Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais Faculdade de Serviço Social

Mossicléia Mendes da Silva

Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011- 2016

Rio de Janeiro 2018

Mossicléia Mendes da Silva

Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora, ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Trabalho e Política Social.

Orientadora: Profa. Dra Rosangela Nair de Carvalho Barbosa

Rio de Janeiro 2018

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CCSA

S586 Silva, Mossicléia Mendes da Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016 / Mossicléia Mendes da Silva. – 2018. 417f.

Orientadora: Rosangela Nair de Carvalho Barbosa. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social. Bibliografia.

1. Pobreza - Brasil – Teses. 2. Fome – Brasil - Teses. 3. Brasil – Política social - Teses. 4. Cidadania - Brasil – Teses. I. Barbosa, Rosângela Nair de Carvalho. II.Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. IV. Título.

CDU 364.22

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Mossicléia Mendes da Silva

Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora, ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Trabalho e Política Social.

Defesa em 15 de junho de 2018. Banca Examinadora: ______Profª Dra Rosangela Nair de Carvalho Barbosa (Orientadora) Faculdade de Serviço Social - UERJ

______Profª. Dra. Elaine Rossetti Behring Universidade Federal do Rio de Janeiro

______Prof. Dr. Ney Luiz Teixeira de Almeida Faculdade de Serviço Social – UERJ

______Profª. Dra. Ana Paula Ornellas Mauriel Universidade Federal Fluminense

______Prof Dr. Cézar Henrique Miranda Coelho Maranhão Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2018

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à Raíssa, minha filha, e a Rogério, meu marido, por formarem comigo nossa jovem e típica família nordestina, que vem à cidade grande “tentar a vida”. Vocês tornaram essa caminha menos árdua: Rogério, por ser essa fortaleza e Raíssa por ser pureza e amor sublime!

À minha amiga Analice Martins (in memoriam), por sua amizade ímpar, que apesar do breve tempo, deixou marcas para a vida inteira. Sua força arrebatadora ainda me impulsiona e sua coragem extraordinária sempre vai me inspirar!

AGRADECIMENTOS

A gratidão é um sentimento que nos engradece. Uma seção de agradecimentos numa Tese de Doutorado não pode dimensionar esse sentimento, já que tanto afeto recebido, tantas orações, apoio, positividade, companheirismo, amor, amizade, generosidade e força não se inscrevem em breves linhas. Mas correndo o risco de omissões ou clichês, eu quero agradecer! A Jesus misericordioso, com quem tenho uma relação de espiritualidade que foge a dogmas ou religiões. A fé tem sido sustento e o amor e jamais será imposição; Aos meus pais amados, Chico Feitoza e Margarida, que me devotam um amor inexplicável, que acreditam em mim, sempre, até mesmo quando eu mesma desacredito. O sacrifício de vocês, suas histórias de vida, lutas e desafios são um exemplo de superação, força e generosidade. Amo vocês. Ao meu marido, Rogério, companheiro de vida e grande apoiador da minha trajetória na pós- graduação, cujo suporte material e afetivo foram indispensáveis para essa conquista. Obrigada por acreditar tanto em mim e me incentivar nos momentos em que perdi toda a confiança em mim mesma. Te amo. À minha filha Raíssa, que sequer entende o significado desse Doutorado, mas sentiu na pele as distâncias da mãe para se dedicar à construção deste trabalho. Um dia você vai entender, meu amor, que isso foi por você, mais do que por qualquer outra pessoa ou causa. Mamãe te ama. Às minhas irmãs, Mossiclevia (Maninha) e Mariana (Nana), por me fazerem sentir um dos sentimentos mais maravilhosos do mundo que é TER IRMÃS! Vocês são as melhores que eu poderia ter. Nossa relação me orgulha demais. Amo as duas, sempre! Aos meus familiares, avós, tios e tias, primos e primas, madrinhas, sogros, cunhada e cunhados por toda torcida, pelas demonstrações de orgulho, de amor, pela admiração que sempre demonstram e que é motor para continuar na luta. À minha querida orientadora, Professora Rosangela Barbosa, que foi um grande presente do Doutorado. Não tenho palavras para expressar minha gratidão por toda atenção à mim dispensada, pelo empenho em me fazer avançar, por encaminhar um processo muitas vezes complexo como é a orientação com todo cuidado, zelo, afeto e compromisso irretocável com uma orientação séria, competente e afinada. Sou grande admiradora dessa intelectual e dessa professora extraordinária! À minha prima Adeilma, por toda ajuda com minha filha Raíssa nesses anos de pós-graduação e pela torcida.

Às amigas de longe, que vem desde a graduação, Gláucia, Edilania, Karielle, Karol, Sueywannni, Suellen, Natalia, Roberta e Jucélia, pelas partilhas vividas “na época da Faculdade”, pelas aventuras e desventuras no movimento estudantil, na partilha da mesma casa e pela amizade alimentada em tantos anos. Quero ter vocês sempre em minha vida; Às amigas que a UERJ me deu no mestrado: Maria Clara, Thaís, Lílian, Lauren, Andreia, Janaína, pela acolhida afetuosa, pelo diálogo e admiração recíprocos; e, no doutorado: Tatiana, Elaene, Gracielly e, especialmente, Milena que se tornou uma das mulheres de referência na minha vida. Vocês são inspiração, sempre. Aos professores que compuseram a Banca de Qualificação desta Tese e que compõem a Banca de Defesa, Ana Paula Ornellas Mauriel, Cézar Maranhão, Elaine Behring, Ney Luiz de Almeida, pelas contribuições valiosas, que com certeza potencializaram o alcance deste estudo.

RESUMO

SILVA, Mossicléia da Silva. Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016. 2018. 417f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

A presente tese tem como objetivo analisar a política de assistência social e o processo de modernização (conservadora) ocorrido na mesma, sobretudo a partir das injunções colocadas pelo Plano Brasil sem Miséria na esfera federal no período de 2011 a 2016, problematizando o projeto de desenvolvimento dos governos petistas como resposta peculiar e banal da consciência burguesa à crise do capital no capitalismo dependente. Para tanto, recorremos ao aprofundamento de categorias teóricas de primeira mediação, como capital, trabalho, valor, desenvolvimento capitalista e desenvolvimento capitalista dependente e periférico para adensar nossa crítica ao desenvolvimento como apologia da acumulação capitalista. Neste particular, esmiuçamos os componentes ontológicos do desenvolvimento capitalista e sua lei geral de acumulação que implica produção de riqueza e pobreza simultaneamente. Procedemos à reflexão acerca desse processo na particularidade histórica do capitalismo brasileiro, demonstrando a centralidade do Estado no processo de industrialização e modernização das relações sociais capitalistas no país, explicitando a ideologia desenvolvimentista como componente central na consolidação desse processo. Tal movimento fincou fundamentos teóricos que subsidiaram a análise dos governos petistas e a fragilidade do suposto projeto de desenvolvimento que teria sido alternativa às diretrizes neoliberais. Nesta estratégia político-governamental do Partido dos Trabalhadores a defesa do crescimento econômico é conciliada ao chamado desenvolvimento social, centrado nas estratégias de intervenção sobre a pobreza, expressando um processo de decadência ideológica. No cerne desse arranjo, o Plano Brasil sem Miséria centraliza as ações do governo Dilma Rousseff para enfrentamento das dificuldades reticentes no Programa Bolsa Família em relação à garantia de acesso aos serviços sociais essenciais pelos beneficiários do programa. A política de assistência social passa a ser componente articulador do Plano, carreando estratégias de focalização para outras políticas sociais e é objeto de uma ampla investida do Estado no sentido de modernização da gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de modo a torna-lo funcional às requisições do Brasil sem miséria. Constatamos que esse movimento encetou uma ofensiva gerencialista sobre a política de assistência social, aprofundando a lógica conservadora da focalização e da seletividade na área, assumindo funções de gestão da pobreza. Todo esse processo é avalizado pela retórica governamental como sendo um intensivo esforço de inovação na gestão pública, mas nossas análises demonstraram que se tratou, na verdade, de uma tentativa tecnicista e pragmática do Estado em contornar as contradições da divisão social do trabalho no âmbito das ações do Estado no tocante à questão da pobreza, que se camufla sobre o fetiche da gestão.

Palavras-chave: desenvolvimento capitalista; Estado; pobreza; assistência social; Brasil sem Miséria.

ABSTRACT

SILVA, Mossicléia da Silva. Capitalist development and social assistance in : the crossroads of modernization with the Brazil without Misery Plan, 2011-2016. 2018. 417f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

The purpose of this thesis is to analyze the Social Assistance Policy and the modernization process (conservative) that took place in this policy, mainly from the injunctions placed by the Brazil without Misery Plan in the federal sphere in the period from 2011 to 2016, problematizing the development project of the Workers’ Party governments as a peculiar and banal response of bourgeois consciousness to the crisis of capital in dependent capitalism. In order to do so, we have recourse to the deepening of theoretical categories of first mediation, such as capital, labor, value, capitalist development, and dependent and peripheral capitalist development to add to our critique of development as an apology for capitalist accumulation. In this way, we detail the ontological components of capitalist development and its general law of accumulation that implies the production of wealth and poverty simultaneously. We proceeded to reflect on this process in the historical particularity of Brazilian capitalism, demonstrating the centrality of the State in the process of industrialization and modernization of capitalists’ social relations in the country, explaining the developmental ideology as a central component in the consolidation of this process. In our analysis this process provided the theoretical foundations that subsidized the analysis of the Workers’ Party governments and the fragility of the supposed developmental project that would have been an alternative to the neoliberal directives. In this political-governmental strategy of the Workers’ Party, the defense of economic growth is reconciled with the so-called social development, centered on strategies of intervention on poverty, expressing a process of ideological decay. At the heart of this arrangement, the Brazil without Misery Plan in the Dilma Rousseff government has its actions centered on coping with the difficulties of the Bolsa Família Program with a focus on guaranteeing access to essential social services by the beneficiaries of the program. The Plan is then articulated by the social assistance policy, taking the strategy of focusing on other social policies and is the object of a broad effort by the State seeking a modernization of the management of the Sistema Único de Assistência Social (Social Assistance Unic System), making it functional to the requirements of the Brazil without Misery Plan. This observed movement led to a managerialist offensive on social assistance policy, deepening a conservative logic of focus and selectivity in the area, assuming functions of poverty management. This whole process is endorsed by governmental rhetoric as an intensive effort of innovation in public management, but our analyzes have shown that it was actually a technical and pragmatic attempt by the State to circumvent the contradictions of the social division of labor within the framework of actions of the State on the issue of poverty, which camouflages the management fetish.

Key-words: capitalist development; State; poverty; social work; Brazil without Misery Plan.

RESUMEN

SILVA, Mossicléia da Silva. Desarrollo capitalista y asistencia social en Brasil: la encrucijada de la modernización con el Plan Brasil sin Miseria, 2011-2016. 2018. 417f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

La presente tesis tiene como objetivo analizar la política de asistencia social y el proceso de modernización (conservadora) que ocurrió en la misma, sobretodo a partir de las imposiciones colocadas por el Plan Brasil sin Miséria en esfera nacional en el periodo de 2011 a 2016, problematizando el proyecto de desarrollo de los gobiernos petistas como respuesta peculiar y banal de la conciencia burguesa a la crisis del capital en el capitalismo dependiente. Para esto, recurrimos a la profundización de categorias teóricas de primera mediación, como capital, trabajo, valor, desarrollo capitalista y desarrollo capitalista dependiente y periférico para adensar nuestra crítica al desarrollo como apología de la acumulación capitalista. Dentro de esa perspectiva, desmenuzamos los componentes ontológicos del desarrollo capitalista y su ley general de acumulación capitalista que implica producción de riqueza y pobreza simultaneamente. Procedemos a la reflexión sobre ese proceso en la particularidad histórica del capitalismo brasileño, demostrando la centralidad del Estado en el proceso de industrialización y modernización de las relaciones sociales capitalistas en el país, explicitando la ideologia desarrollista como componente central en la consolidación de ese proceso. Tal movimiento clavó los fundamentos teóricos que subsidiaron el análisis de los gobiernos petistas y la fragilidad del supuesto proyecto desarrollista que habría sido alternativa a las directrices neoliberales. En esta estratégia político-gubernamental del Partido de los Trabajadores, la defensa del crecimiento económico es conciliada al llamado desarrollo social, centrado en las estratégias de intervención sobre la pobreza, expresando un proceso de decadencia ideológica. En el centro de ese arreglo, el Plan Brasil sin Miséria centraliza las acciones del gobierno Dilma Rousseff para el enfrentamiento de las dificultades reticentes en el Programa Bolsa Família en relación a la garantía de acceso a los servicios sociales esenciales por los beneficiarios del programa. La política de asistencia social pasa a ser componente articulado del Plan, ocasionando estratégias de focalización para otras políticas sociales y es objetivo de una amplia embestida del Estado en el sentido de la modernización de la gestión del Sistema Único de Asistencia Social (SUAS) de modo a tornarlo funcional a las exigencias del Brasil sin Miséria. Constatamos que ese movimiento estableció una ofensiva gerencialista sobre la política de asistencia social, profundizando la lógica conservadora de la focalización y de la selectividad en el área, asumiendo funciones de gestión de la pobreza. Todo ese proceso es avalado por la retorica gubernamental como siendo un esfuerzo intenso de inovación en la gestión pública, pero nuestros análisis demostraron que se trató, en realidad, de un intento tecnicista y pragmático del Estado en contornar las contradicciones de la divisón social del trabajo en el ámbito de las acciones del Estado respecto a la pobreza, que se camufla sobre el fetiche de la gestión.

Palabras-llave: desarrollo capitalista; Estado; pobreza; asistencia social; Brasil sin Miséria.

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 01 ̶ Exportações de Produtos da Industria de Transformação de Baixa Intensidade Tecnológica – Brasil (UU$ milhões)...... 182 Gráfico 02 ̶ Evolução anual das desonerações tributárias do PAC – 2010-2014 (R$ bilhões)...... 282 Gráfico 03 ̶ Despesas do Orçamento da Seguridade Social, em % do PIB, em 2005, 2010 e de 2013 a 2016...... 288 Gráfico 04 ̶ Crescimento real das despesas primárias por função – entre 2010 e 2014...... 289 Gráfico 05 ̶ Comparação entre os recursos orçamentários destinados à Ações e Serviços socioassistenciais do SUAS e o Programa Bolsa Família em diferentes anos. Valores em R$ Bilhões...... 293 Gráfico 06 ̶ Situação funcional dos trabalhadores da Rede Socioassistencial Pública (2005-2010)...... 298 Gráfico 07 ̶ Percentual de Unidades de Prestação de Serviços Socioassistenciais 301 Privadas sem Fins Lucrativos, segundo o tipo de pessoal ocupado, estagiários e voluntários - Brasil - 2014-2015 Gráfico 08 ̶ Proporção de imóveis alugados e próprios para realização dos serviços dos Centros POP entre 2011 e 2014...... 365 Gráfico 09 ̶ Percentual de CRAS por situações frequentemente identificadas no 368 território de abrangência - Brasil, 2011 a 2013...... Gráfico 10 ̶ Atividades de mobilização junto ao público do Cadastro Único para participação do Acessuas/trabalho...... 372

LISTAS DE QUADROS E TABELAS

Quadro 01 ̶ Investimento do BNDES e dos fundos de pensão de empresas estatais em grandes empresas brasileiras atuantes no exterior (2008)...... 173 Quadro 02 ̶ Exportações de Produtos da Indústria de Transformação de Baixa Intensidade Tecnológica – Brasil (UU$ milhões)...... 254 Tabela 01 ̶ Tabela 1 – Participação das Despesas Financeiras no Orçamento Público Valores em bilhões, deflacionados pelo IGP-DI, a preços médios, de 2015...... 280 Quadro 03 ̶ Receitas, despesas da seguridade social. Valores em R$ bilhões, deflacionados pelo IGP-DI, a preços médios de 2016...... 284 Tabela 02 ̶ Programações estranhas ao conceito constitucional de seguridade social incluídas pelo governo no Orçamento da Seguridade Social, em 2005, 2008, 2010 e de 2013 a 2016,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, 285 Tabela 03 ̶ Despesas do Orçamento da Seguridade Social, em % do PIB, em 2005, 2010 e de 2013 a 2016...... 286 Quadro 04 ̶ Orçamento da Seguridade Social, por funções. Valores em R$ bilhões...... 290 Quadro 05 ̶ Distribuição dos Papéis das Unidades Organizacionais 311 Tabela 04 ̶ Pronatec – instituições privadas sem fins lucrativos que receberam recursos...... 344 Quadro 06 ̶ Programas e resultados da Inclusão Produtiva Rural (PBSM, 2011- 2014)...... 344 Quadro 07 ̶ Resultados dos chamados “públicos específicos” – PBSM/2011- 2014...... 347 Quadro 08 ̶ Resumo dos principais resultados do Plano Brasil sem Miséria (2011- 358 2014)...... Quadro 09 ̶ Atividades realizadas para execução dos serviços socioassistenciais.... 363 Quadro 10 ̶ Cursos do capacita SUAS...... 376 Quadro 11 ̶ Lei Orçamentária Anual (LOA) 2018 referente aos serviços socioassistenciais do SUAS...... 393

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 ̶ Modelo de classificação de Atores...... 310 Figura 02 ̶ Estrutura de Fluxo do SUASweb em 2004/2005...... 312 Figura 03 ̶ Estrutura de Fluxo do SUASweb em 2004/2005...... 313 Figura 04 ̶ Panorama da estrutura do PBS ...... 333 Figura 05 ̶ “Ciclo de aperfeiçoamento” e valorização do Programa Bolsa Família...... 338 Figura 06 ̶ Eixo inclusão produtiva...... 340 Figura 07 ̶ Eixo acesso a serviços públicos...... 357

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI Ato Institucional ANFIP Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil ANL Aliança Nacional Libertadora BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social BPC Benefício de Prestação Continuada BRICS BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul CADÚnico Cadastro Único CEB Comunidades Eclesiais de Base CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e Caribe CFESS Conselho Federal de Serviço Social CIDE CIDE Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico CNAS Conselho Nacional de Assistência Social CNSS Conselho Nacional de Serviço Social CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar CRAS Centros de Referência de Assistência Social CREAS Centros de Referência Especializado de Assistência Social EUA Estados Unidos da América FED Federal Reserve FHC Fernando Henrique Cardoso FIES Fundo de Financiamento Estudantil FMI Fundo Monetário Internacional FNAS Fundo Nacional de Assistência Social GIA Grupo Interministerial de Acompanhamento IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDE Investimento Direto Estrangeiro IDG Índice de Gestão Descentralizada

IDV Identificação de Domicílios em Vulnerabilidade IOF Imposto sobre Operações Financeiras de Crédito, Câmbio e Seguros IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LBA Legião Brasileira de Assistência LOAS Lei Orgânica de Assistência Social MAS Ministério da Assistência Social MDS Ministério do Desenvolvimento Social e combate à fome MEC Ministério da Educação MEI Microempreendedor Individual MOPS Mapa de Oportunidades e Serviços Públicos MP Medida Provisória MPAS Ministério de Previdência e Assistência Social MPL Modelo Liberal Periférico NEEPOS/UnB Núcleo de Estudos e Pesquisa em Política Social da Universidade de Brasília NOB Norma Operacional Básica ONG Organização Não Governamental ONU Organização das Nações Unidas PAC Programa de Aceleração do Crescimento PAEG Plano de Ação Econômica do Governo PAIF Programa de Atenção Integral à Família PBF Programa Bolsa Família PBSM Plano Brasil sem Miséria PCB Partido Comunista Brasileiro PDP Programa Democrático-Popular PDRE-MARE Plano Diretor da Reforma do Estado do Ministério da Administração e da Reforma do Estado PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PIB Produto Interno Bruto PIS Programas de Integração Social PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAS Política Nacional de Assistência Social PND Plano Nacional de Desenvolvimento

PPP Parcerias Público-Privadas PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego PROUNI Programa Universidade para Todos PSB Proteção Social Básica PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSE Proteção Social Especial PT Partido dos Trabalhadores PTR Programas de Transferência de Renda RDN Revolução Democrática Nacional RMA Registro Mensal de Atendimentos RMV Renda Mensal Vitalícia SAGI Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação SAS Sistema Seriado de Avaliação SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) SESC Serviço Social do Comércio SESI Serviço Social da Indústria SISC Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SOP Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento SUAS Sistema Único de Assistência Social SUS Sistema Único de Saúde TCU Tribunal de Contas da União TIC Tecnologias de Informação e Comunicação

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 17 1 A DINÂMICA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA À LUZ DA CRÍTICA MARXISTA: ELEMENTOS PARA PENSAR O MOVIMENTO AUTOEXPANSIVO DO CAPITAL E SUAS CONTRADIÇÕES...... 25 1.1 O desenvolvimento capitalista: a mercadoria e a lei do valor...... 28 1.2 O desenvolvimento pensado a partir da lei geral de acumulação capitalista: efeitos sobre a classe trabalhadora e a reprodução ampliada das contradições fundamentais do capital...... 36 1.2.1 O capitalismo e as formas desiguais e combinadas de desenvolvimento... 41 1.3 O imperialismo e a hegemonia das finanças como estágio avançado do desenvolvimento capitalista...... 46 1.4 O capital e sua ineliminável propensão a crises...... 58 1.5 A financeirização do capital como estratégia de desenvolvimento no contexto contemporâneo...... 65 1.6 O Estado e sua funcionalidade ao desenvolvimento do capitalismo.... 77 2 O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO BRASIL: FORMAÇÃO SOCIAL, ESTADO E CLASSES SOCIAIS...... 84 2.1 Aspectos lógicos fundamentais da formação social do Brasil: heteronomia e a peculiar revolução burguesa...... 84 2.2 O desenvolvimento capitalista, a industrialização e o Estado brasileiro: de Vargas a Juscelino Kubitschek...... 93 2.2.1 O desenvolvimento capitalista visto pela CEPAL...... 111 2.2.2 O desenvolvimento capitalista à luz da Teoria Marxista da Dependência 117 2.2.3 A Ditadura civil-militar e o aprofundamento do padrão dependente de acumulação capitalista ...... 126 2.3 O desenvolvimento capitalista no Brasil nos anos 1980-1990: entre a crise e a ofensiva neoliberal...... 140

2.4 Os governos petistas e seu projeto de enfrentamento à crise do capital: reprodução apologética do capital e a narrativa da justiça social...... 159 2.4.1 O PT: do “ideal socialista” ao projeto democrático-popular “ultraflexibilizado” ...... 16 1 2.4.2 Os governos petistas e a conclamação ao crescimento econômico com “inclusão social” ...... 168 3 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: entre a regulamentação, o paralelismo e a modernização conservadora...... 207 3.1 Breves notas sobre a constituição da assistência social no Brasil...... 216 3.2 A inobservância da LOAS e o paralelismo dos programas focalizados de “combate à pobreza”...... 234 3.3 Os governos Lula: a onda de regulamentação da assistência social e sua modernização conservadora...... 247 4 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NOS GOVERNOS PETISTAS: paralelismo, modernização e o fetiche da gestão...... 272 4.1 A política de ajuste fiscal e as implicações para a seguridade social.. 276 4.2 A expansão da política de assistência social via Programas de Transferência de Renda (PTR) ...... 288 4.3 O Plano Brasil sem Miséria: reprodução do paralelismo e intensificação da perspectiva gerencialista...... 312 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 382 REFERÊNCIAS ...... 392 ANEXO A – Fontes Documentais e Legislação...... 413

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INTRODUÇÃO

“O Brasil provou ao mundo que a melhor forma de crescer era distribuindo renda e provou também que a melhor política de desenvolvimento era o combate à pobreza” Dilma Rousseff

“O que é distribuição “justa”? Os burgueses não consideram que a atual distribuição é “justa”? E não é ela a única distribuição “justa” tendo como base o atual modo de produção? As relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas? Os sectários socialistas não têm eles também as mais diferentes concepções de distribuição “justa”? Karl Marx

As citações que abrem a presente tese são enigmáticas! A primeira compõe o discurso da então Presidenta da República, Dilma Rousseff, no lançamento do Plano Brasil sem Miséria, em 2011. A segunda constitui parte da “Crítica do Programa de Gotha”, escrito por Karl Marx, em 1875. Elas expõem perspectivas radicalmente antagônicas e ainda que o pensamento de Marx anteceda mais de 100 anos o discurso da Presidenta Dilma, parece uma resposta antecipada ao discurso abstrato da distribuição de renda e da apologia do desenvolvimento capitalista, que como veremos carrega muito mais do que os limites do socialismo reformista que Marx criticava. Nossa tese não é um tratado sobre distribuição de renda, até por que este é um conceito abstrato incompatível com a perspectiva teórico-metodológica que empreendemos nesse estudo. Mas ao envolver distribuição de renda com política de desenvolvimento e combate à pobreza numa única frase, a fala da Presidenta é emblemática do arcabouço político-ideológico que sustenta o vago projeto de desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores, no qual se processa o que iremos problematizar como modernização conservadora da política de assistência social. Este, sim, é nosso objeto de estudo nesta tese. Assim, o objetivo central deste estudo é produzir conhecimentos críticos sobre a política de assistência social e o processo de modernização (conservadora) ocorrido na mesma, sobretudo a partir das injunções colocadas pelo Plano Brasil sem Miséria na esfera federal no período de 2011 a 2016, problematizando o projeto de desenvolvimento dos governos petistas como resposta peculiar e banal da consciência burguesa à crise do capital no capitalismo dependente. A motivação para este campo temático se relaciona a minha trajetória de pesquisa desde a graduação em Serviço Social, quando a política de assistência social vivia um intenso movimento de expansão com a implementação do Sistema Único de Assistência Social nos 18

municípios brasileiros, nos anos tais. Seguidamente, nos estudos pós-graduados no âmbito do mestrado, as investigações foram dirigidas à dinâmica de expansão da referida política e as implicações para o Projeto Ético-Político do Serviço Social, concluída em 2013. A partir da dissertação de mestrado, novos caminhos de estudos começaram a despontar no meu cenário de interesses de investigação, que relacionava a centralidade e expansão da política de assistência social no projeto político-governamental do PT, tendo como referência o marco da crise estrutural do capital. Neste ínterim, já sob o comando de Dilma Rousseff, o governo petista reorientava o campo da assistência social com o Plano Brasil sem Miséria, cujo principal objetivo era situado como o de “erradicar a pobreza extrema até 2014”. Nossas questões orbitavam em torno do questionamento sobre: qual o significado efetivo do Plano Brasil sem Miséria para a política de assistência social? Que implicações ele trazia quanto à gestão e o fortalecimento dos serviços socioassistenciais do SUAS? E, no quadro geral da pobreza, qual a sua funcionalidade na reprodução da força de trabalho? Articulando essas questões ao âmbito da totalidade do desenvolvimento capitalista no Brasil: quais os nexos entre o tímido projeto de desenvolvimento pautado pelo PT e a política de alívio à pobreza centrada na política de assistência social? Nossa hipótese era de que, com o referido Plano, a política de assistência social passa a ser objeto de investimento especial tanto para modernização da sua gestão, quanto para ampliação dos equipamentos sociais, sendo capitalizada para os objetivos do Plano Brasil sem Miséria. Isso porque passados os dois mandatos do presidente Lula, o governo federal, sob a presidência de Dilma Rousseff, entendeu a incompletude da política dado os limites de acesso da população envolvida a outros serviços públicos essenciais. E, assim, com o Plano, o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) passa a centralizar ações e atividades do Brasil sem Miséria, aprofundando a redução de seu raio de atuação, ampliando o acesso da população usuária aos serviços, mas restringindo, sobremaneira, a política de assistência social à gestão da pobreza.1 Com a implementação de um plano de amplo apelo político, diretamente ligada à figura da Presidenta, vários ministérios, políticas, entidades estatais e não-estatais foram envolvidos no rol de estratégias e ações. Para fazer frente ao desafio da empreitada, o governo consolidou e ampliou, o que entendemos como uma via gerencialista da política social. No

1Em nossa dissertação de mestrado, intitulada “Projeto ético-político e assistência social: um estudo do cotidiano de trabalho dos (as) assistentes sociais do Centro Sul\Vale do Salgado-CE”, defendida em julho de 2013, já apontávamos essa tendência com o Programa Bolsa Família, que foi instituído no ano de 2004, por meio da Lei No 10.836, no âmbito do Programa Fome Zero, no primeiro governo do Presidente Lula. 19

cerne das contradições inerentes à divisão do trabalho no âmbito da reprodução, a técnica da gestão é apresentada como fetiche para encobrir as profundas tensões da própria divisão do trabalho, inscrita na política social. A centralidade conferida à política de assistência social nos governos do PT é fundamentada em uma dada opção de política social – compensatória e focalizada – que despreza padrões universais de proteção social, e é executada a partir de um molde específico de “enfrentamento à pobreza”. Tal padrão está fundamentalmente ancorado nos programas assistenciais de “alívio à pobreza”, majoritariamente assentados na transferência de renda condicionada e no apoio e incentivo ao empreendedorismo. O Plano Brasil sem Miséria se configura como novo estágio de consolidação desse padrão de “enfrentamento à pobreza”, implicando no adensamento da tendência marcadamente presente na política de assistência social. A pobreza é o objeto central articulador da política de assistência social, limitando sobremaneira a abrangência de suas ações. Muito embora, o Plano Brasil sem Miséria esteja baseado na retórica da ampliação dos serviços ao segmento focalizado e empobrecido. Tais estratégias se consolidam no marco das respostas à crise estrutural do capital, que se acentuam drasticamente pós-medidas neoliberais, na entrada dos anos 2000. No contexto de crise das ideias ortodoxas neoliberais, visto a impossibilidade concreta de garantirem a retomada da acumulação e ainda o aprofundamento das expressões da questão social2, exacerba-se o perigo eminente de sublevação social. Sobretudo, pelo aumento exorbitante nos níveis de desigualdade social e pobreza extrema, processando-se uma inflexão nas propostas político-governamentais que ganham fôlego, mormente, a partir do segundo mandato do presidente Lula.

2 A questão social é apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista amadurecida, cuja raiz é a crescente socialização da produção em detrimento da apropriação privada dos seus frutos (IAMAMOTO, 2007). É a manifestação da contradição fundamental da sociedade capitalista, fundada na divisão de classes e no antagonismo de seus interesses. Envolve, portanto, uma arena de lutas políticas e culturais e assume cariadas expressões que condensam múltiplas desigualdades relativas a disparidades de gênero, características étnico-raciais e formações regionais. Essa conceituação remete a uma apreensão crítica da questão social e baliza o seu entendimento no âmbito das diretrizes curriculares para os Cursos de Serviço Social. As Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) efetivamente apontaram a questão social como o elemento que dá concretude à profissão, ou seja, que é base de fundação histórico-social na realidade e que, nessa qualidade, portanto, deve constituir o eixo ordenador do currículo, diga-se, da formação profissional. Assim, a questão social adquire um novo estatuto no projeto de formação profissional engendrado pelo serviço social brasileiro da década de 1990 (BEHRING e SANTOS, 2009). Entretanto, é preciso observar que essa admissão do termo no meio profissional não é consensual. O debate em torno da questão social envolve uma variedade significativa de polêmicas e seu entendimento como matéria do Serviço Social, bem como de sua precisão teórica – uma vez que o termo é utilizado em diversas matizes, inclusive nas mais conservadoras – não sendo termo consensual, sequer, entre a categoria profissional dos assistentes sociais. É importante chamar atenção para essas divergências e deixar explícito que a sua utilização em matrizes teórico-políticas conservadoras requer sempre sua problematização. 20

O projeto político encabeçado3 pelo PT apesar de se inserir no retorno do debate do desenvolvimento como projeto nacional, não avança muito além da perspectiva da conciliação de uma estratégia de consolidação do agronegócio e da exportação de commodities com a política de macroestabilidade econômica, pelo qual o partido buscou lidar com o padrão de reprodução do capitalismo. Combinado à narrativa de garantir o desenvolvimento econômico com justiça social e distribuição de renda, é que a retórica do “alívio à pobreza” continua a figurar nas principais medidas relacionadas à reprodução da força de trabalho. É no cerne desse projeto partidário e governamental que a assistência social ganha relevo e centralidade, assumindo uma funcionalidade tática aos objetivos do Plano Brasil sem Miséria. O método que orientou este estudo foi o materialismo histórico-dialético, recorrendo a categorias de análise da obra marxiana e de autores da tradição marxista, destacando aqui algumas categorias fundamentais como capital, trabalho, desenvolvimento capitalista, capitalismo dependente e periférico, Estado. Numa aproximação histórica da realidade, que é também o ponto de partida da investigação, a pesquisa define dimensões mais fenomênicas como pobreza e política social, na expectativa de prosseguir o rico movimento dialético, de modo a elaborar a síntese – como concreto pensado –, que é a reprodução no plano do pensamento da realidade concreta. O aludido método é indispensável para captar os complexos processos pelos quais se engendram e consolidam as tendências de “enfrentamento à pobreza” no contexto brasileiro, com a implementação do Plano Brasil Sem Miséria e as implicações que ele impetra na modernização e ampliação da política de assistência social e sua redução à gestão da pobreza, considerando as múltiplas determinações da realidade. Tal abordagem nos obriga a partir do entendimento de que estes processos não se realizam por questões exclusivas e endógenas ao âmbito de um Plano ou política social

3 A caracterização dos governos petistas como desenvolvimentistas aparece em variados pronunciamentos públicos governamentais e está impresso na apresentação do livro “Presente e futuro do desenvolvimento brasileiro” organizado pelo IPEA, que é o órgão de pesquisas do governo federal na área de desenvolvimento e planejamento. O livro é uma coletânea de artigos relativos à temática do desenvolvimento brasileiro, organizado pela instituição e lançado em 2014. O termo aparece em outros artigos que compõem a coletânea e também é usado, nessa mesma publicação governamental, como sinônimo de “social-desenvolvimentismo”, “novo desenvolvimentismo”, “neodesenvolvimentismo” ou apenas “desenvolvimentismo”. Ademais, ele figura em outros discursos e publicações ligadas às instituições governamentais e intelectuais de diversas matizes teóricas e políticas. A pesquisa relacionará essas fontes e suas perspectivas analíticas no bojo do processo investigativo, que está aqui sendo apresentado. Para os fins da melhor comunicação narrativa adotaremos sempre o termo desenvolvimentismo para designar o projeto petista de governo, sobretudo às diretrizes assumidas a partir do segundo mandato Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e que se aprofundam nos governos de Dilma. Apenas em citações textuais o termo aparecerá antecedido dos adjetivos “neo”, “novo” ou “social”. No curso da tese problematizaremos as distinções conceituais e históricas sobre o desenvolvimento nos ciclos do capitalismo no país, o que esclarecerá os limites da nomeação adotada no período analisado, pelos governos do PT. 21

específica, mas pelo contrário, são determinados pelo movimento amplo de produção e reprodução das relações sociais. Isto demanda, portanto, adensar os estudos acerca do movimento do capital e as particularidades que ele assume na realidade dependente e periférica do Brasil. Mais especificamente, tal empreendimento requer situar o objeto de estudo no contexto da crise do capital e das estratégias desenvolvidas para seu enfrentamento, considerando a direção social, política e econômica assumidas pelo Estado, particularizando o contexto dos governos do PT e a elaboração e implementação do Plano Brasil sem Miséria como resposta peculiar e banal da consciência burguesa à crise do capital na periferia dependente, nas suas mazelas mais explícitas, como a extrema pobreza.4 Ao tratar da “coisa em si” a dialética permite a destruição do mundo da pseudoconcreticidade, esse “claro-escuro de verdade e engano” (KOSIK, 1976, p. 11). Na concepção do aludido autor, é pelo método crítico-dialético que o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado, e apreende a existência real da “coisa”, seu núcleo interno, suas relações e seu movimento determinantes. Assim, este método nos leva a problematizar a pobreza como fenômeno inerente ao modo de produção capitalista, fundamento de sua própria lei geral de acumulação. Lança luz sobre as abordagens que procuram engendrar estratégias para sua superação, demonstrando que essa é uma possibilidade inexistente no quadro do capitalismo, uma vez que a erradicação da pobreza somente pode se pela supressão da ordem do capital. Assim, assentada neste método, esta pesquisa visa também analisar o Plano Brasil sem Miséria nos governos Dilma, no sentido de desvendar a patente decadência ideológica que ele expressa no projeto político do PT, dentro das frágeis medidas encetadas por tais governos ante a crise estrutural do capital no capitalismo dependente brasileiro. A decadência ideológica é uma categoria desenvolvida por Lukács para explicar e desvelar a culminância dos processos político-ideológicos pelos quais a burguesia assume a

4 O Plano Brasil sem miséria adota uma linha própria de extrema pobreza, que era de R$ 70,00 em 2011, no lançamento do Plano, e foi ajustada para R$ 77,00 em 2014. O governo também demarca algumas condições básicas para aferir essa condição, como: não ter banheiro de uso exclusivo; ou não ter ligação com rede geral de esgoto ou pluvial e não ter fossa séptica; ou estar em área urbana sem ligação à rede geral de distribuição de água; ou estar em área rural que não tenha ligação à rede geral de distribuição de água e ou poço ou nascente na propriedade; ou não ter energia elétrica; ou ter pelo menos um morador de 15 anos ou mais de idade analfabeto; ou ter pelo menos três moradores de até 14 anos de idade; ou ter pelo menos um morador de 65 anos ou mais de idade. Apesar da retórica de que estas variáveis são também definidoras da chamada extrema pobreza, prevalece a lógica da renda per capta. Esta é uma definição extremamente reducionista do fenômeno da pobreza. Restringe-se às suas manifestações fenomênicas e parciais, referenciando-se em dados descritivos, advindos das famosas linhas da pobreza e da extrema pobreza, que considera o mínimo básico para sobrevivência fisiológica.

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hegemonia no comando do capital e de sua consequente guinada ideológica, quando recusa sua condição de classe revolucionária e progressista para a de classe dominante. Neste contexto, a luta de classes entre burguesia e proletariado coloca-se no centro do cenário histórico e o proletariado passa a assumir a condição de classe revolucionária. O processo de consolidação da burguesia como classe hegemônica e sua decadência ideológica resultam de condições objetivas, quais sejam, a impossibilidade de conciliar a manutenção da ordem sociometabólica do capital e seu projeto civilizatório. O recurso a essa categoria aqui visa elucidar as discrepâncias entre proposições históricas do partido e descaminhos das ações governamentais. A pesquisa se estruturou em duas dinâmicas investigativas associadas: a pesquisa teórica, pautada no aprofundamento teórico de categorias fundantes e de categorias de segunda mediação (capital, valor, trabalho, desenvolvimento capitalista, capitalismo dependente e periférico, Estado); a pesquisa documental tendo como fontes de pesquisa as informações, notas técnicas, relatórios e estudos sobre o Plano Brasil sem Miséria, expedidos no decorrer dos governos do PT, referentes, principalmente, ao mandado da presidenta Dilma (2011- 2016). Ainda entre os documentos, a pesquisa investigou documentos oficiais, cartilhas do MDS, dados de recursos alocados na função 08 (Assistência Social) do Orçamento da União, bem como outros recursos investidos no Plano Brasil sem Miséria, além de órgãos de fiscalização e de legislação no âmbito do Estado. Analisamos materiais oficiais (de fonte primária), disponibilizados em sites oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social e combate à fome; e bibliográficos (de fonte secundária como artigos, dissertações e teses), levantados via rede internacional de computadores (internet) nos bancos de dissertações e teses dos programas de pós-graduação em Serviço Social e áreas afins, além dos diversos periódicos disponíveis em versão on-line e impressa, que explicitam os programas, ações, projetos, procedimentos e mecanismos do Plano Brasil sem Miséria, relacionados à política de assistência social, problematizando a perspectiva, a direção, os critérios de acesso, os procedimentos institucionais adotados, de maneira que possa ficar clara a forma como o Plano Brasil sem Miséria interfere e incide sobre a política de assistência social e sobre a dinâmica institucional do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Também foram coletados e analisados dados de publicações do MDS como coletâneas sobre o Brasil sem Miséria, Notas Técnicas sobre repasses orçamentários no âmbito do Plano que se relacionem à política de assistência social, dados dos Relatórios de Informações 23

Sociais da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do MDS, dados da Controladoria Geral da União. O conjunto desses documentos consultados na pesquisa está registrado no anexo desta tese, em separado das referências bibliográficas para que tenha destaque quais foram as fontes de informações básicas sobre o programa, na pesquisa. A exposição dos resultados de nossas reflexões teórico-empíricas acerca do movimento de expansão da política de assistência social nos governos petistas, a partir da crítica da economia política do desenvolvimento capitalista, está estruturada em quatro capítulos, precedida por esta introdução e conclusa com o item sobre as considerações finais. No primeiro capítulo, a análise é centrada na discussão dos fundamentos ontológicos do desenvolvimento capitalista, situando suas propriedades intrínsecas, e suas leis históricas. Discutimos o processo histórico de transição para o período imperialista, a estruturação do Estado capitalista como expressão das contradições das classes sociais e a tendência imanente do capital a crises cíclicas. Subsidiariamente, pudemos demarcar a especificidade do Estado capitalista como superestrutura política, cujo próprio desenvolvimento e direção são indissociáveis do amadurecimento das relações sociais capitalistas. No capítulo dois, expomos a sistematização da pesquisa sobre o desenvolvimento capitalista no Brasil, a partir da sua inserção na totalidade dinâmica do capital e sua relação com o movimento sistêmico mundial, explicitando as assimetrias, os níveis variados e os tempos desiguais que o capital assume na realidade peculiar brasileira. Explicitamos também o papel do Estado, o ciclo desenvolvimentista e a ofensiva neoliberal, problematizando o padrão dependente e periférico do capitalismo brasileiro. É neste mesmo capítulo que situamos a constituição do Partido dos Trabalhadores, seu processo de transformismo e as bases do projeto político-governamental petista. Seguidamente, o terceiro capítulo traz a discussão da constituição da política de assistência social brasileira, o histórico paralelismo dos programas de “alívio à pobreza” e o processo de modernização de que é objeto no âmbito do projeto petista, demarcando, mormente, os marcos conceituais e teóricos dos fundamentos da PNAS, bem como da implantação do SUAS. Finalmente, o último capítulo traz a sistematização e análise de dados, momento necessário à reflexão teórica, em que apresentamos o processo que demarcamos como modernização da política de assistência social, demonstrando, neste particular, a configuração do Plano Brasil sem Miséria e suas implicações para o SUAS, sob a via do fetiche da gestão. Demonstramos nesse capítulo final, que a consolidação da perspectiva gerencialista foi a 24

tática do plano para melhor otimizar os programas de “combate à pobreza”, recorrendo à técnica da gestão como possível solução para a fragmentação, dispersão e sobreposição de ações na área. Para isso, carreou a própria estrutura do SUAS para as demandas do Plano Brasil sem miséria, sob um discurso de inovação e de intersetorialidade, que na verdade aprofundaram o caráter pragmático, tecnicista e conservador da política social. O avanço da nossa pesquisa foi simultâneo a uma multiplicidade de acontecimentos que condensavam uma grave crise política, econômica e ética no cenário brasileiro, apontando para o esgotamento do projeto de conciliação de classes, que dava sustentação aos governos petistas, como as intensas mobilizações populares de junho de 2013, denominadas de “jornadas de junho”, o agravamento dos efeitos da crise econômica mundial no país, entre 2014-2015, os escândalos da operação da política federal, denominada de Lava Jato, que expôs o envolvimento de políticos ligados à cúpula dirigente do PT, mas também de inúmeros outros partidos da base aliada do governo e de partidos de oposição. Acompanhamos, estarrecidos, o acirramento das fricções no bloco no poder e a escalada ultraconservadora que embalou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a agenda perversa do governo Temer contra os direitos trabalhistas, as conquistas democráticas e os tímidos ganhos dos governos do PT. Ao tempo que tudo isso se processava, nossa investigação indicava justamente nossas proposições iniciais quanto à fragilidade do projeto político-governamental petista, que anunciava uma via de desenvolvimento alternativa ao neoliberalismo, mas que na práxis política concreta aprofundava as fraturas da nossa formação social, quanto a dependência externa, expressa na intensa submissão ao capital financeiro internacional, e a reprodução da posição retardatária da economia na divisão social do trabalhado, assentada na exportação de commodities. Neste ínterim, vimos o staff técnico do governo e o aparato de marketing propalar os grandes feitos em termos de “combate à pobreza”, divulgando os resultados do Plano Brasil sem miséria e, inclusive, exportando as chamadas tecnologias sociais para outros países. De fato, a pesquisa demonstrou que o Plano Brasil sem miséria teve êxito em relação aos indicadores socioeconômicos, com impactos no quadro da chamada pobreza extrema, a partir de um modelo de política social compatível com as demandas do neoliberalismo: focalização e seletividade. Mas, a análise apurada destes processos demonstra o caráter epidérmico das ações adotadas, ficando restrito aos aspectos mais imediatos da sobrevivência material da classe trabalhadora mais empobrecida.

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1 A DINÂMICA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA À LUZ DA CRÍTICA MARXISTA: ELEMENTOS PARA PENSAR O MOVIMENTO AUTOEXPANSIVO DO CAPITAL E SUAS CONTRADIÇÕES

Marx, ao desmistificar as leis gerais que regem o modo de produção capitalista, explicitou as condições para emergência e desenvolvimento da sociabilidade gerida pelo capital. É evidente que àquele tempo o solo histórico e as condições concretas que estavam postas para fundamentar as análises do pensador alemão destoavam de forma abismal do contexto contemporâneo. Atingido o ápice da sua maturidade, o capital cumpriu seu papel histórico com o desenvolvimento extensivo e intensivo das forças produtivas sociais, inimagináveis à época em que viveu Marx. Entretanto, é importante elucidar que tal processo já era delineado por ele como tendência do capital. Assim, o atual contexto não anula o poder explicativo de sua obra e suas descobertas e análises teórico-metodológicas são ainda imprescindíveis para pensar o capitalismo. As determinações novas que se impõem ao capital na cena contemporânea colocam novas questões, mas que vêm sendo problematizadas e adensadas dentro da tradição marxista, na esteira das produções marxianas. Neste ínterim, é possível afirmar, sem titubear, que o capital empreendeu um movimento de intensa expansão e adentrou as mais diversas áreas da vida humana, sendo insignificantes as formas e atividades sociais que não estejam sob domínio de sua lógica. Essa universalização do capitalismo se efetiva concomitantemente com a exponenciação de suas contradições inexoráveis, e, ao mesmo tempo em que a forma mercadoria se alarga nas mais diversas partes do planeta, a dificuldade de reprodução do capital fica cada vez mais explícita. Assim, a abordagem do desenvolvimento capitalista, nesta pesquisa, está inserida no debate teórico sobre a crise estrutural do capital na contemporaneidade, evidenciando os impedimentos que se colocam para a continuidade do seu processo de rotação, cujas implicações são profundas para sua reprodução ampliada. Em termos mais precisos, a condição sine qua non da existência do capital – criação de valor e valorização do valor adiantado – encontra óbices que, mesmo contornados conjunturalmente, se tornam intransponíveis a longo prazo. 26

Essas indicações sumárias visam introduzir nossa discussão, neste primeiro capítulo, no qual procuraremos problematizar a questão do desenvolvimento capitalista, tomando como aporte teórico a crítica marxiana e marxista sobre o desenvolvimento das forças produtivas gerido pelo capital, suas contradições imanentes e sua propensão intrínseca a crises. Neste sentido, é preciso ter por suposto que [...] estudar o desenvolvimento capitalista, desde uma perspectiva marxista, significa (i) ter consciência da processualidade que caracteriza esse sistema, (ii) apreender as leis gerais de movimento da sociedade e (iii) conhecer as condições concretas de manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências dessas leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou adoráveis), o que importa para a análise do desenvolvimento em si é saber se, na passagem de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica interna do capital (BONENTE, 2011, p. 61).

Para assegurarmos essa direção crítica, é preciso retomar a lei geral da acumulação capitalista, pela qual Marx explicita a base do desenvolvimento do capitalismo, centrado no esquema mercantil de produção e realização do valor e plasmado na concorrência, que alavanca a expansão das forças produtivas. Esse quadro leva à busca constante de inovações tecnológicas engendrando o aumento na composição orgânica do capital e também a heterogeneidades dos graus de desenvolvimento, assim como provocam formas desiguais e combinadas de estágios de inovação das forças produtivas. Esse movimento se realiza sobre a base da propriedade privada dos meios de produção e da generalização do trabalho assalariado, e, não é demais reforçar, a partir da exploração e estranhamento do trabalho. Assim, é fundamental discutir a lei do valor, visto que este modo de produção se assenta e requer a contínua valorização do valor, demonstrando que este processo reproduz, em escala ampliada, o desenvolvimento das forças produtivas, na órbita da propriedade privada dos meios produtivos e dos frutos dessa produção coletiva, resultando na alienação do trabalhador. Isto é, o nexo mercantil da sociabilidade capitalista, que acarreta a produção social, foge ao controle dos sujeitos e os subordinam de um modo completamente estranho às suas próprias necessidades e consciências, o que produz e reproduz o processo de estranhamento social. Também é necessário discutir a concentração e centralização do capital que vem possibilitando a passagem do capitalismo para “fases superiores” de desenvolvimento, dentro desse amplo estágio do imperialismo. Com essas análises em nível de abstração mais elevado, poderemos, finalmente, encaminhar a discussão para uma tematização da crise do capital como característica insuprimível deste modo de produção, atentando para suas manifestações conjunturais e para 27

a fase contemporânea de preponderância do capital financeiro no comando do sistema global do capital.5 Enfim, nossa pretensão gira em torno da necessidade de contribuir com a discussão acerca do desenvolvimento capitalista a partir da historicidade e da processualidade que caracterizam a sociedade e a forma específica que elas assumem numa formação social particular. Deste modo, é preciso esclarecer, de antemão, que existe um contraste fundamental entre duas concepções distintas do desenvolvimento: a oferecida por Marx e aquela veiculada pela ciência econômica burguesa, especialmente as chamadas “teorias do desenvolvimento” (BONENTE, 2011). Bonente (2014) destaca que no âmbito da teoria econômica o desenvolvimento é entendido, de forma geral, “como trânsito do ‘pior ao melhor’ – o que envolve, necessariamente, um juízo sobre condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base em determinados critérios pré-estabelecidos (produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.)” (BONENTE, 2014, p. 275). Ademais, acrescenta a autora que tais proposições são exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, seja no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o capitalismo), ou no sentido de que “ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade” (IDEM, p.275). Em oposição radicalmente oposta a estas concepções, que são em última análise apologéticas do capital, podemos partir de uma visão de mundo muito diferente. Nela, o termo desenvolvimento é aplicado “de modo plenamente objetivo, isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se julguem essas propriedades)” (BONENTE, 2014, p. 275). Essas ressalvas são necessárias para esclarecer, logo de início, que nossa análise do desenvolvimento capitalista perpassa o entendimento de sua dinâmica imanente de expansão das forças produtivas, a partir de leis tendenciais logrando sempre um nível mais complexo de seu funcionamento, implicando sempre o acúmulo de novas complexidades que se articulam dialeticamente.

5Iremos demonstrar, ao longo do capítulo, que esta dominância das finanças no sistema global do capital não significa que o capital possa prescindir do processo de produção – ou seja, do capital produtivo – e que tenha o poder de criar valor fora do âmbito da produção imediata de mercadorias. 28

Assim, refutamos quaisquer concepções que apresentem o desenvolvimento como sendo um processo etapista, evolucionista, que supostamente convergiria para o pleno alargamento do bem-estar humano das mais diversas nações, pois ao contrário do que normalmente se afirma, o desenvolvimento capitalista não é entendido aqui como a passagem de um estágio de privação material (países pobres, periféricos, terceiro mundo) para o estado de pletora material (países ricos, centrais, primeiro mundo), como quer que se meça essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la. (BONENTE, 2011, p.39). Nesta direção, a discussão deste primeiro capítulo será fundamento para análise do suposto projeto de desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores, que filiada às concepções apologistas do capital não veem opção para a plena emancipação humana fora da lógica capitalista. Pelo contrário, assume um projeto para gestão da crise do capital, de modo a torná-lo mais justo e humano, como se o “sistema global totalizante do capital” fosse passível de aperfeiçoamentos que sejam contrários aos seus “imperativos objetivos de controle sociometabólico” (MÉSZÁROS, 2011, p. 98).

1.1 O desenvolvimento capitalista: a mercadoria e a lei do valor

Se a visceral busca do valor é o fundamento do capital, a criação do valor e a valorização é a base desse modo de produção e de sua reprodução (desenvolvimento). Concretizar o movimento do capital, no seu ciclo de rotação, de modo a garantir a valorização do valor adiantado é o nexo central e, portanto, fundamental na análise da sociabilidade burguesa e no processo de reprodução do capital, já que as relações sociais são mediadas por ele. O trabalho humano vivo é fundamento ontológico do ser social, a atividade central na mediação entre o homem e a natureza de modo a atender suas necessidades imediatas de reprodução – ou seja, produzir valores de uso para satisfação de necessidades concretas. Mas, esse mesmo trabalho humano vivo assume, na formação sócio-histórica capitalista, relevo particular. Além daquela condição ontológica aludida, a forma do trabalho sob o comando do 29

capital ganhou as feições de mercadoria, com valor de troca.6 Essa forma engendra uma relação de exploração, em que a força de trabalho é transformada em mercadoria e que posta em movimento é a única dotada da capacidade de criação do valor e do mais-valor.7 Mais do que uma relação de exploração, a sociabilidade forjada pelo capital, ao buscar, incansavelmente, a generalização dos negócios da mercadoria, enceta o processo de alienação, que impõe o estranhamento social, tanto do “homem em relação à natureza, ao ser genérico e aos outros homens” (BARBOSA, 2014, p. 293). Esse estranhamento é intrínseco às relações capitalistas, uma vez que a separação entre o resultado do trabalho e o trabalhador é condição inexorável sob a órbita do capital, para garantir ganhos privados dos proprietários dos meios de produção. Ou seja, o trabalhador é submetido a um trabalho duro, aviltante, que o degrada e o obriga a uma condição extenuante de dispêndio de energia física e mental para auferir resultados que não são necessários à sua

6 Marx explicitou a centralidade do trabalho na relação do homem com a natureza, como meio através do qual o homem transforma a realidade e transforma a si mesmo. Assim, precisou que o trabalho é a mediação principal na relação homem x natureza para garantia de sua reprodução material. Nesta direção, afirmou: “O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, 2013, p.255). Ao definir esse metabolismo, ele traz à luz a especificidade do trabalho humano em face dos animais, pois é marcado pela capacidade de construir idealmente aquilo que será objetivado, isto é, a capacidade teleológica do homem. O processo de trabalho é então explicado nos seus elementos simples, quais sejam: atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. A Terra (incluindo a água) é o objeto geral do trabalho humano e “o meio de trabalho é uma coisa ou complexo de coisas que o trabalhador interpõe entre si e o objeto de trabalho e que lhe serve como guia de sua atividade sobre esse objeto” (IDEM p. 256). Deste modo, o processo de trabalho simples é uma atividade com uma teleologia específica que media a relação entre o homem e a natureza, o qual tem como objetivo natural atender necessidades humanas. Produz, portanto, valores de uso. Neste sentido – de atender as necessidades básicas humanas, o trabalho é comum a todas as formas sociais. Na análise do corpo do texto, estamos tratando especificamente da forma particular que o trabalho assume gerido pelo capital. É justamente essa forma particular do trabalho, na sociedade capitalista, que Marx critica, haja vista a centralidade do trabalho nas relações sociais e o decorrente processo de estranhamento do trabalhador com o resultado do seu trabalho. Assim, as relações sociais capitalistas baseiam-se na centralidade do trabalho na vida social, reduzindo, drasticamente, o tempo social livre do homem para outras atividades que seriam imprescindíveis para o enriquecimento da individualidade universal dos sujeitos históricos e seu autorreconhecimento como ser humano genérico. Ou seja, o capital engendra dadas relações sociais onde todo avanço das forças produtivas poderia garantir a sobrevivência material da humanidade e, ao mesmo tempo, um maior tempo livre para o homem desfrutar de acordo com suas necessidades humanas. Entretanto, na medida em que este modo de produção não se funda nas necessidades humanas, mas sim nas necessidades de acumulação e reprodução do capital – que são estranhas ao trabalhador – cada vez mais a centralidade do trabalho, como nexo social do capitalismo, escraviza e submete os trabalhadores à brutalidade, ao aviltamento e à degradação resultantes desta centralidade do trabalho e da intensificação da sua exploração.

7 Ao longo deste trabalho optamos por utilizar o termo “mais-valor” ao invés de “mais-valia” com base no argumento de Duayer (2011), explicitado na apresentação da edição dos Grundrisse pulicada pela Boitempo. Ele explica que o termo emprego por Marx “Merhwer” significa literalmente “mais-valor”, podendo ser também traduzida como “valor adicionado” ou “valor excedente”. Desse modo, “uma vez que não é tradução literal de “Merhwer”, o uso de “mais-valia” teria de ser justificado teoricamente. Essa tarefa é impossível, pois, como “valia” nada significa nesse contexto, não há como justificar “mais-valia” do ponto de vista teórico pela simples anteposição do advérbio. Ademais, além de ser uma tradução ilícita, a expressão “mais-valia” converte uma categoria de simples compreensão em algo enigmático, quase uma coisa” (DUAYER, 2011, p. 23). Em todo o nosso texto, o termo “mais-valia” apenas será mantido nas citações textuais. 30

reprodução imediata, mas sim a necessidades que lhes são estranhas, àquelas que dizem respeito à valorização do capital. De acordo com Marx (2013), no âmbito do processo de trabalho capitalista podem-se identificar dois fenômenos peculiares: a) o trabalhador trabalha sob o controle do capitalista a quem pertence seu trabalho, que controla o ritmo do trabalho, da produção, do consumo da matéria-prima, dos instrumentos de trabalho, entre outros; b) o produto é propriedade do capitalista e não daquele que o produz diretamente - o trabalhador. Expropriado dos meios de produção, o trabalhador disponibiliza sua força de trabalho como mercadoria, cujo valor de uso consiste em produzir valores. O capitalista que paga por essa força de trabalho, sendo proprietário também dos meios de produção, é o dono das objetivações que o trabalho realiza. O processo de produção como unidade do processo de trabalho e de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias (MARX, 2013, p. 273).

Debatendo com autores da economia clássica, como David Ricardo e Adam Smith e Thomas Robert Malthus, Marx demonstra que o mais-valor não provém da esfera da circulação ou das possíveis mudanças nominais dos preços “pode-se virar e revirar como se queira, o resultado será o mesmo. A troca de equivalentes não resulta mais-valor, e tampouco da troca de não-equivalentes resulta mais-valor. A circulação ou troca de mercadorias não cria valor nenhum” (MARX, 2013, p. 238). Mais que isso, demonstra que, ao contrário das ideias vigentes, o valor e o mais-valor resultam do consumo produtivo da força de trabalho. “O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor” (IDEM, p. 250). A organização do processo de trabalho como processo de valorização tem por base a compra e venda da força de trabalho, de modo a garantir as necessidades de reprodução do capital investido ou a valorização do valor. O capitalista paga ao trabalhador o “equivalente” a sua necessidade básica de reprodução,8 mas o faz trabalhar além do tempo que realmente é pago extraindo sobre-trabalho. Em uma determinada quantidade de tempo de trabalho tem-se a formação de valor. O processo de valorização, por sua vez, é nada mais do que um processo de formação de valor que se estende para além de certo ponto. Se tal processo não ultrapassa o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simplesmente um

8 O valor da força de trabalho, assim, como de qualquer outra mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho necessária para a sua produção. Esse valor expresso em salário é formado por dois elementos: físico e histórico e social. O limite físico diz respeito àqueles artigos de primeira necessidade indispensáveis à sobrevivência física e de sua reprodução; o histórico e social relaciona-se aos padrões de um dado momento histórico e das diferentes sociedades (MARX, 2013). 31

processo de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna processo de valorização (MARX, 2013, p. 271).

Portanto, valor não é outra coisa senão trabalho geral cristalizado contido em todo produto, trabalho corporificado. O mais-valor, por sua vez, é trabalho apropriado e não pago. Para compreender melhor o valor nas diferentes formas que ele assume é indispensável fazer alguns apontamentos sobre a mercadoria, uma vez que “para a sociedade burguesa [...] a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular (MARX, 2013, p. 78). A mercadoria é a forma elementar da sociedade burguesa. Marx define: “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (MARX, 2013, p. 113). Enquanto expressão de uma utilidade, de satisfação de uma necessidade, a mercadoria porta um valor de uso. Na forma social capitalista deve ser portadora também de um valor de troca. Este, “aparece inicialmente como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo.” (IDEM, p. 114). Como acentua o pensador, valores de uso de diferentes qualidades encerram atividades produtivas específicas, trabalho útil adequado a um fim. Desse modo, a divisão social do trabalho é condição de existência da produção de mercadorias para a troca. A mercadoria produzida sob os moldes capitalistas é, pois, portadora de valor de uso e valor de troca. O valor de uma mercadoria é definido pela quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua produção, isto implica considerar que: uma mercadoria possui valor por que nela está objetivado ou materializado trabalho humano. O valor assume variadas formas no movimento de produção e reprodução do capital. Conforme sinalizamos, o valor é trabalho humano coagulado, trabalho indiferenciado, abstraído de sua qualidade, trabalho geral médio e, desse modo “ele é, inicialmente, a expressão em cada produto, das particulares relações de produção, nas sociedades onde domina a forma capitalista de produzir” (IDEM, p. 25). Por isso, o valor é uma categoria que expressa determinadas relações sociais de produção e não simplesmente a explicitação dos preços relativos, conforme equivocada leitura ricardiana da teoria marxista do valor.9 Na mercadoria – e nas relações de troca que ela engendra – pode-se perceber as diferentes formas que o valor assume. Em sua qualidade específica, em seu valor de uso a mercadoria tem uma forma concreta, e, nesse sentido, é uma objetividade material. O valor,

9 A tese de que existe uma leitura ricardiana dentro e fora do círculo marxista da teoria do valor de Marx é desenvolvida por Carcanholo (2012). 32

nela cristalizado, é a forma social, a objetividade social. O valor de troca é a forma mercantil do valor e supõe sempre um equivalente geral, que na sociedade burguesa moderna é o dinheiro. É justamente por ser esse “feixe de contradições” que ela assume crucial relevância na análise marxiana e na exposição de Marx em O Capital. A importante contribuição de Marx nesta questão, dentre outras, é explicitar o caráter enigmático, fetichista da mercadoria. No que tange ao valor de uso, aponta o autor, não há nada de misterioso, seja do ponto de vista do atendimento de necessidades humanas ou do trabalho nela cristalizado. Ao explicar de onde provém o “mistério” da mercadoria, Marx é muito claro:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos de trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente a margem dos produtores. É por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais (MARX, 2013, p. 147).

Marx explicita o caráter social da mercadoria. Enquanto relação social, determinada em suas características substanciais pelo modo de produção capitalista, a mercadoria não é, senão, expressão de certo modo de troca, cujo objetivo é produzir lucros. Mas, de modo algum tem “vida própria”. Sob o invólucro de coisa que por si só se realiza, a mercadoria aparece ao trabalhador, no âmbito da sociedade burguesa, como algo que lhe é superior e externo. É, pois, importante mecanismo de ocultação e dissimulação das relações de produção sob as quais elas são produzidas. Reificadas as relações sociais de produção os homens passam a ser, meramente, produtores de mercadorias e nisso, todos são ideologicamente igualados. Aqui o trabalhador, alienado dos meios de produção, bem como do produto final de seu trabalho, tende a cada vez menos perceber a condição de exploração a qual está submetido. Essa realidade mascarada pelo véu da mercadoria mantém todos condicionados “a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo” (MARX, 2013, p.156). É com essas análises que Marx desmistifica o fetiche da mercadoria, desvelando o caráter fantasmagórico que ela impõe às relações sociais entre os homens, ao encobrir tais relações concretas entre seres humanos, dotando – ilusoriamente – as “coisas” de vida própria. É importante elucidar, que as importantes inferências de Marx sobre o fetiche da mercadoria 33

aprofundam e adensam seus estudos anteriores ao capital, no que tange à problemática do estranhamento, conforme anota Barbosa. Evidentemente, a alienação como abordada nos Manuscritos encontra sua completude nos estudos futuros sobre a mercadoria na obra O capital, quando aborda o comando externo do fetichismo da mercadoria sobre o trabalho e a vida social dos homens, provocando que as relações entre coisas apareçam humanizadas e as relações humanas reificadas. Os valores de troca ganham regência superior aos valores de uso, de modo que a mercadoria (casaco e mesa) ganha proeminência sobre as relações entre os homens (alfaiate e carpinteiro). A reificação complementa a reflexão sobre a alienação na medida em que reificar significa, na tradição marxista, transformar relações sociais e subjetividades em coisas inanimadas que fluem no mercado. Por outro lado, o uso do fetichismo para qualificar o mistério das mercadorias retoma a própria origem da alienação na discussão dos Manuscritos na medida em que enfoca o culto a objetos com poderes fantasmagóricos, externos aos homens e para quem alienam suas consciências conforme o esquema de dominação que incapacita para a autorreflexão, produzindo animais monstros; possibilitando ver a sociedade como uma coleção de mercadorias encobrindo as reais relações sociais. Uma lógica reprodutiva alienante que consegue separar o valor de uso das necessidades humanas da motivação e realização de fato do consumo por meio da troca de mercadorias (BARBOSA, 2014, p. 301).

Nesta formação social, em que os indivíduos são dominados pelo processo de produção e onde a sociabilidade implica um “nexo social” entre os sujeitos mediatizados pelo valor de troca (forma do valor), todas as esferas da vida social passam a ser determinadas pela necessidade pujante da sua produção e valorização. “Encontra-se, portanto, na forma valor, a fonte dos mistérios que preside a mercadoria” (IAMAMOTO, 2007, p. 362). Portanto, a reprodução do capital depende de modo imprescindível, que o mais-valor seja reaplicado na esfera produtiva, para que a cada novo ciclo produtivo ocorra acúmulo e ampliação da acumulação e expansão das forças produtivas. Assim é que a “valorização do valor existe apenas no interior deste movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido”. (MARX, 2013, p. 228). Mais detidamente, Marx (2013) esclarece que, se em primeiro lugar a produção capitalista é determinada pela valorização do valor-capital adiantado, em segundo lugar, e também como condição indispensável para a continuidade do sistema como um todo, é indispensável à produção de capital, isto é, à transformação do mais- valor em capital. Bonente (2011) explicita que o movimento dinâmico, necessariamente expansivo, constitui a estrutura interna da produção capitalista. A autora esclarece, ainda, que para comprovar esse caráter expansivo do capital, Marx identifica três tendências básicas: “(1) a tendência à concentração de capital; (2) a tendência à centralização do capital; e (3) a tendência ao aumento da composição do capital” (BONENTE, 2011, p. 25). A concentração, como tendência imanente do processo de produção capitalista, se expressa no próprio processo de acumulação, na medida em que um volume maior de capital 34

a ser valorizado se condensa na propriedade de capitalistas individuais que têm sob seu comando certo número de trabalhadores em operação. Cada capital individual é uma concentração maior ou menor de meios de produção e dotada de comando correspondente sobre um exército maior ou menor de trabalhadores. Cada acumulação se torna meio de uma nova acumulação. Juntamente com a massa multiplicada da riqueza que funciona como capital, ela amplia sua concentração nas mãos de capitalistas individuais e, portanto, a base da produção em larga escala e dos métodos de produção especificamente capitalistas. O crescimento do capital social se consuma no crescimento de muitos capitais individuais (MARX, 2013, p. 701).

Esse processo reproduz em escala ampliada o capital social global e embute sua lógica a cada uma das personificações do capital. Esse processo é balizado pela característica intrínseca da produção de mercadorias capitalista, a concorrência entre os diversos capitais individuais. Assim, “o crescimento dos capitais em funcionamento é atravessado pela formação de novos capitais e pela cisão de capitais antigos” (IDEM, p. 701). Nesse movimento, há a crescente concentração dos meios de produção e com isso o aumento do poderio do poder de comando do capital sobre os trabalhadores, mas por outro lado há uma “repulsão mútua entre muitos capitais individuais” (MARX, 2013, p. 701). O desenvolvimento em larga escala da produção capitalista, que mediante o desenvolvimento sempre mais complexo das forças produtivas, leva o sistema do capital a um patamar cada vez mais alto, demanda sempre continuamente que o capitalista individual detenha e seja capaz de colocar em processo de valorização um volume cada vez mais alto de massa de capital. Nenhuma personificação do capital individual pode fugir aos imperativos do sistema do capital. Neste sentido, os sujeitos individuais não têm nenhum poder de controle sobre o sistema do capital como estrutura sociometabólica totalizadora. “Eles têm de obedecer aos imperativos de todo o sistema, exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências e perder o negócio” (MÉSZÁROS, 2011, p. 98). A tendência à centralização, por sua vez, remete ao processo pelo qual se centraliza o comando do capital mediante a união de vários capitais já existentes. Esses processos não são necessariamente pacíficos, mas permeados pela lógica expansionista do capital que destrói os empreendimentos que não conseguem seguir o ritmo alucinado de crescimento demandado pelo capital, na sua sina por mais-valor, reproduzindo, inclusive, novas expropriações – de capitalistas menores por capitalistas maiores. A esse respeito Marx (2013) é taxativo: “se o capital aqui pode crescer nas mãos de um homem até formar massas grandiosas é porque acolá ele é retirado nas mãos de muitos 35

outros homens” (p.702). E vai mais além explicando com maior profundidade o efeito final da centralização, independente da forma que ela acontece. A centralização complementa a obra da cumulação, colocando os capitalistas industriais em condições de ampliar a escala de suas operações. Se esse último resultado é uma consequência da acumulação ou da centralização. Se a centralização se dá pelo caminho violento da anexação [...]; ou se a fusão ocorre a partir de uma multidão de capitais já formados ou em vias de formação, mediante o simples procedimento da formação de sociedade por ações –; o efeito econômico permanece o mesmo (MARX, 2013, p. 703).

Este efeito é tão somente o amplo desenvolvimento das forças produtivas e do potencial mais abrangente do trabalho social sob comando do capital, culminando em aumento da taxa de acumulação. Este movimento leva a uma mudança qualitativa numa das características centrais do capitalismo: a concorrência. Ela alça um novo patamar e o propalado regime de livre concorrência torna-se cada vez mais próximo de um mito apologético do capital, do que uma realidade concreta. Àquela concorrência tradicional, em que vários capitais individuais competiam entre si, se sobrepõe uma nova modalidade que se dá entre um número reduzido de grandes empresas e conglomerados, que geridos sob o comando de um imenso volume de capitais dominam diversos setores e departamentos.10 A terceira tendência imanente à produção capitalista, que Marx alude e Bonente (2011) sublinha, a partir das análises teóricas marxianas, é o aumento na composição do capital. Esta tendência, ao contrário da concentração e centralização, não diz respeito ao tamanho global do capital, mas à relação entre as partes que o constituem – o capital constante e o capital variável. Esta questão é fundamental na discussão de Marx acerca da Lei Geral de acumulação capitalista. É a partir desta discussão que Marx desvela o caráter real e a tendência intrínseca do capital de aumentar a composição orgânica do capital, sinalizando as implicações disso sobre a sorte da classe trabalhadora. Neste sentido, Marx descreve de forma precisa os impactos sociais da acumulação capitalista na classe trabalhadora, resultando na riqueza das classes proprietárias e no pauperismo (relativo e, em alguns casos, absoluto) dos trabalhadores. Sob esta perspectiva, Marx entende o desenvolvimento econômico como um mito fundador do capitalismo, pois seus resultados – alienação, subsunção, dominação e pauperismo – são sempre desfavoráveis à classe trabalhadora. Em linhas gerais, para Marx, a acumulação capitalista não pode prover o bem-estar social para a totalidade da população, mas somente para uma fração (CASTELO e PRADO, 2012 p. 3).

10 Não estamos aqui fazendo análise de nenhuma situação concreta histórica particular. Por isso, é importante frisar que esses processos ocorrem de maneiras variadas e multiformes, assumindo feições particulares em cada Estado nacional em função do nível de desenvolvimento do capitalismo em cada contexto. Como essa é uma faceta de grande relevância do capitalismo imperialista mundializado, ela poderá ser melhor detalhada quando adentrarmos na discussão da questão na seção designada para tal problematização. 36

Na seção seguinte, portanto, nos deteremos na lei geral da acumulação capitalista e nas tendências que ela encerra, bem como os fundamentos básicos do capital que ela explicita.

1.2 O desenvolvimento pensado a partir da lei geral de acumulação capitalista: efeitos sobre a classe trabalhadora e a reprodução ampliada das contradições fundamentais do capital

Ainda que não seja possível hierarquizar ou isolar partes da pesquisa de Marx sobre o capital, é preciso evidenciar que na lei geral da acumulação capitalista, ele expõe questões fundamentais, relativamente à composição do capital, demonstrando os efeitos da tendência geral do movimento do capital sobre a vida da classe trabalhadora. Esse tema tem importância para pensar o desenvolvimento, pois a composição orgânica do capital expressa os processos de incrementação tecnológica para ampliar a produtividade média do trabalho e, portanto, definir os rumos que o desenvolvimento das forças produtivas assume nos ciclos de reprodução ampliada do capital. Nos termos da análise marxiana, composição orgânica do capital é a relação entre capital constante (meios de produção) e capital variável (força de trabalho). Este conceito abarca um componente técnico e um componente de valor, e mais que isso, uma correlação entre eles. Neste sentido, o aumento da composição orgânica do capital consiste num montante superior de investimentos em capital constante em detrimento dos valores destinados ao capital variável. Portanto, tal discussão é fundamental, nesta pesquisa, pois ela está no cerne da problematização do desenvolvimento capitalista, já que explicita as tendências imanentes à dinâmica de expansão das forças produtivas, no capitalismo. Assim, é preciso observar o processo que culmina nessa mudança qualitativa da composição do capital. E, o ponto de partida é o que já sinalizamos antes sobre o movimento da acumulação que resulta da maior extração possível de mais-valor e de sua reaplicação sempre em escala crescente em um novo ciclo produtivo, de modo que “chega-se sempre a um ponto em que o desenvolvimento do trabalho social se converte na mais poderosa alavanca da acumulação” (MARX, 2013, p. 698). E ainda, que “o grau social de produtividade se expressa no volume relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em produto durante um tempo dado, com a mesma tensão da força de trabalho” (IDEM, p. 698). 37

É o trabalho vivo que vivifica o trabalho morto incorporado ao capital na forma de meios de produção. Assim, à medida que aumenta a produtividade do trabalho, aumenta a massa dos meios de produção. E desse modo, “[s]eja ele condição ou consequência, o volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles incorporada expressa a produtividade crescente do trabalho” (IDEM, p. 699). A consequência imediata desse movimento é que é o próprio desenvolvimento da produtividade do trabalho que culmina na consolidação da diminuição da massa de trabalho em proporção aos meios de produção que ela vai colocar em movimento, isto é, o processo converge para “a diminuição do fator subjetivo do processo de trabalho em comparação com seus fatores objetivos” (MARX, 2013, p. 699). Ou, mais especificamente processa-se uma profunda e importante alteração na composição do capital, em que “o aumento da massa dos meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que a põe em atividade, reflete-se na composição de valor do capital, no aumento do componente constante do valor do capital à custa de seu componente variável” (IDEM, p. 699). Em termos concretos, os efeitos desse processo sobre a vida da classe trabalhadora são cruciais, de maneira que afetam a possibilidade concreta de sua própria reprodução na medida em que são tornados excedentes para as necessidades de valorização do capital. Logo, há um aumento de trabalhadores alijados da possibilidade de vender sua força de trabalho. Essa dinâmica redunda e aprofunda a contradição fundamental que marca o sistema capitalista: a constituição de classes sociais antagônicas, a burguesia, detentora dos meios de produção, e o proletariado, que detém somente sua força de trabalho, que fica ociosa ao passo que se reproduzem as tecnologias e mecanismos poupadores de trabalho vivo (capital variável). Essa contradição fundamental produz a pobreza como condição estrutural desse modo de produção. Ela se expande e se reproduz no quadro da própria produção de riqueza. Assim, mediante a acumulação tem-se a multiplicação do proletariado e potencialmente, indicações sobre sua sorte.

Assim como a reprodução simples reproduz continuamente a própria relação capitalista – capitalistas de um lado, assalariados do outro –, a reprodução em escala ampliada, ou seja, a acumulação, reproduz a relação capitalista em escala ampliada – de um lado mais capitalistas ou capitalistas maiores; de outro, mais assalariados. (MARX, 2013, p. 690).

Na medida em que, o capital se reproduz em escala ampliada, o trabalho é cada vez mais submetido ao julgo da necessidade voraz do capitalista por extração de mais-valor. Nessa condição, o controle sobre o trabalho é fundamental, sendo levado a cabo de diversas formas. O desenvolvimento das forças produtivas é, sempre, um mecanismo acionado para 38

combinar formas de extrair trabalho não-pago, ou seja, formas de produzir mais-valor absoluto e relativo.11 O pensador alemão expõe da seguinte forma: todos os métodos de produção do mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos da acumulação, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um meio para desenvolvimento desses métodos. [...] a acumulação da riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital. (MARX,2013, p.720).

Esse processo tende a expelir trabalhadores sempre na medida das necessidades de acumulação do capital. Uma população excedente, formando um exército industrial de reserva é, ao mesmo tempo, condição e alavanca desse modo de produção. Não é, portanto, algo conjuntural, mas parte de sua genética estrutural. De maneiras diversas, a classe trabalhadora, separada das condições de produzir autonomamente, tem suas possibilidades de inserção em processos de trabalho determinadas, fundamentalmente, pelo ritmo e necessidades de absorção do capital. Em todo caso, embora variando as situações entre pobreza absoluta e relativa, os trabalhadores são relegados ao exército industrial de reserva, constituindo a base da riqueza social da classe detentora dos meios e condições de produção. Nessa direção, Marx evidencia a lei geral de acumulação capitalista, como lei histórico-social dotada de caráter tendencial: Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está em razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista (MARX, 2013, p. 719).

Produzindo sob moldes capitalistas, a sociedade se estrutura a partir dessa legalidade. Em determinados momentos históricos – a depender do grau de desenvolvimento das forças produtivas, bem como do nível de organização da classe trabalhadora – de expansão e crescimento do capital, a classe dominante pode absorver parte maior dessa reserva de força viva de trabalho, entretanto, em momento algum essa absorção poderá contemplar toda a massa populacional destituída dos meios de produção.

11 “A produção do mais-valor absoluto gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho; a produção do mais-valor relativo revoluciona inteiramente os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais” (MARX, 2013p. 578). 39

Mais do que isso, manter um exército de reserva é requisito objetivo para o capital, tanto para garantir mão-de-obra disponível, caso ocorra necessidade de ampliar a produção e contratar mais trabalhadores, como pelo poder de pressão que esta circunstância exerce sobre a classe trabalhadora, seja do ponto de visto do acirramento da competitividade entre os próprios trabalhadores, da pressão sobre o valor da força de trabalho, forçando o rebaixamento dos salários, além de todos os mecanismos que podem ser acionados para controle do trabalho no âmbito imediato da produção. Retomando o mote inicial da argumentação, reafirmamos ser preciso partir das leis tendenciais que são inexoráveis ao desenvolvimento do sistema do capital, problematizando o mito de que o desenvolvimento é um estágio a ser alcançado, para assegurar condições de bem-estar e justiça social. Isto é, procuraremos trazer elementos de análise crítica para descontruir a ideologia subjacente ao tema do desenvolvimento, que figura na ciência burguesa e transforma, ideologicamente, o papel histórico civilizador que o capital cumpriu como um abstrato universal. Deste modo, ratificamos que a ideologização do desenvolvimento é nada mais que um processo apologético do capitalismo, o qual procura reproduzir a ideia de que ainda é possível auferir ganhos para humanidade nesta sociabilidade, quando, na verdade, no atual estágio o capital assume seu potencial altamente destrutivo. Assim, para corroborar essa elucidação é importante recuperar que desenvolvimento capitalista é alargamento dos negócios da mercadoria, como exigência da lei geral da acumulação capitalista, e, isso se faz com a ampliação da dependência da reprodução da vida à lógica do fetiche da mercadoria e da demanda reiterativa de renovação das necessidades sociais de consumo (BARBOSA, 2016, p. 10).

Ainda que não seja esse o espaço para aprofundar as implicações da ideologia do desenvolvimento para a consolidação do capitalismo nas nações de capitalismo dependente e periférico, como o Brasil, é importante já sinalizar o caráter farsesco e inebriante que tal ideologia assume. Deste modo, ao contrário do que normalmente se afirma, o desenvolvimento capitalista não é entendido aqui como a passagem de um estágio de privação material (países pobres, periféricos, terceiro mundo) para o estado de pletora material (países ricos, centrais, primeiro mundo), como quer que se meça essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la. (BONENTE, 2011, p.39).

O desenvolvimento do capitalismo implica, na verdade, ritmos e intensidades diferenciadas. Esta questão já foi amplamente debatida no âmbito da tradição marxista, que, 40

através do materialismo histórico e dialético, consegue elucidar tais processos como contraditórios e dialeticamente dinamizados. Em termos mais precisos, a análise marxista do desenvolvimento capitalista reconhece as formas desiguais e combinadas que este modo de produção engendra. Ao contrário do que se propala no âmbito da ciência burguesa, portanto, não se trata de etapas necessariamente sobrepostas que devem ser superadas para se chegar a um dado patamar de desenvolvimento, mas as próprias variações nos níveis de desenvolvimento são necessárias e funcionais ao desenvolvimento do sistema do capital. Isto porque é da própria natureza do crescimento do modo de produção capitalista a propensão ao desequilíbrio. E mais, o problema da expansão do capital a novas esfera de produção – técnicas ou geográficas – é determinado, em última análise, por uma diferença no nível de lucro, o que significa que deve haver ao mesmo tempo um excesso relativo de capital, uma relativa imobilidade do capital e limites relativos para a igualização das diferentes taxas de lucro estabelecidas pelo monopólio. Segue-se que o processo de crescimento real do modo de produção capitalista não é acompanhado por um nivelamento efetivo das taxas de lucro (MANDEL, 1985, p. 51).

Lênin, ao pensar o Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, mostrou como o desenvolvimento do capitalismo pode comportar estágios variáveis e multifacetados. Suas contribuições acerca do imperialismo também foram cruciais para pensar os ritmos desiguais do movimento do capital e a forma como as nações cujas forças produtivas encontram-se em um estágio de maior produtividade social do trabalho, cujo capital acumulado supera muito o de outras nações, podem assumir posição de comando e subjugação de nações com menor potencial e acúmulo de capital. Ao problematizar a história do avanço das forças produtivas do capital na Rússia, Lenin demonstrou que é possível numa mesma nação a existência concomitante da expansão do modo capitalista com a manutenção de modelos pré-capitalistas. Contribuiu, do mesmo modo, para desmontar o pragmatismo de certas visões dentro mesmo do campo marxista do etapismo determinista pelo qual se entendia que apenas seria possível chegar à revolução socialista, passando pelos diversos estágios – inclusive pelo amplo desenvolvimento do capitalismo. Essa perspectiva será abordada na seção seguinte, onde discutiremos sobre o desenvolvimento desigual e combinado como uma tendência que se manifesta no modo de produção capitalista e que contrasta radicalmente com dualismos e visões estanques dos processos sociais subjacentes ao desenvolvimento das forças produtivas. 41

1.2.1 O capitalismo e as formas desiguais e combinadas de desenvolvimento

Mantendo a nossa linha de análise, amparada nas tendências imanentes da produção capitalista em direção ao aumento da composição orgânica do capital e a exponenciação da contradição fundamental entre as classes fundamentais antagônicas, o proletariado e a burguesia, adentramos a discussão da dinâmica engendrada por essa tendência – no âmbito da reprodução ampliada do capital – que é o desenvolvimento desigual e combinado das forças produtivas. Segundo Mandel (1985), a manutenção de formas desiguais e combinadas de desenvolvimento das forças produtivas não é um acidente econômico, mas é condição funcional do capital e de seu crescimento. Löwy (1995) chama atenção para o fato de que Marx, em virtude do contexto histórico em que estava situado, – antes da era imperialista – não analisa essa problemática que está diretamente ligada à expansão mundial do capital. Mesmo que isso contraste com o que o pensador alemão expõe sobre a dinâmica entre concorrência, concentração e centralização de capitais, é correto destacar essa chave de leitura que Löwy localiza no texto Introdução à crítica da economia política ([1857] 2011) quando fornece indicações interessantes sobre o modo como uma produção dominante exerce hegemonia sobre as outras. Vejamos: Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda a existência que nele se manifesta (MARX, 2011, p. 59).

Lênin, em situação histórica diferente, analisa essa tendência, estudando a particularidade do desenvolvimento das forças produtivas considerando a condição periférica de um determinado país, num mundo de capitalismo já em largo processo de mundialização, observando que dentro da mesma nação expressam-se ritmos desiguais de divisão do trabalho e acumulação. Nesta direção, ele afirma: “diante da desigualdade do desenvolvimento inerente ao capitalismo, alguns ramos industriais ultrapassam outros e tendem a ultrapassar os limites da antiga região de relações econômicas” (LÊNIN, 1982, p. 370). E ainda neste mesmo sentido, valendo-se da análise de dados estatísticos sobre o desenvolvimento da indústria mineira da Rússia, Lênin atesta: A alternância de duas estruturas de economia social se reflete sobre a indústria mineira com especial evidência, tendo em vista que, os representantes típicos de ambas as estruturas são regiões específicas: numa região, pode-se observar a 42

antiguidade pré-capitalista com sua técnica primitiva e rotineira, com a dependência pessoal da produção presa ao local de residência, com a solidez das tradições corporativas, dos monopólios etc.; Em outra região, pode-se observar o total rompimento com todas as tradições, a revolução técnica e o rápido crescimento da indústria mecanizada puramente capitalista” (LÊNIN, 1982, p. 312).

Mas, é com Trotsky que o problema do desenvolvimento desigual ganha novo contorno. O pensador marxista aprofunda a discussão com o acréscimo da categoria “combinado”. Analisando a História da Revolução Russa, Trotsky (1977), desenvolve elementos teórico-analíticos que adensam a explicitação da tendência ao desenvolvimento desigual e combinado, apontando que, a desigualdade do ritmo, lei mais geral do processo histórico, que se evidencia mais vigorosamente nos países periféricos. Assim, esclarece Trotsky: “o desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processo histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado”, e aponta: “sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos” (TROTSKY, 1977, p. 25). Para explicitar essa lei geral numa realidade concreta o autor detalha a maneira pela qual a Rússia saltou etapas de desenvolvimento, não cumprindo estágios de maturação como os países de industrialização avançada e a repercussão disso no direcionamento da Revolução Russa de 1917. Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados. Não significa isso, porém, que siga servilmente esses países, reproduzindo todas as etapas de seu passado. [...] Na contingência de ser rebocado pelos países adiantados, um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação historicamente atrasada – e este privilégio existe – autoriza um povo, ou mais exatamente, o força a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série de etapas intermediárias (TROTSKY, 1977, p. 24).

É a partir desta análise concreta que o autor aborda a decorrência dessa tendência histórica de desigualdade do desenvolvimento e as formas como os passos intermediários, ocorridos nos países de industrialização avançada, podem ser saltados. É no âmbito desta análise que se explicita a lei do desenvolvimento desigual e combinado, “que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas” (IDEM). A lei do desenvolvimento combinado está demonstrada como sendo a mais incontestável na história e no caráter da indústria russa. Tardiamente nascida, essa indústria não percorreu, desde o início, o ciclo dos países adiantados, porém neles se incorporou, adaptando ao seu estado atrasado as conquistas mais modernas. Se a evolução econômica da Rússia, em conjunto, passou por cima, de períodos do artesanato corporativo e da manufatura, muitos de seus ramos industriais pularam parcialmente alguma etapa da técnica, que exigiram, no Ocidente, dezenas de anos. 43

Como consequência, a indústria russa desenvolveu-se em certos períodos com extrema rapidez. [...] Julgaram alguns historiadores russos ser isto motivo suficiente para concluir que era necessário abandonar a lenda de um país atrasado e de lento progresso do país. Na realidade, a possibilidade de um progresso assim rápido era precisamente determinada pelo estado atrasado do país (TROTSKY, 1977, p. 28).

Trotsky refere-se às contradições russas, expressão do desenvolvimento desigual e combinado, haja vista a larga expansão de determinados setores industriais do capital externo europeu e as formas incipientes de avanço das técnicas agrícolas, por exemplo, bem como a manutenção de relações de trabalho de caráter servil e patrimonialista neste setor, contrastando com a expansão do assalariamento na indústria pesada. Mandel (1985) indica elementos fundamentais para tratar a tese do desenvolvimento desigual e combinado, ao lembrar que o modo de produção capitalista se desenvolve no âmbito de uma estrutura e de um momento socioeconômico específico. O capitalismo reproduz “em formas e proporções variáveis uma combinação de modos de produção passados e presentes, ou mais precisamente, de estágios variáveis, passados e sucessivos, do atual modo de produção” (MANDEL, 1985, p. 14). Essa combinação enfatiza o autor, não é, de modo algum, secundária. É, ao contrário, “em grau considerável, precisamente uma função de validade universal da lei do desenvolvimento desigual e combinado” (IDEM). Essa lei opera tanto num dado território nacional, como nas relações entre países de capitalismo avançado e periferia. A questão é que, o capital ao impor sua lógica de acumulação submete tudo e todos. É assim que os países mais ricos, detentores de capitais mais poderosos, ao revolucionarem constantemente suas forças produtivas, impõem o atraso à periferia12 e se apoia nela para extrair mais-valor, como demonstrou Trotsky sobre a moderna indústria europeia, que fazia da Rússia13 agrícola território para expansão das fronteiras do seu capital excedente.

12Essa tendência pode ser observada em diferentes contextos históricos particularizada pelo estágio do desenvolvimento capitalista. No corpo do texto estamos abordando a tendência numa perspectiva mais abstrata, entretanto o exemplo do que se processou no período fordista é elucidativo. Além do exemplo específico da Rússia, podemos pensar outras situações histórico-concretas. Por exemplo, Harvey (2004) chama atenção para o caráter desigual de desenvolvimento no fordismo. Esse caráter se expressou tanto nas relações entre os países, já que o fordismo engendrou processos de internacionalização dos mercados, o que implica reconhecer amplo desenvolvimento em países centrais do mundo capital e o simultâneo atraso de países periféricos, bem como entre setores produtivos. Ainda, em relação a esse caráter desigual e combinado de integração dos diversos países ao desenvolvimento fordista, Botelho (2005, p. 46) coloca que “essa integração não significa igualdade de ‘desenvolvimento’ econômico e social. O ‘centro’ do sistema mundial capitalista – os países ricos e industrializados [...] continua com seu papel dominante, subordinando a periferia”.

13 O caso concreto particular da inserção do Brasil no circuito mundial do capital também é ilustrativo da forma como a tendência geral do capital ao desenvolvimento desigual e combinado aparece em situações específicas. Pensando desde o período colonial, em que o país ocupou lugar importante no processo mercantilista, o qual contribuiu com o processo de acumulação primitiva do capital para seu desenvolvimento nos países de 44

Como já dissemos, é precisamente no domínio da economia que a lei da evolução combinada se manifesta com maior força. Enquanto que a agricultura camponesa, até a Revolução, em sua maior parte, permanecia quase no mesmo nível do século XVII, a indústria russa, quanto à técnica e sua estrutura capitalista, encontrava-se no mesmo nível dos países adiantados e, mesmo sob alguns aspectos, os ultrapassava (TROTSKY, 1977, p. 28).

Esse desenvolvimento da indústria russa, apontado por Trotsky, não poderia ser visto como processo autônomo do desenvolvimento capitalista russo, mas era fonte de aplicação de capitais europeus excedentes, como sinalizamos. A seguinte colocação de Trotsky é muito esclarecedora. A fusão do capital industrial com o capital bancário efetuou-se na Rússia, de forma tão integral como talvez não se tenha visto semelhante em qualquer outro país. A indústria russa, porém, subordinando-se aos bancos, demonstrava efetivamente sua submissão ao mercado monetário da Europa ocidental. A indústria pesada (metais, carvão, petróleo) estava quase inteiramente sob o controle financiador estrangeiro que criara, na Rússia, para uso próprio uma rede de bancos auxiliares e intermediários. [...] Pode-se afirmar, sem receio de exagero, que o centro de controle das ações emitidas pelos bancos, pelas fábricas e manufaturas russas encontrava-se no estrangeiro (TROTSKY, 1977, p. 29).

Tomando como ponto de partida o caso particular da Rússia, evidenciado por Trotsky, retomamos o fio condutor da análise de Mandel sobre a tendência geral do capital ao desenvolvimento desigual e combinado, inferindo que os meios de produção, bem como as relações de produção são constantemente reconfiguradas, destruindo e mantendo formas não capitalistas de produção de acordo com sua intrínseca necessidade expansionista e acumulativa.

industrialização clássica. A abordagem de Caio Prado em “A Formação do Brasil Contemporâneo” explicita o “sentido da colonização” ao esclarecer tanto os motivos que levaram ao processo de colonização do Brasil e as características que ela assume, desmistificando quaisquer perspectivas de casualidade em relação à colonização e explicando os caracteres gerais da forma que assumiu até a Independência, demonstrando sua relação com a empresa colonial, cujo fundamento geral era a acumulação originária de capital, que seria indispensável para posterior processo de industrialização no continente europeu. Os estudos de Florestan Fernandes também são indispensáveis para desvendar a questão em tela, ao explicar os mecanismos pelos quais o desenvolvimento do capitalismo gera desenvolvimento/subdesenvolvimento e a especificidade do Brasil na relação com os países de capitalismo central, além de explicitar as marcas centrais do capitalismo brasileiro, na sua acepção: o caráter dependente e heterônomo. Ademais, o autor tem contribuições de suma importância para pensar a realidade brasileira interna, sua heterogeneidade e desigualdade de desenvolvimento. Para Fernandes (2005) o desenvolvimento desigual interno designa uma condição estrutural da economia brasileira ao congregar setores “modernos” e “arcaicos” ou tempos discordantes de desenvolvimento, o que não significa a adoção de uma perspectiva dualista de análise da economia brasileira. Mas, pelo contrário, a refuta demonstrando a funcionalidade desse desenvolvimento desigual interno na sua articulação à dependência externa. Tal articulação se traduz na dominação imperialista e no modelo de desenvolvimento que se desenvolve no país, e, portanto, em um padrão de hegemonia burguesa agregado e compósito. Nesta mesma direção, Francisco de Oliveira é um autor clássico indispensável que amplia esse debate ao criticar a razão dualista que teve larga influência nas análises da economia brasileira. Com suas formulações, Francisco de Oliveira desmistifica a tese dual- estruturalista, de clara inspiração Cepalina, além de criticar e atribuir novo rigor teórico à categoria “subdesenvolvimento”, desvelando seu apelo economicista e adensando a discussão sobre ela, mostrando sua relação dialética com o desenvolvimento capitalista. 45

Neste sentido, “a história desse modo de produção torna-se a história do antagonismo em desenvolvimento entre capital e as relações econômicas semicapitalistas e pré-capitalistas, que o mercado mundial capitalista incorpora permanentemente a si mesmo” (IDEM, p.32). Esse processo é balizado pela tendência geral do capitalismo de ser movido pela concorrência,14 o que implica sempre, em escala crescente, a necessidade de obter vantagens reais na taxa de lucro. Esse processo provoca sempre a derrocada de certos capitais individuais e/ou a dinâmica de expropriações contínuas de capitais menores por capitais maiores. Ao reproduzir o desenvolvimento desigual e combinado, a expansão das forças produtivas se alimenta também dessas expropriações, absorvendo mais-valor de setores onde o nível médio de produtividade do trabalho é menor, até expropriar completamente os capitais concorrentes menores de seus meios de produção e do valor neles contido. Na esteira das análises quanto ao desenvolvimento desigual temos pistas teóricas importantes para adentrar a discussão do imperialismo, já que como esclarece Mandel (1982) “o problema do imperialismo deve ser considerado como uma mudança qualitativa na estrutura da economia capitalista mundial” e, portanto, “estamos tratando com a reprodução, numa escala global, de um dos problemas básicos da análise de Marx em o Capital”, qual seja, “a relação entre desenvolvimento desigual e a concorrência” (MANDEL, 1985, p. 51). Sobre essa relação, Mandel esclarece o seu caráter dialético na medida em que ela “tende a sufocar o desenvolvimento desigual e ao mesmo tempo é embaraçada por ele” (MANDEL, 1985, p. 51). O imperialismo longe de nivelar ou tornar homogêneo o processo de desenvolvimento das forças produtivas, produz e reproduz diferenças e desigualdades, pois é justamente desta heterogeneidade que provém a base para os superlucros e a dominação imperialista. Em última instância, a diferença no nível de desenvolvimento entre os países metropolitanos, de uma parte, e de outra parte as colônias e semicolônias, deve ser atribuída ao fato de que o mercado mundial capitalista universaliza a circulação capitalista de mercadorias, mas não a produção capitalista de mercadorias. Numa colocação ainda mais abstrata: as manifestações do imperialismo devem ser explicadas, em última análise, pela falta de homogeneidade da economia mundial capitalista (IDEM, p. 58).

Na fase do desenvolvimento imperialista e monopolista do capitalismo acrescentou-se nova dimensão à relação entre expansão nacional e expansão internacional e sobre a relação entre as leis de desenvolvimento capitalista, processos que estão na base do imperialismo.

14 É evidente que a formação dos monopólios impõe determinações novas à tendência geral da concorrência, mas como será pautado adiante, ela nunca é completamente suprimida das relações sociais capitalistas. 46

1.3 O imperialismo e a hegemonia das finanças como estágio avançado do desenvolvimento capitalista

A mundialização do capital e o imperialismo como partes do fenômeno intrínseco do sistema do capital expressam a propensão incontrolável à expansão. Os processos de concentração e centralização do capital, no estágio alcançado na virada do século XIX para o século XX, levam o capitalismo a uma nova etapa histórica, cuja marca central é a formação dos monopólios. Na verdade, a história da formação dos monopólios, em sua primeira fase, pode ser resumida nas seguintes periodizações: (1) Décadas de 1860 e 1870, o grau superior, culminante, de desenvolvimento da livre concorrência. Os monopólios não constituem mais do que germes quase imperceptíveis. 2) Depois da crise de 1873, longo período de desenvolvimento dos cartéis, os quais constituem ainda apenas uma exceção, não são ainda sólidos, representando ainda um fenômeno passageiro. 3) Ascenso de fins do século XIX e crise de 1900 a 1903: os cartéis passam a ser uma das bases de toda a vida econômica. O capitalismo transformou-se em imperialismo” (LÊNIN, 2004, p. 07).

Esse esforço analítico de Lênin visava compreender as transformações históricas do capitalismo, que iniciado o século XX contrastava frontalmente com a forma de sua expansão inicial, marcada pela grande concorrência entre os capitais individuais. Assim como outros autores marxistas, Lênin partiu das descobertas de Marx sobre as leis tendenciais do capitalismo, contribuindo para pensar o novo quadro histórico-concreto, que sem dúvida marcava um novo estágio do capitalismo, o imperialismo,15 o qual Lênin (2004) sintetizou como sendo a “fase monopolista do capitalismo”. É preciso enfatizar que a concorrência – característica imanente ao capitalismo à qual Marx dava grande relevância enquanto alavanca para a expansão das forças produtivas – não é completamente superada, mesmo com a formação dos monopólios. Mandel (1985) elucida

15 Mészáros (2007) sublinha que a história do imperialismo apresenta três fases distintas: “1) o primeiro imperialismo colonial moderno construtor de impérios, criado pela expansão de alguns países europeus em algumas partes facilmente penetráveis do mundo; 2) imperialismo ‘redistributivista’ antagoniscticamente contestado pelas principais potências em favor de suas empresas semimonopolistas, chamado por Lênin ‘estágio supremo do capitalismo’, que envolvia um pequeno número de contendores e alguns pequenos sobreviventes do passado, agarrados aos restos da antiga riqueza que chegou ao fim logo após o término da Segunda Guerra Mundial; e 3) imperialismo global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante, prenunciado pela versão de Roosevelt da ‘Política de Porta Aberta’, com sua fingida igualdade democrática, que se tornou bem pronunciada com a eclosão da crise estrutural do sistema do capital – apesar de ter se consolidado pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial – que trouxe o imperativo de constituir uma estrutura de comando abrangente do capital sob um ‘governo global presidido pelo país globalmente dominante (MÉSZÁROS, 2007, p. 114. Grifos do autor). 47

essa questão indicando a função e os limites do monopólio. Na sua análise demonstra que a função dos monopólios é justamente evitar ou tardar indefinitivamente a equiparação das taxas de lucros, impondo dificuldades ao fluxo de capital para dentro e para fora de determinados ramos de produção. No entanto, eles alcançam seus limites no momento em que tal equiparação “não pode ser evitada a longo prazo” (MANDEL, 1985, p. 371). Lênin (2004) também destaca os processos intrínsecos a esta transição, donde aparece a influência decisiva do papel dos bancos e da fusão do capital bancário com o industrial, culminando no capital financeiro. Portanto, a concentração de capital-dinheiro inativo, em volumes cada vez maiores nos bancos, levando ao aumento exorbitante nas transações bancárias, também aumentou o poderio desta fração de capital e sua importância na consolidação do imperialismo. Buscando uma denominação sintética e ao mesmo tempo compatível com a complexidade desse novo estágio do capitalismo, Lênin (2004) apresenta os traços fundamentais do imperialismo: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes (LÊNIN, 2004, p.43). Essas características centrais aprofundam a dinâmica expansiva do capital ao tempo que demandam sua ampliação para domínios mundiais, engendram a formação de imensos capitais que consolidam a dominação dos monopólios e do capital financeiro. É no cerne desse movimento que “adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes” (LÊNIN, 2004, p.43). A caracterização do imperialismo já carrega em si a ideia de dominação, portanto de relações assimétricas e de determinados níveis de exploração e subjugação seja de ordem econômica, política, social e cultural. Neste ínterim, a mundialização do capital assume novas determinações que consolidam relações de dominação entre diferentes Estados Nacionais, já que o capital não dispõe de um Estado Mundial Total. As condições novas que se condensam com o imperialismo operam, sobretudo, quando o domínio dos monopólios sobre os mercados internos chega a certo patamar que demandam outros mecanismos de escoação. Neste contexto, além da exportação de 48

mercadorias, o capital monopolizado demanda novos espaços para investimentos dos capitais excedentes, cujas possibilidades de valorização em suas localidades nativas já estão dificultadas e\ou esgotadas. Nesta direção,

As associações de monopolistas capitalistas - cartéis, sindicatos, trusts partilham entre si, em primeiro lugar, o mercado interno, apoderando-se mais ou menos completamente da produção do país. Mas sob o capitalismo o mercado interno está inevitavelmente entrelaçado com o externo. Há já muito que o capitalismo criou um mercado mundial. E à medida que foi aumentando a exportação de capitais e se foram alargando, sob todas as formas as relações com o estrangeiro e com as colônias e as "esferas de influência" das maiores associações monopolistas, a marcha "natura1" das coisas levou a um acordo universal entre elas, à constituição de cartéis internacionais (LÊNIN, 2004, p.31).

Assim, a constituição de monopólios internacionais constitui a condição elementar do imperialismo. E, como o desenvolvimento desigual e combinado é condição e resultado do desenvolvimento capitalista subjacente à consolidação do imperialismo, as relações de dominação que se impõem das nações capitalistas avançadas sob outros Estados nacionais se pauta, também, na condição de ritmos diferentes de desenvolvimento. Segundo Lênin (2004), existe uma política colonial específica do imperialismo, que “se traduz na luta das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo” (LÊNIN, 2004, p.41). Deste modo, além das formas tradicionais das relações coloniais, outras formas deste fenômeno assumem proporções com características novas, uma vez que existem formas variadas de países dependentes que, dum ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática. [...] Este gênero de relações entre grandes e pequenos Estados sempre existiu, mas na época do imperialismo capitalista torna-se sistema geral, entram, como um elemento entre tantos outros, na formação do conjunto de relações que regem a ‘partilha do mundo’, passam a ser elos da cadeia de operações do capital financeiro mundial (LÊNIN, 2004, p.41).

Fica patente a centralidade do capital financeiro como forma preponderante do capitalismo em seu estágio imperialista, porque se processa uma ampliação sem precedentes de capital monetário em posse de poucos grupos econômicos, e consequentemente a formação de grandes centros financeiros com poderes e alcances globais, cujas transações e lucros financeiros tornam-se exorbitantes. Neste sentido, ao movimentarem seus capitais em mercados mundializados e recorrentemente utilizando-se do mecanismo da especulação e criação de bolhas, impõem sua dinâmica e necessidades aos Estados nacionais e a outras frações do capital, como a esfera industrial. Lênin resume a formação do capital financeiro da seguinte forma: “concentração da 49

produção; monopólios que resultam da mesma; fusão ou junção dos bancos com a indústria: tal é a história do aparecimento do capital financeiro e daquilo que este conceito encerra” (LÊNIN, 2004, p.21). Esse movimento engendra um processo de “gestão” dos monopólios que se realiza mediante a consolidação de uma oligarquia financeira.

O capital financeiro, concentrado em muito poucas mãos e gozando do monopólio efetivo, obtém um lucro enorme, que aumenta sem cessar com a constituição de sociedades, emissão de valores, empréstimos do Estado, etc., consolidando a dominação da oligarquia financeira e impondo a toda a sociedade um tributo em proveito dos monopolistas (IDEM, p.24).

Esse poder de comando não desobriga o capital do processo imediato de produção, mas ao passo que o capital-dinheiro é fundamental para o início de todo ciclo produtivo do capital, sua fração financeirizada assume a direção da rota do processo de acumulação. É evidente que não há uma cisão estanque entre capital financeiro e capital industrial, por exemplo. Já que a sociedade por ações – fenômeno típico do imperialismo – implica uma fusão cada vez maior entre capital financeiro e capital industrial. Mas, é importante destacar que o “predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentier e da oligarquia financeira, a situação destacada de uns quantos Estados de "poder" financeiro em relação a todos os restantes” (LÊNIN, 2004, p.26). A época que corresponde aos estudos de Lênin ainda que revelassem essa dominância do capital financeiro, não abarcava desdobramentos importantes do ponto de vista da ampliação da dominância das finanças no sistema do capital. Se para o autor estavam claras a ampliação dos bancos e das sociedades anônimas de ações, a formação de mercados financeiros ultra poderosos, com novos atores importantes como os fundos de pensão e os fundos mútuos de investimento,16 por exemplo, no contexto contemporâneo novas determinações surgem no capitalismo imperialista e torna ainda mais complexo o fenômeno da financeirização do capital e de suas implicações sobre as relações sociais de produção capitalista.17 A formação dos grandes monopólios que caracteriza esse período foi marcada por grandes contradições e pela complexificação das relações sociais capitalistas, inclusive

16“Os fundos de investimento originaram-se nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha sobretudo como fundos de pensão, ou seja, como uma maneira de minorar os efeitos das aposentadorias insuficientes dos trabalhadores. O baixo valor das aposentadorias lançava os trabalhadores na contingência de reservar parcela de seus salários para uma complementação salarial posterior. Tais fundos tiveram importante crescimento nos anos 1960 e 1970 (FARNETTI, 1998, p. 185) e suas características são ambivalentes” (FONTES, 2010, p. 196).

17 Trataremos do fenômeno da financeirização e suas implicações no capitalismo contemporâneo na próxima seção. 50

acentuando a concorrência, mas neste momento com novas determinações, sendo dirigida pelas lutas interimperialistas, como esclarece Mandel (1985): O período clássico do imperialismo foi marcado por uma concorrência intensificada entre as grandes forças imperialistas, onde o controle militar e político sobre zonas geográficas (o mercado interno mais as colônias) proporcionava a base para a defesa ou expansão de sua fatia do mercado mundial. Exatamente por essa razão a concentração internacional do capital não assumiu apenas a forma de uma centralização internacional de capital, como também colocou os monopólios imperialistas nacionais como antagonistas no mercado mundial de mercadorias, matérias-primas e capital (MANDEL, 1985, p. 221).

A concorrência interimperialista é dotada de um equilíbrio instável, agravando-se paulatinamente o ritmo das disputas entre as grandes potências imperialistas pela conquista de territórios, divisão e dominação do mundo. Tal processo é acompanhado pela corrida armamentista, a qual deflagra a eminência de amplos confrontos militares, como as Guerras Mundiais. Em paralelo a este movimento, o alargamento das funções estatais18 para consolidação dos interesses burgueses nas suas peculiares condições nacionais, foi fenômeno decisivo para garantir a supremacia das grandes potências imperialistas, sendo realizado o uso deliberado do Estado – inclusive seu arsenal coercitivo –, para fins econômicos. Desde modo, o Estado, a serviço da burguesia, não poupou forças políticas e militares para remoção “de obstáculos que as classes e os Estados pré-capitalistas representavam à expansão ilimitada à exportação de mercadorias” (MANDEL, 1985, p.219). Assim, aprofundou-se a concorrência internacional, a rivalidade interimperialista e a propensão “à redistribuição periódica do mercado mundial, inclusive, por meio das forças armadas – em síntese, por meio de guerras imperialistas” (IDEM, p. 220). A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) situa-se neste campo do agravamento das contradições capitalistas, face ao movimento de consolidação do imperialismo e luta por definição de zonas de influência e redivisão do mundo, já sob chancela do Estado burguês. A Segunda Guerra Mundial não foge a esta questão do acirramento das lutas imperialistas para demarcação de terreno de domínio dos mercados mundiais. Terminada a Primeira Guerra Mundial, a acumulação acelerada de capital propiciada pela segunda revolução tecnológica (1893-1914) foi sucedida por uma relativa estagnação econômica, decorrente do “aumento considerável na composição orgânica do capital em resultado da

18 A discussão do Estado é fundamental na análise do movimento de reprodução do capital e das relações sociais capitalistas. No entanto, neste momento apenas situamos sua função vital na expansão dos domínios mundiais do capital imperialista, mas uma análise mais detida sobre o Estado será realizada posteriormente, ainda neste capítulo. 51

eletrificação generalizada [que] produziu uma tendência à queda da taxa média de lucros” (MANDEL, 1985, p.132). O vácuo do pós-Primeira Guerra Mundial também foi ocupado pela exponenciação da luta de classes e intensificação da ofensiva revolucionária da classe trabalhadora, imputando aos capitalistas a necessidade de fazer concessões aos trabalhadores para garantia da hegemonia burguesa. Neste ínterim, “depois da breve ascensão econômica entre 1924\29, a queda na taxa de lucros conduziu à Grande Depressão de 1929/32 e à estagnação nas atividades promotoras da valorização e da acumulação” (IDEM, p.132). Neste cenário o acirramento das instabilidades entre as potências imperialistas, que se tornaram ainda mais complexas com a divisão mundial após a Primeira Guerra Mundial, culminou em novos conflitos militares e deflagrou a Segunda Guerra Mundial, que seria importante para recomposição das forças expansionistas do capital, como atesta Mandel.

O rearmamento e a Segunda Guerra Mundial tornaram possível novo impulso na acumulação de capital após a grande depressão”, isto por que permitiu “ao capital conseguir um aumento na taxa de mais-valia suficientemente amplo para permitir a ascensão temporária da taxa de lucros, apesar da mais alta composição orgânica de capital (MANDEL, 1985, p. 132).

