias do rio Maués (Ibid.: 40) – Horton (1948: 272) interpreta esta como a primeira so de conquista e colonização –, que menção escrita aos Munduruku. se aprofundavam com a pressão Com a abertura dos portos, de- exercida por frentes de expansão cretada por dom João VI, em 1808, que se aproximavam com a inau- os relatos tornam-se mais numero- guração de minas de ouro em Mato sos, em razão do advento de expe- Grosso na década de 1740 (Menén- dições naturalistas. Contudo, esses dez, 1981/1982) e pelas “missões de cientistas não se deram conta de resgate”, eufemismo para descrever que as sociedades ameríndias com expedições bandeirantes em busca as quais entravam em contato ha- de indígenas para serem escraviza- viam sobrevivido a profundas trans- dos. Influenciados por ideias evolu- formações – decorrentes do proces- cionistas (Noelli & Ferreira, 2007), os

Floresta virgem? 403 observadores novecentistas recém- Mauhés ahi, porque, perseguidos -chegados frequentemente retrata- outr’ora pelos Mundurucus, refugia- riam as sociedades ameríndias com ram-se para o interior, entretanto as quais entravam em contato de além de algumas familias dispersas, forma pejorativa, como se fossem encontram-se as malocas: Boia-açú, engessadas no tempo, gerando es- Urubutu, e Acará. Póde-se calcular 16 16. Ver, por exemplo, tereótipos que persistem até hoje . a população ahi dos primeiros em Agassiz & Agassiz Paralelamente, sentenciavam o ine- 1.200 almas e a dos segundos em 500 (1869); Bates (2005 vitável desaparecimento dessas so- [sic]”17 (1875: 124, grifo nosso). [1864]); Martius (1907 [1832]); Spix & Martius ciedades (e.g. Coudreau, 1977 [1897]), (1981 [1831]). fornecendo assim uma justificativa Escavações arqueológicas em acadêmica para o seu extermínio Mangabal encontraram cerâmicas (Cunha, 2006 [1992]: 134). que associamos aos Munduruku

17. Há relatos de Maués A despeito dessa ressalva, essas (Rocha, 2012: 49-50), devido ao seu não contatados nas fontes nos fornecem diversas indi- padrão decorativo em losangos, que cercanias de Mangabal em tempos atuais. cações sobre aldeias indígenas do muito se assemelha às pinturas cor- período pós-conquista que ainda porais por eles praticadas. Esta in- precisam ser investigadas para es- terpretação é fortalecida pela obser- tudarmos a história indígena da vação feita por Hércules Florence, região, diretamente vinculada aos aquarelista da expedição Langsdorff, seus atuais ocupantes. Barbosa Ro- ao passar pelo Tapajós, em 1828: drigues, por exemplo, observou que: Nessa viagem pode o homem curio- so ou de ciência observar mudanças Contam-se entre os [Munduruku]… notáveis nos ornamentos cerâmicos as seguintes malocas, por ordem de que usam os indígenas. Os dos geographica: Cury, Santa Cruz, Uxi- apiacás são constantemente feitos tuba (nestas os indios estão semi-ci- em ângulo reto; em losangos os dos vilizados), Boburé, duas na cachoeira mundurucus, ao passo que em ou- da Montanha, Igapó, na cabeceira da tros lugares são irregulares no de- Mangabal, Bacabal, Boa-Vista (abai- senho, embora sempre de mais ou xo do Pacú), Chacorão, Capoeiras menos gosto. Aparecem nos potes, e as do Iri. A mais populosa destas vasilhas e tubos de cachimbo (Flo- é a do Baccabal, havendo algumas rence, 2007 [1876]: 272). extinctas, como a da embocadura do Juanxim, e a do meio da cachoeira Man- Em relação ao rio Jamanxim, gabal. Poucas malocas contam os mencionado por Barbosa Rodrigues

404 Rocha e Honorato de Oliveira acima como “Juanxim”, o Padre rio Jamanxim, onde se planeja cons- João Daniel (2004 [1722-1766]: 364) truir outra barragem]. Ali, foram fez referência a um ataque dos in- eles atacados há uns três ou quatro dígenas Jaguaim contra os Gurupá, anos; os civilizados fizeram um ver- após os últimos terem abandonado dadeiro massacre, mas os índios se a missão São José dos Maitapus. Se- bateram com muita bravura. gundo Porro (2007: 54), os Jaguaim Antigamente, eles desciam mais também foram referidos como Ia- abaixo, mesmo até à foz. guain e Yauain. O Bispo João de São […] José mencionara o “Rio dos Javains” Os mundurucus do Crepori excur- (1847 [1763]: 97). Acreditamos que sionam frequentemente, através dos o nome “Jamanxim” pode ser uma campos, até o Tocantins [afluente do corruptela derivada desse etnôni- Jamanxim] bem perto do qual estão mo. Portanto, embora não encontre- hoje suas malocas. Vão lá para caçar, mos sítios arqueológicos registrados e talvez já se tenham aí instalado de no Instituto de Patrimônio Histórico maneira permanente. e Artístico Nacional (Iphan) para a Ao que parece, é nas cabeceiras do região do rio Jamanxim, quaisquer Jamanxim, do Crepori, do Rio das alegações de que a área não possui Tropas e do Cadariri que vivem os caráter arqueológico são questio- índios. Durante o verão, viajam em náveis a partir das menções acima busca de caça e aventuras; chegando indicadas e do próprio nome do rio. o inverno, retornam às suas flores- Outras referências acerca das tas, entre o Tapajós e o Xingu – acre- ocupações ameríndias pretéritas dita-se, todavia, que pertençam an- no rio Jamanxim podem ser encon- tes à bacia do primeiro (Ibid.: 30-31). tradas em Coudreau (1977 [1897]). O viajante constatou o processo de Palimpsestos expropriação territorial desenca- Embora esses constituam apenas deado pela economia da borracha, alguns poucos exemplos dentre resultando em novos deslocamen- muitos outros disponíveis, fica de- tos de grupos ameríndios, que se- monstrado como estamos lidando riam obrigados a se refugiar cada com palimpsestos em termos de vez mais em direção às cabeceiras ocupação do espaço – algo já cons- dos rios: tatado por Stuchi (2010) em sua pes- quisa colaborativa entre os Kayabi Os parintintins, atualmente, não no baixo Teles Pires, onde outros descem além de Caí [cachoeira no 34 sítios arqueológicos foram re-

Floresta virgem? 405 gistrados pelo autor. As paisagens foram expropriados com o avanço humanizadas da bacia do Tapajós da economia da borracha na região. representam camadas de ocupação Parece-nos provável que a menção e memória. supracitada de Barbosa Rodrigues a Constatamos isso recentemente, uma aldeia munduruku abandona- quando visitamos os Munduruku de da nas cercanias do rio Jamanxim Sawre Muybu, que vivem sobre um pode dizer respeito a esse exato lo- sítio arqueológico com terra preta cal – que ainda não foi oficialmente de índio. Essa estratégia segue um reconhecido pelo Estado. Os Mun- padrão histórico de ocupação do duruku de Sawre Muybu aguardam espaço, referido já no século XIX a demarcação dessa área há anos, (Hartt, 1885). Há diversas menções espera que acarreta diversos obstá- diretas e indiretas à preferência dos culos a seu exercício da cidadania. Munduruku por áreas de terra pre- ta (Frikel, 1959; Hilbert, 1957 e Melo Considerações finais & Villanueva, 2008). De fato, os Nesta breve síntese, esperamos ter Munduruku possuem uma palavra demonstrado que o baixo número para terra preta: katomb. Em Sawre de sítios arqueológicos registrados 18. Juarez Saw Munduruku, com. pess., Muybu, o cacique Juarez Saw Mun- na bacia do Tapajós não pode ser 12 mar. 2014. duruku explicou-nos que a escolha interpretado como baixa relevância daquele local foi motivada pela pre- patrimonial, e sim como um vazio 19 19. Ainda são poucos sença de katomb, pois lugares com de informações . É importante res- os sítios arqueológicos katomb são fartos – trata-se de um saltar que levaremos muitos anos que constam no Cadastro Nacional de critério que leva em conta o bem- para ter um conhecimento aprofun- Sítios Arqueológicos -estar das próximas gerações que dado do patrimônio arqueológico do Iphan para a região viverão ali18. A escolha do local, as- dessa vasta região. Nesse sentido, ameaçada pelo CHT e pelas barragens sim, não foi aleatória: baseou-se no propostas que resultariam na flexi- em seus formadores, conhecimento acerca do ambiente bilização da proteção ao patrimô- os rios Teles Pires e Juruena (fazer busca na herdado das gerações anteriores. nio arqueológico nos processos de página ). contendo o padrão em losangos, es- valor histórico – que não foram pre- palhados pela superfície da aldeia, viamente registradas – ficarão ain- foram-nos apresentados, sugerindo da mais expostas à degradação pelo que os Munduruku já haviam esco- desamparo do poder público. lhido esse mesmo território para As comunidades tradicionais viver no passado; possivelmente, e povos indígenas – dentre eles,

406 Rocha e Honorato de Oliveira Munduruku, ribeirinhos, beiradei- são historicamente desrespeitados ros – que hoje vivem sobre os sítios pelo Estado. arqueológicos da bacia do Tapajós, ou próximos a eles, compõem o [artigo concluído em julho de 2014] vasto palimpsesto de ocupações humanas na bacia. Uma reflexão Referências bibliográficas sobre o significado do patrimônio Abdala, Vitor. 2012. “Hidrelétricas- arqueológico para os povos da flo- -plataforma da Amazônia devem resta que vivem na bacia torna-se ser licitadas até 2014”. In: Agên- necessária para que se busque a cia Brasil. Rio de Janeiro, 8 maio. conservação adequada do patrimô- Disponível em: (acesso: 7 cionados acima seria muito redu- abr. 2014). zido, e a possibilidade de que se Agassiz, Louis; Agassiz, Elizabeth conheça melhor a arqueologia da C.C. 1869. A journey in Brazil. Bos- região seria perdida. ton, Ticknor and Fields. A retirada do material arqueoló- Almeida, Fernando O. 2013. A tradi- gico em operações de “resgate” ou ção polícroma no Alto Rio Madeira. “salvamento” arqueológico, asso- Tese de doutorado (Arqueologia). ciadas ao processo de licenciamen- São Paulo, Universidade de São to ambiental, não solucionará o Paulo. problema da preservação dos sítios. Arroyo-Kalin, Manuel. 2010. “The Considerando que muitos desses Amazonian Formative: crop do- vestígios são diretamente relacio- mestication and anthropogenic nados aos povos que atualmente soils”. In: Diversity, v.2, nº4. Basi- vivem na região ou possuem signifi- leia, pp. 473-504. cados importantes para os mesmos, Balée, William. 1989. “The culture operações de “resgate” ou “salva- of Amazonian forests”. In: Posey, mento” arqueológico arriscam, in- Darrell; Balée, William (org.). clusive, a se assemelharem mais a Resource management in Amazonia: novos gestos de expropriação e de Indigenous and folk strategies. esbulho, desta vez contra o patri- Nova York, New York Botanical mônio cultural dos povos da flores- Gardens, pp. 1-21. ta, cujos direitos enquanto cidadãos Bates, Henry W. 2005 [1864]. The

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Floresta virgem? 415

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos Impactos socioambientais e violações dos direitos culturais dos povos indígenas e tradicionais pelos projetos de usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós Francisco Antonio Pugliese Jr. e Raoni Bernardo Maranhão Valle

O branco tem seu patrimônio cultural milenarmente adaptados ao con- dentro da cidade, o patrimônio cultural tinente, linguístico-culturalmente dos índios é nos campos, no mato, nas megadiversos, e os recém-chegados, cachoeiras, no rio. falantes de uma única família lin- (Walmar Munduruku, 2011) guística, o indo-europeu, em sua maior parte provenientes da Penín- O que diria o homem branco se nós sula Ibérica, na Europa. construíssemos nossas aldeias em cima Deflagrava-se uma guerra etno- de suas propriedades, de seus santuários -geno-ecocida entre mundos, que e cemitérios? resultou e vem resultando no exter- (Manifesto Kayabi, Apiaká mínio programado de culturas, de e Munduruku contra os linhagens genéticas e de paisagens aproveitamentos hidrelétricos no histórico-culturalmente construí- rio Teles Pires, 2011) das e enriquecidas pela observação cuidadosa e manejo paulatino dos colonizadores americanos pleisto- á mais de 500 anos, inaugu- cênicos e seus descendentes holo- rou-se nas Américas um con- cênicos (isto é, dos últimos 20 mil flito de longa duração, que anos, pelo menos), incluídas aí as Hperdura até os dias atuais. Tratou- populações amazônicas “históricas” -se de uma invasão, de um processo e tradicionais. de conquista, que principiou com o Em um dos mais recentes epi- contato entre nativos americanos sódios desse conflito, a construção

417 de grandes empreendimentos de enquanto “recurso natural” a ser infraestrutura – como as usinas explorado única e exclusivamente hidrelétricas (UHEs) no marco do dentro dos parâmetros capitalis- Programa de Aceleração do Cres- tas. Trata-se de um tema complexo cimento (PAC) e da Iniciativa para e, neste artigo, focaremos especifi- a Integração da Infraestrutura Re- camente a destruição da cachoeira gional Sul-Americana (IIRSA) – tem de Sete Quedas, no baixo curso do atuado como mais uma engrena- rio Teles Pires. Trata-se de um lugar gem da engenharia do holocausto sagrado e paisagem de imensurável ameríndio de longa duração. Deri- relevância para os povos Munduru- vação direta de lógica de subordina- ku, Kayabi e Apiaká, que dará lugar ção e esbulho muito semelhante à a uma das maiores e mais polêmi- dos conquistadores dos séculos XV cas UHEs de barragem já vistas, e XVI, as UHEs são as mitocôndrias cuja construção vem sendo levada a do neo-Eldorado. cabo à revelia do direito dos povos e Este capítulo objetiva discutir as comunidades tradicionais da bacia manifestações de territorialidade, o do Tapajós de serem devidamente 1 1. N.E. Para outra patrimônio cultural e os conflitos consultados no processo . apreciação acerca entre leituras culturais antagônicas Nesse contexto, a grande mídia do patrimônio que envolvem ações e papéis de di- – controlada e financiada por orga- arqueológico da bacia do Tapajós, ver, neste versos atores: os povos indígenas, nizações simbióticas de políticos e volume, “Floresta os setores do Estado vinculados às grupos privados de empreendedo- virgem? O longo passado humano da políticas desenvolvimentistas, os res – vem utilizando suas expertises bacia do Tapajós”, de grupos privados de empreendedo- para, na defesa da construção da Vinicius Honorato res, os pesquisadores da arqueolo- UHE a qualquer preço, desempe- de Oliveira e Bruna Cigaran da Rocha. gia e os órgãos governamentais vol- nhar uma função análoga à de uma tados à proteção e gestão dos bens barragem. Retendo o fluxo de infor- culturais e à defesa dos direitos dos mações sobre os problemas que le- povos e comunidades tradicionais. vam à inviabilidade de muitos pro- Destacaremos que a dimensão de jetos, manipula e converte tudo em territorialidade dos povos amerín- “energia” para o “progresso”. Con- dios – etnograficamente estrutura- tudo, como recentemente visto no da em uma “natureza-paisagem”, alto rio Madeira, quando o volume construída e simbolizada milenar- de problemas – subdimensionados mente – vem sendo sacrificada pela e omitidos técnica e politicamente destruição dos lugares sagrados em – ultrapassa os limites do controle prol da apropriação da paisagem político-midiático, observa-se a en-

418 Pugliese Jr. e Valle chente de informações negativas tegorias e comportam distintas ad- e, como consequência, novas mo- jetivações (por exemplo, sagrados, vimentações em que as pessoas, perigosos, tradicionais, culturais), direta e/ou indiretamente afetadas, sendo possuidores de biografias, passam a refletir, discutir e atuar significados metafóricos e meto- sobre questões ambientais, socioe- nímicos, políticas, lógicas, redes, conômicas e de direitos humanos e transformações e persistências (Wi- culturais. thridge, 2004; Stewart et al., 2004; Dentre essas manifestações, as Carroll et al., 2004; Brown, 2004; mais profícuas discussões contrárias Bowser & Zedeño, 2009). As pes- à construção das barragens têm sido soas criam lugares através de suas provocadas por aqueles que têm ar- experiências com o meio (tangível cado com o mais pesado ônus des- e intangível), dando significados a ses empreendimentos, ou seja, os eles e produzindo conhecimento povos indígenas e demais povos e sobre os mesmos. Os lugares têm comunidades tradicionais, e é sobre uma dimensão individual e social, o respeito ao posicionamento des- bem como agência para modelar sas pessoas na luta por seus direitos e influenciar as ações das pessoas. 2 culturais que este artigo discorrerá . Eles são irremediavelmente ligados 2. Muitas informações Apesar do preconceito e da discrimi- à história e à memória das pessoas presentes neste trabalho foram nação disseminados pela sociedade e, por isso, podem também assumir apresentadas pelas nacional – fato gerado pelo abissal dimensões políticas e identitárias lideranças indígenas desconhecimento e não aceitação (Bowser & Zedeño, 2009; Stewart & aos autores durante atividades ligadas da existência de modos de vida dife- Strathern, 2003). às pesquisas rentes do padrão capitalista –, novos A definição dos lugares significa- arqueológicas na região do Tapajós/Teles Pires. segmentos sociais têm voltado suas tivos vem da interface entre algumas atenções aos problemas territoriais ciências sociais como, por exemplo, e adotado as manifestações dos po- a antropologia, a arqueologia e a vos indígenas e tradicionais como geografia. Muitos pesquisadores de- suas. Contudo, ainda pouca ou ne- votados a essas ciências têm partici- nhuma importância tem sido dada pado amplamente da construção de a um dos componentes mais impor- estudos de impacto ambiental e/ou tantes do repertório cultural dessas da elaboração de “compensações” pessoas: os seus lugares significati- para empreendimentos que afetam vos (sensu Zedeño & Bowser, 2009). lugares significativos. Esses estudos, Os lugares significativos abran- que deveriam promover o registro e gem uma ampla diversidade de ca- a proteção do patrimônio cultural,

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 419 assim como as audiências públicas, ku, Kaiabi e Apiaká contra os apro- ao serem realizados sem as devidas veitamentos hidrelétricos (AHEs) consultas e ampla participação dos no rio Teles Pires, de 2011, propo- habitantes dos territórios afetados, mos uma reflexão inicial a partir de acabam sendo utilizados para legi- manchetes fictícias sobre eventos timar o processo de destruição de de impacto sobre lugares significa- locais únicos, sem que se possam tivos: “Sem consulta, hidrelétrica ser adequadamente conhecidas e inundará condomínio da cúpula respeitadas as paisagens culturais presidencial”; “Serão demolidos que fundamentam a constituição templos católicos (centenários) e do modo de vida tradicional desses evangélicos para a construção da 3 3. Nos termos povos . Paradoxalmente, como des- mais nova rodovia federal”; “Esprei- da Constituição dobramentos dessas pesquisas, são tados pelas máquinas, arqueólogos Federal, aqui serão considerados os cada vez mais comuns as ameaças escavam cemitério que reúne an- territórios na dimensão à integridade dos territórios de ocu- cestrais de ministros e empresários da tradicionalidade pação tradicional ainda existentes brasileiros”; “Tudo pela economia: da ocupação de uma determinada área, no Brasil e, por consequência, à so- órgãos governamentais e justiça au- sem que, em razão do brevivência física e cultural dos po- torizam empreendimentos”. escopo do presente trabalho, possam vos e comunidades que ali habitam. ser considerados Se considerarmos a pouca reper- Dos seringueiros às barragens: três os aspectos da cussão dada pela grande mídia aos territorialidade que se séculos de resistência indígena manifestam por meio resultados da devastação ambiental A bacia do rio Tapajós – mais pre- de outras formas de sobre territórios tradicionais afeta- cisamente, o baixo curso do rio Te- significação do espaço. (cf. Zedeño & Bowser, dos pelo projeto desenvolvimentis- les Pires, o alto e o médio Tapajós 2009). ta da sociedade nacional, fica evi- – guarda a história de diferentes po- dente que ainda existe muito mais vos, alguns bem pouco conhecidos tolerância quando o caos é imposto e sobre os quais só restaram relatos aos outros. No avanço dos grandes (Nimuendaju, 1981 [1944]; Menén- projetos de produção hidrelétrica dez, 1981/1982). A região é cenário, nos rios da Amazônia, observa-se ainda, da história de índios em es- a manutenção dos mesmos proces- tado de isolamento voluntário (Loe- sos que vêm atuando na história de bens & Neves, 2011) e se constitui longa data da colonização dos terri- como território de resistência dos tórios indígenas, em uma realidade povos Munduruku, Kayabi e Apiaká agressiva e cruel. Alicerçados nas (Tempesta, 2009; Stuchi, 2010; Ro- epígrafes de Walmar Munduruku e bazzini, 2013). A história desses três no manifesto dos povos Munduru- povos guarda o entrecruzar de suas

420 Pugliese Jr. e Valle trajetórias em uma profundidade Esses contatos e relações, media- temporal ainda desconhecida pela dos pela atuação dos órgãos gover- ciência ocidental e, há pelo menos namentais (sobretudo, do Serviço três séculos, foram iniciados os con- de Proteção ao Índio - SPI e, poste- tatos e relações com os atores que riormente, da Fundação Nacional protagonizam a invasão e o esbulho do Índio - Funai), trouxeram ao pre- de seus territórios (Menéndez, 2009 sente inúmeros conflitos e impac- [1992]; Oliveira, 2010; Silva & Stuchi, tos sobre os corpos, mentes, almas 2010; Robazzini, 2013). e territórios indígenas. Contudo, É possível que, a exemplo de ou- considerada sob a perspectiva de tros povos, o contato tenha se figu- resistência e dinâmica cultural, a rado previamente nas visões e nos trajetória desses povos mostra que sonhos dos pajés (Albert & Ramos, eles seguiram se estruturando e re- 2002). Contudo, foi a partir do sécu- definindo sua identidade enquanto lo XVIII que vieram os seringueiros agentes de sua própria história, e e seus patrões, abrindo caminho não como vítimas ressentidas do aos regatões (comerciantes/explo- colonizador e da força destrutiva do radores fluviais) e aos gateiros (ca- sistema econômico ocidental (Idem; çadores/comerciantes de peles de Amoroso, 2009 [1992]; Fausto, 2009 felinos). A partir daí, chegaram os [1992]; Monteiro, 2009 [1992]; Por- grupos religiosos, os garimpeiros e ro, 2009 [1992]; Taylor, 2009 [1992]; os madeireiros, que, associados aos Wright, 2009 [1992]). fazendeiros, formaram imensos la- No tocante às barragens, seus im- tifúndios pecuaristas. Por último, pactos deixaram cicatrizes profun- surgiram as pousadas e os turistas das nas vidas, aldeias, áreas de impor- de pesca “esportiva” e, mais recente- tância econômica, cemitérios/áreas mente, os grandes empreendimen- sagradas e demais lugares significa- tos impulsionados pelo governo fe- tivos para esses povos. Como exem- deral – faraônicas UHEs, sendo três plos, podemos citar os casos consa- no rio Tapajós, quatro no rio Jaman- grados das seguintes UHEs e povos xim, cinco no rio Teles Pires e 17 no por elas atingidos: Balbina (Waimi- rio Juruena, e mais de 80 pequenas ri-Atroari); Kararaô/Belo Monte (os centrais hidrelétricas (PCHs) em povos da bacia xinguana); Tucuruí 4. O projeto hidroviário Teles Pires-Juruena- afluentes, executadas por emprei- (Asurini do Trocará); Estreito (Api- Tapajós e o mais teiras, suas máquinas e exércitos de najé e Krahô, no Tocantins, e os recente movimento SOS Calcário, com interesse operários. Na espreita, estão os pro- Krikati e Gavião, no Maranhão). As por reserva mineral na jetos de hidrovias e mineradoras4. barragens, assim, têm sido o último TI Kayabi.

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 421 golpe direto e indireto à sobrevivên- to de decidir sobre empreendimen- cia física e cultural de muitos povos tos que impactam terras indígenas indígenas, notadamente aqueles em (TIs) foram algumas das principais estado de isolamento. No rio Madei- discussões. Indígenas e ribeirinhos ra, por exemplo, não se considerou ameaçados reuniram-se às margens a existência de pelo menos nove do Guamá e trataram das ameaças povos nessas condições. Em abril de aos rios São Francisco, Madeira, 2014, o licenciamento da UHE São Xingu, Tocantins, entre outros. Na Manoel, no rio Teles Pires, foi sus- ocasião, também se propôs a união penso, em razão de sérios riscos de das reivindicações desses povos impactos sobre povos isolados. com aquelas de outros grupos e mo- vimentos sociais. Barragens e lugares significativos: Os anos de 2010 e 2011 foram histórico de manifestações marcados, de um lado, pelas ações recentes governamentais a serviço do setor Ao realizarmos uma revisão de privado para a construção das bar- notícias, documentos, processos ragens a todo custo e, de outro, pela judiciais e administrativos relacio- resistência do movimento indígena, nados aos recentes planos imposi- que, junto aos demais movimentos tivos de construção das barragens, de atingidos e organizações não encontram-se diversos dados sobre governamentais, firmou alianças e impactos a lugares de importância realizou encontros, assim como di- cultural. Em 26 de maio de 2008, versas manifestações contrárias às foi publicada em Altamira a Carta barragens e a seus impactos sobre Xingu Vivo para Sempre, onde se o modo de vida e a sobrevivência fí- lê: “Essas barragens profanam sítios sica e cultural dos povos da floresta. sagrados […]”. A carta manifesta Destaca-se, em setembro de 2010, o I também preocupação em relação Encontro dos Povos e Comunidades aos afluentes do rio Xingu, dentre Atingidas e Ameaçadas por Grandes eles o rio Culuene, caracterizado Projetos nas Bacias dos Rios da Ama- como um lugar de extrema relevân- zônia, em Itaituba, Pará. Na ocasião, cia cultural, impactado pela PCH Pa- a ambientalista Telma Monteiro ranatinga II. registrou sua impressão sobre a Em 2009, foi destaque a partici- ativa participação dos Munduruku pação de 1.200 indígenas no Fórum e o significado das paisagens tapa- Social Mundial em Belém, ocasião jônicas para eles, alertando que os em que a defesa dos rios e o direi- impactos ambientais sobre aquelas

422 Pugliese Jr. e Valle paisagens “matam a alma antes do Kayabi), devido à não aceitação das corpo, sendo a forma mais rápida de barragens e à constatação de pro- destruição das identidades étnicas”. blemas no estudo do componente indígena (ECI). Todos os eventos, por exemplo, das A aldeia Kururuzinho, no rio Te- mulheres Munduruku são ligados les Pires, ainda em 2011 também foi tradicionalmente ao rio Tapajós, palco de uma reunião dos anfitriões principalmente. O paraíso no rio Kayabi com lideranças Apiaká, Tapajós, com uma série de 99 ca- Munduruku e representantes do choeiras e corredeiras, é como se MPE/MT e do MPF no Pará. Daque- fosse um palco sagrado para cantos la reunião, resultou um manifesto e danças das mulheres Munduruku. sobre os impactos das UHEs Teles E isso tudo está sendo ameaçado. Pires, São Manoel, Foz do Apiacás, Eles acreditavam que o seu Deus tão Colíder e Chacorão, com ênfase nas poderoso transformaria homens em preocupações em torno dos impac- animais, protegeria os Munduru- tos sobre o salto Sete Quedas (UHE ku da caça, da pesca ou do ataque Teles Pires), considerado local sagra- ao seu rio e teriam com segurança do, onde vivem a Mãe dos Peixes e a preservação da natureza e da sua outros espíritos de antepassados sobrevivência (Monteiro, 2010). indígenas. O documento advertia: aquele era um lugar onde não se de- Dentre outros fatos, o ano de veria mexer. 2011 é marcado pela continuação Cabe observar que, quando do de tentativas governistas de impor envio do manifesto a diversas au- as barragens. Paralelamente, houve toridades, instituições e empresas ações do Ministério Público Federal privadas do setor energético, o Ins- (MPF) e do Ministério Público do tituto Brasileiro do Meio Ambiente Estado de Mato Grosso (MPE/MT); e dos Recursos Naturais Renováveis decisões judiciais pela paralisação (Ibama) já havia concedido licença de empreendimentos; e retomadas prévia - LP (2010) e licença de insta- de estudos, licenciamentos e obras lação - LI (2011) à UHE Teles Pires, (por exemplo, a UHE Teles Pires), mesmo sem ter sido concluído e com a utilização da suspensão de se- aprovado o ECI. Ressaltamos esse gurança (SS). Destacam-se a primei- fato tendo em vista que, mesmo ra ocupação do canteiro de obras ignorando as manifestações con- de Belo Monte, e a retenção de au- trárias aos impactos sobre os ditos toridades na aldeia Kururuzinho (TI lugares sagrados, seria justamente

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 423 no estudo citado que viria a ser re- cês chamam de arqueologia, princi- gistrada oficialmente a importância palmente no Estado de Mato Grosso, cultural de Sete Quedas e de tantos onde temos conhecimento de vestí- outros locais ao longo do rio Teles gios de até 23 mil anos. Mas a nossa Pires. arqueologia não é morta como a de No manifesto, consta também a vocês, nossa arqueologia é viva. Se o reclamação dos índios quanto à for- branco tem título de propriedade, os ma como o Estado nacional vinha nossos territórios são mais antigos e conduzindo o processo de constru- se comprovam nos vestígios de nos- ção das UHEs, de maneira a “apagar sos antepassados encontrados em nossa memória e desrespeitar nos- todo o país. Mesmo assim o governo sos antepassados e lugares sagra- insiste em nos tratar como extrater- dos”. O documento apresenta ainda restres que surgiram aqui do nada, reclamações sobre outros lugares roubar nossos direitos e destruir de significância cultural, como ce- os patrimônios que fazem parte de mitérios, apontando conhecimen- nossa vida e história. Não surgimos tos sobre a antiguidade da ocupação do nada! [...] Não trocamos as rique- indígena em Mato Grosso, critican- zas naturais de nossos rios e os es- do e se contrapondo à prática da ar- píritos de nossos antepassados por queologia “de contrato” com a den- promessas de demarcação de nossas sidade do conhecimento indígena: terras – que já é o nosso direito [...].

