Revista Eletrônica de GESTÃO.Org Gestão Organizacional

ISSN 1679-1827 www.gestaoorg.dca.ufpe.br

Volume 4, Número 3, nov./dez. 2006

IMAGINÁRIO E PODER: A DINÂMICA DOS GRUPOS LIGADOS A UMA ORGANIZAÇÃO DE FUTEBOL

José Henrique de Faria Universidade Federal do Paraná

Francis Kanashiro Meneghetti Universidade Federal do Paraná

Sumário 1. Introdução; 2. Metodologia da Pesquisa; 3. Os Discursos na Formação do Imaginário; 4. A Dinâmica dos Grupos na Constituição do Imaginário; 5. O Social-Histórico no Imaginário; 6. O Imaginário e as Relações de Poder na Dinâmica do Futebo; 7. Os Campeonatos Disputados; 8. O Imaginário do Poder e o Poder do Imaginário no Futebol: Por Uma Conclusão. REFERÊNCIAS.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO

JOSÉ HENRIQUE DE FARIA E FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI 21

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo verificar de que forma as relações de poder se modificam a partir dos imaginários instituídos nos grupos ligados a uma organização de futebol (Clube Atlético Paranaense). Entre os elementos constitutivos desta pesquisa, verificar-se-á importância dos discursos (dito e não dito) na formação do imaginário grupal. Analisar-se-á de que forma as emoções, os sentimentos ambivalentes, a liderança, os conflitos, a auto-imagem e a imagem do outro, as potencialidades imaginárias, os momentos reflexivos, o processo de auto-regulação e o controle social constituem a articulação do imaginário. Buscar-se-á identificar de que maneira o processo social-histórico exerce sua influência no imaginário. Verificar-se-ão as mudanças nas relações de poder entre os grupos envolvidos a partir dos acontecimentos do futebol. Analisar-se-á de que forma as expectativas imaginárias estão presentes nos campeonatos disputados no período estudado e o desenvolver das relações de poder entre os grupos ante as seqüências de sucessos e fracassos na realização dos objetivos. Por fim, demonstrar-se-á que as relações de poder, assim como os imaginários grupais, são únicas, devendo ser contextualizadas em sua época e em situações concretas específicas.

Palavras-Chave: Imaginário; Relações de Poder; Teoria das Organizações; Futebol.

ABSTRACT

The main objective of the research job done on Clube Atlético Paranaense is to understand how relationships of power can change depending on the imaginary settled in groups related to a soccer organization. The research was mainly focused on the dynamics of the creation of such imaginary within the Clube Atlético Paranaense soccer club. Among the objects of this research it was possible to observe the importance of speeches (said and not said) in the formation of collective imaginary. We analyzed how the articulation of the imaginary stems from emotions, ambivalent feelings, leadership, conflicts, self-image, other’s image, creative potentialities, moments of reflection and the process of self-regulation, and social control. We sought to identify in which way the social-historical factor influences this imaginary and the changes in the relationships of power among the groups related to the soccer events. We observed how the expectations projected from the imaginary are present in the soccer tournaments during the period studied and in the development of the relationships of power among the groups facing sequences of soccer organization’s successes and defeats. Finally, the research revealed that the relationships of power, as well as the collective imaginary, are singular, and must be contextualized within its time and in specific and concrete situations.

Key-words: Imaginary; Relationships of Power; Organizational Theory; Soccer.

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podem ser concretizados. Estudar o imaginário, em congruência com as relações 1. INTRODUÇÃO de poder, é partir para além do visível, do reconhecimento imediato das relações entre O futebol está presente no cotidiano os indivíduos e os grupos sociais. Reconhecer os desejos, as fantasias, os de quase todos os brasileiros. Este esporte sonhos compartilhados por uma coletividade tem a capacidade de apaixonar multidões no mundo todo, incentivando discussões é reconhecer a presença do simbólico como calorosas, no decorrer das competições, forma atuante na criação de representações sobre os resultados, a competência das inconscientes imaginárias, capazes de equipes, as atitudes dos jogadores, a política influenciar de forma significativa as relações de contratações, as ações e atitudes dos sociais. dirigentes, as arbitragens, os comentários e a neutralidade exigidos da imprensa esportiva, a competência dos técnicos 2. METODOLOGIA DA PESQUISA (treinadores) e suas respectivas comissões técnicas. É na dinâmica da execução das Esta pesquisa é um estudo de caso competições que está presente o imaginário ex-post-factum seccional com avaliação dos grupos que compõem o ambiente longitudinal e valer-se-á de abordagem futebolístico. Os grupos envolvidos – descritivo-qualitativa. O nível de análise é diretoria, jogadores, comissão técnica, organizacional, sendo a unidade de análise imprensa e torcedores – quase sempre os grupos diretos – jogadores, comissão imaginam o mesmo fim: que a seqüência de técnica, diretoria – e indiretos (vinculados ao resultados os levem às conquistas dos ambiente da organização) – imprensa e campeonatos dos quais participam. Contudo, torcedores. As literaturas adotadas para o no desenrolar das competições, cada grupo desenvolvimento metodológico da pesquisa distinto está almejando alcançar propósitos são: Yin (1989, p. 23), Kelinger (1980), próprios, imaginados e vividos Triviños (1987), Richardson (1999) e Selltiz; anteriormente. A busca destes propósitos Wrightsman (; COOK (1987). pelos grupos distintos – por exemplo, o jogador pela busca da fama e dinheiro, os A organização estudada foi o Clube Atlético dirigentes pelo lucro dos clubes, os Paranaense, escolhido de forma intencional. torcedores pelo sentimento de vitória, a Sua escolha deve-se ao fato de que o clube imprensa pelo reconhecimento do seu está entre os mais importantes em público, a comissão técnica pela competência competições, com representatividade nos âmbitos estadual, regional e nacional. Os – leva, dentro das competições e como campeonatos analisados foram: (i) Estadual: conseqüência dos resultados obtidos, a uma Campeonato Paranaense (primeiro semestre dinâmica de relações de poder entre estes de 2001 – 23 jogos realizados); (II) grupos. Assim, o futebol é o local da busca Regional: Copa Sul-Minas (primeiro por um resultado em comum; entretanto, é semestre de 2001 – 6 jogos realizados); também a realização dos desejos e projetos (III) Nacionais: Copa João Havelange singulares. Quando um time entra em (segundo semestre de 2000 – 26 jogos campo, não está em jogo só o interesse realizados); (ano de 2001 - 7 material; o que prevalece são os interesses jogos realizados). simbólicos, vividos diferentemente pelos A coleta de dados foi realizada por indivíduos e pelos grupos. No entanto, todos meio de fontes secundárias: análise se vinculam a um só ideal: realizarem os documental e dados obtidos de jornais, seus desejos, concretos e imaginários, a partir da realização imaginária do desejo do programas de rádios, programas de clube. televisão, sites da internet de conteúdo esportivo. Estes meios eram direcionados aos comentários esportivos, análises e Assim, o futebol é uma forma de opiniões dos diversos indivíduos que manifestação social que representa as compõem os distintos grupos relacionados relações de poder presentes na sociedade, com a prática futebolística. Esses dados sendo o local ideal para o estudo do foram utilizados para verificar: (i) como o imaginário e da dinâmica dos grupos ligados imaginário se perpetua nos grupos; (ii) como a ele. Estudar as relações de poder é, antes se deram as seqüências de resultados; (iii) de tudo, procurar compreender como se de que forma as relações de poder se estabelecem as relações e os controles manifestam diante dos acontecimentos e sociais, a organização da sociedade na forma fatos do cenário futebolístico. de grupos sociais e agrupamentos que buscam atingir objetivos comuns, que somente através de associações coletivas Número Especial IV EnEO - GESTÃO.Org, v.4, n.3 - NOV / DEZ 2006