Evidentemente, as Guerras sempre irrompem novas contradições. Mas, ao tempo que são campos de larga importância para o escoamento de capital, via indústria bélica, também são um potencial mecanismo destrutivo de forças produtivas, o que no capitalismo é a antítese da nova composição e desenvolvimento de forças produtivas mais avançadas que absorvem capitais excedentes, ávidos por valorização. Além do “esforço de guerra” disciplinar os trabalhadores a mais nefasta exploração, com estrondosa ampliação da taxa de mais-valor (MANDEL, 1985). Historicamente situado, o período pós-Segunda Guerra Mundial marca um novo estágio do desenvolvimento do sistema do capital, configurado numa nova ordem global. Neste contexto, ganha expressão a concentração imensa de capitais na sua forma monetária, que assume a propriedade dos recursos sociais de produção. Conforme Fontes (2010), essa forma de propriedade superaria a propriedade dos meios diretos de produção, num processo que estava muito além da mera união entre capitalistas industriais e bancários. Este novo nível de concentração advém da impulsão à forma monopólica, que favorecida pela relação entre o capital industrial e o bancário, culminou na composição de gigantes “conglomerados multinacionais para, finalmente, se encaminhar em direção a uma 52

propriedade quase descarnada do capital, transformando-se num capital-imperialismo tentacular e abrangendo alguns países até então periféricos” (FONTES, 2010, p. 155). Nesta direção, a nova ordem global pós-Segunda Guerra Mundial e a expansão grandiosa do capital entre 1945\65 também contou com a própria Guerra19 e os regimes totalitários – como o nazismo – como pré-condições extremamente vantajosas para a acumulação e expansão do capital uma vez que possibilitaram uma ampliação radical na taxa de mais-valia e uma profunda erosão no valor da força de trabalho (IDEM, 1985). O pós-Segunda Guerra Mundial marca um estágio de desenvolvimento avançado do imperialismo, o qual Mandel denominou de capitalismo tardio.20 O autor desenvolve a seguinte periodização quanto à história do desenvolvimento do capitalismo: aponta um período concorrencial (a partir de 1848), o imperialismo clássico (demarcado entre fins do século XIX até os anos 1930), cuja particularidade é a monopolização do capital; e o capitalismo tardio ou maduro, que abarca o período do final da Segunda Guerra até os dias de hoje. Ele, que trabalha com a categoria de “ondas longas”,21 defende que o capitalismo tardio comporta novas e complexas determinações ao movimento de reprodução ampliada do

19 O fato de após a Segunda Guerra Mundial não ter ocorrido outras Guerras Mundiais não significa dizer que os conflitos político-econômicos e as disputas imperialistas por territórios e domínios de determinados espaços geográficos com potenciais de expansão do capital, não tenha deflagrado conflitos militares. Estas disputas, que tem se dado, sobretudo, pelo domínio de fontes naturais de energia não renováveis, como o petróleo, têm sido objeto de ocupações e conflitos militares. A assertiva de Fontes (2010) é ilustrativa: “A possibilidade tragicamente real de aniquilação total inaugurada na Segunda Guerra Mundial limitou a eclosão de guerras mundializadas. Não obstante, os países imperialistas, isolados ou coligados (com maior ou menor unidade) envolveram-se em guerras praticamente permanentes. Nos últimos anos, as mais violentas foram a partilha da Iugoslávia, a invasão do Iraque, do Afeganistão e, em seguida, nova invasão, com a devastação e ocupação do Iraque” (FONTES, 2010, p. 111). Nesta direção é válido também indicar a análise de Mészáros (2007): “os que sustentam que hoje o imperialismo não implica a ocupação militar de território não apenas subestimam os perigos que nos esperam, mas também aceitam as aparências mais superficiais e enganadoras como as características substantivas definidoras do imperialismo do nosso tempo, ignorando tanto a história como as tendências contemporâneas de desenvolvimento. Com suas bases militares, os Estados Unidos ocupam militarmente o território de nada menos que 69 países” (MÉSZÁROS, 2007, p. 105).

20Optamos por usar a categoria capitalismo tardio, conforme a linha teórica de Mandel, por compreendermos que ela tem potencial analítico, ajudando a compreender o Imperialismo após a Segunda Guerra Mundial. Não vamos entrar nas polemizações teórico-conceituais que giram em torno da caracterização do imperialismo atual, como as diferentes definições teóricas de Virgínia Fontes, que trabalha a categoria capital-imperialismo, e, David Harvey, que utiliza o termo Novo Imperialismo. Apesar das diferenças entre os dois conceitos, entendemos que as análises de ambos os autores trazem pistas teóricas importantes para pensar o imperialismo na fase contemporânea. Ambos também convergem com Mandel (1985) na compreensão de que o pós-Segunda Guerra Mundial imputou novas e múltiplas determinações ao imperialismo e da face mais complexa que ele assume após a crise de 1970. Por se tratarem de estudos mais recentes, Fontes (2010) e Harvey (2005) adensam as contribuições ao entendimento dos processos recentes que demarcam o fenômeno do Imperialismo.

21 Mandel explica que apesar do capitalismo comportar períodos cíclicos de 7 ou 10 anos, determinadas condições históricas particulares implicam na sucessão de períodos mais longos, em torno de 50 anos. Esses períodos mais longos que incluem a sucessão de fases de expansão e estagnação ele denominou de “ondas 53

capital e que tal estágio comporta uma onda longa de tonalidade expansiva (1940\45-1966) e uma onda longa de estagnação (1967 em diante). Nos termos mandelianos a era do capitalismo tardio não compõe uma nova época do desenvolvimento capitalista, mas condensa unicamente um desenvolvimento ulterior da época imperialista de capitalismo monopolista, o que permite assegurar que as características da era imperialista indicadas por Lênin permanecem válidas para o capitalismo tardio. Evidentemente, existe um rol de determinações novas e complexas que demarcam e condicionam a passagem do imperialismo clássico para o capitalismo tardio. Neste contexto, a concentração internacional de capital passou a adensar a centralização do capital internacional, o que significou a transformação da empresa multinacional na forma organizativa preponderante do grande capital. Passa a existir assim uma diferença qualitativa entre o desenvolvimento das empresas no período tardio do capitalismo e o ocorrido no período do imperialismo clássico. Mandel explicita as forças motrizes desse processo: 1) o novo desenvolvimento das forças produtivas, acarretado pela terceira revolução tecnológica tornou difícil a lucratividade para inúmeros setores apenas em escala nacional, tanto em função dos limites do mercado interno, quanto pelo volume enorme de capital necessário à produção. Isso levou a uma internacionalização das forças produtivas, que geraram a infraestrutura para internacionalização do capital; 2) a acumulação e a concentração em níveis crescentes de capital no período anterior põem um volume cada vez maior de capital à disposição das grandes empresas oligopolistas e monopolistas, através dos superlucros que realizam. Em consequência tem-se o autofinanciamento e supercapitalização; 3) os superlucros comumente assumem a forma de superlucros tecnológicos; 4) Forças sociopolíticas e econômicas provocam o declínio relativo da exportação de capitais para regiões subdesenvolvidas. Em função disso, o excesso de capital circula, majoritariamente, entre as metrópoles imperialistas, o que também contribui para promover a empresa multinacional; 5) o desenvolvimento

longas”. Segundo o autor, “cada um desses longos períodos pode ser subdivido em duas partes: uma fase inicial, em que a tecnologia passa efetivamente por uma revolução, e durante a qual devem ser criados os locais de produção e atendidas outras exigências preliminares dos novos meios de produção. Essa fase é caracterizada por uma taxa de lucros ampliada, acumulação acelerada, crescimento acelerado, autoexpansão acelerada do capital anteriormente ocioso e desvalorização acelerada do capital antes investido no Departamento I, mas agora tecnicamente obsoleto. Essa fase inicial dá lugar a uma segunda, em que já ocorreu a transformação real na tecnologia produtiva: em sua maior parte, já estão em funcionamento os novos locais de produção requeridos pelos novos meios de produção, só podendo ser ampliados ou aperfeiçoados em termos quantitativos.[...] essa fase se torna caracterizada por lucros em declínio, acumulação gradativamente desacelerada, crescimento econômico desacelerado, dificuldades cada vez maiores para a valorização do capital total acumulado – e em particular do novo capital adicionalmente acumulado – e o aumento gradativo, autorreprodutor, no capital posto em ociosidade” (MANDEL, 1985, p. 84). 54

desigual das grandes e diversas forças, além das políticas protecionistas, aprofundam a tendência de substituir a exportação de mercadorias pela exportação de capitais, com vistas a evitar as restrições alfandegárias; 6) a especialização e a racionalização do controle do capital, provenientes da centralização aumentada do capital nos contextos nacionais, impelem aos investimentos diretos no exterior (MANDEL, 1985, p. 225-226). O capitalismo tardio, marcado pelas transformações produtivas da terceira revolução tecnológica, é caracterizado pela mecanização, padronização, superespecialização e fragmentação do trabalho, e constitui pela primeira vez na história a industrialização de todos os ramos da economia, “ao que ainda seria possível acrescentar a mecanização crescente da esfera da circulação [...] e a mecanização crescente da superestrutura” (IDEM, p. 134). Em outros termos, tem-se o avanço da industrialização da esfera da reprodução, com a expansão do setor de serviços, que culmina no fenômeno da supercapitalização. A expansão do setor de serviços capitalistas que caracteriza o capitalismo tardio resume, portanto, à sua própria maneira, todas as contradições do modo de produção capitalista. Reflete a enorme expansão das forças produtivas sóciotécnicas e científicas e o crescimento correspondente das necessidades culturais e civilizadoras dos produtores, exatamente como reflete a forma antagônica em que essa expansão se realiza sob o capitalismo: pois ela se faz acompanhar de uma supercapitalização crescente (dificuldades de valorização do capital), de dificuldades crescentes de realização, de desperdício crescentes de valores materiais e de alienação e deformação crescentes dos trabalhadores em sua atividade produtiva e em seu âmbito de consumo (MANDEL, 1985,p. 282)

O capitalismo tardio comporta as contradições clássicas do capitalismo governado pela lei do valor e é acometido por uma série de contradições novas que impõem limites à onda longa expansionista. O aumento na composição orgânica do capital, favorecidos pelo processo de automação da produção, bem como o aumento na importância da esfera da circulação vão, paulatinamente, colocar novos óbices à valorização do capital. Assim, um acréscimo no parasitismo e no desperdício subjacentes a este novo estágio de desenvolvimento do capital conflui para a estagnação do crescimento e da acumulação do capital, uma vez que o mais- valor passa a ser repartido entre número maior de capitalistas dos diferentes momentos da rotação do capital – produção, circulação e consumo –, ao mesmo tempo em que o processo de trabalho produtivo imediato é reduzido em função das transformações tecnológicas. Acoplados ao movimento da classe trabalhadora em prol de melhorias salariais e políticas sociais, o capitalismo transita para a onda longa de estagnação, deflagrada com o chamado “choque do petróleo” em 1973. Posteriormente analisaremos mais detidamente a crise e as características dessa onda longa de estagnação. Apesar da ordem bipolar que se consolida no imediato pós Segunda Guerra Mundial – tendo como blocos oponentes claramente definidos os Estados Unidos da América (EUA) e a 55

União Soviética – fica muito patente à condição dos EUA como potência imperialista. Conforme destaca Brettas (2013), que, naquele contexto, os Estados Unidos não apenas era o país com possibilidades de ocupar uma posição hegemônica mundial, como também aquele em condições de contribuir com o financiamento da reconstrução da Europa e do Japão, devastados pela Guerra. Também o acordo de Bretton Woods foi estratégico e demonstrava a preocupação dos EUA em estabelecer critérios nos quais pudesse consolidar o país como grande potência hegemônica. Tratava-se de um acordo monetário do qual participavam os EUA e mais 44 países e tinha como objetivo gerir estratégias de estabilidade monetária internacional, dos quais se destacava a definição de taxas de câmbio fixa, tendo como moeda parâmetro o dólar. Segundo Brettas (2013), pouco tempo depois, em 1947, foi necessário redirecionar as políticas adotadas. Três condições essenciais teriam imposto certos limites ao poderio norte- americano: a aprovação do Plano Marshall, aceitação do não cumprimento de algumas regras estabelecidas em Bretton Woods e a anuência por parte dos Estados Unidos a algum tipo de protecionismo nas economias europeia e japonesa (TEIXEIRA apud BRETTAS, 2013). Nesta direção, a criação de organismos multilaterais supranacionais – que evidentemente estavam sobre a batuta dos EUA – como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial – eram imprescindíveis para socialização das ideologias norte- americanas para garantir consenso sobre a necessidade de defesa e expansão do capitalismo, como único sistema capaz de garantir as liberdades democráticas. É justamente nessa época que a temática do desenvolvimento ganha envergadura científica e passa por um intenso processo de ideologização no sentido do que sinalizamos no início do capítulo. De acordo com Cardoso (2013), a antiga perspectiva ideológica da “evolução” é substituída pela matéria do “desenvolvimento”. Neste esteio ideológico, as regiões e países pobres seriam responsáveis pela condição de atraso em relação aos países ricos\avançados. Pobreza\riqueza e atrasado\avançado eram oposições polares. A ideia de desenvolvimento foi adiante no discurso e transformou essas polaridades em diferenças de graus. A medida passa a ser o desenvolvimento e faz surgir a noção de subdesenvolvido, ou seja menos desenvolvido do que. Não tarda a surgir uma categoria intermediária, que, aliás, pode ser subdivida à vontade: a categoria “em desenvolvimento” (CARDOSO, 2010, p. 208).

No contexto de expansão das fronteiras do capital e da necessidade de exportação de capital fixo – pelos grandes grupos monopolistas – o interesse pela industrialização do chamado “terceiro mundo” está no cerne da propagação da ideologia do desenvolvimento. 56

Isto por que ela daria sustentação ideológica para construção da legitimidade e consolidação do consenso de que seria favorável aos países “atrasados” receberem investimentos externos para alçar o “desenvolvimento econômico”. Este ambiente é dinamizado também pelos programas de “auxílio ao desenvolvimento” disseminados, sobretudo pela Organização das Nações Unidas (ONU), sob intenso patrocínio das nações imperialistas, mormente os EUA, os quais imputavam severas condições aos países que recebessem os auxílios, muitas vezes confluindo decisivamente para a definição dos rumos da via de industrialização e especialização comercial dos países no circuito mundial do capital. O “desenvolvimento”, que se tornara política de Estado dos Estados Unidos, visava expandir o capitalismo como sistema pelo mundo, sistema que era integrado e que era preciso a todo custo manter bem integrado: deveria ser capaz de integrar a ele novas áreas, sempre sob a direção e o comando do grande capital que promovia esse projeto. Assim o sistema capitalista seria fortalecido e se consolidaria a hegemonia norte-americana nesta nova expansão do capitalismo (IDEM, p. 211-212).

Assim, a ideologia do desenvolvimento, nesse período, alcança o papel de fator decisivo do processo expansionista do capital, exatamente no momento que abre uma onda longa com tonalidade expansionista para o capitalismo, abordado anteriormente. Esta onda longa de caráter expansionista foi consolidada em torno, entre outras coisas, do consenso da necessidade de certa forma de regulação da economia pelo Estado. O regime fordista de trabalho, a consolidação do Estado Social, que apesar das variações entre os diversos países de capitalismo avançado, garantia políticas sociais públicas e direitos sociais como expoentes da fase histórica de grande expansão do capitalismo. Esse período comportava certo grau de regulamentação da economia por parte de medidas estatais e se assentava em grandes margens de produtividade industrial e intenso acúmulo de capital, contrastando com períodos anteriores em que predominava a ortodoxia liberal, nos quais o Estado não deveria intervir na economia e sua atuação no âmbito das políticas sociais era mínima e restrita. Não nos deteremos na caracterização do regime fordista de produção e do Estado Social. Nossa intenção foi tão somente indicar esse momento histórico e elucidar o fato dele comportar determinado padrão de regulamentação da economia, comumente retratado como keynesianismo. Baseado nas ideias elaboradas por John Maynard Keynes para superação das consequências da grave crise capitalista de 1929, a perspectiva keynesiana tornou-se direcionadora da atuação de muitos Estados Nacionais, de capitalismo avançado, no pós- 57

Segunda Guerra Mundial, quando o mundo se viu perante a necessidade pujante de certo grau de regulação do Estado na economia e nas políticas sociais. O keynesianismo se pautava no pressuposto de que a “mão-invisível” do mercado não era suficiente para gerar crescimento e desenvolvimento econômico e, portanto, o Estado deveria agir como ente regulador e garantidor para que não houvesse insuficiência de demanda efetiva. A política keynesiana se pautava em três pilares: pleno emprego, maior igualdade social e estímulo às empresas. Para tanto, seriam necessárias duas vias a partir da ação estatal: “1. Gerar emprego de fatores de produção via produção de serviços públicos, além da produção privada; 2. Aumentar a renda e promover maior igualdade, por meio da instituição de serviços públicos, dentre eles as políticas sociais” (BEHRING e BOSCHETTI, 2011, p. 86). A fase de expansão consistiu no pleno emprego das forças produtivas e do consequente aumento da produtividade do trabalho, que significou produção em massa de mercadorias. Assim, o aumento real do salário para os trabalhadores, sob o regime fordista de produção combinados aos salários indiretos, isto é, as políticas sociais keynezianas, garantiram o aumento do consumo em massa de tais mercadorias. Estes fatores associados ao estímulo Estatal aos investimentos industriais, com políticas fiscais e monetárias favoráveis à produção, possibilitaram a reprodução ampliada do capital, auferindo altas taxas de lucro e um volume de acumulação jamais antes visto na história do capitalismo. Uma expansão a longo prazo na taxa de mais-valia, por um lado; por outro, uma expansão a longo prazo do mercado, através da inovação tecnológica acelerada – em outras palavras, uma expansão a longo prazo na taxa de mais-valia conjugada a um aumento simultâneo nos salários reais: tal foi a combinação específica que tornou possível o crescimento cumulativo a longo prazo da economia dos Estados imperialistas no período 1945\1965 (MANDEL, 1985, p. 119).

Neste mote de análise, podemos inferir que a finalização desse virtuoso ciclo de crescimento, que Mandel (1985) denominou de “onda longa expansiva” ou os “30 anos gloriosos”, conforme discutido anteriormente, se seguiu de uma profunda crise que se estende em uma “onda longa de estagnação” (IDEM). A fase de estagnação, culminada com a crise iniciada na década de 1970, foi crucial no sentido da intensificação da financeirização da economia na medida em que determinou que o capital produtivo ampliasse sua inserção nos investimentos financeiros, haja vista o processo de limitação de realização do valor iniciado nessa fase do capitalismo maduro, em função da exponenciação das contradições do capital. Tal crise traz à baila o feixe de contradições que demarca o sistema de produção e reprodução social gerido pelo capital, caracterizando-se por seu caráter estrutural. Na 58

sequência, examinaremos de um ponto de vista global, o significado das crises no modo de produção, para depois situar a manifestação concreta particular da crise que eclodiu na década de 1970 e se arrasta até os dias atuais.

1.4 O capital e sua ineliminável propensão a crises

A propensão inextricável do movimento do capital conduzir a crises cíclicas tem expressão incontestável no movimento histórico do desenvolvimento capitalista. É evidente que contratendências são acionadas pelos mecanismos institucionais do capital para viabilizar estratégias anticíclicas, para minimizar e\ou eliminar seus efeitos mais disruptivos para o processo de acumulação. Os estudos de Mészáros apontam o capital como uma forma de relação social, como um sistema de dominação que produz e reproduz determinadas relações sociais, cujos imperativos se interpõem a todos, indistintamente, de modo que podemos pensar a crise como uma bomba relógio que atinge a sociabilidade. Neste sentido, Mészáros (2011) aponta: o capital não é simplesmente uma ‘entidade material’ – também não é [...] um ‘mecanismo’ racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro ‘mecanismo de mercado’[...] mas é, em última análise uma forma incontrolável de controle sociometabólico. A razão principal por que esse sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura ‘totalizadora’ de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar (MÉSZÁROS, 2011, p. 96). Essa concepção de Mészáros nos remota aos postulados referidos no início dessa discussão acerca das leis tendenciais que Marx detalhou, como sendo imanentes ao sistema capitalista.22 São próprias do metabolismo do capital e por essa natureza transcendem abstratamente as personificações das classes sociais antagônicas desse modo de produção, tanto os capitalistas como os trabalhadores. Se a perda de controle sobre a totalidade do processo pelos trabalhadores é uma condição do processo de trabalho no capitalismo, dos capitalistas também não se pode esperar o controle total do capital global. Embora cada um, individualmente, possa tomar as decisões

22 É importante ressaltar que as análises marxistas entendem e explicitam que podemos falar em leis tendenciais e não em leis naturais de desenvolvimento. Tais leis são muitas vezes contrapostas por contratendências que podem ocorrer ao longo do movimento do capital em cada contexto histórico. Mesmo que essas operações contrariantes às leis tendenciais não possam extrair definitivamente as contradições e condições de eclosão de crise do capital. 59

mais cabíveis às particularidades do seu ramo empresarial, há uma perda de controle do ponto de vista da totalidade do funcionamento do capitalismo. Ou seja, “[...] as personificações particulares do capital não podem possuir a visão racional do todo, apenas a racionalidade parcial exigida para mover seus limitados empreendimentos produtivos” (IDEM, p. 715). Para garantir o seu funcionamento como modo totalizador de controle sociometabólico, “o sistema do capital deve ter sua estrutura de comando historicamente singular e adequada para suas importantes funções” e neste sentido toda a sociedade deve se sujeitar, tanto nas suas funções produtivas e distributivas “às exigências mais íntimas do modo de controle do capital estruturalmente limitado (mesmo se dentro de limites significativamente ajustáveis (MÉSZÁROS, 2011, p. 99).23 Neste sentido, convergindo com o pensamento de Mészáros, Paniago (2012) assinala que é impensável exercer controle sobre o capital “no quadro de referência estrutural do seu sistema orgânico”. E complementa que, “[e]sta impossibilidade de controle do capital se manifesta, embora de maneira distinta, nos dois polos das personificações necessárias ao pleno desenvolvimento do sistema” (p.37), isto é, os trabalhadores e os capitalistas. Bonente (2011) também traz elementos importantes para ratificar as proposições anteriores. Em primeiro lugar, assim como no caso das leis gerais de desenvolvimento da sociedade, as leis especificamente capitalistas são não-teleológicas, ou seja, os resultados aqui apresentados não são necessariamente previstos ou intencionados pelos sujeitos em suas ações. Para entender o que está sendo dito, sem precisar ir muito longe, basta pensar que, se a combinação dessas leis produz uma deterioração relativa nas condições de vida da maioria da população, esse é um resultado indesejável que as pessoas, como regra, consideram lastimável, mesmo quando não associam este resultado ao desenvolvimento capitalista (BONENTE, 2011, p. 40).

Assim, ainda que essa sociedade seja resultado da articulação espontânea entre atos teleológicos – isto é, quando os sujeitos têm consciência e projetam idealmente as suas ações que serão objetivadas no mundo concreto real – é dotada de uma dinâmica que escapa ao controle de todos os sujeitos.

23 Sobre as polêmicas em torno das teses de Mészáros quanto à impossibilidade da ação do sujeito no sistema incontrolável do capital, mais especificamente, sobre sua afirmação do capital ser um sistema sem sujeito, Paniago (2012) afirma não estar ausente, na análise de Mészáros, a presença do papel ativo do sujeito na história. Na verdade, segundo a explicação da autora, o que Mészáros faz questão de apontar “é que no sistema atual há uma inversão na relação sujeito\objeto, aparecendo como pseudossujeitos as personificações do capital” (p. 155). Paniago (2012) explica que o autor húngaro procura “desvelar os nexos causais do sistema do capital como requisito da ação humana efetivamente revolucionário, que não seja simplesmente reiterativas de formas variadas de dominação. A análise que faz da causalidade, sem negligenciar a presença ativa da ação humana, tem por objetivo, precisamente, diluir as ilusões reformistas de controle político sobre o capital que tem predominado na esquerda” (PANIAGO, 2012, p. 157). 60

A propensão a crises é uma dessas condições objetivas do capital que não pode ser objeto do controle das personificações do capital. Cada capitalista individual entra no circuito produtivo com o objetivo de autovalorização do seu capital. Individualmente, ele obedecerá a todos os imperativos que o processo de produção capitalista exige para garantir o volume maior de lucros e a acumulação. Acontece que outros tantos milhares de capitalistas fazem processo semelhante, mas, conforme indicamos, seu poder de controle racional é completamente parcial. Neste movimento complexo do sistema do capital, determinados abalos sísmicos em quaisquer momentos do processo de rotação do capital e o acúmulo de certas variáveis destes processos numa economia mundializada pode e leva o capitalismo a crises cíclicas. Os estudos marxianos permitem inferir que o movimento do capital passa por ciclos econômicos que comportam, basicamente, quatro momentos: crise, depressão, retomada e auge. Pensando a partir da perspectiva dialética, é preciso esclarecer que não há uma cisão estanque entre estes diferentes momentos, mas sim, uma infinidade de determinações e conexões que engendram a acumulação capitalista. É justamente nessa direção, que Carcanholo (2010) afirma que crise, em Marx, não é apenas uma fase do ciclo econômico, mas sim expressa as contradições do modo de produção capitalista, ao passo que a unidade dessas mesmas contradições é reposta. Para ser mais rigoroso, o termo correto em Marx é “crise cíclica”, pois ele significa a processualidade dialética da acumulação de capital, com momentos de expansão nessa acumulação, onde ao mesmo tempo as contradições fundamentais são complexificadas, o que leva às rupturas (momento de crise – no sentido anterior), que acabam por repor (dialeticamente) a unidade daquelas contradições, que voltam a se complexificar, e assim por diante (CARCANHOLO, 2010, p. 02).

Mészáros (2011) também traz apontamentos nesta mesma direção, indicando o modo contraditório pelo qual as crises cíclicas do capital envolvem – dialeticamente – a exponenciação das dificuldades do capital reproduzir-se e, ao mesmo tempo, a superação dessas mesmas barreiras. O autor aponta que crises de intensidade e duração variadas são o próprio modo de existência do capital, compondo barreiras a sua valorização. “[...]são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação” (p.795). Outra interpretação importante nesta mesma direção encontra-se em Harvey quando abaliza da seguinte forma: as crises são, de fato, não apenas inevitáveis, mas também necessárias, pois são a única maneira em que o equilíbrio pode ser restaurado e as contradições internas da acumulação do capital, pelo menos, temporariamente, resolvidas. As crises são, por 61

assim dizer, os racionalizadores irracionais de um capitalismo sempre instável (HARVEY, 2011, p.65)

Seguindo a trilha dos estudos de Mandel (1985), as crises clássicas do capitalismo são de superprodução, quando há produção superabundante de mercadorias que não são consumidas, porquanto não completa o processo de circulação, o que provoca a impossibilidade da realização do mais-valor contido em tais mercadorias. Ainda conforme o autor, cada período de expansão engendra uma grande acumulação de capital que pode ocasionar superacumulação, isto é, a produção exorbitante de capital para o qual não há possibilidade de investimentos a uma taxa de lucros adequada. Mas, é importante esclarecer que o “conceito de superacumulação não é jamais absoluto, mas sempre relativo: não há nunca capital ‘em demasia’, em termos absolutos; há muito capital em disponibilidade para que se atinja a taxa média social de lucros esperados” (MANDEL, 1985, p. 76). Conforme elucida Mandel, ao desenvolver a noção multifatorial das crises capitalistas, elas não têm uma única causa, mas resultam, necessariamente, das contradições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo a longo prazo. Na maioria das vezes elas têm um elemento detonador, mas esse elemento nunca é a causa da crise, ainda que ele a precipite. Para a irrupção de uma crise capitalista convergem inúmeras variáveis que se influenciam dialeticamente. Esta concepção mandeliana advém da sua compreensão acerca do modo de produção capitalista como uma totalidade dinâmica, em que a ação recíproca de todas as leis básicas do desenvolvimento interage para que se produza um determinado resultado. O autor destaca, assim, as variáveis centrais que compõem essa totalidade dinâmica: a composição orgânica do capital, em geral e nos mais importantes setores em particular; a distribuição do capital constante entre capital fixo e capital circulante; o desenvolvimento da taxa de mais-valia; o desenvolvimento da taxa de acumulação; o desenvolvimento do tempo de rotação do capital; e as relações de troca entre os dois Departamentos (MANDEL, 1985, p. 25-26). Nesta direção, as causas mais determinantes das crises circundam em torno destas variáveis centrais, englobando precisamente: a anarquia da produção, que diz respeito àquela falta de controle global sobre o movimento do capital, que indicamos; a queda da taxa lucro, resultado do movimento de concorrência em aumento de produtividade, que gera diferencial de valor contido e realizado nas mercadorias; e o subconsumo das massas trabalhadoras ou a desproporcionalidade entre a valorização do capital e o consumo, expresso na incapacidade de grande massa de trabalhadores de ter poder de compra da infinidade de produtos colocados 62

em circulação, em função de sua expulsão do mercado formal de trabalho e\ou de sua inserção precária no processo de produção, e, portanto, da falta de recursos para garantir o seu consumo. Em termos históricos, é praticamente consensual, no âmbito da tradição marxista, a compreensão de que o capitalismo vive uma crise estrutural desde os anos 1970. Desde então, o capitalismo sobrevive com pequenos intercursos de crescimentos – não muito significativos – mas, com explosão de novas manifestações conjunturais da crise estrutural do capital, como o episódio do mercado financeiro que elucidaremos na seção 5 deste capítulo. Por isso, saber fazer a distinção entre a natureza de uma crise cíclica e uma crise estrutural é fundamental para qualquer alternativa de transformação radical do sociometabolismo prevalecente, tanto para que haja possibilidade de sucesso, como para que não se contribua, com as derrotas previsíveis para uma sobrevida do capital (PANIAGO, 2012, p. 58).

Portanto a crise do capital, que rasteja até os dias atuais, não é uma mera crise cíclica do capital, trata-se de algo mais profundo, pois envolve toda a estrutura do próprio capital, elevando suas contradições a dificílimos embaraços de superação. Nos termos de Netto (2010), trata-se de uma crise sistêmica, “que não é uma mera crise que se manifesta quando a acumulação capitalista se vê obstaculizada ou impedida. A crise sistêmica se manifesta envolvendo toda a estrutura da ordem do capital” (p. 415). Quando tratamos do capitalismo tardio já indicávamos as análises de Mandel quanto aos elementos que estavam no cerne dessa crise. Desprezando uma abordagem monocausal da crise que explodiu em 1970, o autor assume que ela resulta da dinâmica intrínseca do capitalismo maduro, marcado pela crescente dificuldade de valorização do capital em função: da tendência crescente da supercapitalização (industrialização da esfera da reprodução) do aumento na composição orgânica do capital, em função da terceira revolução tecnológica, hipertrofia dos orçamentos estatais, na aceleração da inflação, a intensificação da financeirização da economia, a desvalorização do dólar, apontado para falência do acordo de Breeton Woods, forte redução dos investimentos, o desemprego estrutural. Em direção análoga, Antunes (2007) aponta os principais elementos detonadores e constituintes da eclosão da crise do capital na década de 1970: intensa redução das taxas de lucro, em função da elevação do preço da força de trabalho (custo salarial); esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; hipertrofia das transações financeiras; aumento exponencial da concentração de capitais (fusões e aquisições), característica que implica em pressão sobre a taxa de lucro; crise do chamado Estado de Bem-Estar Social, especificamente expresso em uma crise fiscal do Estado; 63

De acordo com Harvey (2004), essa crise relaciona-se diretamente à rigidez. Rigidez na produção, na alocação de recursos e nos contratos de trabalho. A transição do regime fordista para o que o autor denomina de acumulação flexível não é meramente uma mudança na forma de produzir, é, antes, “uma transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social e política a ele associado” (HARVEY, 2004, p. 117), em busca de mais-valor. Isto por que, o padrão de consumo de massa se exauria dada a incapacidade de absorção do montante de mercadoria em circulação. O Estado entrava em crise fiscal, não dispondo mais de fundo suficiente para manter a estrutura de políticas sociais universais e as estratégias anticrises; o capital não suportava mais os investimentos pesados, a superprodução e a superacumulação; o trabalho, por sua vez, não era mais tão facilmente controlável, superando, em larga medida, a posição corporativista e burocratizada dos sindicatos tradicionais. Convergindo com essa concepção da crise como uma crise de dominação geral, retomamos o mote de análise de Mandel para inferir essa concepção ao atestar que tal processo expressa uma crise global das relações de produção capitalistas. Assim, não se trata apenas das condições capitalistas de apropriação, valorização e acumulação que entram em colapso, “mas também da produção de mercadorias, da divisão capitalista do trabalho, da estrutura capitalista da empresa, do Estado Nacional Burguês, e da subordinação do trabalho ao capital como um todo” (MANDEL, 1985, p. 399). Desde a eclosão da crise nos anos 1970, o capitalismo segue seu movimento histórico convalescendo e contornando, conjuntural e geograficamente, os obstáculos à sua expansão, mas sem sucesso vigoroso. Mészáros (2011; 2007), como dito antes, também tem dado larga contribuição para compressão e análise da conformação assumida por essa crise e seu caráter estrutural. Para ele, a crise contemporânea é uma crise estrutural do capital e suas características principais residem: no seu caráter universal, por que não se restringe a uma esfera particular (financeira, comercial, industrial), e não apenas um ramo de produção; seu alcance é global, na medida em que não se limita a um conjunto particular de países; sua escala de tempo extensa ou permanente ao invés de limitada e cíclica, como as crises anteriores do capital; e seu modo de desdobramento é rastejante. A crise atual é estrutural porque compromete radicalmente a estrutura global do sistema do capital, pois não se restringe apenas a uma dimensão interna do sistema do capital, mas atinge as três dimensões internas constitutivas desse sistema sociometabólico de 64

reprodução social – produção, consumo e circulação/distribuição/realização. O cerne do caráter estrutural reside justamente na incapacidade de deslocamentos das contradições entre as três dimensões, tornando-se cumulativas e explosivas. Explicitamos anteriormente a função dialética das crises cíclicas do capital no sentido de expor suas contradições, mas ao mesmo tempo recompor as condições para alavancar a acumulação, revolucionando constantemente as forças produtivas. Isso se realizada mediante, na maioria das vezes, o deslocamento das contradições, o que se alcança através de mudanças no interior do próprio sistema, engendrando mecanismo de contorno dos limites imediatos. Mas, Mészáros (2011) esclarece que todo sistema de reprodução sociometabólico tem limites intrínsecos ou absolutos que não podem ser transcendidos sem que ocorra uma mudança qualitativamente diferente no modo de controle prevalecente. Quando esses limites são alcançados no desenvolvimento histórico, é forçoso transformar os parâmetros estruturais da ordem estabelecida – em outras palavras, as ‘premissas’ objetivas de sua prática – que normalmente circunscrevem a margem global de ajuste das práticas reprodutivas viáveis sob as circunstâncias existentes. Isso significa sujeitar a um escrutínio fundamental nada menos do que os princípios orientadores mais essenciais, historicamente dados de uma sociedade, e seus corolários instrumentais-institucionais, pois sob as circunstâncias da mudança radical inevitável, eles deixam de ser os pressupostos válidos e o quadro estrutural aparentemente insuperável de toda a verdadeira crítica teórica e prática, e transformam-se em restrições absolutamente paralisantes (MÉSZÁROS, 2011, p. 216).

Assim, a ativação desses limites absolutos,24 que conforme está expresso na citação anterior, não permite ajustes definitivos e estão na raiz da crise estrutural do capital. O autor húngaro destaca que estes limites são acionados por uma série de circunstâncias, mas são inerentes à lei do valor. São quatro os eixos definidos pelo autor que, ao aglutinarem grandes contradições, instigam e precipitam a ativação dos limites absolutos do capital: o antagonismo estrutural e inconciliável entre o capital global – irremediavelmente transacionalizado – e os diversos Estados nacionais; a degradação das condições ambientais e as graves implicações quanto às necessidades naturais da reprodução sociometabólica; questões que se fundem em torno das lutas das mulheres nas exigências politicamente irrefreáveis de sua liberação, e a impermeabilidade do capital em atender necessidades de igualdade substantiva, que está no cerne das lutas feministas; o desemprego crônico, cujo potencial é ainda mais explosivo do

24 Importante recorrer à ressalva de Paniago (2012, p. 63) para aclarar que a expressão ‘limites absolutos’ não são absolutamente impossíveis de se transcender, conforme querem fazer parecer os apologistas do capital, os quais desejam unicamente escamotear o poder destrutivo do capital e sua condição de momento histórico para transformá-lo, ao menos no nível da ideologia, em um modelo de produção abstrato universal para o qual não há alternativa. Os limites absolutos, dizem respeito “a um sistema historicamente determinado – a era capitalista”. 65

que todos os outros. Esse é um quadro dramático para a reflexão sobre o desenvolvimento capitalista que não pode ser negligenciado na análise das políticas públicas, hoje.

1.5 A financeirização do capital como estratégia de desenvolvimento no contexto contemporâneo

Em importante análise sobre o processo de financeirização da economia, Chesnais (1996) demonstra que é no solo concreto da crise estrutural do capital que ocorre a consolidação do posto “avançado do movimento de mundialização do capital”, com a consolidação do regime de acumulação financeira, que expressa à etapa contemporânea do imperialismo (CHESNAIS, 1996, 239). Acumulação financeira, nos termos de Chesnais (2005, p 37), é o processo de “centralização em instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que tem por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e ações – mantendo-os fora da produção de bens e serviços”. Nesse plano, portanto, a fração burguesa objetiva “fazer dinheiro” sem sair do âmbito das finanças, ou seja, sem a medição imprescindível da produção, donde se constata que sua base de sustentação é a especulação,25 o fetiche do capital e as transações por meio de capital fictício, que possibilita o alcance de lucros estritamente parasitários. Chesnais (1996) afirma que as operações especulativas engendram mecanismos que possibilitam movimentar financeiramente valores que ainda não existem na chamada “economia real”, explicitando da seguinte forma: “uma ação representa uma fração de um capital que está imobilizado na produção. No entanto, para quem a detém a ação em si funciona como “capital”. No caso de um particular, esse “capital” lhe proporciona um rendimento: ele pode servir-se das suas ações como colateral, ou pode vendê-las. O valor desse capital é regulado pelo andamento das ações na Bolsa, onde a saúde da empresa representada pelo título é apenas um parâmetro entre muitos outros. No caso das empresas ou bancos, seus pacotes de ações e outros créditos são contabilizados nos ativos de

25 “Operação que não tem nenhuma finalidade além do lucro que pode gerar. Operações não vinculadas a alguma vantagem relativa do uso do bem, a qualquer transformação ou a alguma transferência de um mercado a outro. Tais operações fazem intervir tomadas de posição motivadas, fundamentalmente, pela expectativa de uma alteração de preço de ativo” (CHESNAIS, 1996, p. 244).

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seus balanços e podem servir de garantia para criar novos créditos” (CHESNAIS, 1996, p. 268). Esse mercado cria dividendos impressionantes e suas estratégias de acumulação por especulação acabam por criar na esfera financeira valores e expectativas de lucros que estão longe das possibilidades reais do setor produtivo dos países, expressando a profunda contradição entre valorização financeira exigida e valorização econômica possível. Na base desse movimento de consolidação da hegemonia financeira internacional sob as demais frações do capital, estão os processos de liberalização ou desregulamentação monetária e financeira, a desintermediação e abertura dos mercados financeiros nacionais. Isto por que, volátil por natureza, logicamente desconectado da produção efetiva de riqueza material da sociedade, ‘curto-prazista’ e rentista, o capital financeiro só funciona adequadamente se tiver liberdade de ir e vir, se não tiver de enfrentar, a cada passo de sua peregrinação em busca de valorização, regulamentos, normas e regras que limitem seus movimentos (PAULANI, 2007, p. 75).

Os referidos processos – de liberalização e desregulamentação – foram desencadeados pelas principais potências econômicas do período (Estados Unidos e Grã-Bretanha). Chesnais (1996) aponta que o fim do acordo de Bretton Woods é um importante marco dos processos elencados (CHESNAIS, 1996) e o mesmo ocorreu pela ruptura unilateral dos EUA, em 1971, com o acerto de taxas de câmbio fixas que vigorou nos quase trinta anos anteriores. Esse processo se inseria no contexto mais geral da crise, sobretudo, em função da sua expressão no sistema monetário internacional. Conforme Cislaghi (2015), a capacidade interna dos Estados Unidos em absorver capitais excedentes começa a estagnar no final dos anos 1960, acirrando a competitividade econômica com outras potências imperialistas. Os altos custos com a guerra do Vietnã, pressão de uma economia de guerra permanente do complexo industrial-militar e o consumo doméstico excessivo levaram a uma crise fiscal do Estado intervencionista keynesiano. Para resolver a crise, os Estados Unidos passam a imprimir mais dólares o que resulta numa elevação inflacionária mundial, uma explosão da quantidade de capital fictício e o colapso das estruturas internacionais fixas forjadas no período anterior, acabando com toda a estrutura do acordo Bretton Woods (CISLAGHI, 2015, p. 53).

A desregulamentação dos mercados financeiros diz respeito ao processo de quebra de todas as barreiras internas entre diferentes funções financeiras e novas interdependências entre segmentos de mercado, bem como “a interpenetração dos mercados monetários e financeiros nacionais e sua integração em mercados mundializados, ou subordinação a estes” (CHESNAIS, 1996, p. 261). Entre as inúmeras implicações deste processo, está a perda quase total do controle dos Bancos Centrais dos países sobre a determinação do nível das taxas de juros, valores cambiais 67

etc., ficando sob controle dos operadores26 financeiros mais poderosos (fundos de investimento, sobretudo os fundos de pensão)27. Daí já se pode compreender o nível do poderio destas corporações sobre os Estados nacionais, inclusive os mais poderosos, como os Estados Unidos. Esse poderio merece ser pensado associadamente à abertura dos mercados financeiros nacionais28 que designa dois processos inter-relacionados: refere-se a barreiras internas entre diferentes especializações bancárias ou financeiras e outro relativo a impedimentos ou barreiras que separam os mercados internos dos mercados externos. Iamamoto (2007) destaca a respeito da liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros duas etapas importantes: a primeira (1982 a 1994) teve na dívida pública seu principal ingrediente. Esse mecanismo possibilitou a construção do poderio das finanças com o endividamento dos governos. A segunda etapa, a partir de 1994, compreende o fortalecimento de mercado de bolsa de valores, com a compra de ações dos grupos industriais pelas instituições financeiras, que apostam na lucratividade futura das empresas. No desdobramento desse processo de desenvolvimento financeirizado está o capital fictício, forma mais alienada de capital que possibilita alcance de lucros estritamente parasitários. Chesnais (1996) afirma que as operações especulativas engendram mecanismos que possibilitam movimentar financeiramente valores que ainda não existem na chamada “economia real”, explicitando da seguinte forma: uma ação representa uma fração de um capital que está imobilizado na produção. No entanto, para quem a detém a ação em si funciona como “capital”. No caso de um particular, esse “capital” lhe proporciona um rendimento: ele pode servir-se das suas ações como colateral, ou pode vendê-las. O valor desse capital é regulado pelo

26 Bancos, fundos de pensão, fundos mútuos, instituições especializadas.

27 Considerando esse mecanismo das finanças, compreende-se em boa medida a intensa empreitada neoliberal em privatizar previdência social e a política de saúde, já que a capitalização dos serviços sociais é fundamental neste contexto. Isto por que, campos que seriam de intervenção direta do Estado, passam a ser tratados como mercadoria tornando-se nichos importantes de investimento. Os planos de saúde e os fundos de pensão e planos de previdência privada e complementar são lócus de grandes margens de lucratividade. No que tange, especificamente, os fundos de pensão e os planos de previdência complementar há uma perversa lógica que produz imensos dividendos para os capitalistas financeiros, a partir da movimentação de um capital que vem dos próprios trabalhadores. Este movimento teve largas repercussões sobre as organizações da classe trabalhadora, no Brasil, por exemplo, criando o que Francisco de Oliveira denominou exageradamente de uma “nova classe social”, a “aristocracia operária”. Isso se consolidou nos Governos Lula com significativo aparelhamento dos sindicatos, ao alocar as lideranças operárias no gerenciamento dos fundos de pensão.

28 É importante assinalar que abertura de mercados não diz respeito apenas às movimentações financeiras. Existem outras questões de suma importância ligadas à implantação de plantas produtivas de determinadas indústrias em países diversos da sua matriz, o comércio externo de mercadorias, tanto as mais simples como as commodities, que detém menor valor agregado, como as de alta tecnologia, cujo valor agregado é muito maior. Além disso, há também a questão da comercialização de tecnologias e\ou patentes que somente podem ser possíveis via abertura de mercado. Na discussão do corpo do texto frisamos os processos relativos às finanças por estarmos tratando, mais especificamente, deste movimento. 68

andamento das ações na Bolsa, onde a saúde da empresa representada pelo título é apenas um parâmetro entre muitos outros. No caso das empresas ou bancos, seus pacotes de ações e outros créditos são contabilizados nos ativos de seus balanços e podem servir de garantia para criar novos créditos (CHESNAIS, 1996, p. 268).

Esse mercado cria dividendos impressionantes e suas estratégias de acumulação por especulação acabam por criar na esfera financeira valores e expectativas de lucros que estão longe das possibilidades reais do setor produtivo dos países, expressando a profunda contradição entre valorização financeira exigida e valorização econômica possível. Chesnais (2005) chama atenção para o fato de que esta característica está no cerne da fragilidade sistêmica que encontramos nas raízes das grandes crises financeiras. Existe um volume “extremamente elevado dos créditos sobre a produção futura que os possuidores de ativos financeiros consideram poder pretender, assim como na ‘corrida pelos resultados’ que os administradores dos fundos de pensão e de aplicação financeira devem praticar” (CHESNAIS, 1996, p. 62). A hegemonia do capital financeiro na contemporaneidade expressa a direção que assume o desenvolvimento do capitalismo nos dias atuais. A sua lógica invade todos os campos da vida social. É neste cenário que o capital assume seu caráter mais fetichista ao procurar “fazer dinheiro” sem passar pela esfera da produção. Mais precisamente, o capital procura produzir valor, prescindindo do processo imediato que gera valor e mais-valor, o processo produtivo de trabalho, criador de mercadorias. Reproduz-se o discurso apologético das finanças, difundindo e legitimando a noção de que os rendimentos financeiros podem ampliar-se infinitamente apenas no circuito do capital monetário sem a mediação do capital produtivo. Assim, obscurece-se o processo concreto de exploração dos trabalhadores que gera mais-valor para o capital investido na produção, as mazelas provenientes desse movimento, o grau exponenciado que a socialização da produção assume, bem como da apropriação privada que reitera. Nos termos de Iamamoto, esse processo significa o “reino do capital fetiche na plenitude de seu desenvolvimento e alienação” (IAMAMOTO, 2007, p. 107). Todo o conjunto da vida social torna-se subordinado à lógica da produtividade que é, na verdade, o que gera o valor que deve cobrir a rentabilidade financeira dos diferentes detentores do capital portador de juros. A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da propriedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e 69

nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana (FONTES, 2010, p. 203).

Ainda nos valendo das contribuições de Fontes (2010), é possível atestar que o atual contexto do imperialismo, que nos seus termos categoriais designa-se como capital- imperialismo, caracteriza-se pela acentuação da concentração de capitais portador de juros, que demarca uma complexa forma de dominação social, marcada pela propriedade dos recursos sociais de produção, sob forma monetária. Essa superconcentração de capital monetário e seu predomínio atual em escala internacional é acompanhado de dois mitos: o de que é na atividade da gestão intelectual (sobretudo na complexa gerência de riscos e de taxas, na gestão internacionalizada de capital monetário) que se produz o lucro e o segundo mito, seu complemento, o de que o trabalho vivo não mais teria qualquer função na vida social (FONTES, 2010, p. 26).

Esses mitos contribuem para acirrar o fetiche do capital, assegurando a concepção de uma propriedade “descarnada” dos recursos e\ou condições de produção, baliza fundamental para escamotear o processo cada vez mais acirrado de exploração dos trabalhadores e aviltamento das condições de existência de um número cada vez mais imenso de seres humanos. Em verdade, não há a superação da propriedade privada, pelo contrário ela é extremamente concentrada, tornando-se abstrata, desigualitariamente socializada e extremamente destrutiva. A dinâmica do desenvolvimento capitalista nesta quadra histórica, portanto, não foge à lei do valor, pelo contrário, ela assume feições drásticas e continua sendo o fundamento do avanço das forças produtivas. Se a força apologética do capital financeiro faz parecer que a rotação do capital possa limitar-se à esfera estritamente monetária, a realidade concreta do movimento do capital é estimular, impulsionar e impor formas cada vez mais intensivas e extensivas de obtenção de valor, mesmo que isso signifique a reprodução dos mecanismos de extração de mais-valor absoluto e pilhagem da força de trabalho. Esses mecanismos são matizados pela necessidade inexorável do capitalismo de manter força de trabalho excedente, supérflua em relação às necessidades de valorização do capital, e isto se relaciona à própria lei geral de acumulação capitalista, que tratamos no item 1.2 deste capítulo. Portanto, independente do contexto histórico do capitalismo, a manutenção e reprodução de uma superpopulação relativa é fundamental às necessidades de reprodução do capital. Destarte, essa é uma categoria relevante para pensar o capitalismo, já que ela expressa a própria dinâmica da composição orgânica do capital, que progressivamente exponencia sua composição global com aumento de sua parte constante acompanhada inevitavelmente do decréscimo de sua parte variável, isto é, a própria força de trabalho vivo. 70

A expressão ‘superpopulação’ refere-se exclusivamente às capacidades de trabalho, i.e., à população necessária; excesso de capacidade de trabalho. Mas isso decorre simplesmente da natureza do capital. A capacidade de trabalho só pode executar seu trabalho necessário se o seu trabalho excedente tem valor para o capital, se for utilizável para ele. Por conseguinte, se essa usabilidade é inibida por um ou outro limite, a própria capacidade de trabalho aparece 1) exterior às condições de reprodução de sua existência; ela existe sem suas condições de subsistência e, por essa razão, é um mero empecilho; necessidades sem os meios de satisfazê-las; 2) o trabalho necessário aparece como supérfluo por que o supérfluo não é necessário. Ele só é necessário na medida em que é condição para a valorização do capital (MARX, 2011, p. 507. Grifos do autor.).

A superpopulação relativa não é estanque, posto que sua dinâmica redunda do próprio movimento do capital e, por isso, ela diminui ou aumenta em função da reprodução ampliada do Capital, e é exatamente por isso que Marx a nomeou de superpopulação relativa, conforme atesta Maranhão (2008). Marx (2013) aponta que todo trabalhador faz parte dessa superpopulação relativa durante o tempo em que está desocupado. A superpopulação relativa possui continuamente três formas: líquida, latente e estagnada. A líquida constitui-se daquela fração dos trabalhadores dos centros da indústria moderna, ora repelidos, ora atraídos, “de modo que, ao todo, o número de ocupados cresce, ainda que em proporção sempre decrescente em relação à escala de produção” (IDEM, p. 271) A latente corresponde àquele conjunto de trabalhadores inseridos em formas de produção mais arcaicas que, a qualquer momento podem ficar na eminência de serem destituídos desses espaços, uma vez que, o capital tende a destruir essas formas autônomas de produção, jogando esses trabalhadores na “zona de desocupação”. A estagnada, por sua vez, “constitui parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação completamente irregular. [...]. É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário (MARX, 2013, p. 272). O aumento da superpopulação relativa é uma tendência geral do modo de produção capitalista e tem consequências diretas tanto para o capital como para a classe trabalhadora. Do ponto de vista do capital, ela opera positivamente em várias esferas que compõem a produção global do capital social global, uma vez que: 1) dinamiza os ciclos de rotação do capital [...], deixando à disponibilidade dos diversos investimentos e créditos capitalistas uma quantidade sempre renovável de força de trabalho; 2) barateia o custo da força de trabalho, ao despejar continuamente no mercado uma grande quantidade dessa mercadoria; 3)aumenta a produtividade através da intensificação da extração de mais-valia absoluta e relativa, fazendo com que os trabalhadores se autopoliciem e trabalhem com mais constância (MARANHÃO, 2008, p. 106)

Sob a perspectiva dos trabalhadores, a ampliação da superpopulação relativa tem feitos perversos sobre sua sorte, exercendo pressão para o rebaixamento salarial, o aumento da 71

exploração da força de trabalho ativa, além de impor constrangimentos e tensões aos trabalhadores inseridos no circuito produtivo, na medida em que amplia a concorrência intratrabalhadores. Outrossim, tem implicações diretas na própria possibilidade de organização política dos trabalhadores, contribuindo para desestabilização e enfraquecimento de suas organizações de classe. Rosdolsky (2001) traz importantes ilações sobre a questão da superpopulação relativa e a relação de sua dinâmica no processo cíclico geral do capital e a sua relação com as contradições gerais do capitalismo. Ele atesta que no capitalismo desenvolvido, os períodos de recessão econômica e de começo de crescimento, a superpopulação pressiona os trabalhadores ativos, impedindo o aumento de pretensões salariais; ao tempo que, em períodos de crise, coloca impedimentos no que tange ao direito de greve como arma contra a ofensiva do capital contra padrão de vida dos trabalhadores. Nessa mesma trilha da crítica marxista, Maranhão (2008) indica a superpopulação relativa pode ser um instrumento importante na retenção dos efeitos da lei da queda tendencial na taxa de lucros. [...] o aumento da superpopulação relativa em períodos de recessão tem como resultado uma ampliação da taxa de exploração dos trabalhadores, ocupados e, consequentemente, um incremento na extração da mais-valia e na superação das crises cíclicas do capital. Um exemplo atual dessa função da superpopulação relativa como “causa contrariante” (MARX, 1986) das crises são as recentes demissões nos Estados Unidos. Segundo dados do Departamento de Trabalho dos EUA, só nos três primeiros meses da “crise imobiliária” em 2008 foram extintos 178 mil postos de trabalho (MARANHÃO, 2008, p. 106)

Na cena contemporânea, em face da crise estrutural do capital – cujas manifestações aparecem em apresentações parciais como a chamada “crise imobiliária” indicada na citada anterior –, é premente pensar as contradições e complexidade que envolve a superpopulação relativa e suas implicações sobre a composição social global do capital, bem como para a sorte da classe trabalhadora. Conforme vínhamos problematizando, a fase imperialista atual é determina pela larga escala da financeirização da economia e a penetração do capital em todas as esferas da vida social. Pensando do ponto de vista da totalidade, a mundialização do capital e a nova ordem global29 determinada com a queda da União Soviética30 e de regimes comunistas em países do

29 Esse processo obedece ao imperativo do capital de garantir sempre e em grau cada vez mais alto o movimento de sua expansão, possibilitando sua reprodução ampliada, mesmo que tenham que ultrapassar grandes impedimentos. “Modos de vida não mercantis e não capitalistas são, em suma, considerados uma barreira para a acumulação do capital e, portanto, devem ser dissolvidos para dar lugar aos 3% de taxa de crescimento composto que constitui a força motriz capitalista. A complicada história de como o limite absoluto contra a acumulação do capital na China sob o regime comunista foi dissolvido após as reformas de 1978 numa série de barreiras, cada 72

leste europeu e sua consolidação definitiva no circuito mundializado do Capital, assim como também algumas nações da Ásia, principalmente a China e a Índia, implica em uma mudança qualitativa da superpopulação relativa, tendo como consequência imediata a mundialização dessa superpopulação, o que contribui decisivamente para o acirramento da exploração do trabalho e o aumento substancial da concorrência entre trabalhadora em nível mundial. Não é possível pensar a composição e recomposição das relações mercantis nestes novos mercados nacionais, inseridos na dinâmica mundializada do capital, bem como o poderio alcançado por estes países no cenário global, sem ponderar a importância vital da imensa força de trabalho disponível e de como o avanço da industrialização e capitalização de várias esferas da vida social implicam em processos de expropriação e transformação de homens e mulheres em mera força de trabalho viva suscetível à exploração do capital. Problematizando o caso específico da China, Coggiola faz a seguinte assertiva:

A expropriação camponesa na China e na Índia, com seus gigantescos deslocamentos populacionais, possibilitou uma grande ampliação da massa de operários no capitalismo mundial, criando o trabalho assalariado mais barato do mundo, e rebaixando permanentemente os salários em todas as áreas, inclusive no interior das economias dominantes (COGGIOLA, 2015, p.34).

Partindo da realidade concreta da imensa população chinesa, por exemplo, já teríamos aí um campo abrangente de exploração do trabalho. Aliando a isso, os mecanismos utilizados pelo capital e o Estado na apropriação de terras e na dissolução quase completa de formas de produção de subsistência,31 forma-se um quadro propício à expansão capitalista. Ou seja, a transformação de trabalhadores autônomos em assalariados e a pressão da imensa superpopulação relativa sobre a fração da classe trabalhadora, absorvida na dinâmica imediata da produção capitalista, são condições essenciais para ascensão chinesa dos últimos anos.32

uma das quais transcendida ou contornada de modo gradual, é, naturalmente, uma das histórias políticas e econômicas mais significativas dos nossos tempos” (HARVEY, 2011, p.64).

30 O espaço econômico da ex URSS, supostamente findo em 1991, começou a ser restaurado (de modo capitalista-estatal) com a criação da “Comissão Econômica Eurasiática”, compreendendo inicialmente Rússia, Bielorússia e Kazakistão, e prevista para se estender para todo o território da ex URSS até 2015.

31 “ Na China, milhões de pessoas estão atualmente sendo despossuídas dos espaços que ocupavam havia muito tempo. Uma vez que não têm direitos de propriedade privada, o Estado pode simplesmente removê-los da terra por decreto oferecendo uma pequena quantia em dinheiro para ajudá-los (antes de dar a terra a desenvolvedores com uma taxa de lucro alta). Em alguns casos as pessoas se mudam por vontade própria, mas também há relatos de resistência generalizada – a resposta habitual é a repressão brutal por parte do Partido Comunista” (HARVEY, 2011, p. 147).

32 Uma contradição fundamental deste processo é que mesmo em face do quadro esquizofrênico do capital nos vários quadrantes do mundo, expresso nas insignificantes taxas de crescimento, a China teria que continuar com uma altíssima taxa de crescimento para absorver a força de trabalho que o próprio processo de recuperação 73

Sem o mercado de dimensão nacional de camponeses proletarizados, a China não teria dado os saltos de desenvolvimento que espantam o mundo. As condições que eles foram aceitando são escorchantes, mas podem parecer-lhes melhor que a vida nos grotões, e a aceitação delas é determinada pela pressão das legiões que se acotovelam no exército industrial de reserva (IDEM, p. 34).

Esse processo de expropriação e proletarização de imensas massas humanas é o caso também de outro gigante populacional que emerge como grande ator da nova composição global do capital mundializado, a Índia. Segundo Harvey (2011), as populações de suas fronteiras rurais são deslocadas sem quaisquer cerimônias na medida em que as cidades se expandem em direção ao interior. Neste país, as zonas especiais de desenvolvimento econômico são agora favorecidas pelos governos central e estadual, o que leva à violência contra os produtores agrícolas, dos quais o caso mais chocante foi o massacre de Nandigram, em Bengala Ocidental, orquestrado pelo partido político marxista dominante para abrir caminho para o grande capital da Indonésia, que está tão interessado no desenvolvimento de imóveis urbanos quanto no desenvolvimento industrial (HARVEY, 2011, p. 145).

O livre movimento do capital determina sua mundialização e suas contradições também tornam mais globais. Mundializa-se o capital e o acirramento da concorrência entre os trabalhadores assume uma proporção também mundial. Neste sentido, por exemplo, se a China comporta uma imensa superpopulação relativa e se isso é um elemento fundamental para sua alavancada econômica, já que o capital conta ali com uma imensa força de trabalho a ser explorada a uma taxa média de salário inferior a de outros países, essa pressão exercida sobre a classe trabalhadora não vai se restringir aos trabalhadores chineses, ela se espraia mundo afora. Isto porque, o livre movimento do capital pelo mundo inteiro exerce pressão descendente sobre os salários dos trabalhadores em todos os cantos do planeta.

A mundialização conduz tendencialmente à formação de um mercado mundial e também à de uma classe operária mundial, cujo crescimento se faz no essencial nos países dito emergentes. Este processo é acompanhado de uma tendência para que a força de trabalho seja assalariada. A taxa do emprego assalariado (a proporção de assalariados no emprego) aumenta de forma contínua, passando de 33% para 42% no decurso dos últimos vinte anos (HUSSON, 2014, p. 02).

Em direção análoga, as colocações de Harvey (2011) apontam elementos dessa força de trabalho mundializada, o fluxo e refluxo dos trabalhadores das mais diversas formas, e como são acentuados os mecanismos de pressão sobre os trabalhadores.

capitalista no país tornou disponível para o capital. Entretanto, “ a China precisaria de uma taxa de crescimento anual de 9% a 10% para absorver a aproximadamente 24 milhões de pessoas que se incorporam cada ano ao mercado de trabalho, e os 12/14 milhões de camponeses pobres que migram ao setor urbano industrial. Qualquer diminuição da taxa de crescimento por debaixo dessa marca cria milhões de novos desempregados e mais material explosivo para novas rebeliões. Um “pouso forçado” da economia chinesa, de 12% a um crítico 6%, significaria um golpe mortal para a legitimidade e a estabilidade do regime restauracionista” (COGGIOLA, 2015, p. 129). 74

As populações excedentes não estão mais ancoradas em um lugar, assim como não está o capital. Ela flui para todos os lugares em busca de oportunidades ou emprego, apesar das barreiras à migração, por vezes colocadas pelo Estado-Nação. A força de trabalho cativa dos trabalhadores domésticos, grupos de trabalhadores migrantes na construção e trabalhadores rurais disputam com as populações e os indivíduos locais, que se deslocam em busca de melhores chances na vida. Mulheres polonesas limpam os hotéis ao redor do aeroporto de Heathrow, em Londres, letões servem em pubs irlandeses, trabalhadores itinerantes do México e da Guatemala constroem as torres dos condomínios em Nova York ou colhem morangos nos campos da Califórnia, os palestinos, indianos e sudaneses trabalham nos Estados do Golfo e assim por diante. Remessas dos Estados do Golfo para a Índia, para o Sudeste Asiático ou para os campos de refugiados palestinos se dão em paralelo com os fluxos de remessas dos Estados Unidos para o México, Haiti, Filipinas, Equador e muitos outros países menos desenvolvidos (HARVEY, 2011, p. 122).

A questão das imigrações é sinalizada na citação anterior e coloca em tela um fator crucial da dinâmica da superpopulação relativa na atualidade. As imigrações colocam novas circunstâncias em tela em dois sentidos que afetam distintamente os trabalhadores, mas no final das contas acarretam sempre em acirramento da concorrência entre eles, criando cisões e fraturas de difícil conciliação entre os próprios trabalhadores e nas possibilidades de sua organização política como classe. Do ponto de vista dos imigrantes, ir a outros países para garantir sobrevivência e trabalho,33 significa muitas vezes estar disposto a aceitar inserções mais precárias, com salários mais baixos e restrição de direitos. Além de todas as questões étnicas, culturais, religiosas que afetam seu modo de vida que tinham em seus países de origem. Da perspectiva da classe trabalhadora dos países que recebem os imigrantes a questão é o aumento da concorrência, com mais força de trabalho disponível no mercado. Significa ampliação do exercito de reserva, que vai tensionar as margens de negociação e lutas trabalhistas locais, pressionando seus salários para baixo e obrigando-os a ceder mais e mais aos ditames da exploração capitalista. Esse acirramento na concorrência intratrabalhadores é propício para manifestações xenofóbicas,34 para inversão de valores humanitários a criação ilusória de um inimigo errado.

33 A imigração é hoje um problema gravíssimo e indica muito mais do que uma crise política, mas sim uma crise humanitária de terríveis proporções. Evidentemente, o quadro atual, como o dos refugiados sírios e outros povos que fogem do horror da guerra em seus países de origem, envolvem questões maiores do que a busca imediata de trabalho em outros países. Estes seres humanos fogem de conflitos militares que dizimam vidas, territórios e esperança de futuro. Mas no geral, em termos de fluxo migratório existem sempre implicações no que tange à inserções trabalhistas destes imigrantes nos países onde eles se destinam e em relação à direitos sociais básicos. Ou seja, no final das contas os indivíduos que conseguem sobreviver às difíceis travessias entre países vão se transformar em força de trabalho nos países onde passarem a viver e vão aumentar o volume de trabalho ocioso disponível para a exploração do capital.

34 É evidente que a xenofobia não pode ser explicada a partir desta única perspectiva e tampouco nossa intenção é fazer qualquer alusão à culpabilização de trabalhadores neste sentido. A xenofobia é um fenômeno complexo, cheio de nuances e perpassam inúmeros fatores como os políticos, sociais, culturais, étnicos e religiosos. Ela se 75

[...] na Espanha, entrou em vigor de uma lei que anula o acesso gratuito a serviços médicos de imigrantes em condição ilegal no país. A medida, chamada de “apartheid da saúde”, afeta mais de 150 mil pessoas em situação irregular e faz parte do pacotes de medidas de austeridade fiscal estipuladas pelo governo de Mariano Rajoy. Os imigrantes ilegais não são os únicos afetados pela medida (COGGIOLA, 2015, p. 127).

O engrossamento da superpopulação relativa em tempos de recessão sempre é um mecanismo potencial do capital. As novas expressões da concorrência entre os trabalhadores, passando a ser cada vez mais mudializada, tende a equalizar por baixo os níveis salariais e ampliar por cima os níveis de precarização e exploração. Esse processo tende ao que Mészáros (2007) designa como lei da equalização por baixo da taxa diferencial de exploração, que nada mais do que o artifício do capital em sua capacidade de fluidez e volatilidade torne o valor da força de trabalho equalizado pelos níveis onde este valor é o mais baixo, como o caso da China. Assim, se o capitalismo não foge à lei valor, toda a imensa massa de capital portador de juros demanda valorização contínua, e dado o caráter especulativo e fictício que engendram excedem enormemente a capacidade produtiva do trabalho em valorizar essa imensidão de trabalho morto, condensado na forma capital-mercadoria. Neste sentido, O movimento dessa megaconcentração é triplo: tende a capturar todos os recursos disponíveis para convertê-los em capital; precisa promover a disponibilização de massas crescentes da população mundial, reduzidas a pura força de trabalho, e, enfim, transformar todas as atividades humanas em trabalho, isto é, em formas de produção/extração de valor (FONTES, 2010, p. 165).

Essas condições tornam-se indispensáveis para a valorização do capital ao mesmo tempo em que aprofundam as contradições inerentes à lógica do valor. Mesmo com as acomodações e deslocamentos executados pelo capital – com seus malabarismos financeiros e rentistas, a fim de perpetuar seu ciclo reprodutivo, garantindo acumulação sempre crescente –, não consegue superar suas contradições imanentes, tornando-se ainda mais vulneráveis às manifestações acirradas de crises. A sucessão de crises financeiras aponta no sentido do risco sistêmico que um mercado financeiro globalizado pode acarretar para as economias do mundo inteiro. Justamente, pelo fato das finanças disporem de uma volatilidade, com dimensão planetária, é que o efeito dominó de tais crises se manifesta de forma avassaladora.

expressa em ações diversas e ultrapassa largamente o âmbito imediato da disputa entre os trabalhadores. No entanto, a tensão, a pressão, a explosão de inúmeras contradições de uma sociabilidade que gera desigualdade e competitividade, onde a possibilidade de sobrevivência material se liga diretamente a possibilidade da venda de sua força de trabalho e onde o emprego é cada vez mais escasso, contribui para um ambiente propício a xenofobia. 76

Se tomarmos, por exemplo, o caos provado pela brusca queda da Bolsa de Valores de Nova York, no anos de 2008, em função da bolha imobiliária norte-americana, que deflagrou a quebra de grandes bancos no mundo inteiro, bem como intenso caos nas maiores bolsas de valores de todo mundo, podemos vislumbrar, claramente o risco sistêmico e o efeito dominó, anteriormente referidos.35 A financeirização da economia tem, evidentemente, efeito potencializador das crises, mas são apenas expressão parcial da crise estrutural do capital. É no contexto referido acima que o capital financeiro – imensas somas de capital na forma monetária, sob domínio de pequenas oligarquias financeiras dos países imperialistas – circulam nos mercados financeiros mundializados impondo suas condições e necessidades de especulação, exercendo um tipo complexo de chantagem escancarada sob os Estados nacionais, praticamente impondo perfis de desenvolvimento nos lugares. Injetam e retiram capitais em função de seu bel prazer tornando tênue o fio entre a alavancada da “economia de um país” ou sua ruína. Com esse mote de análise, passemos à discussão acerca do Estado nesse universo de demandas do desenvolvimento do sistema do capital, suas contradições e conflitos imanentes.

1.6 O Estado e sua funcionalidade ao desenvolvimento do capitalismo

Na esteira da tradição Marxista,36 Mandel (1985) afirma que o Estado “é o produto da divisão social do trabalho. Surgiu da anatomia crescente de certas atividades superestruturais, mediando a produção material, cujo papel era sustentar uma estrutura de classe e relações de produção” (MANDEL, 1985, p. 333). O autor destaca que, a partir da divisão social do

35“No outono de 2008, [...], a ‘crise das hipotecas subprime’, como veio a ser chamada, levou ao desmantelamento de todos os grandes bancos de investimentos de Wall Street, com mudanças de estatuto, fusões forçadas ou falências. O dia em que o banco de investimento Lehman Brothers desabou – em 15 de setembro de 2008 – foi um momento decisivo. Os mercados globais de crédito congelaram, assim como a maioria dos empréstimos do mundo. Como o venerável ex-presidente da Federal Reserv Paul Volcker [...] observou, nunca antes as coisas haviam despencado ‘tão fácil e tão uniformemente ao redor do mundo’. O resto do mundo, até então relativamente imune [...], foi arrastado precipitadamente para a lama, gerada em particular pelo colapso financeiro dos EUA. No epicentro do problema estava a montanha de títulos de hipoteca ‘tóxicos’ detidos pelos bancos ou comercializados por investidores incautos em todo o mundo” (HARVEY, 2011, p. 10 ).

36 Ainda que Marx não tenha elaborado uma teoria sistemática sobre o Estado, é certamente a partir dele, que encontramos a inflexão teórica que fundamenta uma visão crítica do Estado. De imediato, é preciso reconhecer que o grande mérito de Marx foi explicitar o caráter de classe do Estado. Para o autor alemão, o Estado expressa as relações materiais de produção engendradas na sociedade, não é, portanto, uma entidade universal, que paira acima da humanidade ou conduzindo-a como dotado de vida própria. Em verdade, o Estado, sua dinâmica e direção social, expressa o movimento geral da sociedade e suas relações sociais, processadas na vida concreta. 77

trabalho, o Estado desempenha importantes funções: criar as condições gerais de produção que não podem ser asseguradas pelas atividades privadas; reprimir quaisquer ameaças da classe dominada ao modo de produção corrente através do aparato coercitivo; integrar as classes dominadas, garantindo a reprodução e legitimação da ideologia dominante. O Estado tem um evidente caráter histórico, e, se sua existência é anterior ao capitalismo e à hegemonia da dominação burguesa, seu papel no modo de produção capitalista tem características particulares historicamente determinadas. Ainda de acordo com Mandel (1985), o Estado burguês se diferencia das formas anteriores de dominação de classe por uma peculiaridade da sociedade burguesa que é própria do modo de produção capitalista: “o isolamento das esferas pública e privada da sociedade, que é consequência da generalização sem igual da produção de mercadorias, da propriedade privada e da concorrência de todos contra todos” (IDEM, p. 336). A intensa concorrência capitalista requer, assim, um aparato autônomo que, ao coadunar os interesses dos capitalistas individuais, pudesse funcionar como um “‘capitalista total ideal’, servindo aos interesses de proteção, consolidação e expansão do modo de produção capitalista como um todo, acima e ao contrário dos interesses conflitantes do ‘capitalista total real’ constituído pelos muitos capitais do mundo real” (MANDEL, 1985, p. 336). De acordo com Behring (2009), o conceito de “capitalista total ideal” de Mandel é muito importante para a compreensão do Estado burguês, já que o Estado seria o “corolário das relações sociais de produção, mas não elemento que explica sua dinâmica” (BEHRING, 2009, p. 27). Ou seja, há claros limites à autonomia do Estado como ente que condensa os diferentes interesses de classe (quando a classe operária entra na cena política) ou de frações de uma mesma classe (burguesia comercial, industrial e financeira). Em última instância, tal autonomia não pode atingir a estrutura básica da produção capitalista, isto é, “a autonomização do poder do Estado na sociedade burguesa é decorrência da predominância da propriedade privada e da concorrência capitalista; mas essa mesma predominância impede que essa autonomização deixe de ser relativa” (MANDEL, 1985, p. 337). Mészáros (2011) defende que o sistema do capital é dotado de defeitos estruturais de controle, daí a sua tese da incontrolabilidade sociometabólica do sistema do capital. Assim, suas análises adentram a questão do Estado como imperativo corretivo totalizador. O Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital, e corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para expansão e para extração do trabalho excedente. É isto que caracteriza todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da ordem sociometabólica do capital. Precisamente porque as unidades econômicas reprodutivas do sistema têm 78

um caráter incorrigivelmente centrífugo – caráter que, há longo tempo na história, tem sido parte integrante do incomparável dinamismo do capital, ainda em que em certo estágio de desenvolvimento ele se torne extremamente problemático e potencialmente destrutivo –, a dimensão coesiva de todo o sociometabolismo deve ser constituída como uma estrutura separa de comando político totalizador. [Nessa] condição de estrutura de comando político totalizador do capital, ele não está menos preocupado em assegurar as condições da extração do trabalho excedente do que com as próprias unidades reprodutivas econômicas diretas, embora, naturalmente ofereça, à sua própria maneira sua contribuição para um bom resultado. Entretanto, o princípio estruturador do Estado moderno, em todas as suas formas – inclusive as variedades pós-capitalistas –, é o seu papel vital de garantir e proteger as condições gerais da extração de mais-valia do trabalho excedente (MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

O Estado é, portanto, imprescindível como esfera superestrutural aglutinadora para mediação e acomodação – tanto jurídica, política, econômica e social – dos diferentes interesses dos vários capitais individuais em concorrência. A existência das limitações de domínio geopolítico coloca uma série de contradições à ação totalizadora do Estado em função da mundialização do capital e do seu ímpeto imperialista. Nesta direção, a concepção de Netto sobre o Estado como “cioso guardião das condições externas de produção capitalista” (NETTO, 2011, p. 24) é análoga. A transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo dos monopólios concretizando o estágio imperialista, ao colocar em novos patamares a organização da produção social de riqueza, elucidando ao limite as contradições deste modo de produção, passou a demandar “mecanismos de intervenção extraeconômicos”, donde a necessidade veemente de “refuncionalização e redimensionamento da instância por excelência do poder extraeconômico, o Estado (IDEM, p. 24). Para Mandel (1985), o processo de transição do capitalismo concorrencial para o imperialismo provocou alterações “tanto a atitude subjetiva da burguesia em relação ao Estado, quanto a função objetiva desempenhada pelo Estado ao realizar suas tarefas centrais” (MANDEL, 1985, p. 337). O Estado passa a desempenhar papel fundamental frente a tais transformações, sendo completamente capturado pela lógica monopólica do capital, imbricando organicamente as funções políticas com suas funções econômicas, conforme importante assertiva de Netto (2011). Para ele, são muitas as funções econômicas diretas do Estado: inserção como empresário nos setores básicos não rentáveis, a assunção do controle de empresas capitalistas em dificuldades, a entrega aos monopólios de complexos construídos com dinheiro público, subsídios imediatos e garantia de lucro pelo Estado. Entre as indiretas, destaca: encomendas/compras do Estado aos grupos monopolistas, subsídios indiretos, investimento 79

em infraestrutura e meios de transporte, preparação institucional da força de trabalho, gastos e investimentos em pesquisa. No estágio tardio do capitalismo monopolista processa-se espessamento e expansão ainda maiores das funções estatais na dinâmica econômica e na reprodução e controle da força de trabalho. Segundo Mandel (1985), a ampliação das funções do Estado, no estágio tardio do capitalismo monopolista, se dá em função de três importantes características do capitalismo neste estágio: a redução da rotação do capital fixo, a aceleração da inovação tecnológica e aumento enorme do custo dos principais projetos de acumulação de capital. O resultado dessas pressões é uma tendência do capitalismo tardio a aumentar não só o planejamento econômico do Estado, como também a aumentar a socialização estatal dos custos (riscos) e perdas em um número constantemente crescente de processos produtivos. Portanto, há uma tendência inerente ao capitalismo tardio à incorporação pelo Estado de um número sempre maior de setores produtivos e reprodutivos às ‘condições gerais de produção’ que financia. Sem essa socialização dos custos, esses setores não seriam nem mesmo remotamente capazes de satisfazer as necessidades do processo capitalista de trabalho (MANDEL, 1985, p. 339). As dificuldades cada vez maiores de valorização do capital que ganham envergadura no capitalismo tardio engendram novos e mais complexos tensionamentos sobre o Estado. Neste sentido, o Estado resolve essas dificuldades em parte, proporcionando oportunidades adicionais, numa escala sem precedentes, para investimentos ‘lucrativos’ desse capital na indústria de armamentos, na ‘indústria de proteção ao meio ambiente’, na ‘ajuda’ a países estrangeiros, e obras de infraestrutura (onde ‘lucrativo’ significa tornado lucrativo por meio da garantia e subsídio do Estado) (MANDEL, 1985, p. 340).

Ademais, como a suscetibilidade às crises econômicas e políticas torna-se cada vez mais crescente a partir desta quadra histórica, demanda-se necessariamente, que o Estado assuma a função vital de “administração das crises”, o que inclui imenso arsenal de políticas governamentais anticíclicas. (IDEM, p. 340). Há no capitalismo tardio uma verdadeira hipertrofia dos orçamentos Estatais, visando criar contratendências às crises. Essa suscetibilidade a crises também resulta da consolidação da classe trabalhadora no cenário sociopolítico como sujeito coletivo, provocando tensionamentos na disputa pela direção social do Estado. Isto implicou na necessidade de desenvolvimento de mecanismos mais sofisticados de controle e reprodução da força de trabalho. Desse modo, “o Estado desenvolve uma vasta maquinaria de manipulação ideológica para ‘integrar’ o trabalhador à 80

sociedade capitalista tardia como consumidor, ‘parceiro social’ ou ‘cidadão’ (e, ipso-facto, sustentáculo da ordem social vigente) etc.” (MANDEL, 1985, p 341). Conforme indicamos, a irrupção da crise estrutural do capital na década de 1970 tinha como um dos elementos balizadores a crise fiscal do Estado em função do alargamento de suas funções na reprodução da classe trabalhadora – que incluía políticas sociais expansivas. Este fato tornou-se preponderante na retomada dos valores liberais de minimização da atuação do Estado, sob direção da ideologia neoliberal. Em todo o mundo a ofensiva do capital, no sentido de restaurar suas condições de reprodução com acumulação ampliada, impôs novas diretrizes e orientações macroeconômicas, que foram desencadeadas e colocadas em prática nos mais diversos cantos do mundo. Nos países centrais, tais diretrizes encontraram solo propício à sua implementação. Destes, são mais evidentes os governos Thatcher e Reagan, na Inglaterra e EUA, respectivamente. Harvey (2011) chama atenção para o fato de que esse movimento de recomposição do capital empreendeu um processo de reconstrução radical do nexo Estado-finanças, direcionado pela desregulamentação nacional e internacional das transações financeiras, a liberação do financiamento da dívida, a ampliação da abertura do mundo para a competição internacional acentuada e o reposicionamento do aparelho estatal com relação à previdência social. Conforme ilustrado, a consolidação do processo de financeirização da economia trouxe uma série de implicações para a ordem capitalista mundial, como por exemplo, a predominância da fração financeira do capital na coordenação dos macroprocessos socioeconômicos e políticos. Na base desse movimento de consolidação da hegemonia financeira internacional sob as demais frações do capital, estiveram os processos de liberalização ou desregulamentação monetária e financeira, a desintermediação e abertura dos mercados financeiros nacionais, conforme detalhamos na seção anterior. Assim, a pressão sobre os Estados nacionais assume caráter alarmante, impondo severas condições no que diz respeito às políticas monetárias e fiscais dos países, sobretudo, os de condição dependente como o Brasil, por exemplo. A circulação do capital financeiro em mercados mundializados é marcado pela falta de regulação, cujos métodos podem ser inescrupulosos e fraudulentos (HARVEY, 2004). Essa volatilidade e fluidez desregulada coloca os Estados em constante alerta, visto a vulnerabilidade a que ficam sujeitas as economias, reconfigurando as possibilidades de projetos governamentais de desenvolvimento de longo prazo, como vivido na fase 81

imperialista anterior. O capital financeiro sujeita as esferas produtivas do capital ao seu movimento, inferindo direcionamentos nas políticas de industrialização e nos níveis de investimento. Esses processos incidem sobre os Orçamentos Fiscais dos Estados e até mesmo os Orçamentos de outras alçadas, puncionando os recursos financeiros do Estado, com sérias implicações para atuação Estatal em função das necessidades da classe trabalhadora. Em suma, sua ação acentua as diferenças entre os países, reproduzindo a lógica hierarquizante do imperialismo uma vez que as grandes oligarquias financeiras são nativas dos países de capitalismo avançado (imperialistas) e, portanto, definem onde investir, como e até quando. Ao menor sinal de instabilidade política ou mudança de rota da estratégia macroeconômica dos Estados onde estão investindo retiram seus capitais ou especulam os movimentos das ações de Bolsas de Valores locais, em clara intimidação aos governantes. A dívida pública é um dos mecanismos fulcrais no processo de financerização e da imposição das necessidades rentistas sobre os Estados e as fontes de seu financiamento, que em última instância socializa esses custos sobre a força de trabalho. Chesnais (2013) defende que essa hegemonia das finanças gera “dívidas ilegítimas”, que acarretam imensos montantes de capital fictício e solapam na base as soluções financeiras para a crise do capital, potencializando novos mecanismos para sua acentuação. O referido autor atesta que as atuais expressões da crise do capital, sob a manifestação de crises financeiras resultam de mais de 20 anos de endividamento que vêm sustentando a demanda de países como os que formam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse processo comportou uma criação extraordinariamente elevada de títulos que têm o caráter de “haveres” sobre a produção atual e futura. Esses “haveres” têm uma base cada vez mais estreita. Ao lado dos dividendos sobre as ações e os juros sobre os empréstimos aos Estados, viu-se o crescimento do crédito ao consumo e do crédito hipotecário, que são punções diretas sobre os assalariados. O peso do capital sobre os assalariados se exerce tanto no ambiente de trabalho como quando eles são devedores aos bancos (CHESNAIS, 2013, p. 32).

Os novos mecanismos de exploração do trabalho para auferir mais-valor assumem novas demarcações, impregnando toda a vida social com a lógica da financeirização. A colação de Chesnais é certeira e além dos pontos elencados por ele, podemos destacar o avanço dos fundos de pensão, os seguros de saúde e de vida. Tais mecanismos são acionados para que o capital financeiro abocanhe parte do valor que o trabalhador recebe para sua reprodução, o que significa que, além dos mecanismos diretos de extração de trabalho excedente, a hegemonia das finanças incide sobre o trabalho necessário do trabalhador. 82

Em um contexto de flexibilização do trabalho e ofensivas contra o sistema universal de previdência pública e da saúde espraia-se facilmente o avanço da privatização previdenciária e dos sistemas de saúde37 sob auspícios da ideologia neoliberal, constantemente revigorada. Em verdade, o desenvolvimento capitalista chega a um nível de complexidade que suas contradições fundamentais assumem caráter explosivo, acentuando a necessidade voraz de domínio do capital sobre o trabalho, condição fundamental para acumulação, mas não suficiente, haja vista que todo o mais-valor criado precisa se realizar na esfera da circulação. Essa realização do mais-valor – requisito também fulcral para reprodução ampliada do capital – não ocorre sem transtornos estruturais nesta quadra histórica, dados todos os elementos que trabalhamos ao longo deste capítulo. Neste ínterim, ratificamos nosso mote inicial de que o desenvolvimento capitalista significa avanço progressivo e cumulativo no nível de complexidade do sistema de reprodução social comandado pelo capital. Isto está expresso no exponencial avanço das forças produtivas, com incrementação tecnológica inimaginável há 100 anos. Um arsenal sofisticadíssimo de técnicas produtivas, automativas, biogenéticas comandam a vida social na etapa contemporânea do capitalismo financeiro. Mas esse sistema não escapa às suas leis fundamentais imanentes, e reproduz sempre em escala ampliada suas contradições fundamentais, mormente aos referentes à lei geral da acumulação: produção e reprodução de pobreza na mesma proporção que a produção e reprodução da riqueza. Esse é o próprio desenvolvimento capitalista: face ao cenário exponencial de progresso indicado anteriormente, avança-se largamente o potencial de barbarização da vida social e de destruição da humanidade.

37Segundo Vilardo (2015), o patrimônio total dos fundos de pensão no país ultrapassa a o montante de 660 bilhões de reais. Em 2016 a procura por planos de previdência privada cresceram ainda mais no Brasil. De acordo com dados apresentados pelo Jornal da Globo (em 06/09/2016), a captação líquida dos fundos de previdência teve saldo de mais de R$ 25,6 bilhões de reais, o que representa uma alta de 7,64% em relação a 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2016/09/cresce-procura-por-planos-de- previdencia-privada-no-brasil.html. Acesso em 08/10/2016. Em importante pesquisa sobre a política de saúde no Brasil e as tendências de privatização da área, Cislaghi (2015) demonstra a funcionalidade dessa privatização para a valorização do capital. Segundo a autora, o serviço de saúde, no Brasil é o setor privado com fins lucrativos o mais importante com 68, 41% dos estabelecimentos de saúde seguido da administração direta com 27,33%. Em terceiro lugar estão as entidades sem fins lucrativos com 1,54% dos estabelecimentos. Baseada em dados de setembro de 2012, Cislaghi (2015) demonstra que “existem no Brasil 1245 operadoras de Planos Médico-odontológicos, com uma clientela de 47,6 milhões de pessoas. O faturamento global dessas operadoras foi, em 2011, 85,5 bilhões de reais. Estima-se que em 2012 alcançou 100 bilhões de reais” (CISLAGHI, 2015, p. 108). http://oglobo.globo.com/economia/fundos-de-previdencia-privada-fecham-ano-com-avanco-de-10- 11124375 http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2016/09/cresce-procura-por-planos-de-previdencia- privada-no-brasil.html

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Ao longo desta tese, procuraremos demonstrar como o projeto político-econômico do PT configura-se como uma forma de enfrentamento subordinado às manifestações da crise estrutural do capital, no capitalismo dependente periférico brasileiro. Já temos por hipótese, o frágil poder de recomposição da dinâmica do capital no país, conforme será abordado, seguidamente.

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2 O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO BRASIL: FORMAÇÃO SOCIAL, ESTADO E CLASSES SOCIAIS

A discussão realizada no primeiro capítulo centrou-se nos fundamentos ontológicos do desenvolvimento capitalista, situando suas propriedades intrínsecas e suas leis históricas. Subsidiariamente, pudemos demarcar a especificidade do Estado capitalista como superestrutura política, cujo próprio desenvolvimento e direção são indissociáveis do amadurecimento das relações sociais capitalistas. Agora é possível analisar outras determinações, situadas no plano histórico-concreto da realidade particular do desenvolvimento capitalista no Brasil. Desse modo, nosso objetivo neste capítulo é apreender as particularidades desse processo no Brasil, explicitando a atuação do Estado no sentido de garantir condições gerais indispensáveis para a livre dinamização do capital e das relações capitalistas no país. Nossa pretensão, nesse segundo capítulo, é expor a sistematização da pesquisa sobre o desenvolvimento capitalista no Brasil, a partir da sua inserção na totalidade dinâmica do capital e sua relação com o movimento sistêmico mundial, explicitando as assimetrias, os níveis variados e os tempos desiguais que o capital assume na realidade peculiar brasileira. E, neste particular, analisar as principais facetas dos governos petistas no que toca às condições do desenvolvimento capitalista no contexto da crise estrutural do capital e suas peculiaridades sobre o capitalismo periférico e dependente.

2.1 Aspectos lógicos fundamentais da formação social do Brasil: heteronomia e a peculiar revolução burguesa

Elucidar alguns elementos centrais da nossa formação social nos parece indispensável para dar suporte à compreensão da forma particular da gênese e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, uma vez que tais traços tiveram impactos importantes na consolidação das relações capitalistas por aqui. Caio Padro Jr. traz importantes contribuições quanto às implicações do passado colonial para o Brasil Moderno e para pensar a inserção do país no capitalismo mundial. A 85

abordagem que o autor realiza em A Formação do Brasil Contemporâneo38 explicita o “sentido da colonização”. Neste sentido, esclarece tanto os motivos que levaram ao processo de colonização do Brasil e as características que ela assume, desmistificando quaisquer perspectivas de casualidade em relação à colonização, e explica os caracteres gerais da forma que assumiu até a Independência, demonstrando sua relação com a empresa colonial. Como demonstrou o autor, o fundamento geral dessa empresa colonial seria a acumulação primitiva de capital, indispensável para posterior processo de industrialização no continente europeu. Assim, para compreensão do fenômeno da colonização, Caio Prado Jr. aponta que é fundamental entender os interesses mercantis que impulsionam a expansão das rotas comerciais da “imensa empresa comercial” empreendida por vários países oceânicos da Europa. Ao tratar o processo de colonização como uma vasta empresa comercial, o autor se remete à racionalidade que determinara tal processo, qual seja: a busca permanente de lucros, que se deu através da grande exploração dos recursos naturais e cuja produção será substancialmente voltada para fora. O conceito de sentido da colonização explica os elementos cruciais da formação social e econômica que marcou profundamente o país e cujas consequências não se limitarão ao período colonial, mas engendrará traços importantes ao longo da história do Brasil. Assim, aquele sentido seria dado pela subordinação da colônia aos interesses da metrópole, implicando na estruturação de uma economia fundada sob uma base agrária e latifundiária. A produção monocultora para exportação, baseada no trabalho escravo, visava tão somente a intensa transferência de excedentes econômicos para a metrópole, Portugal, com desprezo para a possibilidade de povoamento e atendimento das necessidades internas. Segundo o autor, esse caráter será dominante nos três séculos do Brasil-colônia, permanecendo ainda do Império até a constituição da República. Para demonstrar a forma como tais elementos se materializaram o autor discute o povoamento, a vida material e a vida social, o que lhe permite traçar um panorama amplo e articulado da formação do que ele chama de “Brasil contemporâneo”.

38 Estamos enfatizando essa obra, mas não afirmamos com isso que ela é a única em que o autor realiza tal análise. Conforme Fontes (2007 p.03), “Prado Jr. conservou grande coerência interna em seus escritos, sendo todos os seus trabalhos atravessados por um fio condutor comum[1]: a preocupação política sobre a inserção da economia brasileira no sistema capitalista internacional, que se traduz no sentido da colonização. Procurando o perfil histórico de longo curso da formação brasileira, ele insistiu em dois eixos: o sentido da colonização (marca da formação das classes sociais e da dependência estrutural da economia brasileira); e o perfil do Estado nacional”. 86

Nas três dimensões analisadas é possível perceber a articulação geral dos processos sociais ao sentido da colonização. Assim povoamento, vida material e social serão determinados por essa condição básica, se subordinando inteiramente aquele fim: produzir e fornecer gêneros tropicais ou minerais ao comércio europeu, do que redunda uma economia e sociedade voltadas para interesses externos. A colonização, portanto, não se orientou no sentido de constituir uma base econômica sólida e orgânica, a qual pressupunha uma exploração racional e coerente dos recursos da colônia para satisfação das necessidades dos povos que aqui habitavam (IDEM, p. 75). Ao contrário, o que se viu foi a exploração irracional e desmedida dos recursos aqui disponíveis e escoamento de todo excedente econômico para fora, o que dificultou em larga medida o desenvolvimento das forças produtivas internamente. Ademais, como fenômeno típico dos processos de acumulação primitiva, a violência foi um fator estrutural constitutivo do movimento de colonização, expresso na invasão, tomada e apropriação das terras dos indígenas, com massacre e genocídio de tribos, a transformação de indígenas em força de trabalho escrava,39 o ataque as suas manifestações culturais e religiosas. A expropriação de terras comunais para exploração intensiva da empresa colonial, com a consequente destruição dos modos primitivos e asiáticos dos nativos, a constituição das sesmarias e a posterior instituição do latifúndio, tem, portanto, relação complexa e sedimentam as bases da concentração fundiária que ainda vigora no país. Isto por que, uma reforma estrutural básica para diminuição da desigualdade social, como a reforma agrária jamais chegou a se consolidar. A base econômica da exploração colonial estava assentada na agricultura, na mineração e no extrativismo. Não descartando a importância das demais, destacamos a agricultura pelo significado que ela teve para a organização agrária do país também no pós- colonônia. No Brasil colônia tal organização estava assentada em três elementos essenciais: a grande propriedade,40 a monocultura e o trabalho escravo, constituindo o que o autor denomina de “sistema típico da grande exploração rural”, ou seja, “a reunião numa mesma unidade produtora de grande número de indivíduos, é isso que constitui a célula fundamental da economia agrária brasileira” (PRADO Jr., 2011, p. 127). Esse destaque que Prado Jr. dá à grande unidade produtora se revela imperioso para compreender a racionalidade da vasta

39 Apesar de, como se sabe, os colonizadores terem optado, majoritariamente, pela escravização da mão-de-obra negra, fundada no tráfico de negros africanos. Os colonizadores justificavam essa preferência em função de uma suposta “preguiça crônica” dos indígenas e sua “incapacidade” de adaptação ao trabalho pesado (PRADO Jr., 2011).

40 A grande unidade produtora era base também das atividades mineradoras e extrativistas. 87

empresa comercial que era a colonização. Ele esclarece que tal unidade reunia um número grandioso de trabalhadores subordinados ao interesse do “empresário particular” e “é nesse sistema de organização do trabalho e da propriedade que se origina a concentração extrema de riqueza que caracteriza a economia colonial” (IDEM, p. 129). Florestan Fernandes, por sua vez, ao interpretar a formação social e o desenvolvimento do capitalismo no país – interligando a universalidade do seu desenvolvimento mundial às particularidades da nossa formação social – contribui para pensar a “via não-clássica” de transição para o capitalismo que aqui se engendra, cujo desenvolvimento é tardio em relação aos países capitalistas hegemônicos. Para tanto, demonstra as peculiaridades da revolução burguesa no Brasil. Nisto, ele contribui para desmistificar outras explicações41 que reclamavam a necessidade da realização de uma revolução burguesa para dinamizar o processo de industrialização, assegurar os ganhos formais democráticos vinculados aos valores liberais burgueses clássicos, para então passar a uma transição socialista. Ele também refuta ideias a respeito de uma suposta “burguesia débil”. Fernandes (2005) explica que não se pode admitir que a burguesia brasileira não tivesse realizado uma revolução. De fato, ela o fez, mas não conforme a direção “clássica” em que se efetivou nos primeiros países que se industrializaram. Aqui, a revolução burguesa não logrou concretizar uma revolução nacional democrática nas suas características clássicas e, portanto, não alcançou os avanços democratizantes de uma efetiva emancipação política. Assim, em A Revolução Burguesa no Brasil, o autor torna clara a relação entre dominação burguesa e transformação capitalista, demonstrando que tal relação é altamente variável nos diversos contextos particulares, enfatizando o Brasil. Neste sentido, afiança que “não existe, como se supunha a partir de uma visão europeucêntrica (além do mais, válida apenas para os “casos clássicos de revolução burguesa”), um único modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista)” (FERNANDES, 2005, p. 337). No Brasil, esta relação entre dominação burguesa e transformação capitalista redundou em um padrão de dominação burguesa baseada em vetores anti-democráticos com intensa estigmatização do povo, destituindo-o da possibilidade de constituir-se como sujeito histórico, o que para o autor demandou da burguesia brasileira um estado de contrarrevolução permanente.42 E, na consolidação de um capitalismo dependente e periférico.

41 Como as que vigoravam no Partido Comunista Brasileiro a partir das fortes influências da III Internacional Comunista (CORONE, 1989).

42 O tema da contrarrevolução tem grande importância nos estudos de Florestan para pensar a forma de dominação burguesa no Brasil. A contrarreforma seria um mecanismo central na autoafirmação burguesa que 88

Ademais, as condições relativas ao sistema colonial demarcam traços definitivos quanto ao padrão das relações econômicas no capitalismo dependente brasileiro. Neste particular, a herança da forma típica de colonização de exploração, assentada na agricultura de monocultura extensiva, demarcou, além de uma forma destrutiva de uso dos recursos naturais, os fundamentos de uma economia voltada para fora, como já alertava Padro Jr. (2011). As condições dessa modalidade de atividade agrícola, estruturada para atender demandas do mercado externo, além de dificultar a formação da agricultura de subsistência, bem como a diversificação da produção e promover o exaurimento do solo, logrou uma herança funesta sobre a consolidação do desenvolvimento capitalista no país. A dependência em relação às demandas do comércio externo, às flutuações alfandegárias, às inovações técnicas vai se tornando a marca distintiva de uma economia que, desde o processo de colonização, esteve completamente voltada para fora. Nosso autor destaca algumas fases e características do desenvolvimento capitalista no Brasil. Para ele se configuraram no país três fases distintas, mas em nenhuma delas teve-se uma réplica do capitalismo das nações hegemônicas, apresentando sempre os traços típicos de uma nação periférica e heterônoma. Tais traços realçam marcas estruturais da economia capitalista no país, que não permitiram impor: 1º) a ruptura com a associação dependente, em relação ao exterior; 2º) a desagregação completa do antigo regime e de suas sequelas, (formas pré-capitalista de produção, troca e circulação); 3º) a superação de estados relativos de subdesenvolvimento. As três fases destacadas pelo autor podem ser sumariadas da seguinte forma: fase de eclosão de um mercado capitalista especificamente moderno, que o autor denomina, também, como de transição neocolonial, e se estende da Abertura dos Portos (1808) até os meados do século XIX e tem como referência a crise estrutural e irreversível da produção escravista; fase de formação e expansão do capitalismo competitivo, que compreende a consolidação da economia urbano-comercial e a primeira transição industrial, compreendida entre o último quartel do século XIX até a década de 1950; e a fase de irrupção do capitalismo monopolista, que se acentua no fim da década de 1950, mas que adquire caráter estrutural no pós-1964. Esta fase “se caracteriza pela reorganização do mercado e do sistema de produção, através das

devia associar a explosão modernizadora com a regeneração dos costumes e da estabilidade da ordem. A instalação do Golpe Militar de 1964 é, portanto, para Florestan, a consolidação de uma contrarrevolução preventiva da burguesia, que apelando ao aparato autocrático do Estado ditatorial, busca esfacelar as vias disrruptivas da mobilização popular. A contrarrevolução torna-se um vetor de transformação permanente para a dominação burguesa, acionada nos diversos momentos históricos em que ela pode ser colocada em xeque (FERNANDES, 2005). 89

operações comerciais, financeiras e industriais da grande corporação (predominantemente estrangeira, mas também estatal e mista)” (FERNANDES, 2005, p. 264). Conforme já sinalizamos, Floresntan Fernandes chama atenção para o fato de que essa relação – entre transformação capitalista e dominação burguesa – não segue, necessariamente, a mesma orientação político-social em todas as sociedades. Nas nações de capitalismo dependente e periférico, como o Brasil, a revolução burguesa constitui uma realidade histórica particular. Na nossa realidade o que se concretiza “é uma forte dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou usando-se uma notação sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” (IDEM, p. 340). É importante destacar o caráter peculiar da composição da burguesia enquanto classe social. O traço mais elementar, segundo o autor, é a sua formação a partir de acomodações e conciliação de interesses com classes tradicionais, ou seja, sua fina articulação com as classes oligárquicas. Daí a definição precisa de Florestan de uma “burguesia compósita”. O grosso da burguesia brasileira emergente adivinha de um estreito mundo provincial, em sua essência, basicamente rural e sofre “larga socialização e atração pela oligarquia” (FERNANDES, 2005, p. 241). É evidente que essa acomodação não passa sem conflitos. A burguesia poderia discordar ou mesmo se opor à oligarquia, mas o universo cultural da classe burguesa que emerge no Brasil é extremamente restrito do ponto de vista da possibilidade de fazer reformas em associação com “os de baixo” e liderar um desenvolvimento capitalista autônomo. Arraigada em valores ultraconservadores demonstrava o seu “moderado espírito modernizador”. Aliás, o discurso da modernização de que se valeram era extremamente limitado “ao âmbito empresarial e as condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico” (FERNANDES, 2005, p. 242). Os fatores históricos-sociais que convergiram para o desencadeamento da revolução burguesa são assinalados pelo autor, quais sejam: a Independência, como fator político; a consolidação de dois tipos humanos nas relações mercantis: o fazendeiro de café e o imigrante, configurando o fator econômico, na medida em que estabelecem a mudança do padrão de relação: capitais internacionais X organização da economia interna; e um fator socioeconômico, que seria a expansão e universalização da ordem social competitiva. Esse processo de “secularização” e “modernização” evidentemente não se realizou de modo a revolucionar o tradicionalismo que impregnava a sociedade brasileira. Pelo contrário, o “aburguesamento” destes grupos se fez com uma apropriação “torpe” dos ideais liberais e com forte e impactante permanência das oligarquias e de seus interesses. É tanto que 90

Fernandes (2005) faz questão de elucidar que a consolidação da classe burguesa como classe social dominante não redunda em uma “crise do poder oligárquico”. Antes, o que se efetivou foi “ uma transição que inaugurava, ainda sob hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente o poder burguês e a dominação burguesa” (p. 239). Assim, o que se realizou, nos marcos do capitalismo dependente e periférico brasileiro, foi uma “transição sem rupturas”, em que a classe que assumiu para si o papel histórico de consolidar uma nova ordem social alternativa ao “status senhorial” não reivindicava os ganhos civilizatórios da agenda de lutas burguesas, conforme os ideais formais democráticos. Uma particularidade crucial a ser destacada é o caráter “retardatário” das revoluções burguesas em países como o Brasil, de inserção tardia no capitalismo mundializado. Essas revoluções foram afetadas pelas profundas transformações que já se haviam consolidado no capitalismo avançado na fase de industrialização, provocando certo “esvaziamento” histórico dos papéis econômicos, sociais e políticos destas burguesias periféricas, ficando sem base material para concretizar os referidos papéis. Isto em função “dos efeitos convergentes e multiplicativos da drenagem do excedente econômico nacional, da incorporação ao espaço econômico, cultural e político das nações capitalistas hegemônicas e da dominação imperialista” (IDEM, p. 344). Mas, este não é o fator determinante exclusivo. Esse atraso da revolução burguesa é concomitante ao avanço ininterrupto da história, ou melhor, quando uma pretensa revolução burguesa no brasil ainda procura consolidar e garantir os ganhos civilizatórios de que é demandatário o ideário burguês em uma dada nação, este mesmo ideário de igualdade, liberdade e fraternidade já tem sido refutado historicamente pela impossibilidade das burguesias de capitalismo avançado garantir tais ganhos. Isto por que a dinâmica capitalista nos países centrais já assumia um dado grau de complexidade em que suas contradições inerentes se expressavam de modo contundente. Neste interim, as requisições da lógica do valor – imperativa sob o modo de produção capitalista – tornava claro que a acumulação capitalista não poderia ser realizada em consonância com a igualdade efetiva de condições e liberdade concreta dos indivíduos. A necessidade de exploração para valorização do capital já explicitava que os ganhos do capital não seriam equitativamente transformados em ganhos do trabalho. 91

O período histórico que marca o desenvolvimento e consolidação da revolução burguesa no Brasil é posterior à “decadência ideológica”43 da burguesia nos centros hegemônicos, demonstrando sua impossibilidade de compatibilizar o sistema capitalista com o seu ideário revolucionário.44 Ademais, a esta quadra histórica o socialismo já se colocava no cenário mundial como possibilidade concreta, se constituindo na negação histórica do próprio capitalismo. Deste modo, “ a burguesia não está só lutando, aí, para consolidar vantagens de classes relativas ou para manter privilégios de classe. Ela luta, simultaneamente, por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo” (FERNANDES, 2005, p. 345). Como a consolidação da revolução burguesa no Brasil e o padrão de desenvolvimento capitalista que se constitui no país não são determinados por fatores internos apenas, conforme já sinalizado, o caráter dependente e heterônomo não se coloca como imposição, mas como opção histórica. Se internamente a burguesia brasileira fez preferência às alianças com as antigas classes dominantes e até mesmo com os segmentos militares, combinadas à ostensiva rejeição das classes subalternas aos processos de transformação da ordem social vigente, externamente a articulação ao imperialismo, representada nas frações burguesas hegemônicas internacionalmente, as remeteram ao caminho de uma contrarrevolução permanente, se constituindo uma força social ultraconservadora e reacionária, donde a democracia restrita é

43 Os Movimentos Revolucionários de 1848, na Europa, de acordo com Netto (1998), explicitam politicamente o caráter antagônico entre burguesia e proletariado. A partir deste momento as contradições engendradas pela consolidação do capitalismo colocavam às claras que a burguesia não mais dava conta de representar os interesses da classe trabalhadora. A burguesia não poderia mais se colocar em posição revolucionária já que procurava legitimar e manter sua hegemonia. Naquela quadra histórica somente o proletariado poderia se colocar como sujeito da revolução, cujo objetivo seria a emancipação humana pela via da ruptura total com o modo de produção capitalista. Assim, se processa não apenas uma recusa da burguesia perante qualquer vertente teórico- cultural progressista como também se inicia um intenso movimento de fragmentação do conhecimento e da própria ciência. “A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou a má consciência e a má intenção da apologética” (MARX, 1985a, p. 135). Lukács (1978) denominou esse contexto de decadência ideológica da burguesia. Sobre esse processo ele ressalta que as concepções burguesas a partir de então vão proceder a dissolução do hegelianismo e se contrapor a totalidade e ainda, “verifica-se na ciência burguesa um processo de divisão do trabalho. Antes de mais nada a ciência econômica é desistoricizada. O nascimento de uma nova ciência, a sociologia, serve fundamentalmente para tratar as categorias sociais separadamente da economia e, portanto, por um lado, para transformá-las – agora que foram destacadas da base econômica – em formas ‘eternas’, ‘universais’, da convivência dos homens abstratamente concebida, e, por outro, para destacar os fenômenos econômicos de sua referência à sociedade e conseqüentemente para transformá-los – também eles convertidos em formas ‘puramente econômicas’ – em ‘eternos’ e ‘universais’ (p. 93-94). Tendo isso em conta é que é possível compreender que a revolução burguesa, no Brasil, nasce envelhecida, adornada pelas práticas de manutenção dos seus privilégios de classe e de reprodução do sistema do capital.

44 “As burguesias da periferia sofrem, desse modo, uma oscilação ideológica e utópica, condicionada e orientada de fora” (FERNANDES, 2005, p. 367). 92

expressão exímia. “Isso faz que a intolerância tenha raiz e sentido políticos; e que a democracia burguesa, nessa situação, seja de fato uma ‘democracia restrita’, aberta e funcional só para os que têm acesso à dominação burguesa” (IDEM, p. 249. Grifos do autor). Em suma, os processos que resultaram no “Brasil moderno”, as transformações capitalistas e a concretização da revolução burguesa têm características particulares, expressas, sobretudo, na sua configuração retardatária, periférica e dependente. Daí resulta uma inserção submissa na divisão internacional do trabalho, que se reproduz ao longo da historia do país, demarcando um padrão de subserviência aos ditames do capital externo. A burguesia se estruturou sob o capitalismo competitivo, que emergiu da confluência da economia de exportação com a expansão do mercado interno. Mas a maturidade histórica dessa burguesia somente é alcançada sob a irrupção do capitalismo monopolista, recrudescendo a dominação externa, a desigualdade social e o subdesenvolvimento (FERNANDES, 2005). Florestan designava como desenvolvimento desigual interno a profunda miríade de condições assimétricas que perpassa as relações de classe no país e as discrepâncias, ritmos e intensidades diferentes de desenvolvimento, como por exemplo, a modernização do aparato industrial urbano na região sudeste e o anacronismo crônico do setor agrário, do norte e do nordeste. Também designa a própria desigualdade quanto ao usufruto dos bens produzidos coletivamente e dos avanços técnicos, expressos na profunda desigualdade social e nas variadas formas de segregação que sedimentavam as relações capitalistas no país. Da transição colonial para o Império, deste para a Primeira República e o desfecho do golpe civil-militar de 196445 o padrão de acumulação capitalista se fundamenta em uma dupla articulação: dependência externa e desenvolvimento desigual interno. Assim, a burguesia organiza o capitalismo brasileiro reproduzindo e modernizando, ainda que conservadoramente, essa dupla articulação. O desenvolvimento desigual interno designa uma condição estrutural da economia brasileira ao congregar setores “modernos” e “arcaicos” ou tempos discordantes de desenvolvimento, o que não significa a adoção de uma perspectiva dualista de análise da economia brasileira. Mas pelo contrário, a refuta, demonstrando a funcionalidade desse desenvolvimento desigual interno na sua articulação à dependência externa. Tal articulação se

45 Não que posteriormente o padrão de dominação alcance um patamar autodeterminado e nacional, mas delimitamos aqui o que entendemos, a partir da leitura da obra em questão, como sendo a culminância do ciclo de consolidação da burguesia enquanto classe hegemônica (FERNANDES, 2005). 93

traduz na dominação imperialista e no modelo de desenvolvimento que se desenvolve no país e em um padrão de hegemonia burguesa agregado e compósito. Findando o ciclo de constituição da burguesia enquanto classe social hegemônica, o capitalismo está consolidado, mas sem garantia de democracia e soberania nacional. Aliás, é com a imposição de uma “Ditadura de classes” que ela chega a cume de sua revolução, mas eminentemente, com claro caráter de “contrarrevolução preventiva (FERNANDES, 2005). É evidente que à altura da década de 1960 -1970 a burguesia já consolidara um considerável processo modernizador, e ainda que não tenha consigo se impor perante o imperialismo, seu raio de negociação torna-se mais amplo em um contexto onde estavam dadas as necessidades patentes de adaptação do país ao capitalismo monopolista. Entretanto, sem superação daquela dupla articulação. A relativa impotência da burguesia nacional perante o imperialismo não significa precisar a existência de uma burguesia de frágil sustentação dominante no âmbito das relações internas. Pelo contrário, a possibilidade de expansão e consolidação de domínios imperialistas pelos países periféricos, como o Brasil, requer uma burguesia forte e consolidada no contexto nacional. Enquanto classe fundamental do modo de produção capitalista, a burguesia tinha a missão histórica de consolidar as condições fundamentais para desenvolvimento e expansão das relações tipicamente capitalistas. Neste sentido, o processo, sumariamente delineado, da constituição burguesa e de suas funções históricas, peculiarmente desempenhadas no Brasil, será mais explicitamente elucidado na próxima secção, mas sob o ponto de vista de como se processou o desenvolvimento capitalista em função da industrialização do país e da importância vital do Estado nesse movimento.

2.2 O desenvolvimento capitalista, a industrialização e o Estado brasileiro: de Vargas a Juscelino Kubitschek

A entrada do Brasil no cenário mundial urbano-industrial se processa mediante uma posição dependente e periférica, num contexto em que o capital, face à sua intrínseca necessidade acumulativa, expandia seus domínios além dos países de industrialização avançada. Em suma, no período de consolidação de uma nova fase do capital, o imperialismo, fenômeno que esmiuçamos no primeiro capítulo. 94

Portanto, é a intensa concentração e centralização de capital nas grandes corporações monopolistas que fomentam o impulso nodal para assimilar nações como o Brasil ao circuito mundial do capital, ante os processos de dominação externa via mecanismos neocolonialistas.46 Tal inserção tardia no capitalismo industrial mundializado acarretou implicações importantes para a constituição capitalista do Brasil e forjou peculiares determinações na formação da classe burguesa brasileira. O Estado teve papel essencial para assegurar as condições do desenvolvimento do capitalismo no Brasil e para coadunar os interesses das classes dirigentes. O Estado da República brasileira nasceu sob a forte ambiguidade entre um liberalismo formal como fundamento político-ideológico e o patrimonialismo como prática concreta. Na direção dos interesses dominantes, o Estado figurava como orientador do desenvolvimento econômico, sendo envolvido “em ‘obrigações’ que deveriam ser assumidas pela inciativa privada, segundo o liberalismo sui generis corrente” (FERNANDES, 2005). Assim como se deu a formação de uma burguesia “compósita”, sustentada no burguês que se constitui a partir e com o senhor do engenho, o senhor de escravos, o oligarca do café, juntamente com o Estado capitalista – como expressão dessas relações de classe –, assumiu essas contradições e natureza compósita, donde a convergência de valores “republicanos” e liberais de um Estado moderno com práticas e direção patrimonialista47 e estamental. Originando-se a partir dessas acomodações nada simples, o Estado capitalista se consolida no Brasil sendo abarcado por interesses privados que variam em função da própria dinâmica das relações classistas, sendo absolutamente permeável às flutuações econômicas e culturais. Em outros termos, as frações de classes influenciam a direção do Estado na medida em que se tornam hegemônicas, o que é notável na própria dinâmica que se estabelece entre os “senhores do café” e os industriais emergentes. Não sendo supérfluo acrescentar que os grandes capitalistas industriais não foram inteiramente desvinculados, mas até mesmo oriundos dos grandes senhores rurais, mormente, os fazendeiros de café. Ianni (1989), sobre a formação do capitalismo no Brasil, destaca o papel fundamental que o Estado assume no desenvolvimento capitalista no país, de modo a assegurar a expansão controlada das forças produtivas, pois “as insuficiências da produção e os desequilíbrios

46 Processos de dominação econômica, acionados pelas grandes nações imperialistas em função dos processos de independência política de países coloniais. Os meios de exploração, a partir de então, serão mais diversificados, não se assentando mais na propriedade colonial dos países periféricos, mas na dependência tecnológica destes e nas expropriações via política de moeda, alfândega, entrada e saída de capitais externos, entre outros (FERNANDES, 2005).