Como vamos abrir mão de nossos Em paralelo ao manifesto, o MPF direitos, de nossos lugares sagrados, no Pará veiculou notícia sobre a re- como a Cachoeira das Sete Quedas, união na aldeia Kururuzinho, apre- o Morro do Jabuti e o Morro do Ma- sentando relatos que subsidiaram caco? O que diria o homem bran- novas ações contra as ilegalidades co se nós construíssemos nossas das barragens no Teles Pires. Na aldeias em cima de suas proprieda- matéria, chama a atenção o trecho des, de seus santuários e cemitérios? que descreve “a cidade dos antepas- [...] O homem branco chegou um dia sados mortos”, sendo citados outros desses no Mato Grosso e acha que dois lugares sagrados em risco de seu dinheiro pode pagar o que para desaparecer: o Morro do Jabuti (no nós é de valor inestimável. Tenta interior da TI e alvo de especula- com isso apagar a nossa ocupação ções para exploração de calcário) neste território que é muito antiga e o Morro dos Macacos (a ser dire- e pode ser comprovada pelo que vo- tamente impactado pela UHE São

424 Pugliese Jr. e Valle Manoel). Nesses locais, dizem os Três meses após o manifesto, já indígenas, vivem seus antepassados em 2012, o MPE/MT e o MPF ajuiza- e sua violação trará grandes tragé- ram uma ação civil pública (ACP) dias para a região: “Vai acontecer com pedido de suspensão do licen- muita coisa ruim com branco e com ciamento e paralisação das obras da índio, nós avisamos, mas branco é UHE Teles Pires5. Dentre as questões 5. Processo nº0003947- teimoso” (Walmar Munduruku apud apresentadas, consta a existência de 44.2012.4.01.3600. Brasil, Ministério Público Federal danos iminentes e irreversíveis para no Pará, 2011). Walmar Munduruku a qualidade de vida e o patrimônio também apresenta a seguinte com- cultural dos povos indígenas da re- paração: “O branco tem seu patri- gião. Além de relacionar Sete Que- mônio cultural dentro da cidade, das à sobrevivência física dos povos o patrimônio cultural dos índios é indígenas da região, a ACP caracte- nos campos, no mato, nas cachoei- riza o local como fundamental para ras, no rio”. Constam no documen- a sobrevivência cultural dos povos to, ainda, relatos da cosmologia e indígenas da região, por se tratar de alertas de José Emiliano Munduru- uma área sagrada e, assim, parte de ku, de que se pode depreender inte- suas crenças, costumes, tradições, ressante relação entre a importân- simbologia e espiritualidade. A ACP cia cosmológica e ecológica das sete registra Sete Quedas como um pa- cachoeiras enfileiradas: trimônio cultural brasileiro, bem protegido pela Constituição Fede- As coisas aqui são sagradas, que nos- ral e por normas internacionais de sos avós e Deus deixaram pra nós. proteção ao patrimônio cultural Nas Sete Quedas onde estão os maio- imaterial. res peixes do mundo[,] é onde mora Em 26 de março de 2012, baseada também a Mãe dos Peixes. […] é por nessa ACP, a justiça federal de Mato isso que os peixes vêm todo ano, Grosso suspende o licenciamento e para visitar as sete cachoeiras onde as obras, em especial a detonação vive a mãe deles. Não pode mexer das rochas que compõem o lugar lá, se a gente deixar mexer, vai levar considerado sagrado para os indí- muita gente junto, porque embaixo genas. A decisão liminar pautou-se das cachoeiras tem uma cidade que na emissão de licenças pelo Ibama não é dos brancos, é dos índios. É a sem serem antes ouvidos os povos cidade para onde vão todos os índios afetados com vínculo especial com mortos (José Emiliano Munduruku Sete Quedas, descumprindo-se obri- apud idem). gações legais nacionais (art. 231 da

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 425 Constituição Federal) e internacio- da Agência Nacional de Energia Elé- nais (Convenção 169 da Organização trica (Aneel), Ibama, Ministério de Internacional do Trabalho - OIT). Minas e Energia (MME) e Advocacia- Nesse processo, destaca-se a presen- -Geral da União (AGU), derrubando a ça de um ofício da Funai de 2010, no liminar de suspensão da licença da qual o órgão reiterava que, para a UHE Teles Pires. Dentre outros ar- anuência à LI, deveria ser atendida gumentos, o órgão ambiental alega integralmente uma série de condi- ter cumprido as exigências do licen- cionantes, dentre elas, a conclusão ciamento e caracteriza os impactos de ECIs e o cumprimento das reco- da UHE Teles Pires como indiretos. mendações de cuidados especiais Note-se, contudo, que ainda não se com a região de Sete Quedas, em havia concluído o ECI; que, por di- vista da sua importância simbólica versas vezes, os indígenas reclama- e mesmo seu papel para a alimen- ram dos impactos diretos; e que as tação indígena. Além dos impactos devidas consultas livres, prévias e ambientais associados à subsistên- informadas (CLPIs) não haviam sido cia, a juíza responsável cita um pa- realizadas. Casos semelhantes ocor- recer da Funai e observa: “Quando reram na UHE Estreito, envolvendo esses ecossistemas são descaracteri- etnias do Tocantins e do Maranhão. zados, o domínio dos espíritos tam- O TRF-1, na figura do desembar- bém é afetado”. Também consta na gador responsável pela decisão, liminar emitida: alegou não ser atribuição do Poder Judiciário, nem do MPF, examinar O salto Sete Quedas é um local sagra- as condições técnicas e emitir ou do para os Munduruku, que creem negar licença ambiental. Contudo, nele viverem vários espíritos, nota- a decisão é “justificada” mediante damente a Mãe dos Peixes, o músico a alegação de que a paralisação das Karupi, o espírito Karubixexpe e os obras atenta contra a ordem e a eco- espíritos dos antepassados. Exata- nomia pública e apresenta, contra- mente por isso é que as corredeiras ditoriamente, considerações técni- também são conhecidas como Uel, cas do magistrado sobre as benesses que significa lugar onde não se pode das UHEs como empreendimentos mexer. renováveis, de baixa emissão de car- bono, que movimentam bilhões de Passados pouco mais de quinze reais e milhares de empregos. dias, o Tribunal Regional Federal da O MPF no Pará recorreu dessa 1ª Região (TRF-1) atendeu ao pedido decisão, mas, naquele momento,

426 Pugliese Jr. e Valle a obra já seguia explodindo rocha governo, referidas pelos movimen- após rocha, transformando o san- tos sociais como “ditadura do PAC” tuário Sete Quedas em um cená- (Sena, 2012). Nos rios Teles Pires e rio desolador, segundo as palavras Tapajós, a resistência dos Munduru- dos indígenas que sobrevoaram o ku aumenta, apesar das tentativas canteiro. Quatro meses depois, em de desarticulação a partir de coop- agosto de 2012, a quinta turma do tações e interferências externas. TRF-1 determinou imediata paralisa- Nesse período, foi deflagrada a Ope- ção da obra, considerando inválida ração Eldorado, que, com o alegado a licença obtida pela Companhia Hi- objetivo de desmantelar a atividade 6 drelétrica Teles Pires (CHTP) . Den- garimpeira na região, resultou na 6. Processo nº0018341- tre outros pontos críticos, o relator ocupação da aldeia munduruku Te- 89.2012.4.01.0000. aponta desconformidades para com les Pires pela Polícia Federal (PF) e a legislação ambiental, por proble- no assassinato de Adenilson Kirixi, mas na consulta aos indígenas, e re- ferindo outros tantos indígenas e lata estar convencido de que: causando inúmeros prejuízos mate- riais, comprometendo a subsistên- […] no luminoso espectro das águas cia, a saúde e a educação dos indí- verticais do Salto em Sete Quedas, genas. Nesse mesmo contexto, em no cenário ambiental do projeto hi- 2013, o governo federal publicou o drelétrico da Usina Teles Pires, nos Decreto nº7.957/2013, permitindo estados de Mato Grosso e do Pará, “em caráter preventivo e repressi- em pleno Bioma Amazônico, existe vo” a intervenção militar na região, o Avatar do intocável Mágico Cria- dispositivo que foi requisitado (Ope- dor da cultura ecológica desses po- ração Tapajós) nos casos de resistên- vos indígenas (Kayabi, Munduruku e cia munduruku contra a entrada Apiaká). […] esses povos serão atin- de pesquisadores de barragens em gidos gravemente em suas crenças, TIs e nas ocupações de Belo Mon- costumes e tradições, nascidas em te. É importante frisar que o de- suas terras imemoriais, tradicional- creto mencionado altera o Decreto mente por eles ocupadas […]. nº5.289/2004, atribuindo à Força Na- cional de Segurança Pública (FNSP) Em 2012, a AGU não reconhe- a função de “prestar auxílio à rea- ceu a decisão acima e as obras se- lização de levantamentos e laudos guiram a todo vapor, adentrando técnicos sobre impactos ambientais 2013. Inicia-se, então, um período negativos” (inciso V do art. 2ºb), e de recrudescimento das ações do que a partir de então esse apara-

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 427 to militar pode ser acionado por sem a devida autorização indígena. qualquer ministro de Estado (art. Essa mesma afirmação aparece no- 4º), quebrando o pacto federativo e vamente na nona carta dos Mundu- potencializando a sobreposição de ruku, de 4 de junho de 2013, quando interesses diversos àqueles funda- deixam o canteiro de Belo Monte, mentados nos problemas e anseios após a segunda ocupação. das populações dos locais afetados. Não só os indígenas demonstra- Desse momento em diante, ram preocupação com seus lugares registra-se o crescimento das ma- de importância cultural. Os ribeiri- nifestações sobre os riscos e im- nhos também denunciam, em carta pactos efetivos sobre os lugares sig- de apoio aos Munduruku em Belo nificativos no Teles Pires e Tapajós. Monte, datada de maio de 2013, que Destaca-se a carta da assembleia são alvo dos impactos nas áreas de extraordinária do povo Munduruku ocupação centenária do Tapajós, para a presidenta da república, de onde, inclusive, estão sepultados 31 de janeiro de 2013, que aponta os seus ascendentes. projetos de UHEs como ameaças de Após saírem do canteiro de Belo destruição dos lugares sagrados, co- Monte pela segunda vez, os Mundu- locando em risco a base da cultura e ruku foram até a cidade de Brasília. a própria existência física dos Mun- Lá, dentre outras ações realizadas, duruku e de outras etnias presentes publicaram uma carta impressio- na assembleia. nante, em que descrevem o signifi- Posteriormente, no contexto da cado de muitos locais importantes ocupação do canteiro de obras de em seu território, desde o baixo Belo Monte realizada em maio de curso do rio Teles Pires, por todo o 2013, representantes Munduruku, Tapajós, até o desembocar no Ama- Juruna, Kayapó, Xipaya, Kuruaya, zonas (Conselho Indigenista Missio- Asurini, Parakanã e Arara, junto a nário, 2013a). Em síntese, trata-se pescadores e outros ribeirinhos, pu- de uma cosmografia em que cida- blicam a carta da ocupação de Belo des e outras paisagens são descri- Monte, onde reclamam sobre a che- tas como aldeias antigas, lugares gada de intrusos nas TIs para, den- de uso, componentes de território tre outras coisas, “[roubar] os ossos e de histórias, de encontros e de- dos antigos que estão enterrados” sencontros, de guerra e paz, cons- (Conselho Indigenista Missionário, tituindo lugares sagrados que dão 2013b). Ou seja, denunciam a reali- origem, meio e destino, onde tudo zação das atividades de arqueólogos tem seus espíritos, sinais, significa-

428 Pugliese Jr. e Valle dos e vestígios, coisas que a miopia to, o caso é objeto de investigação não indígena desconhece e nunca pela Procuradoria da República em procurou saber. Destacam-se, na- Santarém. quele documento, lugares que estão Em 2010/2011, as pesquisas ar- em risco de desaparecer por conta queológicas levadas a cabo pela da construção de barragens, como, empresa Documento na região das por exemplo, São Luiz do Tapajós Sete Quedas, iniciadas em 2008 (Joropari kõbie), Estreito (Dajekapap), (Brasil, Instituto do Patrimônio His- Chacorão (Nomu) e Sete Quedas (Pa- tórico e Artístico Nacional, 2008), fi- ribixexe), dentre outros. nalmente são trazidas ao debate em Mais recentemente, o MPF no reuniões na aldeia Kururuzinho. Na Pará trouxe a público a realização ocasião, estiveram presentes repre- de investigações sobre estudos e sentantes das etnias Kayabi, Apiaká planos ambientais de UHEs na Ama- e Munduruku, da CHTP, pesquisa- zônia que se mostram incomple- dores da empresa Documento, re- tos, afirmando que essas atividades presentantes do Centro Nacional de desrespeitam a legislação e trazem Arqueologia do Instituto do Patri- inúmeras consequências negativas mônio Histórico e Artístico Nacio- para os povos indígenas no Xingu, nal (Iphan) e da Funai. Com base no Tapajós e Teles Pires (Brasil, Minis- conhecimento prévio sobre confli- tério Público Federal no Pará, 2014). tos resultantes da violação de sítios Dentre outras questões, o MPF de suma importância cultural para no Pará aponta ter recebido várias povos xinguanos (PCH Paranatinga) denúncias das lideranças indígenas e para os Cinta-Larga e Arara do rio sobre a retirada de urnas funerárias Branco (AHE Dardanelos), as lide- munduruku e kayabi em estudos ranças das três etnias em Kururu- arqueológicos na UHE Teles Pires zinho demandaram a participação (Sete Quedas) por parte da empresa efetiva dos indígenas nas pesquisas Documento, que tem realizado pes- na região das Sete Quedas. quisas no âmbito do licenciamento Tempos depois, a demanda ex- arqueológico. Como veremos em plicitada na aldeia Kururuzinho foi breve histórico a seguir, trata-se do respondida com a apresentação de desdobramento de fatos desenca- uma proposta de pesquisa etnoar- deados pela denúncia feita em 2013 queológica/arqueologia colabora- pela Associação Indígena Pusuru tiva, no bojo de outras apresenta- sobre a violação de sepultamentos. ções relacionadas aos programas do Segundo o MPF no Pará, no momen- projeto básico ambiental (PBA). Na

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 429 ocasião, as obras da UHE Teles Pires geral em abril de 2013, receberam estavam paralisadas pela justiça e fotografias das urnas funerárias da a proposta foi rechaçada pelos in- região de Sete Quedas feitas duran- dígenas, que elaboraram inúmeras te visita ao laboratório. A partir dis- reclamações, semelhantes àquelas so, elaboraram uma carta destinada citadas ao longo deste texto. Na ao MPF e ao Iphan, em que definem ocasião, os indígenas enfatizaram Sete Quedas como o lugar onde um sua indignação com a apresentação, de seus grandes guerreiros, Muray- pela Documento, de fotografias de coko, pai da escrita, deixou regis- vestígios arqueológicos em inúme- trada sua história para as gerações ros banners, incluindo imagens das futuras. Tal informação é correla- urnas funerárias. Os indígenas pre- cionada à existência de gravuras sentes consideraram o que viram rupestres ao longo das Sete Quedas. um desrespeito e uma interferência Na carta, afirmavam que as urnas da arqueologia em um local sagra- foram reconhecidas unanimemente do. Além disso, qualificaram como pelos anciãos e pajés, alegando tam- inúteis os estudos, que retiravam e bém que a interferência nas mes- carregavam os vestígios de ocupa- mas sem comunicação/autorização ções antigas para lugares distantes, foi uma violação de seu território e em nada fortaleciam as relações e de seu cemitério sagrado e ances- culturais com Sete Quedas, uma vez tral, representando um grande risco que não contribuíam para a verda- espiritual, social e ambiental para deira mensuração dos danos das todos (Munduruku, Apiaká e Kaya- barragens e tampouco contribuíam bi). Assim, os indígenas pediam a para a demarcação da TI Kayabi, paralisação da obra e da pesquisa ar- pendente no período em questão. queológica até que o Iphan e o MPF, Passado algum tempo, os Kayabi acompanhados por uma comissão – que já vinham realizando expe- de caciques, lideranças e pajés, apu- dições ao longo do Teles Pires, ma- rassem os fatos, considerados como peando seu antigo território – e os da mais alta gravidade e como um Apiaká aceitaram participar da pes- desrespeito às tradições milenares quisa etnoarqueológica. Já os Mun- e ao patrimônio cultural munduru- duruku mantiveram-se resistentes ku. Exigiam, ainda, que o MPF arbi- e contrários a todo e qualquer es- trasse na causa urgentemente, ten- tudo voltado ao licenciamento das do em vista que o mais importante barragens. Nesse contexto, os Mun- lugar sagrado munduruku – Sete duruku, reunidos em assembleia Quedas – já estava sendo destruído,

430 Pugliese Jr. e Valle acarretando a perda de uma parte legal de serem realizados estudos fundamental da história de origem etnoarqueológicos colaborativos ancestral dos povos da região, um para o reconhecimento dos sítios patrimônio cultural e histórico úni- arqueológicos em lugares signifi- co e insubstituível na composição cativos. Segundo a lógica aplicada, das identidades indígenas. o Estado nacional deveria cumprir seu papel para a proteção do patri- Considerações finais mônio cultural relacionado aos lu- Nesse contexto, as perspectivas para gares significativos de um território a proteção dos lugares significativos de ocupação tradicional somente frente ao avanço do projeto desen- após a sua homologação como TI, volvimentista do Estado nacional quando o cumprimento do levanta- não são nada animadoras. Neste mento etnoarqueológico e a gestão e em outros casos fica evidente – de seus resultados, então, passa- como reconheceu o MPF no Pará, riam a ser obrigatórios. Sem levar em 2011 – que o governo brasileiro em conta o atraso de mais de vinte não tem se preocupado em identifi- anos na demarcação das TIs em re- car e estudar a importância cosmo- lação ao prazo definido pela Consti- lógica, mitológica e religiosa do rio, tuição Federal7 – causado pela ine- 7. Segundo o art. 67 do desrespeitando o direito dos índios ficiência do aparelho estatal para o Ato das Disposições à própria identidade cultural, levan- Constitucionais reconhecimento dos territórios tra- Transitórias da do os povos afetados a uma luta fer- dicionais –, as autoridades também Constituição da renha contra a implantação, já em República Federativa desconsideraram que, sem esses le- do Brasil, os processos curso, das UHEs em seus territórios, vantamentos colaborativos, não há demarcatórios em uma última tentativa de defen- como proceder à proteção dos sítios deveriam ter sido concluídos em 1993. der seus lugares significativos. arqueológicos relacionados aos ter- Recentemente, a obrigação de ritórios dos povos e comunidades cumprimento do componente et- tradicionais afetados, estejam eles noarqueológico munduruku pelas ou não sob qualquer estatuto jurídi- pesquisas ligadas à UHE Teles Pires co de demarcação de TIs ou de uni- foi dispensada, frente ao impasse dades de conservação (UCs). causado pela negativa daquele povo Da maneira como o caso foi em participar do licenciamento am- conduzido, o Estado mais uma vez biental de empreendimentos em deixou de cumprir seu dever para seu território. Como justificativa, com a proteção dos bens culturais considerou-se que somente nas TIs em risco, reforçando o discurso que homologadas existe a obrigação coloca a implantação dos empreen-

Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos 431 dimentos como fato irreversível, conflito com a legislação brasileira, qualquer que seja o tamanho das que considera o patrimônio arqueo- perdas apontadas. O impasse na co- lógico como propriedade da União. laboração dos povos afetados foi as- Esse paradoxo jurídico – em que um sumido como a justificativa para a bem cultural é considerado proprie- opção pelo sacrifício do patrimônio dade de uma “União”, ao mesmo arqueológico, sem que fossem ob- tempo em que é abarcado pelos di- servadas as disposições legais que reitos culturais indígenas – é um as- regulam o aproveitamento econô- pecto do debate sobre a posse e pro- mico dos sítios brasileiros (cf. art. priedade da terra e as dimensões da 3º da Lei nº3.924/1961). A situação territorialidade dos povos indígenas é grave, uma vez que essa decisão em que há precedentes internacio- cria a possibilidade de uma juris- nais interessantes. Por exemplo, o prudência que fragiliza os meca- Native American Graves Protection and nismos de proteção do patrimônio Repatriation Act (1990), nos Estados arqueológico em lugares significa- Unidos, ou mesmo o Native Title Act tivos, dadas a crescente difusão de (1993), na Austrália, cujos sucessos e zonas de conflito e a possibilidade fracassos podem ser utilizados para de que essa lógica seja retomada balizar novas maneiras de se reali- em situações de tensão territorial zar a proteção dos lugares significa- análogas. tivos e dos territórios em que estão Por outro lado, vale lembrar que localizados. o MPF tem tentado atuar sobre vio- lações de direitos culturais nos pro- [artigo concluído em outubro de 2015] cessos de licenciamento ambiental de UHEs – notadamente em relação Referências bibliográficas aos impactos sobre os povos indí- Albert, Bruce; Ramos, Alcida Rita genas –, sendo que as violações de (org.). 2002. Pacificando o branco: cemitérios sagrados se encaixam cosmologias do contato no Nor- nessa tipificação. Talvez esteja aí a te-Amazônico. São Paulo, Edi- semente do reconhecimento dos di- tora Unesp/Imprensa Oficial do reitos culturais das populações indí- Estado. genas sobre o patrimônio arqueoló- Amoroso, Marta Rosa. 2009 [1992]. gico, direito que, em determinadas “Corsários no caminho fluvial: circunstâncias, deve preponderar os Mura do rio Madeira”. In: Car- sobre qualquer outro. Esse é um neiro da Cunha, Manuela (org.). ponto chave na questão, dado o História dos índios no Brasil. São

432 Pugliese Jr. e Valle Paulo, Companhia das Letras, Pará. Belém, MPF, 6 maio. Dispo- pp. 297-310. nível em: (acesso: 15 jul. 2014). Belo Monte. Rio Tapajós, 28 maio. Brasil. Poder Judiciário. Justiça Fe- Disponível em: 44.2012.4.01.3600. Cuiabá. (acesso: 15 jul. 2014). Brasil. Poder Judiciário. Justiça Fe- Bowser, Brenda J.; Zedeño, María deral. Tribunal Regional Federal Nieves (org.). 2009. The archaeol- da Primeira Região. 2012. Proces- ogy of meaningful places. Salt Lake so nº0018341-89.2012.4.01.0000. City, The University of Utah Brasília. Press. Brasil. Presidência da República. Brasil. Instituto do Patrimônio His- 2013. Decreto nº7.957, de 12 de tórico e Artístico Nacional. 2008. março. Institui o Gabinete Per- Portaria nº22, de 17 de julho. manente de Gestão Integrada Brasil. Ministério Público Federal para a Proteção do Meio Ambien- no Pará. 2011. “Índios Kayabi e te; regulamenta a atuação das Munduruku anunciam que vão Forças Armadas na proteção am- resistir contra usinas no Teles biental; altera o Decreto nº5.289, Pires”. Sítio da Procuradoria de 29 de novembro de 2004, e dá da República no Pará. Belém, 5 outras providências. dez. Disponível em: (aces- meaning with materials and so: 15 jul. 2014). space at contemporary Maya ___. 2014. “MPF investiga estudos shrines on El Duende Moun- de impacto e planos ambientais tain”. In: Journal of Archaeological de usinas na Amazônia”. Sítio Method and Theory, v.11, nº1. Nova da Procuradoria da República no York, Springer, pp. 31-58.

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436 Pugliese Jr. e Valle O garimpo hidrelétrico 1. Este artigo é baseado em um período inicial Impactos de Belo Monte na cidade de Altamira e subsídios de quatro meses de para reflexão sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós trabalho de campo, realizado entre agosto Eric Macedo e dezembro de 2013, para minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento. 2. A empresa canadense Belo Sun, no marco do projeto “Volta Grande”, aguarda a finalização do processo de licenciamento pelo governo do estado do Pará para iniciar a construção das instalações de ma palavra mostrou-se recor- rio e Vitória do Xingu, vizinhos a um grande sítio de mineração de ouro a rente em minhas conversas Altamira. No entanto, a última é a céu aberto, o maior sobre Altamira, em 2013, com cidade com maior infraestrutura da do país. O processo moradores da cidade1. Por um mo- região e funciona como base urbana encontra-se paralisado U após decisão da justiça tivo ou outro, sem que eu fizesse do empreendimento. No segundo federal, de junho de menção à imagem, ela surgia. “Al- semestre de 2013, a obra chegou a 2014, que condicionou o licenciamento à tamira virou um garimpo”, eles di- ser tocada por 25 mil trabalhadores realização de estudos ziam. Um garimpo. Como se sabe, (clímax atingido em outubro). Des- que avaliem o impacto o momento atual dessa cidade pa- ses, 30% são originários de Altamira. do projeto sobre os povos indígenas da raense à beira do rio Xingu e da ro- Os outros, cerca de 17,5 mil pessoas, região. dovia Transamazônica não envolve são migrantes vindos para trabalhar 3. Esses dados foram a extração de minério (ainda que na obra3. Do total, 87% são homens. fornecidos pelas empresas construtoras essa atividade esteja planejada para Uma parte dos recém-chegados à Folha de S.Paulo, um futuro próximo2), e sim a cons- trouxe familiares. Somando-os aos que publicou extensa reportagem sobre Belo trução da usina hidrelétrica (UHE) que vieram em busca de oportuni- Monte no fim de 2013 de Belo Monte. Há algo, contudo, se dades de trabalho fora da barragem, (Leite et al., 2013). passando em Altamira que inspira estima-se que a população da cidade 4. Uma cifra que é, na em alguns de seus moradores a im- tenha aumentado de 100 mil habi- melhor das hipóteses, pressão de estarem habitando uma tantes (segundo o Censo 2010) para uma estimativa grosseira. Conversando 4 vila garimpeira. cerca de 150 mil . Todo esse novo com um funcionário do Os canteiros de obra da barra- contingente populacional usa os escritório do Instituto Brasileiro de Geografia gem de Belo Monte situam-se nos serviços disponíveis em Altamira, e Estatística (IBGE) em municípios de Senador José Porfí- do atendimento de saúde às casas Altamira, uma frase

437 me chama atenção: lotéricas, dos bancos aos bares e tendo seu sentido ampliado para “É impossível saber bordéis. dar conta de novas configurações quantas pessoas estão na cidade agora. Nem O objetivo deste artigo é traçar sociais, econômicas e políticas em se houvesse catracas um panorama dos impactos ur- uma região específica. Nesse traje- nas entradas da cidade conseguiríamos ter banos da construção da UHE Belo to, revelam-se determinadas cone- noção desse número”. Monte em Altamira, tendo como xões entre a realidade local e con- guia a metáfora garimpo, usada para textos político-econômicos mais caracterizar a cidade por alguns de amplos que refletem diferentes mo- seus moradores. Para isso, busca- mentos do processo de colonização remos compreender algumas das em curso na Amazônia. Também se características que gravitam em torna possível oferecer subsídios, a torno do termo que fazem com que partir do exemplo de Belo Monte, ele seja aplicável à situação atual para refletir sobre impactos urba- de Altamira. A estratégia é seme- nos de outros projetos hidrelétri- lhante à empregada por Gluck e cos planejados na região, entre os Tsing (2009: 11), quando falam em quais o complexo hidrelétrico do “palavras em movimento”. Trata-se, Tapajós (CHT), já em processo de neste caso, de seguir uma palavra licenciamento. enquanto ela viaja temporalmente,

Imagem 1. Vila Nova, bairro de Itaituba, cidade impactada pelo complexo hidrelétrico do Tapajós. Por Luan Mourão, jun. 2014.