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Os dados foram coletados nas análise do discurso deve focalizar a seguintes fontes: a. Jornais estaduais: estruturação ou os processos articulatórios Gazeta do Povo, Tribuna do Paraná e Diário na construção dos textos e na constituição Popular (período entre julho de 2000 a julho em longo prazo de “ordens de discurso”. de 2001); b. Jornais nacionais: Jornal O Tanto as técnicas de análise do discurso Lance e Gazeta Esportiva (período entre julho utilizadas por Bardin (1979), quanto por de 2000 a julho de 2001); c. Páginas da Fairclough (2001), representam um Internet: Furacão.com, Furacão3000, importante instrumento para análise do Futbrasil.com, Pelé.net, AtléticoPR.com – imaginário e das relações de poder, através página oficial do Clube Atlético Paranaense do qual é possível identificar a presença de (período entre julho de 2000 a julho de sentimentos, emoções e desejos, e também 2001); d. Programas de Rádio: CBN jogo, discursos elaborados a partir de uma CBN esporte, Rádio Capital (gravações racionalidade. Com a interpretação dos efetuadas antes, durante e depois de cada pesquisadores, foi possível identificar redes jogo, totalizando 54 horas); e. Programas de imaginárias criadas na sociedade e, Televisão: Mesa Redonda – CNT, Cartão conseqüentemente, relações de poder. Verde – TV Cultura, Super Técnico – TV Bandeirantes, Camisa 12 – TV Paranaense (gravações efetuadas antes, durante e depois 3. OS DISCURSOS NA FORMAÇÃO DO de cada jogo, totalizando aproximadamente 18 horas); f. Revistas especializadas em IMAGINÁRIO futebol: Placar, Los3inimigos. A formação imaginária dos grupos Os dados coletados apresentam os ligados a um clube de futebol não se conclui seguintes conteúdos: (i) Informações sem a influência da mídia. A mídia é diversas (técnica, política e econômica) sobre responsável, como afirma Debord (1997), a organização Clube Atlético Paranaense; (ii). pela espetacularização da sociedade, assim Entrevistas com dirigentes, jogadores, como pela articulação de formas de vigilância torcedores, árbitros, chefes do policiamento e do imaginário social (MORAES, 1994). Sua comentaristas esportivos; (iii). Análises importância no futebol é singular, pois é estatísticas e enquetes; (iv). Comentários através dela que este esporte se reproduz no dos resultados dos jogos; (v). Crônicas e meio social, criando-se e recriando-se nas charges esportivas; (vi). Curiosidades do dimensões do imaginário social. futebol. Observa-se que cada meio de Os dados coletados sofreram uma comunicação tem sua particularidade, mas, análise descritivo-qualitativa. Os dados apesar disso, é importante observar que os secundários foram analisados segundo discursos não são proferidos livremente. É algumas técnicas descritas por BARDIN possível verificar que existem discursos (1979) e FAIRCLOUGH (2001). Através do permitidos nos grupos específicos. Para estudo de abordagens da análise do discurso, avaliar e classificar quais são eles, utilizou-se procurou se desenvolver uma abordagem que o trabalho de Faria e Meneghetti (2001), tem como objetivo investigar as mudanças chegando-se a um quadro resumo: sociais e estruturais da sociedade. Assim, a Quadro 2 – As Formas Discursivas e suas Práticas nos Grupos Discurso Formas Discurso Ideológico Discurso Discurso Discurso Discursivas/ Social Comum Propriamente Democrático Mítico Teleológico Grupos Dito Reflexivo Permitido Permitido Tolerado Permitido Permitido Diretores livremente livremente parcialmente livremente livremente Tolerado Comissão Permitido Permitido reduzidament Permitido Permitido Técnica livremente livremente e livremente livremente Tolerado Jogadores Permitido Permitido reduzidament Permitido Permitido livremente livremente e livremente livremente Permitido Permitido Permitido Permitido Permitido Imprensa livremente livremente parcialmente livremente livremente Permitido Permitido Permitido Permitido Permitido Torcedores livremente livremente livremente livremente livremente

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dispersiva. A forma do discurso teleológico, A dinâmica dos grupos e as por apresentar as razões de causa e efeito atribuições inconscientes na formação do das situações e procurar explicar e justificar imaginário criam padrões discursivos de os acontecimentos (nem sempre adotando a naturezas diversas, podendo ser: o ato reflexão), é uma forma que se enquadra com discursivo dispersivo, de resistência e certa facilidade na classificação do ato consensual. discursivo dispersivo; porém, é possível perceber que isto não ocorre de maneira tão O ato discursivo dispersivo é aquele explícita quanto no discurso social comum. em que os membros envolvidos se recusam Nesta classificação, o que ocorre é uma fuga a discutir um determinado tema presente no da discussão do tema através da utilização momento. Os motivos podem ser variados: o de argumentos que, em si mesmos, fogem medo da discussão, o desconhecimento do do tema central: as justificativas e tema, a exposição ao ridículo, a incapacidade explicações acabam por deslocar o que emocional dos membros, a negação, a realmente deveria ser o centro da discussão. imaturidade, etc. É comum encontrar esta Esta foi uma prática encontrada nas prática discursiva nos grupos ligados ao discussões cujos temas foram: o preço dos futebol quando um atleta vai jogar no ingressos, a expectativa de estréia de um exterior e não se adapta, quando a novo jogador, o término da construção do grandiosidade do clube é questionada, estádio, a política financeira do clube, etc. quando no momento das derrotas uma Na forma mítica, o ato discursivo pode ser parcela dos atletas nega a inferioridade caracterizado como dispersivo. No entanto, é técnica do time em relação ao adversário, importante relembrar que o próprio mito, quando os comentaristas apresentam-se conforme afirmam ADORNO e HORKHEIMER como depositários da razão, negando o (1985), já é esclarecimento. Quando as desconhecimento por determinados figuras mágicas e míticas possibilitam assuntos, etc. Assim, esta classificação do comparações e reflexões com os ato discursivo é comumente praticada no acontecimentos da realidade, já estão, na dia-a-dia, mas sempre de forma sutil, muitas verdade, evitando a fuga da discussão. vezes imperceptível. Aspecto semelhante ocorre com a Os argumentos apresentados nestas forma ideológica propriamente dita. Mesmo situações sempre são insuficientes e que a ideologia dominante seja capaz de raramente respondem às indagações feitas. articular as relações concretas a partir das Desviar-se do assunto e descentrar o tema instâncias imaginárias (ALTHUSSER, 1999), da discussão são as principais estratégias a sua presença proporciona o surgimento da dos interlocutores da ação comunicativa. contradição, que se move sempre no sentido Estas atitudes, de certa forma, são inverso da dominação: eis aí a fuga do manifestações de impotência dos indivíduos discurso dispersivo. Entretanto, é coerente e dos grupos em lidar com determinados reforçar que o surgimento de um temas que fogem a suas capacidades pensamento contrário quase sempre é racionais e emocionais, através dos inferior ao pensamento dominante (e processos reflexivos e críticos. Dentro das ideológico). formas discursivas, é mais comum encontrar as de práticas discursivas permitidas, A forma do discurso democrático principalmente o discurso teleológico e social reflexivo raramente enquadra-se na comum. Não quer dizer que os discursos classificação do ato discursivo dispersivo. Por mítico e ideológico propriamente dito não se entrar no cerne das discussões, provocando enquadrem nesta situação, mas, em a reflexão e o pensamento crítico dos temas comparação com os dois primeiros, são abordados, dificilmente possibilita o ato praticados reduzidamente dentro do ato discursivo dispersivo. discursivo dispersivo. A forma do discurso social comum, ou seja, o discurso cotidiano Portanto, é possível afirmar que, em que obedece aos lugares comuns e é geral, o ato discursivo dispersivo, no que se responsável pelo compartilhar das crenças e refere à sua capacidade de instituição valores, é a aceitação e a formação de uma imaginária nos grupos sociais, possui realidade comum, compartilhada pelos tendência maior em reproduzir as relações indivíduos de um grupo. Assim, quando um concretas e simbólicas praticadas. O “não tema que coloca a lógica dominante entrar” no núcleo do tem a apresentado, (vínculos que ligam os indivíduos, o projeto através do desconhecimento do tema, do comum, as identificações sociais) em medo da discussão, da incapacidade questão é abordado, quase imediatamente em ocional etc., “estagna” o universo há a prática de uma ação comunicativa simbólico que compõe o imaginário. Seu