47 Processo político-cultural de apropriação privada do aparato público-estatal. Ou seja, a apropriação do Estado para fins dominação e manutenção de privilégios dos segmentos oligárquicos da sociedade. 95

estruturais não podem ser resolvidos pelo ‘livre embate das forças do mercado’, o governo adota diversas modalidades de ação, a fim de garantir e revigorar a empresa privada” (p. 28). O autor é categórico ao precisar a importância da intervenção estatal na criação das condições de desenvolvimento econômico capitalista no Brasil, assegurando que no país “o Estado se manifesta em termos ‘agressivos’ sem o que o sistema não se constituiria” (p.195 grifos nossos), demonstrando a partir daí a própria necessidade do Estado induzir um ciclo de substituição de importações. A constituição de relações tipicamente capitalistas no país encontrou sérias dificuldades, entre elas a disponibilidade de mão de obra qualificada, a permanência do ideário conservador oligárquico, o débil interesse pela “modernização industrializante”, o que redundou em peculiar conciliação de interesses no cerne da dominação política entre diferentes frações de classe. Só assim se formava o montante de capitais necessários para os amplos investimentos demandados pelo processo de industrialização etc. No Brasil, ainda segundo as análises de Ianni (1989), o processo de “modernização capitalista” tem como componentes principais o capital nacional, o capital externo, a empresa privada e a assistência estatal direta e indireta. Os limites que o capital encontra na periferia são significativos do ponto de vista das condições vitais que ele requer para expandir os negócios da mercadoria. Justamente a falta de poupança interna, o parco excedente econômico em função da própria canalização deste para o exterior, bem como a ínfima produtividade do trabalho que concorre também para a difícil constituição de todo excedente necessário à reprodução ampliada do capital, o mercado interno incipiente, entre outros são componentes importantes dos óbices ao desenvolvimento capitalista nos países da periferia. Quanto à intervenção estatal, seus objetivos, entre outros, seriam: propiciar a conversão do excedente econômico, especialmente agrícola, em capital industrial; estimular a entrada de capitais externos; intensificar as poupanças espontâneas e forçadas; disciplinas e estímulo aos investimentos; controle e seleção dos recursos cambiais; concessão de favores monetários e creditícios, cambiais e fiscais, inclusive assistência técnica ampla; desenvolvimento equilibrado (IANNI, 1989, p. 160). De acordo com Ianni (1989), a incorporação do intervencionismo estatal na economia se intensifica a partir de 1930 e se consolida após a Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, é possível indicar que, no Brasil, o Estado passa a intervir nas atividades econômicas em duas orientações distintas. Em uma primeira fase, age no sentido de preservar certos níveis de renda e emprego em setores dominantes da produção. “Ele atua como regulador da produção e 96

cria instrumentos de defesa de setores com nível de renda ameaçado por desajustes ou crises geradas interna ou externamente” (p.37). Nisto, pode-se exemplificar, as medidas de proteção ao setor cafeeiro, dada sua importância na economia nacional, mas sem desprezo para outras áreas, o que se pode observar na criação dos Institutos de sal, pinho, mate, açúcar e álcool.48 A orientação que caracteriza a segunda fase se destaca, principalmente, na década de 1950 “produzindo a criação de órgãos e instrumentos destinados a estimular a expansão e diversificação das atividades produtivas” (p. 40). Há, a partir desta orientação, o ingresso ativo do Estado “nas diversas esferas da vida econômica, colaborando, incentivando e realizando a criação de riqueza”49 (IDEM). Empenhemo-nos então em desenvolver mais detidamente o significado e as condições de cada um destas duas direções e momentos do processo de industrialização brasileira, após a grave crise do capital em 1929.50 Fatores econômicos, sociais, políticos, culturais dinamizaram e deram base a chamada “Revolução de 1930”. Já havia debates na sociedade nacional acerca da necessidade de democratização do sistema político, protecionismo e defesa da frágil indústria nacional, além de reformas no sistema de ensino e regularização das relações de trabalho. O crescimento da urbanização, a expansão da classe média, a efervescência cultural com a semana de arte

48 O Instituto Nacional do Sal foi criado em 10 de junho de 1940, pelo decreto-lei nº 2398, sendo autarquia vinculada à Presidência da República. Suas principais atribuições regimentais eram: a organização dos registros das salinas, a padronização do sal, o estímulo à instalação de armazéns, a aquisição de navios apropriados para o transporte do sal e a criação de fábricas de embalagens, além da faculdade de intervir nas situações em que o mercado necessitasse de regulação. Em 13 de maio de 1957, o órgão passou a denominar-se Instituto Brasileiro do Sal. Instituto Nacional do Pinho, criado pelo Decreto-lei 3.124 de 19 de março de 1941 criado para proteção de interesses dos criadores, industriais e exportadores do pinho. Instituto Nacional do Mate, criado pelo Decreto- Lei 375, de abril de 1938. Órgão oficial dos interesses da indústria do mate, coordenar e superintender os trabalhos relativos á defesa de sua produção, comércio e propaganda. Instituto do Açúcar e do Álcool - ou IAA, criado através do Decreto nº 22.789, em 1º de junho de 1933, cuja finalidade seria orientar, fomentar e realizar o controle da produção de açúcar e álcool e de suas matérias-primas em todo o território nacional brasileiro (IANNI, 1989).

49 Aqui, o destaque é para a Companhia Siderúrgica Nacional, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco, a Comissão do Vale do São Francisco, o Banco do Nordeste do Brasil, a PETROBRÁS, a ELETROBRÁS, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, o Plano SALTE, o Programa de Metas, o Plano trienal.

50 Como se sabe, desencadeando um período chamado de “A Grande Depressão” (1929-1932), a crise de 1929 foi a maior crise do capitalismo até aquele momento. O estopim da crise foi a quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929, espraiando-se pelo sistema financeiro internacional, causando alvoroço no comércio mundial, reduzido a um terço do que era antes (BEHRING e BOSCHETTI, 2011). Apesar de sua eclosão ter se dado no âmbito das finanças, os fundamentos desta crise se encontra na própria lógica de acumulação capitalista e demarca o exaurimento de um ciclo expansionista pautado, sobretudo, na reconstrução dos países europeus arruinados pela Primeira Guerra Mundial. Esta crise assinala um ponto de inflexão quanto à credibilidade irrestrita da burguesia nos automatismos do mercado e irá dá fundamento à crise do liberalismo e posterior mudança da atuação estatal na direção keynesiana. 97

moderna, as manifestações de movimentos tenentistas incidem sobre o contexto nacional com impactos na composição e movimentos das classes sociais e/ou como reflexo delas. Ademais, amplia-se o mercado interno e possibilita novas perspectivas ao setor manufatureiro, com o aumento da imigração (IANNI, 1977). Todo esse contexto expressava a complexidade da dinâmica social e política de modo que se colocavam para o aparato político novas e complexas demandas para fazer frente às necessidades da sociedade nacional em expansão. Após a deposição do Presidente Washington Luiz, em outubro de 1930, a “Revolução de 1930” torna-se um fato histórico determinante na constituição do capitalismo no Brasil, mais especificamente para a direção do processo de industrialização ao demarcar um “ponto de inflexão” entre a época da vigência do sistema agrário-exportador e a época urbano- industrial (IANNI, 1963). Esse processo, sob a direção de Getúlio Vargas, tinha como função instaurar o aparato estatal através de órgãos e legislações de modo a assegurar o desenvolvimento do sistema industrial ainda muito incipiente, mas forte o suficiente para dá a direção social dos rumos da consolidação da ordem competitiva no Brasil. O Estado amplia seu aparato, suas funções e dimensões. Criam-se variados aparatos como: o Conselho Federal de Comércio Exterior, Ministério do Trabalho, Industria e Comércio, o Departamento Nacional de café, o Código de Minas e Águas. Estabelecem-se ainda importantes ações no sentido de regularização das relações de trabalho como fixação de 08 horas diárias e o limite da jornada semanal de trabalho, novas disposições legais quanto ao trabalho assalariado da mulher e do menor. Em suma, “como mediação das classes sociais, ele também opera na formação do sistema, e, em particular, da classe dominante, ou suas facções dirigentes” e assim, o acúmulo de três anos da “Revolução de 1930” culmina no Golpe de Estado de 1937, instalando-se o Estado Novo (IANNI, 1989, p. 129). Já nos anos 1934-1935 a conjuntura era de recessão econômica e os movimentos reivindicatórios do proletariado chegavam ao auge, além dos anseios sociais de radicalização política. É um contexto de fortalecimento do sindicalismo autônomo e o surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Ademais, a organização da sublevação militar em 1935 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que recebeu a pejorativa denominação de “Intentona Comunista”, também expressava essa consolidação de radicalização da luta de classes, que levaria ao Golpe de Estado, fundador do Estado Novo. Por outro lado, a chamada Ação Integralista emergia como catalizadora da opinião e mobilização das frações mais conservadoras da sociedade, com alinhamento de extrema-direita (IAMAMOTO e 98

CARVALHO, 2010), sobretudo em função da forte oposição da grande oligarquia política paulista em face da nova composição de forças à frente do governo federal, cuja expressão mais eminente já havia se dado em 1932, com a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Enfim, expressões das dissidências sociopolíticas da própria diversificação da divisão social do trabalho que colocavam em questão os próprios fundamentos da dominação burguesa. A necessidade de um projeto comum para hegemonia burguesa e dominação do proletariado em franca organização culminou no Golpe de Estado de 1937 e na constituição do Estado Novo. Ianni (1977) atesta que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Grande depressão Econômica (1929-1933) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) favoreceram a expansão e diferenciação da estrutura econômica brasileira. Além da industrialização em si, as demandas da economia de guerra favoreceram o estímulo à produção e à exportação de produtos minerais e extrativos51. Analisando o processo que culmina na consolidação da estrutura produtiva de base urbana-industrial no Brasil após a Revolução de 1930, Ianni (1977) destaca alguns fatores que estiveram no cerne desse movimento, engendrando as condições essenciais para essa consolidação, com importante destaque para a atuação do Estado. O primeiro destes fatores diz respeito à regulamentação de alguns aspectos relativos ao conjunto da economia, em especial a regulamentação das relações de trabalho, pela via da legislação trabalhista. Para o autor, esta legislação fazia parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar e consolidar um novo regime de acumulação, reconfigurando a participação do país na divisão internacional do trabalho. O segundo aspecto relaciona-se à intervenção do Estado na esfera econômica, atuando em várias direções: na fixação de preços, na distribuição de ganhos e perdas entre as diversas frações ou grupos de classes capitalistas, no gasto fiscal com fins direta ou indiretamente reprodutivos, na esfera da produção com fins de subsídio a outras atividades produtivas. Em suma, o papel do Estado, nesse contexto, foi “o de criar as bases para que a acumulação capitalista industrial, no nível das empresas, possa se reproduzir” (OLIVEIRA, 2003, p. 40). A partir de então, o governo ditatorial, sob a batuta de Vargas, deflagra uma série de empreendimentos que deveriam sedimentar e fomentar a expansão do sistema econômico brasileiro, tendo por base o fomento à industrialização e a sua proteção, galgados no nacionalismo. São exemplos desses empreendimentos: o Conselho Técnico de Economia e

51 Como mostra Mandel (1982) “os esforços de guerra” são alavancas do desenvolvimento capitalista, proporcionando novos condicionantes para extrair mais-valia. 99

Finanças, Conselho Nacional do Petróleo, Usina Siderúrgica de Volta Redonda, Plano de Obras e Equipamentos, Companhia do Vale do Rio Doce, entre outros. É marca distintiva desse período a constituição de mecanismos reguladores da relação capital-trabalho, expressos na legislação trabalhista implantada no período, bem como da instituição de políticas sociais em função das necessidades relativas à reprodução da força de trabalho – no sentido de desonerar o capital destes gastos – bem como sua funcionalidade para legitimação política do governo e para facilitar a adesão da classe trabalhadora à lógica corporativista da política trabalhista. Como se sabe, a política varguista constituiu um molde particular de intervenção sobre as expressões da questão social que visava um trato político das demandas da classe trabalhadora pautada na coesão social, cuja expressão se efetiva no lema da “harmonia entre as classes sociais”, superando a intervenção exclusiva do aparato coercitivo, ou seja, o tratamento da questão social como caso de polícia (IAMAMOTO e CARVALHO, 2010). O Estado, portanto, assume a via intervencionista também no outro polo fundamental do modo de produção capitalista: a reprodução e regulação da força de trabalho. Neste sentido, o reconhecimento da cidadania social do proletariado demarca tanto as medidas preventivas para integração da classe trabalhadora, como mecanismos consolidadores de hegemonia. Os direitos trabalhistas como regulamentação da jornada de trabalho, regularização do trabalho feminino e infantil, direito a férias e décimo terceiro, à sindicalização corporativista, aliada a iniciação das instituições assistenciais constituem mecanismos indispensáveis ao desenvolvimento capitalista no contexto do Estado Novo. Conforme explicita Ianni (1977), o planejamento passa a ser compreendido como técnica no âmbito do Estado de aceleração do desenvolvimento econômico, no sentido de queimar etapas, convergindo para a criação daquela estrutura técnico-burocrática com órgãos, campanhas e projetos, além da contratação de técnicos em planejamento e uma gama de profissionais aptos a manejarem tal estrutura. Assim, “a linguagem e a técnica do planejamento se transforma em componentes básicos e dinâmicos do sistema político- administrativo” (p. 57). A Constituição da República de 1937 condensou as diretrizes nacionalista e intervencionista, explicitando claramente a possibilidade de atuação do poder público em qualquer esfera da economia. A dinamização do capitalismo demandava novas formas de regulação das relações entre as classes sociais, uma vez que o aprofundamento da divisão social do trabalho implica no adensamento das contradições e da arena do conflito. Neste sentido, o Estado Varguista teve grande importância garantindo mecanismos de 100

regulamentação dessas relações, com a constituição de um importante quadro jurídico- normativo, como o fortalecimento do Ministério do Trabalho e a Consolidação das Leis Trabalhistas, e na constituição de um aparato político-ideológico assentando na perspectiva da “conciliação e harmonia entre as classes sociais”, criando mecanismos sofisticados como a estrutura sindical burocratizada e até certo modo aparelhada pelo Estado, donde evidencia-se a expressividade do peleguismo (IANNI, 1989). De acordo com Maranhão (2009), a partir da década de 1940 intensificou-se o debate em torno das vias de modernização do capitalismo brasileiro, ampliando-se as demandas de socialização do projeto burguês para esse desenvolvimento. Nesse contexto, se dissemina em escala mundial a ideologia do desenvolvimento, conforme indicamos no capítulo 1. Neste interim, o desenvolvimentismo se constitui enquanto ideologia fundamental para a transformação produtiva demandada pela fase madura do capital após a Segunda Guerra Mundial (BURGINSKI, 2016). Para Ianni (1989) o desenvolvimentismo é o ingrediente ideológico fundamental no processo de industrialização de tipo capitalista que ocorreu no Brasil. Nacionalista ou associado ao capital externo trata-se da ideologia de transição para o predomínio da burguesia industrial. Já Fonseca (2004) atesta o caráter eclético das influências teóricas que balizaram a constituição do desenvolvimentismo no Brasil, que incluem o nacionalismo, o protecionismo industrial, o papelismo52 e o positivismo. O autor assinala que apesar desse ecletismo existe um núcleo duro na conformação do desenvolvimentismo “como a defesa: (a) da industrialização; (b) do intervencionismo pró-crescimento; e (c) do nacionalismo” (FONSECA, 2004, p. 02). Segundo Bielschowsky (2011), o Brasil teve dois ciclos ideológicos desenvolvimentistas: sendo o primeiro de 1930 a 1964 e o segundo, de 1964 a 1980. O desenvolvimentismo precisa ser compreendido como projeto de superação do subdesenvolvimento por meio da industrialização integral, centrado no planejamento e na intervenção direta do Estado na atividade econômica. O autor elucida que o projeto econômico desenvolvimentista estava assentado em princípios fundamentais: a) a industrialização integral seria a via de superação da pobreza e do subdesenvolvimento; b) não seria possível alcançar a industrialização eficiente e racional no país através das forças

52 O papelismo é uma das vertentes teóricas que está na gênese do pensamento desenvolvimentista. Os papelistas se contrapunham a um princípio básico da política econômica clássica: o das finanças sadias, materializado pelo equilíbrio orçamentário. Os defensores do papelismo cumpriram “importante papel histórico de trazer à ordem do dia um ponto que no século XX seria marcante no desenvolvimentismo: admitir o crédito, o déficit público e os empréstimos como indispensáveis para alavancar a economia” (FONSECA, 2004, p. 09). 101

espontâneas de mercado, daí a necessidade premente do Estado interventor; c) o planejamento deveria determinar a expansão aspirada dos setores econômicos e os instrumentos de promoção de tal expansão; e d) o Estado teria que ordenar também a execução da expansão, captando e direcionando recursos financeiros, e agenciando investimentos diretos naqueles setores em que a iniciativa privada fosse ineficiente (BIELSCHOWSKY, 1995). O autor situa a primeira experiência política desenvolvimentista no Brasil com a presidência de Vargas, em 1930 e os anos de 1950-1960 como auge do desenvolvimentismo, a partir do Plano de Metas de Juscelino Kubistchek (JK) Por se tratar de uma ideologia que procurava congregar os vários interesses em disputa no projeto político da burguesia com impacto direto sobre a direção assumida pelo Estado, o desenvolvimentismo não constituía um bloco homogêneo, mas estava em constante disputa sobre a via a ser efetivamente implantada no país, para o qual concorriam no pensamento econômico brasileiro à época três posições: os desenvolvimentistas do setor privado; os desenvolvimentistas do setor público “não-nacionalistas”; e os desenvolvimentistas do setor público “nacionalistas” (BIELSCHOWSKY apud MARANHÃO, 2009). É no bojo da ideologia desenvolvimentista que a adoção da planificação/planejamento passou a fazer parte do quadro político-governamental a partir do período Vargas. Isso implicou tanto na criação de uma estrutura técnico-burocrática no quadro estatal e no amparo à constituição técnica do capitalismo no Brasil neste primeiro momento de desenvolvimento industrial. A conjugação do elemento intervencionista – que davas amplas dimensões à atuação do Estado ante as relações econômicas e sociais – conjugada ao elemento não consensual que era a veia nacionalista do capitalismo a ser desenvolvido no país, compuseram as bases precípuas que alimentaram fortes resistências de setores – civis e militares – que viam na conciliação com o capital estrangeiro um mecanismo mais efetivo de garantir a expansão do capitalismo no Brasil. Evidentemente, forças externas ligadas às nações imperialistas também tiveram fortes repercussões nesse processo, já que para garantia de expansão de seus domínios era crucial enfrentar quaisquer perspectivas nacionalistas e efetivamente emancipatórias das nações dependentes, por mais que essas diretivas não chegassem a compor um projeto nacionalista forte e sólido. Nesta direção, as contradições entre as frações de classe levaram a que em 1945 Vargas fosse deposto, através de um golpe de Estado, colocando por terra a ditatura do Estado Novo. A partir de então, a própria estrutura do Estado Novo passou a ser reformulada e a Constituição da República de 1937, instituída pela ditadura, foi substituída pela Constituição 102

de 1946, elaborada por uma Assembleia Constituinte, diversificada politicamente.53 O governo Dutra assumiu uma perspectiva bem diferente da anterior, tendo como suposto central a impossibilidade de realizar um capitalismo relativamente autônomo no Brasil, operando uma reorientação drástica da relação entre Estado e Economia. Apelando para valores liberais e supostamente democráticos, o poder público assumia uma postura menos ativa em relação ao governo anterior e, de certo modo, deixava o espaço aberto para o “mercado livre”, inclusive para a associação do capital nacional com o capital estrangeiro, sendo clara a preocupação da política governamental em “criar condições (institucionais e políticas) para que o capital estrangeiro pudesse livremente ingressar e sair do país” (IANNI, 1977, p. 97), implicando na renovação das condições de dependência externa. Neste sentido, o referido governo propiciou, em grande medida, uma reelaboração das relações econômicas, políticas e militares entre os Estados Unidos e o Brasil, do que pode ser destacado a participação do governo Dutra na Conferência Interamericana para manutenção da Paz e da Segurança no Continente, em 1947, no qual se realiza a elaboração do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca. Em 1948 este mesmo governo participou da elaboração da Carta da Organização dos Estados Americanos, cujo objetivo era a intensificação da solidariedade e cooperação dos Estados Americanos no contexto da Guerra Fria. Além disso, neste mesmo ano a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos começou a realizar suas funções, com o objetivo de desenvolver projetos, estudos e assistência técnica com financiamento dos Estados Unidos (IDEM). O período que compreende o governo Dutra também foi marcado pela ampliação do debate e da movimentação política. O retorno dos partidos políticos e a expansão da própria indústria engendrava a formação de uma classe operária que pouco a pouco ia constituindo-se como agente político efetivamente ativo no circuito dos conflitos, além da classe média mais encorpada, do funcionamento de partidos de esquerda (ainda que na clandestinidade) e do crescimento do setor terciário. A dinâmica social colocava novos sujeitos no cenário das lutas e embates sociais, de modo que favorecia o debate público em torno das condições de desenvolvimento econômico e dos rumos do Brasil. Além do mais, a inflação, o desequilíbrio nas contas de pagamentos, as necessidades de importação de maquinário, as questões de transporte, a energia, a insuficiência de recursos alimentícios eram fatores que revelavam as dificuldades do desenvolvimento e que faziam

53 É preciso lembrar que é a quinta Constituição do País e a quarta do período republicano, demonstrando a trajetória estática das alianças políticas em favor da estrutura tipicamente capitalista. Vale dizer, ainda, que a Constituinte de 1946 amplia a participação política instituindo o voto da mulher no sufrágio, além disso, amplia direitos dos trabalhadores, ainda que mantenha a estrutura sindical tutelada. 103

pressões sobre o governo Dutra, repercutindo fortemente na conjuntura que se colocava ao novo governo Vargas, no início dos anos 1950. Entre 1951-1954 o segundo governo Vargas criou mais condições de infraestrutura e de aparatos institucionais para garantir a aceleração do desenvolvimento industrial. Criaram- se órgãos, realizaram-se pesquisas e novos arranjos administrativos para impulsionar a industrialização, como o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, o Fundo de Reaparelhamento Econômico a ser administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento, também criado nessa época. Além disso, foram criados o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), a Petróleo Brasileiro S. A. (PETROBRÁS), o Plano Nacional de Eletrificação, que propunha a criação da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (ELETROBRÁS). De acordo com Oliveira (1980), o financiamento do capital no período Vargas se sustentou basicamente em três pontos: na manutenção da política cambial e do confisco cambial; na nacionalização dos setores básicos do Departamento I; e na contenção relativa do salário real dos trabalhadores. Ianni (1977) indica que, neste contexto, estruturaram-se três perspectivas políticas para organização e desenvolvimento da economia do país. Uma dessas perspectivas se caracterizava pela estratégia de organização e expansão da economia com base na associação com o capitalismo mundial. Sob esta direção, o Brasil deveria modernizar sua organização econômica a partir de amplas e sistemáticas relações com as economias mais desenvolvidas. Negava-se, entretanto, que tal estratégia se tratava de propor um capitalismo dependente. Tal perspectiva já estava muito presente no governo Dutra. Outra estratégia caracterizava-se como socialista. A corrente predominante dessa perspectiva acreditava que a estatização progressiva da economia era o caminho mais efetivo e menos oneroso para a organização socialista da produção. É interessante notar que por razões táticas, os partidários do socialismo reformistas acomodaram-se e aliaram-se – conforme a situação política – à “burguesia nacional”. Essa era uma das razões por que o PCB e o PTB estiveram juntos em várias campanhas eleitorais (para eleição de deputados, senadores e mesmo presidentes da república), bem como em muitos debates parlamentares (IDEM, p. 135).

Existia ainda outra estratégia política de organização e desenvolvimento da economia brasileira, que visava impulsionar a formação de um chamado capitalismo nacional no Brasil. Vinculavam-se a esta direção grupos da classe média, pequena burguesia industrial, alguma parte da alta burguesia industrial de origem nacional, setores do exército, do proletariado e intelectuais. Defendia-se o intervencionismo estatal e a adoção de soluções de tipo 104

nacionalista. Este segmento não era totalmente contrário à participação de capital e tecnologia externos, mas defendiam que se houvesse, devia-se manter o controle nacional. Com o suicídio de Vargas, as lutas políticas e ideológicas em torno do desenvolvimento econômico do país, que na verdade nada mais eram do que as tensões e disputas em torno da direção do desenvolvimento do capital no Brasil, passam a delinear novos rumos para a ação do Estado brasileiro. É com a eleição de Jucelino Kubitschek que se consolidaria uma direção ousada e grandiosa para alavancar a industrialização, a modernização e o desenvolvimento da economia brasileira. Ianni (1989) chega a dizer que “dois milagres” econômicos assinalam a concretização do desenvolvimento industrial e consequente aprofundamento das relações capitalistas no Brasil, para o que a intervenção estatal foi crucial e determinante: o Programa de Metas do governo Kubitschek (1956-1960) e a ditadura civil-militar, mas especificamente o período 1967-1973. Ocupemo-nos, primeiramente de refletir acerca do governo Kubitschek e da importância de sua política econômica no processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. É inequívoco que a grande marca deste governo foi o Plano de Metas, cujos objetivos eram tão audaciosos que se postulavam no famoso slogan “50 anos em 5”. De acordo com Ianni (1989), a partir do Plano de Metas ficou clara a tendência hegemônica da direção do desenvolvimento do capitalismo no Brasil no sentido do capitalismo associado, passando a predominar “um sistema econômico altamente associado com as multinacionais, com matriz nos Estados Unidos, em países da Europa e do Japão” (IANNI, 1989, p. 255). Maranhão (2009) atesta que o contexto em que JK assume a Presidência é marcado pela inauguração de uma fase histórica abalizada por uma moderna articulação entre os setores burgueses brasileiros e o imperialismo. É neste quadro que a burguesia industrial assume o processo de modernização capitalista, sem excluir a velha burguesia comercial e tampouco a subordinação ao imperialismo. Sem dúvidas o surto industrial alcançado no referido governo estava assentado em intenso investimento estrangeiro, consolidando a direção de um desenvolvimento particular, nomeado por Ianni como capitalismo associado. O capitalismo associado não é tendência única, definitiva. Mas é a que predomina e expande-se desde a década de [19]50. [...] O capitalismo associado, no qual predominam a empresa e o banco estrangeiros radicados nos países dominantes, parece ser o coroamento desse longo processo. Ao mesmo tempo em que predominam o capital, a tecnologia e a capacidade gerencial estrangeiros, consolida- se o capitalismo associado (IANNI, 1989, p. 255).

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A despeito do discurso de modernização e desenvolvimento que buscavam dar sustentação política e legitimidade ao projeto de desenvolvimento ancorado no Plano de Metas do governo Kubitschek, se delineava uma direção para a nação que reproduzia a condição periférica e dependente do país. Ancorada no tripé: capital nacional, capital estrangeiro e Estado, o capitalismo no Brasil expandia-se neste período conformando um processo inequívoco de industrialização intensiva. Segundo Maranhão (2009), essa industrialização intensiva se caracterizou por profundas alterações na estrutura produtiva brasileira, verificando-se um grande salto tecnológico e pela ampliação da capacidade produtiva muito além da demanda existente no país. No que tange ao desenvolvimento da indústria pesada, observa o autor, seria indispensável o apoio do Estado brasileiro e do novo capital financeiro internacional (IDEM). Mais uma vez as indicações de Ianni (1989) são preciosas para corroborar nossa reflexão quanto à preponderância do tripé que permite o desenvolvimento capitalista no Brasil: o capital nacional, o capital estrangeiro e o Estado, com prevalência destes dois últimos. Se a era Varguista ficou marcada pela perspectiva nacionalista e intervencionista do Estado na estruturação das classes sociais como fundamentos essenciais, o período JK amplia a planificação como meio de aprofundar, sistematizar e otimizar a intervenção direta do Estado no desenvolvimento econômico do país, para superar o tempo social do atraso, agora não sob apelo a princípios nacionalistas, mas amparando o consenso social na associação do projeto burguês local com o capital estrangeiro, sob forte apoio no próprio financiamento estatal. Segundo Paula (2013), essa mudança político-ideológica se processa no contexto em que o cenário nacional está propenso a alianças táticas entre Brasil e Estados Unidos quanto à difusão ideológica da industrialização como caminho de modernização. Ele aponta que vários autores chegam a afirmar que com JK o nacionalismo típico da era Vargas se transforma em nacional-desenvolvimentismo, cuja diferença fundamental é que este último não só aceita, mas considera fundamental um arranjo quase simbiótico entre o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro, mesmo em áreas consideradas estratégicas para a soberania de um país, como a infraestrutura básica e a indústria de base. Isto fica evidente em JK, quando se verifica a injeção de capitais estrangeiros para o desenvolvimento de seu projeto de revitalização da indústria automobilística, na área dos transportes aéreos, estradas de ferro, eletricidade e aço. Já o nacionalismo, cuja maior expressão se dá no processo de substituição de importações, embora admita a presença e participação do capital estrangeiro, impõe à ele muitos condicionantes (PAULA, 2013, p. 196). .

Conforme destaca Maranhão (2009), com a ideologia do desenvolvimento e a apresentação da industrialização como panaceia para os problemas da sociedade nacional 106

como a fome, a pobreza, o desemprego, a burguesia brasileira pensou haver encontrado “as promessas necessárias para aglutinar as massas populares e intermediárias ao seu projeto político particular de classe” (MARANHÃO, 2009, p. 109). Plasmado na apologia da industrialização como forma de modernização do país que beneficiaria a todos indistintamente, a classe dominante do Brasil construía as bases de sua hegemonia internamente. A associação ao capital estrangeiro aparecia não como um mecanismo que necessariamente prejudicaria a burguesia nacional, mas sim como um mecanismo necessário para a burguesia brasileira garantir seus próprios meios de dominação interna. É como define a clássica afirmação de Florestan Fernandes segundo a qual o oportunismo das elites brasileiras a colocaram numa situação em que a luta pela soberania nacional não era necessariamente uma bandeira para suas lutas, uma vez que a associação ao capital estrangeiro angariasse condições de dominação interna, ainda que subordinada, sob o julgo da dominação e dependência externa. Desde modo, nossas elites não atuaram francamente contra os investimentos estrangeiros no país. Na verdade, Os altos investimentos do período são frutos de uma conciliação que por um lado, proporcionou uma profunda solidariedade entre os setores burgueses no interior do aparelho estatal brasileiro, e por outro lado, uma articulação subordinada das empresas industriais implantadas no Brasil com o capital internacional (MARANHÃO, 2009, p. 108).

De todo modo, a partir dessa conciliação de classes – que evidentemente não anula as tensões inerentes aos diferentes interesses das diversas frações da classe dominante – a direção do capitalismo no Brasil, neste período, transcorre no sentido de consolidar a industrialização a partir da expansão e modernização das relações econômicas. Para isso, foi indispensável a atuação do Estado no sentido de assegurar as condições indispensáveis para o desenvolvimento do capital no país, tanto apoiando a indústria que se consolidava, mediando a intervenção do capital estrangeiro e investindo diretamente na construção da estrutura necessária para àquela modernização e atuando fortemente nos setores que não eram lucrativos para a iniciativa privada, mas que eram indispensáveis para a sua diversificação. Nesta direção, a política econômica do governo se constituía em três níveis, a saber: uma política cambial audaciosa ao revés, isto é, imobilista e liberal, em condições de extrema severidade das receitas cambiais, a política fiscal era extremamente conservadora, congelando praticamente a expansão das receitas do Estado, e, por fim, a política monetária era de insólita audácia, utilizando-se o mecanismo inflacionário até limites insuportáveis” (OLIVEIRA, 1980, p. 86).

Em se tratando do desenvolvimento das forças produtivas, a articulação do tripé já mencionado – capital nacional, capital estrangeiro e Estado – foi fundamental para 107

dinamização das relações capitalistas no Brasil e neste período tem como auge a ampliação do parque industrial brasileiro, inclusive com desenvolvimento da indústria pesada. Ianni (1977) afirma que o governo JK foi marcado por quatro grandes realizações: o Plano de Metas, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), a Operação Pan-Americana (OPA) e Brasília. Embora não representando o mesmo sucesso e significado, estes fatos revelam “que o governo Kubitschek procurou apresentar soluções novas e audaciosas para alguns dos problemas fundamentais do capitalismo no Brasil” (IANNI, 1977, p.150). Estas quatro grandes realizações tem relação direta com o próprio processo de modernização da estrutura industrial no Brasil. A SUDENE, autarquia voltada para o nordeste, se insere na estratégia de enfrentamento tático às grandes disparidades nos níveis de desenvolvimento regional, acentuadas com o movimento de franca expansão urbano- industrial alcançado, sobretudo, no sudeste, e que colocava óbices ao alargamento capitalista para toda esfera nacional. Plasmada nos chamados projetos de integração nacional, acentua o caráter intervencionista do Estado e demarca uma inflexão da relação deste com a questão regional (OLIVEIRA, 1981), assinalando a via do planejamento estatal para expansão do capitalismo monopolista. A Operação Pan Americana (OPA), por sua vez, reflete uma inflexão importante do país no estabelecimento de relações internacionais, mais especificamente no afinamento das relações comerciais e de financiamento com os Estado Unidos. Convalido com uma “suposta ameaça comunista” e visando estabelecer bases para assentar mecanismos de assistência ao desenvolvimento brasileiro, o governo busca uma intensa articulação americana, sob a batuta dos EUA. A construção de Brasília assume relevância no governo de JK na medida em que seria expressão da modernização do Estado brasileiro, com a construção de uma capital completamente planejada para centralizar a coordenação da chamada integração nacional com a abertura de fronteiras para o capital, além de ter se tornado fonte de investimentos e expansão do mercado de construção civil e de maior movimentação de capital na área. O Plano de Metas como estratégia profissionalizada do poder público, se constituiu como principal instrumento de política econômica do governo JK e tinha como finalidade precípua enfrentar os pontos que impossibilitavam o desenvolvimento industrial e a expansão das relações econômicas, expressando as áreas prioritárias para a intervenção governamental: infraestrutura (energia, transporte) e insumos básicos. Seus principais objetivos eram: a)abolir os pontos de estrangulamento da economia, por meio de investimentos infraestruturais, a cargo do Estado, pois que estes investimentos não atraiam o setor privado; b) expandir a indústria de base, como a automobilística, indústria pesada e de material elétrico pesado, estimulando investimentos privados nacionais e estrangeiros. A ação governamental, em seu conjunto, deveria criar 108

melhores condições econômicas, financeiras sociais e políticas para o florescimento da livre iniciativa. Um dos alvos centrais do Programa era atrair o interesse de empresários estrangeiros, com seu capital e sua tecnologia. Além deste objetivo, pretendia-se estimular a poupança nacional e incentivar a modernização geral do sistema produtivo (IANNI, 1977, p.153).

Gomes (2014) aponta que a execução do Plano de Metas criava uma espécie de tripé no desenvolvimento capitalista brasileiro em que: o departamento de bens de capital (Departamento I), das indústrias de base, em função do longo período de realização e alto investimento, ficava principalmente a cargo do Estado; o departamento de bens de consumo não duráveis (Departamento II), os principais produtos de consumo popular, os quais demandavam menor investimento de capital, permaneciam a cargo dos capitalistas brasileiros; e, finalmente, a indústria de bens de consumo duráveis (Departamento III) ficava a cargo dos capitais externos, visto que a alta composição orgânica do capital nesse departamento era um impeditivo ao investimento por parte dos capitalistas nacionais – a não ser que se associassem a estrangeiros, o que se mostrou ser marca importante do capitalismo brasileiro à época. A forte expansão das empresas estatais54 foi condição de suma importância para os interesses privados de valorização do capital produtivo no Brasil, sobretudo com o Plano de Metas (PM) de JK, “quando já se observava um período de constituição e consolidação das empresas estatais no sentido de ensejar a industrialização dependente (RODRIGUES, 2017, p. 41). Essa estrutura culminou, de fato, em um desenvolvimento industrial amplo e fomentou a diversificação da própria estrutura econômica. Favoreceu um crescimento econômico e o desenvolvimento de setores importantes do país. A própria atuação do Estado no setor produtivo ampliou-se consideravelmente. Entretanto, a despeito de ter sido fundamental para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, o governo JK e o Plano de Metas não apenas aprofundaram o padrão dependente da economia brasileira, como também evidenciaram a insustentabilidade das promessas da modernização e do desenvolvimento como sinônimo de melhoria das condições de vida de toda a população, diminuição da pobreza e da fome. As características centrais do padrão de acumulação fundado numa predominância do Departamento III e, além disso, na forma com que foi financiada a acumulação de capital, contribuíram poderosamente para moldar uma das mais negativas faces da economia brasileira de nossos dias: a extremada concentração de renda, que derivava imediatamente da forma da concentração do capital que o padrão de acumulação propiciou. Sem dúvida, a estruturação oligopolística dos novos setores e

54 “As empresas estatais atuavam no setor de energia (principalmente geração, uma vez que a parte mais rentável, ligada à distribuição de energia, ficaria sob responsabilidade muitas vezes do setor privado estrangeiro); de petróleo; siderurgia; mineração; transportes e telecomunicações, entre outros, que não eram de interesse do capital internacional, mas se mostravam fundamentais para a instalação de suas filiais no país” (RODRIGUES, 2017, p. 43-44). 109

ramos, de que os casos da indústria automobilística e construção naval são exemplos marcantes, já contribuiria decisivamente para os resultados posteriores. Essa oligopolização, potenciada por saltos na produtividade do trabalho, e em presença de salários reais constantes, quando não declinantes em alguns setores, e, ainda mais, alimentada pela transferência de produtividade do trabalho das empresas estatais não poderia dar senão na característica antes assinalada (OLIVEIRA, 1980, p. 89).

Outras variáveis importantes como dívida externa, inflação, arrocho salarial são expressivas do alto custo social para a modernização capitalista empreendida no período, com um padrão de intervenção estatal assentando no endividamento e na associação com o capital estrangeiro. Entre 1953 e 1954 a inflação girava acima de 20% e ao término de cinco anos de governo ela estava entre 25% e 30%. No que diz respeito às finanças públicas a questão também era grave, sendo que o déficit na balança de pagamentos comercial do governo federal aumentou significativamente entre 1956 e 1961 em 211%. A dívida externa foi um legado desastroso do governo JK, resultado da opção político- econômica de financiamento do desenvolvimento capitalista através do endividamento estatal. Somente no primeiro ano do seu mandato, a dívida aumentou 538,0% em relação ao ano anterior (1955). Considerando todo período juscelinista, a dívida externa líquida aumentou 50%, chegando a US$3,4 bilhões (VILELLA, 2011). Do ponto de vista da reprodução e exploração da força de trabalho, podemos atestar o fato de que ele foi ajustado três vezes no período em questão. Existiam naquele contexto valores distintos dos salários mínimos. O primeiro reajuste, em agosto de 1956, o maior valor subiu 58,3% e o menor, 125,2%. No segundo reajuste, em 1959, a relação cai para 2,86. E no terceiro reajuste, em 1960, o percentual foi igual para todos os valores, na casa dos 60% (OSADA, 2008). De fato, o salário mínimo do período juscelimista foi o maior desde sua criação até 1968, mas conforte atesta Campos (2007), o salário real se deteriora ao longo do período em função da inflação, a ponto do salário real de 1956 ter sido maior ( R$441, 21)que o salário de 1960, (425,20). Além do impacto da inflação sobre os valores reais dos salários, os salários industriais cresciam abaixo do índice de produtividade do setor, o que implica uma relativa perda de participação dos ganhos do trabalho sobre os ganhos da produção. Lessa (1982) chama atenção para o fato de que, mesmo com o crescimento acelerado, o emprego no setor industrial aumentou a uma taxa de 29% ao longo de toda a década de 1950, enquanto a população crescera 37,2%. 110

O aumento expressivo da população urbana também se relaciona com a questão do emprego. Stormowski (2011) apresenta dados que apontam um crescimento vertiginoso da população urbana, alcançando seu pico na década de 1950, com uma média de crescimento anual da população urbana de 5,47%, bem superior ao crescimento rural que foi de 1,67%. Um crescimento não acompanhado pelo emprego industrial, visto que as aglomerações urbanas com mais de 10 mil habitantes cresceu na ordem de 6,45% entre 1950-1960, enquanto que o emprego industrial aumentou a 3% ao ano. Ainda de acordo com a autora, em 1950 a população economicamente ativa ultrapassava 17, 1 milhões e, em 1960 mais de 22,7 milhões de pessoas estavam trabalhando e procurando emprego. Os dados corroboram a dinâmica imanente do desenvolvimento capitalista, que acirra o crescimento da população urbana – ao criar mecanismo de expropriação das terras de camponeses para liberar força de trabalho para a indústria – e da população disponível para as demandas de valorização do capital, ao passo que a maior expansão da população em relação ao emprego não é um problema demográfico, mas uma requisição inerente ao sociometabolismo do capital. O período de consolidação do projeto desenvolvimentista de industrialização converge justamente para o espraiamento da população economicamente ativa, ao passo que os ganhos relativos do salário no período abarcam uma pequena parcela dos assalariados. Se a participação nos ganhos de produtividade é pequena e converge no sentido de ampliação da pobreza relativa55, o não alcance dos benefícios do salário mínimo para grande parte da classe trabalhadora no período, sinaliza para o agravamento da pobreza absoluta. A questão distributiva, que em tese seria um instrumento de enfrentamento da pobreza, não era um tema de grande abordagem para JK (CAMPOS, 2007), o que se expressa na carência de políticas distributivas de renda no período. A via ideológica desenvolvimentista condensava o mote de que o crescimento econômico e a industrialização levariam à distribuição de renda e diminuição da desigualdade, o que não se processou, evidentemente. Stormowski (2011), em pesquisa sobre interpretações da pobreza no período desenvolvimentista, também atesta a concepção hegemônica no governo JK de que a prioridade absoluta ao crescimento econômico levaria a superação da pobreza. Esta seria resultado do ínfimo desenvolvimento tecnológico e do atraso social, e, portanto, do subdesenvolvimentismo. Deste modo, a superação do subdesenvolvimento era o que

55 A pobreza relativa designa a relação de proporcionalidade da divisão dos bens socialmente produzidos pelo trabalho, ao passo que o capitalista se apropria sempre de maior quantidade proporcional do valor produzido em relação à fração apropriada pela força de trabalho. 111

garantiria a superação da própria pobreza. O pan-americanismo, que assentava as bases político-ideológicas da formação de alianças entre os países do continente americano, estava na base do discurso juscelinista quanto à defesa do desenvolvimento econômico como única forma de combater à pobreza. Assim, a defesa de uma união americana para formação de uma superpotência do continente seria alternativa ao suposto perigo comunista, sendo a pobreza retratada como um “risco social”. Ou seja, a pobreza aparece incorporada ao discurso governista muito mais em função de contingências políticas, do que da perspectiva de uma abordagem institucional-interventiva sobre o fenômeno (STOMOWSKI, 2011). Se por um lado tal período foi amplamente favorável ao capital, a ideia do “Brasil Moderno” mesmo como expressão do projeto de classe burguês para o Brasil abria flancos ao acirramento dos conflitos, à contradição, à ampliação do debate e da movimentação política. A questão do desenvolvimento se tornou um tema amplo de debate no período e se colocava em pauta nos mais diversos campos políticos, teóricos e ideológicos do país. Interessa-nos refletir um pouco acerca do papel da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e a discussão da superação do subdesenvolvimento.

2.2.1 O desenvolvimento capitalista visto pela CEPAL

Como parte da estratégia imperialista de expansão capitalista do Pós-Segunda Guerra Mundial, a CEPAL foi criada em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de fomentar a cooperação de modo a contribuir para o desenvolvimento do capital na América Latina. Surgida no contexto de difusão da ideologia do desenvolvimento, a CEPAL trazia no núcleo central de sua doutrina a temática do desenvolvimentismo, buscando influenciar os países membros no que diz respeito aos empreendimentos e transformações necessárias para alcançar o “desenvolvimento”. Marini (2010) aponta que, na verdade, a CEPAL era a própria agência de difusão da teoria do desenvolvimento surgida nos EUA e na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Essa teoria tinha, então, um propósito definido: responder a inquietude e à inconformidade manifestadas pelas novas nações que emergiram para a vida independente, a partir dos processos de descolonização, ao se darem conta das enormes desigualdades que caracterizavam as relações econômicas internacionais (MARINI, 2010, p. 104).

112

A CEPAL se situa no âmbito dessa estratégia de transformar o desenvolvimento em um alvo a ser perseguido pelas nações emergentes no cenário mundial, sendo uma espécie de “instituição local/regional” apta a desenvolver estudos, projetos, pesquisas e diretrizes que auxiliassem esses países, técnica e politicamente, rumo ao desenvolvimento. A Comissão era constituída, mormente, por intelectuais latino-americanos, como Celso Furtado e Raul Prebisch, que buscavam compreender os principais problemas do continente e os gargalos estruturais que se colocavam nestes países como óbices ao desenvolvimento, onde a industrialização seria uma necessidade básica e premente para superação do subdesenvolvimento. A CEPAL surge em um contexto onde as principais economias imperialistas do mundo buscavam reordenar as relações capitalistas mundiais no Pós-Segunda Guerra Mundial e agregar forças ao bloco capitalista, assimilando as economias periféricas ao capitalismo monopolista. Apesar de ter sido criada em tal contexto, a CEPAL não coadunava com muitas das recomendações de outros organismos articuladores do expansionismo capitalista como o FMI e o Banco Mundial, inserindo-se numa relação conflituosa e ampla de contradições, de modo que por muito tempo não era bem vista pelos próprios Estados Unidos. Apesar dos limites tangentes do pensamento clássico da CEPAL, sobretudo nas dualidades subdesenvolvimento- desenvolvimento, setor atrasado-setor moderno, como veremos adiante, a CEPAL elaborou uma crítica importante quanto às relações entre países periféricos e centrais, sempre demonstrando as desvantagens impostas pelo mercado mundial para os primeiros. Para a Comissão, a superação do subdesenvolvimento viria pela industrialização planejada e implementada pela ação estatal. Neste particular, é preciso notar que a tradição desenvolvimentista clássica da Cepal avaliava que a pobreza e a desigualdade eram profundamente marcadas pelo baixo dinamismo da demanda por mão de obra, “caracterizada pela insuficiência dinâmica, um fenômeno típico das economias subdesenvolvidas e pré- capitalistas” (BURGINSKI, 2016). Desse modo, a pobreza era um componente daquele estágio de desenvolvimento capitalista, ainda insuficiente para solucionar a dinâmica do empobrecimento. A pobreza é entendida como resultado da insuficiência do próprio crescimento econômico e, sua superação, estaria relacionada ao próprio movimento de industrialização e expansão do capitalismo a patamares supostamente plenos de desenvolvimento. De acordo com Carcanholo (2010), no plano teórico, uma das maiores contribuições da CEPAL foi a crítica à teoria (neo)clássica do comércio internacional, cuja base se 113

assentava na hipótese das vantagens comparativas, segundo a qual as relações comerciais entre dois países ou mais é sempre benéfica, mesmo que um deles detenha maior potencial de produtividade do trabalho. Isto por que presumia que o próprio processo de trocas comerciais levaria a intensa especialização de cada país na produção de um dado produto, o que acarretaria vantagens para cada ente envolvido. A CEPAL demonstrava, se contrapondo a tal teoria, que havia uma tendência à deterioração dos termos de troca, desde 1870, que acarretava transferência de renda dos países periféricos em direção ao centro capitalista. A proposta do pensamento clássico da CEPAL incluía medidas corretivas no plano do comércio internacional aliadas a uma política\estratégia econômica pró- industrialização, baseada no processo de substituição de importações, que promovesse o desenvolvimento e o fim ou pelo menos a redução da dependência em relação aos mercados internacionais. Essa proposta desenvolvimentista fornecia ao Estado um papel central na medida em que ele seria o responsável pelo planejamento desse desenvolvimento e por implementar a estratégia\política econômica adequada ao esforço industrializante (CARCANHOLO, 2010, p. 120).

Segundo Burginski (2016), os estudos da CEPAL foram os primeiros a conter densidade teórica e deu origem ao chamado pensamento estruturalista latino-americano. A tese da troca desigual e a dualidade centro-periferia “se configurou na teoria de batismo do estruturalismo latino-americano da CEPAL” (BURGINSKI, 2016, p. 105). A tese da troca desigual objetiva demonstrar a tendência de disparidade no intercâmbio entre os países do capitalismo central e periféricos, sendo que a CEPAL apontava que a desigualdade de aportes tecnológicos seriam a principal causa do subdesenvolvimento dos países latino-americanos. A dualidade centro-periferia apresentava uma concepção estanque sobre as relações capitalistas no mercado mundial contrapondo arcaico e moderno. O princípio da heterogeneidade estrutural também compunha o rol explicativo do pensamento clássico cepalino. Este princípio apontava que os países centrais detinham uma maior produtividade do trabalho por terem desenvolvido mais rapidamente suas tecnologias, assim como aumento da renda e do consumo da população nestes países. Já na periferia, o progresso técnico e o aumento da produtividade do trabalho se deram de forma exígua em poucos setores da economia. Assim, a industrialização retardatária, o parco desenvolvimento tecnológico e a quase inexistência de poupança interna estariam no cerne da condição de subdesenvolvimento dos países latino-americanos, apontando a necessidade de modernização da indústria nacional e, inclusive, reconhecendo a burguesia nacional como o sujeito apto a realizar o projeto de desenvolvimento nacional. 114

Inicialmente, a CEPAL não recebe muito apoio da ONU, contando com instalações simples e recursos modestos. Segundo Burginski (2016), a partir dos anos 1950 é que a CEPAL começa a ganhar algum prestígio com os países latino-americanos, sobretudo a partir da chegada de Raul Prebich56 na Comissão e o aguçamento das discussões teóricas no âmbito da Comissão. No Brasil, Vargas, em seu segundo governo, passa a adotar muitas das diretrizes cepalinas, sobretudo no que diz respeito à política pró-industrialista (BURGINSKI, 2016). Ocupando importante função em difundir e adensar os debates desenvolvimentistas no América Latina, o pensamento clássico da CEPAL acabou por ser uma importante ideologia burguesa que pleiteava a direção social do desenvolvimento capitalista no Brasil, sobretudo nos anos 1950-1960, que mudou fundamentalmente a expansão imperialista, difundindo o modo de vida, no bojo do modelo produtivo fordista, como contratendência à queda da taxa de lucro sistêmica. O prestígio da Cepal aumentou, enquanto intelligentsia dos países latino- americanos, à medida que se constituía, em meio a um vazio teórico, no sentido da necessidade de uma sistematização em defesa do desenvolvimento econômico pela via da industrialização, que levasse em consideração as especificidades dos países latino-americanos. É preciso esclarecer que a Comissão não introduziu o pensamento desenvolvimentista, mas a sua criação possibilitou certa sistematização do debate desenvolvimentista já em curso, antes dos finais da década de 1940 (BURGINSKI, 2016, p. 96).

De fato, se o teor do intenso debate promovido pela CEPAL trazia a diretriz do planejamento estatal para intervenção deliberada nas relações econômicas e desenvolvimento industrial do país, o desenvolvimentismo ancorava os fundamentos para os quais o Estado deveria canalizar essas intervenções: o próprio desenvolvimento nacional. O desenvolvimento, para a CEPAL, era inconcebível sem o franco intervencionismo estatal. Grosso modo, o Estado tinha papel central na condução das diretrizes necessárias. O próprio processo de planejamento estatal ou planificação era vital para consolidar as políticas

56 Raúl Prebisch foi um importante economista latino-americano que durante esses anos de incremento capitalista na América latina ocupou variados postos em organismos governamentais e multilaterais. Uma breve trajetória profissional sinaliza que ele se formou em Ciências Econômicas na Universidade de Buenos Aires em 1922 e a partir de 1923 começou sua atividade docente na Instituição, que perdurou até 1948. Desenvolveu variadas funções no governo argentino: subdiretor da Direção de Estatística (1925 a 1927); diretor de pesquisas econômicas no Banco da Nação (1927 a 1930); subsecretário da Fazenda e Agricultura (1930 a 1932); conselheiro, nesses dois ministérios, a partir de 1933 e, entre 1935 e 1943, foi fundador e primeiro diretor-geral do Banco Central da . No sistema das Nações Unidas, Prebisch• foi secretário-executivo da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), de 1950 a 1963, e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) de 1963 a 1969. A partir de 1976, tornou-se responsável pela Revista da CEPAL (ENCICLOPÉDIA LATINOAMERICANA). Disponível em: http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/p/prebisch-raul. Faleceu em abril de 1986. 115

econômicas pró-crescimento, induzindo uma política industrialista, fomentando expandir o mercado interno, racionalizar, direcionar e incentivar a indústria local. Retomando o mote da discussão sobre o avanço do desenvolvimento capitalista no período JK, podemos indicar que o pensamento Cepalino e suas indicações quanto a alguns pontos nodais que deveriam ser objeto da intervenção planejada do Estado influenciou de modo significativo à elaboração do Plano de Metas. Segundo Maranhão (2009), já em 1953 havia sido criado um grupo misto composto por técnicos do Banco Nacional de desenvolvimento Econômico (BNDE) e da CEPAL, sob liderança de Celso Furtado, no contexto da necessidade de avanço da industrialização intensiva no Brasil. O grupo tinha como “propósito esclarecer, divulgar e complementar os pontos desenvolvidos pela Comissão Mista Brasil-EUA com vistas a elaborar um ‘programa de metas desenvolvimentistas para o período de 1955-1962” (MARANHÃO, 2009, p. 131). Segundo Ianni (1977), tratava-se de avançar no que dizia respeito aos trabalhos anteriores realizados pelas várias equipes da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, “cujas atividades haviam sido encerradas em 1953” (IANNI, 1977, p.131). O material resultante deste processo desembocou na estruturação do próprio Plano de Metas, em que “se confirmava as áreas prioritárias da economia a serem contempladas com o volume de investimentos do Estado já indicadas pelo Grupo misto BNDE-CEPAL: energia, transportes e insumos básicos” (MARANHÃO, 2009, p. 132). Em grande medida, o debate geral da CEPAL e seu papel na entronização definitiva do desenvolvimentismo no léxico teórico e político-ideológico da região foi de suma importância na consecução das propostas desenvolvimentistas do período JK, ao “construir teses que respaldassem os projetos dos governos desenvolvimentistas na América Latina”(BURGINSKI, 2016, p. 104). Mas, é necessário apontar que, a despeito do papel que a Comissão exerceu no sentido da concretização do intervencionismo estatal e do próprio desenvolvimentismo, a CEPAL também teve um papel importante no sentido de denúncia acerca da exploração dos países do continente pelas economias centrais e algumas de suas indicações não foram assimiladas pelo governo. É evidente que não existia uma relação direta e rígida entre estudos, teorias e diretrizes apontas pela CEPAL e a sua realização por parte do Estado, apesar de, como já dissemos, a doutrina Cepalina ter sido assimilada pelos governos desenvolvimentistas. Assim, pode-se dizer que existiam divergências claras entre o pensamento da CEPAL e as medidas implementadas pelo governo JK, por exemplo. Uma das questões mais tangentes em relação a isso seria a relação com o capital estrangeiro, quando a Comissão passa a recomendar o 116

estabelecimento de limites aos investimentos estrangeiros no país com o controle do Estado sobre a entrada e saída de capitais. Existia, portanto, a nítida direção político-teórica e técnica da CEPAL no sentido da defesa estatal da indústria nacional e, portanto, a perspectiva do protecionismo estatal como forma de garantia da constituição de um desenvolvimento capitalista autônomo e soberano para os países latino-americanos, no caso em análise, isto ficava muito claro a partir das determinações e recomendações do Grupo Misto BNDE-CEPAL. A orientação do desenvolvimentismo do período JK tornava evidente que, ainda que se efetivasse claramente o intervencionismo estatal, a participação do capital estrangeiro teria intenso impacto no padrão de acumulação que se constituía no Brasil. Tal padrão colocava em novas bases a condição de dependência do país em relação às economias centrais. É preciso deixar claro que se processou um projeto de desenvolvimento associado, isto é, em junção com o próprio capital nacional, que em alguns casos já detinha concentração e centralização suficiente para atuar como capital monopolista. Assim, o capital privado nacional não era prejudicado com a associação com o capital estrangeiro, já que isso permitiu em larga escala grande expansão do capital no Brasil, favoreceu a indústria nacional colocando-as em contato com a tecnologia mais avançada e favorecia o contato com a resolução de problemas técnicos e financeiros. A burguesia nacional não se importava em perder autonomia e independência, em suma, não se importava em contribuir por reproduzir a subserviência do Brasil aos ditames do capital internacional, contanto que fosse beneficiada imediatamente, consolidando seus próprios negócios capitalistas e sua condição como classe dominante no país. Se o pensamento Cepalino da década de 1950 apresentava limites tangentes em suas categorias de análise para pensar a condição periférica e dependente dos países latino- americanos, o teor anti-imperialista e a perspectiva de constituição de um desenvolvimento regional autônomo para a América Latina também foram importantes marcos para a constituição de um pensamento econômico latino-americano voltado para suas necessidades específicas. Na década de 1960, a CEPAL passa por um processo de auto-crítica importante naquela direção. Tal fato, sem dúvidas se dá na esteira dos debates que a teoria da dependência fomentou no contexto latino-americano. A constituição de um capitalismo dependente e periférico na América Latina, mormente no Brasil, se processou numa dinâmica histórica de continuidades e rupturas. Tanto a CEPAL como os teóricos da teoria da dependência, assim como outros autores importantes que pensaram a nossa formação socioeconômica tiveram sua parcela de contribuição para 117

pensar esse padrão de desenvolvimento do capitalismo no continente e, particularmente no nosso país. A seguir, vamos nos deter um pouco na reflexão dessa categoria teórica – o capitalismo dependente – pesando os pontos centrais dessa condição.

2.2.2 O desenvolvimento capitalista à luz da Teoria Marxista da Dependência

O padrão de desenvolvimento capitalista que se consolidou no Brasil é um tema que suscita sempre grandes discussões. Diversas categorias foram problematizadas de modo a explicitar as condições concretas e peculiares do desenvolvimento do capital no Brasil. Conforme demonstramos de início, nossa opção se centra na análise desse processo a partir da categoria capitalismo dependente periférico. Neste sentido, este conceito é ao mesmo tempo estrutural e histórico: define-se como parte de um determinado “sistema de produção”, para usar a expressão pela qual Florestan o designava preferencialmente (o capitalismo); como parte deste “sistema” num determinado momento do seu desenvolvimento na história (o capitalismo monopolista); e como parte que é uma de suas especificidades nesta fase (parte heterônoma ou dependente do capitalismo monopolista). Florestan não formula uma “teoria da dependência”. Sua formulação do capitalismo dependente constitui uma contribuição teórica à teoria do desenvolvimento capitalista (CARDOSO, 1995, p. 2).

Fernandes (2005) cunha a categoria capitalismo dependente para precisar a particularidade da natureza, estrutura e desenvolvimento do capitalismo na América Latina. De acordo com o autor, o capitalismo dependente nas nações periféricas “absorve” os traços estruturais do capitalismo que caracterizam este modo de produção, quais sejam: a economia mercantil, o mais-valor relativo e a emergência de uma economia competitiva diferenciada ou de uma economia monopolista articulada, ou seja, absorve as uniformidades fundamentais, sem as quais a parte dependente da periferia não seria capitalista. No entanto, essas uniformidades – que não explicam a expropriação capitalista inerente à dominação imperialista e, portanto, a dependência e o subdesenvolvimento – se superpõem diferenças fundamentais, que emanam do processo pelo qual o desenvolvimento capitalista da periferia se torna dependente, subdesenvolvido e imperializado, articulando no mesmo padrão as economias capitalistas centrais e as economias periféricas (FERNANDES, 2005, p. 339-340).

A consolidação do capitalismo dependente nas nações periféricas do sistema do capital, como os países da América Latina, e particularmente o Brasil, não é uma mera condição ou um “acidente” histórico. “A articulação estrutural de dinamismos conômicos 118

externos e internos requer uma permanente vantagem estratégica do pólo econômico hegemônico, aceita como compensadora, útil e criadora pelo outro pólo” (FERNANDES, 1975, P. 54). O capitalismo dependente é o próprio padrão de desenvolvimento do capital em certos países, que demarca não apenas seu lugar e papel na divisão internacional do trabalho, como também determina uma série de particularidades internas balizadas pelas relações das classes sociais. Portanto, capitalismo dependente não é uma realidade estanque, uma condição imanente das próprias estruturas econômicas internas. Antes, se constitui numa realidade complexa, dinâmica, que carrega um feixe de determinações tanto em nível sistêmico, do ponto de vista das vantagens que essa realidade coloca para os países centrais em relação aos países periféricos, quanto das próprias condições internas e a opções do próprio projeto de classe das elites dominantes do país. A constituição de países de capitalismo dependente somente pode se dá na constituição da própria estrutura totalizante do capital, que a despeito das teorias dualistas, não cria estruturas independentes contrapostas bilateralmente, mas que ao consolidar um sistema mundial pautado no domínio do capital, engendra padrões particulares do desenvolvimento que asseguram o domínio dos países cujas forças produtivas alcançaram um nível mais avançado e onde a acumulação do capital permite e exige a exploração de outras nações. Isso para garantir que o capitalismo que se desenvolva em tais nações seja propício e vantajoso para o padrão de dominação e acumulação dessas nações dominantes. Assim, a constituição dos países enquanto Estados Nacionais é processo crucial na determinação de sua condição no circuito mundial do capital. É neste sentido, que Fernandes (1975) elucida os mecanismos presentes desde a colonização até o imperialismo total como processo contínuo e dinâmico pelo qual os países latino-americanos passam da condição de colônias a países periféricos do sistema, como capitalismo dependente. Ou seja, se o capitalismo dependente implica, necessariamente, dadas formas de dominação externa, ao longo do tempo ela se manifestou nos países do nosso continente como: colonialismo, neocolonialismo, imperialismo e imperialismo total. É com a constituição do imperialismo que a o capitalismo dependente se tornou um realidade histórica efetiva na América Latina (FERNANDES, 1975). A superação da condição colonial permite que a destruição completa das estruturas coloniais para emergência da “ordem competitiva” e que se permite avançar de modo implacável para a ordem capitalista, faz surgir economias auto-suficientes e autônomas. Por outro lado, quando a superação do status colonial é um processo impreciso, incompleto, onde 119

as estruturas de dominação externas são apenas parcialmente superadas, as estruturas arcaicas – econômicas, políticas e sociais – passam a conviver com as estruturas modernizantes, culminando em economias heterogêneas cuja incapacidade de expandir a força modernizadora para os campos diversos da economia, cultura, e política de um país se forjam algumas das condições peculiares que conformam o capitalismo dependente (IDEM). Nos termos de Fernandes (1975, 2005) o capitalismo dependente se reproduz na realidade brasileira imbuído do tipo de dominação burguesa que por aqui se constituiu. Ao longo da nossa histórica essa forma de dominação convergente e necessária ao capitalismo dependente esteve assentada numa dupla articulação, conforme já indicamos: a dominação externa e a desigualdade interna. Assim, dependência, heteronomia e ritmos desiguais de crescimento e desenvolvimento interno constituem fundamentos essenciais do padrão capitalista aqui constituído. Para Fernandes (2005) essa forma de dominação burguesa à brasileira exerce três funções centrais: preservar e fortalecer as condições econômicas, socioculturais e políticas pelas quais se pode renovar e revigorar o poder burguês; ampliar e aprofundar a incorporação estrutural e dinâmica da economia brasileira no mercado; preservar, alargar e unificar os controles diretos e indiretos da máquina do Estado. A condição da dependência, sob essa forma de dominação burguesa, converge para um tipo de polarização social, donde a intransigência da classe burguesa em relação à participação da classe trabalhadora nos processos de reformas da sociedade brasileira. Conforma um quadro geral de grande instabilidade econômica, política e social, assentado numa intensa exploração do trabalho, já que há necessidade constante de financiamento do escoamento de excedente para as economias centrais. Fernandes (1975) traça uma importante caracterização do capitalismo dependente que vale reproduzir. Primeiro, a concentração de renda, do prestígio social e do poder nos estratos e nas unidades ecológicas ou sociais que possuem importância estratégica para o núcleo hegemônico de dominação externa. Segundo, a coexistência de estruturas econômicas, socioculturais e políticas em diferentes ‘épocas históricas’, mas interdependentes e igualmente necessárias para a articulação e a expansão de toda a economia, como uma base para a exploração externa e para a concentração interna da renda, do prestígio social e do poder (o que implica a existência permanente de uma exploração pré ou extracapitalista, descrita por alguns autores como ‘colonialismo interno’). Terceiro, a exclusão de uma ampla parcela da população nacional da ordem econômica, social e política existente, como um requisito estrutural e dinâmico da estabilidade e do crescimento (FERNANDES, 1975, p. 20).

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De modo geral, o capitalismo dependente é pouco dinâmico – no sentido de realizar a complexificação de suas forças produtivas autonomamente – e eminentemente mais instável, já que está amplamente suscetível às flutuações do capital externo, na ponta mais fraca da corda do cabo de forças do mais-valor. A canalização de riquezas para o exterior, além de demandar uma superexploração da classe trabalhadora, provoca uma intensa perda de patrimônio nacional. Deste modo, a organização das relações capitalistas na realidade dependente compreende um quadro de exploração e expropriação que onera duplamente a classe trabalhadora e os assalariados de um modo geral. Sampaio Jr (1997) traz algumas contribuições que corroboram com as reflexões sobre o laço intrínseco entre capitalismo dependente e dominação burguesa do tipo ultra conservadora e até anti-nacionalista. Para ele, o capitalismo dependente é um capitalismo sui generis, que se caracteriza “pela reprodução de uma série de nexos econômicos e políticos que bloqueiam a capacidade de as economias controlarem seu tempo histórico” (SAMPAIO JR., 1997, p. 100). A posição subalterna determinada pela vigência da dependência e a consequente falta de controle social interno sobre a dinâmica constitutiva do desenvolvimento das forças produtivas comprometem largamente as funções históricas de uma possível burguesia progressista, capaz de encabeçar um projeto de revolução democrática-nacional, exacerbando suas características anti-sociais, anti-nacionais e antidemocráticas (IDEM). O que particulariza, em termos histórico-estruturais, a condição de dependência, conforme designação de Carcanholo (2008), seria: (i) o fato empírico recorrente de perda nos termos de troca, ou seja, a redução dos preços dos produtos exportados pelas economias dependentes — geralmente produtos primários e/ou com baixo valor agregado — em face dos preços dos produtos industriais e/ou com maior valor agregado importados dos países centrais, em um verdadeiro processo de transferência de valores; (ii) a remessa de excedentes dos países dependentes para os avançados, sob a forma de juros, lucros, amortizações, dividendos e royalties, pela simples razão de os primeiros importarem capital dos últimos; (iii) a instabilidade dos mercados financeiros internacionais, geralmente implicando altas taxas de juros para o fornecimento de crédito aos países dependentes e colocando os países dependentes periféricos à mercê do ciclo de liquidez internacional (CARCANHOLO, 2008, p. 254-255).

O capitalismo dependente nada mais é do que capitalismo, mas o capitalismo em uma de suas formas histórico-concretas particulares, engendradas pelo próprio desenvolvimento capitalista. Ele é resultado e condição da expansão imperialista que se assenta na estrutura sistêmica, que assimétrica e contraditoriamente engendra relação de dominação e exploração. Apesar da contribuição inequívoca da CEPAL em apontar a condição de subdesenvolvimento na América Latina, e até mesmo apresentar determinada direção anti- 121

imperialista, é na chamada teoria da dependência marxista que as condições e consequências do capitalismo dependente vivenciado na América Latina receberá uma análise mais densa e uma crítica profunda, sobretudo a partir de intelectuais de grande peso como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vania Bambirra, entre outros. Antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer, conforme destacam Prado e Meireles (2010), que dentro do marco teórico da dependência não há (nem houve) um pensamento homogêneo, isto é “não há uma única teoria da dependência, mas sim diferentes interpretações sobre o tema” (PRADO e MEIRELES, 2010, p. 171). As condensações e desdobramentos teóricos, em outros termos, a potencialidade analítica acerca da dependência vieram justamente das disputas teóricas e políticas em torno do tema na década de 1960 e 1970. Não descartando a existência de outras perspectivas de análises e espectros políticos, pode-se recorrer a uma divisão simplificada em duas correntes dependentistas: os “dependentistas reformistas” e “dependentistas marxistas-revolucionários”.57 A principal diferença entre os dois grupos estaria na impossibilidade de conciliação política derivada de suas análises, uma vez que: os dependentistas reformistas seriam orientados pelos preceitos modernizadores e desenvolvimentistas, enquanto para os dependentistas marxistas, somente pela via da revolução socialista na América Latina seria possível a superação dos problemas intrínsecos à condição periférica (KAY apud PRADO e MEIRELES, 2010, p. 171).

Corroborando esta linha de análise, Traspadini e Stedile (2005) indicam que [...] a Escola da Dependência abre, essencialmente, um debate e um enfrentamento direto entre duas correntes de pensamento e de luta política concreta: por um lado, o marxismo na América Latina, evocado pela luta organizada dos trabalhadores do continente a partir de um novo enfoque de desenvolvimento pautado; no fim da propriedade privada; da exploração do trabalho e do Estado como comitê da burguesia. Por outro lado, os defensores do capitalismo e críticos do marxismo, sustentando a necessidade de uma relação direta interdependente entre países mais avançados e menos avançados tecnologicamente, para que ambos pudessem lograr um salto qualitativo em termos de desenvolvimento capitalista mundial (TRASPADINI e STEDILE, 2005, p. 29-30).

57 Entre os autores dependistas reformistas estão Fernando Henrique Cardoso, Osvaldo Sunkel, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, Aldo Ferrer e Aníbal Pinto. No outro grupo, que desenvolve uma visão marxista da dependência estariam Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, André Gubdee Frank, Oscar Braun, Vania Banbirra, Aníbal Quijanano, Edelberto Torres-Rivas, Tomás Amadeo Vasconi, Alonço Garcia e Antonia Garcia. Essa divisão e os respectivos autores apresentados como pertencentes a cada corrente é apresentada por Prado e Meireles (2010), a partir do esquema teórico de Cristóbal Kay, de 1989. Eles apontam que em relação aos marxistas, apesar da divisão de kay se mostrar muito completa, “deixa de fora alguns autores, que, estando uns mais outros menos influenciados pela noção de dependência, fizeram parte dessa corrente. Além dos mencionados, outros intelectuais são lembrados por Nildo Ouriques (1995, p,90): Orlando Caputo, Marta Harnecker, Julio Lopez, José Valenzuela Feijóo, Roberto Pizarro, Cristian Sepúlveda, Jaime Torres, Marco Aurélio Garcia, Guillermo Labarca, Antonio Sánchez, Marcelo Garcia e Jaime Osório (PRADO e MEIRELES, 2010, p. 171). 122

Para nossa análise, nos concentraremos na abordagem dos “dependentistas marxistas- revolucionários”, como Teoria Marxista da Dependência, por que favorece a compreensão do objeto dessa tese, na medida em que contribuiu para desvelar os processos histórico-concretos e político-econômicos que particularizam o desenvolvimento capitalista no Brasil, a partir das particularidades da condição de dependência do país no circuito mundial do capital. Assim, a Teoria Marxista da Dependência é uma interpretação histórica acerca da dinâmica capitalista que buscou decifrar as particularidades do capitalismo dependente, demonstrando o caráter predatório do capitalismo na América Latina e sua funcionalidade para expansão das economias centrais. Tal interpretação contribui significativamente para explicar os fundamentos do capitalismo dependente no continente, demonstrando o recurso à superexploração da força de trabalho aqui empreendida de modo a compensar o baixo desenvolvimento técnico e a produtividade pouco avançada do trabalho, com vistas a cobrir os custos da transferência de excedente para as economias centrais. A Teoria Marxista da Dependência tratou, assim, dos dilemas da América Latina no processo de sua inserção no capitalismo mundializado, desvelando as implicações e os fatores que culminaram na posição que estes países passam a ocupar na divisão internacional do trabalho. Se na década de 1950 a CEPAL representava o componente mais progressista da burguesia industrial brasileira, seu pensamento clássico começa a padecer de suas próprias limitações teóricas para explicar os processos cada vez mais complexos do desenvolvimento capitalista em expansão na América Latina e, particularmente, no Brasil. Na década de 1960 o contexto latino-americano apresenta uma estrutura político-econômica, social e cultural muito mais densa do que a década anterior, em que são expressões a inflação alta, os baixos salários, a informalidade do trabalho e a luta por reformas sociais. Em meados dos anos 1960 diversos golpes militares ganharam terreno e contribuíram para intensificar as mazelas do capitalismo dependente. É nesse contexto, de intensificação das contradições do desenvolvimento do capital, do certo vazio teórico deixado pela CEPAL, em fase de autocrítica e do terror imposto por ditaduras civil-militares, como foi o caso do Brasil, que a teoria da dependência marxista ganha espaço e envergadura na América Latina. Além da dura crítica da Teoria Marxista da Dependência aos limites teóricos e políticos da CEPAL, demonstrando o “porquê do desenvolvimento proposto pela CEPAL não ter condições de gerar, nas economias latinas, um outro processo de desenvolvimento menos desigual” (TRASPADINI e STEDILE, 2005, P. 29), os teóricos marxistas da Escola da 123

Dependência, também travaram um debate direto com os Partidos Comunistas (PCs) da América Latina (PRADO e MEIRELES, 2010).58 Grosso modo, a ideologia dos Partidos Comunistas latino-americanos se apoiavam numa teoria etapista do desenvolvimento capitalista, defendendo que os países subdesenvolvidos do continente estariam em estágios feudais ou semi-feudais. Nessa direção, a análise política dessa condição levava os PCs a defenderem a ideia de que seria necessário fomentar, por meio de uma aliança tática com as burguesias nacionais, o desenvolvimento capitalista, uma vez que os países do continente precisavam passar por uma revolução burguesa, antes de pensar na revolução proletária (IDEM). Para Santos (1978) a dependência é uma situação na qual um dado grupo de países tem sua economia condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra economia a qual está submetida, nas relações internacionais.

A relação de interdependência entre duas ou mais economias, e entre estas e o comércio mundial, assume a forma de dependência quando alguns países (os dominantes) podem expandir-se e autoimpulsionar-se, enquanto outros países (os dependentes) só podem fazê-lo como reflexo desta expansão, que pode atuar positiva e\ou negativamente sobre seu desenvolvimento imediato. De qualquer forma, a situação de dependência conduz a uma situação global dos países dependentes que os situa em atraso e sob a exploração dos países dominantes (SANTOS, 1978, p. 305).

De acordo com Marini (1973), é a partir das relações da América Latina com os países de capitalismo central e a sua inserção na divisão internacional que se demarca o desenvolvimento específico da região. A dependência é explicada pelo autor: como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. (MARINI, 1973, p. 141).

É no bojo da Teoria Marxista da Dependência que o autor problematiza o processo de desenvolvimento capitalista e a dialética que o preside, na medida em que articula, contraditoriamente, intensiva acumulação de capital e desenvolvimento em certas regiões e subdesenvolvimento em outras. Assim, o subdesenvolvimento não seria apenas uma etapa a ser superada através de intervenções articuladas de modernização e industrialização, conforme as designações da CEPAL nas décadas de 1950-1960, por exemplo. Antes, é uma

58 “No interior do pensamento da esquerda, confrontaram-se, na década de 1960, principalmente quatro correntes ideológicas: os partidos comunistas vinculados à Terceira Internacional, o foquismo, a CEPAL e a Escola da Dependência” (TRASPADINI e STEDILE, 2005, p. 17). 124

característica antagônica e ao mesmo tempo necessária, na lógica global da acumulação capitalista. Em sua abordagem teórico-metodológica, Ruy Mauro Marini aborda temas centrais para pensar a dialética da dependência, como a questão da troca desigual e a superexploração do trabalho. Para Marini (1973), as relações entre nações de capitalismo central e os países de capitalismo dependente são marcadas por assimetrias e transferência de valor e riqueza destes últimos para os primeiros. Tais processos “correspondem a aplicações específicas das leis de troca” ou “mais abertamente o caráter de transgressão delas” (MARINI, 1973, p. 151). Segundo o autor, em tese, o intercâmbio de mercadorias expressaria a troca de equivalentes. Na prática, tais processos podem assumir outra direção, em que “diferentes mecanismos [...] permitem realizar transferências de valor, passando por cima das leis de troca, e que se expressam na forma como se fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias” (IDEM). Neste sentido, em função da maior produtividade do trabalho, um determinado país pode apresentar preços de produção abaixo daqueles apresentados por seus concorrentes, sem baixar os preços de mercado de seus produtos. “Isso expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário, similar ao que constatamos ao examinar de que maneira os capitais individuais se apropriam do fruto da produtividade do trabalho” (MARINI, 1973, p151-152). As relações em que nações trocam categorias distintas de mercadorias, como por exemplo, manufaturas e matérias-primas implicam em diferentes formas de apropriação do valor, com evidentes vantagens para aqueles com maior valor agregado, conforme exposto pela lei geral da acumulação capitalista, por Marx. A troca desigual coloca, evidentemente, as nações com menor nível técnico de produtividade do trabalho em desvantagem sobre aqueles com maior desenvolvimento das forças produtivas. Para os capitalistas nacionais individuais esse processo precisa, necessariamente, ser contrabalanceado de alguma forma. Ou seja, necessita-se produzir uma massa maior de valor para compensar o valor transferido para as nações de industrialização avançada. O mecanismo principal acionado pelas economias dependentes é o aumento na exploração do trabalho. Para explicar essa condição, Marini (1973) cunha a categoria superexploração do trabalho, que se realiza mediante três mecanismos principais: a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário, isto é, aquela parte do valor-trabalho que o trabalhador necessita para repor sua força de trabalho. 125

A superexploração do trabalho é, para o autor, o fundamento básico da contradição que direciona o desenvolvimento do capitalismo dependente, estando no cerne do processo de industrialização da América Latina. Marini (1973) aponta que por volta de 1950, quando o mundo capitalista já havia se recuperado da grave crise que assolava o mundo desde 1910, é que se intensifica, sob a égide estadunidense, o fluxo de capital para a periferia, especialmente, para a indústria, onde as condições históricas da dependência assumem novas determinações. A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da produção industrial (observa-se que a siderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia industrial clássica, generalizou-se a tal ponto que países como o Brasil já exportam aço), sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas mais avançadas ( como a produção de computadores e a indústria eletrônica pesada em geral, a exploração de novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.) e o monopólio da tecnologia correspondente. [...] O que temos aqui é uma nova hierarquização da economia capitalista mundial, cuja base é a redefinição da divisão internacional do trabalho (MARINI, 1973, p. 174- 175).

Nessa reflexão, retomamos o mote de nossa análise quanto ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil adensando nossa abordagem quanto ao período JK e o significado do processo de industrialização realizado no período. Ratificamos o caráter não apenas contraditório, mas repleto de determinações quanto à reprodução da condição de dependência num contexto em que o capital mundial expande suas fronteiras em direção aos países dependentes. Nossa passagem pelos matizes de pensamento que, sobre aspectos diferenciados, contribuíram para pensar a lógica da dependência ilumina nossas reflexões sobre as disputas, assimetrias, contradições, divergências e particularidades que envolvem o desenvolvimento capitalista. Na sequência, retomamos o fio histórico que vinha conduzindo nossa exposição, analisando os rumos do desenvolvimento capitalista no Brasil entre o início da década de 1960 e a intensa movimentação política, social e cultural pelas transformações estruturais.

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2.2.3 A Ditadura civil-militar e o aprofundamento do padrão dependente de acumulação capitalista

A transição da década de 1950 para 1960 é, com certeza, um período de forte expansão das lutas sociais, dos movimentos e disputas políticas, que se expressam, sobretudo, ao tempo do governo de João Goulart. Tanto na cidade como no campo, movimentos sociais de amplo alcance e mobilização entraram definitivamente na arena dos conflitos sociais de classes, sob a pauta das reformas estruturais ou reformas de base, após trinta anos do ciclo de substituição de importações e expansão da dinâmica urbano-industrial do país. É possível dizer que estavam em plena disputa pela direção social do Estado e da sociedade projetos contraditórios liberais-conservadores, que defendiam organizar e expandir a economia do país com base na associação com o capitalismo mundial; nacional-democráticos, defensores de uma via de desenvolvimento destinada a impulsionar a formação de um “capitalismo nacional”; e nacional-socialistas, que reunia adeptos da socialização dos meios de produção, sem uso da violência, passando pela estatização progressiva da economia para chegar a organização socialista da produção (IANNI, 1977). As eleições presidenciais de 1960 levaram à presidência da República Jânio Quadros, para um governo que durou apenas sete meses. A direção que começava assumir seu governo o colocava em franco confronto com forças sociais que o apoiaram, gerando uma grave crise que culminou na sua renúncia em 25 de agosto de 1961. Oliveira (1980) chama atenção para o fato de que as presidências de Quadros e Goulart foram prisioneiras da crise que foi detonada no último ano do governo JK. Uma crise de concentração de capital fundada na contradição entre um padrão de acumulação que se fundava no Departamento III e as bases fracas internas do Departamento I59. No cerne dessa crise, que revelava a exponenciação das contradições que estavam na estrutura do governo JK, acrescentou-se a grave crise política gerada pela renúncia de Jânio Quadros e em torno de João Goulart assumir o governo. Em outros termos, tornaram-se claros os limites do projeto desenvolvimentista do período anterior, bem como as consequências do

59 No volume 2 de O Capital, Marx formula o conceito de “departamentos econômicos” para pensar a reprodução ampliada do capital em escala nacional: Departamento I – produtor de meios de produção, e o Departamento II – produtor de meios de subsistência. Barbosa (2012, p.) assinala que esse esquema é reelaborado por Michal Kalecki, que “desmembrando o segundo departamento econômico (originalmente trabalhado por Marx) em Departamento II, produtor de bens de consumo corrente e Departamento III, produtor de bens de consumo duráveis” traz novas determinações importantes para pensar a reprodução do capital e a distribuição do valor em três departamentos. 127

padrão de desenvolvimento adotado, que se assentava fortemente no endividamento externo e interno. Além do mais, tornavam-se explícitos os paradoxos existentes entre a expansão industrial e a piora das condições de vida dos trabalhadores, sem aumento real no salário e a conformação incipiente das políticas sociais, restritas às instituições assistenciais ou àquelas relacionadas ao estatuto assalariado formal, ou seja, exclusivos aos trabalhadores com carteira assinada, como a saúde e a previdência social, por exemplo. Em suma, estavam postas as condições de uma grave crise social e econômica. Exaurindo-se o ciclo de expansão que durou até o fim dos anos 1950, o que se observa é a diminuição dos investimentos e da entrada de capital externo, somados a quedas nas taxas de lucro e agravamento da inflação (IANNI, 1977). O governo Goulart tinha uma grande missão pela frente. Para enfrentar todos os desafios postos, o governo assume, deliberadamente, o princípio da planificação que se expressou, sobretudo, no chamado Plano Trienal. Para Ianni (1977), este Plano que deveria ser executado nos anos 1963-1965, foi o primeiro instrumento concreto de política econômica global e globalizante formulado pelo governo brasileiro. O Plano Trienal foi elaborado por Celso Furtado, então Ministro do Planejamento, que contou com a contribuição de San Thiago Dantas,60 Ministro da Fazendo à época. O objetivo do Plano era combater a inflação que assolava o país e implementar uma política de desenvolvimento que garantisse o retorno do crescimento, fomentando o investimento interno. Além disso, o Plano procurava determinar regras para controlar os déficits do poder público. Toledo (2004) aponta que o Plano foi recebido de início com bons olhos pelos empresários industriais, mas sofreu seus primeiros abalos com a pressão dos protestos sindicais, de setores da esquerda e setores nacionalistas. “As críticas se aprofundaram a partir do momento em que as consequências da política de eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo começaram a ter efeitos sobre os salários das classes populares” (TOLEDO, 2004, p. 16), onerando as condições de reprodução da força de trabalho. Além disso, o governo se envolveu na compra de usinas de energia norte-americanas, demonstrando ceder à pressão dos Estados Unidos, pela bagatela de 188 milhões de dólares. Esse foi o estopim para o fracasso eminente do Plano, de acordo com Toledo (2004). Em 1963 já se consolidava o malogro do Plano Trienal, visto não ter sido capaz de desacelerar a inflação e nem de alavancar o desenvolvimento.

60 Jornalista, advogado e político de filiação ao PTB. Foi deputado federal por Minas Gerais, e embaixador do Brasil na ONU, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. Sob o governo Goulart assumiu a Pasta das Relações Exteriores, inicialmente, e em 1963 foi nomeado Ministro da Fazenda. 128

Com o insucesso do Plano, Toledo (2004) afirma que o governo passou a perfilhar de modo mais enérgico a bandeira das reformas de base (agrária, bancária, fiscal, eleitoral, entre outras) propostas pelo governo João Goulart. As chamadas reformas de base constituíam os fundamentos do programa de governo do referido presidente, tornando-se bandeira política de sua gestão. Tal programa visava, na verdade, responder demandas históricas das lutas sociais por reformas estruturais no país, que tomavam formas de graves expressões da questão social. Naquele contexto, essas lutas assumem caráter radicalizado e pressionam o governo para assumir a agenda dessas transformações. Outras questões importantes que despontavam no cenário da mobilização social passam a compor também o rol de propostas para as reformas de base, como organização urbana, sistema universitário e regulamentação do capital estrangeiro no país. Ademais, sujeitos políticos importantes, protagonistas das lutas sociais mais progressistas da sociedade brasileira, passaram a ocupar cargos e espaços importantes do aparelho estatal. Nesse contexto se agravam “os antagonismos entre diferentes estratégias ou opções políticas de desenvolvimento” (IANNI, 1977, p. 127), ademais a crise que se aprofundava exprimia o adensamento dos “antagonismos entre os poderes da República, em especial o Executivo e o Legislativo” (IDEM, p.127). Na medida em que se estendia e complexificava a crise político- econômica, acentuava-se também o processo de politização das populações urbanas e rurais, tornando mais acirradas as lutas de classes. É no cerne da intensa vida política da sociedade brasileira e da consequente mobilização das classes sociais em prol de seus interesses divergentes que as dissidências entre Legislativo e Executivo se tornam explosivas. Disso é elucidativo o comício realizado no Rio de Janeiro em março de 1964. O comício arregimentou diversas forças políticas, sociais e culturais, juntando em praça pública um numero significativo da massa urbana populista, com a presença do próprio presidente João Goulart. Para Ianni (1977), estava em questão muito mais do que as reformas de base. O problema central era reestruturar o poder político e reelaborar as relações entre Estado e Economia, de modo a “reorientar os objetivos e os meios da política econômica governamental, de modo a alcançar-se a realização de uma fase superior no desenvolvimento econômico e social do país” (IANNI, 1977, p. 220). Essas disputas enveredavam por direções que poderiam pôr em risco o padrão de dominação vigente no Brasil, marcado por uma burguesa nacional ultraconservadora que utilizava do padrão de associação ao capital internacional o meio mais rápido e eficiente para garantir seu status quo. Uma mobilização sem precedentes na história do país, que envolvia 129

várias frentes de lutas urbanas e no campo, colocava na ordem do dia o perigo eminente de que o povo pudesse, enfim, participar da definição dos rumos do país. Além do mais, o contexto internacional também se mostrava muito propício à onda de contestação do imperialismo e da própria condição de dependência e subordinação do país no cenário mundial, que se expressava em acentuada exploração do trabalho, pobreza, concentração de renda, ínfimas condições para que o processo de urbanização chegasse à maior parte da população, além das condições alarmantes do campo. Os ideais socialistas há tempos insuflava camadas de trabalhadores e intelectuais no sentido da luta contra o capitalismo. O mundo se via diante do “espectro do comunismo”. A hegemonia norte-americana temia pelos rumos das lutas sociais no continente latino-americano e pela influência “subversiva” do comunismo na região. No Brasil, esses processos se mostravam “perigosamente” explosivos para a manutenção da ordem estabelecida entre o país e as nações imperialistas. Nos termos de Netto (2009), o Golpe se configurou como uma contrarrevolução preventiva, cuja finalidade era tríplice: Adequar os padrões de desenvolvimento nacionais e de grupos de países ao novo quadro do inter-relacionamento econômico capitalista, marcado por um ritmo e uma profundidade maiores da internacionalização do capital; golpear e imobilizar os protagonistas sociopolíticos habilitados a resistir a esta reinserção mais subalterna no sistema capitalista; e, enfim, dinamizar em todos os quadrantes as tendências que podiam ser catalisadas contra a revolução e o socialismo (NETTO, 2009, p. 16).

Em última instância, o golpe militar de 196461 se consolidou como estratégia de abortamento da insurgência popular de base progressista tanto da conformação a um “capitalismo nacional” como, principalmente, da via socialista. Das disputas entre as frentes que pleiteavam a direção social e política do desenvolvimento capitalista no Brasil saiu vitoriosa a estratégia política comprometida com o capitalismo “interdependente” como se convencionou denominar, mas que nada mais é do que o capitalismo dependente. A ideologia do desenvolvimentismo continuou a orientar os discursos e práticas político-econômicas, sob a violência do Estado ditatorial. O poder e a força mobilizadora dos ideais desenvolvimentistas impactavam de tal modo a sociedade brasileira, que o projeto de

61 É sabido que o golpe civil-militar de 1964 desencadeou um intenso processo de violência estatal para manutenção da ordem, sob a batuta da Doutrina de Segurança Nacional. O regime civil militar comportava fortes tensões, tanto internas – em função das disputas entre as correntes majoritárias em presença nas forças armadas – e externas, já que as forças sociais contrárias ao regime civil-militar ainda conseguia apresentar formas de resistência e contestação da ordem estabelecida. A violência atentatória aos direitos civis e políticos, através de ações terroristas, incidia fortemente sobre os movimentos sociais, como o Movimento Estudantil e o Movimento dos Trabalhadores. O Estado fez da violência “seu instrumento sistemático e prioritário de manutenção” e a prisão e a tortura de ativistas políticos, trabalhadores, estudantes e políticos que atentassem contra a ordem não conhecia mais fronteiras (NETTO, 2014, p. 135). 130

modernização capitalista, encabeçado pelo regime civil-militar do período, precisaram adaptar o suporte ideológico do desenvolvimento através do discurso “desenvolvimento e segurança nacional”. Isto é, o almejado desenvolvimento seria alcançado garantindo-se a segurança nacional, que nada mais seria que repressão, opressão, ataque às liberdades civis e políticas, tortura e a morte para todos os que se colocassem contra o regime. O que significava colocar por terra possibilidades de negociações políticas dos interesses das classes nesse processo, ou seja, o Estado de exceção barrava as reformas sociais. O modelo desenvolvimentista, levado ao limite na ditadura civil-militar, assume novas determinações como veículo apologista do capital, calcado não exatamente no nacionalismo canonizado na era Vargas, mas na consolidação da associação com o capital estrangeiro. A industrialização por substituição de importações estava consolidada, adensando a via de modernização das relações capitalistas no país. Sob a forte repressão política e social, expressa na forte restrição à atuação dos partidos políticos, inclusive a colocação de alguns partidos mais radicalizados à esquerda, na condição de clandestinidade, a instituição dos chamados crimes políticos, a destruição de canais autônomos de organização e movimentos sociais contestatórios, o endurecimento do aparato coercitivo, a censura, as prisões ilegais, o Estado ditatorial empreende o que Florestan Fernandes designou como modernização conservadora,62 sob o regime autocrático burguês. Mediante a implantação do Estado autocrático, a burguesia afirmava seu caráter de dominação mediante uma contrarrevolução permanente, a qual “deveria associar a explosão modernizadora com a regeneração dos costumes e da estabilidade da ordem” (FERNANDES, 2005, p. 392). Para Netto (2009), o pacto contrarrevolucionário que dava sustentação ao Golpe implicava numa divisão do poder, cujas refrações convergiam para uma clara direção do Estado. O poder estaria concentrado nas mãos de uma burocracia civil e militar [...] que serve aos interesses consorciados dos monopólios imperialistas e nativos, integrando o latifúndio e deslocando a camada burguesa industrial que condensava a burguesia nacional. A resultante é um Estado que estrutura um sistema de poder

62 Trata-se dos processos de consolidação das condições para monopolização do capital através da diversificação do parque industrial brasileiro e expansão das relações capitalistas em concordância com a dinâmica do capitalismo imperialista, com readequação do Estado e das relações deste com a sociedade, assentadas num conservadorismo reticente e na coerção exacerbada. “[...] ao lado dos controles inibitórios e destrutivos que persistem, aparece um esforço mais profundo e amplo, que busca a eficácia da contrarrevolução, a estabilidade da dominação burguesa e o engrandecimento do poder burguês. A esse esforço se prendem a criação e aplicação de novas estruturas jurídicas e políticas, a modernização de estruturas jurídicas e políticas já existentes, a renovação e a racionalização da maquinaria de opressão e de repressão do Estado e a adaptação de todo o aparato ideológico e utópico da burguesia a uma situação contrarrevolucionária que pretende ‘vir para ficar’” (FERNANDES, 2005, p. 403). Ou seja, trata-se da garantia da transição para uma nova etapa de acumulação do capital no país, sem alterar as estruturas de classe, o que implicava acionar medidas de violência preventiva e dominação . 131

muito definido, onde confluem os monopólios imperialistas e a oligarquia financeira nativa (NETTO, 2009, p. 30).

A conjugação de forças sociopolíticas que culminou no golpe militar de 1964 longe de modificar o padrão de atuação do Estado frente à economia, com seu papel central no desenvolvimento do capitalismo no Brasil, aprofundou-o ainda mais. O Estado autocrático burguês, que sedimentava a ditadura civil-militar, tinha funções essenciais na continuidade do processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, que levariam ao aprofundamento do padrão de acumulação dependente. Definindo os rumos de uma política econômica capaz de sintonizar o país ao tempo histórico e à funcionalidade da economia brasileira no contexto do capitalismo monopolista. Se o processo de industrialização pesada teve importante expansão no período JK, o padrão de desenvolvimento dependente e associado demandava a entronização definitiva do país em outra etapa desse desenvolvimento, em consonância com as requisições do capital monopolista, que não tem procedência sem a centralização e concentração de capitais que lhe é inerente, como abordado anteriormente. O Estado acentuava sua intervenção, não apenas subsidiando o processo, mas induzindo via mecanismos de tributação, crédito, financiamento e investimentos diretos no setor produtivo, tendência que já tinha ampla ressonância no capitalismo brasileiro. O perfil compósito e agregado do padrão de dominação burguesa se consolidava via associação dependente ao capital estrangeiro e ao grande capital nacional. O programa econômico do regime político instaurado com o Golpe de 1964 se expressa no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), conforme esclarece Oliveira (2003), que consubstancia as metas de restauração do equilíbrio monetário, ou seja, a contenção da inflação. O autor ainda aponta a semelhança entre o PAEG e o Plano Trienal, que na verdade resultou em uma recessão que se prolongara até 1967. Somente com a aplicação de uma política seletiva de combate à inflação é que se retomou a expansão do sistema. A política seletiva implantada distingue, antes, seletividade de classes sociais e privilegia as necessidades da produção. [...] os instrumentos dessa política foram uma reforma fiscal aparentemente progressiva, mas de fundo realmente regressiva, em que os impostos indiretos crescem mais que os diretos, um controle salarial mais estrito, e uma estruturação do mercado de capitais que permitisse o ‘deslocamento’ – na feliz expressão de Maria da Conceição Tavares – do capital financeiro e que desse fluidez à circulação do excedente econômico contido no nível das famílias [...] (OLIVEIRA, 2003, p. 94).

Tal política, em verdade, conseguia transferir às camadas com menores rendimentos o financiamento dessa modalidade de combate à inflação, tentando balançar os custos da força de trabalho que poderiam ser transferidos à esfera da produção. Ademais, a truculência e o 132

terror, pautado na doutrina da segurança nacional expressos na Lei de Segurança Nacional, de 1967 e nos Atos Institucionais – AIs (nº 1, 1964, nº 2, 1965, nº 3, 1966, nº 5, 1968, nº 13, 1969, nº 15, 1969) garantia um contexto propício ao aumento da exploração do trabalho, do arrocho salarial e da concentração de renda que se acentuava face o processo em curso de imensa concentração de capital e formação de monopólios. Nesta direção, “o superexcedente, resultado da elevação do nível da mais-valia absoluta e relativa, desempenhará, no sistema, a função de sustentar uma superacumulação, necessária esta última para que a acumulação real possa realizar-se” (OLIVEIRA, 2003, p. 100). Ainda que não tenha alcançado o êxito almejado, o PAEG efetivou algumas reformas importantes para os objetivos de modernização capitalista do regime civil-militar do pós- 1964. As principais reformas no âmbito do PAEG propiciaram o aumento da arrecadação por parte do governo federal, sua centralização financeira e decisória em detrimento dos Estados e municípios e, principalmente, a entrada do país no circuito financeiro mundial, acirrando a dupla articulação. Essa inserção se deu por meio de instrumentos de remuneração da dívida pública, como, por exemplo, as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs)82 e as Letras do Tesouro Nacional (LTNs), e pelo aumento da dívida externa, facilitada pela Lei 4.390 de 1964, que alterou a Lei 4.131, a Instrução 289 de 1965 e as Resoluções 63 e 64 de 1967. Estas estimularam o endividamento externo em um contexto de abundância de liquidez no mercado financeiro internacional (RODRIGUES, 2017, p. 64).

Os dispositivos elencados na citação anterior possibilitavam a contratação de empréstimos externos em moeda estrangeira; possibilitavam aos bancos comerciais e bancos privados, além do BNDE, a obtenção de empréstimos em moedas estrangeiras para financiamento de capital fixo ou de giro. Um destes dispositivos, a alteração da Lei 4. 131, conhecida como Lei de Remessas de Lucro,63 através da Lei 4.390, teve importância crucial nesse processo de inserção do Brasil no novo circuito financeiro do capital, assumindo demandas importantes do imperialismo total. A Lei 4.131 impunha certas restrições à movimentação do capital estrangeiro no país e demarcava um mecanismo importante para assegurar certa regulação à sua circulação entre o Brasil e o país de origem, através do registro do ingresso desse tipo de recurso no país e a taxação de sua remessa para o exterior. Sob a batuta do regime militar a alteração pela Lei 4.390 inicia um intenso processo de criação “de canais institucionais voltados ao acesso da liquidez internacional” e “recolocou na base de cálculo para remessas os reinvestimentos e o aumento da alíquota das remessas de lucro de 10% para 12%”. Tais dispositivos foram

63 Esta Lei foi aprovada pelo Congresso em setembro de 1962, e sancionada pelo presidente João Goulart em janeiro de 1964, antes de ser dado o Golpe de Estado. 133

cruciais para as empresas multinacionais internalizarem recursos no Brasil, contribuindo para a desnacionalização64 de certos seguimentos do parque industrial (IDEM, p. 64). Assim também, As reformas oriundas do PAEG no período 1964-1967 permitiram uma conexão mais profunda entre o Brasil e o sistema financeiro internacional. Três mudanças do ponto de vista institucional estimularam a internacionalização financeira: “1. A Lei no 4.595, de dezembro de 1964, além de criar o Banco Central, reformulou o sistema bancário, promovendo a especialização financeira; 2. A institucionalização da Resolução 63 em 1967; e 3. A implementação do mecanismo de correção cambial de 1968”90 (BAER apud RODRIGUES, 2017, p. 66).

Em termos de planos governamentais, Ianni (1977) destaca que, além do PAEG, foram elaborados, entre 1964-1970, o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social (1967-1976) e o Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970). Em face das condições políticas criadas pelo regime de exceção e as condições econômicas viabilizadas pelo PAEG, em março de 1966 o governo de Mal. Castello Branco instala os Grupos de Coordenação do Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social, com o objetivo de realizar levantamentos e sistematização de dados sobre os principais problemas da economia brasileira e apresentar prognósticos. Ao fim e ao cabo, “tratava-se de equiparar o governo (isto é, o Executivo) para exercer com o máximo de eficácia as suas funções na esfera das relações econômicas” (IANNI, 1977, p. 236). O Plano Decenal, que apresentava estrutura e objetivos extremamente audaciosos, não chegou a compor um rol de medidas de política econômica de aplicação prática. A mudança de governo com a entrada do Presidente Costa e Silva à frente do executivo federal culminou na elaboração de um novo Plano Econômico, o Programa Estratégico de Desenvolvimento, a ser executado entre 1968-1970. Grosso modo, o referido Plano se apresentava como uma continuidade dos fundamentos que davam sustentação ao PAEG. Ainda estava em curso o processo de reelaboração das relações entre as classes sociais, em âmbito econômico, social e político. Ainda persistia a preocupação predominante de reformular (modernizar ou racionalizar como se dizia então) as condições de funcionamento dos mercados de capital e força de trabalho. Tratava-se, em particular, de aperfeiçoar as condições de funcionamento e expansão da empresa privada, nacional e multinacional (IANNI, 1977, p. 240).

Concretamente, o Plano propunha ações diretas e indiretas para aumentar a liquidez das empresas, diminuir a expansão dos custos e aumentar a demanda. Em relação ao setor

64 “Nos períodos 1966-1970 e 1971-1973, respectivamente, 52% e 61% das filiais estrangeiras que se estabeleceram no Brasil, o fizeram por meio da compra de indústrias já instaladas” (BAER apud RODRIGUES, 2017, p. 80). 134

público, preconizava-se a programação cuidadosa dos investimentos governamentais, ao aumento da eficiência do setor público e diminuir a pressão deste setor sobre o setor privado. De acordo com Ianni (1977), o governo do General Médici já vivenciava uma intensa expansão da tecnoestrutura do Estado ditatorial e do centralismo autoritarista do executivo. Amparado na Constituição Federal de 1969 e na vigência do AI5, este governo tinha amplo controle da imprensa, da opinião pública e tornou-se o mais violento da ditatura militar. Em função desse contexto de controle totalitário, o governo via desnecessário apresentar, de imediato, um plano (mais sofisticadamente sistematizado) de política governamental como mecanismo de construção de coesão social, já que esta era mantida pelo mecanismo da repressão. Entretanto, “o governo continuou a aperfeiçoar os seus instrumentos de ação, para criara as condições mais propícias à prosperidade da empresa nacional e multinacional” (IDEM, p. 250). Nesse contexto, o Estado assume cada vez mais a dianteira do processo econômico e dá as coordenadas da direção do desenvolvimento capitalista no Brasil, fortalecendo e expandindo seu próprio setor produtivo. Lançando o programa de Metas e Bases para a ação do Governo, em outubro de 1970, o governo visava consolidar no Brasil um sistema econômico de “equilíbrio” entre governo e setor privado, assegurando-se a “presença da empresa pública, da empresa privada nacional e da empresa privada estrangeira em proporção que assegure, de forma continuada a viabilidade econômica e política do sistema” (MÉDICI apud IANNI, 1977, p. 252). Ainda no tocante aos Planos Econômicos dos governos ditatoriais, têm-se os Planos Nacionais de Desenvolvimento (1972-1974, II PND– 1975-1979; III PND – 1980-1985). O primeiro PDN foi construído sob o signo do chamado “milagre econômico” e o projeto “Brasil Potência”, que colocava o país como principal aliado dos EUA na América Latina. Nesta quadra, o Brasil, ambiciosamente, definia seu “padrão de desenvolvimento econômico” como modelo para o continente latino-americano. Neste sentido, orientou os investimentos estatais em direção às áreas de transportes/comunicações e das indústrias de base, além de sinalizar “para os grupos monopolistas os setores econômicos onde as inversões seriam mais seguras e rentáveis” (NETTO, 2014, p. 151). Netto (2014) traz dados importantes desse período para pensar o desenvolvimento capitalista sob o chamado “milagre econômico”. Entre 1968 e 1973 a taxa anual de inflação se estabilizou em torno de 20% e neste período o Produto Interno Bruto (PIB) per capta aumentou em 51%. O crescimento econômico processou-se em taxas muito altas: 9,5% em 1969, 10,4% em 1970, 11,3% em 1971, 12,1% em 1972 e 14,0% em 1973. A indústria 135

cresceu em todos os setores extraordinariamente neste período. 12,7% na indústria manufatureira, 10,9% na construção civil, 23,6% na indústria de bens de consumo duráveis, 9,4% na de bens de consumo não duráveis, 18,0% na de bens de capital e 13,4% na de bens intermediários (NETTO, 2014, p. 151). Do ponto de vista das condições de reprodução da força de trabalho o emprego acompanhou esse ritmo acelerado da indústria, crescendo a uma taxa média anual de 4,3% entre 1968-1973, mas acompanhado de concentração de riqueza e do arrocho salarial com “redução da taxa do salário real básico com respeito a produtividade média do sistema” (IDEM). A necessidade de constituição de mercado de consumo colocava como alternativa ao arrocho salarial, um diversificado leque de composição de outras remunerações, principalmente, nas categorias de direção e gerência, que tiveram suas remunerações aumentadas até 138% entre 1967 e 1974. No mesmo período esse crescimento foi de 36% para operários mais qualificados e apenas 14% entre os semiqualificados e não qualificados (NETTO, 2014). O II PND traz um discurso intensamente anticomunista e uma política deliberada de estímulo e apoio à centralização, concentração de capital, fincado na indústria de base. Além do que, este Plano traz metas de modernização da agricultura, que em última instância visava à ampliação das relações capitalistas no campo. Situava-se no quadro de derrocada do chamado milagre econômico decorrente do exaurimento do padrão de desenvolvimento assentado no endividamento público e na dependência do capital estrangeiro, num contexto internacional marcado pela crise estrutural do capital. Nesse cenário, o chamado primeiro choque do petróleo aliado à decisão do governo norteamericano do rompimento unilateral do acordo Bretton Woods atingiram o Brasil, como detonadores externos da crise do modelo de desenvolvimento adotado no país. Assim, o II PND procura emplacar uma marcha forçada de crescimento econômico, quando as economias dos países centrais apresentam derrocadas nas taxas de crescimento e acumulação. Trata-se de um “último fôlego desenvolvimentista” que o General Geisel dá forma no II PND, visando situar o país como plataforma de destruição de fronteiras ao capital. De acordo com Netto (2014), o Plano, além de admitir os flancos e assimetrias comprometedoras do período de crescimento anterior, como “os bolsões de miséria” e os limites do capital privado nacional para incrementar a taxa de crescimento, condensava “a ênfase na produção de bens de capital, na ampliação da base do sistema industrial com forte investimento na produção de insumos por via das empresas estatais [...] e no aumento do grau de inserção da economia brasileira no conjunto da divisão internacional do trabalho” (NETTO, 2014, p. 188). Vale ressaltar que o II 136

PND levou à frente grandes projetos de infraestrutura como as usinas hidrelétricas de Tucuruí e Itaipu, a rodovia Transamazônica, entre outras. Visando evitar uma grave recessão ou estagnação completa da economia, que colocaria muitos óbices ao projeto de distensão da ditadura civil-militar, o II PND conseguiu travar a redução do crescimento econômico, mas sua implementação não alcançou as metas esperadas nem conseguiu replicar os resultados do tempo do “milagre”. Neto (2014) esclarece que “houve uma grande recuperação em 1976 (crescimento de 10,2%0, mas, em seguida, manteve-se a taxas entre 4 a 6% - taxas, aliás, ainda significativas (em 1977 e 1978, 4,9%; em 1979, 6,8%)” (NETTO, 2014, p. 192). O autor demonstra também que, apesar das taxas de capital fixo terem permanecido em patamar pouco superior a 20%, o endividamento externo cresceu assombrosamente, sendo que Geisel encontrou uma dívida externa de 17,1 bilhões de dólares em 1974 e encerrou seu governo com uma dívida em crescimento a 49,9 bilhões de dólares em 1979, o equivalente a 63% do total das exportações brasileiras. A inflação também crescera, passando de 42,65%, em 1976 para 53,9%, em 1978. Deste modo, apesar do último suspiro desenvolvimentista, as condições nem de longe se assemelhavam aos anos virtuosos da economia do regime militar, demonstrando os limites do padrão de acumulação da ditadura civil-militar e os flancos do projeto desenvolvimentista. Finalmente, o III PND, já desenvolvido no último governo antes da abertura democrática e, portanto, no ocaso da ditadura civil-militar, traça estratégias de combate à inflação que assolou o país no período sequente ao “milagre econômico”. Em face da queda eminente do regime civil-militar, o Plano traça medidas de ajustamento do poder executivo para o processo de democratização do país, garantindo mecanismos de uma transição pelo alto, sem mudanças radicais ou ações disruptivas. A superacumulação demandada pelo capital monopolista foi fomentada e induzida pelo Estado pelo aprofundamento da associação com o capital estrangeiro. O Estado autocrático burguês realizou medidas de incentivo às fusões, a imensa concentração de capital para forjar as condições de formação dos grandes conglomerados e corporações empresariais, lócus fundamental do capital monopolista. Oliveira (2003) assinala que esse processo convergiu e condensou a peculiar conformação do tripé da propriedade no Brasil. A burguesia nacional, com gradual perda de importância, o capital estatal, através das empresas estatais e o capital estrangeiro.65

65 Análise análoga à de IANNI (1989), já demonstrado nesse capítulo. 137

O peso das empresas estatais na conformação das condições necessárias para o processo de modernização capitalista em função das requisições do monopólio é muito significante. Assumindo larga importância na industrialização pesada do período JK, elas assumem um peso ainda maior no cerne do Estado ditatorial. Ao ampliarem seu papel na oferta de bens e serviços indispensáveis à expansão da empresa monopólica no país, a preços mais baixos que um possível mercado privado teria, as estatais investiram-se de um papel tático para subsidiar as empresas privadas. Rodrigues (2017) ressalta o aumento expressivo do número de empresas estatais no país, mormente, a partir da década de 1960. De fato, o “boom” da economia do regime ditatorial, principalmente aquela franca expansão experimentada entre 1968 e 1973, teve como principal mote indutor o investimento massivo do setor produtivo estatal, do que é expressivo a expansão das empresas estatais de infraestrutura, nos setores de energia elétrica, petróleo e siderurgia. Tais empresas são intensivas em capitais, por isso seu crescimento requisitava grande volume de investimento. As importações que essas empresas precisavam realizar eram de grande valia para o oligopólio internacional, reforçando seu nível de acumulação. Destarte, os desdobramentos desse processo tinham consequências nebulosas para a economia brasileira, como por exemplo, “o não desenvolvimento de um setor nacional produtor de bens de capital, a abertura da economia para facilitar as importações e pressões sobre o balanço de pagamentos” (IDEM, p. 78). O desenvolvimento capitalista tem no Estado ditatorial brasileiro não apenas o garantidor das condições gerais da produção capitalista, mas um indutor direto, um financiador de custo-benefício elevadíssimo, com uma direção sociopolítica muito clara: favorecer o capital monopolista internacional ao tempo em que consolida o padrão dependente do país no circuito das relações capitalistas, em um mundo já sob domínio do imperialismo total. Evidentemente, tal direção não implicou na impossibilidade da constituição de capitais nacionais de enorme concentração e centralização que formaram grandes oligopólios brasileiros. Entretanto, essa concertação, que tem no aparato coercitivo da ditadura civil-militar condições de fortalecimento e expansão, responde às expectativas de uma burguesia nacional disposta a reproduzir a própria condição de dependência externa, para manter sua dominação interna. O saldo histórico da ditadura civil-militar aponta para a solidificação e aprofundamento de um dado padrão de desenvolvimento capitalista, que como já indicamos, reforça a dupla articulação que amalgama o capitalismo brasileiro à peculiar forma de dominação burguesa no Brasil: a heteronomia e a desigualdade interna. 138

Cumprindo, em condições ótimas para os interesses do capital, a transição para a era dos monopólios, o Estado ditatorial civil-militar assumiu bases importantes para financeirizar esse processo, de modo que a sangria do fundo público brasileiro para a realização das condições essenciais desse movimento é incontestável. Incontestável também é o fato de que a racionalidade do capital impregna o Estado burguês, inclusive em sua feição autocrática, ainda que os resultados sejam irracionais do ponto de vista das necessidades humanas. Se a classe trabalhadora estava sobre forte coerção e não dispunha de mecanismos democráticos mínimos para disputar o fundo público com os interesses das classes dominantes, a exponenciação das contradições da monopolização do capital em dissonância com o tempo histórico dos países de capitalismo central e das próprias clivagens históricas que marcam a formação das classes sociais num sociedade ultraconservadora, compósita e extremamente desigual como a brasileira, minam as bases de sustentação do regime autocrático burguês. Em termos mais precisos, ainda que o Estado, em articulação com o capital nacional e estrangeiro, assentados na violência da ditadura, tenha assegurado condições elementares para o monopólio, a própria dinâmica desse processo evidencia os flancos de uma política econômica cujas bases foram o endividamento, o ataque aos direitos, o arrocho salarial, a frágil estruturação de um mercado de massas de base interna e a oneração das franjas mais empobrecidas da população. Ademais, o descompasso com o tempo histórico do capitalismo central, que via declinar os “trinta anos de ouro” do capital, colocava o país na contingência dos rebatimentos da crise do capital em escala mundial. As forças políticas, que durante anos foram violentamente reprimidas pelas forças militares, enfim conseguiam deflagrar novos movimentos contestatórios, ao passo que os partidos políticos, atuantes na clandestinidade, também arregimentavam jovens, intelectuais, artistas e setores mais progressistas da sociedade. Em fins da década de 1970, as contradições da ditadura civil-militar se complexificaram de modo tal, que o esgotamento do padrão de acumulação da autocracia burguesa não detinha mais poder suficiente para evitar seu declínio. A crise estrutural do capital mundial ressoa na economia brasileira e o padrão “compósito” da acumulação no país, intrinsecamente dependente do capital estrangeiro e baseado no endividamento interno e externo, culminou na eclosão de uma crise político-econômica que derruíra as bases de sustentação da autocracia burguesa. A intensa mobilização social de vários segmentos sociais e, sobretudo, a massiva participação dos trabalhadores no cenário político das lutas coletivas desencadearam o processo de redemocratização do país. Ao fim do regime militar e na entrada dos anos 1980, o país vivencia uma profunda crise social, econômica e política e o Estado absorveu 70% da 139

dívida externa, corroborando sua função vital para assegurar a reprodução do capital, por meio da socialização dos custos, além da adoção de inúmeras outras políticas de estabilização econômica. O período ilustrado mostra a violência, reiterada nessa nova etapa de inserção do país na divisão internacional do trabalho, especificamente no processo de modernização do imperialismo, assim como as contradições inerentes a lei geral de acumulação capitalista, em particular a unidade dialética entre produção de riquezas e necessária condição relativa de empobrecimento dos trabalhadores. Em especial, nessa fase de queda da taxa de lucros e quando a financeirização ganha hegemonia nos negócios da burguesia, capturando os países subdesenvolvidos em razão da dívida externa, que passa a figurar como anel de força da agenda pública da modernização e da expropriação de fundo público para pagamento da agiotagem financeira. De modo que a posterior redemocratização chega quando esses novos condicionantes de dependência estão bem azeitados, comprometendo sobremaneira os possíveis destinos do país na direção, enfim, de reformas sociais consequentes que revertessem à concentração de terras e rendas no país, assim como a heteronomia política e a soberania republicana do fundo público. O ocaso da ditadura civil-militar deixou um drástico saldo político e social, com uma economia atolada no endividamento, uma inflação de níveis alarmantes, com a exponenciação da desigualdade social, da pobreza e da violência. A despeito desse contexto desolador e mesmo em face de movimentos sociais fortemente combativos que objetivavam uma profunda redemocratização da economia, as forças dominantes em presença ainda conseguiram articular um movimento de transição “pelo alto”, sem margem para viabilizar as grandes rupturas ensejadas pelos movimentos sociais que cresceram ao longo dos anos 1970 e 1980. Nesse final de ciclo de substituição de importações consolidado na ditadura civil- militar, a participação da indústria de transformação no PIB saiu de 12%, em 1930 para 26% em, 1979-1980. O PIB per capta da indústria de transformação saiu do indicador 33 (numa escala de 100) para 486 considerando o mesmo período. Enquanto a indústria intensiva em recursos naturais decresceu de 41%, em 1939 para 25%, em 1980, a indústria intensiva em tecnologia aumentou sua parcela de 5%, em 1939, para 16%, em 1980, sendo que o maior dinamismo se deu na indústria mecânica e na economia de escala (GONÇALVES, 2013). Gonçalves (2013) traz dados que indicam mudanças no padrão do comércio externo, uma vez que ao final de 1979 pela primeira vez na história do país a participação dos manufaturados (43.6%) no volume total das exportações foi maior que a parcela dos manufaturados (43%). Em 1980 essa participação chegou a 53%. A taxa de urbanização em 140

1980 chegou a 67,59% . Em 1940 essa taxa era de 31,24% (IBGE, 2007). Procedeu-se de fato um processo de modernização da indústria e de urbanização intensiva, com a complexificação das relações sociais capitalistas. E assim também o aprofundamento de suas contradições. Netto (2014) destaca que entre 1979 e 1984 a renda per capta reduziu-se 25%; os salários reais caíram 20%. Entre 1981 e 1983 o setor industrial começa a experimentar queda e a taxa de desemprego chegou a 7,5%. O autor destaca que apenas nas regiões metropolitanas havia 900 mil desempregados. Mesmo assim os dados ainda subestimavam o fenômeno do desemprego. Na verdade, conforme demonstrava o DIEESE em 1981, 30,3% da população economicamente ativa (PEA) do país estava desempregada ou subempregada, não contando nos dados oficiais (NETTO, 2014). Em 1984, 61,2% da PEA recebiam até dois salários mínimos; A pobreza assumia proporções alarmantes. No ano de 1985, 35% das famílias e 41% de todos os indivíduos brasileiros viviam em condição de pobreza (cerca de 54 milhões de pessoas). O percentual de renda domiciliar per capta inferior à linha da pobreza passou de 38,78%, em 1979 para 48,39%, em 1984 (IDEM). Sobretudo crescia a extrema pobreza, destaca Netto (2014), sendo que brasileiros extremamente pobres passaram de 17,25 milhões de pessoas no ano de 1979 para 23,70 milhões em, 1985.