438 Macedo O garimpo hidrelétrico 439 Altamira indígenas que vinham subindo o O rio Xingu tem seus cursos médio rio ou emigravam pressionados por e baixo separados por uma imensa conflitos. Mas foi com o estabele- curva, apinhada de ilhas e cachoei- cimento dos seringais que a paisa- ras, que dificultam o acesso à região gem humana mudou mais drástica a montante, impedindo a navega- e rapidamente: a invasão propicia- ção contínua a partir do Amazo- da pela estrada intensificou a mor- nas. Na segunda metade do século talidade de nativos, acelerada por XIX, com o início da demanda por doenças ou violência, que trans- borracha, a forma encontrada para formaram em cacos as sociedades explorar os seringais do médio cur- indígenas habitantes das margens so do rio foi construir uma estrada e ilhas do médio Xingu; algumas para contornar o obstáculo ofereci- foram extintas por completo antes do pela chamada Volta Grande do que aparecessem os primeiros rela- Xingu. Um porto foi instalado do tos de viajantes que passaram pela lado norte, onde hoje está a cidade região no século XIX (Adalberto da de Vitória do Xingu. Mercadorias Prússia, 1977 [1847]; Coudreau, 1977 e pessoas eram transportadas ini- [1897]; Snethlage, 1913; Nimuenda- cialmente por uma picada e depois jú, 1948). por uma estrada entre o porto e o Se a estrada entre Altamira e Vi- entreposto comercial que escoava a tória do Xingu propiciou o início da borracha e que se tornaria a cidade colonização da região, a aceleração de Altamira. desse processo viria a acontecer Até o início do comércio da bor- com a abertura de outra estrada, racha, a Volta Grande e o médio desta vez capaz de criar uma liga- Xingu eram habitados por diversos ção muito mais intensa entre essa povos indígenas em contato inter- parte da Amazônia e o mundo exte- mitente com os brancos que, aos rior. A Transamazônica, inaugura- poucos, já se assentavam no baixo da em 1972, chegou com a intenção curso do rio. Algumas missões je- do governo militar de colonização suítas tentaram se instalar na re- planejada da floresta. Desde então, gião desde o século XVII, sem mui- novos fluxos migratórios têm se to sucesso. É muito provável que dirigido à região, ainda vindos em os arranjos humanos na região já peso do Nordeste, mas também de estivessem mudando rapidamente todo o Brasil, inicialmente devido à desde o início da colonização, com oferta de terras para agricultura. A grandes deslocamentos dos povos cidade de Altamira inchou, tornan-

440 Macedo do-se o principal centro de comér- O garimpo, aqui e alhures cio e serviços de toda a região do Na década de 1980, seu Francisco, Xingu. A população do município hoje pedreiro, passou dois anos tra- saltou de menos de 15 mil pessoas, balhando em um garimpo em Cas- em 1970, para 45 mil, dez anos telo de Sonhos. A sorte foi pouca na depois (Umbuzeiro & Umbuzeiro, busca por ouro e ele não conseguiu 2012: 283). juntar dinheiro com o trabalho. A partir de 2011, a região de Al- Mas o dono do garimpo enricou: a tamira vive um momento de trans- certa altura, tinha uma frota de 12 formações tão grandes quanto as aviões. Os trabalhadores precisa- provocadas pela abertura da Transa- vam ser levados ao local, no meio mazônica. Após cerca de 30 anos do da mata, por via aérea. Eram cerca projeto inicial, formulado também de 150 homens trabalhando em gru- no período da ditadura militar e en- pos de no mínimo quatro pessoas. frentando enorme resistência5, em A área era repartida, uma para cada 5. Lembre-se o célebre I Encontro dos Povos 2011, iniciou-se a construção da UHE grupo. De todo o ouro que se encon- Indígenas do Xingu, Belo Monte. O rio Xingu está sendo trasse aí, metade ficava com o dono realizado em 1989, com barrado e será transposto, passan- do garimpo e a outra metade era a intervenção decisiva dos povos indígenas, do por um canal que corta a Volta dividida igualmente entre seus des- especialmente Kayapó, Grande, levando a maior parte água cobridores. Todo o equipamento, na paralisação dos planos de construção da para as turbinas localizadas em sua além de alimentação, era fornecido barragem, que seriam outra ponta. O trecho do rio entre pelo dono. retomados mais de a barragem e a casa de força princi- Quando o ouro em Castelo de So- uma década depois (Sevá Filho, 2005; Santos pal ficará com uma vazão reduzida, nhos rareou, os aviões foram vendi- & Andrade, 1988). e pouco se sabe sobre o impacto do dos, com exceção de um, usado na barramento na navegação e na pes- pesquisa de novas áreas de explora- ca. A população local lida com in- ção. Da última vez que Francisco ou- certezas agudas: o descompasso en- viu falar do garimpeiro, estava bem tre o ritmo das obras na barragem ao norte, no Oiapoque, em busca de – já alcançando, no fim de 2013, 40% novas riquezas. em seu andamento – e as ações de Mais tarde, Francisco se interes- infraestrutura urbana e todo tipo sou por outro garimpo, mais pró- de compensações prometidas para ximo, na região da Volta Grande. a região, ainda muito incipientes, Ali funcionava, até havia poucos desagrada até mesmo àqueles que meses, uma pequena área de ex- apoiavam desde o início o projeto ploração de ouro, mas o minério se da UHE. encontrava a profundidades consi-

O garimpo hidrelétrico 441 deráveis. Alguns poços chegavam a de UHEs fazem parte de um mesmo 40 metros abaixo da terra. O buraco conjunto de febres que atraem tra- era cavado com a ajuda de explosi- balhadores migrantes para deter- 6. Sobre o garimpo vos, os garimpeiros precisavam ser minadas regiões economicamente em Itaituba – cidade baixados e alçados em um elevador aquecidas. Minaçu passara por essas no sudoeste do Pará, à beira do rio Tapajós improvisado, iluminando o poço duas febres sucessivamente. A ima- –, Miller (1985: 182) com velas. Olhando o poço, Fran- gem traduz ponto a ponto aspectos observa que “[m]iners frequently make little cisco declinou o trabalho. “Não tem da situação de Altamira hoje: more than in their coragem, não, cabra?”, perguntou o former occupations. dono do garimpo. Francisco não se Eram mais de 10.000 famílias envol- The miner who strikes it rich is rare, but the importou com a provocação. “Aqui vidas com o ouro! E caminhonete fact that a few have em cima, na luz do dia, eu sei onde levando e trazendo, levando e tra- is enough to continue 6 to lure miners into estou pisando” . zendo, o dia todo… A rua cheiiiii- the interior. […] [A]s in Esta é uma das histórias de quan- nha de peão[,] a homaiada pra cima the pre-1960 period, do a febre do ouro atingiu Altamira, e pra baixo, pra cima e pra baixo. E there are local elites who participate in and nos anos de 1980. Eram diversos as pessoas ficavam sabendo, “dizem control the extractive garimpos em plena atividade na re- que tá dando ouro de pazada” lá em process. They include: gold buyers, merchants, gião e usava-se Altamira como base Minaçu, e o pessoal vinha vindo… mine owners, and para ir e voltar das áreas de explo- Mas aqui era uma confusão, moço! pilots. The gold buyers ração. O ouro foi um dos produtos Fila para tudo, as coisas caras, se in Itaituba are the most visible participants que movimentaram a economia lo- você queria comprar um bujão de in the gold trade. […] cal no século XX, alimentando uma gás tinha que esperar muito. E os Buyers can be owners of mines (although lista em que se destaca a borracha caminhões atolando de Santa Tereza they have no title or – que motivou inicialmente a colo- [na beira da Belém-Brasília] para cá, formal claim) and nização da região –, mas que inclui a estrada aquele barro só, e os cami- also suppliers of food and tools. The mine ainda castanha, peles de “gato” (es- nhões em fila cheios de alimentos. owner has informal pecialmente de onça), o cultivo de E garimpeiro chegando mesmo a control over his mine in that he has built the pimenta-do-reino e cacau, além da comprar saco de arroz para socar no airstrip and controls criação de gado, às margens da Tran- pilão, tudo era muito caro mesmo. transportation into and out of the mine. samazônica, e, mais recentemente, Cabaré, bordel, alojamento, tudo […] The owner also a pesca de peixes ornamentais. dobrando, aumentando de número builds a trading post Em Minaçu, município do norte e de preço. E aluguel de casa subin- where the miners buy their supplies – either de Goiás, Alberico conta a André do, e subindo… E gente ganhando foodstuffs or mining Dumans Guedes sobre o período em dinheiro, uns enriquecendo muito, equipment. […] Prices at the mines are que a febre do ouro atingiu a cidade. mais que os outros: comerciante e exorbitant and paid in Guedes (2011, 2014) mostra como a agiota. gold”. atividade garimpeira e a construção E num dia morria duas, 3, 4 pessoas

442 Macedo no forró… Confusão, briga, bebedei- gem: a “confusão” a que alude Albe- ra, tiro – e o pessoal se divertindo, rico no trecho acima sobre Minaçu, e a mulherzada que vinha também filas, muito movimento, preços al- 7 pra homaiada, aquela confusão, tos, violência. Seu Leonardo , pes- 7. Os nomes de aquela festa. E gente que bambur- cador juruna habitante da cidade, algumas das pessoas mencionadas foram rava atirando pra cima, uns assus- contava-me que, dias antes de nossa trocados. tavam, depois acostumava. Tudo conversa, desistira de comprar pão muito animado, e confuso também! do outro lado da rua depois de 15 (Guedes, 2011: 75). minutos observando o trânsito in- tenso de ônibus e caminhões sem Até onde sei, em Altamira não conseguir atravessar. Elza Xipaia, se costuma usar o termo febre. Fa- liderança entre indígenas da zona la-se em fofoca para dar conta do urbana, põe em palavras o descon- movimento em uma determinada forto com o crescimento repentino área, motivado por alguma ativida- de Altamira; de seu ponto de vista, de. “Está rolando uma fofoca para é como se houvesse uma diluição aqueles lados”, diz-se. Um dos pólos dos moradores antigos da cidade na de atração era o distrito de Castelo nova leva de recém-chegados. Com de Sonhos, ao sul da sede de Altami- eles, vieram a insegurança e a pre- ra, próximo à fronteira com o Mato cariedade nos serviços de saúde. Grosso (ver mapa 2). A fofoca de ga- rimpo mais próxima da cidade si- Antes Altamira como era, do que o tuava-se na Volta Grande do Xingu. que ela é hoje. As famílias indíge- Nas últimas duas décadas, contudo, nas, principalmente, viviam muito ela entrou em decadência; hoje, os concentradas, perto uma da outra, garimpos desapareceram, engolidos tudo junto. Fim de semana se reu- pela Belo Sun, a empresa canadense nia ali na beira do rio, ou então ia que está à beira de instalar na área ali para a praia. Tinha uma vida de o maior sítio de extração de ouro a família mesmo, perto uma da outra. céu aberto do país. Depois que Altamira cresceu, você Para além do lado da “paixão” hoje não pode mais ficar sentada na suscitada pela febre, que Guedes sua porta conversando com o vizi- descreve, o que os moradores de Al- nho porque passa um mau elemen- tamira retêm do “garimpo”, quan- to, já vem o ladrão, já vêm os outros do utilizam o termo para se referir marginais. Você não tem mais paz. à cidade atualmente, são principal- Para a gente ver um amigo, antiga- mente aspectos negativos da ima- mente você saía na rua, eu te en-

O garimpo hidrelétrico 443 444 Macedo contrava em qualquer esquina. Hoje redores. Aqui vamos nos ater, no não, você anda Altamira todinha na entanto, ao aumento de preços e da rua e é raro você ver um conhecido, violência. um amigo, porque o fluxo de gente está tão grande que a gente não se Preços encontra mais. […] “Altamira tem preços de garimpo”, Do meu ponto de vista, o passado diz Marlene, uma dona de casa que era melhor do que agora. Está bom, deixou de pagar aluguel recente- está ficando bonito? Está, mas é mente, beneficiando-se de um pro- mais sufocoso, é mais perigoso, as grama habitacional do governo. Os coisas se tornaram muito mais difí- aluguéis subiram vertiginosamente ceis, um hospital, uma consulta, um desde o início das obras. Triplica- dentista. Porque o fluxo de gente é ram, quadruplicaram de preço em muito grande. alguns meses. Um apartamento de três quartos próximo ao centro cus- Os elementos que inspiram o tava 450 reais por mês em 2010. Em uso da metáfora do garimpo (preços 2011, o mesmo apartamento custa- altos, aumento no fluxo de pessoas, va 750; em 2012, 1.250; em 2013, o violência, “confusão”) têm razões proprietário não fechava contrato diferentes para o caso de Belo Mon- por menos de 3.000 reais. As em- te, quando comparado a garimpos. presas construtoras, a fim de alojar Contudo, a simultaneidade desses seus funcionários, faziam ofertas ir- elementos na Altamira de hoje ins- recusáveis aos donos de imóveis. Os pira a imagem do garimpo, uma antigos inquilinos eram obrigados imagem que se encontra muito pre- a cobrir a oferta ou se retirar. Na sente no repertório regional amazô- maioria das vezes, se retiravam. A nico. A seguir, vamos explorar dois cidade agora cresce para todos os la- desses elementos um pouco mais dos, com novos loteamentos anun- detidamente. Há ainda um outro ciados continuamente. Mas não ponto importante que poderia ser foram só os aluguéis que aumen- levantado aqui, mas sobre o qual taram. Alimentos, bens, serviços se não tenho informações suficientes: tornaram muito mais caros desde o o da prostituição e temas afins. O início da construção de Belo Monte. aumento súbito da população mas- Reuber, um empresário goiano culina tem provocado uma intensi- radicado em Altamira desde 1981, ficação ou modificação nos padrões foi uma das principais figuras ar- de interação sexual na cidade e ar- ticuladoras do Fórum Regional de

O garimpo hidrelétrico 445 Desenvolvimento Econômico e So- ber, pelo aumento dos preços na ci- cioambiental da Transamazônica e dade: a escassez de mão de obra e o Xingu (FORT Xingu), um fórum que encarecimento do transporte. Am- reuniu, de 2009 a 2013, a sociedade bos são causados pelo gigantismo civil de Altamira para discutir os ga- da construção da barragem. Antes, nhos que a cidade poderia ter com havia 12 mil desempregados cadas- Belo Monte. Trata-se da principal trados na cidade; hoje, segundo ele, voz local favorável à obra. Em uma falta mão de obra. Reuber mesmo entrevista feita no final de 2013, ele costumava pagar 1,5 ou 2 mil reais me dizia o seguinte: para um operador de offset em sua gráfica. Hoje, tem que pagar qua- Na parte comercial, muita gente tro mil, trazendo o profissional de achava que ia ficar rica. […] [Mas] as Goiânia ou São Paulo. As transpor- migalhas da hidrelétrica são no pe- tadoras cobram um frete mais alto, ríodo da construção, o aumento na uma vez que a demanda de Belo comercialização chega a dez vezes Monte é grande e vale mais a pena o que era antes da implantação. Só alugar os veículos para o Consórcio que depois ela cai para igual ou um Construtor de Belo Monte (CCBM). aumento muito pequeno com rela- Além disso, com o inchaço na cida- ção ao que tinha antes. Quem não se de, o sistema elétrico se tornou in- preparar com construção, implanta- suficiente para suprir com qualida- ção de hotel, de alguns segmentos, de a demanda local. quebra. Na maioria dos projetos hi- Souza, dono de um dos maiores drelétricos hoje, 20% do comércio supermercados da cidade, diz: quebra. A pessoa se endivida para construir, implementar o projeto, Existia antes uma expectativa muito mas a durabilidade do empreendi- grande com relação à barragem. A mento não cobre 50% dos recursos gente pensava: “Puxa, vai ser a gali- aplicados. Depois, o que ele fez de nha dos ovos de ouro”. Era o pensa- ativo permanente, ele não dá con- mento da maioria. Mas, pelo menos ta de pagar, porque o valor volta ao para mim, não foi. O fluxo de gente normal ou abaixo do que era antes aumentou bastante, mas está vindo da construção. muito problema também. Pessoas de todas as regiões do Brasil, todo Os empresários ainda têm que tipo de pessoas. Roubo, a sujeira na enfrentar pelo menos dois grandes cidade… Hoje, Altamira parece um problemas, responsáveis, para Reu- garimpo.

446 Macedo Capixaba, Souza chegou há 28 mês, quando os salários são pagos, anos. Veio ficar próximo do pai, o movimento é grande. São grupos que tinha um lote na região, onde de homens sentados em ambientes cultivava principalmente uma roça com música em alto volume, consu- e pimenta-do-reino. Até então fun- mindo litros de cerveja. No fim da cionário de banco no Paraná, Souza tarde, alguns corpos embriagados abriu o mercado oito anos depois estendem-se pelas calçadas e há lixo da mudança para o Norte. Começou por toda parte. “Me sinto até traído. com um comércio pequeno, que Prometeu-se muito e não estou ven- foi crescendo ao longo do tempo. do muita coisa”, diz Souza. Teve três filhos, todos criados em Altamira. Dois deles, já formados, Violência trabalham no supermercado do pai. Segundo dados da Polícia Civil, hou- Este ano, contudo, Souza tem tido ve um aumento significativo em dúvidas sobre a viabilidade de seu algumas ocorrências em Altamira negócio. depois que se iniciaram as obras Os ovos não eram de ouro e a de Belo Monte. Tráfico de drogas, galinha tem causado um caos na ci- furtos e roubos, exploração sexual. dade. Os tão esperados ganhos não A substância ilícita preferida na ci- aumentaram o suficiente para com- dade, que representa cerca de 90% pensar os problemas. No caso do do que é apreendido, é o crack. Mas supermercado, são principalmente desde o segundo semestre de 2012, dois fatores: as constantes quedas com o maior poder aquisitivo dos de energia e as dificuldades com recém-chegados, começou-se a en- mão de obra. Com a abundância de contrar alguma cocaína. Além dis- empregos, tem sido difícil manter so, cinco bordéis foram fechados novos contratados. A empresa gas- em 2013, quatro em Altamira e um ta com o processo de admissão, e o em Vitória do Xingu. O último caso novo funcionário se demite no mês ganhou atenção da mídia por envol- ou na semana seguinte. ver uma menor de idade e por todas O supermercado de Souza en- as mulheres terem vindo do Paraná, contra-se próximo a um cruzamen- vivendo em péssimas condições em to onde estão localizados quatro um estabelecimento da área rural, bares bastante frequentados pelos próximo a um dos canteiros de obra trabalhadores da obra no fim de se- da barragem. A chegada da cocaína mana. A partir das 9 horas da ma- tem contribuído para mudar o cená- nhã, principalmente no início de rio da criminalidade local. Há mais

O garimpo hidrelétrico 447 assaltos motivados pelo consumo da ditas: a sensação de insegurança dos droga. Além disso, alguns grupos de moradores de Altamira é altíssima. assaltantes de outros estados (Mato E isso em uma cidade que tem sua Grosso, Amapá) têm sido atraídos história marcada por casos de vio- pela movimentação em Altamira. lência dos mais variados tipos (cf. Para além disso, ligar a televisão Lacerda, 2012). É a primeira questão nos noticiários locais é certeza de levantada pela maioria das pessoas encontrar pelo menos alguns casos com as quais converso sobre a cida- de violência e acidentes de trânsito. de. Eu: “E como está Altamira?”. Se- Wilson, um jornalista altamirense nhora: “Ih, meu filho, Altamira está veterano, que já passou por diver- muito violenta...”. Esse diálogo já se sos canais de TV e hoje tem uma passou pelo menos uma dezena de produtora e um jornal, acredita que vezes nos quatro meses em que es- a comunicação na cidade “voltou no tou em campo. tempo”. O garimpo como padrão Os canais de TV cobrem só acidente Conta-se que na época em que o e delegacia. Nem no tempo em que a acari-zebra – um pequeno peixe or- gente escrevia tudo à mão era assim. namental muito raro e listrado em Os repórteres novos que chegaram preto e branco, como uma zebra – apanham todo dia na porta de hos- tornou-se altamente valorizado, um pital e delegacia. Não respeitam um acampamento se formou em uma momento de dor, nos acidentes. das cachoeiras da Volta Grande do Xingu. Foi depois que a exploração Para Wilson, o jornalismo deve- de ouro entrou em decadência, e ria mostrar um problema, criar uma centenas de homens passaram a questão: o acidentado que não está se concentrar na captura do peixe. encontrando atendimento médico, Instalaram-se uma mercearia e um por exemplo. “Mas os jornais pas- bordel. Valores e mercadorias eram sam duas horas falando de aciden- negociados em zebras. O peixe pas- tes, sem dizer como a história ter- sou a correr perigo de extinção, sua mina, qual a condição do paciente.” pesca foi proibida e, com alguma Some-se a exposição por vezes fiscalização, o comércio diminuiu desproporcional dos casos de violên- significativamente. Hoje, a busca de cia e acidentes na mídia com o au- peixes ornamentais segue existin- mento na população da cidade e nas do, mas de modo muito reduzido. ocorrências policiais propriamente Em 1929, nos primeiros anos

448 Macedo após o início da construção das ins- comuns as histórias de brigas dentro talações da Ford no rio Tapajós – dos bregas. Elas acontecem entre os onde se planejava cultivar as serin- trabalhadores ou entre as prostitu- gueiras que supririam de borracha tas – há uma crescente tensão entre a montadora de automóveis ameri- as brasileiras e a leva de bolivianas. cana – toda uma gama de serviços Muitas terminam em facadas, algu- se estabeleceu em vilarejos pró- mas em morte. [...] ximos à plantação. Greg Grandin Em época de pagamento na usina, (2010) conta como a entrada repen- Jaci Paraná ferve com o dinheiro dos tina de dinheiro fez despontarem trabalhadores. pequenos cafés, restaurantes, lojas Começa pelos bordéis. Além das de frutas, casas de jogo e bordéis, prostitutas locais, mulheres vêm de comandados por comerciantes lo- outros estados para fazer programa cais e empregando principalmente só na semana do pagamento. Se- mulheres nordestinas. Um envia- gundo Michele, algumas vivem na do de Henry Ford para averiguar o ponte aérea com Belo Monte, usina progresso de Fordlândia – nome da hidrelétrica em construção no Pará. cidade seringueira a ser erguida em Elas se deslocam de acordo com o meio à selva – observou que o local dia do pagamento em cada usina. [...] havia se transformado em “uma A parca estrutura de segurança pú- Meca para todos os indesejados, até blica fica impotente diante da força mesmo criminosos, de todo o vale do dinheiro que circula na vila. Duas do Amazonas” (Ibid.: 166). semanas antes da entrevista, Shirley Uma reportagem da agência A teve sua casa assaltada, e o marido Pública, de 2012, descreve a situação levado como refém. O prejuízo foi da vila de Jaci Paraná, em Rondônia, de mais de R$ 20 mil em dinheiro durante a construção das barragens e equipamentos eletrônicos, mas do rio Madeira. Farras, prostituição, ela não vai fazer a denúncia, pois to- dinheiro, violência: dos sabem quem são os assaltantes e o que fazem. Apesar disso, nada A vila de pescadores virou um lugar acontece. de passagem. As pessoas estão em A polícia não dá conta da força que busca de dinheiro, não de vínculos. ganhou o crime local. Os comercian- Há uma tensão constante no ar. A tes pagam uma empresa particular, sexualidade pulsa das roupas curtas, que tem carros e motos bem iden- que às vezes expõem as partes ínti- tificados, para circular pelas três mas das mulheres à luz do dia. São principais ruas da vila. Em setembro

O garimpo hidrelétrico 449 deste ano, o comandante da Polícia se obter recursos relativamente rá- Militar de Jaci foi assassinado den- pido; b) a presença massiva de caba- tro do posto policial. O mesmo gru- rés, prostíbulos e casas de jogo desti- po rendeu os outros policiais, que nados a atender tal público (muitos foram obrigados a deitar no chão destes empreendimentos também da rua, com o rosto para baixo, en- móveis e “circulando” ao longo de quanto os assaltantes explodiam os diferentes áreas); c) a rápida mul- caixas da pequena agência do Bra- tiplicação de toda uma gama de desco. […] pequenos e médios negócios e ser- “Eu já arrumei minha casinha em viços, formais e informais, “locais” Jaru”, diz Sônia, a ex-moradora de ou “de fora”, destinados a oferecer velha Mutum que tem uma loja de bens e serviços à população afluen- roupas em Nova Mutum. “Quando te, ou a amparar a atividade produti- acabar a obra, acabou o emprego, va deflagradora dafebre ; d) um pecu- acabou tudo. Isso aqui vai virar uma liar padrão de “urbanização”, onde cidade-fantasma.” (Aranha, 2012). construções, acampamentos e alo- jamentos provisórios se sobrepõem * às “provisoriedades” previamente existentes de espaços e modos de Garimpo pode ser tomado – é o vida “populares” (que muitas vezes que proponho – como um concei- aparecem como relativamente mais to nativo (Viveiros de Castro, 2002: estáveis apenas porque confron- 122, 128). É o exemplo prototípico tados com aquele padrão); e) uma de uma forma social regionalmen- reorganização dos fluxos econômi- te arraigada, correspondente à febre cos regionais mais amplos como de- como fenômeno mais geral. Guedes corrência das bruscas mudanças re- resume em alguns pontos as carac- lativas no conjunto das mercadorias terísticas gerais da febre, que já in- negociadas, nos padrões de oferta e clui tanto garimpos quanto UHEs e demanda e na estrutura dos preços outros empreendimentos: (Guedes, 2014: 7).

a) o predomínio da população mas- Tendo em vista a falta desta no- culina, decorrente da chegada de fo- ção mais ampla de febre, alguns rasteiros atraídos pelas oportunida- moradores de Altamira remetem des (econômicas e/ou aventureiras) tais características diretamente ao abertas pela febre; dentre estas últi- exemplo do garimpo. Não obstante, mas, justamente a possibilidade de dita por eles, a palavra “garimpo”

450 Macedo condensa justo aquilo que uma ci- Uma máquina semelhante ten- dade não deveria ser. Se, no traba- de a se formar em grandes obras. lho de Guedes, a febre aparece como No caso de UHEs, a semelhança não uma temporalidade acelerada que se dá só em termos desses arranjos desperta paixões e movimento, sen- sociais específicos que reverberam do alvo de nostalgia para aqueles a situação de garimpo. Ela se dá que a viveram (em uma cidade que pela própria qualidade da máqui- se arrisca a desaparecer), no caso de na, que também tem como intui- Altamira, o garimpo traduz o lado to capturar um elemento natural, negativo da movimentação. Isso capitalizando-o – a força do rio se dá, sobretudo, para aqueles que é transformada em energia a ser não estão diretamente relacionados vendida. A grande diferença aqui é com a barragem, não estão tendo que essa máquina é parte de uma ganho financeiro significativo com política de governo que envolve ela, mas enfrentam os diversos pro- as principais corporações privadas blemas gerados pela sua chegada. brasileiras. Há uma verticalização Um garimpo é ainda uma máqui- muito mais acentuada, que liga na de transformação de elementos em uma cadeia, com relativamente naturais em capital. Essa máquina poucos mediadores, o peão da obra tem uma organização própria, que ao grande empresariado nacional mobiliza constelações específicas: e à presidência da República. Não trabalhadores e patrões; maquiná- à toa, muitas dessas pessoas com rio, ferramentas, balsas; dinheiro, quem conversei em um momento mercadorias, álcool, outras drogas e ou outro faziam referência indis- prostitutas. O álcool, as drogas e a criminadamente ao governo ou aglomeração fazem aumentar a sen- às empresas construtoras de Belo sação de insegurança. Com o incha- Monte. Já os garimpos – tal como ço e o dinheiro, os preços sobem. eles se estruturaram na região Ela se sustenta enquanto há ouro e amazônica, particularmente – se enquanto o ouro tem preços atrati- organizam a partir de fluxos econô- vos. Carrega consigo o aspecto cícli- micos locais e dispersos, em que o co e móvel das atividades econômi- “dono” do garimpo, capaz de reali- cas na região amazônica, ao mesmo zar investimentos (em maquinário, tempo em que expressa o aspecto transportes etc.) de modo a concen- da “confusão”, das farras, da violên- trar a maior parte dos ganhos, em cia constituintes do que se poderia geral exerce, no máximo, alguma chamar de uma forma-garimpo. influência política regional.