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Na forma do discurso democrático engessamento possibilita, apenas, a reflexivo, é possível verificar duas perpetuação das relações sociais. Não há possibilidades: (i) quando a prática uma efetiva troca simbólica a partir da democrática e reflexiva sobre determinado discussão crítica dos assuntos em questão. tema legitima a realidade e valida ações de determinado grupo e (ii) quando clama por O ato discursivo de resistência é o modificações das ações deste mesmo grupo. que promove a reprodução imaginária, Há a neutralidade proporcionada pela negando qualquer tipo de discurso que possa essência do discurso democrático reflexivo: a transgredir o imaginário instituído. Esta razão não pertence a ninguém devido a uma forma do discurso pode ser verificada convenção. Aqui se encontra o imaginário no quando na acomodação da maioria dos seu limiar da mudança. Apesar de perdurar membros, mais precisamente da elite do um imaginário compartilhado nos grupos, grupo. Apesar de possuir características qualquer contato com as formas discursivas semelhantes ao ato discursivo dispersivo, é democrático-reflexivas desencadeia a relevante fazer algumas considerações. modificação das concepções engendradas no coletivo. Portanto, é a forma do discurso Quando se fala em resistência, democrático reflexivo que possibilita, com conclui-se que efetivamente haja uma maior visualidade, as modificações do disputa, com pelo menos duas posições imaginário dos grupos; entretanto, deve-se contrárias. Assim, é possível afirmar a considerar que esta forma discursiva presença dos conflitos e das disputas. questiona todas as estruturas sociais e Contrariamente ao ato discursivo dispersivo, simbólicas que a sociedade vivencia. o de resistência pressupõe a presença de níveis diferenciados de concepções concretas No ato discursivo consensual, é e simbólicas (portanto, imaginárias) possível verificar pontos divergentes que, compartilhados por grupos distintos. Há, contudo, são negociados e aplicados desta forma, mais de um imaginário mediante um acordo entre os membros que instituído. O que ocorre é que existe um dele participaram. O poder é um forte imaginário comparativamente mais instrumento utilizado nos processos de representativo do que outro. Esta presença negociação. Desta forma, o imaginário é de mais de uma forma de imaginar o mundo modificado de forma mais natural. Este ato já é uma possibilidade de modificação. discursivo difere do de resistência porque Através da presença dos contrários é que as não é regido pela lógica explícita do conflito. relações imaginárias se modificam, pois cada Poder-se-ia dizer que suas características imaginário contém o seu oposto. vão ao encontro da dinâmica da ação comunicativa de Habermas (1976, 1989, O ato discursivo de resistência é 1990, 1994). O que Habermas propõe é uma dominado pela forma discursiva ideológica ação comunicativa isenta de ideologias propriamente dita. Dentro do futebol, a específicas, que atenda particularidades prática deste ato é comum entre as elites individuais ou grupais, havendo necessidade dos grupos. Parece natural que seja assim, do agir, orientando-se para o entendimento já que elas estão nos pólos das relações. mútuo, na busca do consenso. Pela necessidade de desenvolver argumentos significativos para justificar as suas ações, o Esta forma seria a prática ideal dos discurso teleológico, muitas vezes, está a discursos. Contudo, é inquestionável que serviço desta forma de ato discursivo. existam relações de conflito no cotidiano. Este ato discursivo, apesar de configurar Com menos intensidade, as formas como o ideal e utópico, pode ser percebido de discurso social comum e mítica em algumas situações específicas. Mesmo no enquadram-se nesta situação. Quando estas futebol, esporte das contradições de todos os formas são utilizadas como argumentos que gêneros, só em alguns poucos momentos possibilitam as mudanças imaginárias, pode se perceber a busca pelo ato discursivo através do ato discursivo de resistência, há consensual. Quase sempre este ato é uma natural subordinação delas para alimentado pela forma discursiva contribuir para a reprodução das relações democrática reflexiva. Pelo seu caráter sociais e materiais. Assim, é possível afirmar universalizado do uso da palavra e pela a existência da manutenção do imaginário busca incessante de respostas baseadas na instituído no plano social. Ao mesmo tempo, razão é que sua regência está alicerçada no existe a presença do gérmen da contradição, pensamento crítico e reflexivo. que possibilita uma possível modificação das relações simbólicas e concretas. As demais formas discursivas (social comum, ideológica propriamente dita, mítica

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e teleológica) possuem alcance insuficiente iv. Os conflitos nos grupos: vitórias e para legitimar este ato discursivo. As derrotas são os principais motivos de características parciais dos argumentos conflitos entre grupos. Entretanto, observa- proporcionam, apenas, relações esporádicas se que outras temáticas ligadas à destas formas discursivas na composição do psicossociologia do esporte são importantes corpo do ato discursivo consensual. na definição dos conflitos.