2.3 O desenvolvimento capitalista no Brasil nos anos 1980-1990: entre a crise e a ofensiva neoliberal

Não é nenhuma novidade que, em termos econômicos, a década de 1980 foi catastrófica para o Brasil, comumente chamada de a década perdida. Da altíssima inflação a mortes de crianças por desnutrição, o cenário nacional foi tomado pela avalanche da crise capitalista, que assumia no Brasil as feições drásticas de uma economia periférica, de industrialização tardia, cujo processo de monopolização da economia teve no envidamento interno e externo um fator nodal e na ação deliberada do Estado para além das suas possibilidades financeiras, um fator precípuo. No tocante a mobilização social e política, o país vivencia um momento único em que diversas forças progressistas da sociedade se articulavam em torno de demandas de democratização, garantias trabalhistas e sociais, sobretudo a partir do movimento dos trabalhadores, especialmente o segmento operário dos setores metalomecânico e petroleiro- 141

petroquímico, que segundo Netto (2014) assumiam uma nova qualidade na oposição ao regime. As próprias condições de vida e trabalho alarmantes da classe trabalhadora e setores médios da sociedade, em função da política salarial da ditadura, o alto custo de vida, a concentração de renda exorbitante, as péssimas condições de moradia nos grandes centros urbanos, a precariedade na política educacional e a expansão da pobreza se mostravam escancaradamente e eram substrato para as lutas em ebulição, que fomentavam o combate à ditadura civil-militar e em torno do retorno ao regime político democrático, assentado no Estado de Direito. Netto (2014) esclarece que a grande greve desencadeada em São Bernardo se espraiou em maio de 1978 pelo cinturião industrial de São Paulo e em seguida à outras cidades do Estado. Tal processo já vinha aglutinando forças entre outros segmentos operários (químico, têxtil e portuário) e trabalhadores (bancários, médicos e paramédicos) e professores (primários, secundários e universitários). Outros movimentos tradicionais nas metrópoles como as associações de amigos e de bairro, movimento contra custo de vida, além das comunidades eclesiais de base (CEBs) assumiam posicionamentos críticos e contestatórios ao regime civil-militar que começavam a minar as bases de sustentação da ditadura. Para nossa discussão, importa enfatizar melhor a forma como a manutenção do desenvolvimento capitalista ganha curso, se a sociedade brasileira não comportava mais o projeto autocrático burguês de expansão capitalista, fazendo-se necessário encontrar mecanismos para dar galope à acumulação e para a continuidade do padrão de desenvolvimento constituído ao longo dos anos. Fazer com que a redemocratização acontecesse sem pôr em risco a lógica de acumulação e superar os obstáculos da crise econômica era o desafio que se colocava para a classe dominante na alvorada da década de 1980. Conforme sinalizamos, a transição para os anos 1980 é marcada pelo expoente endividamento externo do país como resultado de dois processos combinados: um, ligado às decisões políticas dos governos militares em recorrer ao financiamento via recurso ao capital estrangeiro; o outro, referente ao movimento de financerização da economia que está na base da crise estrutural do capital, desencadeada na década de 1970 e da elevação das taxas de juros norte-americanas, realizada mediante decisão arbitrária do governo dos EUA, mas não somente. Em todo mundo capitalista avançado iniciava-se uma pressão pela elevação das taxas reais de juros, mais especificamente, “por regras de política monetária que favorecessem os interesses dos credores” (PAULANI, 2008, p.116) e desse modo, 142

a guinada monetarista dos Estados Unidos, exigida para a defesa da posição hegemônica do dólar e responsável pela enorme elevação da taxa de juros norte- americana ao fim de 1979 [...] acabou por atender a esses interesses, visto que, no rastro da taxa norte-americana , subiram as taxas de juros no principais países no centro do sistema, bem como aqueles segundo os quais se remuneravam os empréstimos, concedidos aos países em desenvolvimento (IDEM, p. 116-117)

Assim, existe um fator exógeno de importância crucial no endividamento de países como o Brasil. Nessa direção, Rodrigues (2017) esclarece que o processo de endividamento externo do Brasil se acelera entre 1969 e 1973, para garantir à elevação das reservas cambiais. Já entre 1979 e 1980, “a balança comercial brasileira voltou a ter déficit, acumulando um saldo negativo de US$ 5,7 bilhões, como resultado direto do segundo choque do petróleo” e no mesmo período houve um aumento das taxas de juros, em função da conjuntura mundial de recessão com inflação “que levou a uma situação inédita para o Brasil: o aumento da dívida externa seria insuficiente para fazer frente aos juros líquidos vencidos no período”(RODRIGUES, 2017, p. 103). Sob o governo do último presidente militar a comandar o país, João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), a orientação de política econômica se centra na amenização dos impactos da crise econômica e política da dinâmica capitalista, mormente pelo controle da dívida externa. “A saída do governo de Figueiredo será a contenção de gastos e créditos, juntamente a liberação da taxa de juros que beneficiou o campo das finanças e trouxe a queda das inversões” (SOUZA, 2016, p. 120). O drama social decorrente pode ser dimensionado pelo fato de que a partir de 1980 os gastos com juros e amortização da dívida externa passaram a serem maiores do que os empréstimos e financiamentos. Iniciou-se um processo de déficits imensos na balança comercial brasileira, sendo que a “única maneira que a equipe econômica encontrou para tentar saldar esses déficits, uma vez que o Brasil não pediu uma moratória da dívida, foi a geração de robustos superávits comerciais” (RODIGUES, 2017, p. 104). A ação deliberada do Estado e das burguesias nacionais em financiar a monopolização do capitalismo no Brasil, a partir da busca de capitais externos, culminou numa dívida imensa66 que ao fim e ao cabo foi socializada com toda população brasileira, sob a astuta estratégia de estatização da dívida externa.67 O Estado brasileiro passa a arcar não apenas com duas dívidas e sua política econômica de financiamento da expansão capitalista via

66 Conforme já indicamos, o aumento exponencial da dívida externa também se deu em função dos aumentos arbitrários da taxa de juros dos EUA.

67 70% da Dívida externa tornaram-se Estatal. 143

endividamento externo. Ele arca também com o endividamento privado externo e toda a oneração que isso acarreta para a população de um modo geral. O governo busca implementar medidas que atenuem a dívida e a crise que assola o país, num contexto em que o mundo capitalista central sofre os abalos da longa crise estrutural do capital. Sobre intensa subordinação aos EUA, o Brasil passa pela transição democrática numa linha tênue traçada entre garantir um processo de redemocratização gradual, pactuado e sem rupturas radicais e contornar a condição crítica do cenário econômico brasileiro. Essa saída se processou entronizando os princípios do ajuste fiscal e mantendo intocadas as relações de dependência externa, a partir de então sobre novas determinações: a do mundo das finanças, propriamente ditas. Já trabalhamos no primeiro capítulo o processo de financerização da economia. Na oportunidade, indicávamos as ilações de Chesnais (1996) quanto ao processo de incorporação das economias periféricas às redes das finanças na alvorada da década de 1990. Para o autor, tal processo representa a etapa mais recente da mundialização financeira. Esse processo tem no endividamento dos países periféricos a marca central, do que é elucidativo o exemplo do Brasil. A década de 1980 representa, para o desenvolvimento capitalista no Brasil, um momento de síntese das intensas contradições que mesclam aquelas relativas ao padrão de acumulação adotado no país, bem como da própria dinâmica mundial do desenvolvimento capitalista que assume um novo regime de acumulação. Para o Brasil, trata-se de conter a crise explosiva que assola o país e o esgotamento do veio desenvolvimentista que dirigia a industrialização do país e a estruturação das relações econômicas, bem com sintonizar o país com os novos direcionamentos da lógica capitalista sob a égide das finanças e das diretrizes neoliberais, já disseminadas como projeto de recomposição do capital nos países centrais. A distensão do regime militar foi cautelosamente realizada a fim de evitar transformações radicalizadas para o governo democrático. A abertura democrática assumiu a direção de uma via institucionalizada a partir do próprio governo com forte centralidade da figura do presidente General Figueiredo. Apesar da ampla mobilização em prol da realização de eleições diretas – expressa, sobretudo no Movimento “Diretas Já” –, as forças conservadoras em presença no Congresso, capitaneados pelos diversos interesses classistas em disputa naquele contexto, articularam forças suficientes para manter as eleições indiretas, que culminou na vitória da chapa do Parido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) encabeçada por Tancredo Neves, tendo como vice-presidente José Sarney. Trancredo Neves faleceu, contrariando muitas expectativas em torno de sua atuação frente ao executivo federal 144

e a retomada da democracia. José Sarney assumiu definitivamente a Presidência da República, em abril de 1985 em um contexto de instabilidade política e intensa crise econômica. O primeiro governo da chamada “Nova República” conduziu o processo de democratização muito ao gosto dos interesses da burguesia, marcado pelo caráter conservador da transição pelo alto68. A necessidade de um reordenamento institucional no país gera inconstância tanto no mercado financeiro como no setor produtivo, com queda das atividades produtivas. O Plano Cruzado é o Plano de estabilização criado pelo governo para enfrentar o contexto de instabilidade econômica e política. Criado em 1986 o plano implementava medidas como: desvalorização da moeda nacional e substituição do cruzeiro, congelamento dos preços, fixado em 28 de fevereiro, com vigência de um ano, congelamento dos salários e um abono de 8% a todas as categorias, como forma de recomposição salarial (PAULA, 2013). Mas é também a partir deste mesmo Plano, que são acionadas as primeiras vias neoliberais, como a privatização de empresas estatais e o corte de 20% nos investimentos do governo. Segundo Paulani (2008), o discurso neoliberal preponderou no Brasil quando fincou raízes nas eleições presidenciais de 1989, das quais sai vencedor o candidato Fernando Collor de Mello, com seu discurso “liberal-social”. Assume a presidência num contexto em que a inflação parece um problema insolúvel e as conquistas populares da Constituição Federal de 1988 estão postas no cenário popular, que anseia por sua efetivação. Com um projeto de modernização para o país, que se assentava claramente no ideário neoliberal, o Brasil reassume seu lugar de subordinação perante o capitalismo central e adere às demandas das finanças mundializadas. Segundo Antunes (2005), as medidas expressas nos Planos Collor I e II objetivavam empreender essa nova etapa de modernização capitalista para o Brasil, que nada mais era do que a adequação do país à dinâmica capitalista sob a batuta neoliberal e na escala mundializada do capital. Na prática, tais Planos significaram recessão violenta, arrocho salarial, enxugamento da liquidez, da redução do déficit público e privatização de empresas estatais. A socialização dos custos da grave crise onerou sobremaneira a classe trabalhadora, com congelamento dos salários e dos preços, ajustes para as tarifas públicas como correios, energia e transporte público, confisco da poupança, mas também capitais nacionais, com a abertura do mercado, implicando em muitas falências diante da intensa competitividade dos capitais externos. Nos governos Collor e Itamar Franco

68 Processo que caracteriza uma forma particular de passagem de regimes ditatoriais para um Estado democrático, em que a transição é lenda, gradual e sem grandes rupturas com o pacto de dominação instituído e em que as elites políticas e econômicas assumem a direção deste movimento. 145

57.808 empresas foram à falência, uma média de 14.152 por ano.69 que comercializavam com o país. Outra medida drástica foi o confisco da poupança, surrupiando economias monetárias de diversos estratos das classes sociais. O projeto de Collor para o Brasil operou “uma mudança de curso em relação ao período juscelinista e até mesmo em relação á política econômica da fase ditatorial” (ANTUNES, 2005, p. 17), acarretando a eliminação de elementos nucleares do parque industrial criado nos períodos anteriores, atingindo mais intensamente o pequeno e o médio capital privado nacional e o capital produtivo estatal. Em meio à continuidade da crise econômica e social, dissidências de toda ordem e a corrupção desenfreada desdobra-se um ambiente político de intenso descrédito da população sobre a esfera pública e os espaços mais tradicionais da política partidária. Um clamor geral por “ética” que culmina no impeachment de Collor,70 em dezembro de 1992 sob o julgamento da Comissão Especial do Impeachment do Senado. Em todo caso, estavam penetradas no país as bases sociopolíticas para consolidação do projeto neoliberal, que o referido presidente não teve tempo de concluir. Inclusive é sabido o trato conservador e reacionário dado à política de assistência social nesse governo, com o veto integral ao projeto de lei para regulamentação da área, que abordaremos no próximo capítulo. Itamar Franco, então vice-presidente, assume o governo nesse contexto desolador, como uma figura de pouca expressividade política, mas com uma importante aceitação das parcelas mais interessadas no processo de mudanças que estavam na base do projeto Collor: fazer avançar no Brasil os ditames do capital mundial sob a égide do neoliberalismo. O fato mais expressivo deste governo pode ser encontrado no Plano Real,71 elaborado pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), que, aliás, sem deixar de considerar

69 Disponível em: http://www.plantaobrasil.net/news.asp?nID=75474. Acesso em: 05/08/2017.

70 Já em 1991 começaram as denúncias de corrupção envolvendo pessoas muito próximas à Collor, como sua esposa Roseane Collor, em casos escusos no âmbito das Instituições assistenciais como, por exemplo, o desvio de verbas públicas da Legião Brasileira de Assistência (LBA), sobre presidência da primeira-dama. Em 1992 o próprio irmão do Presidente, Pedro Collor, o acusou de manter sociedade com o empresário Paulo Cesar Farias, que havia sido tesoureiro da campanha de Collor. O tesoureiro seria uma espécie de “laranja” do presidente em negociações espúrias. Inúmeras transações financeiras fraudulentas do Presidente vieram a público, culminando na instalação da CPI para tratar dos negócios de PC Farias, que abriu caminho para comprovar as atividades corruptas do Presidente. Sob intensa mobilização da mídia de massa, com características de manipulação política, as ruas foram tomadas por grandes manifestações, do que é enigmático o Movimento dos caras pintadas” (SALLUM Jr e CASARÕES, 2011). Fernando Collor de Mello foi condenado pelo Senado Federal à perda do mandato e a inelegibilidade por oito anos. Em 2000 ele retornou à cena política, candidatando-se à prefeitura de São Paulo, mas não conseguiu se eleger. Em 2006 voltou a ganhar uma eleição, sendo eleito ao Senado por Alagoas, cargo que ainda ocupa.

71 “ Anunciado como plano de estabilização necessário para domar o renitente processo inflacionário, o Plano Real foi em verdade muito mais do que isso. Além de resolver a questão inflacionária que impedia a abertura formal da economia de se transformar em abertura real, o plano abriu espaço para uma série de outras mudanças que teriam lugar no governo FHC [...]” (PAULANI, 2008, p. 134). 146

sua atuação como parlamentar desde a década de 1970, o colocou definitivamente no cenário político como figura apta a assumir a presidência do país e levar a cabo o projeto de reorganização do capital para a periferia, com base no ideário e conjunto de práticas neoliberais. O Plano Real se inseria no âmbito das determinações do próprio Consenso de Washington, quanto as necessidades dos países subdesenvolvidos implementarem planos de estabilização econômica. Apologeticamente o Plano é apresentado como a mudança de moeda que levaria ao fim da inflação e a valorização da moeda brasileira em relação ao dólar. Sem deixar de considerar o achaque da inflação sobre as condições de vida da classe trabalhadora na ocasião, na verdade tratava-se de consolidar a ótica neoliberalizante, através da introdução de uma nova moeda, uma vez que estabeleceu medidas na seguinte direção: ajuste fiscal, implementação da Unidade Real de Valor, transformação do Real na moeda oficial. Behring (2008) atesta que o Plano Real promoveu queda da inflação e estabilização monetária à custa da sobrevalorização do câmbio e da abertura comercial. Mas, a sobrevalorização da moeda corroeu o valor da moeda nacional, obrigando o país a recorrer à moeda estrangeira, o que levou ao aumento na taxa de juros para atrair capitais. Ao vencer as eleições em 1994, FHC assume a presidência da República com a incumbência de modernizar as instituições brasileiras, retirando o país do anacronismo do chamado excesso de Estado para tornar as relações econômicas mais modernas e afinadas com o capitalismo mundializado. Em síntese, como nos dizeres de Leda Paulani (2008), “transformar o Brasil numa economia financeiramente emergente” (p. 132). Estava dada a largada para a nova ofensiva burguesa em prol da retomada do crescimento, através da realização das novas requisições para continuidade do desenvolvimento capitalista no Brasil em consonância com as demandas dos organismos multilateriais, que significava, ao fim e ao cabo, garantir a efetivação máxima do neoliberalismo que passa a ser a resposta burguesa à crise do capital. Em nosso exame, convergimos com a análise predominante da crítica marxista que compreende o neoliberalismo como um projeto de classe para a recomposição das taxas de acumulação do capital, que abaliza a ofensiva neoconservadora da burguesia, com hegemonia do capital financeiro. Concordamos com Paulani (2008) quando a mesma assume a relação imediata entre o neoliberalismo como doutrina e conjunto de práticas de política econômica e a fase específica do desenvolvimento capitalista que tem início no final dos anos 1970. E nesta direção, é certo afirmar que “legitimou políticas draconianas destinadas a restaurar e consolidar o poder da classe capitalista” (HARVEY, 2011, p. 16). 147

Sua base precípua se assenta na defesa intransigente do mercado como autorregulado e mensurador das relações sociais e sua capacidade de garantir crescimento econômico e “harmonia social”; um Estado minimalista no que toca a realização de políticas e gastos sociais (o que engloba transferência de serviços sociais essenciais para o campo privado, ou se preferir a privatização das políticas sociais, bem como das empresas estatais), capaz de operar minuciosamente na consecução de um clima propício para o pleno e livre desenvolvimento do mercado, o que inclui políticas monetárias favoráveis ao mercado financeiro e capacidade fiscal do Estado para manter o clima seguro para os credores; a desregulamentação e liberalização da economia, garantindo livre deslocamento de capital, sobretudo, o financeiro; flexibilização das relações trabalhistas; ataque aos sindicatos e movimentos mais progressistas dos trabalhadores, de modo a minar seu poder de pressão sobre o capital; e a defesa do individualismo e as liberdades individuais como primado básico da realização pessoal como responsabilidade de cada um. Nos termos de Netto (2007), o alvo verdadeiro da ofensiva neoliberal são quaisquer propostas socialistas de superação da ordem do capital. Ele aponta o significado do neoliberalismo quanto ao plano teórico, social e político-institucional e ídeocultural. No primeiro aspecto, aponta que o keynesianismo é a “besta-fera” do neoliberalismo. “Aqui, sua cruzada anti-Keynes pode ser adequadamente descrita como a contrarrevolução monetarista” (NETTO, 2007, p. 78) No segundo plano, o que se coloca em xeque é o “conjunto dos direitos sociais e as funções reguladoras macroscópicas do Estado” (IDEM, p. 78). E no que tange ao plano ídeocultural mais amplo, a cultura democrática e igualitária, assentada tanto nos direitos civis e políticos como nas demandas coletivas, como aquelas corretas aos direitos sociais. Harvey (2004) chama atenção para o caráter não elaborado das soluções propostas, demonstrando a amplitude de táticas e estratégias que cabem no escopo do neoliberalismo, contanto que seu núcleo central não perca de vista a liberdade do mercado, a tomada deliberada do Estado para os interesses mais elementares do capital e a flexibilização das relações econômicas. Mais especificamente, condensa uma agenda dura para medidas de ajuste fiscal – por meio do qual os Estados tem que empreender um intenso enxugamento dos gastos com políticas sociais e com servidores públicos a fim de manter a meta de superávit primário. Sobre o discurso de um Estado supostamente minimalista, sem interferências nas relações econômicas e sociais, o que prevalece na verdade é um Estado cada vez mais presente na arena das relações sociais de produção de um modo geral, mormente como grande garantidor do atendimento das demandas do capital, inclusive como elemento central no 148

movimento geral do capital, via fundo público e regulamentações sociais regressivas de salário, previdência social, leis trabalhistas e demais políticas referentes a reprodução da força de trabalho. O mantra ideológico neoliberal afirma ser possível uma “separação impermeável entre o econômico (pretensamente regido pelo mecanismo neutro, fluido e eficiente do mercado) e o social (habitado pelo arbítrio imprevisível dos poderes e de paixões)” (WACQUANT, 2003, p. 35), demarcando assim uma ala específica para atuação do Estado: programas sociais minimalistas, aparato punitivo, coercitivo e penal, deixando o “mundo econômico” estritamente sobre domínio do mercado. O Estado neoliberal transfere o máximo das funções essenciais para o âmbito privado, espaço da suposta excelência e da transparência. Um Estado capaz de privatizar serviços, desestatizar radicalmente o seu setor produtivo e recrudescer as metas de superávit primário para cumprir os acordos fiscais e compromissos financeiros com a dívida pública. A ideologia neoliberal não levou “as reformas-restauradoras dos aparatos governamentais significa uma releitura ou reedição do liberalismo” vigente no século XIX, tampouco o Estado neoliberal é uma reatualização do chamado “Estado guarda-noturno”. O que de fato se processa é “uma refuncionalização do Estado ampliado burguês diante da emergência da mais recente etapa do capitalismo, o bloco histórico neoliberal” (CASTELO, 2013, p. 223). E, definitivamente, o neoliberalismo opera um ataque brutal à força de trabalho, no sentido de esfacelar sua unidade de classe – como é típico da ofensiva burguesa contra o trabalho – fragmentar e heterogeneizar sua estrutura, através da reestruturação produtiva abordada no capítulo anterior, que aprofunda o desemprego estrutural, a informalização do trabalho e a precarização das relações trabalhistas – já tão acentuados na trajetória histórica do capitalismo dependente-. Opera derruindo conquistas históricas, com restrição e anulação de direitos, pelos diversos mecanismos de flexibilização das leis trabalhistas, de modo a enfraquecer ao limite o sujeito coletivo capaz de impor complicações ao movimento do capital na sua busca por retomada de acumulação. Em conformidade com as reflexões de Harvey (2005), esse ataque opera em duas frentes: numa, o poder dos sindicatos e outras instituições da classe trabalhadora é restringindo; noutra, abarca transformações nas diretrizes quanto espaciais e temporais do mercado de trabalho. Antunes (2005, 2007) estudou isso na particularidade brasileira demonstrando os efeitos deletérios sobre a organização autônoma da classe trabalhadora e a deflagração dos processos de fragmentação e heterogeneização do trabalho. 149

O neoliberalismo, como se vê, se estrutura como um marco ideológico na luta pelo livre mercado, articulando e difundindo um conjunto de valores e normas socioculturais capazes de arregimentar hegemonia seja via da construção do consenso ou da coerção;72 também consegue aglutinar uma série de princípios e dogmas que o consagram no campo doutrinário influenciando comportamentos humanos; por outro lado, avança sobre os mais diversos campos da política governamental sendo capaz de constituir-se em efetividade prático-concreta nos diversos matizes da macroeconomia dos Estados nacionais, sejam aqueles de capitalismo avançado ou dependente. Seu núcleo central parece comportar dois elementos-eixos: por um lado, o ataque ao Estado Social voltado para as práticas governamentais que se pautem na defesa dos interesses coletivos e da distribuição de riqueza, do fortalecimento do caráter universal das políticas públicas, e o caráter arbitral das relações de produção, isto é, que possam levar à constituição de leis trabalhistas favoráveis ao controle da dilapidação da força do trabalho; por outro, a defesa intransigente do livre mercado e sua autorregulação, que implica, como dito no capítulo anterior, a flexibilização da economia e das relações de produção como um todo, o ethos individual da competitividade. Portanto, configura-se como um projeto da classe capitalista para enfretamento e superação da crise do capital e reafirmação da hegemonia burguesa. Os dois governos de FHC foram cruciais para consolidação do projeto neoliberal no Brasil. Em conformidade com as indicações do Consenso de Washington, e abraçando voluntariamente as prescrições do Banco Mundial e do FMI, Fernando Henrique levou a efeito um dos mais ofensivos ataques burgueses ao país, delineando um novo compasso à dinâmica do desenvolvimento capitalista ao Brasil, na esteira da herança deixada pelos dois governos anteriores. O que há de novo na dinâmica das relações capitalistas dos anos 1990 é a concertação de coisas que favoreceu a concretização do Brasil como plataforma de valorização financeira (PAULANI, 2008), a derrocada do padrão desenvolvimentista, e de suas pilastras fundamentais (o planejamento e o intervencionismo do Estado no campo econômico, mormente a indústria, assim como o desmantelamento do setor produtivo estatal), e a adesão

72 O acirramento da criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, engendrados sobre forte política punitiva, tem sido uma das facetas mais coercitivas do Estado neoliberal. O encarceramento em massa, a adoção das chamadas lei anti-terrorismo, entre outros mecanismos, condensam o aprofundamento dessa via. Wacquant (2003) faz uma análise minuciosa da chamada onda punitiva, com extensos dados sobre da política de encarceramento dos Estados Unidos, com égide neoliberal. 150

ao ajuste fiscal incondicional, colocando o Brasil, sob o mando do capital financeiro internacional. FHC empreendeu grande esforço em consolidar o projeto neoliberal no Brasil, no âmbito mais amplo da própria ofensiva neoliberal em nível mundial e suas determinações para os países periféricos e dependentes, consubstanciadas, principalmente, no chamado Consenso de Washington. Das privatizações ao duríssimo ajuste fiscal, as façanhas dos dois governos FHC colocaram em prática a rígida agenda neoliberal. No geral, podemos pensar um bloco de três grandes frentes de ação dessa agenda: A contrarreforma73 do Estado, as privatizações, e a flexibilização das relações trabalhistas. O pavor perante a crise experimentada na década de 1980 e que ainda se arrastava pelos anos 1990, a desconfiança da população no Estado e nas instituições públicas face aos escândalos de corrupção, a expansão das Organizações Não-governamentais (ONGs), favorecidas pela estratégia do Estado na regulamentação do chamado terceiro setor,74 e o discurso legitimador espraiado por essas instituições na esteira do apelo ao voluntarismo e a solidariedade abstrata difundidas pelos organismos multilateriais, como forma de enfrentamento às expressões da questão social; de eficiência na execução de serviços sociais e transparência na aplicação dos recursos públicos investidos; e, ainda, embalados no sucesso do Plano Real, confluíam para criação de uma ambiência extremamente favorável ao discurso

73 O termo contrarreforma é originalmente empregado por Gramsci apropriando-se da caracterização do movimento reformista da Igreja Católica, no Concílio de Trento como resposta a reforma protestante. De acordo com Coutinho, Gramsci acaba estendendo o termo a outras realidades históricas, demonstrando o potencial explicativo do conceito. Coutinho (2012) então explica que “outra importante observação de Gramsci refere-se ao fato de que a contrarreforma não se define como tal, como um movimento restaurador, mas – tal como o faz o neoliberalismo de nossos dias – busca apresentar-se também ela como uma ‘reforma’” (COUTINHO, 2012, p. 121). O autor explica que, “a palavra “reforma” foi sempre organicamente ligada às lutas dos subalternos para transformar a sociedade e, por conseguinte, assumiu na linguagem política uma conotação claramente progressista e até mesmo de esquerda. O neoliberalismo busca assim utilizar a seu favor a aura de simpatia que envolve a ideia de “reforma”. É por isso que as medidas por ele propostas e implementadas são misticamente apresentadas como “reformas”, isto é, como algo progressista em face do “estatismo”, que, tanto em sua versão comunista como naquela socialdemocrata, seria agora inevitavelmente condenado à lixeira da história. Estamos assim diante da tentativa de modificar o significado da palavra “reforma”: o que antes da onda neoliberal queria dizer ampliação dos direitos, proteção social, controle e limitação do mercado etc., significa agora cortes, restrições, supressão desses direitos e desse controle. Estamos diante de uma operação de mistificação ideológica que, infelizmente, tem sido em grande medida bem sucedida. [...] Estamos diante da tentativa de supressão radical daquilo que, como vimos, Marx chamou de ‘vitórias da economia política do trabalho’ e, por conseguinte, de restauração plena da economia política do capital. É por isso que me parece mais adequado, para uma descrição dos traços essenciais da época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim o de contrarreforma. [...] O que caracteriza um processo de contrarreforma não é assim a completa ausência do novo, mas a enorme preponderância da conservação (ou mesmo da restauração) em face das eventuais e tímidas novidades” (IDEM, p. 122-123;124).

74 Para uma discussão crítica a respeito do chamado terceiro setor e sua desmistificação no quadro mais amplo da ideologia neoliberal cf.: MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2007. 151

neoliberalizante. Ademais, agarrados ao discurso inebriante da necessidade de adequação ao mundo globalizado e dos benefícios da globalização para a modernização do país, foi-se criando a tessitura perfeita para implementação das diretrizes e determinações do projeto neoliberal. O Plano Diretor da Reforma do Estado do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (PDRE-Mare), encabeçado pelo então Ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, fincava os pilares do que seria a grande virada neoliberal do país. Segundo Behring (2008), o PDRE propunha “uma reforma gerencial voltada para o controle dos resultados e baseada na descentralização , visando qualidade e produtividade no serviço público” (p. 177). O Plano tinha uma meta clara de contrarreformas que Behring (2008) elenca: Ajuste fiscal duradouro; reformas econômicas orientadas para o mercado – abertura comercial e privatizações –, acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que fortaleça a competitividade da indústria nacional; reforma da Previdência Social; inovação dos instrumentos de política social; e reforma do aparelho do Estado, aumentando sua eficiência (BEHRING, 2008, p. 178).

A agenda neoliberal faz duras exigências quanto ao ajuste fiscal do Estado, ao funcionalismo público e a direção de políticas sociais universais. Exige-se um Estado enxuto, com máxima prioridade para estabilidade macroeconômica, o que significa uma política monetarista favorável ao capital financeiro e aos interesses rentistas. Nessa direção, há, conforme demonstra Paulani (2005), uma franca obsessão com os gastos do Estado, por várias razões. Primeiro, a taxa de juros paga pelo Estado aos papéis públicos transforma-se no piso em função do qual todas as outras taxas são estabelecidas; segundo, taxas de inflação mais elevadas são sempre pró-devedor; terceiro, os papéis públicos são ativos financeiros por excelência. O Estado precisa voltar-se completamente para as demandas do capital financeiro. Por isso, a meta de superávit primário é tão dura no Estado neoliberal, consolidado com FHC. É essa nova dinâmica, tendencialmente voltada para a fração financerizada do capital, que impõe ao Estado um novo comportamento. Isso também traz luz à própria dinâmica da relação do Estado com o setor produtivo. É a virada do capital para o “mundo das finanças” procurando, ilusoriamente, fazer dinheiro, gerar rendimentos sem passar pela esfera da produção imediata de valor, e o capital passa a requisitar essas economias como plataformas de valorização financeira (TEIXEIRA, 2007; PAULANI, 2008). Do ponto de vista da lógica intrínseca do capital – isto é a exploração da força de trabalho para extração de mais-valia – as implicações são deletérias para os trabalhadores. Esse processo de valorização financeira gera mecanismos que se dirigem ao setor produtivo 152

no sentido de acirrar a exploração do trabalho vivo, com vistas a cobrir os custos do capital fictício. Este processo se dá mediante constantes reestruturações que buscam a diminuição do trabalho vivo necessário ao processo de valorização, assim como maior controle sobre este trabalho. O fetiche que envolve a dinâmica do capital sob a hegemonia das finanças tende a encobrir os reais processos que estão na sua base: a pilhagem da força de trabalho e o adensamento da sua alienação, conforme demonstra Iamamoto (2007). Nisto, temos duas questões elementares: primeiro, a nova fase do desenvolvimento capitalista requer a profunda diminuição do Estado no setor produtivo, daí a empreitada de privatizar as empresas públicas e torná-las rentáveis no mercado financeiro; segundo, demanda a privatização dos serviços sociais básicos, tornando-os nichos importantes de lucratividade via capitalização do setor dos serviços, o que implica diminuir gastos com as políticas sociais por parte do Estado e garantir que este mesmo Estado possa remunerar os detentores de papéis públicos (ativos financeiros). O desenvolvimento capitalista no Brasil não comporta mais um Estado desenvolvimentista, com fartos recursos imobilizados; sua dinâmica requisita uma nova institucionalidade estatal voltada ao mercado financeiro, deixando os setores produtivos mais rentáveis disponíveis ao capital privado e concentrando-se em manter a rigidez macroeconômica que garanta a segurança do mercado financeiro para o Brasil. O capital financeiro sedento por investimentos atuará nesse processo de privatização das empresas estatais e de dinamização das fusões e aquisições empresariais. Neste sentido, as ações implementadas por este Estado tiveram impactos decisivos na conformação do novo cenário econômico do país, bem como na dinâmica da relação do Estado com as demandas coletivas das classes sociais. As privatizações das empresas estatais e das políticas sociais,75 além do impacto sobre a indústria brasileira são fatos significativos desse contexto. As privatizações foram realizadas sob o viés da narrativa de que o capital privado teria mais capacidade operacional e tiraria do Estado o ônus de empresas grandiosas que, sob as condições de empresas públicas, eram marcadas pelo anacronismo, burocracia, baixa produtividade e passíveis de desvios financeiros por mecanismos de corrupção de agentes públicos. Sob o argumento de que tais processos seriam benéficos para o Estado e para a sociedade, as privatizações resultaram, na verdade, em intensa expropriação do bem comum,

75 Com destaque para o Programa de Publicização que favoreceu a criação das agências executivas e das Organizações Sociais e combinadas à regulamentação do chamado “terceiro setor”, foram cruciais para viabilizar a execução de serviços sociais por entidades privadas. 153

envolvendo a dilapidação do patrimônio público e grandes benefícios ao capital privado, uma vez que foram vendidas “a preços de banana”.76 As privatizações, portanto, foram estratégias centrais da contrarreforma do Estado. De acordo com Souza (2016), o BNDES77 cumpriu papel fundamental no movimento de privatizações, que já havia sido iniciado na década de 1980, no governo Sarney. Ao total, entre 1987 a 1989 foram 17 processos de privatizações gerando uma arrecadação equivalente a US$ 549 milhões. Dos 17 processos de desestatização, 11 foram de empresas controladas pela BNDESPAR e outros dois, relativos às vendas da Siderbrás, foram também conduzidos pela própria BNDESPAR (VELASCO JR., 2010, p. 313).

Souza (2016) esclarece que as privatizações realizadas pelo BNDES nesse período aconteceram em razão da necessidade do Banco de captar recursos a partir dos seus ativos, além de obter liquidez para suas atividades normais, bem como “diminuir o acúmulo de tarefas na administração de empresas que não se caracterizavam como centrais para o Banco” (SOUZA, 2016, p. 158). Collor dá continuidade a esse processo com a criação do Plano Nacional de Desestatização. O BNDES, devido a experiência acumulada com os processos de privatizações da década de 1980, assume a dianteira desse movimento no governo Collor. Com Itamar Franco essa estratégia de privatizações continua imperante. Souza (2016) assinala que foram realizados 17 processos de desestatização, com arrecadação do equivalente a US$ 4,7 bilhões. As empresas siderúrgicas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), juntamente com a Cosipa e a Açominas foram vendidas nesse período, e “o setor de siderurgia brasileira foi praticamente todo transferido ao setor privado” (IDEM, p. 160). Uma afronta aos velhos tempos do ciclo de substituição das importações. Um verdadeiro divisor de águas

76 Essa expressão visa explicitar a perda do fundo público para o capital privado em função das privatizações das empresas estatais terem sido realizadas mediante vendas abaixo do preço de mercado. Souza (2016) traz alguns exemplos elucidativos destes processos. “A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), uma das principais mineradoras do mundo, foi vendida em 1997 por 3,3bilhões de reais, quando a estimativa do seu valor era de 92 bilhões. [...]As concessões no setor de telefonia também constituem uma vergonhosa negociata. Em 1998 o leilão do sistema Telebrás contribuiu para aumentar o volume de recursos, no entanto o valor de sua venda foi de apenas 8,8 bilhões de entrada. Outros escândalos das privatizações estão no setor elétrico, cujas concessões custaram uma ninharia no valor dos megawatss-hora pagos pelas empresas. [...]As privatizações dos Bancos estaduais também garantiu o grande lucro do setor financeiro e a concentração de capital no setor. O Banerj foi comprado pela bagatela de 330 milhões e seu fundo de pensão custo ao governo dez vezes mais.

77 O Banco foi criado em 20 de junho de 1952, como autarquia federal recebendo a denominação de Banco Nacional do Desenvolvimento. Em 1971 o Banco passa por uma mudança importante deixando de ser autarquia para se constituir em empresa pública com personalidade jurídica e patrimônio próprio. Em 1980 houve a criação do Fundo de Investimento Social (Finsocial), que outorgou ao Banco um caráter social, passando a adotar o S ao final da sigla. As funções deste Fundo se direcionava à captação e recursos para projetos de natureza assistencial (SOUZA, 2016). 154

sobre o papel do Estado na gestão no desenvolvimento capitalista, demonstrando como as necessidades do capital em cada ciclo reordenam a superestrutura político-jurídica. Finalmente, no governo FHC esse processo assume seu ápice. Nesse período, as privatizações assumem novas características: o método de venda passa a ser em bloco único e em leilões com envelope fechado ou leilões mistos; passa-se a exigir um mínimo para pagamento em moeda corrente, com diminuição significativa de “moedas podres” envolvidas nas compras. “No entanto, com o método de venda e os financiamentos do BNDES, esse mecanismo significou uma arrecadação abaixo do valor das estatais e o endividamento público” (IDEM, p. 163). Ainda nos valendo dos dados e análises de Souza (2016), destacamos a atuação do BNDES nas privatizações na função de financiador, concedendo empréstimos ao capital privado para aquisição das empresas públicas. É elucidativo o fato de “os setores privatizados (siderúrgico, químico/petroquímico, aeronáutico, de telecomunicações e de energia elétrica)”, terem recebido “de 1995 a 2002 R$ 50,3 bilhões em financiamentos, quase 40% dos R$ 127,5 bilhões que o BNDES financiou no período” (SOUZA, 2016, p. 162-163). Fica evidente a centralidade do fundo público no financiamento das privatizações brasileiras, que não se limitou a bancar as aquisições do capital nacional, mas também, principalmente a partir de 1997, quando o governo brasileiro baixou um Decreto permitindo ao BNDES conceder empréstimos a grupos estrangeiros (IDEM). Para Souza (2016), “esse decreto escancarou os cofres do Banco às multinacionais, as quais dispunham de mais recursos para a compra dos setores de energia e telecomunicações, ‘meninas dos olhos’ das privatizações tucanas” (SOUZA, 2016, p. 163).78 Em relação às políticas sociais, a abertura do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Previdência Social aos investimentos do capital empreendeu uma ofensiva sem tréguas à política social. Também de extrema relevância foi à privatização do ensino superior, tornando-se campo de imensa lucratividade para o capital privado nacional e internacional. No tocante ao SUS, a própria Lei Orgânica (lei 8.080 de 19 de setembro de 1990) já abria espaço para o campo privado. Apesar do princípio da universalidade, que fundamenta a política de saúde brasileira, o sistema estruturou-se com uma ala privada de grande envergadura disponibilizada para os estratos das classes sociais que podem pagar pelos

78 “Entre 1992 e 2003, o BNDES emprestou US$ 15,6 bilhões para as empresas privatizadas total ou parcialmente. Dentre os setores mais beneficiados estão transporte US$ 4,5 bilhões (29% do total de empréstimos), telecomunicações S$ 3,7 bilhões (24% do total), siderurgia, com US$ 3,5 bilhões (22,5%); elétrico, com US$ 3 bilhões (19%); e, por fim, o petroquímico, com US$ 831 milhões (5,5%)” (SOUZA, 2016, p. 163). 155

serviços privados. O crescimento vegetativo dos recursos para a saúde nos governos FHC acarretou a intensa precarização dos serviços públicos de saúde. Ademais, o governo passa a transferir recursos para o complexo médico-industrial a fim de que prestem serviços terceirizados e complementares ao SUS. A expansão do setor privado dos planos de saúde e dos convênios são expressões nítidas de um serviço de reprodução social que se torna mercadoria e de um campo do mercado que o capital privado abocanha para ter imensa lucratividade (CISLAGHI, 2015). No campo da Previdência Social, o ataque aos direitos previdenciários expressos nas várias medidas de contrarreformas de FHC, do que é elucidativa a Emenda Constitucional nº 20 (de1998), abriram um espaço profícuo para os fundos de pensão e planos de aposentadoria complementares privados. Sob o argumento da crise da previdência, que seria provocada por um gigantesco déficit em função da ampliação de aposentadorias e pensões em detrimento das contribuições sociais dos trabalhadores ativos, deferiu-se um ataque ao Regime Geral da Previdência.79 O ataque a Previdência Social pública além de abrir importante campo de investimento para os fundos de pensão, impacta diretamente nas relações entre capital e trabalho, haja vista o peso que a contribuição do trabalhador passa a ter na composição da sua aposentadoria. As contrarreformas neoliberais também impactaram a indústria, como sinalizamos. Cano (2012) chama atenção para a repercussão das políticas neoliberais na direção de uma possível desindustrialização que começa a ocorrer na década de 1980. Para o autor, várias medidas influenciaram uma “nociva e precoce desindustrialização”: a política cambial empregada com o Plano Real e as reformas liberalizantes, mencionadas aqui, a abertura comercial, com a queda das tarifas e demais protecionismos à indústria brasileira, a taxa de juros elevada do país, o crescimento vertiginoso do Investimento Direto Estrangeiro (IDE).80 Paulani (2008) também problematiza o movimento contracionista da indústria no Brasil. A autora destaca a queda dos investimentos e a participação declinante da produção manufatureira no PIB. As décadas de 1980 e 1990 presenciaram no Brasil um processo de desindustrialização relativa, com o rompimento dos nexos interindustriais das principais cadeias de produção e com a redução substantiva do setor de bens de capital, movimento esse que, em termos macroeconômicos e de contabilidade

79 O argumento do déficit previdenciário é sempre reposto no cenário nacional como via de chantagem para conferir legitimidade às reformas previdenciárias. A tese de Doutorado de Denise Lobato Gentil desmascara essa falácia, com análise do período 1990-2005. Outros autores ratificam esse caráter falacioso do déficit previdenciário nos anos recentes, como Assis (2011, 2017), Granemann (2016), entre outros.

80 Trata-se da movimentação de capitais internacionais para fins específicos de investimento. Ocorre quando empresas ou indivíduos de um dado país investem capital diretamente em economias diferentes da sua origem. 156

nacional, significa uma redução do valor agregado interno sobre o valor bruto da produção (BELLUZZO apud PAULANI, 2008, p. 129).

No capitalismo tardio mandeliano, em especial, só há investimento produtivo com a contrapartida de grandes incentivos estatais. Nesta direção, para manter o nível de produtividade industrial81 o Estado “passa a oferecer facilidades e vantagens (atratividade), em especial por meio dos mecanismos de renúncia fiscal”. Além disso, “tais incentivos corroem o orçamento público e resultam no desmonte da cadeia produtiva instalada, considerando que as empresas transnacionais tendem a não comprar insumos nacionais” (BEHRING, 2008, p. 158). Assim também, a dinâmica da queda das regulações das trocas internacionais na mundialização abriu espaço para tornar variadas regiões do planeta, pontas receptoras de produtos industrializados externamente, e isso vai operar no Brasil, sugerindo outro reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho. A direção neoliberal do Estado implicou num jogo de forças para a flexibilização das relações trabalhistas, uma vez que esta designa como mote central a retirada do Estado da regulação das relações entre capital e trabalho. O Estado deve intervir minimamente nas relações de trabalho, deixando as definições de normas e regras das condições de trabalho para os acordos entre patrões e empregados. Ao fim das contas, o que desejam as personificações do capital é dispor de liberdade irrestrita para explorar a força de trabalho, livre das imposições e limitações que o Estado pode pôr a esta exploração em razão da construção de consenso com os trabalhadores, quando em lutas sociais. O governo FHC consolidou a flexibilização das relações de trabalho por meio de mudanças na legislação trabalhista, sobretudo por meio da aprovação da Lei 7.601/98 e do Decreto nº 2.490/2004, em que direitos históricos dos trabalhadores foram suprimidos ou restringidos drasticamente, como redução no depósito do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), compensação das horas extras sem o pagamento em dinheiro, criação do banco de horas, limitação da garantia de estabilidade para a gestante, o acidente no trabalho e a representação sindical sofreram modificações prejudiciais aos trabalhadores, restrições ao seguro desemprego, ampliação de utilização dos contratos temporários, entre outros (MIANI, 2005).

81 Isto por que, a despeito da gestão neoliberal do Estado canalizar sua agenda para as demandas do mercado financeiro, isso não significa a sua saída da condição de importante dinamizador do setor industrial. Nossa pretensão é problematizar a mudança de rota que implica a hegemonia da fração financeirizada do capital e a consequente guinada do Estado para suas demandas. Ademais, vale ressaltar que não há uma cisão rígida entre as frações do capital, visto os intensos processos de fusão do capital financeiro com o capital produtivo industrial. 157

No Brasil, flexibilização do trabalho assume conotações dramáticas, dadas a histórica exploração exacerbada da força de trabalho no Brasil, as relações autoritárias, as condições precárias, o salário aquém do valor de reprodução da força de trabalho, a grandiosa informalidade laboral, entre outras (IDEM). Ou seja, nosso bloco empresarial-industrial sequer chegou a generalizar – em excelência – o padrão fordista de produção. Parece-nos que, no máximo, pode-se falar em produção de massa em moldes periféricos. Diante desse quadro histórico-concreto, pensar a flexibilização da produção sob moldes toyotistas nos leva a ponderar a forma enviesada, precária e contingente em que tal processo se efetiva, impulsionado pelas novas referências de trabalho socialmente determinado encoberto pelo slogan da chamada competitividade internacional. Segundo Antunes (2005), os determinantes da reestruturação produtiva, que se desencadeia a partir da década de 1990, na particularidade brasileira, foram: a) a necessidade de as empresas brasileiras adequarem-se às novas regras da “competitividade internacional”; b) as ações das empresas transnacionais que levaram à adoção, por parte de suas subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e tecnológicos, em alguma medida inspirados no toyotismo e nas formas flexibilizadas de acumulação que se desenvolviam no capitalismo avançado; c) a necessidade das empresas nacionais de responderem ao avanço do novo sindicalismo brasileiro, que procurava estruturar-se de modo autônomo e mais fortemente organizado nos locais de trabalho (ANTUNES, 2005, p. 133).

Na prática, começava a direcionar o processo produtivo para a desconcentração da produção industrial, com deslocamentos de linhas de produção para regiões mais interioranas do país, sem grande tradição de organização sindical e contando com grandes ganhos em incentivos fiscais de governos locais, além do recurso ao trabalho doméstico-familiar; as subcontratações, aliada das terceirizações; além da implementação de programas de qualidade total que se configurou como empreitada ideológica de grande monta para transformar os trabalhadores em fiscais uns dos outros. O neoliberalismo além de não ter realizado suas promessas centrais de superação da crise econômica, de inserção competitiva do país no cenário mundial, de diminuição da pobreza, de aumento do emprego formal e da renda per capta, colocou o país na eminência de um colapso social. Em outros termos, nem do ponto de vista da economia, propriamente dita, nem do ponto de vista das falaciosas promessas de melhoria na qualidade de vida das pessoas (como era de se esperar), o neoliberalismo no Brasil foi capaz de realizar as façanhas propagandeadas. Senão pelo aumento suntuoso da desigualdade social e da concentração de renda, a ofensiva neoliberal no país não conseguira concretizar aquilo que a crítica já considerava mera falácia: transformar o país numa economia pujante e distribuir e garantir melhora de vida para toda a população. 158

Pochmann (2001) assinala que as privatizações ocasionaram, entre 1995 e 1999, a perda liquida de mais de 300 mil postos de trabalho; no setor industrial ocorreram cerca de 1,2 milhão de demissões. Os rendimentos do trabalho também foram afetados significativamente. Em 1989 o rendimento real do trabalhador era equivalente a 560 reais, ao passo que em 1999 era de 525 reais. Na segunda metade da década de 1990, 40% da força de trabalho estava subempregada ou desempregada; a renda per capta aumentou apenas 1% ao ano, apresentando resultado inferior à década de 1980 (1,5% ao ano) (SAMPAIO Jr., 2017). No que diz respeito aos indicadores de pobreza e concentração de renda, os dados corroboram o argumento desse desastre social do neoliberalismo. De acordo com Castro (et al., 2003), entre 1995 a 2001 verifica-se que a proporção da população abaixo da linha de pobreza aumenta 0,6 ponto percentual, ao mesmo tempo em que a de indigentes sobe 0,4 ponto percentual. Ao final de 1999, 34,0% da população brasileira viviam abaixo da linha de pobreza; e no ano de 2001, a renda média dos 10% da população mais rica é 23,6 vezes superior à renda média dos 40% mais pobres. De acordo com Mauriel (2009), já na década de 1980 o debate das agências multilateriais reificava a globalização financeira e naturalizava a pobreza (que se manifestava já como fenômeno global), tomando-a como inevitável e parte integrante dos processos sociais contemporâneos, ao passo que “combate-la (ou administrá-la) implica a manutenção do padrão de expansão capitalista em curso sob hegemonia norte-americana” (MAURIEL, 2009, p. 55). É nesse contexto que tais instituições passam a colocar a diminuição da pobreza como critério condicional dos acordos de empréstimos com o Banco Mundial e com o FMI paulatinamente ao longo dos anos 1990. Isso pode ser corroborado nos Relatórios do Banco Mundial de 1990, 1991 e 1992, em que a pobreza passa a centralizar o debate em torno da política social. Conforme Mauriel (2009), sucessivamente, o relatório de 1995 aponta a necessidade de promoção de expansão dos mercados para melhorar as condições de vida das pessoas, especialmente os mais pobres; no de 1996, a redução da pobreza e o desenvolvimento sustentável aparecem como determinações centrais para direção das políticas sociais. O combate à pobreza, portanto, expressa mais um conjunto de iniciativas orquestradas internacionalmente pelas organizações econômicas multilaterais do que um grupo de mecanismos pontuais de enfrentamento da questão social concebidos separadamente em escala nacional. E combater a pobreza, muito mais que uma retirada do Estado na área social, significa um redirecionamento qualitativo das ações estatais no cenário internacional, traduzindo-se em estratégias de controle e regulação do trabalho a baixos custos no mercado mundial (MAURIEL, 2009, p.64).

159

É no cerne desses movimentos mais amplos que o Brasil passa a investir nos programas de “alívio à pobreza”, iniciados já nos governos FHC, com grande ênfase no seu segundo governo, sobretudo, com a instituição dos primeiros programas de transferência de renda e a patente ofensiva contra as possibilidades de um amplo sistema de proteção social, conforme preconizava a Constituição Federal de 1988. Na entrada dos anos 2000 estavam postas as condições de novo desdobramento da crise do padrão de acumulação, agora consolidada sob a batuta do neoliberalismo. O Plano Real havia possibilitado redução da inflação, mas processou-se alta substantiva na taxa de câmbio real e o país passou a acumular, a partir de 1996, uma balança comercial com saldos negativos, que alcançaram o montante de US$ 38, 1 bilhões, ao mesmo tempo em que a dívida externa aumentou cerca de 100%, “saltando de US$ 123,4 bilhões em 1990, para US$ 235 bilhões, em 2000” (BANDEIRA, 2002). Conforme atesta Bandeira (2002), o alto endividamento do país, conjugado com a perda de competividade e o desequilíbrio da balança comercial, ocasionou um déficit na conta corrente do balanço de pagamentos, o qual representou cerca de 60% das exportações, abalando a confiança dos investidores, na esteira das crises da Ásia, em 1997 e da moratória da Rússia, em 1998. Neste contexto, o país sofreu um ataque especulativo de largas proporções para a desvalorização do real, acarretando a perda de dois terços das reservas internacionais, deflagrando uma crise financeira de grande envergadura. O que não significa, naturalmente, que estavam postas condições de superação do padrão de acumulação assentado no neoliberalismo. Na alvorada de um novo milénio, o Brasil encontrava-se numa travessia histórica. Colocavam-se na ordem do dia requisições intricadas que expressavam os diversos interesses das classes sociais para assumir a direção sociopolítica do Brasil. Ao final dos dois governos referidos é possível entender a ferocidade das medidas e impacto real da crise sobre o país. De acordo com Gonçlaves (2013), o governo FHC aumentou a distância entre o nível de renda média do mundo e o do Brasil. A variação real do PIB neste período foi de 2,3, com um hiato de crescimento negativo de -1,1. A taxa média de investimento foi de 1,2, (bem menos que a do governo Lula, por exemplo, que foi de 7,1) ao passo que a inflação ficou em 17,7%. Ainda conforme o autor, os governos de FHC foram marcados pelos mais elevados níveis de endividamento da história brasileira.82 A razão dívida pública interna/PIB foi de 31,7 e a razão dívida externa/PIB de 395,1.

82 O autor explica que o governo Lula é o outro governo de maior endividamento, considerada a série histórica de 1890-2010. 160

Apesar da aplicação ortodoxa das medidas de estabilidade econômica ditadas pelas instituições multilaterais, o Índice de Desempenho Macroeconômico na era FHC foi medíocre, conforme atestam os dados apresentados em Gonçalves (2013), ficando em 39,6, ocupando a penúltima posição entre os índices dos mandados presidenciais da série histórica de 1890-2010. Mas é inegável que FHC consolidou sua intensão de descontruir o legado varguista como mencionou que objetivava (CALDEIRA, 2016) e o término do seu governo demonstrava que ele havia colocado a pá de cal na estratégia desenvolvimentista, mostrando- se contemporâneo ao domínio do capital. Com grandes expectativas e com uma grande missão à frente, o Partido dos Trabalhadores (PT) chega à presidência da República em 2003, aproveitando-se das críticas ao assombroso cenário empreendido por essa primeira fase neoliberal no país. Entretanto, não seria um projeto alternativo ao neoliberal o que a sociedade brasileira presenciaria.

2.4 Os governos petistas e seu projeto de enfrentamento à crise do capital: reprodução apologética do capital e a narrativa da justiça social

O PT chega à esfera mais alta do executivo brasileiro sobre grande comoção social. Frações majoritárias da classe trabalhadora veem na eleição de Lula um evento histórico e catalisador de um novo tempo para o país. Movimentos sociais, segmentos mais progressistas da sociedade, intelectuais e artistas demonstravam grande euforia na vitória do ex-operário (GARCIA, 2012). Tanto entusiasmo não era injustificado, afinal de contas a história de vida e luta de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) era de imensa identificação com tantos outros trabalhadores do país, na condição de operário metalúrgico na região que se industrializou no contexto do ciclo de substituição das importações como plataforma das multinacionais do automobilismo - São Bernardo do Campo/ São Paulo -, depois de migrar do interior do estado de Pernambuco. O partido que ele ajudara a fundar, na década de 1980, o PT, tinha bases fincadas nas lutas sindicais e políticas na esquerda, ao longo dos governos anteriores; oposição aguerrida e de luta sistemática contra a ditadura civil-militar e a agenda neoliberal. Paradoxalmente, as classes dominantes não apresentavam sinal de desespero com a eleição de Lula, o que era elucidativo da certeza de que dispunham quanto ao fato de que o PT 161

não levaria a cabo nenhum projeto radicalmente reformista para o Brasil. Isto já se insinuava nas próprias alianças compostas pelo PT para garantir a eleição de Lula nas eleições presidenciais de 2002 e pela própria conduta do candidato Lula no pleito eleitoral, sobretudo, com a “Carta ao povo Brasileiro” (BRAZ, 2004). Antes de tratarmos dos governos petistas, vamos retomar a trajetória de sua constituição e desenvolvimento para angariar elementos importantes à análise desenvolvida na pesquisa.

2.4.1 O PT: do “ideal socialista” ao projeto democrático-popular “ultraflexibilizado”

Como se sabe, a ascensão de Lula à Presidência da República marca, paradoxalmente, a vitória de um partido fortemente ancorado na classe trabalhadora e a derrota de um projeto efetivamente calcado em demandas históricas dessa classe, conforme pudemos apurar retomando o processo de sua construção histórica e agenda político-governamental consolidada ao longo dos anos 2000. A contradição é estarrecedora. Mas depois de 14 anos à frente do Executivo Federal, o PT confirmou que, definitivamente, não é mais o partido formado\fundado na virada dos anos 1970 para os anos 1980, com a utopia das reformas sociais estruturantes da superação da concentração de terras, de rendas e das iniquidades sociais. Surgido da intensa confluência de segmentos diretamente vinculados ao operariado industrial do país, setores da Igreja Católica, intelectuais e parte da classe média de caráter progressista, alguns segmentos da esquerda e da extrema esquerda, que no cerne da crise da ditadura civil-militar empenhavam importantes lutas contra o regime autoritário, pela abertura democrática e pelos direitos dos trabalhadores, o PT condensava as aspirações e esperanças de vários sujeitos coletivos em função da construção de outro projeto societário para o país. No centro desse processo se encontra a “retomada da luta sindical e operária” como “um ponto de fusão de classe cuja expressão política foi à formação de um partido [...]” (IASI, 2006, 375). Apesar de nunca ter se reivindicado como um partido de orientação marxista, o PT fundamentava-se, em seus primórdios, no socialismo (IASI, 2006; GARCIA, 2012). A delimitação enfática quanto ao caráter anticapitalista do partido estava clara na programática, se colocando abertamente à frente da luta pela construção de uma sociedade sem exploração do trabalho. 162

Esse caráter anticapitalista se esboçara nos documentos prévios à fundação do PT, sobre forte influência do movimento sindical, principalmente, das greves do ABC paulista de 1978-1979, conforme atesta Iasi, ao apresentar elementos da Carta de Princípios do PT (1979), que “relata que a unidade dos trabalhadores vem em resposta ao modo e unificação dos próprios setores do capital para enfrentar as greves operárias do final de 1970” (IASI, 2006, p. 377). Assim, o caráter classista do partido que surgia ficava evidente e se esboçaria em outras passagens da Carta de Princípios e Declaração Política de outubro de 1979, conforme esclarece Iasi: Resgatando a célebre frase de Marx, a carta de princípios afirma que “o Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores”, assim como insiste que “a única força capaz de ser fiadora de uma democracia efetivamente estável é das massas exploradas do campo e das cidades” (IASI, 2006, p.379).

Além de declarar abertamente esse caráter classista, o PT se apresentava como opção concreta e radical frente aos partidos conservadores vigentes no país e se autodenominava enfaticamente como alternativa ao próprio Partido Comunista Brasileiro (PCB), atestando sua radicalidade contra quaisquer possibilidades de aliança com a classe burguesa. Isto por que, o PT entendia que a proposta democrática-nacional do PCB enveredava pela necessidade de formar coalizações com a burguesia nacional, opção absolutamente refutável para o PT à época (IASI, 2006; GARCIA, 2012, QUEIROZ, 2016; MARQUES, 2015). Conforme demonstra Iasi (2006), a meta socialista estava muito bem explícita nos documentos que basilaram a fundação do PT. No 1º Encontro Nacional do PT em 1981, tratava-se de delimitar “qual socialismo” seria aquele, na clara intenção de afirmar uma suposta originalidade do partido. Essa originalidade procurava ser “fundada em uma dupla diferenciação: de um lado, a negação dos limites paliativos da socialdemocracia; e de outro, a intenção de se diferenciar das transições socialistas caracterizadas como ‘burocráticas’” (IASI, 2006, p. 387), em referência, nesse último caso, às experiências sob a órbita da antiga experiência comunista da União Soviética. A plataforma política que condensa a proposta do PT organizava-se em “três grandes blocos temáticos (liberdades democráticas, melhores condições de vida e de trabalho e questão nacional)” (IASI, 2006, p. 381) e entre os aspectos que qualificam a meta “socialista” do partido em formação estavam: Erradicação dos latifúndios improdutivos e distribuição das terras aos trabalhadores sem terra; Nacionalização e Estatização de todas as empresas estrangeiras; Nacionalização das grandes empresas e bancos; Estatização das fontes e das empresas de energia, indústria extrativa e de infra-estrutura; Controle popular dos fundos públicos (IDEM, p. 381).

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Tratava-se, assim, de um partido de base operária com um “programa radical de reformas democráticas com um objetivo socialista” que “associado em maior ou menor grau a uma alternativa socialdemocrata, apresentava uma radicalidade classista inegável” (IASI, 2016, p.383). O socialismo continuaria a ser objeto de debate no PT por muito tempo e estaria fincado na plataforma do partido por muito tempo, apesar das inflexões e ressignificações pelo que seria objeto. Os limites do PT quanto à delimitação de uma agenda política efetivamente socialista vão aparecendo ao longo da década de 1980, e na alvorada da década de 1990 estavam já fincadas às bases de um projeto eminentemente democrático-popular que quase nada mantinha da perspectiva socialista que condensava os valores políticos do PT, especialmente de alguns segmentos mais radicalizados. Os apontamentos de Marques (2015) lançam luz sobre essa questão. Para a autora, o PT apresentava já alguns equívocos significativos mesmo na sua radicalidade anticapitalista e demonstra o que considera serem os “três momentos de amoldamento do ‘socialismo petista’: um prévio às eleições de 1989, um pós-eleições no decorrer dos anos 1990 e a falência declarada do governo PT a partir de sua posse em 2002” (MARQUES, 2015, p. 193). Iasi (2006) também faz análises nessa direção. Para ele, é no 7º Encontro, em 1990, que se dá o início de uma “inflexão moderada”. Neste encontro, se expressaram mais claramente as dissidências internas do partido e se colocou um debate mais acirrado entre os contra e os a favor do socialismo. Neste contexto, “o contraponto ao capitalismo é cada vez mais a ‘democracia’ e não o socialismo” e nesta direção, a convicção democrática que se fez presente nos documentos e vida partidária do PT, assumia centralidade em outro sentido. Em 1992 tais dissidências assumem contornos mais recrudescidos, com a expulsão de partidários ligados à corrente Convergência Socialista, que mantinha clara tendência mais à esquerda. Se de início, “o centro da meta estratégica era a afirmação socialista, de modo que o aspecto democrático aparecia como que o qualificando. Agora a democracia é o centro e o aspecto socialista aparece para qualificar a democracia que queremos” (IASI, 2006, p. 455). No intercurso desses processos, a despeito da burocratização do partido e da crescente valorização dos aspectos estratégicos eleitorais, – inclusive com arrefecimento das mobilizações de massas e da militância tradicional, das espinhosas experiências do partido a frente de prefeituras e no Parlamento, com visível recuo face às demandas institucionais –, Iasi aponta uma “inflexão à esquerda no curso de uma trajetória à direita” (IDEM, p.455). Isso ficou visível, conforme o autor, no 8º Encontro Nacional que ocorre no meio do aprofundamento de uma divergência interna fundamental: alguns setores do partido 164

apontavam o caráter de classe restrito do PT e de suas políticas de alianças limitadas como a causa do fracasso eleitoral; outros setores continuavam a defender o leque de alianças estabelecido, pela coerência com a “política de acúmulo de forças e disputa de hegemonia para atingir a meta socialista defendida pelo partido”. Eram temerosos de que “a inflexão ao centro, com a moderação programática e a ampliação das alianças, pudesse descaracterizar o partido e sua proposta” (IASI, 2006. p. 495). A partir deste Encontro as disputas internas em torno da direção política a ser assumida pelo partido assumem dimensões cada vez maiores, o que desaguou na formação de uma tendência dentro do partido chamada “Articulação de Esquerda”. Reconfiguram-se assim, blocos no interior do partido. Na votação de 1993 para a direção do partido, a Chapa Opção de Esquerda venceu a Chapa Articulação Unidade na Luta, que era a chapa de Lula. Esse resultado marcou a manutenção da proposta de “Revolução Democrática” com uma perspectiva mais à esquerda e aos valores socialistas na programática do partido. (IDEM). Essa inflexão mais à esquerda no interior do partido não seria mantida por muito tempo. A derrota eleitoral de Lula em 1994 para FHC abriria um ciclo de novas inflexões que se aprofundariam nos períodos seguintes na direção de garantir a vitória eleitoral, ainda que com sacrifício da plataforma política histórica e a abertura definitiva à formação de alianças com setores burgueses e até conservadores da sociedade brasileira. É sob o signo da moderação e da ampliação do leque de alianças que o PT demarca seu trajeto para a vitória presidencial de 2002. O contexto que compreende esse processo, que abarca a realização do 10º ao 12º Encontros Nacionais, envolve os dois governos consecutivos de FHC (IASI, 2006) e o horrendo processo de desertificação neoliberal que empreendeu (ANTUNES, 2005). Ou seja, nesse trajeto de mudanças também o PT converte sua agenda de princípios e estratégias. Ao longo desse período a aguerrida oposição do PT ao governo FHC, a despeito da inflexão em andamento no partido, o colocava como principal oponente do projeto neoliberal impetrado por FHC. Os resultados drásticos do neoliberalismo, desde o fracasso econômico ao desastre social, apontavam para uma crise de legitimidade de grande envergadura. Neste tempo, “o PT alcançou o ápice de sua trajetória, aumentando consideravelmente o número de parlamentares, administrações municipais e chegou ao governo de alguns estados brasileiros” (IASI, 2006, p. 506). Contraditoriamente, essa expansão acarretava o aumento do “risco e a dimensão de suas deformações” (IDEM). As relações com os movimentos sociais eram mediadas por uma cadeia de relações institucionais, que envolviam a burocratização do partido, a militância 165

profissional, a massificação das ações municipais, o distanciamento da direção das bases do partido, a constituição de cúpulas poderosas e a substituição da construção de propostas coletivas no âmbito dos encontros partidários pela constituição dessas propostas em gabinetes com poucos “representantes do partido” junto a assessorias e consultorias (IASI, 2006). Esse é um marco importante, pois um dos diferenciais da experiência petista era ser um partido de massas com a articulação com as bases dos movimentos sociais e de seus filiados, contando com fóruns representativos de decisão desde os bairros e municípios. Garcia (2012) chama atenção para outro aspecto importante desse processo de “estranhamento” do PT com seu projeto icônico do período de sua fundação, que é a adesão à lógica do marketing político e eleitoral, entregando os rumos de suas campanhas aos chamados “marqueteiros”, em estratégia análoga aos partidos burgueses, que já se insinuava na campanha eleitoral de 1998. Apesar de haver espaço para contradição e lutas internas no partido, que se expressa, por exemplo, na insatisfação de alguns setores internos, a campanha eleitoral de 2002 é o “clímax” do processo de transformismo83 do PT. Utilizando-se de todos os mecanismos para garantia da vitória eleitoral – desde o uso irrestrito do marketing ao recebimento de financiamento de campanha por empresas dos mais diversos setores da economia – o partido apresentava uma proposta visivelmente atrelada aos interesses das classes dominantes, procurando demonstrar sua capacidade de gerir a crise capitalista no país, sem afetar os interesses das frações hegemônicas do capital. Em suma, estava clara a complacência com as determinações do projeto neoliberal que duramente criticara em tempos anteriores. O PT se apresentava no cenário político brasileiro como a opção mais viável para a burguesia nacional e internacional que tinhas interesses rentistas no Brasil, já consolidado como plataforma de valorização financeira periférica. Assentando na legitimidade de que dispunha junto à classe trabalhadora, o PT, sobretudo na personificação de Lula, apresentava as condições de manter as duras regras do ajuste neoliberal, sem o risco de uma irrupção drástica no cenário das lutas sociais, já que dispunha dos mecanismos fundamentais de passivização desses conflitos.

83 “Transformismo é o conceito utilizado por Gramsci em sua análise do período da história italiana conhecido como o Risorgimento, durante o qual ocorreram os processos que levaram à formação do Estado moderno na Itália. O termo denomina o fenômeno de assimilação e implementação, por parte de indivíduos (transformismo molecular) e/ou agrupamentos políticos inteiros (transformismo de grupos), do ideário político-ideológico dos seus adversários ou inimigos políticos. Sinteticamente, trata-se de um processo de adesão (individual ou coletiva) ao bloco histórico dominante, por parte de lideranças e/ou organizações políticas dos setores subalternos da sociedade, com o abandono de suas antigas concepções e posições políticas” (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 182). 166

Segundo Braz (2004), o mercado queria, no entanto, a certeza de que essa orientação seria cunhada por Lula e é nesse sentido que a famosa “Carta ao Povo Brasileiro” (chamada de Carta aos Banqueiros, por setores mais radicais da esquerda brasileira) vem selar esse compromisso. Nesta Carta, Lula assumia diversos compromissos em relação aos contratos do país, assegurando que os mesmos seriam honrados, que as regras para manutenção do superávit primário seriam mantidas, enfim, que as regras do jogo político econômico burguês continuariam abalizadas pelos ditames neoliberais. Olhando retrospectivamente, parece que ali, com aquela carta, estava consumada a vitória da estratégia democrático-popular do PT, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, se consolidavam as condições de seu rebaixamento a uma versão ultraflexibilizada. Ou seja, a transformação daquela estratégia numa uma agenda centrada no pragmatismo partidário em função das alianças eleitorais, e suas propostas funcionais às requisições do mercado, conciliado a tímidas propostas de intervenção sobre as demandas da classe trabalhadora, principalmente a fração mais empobrecida. Neste interim, é necessário trazer alguns elementos que elucidem a problemática da estratégia democrático-popular no Brasil. De acordo com Iasi, o ciclo histórico das lutas da classe trabalhadora no Brasil entre a década de 1940 até o Golpe Militar de 1964 teve como estratégia determinante a chamada Revolução Democrática Nacional (RDN), tendo como principal expressão política o PCB (MAZZEO apud IASI, 2012). Segundo Iasi (2012), as bases teóricas e ideo-políticas da RDN remontavam às formulações do VI Congresso Internacional Comunista, em 1928, que afirmava a impossibilidade da passagem para a ditadura do proletariado em países classificados como “coloniais e semicolônias”, sem antes passar por “etapas preparatórias”, que significava, na verdade, o desenvolvimento da revolução democrático-burguesa. Ele alerta ainda para o fato de que estas formulações não eram transpostas para o Brasil sem mediações. Antes, se desenrolava “um processo de absorção que levava em conta os interesses e o próprio desenvolvimento das organizações políticas no Brasil, e é fato que o PCB [...] iria sustentar sua estratégia levando em conta esta verdade estabelecida” (IASI, 2012, p. 204). A despeito da reivindicada originalidade do Partido dos Trabalhadores, é no Programa Nacional Democrático do PCB nas experiências de luta dos trabalhadores brasileiros, que se constituíram a “base histórica e política a partir da qual se formulará o Programa Democrático- popular, já no ciclo histórico do Partido dos Trabalhadores (PT)” (IDEM, p. 403). 167

Marques (2015), analisando a constituição do que viria a ser a chamada estratégia democrático-popular capitaneada pelo PT, traz alguns elementos importantes que nos ajudam a lançar luz sobre esse processo. O ‘ponto’ de aglutinação e impulso organizativo para tal movimento, simbólico a todos os grupos em ascendência e luta no período - do operariado às massas populares - consolidou-se, justamente, em torno da luta democrática e pela requisição das reformas sociais e direitos até então negligenciados. Em torno do trabalho, da saúde, da educação, da assistência, do direito à cidade e à agricultura familiar, dentre tantas outras bandeiras, buscou-se articular o que Fernandes denominou por “reformas burguesas em atraso” a um projeto societário contra- hegemônico. Tais articulações nos anos 1980 iriam dar materialidade ao que foi denominado por Projeto Democrático-Popular, tendo no Partido dos Trabalhadores (PT), na Central Única dos Trabalhadores (CUT) e no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) sua vanguarda, e nas lutas por reformas de inegável teor civilizatório, sua gênese (MARQUES, 2015, p. 148).

A autora, de modo análogo a Iasi (2012) e Queiroz (2016), também atesta a influência da teoria da Revolução Democrático Nacional, esclarecendo que “essa programática apenas vai adquirir a nomenclatura “Democrático-Popular” a partir do 5º Encontro Nacional do PT (1987) e em obras posteriores de Florestan Fernandes, frutos da sua militância política e partidária” (MARQUES, 2015, p. 20). O então chamado Programa Democrático-Popular (PDP), conforme citado, foi assim nomeado no 5º Encontro Nacional do PT, ocorrido em 1987. A essa altura, o PT já se projetava para as eleições presidenciais de 1989, ratificando sua posição de ser uma opção eleitoral. Posição esta que já estava posta desde a fundação do partido. Nesta quadra, o radicalismo socialista começa a ceder espaço cada vez mais para a chamada “estratégia democrática”. Neste interim, acentuam-se as diferenças do Programa Democrático-Popular do PT com a Revolução Democrática Nacional do PCB. Queiroz (2016) assinala que a orientação do PDP naquele Encontro de 1987 se delineava de modo muito preciso: a “estratégia perseguida tem desde o início um pressuposto tático central, aquele referente à necessidade do partido lograr o controle do Estado brasileiro, com vistas à viabilização da implantação do Socialismo no Brasil” (QUEIROZ, 2016, p. 472). Após o Encontro de 1987, a questão do “acúmulo de forças” dava gás à nova direção do partido para a garantia da via eleitoral e da conquista dos espaços institucionais como momentos estratégicos de transformações de maior monta que se seguiriam. A possibilidade de um programa socialista cedia cada vez mais espaço ao PDP, ao anticapitalismo radical se contrapunha em medida crescente a aposta em um governo democrático e popular. O PDP ganha mais respaldo e solidez a partir da derrota de Lula nas eleições presidenciais de 1989, 168

mas seguindo o caminho do recuo e da inflexão, flexibilizando cada vez mais a radicalidade em favor da moderação do programa. Deste modo, aquele contexto histórico que recuperamos, da fundação do partido às eleições de 2002,84 condensa um processo de transformismo do partido dos Trabalhadores que vai da reivindicação do socialismo como bandeira de luta ao PDP muito aquém da sua formulação original, na verdade, uma versão “ultraflexibilizada”. Se aquela formulação original continha os limites da direção socialdemocrata, o que se apresenta para o primeiro governo Lula é uma versão vulgar PDP que não chega a constituir, sequer, as bases de uma “socialdemocracia”. O que se consolida no primeiro governo do PT no executivo federal é o resultado desse processo de transformismo, que repercutirá nos pontos centrais da agenda dos governos petistas, que corroboram as ilações aqui situadas em largos traços.

2.4.2 Os governos petistas e a conclamação ao crescimento econômico com “inclusão social”

A chegada do PT ao Planalto Central, em 2003, foi seguida da afirmação de uma direção social contrária às expectativas alimentadas pelas frações mais progressistas da sociedade em relação a um partido de histórica filiação à esquerda. Apesar das análises já correntes quanto ao processo de alianças conservadoras que levaram Lula à presidência – das quais uma das mais contraditórias foi a definição do empresário José de Alencar do Partido Liberal para vice-presidente – muitos setores críticos do PT ainda acreditavam na possibilidade de um governo em disputa. A presença de segmentos dos movimentos sociais em espaços institucionais, de intelectuais e algumas figuras políticas de direção mais radical em âmbitos de decisão alimentavam esperanças da possibilidade do conflito e da luta em torno das demandas populares mais progressistas. Passados os primeiros meses de governo, as medidas adotadas demonstravam uma clara guinada à programática neoliberal. O governo Lula estabeleceu, aos olhos de Paulani

84 “De eleição em eleição (1989, 1994, 1998 e 2002), o PT se transformou politicamente, tornando-se um enorme aparelho burocrático. Este aparelho se tornou um eficiente instrumento de ascensão econômico-social, gerando, para seus integrantes, emprego, prestígio e proximidade com o poder econômico. Isto se refletiu diretamente no financiamento das campanhas eleitorais, nos programas de governo, nos discursos, nas alianças político- eleitorais e mesmo, nas formas de recrutamento e de fazer as campanhas – com a gradativa substituição de militantes por cabos eleitorais remunerados” (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 186). 169

(2010), um verdadeiro “estado de emergência econômico”. De fato se reproduzia no país, nas particularidades de economia dependente, as condições da crise estrutural do capital. Mas a captura ideológica da crise, transformando-a numa justificativa para adoção de medidas duras de ajuste fiscal, tornou-se um artifício extremamente profícuo para legitimar as duras medidas que oneram a classe trabalhadora e asseguram demandas do capital. Isso permitia alardear a ideia de que se vivenciava em constante estado de alerta quanto à estabilidade econômica – fundamental e imprescindível de acordo com as premissas neoliberais –, que justifica e fundamenta todas as medidas necessárias para superar este estado de emergência85. A eleição de Lula foi garantida com mobilização das massas, mas a pauta central da estratégia para a chamada “governabilidade” pode ser atribuída ao pacto da conciliação de classes. Em verdade, estiveram em disputa dois projetos que não eram antagônicos, necessariamente, mas que pleiteavam gerir a crise capitalista no Brasil e disputavam a direção desse processo. Neste sentido, compreende-se o projeto vencedor do PT como resposta peculiar de uma modalidade de consciência burguesa à crise do capital, na latitude do capitalismo dependente, que expressa à culminância do processo de transformismo do PT. Isto é, acoplado na legitimidade que o partido contava junto às camadas populares do país, o PT conseguiu a aderência da burguesia nacional para consolidar uma estratégia ampla de gestão da crise sob o ideário neoliberal. Tratava-se de garantir a continuidade do desenvolvimento capitalista, sob a direção de um governo capaz de apassivar os movimentos sociais e qualquer tentativa de levante popular autônomo. É neste sentido, que Soler (2015) aponta a consolidação de um “governo de coalizão preventiva”. Governo de coalisão preventivo, pois se antecipa ante a possibilidade de uma onda de indignação popular similar conforme ocorrida em países vizinhos. Nesse sentido, articula as políticas neoliberais com políticas de compensação social, o que lhe aufere enorme popularidade e garante um longo período de estabilidade política. Estamos agora em um momento onde o pacto social construído a partir de 2002 entrou em crise orgânica. Ademais, porque a aliança governamental com a burguesia nacional passa a ter o apoio progressivo dos demais setores dessa classe, do apoio da classe trabalhadora industrial e, a partir de 2006, do apoio explícito do subproletariado (setor mais empobrecido do proletariado) que votava tradicionalmente nos partidos tradicionais da burguesia (SOLER, 2015, p.2-3)

O capital financeiro permanece no topo da dominação burguesa no governo Lula e com isso todas as demandas a ele inerente: liberalização e desregulamentação do mercado,

85 O argumento da autora é similar à tese de Mota (1995) quanto à formação de uma cultura de crise, que objetiva socializar os custos do capital com toda sociedade, sobretudo com os mais prejudicados de sempre, os integrantes da classe trabalhadora. Formulando para isso uma narrativa governamental e midiática de que não há outro caminho possível. 170

metas de superávit primário, compromisso de imensa parte do orçamento federal para cumprimento de compromissos com a dívida pública. De acordo com Paulani (2008), existem muitas razões pela quais se pode admitir que o governo Lula foi neoliberal: a primeira razão seria a adesão sem rédeas ao processo de transformação do país em plataforma de valorização financeira internacional; ademais, a elevada taxa de juros, as mudanças no mercado cambial, que na prática facilita o envio de recursos ao exterior, a lei de falências, “que dá primazia aos créditos financeiros em relação aos créditos trabalhistas corroboram a ortodoxia da política macroeconômica neoliberal; a segunda razão decorre justamente do discurso de que existe somente uma política macroeconômica cientificamente corroborada: a matriz ortodoxa, ou seja, finamente alinhada às determinações do Consenso de Washington, com a manutenção das medidas duras de macroestabilidade econômica. Assim, a defesa irrestrita dos direitos dos credores, que a lei de falências86 consagrou, além da abertura de novas possibilidades de negócios consagradas pelas parcerias público-privadas (PPPs), aprofundaram a programática neoliberal, com uma segunda geração de contrarreformas. A terceira razão encontra-se na política social que se assenta fundamentalmente nas “políticas compensatórias de renda” (PAULANI, 2008, p. 70- 71). O governo Lula abraçou de modo antes inimaginável, o receituário ortodoxo de política econômica, adotando medidas duras, tais como: elevação do superávit primário, além do exigido pelo FMI, de 3,75% para 4,25% do PIB; demasiado aumento da então já elevadíssima taxa básica de juros, de 22% para 26,5% ao ano; brutal corte de liquidez (pelo aumento do compulsório dos bancos) (PAULANI, 2010). O aumento exorbitante dos lucros bancários, neste período, é expressão da hegemonia financeira. O diferencial de produtividade entre o setor financeiro e a esfera produtiva se relaciona ao diferencial de acumulação de capital nos dois setores. A relação entre os ativos totais dos 50 maiores bancos e das 500 maiores empresas do país no período de 2002-2010 evidencia a dominância financeira. Tal relação aumentou de 0,99 em 2002 para 1,74 em 2010. Isto é, antes do governo Lula o valor dos ativos dos 50 maiores bancos era quase igual ao das 500 maiores empresas, ao passo que no final do referido governo “o valor dos ativos dos 50 maiores bancos era 74% maior do que o valor dos ativos das 500 maiores empresas” (GONÇALVES, 2013, p. 108).

86 LEI No 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005. Sobretudo em função do instituto que reconhece diretamente os efeitos no Brasil da falência de um grupo econômico que tem sede no exterior. Ou seja, a proteção dos interesses de tal grupo econômico. 171

O arrocho no programa de ajustes neoliberais transcorreu pautado em várias estratégias/programas/ações/leis/decretos que aplanavam os auspícios de retomada da acumulação do capital. Entre os diversos dispositivos acionados podemos elencar: o amplo investimento no setor privado do campo educacional, com a ampliação do sistema de ensino à distância, o aumento dos recursos para o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), além da criação do Programa Universidade para Todos (PROUNI) que selou o processo de transferência do fundo público para o ramo empresarial da educação superior. Em 2006, dois anos após a sua criação, o governo concedeu, em isenção fiscal, mais de R$ 215 milhões. No último ano do governo Lula (2010), esse valor foi de mais de R$ 578 milhões;87 o grande boom do agronegócio, que chegou a cifra dos UU$ 76 bilhões neste mesmo período88, com largo investimento do Estado, facilitado pela liberação do uso de transgênicos e os mecanismos de facilitação à exportação; a manutenção das privatizações, com os leilões do pré-sal, a privatização dos aeroportos (Cumbica - Guarulhos, Juscelino Kubichec - Brasília e Viracopos – Campinas), leilão da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio leilão da Usina Hidrelétrica Jirau, portos e dos empreendimentos bilionários dos mega-eventos como copa do mundo de futebol (2014) e as olimpíadas mundiais de esporte (2016); também se deu a dura investida sobre a previdência social, com a impensável aprovação da reforma previdenciária,89 atingindo modalmente o funcionalismo público; a constituição de uma “cúpula sindical” com a atuação de líderes sindicais à frente dos fundos de pensão, entre outros elementos consubstanciaram um governo caracteristicamente neoliberal (OLIVEIRA, 2003) Oliveira (2003) situa em seus estudos as “convergências pragmáticas entre PT e PSDB” , estruturada sobre “de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (OLIVEIRA, 2003, p. 147). O controle do acesso aos fundos de pensão constituiria a identidade dos dois casos. (IDEM). Foram elevados à condição de gestores imediatos dos principais fundos de pensão do país

87 Dados da Receita Federal. Demonstrativo dos gastos tributários de 2006 e 2010.

88 Dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Disponível em: http://indicadores.agricultura.gov.br/agrostat/index.htm. Acesso em: 08/03/2018.

89 “A reforma da Previdência foi justamente o primeiro projeto de fôlego em que se empenhou o governo Lula. Logo nos primeiros meses de gestão, o novo governo manda ao Congresso um projeto de lei que propõe varias alterações nessa área, mas que afeta fundamentalmente o funcionalismo público, já que, no setor privado, a reforma fora implantada no governo anterior. Seu sentido básico foi alterar o funcionamento do sistema previdenciário dessa faixa de trabalhadores. Pretextando déficits insustentáveis e que se agravariam com o tempo, o governo propôs mudanças no sistema e previdência do funcionalismo que, concretamente, implicam a transição para um regime de ‘capitalização’ , em substituição ao ‘regime de repartição simples’ até então vigente” (PAULANI, 2008, p. 42-43). 172

(Previ, do Banco do Brasil, Petros, da Petrobrás e Funcef, da Caixa Econômica Federal), os dirigentes sindicais bancários Gilmar Caneior, Luiz Gushinken, Ricardo Berzoine e Sérgio Bossa (BRAGA, 2016). Não concordamos que tal processo configure a constituição de uma “nova classe social” como alude à ilação precipitada de Oliveira (2003), mas de fato, demarca uma inflexão importante no pacto de classes que deu sustentação ao regime de acumulação consolidado no governo Lula. Além da ofensiva ideológica que tal processo confere à previdência social pública, ela encerra uma variante ainda mais problemática do ponto de vista da identidade de classes e seu potencial contrahegemônico. Alçar trabalhadores – ainda que da mais alta cúpula sindical – à gestão de fundos de pensão de poderosíssimo alcance financeiro, conflui para constituição de uma oligarquia sindical, que afastada das bases do movimento trabalhista não mais está apta a representar os interesses dos trabalhadores. Essa acomodação repõe as contradições do capital fetiche ao limite, uma vez que entidades representativas dos trabalhadores tem assentos na direção de fundos que buscam rendimento financeiro e participam de metas de investimentos empresariais. Para tanto, são sujeitos investidores na própria expansão do sistema capitalista no país, aprofundando as mazelas do desenvolvimento capitalista. Formado por parte do valor de reprodução da força de trabalho, estes fundos agem como grandes financiadores do capitalismo no Brasil. E ao funcionar como capital de investimento fomentam processos que visam aumento da produtividade real do valor, o que significa ofensiva constante sobre os próprios trabalhadores através de reestruturações que permitam mais exploração do trabalho. Braga (2016) alerta para o mecanismo ideológico que assenta esses processos no sentido da “transformação dos trabalhadores em investidores”. O autor aponta que o que está em tela não é essa possibilidade, mas sim a necessidade do capital, no Brasil, se utilizar destes fundos para financiar fusões e aquisições de empresas no país, assumindo relevância no financiamento da ologopolização da economia, que ao final das contas sempre incide sobre a própria força de trabalho, diminuindo o poder de negociação dos trabalhadores, além de atuar no enxugamento dos setores das empresas. Santana (2017) lança luz sobre esse processo com dados expressivos. O autor demonstra que entre 2003 e 2007, a carteira consolidada dos fundos brasileiros cresceu de 12,6% para 16% do PIB. Entretanto, com a crise financeira de 2008, o “volume dos ativos das entidades fechadas caiu significativamente (para 13,5%), obtendo um aumento moderado em 2009 (14,8%)” (SANTANA, 2017, p. 101). A partir de 2010 iniciou-se uma trajetória de queda quase ininterrupta do volume dos ativos em função tanto da maior volatilidade do 173

mercado financeiro nacional e internacional, quanto pelo baixo dinamismo da economia brasileira no governo Dilma, caindo de 13,9, em 2010 para 12,2, em 2014. Os fundos de pensão das empresas públicas continuam sendo os maiores do Brasil, com destaque para os modelos do Banco do Brasil (Previ), Petrobras (Petros) e Caixa Econômica Federal (Funcef), cuja participação no financiamento de empresas brasileiras é inconteste.

Quadro 1- Investimento do BNDES e dos fundos de pensão de empresas estatais em grandes empresas brasileiras atuantes no exterior (2008) 1 Petrobrás Participação direta do BNDESPar¹ em 7,6% do capital.

2 Companhia Vale Participação direta do BNDESPar em 4,8% do capital e dos fundos de pensão Previ, Petros, Funcesp, Funcef no bloco controlador

3 Braskem S.A. Participação direta do BNDESPar em 5,22% do capital.

4 Companhia Siderúrgica Participação direta do BNDESPar em 3,64% do Nacional (CSN) capital

5 Gerdau Aços Longos S.A. Participação direta do BNDESPar em 3,5% do capital

6 Usiminas Previ detém 10,4% do capital; Grupo Votorantim, 13%; Grupo Camargo Correa, 13%.

7 Sadia S.A. Previ detém 7,3% do capital e BNDES participou da fusão da empresa com a Perdigão em 2009. Retirado de Santana (2017). 1 Empresa subsidiária do BNDES para financiamentos de segmentos específicos.

Os Fundos Petros, Previ e Funcev tem participação acionária em ramos que se expandiram nos governos petistas. Setores de alimentação e bebida, mineração e infraestrutura constituem boa parte do portfólio de investimentos da Petros. A Previ, por sua vez, se concentrava nos setores de mineração e energia, alimentação e bebidas, petróleo e gás. A Funcev teve destaque para os investimentos no fundo Sondas (da empresa Sete Brasil) que somou cerca de R$1,4 bilhão no ano de 2011 (o equivalente a 17,7% das cotas do fundo). Dos cinquenta fundos que receberam investimentos até 2014, dezoito são ligados à infraestrutura, das quais foram mais expressivas: Odebrecht, Brasil Energia, InfraBrasil, Caixa Logística e 174

Multiner. Essa modalidade de investimento cresceu significativamente entre 2007 e 2013 (SANTANA, 2017). As aplicações em títulos da dívida pública sempre foram campo de atuação destes fundos de pensão, evidentemente em função da alta liquidez desses títulos. Mas Santana (2017) atesta uma tendência acentuada para este campo a partir de 2013 em função da “liquidez fornecida pelos títulos públicos (que compõem a maior parte das aplicações em renda fixa)”, alcançando 70,7% do total de seus investimentos. Essa virada mais conservadora processou-se por conta da desaceleração do crescimento no período, aumento da inflação e a elevação gradativa da taxa de juros (SANTANA, 2017, p. 115). Em 2016, as entidades abertas e fechadas dos fundos de previdência complementar tornaram-se os maiores detentores de títulos públicos, portanto, os maiores credores da dívida pública, conforme elucidado por Santana (2017). Os ativos de dívida pública federal de fundos de investimento de previdência e de carteira própria, o volume atual corresponde a R$751,6 bilhões, o que representa a 26% do estoque total. O que significa que ao somar os “ativos de dívida pública federal de fundos de investimento de previdência e de carteira própria, o volume atual corresponde a R$751,6 bilhões, o que representa a 26% do estoque total” (IDEM, 116). A engrenagem montada a partir dos fundos de pensão, com a preponderância de fundos das empresas públicas, está na base de um padrão de acumulação em que o PT, ao tempo que alça sindicalistas à gestão de fundos, colabora diretamente, financiando segmentos produtivos, e tornando-os importantes credores da dívida pública, o que põe em evidência uma direção de desenvolvimento truncado. Corrobora para isso o alto nível de dependência do capital em relação ao fundo público e de parte do valor que compõe o trabalho necessário da classe trabalhadora. Isto por que medida em que é a própria classe trabalhadora que ao recorrer ao fundo de previdência privada transfere parte de seus ganhos para pagamento de tais fundos. Esse intricado movimento denota o caráter parasitário desse modelo. Ademais, a fusão de interesses entre diversas frações de classes nessa acomodação é muito cabal à manutenção de uma dada hegemonia90.

90 É válido ratificar os altos riscos financeiros que envolvem os fundos de pensão, que ao final das contas podem onerar drasticamente os trabalhadores. No final de 2017 a indústria dos fundos de pensão registrava rombo de R$ 42 bilhões no acumulado. De acordo com matéria publicada pelo Estadão, dez planos concentram 80% do déficit de todo o sistema, sendo nove ligados às empresas estatais. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,apos-prejuizos-bilionarios-fundos-de-pensao-terao-regras- rigorosas,70002253459. Acesso em: 04 de abril, 2018. 175

Para pensar sobre isso, é muito interessante a análise de Filgueiras e Gonçalves sobre a demarcação das frações de classe no governo Lula, que dão sustentação ao padrão de desenvolvimento capitalista assentado na hegemonia neoliberal.91 Com o governo Lula, o capital financeiro mantém o controle sobre o Ministério da Fazenda e o Banco Central, e, entre outros aspectos, exige a independência legal deste último – pois já a conquistou na prática. A partir dessas duas instituições, o capital financeiro determina a política econômica e controla a execução do Orçamento federal, subordinando as ações do Estado nas demais áreas. No limite, se necessário, ameaça desestabilizar econômica e politicamente o país. O agronegócio e os interesses exportadores, por sua vez, apoderaram-se do Ministério da Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior. A partir desses órgãos, defendem seus interesses – por exemplo, quando conseguiram aprovar a liberação dos transgênicos na agricultura e obtiveram medidas compensatórias para o câmbio valorizado. O papel protagônico do agronegócio afeta, inclusive, o foco da política externa, principalmente as negociações comerciais multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Nesse sentido, vale notar a crescente prioridade atribuída à exportação de etanol [...] O governo Lula renovou o patrimonialismo e o empreguismo na relação do governo com as direções dos partidos que compõem sua base de apoio e com os dirigentes sindicais. Os instrumentos são, principalmente, as diretorias dos fundos de pensão das empresas estatais (Previ,Petrus e Funcef) e os conselhos dos bancos oficiais, com destaque para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) do BNDES. Cargos públicos são ocupados por sindicalistas e funcionários do Partido dos Trabalhadores, com poder de decisão sobre o direcionamento de vultosos montantes financeiros (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 180-190).

Esse padrão reproduz marcas históricas da nossa formação social ao assentar nossa economia na exploração do setor agroexportador que se funda no grande latifúndio e na continuidade de grande influência oligárquica na direção do Estado. Ademais, repõem, com novas determinações, a via pragmática das alianças políticas para minimizar, no âmbito do Estado, as fricções postas pelas diversas frações das classes dominantes em disputa pela direção do Estado. Firmado na chamada “conciliação de classes”, essa concertação – para gerir a crise do capital e retomar o caminho de expansão do desenvolvimento capitalista no Brasil – se delineou, do ponto de vista das demandas da classe trabalhadora, pela capacidade e legitimidade do próprio Lula junto aos movimentos sociais, que permitiu determinado aparelhamento destes movimentos à lógica do governo estabelecido e, grandemente, através da política social compensatória. Castelo (2013) afirma que essa composição de classes no bloco do poder abaliza um contexto de ascensão do social liberalismo, que emerge a partir da crise de legitimidade do projeto neoliberal no mundo, já na década de 1990 e que levou as agências multilaterais a se colocarem na defesa de uma “revisão” da ortodoxia neoliberal, de modo a “humanizar” o

91 É importante ressaltar, de imediato, que os autores denominam esse padrão de desenvolvimento capitalista como “liberal-periférico”, sendo ele a expressão concreta das particularidades do projeto neoliberal no capitalismo dependente. 176

capitalismo, incrementando as diretrizes neoliberais com medidas de cunho “social” com vistas a combater, sobretudo, a pobreza extrema. Os terríveis resultados sociais auferidos pelo duro ajuste imposto pelo neoliberalismo assumiam feições pungentes92 em todo o mundo, depois de 20 anos da hegemonia neoliberal. Levantes sociais de contestação do neoliberalismo e da própria ordem do capital eclodiam mundo a fora, expondo as imensas contradições desse processo. Se do ponto de vista estritamente econômico o projeto neoliberal angariou resultados pífios expressos na incapacidade do capitalismo em retomar suas altas taxas de acumulação, a intensa concentração de renda e desigualdade social deflagrada pelas medidas adotadas demonstrava a tragédia neoliberal. É nesse contexto que as classes dominantes percebem a necessidade de intervir de alguma forma, de modo a evitar explosões sociais e políticas, de caráter radicalizados. O revisionismo neoliberal também atingiu o FMI, um dos principais patrocinadores dos programas de ajustes estruturais da periferia, que na verdade são programas de saque e pilhagem da riqueza dos países dependentes. No final dos anos 1990, mais especificamente em 1998, após 20 anos de uma defesa fanática do receituário-ideal do neoliberalismo, o FMI definiu em três documentos uma linha de revisão de alguns pontos dos seus ajustes estruturais, levando em contra críticas internas e externas (STIGLITZ apud CASTELO, 2013, p.253).

De acordo com Maranhão (2009), em meados da década de 1990 os próprios organismos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial começam a admitir que a ortodoxia do chamado Consenso de Washington “não vinha mais oferecendo respostas políticas adequadas para garantir a ‘administração dos conflitos’ e a ‘boa governança’ dos ‘mercados internacionalizados’ e, principalmente, dos chamados ‘mercados emergentes’” (MARANHÃO, 2009, p. 218). Nesta mesma direção, Oliveira (2014) indica que, em função do desgaste da ideologia neoliberal, os organismos multilaterais começam a construir e disseminar uma nova narrativa

92 “A taxa média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou na década de 80. [...] o grau de desigualdade – outro objetivo sumamente importante para o neoliberalismo – aumentou significativamente no conjunto dos países da OCDE: a tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários”. Na década de 1990, “todos os índices econômicos tornaram-se muito sombrios nos países da OCDE, onde, presentemente, há cerca de 38 milhões de desempregados” (ANDERSON, 1995, p.6). Castelo (2013) faz um balanço dos resultados dramáticos que aludimos. Aponta que, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, no início da década de 1990 mais de 500 milhões de pessoas viviam com menos de 1 dólar por dia (miseráveis), e 1,374,6 bilhões com menos de 2 dólares (considerados pobres).850 milhões de pessoas passavam fome ao redor do mundo nesse período, atingindo i bilhão de pessoas em 2009. Traz ainda dados da Unicef de 1999, apontando que 9,7 milhões de crianças menores de cinco anos morriam anualmente em função das péssimas condições de vida e falta de acesso a serviços básicos de saúde. Na zona da União Europeia no início dos anos 2000 já somavam 55 milhões de pobres. Nos EUA 37 milhões de cidadãos estavam vivendo abaixo da linha da pobreza. 177

de proteção social, na qual procuram destacar a necessidade de rever a validade dos programas de ajustes estruturais, já que os mesmos “se revelaram insuficientes em relação aos objetivos e as metas propostas, já que foram incapazes de recuperar as taxas de crescimento econômico, principalmente na África Subsaariana e na América Latina” (OLIVEIRA, 2014, p. 97). A preponderância dos aspectos econômicos da economia de mercado haviam aumentado drasticamente os níveis de pobreza e, em face deste cenário, o Banco Mundial passa a defender uma abordagem “mais humana” das questões econômicas. Para Oliveira (2014), uma apreciação dos documentos dos organismos multilaterais indica a existência de uma estratégia que, sem colocar obstáculos à valorização do capital, concilia “uma proposta de desenvolvimento alternativo às medidas restritivas da ortodoxia liberal defendida pela política econômica neoliberal” (IDEM, p. 48). Revoltas populares de feição antissistêmica tiveram suas reivindicações estrategicamente “assimiladas” pelas classes dominantes, mas mediante a acomodação típica dos segmentos hegemônicos. É justamente como aponta Castelo (2013), o reformismo almejado pelos movimentos foi neutralizado pelo reformismo restaurador social-liberal. A direção restauradora do social-liberalismo tangencia uma estratégia que defende a chamada terceira via93 na esteira teórico-política e ideológica de Anthony Giddens, pautando intervenções político-governamentais entre liberalismo de mercado e perspectivas reducionistas da social democracia. Mais que isso, O social-liberalismo comporta, portanto, um duplo movimento: a decadência política e ideológica da social-democracia , esvaziada de suas lutas reformistas na construção de uma via democrático-institucional para o socialismo, e a incorporação de uma agenda social ao neoliberalismo. A resultante desses dois movimentos , aparentemente paradoxais entre si, converge em um sentido único: a formação de um novo senso que ocupa o centro da política mundial e neutraliza as lutas mais radicais de combate às expressões da “questão social” , ou mesmo de eliminação do capitalismo (CASTELO, 2013, p. 274).

93 O termo é utilizado, originalmente, por Anthony Giddens e intitula sua obra A terceira via: Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Giddens é um respeitado acadêmico inglês com grande influência no Partido Trabalhista Britânico no designado “Novo trabalhismo”. Para ele, a “terceira via” se constitui numa alternativa política, social e econômica para renovar a social- democracia, constituindo uma alterativa concreta à polarização entre a esquerda e a direita e que se expressam nos limites do socialismo e do neoliberalismo, segundo o teórico. De acordo com Mészáros (2011, p. 25), “o Novo Trabalhismo é hoje em dia, em todas as suas variedades europeias, o grande facilitador de resultados apenas para os interesses arraigados do capital, seja no domínio do capital financeiro [...] ou em algumas de suas seções comerciais e industriais quase completamente monopolistas”. No âmbito das ideias desenvolvimentistas recentes o termo parece ser cunhado para justamente denominar esse projeto como uma alterativa de “meio termo” tanto ao desenvolvimentismo clássico quanto ao neoliberalismo.

178

O espraiamento da perspectiva de “revisão” do projeto neoliberal e da necessidade de acoplar a ele uma “agenda social” do capitalismo central ao periférico se efetiva via mecanismos variados, como as próprias agências multilaterais e suas orientações aos países dependentes, intelectuais orgânicos da burguesia, universidades e outros organismos privados de hegemonia, como determinados movimentos da chamada “sociedade civil”. No Brasil, Castelo chama atenção para o fato de que não existe unanimidade quanto à entronização definitiva do social-liberalismo no país. Segundo o autor, alguns autores (como José Luis Fiori) remontam ao governo FHC, defendendo que na prática as ações do “campo social” eram fundamentadas na via social-liberal; para outros, (como Ruy Braga e Álvaro Bianchi) a adesão a esta ideologia se efetiva com a eleição de Lula em 2002. Não podemos deixar de referenciar, no entanto, que FHC acompanha o legado da terceira via, sob inspiração de Anthony Giddens e da implementação desse programa com o Primeiro-Ministro britânico Tony Blair. Essa direção teria uma clara implementação no primeiro governo Lula (2003-2006), assentada nas três proposições políticas e analíticas do arsenal da ideologia social-liberal: 1) o crescimento econômico, por si próprio, não traria a redução das desigualdades, havendo a necessidade de políticas públicas específicas e direcionadas para este problema; 2) os gatos sociais não seriam baixos, ao contrário: eles deveriam tornar- se mais eficientes com a melhora da alocação de recursos com a sua focalização no estratos sociais miseráveis; 3) propostas de desenvolvimento baseadas no investimento em capital humano, reformas tributárias, previdenciárias e trabalhistas e ampliação do microcrédito (CASTELO, 2013, p. 264).

É a partir do segundo mandato do presidente Lula que se pode perceber uma pequena mudança no direcionamento político-governamental que, sem romper com a orientação macroeconômica, incrementa determinadas medidas que a priori não compõem o rol da doutrina ortodoxa neoliberal e apontam para um tensionamento no interior do social- liberalismo. É nesse contexto, mais especificamente a partir do aprofundamento da crise94 do capital, em 2008 – cuja expressão inicial se desencadeou no mercado imobiliário dos Estados

94 Como mencionado antes, os estudos marxianos demonstraram que as crises são inerentes ao desenvolvimento capitalista, expressando a irrupção de suas contradições intrínsecas, o que as tornam inelimináveis com a manutenção do sistema do capital. De acordo com Mészáros (2011, p. 795), “crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação”. Para ele, a crise contemporânea é uma crise estrutural do capital e suas características principais residem: no seu caráter universal, seu alcance global, sua escala de tempo extensa e seu modo de desdobramento é rastejante. Assim, quando sinalizamos a crise financeira de 2008, cujo epicentro inicial foi o mercado imobiliário norte-americano, estamos partindo de uma análise marxista da crise, desde onde é permitido compreender os processos deflagrados em 2008 como expressão parcial da crise estrutural do capital, donde recusamos quaisquer análises que a compreendam como momento específico conjuntural, desarticulada da historicidade e dinâmica do capital. 179

Unidos – que surgem dissidências mais abertas entre segmentos no âmbito do governo e entre intelectuais em torno do social-liberalismo que passa a fundamentar a defesa de um suposto “neodesenvolvimentismo” (CASTELO, 2013). E é também aí que se introduz no governo petista diretrizes apontadas como desenvolvimentistas,95 acrescido do prefixo “neo” ou “novo”, procurando assim, demarcar suas proximidades e diferenças em relação ao desenvolvimentismo clássico da década de 1950. Segundo Sampaio Júnior (2012), o que foi apregoado por segmentos dirigentes do PT como sendo “neodesenvolvimentismo” seria a expressão teórica disseminada de caracterização de um “novo ciclo de desenvolvimento” consolidado a partir do segundo governo Lula. Tais concepções, segundo o autor, estariam assentadas na modesta retomada do crescimento econômico, após quase três décadas de estagnação, a lenta recuperação do poder aquisitivo do salário após décadas de arrocho, a ligeira melhoria na distribuição pessoal da renda, o boom de consumo financiado pelo endividamento das famílias e a aparente resiliência do Brasil perante a crise econômica mundial (IDEM, 2012, p. 679)

Esse frágil ideário se dissemina através de diversos mecanismos e aparelhos privados de hegemonia96, quando se intensificam cisões e discordâncias dentro dos segmentos defensores do social-liberalismo. Enquanto pauta teórica dos estudos políticos e econômicos de um conjunto de ideólogos e intelectuais orgânicos da burguesia brasileira, cujo conjunto de produção coaduna diferenças e peculiaridades, imprecisões e até mesmo contradições, existe

95 De acordo com Dantas (2013), é na 5ª edição revisada da obra “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, de Luiz Carlos Bresser-Pereira, em 2003, que o mesmo utiliza o último capítulo para apresentar, ainda de modo muito introdutório, um novo conceito: “novo-desenvolvimentismo”. Em 2004, o tema aparece mais elaborado em um artigo jornalístico na Folha de São Paulo intitulado “Novo-Desenvolvimentismo”. E é em 2006 que ele publica um artigo acadêmico, mais sofisticado, intitulado “O Novo Desenvolvimentismo e a Ortodoxia Convencional”, onde elabora o conceito de modo mais consistente. É importante indicar o importante papel cumprido por Bresser-Pereira na consolidação do neoliberalismo no Brasil, no que tange ao processo de contrarreforma do Estado, visto sua função na elaboração e implementação do Plano Diretor da Reforma do Estado do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (PDRE-Mare), enquanto ministro do referido Ministério. Ainda na direção da teorização acadêmica, Castelo (2012) destaca a publicação da coletânea “Novo Desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social”, em 2005, de autoria de João Sicsú, Luiz Fernando de Paula, Renaut Michel. Ainda de acordo com Castelo (2012), “para travarem o combate teórico, difundem sua ideologia por meio de aparelhos privados de hegemonia, como a FGV‑ SP, a Associação Brasileira Keynesiana e a Revista de Economia Política” (p. 625). No quadro institucional do Estado, indica o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como aparato central das propostas ditas novo desenvolvimentistas. Indicamos ainda, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e, evidentemente a “expansão” de algumas políticas sociais, mas sob uma determinada perspectiva, conforme estamos problematizando ao longo desta discussão.