O garimpo hidrelétrico 451 A comparação com o garimpo Encarando o garimpo como um permite também prever o caráter padrão – padrão que se dá na pró- provisório do movimento. Sabe-se pria configuração social típica da que o garimpo não dura para sem- febre e, ao mesmo tempo, no reper- pre (o que não necessariamente tor- tório imagístico da população de na mais fácil conviver com ele). Já a Altamira –, podem-se extrapolar UHE fica, mas o movimento se vai suas características para outros em- com o fim de sua construção. É por- preendimentos futuros e presentes que esse conceito de garimpo pode na Amazônia. Por um lado, não se ser tomado como uma espécie de faz necessária uma análise como padrão, no sentido de Bateson (2000 a proposta aqui para chegar a essa [1972]: 413), que esse tipo de previ- conclusão – as próprias caracterís- são se torna possível. ticas dos ciclos econômicos e das obras através da Amazônia brasilei- Adivinhar é, essencialmente, enca- ra já configuram repetições claras a rar um corte ou um talho numa se- qualquer observador minimamente quência de itens e predizer que itens atento. Contudo, ao tomarmos um poderiam estar do outro lado do conceito nativo de garimpo como corte. O corte pode ser espacial ou mote para a análise de tais repe- temporal (ou ambos) e a adivinha- tições, podemos condensar essas ção pode ser preditiva ou retrospec- características em uma imagem tiva. Um padrão, de fato, é definível própria a essa região e ao modo 8. No original: “To como um conjunto de eventos ou como seus moradores as formulam. guess, in essence, is to face a cut or slash in objetos que permitirá, em alguma Torna-se ainda possível evidenciar a sequence of items medida, tais adivinhações, quando o como um padrão regional/local sub- and to predict across conjunto inteiro não estiver disponí- siste em interação com novos arran- that slash what items might be on the vel (Ibid.: 413, tradução livre)8. jos político-econômicos de ordem other side. The slash nacional/global, na medida em que might be spatial or temporal (or both) and Assim, ainda que provisoriamen- o poder econômico que promove a the guessing may be te, é possível resumir na seguinte colonização da região tem seu eixo either predictive or fórmula o jogo pelo qual a afirma- deslocado dos fluxos locais descen- retrospective. A pattern, in fact, is definable as ção “Altamira virou um garimpo” tralizados para investidas centradas an aggregate of events produz sentido: em grandes corporações aliadas ao or objects which will permit in some degree Estado brasileiro como agente po- such guesses when [características da febre / (caracterís- lítico determinante. Não obstante, the entire aggregate is not available for ticas do garimpo / características de observa-se que mesmo a prolifera- inspection”. Altamira)] ção de garimpos na década de 1980

452 Macedo na região de Altamira tem uma rela- reportagem e jornalismo investiga- ção íntima com o Estado (de forma tivo. São Paulo, 7 dez. Disponí- bastante diversa), uma vez que toma vel em: mazônica pelo governo militar9. (acesso: 2 abr. 2014). 9. Nota-se ainda que O aspecto de previsibilidade Bateson, Gregory. 2000 [1972]. Steps havia uma cadeia hierárquica no caso da dado por tal padrão é urgente em to an ecology of mind. Chicago/Lon- mineração de ouro, mas um momento em que proliferam dres, The University of Chicago já também na extração da seringa, capaz de projetos de grandes UHEs por toda Press. ligar as atividades a Amazônia. O caso das UHEs pre- Coudreau, Henri. 1977 [1897]. Via- locais aos compradores vistas para o rio Tapajós é emble- gem ao Xingu. Belo Horizonte/São localizados em grandes centros e ao comércio mático nesse sentido. Itaituba, ci- Paulo, Itatiaia/Edusp. internacional. Miller dade próxima ao local onde podem Gluck, Carol; Tsing, Anna. 2009. (1985) observa que o garimpo em Itaituba se instalar os canteiros de obra, já Words in motion. Durham/Lon- é similar em muitos foi uma das áreas garimpeiras mais dres, Duke University Press. aspectos ao sistema movimentadas do país. Miller (1985) Grandin, Greg. 2010. Fordlândia: as- de patronagem característico da conta que, em 1977, um coletor de censão e queda da cidade esque- extração de seringa e impostos estimou haver 186 garim- cida de Henry Ford na selva. Rio de madeira em outras áreas da Amazônia. pos na área, com aproximadamente de Janeiro, Rocco. Ainda assim, são 20 mil trabalhadores. Já na década Guedes, André Dumans. 2011. O configurações bastante diferentes do que de 1980, estimava-se que esse núme- trecho, as mães e os papéis. Tese de ocorre em grandes ro subira para 100 mil. Ao que tudo doutorado (Antropologia social). obras, como UHEs, nas indica, caso os planos de construção Rio de Janeiro, Universidade Fe- quais a hierarquia encontra-se altamente dessas barragens se concretizem, os deral do Rio de Janeiro. centralizada nas tempos do garimpo devem retornar ___. 2014. “Fever, movement, pas- empresas construtoras. Uma análise mais à região, assumindo nova roupa- sion and dead cities in Northern fina destas relações, gem: a de um garimpo hidrelétrico. Goiás”. In: Virtual Brazilian An- não obstante sua thropology (Vibrant), Dossiê Etno- alta relevância para a economia de minha [artigo concluído em julho de 2014] grafias da Economia, v.11, nº1. argumentação, exigiria Brasília, Associação Brasileira um espaço bem maior que o disponível aqui. Referências bibliográficas de Antropologia, jan.-jun., pp. Adalberto da Prússia, Príncipe. 56-95. 1977 [1847]. Brasil: Amazonas-Xin- Lacerda, Paula M. 2012. O “caso dos gu. Belo Horizonte/São Paulo, meninos emasculados de Altamira”. Itatiaia/Edusp. Tese de doutorado (Antropologia Aranha, Ana. 2012. “Vidas em trân- social). Rio de Janeiro, Universi- sito”. In: A Pública – Agência de dade Federal do Rio de Janeiro.

O garimpo hidrelétrico 453 Leite, Marcelo; Amora, Dimmi; Ka- Santos, Leinad A.O.; Andrade, Lú- chani, Morris; Almeida, Lalo de; cia M.M.. 1988. “Apresentação”. Machado, Rodrigo. 2013. “Tudo In: As hidrelétricas do Xingu e os sobre a batalha de Belo Monte” povos indígenas. São Paulo, Comis- (especial). In: Folha de S.Paulo. São são Pró-Índio de São Paulo, p. 5. Paulo, 16 dez. Disponível em: Sevá Filho, A. Oswaldo (org.). 2005. quências dos projetos hidrelétri- (acesso: 2 abr. 2014). cos no rio Xingu. São Paulo, In- Miller, Darrel. 1985. “Highways ternational Rivers Network. and gold: change in a caboclo Snethlage, Emilia. 1913. “A traves- community”. In: Parker, Eugene sia entre o Xingu e o Tapajós”. P. (org.) The Amazon caboclo: his- In: Boletim do Museu Emilio Goeldi, torical and contemporary per- v.VII. Belém, Museu Emilio Goel- spectives. Studies in Third World di, pp. 49-92. Societies, nº32. Williamsburg, Umbuzeiro, Antônio U.B.; Umbuzei- VA, College of William and Mary, ro, Ubirajara M. 2012. Altamira e pp. 167-198. sua história. Belém, Ponto Press. Nimuendajú, Curt. 1948. “Tribes Viveiros de Castro, Eduardo. of the lower and middle Xingu 2002. “O nativo relativo”. In: river”. In: Steward, Julian H. Mana, v.8, nº1. Rio de Janeiro, pp. (org.). Handbook of South American 113-148. Indians, v.3. Washington, Smith- sonian Institute, pp. 213-243.

454 Macedo Impactos da construção de USINAS hidrelétricas sobre quelônios aquáticos amazônicos Um olhar sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós Juarez Carlos Brito Pezzuti, Marcelo Derzi Vidal e Daniely Félix-Silva

s recursos hídricos e a biodi- desmatamento, a mineração, a uti- versidade aquática vêm sen- lização de agrotóxicos e a poluição do degradados por atividades ocorrem ou ocorreram nos trechos Ohumanas praticadas de forma insen- superiores, barragens a jusante am- sata, descontrolada e em desacordo plificam o problema da contamina- com um planejamento visando a ção e do assoreamento (McAllister et sustentabilidade em longo prazo. O al., 2001; Moll & Moll, 2004). desmatamento, a poluição, a cana- As consequências do barramen- lização, o assoreamento, a minera- to de rios são extremamente com- ção, as barragens para diversos fins, plexas, cumulativas e com diversos a exploração insustentável da água efeitos que se tornam sinérgicos e e da biodiversidade aquática, e as agravam os impactos negativos. De mudanças climáticas estão entre as acordo com McAllister et al. (2001), principais atividades que ameaçam barragens e seus reservatórios asso- os ecossistemas aquáticos (Goul- ciados impactam a biodiversidade ding, 1990; Junk & Nunes de Mello, e os ecossistemas aquáticos das se- 1990; Goulding et al., 1996, 2003; guintes maneiras: McAllister et al., 2001; Moll & Moll, 2004). Essas atividades frequente- i) bloqueio do movimento de espé- mente ocorrem de forma simultâ- cies migratórias para montante e nea dentro de uma mesma bacia, ge- jusante, causando extinção local rando efeitos sinérgicos ainda mais de espécies e/ou de estoques gene- graves. Por exemplo, em rios onde o ticamente distintos;

455 versidade íctica e, consequente- mente, a pesca; viii) mudanças no regime sazonal de descargas, que pode afetar o supri- mento de nutrientes, impactando as cadeias alimentares e a pesca continental e estuarina; ix) modificação da qualidade da água e padrões de descarga a jusante; e x) efeitos cumulativos, no caso de barragens em série, com os impac- tos de uma se sobrepondo aos das situadas a jusante.

Imagem 1. Tracajá ii) alteração dos níveis de turbulência (Podocnemis unifilis) e sedimentação aos quais as espé- No que diz respeito à pesca, para fêmea. Por Daniely Félix-Silva. cies e os ecossistemas estão adap- Bernacsek (2001), barragens impac- tados – a retenção de sedimentos tam a biodiversidade íctica, os es- priva deltas fluviais e estuarinos de toques e a atividade pesqueira, mo- materiais e nutrientes para sua ma- dificando ou degradando hábitats nutenção e produtividade; tanto a jusante quanto a montante iii) filtragem de detritos vegetais que do empreendimento. Esse autor sustentam a cadeia trófica; afirma, além de vários dos impactos iv) mudanças nas condições físicas e acima mencionados: químicas do sistema, especifica- mente na descarga, temperatura e i) estratificação da reserva e modifi- níveis de oxigênio, tornando o am- cação do fluxo de água para as pla- biente inadequado para espécies nícies de inundação rio abaixo; tipicamente fluviais; ii) retenção de sedimentos e nu- v) possibilidade de introdução de no- trientes no reservatório, podendo vas espécies, capazes de afetar a causar explosões demográficas de biodiversidade local (por exemplo, organismos oportunistas, provo- infestação por plantas aquáticas); cando eutrofização; vi) possibilidade de colonização da iii) infestação do reservatório por área por vetores de doenças para plantas aquáticas; e animais e humanos; iv) contaminação por pesticidas oriun- vii) alterações nas dinâmicas de pulso dos das áreas agrícolas ao redor do de inundação, impactando biodi- empreendimento.

456 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva As usinas hidrelétricas (UHEs) representam uma ampliação das têm impactos especialmente graves áreas de alimentação para peixes e em rios com planícies de inunda- outros animais aquáticos, que utili- ção associada – como no caso em zam uma ampla gama de alimentos questão –, pois a alta produtividade sazonalmente disponíveis. Além destes depende justamente da dinâ- disso, a fauna aquática amazônica mica do pulso de inundação (Junk exerce papel fundamental na di- et al., 1989). Na Amazônia, esses im- nâmica florestal de áreas alagadas, pactos afetam de forma adversa as sendo responsável pela dispersão populações humanas que subsistem de sementes, por exemplo (Araújo- dos recursos aquáticos (Goldsmith -Lima & Goulding, 1998). & Hildyard, 1984; Junk & Nunes de Essa ligação ecológica é, portan- Mello, 1990), assumindo inquestio- to, responsável pela grande produ- navelmente uma dimensão huma- tividade pesqueira dos rios sujeitos na e caracterizando-se, dessa forma, a pulsos de inundação (Welcomme, como impactos socioambientais, 1979). No caso da bacia amazônica, pois as esferas ambiental e social a pesca tornou-se uma das mais im- do problema gerado por barragens portantes atividades humanas da são indissociáveis. Trata-se de efei- região, sendo de longe a forma mais tos particularmente graves, em fun- importante de extrativismo (Santos ção da sua importância ecológica & Santos, 2005). Além disso, pos- e social, tanto em nível regional, sui grande importância histórica, como também em escala nacional social e econômica, constituindo a e global. base da alimentação proteica para A megadiversidade da vida aquá- as populações ribeirinhas (Meggers, tica amazônica está intimamente li- 1977; Gilmore, 1986; Almeida, 2006). gada com a dinâmica hidrológica e Diversas outras espécies aquáticas com o pulso de inundação na bacia. também constituem fonte impor- Essa interação se traduz também tante de alimento e de renda para as em uma fantástica produtividade, numerosas populações que vivem em função dos inúmeros recursos nas margens do rio Amazonas e seus alimentares e nichos disponibiliza- principais tributários, destacando- dos durante as enchentes, em ciclos -se, desde o Brasil-colônia, a utiliza- que se renovam anualmente (Junk ção do peixe-boi (Trichechus inunguis) et al., 1989; Goulding, 1990; Ayres, e da tartaruga-da-Amazônia (Podoc- 1995; Junk, 1997; Goulding et al., nemis expansa), e, mais recentemen- 2003). As extensas áreas alagáveis te, de jacarés (Smith, 1974; Mitter-

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 457 meier, 1975; Gilmore, 1986; Johns, de estoques ou mesmo a extinção 1987; Da Silveira & Thorbjarnarson, local de espécies que dependam 1999). Especificamente no que diz destes movimentos longitudinais respeito aos quelônios aquáticos durante parte de seus ciclos de vida. amazônicos, Gilmore (1986) consi- Além disso, a ocupação desordenada dera que sua utilização constitui em torno do empreendimento im- historicamente a atividade etnozoo- plica um aumento da pressão sobre lógica mais importante, registrada os estoques de peixes e de outros na região até hoje. Sua utilização animais aquáticos. Em reservató- é milenar, e o primeiro relato dis- rios, dos diversos grupos faunísticos ponível sobre uma viagem pelo rio estudados, há uma drástica redução Amazonas, realizada em 1542, já da diversidade associada a uma ex- descreve seu uso intenso como ali- plosão demográfica de algumas es- mento, consumido em larga escala pécies, em função da modificação e ao longo de todo o Amazonas, assim eliminação de áreas de alimentação como para a fabricação de diversos e de reprodução (Goldsmith & Hild- utensílios (Carvajal, 1955 [1543]). yard, 1984; Junk et al., 1989, Jackson Diversos outros naturalistas descre- & Marmulla, 2001; Castello et al., veram sua utilização ao longo dos 2013). maiores afluentes, mantida até hoje (Silva Coutinho, 1868; Ferreira, 1971 As barragens e os quelônios [1887]; Bates, 1892; Coudreau, 1977 aquáticos do Tapajós [1897]; Adalberto da Prússia, 1977 O rio Tapajós, um dos principais [1847]; Pereira, 1954; Smith, 1974, afluentes da margem direita do rio Mittermeier, 1975; Johns, 1987; Re- Amazonas, é alvo da implantação bêlo & Pezzuti, 2000; Fachín-Terán do complexo hidrelétrico do Tapa- et al., 2003; Pezzuti et al., 2010; Lima jós (CHT), um dos grandes projetos et al., 2012; Félix-Silva et al., 2013). do Programa de Aceleração do Cres- Na Amazônia, a construção de cimento (PAC) para a Amazônia. São barragens para aproveitamento hi- previstos cinco aproveitamentos hi- drelétrico cria uma barreira física drelétricos cujas áreas de alagação que impede a migração de animais afetarão diretamente seis unidades aquáticos e provoca severas modi- de conservação (UCs) federais: Par- ficações dos ambientes aquáticos que Nacional (Parna) da Amazônia, tanto a montante quanto a jusante Parna do Jamanxim, Floresta Nacio- (Junk & Nunes de Mello, 1990). Bar- nal (Flona) Itaituba I, Flona Itaituba ragens podem significar a redução II, Flona do Jamanxim e Área de Pro-

458 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva teção Ambiental (APA) do Tapajós. ra (Siebenrock, 1909; Pritchard & Essas UHEs afetarão não somente Trebbau, 1984; Iverson, 1986; Vet- a dinâmica hidrológica e o uso do ter, 2005), ocorrem 11 espécies de ambiente por populações humanas quelônios aquáticos na região do que habitam a região, mas também rio Tapajós a ser influenciada pelo terão impactos em diversos grupos complexo hidrelétrico projetado. da fauna aquática (Vidal et al., 2012). Isso significa uma elevada riqueza Seguindo o exemplo de outras de espécies, produto da grande dis- UHEs instaladas em território ama- ponibilidade de ambientes distintos zônico, esse complexo deverá afetar e bem conservados. Quatro dessas não somente a dinâmica hidrológi- espécies pertencem à família Podoc- ca e o uso do ambiente por popula- nemididae (Podocnemis expansa, P. ções humanas da região, mas tam- unifilis, P. sextuberculata e Peltocepha- bém terá impacto negativo sobre lus dumerilianus), outras cinco per- a conectividade do hábitat, abun- tencem à família Chelidae (Chelus dância e estrutura populacional de fimbriatus, Platemys platycephala, Me- diversos grupos de organismos, em soclemmys gibba, Batrachemys nasuta especial a comunidade de mamífe- e Phrynops tuberosus), uma à família ros aquáticos, peixes e quelônios. Kinosternidae (Kinosternon scorpioi- Assim como para a bacia amazô- des) e outra à família Geoemididae nica em geral, tartarugas-da-Amazô- (Rhinoclemmys punctularia). Temos nia, tracajás (Podocnemis unifilis) e ou- ainda duas espécies terrestres con- tras espécies de quelônios aquáticos genéricas (pertencentes ao mesmo fazem parte da dieta ribeirinha do gênero) e simpátricas (que utilizam Tapajós, sendo importantes tanto a mesma região), pertencentes à fa- em uma perspectiva histórica como mília Testudinidae (Chelonoidis carbo- na atualidade. São intensamente naria e C. denticulata). consumidos em diferentes períodos Os podocnemidídeos, sobretudo do ano, e seus ovos são igualmente P. expansa e P. unifilis, são de hábito apreciados. Coudreau (1977 [1897]), herbívoro oportunista, utilizando em seus relatos sobre a região em frutos, flores, folhas e talos de de- viagem realizada há mais de cem zenas de espécies (Pritchard & Treb- anos, já mencionava reiteradamen- bau, 1984; Almeida et al., 1986; Fa- te o uso desses animais na alimenta- chín-Terán et al., 1996; Pérez Emán ção indígena. & Paolillo, 1997; Vogt, 2001). Habi- De acordo com os mapas de dis- tam todos os tipos de corpos d’água tribuição disponíveis na literatu- associados ao rio Tapajós, incluindo

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 459 o canal principal, igarapés, canais, nal Union for Conservation of Nature lagos e ambientes sazonalmente (IUCN). Além disso, P. expansa está inundáveis, e apresentam uma es- sendo redirecionada para a catego- treita relação com estes últimos. ria de criticamente ameaçada por Essas espécies destacam-se pela im- especialistas da área (Tortoise and portância milenar na alimentação Freshwater Turtle Specialist Group - das populações indígenas da Ama- TFTSG/IUCN). Félix-Silva et al. (2009) zônia (Carvajal, 1955 [1543]; Silva demonstraram que essa espécie Coutinho, 1868; Bates, 1892; Smith, praticamente desapareceu do lago 1974; Pezzuti et al., 2010; Félix-Silva artificial da UHE Tucuruí, no rio et al., 2013) e, como já comentado, Tocantins. Essa é uma espécie al- 1. Esta observação ainda constituem importante ali- tamente migradora (Vogt, 2008)1 e baseia-se também em mento para as populações ribeiri- altamente especializada quanto aos dados não publicados reunidos por Cristiane nhas e indígenas do rio Tapajós, so- ambientes de desova, nidificando Costa Carneiro. bretudo para os índios Munduruku nos bancos arenosos dos principais (Coudreau, 1977 [1897]). rios amazônicos. No Tapajós, os in- As espécies da família Chelidae divíduos reproduzem-se ao longo de são predominantemente carnívoras praticamente todo o rio (Coudreau, e ocorrem nas florestas alagadas, 1977 [1897]; Pereira, 1954; Rebêlo, sobretudo as associadas a igarapés 1991). Mais importante: a apenas 96 de menores dimensões, e ainda em quilômetros a jusante da cachoeira pequenos igarapés e poças situados de São Luiz, para onde está projeta- em terra firme (Rueda-Almonacid et da a UHE de mesmo nome, situa-se al., 2007; Pezzuti et al., 2008; Leite, o Tabuleiro de Monte Cristo, onde 2010). Geralmente apresentam me- milhares de fêmeas de P. expansa nor importância na subsistência das desovam anualmente (Brasil, Insti- populações ribeirinhas, embora se- tuto Brasileiro do Meio Ambiente e jam sujeitas a tabus alimentares e dos Recursos Naturais Renováveis, amplamente utilizadas como zoote- 1989). rápicos na medicina caseira (Pezzu- Realizando contagens visuais no ti et al., 2010; Alves et al., 2012; Félix- período da enchente no Médio Ta- -Silva et al., 2013). pajós, Vidal et al. (2013) registraram Não há conhecimento sobre es- 107 indivíduos de quelônios, resul- pécies endêmicas de quelônios na tando em uma densidade de 0,99 bacia do Tapajós, mas várias das indivíduos por quilômetro, todos espécies ocorrentes estão listadas da espécie Podocnemis unifilis (traca- como vulneráveis pela Internatio- já). Já durante a seca, esses autores

460 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva identificaram 32 ninhos de tracajá, 0,064 mm de diâmetro na escala de com médias de 0,91 ninhos/praia e Wentworth) afetam negativamente 16 ovos/ninho. Apesar de não terem diversas espécies de moluscos de sido registrados indivíduos e ninhos água doce, afetando os quelônios de P. expansa (tartaruga), moradores carnívoros que destes se alimen- locais relataram que essa espécie tam. Espécies herbívoras, por sua ocorre em abundância, desovan- vez, são impactadas pela modifi- do também em algumas praias da cação do ambiente e consequente região. mudança na vegetação, sobretudo no novo reservatório. Em rios as- Impactos das barragens sobre a sociados a planícies de inundação fauna aquática e quelônios obedecendo a um sistema de pulso, toda a comunidade aquática sofre o Reservatório efeito do desaparecimento de fon- De acordo com Moll e Moll (2004), tes de alimento de origem alóctone, em uma revisão sobre os impactos pois as florestas de igapó e demais de barragens em quelônios de água ambientes adaptados ao ciclo hidro- doce, nos reservatórios, o padrão é lógico característico desaparecem. que as espécies tipicamente fluviais De maneira geral, essas plantas não sejam prejudicadas por competi- suportam o alagamento permanen- ção com as espécies generalistas e te no futuro reservatório, principal- que apresentam maior plasticidade mente as árvores cujas raízes neces- quanto ao uso de ambientes. Em sitam de exposição ao ar durante Tucuruí, a tartaruga-da-Amazônia algum período (Junk & Nunes de virtualmente desapareceu da região Mello, 1990; Ferreira, 1997; Ferreira do lago, com um único indivíduo & Stohlgren, 1999). jovem capturado em três anos de Em um estudo realizado no bai- intenso esforço de pesca com redes xo rio Tapajós, Leite (2010) observou de espera e armadilhas (Félix-Silva, que existe uma sincronia entre o 2009). O tracajá é praticamente a pulso de alagamento e os padrões única espécie capturada no lago. de uso do espaço pelos quelônios Nos reservatórios, a diminuição aquáticos. Todas as cinco espécies dos níveis de oxigênio e o aumen- estudadas (Podocnemis expansa, P. to dos níveis de dióxido de carbono unifilis, P. erythrocephala, Peltocepha-

(CO2) e também de silte (fragmen- lus dumerilianus e Phrynops tuberosus) to mineral de baixa plasticidade, apresentaram padrões distintos compreendido entre 0,004 mm e de ocupação das margens e áreas

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 461 alagadas, com o avanço para o in- CHT. As consequências incluem a terior da floresta inundada (igapó) interrupção do fluxo gênico e, por- à medida que o nível da água sobe tanto, da variabilidade genética e alaga este ambiente. A perda dos total por depressão endogâmica, ambientas naturais de alimentação tornando essas subpopulações mais tem efeitos ainda pouco conhecidos susceptíveis. O efeito da fragmenta- na bacia amazônica, embora previ- ção sobre a diversidade intraespe- síveis. Antevê-se que, com a perda cífica é bem conhecido e discutido de fontes de alimento, tanto em ter- de forma geral por Primack e Ro- mos qualitativos quanto quantitati- drigues (2001), e também por Moll vos, ocorra uma redução tanto na e Moll (2004), especificamente para abundância como na estrutura po- os quelônios. Um exemplo das con- pulacional dos quelônios aquáticos, sequências deletérias e da extrema além de perda individual de mas- vulnerabilidade a que as subpopula- sa corpórea. A título de exemplo, ções estão sujeitas é fornecido pela comparando populações de Clemmys pesquisa realizada por Dodd Junior marmorata em um estudo de marca- (1990) no rio Warrior, Alabama, ção e recaptura em dois afluentes Estados Unidos, com Sternotherus do rio Trinity, norte da Califórnia, depressus. O estudo descreve como, Estados Unidos, sendo um barrado ao ser acometida por uma doença e o outro livre, Reese e Welsh (1998) contagiosa, uma subpopulação des- verificaram que a abundância não sa espécie sujeita ao isolamento por foi significativamente diferente. sedimentação, barramentos e po- Entretanto, os autores observaram luição foi reduzida em 50% do seu que a subpopulação a montante era tamanho original. dominada por indivíduos adultos, e Outro impacto bem conhecido sugerem que barragens impactem e evidente é o desaparecimento de negativamente indivíduos juvenis ambientes de importância crítica ou então o próprio recrutamento. para a reprodução. Os ambientes Esse efeito soma-se ao fato de que que são sazonalmente emersos e as populações de quelônios aquáti- utilizados para desova, no verão, cos do rio Tapajós, assim como dos como as praias e barrancos, são mo- demais componentes da sua fauna dificados tanto a jusante quanto a aquática, ficarão fragmentadas em montante após o barramento. No pequenas subpopulações isoladas reservatório, essas áreas tornam-se pelas barragens e reservatórios ao submersas em definitivo em toda longo de todo o trecho afetado pelo a extensão do mesmo. As praias

462 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva mais altas são formadas por sedi- dificultava a escavação do ninho pe- mento uniforme; situam-se tanto las fêmeas. Como consequência, os nas margens como nas ilhas, e rece- ninhos eram mais rasos e mais sujei- bem poucas posturas em compara- tos à predação por lagartos, formi- ção com a área disponível em cada gas e larvas de moscas (Félix-Silva, praia. Os estudos que vêm sendo 2009), e com características térmi- levados a cabo no arquipélago de cas distintas. Os quelônios podocne- Tucuruí demonstram que as fêmeas midídeos têm o sexo definido pela de P. unifilis atualmente desovam temperatura de incubação (Alho et em ambientes cujas características al., 1985; Souza & Vogt, 1994), que físicas e bióticas são totalmente dis- por sua vez é dependente de fato- tintas dos ambientes normalmen- res físicos e biológicos (Ferreira Jú- te utilizados para nidificação, com nior et al., 2003; Ferreira Júnior & efeitos sobre as taxas de eclosão e Castro, 2006). Em Tucuruí, tanto a a razão sexual dos filhotes. Sequer granulometria como a proporção um ninho de tartaruga-da-Amazô- de sombreamento são distintas de nia foi encontrado no reservatório sítios reprodutivos naturais, com de Tucuruí em três anos de monito- sérias consequências tanto para a ramento (Félix-Silva, 2009). sobrevivência quanto na proporção Adicionalmente, tanto a mon- de filhotes machos e fêmeas. tante como a jusante da barragem, há uma modificação na condição Impactos a jusante dos granulométrica das áreas de deso- barramentos va. No reservatório, os animais são A jusante, temos a retenção de se- obrigados a desovar nos novos am- dimentos, comprometendo a ma- bientes formados nas margens do nutenção natural das praias abaixo novo lago, cujos solos são os dos do barramento, assim como dos antigos platôs de terra firme e que arquipélagos fluviais onde os ani- se tornam ilhas e margens do reser- mais se abrigam e se alimentam no vatório. Os ninhos monitorados em período chuvoso. Não existem es- Tucuruí (Idem) apresentaram baixas tudos disponíveis sobre a reprodu- taxas de eclosão quando compara- ção de quelônios a jusante de bar- dos a outros estudos (Souza & Vogt, ragens na Amazônia. Na Malásia, 1994; Pezzuti & Vogt, 1999; Bernard, no rio Perak, Moll (1997) observou 2001; Raeder, 2003). Os solos onde que o barramento contribuiu para os ovos foram depositados apresen- a eliminação das áreas originais de tavam elevada compactação, o que desova de quelônios a jusante. O