As modificações imaginárias, v. A auto-imagem, a imagem do outro e suas portanto, quase sempre são transformadas potencialidades imaginárias: cada grupo após o ato discursivo consensual. Isto cria uma imagem de si e dos outros. Nem acontece porque, no momento presente, sem pre estas imagens são “verdadeiras” ou sempre estão impostas relações desiguais e correspondem à realidade. A fantasia, a que necessitam ser alteradas entre os incerteza inerente ao futebol, o místico são grupos. A essencialidade das mudanças importantes definidores das potencialidades imaginárias, a partir deste ato discursivo, individuais e coletivas. Ficou, contudo, está na própria dinâmica dialética do evidente que as realizações concretas são imaginário. importantes na constituição das imagens individuais e coletivas. 4. A DINÂMICA DOS GRUPOS NA vi. Os momentos reflexivos e o processo de auto-regulação: a realidade dita as CONSTITUIÇÃO DO IMAGINÁRIO articulações imaginárias. A forma como ocorrem as desclassificações dos Entre os autores que serviram de campeonatos, as derrotas nos jogos base teórica para a discussão com o importantes, as transferências dos ídolos, empírico, destacam-se os estudos de Freud são momentos que produzem, (1996), Neri (1999), Kernenberg (1997), invariavelmente, reflexões. Surge daí Anzieu (1993), Zimerman (1997a; 1997b; desavenças e associações. Os momentos 1997c), Enriquez (1997), Damásio (1996; reflexivos são os momentos da 2000). Os elementos mais significativos para introspecção, em que cada grupo reavalia a composição da dinâmica do imaginário são: as ações de si e dos outros. i. As emoções positivas e negativas e a Analisados os elementos que identificação coletiva por meio da emoção compõem a dinâmica dos grupos é possível nos momentos marcantes que ocorrem no afirmar que há o fomento do imaginário futebol: os dados apontam os clássicos e as estável, consensual, e transgresso. conquistas dos campeonatos como momentos de intensa manifestação das Os grupos, como se pôde perceber, emoções. Nestes fatos históricos o são singulares nas suas características. Não despertar das emoções atua como fator existe igualdade entre eles. Compostos por contagiante e importante para o indivíduos, suas individualidades são partilhamento de imaginários comuns. fundamentais para a forma como as emoções e os sentimentos contribuem na formação ii. Os sentimentos ambivalentes: amor e dos vínculos grupais, na aceitação da ódio por jogadores, dirigentes, imprensa, liderança, no estabelecimento dos conflitos, árbitros de futebol, técnicos, adversários, na internalização dos controles sociais e no pares, etc. são importantes para a aparecimento dos momentos reflexivos. Tais articulação do imaginário com a realidade itens, abordados neste estudo, não são concreta. Os sentimentos ambivalentes suficientes para esgotar os elementos que servem com o “com bustíveis” para as engendram a dinâmica dos grupos. transformações objetivas e subjetivas dos Entretanto, são importantes dentro do estudo indivíduos e grupos. elaborado. Todos os grupos estudados têm sua prática integrada, relacionada ao iii. A liderança no grupo: cada grupo contexto externo. Tendo cada situação única envolvido na dinâmica cria e destrói seus e específica, as interações dos grupos não líderes. Jogadores, técnicos, dirigentes, são podem ser caracterizadas como “colocados” e “retirados” com o lideranças. generalizáveis, sujeitas às formulações de As vitórias e as derrotas são as motivações padronizações comportamentais. Os grupos para se amar ou odiar os líderes. A são singulares e o contexto que os envolve é liderança não pressupõe um lugar seguro. sempre um momento único. A interação Ao contrário, é sempre local de contestação. sustenta as explicações para a dinâmica dos grupos.

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Outra observação pertinente refere- apresentar características que classifiquem as se à aceitação da capacidade dos grupos em formas como o imaginário se modifica. estabelecer momentos reflexivos. Toda reflexão é uma situação única que envolve as O imaginário estável é quando se tem racionalidades e a dimensão subjetiva dos a percepção de que nada modifica, ou seja, indivíduos e, conseqüentemente, dos grupos. os grupos atuam para a reprodução das A decisão do coletivo gera explicações e relações concretas e abstratas. Os discursos expectativas que transpõem as simples que prevalecem são os discursos social- justificativas racionais. A dimensão comuns. São reconhecidamente os períodos inconsciente é uma parte da modificação que caracterizados como calmos, em que tudo transformará os grupos na sua forma de agir parece ocorrer com tranqüilidade. As e criar as racionalidades. respostas parecem ser suficientes; as emoções e os sentimentos são considerados Nos levantamentos empíricos “agradáveis” para o m om ento. O s conflitos realizados na pesquisa, identificou-se que no são considerados praticamente inexistentes; futebol, cada situação é única. Os atletas que a sensação que se tem é de que tudo está compõem o grupo de jogadores, a comissão sob controle. Nesta situação, os papéis técnica, os diretores vivenciam um momento sociais são desempenhados dentro da único quando o jogo é uma decisão ou uma expectativa imaginaria dos grupos. Pode-se final de campeonato, por exemplo. afirmar que há a percepção de imobilidade e Evidentemente, o contexto influencia na que o mundo imaginário não se modifica. forma como cada um vive aquele momento Prevalece o momento de pouca reflexão nos específico da partida decisiva. Quando a grupos. Vale ressaltar, porém, que não há partida se encerra, não há como modificar o imaginário estático. Mesmo que as mudanças resultado, seja ele de sucesso ou de fracasso. pareçam imperceptíveis, sempre há A imprensa narra e comenta o jogo como o transformação de sentimentos, “grande m om ento decisivo”. D ali saem os estabelecimento de novos vínculos e “heróis” e “vilões” na concepção da torcida. associacionismo entre líderes e liderados. Nenhum grupo é o mesmo. Emoções e sentimentos tomam conta da atmosfera Nos momentos analisados na imaginária, gerando racionalidades possíveis pesquisa, alguns correspondem a esta para justificar a vitória ou a derrota. Os característica: quando os resultados dos conflitos são esquecidos ou ressurgem na jogos correspondem às expectativas mesma proporção dos sentimentos de imaginárias dos grupos; quando os jogos não superioridade ou inferioridade que, são os clássicos; nas partidas decisivas e nas inevitavelmente, manifestam-se nos finais; quando as emoções e sentimentos torcedores. Novos vínculos surgem e correspondem às racionalidades determinam quais são os novos ídolos, apresentadas. Normalmente, nos períodos aqueles responsáveis por justificarem a em que prevalecem as reproduções grandeza, tal como os diretores e torcedores imaginárias, as mudanças são consideradas concebem o seu clube. inexpressivas, isto porque o futebol é considerado como a busca pelas “em oções Do outro lado, aos derrotados resta fortes”. Entre os m om entos que se encaixam encontrar argumentos suficientes para tentar nesta classificação, estão aqueles de explicar o resultado. Invariavelmente, seqüência de resultados que expressam a surgem os culpados, que podem ser do grupo lógica para os grupos: o andamento das dos jogadores, que não honraram a camisa competições em que os jogos não são do clube, da comissão técnica, que não tem considerados decisivos e os resultados qualificação suficiente, ou da diretoria, que correspondem à expectativa imaginária dos não soube fazer as contratações ideais. grupos. Nenhum destes grupos, contudo, dirá isto de si, atribuindo o resultado à probabilidade de O imaginário consensual caracteriza- qualquer jogo. Outras justificativas, tais como se pelas modificações imaginárias culpar o árbitro pela derrota, servem como compartilhadas pelos grupos. Há argumentos de consolo, porém, raramente uniformidade no pensamento grupal quanto à são suficientes para acalmar os ânimos necessidade de modificação das ações e daqueles que sentem a dor da derrota. As formas de pensar dos grupos. A dinâmica da modificações são constantes e o imaginário é mudança ocorre pela necessidade de se responsável por isso. Assim, ao invés de adaptar às novas exigências que a afirmar que existem classificações possíveis racionalidade e a subjetividade do coletivo para justificar a natureza ativa da forma apresentam. Sua natureza dinâmica está como o imaginário se modifica a partir da voltada para as alterações através dos dinâmica dos grupos, torna-se mais coerente processos de consenso mútuo, apesar da