96 Aparelhos privados de hegemonia aparecem no arcabouço categorial de Gramsci para expressar o caráter político da sociedade civil, uma vez que esta organiza e defende determinados interesses de acordo com sua inserção na luta de classes, disputando a hegemonia da sociedade. De acordo com Coutinho (2007, p. 125), aparelhos privados de hegemonia são “organismos de participação política aos quais se aderem voluntariamente (e, por isso, são ‘privados’) e que não se caracterizam pelo uso da repressão”. Compreendem um rol amplo de instituições, como sistema de ensino, em todos os níveis, Igreja, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, entidades empresariais, agências multilaterais e a mídia de um modo geral. 180

uma ideia motriz comum: consolidar uma conciliação entre a programática ortodoxa do ideário neoliberal com aspectos do desenvolvimentismo. Assim, defende-se a constituição de uma espécie de terceira via, cujo objetivo central consistiria em congregar em um mesmo patamar de governabilidade crescimento econômico, com investimentos diretos na economia, incentivo ao livre mercado global financeiro, combinados às estratégias de “distribuição de renda”, ou, em termos mais claros, conciliar pares incompatíveis: valorização do capital e equidade social (MOTA, 2012). Ao congregar, em seu arcabouço teórico-ideólogico, ortodoxia econômica e uma pauta de “inclusão social”,97 tal projeto propõe um novo equilíbrio da ação do Estado: garantir as condições para um mercado dinâmico e desenvolver estratégias de diminuição das iniquidades geradas pelo ideário neoliberal nas últimas décadas, principalmente a pobreza absoluta. É interessante observar que a via desenvolvimentista pautada nesse novo tempo expressa muito da decadência ideológica do estruturalismo latino-americano, conforme importante reflexão de Castelo (2009). Se na década de 1950 o pensamento da CEPAL, por exemplo, fundamentava a práxis desenvolvimentista como projeto de desenvolvimento nacional de amplo espectro, a CEPAL dos anos 1990/2000 passa por uma inflexão que se encaminha nos rumos do pensamento hegemônico das demais agências multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI, que buscavam dar respostas à crise de legitimidade do neoliberalismo. Neste particular, a “nova” CEPAL – nova porque dos tempos neoliberais - assenta seu pensamento num léxico político-ideológico que vai da defesa da liberalização econômica ao jargão “novo desenvolvimentista” que defende a apologia do crescimento econômico com equidade social. O projeto de desenvolvimento do PT enquanto programa de política social e econômica, assegurou certo nível de legitimidade, ainda que de nenhum modo se constitua em um projeto alternativo ao neoliberalismo, sendo um modo particular de articular os interesses

97 O conceito de “inclusão social” é problemático e objeto de críticas no âmbito do debate marxista. Ele é o par conceitual da “exclusão social”, criando uma dicotomia para explicar a realidade social baseada na concepção subjacente de que a sociedade é um todo sistêmico e funcional. Assim, as estratégias de “inclusão social” serviriam para enfrentar os processos de “exclusão social”. De outro ângulo, Martins (2002) situa que o conceito de “exclusão social” padece de fraco rigor analítico e é envolvido numa fetichização conceitual que tudo e nada explica. “A palavra exclusão [...] não conta a consequência mais problemática da economia atual, que é a inclusão degradada do ser humano no processo de reprodução ampliada do capital” (MARTINS, 2002, p. 120, 125). O recurso das teorias pós-modernas a conceitos “novos” como “exclusão social” visam atestar o exaurimento da teoria de classes, desconstruindo a categoria classe social em indivíduo que, em face de determinados processos, seria “excluído” do mundo do trabalho, do consumo e do acesso a alguns direitos de cidadania. Assim, mecanismos de inclusão seriam a saída para exclusão do indivíduo, visto isoladamente e não como parte de uma classe social, determinada a partir do lugar que ocupa nas relações sociais de produção capitalista. 181

da burguesia nacional e internacional, em consonância com interesses imediatos da fração mais empobrecida dos trabalhadores. É possível identificar o retorno do debate do desenvolvimento como projeto nacional, mas não se pode inferir que se consolidou, a partir deste debate, um amplo e efetivo projeto de desenvolvimento pelo PT, dotado de potencial para um novo ciclo desenvolvimentista. O que se verificou foi a manutenção de modelo de desenvolvimento frágil e de alto risco para o incremento e consolidação industrial, com intensa dependência das exportações de comoditties e reprimarização da pauta de importações, sendo que alguns autores (GONÇALVES, 2010; 2012; CANO, 2012; PAULANI, 2012) vem problematizando até mesmo a continuidade do possível processo de desindustrialização, com quebras de cadeias produtivas. Neste aspecto, o dado apresentado por Cano (2012) quanto à particip ação da indústria de transformação no PIB brasileiro é elucidativo. Segundo o autor, ao final da década de 1970 a porcentagem era de 33%, sendo que entre 2008 e 2010 ficou em cerca de 18%, configurando a queda vinha da década anterior. Essa tendência se mantém ao longo dos governos petistas, sendo que em 2015 a participação da Indústria de Transformação no PIB atingiu 11,4%. O setor de serviços representou 59,8% do PIB, o comércio 12,3%, a agropecuária 5,2% e a construção civil 2,8% (DEPECON, 2016). Em relação à pauta exportadora, os dados brasileiros ratificam que os produtos industriais de maior volume na exportação são justamente os de baixa intensidade tecnológica.

182

Gráfico 1 - Exportações de Produtos da Industria de Transformação de Baixa Intensidade Tecnológica – Brasil (UU$ milhões).

Fonte: IEDI, 2016.

Esse é um quadro que confronta semelhanças com o ciclo desenvolvimentista, que se alongou de 1930 a 1980, exatamente porque ao invés de avançar no desenvolvimento das forças produtivas industriais, observa-se o tempo histórico de sua repressão, expropriando, inclusive, o fundo público aplicado desde a era Vargas, consubstanciando uma clara regressão. Além disso, o país não se desvincula da hegemonia do capital financeiro, sendo que importante parcela do fundo público é canalizada para esta fração do capital, sobretudo, através do pagamento de juros e amortizações da Dívida Pública, que são altíssimos no Brasil, como demonstraremos no capítulo 4. Verificamos na pesquisa que o socorro ao sistema bancário em momentos das chamadas crises financeiras, como a que culminou em 2008 – por meio de mudança na política monetária, como a mudança nas regras de depósito compulsório, leilões com dólar, e também a linha de troca de moeda com o Federal Reserve (FED) – significa, em última análise, oportunidade para as instituições financeiras elevarem os recursos em caixa (SALVADOR, 2010). 183

Na coletânea “Lula e Dilma: dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil”, organizado por Emir Sader, fica evidente, desde o título do livro, a avaliação que intelectuais ligados ao PT e que ocupam e\ou ocuparam cargos nos governos petistas têm sobre tais governos como alternativos ao neoliberalismo. A indicação de uma direção desenvolvimentista nos governos do PT aparece em alguns artigos da coletânea. A colocação de Mattoso98 (2013), por exemplo, é enfática: Depois de anos de neoliberalismo, de subordinação aos interesses rentistas e de ausência de políticas econômicas pró-desenvolvimento, fortaleceu-se o uso de políticas desenvolvimentistas e de combate à pobreza, mais intensamente após 2006, com a mais efetiva articulação do econômico e do social e com o enfrentamento das crises internacionais com políticas inovadoras e anticíclicas (MATTOSO, 2013, p. 116-117).

Ele esclarece que não se pode dizer que nos períodos dos governos petistas o “desenvolvimentismo” tenha sido resultado de um projeto nacional plenamente elaborado e desenvolvido, como se deu nas experiências desenvolvimentistas das décadas de 1950 e 1960. No entanto, desde 2003, segundo ele, uma visão nova do desenvolvimento nacional começou a se delinear e a se expressar, “com a constituição das primeiras políticas sociais, de ampliação do mercado interno e do consumo das famílias, mesmo que ainda em meio à dominância de políticas econômicas mais ortodoxas de enfrentamento da especulação e da crise de 2002” (IDEM, p. 117). E indica o aprofundamento da conformação “desse novo processo desenvolvimentista” no governo Dilma Rousseff, em que se preservou a valorização do mercado interno e das políticas sociais, “mas insistindo agora em algumas mudanças estruturais da economia, como a redução dos juros, da sobrevalorização do real e o fortalecimento da competitividade” (MATTOSO, 2013, p. 118). O que na verdade, não passou de um frágil ímpeto no âmbito de um contexto econômico favorável, marcado pelo aumento no preço das commodities e pela disponibilidade de capital no mercado financeiro, seguido de um aprofundamento da via neoliberal na política macroeconômica, como demonstraremos a diante. No Documento “O decênio que mudou o Brasil”, elaborado e publicado conjuntamente pelo Partido dos Trabalhadores, Instituto Lula e Fundação Perseu Abramo, em 2013, existem duras críticas ao ideário neoliberal e afirma-se que os primeiros dez anos de governo do PT mudaram o Brasil, “permitindo reverter a decadência induzida pela rota da neocolonização neoliberal” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2013, p. 05). Mais que

98 Jorge Mattoso foi presidente da Caixa Economica Federal (2003-2006) e atuou como secretário de finanças da Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo na gestão do petista Luiz Marinho, ex-presidente da CUT. Escreveu um dos livros mais emblemáticos sobre as metamorfoses trabalho no Brrasil nos anos de 1990. , A Desordem do Trabalho. Cf.: MATTOSO, Jorge. A desordem do trabalho. São Paulo: Scritta, 1995. 184

isso, defende-se a ideia de existência de dois projetos para o Brasil, comparando os períodos de 1995-2002 e 2003-2013, respectivamente neoliberal e desenvolvimentista. A narrativa petista sobre seu suposto projeto “desenvolvimentista” acaba por desembocar na reprodução das teorias clássicas sobre subdesenvolvimento, para as quais existiram, por exemplo, dois brasis: um moderno e um atrasado e que o caminho para superação de suas mazelas seria justamente aplicar um projeto de desenvolvimento pelo qual o Brasil atrasado superaria etapas para chegar ao Brasil moderno. Culmina nos limites da apreensão decadente da realidade brasileira e na irrealização da plena efetivação da modernização das forças produtivas para todos os ramos e dimensões do país. Na lúcida análise de Francisco de Oliveira, na crítica da razão dualista e na sua metáfora com o Ornitorrinco, ele esclarece os limites tangentes das abordagens e estratégias encabeçadas no pensamento estrutural burguês, como nos descaminhos da nova onda de reforço ao capital, empreendida na era petista (OLIVEIRA, 2003). As investidas do Estado brasileiro em favor da recomposição da acumulação capitalista, com direção de um ex-operário, elucida não a contraposição de um projeto alternativo ao vigente na era FHC, apenas assegura as condições para manter o rompante modernizante e expansivo das forças do capital, não com uma superação irrestrita do processo de subdesenvolvimento, mas acoplando – como na figura esdrúxula do Ornitorrinco – padrões altamente sofisticados de desenvolvimento tecnológico e exponenciação da financeirização da economia, com estruturas extremamente primitivas. O que se verifica, assim, não é a disputa de projetos de desenvolvimento para o país, com exitosa vantagem para o segundo, mas a própria manutenção da subjugação no padrão capitalista, da nossa inserção no circuito mundial do capital: algumas vantagens pelos ganhos em assimilação dos avanços tecnológicos, mas a quase dependência total do extrativismo e do agronegócio. Uma forma diferenciada de gerir a crise do capital no país, mas que mantém a mesma base que sustenta o desenvolvimento capitalista no Brasil: desenvolvimento desigual e combinado, com variações nos níveis de pobreza, mas sem abalos nas condições da segregação e desigualdade social. Ao longo do documento são apresentados inúmeros dados para comparar os distintos períodos, demonstrando o que eles chamam de “exitosa” experiência do PT ao engendrar e consolidar o projeto “desenvolvimentista” para o país. Estes dados são relativos ao salário mínimo, à pobreza, a taxa de desemprego, a geração de empregos formais, por exemplo, e são apresentados de maneira a corroborar o 185

discurso de progressos e avanços sociais e econômicos do país com as gestões do PT e seu projeto de desenvolvimento. Assim, apontam que, enquanto no denominado “período neoliberal”, dos governos FHC (1995-2002), o salário médio real dos trabalhadores registrou queda acumulada de 11,2%, no petista (2003-2013) registrou-se um aumento de 70,7%. A pobreza teve uma queda de 37,3% neste último período, sendo que no anterior, caiu menos de 5%. A taxa de desemprego decresceu quase 39% no período petista, sendo que no período anterior ela subiu 57,9%. Quanto a geração de empregos formais, eles apontam que o último período o país acumulou o saldo de 18,5 milhões de novos postos formais de trabalho, contra 5 milhões do período FHC. Na contracorrente dos governos neoliberais emergiu o projeto desenvolvimentista que desde 2003 ousou inverter as prioridades até então perseguidas. Assim, para que houvesse crescimento sustentável da produção nacional, a distribuição da renda se tornou o imperativo nacional. E, com isso, a possibilidade de viabilizar o projeto de Brasil para todos, cujo processo de inclusão social se transformou em mola propulsora da economia (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2013, p.13).

O documento em questão, que se configura muito mais como um panfleto propagandístico, atesta que o projeto neoliberal vigente no país, no período anterior aos governos do PT, era comprometido com os segmentos de altas rendas e poder e deixou um lastro de desigualdade social e pobreza para o país, processo que começou a ser revertido e desenvolveu-se, segundo o apologista em tela, com o projeto político-governamental dos governos petistas, estes comprometidos com a “distribuição de renda”, “crescimento sustentável” e “inclusão social”. Para Oliva (2010),99 a ruptura com a agenda do paradigma neoliberal teve início logo no primeiro ano do governo Lula, ainda que uma ruptura radical com as consequências econômicas e sociais do neoliberalismo só pôde ser percebida, em plenitude, alguns anos mais

99 Trata-se de Aloizio Mercadante de Oliva, que elaborou a tese de doutorado intitulada “As bases do Novo desenvolvimentismo no Brasil: análise do governo Lula 2003-2010”. O autor é conhecido pela trajetória histórica no PT, pela vida parlamentar e como ministro nas gestões do PT no governo federal, além de ser professor da USP. A tese de Aloizio Mercadante Oliva, rapidamente pincelada, é um exemplo exímio da visão governista do desenvolvimentismo e do apelo político e ideológico que esta narrativa empreende. Evidentemente, esta não é uma posição unânime e homogênea no âmbito do Partido dos Trabalhadores, conforme reconhece o próprio Mercadante. No documento “AE: A construção do Partido dos Trabalhadores- Projeto de resolução para debate e deliberação no Segundo Congresso da tendência petista Articulação de Esquerda” aponta-se que: “existem no PT quatro grandes correntes ideológicas: o social-liberalismo, o desenvolvimentismo, a social-democracia e o socialismo” e, ainda, “entre 1995 e 2015, a maior parte das direções do PT e de seus representantes sociais, institucionais e ideológicos, foi e é proveniente das correntes social-democrata, desenvolvimentista e social-liberal. Desde 1995, mas especialmente desde 2005, os socialistas vêm perdendo influência no Partido dos Trabalhadores. A maior parte dos petistas socialistas sofreu uma metamorfose, aderindo em maior ou menor grau às ideias das demais correntes ideológicas”. Disponível em: http://www.pt.org.br/ae-a-construcao-do-partido-dos-trabalhadores/. Acesso em: 18 /04/2016. 186

tarde. Segundo ele, o social foi o eixo estruturante dessa ruptura e fundante no projeto iniciado com Lula e vem “tendo inegável êxito na eliminação da pobreza extrema, na diminuição das desigualdades sociais e na dinamização do mercado interno de consumo de massa, o que está moldando e estruturando o desenvolvimento recente do Brasil” (OLIVA, 2010, p. 24).100 Conforme percepção do autor, o projeto de desenvolvimento implantado pelo governo Lula101 rompeu a lógica de desequilíbrio externo da economia brasileira e impactou na estrutura da distribuição de renda, além de ter melhorado a capacidade de formação de capital do país, a geração de empregos formais e a ampliação e melhoria dos serviços públicos. O governo Lula rompeu essa lógica. A retomada dos investimentos públicos, a reconstrução do sistema de crédito interno, as novas políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico, os estímulos ao setor privado dirigidos à expansão dos investimentos, da produção e das exportações, e as políticas de renda e de inclusão social conseguiram, especialmente a partir de 2004, romper a inércia e irregularidade do crescimento e reverter a tendência à concentração de renda e à ampliação das desigualdades sociais. O país passou a viver, assim, um processo que combina crescimento econômico e distribuição de renda (OLIVA, 2010, p. 156).

A abordagem de Oliva chega a ser propagandista, numa defesa aberta das estratégias petistas. Além de superdimensionar a via intervencionista dos governos Lula e Dilma, o autor dá uma estatura extremamente ampla quanto à capacidade do governo no tocante ao equilíbrio externo da economia brasileira. De fato, Lula manteve uma política de macroestabilidade econômica irrepreensível do ponto de vista das requisições do duro ajuste fiscal. Além disso, alcançou um padrão favorável no balanço de pagamentos, com a consolidação de uma boa margem de divisas internacionais, que inclusive favoreceu a divulgação da quitação da dívida externa brasileira. Gonçalves (2013) esclarece que os argumentos em favor de um suposto equilíbrio das contas externas e a inexistência – na prática – da dívida externa se deram a partir de 2007 em função do valor total da dívida externa não ultrapassar US$ 140 bilhões, ao passo que as reservas internacionais eram superiores a US$ 180 bilhões. O problema residia no fato de que grande parte do montante deste último valor era de investimentos estrangeiros, que superavam US$ 500 bilhões.

100 A opção em utilizar a Tese de Aloizio Mercadante Oliva é para demonstrar, exemplificadamente, a narrativa petista em relação a sua constituição como experiência pós-neoliberal. Nossa intenção não é utilizar suas reflexões como abordagem crítica do tema, mas analisar as ilações que denotam o caráter governista das suas análises.

101 Evidentemente, esclarece o notável entusiasta do novo desenvolvimentismo, não se tratar de um processo unívoco, retilíneo ou imune às contradições e vicissitudes do cenário mundial. Tampouco, garante homogeneidade dentro do PT e do próprio governo Lula, além de ser um processo que estava ainda em andamento e que requeria a superação de inúmeros desafios para manter a rota do desenvolvimento e crescimento que vinha angariando. 187

Além do que, o autor atesta a própria deteriorização das contas correntes nos balanços de pagamentos, que saltaram de um superávit primário de US$ 2 bilhões, em 2007, para um déficit de US$ 28 bilhões, em 2008. Evidente que tal processo se relaciona a eclosão da crise mundial de 2008, cujo estopim estava no mercado imobiliário norteamericano, conforme aludimos no capítulo anterior. Em 2010, este déficit foi de US$ 48 bilhões e chegou a US$ 53 bilhões em 2011 (GONÇALVES, 2013). A conjugação crescimento econômico e distribuição de renda aparece como fundamento político-governamental do projeto petista. Neste sentido, vale mencionar a postura de Oliva (2010) em conceber tal projeto como práxis política e não desdobramento teórico de debates acadêmicos. o que aqui denominamos de Novo Desenvolvimentismo brasileiro não foi resultado de reflexões teóricas sobre as novas condições do processo de desenvolvimento em países emergentes, vis à vis as transformações ocorridas na geoeconomia e geopolítica mundiais, e nem de um planejamento estratégico inovador e ousado, mas sim da práxis de um governo popular que, ao se antepor à agenda neoliberal, acabou por deflagrar um novo processo econômico, social e político no Brasil (OLIVA, 2010, p. 498).

A teoria não se sobrepõe a prática. Apesar de a realidade ter seu movimento imanente próprio, da ontologia ser anterior à epistemologia, ou em última análise, tendo em conta o princípio básico do materialismo histórico de que a ideia é a apropriação do próprio movimento da realidade, os grandes acontecimentos históricos e o grande acúmulo da filosofia da ciência são inequívocos ao corroborar a inextricável relação entre teoria e prática para efetivação da práxis. O pensamento hegemônico que denotam as correntes teórico- políticas do PT escorrega numa quase abnegação da teoria, indo nesta direção de Aloízio Mercadante, ao presumir um suposto projeto de desenvolvimento ou uma “nova práxis política”, prescindindo de uma estrutura teórica de sustentação. Mais especificamente, abrindo mão do elemento central da perspectiva estratégico-ideológica central da tradição clássica desenvolvimentista, que é o próprio processo de planificação e /ou planejamento estatal, que supõe determinado nível de apropriação teórica. Seguindo a rota da decadência ideológica do pensamento estruturalista latino- americano (CASTELO, 2012), o projeto de desenvolvimento do PT incorre numa minimalização do desenvolvimentismo, que beira o crédito ao espontaneismo. Mais uma vez os arroubos da chamada “estratégia democrático-popular” – ainda que ultraflexibilizada – caem na armadilha da miséria teórica. Marx (1985) já se debatia com processos em que a teoria era requisitada para explicar a miséria, mas consegue demonstrar a total debilidade dessa proposição, explicitando a miséria da própria teoria de seu opoente intelectual. 188

A via de análise retida na discussão de Marx, sobre a miséria teórica do pensamento de Prudhon, que além de incorporar os arroubos infundados da social-democracia se batia com o mais mesquinho ideário pequeno burguês, lança luz sobre nossa discussão. A investida da retórica do PT sobre um suposto “desenvolvimentismo” petista contém aqueles dois elementos grotescos, com o agravante de tentar reproduzir uma experiência de padrão de desenvolvimento capitalista histórico situado – que conta com uma ampla tradição teórica e diretrizes muito bem traçadas – em uma quadra da história em que a possibilidade exitosa de tal experiência demandaria, inevitavelmente o confronto com o processo de financeirização da economia e uma arrancada para um novo ciclo de substituição de importações. A solução que Proudhon achava ter encontrado para o avanço da miséria entre os trabalhadores era parcial e infundada, por que ele não assimilava os condicionantes da divisão social do trabalho e o aprofundamento dessa dinâmica com o avanço da maquinaria e as soluções propostas ficavam num campo extremamente limitado de organização da própria divisão do trabalho, de maneira a suprir a miséria que advinha da expansão desse processo. Seria na combinação dos avanços da economia política com o avanço do socialismo que se colocaria uma via de solução para a miséria. É exatamente nessa saída conciliatória que reside o fundamento de sua miséria filosófica. O projeto de desenvolvimento petista arroga uma via conciliatória – os fundamentos básicos do neoliberalismo, que sustentaria um nível de macroestabilidade econômica, com um padrão interventivo público para garantir crescimento e suposta distribuição de renda. Apesar da visão idílica que se coloca na narrativa petista em torno dessa conciliação, ela não sustenta um projeto desenvolvimentista. A despeito do potencial incentivo com o crédito público – como o caso icônico do BNDS e da Caixa Econômica – ou nas obras de infra-estruturas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não se pode atribuir às ações desse feitio uma lógica similar de planejamento como àquelas presumidas no desenvolvimentismo consolidado entre as décadas de 1930 e 1980. Além do mais, talvez como calcanhar de Aquiles dos tangentes limites dessa tática, o mote central da industrialização não encontra bases concretas para fomentar talvez um novo ciclo de substituição de importações que permitisse desenvolvimento de tecnologia de ponta no próprio país para enveredar num processo de maior produtividade do trabalho e do aumento do valor agregado de mercadorias. Os governos petistas não só não fizeram isto, quanto aprofundaram um padrão de intensa dependência tecnológica e, sobretudo, de capital estrangeiro, para manter o potencial 189

de investimento e controle das contas externas, deixando o país em uma condição acentuadamente subalterna na divisão internacional do trabalho. Gonçalves (2013) traz dados elucidativos sobre a mudança de rota na participação da indústria de transformação no PIB brasileiro em relação à agropecuária. Entre 1979 e 1980 a razão era de 5,0. Em 2009-2010 há uma clara redução para 2,7, próximo ao patamar da década de 1960, isto é, do padrão anterior ao último ciclo do processo de substituição de importações, processado na ditadura civil-militar. Outro indicador importante é o PIB per capta da indústria de transformação. Na primeira década dos anos 2000 o crescimento desse indicador foi baixo, de apenas 1,0% ao ano, enquanto que a medida geral do período de 1900- 2010 era de 3,1% (GONÇALVES, 2013). Finalmente, um terceiro indicador é a comparação entre a razão do PIB per capta da indústria de transformação no Brasil e PIB per capta da indústria de transformação no mundo. Entre 1929-1930 esse indicador aumentou de 0,24 para 0,96 em 1979-1980. A partir de 1980 essa razão cai de modo substancial. E em 2010 ela cai ainda mais, chegando a 0,60, voltando ao mesmo nível de 1959-1960 (IDEM). Ao invés de constituir um processo arrojado de planificação estatal102 para uma nova guinada da indústria – procurando sobrepujar nossa condição de dependência quanto às técnicas de incrementação da produtividade média do trabalho – se encaminha por um amplo retrocesso à dependência do setor agro-exportador, aproveitando-se do contexto internacional favorável à exportação de commodities. A compreensão de que a virada ascendente da economia brasileira está diretamente associada a um contexto internacional favorável, tanto no que diz respeito à disponibilidade de capital no mercado financeiro como pela intensa demanda das commotidies brasileiras, é assumida por vários pesquisadores e analistas (GONÇALVES, 2013, OLIVEIRA, 2018, PAULANI, 2010, SAMPAIO JR, 2017, PINTO e CINTRA, 2015 entre outros). Não nos cabe, portanto, refazer uma análise que está já muito bem elaborada, mas sim pensar esse processo sob o ponto de vista da sua representação quanto ao desenvolvimento capitalista brasileiro e como isso favoreceu certo patamar de financiamento de intervenção estatal sobre a pobreza. Filgueiras e Gonçalves (2007) tanto refutam a existência de um projeto desenvolvimentista do PT, quanto asseveram o aprofundamento do que chamam de Modelo Liberal Periférico (MLP) no Brasil sob os governos petistas, em seguimento aos anos 2000. Esse modelo comporta a direção liberal no campo macroeconômico, mas aprofundando as

102 Quando fazemos referências aos princípios/estratégias centrais do desenvolvimentismo clássico, não estamos fazendo apologia a ele. Não consideramos que o planejamento estatal seja a via “correta” para a política econômica do Brasil. Apenas tentamos balizar as diferenças e o caráter farsesco de um suposto projeto desenvolvimentista do PT. 190

mazelas da condição periférica. Nesta linha de análise, trazem pistas teóricas importantes para pensar o significado da dependência da economia brasileira em torno das exportações de commotidies. Contrariando a base precípua do desenvolvimentismo clássico, o MLP promove tanto uma dessubstituição de importação, quanto caminha na direção da reprimarização das exportações. Dados importantes apresentados por Gonçalves (2013) corroboram essas afirmações. A participação dos produtos manufaturados no valor das exportações apresentou forte tendência de queda de 2002 para 2010, passando de 56,8% no primeiro ano para 45,6 no último ano. De modo inverso processou-se uma grande inclinação para o aumento da participação das commodities nas vendas externas do país, passando de 49,3%, em 2000 para 70,9%, em 2011, consolidando um aumento de participação de 21,6 p.p. no conjunto das exportações. Assim, o saldo superavitário cresceu de modo contínuo entre 2000 e 2011, atingindo um patamar recorde de US$ 108,7 bilhões no saldo comercial (VERÍSSIMO e XAVIER, 2014). O extrativismo mineral e a exportação de commodities consolida o padrão de desenvolvimento dependente, reproduzindo questões históricas da nossa formação social. Nos dizeres de Sampaio Jr. (2017), o reforço para subordinação à lógica dos negócios do capital internacional tem provocado um processo de especialização regressiva da economia brasileira, em que a revitalização do agronegócio,103 como força motriz do padrão de acumulação, acaba por reproduzir o papel estratégico do latifúndio – promovendo o aprofundamento da concentração de terras – além de intensificar a exploração predatória das nossas vantagens competitivas naturais do território brasileiro, através da superexploração do extrativismo.

103 Durante os governos petistas o agronegócio recebeu incentivos fiscais de larga envergadura. A Lei Kandir (Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996) isentou do pagamento do ICMS os produtos primários e os produtos industrializados e semielaborados destinados à exportação. De acordo com o discurso governamental, essa renúncia fiscal é supostamente compensada, mas as estimativas são de que os estados perdem em torno de R$ 22 bilhões por ano, e são ressarcidos em torno de apenas 12% dessa isenção. Além do que, a Lei nº 10.925, de 23 de julho de 2004, também favorece o agronegócio. Estabeleceu alíquota zero nas contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) “nos casos incidentes na importação e sobre a receita bruta de venda no mercado interno de adubos ou fertilizantes, defensivos agropecuários, sementes, corretivo de solo de origem mineral, entre outros insumos ao setor agropecuário” (OXFAM-BRASIL, 2016, p. ). Com a Lei nº 12.865 passou também a ser prevista a isenção da cobrança de 9,25% do PIS e da Cofins na venda da soja para todos os fins comerciais. Tal desoneração beneficia indústrias, cooperativas e cerealistas que recebem soja nos processos de comercialização (IDEM). O estudo da OXFAM-Brasil (2016) mostra ainda que, em 2015, 18.602 pessoas físicas e jurídicas possuíam dívidas de mais de R$ 10 milhões com a União. “No total, essas dívidas somavam R$ 1,2 trilhões. Entre os devedores, 4.013 pessoas físicas e jurídicas, também detentoras de terras, possuíam dívida acima de R$ 50 milhões – totalizando mais de R$ 906 bilhões em impostos devidos” (OXFAM-BRASIL, 2016, p. 18). A consolidação do lobby político em torno das demandas do grande latifúndio se efetiva com o aumento e o fortalecimento da chamada bancada ruralista no Congresso Nacional, composta por deputados cuja filiação e interesses se relacionam diretamente aos grandes proprietários de terras no Brasil. 191

Estudo da Organização OXFAM-Brasil (2016) demonstra que os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% do total da área rural do país. Além do mais, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, no entanto, ocupam menos de 2,3% da área total. O referido estudo também destaca o crescimento no número de grandes propriedades rurais nos anos 2000. Os minifúndios decresceram de 9,4% para 8,2% e as pequenas propriedades diminuíram de 17,8% para 15,6%. Por outro lado, as grandes propriedades aumentaram de 51,6% para 56,1%. A alta dos preços das commodities no mercado mundial – ocorrida de 2004 a 2012 – favoreceu o modelo de expansão brasileiro assentado na superexploração de nossas riquezas naturais e do agronegócio. Segundo Pinto e Cintra (2015), o índice de preços das commodities mais que duplicou (230%) no período de 2002 e 2011, sobretudo as minerais (322%) e as energéticas (310%) que tiveram seus preços triplicados no período. Além disso, esse padrão deu suporte à engrenagem político-partidária do pragmatismo eleitoral, isto é, a composição de base de apoio partidário em função da negociação de cargos e pastas ministeriais no governo, entre outros benefícios políticos, em função das alianças arroladas pelo PT com partidos ligados ao interesse do grande latifúndio e do agronegócio, a despeito de uma pauta concreta de reforma agrária, que é uma agenda das lutas sociais desde os anos de 1960. Mas, os ganhos reais da economia brasileira sob essa concertação tem um componente de suma importância que é o contexto externo favorável, sobretudo, com a forte expansão da China e as suas demandas por commodities, que aumentaram os preços destes produtos no circuito mundial de mercadorias (LIMA, 2015). O que tornava eminente os riscos para a economia brasileira, fortemente centrada num mercado tão volúvel, o que se observou na imersão da crise no governo Dilma. Na primeira década dos anos 2000 a China despontou no cenário mundial como a segunda mais poderosa e promissora economia mundial, sendo que em 2009 seu PIB contribuiu sozinha com 61,6% para o crescimento do PIB mundial (AGLIETTA e BAI, 2015). Para sustentar um processo vertiginoso de crescimento com uma população nacional imensa, com baixo potencial de produtos de primeira necessidade, a China tornou-se a grande importadora de commodities. Neste processo, pensar a relação comercial do Brasil com a China ajuda a compreender o papel das exportações desses produtos para o Brasil. A China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, tendo superado a posição dos EUA em 2005. Em 2009 o comércio bilateral atingiu US$ 42,4 bilhões, crescendo a uma taxa anual de 31% 192

desde 2000. As importações chinesas do Brasil totalizaram RS$ 28,28 bilhões, ao passo que as suas exportações para o Brasil somaram US$ 14,12 bilhões (IDEM). As exportações do Brasil, conforme Aglietta e Bai (2015) são basicamente minérios, sementes, grãos, frutas, combustíveis, óleos minerais e produtos destilados, enquanto que as importações consistem, sobretudo, em produtos de alto valor agregado, equipamentos eletrônicos e nucleares, aparelhos óticos, fotográficos e médicos. Apenas uma recorrência a velha e boa teoria da deteriorização dos termos de troca poderia lançar luz sobre a patente condição subalterna e desfavorável do Brasil nesse comércio. De fato, as exportações para a China asseguraram um ótimo nível do balanço comercial, abinando ganhos incontestes para a economia nacional. Mas isso se torna insustentável em longo prazo, na medida em que a importação de produtos com maior valor agregado continua sendo uma demanda do país no circuito mercantil mundial e por que a dinâmica capitalista competitiva depende de investimento em capital constante e modernização permanente da extração do mais-valor. A reiteração do padrão agro-minero-exportador configura uma especialização comercial que a despeito de financiar um pequeno boom na economia, que mesmo sendo superior aos governos FHC, retroage o padrão de produção nacional a nível inferior àquele alcançado no ciclo desenvolvimentista (1930-1980). Em termos de um projeto de desenvolvimento capitalista nacional autônomo, este processo é estéril. Além disso, os autores revelam o crescimento dos investimentos chineses no Brasil, com uma virada importante no ano de 2010, com mais de US$13 bilhões investidos por firmas chinesas nos setores de mineração e energia, o equivalente a vinte vezes a quantidade aplicada nos três anos anteriores a 2010. Entre 2014 e 2015 foram realizados 33 projetos, com uma soma um total de US$ 11,4 bilhões (CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL- CHINA, 2015). Essa modalidade de investimento desvela nexos importantes entre a liberalização financeira, que facilita a entrada de capitais estrangeiros no país e a exploração das riquezas naturais. É a fusão do capital financeiro com o produtivo, que acentua o processo de exploração da força de trabalho e espolia ao limite o meio ambiente. Até mesmo a crise de 2008 teve, em primeira instância, fatores favoráveis à economia brasileira “que permitiu ao Brasil surfar na bolha especulativa gerada pela política de administração da crise dos governos das economias centrais” (SAMPAIO Jr., 2017, p. 143). A sustentação do crescimento sob esses moldes implicaram, além do acirramento da exploração da força de trabalho, o recrudescimento das expropriações. Conforme atesta Fontes (2011), o atual impacto do capital repõe a dinâmica das expropriações com novas determinações. A manutenção de uma balança comercial assentada, sobretudo na exportação 193

de commodities, tem no agronegócio a expressão exímia de formas cada vez mais acirradas de expropriações. O avanço sobre as terras indígenas, sobre áreas de proteção ambiental, o desmantelamento da agricultura de subsistência ou sua acomodação precarizada na economia política do agronegócio implicam na expropriação das condições de produção dos trabalhadores rurais, para benefício dos negócios da mercadoria. A dinâmica intensifica o conflito de classes, sendo que no Brasil existem pelo menos 20 conflitos ativos atribuídos à grande mineração (PICQ, 2015). Ainda que este padrão de acumulação tenha se mostrado extremamente frágil e com pífio poder de efetivar mudanças estruturais, ele possibilitou margens de crescimento para economia brasileira, assim como favoreceu melhorias para alguns segmentos da classe trabalhadora relacionadas à valorização do salário mínimo e no tocante a questão da pobreza. Alguns dados podem lançar luz nessa questão. Como as taxas de crescimento, que no primeiro mandato Lula foi de 3,5% ao ano e no segundo mandato 4,5% ao ano. A renda per capta também cresceu entre 2003 e 2011 à taxa média de 2,8%. O número de empregos gerados no período ultrapassou 14 milhões; Outro fator crucial para a melhoria nos índices de pobreza foi à própria política de valorização do salário mínimo que permitiu um crescimento médio real de 6% ao ano, acumulando um ganho real de 80% no intervalo de 2003-2010 (SAMPAIO Jr., 2017). Aliados aos benefícios de previdência social e os programas de transferência de renda, o aumento real no salário mínimo possibilitou o impacto no quadro geral da pobreza,104 extremamente alardeado pelo marketing petista. Segundo o staf técnico do governo, 20 milhões de pessoas teriam deixado a pobreza. O índice de Gini105 diminuiu, sendo que a distância entre a renda média dos 10% mais pobres e dos 10% mais ricos foi reduzida do patamar de 53 vezes em 2002 para 39 vezes em 2010 (SAMPAIO Jr., 2017). Outros dados importantes dizem respeito à variação média do rendimento real dos ocupados. Pochhmam (2015) demonstra que na fase de estabilização monetária (2003-2013) o poder aquisitivo da parcela que compreende aos 50% mais pobres aumentou 5,8% a cada ano, ao tempo que a renda média do segmento intermediário cresceu 5,2% ao ano. Os ricos tiveram sua média anual em 4,1%, de acordo com o referido estudo. A melhoria nos valores salariais, o aumento do emprego e a maior taxa de formalização, possibilitaram um maior potencial de consumo convergindo em duas direções

104 No quarto capítulo desta Tese trataremos de modo aprofundado sobre a questão.

105 O coeficiente de Gini apresenta dados entre o número 0 e o número 1, em que zero corresponde a uma completa igualdade na renda e um que corresponde a uma completa desigualdade entre as rendas. 194

importantes que plasmaram uma cortina de fumaça sobre os riscos estruturais desse molde de distribuição de renda e acesso ao consumo: uma onda de modernização no acesso ao consumo, que amorteceu a demanda interna e também favoreceu a própria expansão econômica (GONÇALVES, 2013). A ampliação do acesso ao crédito teve expressão com a aprovação do empréstimo consignado106, em 2003, que oferecia taxas de juros menos extorsivas aos funcionários públicos e assalariados formalizados. Em 2004 procedeu-se a ampliação para aposentados e pensionistas do sistema público e, por fim, estendido aos beneficiários do Programa Bolsa Família. Entre 2003 e 2007, 90% dos empréstimos nessa modalidade eram direcionados para financiamento do consumo, com pequena queda a partir de 2013 em função do estabelecimento por lei da exegibilidade de que 80% desses financiamentos deveriam ser direcionados para o microcrédito produtivo orientado. Mesmo assim, o consumo compunha 67% da sua aplicação em dezembro de 2010 (LAVINAS, 2015). Ainda nos valendo dos dados apresentados por Lavinas (2015), temos que em 2001 o crédito correspondia a 22% do PIB e em dezembro de 2014 ultrapassou 58%, destacando-se, especialmente, que se tratou de uma modalidade de crédito sem risco para os bancos na medida em que envolvia retirada compulsória nos rendimentos recebidos dos trabalhadores devedores. A funcionalidade dos programas de transferência de renda na constituição de mercado interno tem sido atestada pelo próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2010). O efeito multiplicador desses benefícios sobre o PIB é de R$ 1,78 para cada R$ 1 gasto. Corrobora as análises quanto ao potencial contrarrestante da política social à tendência ao subconsumo, bem como a própria valorização do salário mínimo e o acesso ao crédito. Como se sabe, a questão da demanda interna sempre foi crucial nos ciclos desenvolvimentistas. A solução pautada pelo PT ficou no limite do endividamento das famílias, que cresce mais aceleradamente do que a própria renda das famílias. Em 2015, 48% da renda das famílias estava comprometida com o sistema financeiro internacional, contra 22%, no início de 2006, o que é um dado acachapante sobre o desenvolvimento financeirizado da era neoliberal. É um modo truncado de fomentar o consumo interno, mas que acentua a dinâmica da relação contraditória que acopla certo patamar de melhoria de renda com a consagração de mecanismos que canalizam esses ganhos para o mercado financeiro, via expansão do acesso

106 É uma linha de crédito de menor custo, disponível a trabalhadores com carteira assinada, aposentados e pensionista do INSS ou funcionário público, em que o pagamento é garantido pelo desconto direto das mensalidades na folha de pagamentos dos salários daquele que solicita o empréstimo. LEI No 10.820, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2003. 195

ao crédito. De modo geral, tal movimento possibilitou o acesso ao consumo de bens de duráveis, como os eletrodomésticos (LAVINAS, 2015). Essa expansão, no entanto, não foi acompanhada de melhoria nos níveis de bem-estar social. As contradições latentes do capitalismo dependente fervilharam a base de sustentação desse programa de reformas ultraflexibilizado, por que na verdade manteve pífias as condições de acesso a terra, saneamento básico, mobilidade urbana, saúde e educação, além do irrisório impacto sobre a concentração de renda. Não por acaso a explosão destas contradições levaram ao levante do precariado (BRAGA, 2012) nas jornadas de 2013107, colocando um novo contexto para o projeto de conciliação de classes petistas. Além disto, os efeitos de melhoria nas condições de renda e acesso ao consumo se assentaram em condições de exploração do trabalho, típicas das demandas do baixo nível de produtividade do trabalho, que caracteriza o capitalismo dependente e que precisa ser compensado com a superexploração da força de trabalho. Nisto entra em xeque a superestimada valorização dos avanços no campo do emprego formal. Sampaio Jr. (2017) assinala que, não obstante as melhorias nos níveis salariais e nos indicadores de geração e formalização do emprego, os governos petistas aprofundaram a dinâmica de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Nos anos Lula a jornada média do trabalho foi de 44 horas, representando um aumento de uma hora em relação à média dos oito anos anteriores. Além disso, a rotatividade continuou em elevação (passando de 42,7% em 2003 para 53,2% em 2010) e não assegurou uma reversão da informalidade na qual se encontra metade dos ocupados (a taxa de terceirização aumentou em média 13% ao ano); a deterioração da qualidade dos vínculos de contratos de trabalho se acentuou, com a propagação das formas mais aviltante de subcontratação. De acordo com o autor, 1/3 dos empregos gerados no período foi para trabalhadores terceirizados, mais de 10 milhões de postos de trabalho, ou seja, 1/5 do total de empregados. Pochhmam (2012) faz crítica à ideia de uma mobilidade social em razão de alguns índices positivos do salário e da transferência de renda, desvelando o caráter economicista de análises que transitam nessa direção. Este viés reduziria o drástico problema da estratificação social que ao final das contas tende a negar a estrutura de classes sobre o capitalismo brasileiro. Neste sentido, os avanços em termos de geração de emprego e renda estiveram assentados em pequenas margens de mudanças na base da pirâmide social, sem garantir de

107 Trata-se de grandes mobilizações populares desencadeadas pelos protestos em torno do aumento das tarifas do transporte público, iniciadas pelo Movimento Passe Livre, mas que assumiram caráter de grandes manifestações que reivindicavam melhorias nos serviços públicos, emprego e melhores condições de vida. O caráter dessas manifestações e os novos sujeitos coletivos envolvidos neles já recebe tratamento em vários estudos. O livro Manifestações e Protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade de Maria da Glória Gohn, é um destes. 196

fato uma substancial mobilidade econômica. A redução da taxa de pobreza, ainda que significativa, está associada à expansão das oportunidades de trabalho de até 1,5 salários mínimos, o que não garante a elevação de determinados segmentos da classe trabalhadora à condição de uma “nova classe média”, como apregoou órgãos do governo, diz o autor. Assim, dos 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década dos anos 2000, 94,8% foram com rendimento de até 1,5% salário mínimo mensal. Não só não houve mudanças na estrutura de classes no Brasil, como é possível inferir que foram os trabalhadores da base da pirâmide social que deram suporte à expansão alcançada no período, seja pelo rebaixamento do valor de sua força de trabalho – na medida em que os governos petistas ataram-se incisivamente na diminuição do chamado “custo trabalho” – seja pelo fato de que importante parte do mercado interno foi movimentado em torno desse segmento. Outrossim, a própria lógica de tributação no Brasil onera a classe trabalhadora, sobretudo a fração de menor rendimento, justamente a que mais se expandiu sobre os governos petistas. De acordo com Salama (2015), a carga fiscal total (impostos diretos e indiretos e contribuições obrigatórias) é de 48,9% entre os trabalhadores que ganham até dois salários mínimos; de 35,9% de 3 a 5; 31,8% de 5 a 10; 28,55 de 10 a 20; 28,7% de 20 a 30 e 26,3% para os que ganham mais de 30 salários. Os tributos sobre consumo de bens e serviços foram os que mais aumentaram a participação relativa na composição da carga tributária, passando de 46,1% para 49,7% em 2010. No governo Dilma subiu de 49,2%, em 2011 para 51,3%, em 2013. Sobretudo no governo Dilma, ampliaram-se também as receitas incidentes sobre a renda do trabalho, que aumentaram a sua participação no PIB, de 9,5%, em 2002, para 10,6% em, 2007, até chegar a marca de 12,9%, em 2013 (GENTIL, 2015). Para alguns analistas, como Castelo (2012), Singer (2016), Sampaio Jr (2017) entre outros, o primeiro governo Dilma indicava uma rotação mais acentuada na direção do intervencionismo estatal na economia. No entanto, conforme veremos, o “ensaio desenvolvimentista” do governo Dilma, para usar os dizeres de Singer (2016), encontrou sérios óbices para sua concretização em função do acirramento dos conflitos sociais muito relacionados ao esgotamento do molde de conciliação de classes – que afinal havia dado distinção e sentido aos governos do PT, do ponto de vista do capital – e da mudança no contexto internacional, que incidiu frontalmente sobre a economia brasileira, com o espraiamento dos efeitos mais deletérios até então pouco sentidos no Brasil. 197

Singer (2016) chega a afirmar que entre o segundo semestre de 2011 e o primeiro de 2012 “desenvolvimentistas” teriam invadido “a cidadela sagrada das decisões monetárias e pressionaram instituições privadas a reduzirem seus próprios lucros (SINGER, 2016, p. 21- 22). Para o autor, estabeleceu-se uma nova matriz de cunho anti-neoliberal, em que a presidenta ousou mudar a rota da política econômica, muito confiante na grande margem de aprovação do seu governo, que chegava aos 64%. Ainda num contexto onde o impacto da crise mundial e a recessão chinesa não se faziam sentir tão drasticamente no país, Dilma procedeu a uma série de medidas audaciosas na direção de uma maior efetivação da intervenção estatal no investimento público para dinamização da industrialização e de infra- estrutura. Entre elas, destacam-se: redução dos juros, que teria sido a principal batalha da nova matriz, na qual o Banco Central minorou a taxa básica de juros de 12,5% para 7,25% ao ano; uso intensivo do BNDES, com estabelecimento de uma robusta linha de crédito subsidiado para investimento das empresas; aposta na reindustrialização, com o Plano Brasil Maior, para sustentar o crescimento econômico num contexto adverso, com ações que incluíam redução no Imposto sobre Produtos Industrializados e ampliação do Programa Microempreendedor Individual; desonerações, sobretudo em folhas de pagamento para 15 setores intensivos em mão-de-obra, que chegaria a casa dos R$ 25 bilhões em 2014; plano de infraestrutura, com o Programa de Investimentos em Logistica, que envolvia um pacote de concessões para estimular a inversão em rodovias e ferrovias, sendo previstos apenas para a primeira fase aplicação de R$ 133 bilhões; reforma do setor elétrico, com a medida provisória de setembro de 2012 que visava baratear em 20% o preço da eletricidade; desvalorização do real, sendo que a partir de fevereiro/março de 2012 o BC agiu para desvalorizar a moeda em 19,52%; controle de capitais, numa tentativa de controlar a entrada de capitais , que poderia prejudicar a competitividade dos produtos brasileiros; proteção ao produto nacional, com o objetivo de favorecer a produção interna, com elevação em trinta pontos percentuais no IPI sobre os veículos importados, ou que tivessem menos de 65% do conteúdo local. Conforme se observa, não é uma agenda insignificante. Chega a ter elementos de ousadia no contexto da recorrente política de macroestabilidade dos governos anteriores. Comporta um grau significativo de intervencionismo estatal orientado sobre a economia, apesar de não empreender mudanças estruturais do ponto de vista de uma arrancada no processo de substituição de importações ou mesmo da constituição de uma via sustentável para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Em acanhada monta essa rápida rotação do governo Dilma assegura certa inflexão sobre a matriz econômica vigente até então, mas, em longo prazo, denota seu caráter limitado 198

e expõe os flancos de um padrão de crescimento econômico que não poderia sustentar uma direção radicalizada autônoma de desenvolvimento. Ao fim e ao cabo, esta experiência teve vida extremamente curta e comprometida na base desde sua emergência, não chegando a sinalizar uma mudança no quadro de dependência e vulnerabilidade externa, tampouco reverter o processo de desindustrialização da economia, haja vista que em 2012 a participação da indústria na formação do PIB se igualava ao ano de 1955 (MARINGONI, 2015). Gentil (2015), por seu turno, assinala que no início do governo Dilma se expressava uma disposição de enfrentar a tendência à desaceleração do crescimento com uma política anticíclica, o que corrobora a tese de Singer quanto à diminuição da taxa de juros, que atingiu um “piso histórico para os padrões brasileiros” (GENTIL, 2015, p. 104). No entanto, esse processo começa a ser revertido a partir de março de 2013 e encerra 2014 na incrível marca de 10,8%. Do mesmo modo, Gentil (2015) assinala que o investimento público assumiu um comportamento errático no governo Dilma, com retração e expansão em anos alternados, o que resultou na queda da taxa média de crescimento para 0,75 entre 2011-2014. Somente em 2014, ano de eleições e da conclusão de importantes obras para os megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol (2014) e as Olimpíadas de Esportes (2016) é que o investimento público federal mostrou expressiva expansão de 16,6%. O Brasil, que passara bem pela primeira fase da crise mundial desencadeada em 2008, começava a receber seus impactos e a ferocidade dessa crise do capital a partir de 2011. Taxas menores de expansão do PIB, que ficaram na restrita marca de 2,1% entre 2011 e 2014 eram um indicativo da desaceleração do crescimento do Brasil (IDEM), visto que as condições que permitiram o alargamento anterior estavam sendo corroídas: como a alta liquidez do mercado de capitais externos e a intensa demanda de commodities a altos preços no mercado internacional. Gonçalves (2017) atesta que, entre 2011 e 2016, a média do crescimento foi de 0,3%, sendo superior apenas ao período Collor, em que a taxa foi de -1,2%, levando-se em consideração todos os mandatos presidenciais entre 1980-2016. Entre 2010 a 2013 a média de crescimento mundial diminuiu constantemente de 5,2% a 2,9%, incidindo sobre a economia doméstica, sobre a inversão nos fluxos de capitais internacionais, o que recolocou o espectro das crises cambiais, do desemprego e do acirramento dos ajustes fiscais, sobretudo quando os Estados Unidos anunciaram a possibilidade de elevar os juros no segundo trimestre de 2013 (SAMPAIO Jr., 2017), aumentando drasticamente o risco de uma fuga em massa de capitais. A crise que se arrastou desde 2008 foi impactando paulatinamente o circuito mundial de mercadorias, ao passo que atingiu os Estados Unidos e a Europa, de imediato em 2008- 199

2009, provocando encolhimento nos mercados consumidores de produtos industriais chineses, o que impactou a economia da China. O país que crescia em média 10% ao longo dos anos 2000-2010, passou a crescer a taxa de 7,7% no ano de 2012-2013, diminuindo ainda à casa dos 7,4% em 2014 (MARINGONI, 2015). Ao final das contas todo esse processo repercute seriamente em um país cujo potencial de crescimento foi gestado muito expressivamente nas demandas por commodities, que tiveram seus preços derrubados em função da retração chinesa. Nesse contexto, vemos que os preços das commodities caíram 21% entre 2010 e julho de 2015, depois de subirem 113% nos oito anos anteriores. Entre março de 2014 a março de 2015 o preço da soja teve queda de 30,9%, o do milho 21,69%, do trigo 25,29%, do açúcar 25,69%, do café 27,82% e do minério de ferro 58%. No ano de 2011, o superávit da balança comercial brasileira em relação à China era de US$ 11,5 bilhões, seguindo uma tendência decrescente, chegando ao patamar de US$ 3,3 bilhões em 2014.108 Não obstante o impacto concreto desses processos sobre a economia no governo Dilma, Gonçalves (2017) traz outros elementos para demonstrar que condições internas de condução da política econômica e da própria herança recebida do governo Lula (grandes desequilíbrios nas contas externas, finanças públicas e desemprego) corroboram ainda mais decisivamente para o pífio dinamismo da economia brasileira no período. Assim, apesar da retração do crescimento mundial nos anos 2010-2013, a média da taxa anual de crescimento do PIB mundial nos anos de presidência de Dilma foi de 3,4, enquanto que no Brasil essa taxa foi de 0,2. Nos governos Lula, esta relação era de 4,3 no PIB mundial para 4,1 no PIB brasileiro. O desempenho de renda durante o período Dilma, sobretudo entre 2014 e 2016, foi, segundo o autor, desastroso em relação ao padrão histórico do país e do mundo (0,1 em 2014 e -3.8 em 2016). Considerando todo o período de governo Dilma a renda per capita brasileira cai aproximadamente 4% no período 2011-16 (IDEM). Uma virada drástica se processa desde aquela pequena inflexão na matriz da política econômica do governo Dilma até o endurecimento fiscal processado em 2013 e uma guinada mais à direita no primeiro ano de mandado após as eleições de 2014, colocando em prática uma agenda de ajustes de cunho mais neoliberal, contradizendo os compromissos assumidos na campanha eleitoral de 2014. O cerne dessa inflexão conservadora se processa num ambiente de instabilidade econômica, acirramento dos conflitos sociais – com as jornadas de junho de 2013 – e a

108 Dados disponíveis em http://infograficos.estadao.com.br/economia/por-que-o-brasil-parou/commodities.php. Acesso em 23 de março de 2018. 200

explosão da crise política em função dos escândalos de corrupção.109 O tema da responsabilidade fiscal volta à tona com toda força e se torna uma das medidas adotadas pela Presidenta para “aclamar” os ânimos do mercado, promovendo um corte de R$ 10 bilhões no Orçamento de 2013, em julho daquele ano. A pressão advinda das ruas tornava evidente o colapso do modelo de desenvolvimento lulista, que Dilma deu seguimento, assentado na melhoria do acesso ao consumo, na expansão do emprego e da renda, mas de parco impacto nas condições de acesso a serviços básicos de saúde, educação, saneamento básico, mobilidade urbana, moradia. E assim, “inaugurou o colapso do consentimento passivo das classes subalternas ao projeto de governo lulista” (BRAGA, 2016). Além da explosão do precariado (nas suas camadas mais jovens ), Braga (2016) atesta que o dinamismo econômico em função da formalização do emprego nos governos Lula e Dilma acabou gerando certa convergência no sentido de mobilização sindical, que desencadearam uma onda grevista histórica no país, em 2013, somando 2.050 greves. Isso representou um crescimento, conforme o autor, de 134% em relação ao ano anterior, quando foram contabilizadas 877 greves. De acordo com o autor, em relação às greves da esfera privada, 46% estavam relacionada ao descumprimento de leis trabalhistas e direitos sociais, por parte dos empregadores; em 2013 as greves relacionadas ao pagamento de salários atrasados, aumentaram 26%. Estes dados ajudam a elucidar o impacto da precarização e acirramento da exploração do trabalho no período de governos petistas, inferindo as reflexões quanto ao aprofundamento das contradições do desenvolvimento capitalista relativas à reprodução da força de trabalho. Também corroboram a manutenção dos fatores estruturais da exploração do trabalho sobre o capitalismo dependente, que a despeito de certos ganhos materiais concretos em termos de salários, são incapazes de alterar os fundamentos de relações de trabalho marcadas pela superexploração e precarização. O programa político ultraflexibilizado do PT expunha os flancos de 10 anos de governo pautado em uma dinâmica econômica muito frágil, em que a histórica dependência do capital estrangeiro, o mando oligárquico e o próprio latindúndio continuavam a estruturar nossas relações sociais, com tímidos ganhos para a força de trabalho.

109 Os escândalos de corrupção também jogavam ventos sobre a pressão do governo Dilma no que dizia respeito à responsabilidade fiscal em função dos exorbitantes valores perdidos em negócios da Petrobrás. A Estatal anunciava, em abril de 2015, o total de R$6, 2 bilhões perdidos referentes a negócios de 2004 e 2012. 201

O agravamento da crise capitalista implica sempre duras ofensivas contra a força de trabalho em favor da recomposição do capital. O projeto político-econômico encabeçado pelo PT permitia alguma acomodação com as demandas da classe trabalhadora, sobretudo sua fração mais enfraquecida – mostra seus limites tangentes. A partir de 2014 o esgotamento daquele padrão de acumulação demanda um avanço sobre os ganhos pífios do trabalho, já que a via ultraflexibilizada da agenda governista do PT sequer consolidou um dinamismo industrial e uma arrancada para aumento de produtividade do trabalho de modo a ter maior potencial de competividade no mercado mundial. Apesar de ter alçado a uma nova condição no ranking das economias globais – passando a compor o G20110, assumir liderança regional nas negociações com os Estados Unidos e compor, em posição de destaque, o grupo de países emergentes denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), conforme Batista Jr. (2015) –, o país, na esteira do processo de transformismo do PT, se limitou à ganhos imediatos e alianças pragmáticas que não alterou minimente a condição do Brasil na divisão internacional do trabalho. Ao assentar a expansão nas commodities, o país continua na posição subalterna, cada vez mais especializada em produção e exportação de bens primários, de baixo valor agregado, como já indicamos. No momento em que esta condição estrutural passa a sofrer os impactos mais graves da crise do capital em nível mundial, o trabalho é a fração a ser onerada para cobrir os custos da manutenção dessa estrutura de produção. A produção da indústria brasileira finalizou o ano de 2015 com queda acumulada de 8,3%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Maior recuo da série, iniciada em 2003. Os setores que puxaram o freio da indústria foi o automotivo, com queda de 25,9% e a produção de itens eletrônicos e ópticos, 30%.111 Os níveis de vulnerabilidade externa também se acentuaram. Em 2005, o país tinha US$ 53 bilhões em reservas. No ano de 2015 o montante era de US$ 363 bilhões. Em 2013, a dívida bruta do país correspondia a 60% do PIB brasileiro, tendência invertida em 2014 e que se tronou explosiva em 2015, alcançando novamente de 74% do PIB.112

110 G20 é a expressão utilizada para designar o grupo dos 20 países mais industrializados e as chamadas economias emergentes. Trata-se de um fórum central, com assento para os chefes de estados destes países, cujo suposto objetivo é a cooperação econômica internacional.

111 Disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/02/producao-da-industria-fecha-2015-em-queda- de-83.html. Acesso em: 02 de fevereiro, de 2018.

112 Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/especial/2016/09/02/10-%C3%ADndices- econ%C3%B4micos-e-sociais-nos-13-anos-de-governo-PT-no-Brasil. Acesso em: 03/02/2017. 202

Neste particular, o governo Dilma em face dos efeitos do exaurimento do padrão político-econômico dos governos Lula, não apenas assumiu um pacote de duros ajustes fiscais, sob a batuta de Joaquim Levy,113 como passou a implantar uma agenda de medidas que ficou conhecido como “pacote de maldades”. Para garantir o superávit primário de 1,2% do PIB, em 2015, o Ministro Levy fechou o pacote de ajustes em R$111 bilhões, onerando, impactando seriamente em benefícios trabalhistas: 1) corte de gastos no montante de R$ 57,5 bilhões; 2) redução de despesas obrigatórias (seguro-desemprego, abono salarial, pensão por morte) no valor de R$ 18 bilhões; e 3) aumento da arrecadação, com elevação da Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras de Crédito, Câmbio e Seguros), do PIS/Cofins sobre importados (Programas de Integração Social e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) e do IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) de cosméticos, chegando à cifra de mais R$ 20,6 bilhões de reais em diminuição dos gastos do Estado.114 Essas façanhas foram acompanhadas ou facilitadas com a ação do Congresso Nacional, mas demandava cada vez mais negociações acirradas do governo com os partidos da base governista, num contexto em que a manutenção das alianças das bases pragmáticas da pequena politica do PT começava a erodir. Neste cenário, a presidenta aprova a lei de terceirização, a Medida Provisória (MP) do ajuste fiscal, a MP 664, que limita a pensão por morte, MP 665 que mudou as regras do seguro-desemprego e mudanças na legislação relativa ao trabalho escravo. Ademais, o desemprego começa a assolar o país com a economia em desaceleração, e a taxa de desocupação subiu de 7,9 para 8,3 entre o primeiro e o segundo semestre de 2015. (BRAGA, 2016). Em 2015, o percentual de pessoas em trabalhos formais era 46,2%, contra 58,2%, em 2005. A população ocupada sofreu uma redução em relação ao ano anterior em números absolutos (3,7 milhões) e em termos relativos (3,8%), pela primeira vez na década. O nível de ocupação foi de 6,7% e, em relação a 2014, -5,2%. As frações mais afetadas com a redução do nível de ocupação foram “os mais jovens com idade entre 16 e 24 anos (-15,4% na década e -10,7% em relação a 2014) e as pessoas sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto de escolaridade (-16,2%)”. O período de 2013 a 2015 foi marcado pelo aumento da desocupação, com o maior crescimento da população desocupada, em 2015, em relação ao

113 Economista, especialista em contas públicas. Foi Secretário-Adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, do governo FHC, Vice-Presidente de Finanças e Administração do Banco Interamericano de Desenvolvimento, diretor-superintendente do Banco Bradesco. Atualmente é Diretor-Geral e Diretor Financeiro do Grupo Banco Mundial.

114 Disponível em: http://passapalavra.info/2015/03/103142. Acesso em: 20 de abril de 2016. 203

ano anterior (38,9%). A massa salarial real diminuiu 10% entre novembro de 2014 e maio de 2015. A queda dos rendimentos foi mais acentuada entre os trabalhadores informais. Somente no ano de 2015 a renda dos sem carteira assinada recuou 8,28%.115 A renda nacional total cresceu 18,3% entre 2001 e 2015, mas 60,7% desses ganhos foram apropriados pelos 10% mais ricos, contra 17,6% das camadas trabalhadoras mais empobrecidas. A fração da classe dominante que compõe 1% da população, receberam em 2016, em média, 36,3 vezes o equivalente ao que foi recebido pelos que estão na metade da população que tem os menores rendimentos. No segmento que compõe este 1% o rendimento médio mensal real fruto dos trabalhos, foi de R$ 27.085, ao passo que a classe trabalhadora ficou com R$ 747 ao mês, já descontada a inflação.116 Os dados contrastam com os resultados obtidos no campo do “alívio à pobreza extrema”, quando se anuncia em escalada internacional a retirada de mais de 22 milhões de brasileiros da miséria. Se observarmos do ponto de vista das categorias pobreza absoluta117 e relativa, os arranjos forjados nos governos petistas permitiram um avanço sobre a pobreza absoluta, mas a pobreza relativa permanece pulsante. Os resultados das políticas supostamente distributivistas do PT não operaram nenhum efeito contrariante a lei geral da acumulação capitalista. O impacto efetivo sobre a dinâmica da pobreza minimiza as condições de aviltamento dos trabalhadores, mas em nada revoga a própria lógica do valor, na medida em que a pobreza relativa é justamente dinamizada a partir da apropriação do valor em termos de ganhos do trabalho e ganhos do capital. A política de valorização do salário mínimo e as políticas de transferência de renda impactaram sobre a pobreza, mas a desigualdade social manteve-se inalterada. Neste particular vale uma pequena digressão à crítica de Roman Rosdolksy sobre abordagens marxistas que insistem na existência de uma teoria do empobrecimento absoluto em Marx. Para o autor, a dinâmica do empobrecimento relativo é que se coloca como inevitável na análise marxiana sobre a lei geral da acumulação capitalista.

115 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/trabalhadores-formais-ganham-dobro-dos-informais- 20574163. Acesso em: 03 de fevereiro de 2018.

116 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/571515-desigualdade-de-renda-no- brasil-nao-caiu-entre-2001-e-2015-revela-estudo. Acesso em: 22 de fevereiro de 2018. Os dados apresentados no site estão de acordo com o estudo conduzido pelo World Wealth and Income Database.

117 De acordo com Netto (2007), a pobreza absoluta registra-se quando as condições de vida e trabalho dos proletários experimentam uma degradação geral: queda do salário real, aviltamento dos padrões de alimentação e moradia, intensificação do ritmo de trabalho, aumento do desemprego. 204

Rosdolksy (2001) esclarece que quando Marx atesta a tendência histórica de “acumulação da miséria” ele está diretamente se referindo à lei tendencial do capitalismo em gerar força de trabalho excedente, e, assim, quanto mais cresce o exército industrial de reserva, “são cada vez maiores os setores excedentes da classe trabalhadora vítimas da miséria, da ignorância, da brutalização e da degradação moral” (p. 253). A força de trabalho diretamente vinculada à produção do valor sofre uma pauperização relativa, uma vez que mesmo que os salários aumentem, eles aumentam muito menos do que os ganhos do capital. O projeto do PT para o “alívio da pobreza” centrou-se, majoritariamente, nessa superpopulação relativa, com impactos no quadro geral de miséria. Mas, seu discurso de distribuição de renda não se sustenta, muito menos uma suposta redistribuição do valor excedente. Isso por que a questão também passa pelo fato de como a razão burguesa e os intelectuais orgânicos do PT compreendem as dinâmicas da produção e distribuição do valor, em que prevalece uma leitura superficial acerca da relação entre produção e distribuição. A produção é concebida in abstracto como a produção em geral, sendo que a distribuição seria a esfera da particularidade, que comporta as possibilidades de mudanças e alterações. A produção deve ser apresentada [...] à diferença da distribuição etc., como enquadrada em leis naturais eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade in abstracto.[...] Na distribuição, em troca, a humanidade deve ter se permitido de fato toda espécie de arbítrio. (MARX, 2011, p. 42).

Marx já denunciava essa pobreza teórica no âmbito da economia clássica e vulgar, assim como criticava duramente o socialismo reformista quanto aos limites de suas preposições, posto que circunscrito ao âmbito restrito da distribuição. Em sua “Crítica ao Programa de Gotha”, demonstra os limites do programa socialista resultante da união dos partidos operários alemãos, tecendo duras críticas à perspectiva inscrita naquele programa quanto às demandas do trabalho que acabavam circunscritas à abstração da “distribuição dos frutos do trabalho” (MARX, 2012). O discurso recente sobre o desenvolvimento está ancorado na perspectiva de conciliar Estado e um mercado forte de modo a fomentar o desenvolvimento capitalista, conciliando a isso uma pauta de “alívio à pobreza” e distribuição de renda. Em face de um contexto de acirramento das contradições sociais, com a crise sistêmica do capital, ampliação exponencial do desemprego estrutural, precarização do trabalho e aumento exorbitante da pobreza ele aparece como um aparato político-ideológico para a construção do consenso em prol da legitimidade de um vago projeto de desenvolvimento. 205

Trata-se, portanto, da tentativa de retomar a ideologia do desenvolvimento como possibilidade de “melhorar” o capitalismo no país, de modo a lhe conferir uma direção mais moderna, democrática e “justa”. Entretanto, como se trata de uma perspectiva “modernizante” (cujo limite encontra-se definido pelo ponto de partida, isto é, pelo próprio modo de produção capitalista), o horizonte de transformação possível no interior dessa visão de mundo é intrinsecamente restrito – voltado a atingir, quando muito, melhorias sociais. Mais do que isso, [...], o desenvolvimentismo esforça-se em dissociar os “aspectos progressistas” do desenvolvimento capitalista daqueles que seriam considerados seus “aspectos negativos” (suas ‘mazelas’) (BONENTE e CORRÊA, 2015, p.117).

Esquematiza-se, desde este ponto de vista, um processo de ocultamento do caráter contraditório e inexorável do capitalismo contemporâneo: ao mesmo tempo em que permite incríveis avanços das forças produtivas, exaure o poder civilizatório do capital, já em franca decadência, avançando na direção da barbárie social. Em síntese, desenvolvimentismo, em todas as suas frentes, é apologia ideológica da acumulação capitalista. Seja na sua vertente clássica ou na estratégia democrático-popular ultraflexibilizada do PT, o desenvolvimentismo é a própria ideologia que visa transformar o projeto do capital no projeto hegemônico de toda sociedade. Se este projeto tem bases mais alargadas para viabilizar autonomia nacional, arrancada das forças produtivas e potencial ganhos para o trabalho, ou se reverbera a matriz neoliberal enviesada por um nível pífio de planejamento estatal para dinamização da industrialização, ampliação do crédito e tímidas melhorias para a classe trabalhadora, não deixa de ser um projeto para reprodução da lógica da acumulação capitalista, das suas necessidades a cada tempo e ciclo histórico. Ocultar as contradições, sobretudo as que assumem expressões mais acirradas, como a pobreza extrema, por exemplo, sempre foi uma necessidade premente do modo de produção capitalista, já que tais contradições tem um potencial de desestabilização política, social e econômica, podendo se constituir em ameaça concreta ao sistema. Neste sentido, se não é possível escamotear completamente tais contradições, é preciso amenizá-las e administrá-las de modo a cessar as possibilidades disrruptivas. É nesta direção que a construção de ideologias e narrativas da classe hegemônica é tão indispensável para consolidar consensos de classes, dissipar os conflitos e assegurar a dominação burguesa. Assim, existe uma conexão entre a retomada da ideologia do desenvolvimento e o incremento de determinadas estratégias de “enfrentamento à pobreza”, que configura a “face de justiça social desse projeto”. No âmbito deste projeto, processa-se a expansão e centralidade da política de assistência social, que a despeito do avanço real em termos jurídico-normativos e institucionais, é atravessada por mecanismos político-ideológicos e 206

materiais concretos que provocam minimização do caráter constitucional de política de seguridade social, inflexionando seu raio de alcance à operacionalização de estratégias de gestão da pobreza. Trataremos dos nexos que relacionam a retomada da ideologia do desenvolvimento com o a centralidade do combate à pobreza através da política de assistência social nos próximos capítulos.

207

3 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: ENTRE A REGULAMENTAÇÃO, O PARALELISMO E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA

Não é uma assertiva original dizer que a assistência social no Brasil se constituiu, historicamente, marcada pelo conservadorismo. Em verdade, a influência do conservadorismo não é algo exclusivo do campo da assistência social, posto que tem marcado o cerne das relações sociais no Brasil de um modo geral, desde os aspectos econômicos, aos políticos, sociais e culturais. De acordo com Souza (2016), o conservadorismo118 deve ser tomado tanto como ideologia, como tradição de pensamento e ação fundada na modernidade e com influência crescente e radicalizada na contemporaneidade. O autor esclarece que é possível supor a formação e consolidação do pensamento conservador contemporâneo a partir do pós- Primeira Guerra Mundial até a contemporaneidade, mantendo-se sua função social ideológica. O conservadorismo, seja clássico ou contemporâneo, desse ponto de vista ontológico é uma vertente dentre outras possíveis no campo amplo das ideologias conservadoras que atuam em defesa da preservação das relações sociais capitalistas, organizando movimentos, grupos e indivíduos. Como ideologia que emerge na crise, o conservadorismo chama para si a função de centro irradiador da defesa da sociedade burguesa. O antagonista estrutural do conservadorismo é o movimento comunista revolucionário, não o fascismo ou o "totalitarismo", pois seu interesse é a transformação radical da sociabilidade burguesa, viabilizando a emancipação humana (IDEM, p. 92).

118“O conservadorismo clássico, em sua gênese pós-1789, constituiu-se como sistema de ideias e posições políticas marcadamente antimodernas, antirrepublicanas e antiliberais. Em síntese: antiburguesas. É possível caracterizá-lo como uma reação ideológica e política aos avanços da modernidade. Avanços esses identificados, naquele momento, no desenvolvimento das forças produtivas e nas transformações das relações de produção, que implicaram profundas mudanças socioinstitucionais e culturais. Certos princípios do conservadorismo clássico vão ganhar dimensão "científica" com as sociologias de August Comte (1798-1857), Hebert Spencer (1820- 1903) e Émile Durkheim (1858-1917). Ao receber a chancela da “ciência social”, valores da tradição conservadora são elevados a conceitos. Ideias conservadoras clássicas acerca das relações entre indivíduo, Estado e sociedade, passam a receber o anteparo da solidariedade orgânica, da harmonia e da coesão social. O positivismo impulsionou o sistema de ideias conservador, ao mesmo tempo em que o modificou, pois estabeleceu sua reconciliação com a sociedade capitalista consolidada e sua institucionalidade. Realinhou o foco das disputas políticas dos conservantistas, de posições antiburguesas para posições antiproletárias e, por derivação, contrarrevolucionárias. A Sociologia como disciplina e “ciência” específica passa a vocalizar certas aspirações conservadoras clássicas, principalmente aquelas em defesa das instituições estabelecidas. Opera essa vocalização por meio de "métodos científicos" que esvaziam a produção de conhecimento sobre a sociedade de suas mediações econômicas e políticas. Esse fôlego renovado que valores conservadores centrais recebem das "ciências sociais" é repleto de consequências históricas” (SOUZA, 2015, p. 04-05) Não discutiremos o chamado “conservadorismo clássico”, apenas demarcaremos a acepção assumida neste trabalho quanto ao conservadorismo contemporâneo, pontuando algumas de suas incidências no campo da assistência social brasileira. 208

Tanto como ideologia ou como prática, o conservadorismo se coloca em defesa intransigente da ordem estabelecida, do padrão de dominação instituído119. Neste sentido, é adversário de mudanças que possam significar alteração no campo das estruturas já demarcadas. Adota uma “blindagem ‘presentista’ (nem passado - reacionário, nem futuro - revolucionário, somente o presente importa)” (SOUZA, 2015, p.7). Para os conservadores, as tradições, incluindo as rituais e institucionais, oferecem os elementos imprescindíveis para a inserção do indivíduo na sociedade. A função pedagógica que as tradições exercem sobre os sujeitos é reconhecida e valorizada pelo conservadorismo moderno. É por essa mediação que valores são produzidos, difundidos e incorporados como uma espécie de “segunda natureza”, passando a orientar os comportamentos de uma maneira (quase) espontânea, pois tendem a se transformar em hábitos e costumes (IDEM, p.16).

A assimilação do conservadorismo no Brasil tem mediações importantes que se desdobram desde instituição de um padrão de desenvolvimento capitalista não clássico até a conformação de uma classe social dominante compósita, donde os valores republicanos e burgueses estão entrelaçados com os interesses das oligarquias e a direção patrimonialista do Estado. A particularidade da trajetória histórica da formação da sociedade brasileira, sua composição de classes e contradições específicas, portanto, conforma um amálgama sócio-histórico eminentemente distinto das tradições e ritualismos medievais. No Brasil, o conservadorismo não emerge a partir de uma classe social de herança secular, golpeada por uma revolução que institui outro ordenamento social, político, jurídico e econômico, que represente sua ruína econômica e política [...]Em contraste, o "conservadorismo à brasileira", como discurso ideológico que reproduziu (na origem) e reproduz (atualmente) a consciência de classe imediata das classes dominantes (autoritarismo, desprezo pelas camadas populares, hierarquia, meritocracia, anticomunismo, "elitismo", aristocratismo, entre outros), consciência essa que emerge como uma espécie de "espelhamento" ideológico das condições objetivas nas quais decorrem a dominação de classe tupiniquim, mas sobretudo como prática política unificadora, emerge em condições socioeconômicas muito diversas daquelas que deram origem ao conservadorismo clássico (SOUZA, 2016, p.229).

Constituindo um largo raio de influência nas relações sociais brasileiras, o campo de ação da assistência social não estaria imune a tal processo. Pelo contrário, o campo assistencial brasileiro sofreu intensos rebatimentos do “conservadorismo à brasileira”. As expressões desse conservadorismo, no âmbito da assistência social, estão amplamente

119 “O que se constata é um ‘rapto ideológico’ de noções reinterpretadas no seu significado original e propostas como ‘válidas’ para compreender e agir em um contexto histórico diferenciado daquele no qual emergiriam. Essas noções são válidas, porém, para os que têm interesse em obscurecer as contradições próprias da sociedade capitalista, enfatizando, no nível analítico, apenas o que favorece sua própria coesão e reprodução e encobrindo as desigualdades fundamentais nela produzidas. Através desse mecanismo, o pensamento conservador deixa de se contrapor ao capitalismo. Aquela tensão referida – entre noções e ideias oriundas do passado, mas intencional e racionalmente ressuscitadas como ideologicamente válidas para responder às necessidades de explicação da própria sociedade capitalista – permite que ele seja articulado às intenções básicas da burguesia, isto é, seja uma forma de agir e de pensar a sociedade a partir da perspectiva dessa classe” (IAMAMOTO, 2004, p. 26). 209

documentadas em importantes publicações e em pesquisas universitárias e teses, que enfatizam as diversas nuances que ele assume: o assistencialismo, que denota formas de prestar assistência a segmentos da população, sem constituir uma política social amparada em direito público ou ações que contribuam para efetivamente mudar as condições que geram as necessidades desse segmento da classe trabalhadora, tornando a realidade reprodutora da ordem instituída, o que é a base precípua do conservadorismo; a benesse, que implica forma de atuação pautados na caridade, na bondade, no apelo moral e religioso, contribuindo para a apologia da paz e da coesão social, bandeira dos conservadores em geral; o paternalismo, que confere àqueles que disponibilizam benefícios em pecúnia, alimentos e bens de primeira necessidade a personificação do benfeitor, isto é, converge para a valorização pessoal do governo ou diretores, funcionários de instituições filantrópicas, contribuindo para a manutenção destas mesmas relações e da própria desigualdade, considerada como algo natural e até certo ponto positiva para o caldo cultural conservador; o casuísmo e a fragmentação de suas ações, que implicou, neste campo, para ação pragmática; o clientelismo, que favorece a manutenção de relações pautadas na lógica do favor, do mando, em que a população já arraigada do poder tradicional, começa a reproduzir a ideia da troca de favor. Assim, a prática clientelista passa a ser de suma importância para conservar o poder já estabelecido, já que contribui para que seja naturalizada a troca de favores ao invés do direito, mantendo-se intocáveis as condições de dominação, conservando-se a realidade presente e sua institucionalidade vigente (ALVES, 2011). De uma forma ou de outra, tais estudos demonstram e explicitam as dificuldades no movimento concreto da realidade brasileira, para essa política social se consolidar como política pública de Estado, bem como elencar os entraves políticos, culturais, econômicos e sociais para sua estruturação, clareando os sentidos das lutas de classes envolvidas no processo de sua inclusão na arena da seguridade social. No campo do Serviço Social, majoritariamente, tais análises se assentam no materialismo histórico e dialético, que permite desvendar o feixe de contradições que a política de assistência social, como toda política social, comporta, e tem esclarecido os limites intrínsecos que ela encerra. Tal direção de análise não condensa homogeneidade de perspectiva no meio profissional, já que há manifestações, senão completamente paradoxais, divergentes em pontos analíticos fundamentais. Essas concepções, ao defenderem amplamente as conquistas regulamentárias da área, bem como o novo status que a política em questão assume no campo 210

da política social brasileira, convergem para uma valorização exagerada do poder de alcance da assistência social, que beira uma concepção irrealista de seu poder civilizatório. Nossa pretensão não é fazer um balanço histórico detalhado da construção da política de assistência social no Brasil, nem traçar um confronto entre as diferentes concepções teórico-políticas das abordagens mais marcantes. A intenção é fazer um breve retrospecto dessa constituição histórica, apenas para situá-la no marco concreto da sociedade brasileira, já que nossa ênfase será o amplo movimento de regulamentação de que ela é objeto nos governos do PT. Especificamente, demonstrando o significado real e concreto deste movimento, que a despeito da importância histórica para o seu reconhecimento como política pública, resulta em uma modernização conservadora. Na sua acepção clássica, modernização conservadora designa um dos caminhos dos processos sócio-históricos pelos quais determinadas sociedades transitaram para o desenvolvimento industrial, isto é, para modernização das relações sociais na direção do capitalismo. Originalmente cunhada por Barrington Moore Jr – na sua obra que se transformou num clássico das Ciências Sociais, “As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno”, publicada pela primeira vez em 1966 – a expressão condensa as reflexões do autor acerca de uma modalidade específica de transição para as modernas condições capitalistas, por países retardatários. Para Domingues (2002), Moore Jr produziu umas das teorias mais bem-sucedidas na tentativa de analisar as transições para a modernidade, quer nos países centrais, quer nos países periféricos, atestando, inclusive o grande impacto da obra no Brasil. Valendo-nos das análises do próprio Moore Jr (2010), podemos esboçar as principais características daquilo que o autor denomina como “as três vias para o mundo moderno”. Desse modo, uma primeira via seria aquela que aliou o capitalismo à democracia parlamentar, depois de uma série de revoluções, como a Revolução Puritana, a Revolução Francesa e a Guerra Civil Americana, que Moore Jr denomina, com reservas, de via da revolução burguesa, “uma via em que a Inglaterra, a França e os Estados Unidos ingressaram” (MOORE Jr., 2010, p. 429). A segunda via, também capitalista, mas com ausência de um intenso surto revolucionário, movimentou-se através de “formas políticas reacionárias até culminar no fascismo. Vale a pena sublinhar que, através de uma revolução vinda de cima, a indústria efetivamente se desenvolveu e floresceu na Alemanha e no Japão” (IDEM, p. 429). Por fim, a 211

terceira via, seria a comunista, ocorrida, sobretudo, nas nações em que as revoluções tiveram suas principais origens entre os camponeses.120 De modo sintético, o autor coloca nos seguintes termos: Numa extensão muito limitada, estes três tipos – as revoluções burguesas que culminaram na forma ocidental de democracia, as revoluções conservadoras vindas de cima, que terminaram no fascismo, e as revoluções camponesas que levaram ao comunismo – podem constituir vias e opções alternativas (MOORE Jr., 2010, p. 430).

A segunda via apresentada pelo autor é justamente aquela que define como modernização conservadora, muito claramente exemplificada, para ele, pela Alemanha e pelo Japão. Trata-se de um processo em que o capitalismo se enraíza tanto na agricultura como na indústria, mas “sem um movimento revolucionário popular”, desembocando por vezes em experiências autoritárias ou mesmo fascistas. Nesses países, processa-se o desenvolvimento comercial e industrial sem transformação das estruturas sociais, ou mais especificamente, sem constituição de uma democracia parlamentarista. Trata-se de um processo de modernização em que as antigas elites aristocráticas controlam o processo para a definitiva era moderna do capitalismo, articulando-se com as novas classes emergentes, que começam a adquirir visibilidade. Coexistem formas de transformação capitalista, com a ausência de instituições democráticas.121 “À medida que prosseguiram com a modernização conservadora, esses governos semiparlamentares [Alemanha e Japão], tentavam preservar a estrutura social inicial, aplicando grandes secções dessa estrutura no edifício novo, sempre que possível” (MOORE Jr., 2010, p. 454). Não se trata de manter intocada a realidade estabelecida, mas de garantir um processo em que se consolidem as condições essenciais para o desenvolvimento capitalista, conservando-se determinadas estruturas de dominação social, onde o novo vai se sobrepondo ao velho sem rupturas drásticas, sem as clássicas vias revolucionárias, quer de ordem burguesa quer para a via comunista, como no caso da Rússia. Os mais bem-sucedidos dos regimes conservadores fizeram muito, não só ao destruírem a ordem antiga, mas ao estabelecerem a nova ordem. O Estado auxiliou a

120 O autor destaca, que evidentemente, que as determinações de principais origens entre os camponeses não atestam exclusividade para essa característica.

121 “Existem certas formas de transformação capitalista na zona rural que podem ter êxito econômico, no sentido de produzirem bons lucros, mas que são, por razões bastante óbvias, desfavoráveis ao desenvolvimento de instituições livres do gênero das do Ocidente no século XIX. Embora essas formas se confundam, é fácil distinguir dois tipos gerais. Uma classe alta proprietária pode como no caso do Japão, manter intacta a sociedade camponesa pré-existente, introduzindo apenas as alterações suficientes, na sociedade rural, para garantir que os camponeses produzam um excedente suficiente, de que se possa apropriar e vender com lucro. Ou então, a classe alta proprietária poderá criar sistemas sociais inteiramente novos, dentro do estilo da escravatura das plantações” (MOORE Jr., 2010, p. 454). 212

construção industrial de diversos modos importantes. Serviu de motor de acumulação do capitalismo primário, compilando recursos e dirigindo-os para construção de fábricas. Dominando a mão-de-obra, também desempenhou um papel importante, de modo algum inteiramente repressivo. O armamento constituiu um importante estímulo para a indústria (MOORE Jr., 2010, p. 456).

Domingues (2002), refletindo acerca da teoria do Moore Jr sobre a modernização conservadora e do seu emprego para pensar os processos da constituição e desenvolvimento capitalista no Brasil traz algumas considerações interessantes, que valem notar. De forma resumida, pode-se compreender o conceito de “modernização conservadora” a partir das seguintes coordenadas. Primeiramente, a recusa a mudanças fundamentais na propriedade da terra. Os grandes proprietários manteriam, destarte, controle também sobre a força de trabalho rural, que não seria capaz, portanto, de se libertar de relações de subordinação pessoal e de extração do “excedente” econômico por meios mais diretos. Foi isso que teve lugar na Alemanha e no Brasil, ao contrário, por exemplo, do que se passou na Inglaterra, com a transição para uma mercantilização do trabalho agrícola, ou na França e no México, com a revolução camponesa levando ao fim ou ao menos a um profundo enfraquecimento da grande propriedade rural e ao parcelamento da terra. Na modernização conservadora, as tradicionais elites agrárias forçaram uma burguesia relutante e avessa aos processos de democratização a um compromisso: a modernização fazia- se, sob a liderança e levando muito encontra os interesses dos proprietários agrários, conformando-se uma “subjetividade coletiva” centrada em um bloco transformista, cauteloso e autoritário em suas perspectivas e estratégias.

Florestan Fernandes, sem dúvidas, é um dos pensadores da nossa formação social que empregou esse conceito para analisar nosso padrão de desenvolvimento capitalista. Ao pensar esse processo, o autor demonstrou em a “Revolução Burguesa no Brasil” os meandros pelos quais a lógica do capital foi transformando a nossa estrutura econômica, mas mantendo inalteradas as relações de dominação por longo tempo, donde se observa a larga influência das oligarquias agrárias sobre o Estado e sobre a direção social das relações sociais capitalistas. A constituição da ordem capitalista, portanto é engendrada pela via da modernização técnica e institucional, mas sob controle conservador. A transição para o capitalismo se daria, assim, associando uma “explosão modernizadora” com a manutenção dos costumes e da estabilidade da ordem (FERNANDES, 2005, p.392). Em “Capitalismo dependente e as classes sociais na América Latina”, Florestan pensa as imbricações dessa via de transformação capitalista como modernização conservadora, ao tempo que relaciona tal processo à condição de dependência dos países deste continente. Nesta reflexão, o autor demonstra como o desenvolvimento capitalista se realiza sem a concretização das chamadas revoluções democráticas nacionais, com uma autuação submissa das burguesias nativas em relação aos interesses internos e sem socialização de ganhos 213

civilizatórios dos capitalistas, conforme se realizou em países de industrialização avançada e com patente ausência da classe trabalhadora. Os mesmos efeitos dinâmicos do padrão dependente de modernização acarretam a necessidade da persistência e da revitalização de dinamismos que não são especificamente “modernos”, embora sejam essenciais, em graus variáveis, à eficácia dos fins visados através da modernização dependente. Isso quer dizer que a modernização processa-se de forma segmentada e segundo ritmos que requerem a fusão do “moderno” com o “antigo” ou, então, do “moderno” com o “arcaico”, operando-se o que se poderia descrever como a “modernização do arcaico” e a simultânea “arcaização do moderno” (FERNANDES, 1975, p. 80).

Assim, a modernização conservadora designa os peculiares processos políticos, econômicos, sociais e culturais pelos quais determinados países fazem a transição para a economia tipicamente capitalista, denotando o caráter específico do padrão dessa transformação que conjuga “saltos para frente”, mas mantém estruturas pré-existentes e não condizentes com o progresso alcançado em determinados segmentos da sociedade. Em suma, trata-se da penetração e consolidação da lógica do moderno mercado capitalista sobre uma determinada nação, sem que, aconteça a devida modernização das relações sociais e políticas. A perspectiva da modernização conservadora não pode ser empregada diretamente para análise particular de um processo específico de uma política social, no nosso caso a assistência social, já que seu emprego original se realizou para explicação de uma realidade muito mais ampla e complexa da totalidade social, como uma via peculiar de transição para a modernidade capitalista. Até mesmo sua aplicação para tratar da via de transformação para o capitalismo no Brasil não se processou sem as devidas mediações históricas. Nosso recurso a este termo denota relação com seus aspectos conceituais originais, já que os processos relativos às transformações das políticas sociais têm relação direta com a própria dinâmica do desenvolvimento capitalista e as vias que ele assume, que no caso do Brasil guarda relações importantes com as condições explicitadas por Moore Jr para atestar a via da modernização conservadora. Mas não se localiza exclusivamente nesta direção. Este recurso permite alguma aproximação com a explicação que estamos procurando sistematizar acerca do movimento de regulamentação e institucionalização da política de assistência social nos governos do PT, mas existem outras nuances que precisam ser abarcadas. Não se trata, portanto, de estender o termo a outro contexto histórico de modo direto e imediato, mas de buscar extrair dele algumas características que possibilitem o entendimento, 214

mesmo que aproximativo, da questão relativa ao processo da assistência social que estamos tematizando.122 O emprego aqui realizado pode ser profícuo, na medida em que fazemos as devidas mediações, além de precisarmos, desde o início que, no caso da política social em questão, o movimento das classes sociais já se dá num contexto evidentemente demarcado pelo poderio das relações capitalistas em sua fase madura; o sentido da modernização não se dá em relação à estruturas do modo de produção, mas afeta diretamente a reprodução das relações sociais capitalistas estabelecidas, na medida em que a modernização na assistência social é, ao fim e ao cabo, uma modernização para as necessidades do sociometabolismo do capital; o processo em análise não designa a manutenção das estruturas de dominação de classe no campo da produção imediata de mercadorias e do excedente econômico, mas efetiva mecanismos de conservação das relações de dominação estabelecidas; não demarca a entronização da via moderna da produção capitalista, mas opera no sentido de tornar a política social, no caso a assistência social, funcional às novas demandas impostas pelo desenvolvimento capitalista e suas novas requisições; a face conservadora dos processos de modernização se dão no sentido de manter intocada a desigualdade social e apropriação social da riqueza, mas dispondo de mecanismos para reprodução da força de trabalho, sobretudo àquela fração que compõe a superpopulação relativa do capitalismo contemporâneo; no caso de uma realidade dependente e periférica, modernizar conservadoramente a política de assistência social significa torná-la palatável às novas determinações do capitalismo central, adotando a novilíngua dos organismos multilaterais, e suas estratégias de gestão da pobreza; condensa-se um processo de transformação da política para um contexto institucional mais sofisticado e antenado com as mais novas abordagens dos intelectuais orgânicos da burguesia, mas conservando sua função essencial de controle do trabalho e reprodução das relações sociais capitalistas. Assim, por modernização conservadora da política de assistência social designamos essa intensiva investida de reformulação teórico-prática dos marcos regulatórios da política, sob uma forma peculiar que recoloca vieses conservadores sob nova roupagem. Isto porque, os fundamentos teóricos que embasam esse processo e a direção política para qual eles convergem procedem a naturalização da questão social, limitando a intervenção da assistência social à reprodução imediata da superpopulação relativa, incidindo sob as expressões mais drásticas da pobreza, visando sua gestão.

122 Esta possibilidade metodológica é baseada na abordagem de Coutinho (2010), ao empregar o conceito de contrarreforma de Gramsci para outras realidades históricas e para explicar o movimento do Estado em face das exigências dos ajustes estruturais sobre as políticas sociais, no âmbito da ofensiva neoliberal. 215

Trata-se, portanto, do processo de regulamentação e sofisticação da gestão da política de assistência social e suas estratégias de trabalho que procedem a uma alteração no arsenal teórico-conceitual que fundamenta a referida política social, dotando-a de um cariz modernizado e “atual”, mas que na verdade repõe a lógica conservadora da política. Processa- se um empreendimento intensivo para dotar a política do mais moderno aparato de gestão, com sistemas de avaliação informatizados, mecanismos de gestão financeira e administrativa condizentes com a forma gerencial, considerada mais eficaz e eficiente, além de um aporte técnico-instrumental abalizado pelas influências internacionais consideradas de ponta. Deste modo, se ratificam: mecanismos de controle e vigilância social sobre os pobres que são público alvo de tais programas; padronização de comportamentos relativos aos benefícios sociais, como as condicionalidades e o comportamento proativo em função da busca de trabalho e\ou qualificação profissional; vexatória comprovação da pobreza; cadastramento e atualização de dados cadastrais, de modo a alimentar o imenso arsenal tecnológico-informacional que compõe a rede de dados oficiais para os programas públicos; subordinação à critérios técnicos definidos ao sabor da conjuntura político-econômica, que em última instância determina os valores dos benefícios, possibilidade ou não de ajustes e inclusão de outros membros familiares; o aprofundamento da estratificação da classe trabalhadora pobre, ao estabelecer estratégias de subfocalização, definindo não-pobres, pobres, extremamente pobres, miseráveis; Com esta definição, podemos afirmar que nossa hipótese secundária de pesquisa é de que tem se processado, no âmbito da política de assistência social, um amplo processo de regulamentação que é marcado pela modernização técnica e teórico-jurídica do aparato institucional e do sistema de informações, assim como os mecanismos de gestão com a correlata ampliação dos equipamentos sociais. Destarte, tal processo, a contrapelo dos alardes de inovação conceitual e teórica, demarca um processo político e socioeconômico conservador, ou mais especificamente, que tem uma funcionalidade no campo da conservação da ordem estabelecida. Por isso, nossa intenção não é fazer um levante do conservadorismo na história da assistência social, mas explicitar sua incidência nos processos recentes de expansão e centralidade dessa política, sobretudo, nos governos petistas. Essa expansão e suposta modernização, na primeira década dos anos 2000 é marcada pela centralidade dos programas compensatórios de transferência de renda, que já vinha sendo gestada desde os anos 1990 no âmbito das reformas estruturais desembocadas sob o manto do neoliberalismo. O aprofundamento da estratégia de focalização nos segmentos mais miseráveis dos trabalhadores propiciou um avanço intensivo e extensivo dos programas de 216

transferência de renda, descaracterizando as proposições originais da política de assistência social. Uma das injunções dessa opção de política social é a prevalência do corte seletivo e focalista, que consolida um modo particular de lidar com a pobreza, que se reduz a gerir as suas expressões mais drásticas. Assim, aludimos que este é dos ranços conservadores que atravessam, historicamente, a política de assistência social brasileira e é reposta sob um viés modernizador na atualidade, que é o paralelismo com o alívio à pobreza. Para dar base a esta hipótese, faremos uma incursão sobre o movimento de constituição da política de assistência social no Brasil e o paralelismo com as ações e programas de alívio à pobreza. Portanto, o objetivo geral deste capítulo é explicitar o paralelismo orgânico das ações de assistência social com as de enfrentamento à pobreza, delimitando ainda os aspectos teórico-conceituais do que estamos denominando de modernização conservadora da política de assistência social.

3.1 Breves notas sobre a constituição da assistência social no Brasil

A longa trajetória da assistência social no Brasil, desde as incipientes ações desenvolvidas pela solidariedade religiosa até sua consolidação como direito social e dever do Estado, é marcada por traços fundamentais e algumas particularidades intrinsecamente relacionadas à nossa formação socioeconômica. O mecanismo assistencial foi um dos elementos mais marcantes dessa trajetória e tornou-se transversal à praticamente toda ação de assistência social no país. A sistematização mais substancial deste campo se efetiva123 somente quando há entrada efetiva dos trabalhadores no campo da luta social e política, ao tempo em que o nível de organização e mobilização da classe trabalhadora consegue impor alguma pressão sobre as classes dominantes, refletindo no cenário dos conflitos de classe, demandando o atendimento de suas necessidades mais elementares.

123 Não afirmamos com isso que inexistiam ações de Assistência Social no país antes do processo de industrialização, urbanização e formação da classe operária. Ações nesta área existiam deste os tempos mais remotos da colonização, mas se realizavam estritamente no campo da ação religiosa caritativa. 217

Isto é, quando o Estado e algumas frações da classe dominante começam a organizar mecanismos de intervenção nas expressões da questão social.124 No campo da assistência social, as formas históricas de dar respostas às mais diversas expressões da questão social acomodaram práticas amorfas e alienantes de se “repassar” direitos sob o prisma de favores no campo assistencial (SPOSATI, et al., 2008). A assistência social foi sendo construída sobre o caráter emergencial, fundada em programas fragmentados e dispersos no chamado campo assistencial, assentados em práticas políticas autoritaristas e mandonistas que demarcaram importantes limites para seu reconhecimento posterior, como política pública. Ponderando sobre a construção histórica da assistência social, Mestriner (2008) traça interessante correlação entre a filantropia e a aludida política. Conforme demonstrado pela autora, essa nebulosa relação foi marcada por irregularidades que são evidenciadas no caráter instável e descontínuo da sua efetivação como ação pública-estatal. Isto porque a esfera filantrópica, sobretudo de caris confessional, se manteve durante muito tempo como campo quase que exclusivo da efetivação de ações e serviços assistenciais, enquanto o Estado se omitia no sentido de se responsabilizar diretamente pela área. Isso se evidencia em função da ainda incipiente estruturação de um aparato estatal de intervenção nas expressões da questão social. Antes de 1930, a questão social era tratada quase que exclusivamente como caso de polícia, e a própria constituição da classe trabalhadora como sujeito político demandador da intervenção social do Estado ainda se consolidava no contexto da fraca proletarização dos trabalhadores urbanos brasileiros. As ações assistenciais estavam praticamente circunscritas à atividade filantrópica, com parcas e difusas ações impetradas pelo Estado até a década de 1930. Tal contexto começa a sofrer alterações mais significativas em função das mudanças sociais, políticas e econômicas que se efetivam ao longo da década de 1930 e com a consolidação do Estado Novo e a nova

124 Como dito antes, o Serviço Social conta com uma vasta produção acerca da questão social. Especialmente, a Revista Temporalis Nº 3 traz um conjunto de textos indispensáveis para a compreensão deste debate. Para Iamamoto (2001), “a questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto a apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emergência do ‘trabalhador livre’, que depende da venda de sua força de trabalho como meio de satisfação de suas necessidades vitais. A questão social expressa, portanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal. [...] Esse processo é denso de conformismos e rebeldias, forjados ante as desigualdades sociais, expressando a consciência e a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais e políticos de todos os indivíduos sociais” (IAMAMOTO, 2001, p. 17). 218

conformação sociopolítica do Estado Varguista.125 Marco crucial no desenvolvimento capitalista, a coalização que leva Vargas ao poder procura responder às necessidades do país quanto à consolidação do capitalismo brasileiro. Neste particular, as contradições do processo se tornam cada vez mais explosivas em face da aceleração da industrialização e da consequente expansão do proletariado e da urbanização. Neste ínterim, a estratégia Varguista para intervenção sobre a questão social vai no sentido da criação de uma ampla legislação social que visa atender as necessidades de regulação das relações sociais capitalistas, contribuir com o processo de formação e reprodução da força de trabalho. Deste modo, a ação estatal passa atender determinadas requisições do próprio movimento operário e age fundamentalmente na consolidação das condições necessárias quanto a formação de uma força de trabalho apta às necessidades da indústria nascente. Tal legislação e estrutura social são pautadas na direção corporativista, em que o Estado passa a atuar diretamente sob as organizações representativas dos trabalhadores, de modo a desestruturar as possibilidades de sua organização autônoma, atuando inclusive sob uma ótica paternalista. De imediato, as propostas, leis, ações do Estado Varguista para intervenção na questão social se vinculam quase que estritamente às questões relacionadas ao trabalho formal. No campo da assistência social, o Estado assume definitivamente seu caráter meramente regulador, limitando-se a subvencionar as Instituições da sociedade civil, em sua maioria ligadas à Igreja Católica, através do Conselho Nacional de Serviço Social – (CNSS), Criado em 1938, o CNSS tinha por objetivo tornar-se uma modalidade de serviço público como organismos de direção, execução e cooperação em todos os níveis de governo para atuar junto ao Ministério da Educação e Saúde, devendo atuar como “órgão consultivo do governo e das entidades privadas, e de estudar os problemas do serviço social” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2010, p. 250). Tais objetivos não chegaram a ter efetividade prática, e o CNSS nem sequer chegou a ser um órgão atuante. Pelo contrário, caracterizou-se mais pela manipulação de verbas e subvenções, como mecanismo de clientelismo político. Sua importância se revela apenas como marco da preocupação do Estado em relação à centralização e organização das obras assistenciais públicas e privadas (IDEM, p. 250).

As assertivas dos autores citados corroboram nossa indicação quanto ao caráter nebuloso da relação público-privado, isto é, Estado-filantropia, no campo assistencial, bem

125 No capítulo anterior tratamos do contexto político-econômico da instituição do Estado Novo. 219

como da atuação meramente reguladora/organizadora do CNSS, visando tão somente centralizar as ações e subvencioná-las, ao invés de atuar diretamente, instituindo um campo público-estatal próprio na área da assistência social. A atuação do Conselho esteve marcada por uma variedade de ações burocráticas, limitando-se à função cartorial, sem uma definição precisa de atribuições e tampouco assumia poder deliberativo. Em 1942, em função da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e da necessidade pujante de intervenção juntos aos familiares de soldados enviados para a Guerra, o Estado brasileiro, sob batuta de Vargas, cria a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Sendo presidida pela primeira-dama do país, à época, Darcy Vargas, a sua criação representou, em última instância, o entrelaçamento duradouro do primeiro-damismo126 ao atendimento às necessidades relativas à Assistência Social (TORRES, 2002). O fim da Segunda Guerra Mundial demarca um período de intensa reorganização da divisão internacional do trabalho, sob hegemonia dos Estados Unidos no chamado bloco capitalista, no contexto da chamada “Guerra Fria”, em contraposição ao “bloco socialista”., sob liderança da União Soviética. No Brasil, a ditadura varguista era desmantelada e o desenvolvimento capitalista caminhava num processo ininterrupto de modernização. Neste contexto, processava-se uma redefinição das relações entre as classes sociais, com a complexificação da aparelhagem do Estado, com a ampliação da relação entre capital nacional e capital estrangeiro em função de um projeto de modernização do capitalismo brasileiro “conseguindo aglutinar, ainda, frações oligárquicas, camadas médias e assalariados urbanos, por meio da institucionalização de uma democracia restringida, plasmada na Constituição de 1946” (FALLEIROS, PRONKO e OLIVEIRA, 2010, p. 56). Neste contexto, a LBA desenvolve uma reformulação em seus Estatutos “definindo como principal finalidade a defesa da maternidade e da infância” (FLEURY, 2006, p. 63), no mesmo ano de 1946. A LBA não apenas foi mantida em funcionamento, mesmo com o fim da Segunda Guerra Mundial, como passa a ser a principal instituição de assistência social do

126 Trata-se de um traço histórico que compõe a construção da política de assistência social em função da sua ligação institucional com as figuras das primeiras-damas, nas diversas esferas de governo, sobretudo, como responsáveis pelas secretarias, setores, instituições de comando da assistência social. Autores como Torres (2002), empregam este termo para explicitar este traço da constituição da assistência social no Brasil, que teve seu marco inicial quando o Presidente Vargas “[...] institui a sua esposa na Presidência da LBA com o objetivo de buscar a legitimidade do seu governo mediante a tática do assistencialismo como mecanismo de dominação política.” (TORRES, 2002, p. 86). Atualmente, ainda que no âmbito de uma profunda reordenação regulatória, esse fenômeno ainda se manifesta fortemente na política de assistência social. Yazbek (et al, 2010) apontam que atualmente se manifesta uma espécie de “primeiro-damismo reciclado”, que se caracteriza pela presença da primeira-dama na condução da política, em nível municipal e estadual, mas agora, “acompanhada de um discurso legitimador dessa presença, em função de um movimento das esposas de governantes em busca de formação acadêmica para assumir o lugar de coordenação da assistência social e se capacitarem para a gestão pública da área” (YASBEK et al, 2010, p. 144). 220

país, pois, [...] “da assistência ‘às famílias dos convocados’, progressiva e rapidamente a LBA começa a atuar em praticamente todas as áreas de assistência social” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2005, p. 251). A continuidade dos trabalhos da LBA e sua importante redefinição institucional se inserem num cenário em que o próprio Estado reconfigura sua atuação perante as demandas de intervenção das camadas trabalhadoras, cada vez mais empenhadas em pressionar o Estado e a classe patronal por melhores condições de vida e trabalho. Apesar do significado político- econômico do Estado Novo e sua política de conciliação de classes, via legislação trabalhista de cunho corporativista e seu poder de desmantelamento da organização autônoma da classe trabalhadora, a ditadura varguista é desestruturada, expressando, inclusive, uma rotação na dinâmica das classes sociais em função das demandas de ampliação da industrialização, que implicavam novos mecanismos de reprodução e formação da força de trabalho. Esse movimento é marcado pelo acirramento das expressões da questão social face à direção do desenvolvimento capitalista, em seu padrão de reprodução dependente e periférico, que ao complexificar o próprio processo de expansão do capital no país, tornava mais evidentes as contradições e os conflitos das classes fundamentais em função de seus interesses específicos. Colocava a pauperização como uma realidade demandatária de intervenções. Estas seriam efetivadas com vistas ao apaziguamento das tensões sociais, cujas manifestações explícitas careciam de ações minimizadoras dos conflitos daí decorrentes. A atuação da LBA incide nesse movimento de atender algumas das demandas da classe trabalhadora. A formação de um amplo complexo assistencial com a articulação entre o Estado e o Patronato pode ser vislumbrada em algumas instituições de grande envergadura no cenário nacional, como o “Sistema S”, criado no fim da era Vargas e que se consolida e expande no período subsequente: o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), criado em 1942; Serviço Social da Indústria (SESI), oficializado em 1946, o Serviço Social do Comércio (SESC), também de 1946, além da Fundação Leão XIII que surge no mesmo ano. Dessa forma, a articulação entre SESI/SESC e SENAI/SENAC correspondeu a um esforço de racionalização do ambiente industrial e dos serviços dentro e fora do espaço de trabalho, estimulando a produtividade e o consumo e garantindo, ao mesmo tempo, a paz social. Nesse quadro, SENAI e SESI, assim como o SENAC e SESC, seriam instituições complementares de gestão empresarial que vinham dar resposta a preocupações pragmáticas de formação profissional, mas também a questões “hegemonizantes/pedagógicas”, dando embasamento ao projeto de “(con)formação da classe trabalhadora” sob a direção do projeto político do “moderno príncipe industrial” (FALLEIROS, PRONKO e OLIVEIRA, 2010, p. 59).

Na sequência do período histórico, a década de 1950 marca a consolidação do projeto desenvolvimentista, com uma intensa empreitada do Estado para assegurar as condições de 221

modernização do parque industrial brasileiro, cuja expressão mais significativa foi o Plano de Metas de JK.127 É no transcorrer da década de 1950 para a década de 1960 que serão propaladas as práticas de Desenvolvimento de Comunidade,128 como estratégia de intervenção do governo junto à população, visando atendimento de algumas necessidades básicas sob formas de cooperação com as próprias comunidades. No âmbito de ciclo desenvolvimentista que marcara os governos de JK e marca também a candidatura de Jânio Quadros, bem como o governo de João Goulart, assume uma conotação contraditória e mais complexa nos primeiros anos de 1960. Na medida em que tem um caráter eminentemente ideológico e estabelece uma relação de legitimidade entre a figura pessoa do Presidente e as massas populares, contraditoriamente essa mesma ideologia acaba por convergir com a movimentação crescente das camadas populares à época, assumindo assim grande expressividade junto aos trabalhadores urbanos, alguns segmentos da classe média e até mesmo intelectuais e artistas. Neste contexto, as contradições do processo de modernização capitalista assumem contornos cada vez mais disruptivos, deixando explícitos os flancos abertos pelo padrão de reprodução do capital assumido no país. Abre-se um período sem precedência no Brasil, no que diz respeito à movimentação e lutas sociopolíticas. A intensificação do movimento sindicalista autônomo se direciona para radicalização das lutas do proletariado, assumindo cada vez mais um caráter de massa. O movimento estudantil ganha uma grande envergadura, com ações e movimentação forte e combativa, com grande aprovação pública. Nesse cenário acentuam-se as lutas por reformas estruturais, ou as chamadas “reformas de base”. Além desse contexto efervescente no âmbito urbano, o campo também despontava com importantes movimentos pelos direitos dos trabalhadores do campo, sobretudo, através da bandeira da reforma agrária, como o movimento das Ligas Camponesas.