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 463 efeito cumulativo da sequência de milhão de filhotes em uma única barramentos prevista no CHT possi- temporada reprodutiva, o que re- velmente comprometerá a reprodu- presenta cerca de 30% de todos os ção de quelônios a jusante, incluin- filhotes produzidos pelo Programa do a região de Monte Cristo, mais Quelônios da Amazônia (PQA), cria- importante área de desova na bacia do em 1979 (Brasil, Instituto Brasi- do rio Tapajós. leiro do Meio Ambiente e dos Re- Além disso, a população da tar- cursos Naturais Renováveis, 1989), taruga-da-Amazônia que congrega e que se tornou o maior programa para desovar nessa região no final de conservação de quelônios do da vazante também será impactada mundo. pelas barreiras físicas que caracteri- Mesmo UHEs a fio d’água podem zam esses empreendimentos. Os in- estar sujeitas a manipulação de cur- divíduos dessa espécie são grandes to prazo do volume do reservatório, migradores, deslocando-se exten- por períodos inferiores a 24 horas, samente, tanto subindo, como des- sem que isso produza alterações cendo o rio após desovarem (Vogt, nas médias diárias de vazão, pois o 2008). No rio Xingu, as fêmeas de volume acumulado em um horário tartaruga-da-Amazônia que deso- de baixa geração é liberado mais vam na região do Tabuleiro do Em- adiante, durante o pico de con- baubal deslocam-se a uma distância sumo, entre 18h e 22h. UHEs que superior a 400 quilômetros (Carnei- operam a fio d’água possuem dois ro et al., mimeo). Portanto, a sequên- indicadores de nível importantes: o cia de barramentos do CHT tem nível máximo operacional e o nível impactos severos quanto ao acesso máximo maximorum. Quanto ao pri- às áreas que esses animais ocupam meiro, de maneira geral, as UHEs a durante a enchente e a cheia, que fio d’água mantêm o nível estável deveriam ser alvo de um detalhado na cota máxima normal de opera- estudo de padrões migratórios an- ção, e raramente vão abaixo dela. tes de se considerar a viabilidade do Quando isso ocorre, é por tempo referido empreendimento. muito curto, pois há perda da capa- O Instituto Brasileiro do Meio cidade de geração. Algumas UHEs a Ambiente e dos Recursos Naturais fio d’água também possuem a cota Renováveis (Ibama) investe na pro- de segurança, denominada máximo teção do Tabuleiro do Embaubal há maximorum, que fica acima do nível mais de 30 anos, sendo que o mes- operacional e corresponde ao limite mo chega a produzir mais de um máximo de segurança da barragem,

464 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva acima do qual a água não pode estar relevantes para o sistema. Em UHEs em momento algum. Em alguns ca- com capacidade de regulação, do- sos, essa pequena variação pode ser tadas de reservatórios com volume explorada em ciclos curtos, dentro útil de operação, as alterações de do intervalo de 24 horas. O proce- curto prazo são mais comuns e po- dimento visa reduzir a vazão turbi- dem ser demandadas pelo ONS sem- nada no período de pouco consumo pre que necessário, principalmente e acumular o pequeno volume que quando outras usinas necessitam seria utilizado para aumentar a ge- interromper sua geração por algum ração no horário de pico. Gerar no motivo. Em alguns casos, pode ser momento de pico pode ser de gran- determinado um aumento substan- de valia para o sistema, pois reduz cial na geração por tempo prolon- a necessidade de acionar as usi- gado, o que provoca uma alteração nas térmicas. A operação não é rea- brusca no regime do rio a jusante lizada apenas conforme o interesse da barragem. da concessionária, mas deve ser au- Essas mudanças não provocam torizada pelo Operador Nacional do o transbordamento do nível do rio Sistema (ONS), órgão de fundo pri- para além de sua calha, mas a des- vado que controla todo o sistema de carga adicional pode elevar a cota geração do país. Vale destacar que do rio a jusante justamente duran- essa operação ganha maior relevân- te o período reprodutivo e cobrir cia no período seco, quando as va- as praias e margens onde os ninhos zões naturais são menores e a capa- estão depositados, antes de os filho- cidade de geração da casa de força tes eclodirem, matando-os afoga- está bem abaixo de sua capacidade dos. Vale ressaltar que, mesmo em máxima. Dependendo da calha do condições normais, o alagamento rio, pode ocorrer aumento superior constitui a principal causa de perda a um metro no nível de jusante. de ninhos de quelônios aquáticos Durante a estação chuvosa, esse na Amazônia (Foote, 1978; Alho, tipo de operação não costuma ser 1982; Escalona & Fa, 1998; Pezzu- realizado, primeiramente porque ti & Vogt, 1999; Batistella & Vogt, há vazão suficiente para o sistema 2008; Pignati et al., 2013), afetando e também porque a instabilidade também outros animais que se re- meteorológica não favorece a ele- produzem nos ambientes sazonal- vação do nível do reservatório até mente emersos pelo ciclo hidroló- próximo do volume crítico. Seria gico, como insetos, jacarés, lagartos uma operação de risco sem ganhos e aves (Soini, 1996; Pezzuti & Vogt,

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 465 1999; Bernhard, 2001; Raeder, 2003; tobá, poderá inviabilizar ações de Batistella & Vogt, 2008). Esse fenô- conservação em ambientes críticos meno também já é conhecido em para os animais, especialmente reservatórios de UHEs, como o de para espécies aquáticas migradoras Tucuruí, no rio Tocantins (Félix- que têm seus ambientes alterados -Silva, 2009), e o de Santo Antônio, e acabam ficando presas entre um no rio Madeira (Daniely Félix-Silva, reservatório e outro. Os estudos observação pessoal). que fazem parte dos processos de li- Atenção especial deve ser dada cenciamento estão sendo levados a ao Tabuleiro de Monte Cristo, si- cabo de forma independente, e não tuado a menos de 100 quilômetros integrada. Normalmente, os progra- a jusante do CHT, sobretudo quan- mas ambientais levados a cabo por to a possíveis liberações de curto empresas de consultoria são regidos prazo de uma maior quantidade de por contratos sigilosos, embora fa- água pela casa de força, mesmo que çam parte do processo de licencia- por algumas horas. O alagamento mento. Como os empreendimentos das áreas de desova, se ocorrer, po- do Tapajós estão sendo licenciados derá interromper a embriogênese um a um, é difícil visualizar qual- em centenas de milhares de ovos, quer tipo de integração dos progra- enterrados muitas vezes a poucos mas ambientais, a não ser que o centímetros da linha d’água, nas órgão licenciador assim o exija. Por- praias baixas e nas margens, du- tanto, principalmente no caso de rante o período em que as águas do espécies migradoras, cuja área de Tapajós se encontram em seu nível vida e ciclos de vida transcendem mais baixo. Portanto, é necessário as áreas de influência do conjun- que o governo (sobretudo o Minis- to de projetos aqui considerados, tério do Meio Ambiente - MMA, o é fundamental que se garanta que Ibama e o Instituto Chico Mendes impactos e programas de mitigação de Conservação da Biodiversidade - e compensação sejam concebidos, ICMBio) e a sociedade tenham aces- implementados e avaliados de for- so aos dados completos de monito- ma integrada. ramento da cota e da descarga de Para completar, ao longo de todo todos os reservatórios planejados, e o trecho sob influência do CHT exis- não somente a médias diárias. tem inúmeras praias de desova de A ausência de integração entre P. expansa, bem como de P. unifilis. os empreendimentos individuais, Essas áreas estarão sujeitas a diver- como, por exemplo, São Luiz e Ja- sos dos problemas supramenciona-

466 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva dos, com o agravante de que vários pelo descompasso entre o avanço trechos do rio estarão a jusante de das obras e a implementação de uma barragem e imediatamente programas ambientais que deve- antes ou no reservatório de outra, riam ser executados para evitar, tornando ainda mais delicada a mitigar e compensar os impactos situação. Por essa razão, essas po- diretos e indiretos do empreendi- pulações estarão sujeitas tanto ao mento. A intensificação da ocupa- problema das descargas quanto à ção humana em toda a região, tanto modificação dos ambientes do leito no entorno das diversas TIs como e das margens. também das UCs do rio Tapajós, in- crementa substancialmente os ris- Efeitos sinérgicos indiretos cos de invasão por madeireiros, fa- É fundamental também considerar zendeiros, garimpeiros e caçadores. as profundas mudanças na demo- Esses efeitos geralmente ocorrem grafia da região, bem como no pa- bem antes do empreendimento, drão de ocupação das margens dos como se observou no rio Tocantins, reservatórios, das ilhas formadas e com a UHE Tucuruí, e no rio Uatu- das áreas a jusante. Tanto em Tucu- mã, com a UHE Balbina (Junk & Nu- ruí (Félix-Silva et al., 2007; Félix-Sil- nes de Mello, 1990; Fearnside, 1991; va, 2009), quanto em Belo Monte, Laurance et al., 2002), e como atual- observa-se forte pressão em decor- mente se observa nos rios Xingu e rência do adensamento populacio- Madeira, com impactos sobre a pai- nal sobre toda a região, inclusive sagem, a biodiversidade, a fauna e 2 sobre as terras indígenas (TIs) . O os recursos aquáticos, sobretudo os 2. A observação sobre aumento da pressão sobre os recur- pesqueiros (Cavalcante, 2012; Fearn- Belo Monte baseia- se em dados não sos pesqueiros é inevitável, assim side, 2014). publicados coletados como as invasões sobre as áreas de por Juarez Pezzuti. pesca ao longo dos rios barrados. No Considerações finais rio Xingu, ao longo de todo o trecho Diversos acordos (Convenção da Di- sob influência direta e indireta de versidade Biológica, Agenda 21) e Belo Monte, as populações ribei- organizações internacionais (IUCN rinhas e indígenas, sobretudo na e Banco Mundial, entre várias ou- região denominada Volta Grande, tras) têm estabelecido padrões para já percebem a pressão sobre os es- minimização de impactos negativos toques pesqueiros em decorrência das atividades humanas sobre a bio- desse aumento populacional huma- diversidade. As principais recomen- no na área. Tal situação é agravada dações incluem:

Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 467 i) evitar coincidência de impactos duzir os impactos na biodiversida- ambientais com áreas ricas em bio- de terrestre. diversidade (hotspots); ii) evitar bloquear espécies Analisando a proposta do gover- migradoras; no para a bacia do rio Tapajós, so- iii) manter ciclos de fluxo naturais diá- bretudo se considerarmos ainda as rios e sazonais; UHEs projetadas e em construção, o iv) manter o máximo volume de des- que observamos é um planejamen- carga possível; to que não considera quaisquer des- v) sustentar a qualidade de água sas recomendações, tanto do ponto quanto à temperatura, oxigê- de vista da concepção do projeto nio e sedimentação, entre outras quanto das medidas preparatórias variáveis; e preventivas que deveriam ter sido vi) evitar efeitos cumulativos de bar- implementadas antes mesmo do ragens, limitando seu número e início dos estudos, já que os impac- proximidade; tos demográficos e econômicos em vii) considerar os impactos de outras nível local e regional são mais que atividades humanas; evidentes. viii) aplicar medidas padronizadas de É necessário um programa espe- avaliação de impactos; cífico para quelônios aquáticos, que ix) envolver equipes ambientais desde acompanhe as subpopulações que o início do planejamento e cons- ficarão isoladas em cada fragmento trução dos empreendimentos; de rio entre as barragens. Um inten- x) aprimorar, redimensionar e con- so investimento em marcação de servar barragens existentes; indivíduos, bem como no acompa- xi) desativar barragens ineficientes e nhamento por telemetria, é funda- recuperar ecossistemas aquáticos; mental para se compreender a área xii) aplicar o manejo da paisagem para de vida de cada espécie e seus pa- tornar barragens mais efetivas e drões de deslocamento no Tapajós, para proteger a biodiversidade; sobretudo das espécies de impor- xiii) estabelecer áreas protegidas tância para a segurança alimentar, para incrementar a eficiência para a economia de subsistência e das barragens e a conservação da para a cultura dos povos ribeirinhos biodiversidade; e indígenas do Tapajós. Da mesma xiv) incrementar o conhecimento ne- forma, é necessário conhecer a cessário através de pesquisa; e ecologia alimentar e as áreas críti- xv) conhecer e, consequentemente, re- cas para a alimentação desses ani-

468 Pezzuti, Vidal e Félix-Silva mais, tanto dos grupos herbívoros Referências bibliográficas como dos carnívoros, pois, como já Adalberto da Prússia, Príncipe. foi mencionado, haverá mudanças 1977 [1847]. Brasil: Amazonas-Xin- completas nos ambientes aquáti- gu. Belo Horizonte/São Paulo, cos, incluindo as áreas onde esses Itatiaia/Edusp. animais se alimentam. Alho, Cleber J.R. 1982. “Sincronia Também é indispensável o acom- entre o regime de vazante do rio panhamento do período reprodu- e o comportamento de nidifica- tivo, incluindo a identificação das ção da tartaruga-da-Amazônia áreas de desova e do monitoramen- Podocnemis expansa (Testudinata: to dos ninhos, da postura até a eclo- Pelomedusidae)”. In: Acta Amazô- são e a emergência dos filhotes, des- nica, v.12, nº2. Manaus, Instituto de antes do início das obras e por Nacional de Pesquisas da Amazô- tempo indeterminado após o início nia, pp. 323-326. do funcionamento do empreendi- Alho, Cleber J.R.; Danni, Tania M.S.; mento. Também deve ser levado a Pádua, Luiz F.M. 1985. “Tempera- cabo um estudo prévio, seguido de ture-dependent sex determina- um monitoramento geomorfológi- tion in Podocnemis expansa (Tes- co das áreas de desova, tanto nos tudinata: Pelomedusidae)”. In: reservatórios quanto a jusante dos Biotropica, v.17, nº1. Lawrence, mesmos. The Association for Tropical Biol- Atenção especial deve ser direcio- ogy and Conservation, pp. 75-78. nada ao Tabuleiro de Monte Cristo, Almeida, Oriana T. 2006. Manejo de logo a jusante da sede do município pesca na Amazônia brasileira. São de Itaituba, bem como ao conjunto Paulo, Peirópolis. de praias arenosas da região, que Almeida, Samuel S.; SÁ, Paulo G.; recebem as desovas de milhares de Garcia, Alvaro. 1986. “Vegetais quelônios, sobretudo da tartaruga- utilizados por Podocnemis (Che- -da-Amazônia, cujos deslocamentos lonia) na região do Baixo Rio pré e pós-reprodutivos devem ser Xingu, Pará, Brasil”. In: Boletim cuidadosamente monitorados antes do Museu Paraense Emílio Goeldi, do início das obras e de forma contí- Botânica, v.2, nº2. Belém, Mu- nua, com capturas e monitoramen- seu Paraense Emílio Goeldi, pp. to por telemetria de satélite. 199-211. Alves, Rômulo R.N.; Vieira, Kle- [artigo concluído em julho de 2014] ber S.; Santana, Gindomar S.; Vieira, Washington L.S.; Almei-

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Impactos da construção de hidrelétricas sobre quelônios aquáticos 477

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós e suas relações com as USINAS hidrelétricas Ronaldo Barthem, Efrem Ferreira e Michael Goulding

região entre Aveiro e Jacarea- tambaqui (Colossoma macropomum), canga, no rio Tapajós, apre- e sobre as consequências do barra- senta pesca tradicional, com mento do rio, com a construção da Acaracterísticas de subsistência, e usina hidrelétrica (UHE) de São Luiz pesca profissional; ambas abaste- do Tapajós. cem os núcleos urbanos. As prin- Os peixes migradores represen- cipais cidades e sedes de distritos tam mais da metade do pescado contam com infraestrutura bem desembarcado pela pesca comercial estabelecida de apoio à atividade na bacia amazônica e chegam a ul- pesqueira, como mercados e fábri- trapassar 90% do total desembarca- cas de gelo, mas o volume do de- do em alguns dos principais centros sembarque é pequeno, bem inferior urbanos da região (Ruffino, 2004; ao dos centros urbanos que mar- Barthem & Goulding, 2007). As es- geiam o rio Amazonas-Solimões. Os pécies migradoras capturadas pela pescadores que ali atuam possuem pesca comercial e de subsistência conhecimentos sobre a biologia dos apresentam comportamentos mi- peixes que podem ser usados para gratórios distintos por extensa área inferir sobre abundância e compor- da bacia amazônica. As migrações tamento migratórios dos mesmos. podem ocorrer ao longo do canal Esses conhecimentos foram utili- principal do rio Solimões-Amazo- zados neste trabalho para inferir nas, como é o caso dos bagres que sobre os modelos de migração do realizam migrações entre o estuário jaraqui (Semaprochilodus spp.) e do e os Andes (Barthem & Goulding,

479 início da fase de enchente do rio, de modo que o pulso anual de ala- gação auxilia na rápida dispersão das larvas nas áreas recém-inunda- das a jusante, que funcionam como berçários (Araújo-Lima & Oliveira, 1998; Araújo-Lima & Ruffino, 2004). A distância percorrida por ovos e larvas à deriva no rio Amazonas, Imagem 1. Tambaqui 1997; Barthem et al., 2003); entre o até o momento em que necessitam (Colossoma canal principal e seus tributários, se alimentar, pode variar de 500 macropomum) pescado no Tapajós. Por Efrem caso do tambaqui, jaraqui e matrin- a 1.300 quilômetros (Araújo-Lima Ferreira, fev. 2009. chã (Goulding, 1980; Goulding & & Oliveira, 1998), o que garante o Carvalho, 1982; Ribeiro, 1983; Bor- povoamento de extensas áreas a ges, 1986; Ribeiro & Petrere, 1990; jusante. Araújo-Lima & Goulding, 1997); ou, As UHEs exercem um papel ne- por último, podem ser restritas a gativo na manutenção dos estoques somente um tributário, como ocor- migradores, tendo em vista que elas re com o mapará no rio Tocantins alteram o ambiente e o ciclo de en- (Carvalho & Merona, 1986). chentes do rio, e interrompem a Os pescadores são profundos conectividade dos trechos a mon- conhecedores dos hábitos migrató- tante e a jusante, afetando a deriva rios das espécies comerciais, e seu de ovos e o acesso dos reprodutores conhecimento tem sido usado para às áreas de desova (Godinho & Godi- inferir sobre abundância e migra- nho, 1994; Araújo-Lima, 1984; Leite ção dos peixes (Silvano et al., 2006; et al., 2006; Oliveira & Araújo-Lima, Silvano & Begossi, 2010; Hallwass et 1998). No entanto, o barramento al., 2013). Na Amazônia central, os dos rios nem sempre inviabiliza as pescadores possuem redes próprias populações de peixes, pois essas po- para capturar os peixes quando dem se manter mesmo com o iso- esses estão migrando, em especial lamento dos trechos de montante e aqueles da ordem Characiformes jusante, caso eles apresentem carac- que migram entre o canal principal terísticas favoráveis para a repro- e seus tributários (Barthem & Goul- dução e crescimento da população ding, 2007). Esses peixes procuram (Pompeu et al., 2012). desovar no encontro das águas dos A Amazônia possui um grande tributários com o rio principal, no potencial para geração hidrelétrica,

480 Barthem, Ferreira e Goulding em especial nos trechos dos rios cau- dalosos que atravessam os escudos brasileiros e das Guianas, e os Andes. Além das barragens já existentes, o Plano Decenal de Expansão de Ener- gia (PDE) 2011-2020 prevê a constru- ção de 30 barragens com potencial maior que 30 gigawatts na Amazônia Legal brasileira (Fearnside, no prelo). menta para obter em pouco tempo Imagem 2. Jaraqui Desse total, prevê-se que 16 serão informações a respeito dos proces- escama fina (Semaprochilodus construídas na bacia do rio Tapajós, sos migratórios na bacia para auxi- taeniurus) pescado para gerarem 22,7 GW (ver mapa-en- liar na tomada de decisões sobre a no Tapajós. Por Efrem Ferreira, set. 2009. carte). A maior delas seria construí- instalação dos empreendimentos da sobre a cachoeira mais a jusante, hidrelétricos. a de São Luiz do Tapajós, com capa- cidade para 6.133 megawatts. Metodologia A cachoeira de São Luiz é a pri- As informações a respeito de peixes meira queda d’água do rio Tapajós migradores foram obtidas ao lon- em direção à montante e a primeira go do trecho do rio Tapajós entre barreira parcial dos peixes migra- Aveiro e Jacareacanga, entre 30 de dores que têm origem na planície outubro e 5 de novembro de 2012, amazônica. As cidades de Itaituba e observações e coletas feitas desde e Jacareacanga, situadas respectiva- a década de 1980. A área percorrida mente a jusante e a montante dessa inclui os principais municípios da cachoeira, são abastecidas regular- área de influência dos empreendi- mente por pescados capturados ao mentos: Aveiro (16 mil habitantes, longo desse trecho do rio. No entan- sendo 3 mil residentes em zona ur- to, pouco se conhece a respeito da bana), Itaituba (97 mil habitantes, pesca e da migração dos peixes na sendo 71 mil residentes em zona área a ser impactada pela UHE São urbana) e Jacareacanga (14 mil ha- Luiz do Tapajós. bitantes, sendo 5 mil residentes em Considerando essa ausência de zona urbana)1. Além das sedes des- 1. Todos os dados são do informações, foi realizado um le- ses municípios, foram feitas visitas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística vantamento rápido sobre os peixes às sedes dos distritos de Brasília (IBGE), disponíveis em: migradores e sua pesca ao longo do Legal e Fordlândia, ambos no mu- (acesso: 11 nicípio de Aveiro. As informações jun. 2014). O levantamento rápido é uma ferra- foram obtidas durante as visitas aos

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 481 pontos de desembarque de pescado A pesca e às áreas de pesca (imagens 3 a 5). A pesca comercial no rio Tapajós é Dois métodos foram utilizados realizada principalmente nos tre- para a obtenção de informações. O chos próximos à sua foz, onde atua primeiro foi baseado em entrevis- a frota comercial de Santarém e tas semidirecionadas aplicadas a onde há registros de desembarque pescadores, comerciantes de pesca- pesqueiro (Ruffino, 2004). Os qua- do e fornecedores de gelo (Hunting- tro centros urbanos visitados apre- ton, 2000). Essas entrevistas consis- sentam atividade pesqueira, mas tiam em conversas informais feitas somente as sedes dos municípios individualmente ou em grupos, em de Itaituba e Jacareacanga apresen- que se procurou abordar uma lista tam mercados formais, privados ou de temas previamente definidos públicos, e fábricas de gelo comer- como: (i) volume e tipos de pesca- ciais, apesar de haver produção do- dos desembarcados; (ii) apetrechos méstica de gelo nas outras cidades utilizados; (iii) preços e rede de co- e sedes de distritos. Fordlândia foi mercialização; e (iv) acesso a gelo o único centro que não apresentou e outros produtos para a conser- atividades relacionadas à comer- vação do pescado. Perguntas espe- cialização de pescado. Itaituba é o cíficas foram feitas aos pescadores principal mercado, comercializan- a respeito da biologia das espécies, do cerca de quatro vezes o volume épocas e área de reprodução, locais de Jacareacanga, e é o único núcleo onde se encontravam os peixes jo- urbano que apresenta um mercado vens e comportamento migratório. público (tabela 1). O segundo método foi o de obser- As embarcações pesqueiras são vação participante, que consistiu em geral voadeiras, com motor de em visitar as áreas de pesca para popa, ou pequenos barcos com con- conhecer os ambientes e acompa- vés coberto, que armazenam o pes- nhar os pescadores para conhecer cado em caixas de isopor. Essas em- os apetrechos de pesca, as técni- barcações encostam junto às praias cas de pescaria e as embarcações ou beiras de rio defronte ao núcleo pesqueiras (McGoodwin, 2002). A urbano para desembarcar o pescado estimativa da produção anual foi em qualquer época do ano (imagens 3 feita com base na comercialização e 4). O pescado desembarcado é ven- diária de pescado relatada pelos dido por atacado aos comerciantes comerciantes. das cidades de Itaituba e Jacareacan- ga, que por sua vez vendem a varejo

482 Barthem, Ferreira e Goulding em diversos pontos da cidade. Em de isopor com gelo em Itaituba e re- Aveiro e Brasília Legal, a população tornam para suas casas com as com- pesca no rio em áreas próximas aos pras da semana. Nos dias seguintes, centros urbanos, com canoas, redes saem para os pesqueiros próximos de emalhar (malhadeiras) e linha de às suas casas ou no caminho para mão, capturando o pescado para a Itaituba e armazenam o pescado refeição diária. Diversas espécies fo- nas caixas de isopor com gelo. Após ram encontradas nas caixas de gelo a semana de pescaria, retornam a do mercado municipal, sendo que Itaituba para a venda do pescado e a maioria delas é comumente en- para as compras semanais, e nova- contrada nos mercados das cidades mente abastecem de gelo suas cai- e sedes de distritos ao longo do rio xas de isopor para a pescaria da pró- Amazonas e conhecida por realizar xima semana. Os pescadores que migrações (tabela 1). possuem canoa motorizada ou bar- Pescadores residentes às mar- co com motor de centro vão para gens do rio Tapajós a jusante de Itaituba por seus próprios meios. Os Itaituba têm uma rotina semanal de que moram mais distantes ou não pesca. Eles abastecem suas caixas têm embarcação motorizada che-

Tabela 1. Infraestrutura e volume estimado de pescado comercializado em cada cidade

Cidade/ sede de Jacareacanga Itaituba Brasília Legal Fordlândia Aveiro distrito Mercado de peixe Público Não há 1 (5 boxes) Não há Não há Não há Privado 6 4 Doméstico Sem Doméstico informação Fabricação de gelo Industrial (número 3 4 0 0 0 de fábricas) Doméstica Sim Sem Sim Sem Sim informação informação

Porto Variável Fixo Disperso Sem Disperso informação Volume de pescado 80-105 ± 400 Sem Sem Sem comercializado informação informação informação (toneladas/ano)

Elaboração dos autores.

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 483 Imagem 3 (esq.): Canoas e barcos de diferentes tipos e porto de desembarque de pescado no rio Tapajós. Por Ronaldo Barthem, 2011.