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existência de divergências. O conflito características intrínsecas a esta intragrupal não é o elemento central do classificação. processo de modificação. A convergência é o princípio central entre os grupos. O processo Com a definição das três reflexivo ocorre sem colocar a estabilidade da possibilidades de como o imaginário forma coesão grupal em perigo. A utilização dos sua dinâmica a partir da dinâmica dos argumentos serve como mediadora na busca grupos, é possível reafirmar que cada pelo entendimento mútuo. As situação envolve uma instituição do intencionalidades das ações tanto podem ser imaginário grupal diferenciada e singular, de lícitas, quanto não lícitas. O que as distingue acordo com as características do momento das outras formas é capacidade de um específico. Destarte, verifica-se a “acordo” que traz benefícios visíveis para as possibilidade de classificar a dinâmica do partes interessadas. As modificações são imaginário e não as características instituídas vistas como normais e necessárias. São desta, isto porque cada contexto e cada representadas pelos momentos em que as característica do grupo evolvido não se seqüências de resultados correspondem às repetem duas vezes. A modificação do expectativas imaginárias dos grupos. imaginário grupal é sempre expressa na Situações como troca dos técnicos, mudança imaginária social-histórica, tal como contratação ou venda de jogadores e aponta Castoriadis (1982, p. 201-258). Os modificação política na hierarquia do clube, indivíduos são responsáveis por estas podem se enquadrar nesta classificação, mudanças por adotarem uma postura ativa desde que correspondam à vontade da na transformação da história e na formação maioria. As críticas e as divergências de da sua consciência. É nas representações opiniões não ganham expressividade porque íntimas e abstratas, bem como nas relações o número de indivíduos que compartilham de reais e concretas, que a sociedade forma e tais idéias é bem menor do que o número dos reproduz sua expressão de vida. Sua que legitimam o imaginário instituído. natureza social faz agregar as dimensões conscientes e inconscientes em um universo O imaginário transgressor refere-se comum, compartilhado e reproduzido através às intensas modificações das racionalidades e das responsabilidades de criar sua própria das “imagens” grupais. Percebe-se que a história. Cada modificação do contexto dinâmica dos grupos é intensificada pelo compõe uma série de outras mudanças: dos surgimento de sentimentos exagerados e indivíduos, dos grupos aos quais eles ambivalentes. As emoções ganham pertencem e da sociedade. A interatividade é proporções intensas e únicas. Os vínculos são o objeto de transformação: a colisão entre o reavaliados e as posições de líderes e universo subjetivo e objetivo. liderados restabelecidas. A reflexão se torna a única forma de recolocar os grupos na Portanto, pode-se afirmar que os possibilidade de retorno à ordem e à coesão grupos são fontes de interligação entre o grupal. A auto-imagem, a imagem do outro e plano individual e o social para os indivíduos. as potencialidades são reavaliadas para Suas dinâmicas, isoladas e únicas, são dimensionar uma proximidade maior com a fundamentais na transformação das relações realidade concreta, sem as formações reais e imaginárias através da interatividade. ilusórias, próprias nos grupos. Quase sempre O sujeito é transformador de seu mundo e, correspondem aos momentos de intensos para isso, dispõe da sua capacidade reflexiva, conflitos, em que as ideologias específicas que se movimenta, como ensina a teoria divergem na busca de melhor atendimento crítica, sempre na direção do esclarecimento aos interesses de cada grupo. A forma e da emancipação. discursiva praticada com maior intensidade é o discurso democrático-reflexivo. Sua prática deve-se à necessidade de evitar sentimentos 5. O SOCIAL-HISTÓRICO NO IMAGINÁRIO obstrutivos e procurar reencontrar a coesão social e a realização do projeto comum. Entre os momentos significativos, encontram-se os Levando em consideração as clássicos, os jogos de decisão, as trocas de reflexões de Eagleton (1997) e Althusser alguns técnicos, a incredulidade em relação (1999), a ideologia do imaginário é o aos dirigentes do clube. É importante lembrar conjunto de idéias, simbologias, signos e que o imaginário transgressor é uma forma imagens, expressas nas concepções objetivas de romper com os fatos simbólicos do e subjetivas de uma sociedade em universo abstrato do imaginário e com as determinado contexto histórico. Uma de suas práticas reais que levam à formação de um características é influenciar na forma como o universo imaginário. As mudanças são “m undo” é percebido e aceito pelos indivíduos e pelos grupos. Sendo a realidade impossível de ser concebida na sua Número Especial IV EnEO - GESTÃO.Org, v.4, n.3 - NOV / DEZ 2006

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totalidade, as formações de imagens tornam- diversos grupos que compõem o seu se o melhor mecanismo para conceber o universo. Cada grupo tem uma interpretação todo. Entre as ideologias que caracterizam o da realidade vivida e a transforma em imaginário, duas são significativas na símbolos que irão compor sua memória, que influência que exercem na atualidade: a se manifestará pelas lembranças do passado. ideologia econômica capitalista e a ideologia Por isso, as “histórias e lendas existem em religiosa. É importante lembrar que FREUD profusão quando se fala de futebol. Seria (1999) define que as origens dos processos impossível abordá-las por completo, bem de divinização e de mitificação vêm antes da como contemplar todos os enfoques formação religiosa tradicional; são possíveis, em espaço tão curto. Aliás, mesmo manifestações naturais do coletivo na com grande espaço, isso se tornaria formação e coesão das sociedades. A impossível. A riqueza desse esporte é tão evolução do enquadramento dos rituais grande que, atualmente, estudiosos de todo adquire sua expressão máxima nas país (e do mundo, por certo) têm dedicado sociedades mais atuais, em que a religião suas vidas a estudá-lo” (M ELO , 2000, p. 27- torna-se organizada e impõe sua dominação 8). ideológica sobre seus seguidores. É possível identificar de que forma estas duas Vários são os acontecimentos que concepções ideológicas influenciam o futebol formam a memória imaginária do futebol. no seu cotidiano e formulam uma Cada grupo, à sua maneira, conta sua caracterização na sua formação imaginária: a experiência de acordo com a sua realidade ideologia econômica pela convicção de que presenciada ou contada ao longo do tempo. algum dia um contrato milionário será As deformações, expressas pelas limitações assinado com um grande clube internacional; de compreender e guardar na memória os a ideologia religiosa pela ormação de grupos símbolos dos acontecimentos específicos, são de atletas ligados a crenças e igrejas (Atletas os principais entraves dentro da lembrança de Cristo, por exemplo). Desta forma, não há possível. Compreender a realidade requer como escapar da compreensão da sociedade interpretar a totalidade pela consciência. sem a influência da ideologia. Nem mesmo Sabendo da impossibilidade de se conhecer a categorias como espaço e tempo estão totalidade, os indivíduos e a sociedade isentos da influência da ideologia, que na sua utilizam-se de meios que possibilitem origem tem a realidade como limite. armazenar sua história, dando significado à Avaliando os acontecimentos no período continuidade da sua existência como analisado é possível afirmar que o tempo e o sociedade. Destarte, lendas e contos são espaço imaginários são, portanto, elementos reproduzidos como uma forma de preservar e constitutivos do caráter social-histórico da legitimar a continuidade de um imaginário instituição imaginária individual e coletiva. compartilhado e como maneira de regular e Sua presença é manifestada pelo motivo dos dar prosseguimento às relações materiais fatos e acontecimentos serem de natureza praticadas. dialética. Sua relação é imediata com a memória imaginária porque é por ela que se Analisando a formação da memória fazem perceber as características intrínsecas imaginária, podem-se fazer algumas do movimento e da sociabilidade que a observações: envolvem. i. Os fatos concretos são interpretados de Outro elemento importante é a forma parcial, limitada pela consciência do memória imaginária. A memória é necessária indivíduo em não conseguir visualizar o para a formulação da consciência (DAMÁSIO, todo; 2000, p. 150). Representações do passado compõem a formação social da mente pelo ii. A memória imaginária se forma de processo de incorporações de signos modo diferenciado em cada grupo, levando- compartilhados por uma sociedade se em consideração a particularidade da (VIGOTSKI, 1999, p. 51). Afirma-se, dinâmica do grupo; portanto, que a memória é formada por signos que são expressos no âmbito coletivo iii. O futebol se afirma como exemplo e que propiciam a formulação da consciência significativo na formação da memória individual. Contudo, o homem é um ser social imaginária coletiva, isto é, suas “histórias” e, para expressar sua sociabilidade, necessita calcificam-se na mente coletiva que compartilhar seus símbolos pela convivência compartilha das racionalidades, interativa. expectativas, sentimentos e emoções que se tornam comuns; No futebol, a história se forma através da memória compartilhada entre os