127 Tratamos detalhadamente do Plano de Metas no capítulo anterior.

128 O chamado “Desenvolvimento de Comunidade” foi amplamente difundido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como estratégia de combate ao “subdesenvolvimento” e na América Latina como condição fundamental de combate as influências subversivas – leia-se ao comunismo. As ações e práticas sustentadas pelo Desenvolvimento de Comunidade foram introduzidas no Brasil na década de 1950, sob o objetivo de promover o desenvolvimento das comunidades através da participação da própria população local, com vistas a melhoria de vida das mesmas, de acordo com a narrativa oficial em torno da própria ideologia do desenvolvimento. Defendia-se uma espécie de esse processo de “atrelamento” dos interesses do povo aos do governo com vistas ao desenvolvimento, processos para os quais se processou ampla requisição de assistentes sociais. Cf: AMMAANN, Safira Bezerra. Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade no Brasil. 10. ed.São Paulo: Cortez, 2003. 222

No entanto, o processo que esteve em curso não caracterizou avanços consideráveis no campo da Assistência Social pública, em função do duro golpe civil-militar impetrado no Brasil em 1964. As lutas pelas reformas estruturais e a ampla mobilização social e política poderiam ter constituído um campo institucional progressista para a política de assistência social. Mas esta possibilidade fora abrotada pelo golpe civil-militar de 1964. A constituição de um quadro institucional para a política social, e, portanto, para a própria assistência social somente se realiza em período posterior, sob uma dupla direção: a repressão e o assistencialismo. O momento histórico compreendido entre os anos de 1964 a 1985 é sem dúvida um dos mais sombrios e nefastos vivenciados no país. Segundo Netto (2005), o golpe militar de 1964 marca a instauração da autocracia burguesa no poder, engendrando um projeto de modernização conservadora que visava atender os interesses das diferentes frações burguesas da sociedade brasileira, no que diz respeito às demandas da monopolização do capital e à redefinição da hegemonia burguesa em associação ao capital estrangeiro. Neste período “[...] a ‘questão social’ foi enfrentada pelo binômio repressão- assistência, ficando a assistência subordinada aos preceitos da Doutrina da Segurança Nacional, funcionando como mecanismo de legitimação política do regime” (SILVA e SILVA, 2007, p. 38). Isso acontece por meio de uma concertação institucional via instauração do Ministério da Previdência e Assistência Social, em 1974, incorporando a LBA, a Fundação Nacional para o Bem–Estar do Menor. Evidentemente, isso não se efetiva pela via da garantia de direitos democraticamente constituídos, mas via mecanismos centralizadores, com maior dinamicidade para os benefícios previdenciários. (BEHRING e BOSCHETTI, 2011). Neste mesmo período tem-se a aprovação da Renda Mensal Vitalícia para os idosos pobres, no valor irrisório de meio salário mínimo, o atual Benefício de Prestação Continuada (BPC), único benefício legalmente instituído no campo da assistência social. Torna-se claro que, a assistência social adquire caráter marginal em relação às demais políticas sociais que assumem larga expansão no período, ainda que o mecanismo assistencial fosse o corte marcante em todas as políticas sociais. Analisando o desencadear deste processo, compreendemos que até o final da década de 1980 “inexiste uma proposta ou uma política mais ampla da prestação de serviços que explicite competências e recursos dos três níveis de governo: federal, estadual e municipal” (SPOSATI et al., 2008). 223

Imersa num leque de características que lhe foi conferindo peculiaridade histórica, a assistência social é perpassada intrinsecamente pela lógica da focalização,129 do clientelismo,130 convergindo na direção de reprodução da subalternidade do seu público usuário. Segundo Yazbek (2007), tradicionalmente as ações públicas de Assistência Social foram marcadas por profundas distorções que lhe conferem perfil ambíguo e limitado: a) seu apoio na troca de favores, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando, que reproduz a cidadania invertida e as relações de dependência e está fincada em uma matriz conservadora; b) sua vinculação com o trabalho voluntário e filantrópico, que contribuiu para confusão entre intervenção técnica com a ação voluntária; c) sua organização burocratizada e inoperante, marcada pelo descaso governamental e pela falta de recursos. Boschetti (2003) sublinha algumas características que reforçam o quadro mencionado. Entre elas situa a subordinação aos interesses clientelistas dos governantes e parlamentares, que fazem das verbas e subvenções públicas patrimônio particular; através desse uso clientelista da Assistência Social, ela é frequentemente implementada em função dos interesses político-econômicos do governo de plantão; o trato dispensando à sua execução é assistemático e descontínuo (na área governamental ou não); reiterada confusão entre assistência e filantropia, que é reforçada pela opacidade entre as relações do público e do privado no Brasil.131 Somente com a Constituição Federal de 1988, é que a referida política receberá o status de política pública de seguridade social. Entretanto, até sua regulamentação específica com a aprovação de sua própria Lei Orgânica, um caminho tortuoso e cheio de obstáculos ainda teria que ser percorrido. O cerne dessas dificuldades certamente pode ser localizado no espectro de noções restritas do poder público governamental, instituído a partir dos primeiros

129 “A focalização passa a ser negativa quando, associada à seletividade, restringe e reduz as ações a poucos e pequenos grupos, desconsiderando o direito de todos” (BOSCHETTI,2003,p.43-44).

130 “Clientelismo é uma forma de espoliação do próprio direito do trabalhador, a partir da troca de ‘benefícios’ por formas de obrigações ‘políticas’, constituindo-se uma relação de dominação/subordinação, em que a noção de direitos sociais se esvai em função da cultura da ajuda e do favor” (ALVES, 2011, p. 46). Na assistência social isso fica muito evidente, sobretudo pelo caráter não contributivo dos direitos a ela inerentes. Isso coopera largamente para seu uso clientelista, na medida em que benefícios, serviços, ações são repassados/realizados como via de troca, impetrando no direito a lógica do favor e criando no usuário a “obrigação” da gratidão e do devido retorno por meio da via eleitoral.

131 Historicamente o espaço e o poder público no Brasil são objeto de uso patrimonialista das classes dominantes, tornando-se uma área extremamente permeável aos setores hegemônicos da sociedade. Não se trata apenas da condição histórica do Estado capitalista ser um Estado eminentemente voltado aos interesses burgueses, mas também da nossa formação sociopolítica pautada na transformação da “coisa pública” em área de conluios e acomodações de interesses, da conjugação de transações escusas que limitam imensamente o caráter republicano do Estado em função de sua lógica patrimonial, conforme atestam os estudos de Florestan Fernandes, indicados no capítulo anterior. 224

governos civis após a ditatura militar, sobre a Assistência Social, bem como da ofensiva neoliberal que viria depois da eufórica aprovação de uma Constituição Federal que sinalizava para instituição de um sistema de proteção social, senão portador das características clássicas dos Sistemas de Bem-Estar europeus, pelo menos inovadores e mais abrangentes do que até então existia no Brasil, em termos de direitos sociais. De acordo com Mestriner (2008), previdência social132 e saúde133 conseguem com uma determinada rapidez a aprovação de suas leis orgânicas, o que não se processa da mesma forma com a Assistência Social. No que diz respeito à assistência social, suas principais instituições (CNSS e LBA) passam por um processo brusco de desmoralização pública pelas fraudes financeiras e esquema ilícitos de beneficiamento de familiares dos governantes. O processo de elaboração e aprovação da Lei de Regulamentação da Assistência Social teve como marca importante a resistência tanto daqueles que representavam a saúde e a previdência, quanto dos próprios organismos de Assistência Social. A relutância dos primeiros se dava em relação aos recursos, visto que a regulamentação da assistência social poderia significar uma disputa interna por recursos, no âmbito do orçamento da seguridade social. Entre os últimos, sobretudo setores ligados a LBA, essa resistência se dava em função do medo destes segmentos de que a constituição de uma Lei Orgânica da assistência significasse a destruição da LBA e a consequente perda de posições e privilégios. A histórica vinculação entre esta política e a Previdência Social – nitidamente marcada pela subsunção da primeira em relação à segunda, teve como ponto de clivagem o trabalho, ou melhor a aptidão ou inaptidão para o trabalho (BOSCHETTI, 2006). A lógica securitária de uma e assistencialista da outra conformaram um sistema de proteção social irregular, excludente e concentrador, adverso da tradição da sociedade salarial (IDEM). De acordo Boschetti (2006), todo o trabalho, discussão e movimentação democrática das comissões e subcomissões foram desrespeitadas em boa parte, confluindo para a aprovação de um texto constitucional impreciso, híbrido e, que em última análise mantinha limitações conceituais e de alcance social. As leis de regulamentação das políticas de seguridade social134 seguiram cursos diferentes, e a Assistência Social foi a última ter a aprovada a sua lei de regulamentação, num

132 Lei 8.212/91, intitulada Lei Orgânica da Seguridade Social, mas que se refere apenas ao plano de custeio da Previdência Social e pela Lei 8.213/91 que estabelece o Plano de Benefícios da Previdência Social.

133 Lei 8.080/90. 225

longo e árduo processo iniciado no governo Sarney, passado pelo governo Collor e apenas no governo Itamar Franco é que se tem a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), tantos anos depois da promulgação da Constituição Federal. Neste ínterim, o IPEA foi designado para construção de propostas de regulamentação para a seguridade social. Na ocasião, o Instituto convidou o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Política Social da Universidade de Brasília (NEEPOS\CEAM\UnB) para dar apoio ao que dizia respeito ao campo da Assistência Social, fornecendo subsídios teóricos, princípios e sistematização de elementos fundamentais à composição de uma lei de regulamentação para Assistência Social no país. Os professores Potyara Pereira e Vicente Faleiros, assistentes sociais, estiveram entre os responsáveis pela elaboração do primeiro pré-projeto de Lei da Assistência Social, por volta dos anos 1991-1992. Conforme esclarece Boschetti (2002), este grupo começou as discussões para embasar o projeto com grande dificuldade, já que de início eles não tinham nenhum modelo de lei sobre assistência para se basearem. Além do mais, a situação deste campo era marcada por intensa pulverização financeira e institucional, assim como pela indefinição do governo quanto ao lugar da assistência social no Estado. Apesar de todas as dificuldades iniciais e dos limites que o pré-projeto apresentado por esse grupo continha, a autora destaca que ele tinha dois significados históricos incontestáveis: era o primeiro a apresentar medidas concretas para recompor e reorganizar a área e por outro lado, sua elaboração tornou-se uma oportunidade única e inédita de aprofundar e avançar as reflexões teóricas sobre a política social. Tal esforço resultou na elaboração de cinco princípios norteadores do pré-projeto construído. Primeiro princípio: superar as interpretações simplistas da assistência que a concebiam como uma atenção limitada aos pobres, situando-a como resultado da contradição entre a coexistência, no modo de produção capitalista, da

134 Embora sendo um conceito amplamente difundido no capitalismo avançado, o significado do termo seguridade social se mantém impreciso, tal como ressalta Vianna (2000). Segundo a autora, existem duas vias, grosso modo definidas, pelas quais os estudiosos a definem. Na primeira a expressão aponta para uma concepção de proteção social, “baseada no suposto de que a cidadania implica, além dos direitos civis e políticos, o elemento social que se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social” (p. 56). Na segunda concepção seguridade social é demarcada de modo mais pragmático, indicando “os programas estabelecidos em âmbito governamental que salvaguardam os indivíduos em situações de interrupção ou perda da capacidade de auferir rendimentos do trabalho” (p. 57). No que tange às particularidades da seguridade social brasileira, Fleury (2004) assinala que o sistema de proteção social brasileiro, até fins da década de 1980, combinava um modelo de seguro social na área da previdência social, englobando a atenção à saúde, com um modelo assistencial para as camadas sem vínculos de emprego formal, sistemas estes organizados e consolidados entre as décadas de 1930 e 1940 “como parte do processo mais geral de construção do Estado moderno” (p.110). Estes sistemas passaram por algumas inflexões durante o regime militar que culminaram na ampliação da cobertura, mas isso ocorreu dentro de um regime autoritário, centralizador que excluía a maior parte dos trabalhadores da gestão e controle das políticas sociais. Na acepção da autora, a Constituição Federal de 1988 representa uma profunda transformação nos padrões de proteção social até então existentes no país, em busca da “universalização da cidadania”. 226

lógica da rentabilidade econômica e da lógica de atendimento às necessidades sociais. Segundo princípio: a assistência é uma política resultante da relação Estado e sociedade, devendo ser compreendida em sua historicidade. Terceiro princípio: a assistência social, na medida em que é reconhecida como direito social, é um tipo de direito especial, coletivo, que se diferencia dos direitos civis, o que exige a participação direta e efetiva do Estado. Quarto princípio: a assistência não deve ser presidida pela lógica contratual que guia a previdência social. Quinto princípio: a organização e gestão devem ser direcionadas pela descentralização político-administrativa, com direção única de comando em cada esfera de governo e assegurando-se a participação direta da população na formulação e controle das ações. No entanto, a direção pretendida pelo grupo (IPEA\NEEPOS) não era a mesma defendida por outros grupos sociais que disputavam hegemonia para manter-se à frente da sistematização e aprovação da LOAS. Segundo Boschetti (2008), representantes da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério de Previdência e Assistência Social (MPAS), tinham a pretensão de limitar ao máximo a política de Assistência Social de modo que ela não absorvesse recursos que supostamente seriam para a Previdência Social. Por outro lado, outro grupo, composto pelos funcionários da LBA, pleiteavam a coordenação do processo de regulamentação, de modo a garantir seus postos de trabalho. Assim, esses dois grupos se opuseram frontalmente ao projeto apresentado pelo IPEA e NEEPOS, apresentando projetos alternativos. Assim, a autora ressalta que entre 1988 e 1993 inúmeros projetos de regulamentação da área foram apresentados sem conquistar hegemonia. Por fim, o próprio Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) realizou uma ampla mobilização junto à profissão, envolvendo grupos de pesquisa e movimentos sociais da área, que partindo do projeto original do grupo IPEA\NEEPOS, realizaram aprofundamentos e explicitaram melhor alguns pontos do pré-projeto. Este pré-projeto elaborado pelo grupo coordenado pela UNB não foi assumido pelo governo Sarney e tampouco enviado ao Parlamento. De acordo com Boschetti (2002), em função do silêncio do Poder Executivo, o Parlamento passaria à frente do processo dando sequência à regulamentação da assistência social. A Câmara dos Deputados realizou simpósios para discutir a regulamentação das três políticas de seguridade social. O Simpósio sobre a assistência social aconteceu entre 30 de maio e 02 de junho de 1989 (BOSCHETTI, 2002). O Simpósio transformou-se numa arena de defesas de posições contrastantes que gravitavam em torno do pré-projeto coordenado pelo grupo IPEA-UnB, do pré-projeto dos funcionários da LBA, representado institucionalmente pela Associação Nacional 227

(ANASSELBA); e por fim, o pré-projeto da Secretaria Nacional da Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social (IDEM). Mesmo após a realização do Simpósio e da variação de propostas apresentadas, o Poder Executivo não enviou ao Parlamento nenhum projeto, passando o Parlamento a assumir essa prerrogativa. No âmbito Legislativo concorreram propostas que de certo modo representavam os diversos interesses e concepções abalizadas naquele Simpósio, conforme os grupos de pressão presentes na área de lutas em torno do rumo da assistência social no Brasil. Nesta direção, o deputado Raimundo Bezerra apresentou um Projeto de Lei que era praticamente aquele elaborado pelo grupo UnB-IPEA, exceto no que dizia respeito aos aspectos da organização e gestão da política, já que previa a existência de um ministério próprio para a assistência social, desvinculado da saúde e da previdência social, conforme atesta Boschetti (2002). Na verdade, previa a vinculação da assistência social à Presidência da República, submetendo-a às decisões pessoais do próprio presidente e/ou da sua esposa. “Na prática, deixava aberta a possibilidade para que a assistência social continuasse a ser assunto da primeira-dama” (BOSCHETTI, 2002, p.37). Submetido aos debates no legislativo, o Projeto de Lei sofreu muitas mudanças em relação ao projeto original que revelavam duas tendências: hesitação, e até resistência, do legislador pelas mudanças radicais entre público- privado135 e entre o poder central e os poderes locais; e uma confusão, e mesmo desconhecimento da concepção de assistência social como direito social e como política pública de seguridade social (IDEM, p. 38).

Depois de sofrer alterações substanciais, que abortaram o potencial original de promover uma recomposição concreta e ampla da assistência social no país, no sentido de torná-la uma política pública de largo alcance e promotora da mudança de direção social até então vigente no campo da assistência social, o Projeto de Lei teve inúmeras propostas de emenda que visavam “reduzir o impacto dos gastos da assistência sobre a previdência social e adaptar as instituições previstas no PL à reorganização institucional já efetivada” (BOSCHETTI, 2002, p. 46). Mesmo com todas as mudanças este pré-projeto foi vetado136 integralmente pelo Presidente Collor, em setembro de 1990. Somente em abril de 1991 o Projeto de Lei para

135 O Deputado Nelson Seixas foi designado para relator do Projeto de Lei. Não por acaso, o parlamentar era “reconhecido como representante da Federação das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs), [e] teve um papel fundamental neste processo e foi um dos grandes articuladores das propostas que permitiram alterações profundas no PL original, a ponto de desfigurá-lo” (BOSCHETTI, 2002, p. 38). 136 Esse veto presidencial tem, evidentemente um significado político e social que vai muito além da narrativa governamental que tentava justificá-lo em função de questões técnicas e financeiras. Evidentemente, a questão 228

assistência social volta as pautas do debate parlamentar, sob iniciativa dos deputados Geraldo Alckmin Filho e Reditário Cassol. A matéria passa a ser objeto de discussão na Casa Legislativa, donde se desdobra a realização do I Seminário Nacional de Assistência Social em junho de 1991. Deste evento, resulta o documento “Ponto de Vista que defendemos”, que viria a subsidiar o novo Projeto de Lei. O Ministério do Bem-Estar Social também promoveu eventos para discutir a temática, que culminou na Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em junho de 1993, em Brasília (ARANTES, 2017). Desconsiderando todo processo de discussão e construção social do Projeto de Lei, o executivo apresenta um novo projeto, contrário ao que estava negociado. Mas a pressão de entidades da área, profissionais137 e especialistas deste campo de proteção social apresentaram um documento que ficou conhecido como “Conferência Zero da Assistência Social”. “Encaminhado ao Congresso Nacional pela deputada Fátima Pelaes, com o n° 4100/93, em 7 de dezembro de 1993, foi sancionada a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS pelo presidente Itamar Franco) (IDEM, p. 32). A LOAS é aprovada, assim, depois de um veto presidencial – o do presidente Collor –, de indefinições ministeriais, da pressão da sociedade civil envolvida na elaboração e ainda das conciliações partidárias. Finalmente em 1993 tem-se a aprovação da LOAS, como dispositivo jurídico-legal de regulamentação da assistência social, regulamentando-a como direito constitucional e política pública. A proposta, aprovada em outubro de 1993, foi apresentada pela relatora do projeto de Lei, deputada federal Fátima Palaes, designada pela Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados. De acordo com Boschetti (2008), este Projeto obteve êxito por que conseguia conciliar interesses dos governos, sugestões dos parlamentares e,

financeira estava no cerne da questão, mas não pela incapacidade do Estado em arcar com o que estava previsto no Projeto de Lei vetado, mas sim pela própria direção que o Estado assumia em consonâncias com o ajuste estrutural que começava a se esboçar no país, e exigia o enxugamento dos gastos públicos, principalmente, no campo das políticas sociais. No caso do que estava inscrito no Projeto de Lei, os auxílios referentes aos benefícios previstos para as famílias e mesmo o Benefício de Prestação Continuada (BPC), iriam angariar um amplo investimento de recursos públicos para tal garantia. No mais, a verdade é que o projeto de lei assegurava a consolidação de um comando único para a assistência social, que tinha como condição primeira a extinção da LBA. Como já se apontou, essa instituição resguardava, estatutariamente, a sua presidência de honra à primeira- dama da nação. No governo Collor sua esposa, Roseane Collor, não apenas assume a presidência de honra, como também a administrativa. Os diversos escândalos de desvio de dinheiro público, de corrupção, além do claro retrocesso de intervenção da LBA, mostrariam, posteriormente, os interesses políticos pessoais que estavam em questão.

137 O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), naquela época ainda denominado de Conselho Federal de Assistentes Social (CFAS) e os Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESs), que naquele período recebia a designação de Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS), tiveram marcante atuação neste processo. 229

sobretudo, por que evitava assimilar quaisquer propostas que significassem aumento de despesas públicas. A LOAS, Lei n° 8742 de 07 de dezembro de 1993, regulamenta o artigo 203 instituído constitucionalmente. De acordo com o art. 1° da referida Lei,

A assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que prevê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. (LOAS, 1993)

O projeto original da LOAS sofreu muitas alterações, que conforme atesta Boschetti (2008) se deram no sentido de restrição de direitos e da própria concepção de assistência social que fundamentava o primeiro projeto apresentado e vetado pelo Presidente Collor. Além de não prever a extinção imediata da LBA, o projeto aprovado não incluía as emendas que determinavam a renda per capta mensal de dois salários mínimos para acesso aos benefícios, além de não dar início à prestação continuada a crianças. Ademais, não se estabelecia a reserva de um percentual de 10% do orçamento da seguridade social para a assistência social. É o que se pode ser notado no texto da LOAS, em cuja elaboração concorreram e digladiaram-se interesses opostos que, em alguns momentos, exigiram negociações estratégicas e, em outros, fincaram resistências que foram vencidas por quem tinha recursos de poder. [...] Na verdade, a LOAS é um documento juspolítico – jurídico e político – que expressa no seu conteúdo, aparentemente neutro, toda a gama de dissensões que caracterizam toda a história da assistência social desde as “leis dos pobres”, entre os séculos XVI e XIX, até os nossos dias, passando pelas políticas de welfare state, do Pós-Segunda Guerra Mundial, [...] resistências em transformar a proteção ao pobre em direito de cidadania (PEREIRA, 1998, p. 70).

Dessas breves ilações podemos depreender o movimento complexo e a incidência de interesses contraditórios no processo de regulamentação da assistência social no Brasil, o que apenas ratifica a compreensão que embasa esse trabalho acerca da política social nos marcos do capitalismo. A particularidade dessa contradição no campo da assistência social diz respeito ao fato dessa política social ter sua ação muito mais ligada à esfera da benesse, do favor, do clientelismo e da caridade do que ao campo dos direitos sociais. Evidentemente isso redunda de sua própria construção histórica intimamente ligada aos preceitos de solidariedade religiosa ou paternalismo público, bem como sua restrita articulação e organização no âmbito do Estado propriamente dito. Além do mais, por ser majoritariamente relacionada às necessidades das camadas mais empobrecidas dos trabalhadores, sua definição e consolidação como direito social legitimamente reconhecido pela sociedade esteve sempre sob a violenta expropriação capitalista, cujo primado ético do 230

trabalho leva a banir e satanizar direitos sociais, sob o argumento de cooperarem para uma cultura de acomodação e preguiça. De todo modo, por estar imersa no campo da luta social e suscetível às pressões políticas advindas de classes sociais antagônicas, a assistência social, apesar dos limites impostos ao texto da LOAS, teve sua regulamentação garantida. Entretanto, se o caminho percorrido para essa regulamentação se deu lenta e timidamente, sendo marcada por algumas restrições em elementos fundamentais para garantir uma assistência social menos conservadora, muitos outros percalços se colocaram entre a sua garantia legal e sua consolidação prática. Em termos normativos a LOAS apresentava alguns avanços importantes em uma área marcada pela falta de regulamentação pública. Na acepção de Pereira (1996) regulamentada por uma Lei Federal, a assistência social passa a ter outro paradigma, que a fundamenta como política pública, que em articulação com outras políticas sociais, deve concretizar direitos historicamente negados a determinados segmentos da população; política de natureza incondicional, ou seja, gratuita e desmercadorizável; política cuja realização é de primaz responsabilidade do Estado, garantido o controle democrático da sociedade. Assim, a assistência social é reconhecida e regulamentada como política pública não contributiva, tendo como objetivos: proteger a família, a maternidade, a infância, a adolescência, a velhice e a pessoa com deficiência; amparar as crianças e adolescentes carentes; promover a integração ao mercado de trabalho; habilitar e reabilitar pessoas com deficiência e promover sua integração à vida comunitária; garantir um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por usa família (o Benefício de Prestação Continuada - BPC). Os princípios da LOAS condensam esse novo paradigma ao primar pela supremacia das necessidades sociais sobre a insuficiência de renda; pela universalização e igualdade dos direitos sociais; e pela ampla divulgação de benefícios, serviços, programas, projetos e ações de assistência social. As diretrizes, por sua vez, definem novas bases de organização dos serviços socioassistenciais, assegurando: a descentralização político-administrativa; a participação popular na formulação da política e no controle social e a primazia do Estado na condução da política em cada uma das esferas de governo. Em suma, a LOAS, instituída na última década do século XX, além de introduzir a assistência social no campo dos direitos sociais, delimitou claramente a necessidade de 231

estruturação de um sistema descentralizado e participativo, para garantir organicidade, publicidade, articulação, sistematização, participação da população, continuidade e integralidade das ações, viabilização de benefícios específicos da assistência social, além de determinar a atuação concreta do Estado na efetivação da política de assistência social. Ademais, se requeria um aparato institucional capaz de solidificar as condições necessárias para o atendimento do público-alvo, com financiamento garantido no orçamento da seguridade social. Todas essas características apontavam para a possibilidade de um novo modelo de gestão para a política em questão, que fosse capaz de garantir as necessidades básicas da população demandatária da assistência social. Abriu-se o caminho para fincar, no âmbito do aparelho estatal, um sistema capaz de superar o histórico descaso do poder público da República com ações da área e dirimir a fragmentação, dispersão e sobreposição de ações no campo assistencial. Apesar dos limites do projeto da LOAS homologado, em relação às outras propostas apresentadas, a lei se apresentava como um ponto nodal para implementar uma política de assistência social que de fato fosse pública e atendesse as demandas da população, ao determinar as modalidades de benefícios, programas, projetos e as proteções a serem afiançadas pela política. É importante frisar dois aspectos, nesse momento. O primeiro diz respeito ao fato da LOAS contribuir para superar a concepção vigente na sociedade brasileira de que assistência social é uma política de combate à pobreza. E o segundo, que vai complementar essa primeira ideia, é a dimensão da universalidade presumida pela LOAS no que tange a integralidade da assistência social no Brasil em articulação as demais políticas de seguridade social. Em relação ao primeiro aspecto é preciso situar essa questão no próprio campo da construção sócio-histórica da assistência social no país, que contribuiu sobremaneira para edificar no senso comum e nos postulados de determinadas vertentes políticas e técnicas a ideia (conservadora) de que as ações de assistência social estariam exclusivamente ligadas às situações de pobreza e\ou às populações paupérrimas. A própria envergadura que as ações na área assumiram, ao longo do tempo, convergiram para essa incidência limitada. Não é nem um pouco insignificante o quanto essa acepção contribuiu para amalgamar uma visão preconceituosa e até mesmo a precariedade e incipiência das ações na área, visto a importância pífia que os trabalhadores pobres sempre tiveram para as classes dominantes, no que diz respeito aos serviços que lhes são oferecidos. O que não poderia ser diferente, já que resultam das lutas de classe, em que para os detentores do capital importa apenas a 232

reprodução do trabalhador enquanto força de trabalho apta à valorização do capital no campo produtivo. A questão é que a LOAS sugere uma inflexão quanto a esse aspecto na medida em que fornece elementos jurispolíticos não unicamente para atenuar e/ou aliviar a pobreza. Para além dos pontos nodais que definem as situações de pobreza como alvo de intervenção no campo da assistência social, a LOAS apresenta outros ângulos que permitem situá-la em um campo de intervenção mais amplo. Não estamos olvidando características importantes como os critérios de elegibilidade, seletividade e requisições de comprovação de pobreza que marcam benefícios assegurados na LOAS e muitos dos programas de assistência social. No entanto, no plano das deliberações inscritas no seu texto essa “área social é prioritariamente concebida como política de garantia de direitos reclamáveis, não consistindo absolutamente, por esta razão, em simples política de combate à pobreza” (PORTO, 2005, p. 200), como vem sendo encaminhada, com a centralidade dos programas focalizados e seletivos para “alívio da pobreza”. Em direção análoga, Mauriel (2010) explica que só é possível pensar a assistência social em sinergia com as políticas que conformam a Seguridade Social e por isso não pode se restringir ao combate à pobreza. Na verdade, ela precisa compor uma rede de proteção que contribua para evitar a pobreza extrema, além de procurar corrigir injustiças, para a melhoria das condições de vida e de cidadania da população. Nesta perspectiva a autora cita os próprios preceitos estabelecidos no texto da LOAS: provimento público de benefícios e serviços básicos como direito de todos; inclusão no circuito de bens, serviços e direitos de segmentos sociais situados à margem desses frutos do progresso; e manutenção da inclusão supracitada e estímulo ao acesso a patamares mais elevados de vida e de cidadania, mediante o desenvolvimento de ações integradas no âmbito das políticas públicas (LOAS, 1993). Viana (2007) defende que é preciso qualificar a assistência social como política que concretiza direitos de cidadania, assentada no conceito de democracia igualitária e acrescenta: “entende-se também que o conceito de liberdade positiva com igualdade é privilegiado no âmbito da assistência social ao se postular uma cidadania ampliada (direitos civis, políticos e sociais) com a participação decisiva do Estado” (VIANA, 2007, p. 327). O outro aspecto corrobora para a perspectiva mais ampla da assistência social brasileira com o princípio da universalização. Boschetti (2001), esclarece, quanto a este aspecto que, pautada neste princípio, a assistência social precisa “agir no sentido de buscar a inclusão de cidadão no universo de bens, serviços e direitos que são patrimônio de todos, viabilizando-se mediante a vinculação orgânica da assistência social com as demais políticas 233

econômicas e sociais” (BOSCHETTI, 2001, p. 83). Nesta perspectiva, a universalidade assume dois sentidos: O primeiro, o de garantir o acesso aos direitos assistenciais a todo o universo demarcado pela LOAS, ou seja, a todos aqueles que estão dentro das categorias, critérios e condições estabelecidos por ela; e o segundo é o de articular a assistência às demais políticas sociais e econômicas, tendo como perspectiva a construção de um sistema de proteção social contínuo, sistemáticos, planejado, com recursos garantidos no orçamento público das três esferas governamentais, com ações complementares entre si, evitando assim o paralelismo, a fragmentação e a dispersão de recursos (IDEM, p. 84).

Como destacávamos, esse princípio da universalidade, presumido pela LOAS, condensa a perspectiva de integralidade da assistência social em articulação com as demais políticas de seguridade social, abre possibilidades amplas de seu alcance que supera a simples especificidade de “enfrentamento à pobreza”. Isto é, “enquanto política setorial, ela não tem (e nem deve ter) a função de dar respostas cabais à pobreza. Seu horizonte de ser o da sua inserção efetiva num projeto de desenvolvimento econômico e social, tanto local como nacional” (BOSCHETTI, 2001, p. 84). Destacamos estes dois aspectos por que eles darão base para nossa exposição seguinte. Até aqui pincelamos traços marcantes do processo histórico de construção e regulamentação da política de assistência social no Brasil. Estamos dando ênfase a esses dois aspectos porque os caminhos que se seguiram após a regulamentação da assistência social impuseram sérias limitações no que tange às possibilidades progressistas que a LOAS trazia. Não estamos superdimensionando o potencial da assistência social, visto que como toda política social138 ela é limitada e funcional às necessidades de reprodução da relações sociais capitalistas. Ao longo da tese explicitaremos melhor essa concepção. Mas, importa agora deixar claro o avanço da LOAS, em relação à forma histórica da área, pois os processos que se desdobraram na sequência da aprovação da Lei em 1993 colocaram novos e complexos desafios para sua efetivação. A seguir procuraremos demonstrar o direcionamento que os governos brasileiros deram à política de assistência social pós-regulamentação, demonstrando que à despeito do que se esperava do poder público brasileiro, a LOAS foi negligenciada ao tempo em que a

138 A política social, analisada sob a perspectiva de totalidade comporta um feixe de contradições, uma vez que atende interesses divergentes de classes antagônicas. Se por um lado resulta das lutas e reivindicações da classe trabalhadora e atende necessidades elementares para sua sobrevivência material, por outro, é extremamente funcional ao capital, na medida em que assume importante parcela dos custos de reprodução da força de trabalho, além de se constituir em importante mecanismo de controle e disciplinamento dos trabalhadores. E ainda, “são instrumentos para contrarrestar a tendência ao subconsumo” (NETTO, 2011, p. 31), no terreno das ações anticíclicas de crises do capital. 234

construção de um sistema descentralizado e participativo para o campo da assistência social levaria muito tempo para se concretizar. Nossa intenção é demonstrar que se consolidou uma lógica paralela no âmbito do governo federal – que consequentemente se espraiava pelos demais entes federados – onde se propuseram programas fragmentados e dispersos de “combate à pobreza” em detrimento da política de assistência social preconizada na LOAS. Nossa hipótese é de que o paralelismo atravessa de modo orgânico as ações de assistência social na sociedade brasileira (LAVINAS, 2004). Embora não tenhamos demonstrado como isso se deu ao longo da história da constituição da assistência social detalhadamente, sinalizamos que o paralelismo de ações é uma característica intrínseca da área, no Brasil. Mas nossa intenção, de fato não era detalhar como se dava este movimento antes da LOAS, visto que de fato inexistia uma regulamentação específica que desse conta de garantir jurídica e politicamente a constituição de um sistema único de assistência social, que unificasse e condensasse um modo de gestão com vistas a unificar e padronizar a assistência social no país. É justamente pelo fato de que a LOAS responde a essa necessidade de respaldo regulamentário e institucional que nos deteremos em analisar como, apesar da LOAS o paralelismo das ações continuará determinando a intervenção do Estado na área. Mais que isso, nossa questão norteadora é de que essa lógica paralela aprofunda sua organicidade no seio da assistência social brasileira pós-LOAS e vai responder à necessidade do novo direcionamento da política social em função da ofensiva neoliberal: a centralidade de programas focalizados de combate à pobreza.

3. 2 A inobservância da LOAS e o paralelismo dos programas focalizados de “combate à pobreza”

A Constituição Federal de 1988, que inseriu a assistência social no campo da seguridade social no Brasil, foi homologada em um contexto de “euforia democrática”. As lutas sociopolíticas e culturais que culminaram na transição democrática nos anos 1980 traziam em seu bojo um intenso e profundo desejo, da ampla maioria da população brasileira, de se constituir uma sociedade democrática, com um Estado voltado para a garantia dos direitos sociais afiançados naquela Constituição. Ademais, se colocavam como anseio das alas 235

mais progressistas da sociedade o desejo e as demandas por reformas estruturais no país. É claro que o movimento de abertura democrática não se afirmou como um processo revolucionário, já que foi em larga medida aparelhada por determinadas frações da classe dominante, que garantiram uma “transição pelo alto”, sem transformações de monta na estrutura social brasileira. O maior impedimento histórico para garantir a efetivação dos dispositivos constitucionais, sobretudo, o que dizia respeito à aprovação e consolidação das leis orgânicas das políticas de seguridade social, situava-se na própria condição concreta do capitalismo mundial e da sua ofensiva restauracionista que incidia, em praticamente todo o mundo, contra os sistemas de proteção social universais. Em outros termos, o Brasil vivenciava uma contratendência em relação ao cenário mundial. Enquanto, nos países de capitalismo avançado o Estado intervencionista entrava em crise, o Brasil vivia o apogeu de uma Constituição que modelava um Estado Social de Direito. Do ponto de vista da totalidade, o Brasil como um país dependente e periférico inserido na dinâmica mundializada do capital, logo seria impactado pelos processos vivenciados no mundo capitalista avançado. São os rebatimentos do movimento mais amplo do capitalismo mundializado, sua crise estrutural e sua sanha por subordinar os Estados nacionais aos ditames de sua acumulação que se abateram sobre nossa frágil movimentação pela consolidação da seguridade social e, do nosso objeto específico, a política de assistência social. Se do ponto de vista político organizativo a década de 1980 representou um grande passo para nossa democracia, do ponto de vista econômico e social, o país sentia o peso e pagava o preço dos desmandos da ditadura civil-militar e da nossa inserção subordinada e periférica no capitalismo global. Dessa perspectiva, tornou-se muito comum assumir que a década de 1980 foi a “década perdida”, haja vista o terrível fantasma da inflação e da estaglafação, o endividamento externo e interno, o baixo nível de produtividade, o alto índice de desemprego, pobreza e miséria, o acirramento da violência e da desigualdade social, conforme demonstrado no capítulo anterior. O cenário que se esboça, portanto, ao longo dos anos 1980 e 1990 é de retração das possibilidades de avanços no campo das políticas sociais, da melhoria nas condições de vida e trabalho da população, bem como do agravamento das desigualdades sociais e dos níveis de pobreza e miséria. 236

É neste contexto que a ofensiva neoliberal, já em ampla expansão nos países de capitalismo avançado, ganha terreno no Brasil,139 sobretudo, em função do grande endividamento do país e das necessidades de empréstimos e investimentos estrangeiros. O Brasil, assim como outros países periféricos, precisavam se submeter à dura agenda de ajustes impostas pelo “Consenso de Washington”,140 cuja cartilha básica era a do neoliberalismo. O neoliberalismo foi largamente assimilado nos governos desta região, como fundamento precípuo de modernização do Estado e como caminho tanto para a superação do “subdesenvolvimento” como para a retomada do “equilíbrio do livre mercado”. Já na década de 1980 as diretrizes neoliberais puderam ser percebidas na postura governamental de Collor, adotando “[...] uma agenda política que priorizava as questões econômicas (dívida e a inflação) e se empenhava para proceder às reformas demandadas pelo ajuste estrutural [...]” (SILVA e SILVA, 2007, p. 54). Behring (2008) denomina de os estragos do outsider os processos desencadeados no Governo Collor, mas especificamente as reformas estruturais a exemplo do programa de privatizações e da redução das tarifas aduaneiras, o que configurou, em sua concepção, o início da contrarreforma neoliberal no país. Na mira da contrarreforma, a configuração de padrões universalistas e redistributivos de proteção social é fortemente tensionada, sendo tendência geral a redução de direitos sob a justificativa da crise fiscal. Prevalecendo o trinômio do ideário neoliberal: privatização, focalização e a descentralização das políticas sociais. O governo Collor não chegou a consolidar amplamente o programa de ajustes neoliberais, em função do processo de impeachment que tirou o presidente do executivo federal, no ano de 1992, em meio ao descontentamento popular, à graves denúncias de corrupção. O processo se realizou na dinâmica do movimento nacional multipartidário Ética na Política. Esse contexto condensava as condições de uma grave crise política e econômica, em função do clima de descrédito geral da população face as instituições públicas e a política de um modo geral. Além de um quadro econômico dramático com a elevadíssima inflação e do

139 A consolidação do neoliberalismo no Brasil foi discutida no capitulo anterior.

140 O Consenso de Washington designava “um conjunto abrangente de regras de condicionalidade aplicadas de forma cada vez mais padronizada aos diversos países e regiões do mundo para obter o apoio político e econômico dos governos centrais e dos organismos internacionais. Tratava-se também de políticas macroeconômicas de estabilização acompanhadas de reformas estruturais liberalizantes” (TAVARES E FIORI apud NETTO, 2010). 237

desemprego estrutural141 que tornava ainda mais explícita e latente a questão da “fome e da miséria”, que passaram a se constituir em objeto de campanhas de alguns setores da sociedade civil. Foi neste contexto que a fome e a miséria do povo brasileiro foram explicitadas como refrações da ―questão social‖. O movimento nacional Ação da Cidadania contra a Fome a Miséria e pela Vida protagonizou, no contexto das organizações da sociedade civil, a colocação na agenda pública da pobreza e da miséria, que, naquele contexto, ao reforçarem a ação das organizações não-governamentais – ONGs, reforçaram inintencionalmente a lógica da ―satanização‖ do Estado (LEMOS, 2009, p. 135).

Destacamos esse aspecto porque ele é fundamental para adensar a argumentação que estamos desenvolvendo, isto porque essa transformação da pobreza em objeto de mobilização popular, capitaneada principalmente pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs), mas amplamente assimilada por amplas camadas da sociedade brasileira, se dá no âmbito de uma profunda ilegitimidade do poder público e da descrença na política de um modo geral, expressos numa espécie de “satanização do Estado”. Certamente este processo é abalizado pela ideologia neoliberal que começa a se espraiar no Brasil e que aponta o Estado como centro da crise econômica, por sua incapacidade de gestão, por sua estrutura burocrática e anacrônica, passível de toda sorte de corrupção. Isto traz implicações sérias para a consolidação da LOAS, visto o paralelismo que tais movimentos vão criar e que o governo passará a assumir. Com o impeachment de Collor, Itamar Franco assume a presidência da República. Nesse contexto de ampla mobilização da sociedade em torno da questão do “combate à fome”, o novo presidente incorpora a dinâmica desse movimento, criando o Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA,142 através do Decreto nº. 807, de 24/04/1993.

141 O contexto político econômico desse período foi sistematizado no capítulo anterior.

142 A criação do Conselho se configurou como resposta à intensa mobilização que de desdobrava desde o Movimento pela Ética na Política, que em função do cenário de acirramento da pobreza e da miséria e culminou na “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, do qual notabilizou-se a influência e liderança do sociólogo Herbert de Souza, conhecido como “Betinho”. A Ação invocava um sentimento de solidariedade na sociedade brasileira em favor dos “excluídos” e promoveu várias atividades, que incluíam campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos em todo o país, movidos pelo sentimento de indignação contra a fome e a miséria (BEGHIN, 2009). Ainda segundo Beghin (2009), milhares de pessoas participaram das campanhas, que envolviam os mais diversos sujeitos individuais e coletivos (pessoas comuns, ONGs, artistas, Igrejas, empresas de vários tipos, associações comunitárias, instituições filantrópicas, escolas, Universidades, entre outros. “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” teve o impacto considerável ao abrir uma arena de debate em torno da fome que ganhou destaque na grande imprensa. “Esse amplo movimento associado à compreensão política que o recém-empossado Presidente Itamar Franco (1992) teve da necessidade de apoiar- se nele para constituir a credibilidade do executivo, perdida no processo de impeachment do ex-presidente Collor, criou um ambiente propício a instauração de uma experiência de participação que se materializou em três instrumentos : i) a confecção pelo IPEA do “Mapa da Fome” (março de 1993) [...] ii) a elaboração do “Plano de combate à fome e à miséria” (abril de 1993), como conjunto articulado de compromissos de ação do governo 238

De acordo com Lemos (2009), este conselho tinha caráter consultivo e seria vinculado à Presidência da República com o objetivo de propor diretrizes para as ações, do Estado e da sociedade civil,143 no âmbito da alimentação e nutrição. Ou seja, esboçam-se condições importantes para engendrar um movimento de definição de um dado padrão de política social, cujo postulado básico era a parceria do setor público com o privado. No mais, de importância direta com nosso objeto de análise, podemos depreender que se fortalece a tendência para centralizar ações paralelas de “combate à pobreza”, em detrimento da consolidação do direito à assistência social pública, conforme determinava a Constituição Federal de 1988. É preciso observar que o Plano é anterior à aprovação da LOAS, mas isso não anula a dinâmica do paralelismo que se insinuava para o campo da assistência social em relação ao “combate à pobreza”. O Plano tem um caráter emergencial e paliativo, além de claro, ser um mecanismo para recuperar a legitimidade da ação estatal, procurando demarcar que “o Estado estava atento as demandas sociais”. Mas considerando-se o processo já em curso desde a Constituição Federal de 1988 e a própria dinâmica de elaboração da LOAS, percebe-se a reprodução de práticas históricas de ações emergenciais em detrimento da institucionalização da política de assistência social. O que já se evidencia, ao final das contas, é a direção social dos governos brasileiros em relação à política social sob os ditames neoliberais: transferência de responsabilidades públicas para a “sociedade civil”, sob o apelo da solidariedade romantizada, a focalização nos segmentos mais pobres e a recusa à opções político-econômicas progressistas, que poderiam incluir a consolidação das políticas de seguridade social, conforme assegurado na Constituição Federal. A definição de uma agenda contra à pobreza, conforme preconiza a narrativa hegemônica burguesa entre os anos 1980 e 1990, é ponto nodal de um movimento de redefinição das pautas neoliberais em função dos seus impactos destrutivos nos 20 anos de

marcado por três grandes princípios: parceria, solidariedade e descentralização; iii) a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), em abril de 1993, cujas funções de consulta, assessoria e indicação de prioridades ao Presidente da República deveriam ser exercidos por um colegiado presidido por um representante da sociedade civil e integrado por ministros do Estado e por personalidades de destaque [...] na maioria indicados pelo Movimento pela Ética na Política” (BEGHIN, 2009, p. 114. Grifos nossos). 143 A influência do sociólogo Betinho foi marcante nesse contexto de debate em torno do “combate à fome e à miséria”. Também é notável a incidência de suas ideias no plano da intervenção social nas situações mais drásticas que viviam importantes parcelas da população, donde a entronização do termo e da importância simbólica das chamadas parcerias público-privadas no país. Note-se que ela aparece como princípio do Plano de combate à fome e à miséria, junto com outros que são análogas e complementam o cerne do espectro teórico e ideológico que fundamenta a concepção da modalidade de intervenção a ser desenvolvida pelo poder público e pela sociedade civil. 239

duros ajustes estruturais do projeto neoliberal. Conforme delineamos no capítulo 2, os levantes sociais contra o neoliberalismo começaram a se espraiar no mundo capitalista avançado já na década de 1980, exigiam uma ação intensificada de contenção de tais movimentos, por parte da classe dominante. Isso exigiu uma revisão dos postulados ortodoxos neoliberais, que não passou de uma pequena rotação na direção da defesa de um suposto “capitalismo mais humanizado”,144 em que a pobreza passa a ser o objeto central de discussões, produções, pesquisas, projetos, financiamentos e redefinições de sistemas de proteção social em todo o mundo, sobretudo, nos países de capitalismo dependente e periférico, como o Brasil.

A entrada do combate à pobreza como centro das preocupações da agenda social internacional aconteceu a partir do contexto generalizado de reformas dos sistemas de welfare desde os anos 1980 quando, tanto em países centrais como nos periféricos, quase todas as políticas públicas governamentais passaram a ser elaboradas com referência ao movimento da economia global (MAURIEL, 2008, p. 337).

Essa empreitada político-ideológica tem nas agências multilaterais, instituições orgânicas do capital, seu principal veículo de difusão. Instituições como o Banco Mundial, o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o próprio FMI passam a construir um aparato técnico e teórico-ideológico, com base nas produções de intelectuais orgânicos do capital, como Armatya Sen, Anthony Giddens, Ulric Beck, entre outros, para difundir aos diversos países capitalistas mundo a fora, colocando a pauta do “combate à pobreza” no cerne do debate mundial sobre as demandas de intervenção social por parte dos diversos Estados nacionais. As agências multilaterais passam a atuar intensamente nessa direção, acentuando a demarcação dos compromissos dos governos frente a questão da pobreza como condição para recebimento de financiamentos internacionais.145 De acordo com Mauriel (2013), esse conjunto de referências compõe, na verdade, não o fim dos ajustes neoliberais, mas sim uma

144 Maranhão (2009) esclarece que, no início da década de 1990, a ONU, através de seu programa de desenvolvimento o PNUD, “passa a ser a maior incentivadora e promotora na defesa do que ela própria passou a chamar de ‘globalização com uma face humana”’ (MARANHÃO, 2009, p. 232).

145 Essa tendência já se esboçava desde os anos 1960, conforme identificou Mauriel (2008).” Os Estados Unidos utilizaram a AID como instrumento para configurar uma nova lógica para a política de empréstimos, impondo critérios sociais contra os próprios do Banco, a fim de assegurar a ordem social internacional e conter a ameaça de “revolução”. Foi assim que a pobreza, como um critério explícito para empréstimos, começou a sair das sombras das considerações econômicas e ganhou espaço próprio nas discussões sobre políticas setoriais – agricultura, educação, água, etc” (MAURIEL, 2008, p. 137) 240

segunda geração deles, configurando o chamado “pós-Consenso de Washington”, sob hegemonia estadunidense. Os ventos que conduziram ao realinhamento ideológico das políticas sociais em direção ao combate à pobreza presentes nas recomendações dos organismos multilaterais vieram, em sua maior parte, de dentro do meio acadêmico e das pesquisas sobre pobreza nos Estados Unidos (MAURIEL, 2009, p. 59).

Mauriel (2008) esclarece o papel central do Banco Mundial na definição de uma agenda de combate à pobreza. De acordo com a autora, o impulso dessa tendência ganha grande destaque com a presidência de Robert McNamara, que já na década de 1970 defendia uma ação mais incisiva do Banco no tocante ao combate à pobreza. Entre 1970 e 1980 a instituição encabeçou uma ofensiva político-ideológica que colocava a questão da pobreza e do desenvolvimento no centro de seus debates e atuação. Mauriel, esclarece, no entanto, que a atuação do Banco teve um caráter muito mais simbólico que efetivamente material. Em resumo, os empréstimos para o combate à pobreza serviram para o fortalecimento da imagem institucional do Banco num momento em que o Congresso Americano e os Parlamentos europeus colocavam cada vez mais peso nos propósitos sociais, especialmente os relacionados ao pauperismo. Tais empréstimos se tornaram um mecanismo de defesa numa conjuntura política particularmente difícil para o Banco, durante a administração do presidente Carter, quando os EUA pressionaram para que os direitos humanos se constituíssem um critério para a liberação dos créditos (IDEM, p. 152).

Com contraditório atraso histórico, o neoliberalismo se consolida no Brasil na década de 1990. É nas gestões de FHC que o projeto neoliberal assume um caráter hegemônico e a pobreza passa ao centro do debate da política social. Já como Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, lançou o Plano Real, componente essencial dos ajustes neoliberais no país, enfrentando com sucesso a missão de implementar a agenda neoliberal no Brasil. Combinando reestruturação produtiva, com sua patente empreitada de desregulamentação das leis trabalhistas, desmonte do Estado, privatização do patrimônio público e reordenamento das políticas sociais, FHC adotou os ditames do mercado financeiro internacional à particularidade brasileira, conforme detalhado no capítulo anterior. A contrarreforma do Estado está no centro das proposições neoliberais. Behring (2008) aponta que no âmbito do Estado a contrarreforma teve seus princípios basilares no Plano Diretor da Reforma do Estado do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (PDRE-Mare).146

146 Trata-se do plano orientador do processo de contrarreforma da administração pública, efetivado no governo FHC, sob direção do então Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira. Em suma, o Plano demarcava a mudança do modelo, por eles denominado, de administrativo burocrático para a adoção de um modelo gerencial, que na narrativa governamental aprecia com a estratégia central para conferir eficiência da administração pública e a qualidade na prestação de serviços.

241

Esse processo deveria seguir alguns caminhos básicos: ajuste fiscal, reformas econômicas para o mercado, abertura comercial e privatizações das empresas estatais e da própria política social em alguns campos, como a saúde, a previdência social e a educação, reforma da previdência social, inovação dos instrumentos de política social, contrarreforma do aparelho do Estado. A autora explicita que se propõe uma total redefinição do papel do Estado que implicaria em passar para o setor privado atividades que pudessem ser controladas pelo mercado e a chamada publicização, que nada mais seria que a transferência de responsabilidades do Estado, sobretudo com os serviços sociais, para organizações da sociedade civil. E, por fim, a ofensiva contra a seguridade social. A configuração de padrões universalistas e redistributivos de proteção social é fortemente tensionada pela contrarreforma, sendo tendência geral a redução de direitos sob justificativa da crise fiscal, prevalecendo o trinômio do ideário neoliberal: privatização, focalização e a descentralização, das políticas públicas para o chamado “terceiro setor” e para o próprio mercado capitalista. Além dessas questões, Behring (2008) destaca que na acepção que fundamenta o PDRE a Constituição tirou a capacidade operacional do governo. Portanto a estratégia de transição da “reforma” do Estado deveria se processar em três direções: a mudança da legislação, a introdução de uma cultura gerencial e a adoção de práticas gerenciais. Na prática, isso consiste na aplicação de mecanismos de controle de produtividade, eficiência e eficácia, controle rígido de gastos visando sua diminuição constante, típicos da empresa privada ao campo Estatal. Os governos FHC (1995-2002) foram de grandes dificuldades para afirmação desta área como política pública de responsabilidade estatal. Nesse período se consolida e aprofunda a lógica do paralelismo de ações de combate à pobreza em relação à política de assistência social. Conforme demonstrado por Paiva (2006), o incremento ao campo filantrópico privado foi a marca preponderante no governo FHC, apoiado nos ideários da solidariedade e voluntariado. O Programa Comunidade Solidária é elucidativo dessa tendência. O referido governo utilizou-se das “parcerias” com a sociedade civil, em uma perspectiva de conjunção de esforços, em que todos são responsáveis e chamados a contribuir com o “enfrentamento da pobreza”. Ações centradas em programas emergenciais/assistenciais, com forte expressão da desresponsabilização do Estado foram a tônica da postura governamental (SILVA e SILVA, 2007). Essa desresponsabilização do Estado se caracteriza pela sua retirada contínua da execução dos serviços sociais, deixando-se por conta do setor privado e/ou público-privado, 242

como as ONGS, transferindo recursos e atribuições que seriam restritas à estrutura público- estatal para estes segmentos da sociedade. O Programa Comunidade Solidária foi incontestavelmente a contraproposta que se impôs sob os auspícios neoliberais para a consolidação da assistência social como política pública. “A assistência social foi palco de um dos mais destacados retrocessos na esfera da proteção social quando, se superpondo àquela política, foi instituído o Programa Comunidade Solidária” (MOTA; MARANHÃO; SITCOVSKY, 2008, p.185). Instituído pela Medida Provisória nº 813, em janeiro de 1995, e regulamentado pelo Decreto nº 1.366, também de janeiro de 1995, o Programa era estruturado por base interministerial, sendo coordenado pela então primeira-dama Ruth Cardoso. De acordo com Silva (2012), o Programa se caracteriza muito mais como estratégia de articulação, coordenação e potencialização das ações do governo que já existiam em diversos Ministérios e setores, do que como um Programa propriamente dito.147 Ao invés de executar os dispositivos legais contidos na LOAS, o governo de Fernando Henrique Cardoso desconsiderou-a com medidas provisórias que restringiam e desmantelavam o sistema de proteção assinalado nos marcos legais da política. Combinou à ingerência de extinguir várias instituições públicas responsáveis por programas, projetos e ações de assistência social como Ministério do Bem-Estar Social, da LBA e do Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, com a constituição do Programa Comunidade Solidária que presidido pela primeira-dama Ruth Cardoso e carro chefe da política social de FHC – permitiu a construção de uma concepção de política assistencial, alçada em nome da solidariedade e do voluntarismo das entidades filantrópicas, que passou a concorrer com a LOAS no trato da pobreza no país (MARANHÃO, 2004, p.151).

Nesse cenário, o Conselho do Comunidade Solidária teve importante papel na consolidação e difusão do ideário da parceria governo\sociedade, conforme atesta Beghin (2009). Nos 08 anos de sua existência o Conselho direcionou suas ações em torno de três grandes eixos: i) A promoção do diálogo entre governo e instituições da sociedade civil, batizado de “interlocução política”. Tratava-se de temas considerados estratégicos, como segurança alimentar e nutricional, criança e adolescente, alternativas de ocupação e renda e marco legal do terceiro setor.

147 Nisto reside uma similaridade fundamental do Comunidade Solidária com o Plano Brasil sem Miséria, que detalharemos no 4 capítulo. 243

ii) O fortalecimento da sociedade civil que se articulou em torno de três componentes: a revisão da legislação que regulamenta as atividades do terceiro setor, que culminou na Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e a criação do termo de parceria, instrumento esse que legaliza e normatiza alianças entre organizações sem fins lucrativos e entidades governamentais; o estímulo ao trabalho voluntário com a criação do Programa Voluntários e de uma rede de Centros de Voluntariado em todo o país, assim como a mobilização pela aprovação da Lei nº 9.608\98, que veio a normatizar o trabalho voluntário; e, por fim, o apoio a produção e disseminação de conhecimentos e informações sobre e para o terceiro setor, através da rede de Informações do Terceiro Setor (RITs). iii) A implementação de programas, por meio de parcerias com empresas privadas e organizações sem fins lucrativos, direcionados para o público jovem da população brasileira, como: o Alfabetização Solidária, o Capacitação Solidária, o Universidade Solidária e o Artesanato Solidário (BEGHIN, 2009, p. 117- 118).

O Comunidade Solidária instituiu uma estrutura paralela àquela proposta pela Constituição Federal e pela LOAS, chegando mesmo a formar “áreas de atrito” face à Secretaria de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) (FLEURY, 2004a). Tais opções políticas convergiram para o delineamento da formação de uma cultura de não-direito, de “refilantropização” da assistência social, em confronto direto com a LOAS. Essa afronta contra os princípios da LOAS se verificam nos governos FHC, com especial destaque para o Comunidade Solidária em vários aspectos: nas concepções antagônicas acerca do próprio direito social à assistência social e primazia do Estado na condução da política, na medida em que reforça o voluntarismo em detrimento da ação estatal; consolida um padrão de intervenção focalizado, em aversão ao princípio de universalização do acesso aos direitos, garantido na LOAS; a reprodução do primerio- damismo, com a atuação da primeira-dama na coordenação do programa; ademais, o governo centralizou a tomada de decisões no Conselho Nacional do Comunidade Solidária, atentando frontalmente ao princípio da descentralização político-administrativa. Além disso, processou- se uma anulação quase total do Conselho Nacional de Assistência Social, negligenciando seu papel fundamental na elaboração e fiscalização da política de assistência social. 244

Um ponto importante que merece destaque é o fato do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), criado em 1994, somente ter sido regulamentado em 1995, quando foi realizada a primeira Conferência Nacional de Assistência Social, e apenas em 1996 foi implementado o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), não obstante a LOAS tivesse previsto a regulamentação e funcionamento do FNAS para no máximo 180 dias a partir da data de aprovação da LOAS. O CNAS foi fragilizado em função da centralização do poder no Executivo Federal e da interferência direta do governo nas deliberações do CNAS (RAICHELLIS, 1998). Apenas em 1998 o governo federal definiu a Política Nacional de Assistência Social, uma demanda advinda da II Conferência Nacional de Assistência Social, sendo aprovada pelo CNAS em 16 de dezembro de 1998. Também foram aprovadas as Normas Operacionais Básicas 1 e 2 (NOB\1 e NOB\2). De acordo com Boschetti (2001), a primeira tinha por finalidade instrumentalizar gestores e trabalhadores da assistência social para solidificar suas intervenções com base na nova sistemática de cooperação técnica, acompanhamento, avaliação e fiscalização das ações do campo da assistência social no Brasil. A segunda, por sua vez, criava canais de articulação entre as diferentes esferas de poder: federal, estadual e municipal. Essas normatizações foram elaboradas e aprovadas no âmbito do CNAS em função do perfil crítico e combativo do Conselho em face do governo FHC, tendo o Conselho feito críticas públicas em relação ao governo e o descaso em relação a LOAS e o paralelismo das ações e centralidade do Programa Comunidade Solidária. Neste sentido, Couto, Yazbek e Raichelis (2010) destacam que a PNAS/98 se apresentou insuficiente e fortemente afrontada pelo paralelismo do Programa Comunidade Solidária. Ainda em relação à esse perfil crítico do CNAS em relação aos desmandos das gestões de FHC em relação à assistência social, Mendonsa (2012) destaca que essa instância tornou-se foco de irradiação de debates sobre os desafios da assistência social no país, espraiando esse movimento por muitos conselhos estaduais e municipais Brasil afora. Ademais, articulavam e organizavam as Conferências conferindo um teor mais combativo das discussões e deliberações. Foram realizadas no período três Conferências Nacionais (1995, 1997, 2001). Nas deliberações dessas três Conferências podemos encontrar manifestações de repúdio às políticas sociais e econômicas do governo então vigente. Já na primeira delas, em 1995, deliberou-se contra o Comunidade Solidária, por instituir o paralelismo na área social e não colaborar para a construção do sistema descentralizado e participativo proposto na LOAS. Essa posição repetiu-se nas Conferências seguintes, nas quais também foram feitas críticas e exigências, como a proposição de uma política nacional para a área, a fixação de um percentual para as ações de assistência social, o aumento dos recursos do FNAS e o estabelecimento de 245

normas para a prestação dos serviços assistenciais, especialmente no que se refere àqueles prestados por entidades privadas, entre outras (MENDONSA, 2012, p. 94).

O autor sinaliza que desse forte teor de oposição deflagrado nas Conferências, o governo alterou sua periodicidade. Incialmente havida sido previsto a realização da Conferências de dois em dois anos. Mas, por meio de medida provisória, o governo alterou o prazo previsto na LOAS, definindo a periodicidade da realização das Conferências em 4 anos. Assim, a Conferência a ser realizada em 1999 foi adiada para 2001. Em relação aos benefícios de assistência social, assegurados na LOAS, o avanço mais considerável nestes governos foi a implementação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que começou a ser pago em 1996, com um corte de renda delimitado em ¼ do salário mínimo e da delimitação da faixa etária em 67 anos que deixou muitos idosos fora dos critérios de elegibilidade. Somente com a aprovação do Estatuto do Idoso, em 2003, é que passou a vigorar a 65 anos de idade para acesso ao benefício. Além do Programa Comunidade Solidária, outros programas do mesmo padrão foram se sobrepondo à LOAS. Entre 1996-1996 o governo federal implantou três programas, a saber: o Brasil Criança Cidadã, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Sentinela). De destaque, comparado ao Comunidade Solidária e demarcando expressivamente o paralelismo de ações em relação às determinações da LOAS, teve-se o Programa Comunidade Ativa, a implantação do Projeto Alvorada os próprios programas de transferência de renda que são introduzidos no Brasil ainda nas gestões de FHC. O Comunidade Ativa, criado em 1999, pautava-se no discurso do desenvolvimento local e sustentável, na participação da comunidade e na geração de renda. O Projeto Alvorada, lançado no ano 2000, selecionava municípios com baixo índice de desenvolvimento humano, para desenvolver e focalizar programas de geração de renda, educação, saúde e “assistência social”. O Projeto Alvorada apresentava, na verdade, o mesmo formato do Comunidade Solidária, consistindo em um pacote de programas já existentes nas áreas de educação, saúde e renda. Ambos os programas não alteravam em nada os princípios e a orientação do Comunidade Solidária, “de modo que se pode dizer que é o mesmo PCS em desenvolvimento. O fato de se denominar as mesmas ações e estratégias com outro nome teria servido como efeito populista, mostrando que o governo estava buscando outras formas de ação” (SILVA, 2012, p. 140). De acordo com Silva (2012), o programa que demarca a introdução dos benefícios de renda mínima, no Brasil, é o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM), criado por FHC, em abril de 2001, e consistia no apoio financeiro a programas de transferência de renda 246

municipais destinados à famílias com renda mensal per capta inferior a meio salário mínimo que tivesse crianças de zero a quatorze anos, cumprida a condicionalidade de permanência na escola. O valor máximo para cada família era de R$ 45,00. Maranhão (2004) indica que o governo federal, com fomento das agências internacionais de desenvolvimento, criou, nesse contexto, uma série de programas sociais destinados a oferecer uma renda mínima às famílias consideradas pobres. Em 2001, o Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação, o Bolsa Escola, substituía o PGRM. O Bolsa Escola visava integrar o processo educacional de crianças de menor renda e contribuir com a minimização da evasão escolar e repetência. O benefício era destinado para famílias com filhos de 6 a 15 anos, matriculados no ensino fundamental e não beneficiados pelo PETI, consistindo no repasse monetário de R$ 15,00 por filho, podendo cada família receber, no máximo, valor referente à três filhos (MENDONSA, 2012). Nesta mesma linha se instituiu o Bolsa Alimentação, também em 2001, com o objetivo de promover condições de saúde e nutrição para gestantes, nutrizes e crianças de 6 meses a 6 anos, através do complemento de renda para melhoria da alimentação. O valor do benefício também era de R$ 15,00, não contabilizando no critério de renda per capta benefícios de outros programas de transferência de renda como o PETI e o Bolsa Escola. Em 2002 é criado o Programa Auxílio Gás como estratégia de minimização dos efeitos de liberalização da comercialização dos derivados do petróleo, consistindo no repasse do valor de R$ 7,50 para famílias cadastradas em Programas Federais (IDEM). Em conjunto com ações socioeducativas, esses programas tinham o objetivo de promover transferências monetárias que permitissem a subsistência de uma parcela da população brasileira, “que apesar de, na época, terem conseguido um relativo ganho na renda familiar com o advento do Plano Real, vinham gradativamente sofrendo as terríveis consequências de uma economia periférica estagnada” (MARANHÃO, 2004, p. 162). As gestões de FHC (1995-2002) angariaram um saldo significativo no sentido de derruir as possibilidades postas para a seguridade social com a homologação da Constituição Federal de 1988, concretizando novas tendências para a política social brasileira na direção dos postulados neoliberais. No campo da assistência social a irrefutável ingerência na LOAS e a reprodução de práticas que a própria lei visava suplantar foi decisivo para obstaculizar a consolidação de um sistema descentralizado e participativo para o campo da assistência social. Assim, o governo Fernando Henrique chegou a seu fim com algumas situações bastante definidas em relação à assistência social. A saber: 1- uma política de combate à pobreza baseada na transferência de renda às famílias pobres; 2- 247

programas extremamente focalizados e seletivos e, que portanto, não cobriam todos os cidadãos que tinha direito à assistência social, embora procurassem combinar transferência de renda com políticas básicas de direção universalista; 3- uma ênfase muito grande nas parcerias com e da sociedade civil, com a consequente prática e convicção de que o Estado não possuía papel exclusivo e preponderante nas ações de assistência social (MENDONSA, 2012, p. 91).

No fim da era FHC e passados nove anos da aprovação da LOAS o desenlace para as aspirações democráticas que estavam no cerne das proposições mais progressistas para o campo da assistência social foi a frustração dos ensejos de aprofundamento dos princípios universalizantes, participativo e da própria constituição de um sistema de gestão que finalmente consolidasse uma institucionalidade pública, de qualidade capaz de garantir o direito efetivo à política de assistência social. Ao fim e ao cabo, o que se processou foi a avalanche neoliberalizante que infundiu sobre a ação pública o minimalismo da ação do Estado, a focalização e a reprodução do paralelismo. O paralelismo como prática histórica na assistência social no Brasil, condensa e expressa nitidamente as ações na área, como uma quase-tradição. Os programas focalizados, seletivos, dispersos e fragmentados de “combate à pobreza” em vários segmentos dos governos, neste período, corroboram nossa hipótese de que o paralelismo constitui uma lógica peculiar neste campo. Realizada essa ponderação histórico-analítica, seguidamente abordaremos o processo de avanços no campo da assistência social no que diz respeito ao seu processo de regulamentação e constituição do sistema descentralizado da política, demarcando o significado desse processo para a consolidação do status de política pública no Brasil, mas também problematizando os limites intrínsecos desse processo. Tais limites apontam para uma dinâmica de modernização conservadora da política de assistência social, donde se percebe o caldo conservador no próprio marco regulatório e nos fundamentos teóricos e ideopolíticos que está na base desse movimento.

3.3 Os governos Lula: a onda de regulamentação da assistência social e sua modernização conservadora

De acordo com Mendonsa (2012), em 2003, ainda no primeiro mês da gestão do governo Lula, foi criado o Ministério da Assistência e Promoção Social. Neste mesmo o governo procedeu a uma mudança de nomenclatura, passando a ser designado por Ministério da Assistência Social (MAS), atendendo, de partida, os anseios em torno da criação de um 248

Ministério exclusivo para o campo da assistência social. A ex-governadora do Rio de Janeiro, Maria Benedita da Silva,148 do PT, foi convidada para ocupar o cargo de Ministra na pasta. De acordo com o Decreto 4.655 de 27 de março de 2003, o MAS teria sob sua responsabilidade a política nacional de assistência social e as funções correlatas ao órgão gestor federal dessa política, tais como coordenar, normatizar, acompanhar e avaliar sua execução, bem como seus projetos e programas. Responsabilizava-se também pela Gestão do Fundo Nacional da Assistência Social (FNAS), pelos programas, benefícios e serviços financiados com esses recursos e que já estavam sob a responsabilidade da SEAS (MENDONSA, 2012, p. 135).

Mendonsa (2102) destaca que sob a chefia da ministra Benedita da Silva, de 2003 a 2004, o MAS teve uma atuação marcada por imprecisões, impasses e equívocos no que tange a organicidade da demanda acumulada na década anterior pela política de assistência social. Num contexto de tensões internas e sob forte crítica, o MAS acabaria por ser extinto. As exigências por um novo estatuto de relação intergovernamental, sob a prevalência da regulação pública, já estavam centralmente colocadas como imprescindíveis para o avanço da política pública de assistência social ao final de 2003. É preciso reforçar que a gestão federal da assistência social, diversamente do ocorrido após as outras três conferências nacionais, comprometeu-se com as deliberações ali procedidas. Porém, nem tudo ocorreu como a força do movimento desejava. Primeiro uma péssima notícia. Logo após a IV Conferência Nacional ocorreu a extinção do Ministério da Assistência Social. Lastimou-se sua extinção não propriamente pelo que ele estava realizando em 2003, mas pelo papel secundário a que retornava à assistência social na gestão federal, o deixar de ocupar o primeiro escalão (SPOSATI, ano (revista), p. 105).

Esse papel secundário que a assistência social volta a ocupar no âmbito da gestão federal, aludido por Sposati, denota a continuidade da imprecisa e frágil direção que ainda preside a implementação de uma efetiva política de assistência social no Brasil. É neste sentido, que Boschetti (2004) afirma que “a assistência social continuou órfã de uma institucionalidade que a afirmasse como política pública e direito social” (2004, p. 19). Uma recomposição do aparato institucional após a extinção do MAS se deu com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e combate à fome (MDS). A criação de uma estrutura ministerial, como o MDS149, segundo o governo, visou dar aparato institucional para a política de assistência social e dirimir os conflitos e divergências entre os vários segmentos governamentais que atuavam na gestão da política.

148 Benedita da Silva foi primeira vereadora do PT e também a primeira mulher negra a assumir função na Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Em 1986 foi eleita Deputada Federal. Foi senadora, vice- governadora e, em 2002, governou o Estado do Rio de Janeiro, quando Antony Garotinho renunciou ao cargo para concorrer às eleições para a Presidência da República.

149 O MDS foi composto pela Secretaria de Renda de Cidadania (SENARC), pela Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN). Pela Secretaria de Articulação Institucional e Parcerias (SAIP), e pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI). 249

A adoção de um “super ministério”, solução que acabou sendo acolhida por Lula para resolver os visíveis problemas de coordenação na área social, implicava a difícil acomodação de dirigentes e equipes que foram se constituindo, de forma conflituosa e paralela, ao longo desse primeiro ano com dificuldades, inclusive, em sua estruturação interna. Além disso, com dois ministérios transformados em secretaria, haveria uma dificuldade adicional para manter os dois titulares das estruturas extintas vinculados a um único órgão, sem o consequente rebaixamento do estatuto de um deles. A solução adotada implicou o preterimento de ambos e o convite a Patrus Ananias150 [...] para o cargo de Ministro do Desenvolvimento Social e combate à fome (MENDONÇA, 2012, p. 144).

É apenas dez anos após a aprovação da LOAS, ainda no primeiro governo Lula que é aprovada pelo CNAS, a atual Política Nacional de Assistência Social (PNAS) através da Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004. Esta PNAS adota a deliberação de IV Conferência Nacional de Assistência Social (2003), que também deliberou a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), aprovado, posteriormente, em 2005, através da Resolução nº 130, de 15 de julho de 2005. É sob o signo da indignação e resistência que a IV Conferência é realizada em 2003, explicitando a insatisfação de representantes de Conselhos, trabalhadores da assistência social, como os assistentes sociais, militantes políticos e de movimentos sociais, enfim, de uma gama de sujeitos políticos que desde os governos FHC denunciavam e criticavam o autoritarismo das ingerências governamentais e o descaso do poder público em relação às determinações da LOAS quanto a instituição do Sistema Único de Assistência Social. A realização da IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, é um marco na luta pela consolidação das diretrizes aprovadas na LOAS. De acordo com Silva (2014), esta Conferência voltou-se para a avaliação do estágio de implementação da política de assistência social, cujas discussões levariam a deliberação acerca da implementação de um sistema único e descentralizado para a assistência social. Esta Conferência é uma baliza imprescindível na regulamentação da área pelas importantes discussões e deliberações realizadas, além de expressar o acúmulo de lutas que contribuiu decisivamente para a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

150 Patrus Ananias de Sousa é advogado, especialista em poder legislativo, mestre em direito processual, professor na faculdade mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e pesquisador da escola do legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Entre 1993 e 1996, foi prefeito de Belo Horizonte. Em 2002, elegeu-se deputado federal, exercendo o mandato em 2003. Foi Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome de 2004 a 2010. Em 2014 foi eleito deputado federal pelo PT. Em 2015 assumiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário, do governo Dilma. Após o impeachment de Dilma, em maio de 2016, foi exonerado do cargo e retornou ao mandato de deputado federal. 250

Ainda que em um contexto de regressão das políticas sociais,151 a aprovação da PNAS foi um marco importante para regulamentação de política de assistência social. Pereira (2007, p. 70) esclarece que a PNAS aprovada em 2004 apresenta diferenças importantes em relação à PNAS de 1998 e por este motivo demandava também a aprovação de uma nova NOB, em substituição às NOBs de 1997 e 1998. Estes novos documentos, portanto, condensam novidades: definição da assistência social como política de proteção social; delimitação das proteções que ela deve assegurar; territorialização da ação; instituição do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A nova PNAS traz, portanto, parâmetros importantes para a implementação do Sistema Único de Assistência Social, demarcando uma mudança substancial, ao menos em termos de normatização das questões definidas na LOAS e às próprias demandas de setores ligados à assistência social que há tempos pleiteavam por uma direção normativa da política. É sob os impulsos das designações da PNAS e da nova correlação de forças políticas nos aparelhos do Estado, que se aprova, em 2005, a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS)152 que representou a tentativa mais sistematizada de materialização da LOAS (PNAS, 2004). Dessa maneira, considerando-se “inequívoca a necessidade de adotar para a assistência social, um regime próprio de gestão” (NOB/SUAS, p.81), é que o SUAS passa a ser implementado como forma única de gestão a partir de 2005, sob direcionamento da NOB/SUAS. A PNAS define a assistência social como proteção social não contributiva, a qual é estruturada em dois níveis de atenção: a proteção social básica (PSB) e a proteção social especial (PSE) de alta e média complexidade. A proteção social básica (PSB) apresenta um caráter preventivo e de “inclusão social”, tendo como objetivos prevenir situações de “vulnerabilidade” e “risco”, através do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de “vulnerabilidade social”

151 Trata-se do movimento das contrarreformas neoliberais impetradas já no governo Collor e consolidadas no governo FHC, que empregou uma dura agenda de ajustes, nas quais as políticas sociais foram objeto de privatização, focalização e descentralização. Grosso modo, a regressão das políticas sociais diz respeito ao processo pelo qual o governo transfere muitas de suas responsabilidades no campo dos serviços sociais para a iniciativa privada, tanto pelo viés da privatização quanto pelas chamadas parcerias público-privadas. Esse processo concorre para a descaracterização da política social como dever do Estado e direito da sociedade. Significou a precarização da já parca estrutura social existente, com crescimento pífio do Orçamento para a seguridade social e retirada de direitos.

152 Não é possível esquecer que o SUAS acompanha parâmetros organizativos do SUS, no sentido de ser uma estratégia de gestão da política em que são estabelecidas formas de acesso, serviços e complexidades, cooperação entre entes públicos e privados, entre outras normativas. 251

decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, entre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos-relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, entre outras) (PNAS, 2004, p.19).153 Os serviços, programas, projetos e ações desse nível de proteção são executados de forma direta pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRASs), por meio de “locais de acolhimento, convivência e socialização dos indivíduos e suas famílias”. A proteção social especial (PSE) é responsável pelo atendimento especializado a famílias e indivíduos em “situação de risco” pessoal e social, decorrente de abandono, maus tratos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, etc. Destina-se, portanto, a indivíduos e famílias com direitos violados e com rompimento de laços familiares e comunitários. Os serviços neste nível de proteção social podem ser de: média complexidade: “que oferecem atendimento às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário não foram rompidos” (PNAS, 2004, p. 22). Estes, comumente são executados pelos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREASs); alta complexidade: “são aqueles que garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou, comunitário” (PNAS, 2004, p. 22). Estes serviços envolvem um aparto institucional mais complexo, como: casa lar, república, casa de passagem, albergue, família substituta, família acolhedora etc.

153 De acordo com Oliveira (2014), a noção de vulnerabilidade social chega à agenda das Ciências Sociais na passagem do século XX para o século XXI, destacando-se, em especial, nos estudos sobre as configurações da pobreza, passando, paulatinamente, a influenciar o arcabouço teórico-político de organismos multilaterais como o Banco Mundial e a CEPAL sobre a formulação de políticas de proteção social. São expoentes deste debate intelectuais como Urich Beck, Antony Giddens e Robert Castel. A autora afirma, ainda, que diante do aprofundamento das contradições da sociabilidade burguesa, processa-se o investimento de intelectuais acadêmicos e dos organismos internacionais em “formular conceitos e orientações que legitimem um novo modelo de proteção social, mais adequado às instabilidades da acumulação capitalista, direcionado ao enfrentamento de vulnerabilidades sociais e riscos sociais”. Deste modo, “a narrativa da vulnerabilidade social e risco social emergem no contexto de revisão neoliberal sobre a proteção social, sendo propagadas pelos organismos internacionais. Segundo o Banco Mundial e a CEPAL, não se pretende romper com as orientações e conteúdos das reformas neoliberais apenas buscar a sua atualização diante do acirramento da pobreza, das instabilidades apresentadas pelo capitalismo contemporâneo. As noções de vulnerabilidade e risco social além da função ideológica que desempenham, ao obscurecer o caráter político do conteúdo de classe aos quais se referem, apresentam ainda um caráter instrumental, considerando que a complexidade dos processos sociais é reduzida a indicadores e mapas de pobreza e risco. Isto faz com que as políticas sociais e protetivas sejam estruturadas de modo a transfigurar as expressões coletivas da “questão social” como demandas individuais, com investimento em ações que desenvolva o capital social e humano dos trabalhadores pobres, precarizados” (OLIVEIRA, 2014, p. 156). 252

O conjunto dos serviços da proteção social preconizada pela PNAS deve viabilizar seguranças que possibilitem a cobertura, redução e prevenção dos “riscos e vulnerabilidades sociais” dos usuários da referida política, tais como: segurança de acolhida, provida por meio do oferecimento de espaços, serviços e ações articulados numa rede social de proteção, favorecendo a proteção e “recuperação” de sujeitos e famílias “vulneráveis” e em “situação de risco” pessoal e/ou social; segurança de sobrevivência, a qual deve ser realizada pela concessão de Benefícios continuados (bolsas-auxílio, como o Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada) e eventuais; e segurança de convívio, que garante a manutenção e restabelecimento de vínculos pessoais, familiares, de vizinhança e de segmento social (PNAS, 2004, p. 24). Por fim, a defesa social e institucional deve garantir aos usuários o acesso e o conhecimento dos direitos socioassistenciais e sua defesa. Esse sistema, seguindo o aparato normativo, visa atender os objetivos da PNAS tem como objetivos: prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e/ou especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitar; contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural; assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família e garantam a convivência familiar e comunitária. É importante destacar, ainda, os instrumentos de gestão do SUAS, que têm sido um dos principais avanços em termos de organização e planejamento técnico e financeiro nas três esferas de gestão: plano de assistência social; orçamento; monitoramento, avaliação e gestão da informação; e relatório anual de gestão. Um verdadeiro divisor de águas na trajetória institucional da assistência social no Brasil. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é um modo específico de gestão da política de assistência social com comando único, que tem como diretrizes: matricialidade sociofamiliar; descentralização político-administrativa e territorialização; novas bases para a relação entre o Estado e sociedade civil; financiamento; controle social; o desafio da participação popular/cidadão usuário; a política de recursos humanos; a informação, o monitoramento e a avaliação. (PNAS, 2004, p. 23). Conforme indicado, a NOB de 2005 é aprovada atendendo as demandas da nova PNAS, no que diz respeito à operacionalização da gestão da política. Atendendo a essas determinações, o SUAS deve ser organizado em programas, projetos, serviços, benefícios e 253

ações, tendo em conta as seguintes referências: vigilância social, PSB, e PSE, e a defesa social e institucional. Neste sentido, deve afiançar as seguintes seguranças:  I - ACOLHIDA: provida por meio da oferta pública de espaços e serviços para a realização da proteção social básica e especial;  II - RENDA: operada por meio de auxílios financeiros e de benefícios continuados, nos termos da lei, para cidadãos não incluídos no sistema contributivo de proteção social;  III - CONVÍVIO OU VIVÊNCIA FAMILIAR, COMUNITÁRIA E SOCIAL: exige a oferta pública de rede continuada de serviços que garantam oportunidades e ação profissional;  IV - DESENVOLVIMENTO DE AUTONOMIA: exige ações profissionais e sociais;  V - APOIO E AUXÍLIO: quando sob riscos circunstanciais, exige a oferta de auxílios em bens materiais e em pecúnia, em caráter transitório, denominados de benefícios eventuais para as famílias, seus membros e indivíduos.

No marco da constituição dessa base organizacional para a política de assistência social outras normatizações foram aprovadas e implementadas. Na sequência, apresentamos um quadro-resumo de tais normatizações.

254

Quadro 2 - Marco regulatório da assistência social nos governos do PT Normatização Instrumento de Características Aprovação Norma Operacional Básica Resolução Nº 269, Estabelece princípios e diretrizes nacionais para a gestão do trabalho no âmbito de Recursos Humanos (NOB- de 13 de dezembro do SUAS; princípios éticos para os trabalhadores da assistência social; equipes de RH\SUAS) de 2006, do CNAS; referência; diretrizes para a política nacional de capacitação; diretrizes nacionais para os planos de carreira, cargos e salários – PCCS; diretrizes para as entidades e organizações de assistência social; diretrizes para o cofinanciamento da gestão do trabalho; responsabilidades e atribuições do gestor federal, dos gestores estaduais, do gestor do distrito. Esse dispositivo decorreu de variados conflitos do governo com técnicos, entidades representativas e pesquisadores sobre a precarização do trabalho na área; Diretrizes para a Resolução Nº 237, Define as diretrizes para a estruturação, reformulação e funcionamento dos estruturação, reformulação e de 14 de dezembro Conselhos de Assistência Social. funcionamento dos de 2006, do CNAS; Conselhos de Assistência Social. Política de Tecnologia e Aprovada pelo Visa dar suporte logístico e se configura como recurso organizacional estratégico, Informação do MDS CNAS , em 2006; que por meio de ferramentas tecnológicas e de recursos de informações tornou-se estratégica para o SUAS; 255

Protocolo de Gestão Aprovada pela Estabelece procedimentos necessários para garantir a oferta prioritária de serviços Integrada de Serviços, Comissão socioassistenciais para as famílias do Programa Bolsa Família, do Programa de Benefícios, e Transferência Intergestores Erradicação do Trabalho Infantil e do Benefício de Prestação Continuada, de Renda Tripartite, em 2009; especialmente das que apresentam sinais de maior vulnerabilidade; Tipificação Nacional dos Resolução Nº109 do Contém os termos utilizados para denominar, de forma padronizada, os serviços Serviços Socioassistenciais, CNAS, 2009; ofertados de modo a evidenciar a sua principal função e os seus usuários; Lei Nº 12.435/2011 Sancionada pela Insere o SUAS no campo de regulamentação jurídica, isto é, no corpo da LOAS, Presidenta Dilma e visa assegurar a continuidade dos serviços, tornando o SUAS uma política de Rousseff em julho de Estado e não apenas de governo; 2011. Nova NOB-SUAS Resolução CNAS nº Visa aprimorar os mecanismos organizacionais do SUAS, os instrumentos de 33 de 12 de gestão, as diretrizes e normas de cofinanciamento. dezembro de 2012.

Fonte: Elaboração própria, com dados coletados na pesquisa 256

Essa apresentação dos documentos e marcos regulatórios fez-se necessária para abalizar o campo organizacional e institucional desenvolvido na política de assistência social a partir da aprovação da PNAS, dos anos 2000. A partir de agora procederemos em dois passos: primeiro, trabalharemos aspectos importantes para ratificar uma questão que vem norteando este capítulo que é o paralelismo na política de assistência social, demonstrando a incidência dessa lógica a partir do movimento simultâneo que ocorre nos governos Lula entre a implementação da política de assistência social, através da implantação do SUAS e a centralidade que vai sendo conferida aos programas de transferência de renda, com o intento de demonstrar que em última análise tratam-se de programas focalizados de “combate à fome e à pobreza”. O segundo consiste em tomar alguns elementos centrais presentes no marco regulatório da política de assistência social para problematizarmos seu significado e explicitar os pontos nodais em que se condensa o processo que estamos denominando de modernização conservadora da política de assistência social.154 O tema da “fome e do combate à pobreza” foi proeminente nas campanhas eleitorais do Presidente Lula, tendo larga importância na definição do próprio marketing de seus governos, tornando-se central na narrativa governamental em relação ao projeto de governo do petista. Desde o início dos governos do PT já estava claro que a pobreza extrema constituiria o eixo articulador da política social e, mais precisamente, da política de assistência social. Já na posse de Lula, no seu primeiro governo, em 2003, o Presidente era enfático: Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha [...] Por isso, defini entre as prioridades de meu Governo um programa de segurança alimentar que leva o nome de Fome Zero. (...) se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida (LULA da SILVA, em 2003).

De imediato, o programa Fome Zero tornou-se o carro-chefe da política de combate à pobreza no primeiro governo Lula. O Programa foi elaborado pelo Instituto de Cidadania, sob a coordenação de José Graziano da Silva,155 com a participação de representantes de ONGs, institutos de pesquisa, sindicatos, organizações populares, movimentos sociais e especialistas

154 É importante esclarecer que essa discussão não será esgotada neste capítulo, visto que o detalhamento mais preciso desse processo será feito no 4 capítulo, onde trabalharemos com dados que ajudaram a tornar mais clara e precisa essa hipótese.

155 José Graziano da Silva, é agrônomo de formação, professor Universitário da UNICAMP, e tem amplos estudos na área da segurança alimentar, desenvolvimento rural e da agricultura. Foi nomeado por Lula Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Atualmente é diretor geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). 257

vinculados à questão da segurança alimentar no Brasil. O Programa parte da concepção de que o direito à alimentação deve ser assegurado pelo Estado, e apresenta como principal objetivo a formulação de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional para a população brasileira (YASBEK, 2003). O Fome Zero visava, segundo o governo, articular políticas emergenciais de combate à fome, como programas de transferência de renda para famílias pobres, distribuição de alimentos entre outros, com políticas mais densas como geração de trabalho e emprego, alfabetização, incentivo à agricultura familiar. De acordo com Siqueira (2007) a proposta original do Programa Fome Zero sofreu mudanças substanciais ao tornar-se proposta do governo presidenciável de 2002, perdendo aspectos fundamentais que davam uma consistência mais abrangente ao programa em relação aos preceitos de universalização das políticas sociais. Tornando-se programa de governo no primeiro mandato Lula, o Fome Zero teve prioridades redefinidas, passando a ser formatado como uma “política de inclusão social” que deveria envolver toda a sociedade. O Fome Zero é uma política pública que visa à erradicação da fome e da exclusão social. É uma política porque expressa a decisão do governo de enquadrar o problema da fome como uma questão nacional, e não como uma fatalidade individual. É uma política pública porque, além do Estado, envolve toda a sociedade. Quando o presidente Lula disse que a missão de sua vida estaria cumprida, se ao final de seu mandato cada brasileiro tivesse acesso a três refeições diárias, ele não estava fazendo uma promessa, mas lançando claramente um desafio e estabelecendo a linha mestra de um ousado projeto de Nação. É por isto que, desde seu lançamento, o Fome Zero se tornou uma mobilização cívica, no qual a sociedade se articula com o Estado, que por sua vez aloca recursos humanos e financeiros com o objetivo de estender os direitos de cidadania aos milhões de brasileiros excluídos (FOME ZERO apud SIQUEIRA, 2007, p. 129).

Siqueira chama atenção ainda, para o fato de que, sem a concretização das políticas estruturais que propunha a proposta original do Fome Zero, o programa reproduz os principais aspectos do Comunidade Solidária. A estratégia para o Fome Zero contou com um aparato institucional mais abrangente e sistemático que o Comunidade Solidária,156 mas no limite ele trazia a marca tangente dos postulados neoliberais, pois estava pautado na focalização nos mais pobres, na sistematização de mecanismos que pudessem melhorar índices e indicadores quanto à saúde, educação e nutrição, além de claro, situar os benefícios em critérios de

156 O Fome Zero foi alçado à condição de carro-chefe da política social do governo Lula, angariando uma ampla estrutura no aparato do Estado, com a definição de uma secretaria exclusiva para sua execução. Ademais, contava com a atuação direta do presidente nas decisões estratégicas centrais do programa e na própria articulação com as entidades da sociedade civil, estando a ele vinculados todos os aspectos relativos ao programa. Além disso, a exigência do próprio presidente quanto a articulação dos demais ministérios do governo na efetivação do Fome Zero convergiam para uma envergadura mais ampla que o Comunidade Solidária. 258

elegibilidades atrelados ao mínimo fisiológico para sobrevivência. No mais, o Programa se encaixava na manutenção da estratégia da política de macroestabilidade econômica ao manter uma base de custeio baixo para os cofres públicos, contribuindo para assegurar o aprofundamento dos ditames do FMI para a boa “governança”157 (SANTOS JR., 2001). No que toca especificamente a nossa argumentação – ou seja, as características de paralelismo do Fome Zero em relação à política de assistência social – temos que, apesar de todo movimento de regulamentação da assistência social e de implementação do Sistema Único de Assistência Social, é tangente a centralidade e a dimensão assumida que o programa assume no governo federal, estando, inclusive sua gestão vinculada diretamente ao Gabinete Presidencial. Em primeiro lugar é importante pontuar o impacto e valor simbólico do programa em relação à possibilidade de constituição de direitos e democratização das políticas sociais. É evidente que o Fome Zero trouxe questões importantes para a cena do debate político ao polemizar e problematizar a questão da fome e da pobreza como objetos de intervenção pública, sob a ótica do direito. No entanto, sua direção e as estratégias fincadas para sua consecução davam espaço à reprodução de práticas históricas do poder público em relação à pobreza. Disso é elucidativo o fato de os benefícios viabilizados pelo programa não se constituírem em direito adquiridos, isto é, passíveis de reclamação jurídica; a forte presença das parcerias público-privadas; a vinculação do programa à figura do próprio presidente, tornando-o importante mecanismo de legitimação política perante as frações da população mais empobrecidas.158 Tais aspectos têm implicações sobre a constituição de direito em torno da política de assistência social ao tempo em que minimiza a importância de consolidação do seu aparato institucional no âmbito público. Ao arregimentar forças políticas importantes para governo Lula, em função do forte movimento de apelo à população, à mídia, a vários segmentos da sociedade civil organizada, ONGs, movimentos sociais, aos empresários em torno da

157 A ideia da “boa governança” figura no léxico conceitual dos organismos multilaterais, no âmbito das diretrizes impostas pelos ajustes neoliberais designando a eficiência para as condições e exercício do bom governo. Isto é, garantia de um governo eficaz quanto a questão de custo-benefício em relação às suas ações: fazer o melhor, com menos recurso possível.

158 “A política social governamental assume um caráter de política pessoal” e quem aparece ao povo como promotor desta modalidade de programa social “não é o Estado, e sim o Lula. E assim, as propostas governamentais implantadas como ações pessoais são uma das estratégias que desvinculam a política social como direito e pode levar à promoção nominal de um governante ou representante do governo. Para o projeto neoliberal este fato se torna apropriado, pois as análises da população circundam sobre os políticos e não sobre a política. E isso, obviamente, tem repercussões eleitorais, sobretudo no Brasil aonde não se vota em partidos políticos, propostas governamentais e sim em pessoas” (SIQUEIRA, 2007, p. 2013). 259

mobilização social em prol do combate à fome, o Programa Fome Zero contribuiu para diluir e minimizar a importância que a política de assistência social e o próprio SUAS teriam para garantia de direitos fundamentais. Neste sentido, o paralelismo não tem apenas uma dimensão prático-concreta, que se expressa em pulverização, sobreposição e/ou hierarquização de ações no âmbito de uma dada realidade a ser objeto de intervenção pública. Ele na verdade congrega um elemento teórico e ideopolítico que é também impactante sobre dada direção social na ação do Estado. Siqueira (2007) traz algumas impostações que ajudam a ratificar nossa ideia quanto a este primeiro ponto abordado. Ela faz inferências sobre a atuação de Frei Beto no Programa Fome Zero, tendo sido nomeado pelo Presidente Lula como conselheiro e assessor especial da presidência, com a finalidade de colaborar com o Fome Zero e o reforço ao “apelo” social em torno da questão da fome. Esta nomeação mostra o tom da política social do Governo Lula: o debate sobre a segurança alimentar muda de rumo e perpassa por discursos conservadores, seguindo a lógica do favor e do benefício; da psicologização da pobreza; do estímulo a doações, e do forte incentivo ao “solidarismo” e ações filantrópicas com forte apelo às questões religiosas (SIQUEIRA, 2007, p. 147).

No plano histórico concreto o paralelismo significa o reforço à dificuldade de consolidar a política de assistência social, no âmbito da seguridade social brasileira. Mendonsa (2012), faz referência a esse paralelismo, destacando que já nas discussões e deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social, na qual foi aprovada a PNAS, foram feitas moções de repúdio ao fato de o Programa Fome Zero está vinculado ao Gabinete Presidencial com parca institucionalidade de controle social. “Destacavam-se as exigências de que o Fome Zero e o Programa Bolsa Família fossem coordenados pelo MAS, negando a cultura de programas de assistência vinculados ao gabinete da presidência” (MENDONÇA, 2012, p. 150).

Os movimentos iniciais do governo Lula nesse terreno revestem-se de ambiguidades. A despeito da conquista de um Ministério próprio, a iniciativa do Fome Zero parecia desenhar-se, como o Comunidade Solidária, em mais uma estrutura paralela à política de assistência social, com a qual deveria manter “uma interface orgânica” (Cf. YASBEK, 2003:46). Essa ameaça já era vislumbrada e “atacada” pelo Setorial na “agenda” proposta para essa administração, na reunião de novembro de 2002 (publicada em março de 2003, quando era enfatizada a necessidade de abertura de um “grande portal de interface entre a LOAS e o Programa Fome Zero”. [...] A pretendida combinação não ocorreu, confirmando o paralelismo das ações [...] (MENDONÇA, 2012, p. 141-142).

260

A aprovação da PNAS e da NOB-SUAS que culmina na implantação do SUAS nos diversos municípios brasileiros é perpassada pelas contradições e limitações que essas práticas e direção política na condução da política social impõem, que configuram na reprodução de práticas históricas no campo da assistência social, como o paralelismo de ações, conforme viemos problematizando. A um só tempo esse paralelismo descentra o SUAS e suas prerrogativas. O Programa Bolsa Família (PBF) é criado no âmbito do Fome Zero, através da Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, condenando a estratégia central do “combate à fome”, através da transferência de renda direta condicionada. Neste único programa foram unificados os vários programas dispersos de transferência de renda que existiam no governo anterior. A consolidação do PBF, que assumiu proporções muito maiores do que toda a estratégia do Fome Zero, manteve-se na mesma condição de prioridade que o Fome Zero. O insucesso do Fome Zero sua crise e derrocada,159 entre 2003 e 2004, colocou o PBF no centro da política social brasileira.160 Quando falamos de lógica paralela e até mesmo concorrencial não atribuímos caráter negativo ao PBF, por exemplo. Não é por si só a existência do programa que causa constrangimentos à consolidação da política de assistência social, nos moldes de um sistema descentralizado, participativo e dotado de uma rede socioassistencial para atender as demandas de toda população que demanda os serviços. Essa centralidade conferida aos programas de combate à pobreza, sobretudo os de transferência de renda,161 como o PBF, é

159 “Problemas de coordenação largamente constatados pela imprensa, sem recursos suficientes e tendo seus projetos apropriados por outra estrutura, a Secretaria Executiva do Bolsa Família, que acabou incorporando o Cartão Alimentação, até então uma das propostas mais viáveis do MESA – Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar” (MENDONSA, 2012, p.143), manifestavam as expressões mais visíveis do ocaso do Fome Zero.

160 No último capítulo trataremos do desenvolvimento do Programa Bolsa Família e das dificuldades no “enfrentamento à pobreza”, bem como dos desdobramentos no Plano Brasil sem Miséria que aprofunda o padrão focalizado de intervenção na pobreza e reproduz a lógica do paralelismo no campo da assistência social.

161 Segundo Stein (2008) os programas de transferência de renda, também conhecidos como programas de rendas mínimas, ganham cada vez mais espaço central nas estratégias de “enfrentamento à pobreza na América Latina e até mesmo nos países de capitalismo central. A autora aponta que no contexto europeu o desenvolvimento dos modelos gerais de renda mínima “reflete a dispersão temporal em três ondas [...] na primeira, incluem-se as experiências desenvolvidas na fase expansiva do modelo de acumulação europeu e no processo de expansão dos Estados de Bem-Estar Social modernos como Dinamarca, Áustria, Reino Unido, Suécia, Alemanha, Finlândia, Holanda. Na segunda, as experiências são marcadas pela emergência de novas necessidades sociais, decorrentes da crise econômica, que impulsiona a implementação de medidas assistenciais emergenciais. A última fase, marcada pelas mudanças ocorridas em meados dos anos 1980, na qual os programas de renda mínima têm evoluído, em muitos países, dos tradicionais dispositivos assistenciais para as chamadas rendas mínimas de inserção, caracterizando-se pela convergência de dois direitos: o direito à renda – segurança econômica – e de apoio público para facilitar a inserção laboral dos beneficiários” (STEIN, 2008, p. 198). Nos países da América Latina, os programas de transferência de renda começaram a ser implantados no final dos anos 1980 para o início 261

conferida pela direção político-governamental, pela opção por uma dada modalidade de política social compatível com as necessidades “ fiscais” do Estado neoliberal, que em última instância são as necessidades de reprodução do capitalismo na periferia do capital. Essa lógica de paralelismo não deixa de se reproduzir no âmbito do movimento de modernização conservadora que estamos problematizando, na medida em que esse processo traz em seu cerne a própria centralidade do “combate à pobreza”. Desde modo, ratifica-se, simbólica e materialmente, a direção histórica do caldo conservador de limitar o campo da assistência social aos aspectos imediatos, à realidade empírica dos indicadores quantitativos da pobreza, ao pragmatismo de agir sobre a realidade imediata e o tecnicismo inerente a esse processo. O segundo passo é tratar de aspectos relacionados aos fundamentos teóricos da modernização conservadora da política de assistência social. Neste sentido, alguns autores (BEHRING, 2009; BOSCHETTI, 2005; COUTO, YASBEK e RAICHELLIS, 2010; RODRIGUES, 2009) alertaram para as armadilhas ideoteóricas do próprio texto da PNAS, que revestido de um viés conservador introduziu novos artifícios semânticos. Expressão disso são conceitos como “risco”, “vulnerabilidade social”, “exclusão social”, “território”, “vigilância socioassistencial”. Em que pese a influência da “teoria da Sociedade de Risco” de Ulrich Beck162 e Anthony Giddens,163 da própria noção de “desenvolvimento com liberdade”, de Armatya

dos anos 1990, sob orientação e financiamento do Banco Mundial e do BIRD. Entre os primeiros programas desse gênero no continente, a autora destaca: o Programa Beca Alimentaria (PRAF) na , em 1989; o Programa de Auxílio à Família em Honduras, 1990; o Programa de Educação, Saúde e Alimentação (Progresa) no México, 1997, Bono Solidário, Equador, 1998. Mas, no Brasil já existiam experiências do Distrito Federal e municipais como Campinas e Ribeirão Preto, já em 1995. Stein (2008) ressalta, entretanto, que foi nos anos 2000 que se intensificou a criação de novos programas de transferência de renda e a restauração dos já existentes. “Nicarágua – Red de Protección Social (2000); Costa Rica – Superémonos (2000); Colômbia – Família em Acción (2001); Brasil – Bolsa Escola (2001) e Bolsa Família (2003); Argentina – Jefes de Hogar (2002); – Chile Solidário (2002); Jamaica – Programa para El Progresso por médio de Salud y Educación (2002); Peru – Programa Juntos (2005); El Salvador – Red Solidária (2005); Uruguai – Ingresso Ciudadano (2005); República Dominicana - Programa Solidariedad (2005); Panamá – Red de Oportunidades (2005); Bolívia – Bono Escolar ‘Juancito Pinto’ (2006)” (STEIN, 2008, p. 202).

162 Ulrich Beck desenvolve sua “Teoria da Sociedade de Risco” para explicar as novas condições sócio-históricas vivenciadas pelas sociedades capitalistas, a partir da crise da década de 1970. Para ele, na sociedade contemporânea a produção de riquezas é acompanhada de uma série de riscos aos quais a sociedade e/ou determinados segmentos específicos podem estar sujeitos. Com a nova realidade posta por uma sociedade caracterizada pelo risco, as teorias clássicas da modernidade não dariam conta de explicar a nova realidade. Em suma, a sociedade de risco seria “[...] uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial e abrir caminhos para outra modernidade sem revolução, mas uma nova sociedade” (BECK, 2003, p.15). É, portanto, o medo permanente do risco que marca a sociabilidade capitalista que gera as possibilidades de “coesão social”. Portanto, a ação de governos, sociedade e empresas privadas é justamente trabalhar na direção da “gestão dos riscos”. Cf: BECK, U. A sociedade de risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010. 262

Sen,164 e sua “teoria das potencialidades”, claramente presentes nas normatizações e regulamentações que sedimentaram o amplo movimento de consolidação da gestão da política de assistência social, convém ao menos indicar os próprios equívocos ao tentar-se “copiar”165 o modelo do SUS para estruturação do SUAS. Quanto a este aspecto, Pereira (2007) traz alguns pontos importantes. A autora atesta que, ao tentar reproduzir o SUS, o Sistema Único da Assistência Social tomou como parâmetro um instrumento que não teve como referência as particularidades relativas ao campo da política de assistência social, impondo sérias complicações ao SUAS.

Como uma política setorial e universal como a da saúde, que obedece a protocolos internacionais gerais, poderá servir de espelho fiel para uma política intersetorial e particularista como a de Assistência, que não possui protocolos internacionais e cujos avanços teóricos, democráticos e cívicos restringem-se particularmente ao Brasil? Como justificar, na Assistência, a incorporação de um sistema que, na Saúde, emprega termos ou conceitos especializados, cuja conotação difere ou se antagoniza com o sentido dos mesmos no âmbito da Assistência, a saber: na Saúde, a assistência não é uma ação promotora, mas cuidadora ou reparadora; na Saúde, o que promove é a atenção, e não a assistência; e, na Saúde, o termo coletivo é muito mais consistente e valorizado do que o termo público que, na Assistência, é mais do que coletivo: é sinônimo de universalização (PEREIRA, 2007, p. 78-79. Grifos da autora).

Tomar como referência um determinado modelo de política social pode ser um mecanismo importante na estruturação de outra política social, mas esse processo condensa contradições e dificuldades que, se não forem feitas as devidas mediações acarretam no vício recorrente à ação estatal de enquadrar a realidade objeto de sua intervenção em moldes

163 Anthony Giddens pensa a sociedade contemporânea como “modernidade reflexiva”, em que os determinantes estruturais da sociedade clássica industrial não estariam mais no cerne da sociedade atual, como a luta de classes, as “ideologias de direita ou esquerda”, as condições do próprio assalariamento assumiram outra conotação. Nesse contexto, as transformações ocorridas com a “modernidade” estariam agora expressando consequências drásticas que compõem um cenário de risco permanente, para os quais os antigos caminhos propostos – sejam de direta (neoliberais) ou de esquerda (a social democracia clássica) não seriam capazes de enfrentar os novos desafios. Nesta direção, propõe a famosa “terceira via”, defendida por ele como alternativa perante o socialismo e o liberalismo radical. Cf. ______. Autodissolução do risco da sociedade industrial: que isso significa. In: LASH, S.; GIDDENS, A.; BECK. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo, Ed. UNESP, 1997; GIDDENS, A. A terceira via. Rio de Janeiro: Record, 1999.

164 Armatya Sen parte do princípio que a sociedade atual é marcada pela imensa produção de riquezas, mas com imenso contingente populacional vivendo condição de pobrezas e privações. Para Sen, o fundamento dessas necessidades encontra-se principalmente na impossibilidade desses sujeitos agirem com liberdade. Sua concepção de pobreza não se relaciona apenas ao baixo nível de renda, “mas como a privação de capacidades básicas que envolvem acesso à bens e serviços” (p. 124). Desse modo, o combate à pobreza se faria “mediante a ampliação das capacidades e expansão das liberdades. (p. 125). Cf: SEN, Armatya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.

165 Essa assertiva não configura um juízo de valor depreciativo quanto ao processo árduo de construção do SUAS, que contou com movimentação política e social legítima, cujo objetivo seria contribuir com a construção e solidificação da política de assistência social no país. Entretanto, tal legitimidade não isenta o processo de equívocos. 263

previamente estabelecidos que muitas vezes não enfrentam as particularidades de cada contexto concreto. Também não é nenhuma novidade ao Estado burguês – que em última análise fundamenta sua ação na ciência burguesa fragmentada e compartimentalizada – adequar as ações no campo das necessidades sociais coletivas aos procedimentos de requisitos biológicos. Em suma, o que a autora mostra é que tal como se processa no âmbito da racionalidade funcionalista de parametrar os fenômenos sociais aos fenômenos naturais, essa tentativa de sistematizar e organizar os serviços no âmbito da assistência social a partir da estruturação que seguem os serviços de saúde incorre em processos conservadores, que mesclam conceitos inconciliáveis e condutas incoerentes (IDEM). Outra questão problemática, levantada por Pereira (2007), quanto a essa tentativa de equiparação do SUAS com o SUS diz respeito à divisão dos níveis de proteção social em baixa, média e alta complexidade, uma vez que no SUS essa divisão procede da codificação internacional das patologias e de suas formas de tratamento. Assim, a política de assistência social, uma vez que não trabalha com patologias, não deveria identificar as demandas e estruturar os serviços a partir de tais conceitos. Essas adequações impactaram a base teórica e a direção da estruturação da PNAS e do SUAS. Conforme já sinalizamos, apesar de o marco normatizador da assistência social tomar como parâmetro o SUS, é importante elucidar as origens mais profundas de tais influências, as quais se encontram ancoradas nas produções teóricas de Ulrik Beck (risco)166, Robert Castel167 (vulnerabilidade e exclusão), Amartya Sen (potencialidades). Conforme atesta Alvarenga (2012), estes conceitos foram assimilados e tornaram-se orientadores da PNAS de modo não homogêneo ou consensual. Ademais, sua entronização no campo normativo da política de assistência social não obedeceu a uma leitura profunda e consistente dos autores que teorizam acerca desses conceitos. Segundo a autora, de fato, a incorporação desses conceitos se deu muito em função de estar em voga em outras políticas sociais com a saúde, conforme destacamos, a educação, os direitos da criança e do adolescente.

166 Vide nota 156.

167 Robert Castel centra suas análises no que ele denomina como crise da sociedade salarial, em que o assalariamento não continua sendo o cerne da “integração social”. As transformações da sociedade industrial culminaram na erosão das formas de pertencimento clássicas, criando populações vulneráveis e possíveis processos de “desfiliação”. A partir deste contexto surge a “nova questão social”, com o fim da sociedade salarial. Nessa sociedade pós-industrial, a crise do “Estado Providência” a flexibilidade e a generalização da precarização, bem como os sofisticados processos de trabalho provocariam a existência de uma camada de trabalhadores “sobrantes”. Cf. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Robert Castel; Tradução de Iraci D. Poleti. Editora Vozes. Petrópolis, RJ, 4º ed., 1999. 264

Assim, é importante frisar que quando afirmamos a influência desses autores na formulação da PNAS não estamos dizendo que houve estudos sistemáticos, pesquisas bibliográficas para fundamentar a PNAS. Na verdade, nem mesmo há no texto da PNAS uma explicitação clara e consistente destes conceitos que permita balizar concretamente essa fundamentação. Na verdade, trata-se de um processo mais amplo e complexo que diz respeito a própria constituição de uma “nova pedagogia da hegemonia”, como demarcou Neves (2005), ao discutir sobre as teorias que passam a embasar as produções/ações das organizações orgânicas do capital e seus intelectuais orgânicos, no cerne da luta pela construção do consenso, processo fundamental à hegemonia burguesa no quadro da crise do capital. Trata-se da atuação incisiva e da influência substancial das agências multilaterais na difusão de ideias, valores, conceitos, nomenclaturas, estratégias, enfim, uma nova narrativa, que apesar de apresentar novos termos, condensa um conteúdo conservador que converge para declarar falidas as explicações críticas das relações sociais, cuja centro de análise são as relações entre as classes fundamentais do capitalismo, fundando-se na perspectiva da chamada “terceira via”. A implementação das propostas inspiradas em tais enunciados, como exposto a seguir, requer a renovação das funções do Estado e da sociedade civil que é teorizada a partir da chamada “terceira via”, como estrutura de pensamento e prática política que, ante o “fim do socialismo” e da “luta de classes”, está “situada entre a direita e a esquerda”. Do que se pode concluir, ao que parece, que a terceira via comparece como negação da luta de classes e da possibilidade do socialismo (ESCURRA, 2015, p. 52).

Sendo a influência desses organismos internacionais, cujos fundamentos teóricos encontram-se, sobretudo, na direção da chamada “terceira via”, marcante sobre os países periféricos, não podemos desvincular a própria construção teórica da PNAS desse universo teórico. É neste terreno, que nos anos 2000 os organismos internacionais e/ou agências multilaterais passa a dar ênfase também à “teoria do risco social”, que tanto quanto à perspectiva da terceira via reproduz a “visão conservadora, a ideia de naturalização da forma de organização social corrente e a noção de triunfo do capitalismo” (IDEM, p. 42). Em seu estudo, que contou com diversas entrevistas com os principais sujeitos governamentais, militantes e teóricos que participaram diretamente da produção da PNAS, Alvarenga (2012) traz alguns elementos e falas que lançam luz sobre esse processo. Sposati explicitou que, entre os termos discutidos, risco e vulnerabilidade foram escolhidos como orientadores das ações da assistência social. Todavia não consta na Ata explicações mais aprofundadas sobre a inscrição destes termos no texto da PNAS. De todo modo, fica claro nas falas de Aldaíza Sposati e Dirce Koga que riso e vulnerabilidade fazem parte da nova concepção da política proposta, são relevantes 265

para identificar as demandas, os usuários e, consequentemente, para conduzir as ações a serem assumidas pela assistência social. Embora algumas pessoas tenham levantado a necessidade de discutir as concepções das expressões presentes na PNAS, e que o próprio MDS tenha colocado risco e vulnerabilidade como desafios conceituais, debater os conceitos nos encontros do CNAS não fazia parte dos objetivos (IDEM, p. 104).

A existência de divergências entre os próprios colaboradores168 do Ministério quando ao significado dos termos culminou na opção em não explicitar a concepção atribuída aos mesmos. Ao tematizar quanto a forma como estes termos foram parar no texto da PNAS, Alvarenga aponta que os entrevistados indicam as experiências municipais dos serviços de assistência social, como São Paulo169 e, enfaticamente, a atuação de Aldaiza Sposati ao trazer os termos na discussão da PNAS e as compilações da política de saúde, em que já vigorava concretamente tais termos. A pesquisa indica ainda a influência do Banco Mundial, o pensamento francês, com destaque para Durkhein e a ideia de coesão social. Mas, como sinalizamos, essa apropriação não se deu sistemática e propositalmente, como informa uma das entrevistadas do estudo de Alvarenga (2012). Maria Luiza Rizzote170 acredita que se houve mesmo a apropriação de alguns autores europeus e também de Armatyan Sen, ela não aconteceu propositalmente. Mas a influência seria justificável, visto que esses autores são os que respondem às necessidades que aparecem no cotidiano. Falar em perdas reais atreladas as expressões da questão social é mais visível do que tratar de seu cerne – a exploração do capital sobre o trabalho –, então esses autores europeus acabam tendo mais visibilidade no campo da assistência social do que o próprio Marx (ALVARENGA, 2012, p. 110).

Ainda que tenhamos descrito os principais pontos da PNAS, vale destacar alguns trechos onde aparecem estes conceitos. Essa discussão se insere na nossa argumentação como sendo parte do que denominamos de modernização conservadora na medida em que tais teorias, termos e conceitos oferecem um arsenal sofisticado de um novo viés político-teórico,

168 Trata-se de intelectuais e técnicos requisitados pelo MDS para assessorar e auxiliar no processo de construção da PNAS, como a própria Aldaiza Sposati, Maria Luíza Rizzote, Dirce Koga, Simone Albuquerque, Márcia Lopes, Berenice Rojas Couto, Maria Carmelita Yazbek, entre outros.

169 Sobretudo nas experiências realizadas na gestão petista da Prefeita Marta Suplicy (2001-2005). É importante notar a proeminência do Serviço Social na construção da PNAS e na própria constituição dos espaços de gestão nacional da política. Um dos pontos marcantes para desenvolvimento desse processo foi a gestão de Aldaíza Sposati ao assumir a Secretaria de Assistência Social (SAS) de São Paulo, de 2002 a 2003. Essa experiência municipal em uma grande capital, bem como a histórica atuação de Sposati na PUC e em espaços da sociedade civil importantes, como o Fórum Municipal de assistência social de São Paulo conferiu legitimidade para sua atuação substantiva na construção da política de assistência social brasileira. Medonsa (2012) atesta que muitos assistentes sociais, em sua maioria professores e pesquisadores de Serviço Social, majoritariamente advindos da PUCSP conduziram a reordenação da política de assistência social na esfera federal, como: Ana Lígia Gomes; Beatriz Paiva; Luziele Tapajos; Márcia Lopes, Marcia Pinheiro; Maria Luiza Rizzotti.