Imagem 4 (dir.): Canoa motorizada com caixas de gelo desembarcando pescado. Por Ronaldo Barthem, 2011. Os pescadores de Jacareacanga saem para pescar nas proximidades Imagem 5 - Pesca de da cidade, especialmente nos lagos tambaqui com rede de emalhar “escorada” Muiuçu e São Luiz, situados a mon- abaixo da cachoeira de tante. Utilizam redes de emalhar São Luiz, no rio Tapajós. Por Ronaldo Barthem, e anzol, e capturam diversas espé- 2011. cies (tabela 2). A melhor época para pescar é de novembro a dezembro, justamente no período do defeso, quando as espécies estão migran- gam ao centro urbano por meio de do. As espécies capturadas de maior barco recreio. Como o recreio passa valor são as migradoras, como tam- em direção a Itaituba três dias por baqui, filhote, piau e aracu. O tam- semana (domingo, segunda-feira e baqui capturado na região alcança quinta-feira), esses são os dias em de dez a 15 quilogramas, tendo sido que há maior oferta de pescado nes- observada uma fêmea ovada de 15 sa cidade, sendo os dias tradicionais quilogramas no frigorífico de um em que o mercado municipal vende ponto de venda. pescado. Pescadores de uma embar- cação de pesca de motor de centro A migração relataram que consideram uma boa As considerações sobre migrações pescaria quando o barco retorna de peixes no rio Tapajós foram ba- com pelo menos 100 quilogramas de seadas nas espécies de tambaqui e peixe por viagem. O pescado comu- jaraqui, tendo em vista que o com- mente desembarcado em Itaituba é portamento migratório dessas es- o piau, que é conhecido por realizar pécies é conhecido na Amazônia migrações e é composto por várias Central (Goulding, 1980; Goulding; espécies da família Anostomidae. & Carvalho, 1982; Ribeiro, 1983; Ri-

484 Barthem, Ferreira e Goulding beiro & Petrere, 1990; Araújo-Lima pescadores como a migração do pei- & Goulding, 1997) e que elas apre- xe gordo, pois os peixes estão saindo sentam alto interesse comercial, o do igapó após um período de farta que obriga os pescadores a se es- alimentação (seta verde tracejada da merarem para conhecer um pou- imagem 6). Os cardumes sobem o tri- co mais sobre elas para poderem butário até um trecho e esperam o capturá-las. começo da enchente. Quando o rio começa a encher, tem início a mi- Modelo de migração do jaraqui na gração de reprodução; os cardumes Amazônia Central descem novamente até o encontro O modelo das migrações de jaraqui das águas para desovarem e, em se- foi elaborado por estudos realiza- guida, sobem pelo mesmo tributá- dos na zona de confluência do rio rio, buscando o igapó que começa Negro com o rio Amazonas. Essa é a se alagar (seta vermelha contínua da uma das migrações mais conheci- imagem 6). Os ovos e larvas descem das e seu padrão é referência para a até alcançarem a várzea a jusante, compreensão da migração de outras onde crescem durante um período espécies de Characiformes. O jara- de enchente (seta vermelha pontilha- qui realiza duas migrações por ano da da imagem 6). Na próxima seca, entre os rios de água branca e seu os cardumes de jaraquis pequenos tributário de água preta ou clara. A deixam a várzea em busca de iga- migração de dispersão ocorre nos pós nos tributários de água preta trechos inferiores dos tributários, ou clara a montante de sua área de onde o rio principal represa o tri- criação, realizando sua primeira butário e reduz a velocidade de sua migração dispersiva (Ribeiro, 1983; vazão; realiza-se logo após a cheia, Ribeiro & Petrere, 1990). quando o rio começa a baixar, e se estende até a seca. Nessa migração, Comparação da migração do os cardumes de jaraqui saem das jaraqui no rio Tapajós florestas alagadas, ou igapós, dos A proposta de modelo de migração tributários de água preta ou clara de jaraquis no rio Tapajós, entre e descem esse rio até alcançarem Aveiro e Jacareacanga, foi baseada o rio principal de água branca, ini- nas informações dos pescadores, ciando a partir daí a migração as- tendo como referência o padrão cendente no rio principal até outro de migração conhecido para a con- tributário de água clara ou preta. fluência do rio Negro com o rio Essa migração é conhecida pelos Amazonas. Cardumes de jaraquis

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 485 Tabela 2. Pescados encontrados nos mercados de Itaituba e Jacareacanga

Nome comum Nome científico Migrador Itaituba Jacareacanga Brasília Legal

Acará Satanoperca spp. e Geophagus spp. x x

Acaratinga Geophagus proximus x x x

Acará-açu Astronotus crassipinnis x

Acará-bararua Uaru amphiacanthoides x

Acari-bodó Liposarcus pardalis x

Aracu Schizodon sp. x x x

Aruanã Osteoglossum bicirrhosum x

Branquinha Espécies da família Curimatidae x x

Cara-de-gato Platynematichthys notatus x x

Curimatá Prochilodus nigricans x x x

Dourada Brachyplatystoma rousseauxii x x

Filhote Brachyplatystoma filamentosum x x

Flamengo Brachyplatystoma juruense x x

Jandiá Leiarius marmoratus x x

Jaraqui Semaprochilodus spp. x x x x

Mapará Hypophthalmus spp. x x x

Matrinxã Brycon sp. x x x

Orana Hemiodus spp. x x

Pacu Myleus sp., Metynnis sp. e Mylesinus sp. x x x

Peixe-cachorro Hydrolicus scomberoides x x

Pescada Plagioscion spp. e Pachypops sp. Sem informação x x

Piau Leporinus spp. x x x

Piranha Pygocentrus nattereri e Serrasalmus spp. x

Piranha preta Serrasalmus rhombeus x

Pirapitinga Piaractus brachypomus x x

Surubim Pseudoplatystoma punctifer x x x

Tambaqui Colossoma macropomum x X x

Traíra Hoplias malabaricus x

Tucunaré Cichla spp. x x

Elaboração dos autores.

486 Barthem, Ferreira e Goulding são encontrados migrando no rio gração depende da conectividade Tapajós desde Aveiro até acima de dos diferentes trechos do rio, ou Jacareacanga, sendo que as cachoei- seja, se é possível manter popula- ras de São Luiz e as demais até Ja- ções viáveis se forem isoladas pela careacanga não são barreiras para barragem. essas espécies. Pescadores de Jaca- reacanga informam que os jaraquis Modelo de migração do tambaqui desovam em novembro e seus filhos na Amazônia Central criam-se nos diversos lagos a mon- O tambaqui faz uma migração se- tante e a jusante da cidade. Esse pa- melhante, mas um pouco mais drão é semelhante às migrações das complexa. Os adultos reprodutores mesmas espécies estudadas no rio se alimentam nas extensas áreas Ji-Paraná (também conhecido como de floresta alagadas que margeiam Machado), em Rondônia, um rio os tributários ou os lagos no rio de de água clara do escudo brasileiro, água branca durante o período de excetuando-se o fato de que lá os jo- enchente. Quando o rio começa a vens não são encontrados nos lagos baixar, cardumes de tambaqui dei- do tributário, e sim na várzea do rio xam as áreas alagadas e migram Madeira (Goulding, 1980). De forma pelo canal principal do rio de água comparativa com a migração descri- branca em direção à montante até ta por Ribeiro (1983) para o rio Ne- alcançarem remansos do rio com gro, a migração dispersiva (seta verde troncos e raízes, onde o cardume tracejada na imagem 6) é observada se abriga durante a seca e suas gô- no rio Tapajós pelos pescadores de nadas amadurecem. Quando o rio Aveiro a Jacareacanga, assim como começa a encher, os cardumes mi- a sua desova e a criação dos juvenis gram rio acima, com suas gônadas nos lagos marginais. Os pescadores maduras, até o local de desova, que não mencionaram se os igapós dos parece não depender dos trechos tributários teriam o mesmo papel de confluência dos rios principal e de área de alimentação encontrado tributário, ocorrendo em diferentes nos tributários do rio Amazonas-So- trechos dos rios de água branca (seta limões e nem a que distância eles vermelha contínua da imagem 7). Após sobem o rio. As principais lacunas a desova, os ovos e larvas são carrea- desse modelo seriam a distância a dos para os lagos de várzea a jusan- montante que eles migram, tanto te (seta vermelha pontilhada da imagem no Tapajós como em seus tributá- 7) e os cardumes reprodutores bus- rios, e se a sobrevivência dessa mi- cam novas áreas de alimentação na

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 487 Imagem 6: Modelo de floresta alagada a montante (seta de Jacareacanga afirmam que eles migração do jaraqui: o verde tracejada da imagem 7). Os jo- começam a descer entre agosto e se- esquema à esquerda representa o modelo vens demoram cinco anos nos lagos tembro; os pescadores da cachoeira encontrado por Ribeiro de várzea antes de realizarem mi- de São Luiz acreditam que a desova (1983) na Amazônia Central e o da direita, grações dispersivas ou reprodutivas ocorra em novembro (seta vermelha o modelo hipotético (Goulding, 1980; Goulding & Carva- contínua da imagem 7). Pescadores para o rio Tapajós. A lho, 1982; Araújo-Lima & Goulding, de jusante encontram tambaquis migração dispersiva ocorre quando o rio 1997). jovens nos lagos marginais do Ta- está secando ou seco e pajós, como os lagos Urussagi e a migração reprodutiva, a desova e a deriva de Comparação da migração do Recreio, próximos a Brasília Legal. ovos e larvas, quando o tambaqui no rio Tapajós Já os pescadores de Jacareacanga rio está enchendo. Aparentemente, a migração do desconhecem ou consideram rara a tambaqui no rio Tapajós parece ocorrência de tambaquis jovens aci- ser bem mais simples que no eixo ma da cachoeira. Tambaquis adultos Amazonas-Solimões. Os pescadores migram a montante da cachoeira de diversas regiões afirmaram que para se alimentar de frutos no iga- a área de desova do tambaqui é a pó (seta verde tracejada da imagem 7), cachoeira de São Luiz. Pescadores como ocorre na Amazônia Central.

488 Barthem, Ferreira e Goulding Vários exemplares com mais de dez vas siga mais a jusante desse trecho. quilogramas foram coletados no rio Também se desconhece qual a inte- Teles Pires no trecho logo a jusante gração desse ciclo migratório com da cachoeira de Sete Quedas, a mais os realizados no baixo Amazonas, o de 600 quilômetros da cachoeira de que poderia envolver um constante São Luiz, o que indica que a espécie recrutamento de adultos ou suba- pode utilizar um longo trecho do dultos provenientes dos trechos a rio Tapajós ou de seus tributários jusante de Aveiro. Imagem 7. Modelo de migração do tambaqui: para se alimentar, embora não haja o esquema à esquerda informações se há outras áreas de Relações entre as migrações e as representa o modelo encontrado por desova além da já mencionada (seta UHEs Goulding (1980) na vermelha pontilhada da imagem 7). Os modelos de migração de tamba- Amazônia Central e o Também não se sabe até que distân- qui e jaraqui foram elaborados com da direita, o modelo hipotético para o rio cia os ovos e larvas dos tambaquis base no comportamento dessas es- Tapajós. A migração nascidos na desova da cachoeira de pécies na Amazônia Central e nos dispersiva ocorre quando o rio está São Luiz são carreados para jusan- relatos dos pescadores entrevista- secando ou seco e a te. A correnteza do rio Tapajós é tão dos no trecho do rio Tapajós entre migração reprodutiva, branda abaixo de Aveiro, que é difí- Aveiro e Jacarecanga. O principal a desova e a deriva de ovos e larvas, quando o cil aceitar que a deriva de ovos e lar- desafio científico é testar a vali- rio está enchendo.

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 489 dade desse modelo hipotético de migratório das principais espécies migração e conhecer o seu limite migradoras do rio Tapajós. à montante, tanto no rio Tapajós quanto nos seus tributários, além [artigo concluído em julho de 2014] de sua dependência em relação à conectividade com o sistema do rio Referências bibliográficas Amazonas. Araújo-Lima, Carlos A.R.M. 1984. Aparentemente, o tambaqui Distribuição espacial e temporal de apresenta uma forte dependência larvas de Characiformes em um setor em relação à conexão entre os tre- do rio Solimões/Amazonas próximo a chos de montante e jusante da ca- Manaus, AM. Dissertação de mes- choeira de São Luiz, tendo em vista trado (Biologia de água doce e que a área de alimentação dos adul- pesca interior). Manaus, Institu- tos está a montante da cachoeira, to Nacional de Pesquisas da Ama- o berçário está a jusante e a área zônia/Fundação Universidade do de reprodução, exatamente na ca- Amazonas. choeira. Por outro lado, os jaraquis Araújo-Lima, Carlos A.R.M.; Gould- parecem poder manter os ciclos mi- ing, Michael. 1997. So fruitful a gratórios independentes nos dois fish: ecology, conservation, and trechos. No entanto, não é possível aquaculture of the Amazon’s avaliar se a estreita área de floresta Tambaqui. Nova York, Columbia alagada a montante das cachoeiras University Press. de São Luiz poderia alimentar as Araújo-Lima, Carlos A.R.M.; Olivei- populações que se manteriam aci- ra, Edinbergh C. 1998. “Trans- ma da barragem caso esse trecho port of larval fish in the Ama- seja entrecortado por outras UHEs, zon”. In: Journal of Fish Biology, como as de Jatobá e Chacorão. v.53 (Supplement A). Dumfries, A sequência de UHEs a serem The Fisheries Society of the Brit- construídas na bacia do rio Tapajós ish Isles, pp. 297-306. irá afetar profundamente a conexão Araújo-Lima, Carlos A. R.M.; Ru- dos movimentos migratórios nos ffino, Mauro L. 2004. “Migratory diferentes trechos e poderá causar fishes of the Brazilian Amazon”. o desaparecimento de espécies mi- In: Carolsfeld, Joachim; Har- gradoras nos trechos isolados. Pla- vey, Brian; Ross, Carmen; Baer, nos para a mitigação desses impac- Anton. (org.). Migratory fishes of tos devem considerar estudos mais South America: biology, fisheries detalhados sobre o comportamento and conservation status. Victo-

490 Barthem, Ferreira e Goulding ria, World Fisheries Trust/World dois peixes migratórios do baixo Bank/IDRC, pp. 233-306. Tocantins, antes do fechamen- Barthem, Ronaldo; Goulding, Mi- to da barragem de Tucuruí”. In: chael. 1997. The catfish connection: Amazoniana, v.9, nº4. Plön, Max ecology, migration, and conser- Planck Institute for Limnology, vation of Amazon predators. pp. 595-607. Nova York, Columbia University Fearnside, Philip M. No prelo. Press. “Análisis de los principales ___. 2007. An unexpected ecosystem: proyectos hidroenergéticos en la the Amazon revealed by the fish- región amazónica”. In: Gamboa, eries. Lima, Amazon Conserva- César; Gudynas, Eduardo. (org.) tion Association/Missouri Botan- El futuro de la Amazonía. Lima/ ical Garden Press. Montevidéu, Secretaria General Barthem, Ronaldo; Goulding, Mi- del Panel Internacional de Am- chael; Forsberg, Bruce; Cañas, biente y Energía: Derecho, Am- Carlos; Ortega, Hernán. 2003. biente y Recursos Naturales/Cen- Ecología acuática del río Madre de tro Latinoamericano de Ecología Dios: bases científicas para la Social. conservación de cabeceras andi- Godinho, Hugo P.; Godinho, Ale- no-amazónicas. Lima, EcoNews. xandre L. 1994. “Ecology and Borges, Guilherme A. 1986. Ecolo- conservation of fish in south- gia de três espécies do gênero Brycon eastern Brazilian river basins Muller & Troschel,844 (Pisces-Chara- submitted to hydroelectric im- cidae), no rio Negro-Amazonas, com poundments”. In: Acta Limnologi- ênfase na caracterização taxonômica ca Brasiliensia, v.5, nº1. Rio Claro, e alimentação. Dissertação de mes- Associação Brasileira de Limno- trado (Biologia de água doce e logia, pp. 187-197. pesca interior). Manaus, Institu- Goulding, Michael. 1980. The fish- to Nacional de Pesquisas da Ama- es and the forest: explorations zônia/Fundação Universidade do in Amazonian natural history. Amazonas. Berkeley, University of Califor- Brasil. Instituto Brasileiro de Geo- nia Press. grafia e Estatística. Cidades. Dis- Goulding, Michael; Carvalho, Mí- ponível em: (acesso: 11 jun. 2014). management of the tambaqui Carvalho, Jair L.; Merona, Ber- (Colossoma macropomum, Charac- nard de. 1986. “Estudos sobre idae): an important Amazonian

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 491 food fish”. In: Revista Brasileira de Oliveira, Edinbergh C.; Araújo- Zoologia, v.1, nº2. Curitiba, Socie- -Lima, Carlos A.R.M. 1998. “Dis- dade Brasileira de Zoologia, pp. tribuição das larvas de Mylossoma 107-133. aureum e M. duriventre (Pisces: Hallwass, Gustavo; Lopes, Priscila Serrasalmidae) nas margens do F.; Juras, Anastácio A.; Silva- rio Solimões, AM”. In: Revista Bra- no, Renato A.M. 2013. “Fishers’ sileira de Biologia, v.58, nº3. São knowledge identifies environ- Carlos, Instituto Internacional mental changes and fish abun- de Ecologia, pp. 349-358. dance trends in impounded Pompeu, Paulo dos S.; Agostinho, tropical rivers”. In: Ecological Ap- Angelo A.; Pelicice, Fernando M. plications, v.23, nº2. Ithaca, Eco- 2012. “Existing and future chal- logical Society of America, pp. lenges: The concept of successful 392-407. fish passage in South America”. Huntington, Henry P. 2000. In: River Research and Applications, “Using traditional ecological v.28, nº4. Hoboken, pp. 504-512. knowledge in science: methods Ribeiro, Mauro C.L.B. 1983. As migra- and applications”. In: Ecological ções dos jaraquis (Pisces, Prochilo- Applications, v.10, nº5. Ithaca, dontidae) no Rio Negro, Amazonas, Ecological Society of America, Brasil. Dissertação de mestrado pp. 1270-1274. (Biologia de água doce e pesca in- Leite, Rosseval G.; Silva, José V.V.; terior). Manaus, Instituto Nacio- Freitas, Carlos E. 2006. “Abun- nal de Pesquisas da Amazônia. dância e distribuição das larvas Ribeiro, Mauro C.L.B.; Petrere Ju- de peixes no lago Catalão e no nior, Miguel. 1990. “Fisheries encontro dos rios Solimões e Ne- ecology and management of the gro, Amazonas, Brasil”. In: Acta jaraqui (Semaprochilodus taeniurus, Amazonica, v.36, nº4. Manaus, S. insignis) in central Amazonia”. Instituto Nacional de Pesquisas In: Regulated Rivers: Research and da Amazônia, pp. 557-562. Management, v.5. Londres, pp. McGoodwin, James R. 2002. Com- 195-215. prender las culturas de las comunida- Ruffino, Mauro L. (org.), 2004. A pes- des pesqueras: clave para la orde- ca e os recursos pesqueiros na Ama- nación pesquera y la seguridad zônia brasileira. Manaus, Ibama/ alimentaria. FAO Documento ProVárzea. técnico de pesca nº401. Roma, Silvano, Renato A.M.; Begossi, Al- FAO. pina. 2010. “What can be learned

492 Barthem, Ferreira e Goulding from fishers? An integrated sur- vey of fishers’ local ecological knowledge and bluefish (Poma- tomus saltatrix) biology on the Brazilian coast”. In: Hydrobiologia, v.637. Dordrecht, pp. 3-18. Silvano, Renato A.M.; MacCord, Priscila F.L.; Lima, Rodrigo V.; Be- gossi, Alpina. 2006. “When does this fish spawn? Fishermen’s lo- cal knowledge of migration and reproduction of Brazilian coastal fishes”. In: Environmental Biology of Fishes, v.76, nº2. Dordrecht, pp. 371-386.

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 493

Promessas de governança vs. realidade Consequências da implantação de megaempreendimentos no sudeste amazônico Juan Doblas

implantação de grandes pro- “bem maior” ignora o fato de que, jetos de infraestrutura no através de processos de retroali- oeste do Pará (bacias do Xin- mentação climática, as mudanças Agu e do Tapajós) provocou e provo- ambientais não mitigadas provoca- ca impactos que agora começamos das direta ou indiretamente pelos a poder medir de forma objetiva, megaempreendimentos vão impac- em termos de prejuízos ambientais, tar, no médio prazo, os próprios em- sociais e econômicos para a região e preendimentos, tornando-os menos os seus habitantes. A argumentação eficazes ou até inoperantes. Assim, que sustenta politicamente a rea- enormes somas de recursos do Esta- lização de tais empreendimentos do são destinadas a obras que, além passa obrigatoriamente pela exalta- de provocar impactos irreversíveis ção dos benefícios que o desenvolvi- sobre os ecossistemas florestais e mento da bacia amazônica pode tra- os seus habitantes, podem se tornar zer para o conjunto da nação e pelo deficitárias em poucos anos. planejamento de ações de previsão Os programas plurianuais Bra- e mitigação de danos ambientais, sil em Ação (1996), Avança Brasil que, até a data, têm sido ineficazes. (2000), Programa de Aceleração do Além de ser questionável na sua Crescimento - PAC (2007) e PAC 2 lógica interna (o desenvolvimento (2010) agrupam uma série de obras do país não passa obrigatoriamente de portes médio, grande e muito pelo aumento do seu Produto In- grande, sendo o objetivo fundamen- terno Bruto - PIB), o argumento do tal, mas não exclusivo, alavancar a

495 economia por meio da construção (LI) estão atrasadas, não foram ini- de estradas, portos e usinas de ge- ciadas, ou foram simplesmente ig- ração de energia (Fearnside, 2013). noradas (Instituto Socioambiental, Na região amazônica, os principais 2014). empreendimentos em desenvolvi- As consequências ambientais mento inseridos no PAC são a usina da heterodoxia e omissão dos em- hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, preendedores e órgãos de fiscaliza- em Altamira (Pará); o asfaltamen- ção no processo de licenciamento to da estrada BR-163 (Cuiabá-San- são sempre desastrosas. A percep- tarém) no seu trecho paraense; e a ção das fraquezas do processo por construção das UHEs de São Luiz do parte dos sujeitos locais interessa- Tapajós e Jatobá (Brasil, Ministério dos na extração ilegal de recursos do Planejamento, Orçamento e Ges- da floresta ou na sua remoção se faz tão, Comitê Gestor do Programa de de forma célere e direta, estimulan- Aceleração do Crescimento, 2014). do a realização de crimes ambien- O processo de licenciamento tais na certeza da impunidade e do desses empreendimentos é, de pra- valioso retorno econômico associa- xe, falho. Citando um caso ampla- do ao crime (Bowman et al., 2012). mente documentado, o processo de As consequências desse cená- licenciamento da UHE Belo Monte rio de omissão governamental são tem avançado sempre no limite da particularmente graves em uma legalidade, sendo objeto de 13 ações região onde reina um absoluto por parte do Ministério Público Fe- caos na questão fundiária (Torres, deral (MPF) (Bermann, 2013). A con- 2005; 2012). Os piores cenários de tinuidade da obra só foi assegurada governança imaginados nos anos por decisões e sentenças de juízes anteriores ao licenciamento do as- federais que ignoram os argumen- faltamento da BR-163 são hoje rea- tos técnicos e protelam os proces- lidade: o Plano BR-163 Sustentável sos, fazendo uso do dispositivo legal não saiu do papel; os assentamen- denominado suspensão de seguran- tos da reforma agrária foram aban- ça (SS), criado no período da ditadu- donados ou utilizados para abaste- ra militar. No primeiro semestre de cer o lobby madeireiro (Greenpeace, 2014, a poucos meses do pedido da 2007; Torres, 2012); iniciativas como licença de operação (LO) e, portan- o Programa Terra Legal incentivam to, do começo da geração de energia a ocupação ilegal de terras públicas pela UHE, diversas condicionantes em glebas federais (Cunha, 2009); as associadas à licença de instalação iniciativas do Estado para retomada

496 Doblas de terras públicas griladas foram O EIA/Rima foi alvo de diversas críti- abortadas (Idem; Torres, 2012) e a cas, sobretudo nos aspetos relativos agricultura familiar é preterida nas à avaliação dos impactos indiretos políticas públicas, em prol do agro- advindos do asfaltamento da rodo- negócio e de seu fortíssimo lobby. via (Fearnside, 2005). Neste texto serão analisados os Em relação a esses impactos in- impactos dos maiores empreendi- diretos, diversas modelagens de mentos em vias de implantação no mudanças no uso do solo espacial- oeste do Pará e serão discutidas as mente explícitas foram realizadas consequências desses impactos para para demonstrar as possíveis conse- a população. Será realizada igual- quências do asfaltamento da BR-163 mente uma avaliação dos efeitos em diversos cenários de governança desses impactos na própria eficácia (Fearnside et al., 2012). Os cenários dos empreendimentos planejados e apontavam consequências catastró- em execução. ficas para a região caso não fossem realizadas anteriormente ao asfal- Desmatamento associado ao tamento ações enérgicas destinadas asfaltamento da BR-163 a aumentar a governança (Idem). Como parte do programa Avan- Correspondendo às inquietudes da ça Brasil, o governo anunciou, em comunidade científica e às manifes- 2002, o asfaltamento dos 1.005 tações de diversos setores da socie- quilômetros da parte paraense da dade civil (ver Carta de Santarém, estrada BR-163 (Cuiabá-Santarém), 2004) – e pressionado pelo clamor com um valor inicial estimado de internacional que se seguiu ao assas- pouco menos de R$ 1 bilhão, reava- sinato da irmã Dorothy Stang, em liado em R$ 2,25 bilhões em 2013 Anapu, no começo de 2005 –, o go- (Brasil, Ministério do Planejamento, verno federal ampliou substancial- Orçamento e Gestão, Comitê Gestor mente o número de áreas protegidas do Programa de Aceleração do Cres- na região e, no ano de 2006, lançou o cimento, 2014). Em relação ao pro- Plano BR-163 Sustentável, que previa cesso de licenciamento ambiental, a criação e manejo do Distrito Flo- o Instituto Brasileiro do Meio Am- restal Sustentável da BR-163, apoio biente e dos Recursos Naturais Re- a “iniciativas de produção sustentá- nováveis (Ibama) aprovou em 2005 vel” e o “fortalecimento da socieda- o estudo de impacto ambiental e de civil e dos movimentos sociais”. o relatório de impacto ambiental Devido a inúmeros problemas (EIA/Rima) apresentado anos antes. envolvendo corrupção, abandono

Promessas de governança vs. realidade 497 de empreiteiras e desrespeito aos da UHE Belo Monte), delimitamos processos de licenciamento, o asfal- uma área de estudo de 400 quilôme- tamento – que, nas previsões mais tros, entre o rio Aruri, ao norte, e conservadoras, acabaria em 2008 a fronteira estadual Pará-Mato Gros- – avança muito lentamente, ape- so, ao sul (imagem 1). sar da inclusão do projeto no PAC Os resultados da pesquisa (ima- (Brasil, Ministério do Planejamen- gens 2 e 4) revelam que o modelo to, Orçamento e Gestão, Comitê analisado não conseguiu refletir Gestor do Programa de Aceleração o aumento de desmatamento na do Crescimento, 2014). De 2010 ao região a partir do anúncio da pavi- final de 2013, a superfície asfaltada mentação da BR-163 em 2002. As ta- passou de 155 a 680 quilômetros xas de desmatamento são, de 2002 a (Movimento Pró-Logística, 2013). 2010, superiores às taxas modeladas Apesar de a previsão oficial ser de nos dois cenários. que a conclusão do asfaltamento A explosão do desmatamento só se dará no fim do ano de 2015 entre 2002 e 2010 na região foi pro- (Brasil, Ministério do Planejamento, vavelmente produto da sinergia de Orçamento e Gestão, Comitê Gestor três fatores: i) anúncio do asfalta- do Programa de Aceleração do Cres- mento da rodovia; ii) redução, em cimento, 2014), a percepção local é 2003, da Terra Indígena (TI) Baú, de que a rodovia será praticamente produto da pressão de grupos locais finalizada no ano de 2014, o que se ligados à agropecuária e à grilagem reflete em uma corrida especulativa de terras públicas, atuantes até sem precedentes na região de Novo hoje; e iii) a falta de políticas públi- 1 1. Mauricio Torres, Progresso . cas antecipatórias, que só tiveram com. pess. Para determinar o nível de eficá- início em 2006, e ainda de forma cia das medidas governamentais na precária. região da BR-163, foram compara- O ano de 2010 assistiu a uma das as previsões dos cenários “com breve queda na intensidade do des- governança” e “sem governança” matamento, provavelmente, em re- do mais recente dos modelos reali- sultado de uma conjunção de medi- zados na região da BR-163, o Sima- das extraordinárias de fiscalização 2. Para mais informação sobre o modelo mazonia (Soares-Filho et al., 2006) e (Operação Boi Pirata II, vide Maia Simamazonia, cujos resultados estão disponíveis et al., 2011) e uma descida de preços consultar: . tuito de isolar os efeitos do asfalta- tanto, a partir de 2011, o ritmo de mento de outros efeitos (construção aumento é retomado, como se man-

498 Doblas Imagem 1. Situação, no estado do Pará, da região estudada na primeira parte do artigo (em branco). Elaboração: Juan Doblas, 2014. tém até momento atual, atingindo obras de pavimentação e à chega- um incremento de 250% em três da do Programa Terra Legal na re- anos e ameaçando ultrapassar, de gião, “legalizando” apropriações de novo, os níveis previstos no modelo terras públicas (Cunha, 2009). Uma Simamazonia. projeção baseada em trabalhos de Chama a atenção que a tendên- pesquisa atualmente desenvolvidos cia de aumento no desmatamen- na região permite prever o aumen- to na região nos últimos três anos to da taxa anual para o ano agrícola (2011-2013) é diametralmente opos- de 2014. ta à tendência de queda geral na Os pontos mais relevantes que bacia amazônica. Tal fato poderia podem ser extraídos da análise são: ser explicado pela especulação fun- diária associada à aceleração das

Promessas de governança vs. realidade 499 Imagem 2. Desmatamento acumulado detectado pelo sistema do Programa de Cálculo do Deflorestamento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Prodes/Inpe) e previsão realizada a partir de simulação (Soares-Filho et al., 2006) na região de estudo. Elaboração do autor, 2014.