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iv. A natureza social-histórica da memória chegar a algumas considerações: o ídolo está imaginária é decorrência da formação de uma ligado aos grupos em um sentimento atmosfera que se institui e manifesta-se como constante de apego e confiança; os heróis forma de lembranças comuns, normalmente são os personagens construídos em um exageradas ou diminuídas nas suas descrições; determinado momento de dificuldade enfrentada, mas solucionada por ele; o mito v. A memória imaginária é formada a partir de é a ligação mais duradoura com o passado, é uma ideologia pré-existente, o que não implica uma idealização quase que inquestionável. cair no determinismo de tais características Em todos esses casos identificam-se no clube ideológicas; estudado os “personagens” que, som ados, afirmam a existência de um processo de vi. Quem faz manifestar a memória imaginária são mitificação. as necessidades conscientes e inconscientes dos indivíduos ou grupos que, de alguma Com estas afirmações, conclui-se que forma, necessitam buscar respostas para as a mitificação é um processo natural que realizações dos seus objetivos. ocorre na sociedade. Sua origem está ligada às necessidades internas individuais e Desta forma, a memória coletivas. Os grupos e a sociedade que imaginária configura-se como uma procuram compreender sua origem, buscam manifestação social necessária para que nos mitos as explicações sobre si próprias. A os indivíduos, os grupos e a sociedade se emancipação, neste processo, não se dá pela reconheçam dentro do processo social- tentativa de apresentar o conhecimento do histórico do mundo. Assim, sua mito atribuindo-o como explicação irracional compreensão implica no auto- de uma coletividade, mas sim questionar os conhecimento das potencialidades e das porquês da aceitação e da instituição destes limitações das instituições. Mesmo dentro como exemplos utilizados nos processos de de uma tendência de exacerbação ou enquadramentos sociais e exemplos para os diminuição dos fatos, é necessário indivíduos e os grupos. Assim, a reflexão e a conhecer a evolução histórica do futebol crítica devem estar direcionadas a possibilitar dentro da emancipação da sociedade. que uma manifestação natural dos grupos e Portanto, cabe aos membros da sociedade da sociedade seja englobada no processo perceber a necessidade de se reconhecer racional de justificar e explicar os fenômenos como elementos integrantes e coletivos. modificadores da sua própria história. O processo de mistificação e 6. O IMAGINÁRIO E AS RELAÇÕES DE mitificação no imaginário exerce influência ODER NA INÂMICA DO UTEBOL singular. Sobretudo por relacionarem aos P D F aspectos subjetivos. Estudar como se institui o ídolo, o herói e o mito dentro dos grupos e O conceito de relações de poder é, suas influências frente à instituição do muitas vezes, confundido com o próprio imaginário coletivo é um passo determinante conceito de poder. Muitos são os equívocos para compreender a natureza social-histórica que podem ser encontrados nos diversos do que Castoriadis (1982) chama de autores que tentaram conceituar o poder. instituição imaginária da sociedade. Isto é Faria (2000) apresenta as inadequações corroborado porque os “eventos de m assa conceituais dadas ao poder e suas utilizações necessitam de heróis, ídolos, mitos para equivocadas, que são confundidas, fortalecer a identidade e a relação entre os freqüentemente, com a própria expressão fãs e o acontecimento. Eles são, em última relações de poder (Quadro 7). O que se instância, referenciais para a comunidade. Na observa, portanto, é a confusão conceitual figura do ídolo, encontram-se agrupadas entre poder e relações de poder, em que o várias representações distintas da exercício do poder é a sua concretização, de coletividade” (HELAL, 1997, p. 76). maneira que o sentido do poder somente pode ser compreendido quando das relações A mistificação é uma forma dos de poder, quando das práticas (FARIA, grupos enfrentarem a incerteza e o 2000). Assim, imprevisível. Mas para isso, os personagens dentro desse processo precisam ser o elo O poder é definido como a capacidade que entre o mundo objetivo e os aspectos tem uma classe social (ou uma fração ou subjetivos dos grupos. É nesse contexto que segmento), uma categoria social ou um grupo (social ou politicamente organizado) os ídolos, os heróis e os mitos surgem para de definir e realizar seus interesses “ajudar” aos grupos a enfrentarem a objetivosi específicos, mesmo contra a realidade. Nas análises realizadas, é possível resistência ao exercício desta capacidade e Número Especial IV EnEO - GESTÃO.Org, v.4, n.3 - NOV / DEZ 2006