170 Assistente social, doutora em Serviço Social pela PUCSP, professora do Curso de Serviço Social da UEL, militante na área da Assistência Social. Esse trecho citado faz parte das análises feitas por Mirella Souza Alvarenga, em sua Dissertação de Mestrado, na qual teve a oportunidade de entrevistar Maria Luiza Rizzote. 266

assentados na perspectiva da “terceira via”, da teoria dos riscos”, cuja narrativa central visa fornecer um novo léxico semântico e conceitual às novas questões postas pela modernidade reflexiva, ou sociedade pós-tradicional. No campo da assistência social termos considerados antiquados, obsoletos e pejorativos como carência, necessitados, desamparados são substituídos por termos e noções que são considerados mais apropriados à nova conjuntura da sociedade em que os antigos problemas relacionados às relações de classe, às demandas do trabalho industrial assalariado estariam supostamente superados, requisitando novas formas de abordagem, como a própria noção de risco e vulnerabilidade, empoderamento, desenvolvimento, capacidades, território, entre outros. Diante da intensificação das contradições da sociabilidade burguesa, há o investimento de intelectuais acadêmicos e dos organismos internacionais em formular conceitos e orientações que legitimem um novo modelo de proteção social, mais adequado às instabilidades da acumulação capitalista, direcionado ao enfrentamento de vulnerabilidades sociais e riscos sociais, que evidenciam as incapacidades de alguns segmentos da população (OLIVEIRA,2014, p. 50).

Vejamos no texto da própria PNAS como essas questões aparecem, corroborando nossa reflexão sobre a influência da nova narrativa do capital no que diz respeito à proteção social e o trato à pobreza.

Constitui o público usuário da Política de Assistência Social, cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social. [...] A proteção social básica tem como objetivos prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras). [...] Os serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica deverão se articular com as demais políticas públicas locais, de forma a garantir a sustentabilidade das ações desenvolvidas e o protagonismo das famílias e indivíduos atendidos, de forma a superar as condições de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial. [...] A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras (PNAS, 2004, ps. 33; 34; 35; 38). 267

Conforme se observa, as noções de risco, vulnerabilidade e desenvolvimento de potencialidades dão suporte a pontos importantes que estruturam a PNAS, expressando a influência das abordagens teóricas que marcam a reformatação dos sistemas de proteção social, irradiadas pelos organismos internacionais, donde a pobreza aparece como “risco em potencial”. Estes organismos internacionais de desenvolvimento propõem um sistema de proteção social pautado em uma nova “engenharia social”, voltada para a administração da pobreza, para o controle dos conflitos e dos problemas sociais que potencialmente podem desestabilizar a sociedade (OLIVEIRA, 2014, p. 49).

Logo, não é nenhum pouco desprezível as implicações prático-concretas que tais termos acarretam à política de assistência social que visa ser materializada no SUAS. Tracemos então algumas questões de problematização quanto a estes aspectos. Não concordo com essa tese da vulnerabilidade e do risco. Utilizamos uma terminologia estranha ao projeto ético-político profissional e que se referencia em autores/as que estão no campo da social-democracia, no limite da emancipação política. Então, tenho essa crítica à política nacional de assistência. Entendo que ela é um documento institucional e que há limites para a incorporação de uma perspectiva mais interessante. Ela tem um papel histórico, mas talvez esteja na hora de dialogarmos e procedermos a algumas reformulações numa direção um pouco mais radical, digamos assim (BEHRING, 2009, p. 93).

Estes termos requerem problematização na medida em que trazem à PNAS uma direção social específica que ao fim e ao cabo estabelecem um padrão de proteção social que acaba por reproduzir o conservadorismo liberal, conforme alerta Miguel (2013): A estrutura subjacente de proteção social, enquanto Gestão de Risco Social traz consigo uma noção de proteção social liberal, responsável por criar uma rede de proteção social focalizada em grupos e indivíduos mais pobres, oferecendo-lhes um conjunto de ações que potencializem a formação de capital humano através dos ativos e o desenvolvimento humano (MIGUEL, 2013, p. 125).

Essa direção da política de assistência social converge para a focalização e centralização de formas de intervenção que visam intervir estritamente nas situações consideradas mais problemáticas e acirradas, no limite, situações de “exceção” que podem oferecer potencial disrruptivo para a manutenção das relações sociais. Inserido num movimento mais amplo da sociedade capitalista, essa direção reproduz formas conservadoras de intervenção face às necessidades sociais.

Os fundamentos teóricos e políticos observados na política de assistência social corroboram com uma determinada linha de raciocínio que delineia a compreensão dos fenômenos sociais no âmbito do movimento conservador, antirracionalista, que vem avançando significativamente em todo o mundo desde a década de 1970, ao 268

negar a luta de classes e as próprias classes sociais que estão na base do conflito e contradição do capitalismo. Essa tendência escamoteia e coloca em segundo plano os fundamentos desse confronto, que se encontra na base dos conflitos e contradições do próprio capitalismo (MIGUEL, 2009, p. 145-146).

Apesar de não poder esperar, de um documento institucional oficial do governo, uma discussão crítica e profunda na direção de explicitação dos conflitos de classe que sedimentam as relações sociais no capitalismo, a ausência de uma mínima problematização ao movimento que determina as condições sociais nas quais a PNAS visa atuar impõe limitações tangentes de alcance progressista para a política de assistência social.171 Não obstante, essa realidade seja camuflada sob o discurso de que esses novos padrões de intervenção social são possibilitadores de ampliação e melhoria do acesso aos serviços e benefícios sociais. Podemos observar que o SUAS constrói-se alicerçado em torno do discurso da ampliação e universalização dos direitos, e incorporam contraditoriamente, os referenciais liberais-conservadores de risco social, vulnerabilidades e exclusão social, que reduz os objetivos últimos da política à administração e a gestão dos “riscos sociais” perante os segmentos populacionais em situação de “vulnerabilidade” (IDEM, p.144).

A própria definição de níveis de proteção social já traz alguns problemas. Pereira (2007) questiona o fato de que no texto da PNAS tenha-se optado por manter a definição da assistência social como política de “proteção” em vez de seguridade, conforme definição da própria Constituição Federal de 1988. Boschetti (2005), por sua vez, ressalta que a concepção de assistência social que visa ser materializada nas formas de proteção social básica e especial (média e alta complexidades) requer situar estas formas de proteção no conjunto de proteções previstas pela seguridade social. Esta é, pois, uma condição indispensável para não incorrer no equívoco de conceber e operacionalizar uma política de assistência social desarticulada das demais políticas que compõem a seguridade social. Se assim não ocorrer, incorremos no equívoco de identificá-la como dotada de exclusividade e como se pudesse por si só dar conta de inúmeras situações que as expressões da questão social impõem às formas interventivas estatais. Neste sentido, a referida autora aponta que, na implantação da proteção social básica, “é um desafio do SUAS buscar articulação com a proteção social garantida pela saúde, previdência e demais políticas públicas, de modo a estabelecer programas gerais e

171 Sobretudo, em função de um governo cuja filiação histórico-política apontava para uma direção mais progressista. No entanto, a própria coalização política que levou o PT ao executivo federal já sinalizava para uma guinada a vieses paliativos em face da realidade socioeconômica do país, em detrimento de análises e reformas estruturais. No mais, a direção assumida pela PNAS, apesar dos avanços que trouxe, era expressão da própria forma de compreender, explicar e intervir na questão social sob um governo petista, a partir da conciliação de classes. 269

preventivos” (BOSCHETTI, 2005, p. 13). No que se refere à questão da proteção social especial, a sua definição estaria sustentada na categoria “exclusão social” e, assim,

cabe ao SUAS o desafio de explicitar o sentido e a relação entre desigualdade social, pobreza, exclusão e as ações que integram cada uma das políticas da seguridade social, de modo a não atribuir à assistência social o trabalho e o objetivo hercúleo e impossível de responder a todas as situações de exclusão, vulnerabilidade, desigualdade social. Estas são situações que devem ser enfrentadas pelo conjunto das políticas públicas, a começar pela política econômica que deve se comprometer com a geração de emprego e renda (BOSCHETTI, 2005, p. 13).

Couto, Yasbek e Raichellis (2010) chamam atenção para a ausência do debate sobre classe social no interior da política de assistência social. Apesar de novas denominações e da definição do público a que se destina a política de assistência, existe uma imprecisão importante quando a posição que estes sujeitos ocupam no âmbito da produção social. Quem é esse usuário do ponto de vista de sua inserção na sociedade de classes? Sua condição de sujeito pertencente à classe que vive do trabalho é pouco problematizada, destacam as autoras. Este tema é também problematizado por Behring (2009a). Esclarece que a PNAS padece de ausência de fundamentação na questão social, na compreensão da relação capital trabalho, o que torna a realidade uma abstração. A análise situacional da PNAS parte da população em geral e não da determinação fundamental da inserção no mundo de necessidades, numa lógica na qual o acesso aos bens e serviços socialmente produzidos no mercado depende da venda da força de trabalho por parte da maioria da população. [...] O corte da análise situacional é o da renda relacionada ao território, não do trabalho, com o que se deixa de pensar a proteção social como um sistema amplo, relacionado as demais políticas de seguridade, em especial a previdência social (BEHRING, 2009a, p. 11).

Parece-nos que esse deslocamento de definição dos usuários do contexto das relações de classes, que ocorre na formulação da PNAS, se insere na perspectiva de forjar, para o campo teórico da assistência social, um viés considerado pela narrativa governamental e pelos organismos internacionais/agências multilaterais, mais apropriado à sociedade contemporânea. Na medida em que, para os teóricos que fundamentam as análises e recomendações destas agências, com claras influências sobre o Brasil e vários outros países da América Latina, a discussão de classe é considerada ultrapassada, e em que própria fundamentação que faz jus à esta dimensão das relações sociais de produção é considerada coisa de um passado que não se aplica mais à realidade considerada por eles como “pós- salarial, seria anacrônico e ultrapassado recorrer a tais categorias teóricas para explicar a realidade atual. 270

Ao introduzir termos e conceitos considerados mais adequados e contemporâneos à situação atual, como “territórios vulneráveis”, “situação de risco”, “exclusão social”, “vulnerabilidade”, entre outros, a PNAS acaba por reproduzir o conservadorismo de delimitar as “situações-problema” nos próprios usuários, deixando em obscuro as condições estruturais que demarcam as situações concretas. Um elemento do mesmo modo considerado como avanço e parametradora de uma nova perspectiva mais moderna para organização e implantação das instituições de realização dos serviços e benefícios socioassistenciais é a chamada territorialização. Essa diretriz é afiançada pela PNAS como de suma importância para o novo desenho proposto para o SUAS. De fato, a implantação dos chamados “equipamentos sociais” como os CRAS e CREAS em espaços e localidades periféricas, próxima aos usuários da política pode ser considerado um fator importante para avanço da consolidação do SUAS. No entanto, padecendo de uma fundamentação e da precisão do sentido e direção que essa territorialização deve assumir no âmbito da organização dos serviços socioassistenciais, ela pode acabar por reproduzir estigmatização e segregação, potenciando “ações que reforçam territórios homogêneos de pobreza, que podem fomentar estigmas e imagens negativas por parte da sociedade e da própria população moradora em relação aos denominados ‘territórios vulneráveis’” (COUTO, YASBEK, RAICHELLIS, 2010, p. 51. Grifos das autoras). A dimensão territorial na qual se ancora a organização do SUAS deveria possibilitar uma oferta de serviços mais próximos aos cidadãos. Ou seja, no seu espaço cotidiano, superando a histórica distância entre as populações dos bairros mais pobres e as instituições públicas.172 Entretanto, é preciso superar a acepção vigente de avaliações minimalistas e soluções localistas, quando, na verdade, o “objeto de intervenção” para o qual se direciona a assistência social – a pobreza absoluta, mais especificamente – não é decorrente de aspectos exclusivos das localidades. Estes particularizam as expressões da pobreza nos diferentes territórios, mas o fenômeno da pobreza está relacionado à dinâmica societária capitalista. Esse limite não se registra apenas no princípio da territorialização, mas na PNAS e no complexo jurídico normativo desta política e em outros arranjos governamentais.

172 Outra variante da territorialização nas políticas públicas diz respeito à possibilidade de formulação de diagnósticos locais orientadores das ações públicas. Ainda que a estratégia investigativa da realidade seja uma dimensão relevante para as práticas profissionais, a efetividade de seus resultados depende de outras instâncias.

271

Termos como equidade,173 empreendedorismo174 e sustentabilidade175 também compõem o rol das abordagens e noções que se dizem capazes de dar maior organicidade e modernizar a política de assistência social.176 Aparecem enfaticamente ligados à perspectiva da inclusão produtiva, defendida como importante mecanismo de enfrentamento à pobreza para contribuir com o “fim da dependências” das pessoas em relação à política governamental. Essas ideias aparecem como verdadeiro mantra ao se sistematizar e especificar o que são e quais as funções dos CRAS, por exemplo.

173 Historicamente, equidade está no cerne das lutas em prol da definição de princípios norteadores de política e ações no campo da proteção social, que visam assegurar igualdade e justiça, na direção de potencializar o alcance de tais direitos/ações às camadas mais desfavorecidas em função de questões econômicas, sociais, políticas e culturais. “No século 21, colocam-se novos campos de confronto para o enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas, jurídicas, culturais, políticas e a constituição da universalidade de acesso que respeite as diferenças e, com ela, a construção do direito à equidade” (SPOSATI, 2011, p.105). No entanto, a despeito dessa acepção original nos campos das lutas por reformas sociais, o termo passou a fazer parte do vocábulo neoliberal e das perspectivas de focalização, na medida em que utilizam o pretexto de garantia de equidade para atacar as políticas sociais universais, justificadas sobre o argumento de que elas não atingem aqueles que mais necessitam e daí a investida em favor da focalização. Exemplo dessa apropriação do conceito pelas frações dominantes pode ser encontrado no não casual Documento do Grupo Banco Mundial, lançado em 2006, intitulado “Desenvolvimento e equidade”. Para o Banco Mundial a “equidade não significa igualdade de renda, de propriedade e, até mesmo, de situação de saúde ou qualquer outro efeito específico. Pelo contrário, equidade significa a busca de uma situação na qual as oportunidades abertas aos indivíduos sejam iguais, ou seja, na qual o esforço pessoal, as preferências e a iniciativa [...] sejam as responsáveis pelas diferenças entre as realizações econômicas das pessoas” (MARANHÃO, 2009, p. 251).

174 Empreendedorismo é um termo muito recorrente no meio empresarial, nos cursos e pesquisas de administração de empresas. Designa a capacidade implementar novos negócios, geri-los e torná-los lucrativos. Empreender, portanto, seria a capacidade individual de investir numa ideia e ser capaz de executá-la com eficiência e eficácia. No contexto da crise do capital e a sua ofensiva restauracionista, o termo empreendedorismo tem se alastrado no campo das políticas de fomento ao trabalho e geração de renda, na mídia, em organizações da sociedade civil e ONGs de um modo geral como a grande alternativa de trabalho face ao contexto de crise. O termo, é, portanto, muito caro ao léxico das ideologias orgânicas do capital e visa legitimar práticas precarizadas e informais de trabalho como grandes alternativas não apenas de sobrevivência imediata, mas como uma opção muito mais interessante do que o próprio trabalho formal. Especificamente, no campo da ação pública-estatal o empreendedorismo compõe um rol de alternativas cada vez mais sólidas às políticas de trabalho formal, visto a incapacidade de geração desta modalidade de ocupação em função do quadro dramático do capitalismo contemporâneo. Adentra outros campos da política social, em especial à política de assistência social via projetos de geração de trabalho e renda, capacitação profissional, sobretudo nos eixos de inclusão produtiva do Programa Bolsa Família e do Plano Brasil sem Miséria.

175 A discussão da sustentabilidade remete, orginalmente, às discussões acerca dos processos relativos ao meio ambiente face a crise ecológica que assola o mundo. No contexto de destruição esmagadora dos recursos naturais, sobretudo pela forma social da produção capitalista, sociedades de diferentes países, através de pesquisadores, universidades, movimentos sociais vêm desencadeando a luta em prol de formas de produção, moradia e vida mais sustentáveis, cujo impacto sobre a natureza possa ser minorado. Mais amplamente, o conceito de sustentabilidade relaciona-se aos projetos, ações, medidas que sejam sustentáveis, ou seja, que tenham capacidade de produzir e reproduzir com o menor impacto possível, social, ambiental e econômico. Assim, a ideia passa a compor o léxico dos programas, projetos sociais a fim de incentivar a iniciativas dos próprios usuários que sejam sustentáveis, isto é, cada vez menos dependentes da intervenção pública.

176 Esse processo não é exclusivo à política de assistência social, pois estes termos aparagem nas narrativas dos mais diversos campos das políticas sociais, como a saúde, a educação, trabalho e meio ambiente. Mais que isso, são termos que compõem as mais recentes abordagens teóricas que visam dar respostas aos chamados problemas da sociedade contemporânea, para os quais oferecem respostas no nível micro e individual. 272

Realiza, ainda, sob orientação do gestor municipal de Assistência Social, o mapeamento e a organização da rede socioassistencial de proteção básica e promove a inserção das famílias nos serviços de assistência social local. Promove também o encaminhamento da população local para as demais políticas públicas e sociais, possibilitando o desenvolvimento de ações intersetoriais que visem a sustentabilidade, de forma a romper com o ciclo de reprodução intergeracional do processo de exclusão social, e evitar que estas famílias e indivíduos tenham seus direitos violados, recaindo em situações de vulnerabilidades e riscos (PNAS, 2004, p;35-36).

Estes termos estão em plena consonância com as designações do Banco Mundial e sua agenda para a política social dos anos 2000, que são proclamadas como ideias inovadoras e capazes de trazer resultados mais eficazes do que aquilo que passa a ser considerado como sistema de proteção inadequado, ultrapassado, obsoleto e insustentável, isto é, os sistemas de seguridade social pautados no princípio da universalidade. No debate ‘moderno’ – aonde vem se constituindo uma espécie de ‘novo consenso’ – se prega a ‘auto-sustentabilidade’ e o ‘empreendedorismo’ para os pobres: depender do Estado é visto como algo ‘negativo’. Essas idéias reforçam – de maneira perigosa, irresponsável e hipócrita – a ideologia neoliberal de que as ‘pessoas e comunidades’ são as responsáveis pela resolução dos seus próprios problemas, tratando a intervenção do Estado como algo ‘paternalista’ (SOARES apud GUIMARÃES, 2009, p. 90).

A noção de equidade, amplamente difundida por essa nova construção do consenso177 também aparece de modo central na PNAS, compondo até mesmo um dos objetivos da política conforme pode se confirmar a seguir: “ Contribuir com a inclusão e equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural” (PNAS, 2004, p. 33). O uso do termo é aplicado em verdadeira consonância ao significado atribuído e difundido pelo Banco Mundial e em última análise significa focalização nos mais pobres, de modo a garantir “melhores oportunidades” aos que se encontram em condições menos favoráveis para superar a condição de pobreza. Um aspecto amplamente difundido para as políticas sociais nos últimos anos sem dúvida é a definição de indicadores e sistema de monitoramento. A PNAS não ficou imune a

177 A construção do consenso é um dos processos político-pedagógicos e culturais mais indispensáveis para manutenção da hegemonia de uma dada classe social. Ela se realiza mediando processos complexos que se condensam em uma “pedagogia da hegemonia”, termo cunhado por Lúcia Maria Wanderley Neves, a partir das teorizações de Gramsci sobre a hegemonia. “A nova pedagogia da hegemonia é sinônima do exercício da dominação, nos anos finais do século XX e anos iniciais do novo século, estabelecida nas formações sociais centrais e dependentes, sendo que sua efetividade decorre da legitimidade das teorias que sustentam e da permanente atuação de novos intelectuais orgânicos do capital responsáveis por sua difusão. Uma das principais características do bloco histórico que se forma a partir da nova pedagogia da hegemonia, envolvendo a formulação de novas teorias, a formação de novos intelectuais orgânicos e a difusão pedagógica dos novos consensos, é o realinhamento ideológico de teóricos e forças políticas nas relações sociais e de poder” (MARTINS e NEVES, 2010, p. 25). 273

esse processo, entronizando a definição de “vigilância social” como um dos fatores considerados mais inovadores para o campo da assistência social.

Vigilância Social: refere-se à produção, sistematização de informações, indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social que incidem sobre famílias/pessoas nos diferentes ciclos da vida (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos); pessoas com redução da capacidade pessoal, com deficiência ou em abandono; crianças e adultos vítimas de formas de exploração, de violência e de ameaças; vítimas de preconceito por etnia, gênero e opção pessoal; vítimas de apartação social que lhes impossibilite sua autonomia e integridade, fragilizando sua existência; vigilância sobre os padrões de serviços de assistência social em especial aqueles que operam na forma de albergues, abrigos, residências, semi-residências, moradias provisórias para os diversos segmentos etários. Os indicadores a serem construídos devem mensurar no território as situações de riscos sociais e violação de direitos (PNAS, 2004, p. 39-40).

Entendemos que esse termo – tornado uma espécie de jargão na área – carrega imprecisões e dubiedades que podem contribuir para reprodução de moldes conservadores de controle da pobreza. “Esse termo “vigilância” incomoda-me profundamente, porque isso não significa a quantificação e o conhecimento do universo dos/as usuários/as da assistência, mas o controle dos pobres e que agora se traduz até em choque de ordem” (BEHRING, 2009, p. 94). A despeito da necessidade histórica de sistematização do trabalho no âmbito da política de assistência social e da necessidade legítima de um sistema de pesquisa e monitoramento da realidade, com vistas a delimitação dos serviços mais adequados às demandas dos usuários, a forma como a “vigilância social” está delimitada na PNAS abre flancos a formas de controle da pobreza, além de contribuir para tecnificação dos serviços. Estes mecanismos se inserem fortemente na estratégia de tecnologia da informação que se tornou um dos grandes vetores da modernização conservadora da assistência social. Não que a constituição de mecanismos tecnológicos para construção de informações carregue em si mesmo aspectos conservadores, mas na medida em que esta política de gestão da informação torna-se um importante aparato para construção de um arsenal de informações que permite ao governo amplo conhecimento e possibilidade de manuseio de um rol de dados da população mais empobrecida, tal mecanismo pode se tornar meio de controle dos pobres. Nisto se inserem alguns procedimentos e mecanismos instrumentais como o SUAS- WEB, Cadastro Único, Censo-SUAS entre outros dispositivos técnicos-operacionais que operam a modernização no campo da assistência social, mas que convergem na direção do “controle dos pobres”, mecanismo recolocado nessa nova investida conservadora. Destes aspectos mais práticos da modernização conservadora, trataremos no 4º Capítulo, onde enfatizaremos o Plano Brasil sem Miséria, os aspectos do paralelismo que ele 274

carrega e os próprios aspectos de modernização conservadora que o conjunto desse mecanismo empreende.

275

4 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NOS GOVERNOS PETISTAS: paralelismo, modernização e o fetiche da gestão

Ocupamo-nos, ao longo dos capítulos anteriores, de desenvolver uma análise eminentemente teórica acerca do desenvolvimento capitalista, pensando suas particularidades no Brasil e os mecanismos acionados no governo petista para fazer frente à crise estrutural do capital. Este movimento foi indispensável para compreensão da política de assistência social no Brasil e sua funcionalidade na reprodução da força de trabalho, com centralidade para o processo do que viemos trabalhando como modernização conservadora, que se realiza nas gestões do PT, demarcando a estratégia de intervenção para lidar com a tensão social em torno da superpopulação relativa, mediante incrementos para a gestão da pobreza. O capítulo que ora se apresenta contém a sistematização e análise de dados sobre a política de assistência social, dimensão crucial na apropriação da realidade recortada nessa pesquisa, considerada aqui como um momento necessário à reflexão teórica, na perspectiva do alcance do concreto pensado. Tendo por fundamento o método histórico-dialético, a metodologia da investigação documental centrou-se em reunir elementos teóricos e empíricos que possibilitassem à apreensão apurada do objeto de estudo. Assim, procedemos a duas dinâmicas investigativas associadas: a pesquisa documental de caráter teórico-conceitual e legislativo; e a pesquisa documental com aportes empíricos. Essa investida se realizou mediante três núcleos centrais. O núcleo dedicado à análise da política de assistência social nos governos petistas, considerando sua relação com as demais políticas da seguridade social e as implicações da política macroeconômica nas questões de ordem orçamentária. Esta primeira ênfase de análise foi realizada pela própria requisição do método escolhido que implica pensar a direção da política social a partir da sua inserção na dinâmica da totalidade, que envolve o tensionamento das classes sociais sobre o Estado e o direcionamento do fundo público. Nesse particular, perceber a direção do gasto social contribui para desvelar as prioridades que um dado governo tem em relação à aplicação dos recursos. Também visamos compreender e explicitar a magnitude do gasto social no campo da assistência social, requisito fundamental na análise de políticas públicas, conforme atesta Salvador e Teixeira (2014). Isto por que, apesar da centralidade e do aumento relativo dos gastos na função orçamentária da assistência social, os investimentos da União neste 276

campo ainda são irrisórios se comparados, por exemplo, ao pagamento do serviço da Dívida Pública. O segundo núcleo dedica-se à problematização da dinâmica da centralidade do PBF no âmbito da assistência social, a expressividade desse aspecto em termos orçamentários e as implicações no que tange à estruturação do SUAS. Esta ênfase foi definida a partir da necessidade de esmiuçar os fundamentos teórico-conceituais que balizaram o processo de modernização da política de assistência social, bem como a prevalência do PBF que ao fim e ao cabo repõem a lógica do paralelismo do combate à pobreza no cerne da política de assistência social. Isto se mostrou crucial no sentido de confrontar as reais condições dessa estruturação com os discursos legitimadores deste processo. Assim, foi possível perceber a funcionalidade de uma modalidade de política assentada no baixo custo da transferência de renda para as demandas da política de macroestabilidade econômica aprofundada nos governos petistas. O terceiro núcleo envolve o exame crítico do Plano Brasil sem Miséria (PBSM) e sua influência na modernização do SUAS mediante a ofensiva do Estado gerencial, explicando os fundamentos desse processo encobertos pelo que denominamos de “fetiche da gestão”. Este é o mote central da análise e por isso centra a maior parte do balanço minucioso quanto: ao marco conceitual, aos fundamentos teóricos subjacentes às propostas, a estruturação e organização do Plano, bem como os resultados mais marcantes, sobretudo, no que se relaciona à política de assistência social. Essa direção de análise atenta às principais requisições postas à avaliação crítica de políticas sociais quanto à investigação dos conteúdos, de como se deu a constituição de uma dada agenda para esta política, por que e para quem se decidiu intervir, além de procurar reconstruir as intenções implícitas e explícitas (TANEZINI, 2004). No que toca especificamente à coleta de dados, recorremos a fontes imprescindíveis como os sites da Corregedoria Geral da União, Ministério do Desenvolvimento Social e suas ferramentas de controle e monitoração de dados; Relatórios de Gestão; Painel exclusivo do Orçamento do Brasil sem Miséria no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP); Prestação de Contas da Presidência da República; MUNIC, PNAD, Portal do Orçamento Federal do Senado; Livros, Cadernos de Resultados e outras publicações do MDS; Censo SUAS; e fontes secundárias, como estudos e notas técnicas da ANFIP, IBGE, IPEA, artigos de revistas especializadas. No capítulo precedente, além de uma sintética recuperação histórica da constituição da assistência social no Brasil, discutimos o orgânico paralelismo dos programas/projetos/ações 277

de “combate à pobreza”, o processo de regulamentação sem precedentes de que é objeto a política em questão nos governos petistas, cuja importância histórica é indiscutível. Fizemo- los pautando as contradições inerentes a este movimento, dissertando sobre os fundamentos teóricos que embasaram tais processos e a resultante sociopolítica desse movimento que é a própria modernização conservadora da política de assistência social. Mais uma vez, vale retificar o significado histórico, tanto nos aspectos políticos, culturais, sociais e, sobretudo, jurídicos, que o “choque de gestão” da política de assistência social tem no contexto de um país com a formação social do Brasil, cuja lógica do favor e do não-direito perpassam perenemente as políticas sociais. Evidentemente, a contradição é elemento intrínseco à política social, e desse modo a política de assistência social condensa um feixe dessas contradições que se dão igualmente no âmbito da disputa política em torno da direção social que assume. Foi este campo de disputas que possibilitou todo acúmulo histórico que permite dotar a assistência social de uma institucionalidade no campo dos direitos sociais, que, inclusive, expressa uma forma de resistência face ao duríssimo ataque conservador neoliberal, ainda que sob os desígnios chamado “social-liberalismo”. No entanto, se o movimento de regulamentação da área tem sido um avanço importante, o modo pelo qual o próprio SUAS vem sendo implementado ainda é carregado de uma série de contrassensos, impossibilidades e inconsistências que dificultam substancialmente a consolidação do padrão de proteção social assegurado na Constituição Federal e na solidificação de uma rede de serviços sociassistenciais de fato pública e de qualidade.178 Infelizmente, esse processo de regulamentação da política e implementação do SUAS, apesar do valor simbólico e material que comporta para assistência social, se processa em um contexto onde a crise do capital e sua ofensiva conservadora abalizam novos determinantes ao processo que convergem na direção dos próprios interesses dominantes, na medida em que se realizam mediante forte influência de uma segunda geração de ajustes neoliberais.

178 É claro que, mesmo que fosse assegurado o preceito constitucional e a política de assistência social assumisse a direção de uma política de proteção social de caráter universalizante e que o SUAS tivesse um alto padrão institucional e profissional, não seriam suplantadas as contradições da política social, já que estas são inerentes à sua lógica no âmbito do capitalismo. O processo de recomposição do valor sempre recompõe o pressuposto básico do modo de produção capitalista: ter força de trabalho disponível para as necessidades imediatas de produção, uma vez que é apenas pela exploração do trabalho vivo que se obtém valor e mais-valor. Assim, o processo de produção e reprodução das relações sociais capitalistas recompõe sempre, na medida da acumulação, a ampliação do proletariado. Deste modo, quanto mais riqueza é produzida, pela exploração da classe trabalhadora, mais pobreza é gerada, conforme demonstrado por Marx ao explicitar a lei geral de acumulação capitalista, discutida no primeiro capítulo desta Tese. Logo, mantidas as relações capitalistas, é impossível erradicar a pobreza. Portanto, nenhuma modalidade de política social pode suprimi-la, como menciona a narrativa governamental sobre a erradicação da pobreza. 278

Isto por que, se a centralidade da política de assistência social e sua patente expansão nos governos petistas compõem a narrativa da “justiça social” e em termos materiais teve significado concreto sobre o atendimento de demandas dos segmentos mais pobres da classe trabalhadora, o ciclo petista, embora tivesse novas determinações importantes, não demarco um período pós-neoliberal. Pelo contrário, apesar das novas nuances que se arrolam ao movimento histórico de atuação do Estado na reprodução das relações sociais – tanto via política econômica, quanto estritamente do ponto de vista da política social, o PT manteve-se na direção neoliberal. Ao tentar acoplar o crescimento econômico com distribuição de renda, seus governos tentaram conciliar direções aparentemente inconciliáveis: o ideário desenvolvimentista e a lógica neoliberal (MOTA, 2012). Assim, fica patente a necessidade de não sucumbir ao “mito da assistência social” (MOTA, 2008), ou seja, é preciso manter a análise rigorosa da realidade, sob pena de enveredar pelos descaminhos da mistificação ideológica dos regulamentos da Assistência Social.179 A assistência social, neste contexto, ganha uma magnitude antes impensável. Do ponto de vista da narrativa oficial, a política tem papel fundamental no “alívio à pobreza” e no combate à “vulnerabilidade social”. Expande-se, assim, centrando sua intervenção sobre os mais pobres, com prominência dos programas de transferência de renda. Do ponto de vista da análise marxista que realizamos, o que se processa é uma verdadeira investida político- ideológica e prático-concreta no sentido de conferir à assistência social capacidade operacional e administradora para incidir sobre a classe trabalhadora, sobretudo, administrar emergencialmente as condições de vida da superpopulação relativa. Isto se dá em meio a um processo que galvaniza um arsenal heurístico totalmente reconceituado, cuja influência das novas teorias difundidas pelos organismos internacionais, parece decisiva. Entre outros elementos, tais teorias e instituições propalam a defesa de um novo padrão de proteção social, que zela por desmantelar a estrutura de proteção social erigida a partir dos ganhos do trabalho, advindos de duras lutas políticas, que encerram formas de proteção pautadas na universalidade, no dever do Estado e na própria solidariedade intergeracional dos trabalhadores na previdência. Neste espectro neoconservador, a proteção social

179 Esse processo parece ter expressão em tendências recentes no campo do Serviço Social, em que prevalece uma espécie de hiperdimensionamento do alcance da política de assistência social nos moldes como ela vem sendo efetivada a partir de certa hipostasia do marco regulatório e do aparato institucional angariado para a gestão da política de assistência social na esfera Federal. 279

[...] é definida como toda intervenção pública para ajudar indivíduos, domicílios e comunidades a administrar riscos ou apoiar os cronicamente pobres. Na visão do social risk management, essas ações deveriam ser parte de abordagens integradas de redução da pobreza, para diminuir a vulnerabilidade das famílias e garantir suas capacidades futuras. À ampliação do conceito de pobreza corresponde a ampliação do conceito de proteção social, cujo foco torna-se tanto a provisão de renda, quanto a de serviços de educação e saúde para a formação de capital humano e redução da pobreza entre as gerações (VAITSMAN, ANDRADE e FARIAS, 2009, p. 03).

O paradigma da focalização passa, nos governos do PT, a ter centralidade no discurso sobre a garantia do acesso da população mais pobre aos serviços públicos. Com a divulgação e implementação do PBSM, em junho de 2011, fica explícito o aprofundamento dessa dimensão, associada a um intenso processo de sofisticação e modernização do aparato institucional para gestão da pobreza. Neste processo, o PBSM se configura como resposta governamental às fragilidades identificadas no PBF, principalmente no que diz respeito ao acesso aos serviços essenciais e a superação da extrema pobreza no país, ao mesmo tempo em que consolida o padrão de “enfrentamento à pobreza”. Trataremos de demonstrar que um amplo investimento no que diz respeito à gestão transformou-se na mola mestra para direcionar os esforços do governo federal a fim de superar as dificuldades relativas à integralização das ações focalizadas, como cadência dos governos anteriores do PT e com importantes implicações para a política de assistência social. Antes de trabalharmos os elementos específicos da configuração contemporânea da assistência social, que balizam as contradições do que viemos analisando como paralelismo e modernização conservadora, vamos trazer algumas reflexões de ordem mais ampla que é a dinâmica da relação entre política econômica e política social, bem como da centralidade da assistência social face às demais políticas que compõem o tripé da seguridade social.

4.1 A política de ajuste fiscal e as implicações para a seguridade social

A expansão da assistência social nos governos petistas abaliza uma intensa investida na direção da administração dos efeitos mais deletérios dos recorrentes ajustes demandados pelo capital, como o aviltamento das condições de vida e empobrecimento da classe trabalhadora. Conforme aludimos, o padrão dessa expansão preza pela constituição de uma estratégia de intervenção pública de baixo custo e impacto concreto. É evidente que os 280

resultados do aumento concreto dos investimentos do Estado na política de assistência social, mormente nos programas de “alívio à pobreza”, via transferência de renda, são incontestáveis. Mas, se confrontarmos tais valores com o que se canaliza do fundo público para a dívida pública, por exemplo, veremos a prevalência dos interesses do capital, em sua fração financeirizada, sobre o orçamento estatal. Esse movimento não é exclusivo à assistência social. As três políticas que compõem a seguridade social sofrem os impactos da dura política econômica de superávit primário para pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Importante pesquisa realizada por Salvador (2017) nos traz dados importantes para pensar essa relação. Os dados apresentados na Tabela seguinte são expressivos:

Tabela 1 – Participação das Despesas Financeiras no Orçamento Público Valores em bilhões, deflacionados pelo IGP-DI, a preços médios, de 2015

Fonte: Salvador, 2017.

Os dados elucidam a pressão exercida pelas despesas financeiras, que incluem o pagamento de juros e amortização da dívida pública, sobre o orçamento público. Somente em 2015, 23,71% (R$417,25 bilhões) do orçamento executado naquele ano foi destinado a pagamentos dos serviços da dívida. Enquanto que nesse mesmo ano, as políticas sociais tiveram execução pífia, com contingenciamento brutal de recursos (SLAVADOR, 2017). 281

De acordo com Salvador (2015), a partir de 2009, em face do agravamento da crise mundial, cujo estopim foi a crise do sub prime nos Estados Unidos, um dos mecanismos encontrados pelo governo brasileiro foi realizar grandes incentivos fiscais “tecnicamente conhecidos como gastos tributários180 – a empresas, sem o controle democrático da sociedade e sem contrapartidas sociais” (p. 7). Assim, procede-se ao arrocho fiscal para as políticas sociais, enquanto o fundo público passa a ser cada vez mais canalizado para o capital, neste particular via isenção tributária. Estes gastos tributários, conforme demonstra o autor, vem subindo muito nos últimos anos, tendo crescido duas vezes mais que o orçamento entre 2011 e 2014. Em termos reais estes gastos cresceram 32% no período, enquanto que o Orçamento Fiscal e da Seguridade Social cresceram 18%. Em 2009, os gastos tributários efetivos foram de R$ 160,4 bilhões em valores atualizados pelo IGP-DI para 2014. A partir de 2009, o governo federal tomou um conjunto de medidas para combater os efeitos da crise econômica mundial no Brasil. No cerne dessas medidas, encontram-se as renúncias tributárias para diversos setores econômicos. Assim, em 2010, no último ano do governo do presidente Lula, os gastos tributários alcançaram R$ 184,4 bilhões (tabela 2), isto é, 3,6% do PIB. A partir do governo da presidenta Dilma, os gastos tributários evoluem de forma expressiva, saltando de 3,68% do PIB (2011) para 4,76% do PIB (2014), comprometendo 23,06% da arrecadação tributária federal (SALVADOR, 2015, p. 18).

Importante parte destes gastos está relacionada ao PAC e podem ser compreendidos dentro da direção político-governamental no fomento ao desenvolvimento industrial do país. No tocante ao PAC, Salvador (2015) destaca que além dos gastos tributários, outros mecanismos de política fiscal foram acionados “por meio de uma série de desonerações tributárias temporárias para estimular as vendas e o consumo, além de outras renúncias históricas” que alcançariam 4,76% do PIB em 2014. (SALVADOR, 2015, p. 18).

180 “Trata-se dos chamados gastos tributários, que são desonerações equivalentes a gastos indiretos de natureza tributária. Portanto, são renúncias que são consideradas exceções à regra do marco legal tributário, mas presentes no código tributário com o objetivo de aliviar a carga tributária de uma classe específica de contribuintes, de um setor econômico ou de uma região” (SALVADOR, 2015, p. 14). 282

Gráfico 2 - Evolução anual das desonerações tributárias do PAC – 2010-2014 R$ bilhões

Fonte: TCU, 2015.

Conforme se verifica pelos dados apresentados, o PAC repassou ao capital privado grande parcela do fundo público, sob o mecanismo da desoneração fiscal. De acordo com os dados apresentados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), os setores mais contemplados foram, em ordem decrescente de valores nominais, Comércio e Serviços; Industria, Ciência e Tecnologia, Habitação, Energia e Transporte. Conforme demonstrando através dos dados trabalhados por Salvador, não foram apenas os programas do PAC que impactaram nos gastos tributários, mas resolvemos ressaltá- los em face da importância que ele teve no âmbito dos governos petistas. Mas de um modo geral, todos os gastos tributários incidem sobre as políticas sociais. Esta é a questão elementar da atuação do Estado ante ao desenvolvimento capitalista e à direção das políticas sociais. Em última instância, predomina a opção política do Partido dos Trabalhadores em manter o padrão de gestão da crise do capital no Brasil, empregando uma política econômica e tributária conivente com as necessidades de acumulação capitalistas. No tocante ao impacto desses mecanismos nas políticas sociais, dados do Relatório e Parecer do TCU (2015), relativos ao exercício de 2014, trazem alguns aspectos importantes. De acordo com o relatório, as renúncias de receitas federais mantiveram-se em expansão e alcançaram o montante projetado de R$ 302,3 bilhões em 2014. Estas renúncias estão assim 283

discriminadas: R$ 195,3 bilhões de benefícios tributários; R$ 58,6 bilhões de benefícios tributários-previdenciários; e R$ 48,4 bilhões de benefícios financeiros e creditícios. Este volume imenso de renúncias supera as despesas realizadas (liquidadas) em algumas das principais funções do orçamento da União, como Saúde (R$ 94 bilhões), Educação (R$ 92 bilhões) e Assistência Social (R$ 70 bilhões), o que é um dado extremamente relevante. Evidencia que o arrocho que vem sendo intensificado, de modo seletivo, opera tanto diretamente na diminuição direta dos recursos orçamentários para as políticas sociais, como por mecanismos indiretos como exoneração tributária. No que tange especificamente a seguridade social, a Desvinculação de Receitas da União (DRU) tem sido um artifício muito utilizado para desvincular receitas de fontes tributárias exclusivas da seguridade social. A DRU surgiu a partir de outro mecanismo que em 2004 já permitia a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas de seguridade social, o chamado Fundo Social de Emergência (FSE). Posteriormente, este Fundo passa a ser denominado de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), mas mantendo-se o mesmo propósito. É a partir dos anos 2000 que passa a vigorar a DRU, com sucessivas prorrogações, sendo a mais recente consolidada pela EC n. 93, de 8 de setembro de 2016, que mantém a DRU até 31 de dezembro de 2023 (SALVADOR, 2017). O autor aponta ainda que o novo texto amplia de 20% para 30% o percentual das receitas de tributos federais que podem ser usadas livremente, além de alterar quais tributos podem ser desvinculados, incluindo tanto os fundos constitucionais, como taxas e compensações financeiras. “Os superávits primários, no período de 2000 a 2007, foram obtidos basicamente por meio da incidência da DRU nas receitas exclusivas da seguridade social, que representaram 62,45% do superávit primário do governo federal” (SALVADOR, 2017, p. 429). Salvador (2017) explicita a continuidade da incidência da DRU sobre os recursos da seguridade social mesmo após 2008. No quadro seguinte, podemos perceber o impacto dos dois artifícios expostos até aqui que impactam diretamente no orçamento da Seguridade Social: a DRU e as Renúncias Tributárias.

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Quadro 3 - Receitas, despesas da seguridade social. Valores em R$ bilhões, deflacionados pelo IGP-DI, a preços médios de 2016

Fonte: Salvador, 2017.

A lógica do (des)financiamento da seguridade social é contínua e em fluxo crescente. Como se realiza mediante mecanismos como a DRU e as Renuncias Tributárias, muitas vezes requerem a apuração destes dados para compreender a lógica que a política de ajuste fiscal permanente dos últimos governos impõe sobre as políticas sociais. A constatação do que Leda Paulani (2010) classifica como “permanente estado de emergência” fundamenta a manutenção dessa política dura de macroestabilidade econômica sob o argumento da crise constante. A tabela seguinte, com dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil - ANFIP (2016) traz uma questão importante à baila. As constantes investidas contra os preceitos constitucionais que garantiam base de financiamento e despesas específicas da seguridade social. Os dados demonstram o montante de recursos liquidados do Orçamento da Seguridade Social que são estranhos ao conceito constitucional de seguridade social.

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Tabela 2 - Programações estranhas ao conceito constitucional de seguridade social incluídas pelo governo no Orçamento da Seguridade Social, em 2005, 2008, 2010 e de 2013 a 2016

Fonte: ANFIP, 2016.

Os dados revelam a afronta ao conceito constitucional de seguridade social ao incluir programação orçamentária estranha àquelas exclusivas à seguridade social. Outro fator importante de exame é a relação dos recursos investidos em benefícios e ações das políticas de seguridade social em relação ao PIB brasileiro. Por este ângulo, conseguimos observar a parca incidência que eles têm sobre a riqueza produzida no País. O PIB do Brasil era de R$ 891,6 bilhões em 2005, R$ 3,675 trilhões, em 2010, R$ 2,473 trilhões, em 2013 e R$ 2,456 trilhões, em 2014. Conforme dados da ANFIP (2015), os benefícios previdenciários, assistenciais e trabalhistas corresponderam a 8,0%, 8,2%, 8,6%, 8,9% do PIB, respectivamente, em 2005, 2010, 2013 e 2014. Conforme aponta o relatório da ANFIP, “nos anos anteriores, esse crescimento estava relacionado diretamente aos aumentos reais do salário mínimo, mas nestes dois últimos anos, o principal fator que determina esse crescimento em relação ao PIB é o baixo desempenho da economia”. Na Tabela seguinte, podemos observar, além dos benefícios, despesas dos respectivos Órgãos Gestores das políticas de seguridade social, contemplando também os anos de 2015 e 2016.

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Tabela 3 - Despesas do Orçamento da Seguridade Social, em % do PIB, em 2005, 2010 e de 2013 a 2016

Fonte: ANFIP, 2016

Os dados da tabela anterior demonstram que a relação produção de riquezas/ distribuição é extremamente desigual, apontando para a clássica contradição do modo de produção capitalista em que a riqueza produzida socialmente é apropriada de modo cada vez mais privado. É evidente que não seriam as políticas sociais as responsáveis pela mudança dessa lógica, mas obviamente a direção que elas assumem e a forma como elas se expressam relativamente ao PIB denota um dos mecanismos da reprodução das relações sociais, visto o papel que elas tem na redistribuição da mais-valia via repartimento do Fundo Público. De modo geral, nossa pretensão com apresentação destes dados foi problematizar a direção sociopolítica que a relação política econômica/política social assume nos governos petistas, demonstrando que se trata de um processo mais amplo que não emana de uma lógica interna as política sociais, mas que decorrem da própria condição do Estado capitalista e de sua relação com as classes sociais. Precisávamos desse recorte inicial para a nossa problematização que se seguirá quanto à centralidade da política de assistência social no âmbito das políticas de seguridade social, bem como da prevalência dos programas de transferência de renda, sem que essas dimensões fiquem obscurecidas por uma possível interpretação endógena restrita a uma lógica concorrente entre as próprias políticas sociais. Com isso, evidenciamos que a lógica de restrição orçamentária perpassa toda a política social e expressa a canalização expressiva do fundo público para o capital. 287

Demonstrar a centralidade da política de assistência social no âmbito da seguridade social, via Programas de Transferência de Renda (PTR), visa municiar a reflexão quanto à definição de um padrão de política social que seja ao mesmo tempo irrisória do ponto de vista do impacto no Orçamento Público, ao mesmo tempo em que impacte diretamente sobre as expressões mais drásticas da questão social, como a pobreza extrema. Segundo Mauriel (2012, p.189), a institucionalização tardia da política de assistência social se dá em um ambiente em que a intervenção na questão social centrada no combate à pobreza focalizada “aprofunda o processo de desconstrução simbólica e ideológica da Seguridade enquanto base para pensar e construir as políticas sociais, dificultando justamente o caráter intersetorial que tal política deveria ter com as demais políticas públicas”. Nesta mesma direção, é importante a análise de Mota (2008) ao enfatizar que as diretrizes e organização da política de Assistência Social contemporânea indicam que o direito à Assistência Social assume, cada vez mais, o papel de “integração” à sociedade, substituindo o direito ao trabalho (MOTA, 2008). Desse modo, aparece não apenas como a forma instituída legalmente de dar conta dos “excluídos” do mercado de trabalho, mas também de mantê-los ativos na esfera do consumo, assumindo uma função social na reprodução da força de trabalho. Assim, não obstante os avanços jurídico-institucionais abalizados na Constituição Federal de 1988, tem-se efetivado uma unidade contraditória no âmbito da seguridade social brasileira concernente as demandas e aos ajustes do tempo histórico do desenvolvimento capitalista, com direcionamento do capital para nichos de investimentos nos serviços sociais essenciais. Deste modo, presencia-se um processo de privatização da saúde e previdência social e a construção da lógica do cidadão-consumidor, assim como a centralidade da Assistência Social.“[...] As políticas de seguridade social brasileira longe de formarem um amplo e articulado mecanismo de proteção, adquiriram a perversa posição de conformarem uma unidade contraditória [...]” (MOTA, 2008, p. 133). Vejamos agora alguns dados que demonstram a expansão e centralidade da política de assistência social nos governos petistas. Analisando-se os primeiros cinco anos a partir da implementação do SUAS em 2005, os dados ficam distribuído conforme apresenta o gráfico seguinte.

288

Gráfico 3 - Orçamento da seguridade social, por função entre os anos de 2005 e 2010

Fonte: Siga Brasil. Elaboração Própria.

Em valores nominais a assistência social continua a receber um contingente menor de recursos que as demais políticas que compõem a seguridade social, mas em termos relativos apresenta um crescimento importante. Enquanto previdência social e saúde tiveram aumentos respectivos de 55,22% e 52,78%, a assistência social teve um acréscimo de 153,33%.

289

Gráfico 4 - Crescimento real das despesas primárias por função – entre 2010 e 2014

Fonte: TCU, 2015.

Os dados são muito elucidativos da expansão da assistência social no período que compõe o final do governo Lula e o início do governo Dilma, expressando a manutenção e aprofundamento da sustentação da assistência social como área estratégica central no “combate à pobreza”. Conforme se observa, a política em questão é a segunda despesa primária com maior crescimento no orçamento do governo federal.181 Este fato não é aleatório, mas expressa justamente a função que ela desempenha nas estratégias governistas do PT. Outra organização de dados, contemplando um período de tempo maior, também corrobora com a nossa explanação quanto ao aumento percentual dos recursos aplicados na assistência social em relação às demais políticas de seguridade social.

181 A primeira despesa em Desporto e Lazer decorreu dos investimentos para a Copa do Mundo de Futebol, nesse ano no País. 290

Quadro 4 - Orçamento da Seguridade Social, por funções. Valores em R$ bilhões

Fonte: Salvador, 2017.

O quadro 04 mostra o significativo crescimento da Função assistência social no Orçamento total da seguridade social, chegando a 65,95% no período em questão. Contrasta mais frontalmente com a função saúde, cujo crescimento não atende as demandas da saúde pública no país, ficando na casa dos 37,20% em 8 anos. Note-se ainda, em relação à assistência social, que o período de maior crescimento de recursos é justamente o período que comporta a implementação e consolidação do PBSM, entre 2011 e 2014. Também não é aleatório o decréscimo entre 2014 e 2015, justamente quando começa a erodir as bases do pacto governista de sustentação do governo Dilma, com a eclosão da crise política e econômica que assola o início do segundo mandato da presidenta. A assistência social tem logrado outro patamar nas prioridades governamentais, o que não significa exatamente um avanço qualitativo real ou uma mudança progressista para o campo desta política social. Conforme demonstramos anteriormente, ainda que tenha efetivamente ocorrido essa expansão, em termos de participação orçamentária no PIB os valores para a assistência social ainda são muito baixos. Ademais, essa centralidade se dá no campo político-ideológico, muito mais do que em termos práticos de recursos. É evidente que o incremento orçamentário na assistência social é de suma importância, mas ele precisa ser articulado a investimentos mais significativos em previdência, saúde e demais políticas sociais, como, por exemplo, a educação. Os processos de privatização e 291

seletividade tornam-se opções concretas em larga consolidação na proteção social brasileira e procede-se a adoção de critérios cada vez mais seletivos e restritivos nos benefícios previdenciários, bem como a tendência aos regimes privados de aposentadorias e pensões, combinada à transferência de recursos do fundo públicos para o complexo médico-industrial, pela via do mix público-privado que se expressa nas terceirizações e a imposição das organizações sociais na gestão de instituições públicas de saúde. Um balanço consequente do SUAS não pode considerar em si mesmas as novidades apontadas anteriormente. Ao contrário, exige pensá-las à luz do tratamento que o Governo Lula tem dispensado a Seguridade Social. Nessa direção, não seria equivocado sustentar que esse governo - que investe hoje no campo da Assistência -, tem usurpado recursos da Seguridade Social, ao manter uma política superavitária para pagar os juros da dívida pública. Não é mito também dizer que, sob o Governo Lula, o SUS continua insulado, se constituindo como uma saúde pobre para os/as mais pobres. Não é uma fantasia, é, antes, sólido afirmar que o Governo Lula acentuou a retirada e a destruição de direitos previdenciários, dando continuidade à contrarreforma da Previdência Social (RODRIGUES, 2011, p. 101-102).

Identificar esse aumento real no financiamento da política de assistência social é um primeiro passo para explicar a sua centralidade no âmbito da estratégia governamental petista face às demais políticas de seguridade social. Explicitar a direção que este processo assume, no entanto, é o passo que permite elucidar que modalidade de política social vem sendo efetivada. Um dos caminhos para pensar a direção social da política de assistência social contemporânea é perceber a distribuição dos recursos orçamentários dentro da função 08, isto é, dentro da Função assistência social, no cerne do orçamento da seguridade social. Assim, pretendemos trazer alguns dados importantes que ajudam a elucidar essa questão, sem esgotá- la, evidentemente.

4.2 A expansão da política de assistência social via Programas de Transferência de Renda (PTR)

Como visto a centralidade dos programas de transferência de renda na assistência social contemporânea começa timidamente no governo FHC e ganha imensas proporções nos governos petistas, sendo uma das pilastras de sustentação do pacto social ou mesmo da política de conciliação de classes que sustentou a gestão petista. 292

A participação dos programas de transferência de renda, como o PBF, BPC182 e o Renda Mensal Vitalícia (RMV),183 no orçamento da política de assistência social dimensiona a importância destes no âmbito da assistência social. Desde 2009, estes benefícios representam em torno de 90% dos recursos totais do MDS (TESOURO NACIONAL, 2016). Em relação ao PBF, apontávamos em pesquisa anterior (SILVA, 2013) o tensiosamento que ele estabelece sobre a estruturação do SUAS, uma vez que a maior parte dos recursos da assistência social são direcionados a ele. Os dados apresentavam uma discrepância de crescimento entre os recursos destinados aos serviços socioasistenciais do SUAS e o PBF. Entre 2004 e 2009, enquanto que estes serviços tiveram incremento orçamentário de 35%, o PBF alcançou um aumento real de 91,6% no volume de recursos aplicados. Estes dados são expressivos, sobretudo se pensarmos que ele comporta os anos de implementação da estrutura institucional do SUAS nos municípios, o que demandaria um esforço intensivo e um aumento potencial do financiamento para tal empreitada. A estruturação da rede de proteção social básica e especial, com a implantação de CRASs e CREASs encontrou grande dificuldade em função da inexpressividade dos recursos destinados para tal objetivo. Toda a dificuldade em instalações físicas, recursos humanos e materiais é um dos grandes gargalos do SUAS e ainda tematizaremos mais profundamente essa questão. Por hora, apresentamos dados do período subsequente demonstrando a consolidação dessa tendência de subfinanciamento do SUAS face a ampliação de programas de transferência de renda, como o PBF. No Gráfico seguinte, procuramos demonstrar como essa tendência se mantém e se acentua.

182 O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) é um direito previsto na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) Lei nº 8.742/93 e pelas Leis nº:12.435/2011 e nº 12.470/2011, que alteram dispositivos da LOAS;. O BPC garante 1 (um) salário mínimo mensal ao idoso, com idade de 65 anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de atestada “incapacidade” para prover seu sustento ou tê-lo pela sua família. Para ter direito ao benefício é considerado o critério de renda mensal bruta familiar per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente.

183 Por ser um Benefício em extinção, a proporção da sua participação nas despesas do MDS deve ser decrescente. 293

Gráfico 5 - Comparação entre os recursos orçamentários destinados à Ações e Serviços socioassitenciais do SUAS e o Programa Bolsa Família em diferentes anos. Valores em R$ Bilhões.

Fonte: ANFIP, 2015. Elaboração Própria.

A discrepância é óbvia. Vale ressaltar novamente que não se atesta aqui uma espécie de competição em que a rede do SUAS deveria sair vencedora angariando o maior volume orçamentário. Tampouco se centra no PBF em si a causa real de sua prevalência no cerne da política social contemporânea, mas sim demonstrar que estes dados expressam uma determinada direção social que conduz a política de assistência social nestes tempos, ou seja, seu viés focalista e seletivo, via programas de transferência de renda e “combate à pobreza”, que se encaixa na estratégia de intervenção nas expressões da questão social de modo a amenizar as consequências deletérias da crise estrutural do capital, agindo mormente sobre a reprodução da superpopulação relativa. De acordo com Boschetti, Teixeira e Salvador (2013), quando se compara todo o orçamento federal para a construção do SUAS em relação ao orçamento federal para o PBF, ficam evidentes os limites orçamentários impostos ao primeiro. Esses limites relacionam-se, também, a ausência de definição legal de percentual de participação de cada ente federado no cofinanciamento da política de assistência social, a reduzidaparticipação da esfera estadual no cofinanciamento; e a ausência de critérios de transferências no envio de recursos dos fundos estaduais para os municipais (IDEM, p. 06).

294

A estruturação do SUAS e a consolidação dos programas de transferência de renda se dão praticamente de modo simultâneo. Ao mesmo tempo em que a implantação do SUAS nos diversos municípios brasileiros é um avanço inconteste para a política de assistência social brasileira, a concretização desse processo esbarra nos parcos investimentos orçamentários. Do mesmo modo, ainda que com investimentos inexpressivos, a implementação do SUAS vai sendo atravessada pela lógica da modernização conservadora, cujos fundamentos procuramos explicitar no capítulo anterior. Vejamos a dinâmica desse processo, tentando relacionar o aparato institucional que vai se delineando à frágil estruturação que se estabelece e os mecanismos que vão tonalizando a modernização conservadora. Faremos esse movimento pensando uma primeira etapa, considerando apenas a relação com o PBF, procurando contemplar sempre o período até 2010/2011. E outra etapa em que enfatizaremos este movimento com Brasil sem Miséria (entre 2011-214).184 A questão da discrepância de recursos é apenas uma das muitas nuances que atravessam a consolidação da política de assistência social, carregando outra série de contradições e limites que passam pela forma como são organizados os próprios serviços. Isto por que a rotina de trabalho da proteção social básica, no âmbito dos CRASs, se pauta nas demandas dos programas de transferência de renda (que incluem desde cadastros, visitas domiciliares e acompanhamento de condicionalidades), em trabalhos relativos à inclusão produtiva e em atividades de círculos de convivência (que vão de grupos infantis a grupos de idosos). Convergem para a solidificação da “concepção de assistência social que fomenta garantia compensatória, temporária e minimalista, que combina solução precária e controle comportamental do seu público” (SILVA, 2015, p. 45), bem ao gosto da pauta conservadora. A evolução do número de equipamentos sociais cofinanciados aponta para a extensão do SUAS a todo Brasil. Todos os municípios brasileiros já contam com pelo menos um CRAS, que é a unidade básica e a chamada “porta de entrada da assistência social”. Em 2005, ano de publicação da NOB-SUAS, que regulamentava a operacionalização do SUAS no país, existiam 1.978 CRASs. Em 2011, o número de CRAS chega a 7873, entre cofinanciados e próprios dos municípios. No que diz respeito aos CREAs, o número era de 314 e em 2011 totalizavam 2124 equipamentos. (MDS, 2011). O aumento do número de equipamentos não significa, necessariamente, qualidade dos serviços prestados ou uma direção progressista para o campo em questão. Muitos

184 Essa não será uma cisão estanque. Poderemos optar por apresentar conjunto de dados não restritos a cada período, desde que isso facilite a exposição e compreensão dos dados e da realidade que estamos tentar desvelar. 295

determinantes colidem e complexificam o processo dessa institucionalidade. Estudiosos (BEHRING, 2009; RODRIGUES, 2011, RAICHELIS, 2010, BOSCHETTI, 2016, SITICOVISCK, 2010, SILVEIRA, 2017, entre outros) vem problematizando os limites, contradições e fragilidades deste processo. Valendo-nos das indicações de Silveira (2017), podemos inferir que é preciso considerar uma série de fatores que concorrem para a complexidade que viemos apontando, como: baixa inserção de sujeitos coletivos com maior potencial de defesa de direitos, engendrada nas lutas sociais na direção emancipatória; fragilidades e inconsistências na descentralização pela baixa capacidade de gestão e a colonialidade do poder nas cidades, com incidência da ideologia conservadora do mando e do favor; insuficiência de recursos pelas operações da desvinculação orçamentária para o pagamento da dívida pública; insuficiente cooperação federativa na composição dos recursos e responsabilidades na provisão de serviços e benefícios socioassistenciais, que correspondam às realidades territoriais; precarização das condições de trabalho e de atendimento; cultura institucional gerencialista e fragmentação entre os direitos e as políticas públicas, entre outros (SILVEIRA, 2017, p. 504).

Entre estruturas precárias e recursos humanos limitados (cujas relações e condições de trabalho são precarizadas, o rol de elementos que balizam as condições físicas dos estabelecimentos onde são realizadas as atividades e serviços socioassitenciais, imputando uma série de dificuldades a consolidação de uma rede pública de serviços. Ambientes inadequados, condições de acessibilidade muito restritas, meios de comunicação e transporte restritos ou inexistes, inexistência ou pífias condições para garantia de sigilo profissional para os profissionais de nível superior que gozam dessa prerrogativa, improvisação de instalações estão entre as questões mais visíveis. Neste particular, vale ressaltar a reflexão de Rodrigues (2011), de que existe um risco enorme de que o SUAS – desenhado na Política Nacional de Assistência Social – venha a se implantar de forma muito incompleta, e, pior, hipostasiando sua dimensão gerencial e mantendo atrofiada a rede de serviços públicos de Assistência Social (RODRIGUES, 2011, p. 103).

Estudo Técnico do MDS acerca da efetivação do Programa de Atenção Integral á Família (PAIF),185 programa que condensa as ações, projetos e atividades desenvolvidas nos CRASs, no período de 2006-2010, traz dados elucidativos acerca da frágil estruturação do SUAS. De acordo com o Estudo, 64% dos coordenadores de CRASs entrevistados consideram o espaço físico inadequado para realização de atividades. Os principais problemas elencados pelos técnicos no que diz respeito às limitações do espaço físico são “a falta de

185 Desde 2009, em função da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais , passou a ser denominado Serviço de Proteção e Atenção Integral à Família (Paif) 296

salas para atividades coletivas e serviços socioeducativos, bem como para o atendimento privativo de indivíduos e famílias” (MDS, 2010, p. 87). Em cerca de metade das unidades pesquisadas foi ressaltada a inexistência e/ou insuficiência de recursos essenciais para o desenvolvimento das atividades dos CRASs, material permanentes para oficinas e cursos; falta de meio de transporte para realização das visitas; telefone; computador ligado à rede de internet. Contando com espaços adequados, as equipes buscam direções metodológicas para o desenvolvimento do trabalho, enquanto espaços precários e improvisados tendem a acomodar a metodologia à ambiência limitada do trabalho, resultando, em muitas situações, na restrição do alcance quantitativo e qualitativo pretendido junto ao usuário (YAZBEK et al, 2010, p. 155).

O processo de estruturação do SUAS se realizou mediante as diretrizes da descentralização político-administrativa, conforme os princípios da PNAS. Tal movimento possibilitou a expansão do processo de municipalização da assistência social, com espraiamento dos equipamentos sociais na capilaridade dos diversos municípios brasileiros. Essa realidade traz questões importantes na consolidação de uma rede pública para o SUAS, visto os parcos recursos municipais direcionados para a política de assistência social, já que não há uma legislação que defina um percentual obrigatório que as prefeituras e estados devam assumir no financiamento da assistência social. Esta é uma demanda apontada em vários espaços de debate público sobre apolítica, como as Conferências e Fóruns da área (SCHMIDT, 2015). O movimento de municipalização da política de assistência social aponta uma série de dificuldades já que se cristaliza “uma tendência dos municípios e estados cumprirem requisitos mínimos para manter o financiamento sem necessariamente expressar qualidade na estruturação da rede socioassistencial e das condições institucionais de gestão” (SILVEIRA, 2009, p. 234). Ou seja, na medida em que a maior parte dos equipamentos são cofinanciados, prefeituras e estados tem se limitado a atender os elementos básicos burocráticos para garantia do cofinanciamento. “Acrescente‑ se a isso a realidade da maioria dos municípios brasileiros que, sendo de pequeno porte, contam com frágeis estruturas institucionais de gestão, rotinas técnicas e administrativas incipientes e recursos humanos reduzidos e pouco qualificados” (RAICHELIS, 2010, p. 760). Assim, não obstante, a condição federada e autônoma dos municípios, a complexidade dos problemas para os quais devem apresentar respostas, as suas particularidades (portes, capacidades de gestão), os distintos compromissos de cada mandato, os arranjos político-partidários e, com ele, a distribuição dos cargos, são condições que levam à heterogeneidade na implantação de uma política nacional, fazendo que não ocorra na mesma direção em todos os lugares. A principal razão dessa heterogeneidade é a concentração dos recursos públicos nos estados e União em detrimento do município, que acaba se subordinando aos outros níveis de governo, 297

perdendo sua suposta autonomia pela quase completa dependência financeira em relação à apropriação do bolo orçamentário nacional. Assim, as gestões públicas municipais, ainda que de algum modo investidas de marcas e características ideológicas, político-partidárias, vão se arrastando na relação pragmática, constituída, sobretudo, pelo financiamento provindo da União (SILVA, 2015, p. 42).

A gestão do trabalho no SUAS tem sido uma demanda constante, tendo sido tema central de Conferência Nacional de Assistência Social. Mas, as dificuldades reais para os trabalhadores da assistência social são substanciais. Raichelis (2010) destaca que concorre para esse processo a histórica desprofissionalização que marca a política de assistência social e da atuação com base em estruturas improvisadas e descontínuas. E desse modo, por ser uma área de prestação de serviços cuja mediação principal é o próprio profissional (Sposati, 2006), o trabalho da assistência social está estrategicamente apoiado no conhecimento e na formação teórica, técnica e política do seu quadro de pessoal, e nas condições institucionais de que dispõe para efetivar sua intervenção (RAICHELIS, 2010, p. 761).

A reflexão de Raichelis (2010) nos leva a ver a repercussão da flexibilização produtiva do neoliberalismo sobre as atividades públicas, como parte das “distintas formas de flexibilização salarial e funcional e da legislação social do trabalho” (ANTUNES, 2000, p. 16). Dados do próprio Censo-SUAS (2010) apontam que as prefeituras reproduzem essa tendência de precarização da inserção trabalhista de profissionais de nível superior. No âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), dada a urgência na implementação dos equipamentos, as contratações têm se dado carregadas de questões problemáticas, uma vez que não são realizados concursos públicos, os salários são baixos e os vínculos estabelecidos não são regidos por mecanismos de proteção ao (a) trabalhador (a) da área.

298

Gráfico 6 - Situação funcional dos trabalhadores da Rede Socioassistencial Pública (2005-2010)

Fonte: MDS, 2011a.

Conforme se verifica, o número de trabalhadores sem vínculo permanente é o mais expressivo. A primeira questão que podemos tratar é a inobservância da NOB-RH, aprovada desde 2006, a qual definia a realização de concursos e contratações efetiva dos trabalhadores. A instabilidade do vínculo provoca uma significativa rotatividade de trabalhadores, com implicações na continuidade de projetos, ações e no tempo investido em conhecimento da realidade. Naquele Estudo Técnico citado anteriormente também são trazidos dados relativos aos trabalhadores do SUAS. Em 65,5% das unidades pesquisadas não foram realizados concursos públicos; menos de 40% das unidades estão adequados às orientações da NOB-RH no que diz respeito à formação e qualidade das equipes multidisciplinares. E assim, “os convênios com entidades da rede de serviços socioassistencial têm sido um caminho utilizado para compor o quadro técnico para o desenvolvimento das atividades” (MDS, 2010, p. 87). Demonstrando que a expansão da política operada nos governos petistas se fez através do trabalho precário. A produtividade do trabalho, a lógica de financiamento pelo auferimento de resultados, o subsídio para direcionamento de ações com vistas a melhorar indicadores sociais, o enquadramento da realidade, o fomento à focalização entre outras variáveis se encontram nesse movimento de robustecer o sistema de informações. Raichelis (2010) analisa que essa lógica se insere nas políticas sociais como reflexo das próprias mudanças na produção capitalista e nas novas formas de gestão do trabalho. Uma das expressões dessas 299

mudanças decorre das alterações na base técnica de produção através da incorporação das denominadas TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) e outras inovações tecnológicas, as quais induzem novas relações e modos de gestão do trabalho, desencadeando processos de intensificação da exploração e aumento da produtividade nas mais diversas áreas, não só nas diretamente produtivas, mas também no campo da formulação, gestão e prestação de serviços sociais públicos. A consolidação de uma rede socioassitencial efetivamente pública para o SUAS encontra óbices na reprodução da lógica das parcerias público-privadas. De acordo com Sitcovsky (2010), a PNAS, ao contrário do que se divulga, não estabeleceu novas bases para a relação público/privada. O que se processou, na verdade, foi um avanço na tentativa de organizar, racionalizar e regulamentar essa relação, cujo objetivo é evitar a sobreposição de ações e o desperdício de recursos. Para o autor, a ação privada subvencionada no âmbito da assistência, de modo próprio remonta à Era Vargas, “além das mudanças jurídico-políticas mais recentes, ancoradas no modelo do Estado gerencial, mostra com nitidez como o novo repõe o velho” (SITCOVISKY, 2010, p. 160). Certamente, essas relações são reproduzidas como sendo inovações que dariam maior capilaridade e alcance ao SUAS. Sustenta-se sobre o discurso da complementariedade e subsidiariedade, quando este na verdade é um dos aspectos contundentes da modernização conservadora, por manter a terceirização do serviço com as instituições filantrópicas, o que dificulta a viabilização do serviço como direito. Ademais, se a própria rede pública não conta com um alto padrão de qualidade, a contratação de serviços na rede privada apresenta-se ainda mais precária. O Censo SUAS de 2010 apontou que existiam 9.398 entidades de assistência social inscritas e com parceria/convênio com municípios, sendo a maior concentração na região sudeste, seguida do nordeste, com atuação em assessoria, garantia de direitos e atendimento socioassitencial. Essas entidades tem receita anual média e mais de R$ 2 milhões de reais, sendo que 27,3% dessas receitas vem de repasses federais do MDS, 7,1% de outras fontes federais, 20,5 recursos próprios dos Estados e 85,3% de recursos dos próprios municípios. É importante notar que a maior parte das receitas vem dos próprios municípios e estados, ao tempo em que estes mesmos entes federados são os que menos investem na rede pública. Esse dado lança luz sobre a fragilidade do pacto federativo e a conveniência em manter os subsídios às entidades privadas em detrimento de construção e fortalecimento de uma rede pública. Certamente, fatores como favores políticos, beneficiamento de instituições ligadas às prefeituras ou Estados convergem para essa lógica, induzindo a assistência social ao jogo 300

patrimonialista local. E, sobretudo, evidencia o conservadorismo que ainda assola a política de assistência social pelos limites na sua efetivação como direito, decorrentes da falta de interesse em investir maciçamente na estruturação de uma rede pública de assistência social. Esse traço político colabora para consolidar as organizações privadas no âmbito da provisão de serviços assistenciais, o que “joga água no moinho dos processos de desresponsabilização do Estado e de socialização dos custos e da execução das políticas sociais, que se constituem no novel padrão de gestão e reprodução da força de trabalho” (SITCOVISKY, 2010, p. 163). Desse modo, tal contexto aponta um “risco enorme de que o SUAS - desenhado na Política Nacional de Assistência Social -, venha a se implantar de forma muito incompleta, e, pior, hipostasiando sua dimensão gerencial e mantendo atrofiada a rede de serviços públicos de Assistência Social” (RODRIGUES, 2011, p. 102). Em relação aos trabalhadores dessas entidades a pesquisa apurou que a lógica da precarização e da flexibilização das relações de trabalho também são imperantes. De acordo com o MDS (2011), o número de trabalhadores destas entidades até 2010 passava de 240 mil. Dados do IBGE (2012) apontam que o salário médio mensal dos trabalhadores das entidades de assistência social é de 2,4 salários mínimos. Uma remuneração muito baixa, se considerada a presença marcante de profissionais de nível superior na área, demonstrando a forte desvalorização da força de trabalho neste campo. E essa média somente foi possível em função de uma elevação de 7,8% nas remunerações nos anos recentes. “Este resultado, no entanto, é decorrente de um aumento no período de 2006 a 2008, pois, nos dois anos seguintes, verificou-se uma estabilização na remuneração desses profissionais” (IBGE, 2012, p. 71). Certamente essa estabilização dos salários nos anos posteriores a 2008 tem relação com a eclosão da crise das hipotecas americanas, cujos rebatimentos também se fizeram sentir nas entidades privadas sem fins lucrativos, no país em razão do desfinanciamento das ações públicas. Um dado ainda mais gritante é que a média de assalariados nas entidades que prestam serviços de assistência social é de 10,2 assalariados por entidade, mas o porte dessas entidades varia de 6,7 trabalhadores no Sul a 12,4 no Sudeste. Esse fato alude à importância do trabalho voluntariado nestas Instituições, demarcando não apenas a precarização do trabalho, mas o uso de força de trabalho não pago, que sob os supostos valores de altruísmo e o solidarismo propagado pelos aparelhos privados de hegemonia se espraiam em larga escala. A presença dessas entidades na prestação de serviços socioassistenciais se mantém no período de implantação e consolidação do PBSM. Dados do levantamento do IBGE (2015) para o período 2014-2015 indicam que a região sudeste permanece sendo a região com maior 301

incidência da atuação dessas entidades em complementariedade ao aparato público do SUAS, representando 52,5% do total. Em relação ao tipo de serviço realizado, 75,4% das entidades privadas se concentram na oferta do Serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, que é central na PNAS, seguido pelo serviço de Assessoramento/defesa e garantia de direitos (21,5%), Serviço de proteção especial para pessoas com deficiência, idosas e suas famílias (21,0%), outros (20,7%) e Serviço de acolhimento institucional (20,5%). Em relação à força de trabalho prevalece a mesma lógica voluntarista e precarizada, que incide contra a direção de profissionalização da área, bem como sobre as próprias determinações da NOB-RH/SUAS.

Gráfico 7 - Percentual de Unidades de Prestação de Serviços Socioassistenciais Privadas sem Fins Lucrativos, segundo o tipo de pessoal ocupado, estagiários e voluntários - Brasil - 2014-2015

Fonte: IBGE, 2015.

Os dados atestam a prevalência da força de trabalho voluntária e dos trabalhadores sobre regime de contratação temporária, reproduzindo a própria tendência histórica das relações de trabalho nessas instituições. As implicações desta realidade sobre a efetividade dos serviços socioassistenciais não são desprezíveis na medida em que a rotatividade de trabalhadores é uma constante, com rebatimentos sobre a continuidade de projetos e ações e na atuação dos trabalhadores que, subsumidos na condição precarizada de trabalho e sem vínculo empregatício estável com a própria política de assistência social, recorrem a outros vínculos trabalhistas e/ou acumulam funções com consequências para a qualidade do serviço prestado. 302

Retomando o mote acerca das principais atividades realizadas no âmbito do SUAS, temos que no campo da proteção social básica, considerando as atividades e serviços dos CRASs, as ações de maior frequência (99%) são o encaminhamento de famílias ou indivíduos para outras políticas públicas, acompanhamento de famílias e visitas domiciliares, seguidas de oficinas, reuniões, cursos, palestras e atividades esportivas (MDS, 2010). As atividades de cunho individual tem centralidade nas atividades dos CRASs, reproduzindo a lógica da hipertrofia do “Plantão Social” na agenda dos profissionais, demonstrando que se reproduz na atualidade a estratégia mais marcante no campo da assistência social em passado recente. A pesquisa do MDS também revela que o PAIF desempenha a função, em primeiro lugar, de acompanhar as famílias que não cumprem as condicionalidades do Programa Bolsa Família; em segundo lugar, por meio da rede socioassistencial, cumpre o papel de encaminhar as demandas para outros equipamentos sociais e, em terceiro lugar, atende as demandas emergenciais da população que chega “espontaneamente” aos CRAS à procura de benefícios. O trabalho de “prevenção” de riscos – isto é, de conscientização da população para que conheça seus direitos e se torne protagonista de sua própria vida – ainda é incipiente ou sequer começou (MDS, 2010, p. 89).

Estes dados, apesar de evidentemente não expressarem a realidade em suas múltiplas dimensões, nos dão um ponto de partida para pensar a centralidade do PBF no âmbito da assistência social, não apenas no que diz respeito à questão orçamentária, mas adentrando a própria organização dos serviços e da rotina de trabalho dos equipamentos. Além do acompanhamento de condicionalidades e outras atividades relativas ao cadastramento de famílias nos programas federais, destacam-se encaminhamentos a outras políticas e atendimento de “demandas emergências”. Ou seja, se compôs uma estrutura institucional que visa atender às determinações da PNAS e modernizar os arranjos de trabalho e institucionalidade da assistência social, mas prevalece a direção conservadora de centrar nas demandas mais imediatas, administrando as expressões da questão social que se colocam à política, limitando-se, na maior parte do tempo a individualização das demandas. Pode haver indagações se seria realmente paralelismo, já que o PBF é um programa de assistência social. Cabe então explicitar que, apesar de está inserido no âmbito de ações da proteção social básica da assistência social, o PBF não é citado literalmente no rol da nova Lei Orgânica da Assistência Social, chamada por muitos de “lei do SUAS”. Isto por que, a nova redação da lei inscreve o SUAS no âmbito da legislação orgânica da assistência social, com vistas a torna-lo menos impermeável aos desmandos de diferentes governos186. O PBF, por

186 É claro que uma lei por si só não impede o desmonte de uma política social, sobretudo, quando se trata de uma área de institucionalidade e estruturação ainda tão frágil. Veja-se, por exemplo, o que vem se passando com relação ao SUAS no governo Temer. Cf: SILVEIRA, Jucimeri Isolda. Assistência social em risco: 303

seu turno, apesar da legitimidade já conquistada, do impacto real no quadro de miséria do país e de sua importância como estratégia de apassivamento das classes sociais, não é explicitado na nova redação da LOAS. Pode-se, claro, encontrar um amparo normativo no Art. 6º-A, da Lei nº 12.435, de 2011, que citamos como a nova redação da LOAS, onde se afirma que : A assistência social organiza-se pelos seguintes tipos de proteção: I - proteção social básica: conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social que visa a prevenir situações de vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários; (BRASIL, 2011).

Além do mais, o PBF conta com uma lei de regulamentação própria,187 que visa demarcar claramente sua condição de programa emergencial à pobreza, via transferência de renda. A referida lei vincula o PBF ao âmbito da Presidência da República e conta com variados decretos e portarias188 que demarcam o caráter centralizado no executivo, expressão da discricionariedade ampla para atuação do governo à frente do programa. Comparando-se, por exemplo, com o PBC – regulamentado explicitamente no âmbito da LOAS, com regras precisas e, sobretudo, estabelecendo a vinculação da base de correção ao salário mínimo, o que denota regras claras quanto à ajustes –, podemos perceber alguns dos limites que estamos procurando tangenciar em relação à consolidação do PBF como um direito positivado. Essa comparação sobre a institucionalidade do BPC e do PBF foi esclarecido pelo IPEA, conforme descreve o texto abaixo. O BPC foi definido no marco jurídico-legal como um direito social; conse- quentemente, o poder público tem a obrigação de atender a todos que preencham as condições de acesso ao benefício e o solicitem. Ademais, cabe lembrar que se trata de um benefício no valor de um SM. Estes aspectos pressionam em favor de uma política de restrição do acesso operada pela linha de pobreza em vigor. O PBF, apesar de não poder ser reivindicado judicialmente como um direito social, tem sua cobertura atrelada à disponibilidade orçamentária e às metas fixadas para o programa, as quais, por sua vez, influenciam a linha de operacionalização dos benefícios (IPEA, 2014, p. 63).

Mota e Tavares (2016) assinalam que os programas de transferência de renda vêm se constituindo como “políticas de exceção”, qualificadas pelo Estado como sendo política de assistência e de enfrentamento à pobreza. As autoras fazem ressalva, no entanto, para apontar as diferenças entre os Programas de Renda Mínima de Inserção, (como por exemplo, o BPC, no caso do Brasil), que por “serem considerados um direito assistencial e inscritos nos rol dos conservadorismo e luta social por direitos. In: Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2017.

187 Lei Nº 10.836, de nove de janeiro de 2004.

188 DECRETO Nº 5.209 DE 17 DE SETEMBRO DE 2004; DECRETO Nº 6.135, DE 26 DE JUNHO DE 2007; PORTARIA GM/MDS Nº 246, DE 20 DE MAIO DE 2005; PORTARIA Nº 256, DE 19 DE MARÇO DE 2010. 304

benefícios da seguridade social” diferenciam-se dos “programas assistenciais, como programas de governo de que são exemplos os vigentes em todos os países da América Latina” (MOTA e TAVARES, 2016, p. 233). A centralidade do PBF faz desvelar que o mesmo é dotado de uma amplitude que excede ou se sobrepõe a própria política de assistência social. Observe-se a notoriedade do PBF no âmbito do MDS com uma secretaria própria, um órgão executor exclusivo (a Caixa Econômica Federal), além do que seus recursos não transitam pelo Fundo Nacional de Assistência Social e mesmo assim sequer conta com um aparato próprio de controle social. Sua dinâmica é de uma proporção tão grande que seu mecanismo de cadastramento transformou-se na base de dados sociais única para concessão de programas e benefícios do governo federal, o Cadastro Único (CADÚnico), como mencionado antes. Conta também com um recurso próprio para sua gestão nos municípios que é o Índice de Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família (IGD-PBF), que permite repasse de recursos em função do alcance de metas e indicadores quanto ao cadastramento e gestão do Programa nos diversos municípios.189 O PBF carreia e centraliza as atividades do SUAS, sobretudo na proteção social básica, com uma institucionalidade paralela que passa por dentro do próprio SUAS. O Programa recebe maior montante de recursos, conta com intervenção sistemática e intensiva do executivo no sentido de centralizar ainda mais essa modalidade de intervenção, acentuando a focalização e a seletividade, mas que requer do SUAS e suas equipes de referência atuação voltada para suas demandas, quando as demandas do próprio SUAS continuam atendimentos de modo fragilizado e precário. Por meio do PBF, há uma recentralização da relação entre os entes federados, que afeta o princípio da autonomia dos municípios. Essa questão, aliada à falta de recursos próprios para a assistência social, vem reeditando uma antiga relação entre governo federal e municípios, fazendo que eles sejam executores de programas daquele. Nesse bojo, há um aumento de contratos determinados por editais, em que o município entra com contrapartidas irrisórias para executar projetos definidos na União. A assistência social como política de Seguridade Social, orientada por princípios como a integralidade da proteção e a indivisibilidade dos direitos humanos, corre riscos caso permaneça aprisionada a uma institucionalidade endógena e direcionada por uma programática neoliberal em ascensão. A criação de instâncias, a elevada produção de normativas, a nacionalização do direito à assistência social foram processos fundamentais na construção de um novo modelo de gestão do conteúdo específico dessa política na proteção social brasileira. Entretanto, os processos de desmonte e redução de direitos podem ser ocultados pela racionalidade gerencialista por dentro do Suas (SILVA, 2015, p. 46).

189 Serviu inclusive de modelo para o SUAS que também implementou um Índice de Gestão Descentralizada do SUAS (IGD-SUAS). 305

Essa racionalidade gerencialista amarra a política de assistência social às necessidades de gestão da pobreza, cujo objetivo precípuo é administrar as manifestações mais disruptivas da crise do capital que tem relação com a reprodução da força de trabalho, a preservação da superpopulação relativa e o apaziguamento das tensões sociais inerentes. Moderniza-se o arsenal heurístico e normativo, implantam-se programas, projetos, ações e serviços que visam atuação mais eficiente e eficaz, no sentido do produtivismo que assola as políticas públicas, mas não no sentido de construções progressistas no campo da assistência social, e sim na direção de torna-la funcional e adequada às necessidades de reprodução das relações sociais estabelecidas. Isso se viabiliza centralizando mecanismos transitórios de provisão pública da reprodução da força de trabalho (TAVARES e SITCOVSKY, 2012), como o PBF, ao tempo em que direitos da classe trabalhadora são surrupiados, como aqueles relativos às relações e às condições de trabalho da empresa, previdência social, à saúde ou até mesmo uma perspectiva mais ampla do direito à assistência social e direito ao emprego com políticas voltadas para isso, mitigando a informalidade laborativa. Na narrativa governamental a perspectiva de modernizar a gestão da política de assistência social orienta a construção da rede de serviços do SUAS e, por isso, teria sido objeto de avaliações e reformulações dentro do esforço de superar as dificuldades e desafios postos ao processo. A assistência social é um espaço de disputas, e com todos os limites espaços como as Conferências Nacionais, o Conselho Nacional, Fóruns de trabalhadores do SUAS, de movimentos sociais ligados à área e de usuários conseguem exercer alguma pressão e colocam em debate pautas que visam contemplar a melhoria e qualificação do SUAS. Neste sentido, a constituição de um sistema de avaliação e monitoramento responde, contraditoriamente, a estas demandas de enfrentamentos de desafios para o avanço progressista da política, como assume uma direção que prima pela melhoria em indicadores meramente quantitativos. No cerne deste movimento contraditório, o Censo SUAS é um mecanismo acionado para acompanhar o desenvolvimento dos equipamentos sociais, que tanto pode servir ao desenvolvimento de melhorias nos aspectos de maior fragilidade, como também parametra uma lógica produtivista/quantitativa que se centra no auferimento de resultados para garantia de repasses de recursos federais, como é o caso do IGD-SUAS. De acordo com informações do Comitê de Estatísticas Sociais do IBGE, o processo de monitoramento da política de assistência social começa em 2007, com a implantação do CENSO CRAS através da Ficha de monitoramento. Em 2018 “foi implantado o questionário eletrônico, cujas informações declaradas pelos agentes municipais e do DF possuem fé 306

pública e constituem registros administrativos do sistema de informação do SUAS”.190 Os CREASs tiveram seu questionário implantado em 2009, e em 2011 foi ampliado o inquérito para os Conselhos estaduais e municipais, Gestores municipais e Estaduais, a Rede Privada e Centros de Referência Especializados para pessoas em situação de rua. Os últimos a incorporarem o inquérito foram as Unidades de Acolhimento em detrimento da Rede Privada, já em 2012. A produção de informações tem sido, portanto, uma estratégia transversal a toda estruturação não apenas do SUAS, mas alcança toda a política de gestão do MDS, incluindo o PBF. Tanto que se criou, na estrutura do MDS, uma Secretaria exclusiva para esse objetivo, a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI). De acordo com Campello (2014), o empenho em estruturar um sistema de monitoramento e avaliação de políticas e programas tem ganhado grande reconhecimento público, sendo considerada “uma inovação estratégica na Administração Pública Federal”. Segundo Estudo Técnico das pesquisadoras do MDS, instituições brasileiras, organismos multilaterais e missões técnicas de países a fora têm visitado o Brasil para “conhecer com mais profundidade essa experiência, os processos técnicos de especificação de pesquisas, o acompanhamento do levantamento de campo e da análise de dados” (CAMPELLO, 2014, p.08). De acordo com o MDS, a SAGI “ é a unidade do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) responsável pelas ações de gestão da informação, monitoramento, avaliação e capacitação de agentes sociais”.191 A SAGI atua em diferentes frentes, mas que se articulam entre si: produção de pesquisa para análise de impacto dos programas sociais; elaboração de indicadores que auxiliam no acompanhamento de programas e ações do MDS; e combinando estas duas frentes, compõem a terceira que é o auxílio aos gestores na gestão dos diversos segmentos que compõem o MDS. No que se refere à política de assistência social, especificamente, a SAGI tem um menu exclusivo para geração de relatório e boletins sociais, compilamento de dados, indicadores; produção de estudos técnicos, pesquisas tendo por objeto o SUAS, seus equipamentos e benefícios sociais; além do Censo SUAS. Uma série de ferramentas está disponível no portal da SAGI que permitem, segundo a própria secretaria, monitoramento e acompanhamento dos programas e serviços realizados no âmbito do SUAS. Um exemplo, a título de ilustração, é o Sistema de Informações do Serviço

190 Disponível em https://ces.ibge.gov.br/apresentacao/portarias.html?id=3581. Acesso em: 03/01/2018.

191 Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/portal/index.php?grupo=164. Acesso em: 03/01/2018 307

de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SISC) que permite “aferição dos atendimentos realizados, para fins de cálculo do cofinanciamento federal”192 e mais uma miríade deste tipo de ferramentas que se organizam da seguinte forma: Ferramentas para Coleta, Integração e Visualização de Dados; Instrumentos e Indicadores de Monitoramento; Avaliação, Capacitação e Disseminação; Ferramenta de Gestão Interna da SAGI. Entre elas podemos destacar: Censo SUAS, Gestão SUAS, Mapa de Oportunidades e Serviços Públicos (MOPS), Identificação de Domicílios em Vulnerabilidade (IDV), Mapas Temáticos de Vulnerabilidade, Registro Mensal de Atendimentos em CRASs e CREASs. Registro Mensal de Mobilizações; Relatórios e Informações para Gestão (SUASVisor), capacita SUAS, Portal Ead do MDS, entre outros. Além das ferramentas que são exclusiva da chamada RedeSUAS, como CadSUAS, Censo SUAS, SUASWEB, SISCONFERÊNCIA, Registro Mensal de Atendimentos (RMA), Sistema Seriado de Avaliação (SAS), Prontuário Eletrônico, Plano de Ação Todo esse arsenal construído para produção de dados e gestão da informação tem aspectos importantes do ponto de vista da sistematização de informações que podem ser relevantes para melhoria dos serviços, como aqueles que são trazidos pelo Censo SUAS e geram demandas e propostas a serem debatidas nas Conferências Nacionais, assim como podem fomentar a construção de mecanismos regulatórios que visem qualificar os serviços, como foi o caso da Tipificação Nacional dos Serviços, Benefícios e Programas Socioassistenciais. Por outro lado, em toda essa investida na formação de um sistema de avaliação e monitoramento prepondera a lógica produtivista, onde dados quantitativos de ações realizadas servem para cálculos de recursos e para melhorias de indicadores que por ventura não correspondem à realidade. O incremento à informatização e intensificação tecnológica para o trabalho no campo assistencial é parte da modernização do sistema, mas isso é realizado refirmando padrões conservadores para a política de assistência social. Então a ênfase na vulnerabilidade leva ao investimento na elaboração de mapas de identificação de domicílios em vulnerabilidade, o que converge com os fundamentos teóricos presentes na PNAS e que são corroborados na efetivação do SUAS dotando a institucionalidade da política em questão de um aparato requintado de “vigilância e controle dos pobres”. Tais empreendimentos expressam a capilaridade da lógica do Estado gerencial, impetrada no Estado brasileiro a partir da proposta de Reforma do Estado do Plano-MARE,

192 Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/catalogo/?id=923

308

explicitado no capítulo 2. O gerencialismo que chega à assistência social nos governos do PT fundamenta os mecanismos de produtivismo, pautado em mudanças técnicas e procedimentais que visam o alcance ótimo de objetivos quantitativos, com relação à cobertura e eficiência do sistema, procurando dotar a esfera da ação pública do padrão organizativo da empresa privada. Isso de fato imprime novos contornos à política, marcadamente descontínua e desprofissionalizada, mas se fez sobre orientação da racionalidade instrumental que hipostasia o aparato tecnocrático.193 Os sistemas de avaliação, desse modo, consolidados sob o mantra da modernização da gestão, introduziram formas de controle de metas, ações e dados que focalizam os resultados quantitativos. É a lógica instrumental e privatista do mercado que direciona, contraditoriamente, a ação pública, engendrando a racionalidade gerencialista com a maximização do impacto das ações minimalistas do Estado. Tais ações acabam ganhando um arcabouço técnico-administrativo tão robusto que canaliza as ações da política social para manuseio, alimentação e monitoramento destes dados a partir de variáveis empíricas- quantitativas bem ao gosto dos vieses neopositivistas enraizados nas estratégias de intervenção na questão social, sobretudo, nas questões atenientes à pobreza. Claro, não podemos minimizar a importância de pesquisas, diagnósticos e levantamentos de dados, quando estes subsidiam o real conhecimento da realidade onde os serviços socioassitenciais da assistência social vão incidir e quando desvelam as reais demandas coletivas dos usuários. Mas, contraditoriamente, esse modus operandi hipertrofia a focalização, para ação cada vez mais segmentada e segregada. O arsenal de informações produzidas na maioria das vezes não responde às demandas de conhecimento concreto da realidade, mas a captação de dados pontuais cristaliza a ação da política por meio do enquadramento da realidade aos padrões metodológicos engessados, muito ao gosto neopositivista.

193 Segundo Guerra (2014), a racionalidade é uma propriedade da razão e “vincula-se às formas de concebê-la; por isso tem na razão o seu fundamento de determinação que é expressão da própria realidade” (p. 79). Assim, a racionalidade pode assumir diversas modalidades que estão diretamente ligadas aos “projetos societários aos quais subjazem”. Neste sentido, a racionalidade instrumental nega a razão dialética, que é um dos pilares da concepção de razão moderna que esteve na base do movimento de ascensão burguesa quando da sua condição de classe progressista\revolucionária. A racionalidade instrumental descarta as potencialidades concretas das propriedades da razão como faculdade de apreensão do real que “incorpora a contradição, o movimento, a negatividade, a totalidade, as mediações, buscando a lógica de constituição dos fenômenos, sua essência ou substância. (GUERRA, 2014, p. 29). A racionalidade instrumental está circunscrita ao estreito e limitado âmbito das operações formais-abstratas e das práticas manipulatórias, que oferecem “explicações” rasas, já que operam no nível imediato e aparente da realidade, fragmentando, desistoricizando e segmentando esta realidade, de modo que ela seja “teoricamente” explicada e justificada, mitigando suas contradições, naturalizando seu curso. Ela corresponde, assim, as necessidades do projeto societário burguês, uma vez que possibilita reproduzir a ordem vigente, visto que não requer nem possibilita questionar radicalmente a realidade concreta e aprendê-la em sua totalidade. 309

A modernização conservadora no campo da assistência social passa por essa nuance da intensificação de produção de software, ferramentas digitais e informacionais, base de dados cadastrais que geram um volume de informações, sobre as quais os sujeitos que as fornecem não têm controle.194 A padronização de necessidades sociais via análise destas informações e a constituição de indicadores que fomentam e aprofundam o padrão focalizado e seletivo tem sido muito eficaz na definição dos rumos da política de assistência social, contribuindo para reforçar uma lógica de intervenção nas expressões mais acirradas da questão social, convergindo num processo cada vez mais ampliado de gestão da pobreza. De acordo com Silveira Jr. (2016), a narrativa governamental justifica esse choque de gerencialismo na política de assistência social em função do fato de que as dificuldades que foram se colocando ao longo dos anos iniciais do SUAS se deviam a falta de uma “perspectiva abrangente para o desenvolvimento dos seus processos de gestão”. Neste sentido, Mota, Maranhão e Stcovsky (2010) apontam que nos documentos sobre o SUAS, o processo de gerenciamento de informações tem um lugar destacado na organização e funcionamento do sistema: “Sejam estas informações de natureza cadastral, diagnósticos, pesquisas, censitárias etc., o fato é que delas dependem o acompanhamento , avaliação e o monitoramento da PNAS ( p. 194). Neste particular, o SUAS tem no sistema de informações e monitoramento um mecanismo central no seu modus operandi, e para a narrativa oficial este sistema informatizado é uma das principais inovações no campo da assistência social, permitindo uma intervenção pública mais eficiente e com maiores resultados. Tal estratégia atende às determinações que vem desde o início da contrarreforma gerencial do Estado, que se apresentava como estratégia de modernização do Estado brasileiro. Desde então, as práticas e estratégias gerencialistas têm sido embutidas nas políticas públicas colocando novas determinações na efetivação dos serviços sociais. nessa programática gerencialista uma propensão para a responsabilização dos trabalhadores, gestores e técnicos, pelos resultados (ou óbices) das políticas sociais. Aplicadas essas estratégias, seriam sob as costas dos gestores e técnicos que recairiam, tanto as exigências de êxito quanto o malogro dos resultados da política social (SILVEIRA Jr, 2016, p. 191).

194 Em maio de 2017 o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) lançou o Consulta Cidadão, ferramenta pela qual o governo Temer afirma ter o objetivo de facilitar o acesso do cidadão aos dados do Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal e está disponível no site do órgão. https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/consulta_cidadao/.

310

O esforço de intensificação dessa programática gerencialista se realiza continuamente num dos seus aspectos centrais que é a tecnologia da informação, conforme expressam os próprios técnicos do MDS. À medida que a ação do MDS é ampliada aumenta, na mesma dimensão, o volume de dados e informações com os quais opera, o que exige o uso intensivo de Tecnologia da Informação (TI) para dar suporte a uma complexa operação de gestão que envolve as áreas específicas do MDS e os parceiros na implementação das políticas sociais, como governos de estado, prefeituras municipais e entidades sociais (RODRIGUES e LOPES, 2007, p. 22)

Na perspectiva de Rodrigues (2007), o uso da tecnologia da informação visa à centralização da informação, possibilitando um fluxo entre produtores, receptores e transformadores, conforme a figura abaixo.

Figura 1 – Modelo de classificação de Atores

Fonte: Rodrigues, 2007.

Explicando a lógica instrumental dessa estratégia, o autor esclarece que os grupos produtores de dados e informação são aqueles que, a partir da realidade, registram dados administrativos que possam ser utilizados futuramente; já o consumidor de informação e dados são demandantes que, no nível estratégico, utilizam a informação para a produção de relatórios e instrumentos de planejamento, que servirá de suporte para tomadas de decisão, ou seja, os atores do mais alto escalão da gestão da política; e por fim, os transformadores de 311

dados, os quais recebem os dados ainda brutos (não tratados, mas já classificados e ordenados) a fim de serem contextualizados conforme os objetivos dos gestores públicos. Resumidamente, diz a narrativa governamental que usando como “fontes imediatas os produtores de dados, seguindo a seqüência produção>> transformação >> consumo; ou podem ser iniciadas a partir de dados já previamente armazenados, seguindo a sequência produção >> armazenamento >> consumo” (RODRIGUES, 2007, p. 45). Chama a atenção as categorias usadas nesse fluxo de trabalho, reiterando a mistificação operada pela instrumentalização empresarial como mostram estudos de Antunes (2007), mas aqui transmutada na instituição pública, lançando mão de nomeações caras ao pensamento crítico, como produção, produtos, transformação. A própria noção de interpretação é limitada à reificação e ao cruzamento de informações, numa equação mais ou menos delimitada a priori de modo standartizado e não aberto á criação teórico-empírica dos profissionais.

Quadro 5 - Distribuição dos Papéis das Unidades Organizacionais

Fonte: Coelho Jr. e Lima, 2007.

A criação da Rede SUAS visou estabelecer um sistema exclusivo, já que a SAGI contempla todos os programas do MDS, que comporta também a Política de Segurança Alimentar. As duas figuras seguintes nos ajudam a entender o esquema de ampliação e expansão de um sistema de informações e monitoramento de dados na área. 312

Figura 2- Estrutura de Fluxo do SUASweb em 2004/2005

Fonte: Coelho Jr. e Lima, 2007.

Em 2007 o Sistema de Informações do SUAS já havia avançado de modo significativo com vários novos aplicativos e ferramentas que incrementam o fluxo das informações, conforme se observa na figura seguinte

313

Figura 03 – Esquema Geral da Rede SUAS

Fonte: Lima et al, 2007.

Vimos, então, que a tecnologia da informação se insere no cerne da lógica gerencialista que visa uma gestão mais eficiente do ponto de vista do maior impacto com o menor custo, ou seja, acabam por serem ferramentas que visam racionalizar o trabalho e a ação pública, na esteira do legado conservador neoliberal de metas para organização dos serviços públicos. A produção de informações no campo da política de assistência se insere em uma das referências de organização dos serviços socioassistenciais do SUAS, a vigilância socioassistencial. Conforme definição da NOB-SUAS (2012), a vigilância sociassistencial “é 314

caracterizada como uma das funções da política de assistência social e deve ser realizada por intermédio da produção, sistematização, análise e disseminação de informações territorializadas” . Trata: I - das situações de “vulnerabilidade e risco” que incIDEM sobre famílias e indivíduos e dos eventos de violação de direitos em determinados territórios; II - do tipo, volume e padrões de qualidade dos serviços ofertados pela rede socioassistencial (NOB- SUAS, 2012, p. 40). O modelo de gestão do SUAS preconiza formalização das áreas internas da assistência social enquanto subdivisão administrativa das secretarias, isto é, a constituição de segmentos específicos para cada área determinada: por exemplo, Setor de Proteção Social Básica; Setor de Proteção Especial e assim por diante. O Censo SUAS 2010 aponta que um dos segmentos com menor grau de institucionalização era a vigilância socioassistencial, estando constituída como subdivisão interna nos órgãos gestores da política de assistência social em apenas 45,4% dos municípios. Este dado, porém, não significa que a vigilância sociassistencial não aconteça efetivamente na maior parte dos municípios. Significa apenas que não existe um departamento específico para gestão dessa função, e assim as atividades relacionadas a área são realizadas pela proteção social básica e especial, mediando a intensificação do trabalho das equipes de referências tanto dos CRASs como dos CREAs, já que a produção, sistematização e envio de informações às instâncias de gestão municipal, estadual e da União são imprescindíveis para repasse de recursos. De todo modo, a vigilância sociassistencial parece incidir muito mais na coleta de dados e informações, do que no retorno em melhorias aos serviços, uma vez que o próprio Censo-SUAS revela a cada ano a continuidade da precarização dos equipamentos sociais e das condições de realização dos projetos e serviços pelas equipes de referências dos CRASs e CREASs. Mas, ela age na linha de frente quanto à “vigilância dos pobres”. Do ponto de vista da necessidade legítima e fundamental de conhecer a realidade e as demandas dos usuários, a coleta de dados, a busca de informações, a construção de pesquisas para embasar planejamentos, avaliação e elaboração de programas e projetos que de fato atendam às necessidades do público da política de assistência social, um trabalho assíduo e contínuo de aproximação às diferentes realidades dos municípios tem grande valia. No entanto, essa possibilidade de estudo é delimitada pela coleta previamente definida e envolve técnicos do nível central! Aos profissionais da execução direta não sobra tempo para pensar sobre o sistema de informação de modo que se trata de um tipo de gestão que aprofunda a segmentação entre os que planejam e os que executam o trabalho, que é outro indicador de alienação no trabalho. 315

Ao que se apresentam repetitivos, vigora muito mais uma dinâmica de gerenciamento de dados, do que o efetivo conhecimento da realidade. Em termos dos fundamentos teóricos que embasam essas práticas concretas, parece presidir a concepção de “controle e vigilância moral dos pobres”, que centra nos conceitos “risco e vulnerabilidade social”, com forte apelo psicologizante e vigilante, que auxiliam nas técnicas de “aferição de pobreza”, de inviabilização das “fraudes” de usuários, de categorizar e segmentar sujeitos a partir de dados, segundo a incidência dos “riscos e vulnerabilidades” (PEREIRA e STEIN, 2010). Para Amorim (2015) o Estado brasileiro, na última década, exerce controle sobre a classe trabalhadora pela via de uma contraditória ação punitiva e social, “que se realiza de forma simultânea e co-determinada pelas políticas da assistência social e criminal” direcionada, sobretudo, aos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora. No que tange a política de assistência social, a autora problematiza justamente a funcionalidade da vigilância socioassistencial na execução desse controle, no que ela chama de via social. O controle passa por uma regência que opera níveis de elegibilidade e categorização de sua população, que migra de um atendimento para outro conforme determinados critérios, porém sobre uma base constante de controle e vigilância (COHEN, 1988), através de uma abordagem ora punitiva e repressiva, ora garantidora de benefícios que reconheçam seus direitos. É a classe trabalhadora pobre que está sendo controlada pelos mesmos dispositivos correlacionados de categorização, e sob foco das políticas públicas de assistência social e criminal, com um forte respaldo cultural e ideológico criminalizador da pobreza (AMORIM, 2015, p. 181).

Na seção seguinte, demonstraremos o reforço à lógica paralela do enfrentamento à pobreza, via Plano Brasil sem Miséria e os mecanismos que condensam esse processo que envolve o fetiche das técnicas de gestão.

4.3 O Plano Brasil sem Miséria: reprodução do paralelismo e intensificação da perspectiva gerencialista

O PBSM é criado sete anos depois da aprovação da PNAS, em um contexto onde a implementação do SUAS é um processo consolidado, já com serviços socioassitenciais em todos os municípios brasileiros. No rastro do PBF, o PBSM reúne todo o esforço estratégico- operacional do governo Dilma para focalizar a pobreza, tornando-se um programa central para o campo social aos olhos da presidenta, donde se note a vinculação direta do Plano ao gabinete presidencial, assim como foi o Programa Fome Zero, com o presidente Lula. Vale 316

dizer que apesar do adensamento operacional dos serviços, a campanha eleitoral galvanizou críticas ao PBF, particularmente à sua efetividade – dos trabalhadores inscritos terem acesso a outras ações públicas importantes para qualidade da reprodução social (IVO e EXALTAÇÃO, 2010). A presidenta, ainda como candidata, apresenta a proposta de melhorar a gestão e articulação dos serviços públicos. Não se trata, porém de uma opção pessoal, mas guarda relação com o próprio movimento complexo da realidade brasileira, em meio às contradições da crise capitalista, e ao acirramento das expressões da questão social, como a pobreza. Afunila-se ainda mais a convergência entre a política de assistência social e as determinações dos organismos internacionais no sentido da focalização nos mais pobres como mecanismo de construção do consenso. Isto é, atuar sobre a pobreza como forma de amenizar os efeitos mais deletérios do desenvolvimento capitalista na cena contemporânea, legitimando as práticas sociais e buscando o consenso junto à classe trabalhadora quanto à manutenção de determinada ordem de coisas, ou, mais especificamente, sobre a forma determinante das relações sociais nessa conjuntura, de agravamento do desemprego e da precariedade da vida urbana e social. A filiação direta à presidenta da República denota, porém, um traço particular que merece ser comentado. Conforme veremos, toda narrativa do PBSM versa sobre sua incidência no sentido de suprimir os gargalos do PBF no que tange à garantia da intersetorialidade e da integralização das ações focalizadas. Isto somente ocorreria mediante uma intervenção de grande magnitude, cujo alcance técnico esperado somente poderia ser alcançado mediante aplicação e melhoramento das ferramentas e técnicas de gestão. Estava impressa na lógica que presidiria tal processo uma espécie de fetichização da gestão, que viabilizaria superar as patentes falhas do governo federal em relação às ações de “combate à pobreza extrema”.195 Uma ação de tal envergadura requeria um amplo suporte tanto técnico, quanto de legitimação pública. A ótica do privilegiamento da coordenação de um plano que incluía tantos atores políticos e instituições diferentes seria garantida mediante articulação da autoridade máxima do país, a própria presidenta da República. Ainda que posteriormente a dimensão do Plano ganhe outras proporções, ele é sustentado inicialmente na figura da Presidenta como suposta garantia de que os limites do PBF seriam agora suplantados, uma vez que a própria presidenta estaria à frente da estratégia, garantindo com seu poder a centralidade da ação e a racionalidade necessária ao alcance dos objetivos.

195 Ver a esse respeito Mauriel e Godinho (2015), quando tratam do papel do Brasil sem Miséria no governo Dilma. 317

Segundo Campello e Mello (2014), a construção do PBSM partiu do grande acúmulo das políticas implementadas desde 2003, dando continuidade às experiências exitosas196 e buscando aperfeiçoá-las, no sentido de garantir que as famílias já atendidas pelo PBF, que ainda se encontravam em condição de extrema pobreza, pudessem superá-la, além de suplantar os gargalos do programa no que tange ao acesso do público-alvo aos serviços públicos básicos. A formulação de cada eixo que compõe o Plano se deu em função da identificação das dificuldades e demandas específicas na experiência do PBF. Eixo Garantia de Renda: Inclusão da população elegível no Cadastro Único e PBF; Aumento da eficácia do PBF, com foco nas crianças e adolescentes; Compensar a defasagem entre a linha de extrema pobreza nacional e linhas estaduais; Existência de famílias que mesmo com o PBF ainda não superavam a extrema pobreza. No eixo Inclusão Produtiva Urbana: Dificuldades dos empreendedores individuais que já tinham ou queriam iniciar um negócio próprio; Aumento do acesso a cursos de qualificação de mão de obra visando melhores colocações no mercado de trabalho; Ampliação do apoio a cooperativas e associações de economia solidária; No Eixo Inclusão Produtiva Rural: Melhoria do acesso a luz e água (semiárido); Produção insuficiente gerando insegurança alimentar e excedentes escassos para comercialização em função da falta de assistência técnica adequada à realidade da população rural pobre e da falta de insumos para investimento na produção; Dificuldades de acesso aos canais de comercialização; E, finalmente, o eixo Acesso a Serviços Públicos: Oferta insuficiente ou inadequada para atender aos mais pobres; Atendimento inadequado à população mais pobre (preconceito, desrespeito, constrangimento (CAMPELLO e MELLO, 2014). Além, disso, mesmo em face dos avanços com as políticas sociais compensatórias dos governos Lula, um importante contingente populacional ainda encontrava-se preso no ciclo da pobreza, e justamente as famílias em situação de maior “vulnerabilidade social” ainda não haviam sido alcançadas197 pelos programas governamentais nomeados como de “enfrentamento à pobreza”. Em 2010, segundo as autoras, começaram os debates sobre os desafios a serem enfrentados para garantir a continuidade da queda da desigualdade social e da pobreza no país.

196 “Foi o caso do Programa Bolsa Família, considerado o maior e mais bem focalizado programa de transferência condicionada de renda do mundo, e das ações de acesso à água e energia, dentre outras” (CAMPELLO e MELLO, 2014, p. 34). 197 Nesta direção, a instituição do mecanismo denominado de “Busca Ativa” se constituiu como estratégia central do Plano para alcançar tal público. Trataremos dele mais adiante. 318

O binômio elevação do emprego e distribuição de renda havia sido o principal responsável pelo alcance de resultados positivos em um curto período de tempo. Entretanto, diferentes setores concordavam, no âmbito das discussões sobre desenvolvimento social, que era essencial aprofundar as políticas de redução das desigualdades e de ampliação da rede de proteção social, garantindo que o núcleo duro da pobreza fosse também incluído no ciclo de desenvolvimento pelo qual passava o país. (IDEM, p. 36-37).

Em 6 de janeiro de 2011, nos primeiros dias do início do governo, a presidente Dilma convocou ministros de vários ministérios para uma primeira reunião, cujo objetivo era traçar uma meta de superação da extrema pobreza no Brasil. Entre 11 e 12 de janeiro foram realizadas outras reuniões 198 que deu início a montagem da estratégia imaginada por eles para superação da extrema pobreza.199 Assiste-se, mais uma vez, a estruturação e a implantação de um programa de “alívio à pobreza”, que reforça o nexo do próprio PBF, reproduzindo a recalcitrante lógica de paralelismo de programas, ainda que o discurso hegemônico fosse justamente suplantar o paralelismo, a sobreposição e a fragmentação das ações. Sob a retórica da “inovação da gestão pública”, a investida do PBSM é feita na direção de aprofundar a lógica gerencial, acoplando novas nuances ao ajustamento da atuação estatal

198 Estas reuniões contavam com a presença do Comitê Gestor formado pela Casa Civil da Presidência da República (CC/PR), pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), pelo Ministério da Fazenda (MF) e pelo MDS e os ministérios do desenvolvimento Agrário (MDA), da Educação (MEC), da Saúde (MS), das Cidades (MCidades), do Trabalho e Emprego (MTE) e da Integração Nacional (MI) (CAMPELLO e MELLO, 2014).