Imagem 3. Desmatamento anual detectado pelo sistema Prodes/Inpe e previsão realizada a partir de simulação (Soares-Filho et al., 2006) na região de estudo. Elaboração do autor, 2014.

500 Doblas i) Os efeitos do empreendimento em muito superior ao aumento na ba- Imagem 4. Taxas termos de degradação ambiental cia amazônica (estimado pelo Ins- de variação de desmatamento anual no seu entorno não começam com tituto Nacional de Pesquisas Espa- correspondente aos a obra, começam com o anúncio da ciais - Inpe em 28%); gráficos anteriores. Elaboração do autor, obra; iv) Uma projeção baseada na tendên- 2014. ii) A execução das medidas planejadas cia observada e em trabalhos de pelo governo federal destinadas a pesquisa atualmente desenvolvi- aumentar a governança na região dos na região permite prever o só se mostrou efetiva a partir de aumento da taxa anual para o ano 2010, sendo os seus efeitos efême- agrícola de 2014. ros, devido à natureza reativa, e não estruturante, da maioria das Desmatamento e degradação ações realizadas; florestal em Belo Monte iii) No último ano, a iminência da Da mesma forma que no caso da BR- conclusão do asfaltamento e o es- 163, o processo de licenciamento da vaziamento das políticas públicas UHE Belo Monte ignorou, em um na região potencializaram o efeito primeiro momento, o desmatamen- da flexibilização em nível nacional to indireto derivado da implantação da legislação ambiental, e provoca- da obra. Já o parecer nº06/2010 do ram uma variação de 90% na taxa Ibama, de 26 de janeiro de 2010, de desmatamento de 2012 a 2013, obrigou o empreendedor a apresen-

Promessas de governança vs. realidade 501 tar “projeções da escala e da distri- drados de floresta em 20 anos (Idem). buição do risco de desmatamento e No relatório são propostas medidas propostas de medidas para mitigar para a mitigação do desmatamento: tal risco” (Barreto et al., 2011). Na criação e implementação de áreas sequência, o consórcio construtor protegidas (foi proposto um total de de Belo Monte encomendou ao Ins- 14.608 quilômetros quadrados pro- tituto do Homem e Meio Ambiente tegidos) e o reforço da fiscalização Imagem 5. Densidade de desmatamento no da Amazônia (Imazon) a realização e do licenciamento ambiental de leste amazônico em de um estudo sobre as consequên- imóveis rurais. Tais medidas pode- 2011, calculada a partir de dados do sistema cias da implantação da UHE em ter- riam evitar pelo menos 79% do des- Prodes/Inpe. A mancha mos de desmatamento. O relatório matamento previsto. vermelha, centralizada resultante desse estudo especifica As condicionantes ligadas à li- na Volta Grande do Xingu, representa que, em um cenário de falta de go- cença prévia (LP) do empreendi- o desmatamento vernança e de destinação de terras mento acolhem as sugestões citadas associado à concessão de licença prévia à devolutas no entorno da UHE, a im- e incluem a obrigação da criação de usina hidrelétrica de plantação do empreendimento po- uma ou várias unidades de conser- Belo Monte. Elaboração deria provocar o desmatamento de vação (UCs) de proteção integral por do autor, 2014. entre 800 e 5.316 quilômetros qua- parte do poder público. Porém, até a conclusão deste texto, unicamen- te uma pequena reserva (Tabuleiro do Embaubal) estava em proces- so de criação por parte do estado do Pará, sendo que a proteção do resto das áreas recomendadas nos estudos ainda não havia entrado efetivamente na pauta dos órgãos envolvidos. Outras ações de cunho socioambiental destinadas a miti- gar os efeitos da construção da UHE estão atrasadas ou não foram imple- mentadas (ver Instituto Socioam- biental, 2014). Avaliaremos agora os efeitos da UHE na cobertura florestal mensu- rados sobre imagens de satélite. Em relação ao desmatamento, a conces- são da LP para o empreendimento,

502 Doblas em 2010, teve um efeito imediato cado situado majoritariamente na 3 na integridade das terras: o maior ilegalidade . 3. O leitor interessado foco de desmatamento da região Para além das suposições, é pos- poderá obter mais informações sobre amazônica no ano agrícola de 2011 sível, mediante técnicas de análise a (não) destinação (agosto 2010-julho 2011) situou-se espacial utilizando imagens de sa- da madeira de no entorno imediato da futura obra télite, comprovar esses impactos. Belo Monte nos relatórios semestrais (imagem 5). Com efeito, e conforme análise es- elaborados pelo órgão Após esse “surto” de desmata- pacial realizada pelo autor a partir fiscalizador, o Ibama. Tais relatórios podem mento, os índices caíram, refletin- de dados do Sistema de Monitora- ser descarregados no do um momento de consolidação mento da Exploração Madeireira seguinte endereço eletrônico: . mente a região, atraindo migrantes sob exploração ilegal de madeira no e iniciando um ciclo de especulação entorno ampliado da usina. A noção imobiliária e superaquecimento da de entorno ampliado foi definida economia local (Oliveira, 2011). empiricamente com um buffer de A partir desse momento e até o 300 quilômetros ao redor do cantei- presente, o principal impacto am- ro principal de obras da UHE. Essa biental da UHE é o aumento da área representa 23% da superfície degradação florestal por extração do estado e entende-se que consti- ilegal de madeira. A própria obra tui uma estimativa conservadora do da UHE constitui-se em uma for- território sob a influência efetiva do 4. O aumento regional 4 tíssima consumidora de madeira, empreendimento . na demanda por o que é paradoxal, levando-se em A quantidade relativa de área de- produtos madeireiros para abastecer a conta a enorme quantidade de ma- gradada na região assim delimitada “bolha” imobiliária e deira retirada para instalar os can- oscila, desde 2007, em torno de 30% industrial de Altamira manifesta-se em teiros da UHE e os reservatórios. A do total do estado, consistente com a municípios distantes falta de planejamento levou o con- relação regional entre os diferentes até 500 quilômetros sórcio construtor a armazenar de polos madeireiros. Porém, a partir dali, como Trairão, e é extremamente forma precária milhares de metros de 2011 essa relação começa a se al- significativo em todo cúbicos de toras de alta e média terar, para, em 2012, ter uma rever- o âmbito municipal de Uruará, Anapu e Pacajá, qualidade, sem lhes dar qualquer são completa: a região do entorno da cujas sedes distam, destinação, descumprindo, assim, UHE, ocupando 23% do estado, con- respectivamente, 191, os compromissos assumidos junto centra 56% de toda a exploração ma- 177 e 216 quilômetros da sede municipal de ao Ibama e incentivando um mer- deireira ilegal paraense (imagem 6). Altamira.

Promessas de governança vs. realidade 503 Imagem 6 - Evolução da Em conclusão, e após análise dos nança, a degradação florestal au- superfície de floresta primeiros anos da construção de menta brutalmente. Os índices submetida a exploração madeireira ilegal no Belo Monte, podemos estabelecer de desmatamento não aumen- entorno ampliado da uma sequência de eventos envolven- tam significativamente nesta usina hidrelétrica de Belo Monte, a partir do degradação ambiental no entor- etapa; de dados do Sistema no ampliado do empreendimento: • Finalização da obra (outorga da de Monitoramento da LO): uma parte dos trabalha- Exploração Madeireira do Instituto do Homem • Imediatamente antes da obra dores desmobilizados migra a e Meio Ambiente da (concessão da LP): desmatamen- outras regiões. O resto dos tra- Amazônia (Monteiro et al., 2013). Elaboração do to inicial, após a confirmação da balhadores empregados direta autor, 2014. realização do empreendimento, e indiretamente no empreendi- de pequenos e médios produto- mento, principalmente os tra- res visando assegurar a posse e a balhadores menos qualificados, legitimidade (na percepção local, procura se estabelecer na região. não na legalidade estabelecida) Sem uma política estruturada de lotes de terras vizinhas, espe- de reforma agrária, os trabalha- rando uma forte valorização das dores em busca de terras vão se mesmas; instalar nas estradas vicinais e • Durante a obra (a partir da ou- ocupar áreas de floresta já de- torga da LI): forte aumento da gradadas, aumentando assim demanda por recursos naturais os índices de desmatamento (carne, madeira) pressiona o regionais. território. Na ausência de gover-

504 Doblas Consequências do desmatamento na dinâmica climática regional O pesquisador Jose Marengo, do Inpe, batizou como “rios voadores” as correntes oceânicas que forne- cem água para o sul do continente sul-americano após serem “carre- gadas” na floresta amazônica e de- fletidas nos Andes. Antônio Nobre, também do Inpe, desenvolveu o tema exaustivamente, tendo sido um importante protagonista na di- vulgação da noção e importância dos “rios voadores” (imagem 7). O estudo dos “rios voadores” de- termina a alteração do regime de chuvas na região centro-oeste do Brasil como consequência da perda de superfície de florestas na Ama- zônia. Vale notar que a citada alte- ração também foi constatada por tações nas regiões tropicais. Imagem 7. Exemplo populações tradicionais, que utili- Recentemente, uma equipe de trajetória de “rio voador”: uma trajetória zam referências astronômicas para multidisciplinar de pesquisadores atmosférica entre o determinar com precisão datas ade- realizou uma pesquisa inovadora oceano Atlântico, a floresta amazônica tentando quantificar os efeitos do quadas para realizar diversos tipos (ponto de recarga em de manejo na floresta (Schwartz- desmatamento na região amazôni- umidade) e o Pantanal. man et al., 2013). ca sobre a vazão nos rios da bacia e, Fonte: . associados ao desenvolvimento dos projetados, em construção e/ou já modelos do Painel Intergoverna- operativos (Stickler et al., 2013). mental sobre Mudança do Clima A principal conclusão do estudo é (IPCC), permitem que se obtenha que o desmatamento no nível da ba- atualmente uma ideia quantitativa cia influencia negativamente o fluxo bastante aproximada dos mecanis- d’água na bacia do rio Xingu e, por mos de interação biosfera-atmosfe- extensão, de todos os afluentes com ra que regulam os ciclos de precipi- forte componente sazonal no seu

Promessas de governança vs. realidade 505 na produção prevista da UHE em um cenário (certamente provável, ver Maeda et al., 2010) de 40% de des- matamento da Amazônia. Terminaremos esta parte do ar- tigo citando Stickler, sobre o rio Tapajós:

A probabilidade de que o desmata- mento regional provoque uma dimi- nuição das chuvas, de modo a redu- zir a geração de energia, é maior nas regiões com grande sazonalidade e onde o desmatamento deve aumen- tar […]. Por exemplo, na bacia amazô- nica, o potencial gerador das usinas hi- drelétricas planejadas para o rio Tapajós pode ser afetado pelo asfaltamento da es- Imagem 8. Alteração no regime hídrico (é o caso do rio Tapa- trada BR-163 […] (Stickler et al., 2013: regime de chuvas, vazão jós). Quiçá a afirmação mais impor- e produção hidrelétrica 4, tradução livre, grifos nossos)5. no rio Xingu devido tante contida no artigo é que a queda ao desmatamento de vazão devida ao desmatamento regio- (traduzido, pelo autor, nal é muito superior ao ganho local de- Considerações finais de Stickler et al., 2013). As ações governamentais destina- vido à diminuição da evapotranspiração das a mitigar os efeitos negativos 5. No original, em derivada da diminuição do dossel flores- dos megaempreendimentos têm inglês: “The potential of tal (Ibid.: 2). Essa afirmação desmon- regional deforestation sido insuficientes para conter a ta um dos principais argumentos to inhibit rainfall degradação socioambiental das re- sufficiently to constrain técnicos esgrimidos para minimizar energy generation is giões afetadas. As ações preparató- os perigos do desmatamento sobre greatest where rainfall rias, que deveriam anteceder o pró- seasonality is already os rios amazônicos e questiona se- prio anúncio do empreendimento, pronounced and riamente o futuro dos empreendi- where deforestation is não são realizadas, sendo prioriza- expected to be greatest mentos hidrelétricos na bacia. do o avanço no processo de licen- (e.g., where new roads No estudo de Stickler et al., os re- will stimulate forest ciamento e a superação de barrei- sultados dos modelos climáticos e clearing). For example, ras legais por meios muitas vezes in the AB, energy de uso da terra são aplicados sobre autoritários. As consequências da generation potential a produtividade da UHE Belo Monte of hydropower plants implantação do complexo hidrelé- under consideration for (imagem 8). O grupo de pesquisado- trico do Tapajós (CHT) devem ser the Tapajós River res constatou uma queda de até 40%

506 Doblas similares ao caso do Xingu: espe- Bermann, Célio. 2013. “A resistên- may be affected by the culação imobiliária no meio rural, cia às obras hidrelétricas na paving of the BR-163 highway that runs que ocasiona um surto de desmata- Amazônia e a fragilização do along it”. mento; degradação florestal; e, fi- Ministério Público Federal”. In: nalmente, desmatamento massivo Novos Cadernos NAEA, v.16, nº2. nos municípios afetados pela cons- Belém, Universidade Federal do trução das UHEs. Esse desmatamen- Pará, pp. 97-120. to provoca a diminuição, em nível Bowman, Maria S.; Soares-Filho, regional, das precipitações que Britaldo S.; Merrye, Frank D.; alimentam rios, UHEs e lavouras. Nepstad, Daniel C.; Rodrigues, Assim, a falta de uma visão estra- Hermann; Almeida, Oriana T. tégica de longo prazo para a bacia 2012. “Persistence of cattle ran- amazônica, que integre os efeitos ching in the Brazilian Amazon: A do desmatamento e das mudanças spatial analysis of the rationale climáticas no ambiente, provocará for beef production”. In: Land Use uma perda irreversível da cobertu- Policy, v.29. Elsevier, pp. 558–568. ra florestal e, paradoxalmente, a Brasil. Ministério do Planejamen- perda da lucratividade dos próprios to, Orçamento e Gestão. Comitê megaempreendimentos responsá- Gestor do Programa de Acelera- veis pela degradação. Só um giro ção do Crescimento. 2014. Nono copernicano na política energética balanço do PAC 2: 2011-2014. do país poderá evitar uma catástro- Disponível em: (acesso: 21 abr. 2014). [artigo concluído em julho de 2014] Carta de Santarém. 2004. Santa- rém, 31 mar. Disponível em: Referências bibliográficas Amintas; Martins, Heron; Silva, (acesso: 30 abr. 2014). Daniel; Souza Junior, Carlos; Cunha, Cândido Neto da. 2009. Sales, Márcio; Feitosa, Tarcísio. “‘Pintou uma chance legal’: o 2011. Risco de desmatamento asso- programa ‘Terra Legal’ no inte- ciado à hidrelétrica de Belo Monte. rior dos projetos integrados de Belém, Instituto do Homem e colonização e do polígono desa- Meio Ambiente da Amazônia. propriado de Altamira, no Pará”.

Promessas de governança vs. realidade 507 In: Agrária, nº10/11. São Paulo, greenpeacebr_070821_amazo- Laboratório de Geografia Agrária nia_relatorio_assentamentos_in- da Universidade de São Paulo, cra_port_v2.pdf> (acesso: 21 abr. pp. 20-56. 2014). Fearnside, Philip M. 2005. “Carga Instituto Socioambiental. 2014. pesada: o custo ambiental de A dívida de Belo Monte. Altamira. asfaltar um corredor de soja na Disponível em: (acesso: 30 abr. Desenvolvimento Científico e 2014). Tecnológico, pp. 397-423. Maeda, Eduardo E.; Almeida, Cláu- ___. 2013. “The evolving context of dia M.; Ximenes, Arimatéa C.; Brazil’s environmental policies Formaggio, Antonio R.; Shima- in Amazonia”. In: Novos Cadernos bukuro, Yosio E.; Pellikkaa, NAEA, v.16, nº2. Belém, Universi- Petri. 2010. “Dynamic modeling dade Federal do Pará, pp. 9-25. of forest conversion: simulation Fearnside, Philip M.; Laurance, of past and future scenarios of William F.; Cochrane, Mark rural activities expansion in the A.; Bergen, Scott; Sampaio, Pa- fringes of the Xingu National tricia D.; Barber, Christopher; Park, Brazilian Amazon”. In: In- D’Angelo, Sammya; Fernandes, ternational Journal of Applied Earth Tito. 2012. “O futuro da Ama- Observation and Geoinformation, zônia: modelos para prever as v.13, n.3. Elsevier, pp. 435-446. consequências da infraestrutura Maia, Heliandro; Hargrave, Jorge; futura nos planos plurianuais”. Gómez, José Javier; Röper, Moni- In: Novos Cadernos NAEA, v.15, nº1. ka. 2011. Avaliação do Plano de Belém, Universidade Federal do Ação para Prevenção e Controle Pará, pp. 25-52. do Desmatamento na Amazô- Greenpeace. 2007. Assentamentos nia Legal (PPCDAm) (2007-2010). de papel, madeira de lei: relató- Brasil, Instituto de Pesquisa Eco- rio denúncia: parceria entre In- nômica Aplicada/Comissão Eco- cra e madeireiros ameaça a Ama- nômica para a América Latina zônia. Disponível em:

508 Doblas repositorio.ipea.gov.br/bits- ri; Fonseca, Marisa G.; Doblas, tream/11058/885/1/Resultados%20 Juan; Zimmerman, Barbara; avaliacao%20PPCDAm_semi- Junqueira, Paulo; Jerozolims- nario%20avaliacao_JH03x.pdf> ki, Adriano; Salazar, Marcelo; (acesso: 21 abr. 2014). Junqueira, Rodrigo P.; Torres, Monteiro, André; Cardoso, Dal- Mauricio. 2013. “The natural and ton; Conrado, Denis; Veríssi- social history of the indigenous mo, Adalberto; Souza Jr., Carlos. lands and protected areas cor- 2013. Trasparência Manejo Florestal: ridor of the Xingu River basin”. Estado do Pará: 2011 a 2012. Be- In: Philosophical Transactions of the lém, Instituto do Homem e Meio Royal Society. Biological Sciences, Ambiente da Amazônia. Dispo- v.368, nº1619. Londres, Royal So- nível em: (acesso: 20 Cerqueira, Gustavo C.; Garcia, abr. 2014). Ricardo A.; Ramos, Claudia A.; Movimento Pró-Logística. 2013. Voll, Eliane; Mcdonald, Alice; Relatório: situação da BR-163. Lefebvre, Paul; Schlesinger, [Cuiabá]. Disponível em: (acesso: 21 abr. 2014). Daniel C.; Mcgrath, David G.; Oliveira, Mariana. 2011. “Obra de Dias, Livia C.P.; Rodrigues, Her- hidrelétrica faz triplicar pre- mann O.; Soares-Filho, Britaldo ço de aluguel na região de Belo S. 2013. “Dependence of hydro- Monte”. In: G1. Altamira. Dispo- power energy generation on for- nível em: (acesso: 30 abr. v.110, nº23. Washington, D.C., 2014). National Academy of Sciences, Schwartzman, Stephan; Villas pp. 9601-9606. Boas, André; Ono, Katia Yuka- Torres, Mauricio. 2005. “Frontei-

Promessas de governança vs. realidade 509 ra, um eco sem fim”. In: Torres, ___. 2012. Terra privada, vida devoluta: Mauricio (org.). Amazônia revela- ordenamento fundiário e desti- da: os descaminhos ao longo da nação de terras públicas no oeste BR-163. Brasília, Conselho Nacio- do Pará. Tese de doutorado (Geo- nal de Desenvolvimento Científi- grafia humana). São Paulo, Uni- co e Tecnológico, pp. 271-319. versidade de São Paulo.

510 Doblas Crédito de carbono para usinas hidrelétricas como fonte de emissões de gases de efeito estufa O exemplo da usina hidrelétrica de Teles Pires1 Philip M. Fearnside

1. As pesquisas do autor são financiadas réditos de carbono são conce- te de “ar quente”, isto é, reduções exclusivamente por didos para usinas hidrelétricas certificadas de emissões (CERs) que fontes acadêmicas: (UHE), no âmbito do Meca- permitem que os países compra- Conselho Nacional de Desenvolvimento Cnismo de Desenvolvimento Limpo dores emitam gases de efeito estu- Científico e Tecnológico (MDL) do Protocolo de Quioto, sob fa sem que o projeto de mitigação (CNPq) (processos nº305880/2007-1, as premissas de que: i) as barragens resulte em qualquer benefício real nº304020/2010-9, não seriam construídas sem finan- para o clima. nº573810/2008-7 e ciamento do MDL; e ii) as barragens Até 1 de julho de 2014, o conse- nº575853/2008-5) e Instituto Nacional de apresentariam emissões mínimas lho executivo do MDL havia apro- Pesquisas da Amazônia ao longo da duração dos projetos, vado (registrado) 2.041 projetos de (Inpa) (PRJ13.03). Este artigo é uma tradução de sete a dez anos, em compara- crédito para UHEs em todo o mun- atualizada de Fearnside, ção com a eletricidade gerada por do, totalizando 262,7 milhões de to- 2013a. Agradeço ao combustíveis fósseis. Ambas as su- neladas de dióxido de carbono equi- P.M.L.A. Graça pelos comentários. posições são falsas, especialmente valente (CO2-eq) ou 71,7 milhões de 2 2. Cf. dados de julho de no caso das barragens tropicais, toneladas de carbono . Os projetos 2014 do Programa das como as previstas na Amazônia. A estendem-se por sete anos (com pos- Nações Unidas para o barragem de Teles Pires, atualmen- sibilidade de renovação) ou por um Meio Ambiente (United Nations Environment te em construção no Pará, fornece período único de dez anos (como no Programme. CDM/ um exemplo concreto, indicando caso da proposta da barragem de JI Pipeline Analysis and Database. a necessidade de reforma da regu- Teles Pires). O pipeline, isto é, os pro- Disponível em: créditos para UHEs. Tais créditos tro junto ao MDL, é muito maior – acesso: 30 jul. representam uma importante fon- (tabela 1). O total de 365,8 milhões 2014).

511 de toneladas de dióxido de carbono MDL depois que os investimentos

- CO2 (90,3 milhões de toneladas de para a construção do projeto já es- carbono) no pipeline global em 2012 tão assegurados, quando a represa quase equivale à emissão atual de está em construção (como no caso combustíveis fósseis pelo Brasil, de da UHE Teles Pires) ou, às vezes, pouco mais de 100 milhões de tone- mesmo após a barragem estar cons- ladas de carbono por ano. truída. O Plano Decenal de Expan- As barragens ocasionam uma são de Energia (PDE) 2022, do Mi- larga gama de impactos ambientais nistério de Minas e Energia (MME), e sociais (World Commission on indica, além de Jirau (enchida em Dams, 2000). Há também fortes indí- 2013), 18 barragens com capacidade cios de que praticamente nenhuma instalada superior a 30 megawatts das supostas reduções de emissões a serem concluídas até 2022 na seja adicional (ou seja, as barragens Amazônia Legal brasileira (Brasil, seriam construídas de qualquer ma- Ministério de Minas e Energia, Em- neira, sem financiamento do MDL). presa de Pesquisa Energética, 2013). Praticamente todos os projetos de Desde 2006, o Brasil define barra- barragens só solicitam o crédito do gens “grandes” como superiores a

Tabela 1. Pipeline de usinas hidrelétricas no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo - MDL (projetos registrados ou buscando registros)

País Total de Capacidade Dióxido de carbono equivalente % do total de 1 2 3 projetos instalada - CO2-eq (média anual em CO2-eq (megawatts)1 milhões de toneladas)3 China 1.366 59.225 270,2 73,9 Brasil 107 12.531 13,2 3,6 Outros4 803 47.673 82,4 22,5 Total 2.276 119.429 342,8 100

Elaboração do autor, com dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. United Nations Environment Programme. CDM/JI Pipeline Analysis and Database. Disponível em: (acesso: 30 jul. 2014). A tabela inclui tanto projetos “grandes” (definidos pelo MDL como empreendimentos com capacidade instalada superior a 15 megawatts) quanto “pequenos” (capacidade instalada igual ou inferior a 15 megawatts). 1. Dados referentes a 1 jul. 2014. 2. 1 tonelada de CO2-eq = 1 redução certificada de emissões (CER). 3. Dados referentes ao ano de 2012. 4. Países sem limites às suas emissões no âmbito do Protocolo de Quioto.