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independentemente do nível estrutural em se necessário, também, incluir o técnico e que tal capacidade esteja principalmente a comissão técnica com um grupo fundamentada. O exercício do poder adquire primordial nas relações de poder continuidade e efetividade política quando estabelecidas entre os interessados do acesso do grupo ou da classe social ao comando das principais organizações, das diretos da organização e seu ambiente estruturas institucionais ou políticas da relacional. sociedade, inclusive aquelas criadas como resultado de um processo de transformação, As relações de poder nos grupos de maneira a por em prática ou a viabilizar ligados ao futebol são influenciadas pelo tal exercício. (FARIA, 2000, p. 17) imaginário individual e coletivo (MELANI, 1999). O funcionamento tanto interno, A capacidade de realizar interesses, quanto externo (com outros grupos) está entretanto, não se limita à condição interna em constante alteração na medida em que dos grupos, mesmo sendo de extrema a dinâmica estabelecida encontra-se em importância. Estes grupos dependem da mudanças ocasionadas pelos sentimentos interação com os outros grupos e de suas ambivalentes de caráter libidinal, capacidades de realizar seus objetivos. “ Uma influenciada pelo imaginário social que o classe ou grupo, portanto, não possui um futebol instaura na sociedade brasileira e poder ilimitado. Seus limites estão fixados nas instâncias ligadas a ela – torcedores, tanto por suas condições internas, quanto imprensa, jogadores, dirigentes, comissão pelas relações externas e, no sentido das técnica (MURAD, 1996). Assim, no dia-a- práticas, tais limites serão mais restritos ou dia do futebol, as perspectivas são mais amplos quanto mais efetivas forem a mutáveis em curtos espaços de tempo, coesão da unidade interna e as estratégias encontradas em outras poucas situações e das lutas externas.” (FARIA, 2001, p. 15) instâncias sociais, levando os clubes de Desta forma, os grupos podem fazer alianças futebol a adaptar-se com a mesma rapidez estratégicas, associações, acordos, em que ocorrem as mudanças de parcerias, concessões para atingirem seus cenários. O que seria, portanto, o objetivos específicos. exercício do poder – as relações de poder entre os grupos futebolísticos – adquire Nos grupos ligados a um clube de características de relacionamento futebol, as relações de poder são uma próximas às atitudes de coação, coerção, prática constante. “A relação de poder influência, temor, medo, imposição num espetáculo de futebol profissional diz disciplinar, etc. respeito basicamente a torcedores, jogadores, diretores e imprensa.” Algumas temáticas avaliadas – os (AFONSINHO, 1999, p. 95) Não se pode campeonatos e as expectativas imaginárias, esquecer, no entanto, que a comissão as evasões dos torcedores dos estádios, o técnica, na qual o treinador é a figura preço dos ingressos e a realidade econômica mais representativa, tem papel brasileira, as desorganizações dos importante nas relações de poder. Nas campeonatos, as contratações e a saída de seqüências de maus resultados, muitas jogadores, a violência no futebol, as trocas vezes, a culpa é direcionada ao técnico; de técnicos, as crises com as arbitragens – mesmo que os problemas sejam despertam dinâmicas distintas e particulares. exteriores ao seu domínio, é mais simples Todavia, é possível verificar um movimento demití-lo e acreditar que a mudança de credibilidade e de poder ante as ações criará uma nova vida para todos. Os tomadas e corroboradas por grupos que se torcedores alimentam a expectativa de associam ou entram em conflitos diretos que o novo técnico, desde que seja de dependendo das circunstâncias, agrado da maioria, possa fazer com que o racionalidades e subjetividades envolvidas no time volte a vencer e possa levá-lo ao fato histórico. nível dos grandes times, idéia esta já registrada na memória do torcedor. Para a imprensa, a contratação de um novo 7. OS CAMPEONATOS DISPUTADOS técnico tem uma expectativa vinculada a seu desempenho anterior em outros clubes e a seu passado de campeão. Analisado os campeonatos Portanto, o imaginário é alimentado pela disputados, ou seja, as seqüências de comunicação da mídia quanto à nova sucessos e fracassos, é possível chegar a contratação de um técnico, de acordo conclusão que: com a capacidade de passar a informação aos seus i. Nos campeonatos nacionais em que o ouvintes/telespectadores/leitores. Torna- Clube Atlético Paranaense foi desclassificado percebe-se que a frustração é grande, pois a

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expectativa em obter um título inédito é de que, no entanto, na totalidade, denotam uma todos os gruposii. Quando há uma derrota “visão” com um da realidade. D eve-se que desclassifica o time sobram culpados e observar que nos discursos específicos dos quase sempre ninguém é poupado. A grupos o ato discursivo não é permitido imprensa elege os culpados e todos os livremente. A crescente modificação nas demais grupos procuram as melhores estruturas das organizações que o gerenciam justificativas para amenizar a derrota. Os traz uma ideologia subjacente que incorpora torcedores, quase sempre, revoltam-se e os valores ideológicos capitalistas, nos quais escolhem os culpados: jogadores, técnicos, a regra do lucro impera. dirigentes, árbitros, enfim, quem pode abarcar a culpa e aliviar esse sentimento Por este motivo é que o futebol está negativo; submetido às manifestações de poder (dominação, autoridade, coerção, atos de ii. No campeonato regional há um violência etc.) da atualidade, configurando-se sentimento de impotência após a derrota. como mais um local dos conflitos sociais e Sobretudo porque a desclassificação ocorre das realizações individuais e coletivas da por um time considerado “m enor” ou sociedade. Na luta pelo poder, os discursos “pequeno”. Atingi-se um momento crítico em são formas de monitorar o imaginário e as que os valores e as ações são revistas. Há o relações concretas que se instituíram. Tendo questionamento da grandiosidade do clube. o cuidado de identificar quais os vínculos Entretanto, esse questionamento é logo grupais que estão presentes nas relações, desconsiderado, pois o poder de mistificação percebe-se que cada grupo analisado é maior que a racionalização. Elegem-se os (diretoria, comissão técnica, jogadores, culpados entre os grupos envolvidos; imprensa e torcedores) tem o seu discurso controlado e controla o discurso do outro; iii. Na conquista do campeonato estadual todavia, este discurso é monitorado com a cria-se um sentimento de euforia. Mas, ao preocupação de compreender sua origem e mesmo tempo, esse sentimento é manifestação dentro da dinâmica dos grupos temporário. Não tem como esquecer do subjacente a eles. Para compreender de que grande desejo de todos os grupos: o título forma se cria, perpetua e modifica o nacional. Mesmo assim, os heróis são imaginário coletivo, é necessário apresentados, ganham força e alguns compreender quais são os fatores que jogadores são exaltados; engendram a articulação do discurso. iv. A grande conquista nacional, o Como elementos essenciais Campeonato Brasileiro, é o auge da euforia. encontram-se as emoções, os sentimentos Emoções, sentimentos, memória, enfim, ambivalentes, as lideranças, os conflitos todas as categorias que envolvem a dinâmica instituídos, a auto-imagem, a imagem do do imaginário dos grupos, bem como o poder outro e suas potencialidade imaginárias, os de cada um atinge o ápice. Todos são momentos reflexivos, o processo de auto- exaltados. A realização de um desejo regulação, o controle social e as formas de consolida quase todos como vitoriosos. Novos manutenção do imaginário. É importante ídolos, heróis e, possivelmente, mitos. A observar que estes elementos não devem ser dinâmica do imaginário articula-se para vistos como funções que compõem o fomentar novas relações de poder, em que os imaginário, pois tal perspectiva de análise indivíduos dos grupos são os “escolhidos” levaria ao equivoco de tentar destituir a para ocuparem o “paraíso” no imaginário do característica básica da instituição poder. imaginária: seu caráter dialético.

É na busca pela emoção que o futebol 8. O IMAGINÁRIO DO PODER E O PODER DO torna-se atrativo. O contágio emocional que a massa proporciona, quando os grupos IMAGINÁRIO NO FUTEBOL: POR UMA perdem a sua diferenciação no momento de CONCLUSÃO torcer, faz do estádio de futebol o local da identificação coletiva. É nas vitórias ou nas derrotas dos jogos ou dos campeonatos que A formação do imaginário se dá pela todos ligados à organização selam seus relação interativa entre os fatos reais e vínculos grupais em torno do projeto comum. concretos e as racionalidades e Quando estes projetos, imaginariamente subjetividades decorrentes dela. As várias formados pelos grupos, estão ameaçados, as formas discursivas, representadas na escrita, ações adotadas levam às mudanças nas na fala e no não dito, são responsáveis por relações materiais e sociais. Decorrentes compor o imaginário coletivo diferenciado disto, os conflitos entre os indivíduos e os