512 Fearnside 30 megawatts (a maioria é muito Grosso. A licitação para escolher maior que isso), enquanto o MDL o consórcio de empresas que vão define barragens “grandes” como construir a barragem e vender a superiores a 15 megawatts, ao passo energia elétrica foi realizada em 17 que a Comissão Internacional das de dezembro de 2010 – desde 2006, Grandes Barragens (Icold) define-as barragens do Brasil são oferecidos como superiores a 15 metros de al- através de licitação sobre o preço a tura acima do leito do rio. Caso os ser cobrado pela eletricidade, sendo regulamentos atuais do MDL conti- vencedora a empresa que oferecer nuem inalterados, a magnitude dos o menor preço. Os contratos foram planos brasileiros de construção assinados em 7 de junho de 2011 e de barragens proporcionará uma a construção começou oficialmente grande oportunidade para reivin- em 30 de outubro do mesmo ano dicar mais crédito de mitigação. O (Brasil, Ministério do Planejamento, Plano Nacional sobre Mudança do Orçamento e Gestão, Comitê Ges- Clima implica que essa é, de fato, a tor do Programa de Aceleração do expectativa do governo brasileiro, Crescimento, 2011: 82). O objetivo embora isso não signifique que tais do presente trabalho é examinar a barragens não seriam construídas proposta de crédito da UHE Teles sem crédito do MDL (Brasil, Comitê Pires como um exemplo dos proble- Interministerial sobre Mudança do mas generalizados que afetam bar- Clima, 2008). ragens no MDL. A primeira grande barragem a solicitar crédito do MDL na região O projeto de carbono da UHE Teles amazônica brasileira foi a UHE Dar- Pires danelos, no estado de Mato Grosso, O documento de concepção do pro- seguida pelas UHEs Teles Pires, Ji- jeto (PDD) da UHE Teles Pires é re- rau e Santo Antônio, as duas últi- velador, tanto das falhas do atual mas no rio Madeira, em Rondônia sistema do MDL, como das contradi- (Fearnside, 2013b). A UHE Teles Pi- ções entre a preocupação declarada res, de 1.820 megawatts, encontra- do governo brasileiro em relação às -se em construção no rio Teles Pires, mudanças climáticas e o seu envol- afluente do rio Tapajós, que, por vimento na exploração máxima de sua vez, é afluente do Amazonas. lacunas na regulamentação do MDL O reservatório, de 135 quilômetros (Companhia Hidrelétrica Teles Pires quadrados, situa-se na fronteira & Ecopart Assessoria em Negócios entre os estados do Pará e Mato Empresariais Ltda., 2011). O docu-

Crédito de carbono para usinas hidrelétricas 513 mento começa por afirmar que “o Apesar de o documento usar zero projeto vai fazer uso dos recursos como emissão do projeto no cálculo hídricos do rio Teles Pires […] a fim dos benefícios climáticos, uma tabe- de gerar eletricidade livre de emis- la incluída no mesmo indica que a sões gases de efeito estufa (GEE)” barragem produzirá metano (CH4), (Ibid.: 3). Nenhuma literatura é cita- ainda que não se mencione em que da aqui ou em qualquer outra passa- quantidade (Companhia Hidrelétri- gem do documento para comprovar ca Teles Pires & Ecopart Assessoria a alegação de que UHEs amazônicas em Negócios Empresariais Ltda., como Teles Pires são livres de emis- 2011: 10, tabela 3). A mesma tabela sões. Em vez disso, os cálculos que também afirma que as emissões de se encontram mais adiante no docu- CO2 e óxido nitroso (N2O) são iguais mento dependem de uma cláusula a zero, cada uma delas sendo ape- processual do MDL relacionada à nas uma “fonte de emissão secun- densidade energética da barragem dária” (Idem). Infelizmente, ambos como justificativa para a utilização, os gases são produzidos também. nos cálculos, de um valor igual a A criação do reservatório matará as zero para as emissões do projeto. árvores na área inundada; essas, ge- Infelizmente, o fato de que as barra- ralmente, permanecem projetadas gens na Amazônia produzem gran- para fora da água, decompondo-se des quantidades de gases de efeito a madeira na presença de oxigênio, estufa, especialmente durante os produzindo CO2. As quantidades primeiros dez anos de operação (o são bastante consideráveis ao longo horizonte de tempo para o atual de dez anos, horizonte do atual pro- projeto do MDL), tem sido demons- jeto de MDL, como demonstram as trado em diversos estudos na litera- emissões calculadas a partir dessa tura científica (e.g. Galy-Lacaux et al., fonte em reservatórios amazônicos 1997, 1999; Fearnside, 2002b, 2004, existentes (Fearnside, 1995). Dióxi- 2005a, 2005b, 2006b, 2008, 2009; do de carbono também será emiti- Delmas et al., 2004; Abril et al., 2005; do pelo desmatamento estimulado Guérin et al., 2006, 2008; Kemenes perto da barragem e pelo desmata- et al., 2008, 2011; Gunkel, 2009; Pue- mento do cerrado, mais a montan- yo & Fearnside, 2011). A conclusão te, a fim de produzir a soja que se geral de que represas tropicais emi- pretende transportar na hidrovia tem quantidades significativas de Teles-Pires/Tapajós, de que essa gases de efeito estufa em seus pri- barragem e suas eclusas formam meiros dez anos é clara e robusta. parte (Fearnside, 2001, 2002a; Milli-

514 Fearnside kan, 2012). Óxido nitroso também é da corrente, maior a emissão que emitido por reservatórios tropicais, resultará da água que passa pelas como demonstrado na Guiana Fran- turbinas e vertedouros. As turbinas cesa (Guérin et al., 2008). e vertedouros são, de fato, a prin-

A proposta aproveita um regula- cipal fonte de emissão de CH4 na mento do MDL que permite que se maioria das represas amazônicas reivindique a emissão zero se a den- (e.g. Fearnside, 2002b, 2005a, 2005b, sidade energética for superior a dez 2009; Abril et al., 2005). A água que watts por metro quadrado: passa pelas turbinas e vertedouros provém, normalmente, de uma pro- emissões do reservatório de água são fundidade inferior ao termoclino definidas como zero se a densidade que separa as camadas de água no energética do projeto for maior que reservatório. A camada superficial 10 W/m2 [watts por metro quadrado]. (hipolímnion) é praticamente des- A densidade energética do projeto é provida de oxigênio e a decomposi- de 19,18 W/m², assim, por definição, ção da matéria orgânica, por conse-

as emissões do reservatório de água guinte, gera CH4, em vez de CO2.

são zero (Companhia Hidrelétrica Cada tonelada de CH4 tem o im- Teles Pires & Ecopart Assessoria em pacto sobre o aquecimento global

Negócios Empresariais Ltda., 2011: de 34 toneladas de CO2 ao longo de 27, tradução livre do autor). um período de 100 anos, de acordo com o quinto relatório do Painel Infelizmente, ter uma elevada Intergovernamental sobre Mudan- densidade energética não resulta, ças Climáticas (IPCC), que incluiu de fato, em emissões zero. A eleva- retroalimentações entre o carbo- da densidade energética significa no e o clima, que não haviam sido que a área do reservatório é peque- consideradas nos valores anteriores na em relação à capacidade instala- (Myhre et al., 2013: 714). Além desse da. A pequena área significa que as valor para o horizonte de 100 anos, emissões através da superfície do o quinto relatório incluiu cálculos reservatório (a partir de ebulição para um horizonte de tempo de 20 e difusão) serão menores que em anos, indicando um valor de 86 para um reservatório grande, mas não o impacto de cada tonelada de CH4 serão zero. A capacidade instalada, comparada com uma tonelada de no entanto, reflete a quantidade de CO2. Um horizonte de 20 anos refle- água disponível no rio, e isso tem o te melhor o curto prazo que temos efeito oposto: quanto maior o fluxo para controlar o aquecimento glo-

Crédito de carbono para usinas hidrelétricas 515 bal, com o intuito de se evitar con- sido feito em vários estudos que sequências muito mais graves, em afirmam apenas pequenas emissões comparação com os valores para o de “desgaseificação” nas turbinas horizonte de 100 anos, que vem sen- (e.g. Santos et al., 2008; Ometto et al., do usado pelo Protocolo de Quioto. 2011; ver dados comparativos em

Portanto, o impacto do CH4 produ- Kemenes et al., 2011). zido por UHEs é até quatro vezes O PDD calcula a área de reserva- maior que o impacto indicado por tório com o propósito de mensurar cálculos feitos usando o valor de 21, a densidade energética, que repre- adotado pelo Protocolo de Quioto senta a capacidade instalada, em (até o final de 2012), com base no watts, dividida pela área, em me- segundo relatório do IPCC (Schimel tros quadrados. No PDD, lê-se: et al., 1996); 3,4 vezes o impacto cor- respondente ao valor de 25, adotado a área do reservatório do projeto no para o período 2013-2017, com base nível de água máximo normal de no quarto relatório (Forster et al., 220 metros é 135,4654 quilômetros 2007); mais de 30 vezes o impacto quadrados, dos quais 40,6 quilôme- indicado por cálculos que conside- tros quadrados são parte do leito ram apenas a emissão de carbono, normal do rio e, portanto, o aumen- sem levar em conta o efeito de as to da área inundada é de 94,8654 emissões serem em forma de CH4. quilômetros quadrados (Companhia A água com elevadas concentra- Hidrelétrica Teles Pires & Ecopart

ções de CH4 (sob pressão na parte Assessoria em Negócios Empresa- inferior do reservatório) é liberada riais Ltda., 2011: 36, tradução livre para a atmosfera à jusante da bar- do autor). ragem, e a maior parte do mesmo surge rapidamente na forma de bo- O pressuposto é que a água que lhas. Note-se que o único meio váli- fica sobre o “leito normal do rio” do para medir essas emissões é ob- não esteja emitindo CH4. Infeliz- servar a diferença na concentração mente, essa água também emite de CH4 na água acima da barragem CH4, como mostrado por estudos (na profundidade das turbinas) e no que mediram fluxos em vários pon- rio abaixo da barragem. Não é pos- tos da superfície em reservatórios sível captar essa emissão com câma- amazônicos (e.g. Abril et al., 2005; ras flutuantes, para medir o fluxo Rosa et al., 1997; Duchemin et al., através da superfície do rio a algu- 1998-2000; Kemenes et al., 2007). A ma distância a jusante, como tem regra adotada pelo MDL, que per-

516 Fearnside mite que o leito do rio não seja de toneladas de carbono. Esse “ar considerado, parece basear-se na quente” contribuirá para uma mu- suposição de que o rio natural esta- dança climática maior, permitindo ria emitindo a mesma quantidade que os países que comprarem cré- de CH4. No entanto, as emissões de dito de carbono emitam mais gases.

CH4 a partir de um rio de fluxo livre O dinheiro pago por esses créditos são muito mais baixas que as de re- também enfraquece os esforços glo- servatórios. Rios normalmente não bais para conter a mudança climá- se estratificam, especialmente nos tica, por tirar fundos dos recursos trechos de correnteza rápida, que sempre insuficientes disponíveis são apropriados para a construção para a mitigação. O Brasil, como de UHEs. um dos países previstos para sofrer O PDD calcula um benefício total mais com as mudanças climáticas de 24.973.637 toneladas de CO2-eq projetadas, perderá com tal arran- ao longo de dez anos, com base na jo. As quantidades de carbono en- brecha de um valor de zero ser per- volvidas são significativas. Como mitido para as emissões de reserva- uma indicação da escala, cálculos tório, caso a densidade energética apontam que o conhecido progra- seja superior a dez watts por metro ma brasileiro para a substituição de quadrado (Companhia Hidrelétrica gasolina por etanol em automóveis Teles Pires & Ecopart Assessoria em de passageiros na década de 1990 Negócios Empresariais Ltda., 2011: teria deslocado 9,45 milhões de to- 34, tabela 13). Os proponentes afir- neladas de carbono por ano (Reid & mam que, “portanto, uma vez que Goldemberg, 1998). a densidade energética do projeto é Sem citar quaisquer estudos de acima de dez watts por metro qua- apoio, o PDD afirma que “regras drado, não é necessário calcular as ambientais e políticas do processo emissões do projeto” (Idem, tradu- de licenciamento são muito rígi- ção livre do autor). Embora tal cál- das e seguem as melhores práticas culo possa não ser “necessário”, os internacionais” (Ibid.: 41, tradução defensores do projeto poderiam ter livre do autor). A afirmação impli- optado por fazê-lo com base na me- ca que os projetos de barragens lhor evidência disponível. no Brasil teriam impactos ambien- As quase 25 milhões de tonela- tais e sociais mínimos, de modo a das de CO2-eq que, alegadamente, atrair os países que comprariam os seriam substituídas ao longo de créditos do MDL. No entanto, exis- dez anos representam 6,8 milhões te uma literatura substancial sobre

Crédito de carbono para usinas hidrelétricas 517 as deficiências no sistema de licen- supor que isso deveria incluir a ciamento do Brasil (e.g. Fearnside criação de “ar quente”. O projeto, & Barbosa, 1996; Fearnside, 2006a, contudo, gera créditos de carbono 2007, 2011; Fearnside & Graça, 2006; sem benefício verdadeiro para o cli- Santos & Hernandez, 2009). No caso ma, de duas maneiras. Primeiro, ele da UHE Teles Pires, em particular, é baseado na ficção de que a UHE os povos indígenas fortemente afe- terá zero de emissão, apesar de ex- tados protestaram, denunciando os tensa evidência indicando que as impactos e as falhas no processo de barragens amazônicas apresentam licenciamento (Manifesto, 2011). A grandes emissões, especialmente barragem apresenta uma longa lis- na primeira década, o horizonte ta de impactos e problemas em seu de tempo do projeto. Em segundo licenciamento (Millikan, 2011; Mon- lugar, o projeto não é “adicional”, teiro, 2011a, 2011b; International Ri- como exige o artigo 12 do Protocolo vers, 2012). Em 27 de março de 2012, de Quioto, que criou o MDL. Os pro- o Ministério Público Federal (MPF) jetos devem ganhar crédito somen- obteve uma liminar interrompen- te se as reduções de emissões ale- do a construção, em razão da não gadas não fossem possíveis sem o realização de consulta prévia aos financiamento do MDL. Neste caso, povos indígenas afetados pela bar- a barragem já estava financiada e ragem (Brasil, Ministério Público Fe- em construção, por empresas brasi- deral no Pará, 2012). Embora essas leiras, em plena expectativa de lu- liminares sejam, normalmente, de crarem com a venda de energia elé- curta duração, devido à existência trica, sem qualquer ajuda adicional de juízes em tribunais de recurso do MDL. Nenhum dos 25 milhões de que estão dispostos a derrubá-las, a toneladas de CO2-eq reivindicados é suspensão da construção é uma in- adicional. dicação tanto da gravidade dos im- pactos da barragem, como das insu- Emissões de UHEs e o IPCC ficiências no licenciamento. A inclusão de UHEs nas diretrizes O PDD menciona uma “preocu- do IPCC para inventários nacio- pação crescente” do Brasil com a nais sob a Convenção-Quadro das sustentabilidade ambiental (Com- Nações Unidas sobre Mudança do panhia Hidrelétrica Teles Pires & Clima (UNFCCC) tem evoluído ao

Ecopart Assessoria em Negócios longo do tempo, mas o CH4 ainda Empresariais Ltda., 2011: 41, tra- é deixado de fora das informações dução livre do autor). Seria lógico obrigatórias dos relatórios. As dire-

518 Fearnside trizes revistas de 1996 incluíram a trais Elétricas Brasileiras S.A. (Ele- liberação de estoques de carbono trobras), enfraqueceu a metodolo- por florestas convertidas em “áreas gia proposta, em comparação com úmidas” (incluindo reservatórios), as “Diretrizes de boas práticas” de com base na diferença no estoque 2003, removendo dados que indica- de carbono entre os dois ecossiste- vam maiores emissões e reduzindo mas, presumindo, porém, que toda as informações exigidas. No nível a liberação ocorre na forma de CO2, 1 deveriam ser incluídas apenas as em vez de CH4 (Intergovernmental emissões relativamente modestas Panel on Climate Change, 1997). As que ocorrem por meios de difusão a diretrizes do IPCC de 2003 sobre partir da superfície do reservatório, “boas práticas” incluíram um apên- embora os países pudessem volun- dice ao capítulo sobre zonas úmi- tariamente relatar as emissões de das, como uma “base para o desen- ebulição das superfícies dos reser- volvimento metodológico futuro” vatórios no nível 2, ao passo que as

(Intergovernmental Panel on Cli- principais emissões de CH4, a partir mate Change, 2003, apêndice 3a.3). das turbinas, poderiam ser incluí- Sugeriam que se incluísse no nível 1 das apenas no nível 3, raramente (obrigatório) apenas a contabilidade utilizado (Intergovernmental Panel das emissões da superfície do reser- on Climate Change, 2006). Na reu- vatório que ocorrem por meio de nião plenária do IPCC que aprovou difusão e ebulição (bolhas) de CO2, as diretrizes de 2006, realizada nas sendo a contabilidade das emissões Ilhas Maurício, os diplomatas bra- de vertedouros e turbinas alocada sileiros tentaram, sem sucesso, re- no nível 2 (voluntário). mover por completo as emissões de A revisão das orientações para reservatórios da seção sobre “terra os inventários nacionais realizada inundada” (Barnsley et al., 2006; em 2006 manteve limitações quan- McCully, 2006: 19). to às informações exigidas para as A influência brasileira tem sido emissões de CO2, mas incluiu um fundamental na criação e amplia- apêndice, também como “base para ção das brechas no regulamento do o desenvolvimento metodológico MDL sobre crédito de carbono para futuro”, considerando o CH4 gerado UHEs. O painel de metodologias do por UHEs na categoria “terra inun- MDL propôs considerar como nulas dada que permanece inundada”. as emissões para os projetos com A equipe de autores, de que fazia densidades energéticas acima de parte um representante das Cen- dez watts por metro quadrado, com

Crédito de carbono para usinas hidrelétricas 519 base em um documento técnico in- Em 2011, o IPCC elaborou um re- terno elaborado por Marco Aurélio latório especial sobre energias reno- dos Santos e Luiz Pinguelli Rosa váveis, que analisa as avaliações do (CDM Methodologies Panel, 2006). ciclo de vida para várias tecnologias. Pinguelli Rosa, ex-presidente da Para o caso típico (ou seja, o per- Eletrobras, tem defendido o valor centil 50%), a energia hidrelétrica de dez watts por metro quadrado é classificada como tendo a metade como critério desde antes do Pro- ou menos do impacto das emissões tocolo de Quioto (Rosa et al., 1996, de qualquer outra fonte, incluindo contestados por Fearnside, 1996) e a solar, eólica e energia dos oceanos há anos afirmou que as barragens (Intergovernmental Panel on Clima- realizam apenas pequenas emissões te Change, 2012: 982). A base dessa (Rosa et al., 2004, 2006, contestados classificação não está clara a partir por Fearnside, 2004, 2006b). Em fe- do relatório: a tabela que apresenta vereiro de 2006, o conselho execu- os resultados descreve-os como “re- tivo do MDL adotou o limite de dez sultados agregados de revisão da li- watts por metro quadrado para pre- teratura”, mas a bibliografia parece sumir emissões zero e, a pedido de não conter quaisquer estudos sobre seu diretor, José Domingos Miguez, as emissões de UHEs. O relatório que também era chefe do setor do também afirma que, Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) responsável pelos inventá- ao considerar as emissões antrópi- rios nacionais brasileiros de gases cas líquidas como a diferença no de efeito estufa, do UNFCCC, expan- ciclo de carbono global entre as si- diu o crédito para as barragens que tuações com e sem o reservatório, não atendiam a dez watts por metro atualmente não há consenso sobre quadrado além do que havia sido se os reservatórios são emissores ou sugerido pelo painel de metodolo- sumidouros líquidos (Companhia gias: redução de cinco para quatro Hidrelétrica Teles Pires & Ecopart da densidade energética mínima Assessoria em Negócios Empresa- elegível para crédito de acordo com riais Ltda., 2011: 84). as regras e diminuição de 100 para

90 gramas de CO2-eq por quilowatt/ No entanto, esse conceito de hora a emissão presumida para bar- “emissões antrópicas” só seria apli- ragens com densidade energética cável se as emissões fossem limita- na faixa de quatro a dez watts por das ao CO2, ignorando o papel dos metro quadrado. reservatórios na conversão de car-

520 Fearnside bono em CH4. Uma contabilidade Referências bibliográficas completa das emissões, incluindo Abril, Gwenaël; Guérin, Frédéric; o CH4, é necessária para ter compa- Richard, Sandrine; Delmas, rações válidas sobre o impacto das Robert; Galy-Lacaux, Corin- diferentes fontes de energia. ne; Gosse, Philippe; Tremblay, Alain; Varfalvy, Louis; Santos, Considerações finais Marco Aurelio dos; Matvienko, O crédito de carbono para a UHE Te- Bohdan. 2005. “Carbon dioxide les Pires não é adicional, porque a and methane emissions and the barragem já havia sido contratada e carbon budget of a 10-years old a construção, iniciada, independen- tropical reservoir (Petit-Saut, temente do financiamento do MDL. French Guiana)”. In: Global Biogeo- A presunção de que a barragem não chemical Cycles, v.19, nº4. Wash- emitiria gases de efeito estufa é fal- ington, D.C., American Geophys- sa: vários estudos indicam que as ical Union. emissões de gases de efeito estufa Barnsley, Ingrid; Conrad, Alexis; de represas amazônicas são subs- Gutiérrez, María; Johnson, Sa- tanciais ao longo dos seus primeiros rah S. 2006. Summary of the 25th dez anos (o tempo de duração do session of the Intergovernmental Pa- projeto). As normas do MDL neces- nel on Climate Change: 26-28 April sitam de revisão urgente, para que 2006. In: Earth Negotiations Bul- se elimine a criação de “ar quente” letin, v.12, nº295. Nova York, In- (reduções certificadas de emissões ternational Institute for Sustai- que não são adicionais) através de nable Development. Disponível créditos para barragens. Uma conta- em: (acesso:

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Crédito de carbono para usinas hidrelétricas 529

SOBRE OS AUTORES E MEMBROS DO COMITÊ EDITORIAL

Alexandre Andrade Sampaio Mestre sity College London. Professora-assis- em Direitos Humanos pela London tente do Instituto de Ciências da School of Economics and Political Scien- Sociedade da Universidade Federal ce. Coordenador de política e pro- do Oeste do Pará (ICS/Ufopa). Coor- gramas do International Accountability denadora do Projeto Alto Tapajós Project. de Arqueologia (Proalta), vinculado Andrea Jakubaszko Mestre em Ciên- à Ufopa. cias Sociais pela Pontifícia Universi- Carolina de Oliveira Jordão Mestre dade Católica de São Paulo (PUC/SP). em Ciências da Engenharia Ambien- Coordenadora do Programa de Di- tal pela Escola de Engenharia de São reitos Indígenas da Operação Ama- Carlos da Universidade de São Pau- zônia Nativa (Opan) de 2013 a 2015. lo (Eesc/USP). Analista ambiental do Andreia Fanzeres Graduada em Instituto Centro de Vida (ICV). Comunicação Social (Jornalismo) Claide de Paula Moraes Doutor em pela Escola de Comunicação da Arqueologia pelo Museu de Arqueo- Universidade Federal do Rio de Ja- logia e Etnologia da Universidade neiro (ECO/UFRJ). Coordenadora do de São Paulo (MAE/USP). Professor- Programa de Direitos Indígenas da -adjunto do Instituto de Ciências da Operação Amazônia Nativa (Opan) Sociedade da Universidade Federal desde 2016. do Oeste do Pará (ICS/Ufopa). Biviany Rojas Garzón Mestre em Daniela Fernandes Alarcon Douto- Ciências Sociais com especialização randa em Antropologia Social junto em Estudos Comparados sobre as ao Museu Nacional da Universidade Américas pelo Centro de Pesquisa Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). e Pós-Graduação sobre as Américas Daniely Félix-Silva Doutora em Bio- da Universidade de Brasília (Cep- logia (Ecologia) pelo Instituto de pac/UnB). Advogada do Instituto So- Biologia Roberto Alcântara Gomes cioambiental (ISA). da Universidade do Estado do Rio de Brent Millikan Mestre em Geografia Janeiro (Ibrag/Uerj). Pós-doutoranda pela University of California, Berkeley. junto ao Núcleo de Altos Estudos Diretor do Programa Amazônia da Amazônicos da Universidade Fede- International Rivers (IR). ral do Pará (Naea/UFPA). Bruna Cigaran da Rocha Doutoran- Deborah Duprat Mestre em Direito e da em Arqueologia junto à Univer- Estado pela Faculdade de Direito da

531 Universidade de Brasília (FD/UnB). nais junto ao Centro de Ciências Subprocuradora-geral da República. Jurídicas da Universidade Federal de Edilene Fernandes Graduada em Di- Santa Catarina (CCJ/UFSC). Membro reito pela Faculdade de Direito da do Observatório de Justiça Ecológica. Universidade Federal de Mato Gros- Francisco Antonio Pugliese Jr. Dou- so (FD/UFMT). Analista de direito torando em Arqueologia junto ao ambiental do Instituto Centro de Museu de Arqueologia e Etnologia Vida (ICV). da Universidade de São Paulo (MAE/ Efrem Ferreira Doutor em Biologia USP). de Água Doce e Pesca Interior pelo Gustavo Godoi Ferreira Graduado Instituto Nacional de Pesquisas da em Direito pela Pontifícia Uni- Amazônia (Inpa). Pesquisador-titu- versidade Católica de Campinas lar do Inpa. (PUC-Campinas). Eric Macedo Doutorando em Antro- Heidi Amstalden Albertin Gradua- pologia Social junto ao Museu Na- da em Direito pela Pontifícia Uni- cional da Universidade Federal do versidade Católica de Campinas Rio de Janeiro (MN/UFRJ). (PUC-Campinas). Evandro Mateus Moretto Doutor em Helena Palmquist Graduada em Co- Ecologia e Recursos Naturais pelo municação Social (Jornalismo) pela Centro de Ciências Biológicas e da Faculdade de Comunicação da Uni- Saúde da Universidade Federal de versidade Federal do Pará (Facom/ São Carlos (CCBS/UFSCar). Professor UFPA). Assessora do Ministério Pú- doutor da Escola de Artes, Ciências blico Federal (MPF). e Humanidades da Universidade de Jairo Saw Membro do Movimento São Paulo (Each/USP). Munduruku Ipereg Ayu. Vive na al- Felício Pontes Júnior Mestre em Teo- deia Sai-Cinza, na terra indígena de ria do Estado e Direito Constitu- mesmo nome. cional pela Pontifícia Universidade João Andrade Mestre em Desenvol- Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). vimento Econômico, Espaço e Meio Procurador da República no estado Ambiente pelo Instituto de Econo- do Pará. mia da Universidade Estadual de Flávia Baracho Trindade Gradua- Campinas (IE/Unicamp). Coordena- da em Direito pela Pontifícia Uni- dor da Iniciativa de Defesa Socioam- versidade Católica de Campinas biental do Instituto Centro de Vida (PUC-Campinas). (ICV). Flávia do Amaral Vieira Mestranda Juan Doblas Mestre em Geofísica em Direito e Relações Internacio- pela École Nationale Supérieure du Pé-

532 Ocekadi trole et des Moteurs. Especialista em quisas da Amazônia (Inpa). Analista geoprocessamento do Instituto So- ambiental do Instituto Chico Men- cioambiental (ISA). des de Conservação da Biodiversida- Juarez Carlos Brito Pezzuti Doutor de (ICMBio). em Ecologia pelo Instituto de Bio- Maria Carolina Gervásio Angelini logia da Universidade Estadual de Graduada em Direito pela Pontifícia Campinas (IB/Unicamp). Professor- Universidade Católica de Campinas -adjunto do Núcleo de Altos Estudos (PUC-Campinas). Amazônicos da Universidade Fede- Maria Luíza Camargo Mestre em ral do Pará (Naea/UFPA). Geografia Humana pela Faculdade Luis de Camões Lima Boaventura Gra- de Filosofia, Letras e Ciências Hu- duado em Direito pela Universidade manas da Universidade de São Pau- de Fortaleza (Unifor), especialista lo (FFLCH/USP). em Direito Público pela Escola Supe- Mauricio Torres Doutor em Geogra- rior do Ministério Público da União fia Humana pela Faculdade de Filo- (ESMPU). Procurador da República sofia, Letras e Ciências Humanas da no município de Santarém (Pará). Universidade de São Paulo (FFLCH/ Luís Renato Vedovato Doutor em Di- USP). Professor-colaborador do Pro- reito Internacional pela Faculdade grama de Pós-Graduação em Recur- de Direito da Universidade de São sos Naturais da Amazônia da Uni- Paulo (FD/USP). Professor-doutor versidade Federal do Oeste do Pará do Instituto de Economia da Uni- (PPGRNA/Ufopa). versidade Estadual de Campinas Michael Goulding Doutor em Bio- (IE/Unicamp), atuando também na geografia pela University of California, Faculdade de Ciências Aplicadas Los Angeles. Especialista em recursos (FCA/Unicamp). Professor-doutor do aquáticos amazônicos da Wildlife Programa de Mestrado em Direito Conservation Society. da Universidade Nove de Julho e Natalia Ribas Guerrero Doutoranda professor-doutor da Pontifícia Uni- em Antropologia Social junto à Fa- versidade Católica de Campinas culdade de Filosofia, Letras e Ciên- (PUC-Campinas). cias Humanas da Universidade de Marcelo Brandão Ceccarelli Gradua- São Paulo (FFLCH/USP). do em Direito pela Pontifícia Uni- Philip M. Fearnside Doutor em versidade Católica de Campinas Ciências Biológicas pela University (PUC-Campinas). of Michigan. Pesquisador-titular do Marcelo Derzi Vidal Mestre em Eco- Instituto Nacional de Pesquisas da logia pelo Instituto Nacional de Pes- Amazônia (Inpa).

Sobre os autores 533 Pierre Pica Doutor em linguística Ronaldo Barthem Doutor em Eco- pela Université de Paris VIII e pós- logia pelo Instituto de Biologia da -doutor em Psicologia Cognitiva Universidade Estadual de Campinas pelo Massachusetts Institute of Techno- (IB/Unicamp). Pesquisador-titular logy. Pesquisador-associado do Cen- do Museu Paraense Emílio Goeldi. tre National de la Recherche Scientifique. Sidarta Ribeiro Doutor em Com- Professor-visitante do Instituto do portamento Animal pela Rockefeller Cérebro da Universidade Federal do University e pós-doutor em Neurofi- Rio Grande do Norte (ICe/UFRN). siologia pela Duke University. Profes- Raoni Bernardo Maranhão Valle sor-titular e diretor do Instituto do Doutor em Arqueologia pelo Museu Cérebro da Universidade Federal do de Arqueologia e Etnologia da Uni- Rio Grande do Norte (ICe/UFRN). versidade de São Paulo (MAE/USP). Thaís Temer Graduada em Direito Professor-adjunto do Instituto de pela Pontifícia Universidade Católi- Ciências da Sociedade da Universi- ca de Campinas (PUC-Campinas). dade Federal do Oeste do Pará (ICS/ Vinicius de Aguiar Furuie Doutoran- Ufopa). do em Antropologia Social junto à Ricardo Scoles Doutor em Biologia Princeton University. (Ecologia) pelo Instituto Nacional Vinicius Honorato de Oliveira Mestre de Pesquisas da Amazônia (Inpa). em Arqueologia pela University Col- Professor-adjunto do Centro de For- lege London. Coordenador do Projeto mação Interdisciplinar da Universi- Alto Tapajós de Arqueologia (Proal- dade Federal do Oeste do Pará (CFI/ ta), vinculado à Universidade Fede- Ufopa). ral do Oeste do Pará (Ufopa). Rodrigo Folhes Doutorando em Wilson Cabral de Sousa Júnior Dou- Ciências Sociais junto ao Progra- tor em Ciências Econômicas pelo ma de Pós-Graduação em Ciências Instituto de Economia da Univer- Sociais da Universidade Federal do sidade Estadual de Campinas (IE/ Maranhão (PPGSoc/UFMA). Unicamp). Professor-associado do Rodrigo Oliveira Mestrando em Di- Instituto Tecnológico de Aeronáuti- reitos Humanos junto ao Instituto ca (ITA). de Ciências Jurídicas da Universida- de Federal do Pará (UFPA). Pesqui- sador-colaborador do Centro de De- recho, Justicia y Sociedad (DeJusticia). Membro do Centro de Informação da Consulta Prévia.

534 Ocekadi

ISBN 978-85-992-1404-6

9 788599 214046