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grupos surgem como algo natural. As Os heróis, esperados a cada decisão situações de conflitos são intensificadas na de campeonato, ascendem como soluções medida em que a incerteza e as imediatas para as angústias dos torcedores, racionalidades não são suficientes para dos dirigentes, da comissão técnica e até “controlar” as cenas vividas e que despertam m esm o dos jogadores. Com o “jogadores sentimentos desagradáveis. A organização m ágicos”, sua figura expressa a esperança do passa, então, a ser envolvida nos conflitos de final feliz e da concretização das expectativas forma contundente. Diretoria, jogadores, imaginárias. Junto ao ídolo, são personagens comissão técnica, imprensa e torcedores que exercem significativo fascínio nos grupos. procuram incessantemente os motivos dos Suas figuras são dotadas de poder simbólico fracassos através do processo de auto- a partir das concretizações dos fatos reais. regulação. Assim, o processo histórico, revivido nas lembranças e nas noções de tempo e espaço, A dinâmica dos grupos, portanto, é caracterizado por uma formação ideológica responsável pela formação do imaginário dos dominante e representado nos personagens grupos. Cada caso apresenta uma instituição mitificados do futebol, é transformado especifica, por envolver fatos e constantemente, possibilitando a relação acontecimentos que não repetem as mesmas dialética entre o real e o abstrato. Destarte, características. Cada momento no futebol é através da dinâmica dos grupos e da um momento único. Cada derrota ou vitória é natureza social-histórica do imaginário é que um fato isolado na história do clube. Os graus a transformação pela relação entre o real de intensidade, como são vividos pelos (relações materiais) e o abstrato indivíduos, variam de acordo como os (imaginárias) se dá nas dimensões possíveis, objetivos estão sendo realizados ou ou seja, nas mudanças individuais e ameaçados na suas concretizações coletivas. imaginariamente fomentadas anteriormente. Entre os problemas encontrados no Para compreender de que forma os futebol atual, alguns se destacam. A violência grupos formam seus imaginários, o processo é o que mais preocupa. Nos conflitos entre social-histórico apresenta-se como aquele torcidas, na omissão das autoridades pelo qual a sociedade se transforma ao longo responsáveis, nas brigas entre jogadores, o do tempo, referenciando as transformações futebol do estádio dá espaço para o futebol pelas quais a sociedade (e os grupos que a da televisão, o que não implica na perda da compõem) passa. Como referência, analisar paixão por este esporte. No entanto, a as características da ideologia do imaginário, violência limita os torcedores aos espaços do tempo e espaço imaginários, da memória sociais privados. O preço dos ingressos e a imaginária, do processo de mitificação e política de contratação e venda de jogadores mistificação no imaginário, é fundamental surgem como temas do conflito entre para compreender de que forma a sociedade diretoria e torcedores. Estes fatos fazem se reproduz nas suas relações materiais e surgir opiniões divergentes quanto à concretas e na sua forma imaginária. credibilidade da diretoria frente aos torcedores. As relações são fragilizadas por A ideologia, no imaginário, exerce conta de atos entendidos como impopulares significativa influência na formação social- pelos torcedores. Por estes motivos, a histórica. O futebol não está imune à credibilidade de alguns grupos passa a ser ideologia econômica capitalista e a ideologia questionada por outros. Deste modo, é religiosa. As constantes negociações de possível perceber que tais fatos ganham ou jogadores levam a perda de identificação perdem importância dentro da seqüência de destes com o clube e, conseqüentemente, jogos, mais especificamente dentro dos com a torcida. Por este motivo, as cobranças sucessos e fracassos. sobre os seus desempenhos passam a ser cada vez mais utilitaristas; entretanto, o Por esta via é que cada caso é um futebol vive de incerteza, do imprevisível, do fato isolado no futebol. Não há momento divino. Destarte, o aparecimento dos ídolos, igual ao que já ocorreu, embora haja dos heróis e do mito é uma necessidade que semelhanças. Os diferentes personagens e as os grupos sentem para formarem referenciais diferentes expectativas criadas dentro de sociais. Na organização estudada, um mito é uma competição dão subsídios para a identificado. Sua figura serve como exemplo elaboração única do imaginário especifico máximo a ser seguido. Um imaginário àquele momento. Estes fatos podem ser específico é instituído e passa a ser referencia verificados na análise dos campeonatos de comportamento, regulando, assim, as estudados, em que cada um apresenta relações sociais. elementos distintos que formam os imaginários dos grupos e,

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do discurso da mídia espetacularizar tal conseqüentemente, mostram as feito. diferenças que ocorrem nas relações de poder entre os mesmos. Tais diferenças O imaginário instituído, motivado ou situações, no entanto, em seu pelos desejos dos grupos, é da conjunto, permitem compor um quadro necessidade de conquista de um título das relações que as representam e não nacional. Quando isto ocorreu, na que as condicionam. conquista do Campeonato Brasileiro de 2001, um novo contexto social-histórico Entre os campeonatos disputados, se formou. A dinâmica dos grupos se os nacionais são os que geram maiores modificou e um novo imaginário se expectativas nos grupos. O fato de não ter institucionalizou. As relações de poder um título nacional, cobrança intensificada passaram por uma transformação e devido ao seu maior rival já ter atribuiram aos grupos ligados a conquistado um título deste porte, gerava organização a credibilidade que só os cobranças maiores sobre a diretoria, os vencedores conseguem. As realizações jogadores e a comissão técnica. Na Copa inconscientes renderam-se às João Havelange de 2000, a racionalidades que tentam explicar o desclassificação vem acompanhada do sucesso da conquista. Mas como o futebol discurso de que o Clube Atlético caracteriza-se pelas mudanças rápidas, Paranaense não é um time de tradição; na novas expectativas são criadas. Novas Copa do Brasil de 2001 o discurso foi a dúvidas surgem: e o título da Copa falta coragem para enfrentar times Libertadores da América? Os jogadores tradicionais em jogos decisivos; na Copa campeões permanecerão no clube? E o Sul Minas de 2001 o discurso foi o de que técnico? Estas indagações fomentam o o elenco de jogadores era inapropriado caráter dialético do imaginário. Assim, tal para a grandiosidade que a torcida atribui como afirma Bertold Brecht: o que é, por ao clube. Mesmo a conquista do ser tal como é, não vai ficar tal como está. Campeonato Paranaense de 2001, já não soava como uma grande conquista, apesar

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i “Os interesses objetivos específicos são aqueles de natureza econômica, jurídica, política, ideológica e social definidos pelas classes ou grupos sociais como sendo indicativos de sua própria condição. Nesse sentido, o poder não é uma condição individual e tampouco um atributo coletivo. Trata-se de uma capacidade coletiva e, como tal, deve ser adquirida, desenvolvida e mantida, sendo que os indivíduos inserem-se em suas relações a partir de funções que desempenham no âmbito coletivo, de forma orgânica ou não, podendo influir, coordenar, liderar, representar, organizar e conferir legitimidade.” (FARIA, 2000, p. 17). ii O Clube Atlético Paranaense conquistou o título de Campeão Brasileiro em 2001, foi Vice-Campeão em 2004 e Vice-Campeão da Copa Libertadores da América em 2005. José Henrique de Faria Doutor em Administração (FEA/USP); Pós-Doutorado em Labor Relations (University of Michigan); Professor Senior (UFPR) Diretor Geral da UNIBRASIL. E-mail: [email protected]

Francis Kanashiro Meneghetti Mestre em Administração (UFPR); Doutorando em Educação (UFPR) Professor e Coordenador de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da UNIBRASIL. E-mail: [email protected]

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