199 O termo mais utilizado nos documentos, artigos e outras publicações do Plano Brasil sem Miséria e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome é extrema pobreza. De acordo com Falcão e Costa (2014), a definição de uma linha de extrema pobreza para nortear as estratégias do Plano Brasil sem Miséria foi uma das questões mais basilares para sua configuração. Segundo eles, “o parâmetro de extrema pobreza estabelecido para o Plano Brasil sem Miséria é uma linha administrativa, com característica de linha absoluta com valor referenciado em uma cesta de alimentos”, esta definida segunda as necessidades calóricas básicas para a sobrevivência de um ser humano (2014, p. 74). Deste modo, no ano de lançamento do Plano, adotou-se a mesma linha da extrema pobreza do Programa Bolsa Família, que era de R$ 70,00 per capta mensais. Em 2014, há um ajuste neste valor, passando a serem consideradas em extrema pobreza, famílias com renda per capta mensal inferior a R$77, 00. É importante deixar claro, que tais critérios para aferição da pobreza são amplamente problematizados, sendo objeto de crítica das mais variadas filiações teóricas e políticas. Na perspectiva aqui adotada, a pobreza não pode ser definida a partir, exclusivamente, do critério de renda, visto que a compreendemos como fenômeno diretamente associado à forma como à riqueza é produzida e apropriada na sociedade. Assim, “a distinção entre pobreza (pauperização) absoluta e relativa, na tradição marxista, nada tem a ver com os indicadores geralmente utilizados para a mensuração da pobreza. De fato, os trabalhadores experimentam, no curso do desenvolvimento capitalista, processos de pauperização que decorrem necessariamente da essência exploradora da ordem do capital. A pauperização pode ser absoluta ou relativa. A pauperização absoluta registra-se quando as condições de vida e trabalho dos proletários experimentam uma degradação geral: queda do salário real, aviltamento dos padrões de alimentação e moradia, intensificação do ritmo de trabalho, aumento do desemprego. A pauperização relativa é distinta: pode ocorrer mesmo quando as condições de vida dos trabalhadores melhoram, com padrões de alimentação e moradia mais elevados; ela se caracteriza pela redução da parte que lhes cabe do total dos valores criados, enquanto cresce a parte apropriada pelos capitalistas. Insista-se em que esta distinção, própria da tradição marxista, não pode ser confundida com a pobreza “absoluta” e a pobreza “relativa”, que expressam outros referenciais teóricos” (NETTO, 2007, p. 13).

319

à racionalidade que preside a dinâmica da própria empresa privada. Isto é, a corrida permanente por novas alternativas que contribuam com uma maior efetividade e eficiência da política ou ação empregada, com vistas à maximização do princípio de menor custo-benefício possível. O Plano, desse modo, é apresentado e implementado sob esse prisma da inovação na gestão que pode aperfeiçoar à intervenção do Estado na direção do que esse mesmo léxico conceitual do Estado gerencial define como “empreendedorismo corporativo do setor público”. Neste âmbito teórico, o comportamento gerencial está diretamente relacionado com as possibilidades de inovações positivas para o âmbito da ação do Estado na proposição e coordenação de políticas públicas e sociais. Não é por acaso que o PBSM aparece como um grande empreendimento inovador do Estado brasileiro, sob a direção petista, que teria permitido um novo patamar para a “política de alívio à pobreza”, sendo um marco no campo estratégico do campo da gestão pública. Tanto é assim que o Plano aparece no rol das práticas públicas premiadas por seu aspecto inovador no campo do monitoramento e da coordenação intergovernamental, no “Concurso Inovação na Gestão Pública Federal”, que reconhece e premia as ações de inovação no campo da gestão pública na União (CAMÕES, SEVERO e CAVALCANTE, 2017).200 O reconhecimento internacional também é evidente. A OIT, ao lançar apelo aos países do G20 em favor de políticas de criação de emprego para garantir um “crescimento econômico robusto, sustentável e equilibrado”, apresenta entre as políticas exitosas a experiência do PBSM por combinar pagamento em dinheiro, oportunidades de emprego e acesso aos serviços sociais às camadas mais pobres da população. Em várias oportunidades a própria presidenta Dilma ressaltou a grande importância que o Plano tinha no combate à pobreza e na sua configuração como estratégia inovadora com grande impacto sobre a intervenção do governo brasileiro no “combate à pobreza”. A entonação exitosa em torno do Plano e o entusiasmo da Presidenta sempre deram o tom de suas considerações acerca do PBSM, enaltecendo, inclusive, o potencial de reprodução internacional da estratégia, conforme expresso no seguinte pronunciamento: “Nos últimos 10

200 Neste mesmo Concurso, já foram premiados: a criação do sistema de avaliação e monitoramento das políticas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) junto com a criação da Rede Suas (na edição de 2006); o Cadastro Único (premiada em 2007); a gestão de condicionalidades do Programa Bolsa Família (premiada em 2010); o Censo Suas (premiada em 2011) (CAMÕES, SEVERO e CAVALCANTE, 2017). 320

anos, não estamos apenas conseguindo superar a miséria no nosso país, mas estamos importando a forma de superar a pobreza para outros países.”201 Sob a narrativa de um modelo mais eficaz para a gestão das ações de “alívio à pobreza”, o Plano assegura a prevalência de uma racionalidade típica da forma capitalista de socialização, frisando o controle de resultados, a flexibilidade das ações, o apelo à tecnologia da informação como mecanismo logístico para exame contínuo de índices, indicadores e variáveis empíricas que auxiliem o alcance dos objetivos e metas preestabelecidos. Mais incisivamente podemos afiançar que consolida um fetichismo da técnica de gestão como impulsionadora dos anseios políticos do PT, agora com Dilma à frente da Presidência da República. Trata-se de dar continuidade ao projeto petista de “combate à pobreza”, mas agora tratando de reorganizar, melhor direcionar e rearticular todo aparato do Estado que atua neste âmbito de intervenção pública, para garantir que aquele projeto político tivesse continuidade. Evidentemente não se trata de dá outra direção à política social, mas sim de reordená-la sob a ótica da gestão, trazendo para o comando outras áreas governamentais, com a clara intensão de que os flancos ainda reticentes às aspirações do PT fossem superados. De acordo com De Maria (2015), ao reunir sobre um mesmo plano diferentes linhas de ação e diversas políticas sociais e Ministérios, o PBSM funcionou como uma espécie de “guarda-chuva” voltado a atingir os objetivos dos três eixos que o integram. Isto se configura, na visão governamental, como importante estratégia do Plano, no sentido de superar a fragmentação e desarticulação dos inúmeros órgãos federais que lidam com a proteção social. Sob o argumento da intersetorialidade das ações governamentais,202 o discurso que delineia todo o Plano é o de “convergir sinergias positivas”, articulando forças e atores do governo e da sociedade civil para o “enfrentamento à pobreza”. Uma análise mais detida sobre o PBSM mostra muito mais a incidência de uma lógica intreprogramática que propriamente intersetorial. Almeida (2010) assinala que é preciso retomar sempre o fato de que a própria constituição das políticas sociais, como mecanismos públicos de intervenção sobre as

201 Discurso proferido pela Presidenta em função do anúncio sobre a complementação de renda do Programa Bolsa Família como uma das ações do Plano Brasil sem miséria. Disponível em: http://www.portalfederativo.gov.br/noticias/destaques/governo-amplia-plano-brasil-sem-miseria-a-mais-2-5- milhoes-de-pessoas Acesso em: 09/02/2018.

202 Pereira (2014) afirma que a intersetorialidade é um termo polissêmico e possui uma identidade complexa, podendo ser dotada de ambiguidades e incoerências. Neste interim, a intersetorialidade é designada sobre diversos aspectos como: nova lógica de gestão, estratégia de articulação entre setores específicos, instrumento de otimização de saberes. 321

expressões da questão social, demarca uma fragmentação da vida social, uma setorilialização das necessidades sociais. Neste sentido, é importante reter que A intersetorialidade tem como pressuposto prático, semântico e conceitual a própria setorialização das políticas públicas, ou seja, só é possível pensarmos a intersetorialidade como uma tentativa de superação de uma lógica a partir da qual ela adquire significação, a negação de uma tese, enquanto antítese, na medida em que representa uma unidade contraditória. A trajetória das políticas públicas na esfera local sedimenta o terreno sobre o qual as experiências de intersetorialidade se constroem. Ainda que a própria literatura aborde e aponte a necessidade de mudanças em diversos níveis da gestão governamental como forma de assegurar uma efetiva lógica intersetorial, foi no cotidiano das instituições sociais, nas tramas e fios que se tecem nas redes sociais e nos espaços públicos que ela surgiu não só como necessidade, mas como possibilidade, como processo que se constrói no curso das próprias ações dos profissionais e viventes que se relacionam em torno das diferentes dificuldades presentes no acesso e na capacidade resolutiva das políticas públicas na cidade (ALMEIDA, 2010, p. 114-115).

Neste particular, o autor também atesta a importância da intersetorialidade na construção de práticas de gestão democráticas e que auferem novas perspectivas para integralidade das ações. A dinâmica de debates e práticas concretas no campo da gestão pública e das políticas sociais sempre está permeada por contradições latentes que implicam na luta política-ideológica em torno do sentido e da direção que práticas e saberes assumem na realidade da vida concreta. As disputas correntes entre noções afinadas com a hegemonia burguesa das determinações de suas instituições orgânicas e novos debates e práticas inovadoras que procuram convergir para a democratização e ampliação do alcance das políticas sociais fazem parte da própria disputa em torno da direção social do Estado. Corroborando a perspectiva da abrangência de abordagens do tema, Monnerat e Souza (2014) apontam que tem predominando a compreensão de intersetorialidade como uma estratégia de gestão voltada para a construção de interfaces entre setores e instituições governamentais ( e não governamentais), visando o enfrentamento de problemas sociais complexos que ultrapassam a alçada de um só setor de governo ou área de política pública (MONNERAT e SOUZA, 2014, p. 42).

A política de assistência social assume a agenda da intersetorialidade como suposto mecanismo de enfrentamento à fragmentação, pulverização e paralelismo de ações que marcaram o processo inicial de regulamentação da política, a partir da aprovação da LOAS, conforme atestam Schutz e Mioto (2010). As autoras atestam ainda que a intersetorialidade tem sido fortemente evocada na estruturação do SUAS e como estratégia de superação da pobreza. Este tema atravessa praticamente toda constituição da estruturação do SUAS e ganha ainda maior apelo estratégico e também ideológico no campo dos programas de “alívio à pobreza”. Em programas como PBF e com maior destaque no PBSM a pobreza passa a 322

receber um enfoque multidimensional, que abordaremos posteriormente. Tal enfoque, endossado pelo PBSM, é apresentado como grande avanço no trato à pobreza no país, mas deixa clara a influência de Armatya Sen e suas colaborações ao Banco Mundial, no que tange as ideias do indiano acerca da impossibilidade de pensar a pobreza somente pelo ponto de vista da renda per capta, atestando os condicionantes das privações de capacidades básicas. É sob este espectro teórico-ideológico que a questão da intersetorialidade ganha envergadura, pois na medida em que a pobreza é um fenômeno multidimensional, seu enfrentamento requer uma intervenção sistemática e abrangente, o que demandaria uma ampla articulação entre diversos setores governamentais e não governamentais. É aí que a intersetorialiadade ganha realce, com rebatimentos na política de assistência social, sob o viés que viemos aludindo. Trata-se, portanto, de uma acomodação de programas, ações, estratégias e setores, que, articulados mediante um ente gestor central, visam, dentro dos limites da racionalidade instrumental neopositivista, endossar o gerenciamento político-administrativo do fenômeno da pobreza. Isto por que, a concepção e os limites da razão manipulatória do Estado capitalista tão somente percebem os defeitos de formas, de organização e de arranjos setoriais. Os óbices ao alcance de resultados mais eficazes seriam suplantados a partir de uma suposta intersetorialidade ampliada, fomentada pelo PBSM, que para a retórica governista convergiriam para maximização dos resultados, por meio de mecanismos de instrumentalização e controle das ações previamente determinadas. Essa mesma lógica não permite a apreensão das próprias contradições do Estado burguês e dos limites tangentes de tais estratégias, que se limitam à manipulação imediata de variáveis e dados para atenuar as próprias expressões dos paradoxos de um Estado classista. Esse Estado que não pode ir além de medidas gerencialistas, visto que sua ação está circunscrita ao estreito limite das concertações administrativas, que por mais extensivas e complexas que possam ser se limitam à apuração de dados quantitativos, portanto jamais abarcariam a raiz do problema que visa resolver. Isto por que, além dos limites teórico-metodológicos para uma compreensão da dinâmica do próprio real, a saída petista para enfrentar as contradições do desenvolvimento capitalista gira sob a órbita das possibilidades de melhorias residuais, minimamente impactantes do ponto de vista da distribuição concreta de riqueza. Ao lidar com a pobreza – componente inexorável e resultante insuprível do modo de produção capitalista – o partido dos trabalhadores centrou a direção de suas opções político-governamentais num padrão de intervenção assentado na seletividade e na focalização, com pífia ressonância no orçamento 323

público, por exemplo. Ou mesmo tornou os profissionais de campo como agentes teoricamente potentes para pensarem a realidade social humana. O automatismo sugerido pelos instrumentais de trabalho do PBSM limitam os feixes de ações e parece que esse era o sentido mesmo do gerencialismo. Sob a ótica do Estado – e não unicamente sob a direção petista – as expressões da questão social, como o fenômeno da pobreza – são fragmentadas, compartimentalizadas em segmentos, setores, políticas específicas. Além de ser uma estratégia de “setorializar” demandas da classe trabalhadora que são indissociáveis, por que são complexos componentes de uma totalidade engendrada mediante as contradições das classes sociais, o Estado responda um pressuposto da sociabilidade erigida sobre o capital que é a divisão do trabalho. Ao responder às demandas postas pelos conflitos de classe e assumindo a racionalidade que impera sob o capitalismo, o Estado realiza suas atividades mediante a divisão do trabalho. Esta contém a própria essência do trabalho parcelar, fragmentado, que não pode ser superado, sem que sejam superadas as condições que lhe sustenta.203 Assim, toda ação do Estado é submetida às consequências danosas da divisão do trabalho. A própria estruturação do Estado expressa muito claramente essa divisão com os Ministérios, Secretarias, Programas, todos agindo sobre uma determinada “fração” da realidade social, sendo dotado de uma institucionalidade, legislação e coordenação próprios. Além de responderem às dinâmicas das coalizões políticas, de modo que cada ministro ou setor responde aos interesses dos seus gestores que cuidam de determinado aporte de recursos financeiros, que ao mesmo tempo reforçam politicamente nas suas bases de origem. Ou seja, a segmentação das ações não é somente técnica. Assim, cada política social comporta formas parceladas do trabalho social que culmina em um dado serviço a ser prestado aos usuários. Em primeira instância, a produção de um serviço público não comporta o mesmo objetivo final que a produção direta de mercadorias capitalistas, visto as particularidade dos direitos sociais. Mas, mediante a ofensiva do gerencialismo e da ótica utilitarista da racionalidade instrumental, formas de controle social da força de trabalho e mecanismos de intensificação do trabalho são introduzidas e

203 O tema da divisão do trabalho não é aleatório na sociedade capitalista e já envolveu estudiosos de diferentes estirpes, como Émile Durkheim e Marx. No caso de Marx a divisão do trabalho é condição indispensável para produção de mercadorias por que são os atos interdependentes de trabalho, executados por cada sujeito isoladamente, que permite a existência de mercadorias para serem trocadas. A divisão social do trabalho é o sistema amplo e complexo de todas as modalidades de diferentes trabalhos úteis, que se realizam independentemente umas das outras por produtores privados. A divisão do trabalho entre os próprios trabalhadores abaliza outro nível de divisão do trabalho em função do trabalho parcelar, em que cada trabalhador executa uma operação parcial de um quadro amplo de operações, que ao serem executadas de modo simultâneo tem como resultado o produto social do trabalhador coletivo. 324

energizadas no âmbito do serviço público. Ainda assim, nenhuma técnica ou sistema de gestão pode suprimir os constrangimentos da divisão do trabalho, mesmo que no âmbito do Estado. O discurso da intersetorialidade como estratégia para superação da fragmentação das ações e garantia da integralidade da focalização acaba por encobrir a impotência do Estado mediante a própria organização estatal, que tem por base uma estrutura assentada na divisão do trabalho. Mas, a garantia da intersetorialidade é apenas uma das dimensões que compõem o amplo ementário do governo para o aperfeiçoamento técnico da gestão para as ações do PBSM. A gestão torna-se uma espécie de panaceia para garantir a efetividade das ações minimalistas. Trata-se, na verdade, de um fetiche da técnica de gestão, como se esta fosse capaz de superar as contingencias da divisão do trabalho, que se complexifica mediante a tentativa de articulação de tantas instâncias governistas e uso político das instâncias entre partidos apoiadores do governo. Sob os governos petistas, sobretudo no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma, o tema do desenvolvimento passa a ser recorrente para delimitar uma nova direção social que o governo defende como superação do neoliberalismo. Neste constructo político- ideológico, a questão do desenvolvimento é atrelado diretamente à problemática da pobreza. Isto é, sem o enfrentamento desta última, não seria possível angariar níveis satisfatórios do primeiro. Fonseca e Viana (2010) fazem uma consideração instigante que visa explicar a integração da política econômica com a política social, que pode ajudar a explicitar a própria abordagem governista da questão. Para as autoras envolvidas na execução dessas ações, é preciso diferenciar dois grandes períodos dessa integração: aquele onde foram implantadas políticas vigorosas de distribuição, mas com baixo ou nenhum crescimento econômico, quando a intersetorialidade tem um papel diminuto, circunscrito ao Programa Bolsa Família; e outro marcado pelo desenvolvimento, quando as políticas sociais distributivas se associam fortemente ao crescimento econômico (elevação do salário mínimo sempre acima da inflação, extraordinário crescimento do emprego, política de crédito, programa de aceleração do crescimento) e a intersetorialidade é a natureza mesma da política (FONSECA e VIANA, 2010, p. 62).

Essa concepção remete à relevância que o governo Dilma estabelece ao criar o PBSM no sentido de enfrentar incompletudes do PBF, conforme sinalizamos. A dimensão da intersetorialidade aparece como uma das grandes sacadas, ou melhor, como um dos motes centrais que o governo vai estabelecer no PBSM. Para fazer frente ao objetivo de superar a extrema pobreza, entendida como um fenômeno de natureza multidimensional e multifacetada, a ação intersetorial do Estado era, portanto, um imperativo. Por isso o Plano Brasil sem Miséria envolve uma grande quantidade de parceiros, de vários setores. Ao todo são 22 ministérios, listados neste artigo, além de muitos outros órgãos e entidades da administração 325

direta e indireta, do setor privado e do terceiro setor, também elencados adiante204 (COSTA e FALCÃO, 2014, p. 3)

Para as autoras, a intersetorialidade presente na primeira década dos anos 2000 é restrita por estar fortemente vinculada ao PBF e suas condicionalidades, mas colocou um freio na fragmentação das políticas de transferência de renda, introduzindo importante inovação, sobretudo, quanto à pactuação com estados e municípios na complementariedade das transferências. Entretanto, por estar circunscrita a um programa específico, a intersetoralidade não constituiu “a essência da intervenção governamental como pode ser visto na fase seguinte quando da emergência do Plano Brasil sem Miséria” (IDEM, p.64). O Plano articula além dos 22 Ministérios, várias instituições e instâncias governamentais e não-governamentais, conforme indicamos em nota anterior, e assim, centralizam a defesa da perspectiva intersetorial como estratégia central para potencializar a ação conjunta de tantos sujeitos coletivos envolvidos. Desse modo, o que a própria gestão denomina de “estrutura de governança” é composta por três instâncias interministeriais: o Comitê Gestor Nacional, o Comitê Executivo

204 “Participam do Plano Brasil sem Miséria 22 ministérios: Casa Civil da Presidência da República; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); Ministério das Cidades (MCidades); Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC); Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, coordenador do Plano); Ministério da Educação (MEC); Ministério da Fazenda (MF); Ministério da Integração Nacional (MI); Ministério do Meio Ambiente (MMA); Ministério de Minas e Energia (MME); Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA); Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP); Ministério da Previdência Social (MPS); Ministério da Saúde (MS); Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); Secretaria-Geral da Presidência da República; Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE); Secretaria de Direitos Humanos (SDH); Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM); Secretaria de Relações Institucionais (SRI). ntre os órgãos e entidades da administração direta e indireta, do setor privado e do terceiro setor parceiros do Plano Brasil sem Miséria, fguram Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Banco da Amazônia (BASA), Banco do Brasil, Banco Mundial, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Caixa Econômica Federal, Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Centrais Elétricas do Norte do Brasil SA (Eletronorte), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Fundação Banco do Brasil (FBB), Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (IBGE), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Ministério das Comunicações, International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Petrobras, World without Poverty (WWP), entidades públicas, privadas e do terceiro setor prestadoras de serviços de assistência técnica e extensão rural, empresas privadas da área de construção civil. e de vários outros setores que vêm contratando egressos do Pronatec Brasil sem Miséria e empresas do setor varejista de alimentos que vêm comprando produtos da agricultura familiar. A Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), que congrega diversas organizações da sociedade civil e é parceira do MDS na construção de cisternas do Programa Água para Todos é um dos melhores exemplos de participação de entidades do terceiro setor no Plano Brasil sem Miséria” (COSTA e FALCÃO, 2014, p. 3-5). 326

e Grupo Interministerial de Acompanhamento (GIA), sendo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome o Órgão Coordenador do Plano (COSTA e FALCÃO, 2014). O Plano Brasil sem Miséria, como dito anteriormente, aproveita as sinergias entre os diversos parceiros envolvidos. Atuando em conjunto de maneira otimizada, todos os participantes veem aumentar a eficiência, a eficácia e a efetividade do seu trabalho – uma das grandes vantagens da estratégia concertada para a superação da extrema pobreza (IDEM, p.153).

Note-se que o modelo proposto – com a participação de um sem número de entidades e um núcleo central gestor – estão muito a cabo do padrão gerencialista, donde se centraliza o poder de decisão estratégico central e descentralizam-se as ações de execução das atividades, tendo o próprio MDS como o braço central do Estado para este Plano. Assim, tem-se hipertrofiada a dimensão centralista no governo federal, alargando as bases operacionais e transferindo aos entes federados as questões relativas à execução imediata, nas normativas instrumentais definidas em Brasília. Não é demais também creditar à lógica gerencial a formatação do Plano, em que importantes projetos, benefícios e programas se dão via modalidade de consórcios, donde a participação dos entes federados e/ou instituições fica condicionada a mecanismos de contratos de gestão via adesão formal dos Estados e/ou municípios. Está em tela o reforço à chamada “gestão compartilhada”, que sob o caldo cultural gerencialista reconfigura mecanismos para instrumentalização da política social à racionalidade instrumental capitalista, do maior rendimento pelo menor custo. Isso fica muito patente na própria estrutura organizacional do Plano, que conta com um Comitê Gestor, que compõe o núcleo de coordenação das ações de implementação e monitoramento; um núcleo mais diretamente ligado à execução estratégica e às questões orçamentárias e, finalmente, um núcleo de implementação na linha de frente dos serviços, que são as diversas instituições e setores que efetivam as ações. Existe, portanto, uma diretriz geral que amarra todo o arranjo institucional sob a lógica do Estado gerencial, donde a proeminência da esfera central no executivo federal, acompanhado de uma série de medidas formais, técnicas, procedimentais e instrumentais de gestão permitem aos demais entes federados envolver-se à distância diretamente na efetivação do PBSM. Veja-se que a maior parte dos programas, ações, projetos e recursos não são de aplicação imediata ou transferência automática, mas dependem de adesões formais às determinações do Plano. Há todo um arsenal tático acionado pelo governo federal para incentivar a participação de estados, de municípios e de instituições privadas no PBSM. Estes 327

entes administrativos precisam assinar termos de adesão, contratos de compromisso e tantos outros dispositivos que asseverem a formalidade de uma espécie de contratos de gestão cofinanciados nos termos gerencialistas do Estado capitalista neoliberal e que a execução do PBF já havia mostrado sentido pragmático aos objetivos governamentais. Agora era hora de repetir a dose com as outras áreas, burlando o esquema intersetorial. É a instrumentalização de um princípio, que na sua acepção original objetivava contribuir com a democratização e ampliação do alcance das políticas sociais, em um artifício técnico-procedimental para adaptar as ações estatais às premissas do ajuste fiscal e das requisições impostas pela crise do capital: foco na pobreza extrema e redução de custo. Deste modo, a intersetorialidade tem sido um dos pilares básicos da lógica gerencialista do Estado brasileiro, sob a direção petista, quando o tema ganhou forte impulso nas áreas governamental e acadêmica. Ao fim e ao cabo a narrativa da intersetorialidade é um dos vieses pelos quais se expressa a tática central que atravessa toda proposta do PBSM, que se assenta numa supervalorização do alcance da via de gestão adotada para suprimir os inconvenientes postos a efetivação das ações governistas no que tocam ao “enfrentamento da pobreza”. As fragilidades identificadas nos governos anteriores são postas na conta de um suposto déficit administrativo, quando na verdade são expressões dos próprios limites e contradições do projeto do PT, que abalizados pela ótica da direção neoliberal para enfrentamento da crise capitalista, encapsulado num discurso tecnicista sob a ótica da modernização da administração. Não seria demais ressaltar que por meio disso expandiu-se a focalização da extrema pobreza também para outras ações de governo, que, então, deveriam redirecionar o foco das atividades institucionais nesse segmento. Isso foi algo inédito nas práticas de governo engendradas até aqui. E num âmbito ainda complexo da totalidade em que se insere toda ação estatal, o que está subjacente no PBSM – ao tentar conciliar tantas instituições particulares num só Plano – é a tentativa de gerir os limites técnicos da complexa divisão sociotecnica do trabalho que uma estratégia desse porte comporta. Isto é, organizar todo um aparato técnico de gestão que viabilize uma plena organização tática para resolver os efeitos traumáticos da racionalidade que sustenta essa divisão do trabalho. Não se trata da produção de uma mercadoria com utilidade e valor de troca qualquer. Trata-se de um processo de trabalho combinado com vistas a atingir um dado objetivo no âmbito das necessidades básicas da classe trabalhadora que é o foco do Plano: as diversas dimensões que constitui o fenômeno da pobreza. Trata-se de lidar com as expressões da 328

questão social pela via de ações públicas que combinam diversos segmentos do próprio Estado, porque a própria questão social já foi a priori fragmentada nas políticas setorializadas do Estado. O que o PBSM demonstra são os tangentes limites de uma estrutura tecnocrática que apela às técnicas mais arrojadas e sofisticadas de gestão para otimizar o alcance de um projeto estatal que objetiva agir sobre uma dimensão estrutural da totalidade capitalista, componente da sua lei geral de acumulação: a pobreza, dentro dos limites imediatos do alcance do Estado capitalista. Isto assume dimensões particulares quando planejadas e implantadas por um governo cujo partido teve uma histórica filiação de esquerda. Mas ao mesmo tempo, é expressão do processo de transformismo que este mesmo partido passou para chegar a Presidência da República. A via teórica de análise a partir do transformismo explica a adoção de um Plano com as características do PBSM, que aprofunda uma direção já estabelecida nos governos Lula, mas que procura se inovar sob a patente concretização e melhoramento da modernização da gestão já introduzida no governo anterior. E abre possibilidade de pensar como esse transformismo culmina na hegemonia da pequena política nos termos de Coutinho (2010), expressa nas estratégias de formação de alianças para sustentação do governo sob o esquema político do presidencialismo de coalizão.205 As implicações disto sobre as complexas mediações que se interpõem a composição do trabalho coletivo no âmbito do PBSM não são desprezíveis. Pelo contrário, a distribuição de cargos, Ministérios e Secretarias a diferentes sujeitos políticos – com vieses e filiações partidárias as mais variadas – reverberam sobre a dinâmica do Plano de modo significativo. Os interesses partidários, as demandas enquanto pastas orçamentárias, as institucionalidades e prioridades de cada um dos representantes políticos das diversas esferas envolvidas na efetivação do Brasil sem miséria demandam um intenso esforço de articulação e negociação

205 De acordo com Pinheiro (2013), o presidencialismo de coalizão pautou o projeto político burgo-petista como ideologia e estratégia concreta “impactado e caracterizado a cena política brasileira do ponto de vista das articulações dos governos nos seus três níveis” (p.4). Essa via de coalizão estabeleceu promíscuas articulações com um conjunto de partidos no comando da República, “que representa a burguesia e sua fração monopolista interna em um consórcio de natureza fisiológica com o PT. Ao lado desse processo de articulação classista se aprofundou o transformismo petista” (PINHEIRO, 2013, p. 4). Existem críticas ao conceito de “presidencialismo de coalizão” que atestam seu caráter mistificador das possibilidades democráticas instituídas com a divisão dos poderes na Constituição Federal de 1988. Boito Jr. (2016) aponta que não se pode falar em presidencialismo de coalizão no Brasil, por que essa ideia “confere aos partidos políticos uma importância no processo decisório que eles a rigor não possuem. O governo Fernando Henrique Cardoso nunca foi um governo do PSDB, assim como os governos de Lula e Dilma não eram governos do PT. No Brasil vigora um presidencialismo autoritário: o Executivo consegue impor a sua agenda ao Legislativo em troca de pequenas concessões aos congressistas”. Disponível em: http://brasildebate.com.br/a-instabilidade-politica-vai-continuar/ . Empregamos o conceito no sentido de problematizar as alianças partidárias e o pragmatismo eleitoral que os arranjos políticos do PT endossaram. 329

política. As acomodações feitas, os acordos, os acertos, as combinações compõem as muitas nuances contraditórias da dinâmica de classes infundidas no Estado mediante as representações partidárias que o fetiche da gestão esconde. Além disso, no que tange à questão orçamentária, o PBSM apresenta-se como uma intricada teia de investimentos dispersa nos diversos Ministérios que participam do Plano. Ao todo, são 36 ações orçamentárias executadas por seis órgãos distintos. Tanto é que essa dispersão de ações em vários órgãos levou a criação de um mecanismo específico de acompanhamento da execução orçamentário do Plano, através do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), com painel exclusivo sobre o PBSM de acesso Público. Apenas para situar a prioridade que o Plano assumiu no governo Federal, vale destacar que o índice de empenho dos recursos para nas ações orçamentárias do PBSM foi de 94,82% (SIOP, 2018). No ano de 2014 o PBSM tinha uma dotação inicial de R$ 33.650.416.540 e ao final o valor total pago foi de R$ 30.404.426.754. Conforme sinalizamos, o esforço em potencial para articular tantas instâncias em função do chamado combate à pobreza, menos que uma estratégia radicalmente intersetorial, acaba por ser interprogramática, na medida em que visa interação e articulação não exatamente na execução de políticas setoriais, mas na estruturação de estratégias em que programas de diversos setores efetivem uma concertação que potencialize os resultados sobre um dado problema. Ou seja, são várias ações e programas articulados com o fim de intensificar a atuação estatal sobre os segmentos mais pobres da classe trabalhadora, focalizando ao limite as ações interprogramáticas. Neste sentido, “a intersetorialidade do Brasil Sem Miséria se dá na busca de um conjunto de soluções voltados a uma população específica, ou seja, sem integração entre as politicas, mas prestação conjunta de diversos serviços a uma mesma população” (LOTTA e FAVARETO, 2014, p. 59). Isto por que o Estado – nos limites de suas contradições imanentes – não pode ver ou ir além de mecanismos formais e gerenciais na constituição de estratégias que corrijam os defeitos racionalizadores já existentes. É esse o fundamento dessa suposta empreitada para garantia de intersetorialidade. E, na medida em que escamoteiam as contradições inerentes à realidade capitalista e ao acirramento das expressões da questão social, aditam-se procedimentos técnicos racionalizadores. Esvaziam-se as análises e ações estratégicas da verdade objetiva da realidade concreta, para privilegiar o modus operandi da eficácia gerencialista, o que não poderia ser diferente no âmbito de um Estado compatível com as necessidades imediatas do atual estágio do desenvolvimento capitalista, que cada vez mais 330

requer a expansão de sua lógica racionalista a todos os âmbitos da ação do Estado e da vida social. Mas, que se diga, é um modo residual e instrumental de lidar com a realidade social. Ao longo do texto “Coordenação Intersetorial das Ações Do Plano Brasil Sem Miséria”, que compõem a Coletânea publicada pelo MDS, “O Brasil sem Miséria”, os autores dão destaque para estes aspectos e exemplificam o rol de estratégias do PBSM que visaram intensificar a potencialidade de mecanismos já existentes em programas já implementados, para a partir de uma “perspectiva intersetorial” otimizar resultados e minimizar custos. Neste particular, estariam, por exemplo, o uso do cartão magnético do PBF para pagamentos de benefícios de “combate à pobreza” criados pelo PBSM; o uso dos dados do Cadastro Único para minimizar custos de produção de informações e pela factual possibilidade dos dados dessa plataforma oferecem um panorama da miséria e da pobreza extrema; entre outros. O PBSM, como demonstramos, aprofunda a lógica instituída a partir do PBF para o chamado alívio à pobreza a partir de uma narrativa e estratégia centrada nas propriedades técnicas da gestão. Sob os arranjos da modernização da gestão, o Plano se desenvolve nas tramas desse padrão político-governamental e ideológico para incidir sobre o fenômeno da pobreza a partir de uma articulação supostamente mais eficaz para gerir as necessidades da superpopulação relativa, hipostasiadas nessa longa e agressiva crise estrutural do capital. Lotta e Favareto (2014), não obstante estarem desenvolvendo uma abordagem não estritamente correlata à direção que viemos adotando neste estudo, trazem uma definição que parece resumir a perspectiva intersetorial que vigorou no PBSM. A etapa de formulação do programa foi iniciada por um diagnóstico das necessidades da população alvo escolhida e, por meio dessas informações, o Comitê Gestor selecionou programas existentes nos ministérios que pudessem melhorar as condições de vida do público em extrema pobreza. Além dessas ações selecionadas, foram também desenhadas algumas poucas estratégias ou redesenhados programas a fim de dar o enfoque necessário para o atendimento à necessidade da população. A implementação, por sua vez, também não ocorre de maneira integrada, na medida em que cada programa segue sua estratégia própria de implementação – que pode contemplar ações conjuntas ou não. E, finalmente, há um grau de intersetorialidade na etapa de monitoramento via salas de situação, na medida em que há monitoramento conjunto das metas e resolução de problemas comuns (LOTTA e FAVARETO, 2014, p. 59).

Entre a junção temática de programas e ações específicas/setorializados e o monitoramento conjunto da execução destes há um espectro de práticas estanques que não convergem para estudar em profundidade, nem para avançar na universalidade e nem na ampliação da participação dos usuários em relação ao controle democrático e quanto à própria definição de possíveis projetos efetivamente intersetoriais, por exemplo. Efetivamente, aquelas não são orientações de um plano de ação sobre a pobreza, direcionado pela 331

focalização e que visa justamente intensificar a ação do Estado sob as mazelas da própria precarização e desmantelamento da seguridade social, resultado da recomposição dos processos de acumulação capitalista, que sob a segunda geração de governos petistas tem no endossamento da modalidade de política pública empregada pelo PBSM um dos dispositivos centrais da reprodução da força de trabalho. Assim, é perceptível que a partir dos governos do PT, tal lógica se aprofunda e o PBSM é elucidativo de tal processo, ao consolidar esse modelo pautado nos mínimos sociais e na focalização. Segundo Campello e Mello(2014),206 o Plano implanta uma reforma na lógica de atuação do Estado, “que pode ser definida como uma hiperfocalização”.

Baseando-se na hiperfocalização foi possível garantir, simultaneamente, o direcionamento da ação para os que mais precisavam e também a criação de mecanismos de verificação de que aquelas famílias foram realmente beneficiadas pelos diferentes programas do Brasil sem Miséria (CAMPELLO e MELLO, 2014, p. 48).

Na perspectiva aqui adotada, a focalização encerra um modo específico de gerenciamento da pobreza, em um contexto de acirramento da crise e agudização das expressões da questão social, sobretudo, aquelas que expressam a extrema pobreza. Além disso, ao centralizar a transferência de renda condicionada, aciona mecanismos específicos de elegibilidade, atuando sobre a população miserável, sendo importante mecanismo de reprodução da força de trabalho excedente às necessidades do capital e impactando, ainda, na melhoria do consumo interno, como visto antes. A focalização empreende um modo particular de gerenciar a pobreza na medida em que determina critérios rigorosos de elegibilidade, tal como sinalizamos, encetando a estratégia factual de atuar sobre os “bolsões de pobreza”, cujas expressões oferecem maiores riscos de desestabilização da ordem. Ou seja, desvia a atenção da coletividade quanto às possibilidades de serviços públicos universais e balizam as ações por soluções técnicas, tidas como neutras e mais eficazes, na medida em que consigam focalizar os grupos mais pobres, e, portanto, utilizar os parcos recursos que são direcionados para atendimento das necessidades sociais de modo “eficiente”. Além disso, pautam-se em conceitos extremamente reducionistas do fenômeno da pobreza, restritos às suas manifestações fenomênicas e parciais, referenciando-se em dados descritivos, que por si só já são evidentemente limitados, pois advém das tão propaladas

206 Tereza Campello foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nos governos Dilma Rousseff. Janine Mello Atuou como assessora no monitoramento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e na coordenação do Programa Territórios da Cidadania (PTC) pela Casa Civil da Presidência da República. 332

linhas da pobreza e da extrema pobreza, que considera o mínimo básico para sobrevivência fisiológica. O princípio da focalização imiscui, sobremaneira, a direção social da política social de princípios de administração e gerenciamento, na medida em que define, além dos critérios de elegibilidade já mencionados, um aporte de dispositivos estruturais do Plano como: mecanismos de controle e vigilância social sobre os pobres que são público alvo de tais programas; padronização de comportamentos relativos aos benefícios sociais, como as condicionalidades e o comportamento pró-ativo para a busca de trabalho e\ou qualificação profissional; vexatória comprovação da pobreza; cadastramento e atualização de dados cadastrais, que alimenta o imenso arsenal tecnológico-informacional que compõe a rede de dados oficiais para os programas públicos. Essa estrutura do PBSM causa o efeito de subordinar os critérios técnicos definidos à conjuntura político-econômica, que em última instância determina os valores dos benefícios, possibilidade ou não de ajustes e inclusão de outros membros familiares. Ao mesmo tempo, o Plano aprofunda a estratificação da classe trabalhadora pobre, ao estabelecer estratégias de subfocalização, definindo não-pobres, pobres, extremamente pobres, miseráveis. Assim, a focalização encerra um modo específico de gestão da pobreza, pois através destes mecanismos o Estado consegue administrar parcos recursos em grupos específicos, ao mesmo tempo em que minimiza a demanda de investimentos públicos em política sociais universais, direcionando sua ação para as manifestações mais desastrosas da sociabilidade capitalista em sua crise estrutural. Por essa via – que focaliza a extrema pobreza – se gerencia o comportamento dos trabalhadores pobres, atenuando as possibilidades de explosão dos conflitos sociais e políticos, controla e moraliza suas vidas e padrões comportamentais, fomentam as chamadas “potencialidades” para o empreendedorismo, além de radicalizar clivagens entre a classe trabalhadora, segmentando suas necessidades e contribuindo para desmantelar a compressão de que todos têm as mesmas necessidades coletivas. Ademais, contribui para amenizar os indicadores sociais quanto ao nível de pobreza, desigualdade social, saúde e educação, criando um panorama socioeconômico que converge para a construção de uma imagem social de um país que prima pelo desenvolvimento econômico e sabe lidar com a pobreza, ainda que seja um saber manipulatório e não um conhecimento compreensível da realidade social. A estruturação do PBSM se dá, como dito antes, em torno de três eixos específicos. Os três eixos são: um de garantia de renda, para alívio imediato da situação de extrema pobreza, com centralidade para o PBF; outro de acesso a serviços públicos, para melhorar as condições 333

de educação, saúde e cidadania das famílias; e um terceiro de inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres (MDS, 2011a).

Figura 4 – Panorama da estrutura do PBS

Fonte: MDS, 2011a.

De acordo com Mauriel e Godinho, o Plano agrega, predominantemente, iniciativas já existentes em diversos ministérios, estados e municípios, realizadas em parceria com empresas públicas, privadas e organizações da sociedade civil, sendo que as ações efetivamente novas são muito poucas, o que permitiria inferir que o Plano “funciona muito mais como uma nova forma de gerenciar o que já existe do que como uma nova iniciativa programática” (MAURIEL E GOUDINHO, 2015, p.5). De acordo com a retórica oficial, o PBSM visa superar estas e outras dificuldades existentes nas políticas, programas, projetos e ações para a pobreza, existentes nos governos anteriores do PT. Com especial destaque para o fato de que ao lado da reorganização do já existente, o PBSM difunde e controla a focalização já típica na transferência de renda (extrema pobreza) para as demais ações reunidas em sua arquitetura de ações. Além disso, a narrativa do PBSM coloca como central a necessidade de se ter uma compreensão multidimensional da pobreza. Essa perspectiva é um aperfeiçoamento da tendência já delineada pelos organismos multilaterais, quando da elaboração de “agendas sociais” que visavam definir estratégias para o que chamaram de enfrentamento à pobreza, a nosso ver em razão do contexto de deslegitimação do ideário neoliberal, conforme já pontuamos. Parece contraditório que o arcabouço teórico e técnico do PBSM esteja fortemente centrado sob a citada abordagem multidimensional da pobreza, mas assuma uma concepção unidimensional do fenômeno ao definir a linha da extrema pobreza, conforme se verifica no trecho a seguir. De acordo com Falcão e Costa (2014), em países como o Brasil é plenamente 334

possível tomar como parâmetro uma análise unidimensional da pobreza para definir os critérios de acesso, sobretudo, a programas de transferência de renda. Uma abordagem unidimensional para a linha não deixa a desejar em termos de refletir a situação de pobreza extrema do público-alvo, e ao mesmo tempo traz as vantagens da simplicidade e da transparência, facilitando o acompanhamento pela sociedade no que concerne à principal meta do Plano Brasil sem Miséria – superar a extrema pobreza até o final de 2014. Isso não significa que o país deixe de lado tanto a atuação quanto as medições de um ponto de vista multidimensional, ambas fundamentais para uma estratégia sofisticada como o Brasil sem Miséria (FALCÃO e COSTA, 2014, p.72).

A definição de uma linha de extrema pobreza, por si só, já parece uma contradição, visto que ela definida exclusivamente por uma dada renda per capta. De acordo com Escurra (2015), essa visão multidimensional da pobreza ganha destaque no âmbito do Banco Mundial a partir de 2000, sobre forte influência de Armatya Sen e sua concepção de pobreza com foco nas “capacidades pessoais”. Essa compreensão esboça uma análise acerca da pobreza que não deve ficar restrita apenas a questão da insuficiência de renda, mas deve abarcar outros fatores sociais e culturais. Isto significa que além da avaliação da pobreza pela variável renda, ela é considerada como “ausência de capacidades”, “indivíduo em situação de vulnerabilidade” e “exposto a risco”. Sob essa ótica, a ausência de capacidades diminui o potencial do indivíduo em obter renda e, em virtude disso, o tema central deste relatório é a expansão das capacidades humanas das pessoas pobres, ficando patente a noção de Sen de “desenvolvimento como liberdade”, como processo de expansão das liberdades humanas (ESCURRA, 2015, p. 74).

Mauriel (2010) também chama a atenção para a influência Amartya Sen e sua noção de pobreza sobre os rumos da política social na cena contemporânea. Para a autora, essa noção é desdobramento da sua discussão sobre desigualdade, que contempla duas variantes: a desigualdade econômica e a desigualdade de capacidades. Assim, a pobreza também comporta duas dimensões que para ele são dissociadas, a pobreza de renda e a de capacidades, saindo do foco tradicional da renda, “dos bens (ter) para o que as pessoas são capazes de fazer com esses bens (ser e fazer)” (MAURIEL, 2010, p. 175). Esta concepção auxilia a compreensão multidimensional da pobreza, ao enfatizar o campo das “privações de capacidades” em relação à própria privação de renda. A abordagem multidimensional da pobreza, segundo a narrativa dos organismos multilateriais, portanto, visa ampliar a concepção de pobreza, objetivando, segundo tal retórica, um tratamento “mais humano” do fenômeno da pobreza, que possa dar conta do rol mais amplo de privações que a caracterizam, como indicadores de educação, saúde, padrão de vida, trabalho e geração de renda. 335

No PBSM a concepção de pobreza como fenômeno complexo e multidimensional aparece reiteradamente como componente essencial da retórica oficial. Deste modo, apesar do critério principal de acesso aos principais programas do Plano – sobretudo, os que envolvem transferência direta de renda –, ser a renda per capta familiar e também o fato do Plano ter uma linha de pobreza exclusiva, os documentos, artigos e publicações consideram outros elementos para definir a condição de pobreza e extrema pobreza, fazendo jus a perspectiva multidimensional que diz assumir. Mas, é uma multidimensionalidade que esquadrinha a realidade num cruzamento de equações previamente estabelecidas no nível central da política. Não ter banheiro de uso exclusivo; ou não ter ligação com rede geral de esgoto ou pluvial e não ter fossa séptica; ou estar em área urbana sem ligação à rede geral de distribuição de água; ou estar em área rural sem ligação à rede geral de distribuição de água e sem poço ou nascente na propriedade; ou não ter energia elétrica; ou ter pelo menos um morador de 15 anos ou mais de idade analfabeto; ou ter pelo menos três moradores de até 14 anos de idade; ou ter pelo menos um morador de 65 anos ou mais de idade (FALCÃO e COSTA, 2014, p. 80).

Apesar de sustentar o discurso de que a compreensão, abordagem e enfrentamento da pobreza como fenômeno multidimensional é um avanço na configuração das políticas na área, não se pode considerar que isso signifique a ultrapassagem de uma análise simplista, que no limite naturaliza a pobreza, e descarta seu caráter histórico e social no âmbito da sociedade capitalista. O fetiche da gestão, impregnado no PBSM, guarda relação com própria ideologia do “racionalismo tecnológico”207 do capitalismo tardio que nada mais é do que uma mistificação que esconde a realidade social, operando o fetichismo da tecnologia, conforme atesta Mandel (1982). Para o autor, o racionalismo tecnológico – como expressão da razão burguesa decadente – promove uma reificação da tecnologia, elevando-a a um mecanismo totalmente independente das decisões e objetivos humanos. O desenvolvimento técnico e científico teria condensado um poder autônomo de força invencível e o domínio da técnica sobre as relações supriria as próprias contradições sociais e colocaria fim a todas as ideologias. O apelo às técnicas de gestão e a tecnologia de informação que ela articula no âmbito do PBSM se insere nessa tendência mais ampla do próprio capitalismo tardio quanto ao racionalismo tecnológico que defende a autonomização da tecnologia em face da ação humana e das contradições vigentes neste modo de produção. Ao transformar a gestão na via de superação das latentes contradições que são inerentes à ação do Estado, o PBSM

207 “A crença na onipotência da tecnologia é a forma específica da ideologia burguesa no capitalismo tardio. Essa ideologia proclama a capacidade que tem a ordem social vigente de eliminar gradualmente todas as possibilidades de crise, encontrar uma solução ‘técnica’ para todas as suas contradições, integrar as classes sociais rebeldes e evitar explosões políticas” (MANDEL, 1982, p. 351). 336

escamoteia os próprios inconvenientes da ação parcelar e fragmentada do Estado no tocante às demandas de reprodução da força de trabalho. O Plano foi estruturado em três eixos, conforme já indicamos e é importante tecer algumas considerações sobre cada um deles para que fiquem delineados aspectos descritivos e teóricos dessa pesquisa. O eixo garantia de renda, centrado, sobretudo no PBF, é defendido no âmbito institucional e político do arcabouço teórico e técnico do PBSM como um dos principais mecanismos para garantir a superação da pobreza. Evidentemente, este aspecto se centra no critério de renda per capta e na linha da extrema pobreza de referência do Plano208. Uma das primeiras ações do PBSM foi ajustar os benefícios do PBF, favorecendo especialmente crianças e adolescentes. Isto por que, através dos diagnósticos e mapeamentos que subsidiaram a elaboração, identificou-se que “40% da população miserável tinha até 14 anos de idade, ou seja, a incidência de extrema pobreza era bem maior entre crianças e adolescentes – o que representava uma das faces mais cruéis da miséria no país” (COSTA e FALCÃO, 2014, p.243).209 Com este primeiro ajuste, famílias com crianças e adolescentes de até 15 anos tiveram aumento de 45,5% e com jovens de 16 e 17 anos, o reajuste foi de 15,2%. Ainda em 2011, “o Plano Brasil sem Miséria ampliou de três para cinco o número de benefícios destinados a crianças e adolescentes que cada família pode receber, gerando, assim, 1,3 milhão de novos benefícios na faixa de 0 a 15 anos” (IDEM, p. 243). Além disso, foram introduzidos benefícios para famílias com gestantes ou com bebês em fase de amamentação. O impacto no aumento dos benefícios foi relevante, de maneira que “diminuíram o total de pessoas extremamente pobres no universo do Bolsa Família de 22 milhões para 19 milhões” (IDEM, p. 245). Conforme informa Falcão e Costa (2014), ao fim do ciclo 2011-2014, o percentual da população em situação de pobreza caiu de 10,2 % em 2011 para 7% em 2014. Já no que diz respeito à extrema pobreza, o índice passou de 3,7% em 2011, para 2,5% em 2014. Não desprezando o efeito real no aumento do benefício, que tem contribuído com a sobrevivência material imediata de milhões de pessoas, fica evidente a racionalidade

208 Conforme já esclarecemos, esta linha era de R$ 70,00 em 2011, no lançamento do Plano e foi ajustada para R$ 77,00 em 2014.

209 Tiago Falcão esteve á frente da Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep/MDS), na implantação do Plano Brasil sem Miséria. Patricia Vieira da Costa ocupava o cargo de diretora de Relações Institucionais e de secretária substituta na Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep/MDS), nos governos Dilma. 337

instrumental que direciona o staff técnico do PBSM, moldados sob os auspícios da decadência ideológica do conhecimento técnico-científico que embasam tais estratégias, seus fundamentos teóricos e sua logicidade operacional. É importante destacar, sobre estes dados, amplamente alardeados pelo governo Brasileiro, seus limites concretos quanto ao nível de apropriação da realidade e as insuficiências do gerenciamento político-administrativo da pobreza. Sob essa lógica homogeinezante, que procura engessar num montante numérico as variadas e múltiplas mediações que particularizam e dão concretude ao fenômeno da pobreza, o alcance das metas e objetivos do Plano segue a premissa de que focalizar o gasto nos mais pobres aumenta o potencial das ações para cumprir os objetivos sociais do governo. O caminho seguido é muito bem parametrado nos meandros neopositivistas e seu método de manipulação universal, e como nos dizeres de Luckás (1981) denotam a fecundidade das abstrações tornando quantificáveis dados da realidade social que não podem ser desvendados ou resolvidos sob a via da mera racionalização do neopositivismo. Mas, que em se tratando do Estado capitalista, é por demais eficaz no sentido de angariar ganhos à gestão das mazelas capitalistas, sem pôr em risco o sistema e ainda atender demandas imediatas da reprodução da força de trabalho mais empobrecida empregada e desempregada. Em 2012, outras ações incisivas de introdução e de ampliação de benefícios impactaram diretamente o quadro do Plano. A Ação Brasil Carinhoso210 e a mudança na lógica de cálculo do benefício são exemplos importantes para compreensão da ação do governo. Com isto, o benefício passa a ser calculado de acordo com a “intensidade” da pobreza da família. O novo benefício fecha o hiato de extrema pobreza, que é a diferença entre a renda mensal por pessoa da família (considerando a renda própria mais a renda dos benefícios tradicionais do Bolsa Família) e a linha de extrema pobreza do Plano Brasil sem Miséria e do Bolsa Família (de R$ 77 per capita mensais a partir de junho de 2014) (COSTA e FALCÃO, 2014,p.246-247).

210 O Brasil Carinhoso é uma ação componente do Plano Brasil sem Miséria que envolve aspectos do desenvolvimento infantil ligados a renda, educação e saúde. O pilar de renda se refere à ampliação do beneficio, pago no cartão Bolsa Família. Em um primeiro momento auxiliava as famílias com crianças que tinham até 6 anos de idade e depois foi ampliado para aquelas famílias que tinham ao menos um filho com idade máxima de 15 anos. O pilar da educação se refere a ampliação do número de matrículas em creches públicas ou conveniadas com as secretarias municipais de educação, de crianças com idade máxima de 4 anos. A cada criança matriculada seria feito o repasse as creches pelo governo federal, de R$ 4 mil por ano; No que tange à questão da saúde, a estratégia se relacionava à distribuição de doses de vitaminas A para aquelas crianças que tenham entre 6 meses e 5 anos, além da distribuição gratuita de remédios para asma e oferecimento de Sulfato Ferroso ( para prevenir e combater os problemas relacionados a ausência de ferro ou surgimento de anemia) (MDS, 2012). De um lado, o cumprimento de metas dando direito a recompensas às creches, de outro lado o Estado administrando vitaminas e minerais à população focal. O aprofundamento da gestão da pequena política chega aos extremos. 338

Ou seja, a proposição é de que com o benefício de superação da extrema pobreza, cada família passa a receber o necessário para que sua renda familiar per capta supere a condição. Isto se dá, segundo os dados e interpretação governamental, em 2012, entre famílias com crianças de até 15 anos, posteriormente, em 2013, quando a medida é estendida a todas as famílias do PBF que ainda não haviam superado a miséria. Segundo os autores, tal medida permitiu por fim a miséria211 entre os beneficiários do PBF, considerando o aspecto de renda. Em 2014, segundo os autores, fecha-se o que os mesmos denominam de “ciclo de aperfeiçoamento no Bolsa Família”, com reajustes da linha de extrema pobreza e dos benefícios.212 A figura seguinte ilustra tal processo.

Figura 5 – “Ciclo de aperfeiçoamento” e valorização do Programa Bolsa Família

211 Isto, evidentemente, é a visão de Costa e Falcão (2014). Eles intitulam uma seção do seu artigo “O Eixo de garantia de renda do Plano Brasil sem Miséria” da seguinte forma: “2013: o fim da miséria no universo do Bolsa Família”. A seguinte afirmação é ainda mais expressiva: “Em março de 2013, o benefício de superação da extrema pobreza foi concedido a todas as famílias do Bolsa Família que ainda não haviam superado a miséria, independentemente da composição familiar. Essa e as demais medidas tomadas no âmbito do Brasil sem Miséria tiveram como resultado retirar 22 milhões de pessoas da extrema pobreza desde o início do Plano25. Foi o fim da miséria, do ponto de vista da renda, no universo de beneficiários do Programa Bolsa Família” (COSTA e FALCÃO, 2014, p. 248).

212“Os benefícios do Programa tiveram um reajuste de 10%, acompanhando o reajuste da linha de extrema pobreza do Brasil sem Miséria e das linhas de pobreza e extrema pobreza do próprio Bolsa Família” (IDEM, p. 249-250). 339

Fonte: MDS, 2015

Esse “ciclo de aperfeiçoamento” expressa bem a natureza do racionalismo que embasa o Plano, instrumentalizando as ações de reajustes de benefícios para incidir diretamente sobre os índices de pobreza e extrema pobreza, de modo que se possa alcançar um patamar mínimo de renda para estas famílias impactando os resultados gerais dos indicadores socioeconômicos do país. São técnicas operativas que visam atenuar uma realidade alarmante, que sob a batuta de uma gestão eficiente e “empreendedora” do Estado, procuram estabelecer pactos de dominação que assegurem certo patamar de estabilidade política e econômica, sem afetar as grandes determinações estruturais da pobreza. Um modo de lidar com a pobreza estruturado pela manipulação técnica a conta-gotas para localizar os mais pobres dos pobres, e a ação de que necessita especificamente, como a administração de vitamina A, farmacoindustrial para suprir ausência de alimentos como peixes, ovos, fígado, espinafre, mamão e manga. Nada mais apropriado à decadência ideológica do projeto político-governamental do PT, limitado à pequena política. Assim, o PBSM incide frontalmente sobre a política de assistência social, tornando-a nuclear para outras ações convertendo-as também à focalização. Assim, ganha terreno várias técnicas com aparência de rara competência, mas que reduz o poder público a estimulador quase de mercado com a premiação por desempenho. Na Ação Brasil carinhoso, é importante ressaltar, foram atendidas mais de 707 mil crianças em creches, em função do repasse de recursos do governo federal aos municípios como incentivo para adesão ao Brasil Carinhoso. Em relação à área de saúde, a ação ganhou ampla adesão dos municípios com iniciativas como a aplicação de megadoses de vitamina A e a distribuição de sulfato ferroso. Junto com a ampliação do Programa Saúde na Escola, que foi estendido às creches e às pré-escolas, chegando a marca de 20 mil estabelecimentos, 1,12 milhão de alunos de creches e 2,02 milhões de alunos de pré-escolas, em 4.787 municípios (CENTRO DE ESTUDOS E DEBATES ESTRATÉGICOS, 2016). Neste ponto tanto se reproduz a via gerencialista pelo mecanismo da adesão, como a focalização no segmento da primeira infância, justamente por que é nesta faixa etária que se concentra os maiores índices de extrema pobreza, conforme parâmetros do PBSM. Com transparência cristalina, o Caderno de Conquistas Sociais do MDS (2016) assevera: “Com o complemento de renda, o Brasil Carinhoso retirou da miséria mais de 8, 1 milhões de crianças e adolescentes” (MDS, 2016, p.52). O eixo Inclusão produtiva se desdobra nas dimensões urbana e rural, sob a justificativa de que a manifestação da extrema pobreza nos dois circuitos é diferente, o que 340

demanda programas específicos para cada segmento. As ações deste eixo centram-se na agricultura familiar (no meio rural) e na qualificação profissional para o mercado de trabalho e para atividades laborativas informais. A figura seguinte ilustra bem a perspectiva organizacional do eixo.

Figura 6 - Eixo inclusão produtiva

Fonte: MDS, 2011a

Segundo o governo da época, este eixo procurava resolver dificuldades identificadas no PBF no sentido de potencializar a geração de renda entre pessoas em situação de extrema pobreza, fortalecendo a articulação a sua articulação com outros programas, projetos e ações que atuem nesta perspectiva. O carro-chefe da inclusão produtiva urbana é o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), 213 que oferece cursos214 gratuitos através do “sistema S” Senai, Senac, Senat e Senar, além das redes federal de educação profissional, científica e tecnológica, estaduais e municipais estaduais e municipais de educação técnica e tecnológica credenciadas pelo MEC (COSTA et al, 2014). Com o Plano, o Pronatec passa por um processo de adaptação às necessidades do público-alvo do PBSM, o que demandou investimentos em recursos para que “as escolas

213 O Programa já existia no Ministério da Educação com a finalidade de ampliar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica, través de programas e projetos de assistência técnica e financeira. Com o Plano Brasil sem Miséria ganha uma “vertente” voltada exclusivamente para população extremamente pobre. Para vê a respeito, consultar o artigo “Inclusão produtiva rural no Plano Brasil sem miséria: síntese da experiência recente em políticas públicas para o atendimento dos mais pobres no meio rural brasileiro”, no Livro “ O Brasil sem Miséria”, publicação do MDS.

214 As áreas dos cursos do Pronatec Brasil sem Miséria são as seguintes: Produção Alimentícia; Produção Industrial; Recursos Naturais; Ambiente e Saúde; Produção Artística, Cultural e Design; desenvolvimento Educacional e Social; Informação e Comunicação; Produção Cultural e Design; Infraestrutura; Gestão e Negócios; Turismo, Hospitalidade e Lazer; Segurança; Controle e Processos Industriais; Saúde e Estética; 341

providenciassem para todos os alunos do Pronatec Brasil sem Miséria o material escolar e didático usado nos cursos, bem como a “assistência estudantil”, que consiste de alimentação e transporte, ou de recursos para custeá-los” (IDEM, p. 293). Além disso, providenciou-se a entrada do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no programa, que segundo o governo, foi decisiva na divulgação dos cursos e acompanhamento dos alunos, intermediação de mão-de-obra, apoio ao que chamam de microempreendedorismo215 e iniciativas de economia solidária.216 Outro programa importante deste eixo é o Programa Nacional Mulheres Mil, que oferece formação profissional e tecnológica para mulheres em situação de “vulnerabilidade social”, em geral, definido como mulheres que vivenciam situações de pobreza extrema. Este programa condensa a tendência, que já vem sendo delineada desde início do governo Lula, na política social de um modo geral e nos programas de transferência de renda e inclusão produtiva quanto à centralidade da mulher como responsável pelo benefício e como um dos principais públicos a ser atingido pelos programas de capacitação técnica e habilitação profissional para inserção produtiva. Isso não é inexpressivo, afinal, no final de 2014, 88% das famílias cadastradas no CadÚnico eram chefiadas por mulheres (SILVA, 2017). O Programa Mulheres Mil tem como público alvo mulheres-mães inseridas em trabalho informal e beneficiárias do PBF. O programa já existia, mas a partir de julho de 2011 passou a ser vinculado ao Pronatec/PBSM, através de parceria entre o MDS e o Ministério da Educação (MEC). Em 2014 foram ofertadas 81.521 vagas em 694 municípios de todos os estados do Brasil e estavam disponíveis 176 tipos de cursos ( COSTA et al, 2014, p.304). AS mulheres corresponderam a 67% das matrículas totais do Pronatec/PBSM. Além do Programa Mulheres Mil, ações para Economia Solidária e formalização como Microempreendedor Individual (MEI) convergiram para uma ampla empreitada no sentido de alcançar esse público. “Em 2009, eram 21.590 mulheres microempreendedoras individuais. Em 2014, 2.103.023. Um crescimento de 800% em 6 anos” (ONU MULHERES BRASIL,

215 Denominado pela retórica governista como capacidades e estratégias de pequenos empreendimentos empresariais, desenvolvidos por pessoas jurídicas de pequeno porte, os Microempreendedores individuais (MEIs), cuja receita anual não pode ultrapassar o teto de R$ 80.000,00 reais, são regulamentados pela Lei Complementar nº 128/2008.

216 “A economia solidária é definida como segmento econômico baseado em trabalho associativo e autogestionário, envolvendo produção, distribuição, consumo e crédito, realizado concretamente em diferentes setores da economia: 1) Agricultura, Agropecuária, Agroindústria; 2) Produção (indústria, artesanato, confecções); 3) Prestação de Serviços (alimentação, consultoria, limpeza, serviços gerais) 4) Extrativismo (pesca, silvicultura, exportação florestal, mineração); 5) Comercialização e Troca; 6) Crédito/Fundo Rotativo” (BARBOSA, 2014, p. 138). A economia solidária está respalda na Lei 10.682/2003 e no Decreto 4764 de junho de 2003. Maiores detalhes estão disponíveis no site: http://sies.ecosol.org.br/sies.

342

apud SILVA, 2017, p. 46-47). Dos 4,4 milhões de microempreendimentos individuais, 865.739 eram beneficiários do Programa Bolsa Família, sendo que 57% deste total eram de mulheres”(IDEM). Concordamos com Silva (2017), quando aponta para o reforço da tradicional divisão sexual do trabalho na retórica das ações afirmativas para as mulheres da classe trabalhadora. A despeito da defesa oficial de tais estratégias por seu potencial para a relativa independência financeira das mulheres, se esconde o padrão já impresso na política social de conferir à mulher o papel de cuidadora, de responsável pela proteção imediata da família, o que é apropriado nessa quadra histórica para minimizar cada vez mais os mecanismos protetivos do Estado.217 Isso se arranja, entre outros meios, no estímulo e reforço à qualificação para atividades tradicionalmente relacionadas às supostas características femininas (costura, venda de cosmético, serviços de estética, comercial de roupas, alimentação, entre outros) que também podem ser combinadas com as atividades domésticas e, portanto, capaz de conciliar o trabalho não pago (que as mulheres historicamente realizam no que diz respeito à reprodução da força de trabalho quanto à alimentação, higiene e providências para que os sujeitos trabalhadores da casa possam estar aptos ao trabalho) com sua auto-exploração, mediante atividades precarizadas. Pensando sob uma mediação mais ampla, tais propostas se acomodam ao momento presente do desenvolvimento capitalista que retoma formas pretéritas de exploração do trabalho como o trabalho caseiro, familiar, externalizado das plantas produtivas imediatas, ainda que do ponto de vista do grande capital se mantenha a alta tecnologia e automação flexível nas grandes empresas. Ou seja, as formas mais modernas e sofisticadas do trabalho são combinadas com meios antigos, tendo na questão da divisão sexual do trabalho um corte específico que muito se ajusta à estratégia governista para gestão da força de trabalho. Além, evidentemente, do trabalho da casa que ainda é fragilmente abordado, inclusive pelo pensamento crítico. Finalizado o ciclo do PBSM (2011-2014), o Pronatec-Brasil sem Miséria alcançou 1,73 milhões de matrículas, nos mais variados cursos de formação e qualificação técnico- profissional. As mulheres respondem por 67% das matrículas – conforme indicamos – sendo que a faixa etária 18-29 anos concentra 47% das matrículas, seguida dos adultos de 30-39 anos (25%); e 12 % daqueles de 40-49 anos (MULLER e MONTAGNER , 2015 p. 11).

217 Inclusive esta é uma polêmica que permeia as definições de proteção social da PNAS e as perspectivas abertas para a responsabilização cada vez maior da família por sua auto-proteção, principalmente da mulher. 343

O balanço governamental é de que a aceitação do Pronatec/BSM foi considerável, pois envolveu: 903 municípios com matrículas no Pronatec/PBSM em 2012; 2.397 prefeituras municipais com matrículas em 2013; e, 3.366 municípios com matrículas em 2014. Como se observa, o aumento de matrículas vai crescendo a cada ano, o que evidentemente está relacionado à capacidade de articulação e incentivo por parte do governo federal para que mais municípios pudessem aderir ao Pronatec/PBSM. Ou seja, à semelhança do mercado, a gestão de resultados visa estabelecer mecanismos de gerenciamento à distância da execução de um programa que passa a ser de responsabilidade de outro ente federado. Utilizando-se das ferramentas de gestão informacional, do monitoramento, do controle orçamentários o Estado procura administrar o processo a partir de mecanismos tecnológicos e operacionalizados por uma gama e técnicos habilitados a tal função, enquanto as prefeituras realizam as ações propriamente ditas. É a demonstração cabal dos artefatos mobilizados pelo staff técnico do governo federal, sob a coordenação da presidenta, para enfrentar os dilemas da intensa divisão do trabalho que o formato do PBSM tenta aplacar, sendo necessária ampla envergadura para controle desse processo em outras instâncias federativas. Em segundo lugar, vale complementar um pouco mais essas reflexões sobre a modalidade peculiar dessa intersetorialidade. A simbiose público-privado acaba sendo dissimulada sob esta evocação da ação intersetorial. A própria presença de instituições privadas ofertando cursos ( como todo o Sistema S) já aponta uma parceria público-privada muito clara, pautada na transferência de fundo público para o setor privado realizar uma modalidade de serviço social.218

218 Trata-se de acordos contratuais entre um órgão público, seja federal, estadual ou municipal, e uma entidade privada, pelo qual o Estado canaliza recursos públicos para serem operacionalizados e geridos pelas entidades com quem se firmam os contratos de parcerias público-privadas. Regulamentadas pela Lei No 11.079, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2004. 344

Tabela 4 - Pronatec¹ – instituições privadas sem fins lucrativos que receberam recursos

Fonte: COMISSÃO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E ESPORTE, 2018. 1 – Os valores incluem ações do PRONATEC/Brasil em Miséria e outras ações do PRONATEC no MEC.

Conforme se observa pelos dados da Tabela, os valores tem um pico de crescimento entre 2013-2014, justamente o período de consolidação do PBSM e decrescem entre 2015 e 2016, assumindo o menor valor da série histórica em 2017, o que sinaliza para desestruturação da estratégia do PBSM na transição do governo Dilma para o governo Temer. E sinalizam para o impacto das medidas adotadas de redução dos gastos públicos deste último governo, no contexto da crise econômica. Quanto à busca de ações para esse público do Pronatec/PBSM é que fica ainda mais evidente o espírito da intersetorialidade na afirmação de parcerias com órgãos privados, conforme expressam os próprios técnicos do MDS (Müller et al, 2015) Entre 2012-2013 foram firmadas parcerias com os seguintes empreendimentos:  Duplicação da Ferrovia Carajás (Maranhão e Pará) - Empresa: Construtora Camargo Corrêa;  Construção do Estaleiro de Paraguaçu (Bahia) - Empresas: Construtora Norberto Oderbrecht, OAS Construtora, UTC Engenharia e Kawasaky Heavy Industries;  Construção de trecho da Ferrovia Norte-Sul (Goiás) - Empresa: Construtora Camargo Corrêa;  Pólo Naval de Rio Grande (Rio Grande do Sul) - Empresas: Petrobrás S/A, Construtora Queiroz Galvão, UTC Engenharia e IESA Óleo e Gás.

345

O Estado acaba reiterando uma descentralização de suas atividades, que possibilita encaminhar ações o menos onerosas possíveis, acentuando seu papel gerenciador. Todavia, é fato que o governo federal centralizou o incentivo à formação técnica para as estratégias de infraestrutura do PAC, para as funções precarizadas no setor de serviços (lanchonetes, mercados e pequenos empreendimentos) e para trabalhadores informais como na área de emebelezamento pessoal ou pequenas oficinas. A visão instrumental dessas ações governamentais reproduz práticas residuais de qualificação para o trabalho precário, redundando em cursos pobres para trabalhadores empobrecidos. O Microcrédito Produtivo Orientado é outra iniciativa desse eixo da Inclusão Produtiva, que objetiva viabilizar o acesso ao crédito para ampliação de pequenos negócios, incentivando a formalização e a geração de trabalho e renda, fornecendo orientação e acompanhamento técnico. O Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o Banco do Nordeste do Brasil e o Banco da Amazônia estão entre as principais instituições públicas financeiras que oferecem essa modalidade de crédito. Estão contidos nesse esforço a capacitação de Microempreendedores Individuais (MEI), com atenção especial àqueles que estão inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, beneficiários do Programa Bolsa Família ou não; o Programa Sebrae nos Territórios da Cidadania; o suporte à formalização e qualificação de empreendedores nas favelas; e orientações quanto ao acesso a crédito” (BARRETO, 2014, p. 385).219

Neste sentido, a formalização de microempreendedores, entre os indivíduos cadastrados no Cadastro Único, também é apontado pelo governo como de significativa importância para o eixo da inclusão produtiva, sendo que entre 2011 e 2014 mais de um milhão de pessoas que estão no Cadastro Único se formalizaram como Microempreendedores Individuais. Deste total, 478, 3 mil são beneficiários do PBF (MDS, 2015)220 O Programa Crescer de Microcrédito Produtivo Orientado, ligado ao Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que oferece empréstimos a juros reduzidos e com orientação de agentes de créditos para estruturação dos negócios dos pequenos empreendimentos, realizou 5,6 milhões de operações com pessoas inscritas no Cadastro Único, sendo 3, 6 milhões entre beneficiários do PBF no primeiro ciclo do PBSM, 2011-2014.

219 Luiz Barretto era diretor presidente do Sebrae Nacional no governo Dilma.

220 Pequeno empresário individual que tenha faturamento limitado até R$ 81.000, 00 por ano. Regulamentado pela Lei Complementar nº 128/2008. Para maiores informações acessar o Portal do empreendedor, disponível em: http://www.portaldoempreendedor.gov.br/duvidas-frequentes. 346

No que diz respeito à chamada Economia Solidária, investiu-se no fortalecimento e expansão desse segmento, através de formação profissional, assistência técnica e incubação de empreendimentos solidários e suas redes de cooperação, comercialização de produtos e de serviços. Neste particular, 11.173 empreendimentos de economia solidária foram diretamente favorecidos, em 2.358 municípios. Segundo dados do Caderno de Resultados do PBSM, 241.562 pessoas foram diretamente beneficiadas. Nesta ação, foram empenhados mais de R$ 418 milhões (MDS, 2015). É sabido que o incentivo ao microempreendedorismo e a economia solidária ocorre no Brasil já há algum tempo, como alternativa-fetiche221 ao desemprego estrutural. O que se procura evidenciar é que com o PBSM este aspecto ganha feições e dimensões muito mais amplas e particulares ao intensificar tal processo, focalizando nas famílias atendidas pelo PBF e\ou cadastradas no Cadastro Único, para potencializar a geração de renda entre pessoas pobres e extremamente pobres em consonância com os objetivos do programa. Deste modo, o microempreendedorismo se configura, no âmbito das políticas governamentais de geração de renda, como panaceia para a complexa problemática do desemprego, incentivando os próprios indivíduos a superarem suas dificuldades e, de algum modo, ainda que precária e instavelmente, se “incluírem” no circuito produtivo e de consumo. Desconsidera-se, assim, o direito a uma política de geração de empregos formais consistente e, em última análise, os mecanismos de pilhagem às proteções trabalhistas e às novas formas de degradação do trabalho que tal opção pode angariar. Na inclusão produtiva rural percebe-se um leque amplo de programas e ações, uma vez que uma questão muito importante sobre a extrema pobreza é sua alta concentração no

221 Como mencionado antes, a problemática do fetiche aparece na obra marxiana, logo no primeiro capítulo do Livro 1 de O Capital, quando Marx trata sobre o caráter “misterioso da mercadoria”, cunhando o conceito de fetichismo da mercadoria, com base na sua teoria do valor. O fetiche consiste em um elemento fundamental para a manutenção das relações sociais capitalistas na medida em que obscurece as reais bases de tal sistema, isto é, a exploração do trabalho humano e a dominação do trabalho abstrato sobre as relações sociais. “A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho. Insistimos, o caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de se próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com trabalho total como uma relação social entre objetos, existentes à margem dos produtores” (MARX, 2013, p. 147). Recorremos a esta categoria aqui com o objetivo de desvelar o caráter farsesco e fantasmagórico de que se revestem estas alternativas de ocupação laborativa ao tentarem escamotear o desemprego e os limites tangentes de seu alcance, contribuindo com o obscurecimento das relações concretas de exploração que estão implícitas na informalização e precarização que mantém ligação por meio de fios invisíveis com a totalidade do capital, mas que aparecem como estratégias autônomas; à essa quimera colabora o PBSM.

347

meio rural, daí que o PBSM foi além do PBF, por que procurou intervir sobre as condições específicas do campo, de modo que pudesse encetar mudanças com as bases de dados de outros programas voltados ao atendimento da população rural, permitindo a reorientação da “ação dos programas de apoio à estruturação produtiva dos agricultores familiares” (MELLO et al, 2014, p. 323). De modo que, é no cerne da agricultura familiar que se concentram as principais ações do eixo de Inclusão Produtiva no circuito rural. Mas essa intervenção sobre as condições sociais no campo não atingem o cerne da questão agrária que é a concentração da propriedade e o agronegócio para exportação, aliás, esses foram mecanismos fortalecidos nos governos do PT. É em torno dessa inclusão produtiva que se estrutura uma ou mais ações do pacote de para os pobres do campo, através de diversos programas.

Quadro 6 – Programas e resultados da Inclusão Produtiva Rural (PBSM, 2011-2014) PROGRAMA RESULTADO/INVESTIMENTO Programa Nacional de Universalização do 780, 8 mil cisternas entregues; Acesso e Uso da Água – Água para Todos; Programa de Apoio à Conservação 72,1 mil famílias de extrativistas, Ambiental – Programa Bolsa Verde; assentados e ribeirinhos beneficiadas para continuar produzindo e conservando o meio ambiente; Programa de Apoio à Conservação mais de 1.200 técnicos de Ater para Ambiental e do Programa de Fomento às atender aos beneficiários do Programa de Atividades Produtivas Rurais, Assistência Fomento; Técnica e Extensão Rural – ATER; 358 mil famílias receberam assistência técnica; Programa de Aquisição de Alimentos – 301,6 mil operações do PAA realizadas PAA com agricultores familiares de baixa renda; R$ 107, 6 milhões investidos em compras de alimentos. Fonte: Elaboração Própria, com base nos dados levantados na pesquisa.

Entre 2011 e 2014 o PBSM repassou mais de R$ 332,6 milhões de reais para mais de 175 mil famílias de agricultores, quilombolas, indígenas, extrativistas, pescadores artesanais, 348

ribeirinhos e silvicultores. Além disso, 390 mil famílias de assentados da reforma agrária acessaram as políticas do PBSM. Os resultados para os chamados “públicos específicos”, atendidos pelo Plano no período de 2011-2014 estão elencados no quadro seguinte.

Quadro 7 - Resultados dos chamados “públicos específicos” – PBSM/2011-2014 Mulheres 4,4 mil famílias Quilombolas 14 mil famílias Pescadores artesanais 3,5 mil famílias Assentados da reforma agrária 54 mil famílias

Extrativistas (Bolsa Verde) 39,3 famílias Indígenas 4,5 mil famílias Fonte: Elaboração Própria, com base nos dados levantados na pesquisa.

Segundo o governo, tais programas envolvem uma perspectiva sistêmica, com ações integradas, pois não se limitam apenas à transferência de recursos para que os agricultores possam investir em suas propriedades, mas engloba assistência técnica especializada, ampliação de acesso à água e energia elétrica, apoio a comercialização dos produtos, inclusive com compras públicas. Com isso, se observa que tanto a produção de alimentos como o fomento à qualificação são basilares do referido eixo. 222

222 Os documentos consultados na pesquisa deixou claro que a perspectiva do governo segue a linha teórica do capital humano, que é aporte de relevo para o neoliberalismo. De acordo com Oliveira e Motta (2010), a ideologia do capital humano está na base dos programas de “alívio à pobreza”. Segundo as autoras, a teoria do capital humano é incorporada no Brasil ao longo dos anos 1950 e 1960, pautada na ideia da educação como motor de desenvolvimento econômico e social, um “autêntico” fator de progresso, na medida em que proporcionaria um aumento na “capacidade produtiva dos trabalhadores e promoveria a modernização dos setores produtivos. Assim, segundo tal teoria, quanto mais investimento na qualificação, mais o trabalhador criaria oportunidades para sua própria ascensão. Atualmente, a ideologia do capital humano prioriza a formação de empreendedores e incorpora elementos da teoria do capital social (IDEM, 2010). Frigotto (2009) esclarece que a noção de capital humano desenvolvida pelo economista Theodoro Schultz designa “o montante de investimento que uma nação ou indivíduos fazem na expectativa de retornos adicionais futuros”. O capital humano seria o conjunto de habilidades, conhecimentos e competências dos indivíduos, sendo propriedade do próprio homem. Assim, quanto mais se invista em qualificação desse capital – via educação e condições básicas de saúde – tanto maior será o capital humano. Para Frigotto (2009), esta noção esvazia os processos históricos pelos quais se constitui a desigualdade nas sociedades capitalistas e individualiza problemas relacionadas à esta sociabilidade. Além disso, noções como estas acabam “por atribuir aos indivíduos, no bom credo da liberdade de escolha individual, a responsabilidade por seu desemprego ou subemprego: Não sou empregável porque não escolhi um curso que desenvolveu as competências reconhecidas e de ‘qualidade total’” (FRIGOTTO, 2009, p.5). No limite, o termo capital humano é uma construção ideológica para mascarar as desigualdades entre nações, indivíduos e classes sociais e manter intactos os fundamentos da exploração. 349

As ações giram na órbita da ampliação de capacidades dos próprios agricultores de modo a fomentar seu potencial de gestão da própria unidade produtiva. Ou seja, investe-se no repasse de ativos e os próprios indivíduos empreendem novas oportunidades de geração de renda. O suporte técnico e as condicionalidades quanto a sustentabilidade de cada projeto produtivo dão a tônica da modalidade de intervenção pública pautada na auto-gestão dos trabalhadores rurais, com gerenciamento à distância do Estado. De modo geral, as duas dimensões do eixo Inclusão Produtiva parecem sofrer sérias influências das noções difundidas pelas agências multilaterais de capital social223 e capital humano. Segundo Oliveira (2014), estes conceitos são disseminados pelas agências multilaterais para a constituição de uma nova narrativa sobre a pobreza e suas formas de enfretamento e, de modo geral se sustentam na [...] individuação da experiência social que embasa essa perspectiva de ação sobre a pobreza fundamenta a incorporação de termos como habilidade, competência e atitude para superação da vulnerabilidade social, com mobilização de aquisições pessoais, familiares e comunitárias. Potencialidades, talentos e capacidades devem ser aprimorados e desenvolvidos para diminuição de riscos de empobrecimento no acesso a renda e a serviços, assim como para manutenção de laços afetivos (OLIVEIRA, 2014, p. 14).

É possível perceber a influência de tais noções de maneira incisiva neste eixo de inclusão, mesmo que elas também apareçam nos outros. Mas aqui, a sua particularidade está na retórica de que investimento em formação e qualificação profissional de cada indivíduo poderia contribuir para que eles próprios pudessem “transformar” suas condições de vida em “oportunidades” para o desenvolvimento do seu “capital humano”. Tal investimento se

223 Em relação à noção capital social, Motta (2010, p. 01) destaca que ainda que este não seja um termo recente, ele ressurge mais intensamente nos anos 1990. “De modo geral, é compreendido como um recurso social, individual e coletivo, normativo e cultural que possibilita proveitos materiais e simbólicos”. O termo teve forte incidência nas políticas dos organismos multilaterais para os países de capitalismo dependente, culminando nas ‘políticas de desenvolvimento do milênio’, em 2000. Ainda segundo a autora, “Expressões que decorrem dessas abordagens e que vêm penetrando no senso comum sem considerar as contradições inerentes às relações sociais capitalistas são: redes solidárias, redes associativas, tecnologia social, laços sociais, virtude cívica, responsabilidade social, relações horizontais, pró-atividade, reciprocidade, vida comunitária, economia ética, entre muitas outras. No âmbito ideológico, essa concepção tem colaborado no fortalecimento da ideia de construir uma sociedade solidária e harmoniosa com um “Estado inteligente” e “Ativo” - “eficiente e competente” nas tarefas de impulsionar um modelo de desenvolvimento em harmonia com o mercado e as organizações da sociedade civil, administrando os riscos e aliviando a pobreza[...] um “capitalismo com face mais humana” [...]. Nesse ideário, não cabem somente políticas públicas assistencialistas, focadas e/ou compensatórias, é necessário também aproveitar a capacidade produtiva dessa parcela da classe trabalhadora gerando capital social, isto é, reunindo esforços coletivos, formando redes sociais, para habilitá-la a suprir suas necessidades imediatas” (MOTTA, 2010, p. 03). É importante elucidar, que o termo é utilizado no âmbito dos postulado teóricos e ideológicos da chamada “Nova Direita” para designar “a relação de confiança, reciprocidade e cooperação entre diferentes atores sociais” (PEREIRA, 2013, p. 132). Para uma análise detalhada dos termos capital humano e capital social e sua influência na constituição da nova narrativa acerca da questão social e de suas formas de enfrentamento conferir a Dissertação de Mestrado de Karine Noronha Oliveira, intitulada “A vulnerabilidade social como narrativa da proteção social na era do capital financeiro: fundamentos teóricos e históricos da argumentação dos organismos internacionais”. 350

viabilizaria para que aqueles que desejam e se empenham em conseguir uma inserção no mercado de trabalho, mesmo que informal e\ou que se disponibilize a, de algum modo, se tornar um microempreendedor, e\ou melhorar sua atuação e as possibilidades de pequenas propriedades agrícolas. Para tanto, os programas e ações do Plano voltadas para este eixo visavam o desenvolvimento de capacidades para “geração de oportunidades”. Evidentemente, esse novo mantra do investimento em capital humano e social dá apenas um tom mais moderno e sofisticado para um revisionismo conservador, visando forjar uma nova “pedagogia do consentimento e do conformismo” (NEVES, 2005), que desloque os dilemas e contradições do processo produtivo capitalista e das relações de exploração que ele engendra para o âmbito das soluções micro, individualizadas, situadas no campo da responsabilidade do próprio sujeito. Como se os pífios investimentos em qualificação técnica e microcrédito fossem alternativas concretas ao “recrudescimento no desemprego estrutural, precarização do trabalho com perda de direitos e, especialmente, em países dependentes como o Brasil, oferta de empregos que exige trabalho simples e oferece uma baixíssima remuneração” (FRIGOTTO, 2009, p. 03). O contexto de crise do capital, com a patente exponenciação da desregulamentação econômica e do trabalho desprotegido, é solo concreto para esta pedagogia do consentimento às transformações que se processam no capitalismo, para garantir a acumulação de capital ao mesmo tempo em que aprofundam as condições de controle sobre a força de trabalho, “deixando-a ativa para o trabalho, seja ele qual for” (BARBOSA, 2014, p. 129). Neste solo histórico espraiam-se as chamadas políticas ativas ou de ativação, que constituem ações públicas que visam estimular comportamentos e contrapartidas da população aos benefícios sociais recebidos. A base da regulação está sustentada na retribuição ao benefício, por meio de um ‘comportamento ativo’ em relação ao trabalho (ou à qualificação para o trabalho). O argumento é que as políticas de ativação visam fazer o trânsito da situação de desemprego para o ingresso em atividade laborativa [...] (IDEM, 2014, p. 128).

Numa perspectiva de totalidade, as políticas de ativação se inserem no movimento de remodelação do Estado, no âmbito das transformações do capitalismo mundializado, como supostas alternativas ao desemprego estrutural, mas que ao final solidificam as estratégias para “ reorganização flexível do trabalho e a transição para Estados mais workfareanos” (BARBOSA, p. 129). Três grandes eixos estruturam a orientação para a ativação: 1. Perspectiva conservadora de restrição das responsabilidades públicas do Estado com o direito e a reprodução social; 351

2. Mobilização da subjetividade para aceitação e difusão do trabalho flexível; 3. Incentivo à relação contratual entre indivíduo (beneficiário) e Estado, com ações de contrapartidas que podem gerar punições ou culpabilizações pelo infortúnio individual (IDEM, 2014, p. 137).

As políticas de ativação são um dispositivo importante na nova ofensiva do capital ante a crise estrutural que se arrasta ao longo dos últimos anos, seguindo a tendência de desresponsabilização do Estado perante as necessidades materiais de reprodução da força trabalho. Neste sentido, conforme se depreende da incursão feita sobre as principais estratégias do PBSM, pode-se perceber uma direção no esteio das políticas de ativação para o trabalho, ainda que no caso brasileiro não se incluam sanções.224 Tais mecanismos têm sido estratégia importante para lidar com o pauperismo, sob o discurso da inclusão produtiva. Neste sentido, o trabalho se associa às políticas sociais, menos pela inserção em sistemas de emprego ( e sua rede de proteção social) e mais pelo estímulo à procura ativa de formas de geração de renda. As políticas sociais se dirigem aos sujeitos interessados em melhorar a sua empregabilidade, o que acaba dirigindo a autoridade pública para promover a disseminação dessa subjetividade, induzindo comportamentos positivos para o trabalho flexível de baixos salários. A reforma restritiva ao bem-estar torna o Estado gerenciador do trabalho precário para o amplo proletariado excedente (BARBOSA, 2014. P. 133).

Assentado na narrativa da superação da pobreza, as políticas de ativação se inscrevem no bojo das estratégias do PBSM sob a insígnia da inclusão produtiva, mediante a qualificação de capital humano e social, pautados no discurso da qualificação técnica e profissional, na intermediação de mão-de-obra e no empreendedorismo. No cerne de tal retórica estão impressas determinações mais amplas da sociabilidade do capital que produz e reproduz mecanismos de reprodução da força de trabalho – necessária e excedente – que desonere tanto quanto possível os custos para o capital. No quadro do referido Plano, a utilização das políticas de ativação seguem a mesma tendência de suas acepções e utilizações originais: de consolidar estratégias pelas quais o público beneficiário dos programas assistenciais tenham possibilidades de não dependerem mais de programas governamentais, ou seja, constituam “portas de saída da tutela assistencial

224 No caso do Programa Bolsa Família, o sistema de condicionalidades – que impõe às famílias beneficiárias a frequência escolar dos filhos e certos cuidados básicos com saúde e programas socioeducativos de assistência social – podem gerar sanções, visto que podem implicar desde notificação, suspensão temporária e cancelamento dos benefícios. Nos casos das ações de geração de renda e qualificação profissional, como as que tratamos ao discutir o eixo de inclusão produtiva do Brasil sem Miséria, não ocorrem sanções, mas tem forte impacto na “mobilização subjetiva” e na criação de um “comportamento ativo” em relação ao trabalho (BARBOSA, 2014, p. 132). 352

do Estado” ou “liberar os pobres da proteção social pública” (PEREIRA, 2012, p. 747). Em outros termos, ativar os que demandam os benefícios de assistência social para o mercado de trabalho e\ou “micronegócio auto-gestado”. Configura-se, assim, via adensamento técnico da gestão do Estado perante as ações de “alívio à pobreza”, formas redesenhadas de controle do trabalho. Na medida em que as condições de sobrevivência das camadas mais empobrecidas da classe trabalhadora e as novas situações vivenciadas por uma superpopulação relativa cada vez mais ampliada e aviltada repõem as contradições capitalistas com possibilidades explosivas, o Estado empreende formas de apassivamento do trabalho, via medidas de inserção precarizada. A ideologia e a prática da ativação exerce um controle velado e explícito sobre o trabalhador. Explícito no sentido do encaminhamento, da formação e das ações de que são objeto como usuários dos programas sociais para se inserirem em espaços de trabalho ou desenvolverem microempreendimentos; velados, por que se utilizam da pressão implícita, subjacente à própria ética burguesa do trabalho que impõe ao individuo as sanções sociopolíticas e a coação cultural e ideológica. Nesta matéria, vale destacar alguns números relativos aos cursos do Pronatec/PBSM. As taxas de aprovação/reprovação segundo públicos específicos, por exemplo, demonstram desempenhos mais positivos para o público do Pronatec/PBSM, pelo qual se verificou uma taxa de aprovação superior a todo o Bolsa Formação em 0,6 pontos percentuais; sendo que entre os beneficiários do PBF 87,9% obtiveram aprovação. A ativação é uma engenhosidade acionada pela racionalidade instrumental na medida em que funde nos próprios usuários a necessidade de se adequar a um dado padrão de tecnificação que o habilite à realização de alguma atividade produtiva, ainda que precarizada e informal. Tonifica os efeitos reprodutivos do viés aburguesado de moralização do trabalho como ethos de cidadania, ainda que nas condições possíveis das políticas de ativação, aqueles direitos ligados ao estatuto da cidadania assalariada sejam negados. Enquadram-se na lógica contemporânea de mobilização da força de trabalho supérflua às necessidades imediatas da produção, mas indispensáveis do ponto de vista do consumo. Ao tempo que as atuais investidas da política social ocorrem em transferência de renda e mecanismos de inserção precarizada no trabalho, assegura algum potencial de consumo necessário para contrarrestar o subconsumo. Pesquisa do IPEA (2013) demonstra, por exemplo, os efeitos multiplicadores das transferências de renda no país, sendo que estes programas são os que apresentam maior efeito sobre o PIB. A cada R$ 1 adicionado ao programa se aumenta R$ 1,78 ao PIB, sendo que o valor do PBF gera um aumento de 1,78% na atividade econômica das famílias 353

beneficiadas com o Programa, gerando ainda, o aumento de 2,40% sobre o consumo destas pessoas. Essas estratégias são essenciais também no que se relaciona à manutenção de uma imensa massa de força de trabalho disponível para às necessidades da produção imediata de mercadorias, deixando-as atualizadas quanto às requisições técnicas do mercado de trabalho simples pelo qual podem ser absorvidas a qualquer momento, a depender da conjuntura posta à valorização do capital. A importância da política de assistência social na reprodução da força de trabalho e as estratégias diretamente ligadas às políticas de ativação para o trabalho, no âmbito de um Plano como o Brasil Sem Miséria, convergem no sentido do gerenciamento e administração das expressões mais drásticas da questão social. Sob hegemonia de uma consciência tardo- burguesa de dominação no capitalismo dependente, explicitamente neoconservadora, empreende-se um movimento em que o Estado e as classes dominantes seguem a trilha da gestão da questão social, atuando sob suas expressões de maior potencial disruptivo, que no limite visam o deslocamento das contradições das classes sociais para o âmbito da política social instrumental. O que nos cabe pensar é sobre o impacto político deste processo. Se historicamente o trabalho assalariado gerou o processo de organização e luta dos/as trabalhadores/as, hoje, esta massa pauperizada e objeto da assistência, possui quais referências político e organizativas? (MOTA, 2009, p. 70).

Esta intricada vinculação entre política de assistência social e ações voltadas para o trabalho torna-se um eixo catalizador de esvaziamento do debate sobre a precarização do trabalho e a proteção social pública em face dos riscos oriundos da mercantilização da força de trabalho, transmutando direitos trabalhistas, de cunho coletivo, público e político em medidas de geração de renda e qualificação da força de trabalho. A questão social torna-se, então, objeto de ações cujos aportes teóricos e ideológicos indicam para a sua limitação à “pequena política”. Ao recorrer ao fetiche do enfrentamento à pobreza, via mecanismos acionados pelo PBSM, o projeto político dos governos do PT se afastou drasticamente do importante debate sobre a desigualdade social, a concentração de renda e de propriedades no capitalismo dependente, no cenário de mundialização financeirizada, ou seja, se afasta da “grande política”. Isso, na medida em que se posterga o debate e a pauta concreta de mudanças substanciais na rota da política econômica e social, que poderiam acentuar as lutas políticas na direção de grandes reformas estruturais, no aprofundamento da democracia, e na ampliação dos direitos sociais. 354

Em vez de potencializar as contradições e tematizar a disputa política os grandes projetos de sociedade, os governos do PT aprofundaram a “pequena política” fomentando um tímido projeto de melhorias sociais e ação sobre a pobreza, limitando-se a administração do existente, de modo a conciliar a reprodução ampliada do capital e a gestão de consequências mais danosas, como a expansão exacerbada da pobreza. É a rendição do PT ao âmbito restrito e imediato da “pequena política” que se realiza nesse quadro sociopolítico, mediante o pragmatismo da “boa governabilidade”, onde as clivagens de classe são acomodadas sobre as conciliações de interesses para a reprodução imediata do projeto societário já instituído. O chamado “enfrentamento à pobreza” aparece como uma das formas de atenuação das consequências desastrosas da sociabilidade capitalista. Esta inflexão do PT demarcou um importante freio à radicalização da luta de classes no Brasil. Subtrai-se do debate político-democrático a possibilidade de outra política econômica e ratifica-se a agenda de estabilidade macroeconômica neoliberal. Evita-se o questionamento da ordem social e a possibilidade de uma alteração profunda na sua base. De acordo com Coutinho (2006), os grandes processos involutivos no PT se deram tanto no plano programático, quanto no plano organizativo. No primeiro, tem-se que as correntes majoritárias do PT abandonaram qualquer referência concreta ao socialismo. No segundo, aponta que o partido operou um intenso processo de burocratização, com centralização de processos decisórios nas instâncias dirigentes. Longe de problematizar, concretamente, as causas reais das questões cruciais que assolam o país, como a profunda desigualdade social que impera nas nossas relações sociais, o caráter dependente do capitalismo associado no país, bem como sua feição selvagem e predatória, se apostava na compatibilização de interesses divergentes: as frações financeiras e produtivas do capital e as camadas da classe trabalhadora, tanto as mais formalizadas como as informais, ambas atingidas frontalmente por processos de precarização. Tudo indica que para a camada dirigente do PT não se tratava mais de criticar radicalmente os efeitos deletérios dos ajustes neoliberais, da dominância do capital financeiro sobre o destino do fundo público, em suma, não mais se colocava em questão desvelar as causas reais das relações sociais de exploração e estranhamento da contemporaneidade, mas sim de construir um novo aporte teórico-político e ideológico, que tenha efetividade prático- funcional na estabilização da dominação de classe no Brasil (MATTOS, 2013). Por isso, insistimos na funcionalidade político-ideológica da narrativa governista do PT, que buscou harmonizar crescimento econômico e inclusão social, ou seja, interesses 355

contraditórios, visto que expressões de demandas de classes sociais antagônicas, bem como da pertinência analítica da categoria decadência ideológica na apreensão destes processos. Ao congregar, em seu arcabouço teórico-ideológico, ortodoxia econômica com programas sociais de alívio à pobreza, a retórica petista propunha um aperfeiçoamento da ação do Estado enquanto ente regulador para garantir as condições para um mercado dinâmico e desenvolver estratégias de intervenção sobre as iniquidades sociais. Neste contexto, entendemos que o PBSM é expressão do processo de decadência ideológica do projeto político do PT, uma vez que se consolida como resposta banal da consciência burguesa para gerir os efeitos mais nefastos da crise do capital, como a pobreza extrema, ou em outros termos para administrar a reprodução da força de trabalho excedente. Tal processo tem raízes fincadas em aportes teóricos e políticos consoantes com as determinações dos organismos multilateriais, que em última instância, representam os interesses de classe do capital. Neste contexto de decadência ideológica, os aportes políticos e ideológicos de enfrentamento à pobreza estão cravados no viés conservador da consciência burguesa apologética do capitalismo, assumindo especificidades no âmbito do posicionamento político- governamental do PT. Suportes estruturantes do capitalismo são intocados, e as chamadas políticas de desenvolvimento com alívio à pobreza passam a conformar a narrativa política em curso, donde “desemprego e pobreza constituem temas de mediação chaves para as estratégias de consenso levadas à frente pelos governos do PT” (BARBOSA, 2014, p. 156). Deste modo, ao invés de políticas para enfrentar de fato o desemprego e a pobreza, apologeticamente,225 propagou-se o mercado como neutro, lugar para onde convergem interesses particulares, que redundarão em equilíbrio econômico, ou seja, mantém-se, parcialmente, a crença na “mão invisível do mercado” (IDEM). Parcialmente, por que para garantir tal equilíbrio e estabilidade do mercado, é preciso que o Estado adote uma política econômica que o “anime” e dê segurança. Assim, as contradições, inclusive aquelas afetas às desigualdades entre os países centrais e os periféricos dependentes como o Brasil, eram escamoteadas. De modo similar, as contradições sociais que se expressam na intensa desigualdade social, na concentração de renda exorbitante e na reprodução da pobreza são colocadas ao

225 “Uma das místicas basilares das teorias apologéticas apresenta o sistema como estrutura maleável, moldável e receptiva à correção de toda sorte de problemas interpostos à sua reprodução. [...] são diversos os caminhos da apologia, mas o destino de todos é o mesmo: mitigar as contradições para salvaguardar a realidade existente” (PINASSI, 2009, p. 12; 21). 356

plano da administração, via política social específica. Longe de serem problematizadas como resultantes da lógica mercantil que preside a dinâmica capitalista, e de seu aprofundamento em função da peculiaridade da nossa formação social e econômica, são explicadas e “tratadas” sob um viés neoconservador. Mistifica-se a pobreza como condição resultante da falta de preparo dos pobres, ou até mesmo da ausência de iniciativas dos indivíduos. Analogamente, também se consideram princípios morais e aspectos psicologizantes das camadas desempregadas como causas da pobreza. Compreende-se, além disso, que tenham sido objeto de programas governamentais ineficazes e, portanto, é necessário minorar os condicionantes que a aprofundam – no caso do Brasil Sem Miséria, ampliar o acesso a serviços públicos essenciais e garantir qualificação profissional e microcrédito. Em outros termos é preciso gerenciar a pobreza, visto que o projeto político em curso, naquele contexto, já tem por pressuposto a impossibilidade de erradicá-la. Em última análise, a pobreza ainda é vista, explicada e abordada sobre uma perspectiva teórica e política conservadora, que se atém a sua manifestação fenomênica, de descrição imediata da realidade. Retomando a apresentação dos eixos que compõem o PBSM, tem-se o eixo “acesso a serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania das famílias”. Este eixo, apesar da amplitude do enunciado, está ancorado em um processo de intervenções residuais, via programas segmentados e específicos como: programas de ampliação de acesso à energia elétrica; cozinhas comunitárias e bancos de alimentos; Rede Cegonha; distribuição de medicamentos para hipertensos e diabéticos (Farmácia Popular); tratamento dentário (Brasil Sorridente), construção de cisternas, entre outros. A figura seguinte traz o panorama oficial do que seria esse eixo:

357

Figura 7 - Eixo acesso a serviços públicos

Fonte: MDS, 2011a

O PBSM, através deste eixo, encetou medidas que perpassam vários serviços públicos essenciais, que na narrativa oficial do Plano apareciam como um intenso empreendimento do Estado para que a população mais pobre tenha acesso a tais serviços. Em nossa interpretação, os processos desencadeados se configuram muito mais como intervenção estatal focalizada justamente em aspectos da realidade social que possam atenuar situações alarmantes. Para tanto, se investe, de modo focalizado, na melhoria dos índices em áreas como saúde, educação, assistência social, saneamento básico, segurança alimentar, evidentemente, centralizando ações que incidam sobre as condições de vida da população que atestam situação de pobreza extrema. Isto parece imprescindível para a consolidação da projeção do país, interna e externamente, como uma nação que prima pela “justiça social”, via combate à pobreza, além de evidentemente, conter os conflitos sociais mais explosivos. Estamos confirmando a hipótese da pesquisa de que, com o referido Plano, se reproduz a lógica do paralelismo dos programas de “enfrentamento à pobreza” em relação à política de assistência social, além de intensificar um processo de modernização conservadora da política de assistência social. Conforme viemos problematizando, tal processo não se deve exclusivamente ao PBSM, visto que a direção dessa modernização conservadora vem desde os fundamentos teóricos dos textos regulatórios da política de assistência social, com influência de aportes conceituais das agências multilaterais. Com o PBSM ocorre o robustecimento das tendências prático-ideológicas já iniciadas com o PBF. 358

Neste particular, a política de assistência social passa por um processo intensivo de modernização institucional do seu sistema de informações, recebe investimentos tanto de reformatação da gestão da política, quanto na ampliação dos equipamentos sociais, sendo capitalizada para os objetivos do PBSM. Em outros termos, com o Plano, o SUAS recebe um “rompante gerencialista” sob o governo petista, acirrando os atributos tecnicistas para resolução das inconveniências da divisão do trabalho na esfera da reprodução das relações sociais, sob a particularidade da atividade pública. Entre 2011 e setembro de 2014, o valor total empenhado nas ações apontadas no Orçamento Geral da União como integrantes do PBSM foi de R$ 107,9 bilhões (COSTA e FALCÃO, 2014). Trata-se nada mais nada a menos que o carro-chefe do governo Dilma, aliado ao PAC A grande cartada do seu governo no campo das políticas sociais, com alto investimento de recursos e com uma ousada estratégia de articulação interministerial. O alcance em termos de metas quantitativas é, de fato, muito grande.

Quadro 8 - Resumo dos principais resultados do Plano Brasil sem Miséria (2011-2014)

Ação/Programa/ Resultados Estratégia/Benefício Ajustes no Programa 22 milhões de pessoas “superaram” a extrema pobreza Bolsa Família Busca Ativa 1,35 milhão de famílias que eram extremamente pobres foram incluídas no Cadastro Único pela Busca Ativa e entraram imediatamente no Programa Bolsa Família Inclusão Produtiva mais de 400 mil beneficiários do Bolsa Família se Urbana formalizaram como microempreendedores individuais; 3,6 milhões de pessoas do Bolsa Família fizeram operações de microcrédito produtivo orientado do Programa Crescer; Inclusão Produtiva 349 mil famílias de agricultores de baixíssima renda do Rural semiárido receberam serviços de assistência técnica; Deste total, 131 mil recebem recursos de Fomento para ajudar a estruturar sua produção; 750 mil cisternas de água para consumo foram entregues; 69,8 mil famílias foram beneficiadas pelo Programa Bolsa Verde; 359

267 mil famílias do Bolsa Família receberam ligações de energia elétrica do Programa Luz para Todos; Acesso à Serviços 702,8 mil crianças do Bolsa Família estão matriculadas em essenciais (Ação creches; Brasil Carinhoso) 35,7 mil escolas com maioria de estudantes do Bolsa Família tem ensino em turno integral com o Programa Mais Educação; Programa Minha Casa 388 mil famílias do Bolsa Família foram beneficiadas pelo Minha vida para o Minha Casa Minha Vida. público do PBSM Fonte: Campello, Falcão e Costa, 2014.

O Plano é grandioso dentro do limitado domínio da razão político-instrumental. É imponente dentro do formato técnico em que se insere, a partir da lógica instrumental que parametra a ação pública sob a via gerencial. E indo mais além. É inquestionável se pesando sob a ótica da direção política do partido dos trabalhadores que sucumbiu da órbita da pequena burguesa para a completa decadência ideológica. Mas, irremediavelmente contraditório e irracional – do ponto de vista de uma compreensão dialética e emancipatória da razão – por que visa enfrentar a outra face inexorável do desenvolvimento capitalista que é a pobreza e ainda por cima, procura fazê-lo tentando controlar, remediar ou até mesmo suplantar os efeitos deletérios da divisão sociotecnica do trabalho no campo da política social. Toda essa artimanha, sob a camuflagem do fetiche da gestão. Os chamados equipamentos sociais do SUAS, CRASs (proteção social básica) e os CREASs (proteção social especial), são os principais polos de atendimento dos programas e ações do PBSM. Até mesmo as ações que não têm sua execução realizada no âmbito exclusivo da política de assistência social, tem nos CRASs a “porta de entrada” para viabilização do acesso. Não parece aleatório que a coordenação do Plano tenha ficado sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e combate à fome, mesmo Ministério responsável pela política de assistência social. Segundo Fonseca (2011),226 a política de assistência social e o SUAS integram as “espinhas dorsais do Plano” e aponta que não seria possível atingir o público-alvo do PBSM

226 Ana Maria Medeiros da Fonseca é graduada em história, mestre em história social e do trabalho pela Unicamp e doutora em história social, na área de família e relações de gênero, pela USP. No MDS, coordenou o Programa Bolsa Família, foi secretária executiva e secretária do Plano Brasil sem Miséria. Atuou como analista de políticas sociais do PNUD e da FAO e atualmente é pesquisadora do núcleo de estudos em políticas públicas da Unicamp. Faleceu recentemente, em março do presente ano. 360

sem a interveniência da proteção social básica e especial dos CRAS e CREAS, por vários motivos. Primeiro, porque a responsabilidade pelo Cadastro Único – principal mecanismo de acesso das famílias extremamente pobres aos programas sociais – está sob responsabilidade da política de assistência social na maioria dos municípios brasileiros. Campello (2017), que era Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à fome na época da implementação do Plano, expressa claramente que a expansão da assistência social foi um recurso necessário para o sucesso do PBSM, uma vez que o foco nos mais pobres demandava priorizar, dar maior abrangência e maior cobertura à rede de serviços que deveria chegar a eles. Exigia, portanto, impulsionar a implantação da rede de Assistência Social no país num ritmo acima do que aconteceria normalmente. Olhar para os invisíveis ampliou e acelerou a implantação da política de assistência social (CAMPELLO, 2017, p.89).

Nos moldes dessas “políticas de exceção”, no qual se inserem o rol das práticas relativas ao PBSM e do PBF, a precariedade da vida dos trabalhadores apresenta-se como indicador de pobreza e, portanto, passa a se constituir em objeto de programas sociais sob a figura do pobre. Na verdade, trata-se de trabalhadores expropriados do trabalho, mas parcialmente integrados ao mercado com os parcos recursos de que dispõem (MOTA e TAVARES, 2016, p. 233).

O que ocorre com a política de assistência social, seja mediante tentativas de convertê- la em mera força estatal de “combate à pobreza” ou carreá-la para objetivos paralelos como de programas esporádicos de natureza assistencial, temporária e focalista para aquele mesmo objetivo, é reduzi-la à gestão da pobreza, sob auspícios de mecanismos modernizados e mais eficientes de “trato dos pobres”, reforçando a lógica conservadora de que é caudatária. Neste particular, sua atuação fica circunscrita à elegibilidade dos “pobres” que podem vir a ser beneficiados com determinados programas, assegurando que aqueles estratos mais aviltados pelos processos de crise estrutural do capital sejam alcançados. Para isso, mobiliza-se para o campo da assistência social: recursos para transferência de renda, técnicas aprimoradas para cadastrar indivíduos e garantir o acesso aos serviços a estes mesmos seguimentos, trabalhar com indicadores, monitoramento e “vigilância”, de modo a sistematizar a intensificação de ações em situações de maior “vulnerabilidade e “risco”, dominar esse arsenal teórico- conceitual e alimentar um sistema de informações sofisticado; dominar competências e habilidades para gestão desse sistema; Sistematizando a relação do PBSM com a política de assistência social, trabalhamos por eixo do Plano as medidas e ações implementadas ao longo dos anos de 2011 e 2014. 361

No eixo de acesso a serviços, procedeu-se a ampliação de serviços como o Serviço de Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF) e do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com a constituição de equipes que se deslocam no território. A oferta do serviço volante faz parte da estratégia de Busca Ativa, que foi um mecanismo instituído pelo Plano, como estratégia central para identificar e fazer os serviços e programas sociais chegarem à população em situação de extrema pobreza, com maiores dificuldades de acesso a serviços socioassistenciais. A Busca Ativa, no campo da política de assistência social, faz parte da função de Vigilância Socioassistencial e reforça essa função da política de assistência social, acentuando os aspectos de monitoramento dos pobres, subsidiando a constituição de estratégias preventivas ao estabelecer mecanismos de alcance aos estratos empobrecidos, com maior limitações de acessos aos programas governamentais de ação sobre a pobreza. O Cadastro Único transformou-se no “principal instrumento de gestão do Brasil sem Miséria”, ao que foi acrescentada a estratégia de busca ativa. Conciliou-se, assim, a base de dados sociais mais importante do governo federal com a atuação direta de trabalhadores do SUAS na busca por novos potenciais beneficiários de programas assistenciais de “alívio à pobreza”. “Com o advento do Plano Brasil sem Miséria, a estratégia de Busca Ativa foi impulsionada pelo aumento de recursos do governo federal para as prefeituras, pela criação de equipes volantes da assistência social e pelos mutirões do Bolsa Verde” (AMARAL, 2014, p. 117). De acordo com o Censo SUAS 2013, 82,4% dos Centros POP desenvolviam a estratégia de busca ativa. Esse dado não é tão ilustrativo, quando se pensa do ponto de vista de que os Centros POP foram criados justamente com o objetivo de buscar as populações de maior dificuldade de alcance dos programas e ações do PBSM. Mas a estratégia também foi implementada nos CRASs e, em 2013, 23,4% do acesso aos serviços oferecidos pelos CRASs se deu pela busca ativa. Já o Censo SUAS 2014 demonstra que entre as ações de “combate ao trabalho infantil, por exemplo, a estratégia da busca ativa compôs 67,3% das ações para incluir famílias com situação de trabalho infantil no Cadastro Único. Dados da MUNIC (2014) apontam o espraimaneto da estratégia pelo Brasil a fora, sendo que 87,5% dos municípios realizam busca ativa. A implementação da estratégia também deve está relacionada ao incentivo financeiro que os municípios passaram a receber através do IGD-PBF, com aumento no valor de referência do cálculo do referido índice, que passou a considerar as famílias inscritas no Cadastro Único e não as famílias beneficiárias do Programa. Entre os melhoramentos no 362

Cadastro Único e as medidas para a efetivação da estratégia de busca ativa, o PBSM investiu mais de R$ 44 milhões. Estabelece-se assim, uma relação técnica-financeira entre os dois mecanismos – busca ativa e cadastramento de famílias – que coloca a assistência social no espectro do produtivismo e do alcance de metas quantitativas. Vigilância, utilização estratégica de dados, acompanhamento de condicionalidades, entre outros se constituem em alguns dos vetores que têm fomentado a lógica paralela por dentro do SUAS para gestão da pobreza, reforçando o ataque aos valores universais das políticas de seguridade social e trazendo à baila a reprodução de vários dos aspectos mais conservadores da assistência social: a intervenção imediata e pragmática, a empiria como fundamento da ação, a fragmentação da realidade como mecanismo de individualização e culpabilização dos sujeitos em função de sua condição de pobreza e a perspectiva de controle dos pobres, via constante vigilância técnica, política e moralizadora. Evidente que o processo também gera contradições. Atende demandas imediatas de parcelas da classe trabalhadora cujo acesso a quaisquer programas sociais era quase impossível e para quem tais programas significam a sobrevivência material. Também não é desprezível a importância dessa expansão de CRASs, CREAs e Centros POP na consolidação de capilaridade do SUAS nos mais recônditos lugares deste país. Mas também, todo esse arsenal segue um eixo direcionador que visa enquadrar a realidade concreta em respostas técnicas, alinhando a ação pública às requisições próprias da razão instrumental. Não é nenhuma novidade que a ciência burguesa pós-decadência ideológica visa emoldurar a objetividade do real a conceitos abstratos, aos ditames matematizados e homogeinezantes do saber fragmentado. Tal direção toma proporções cada vez mais amplas na medida em que a acumulação capitalista requer o espraiamento completo de sua racionalidade a todos os âmbitos da visa humana. Em tempos de crise do capital e nas complexas condições em que ela se manifesta em países periféricos e dependentes, como o Brasil, a disputa em torno da direção do Estado na convergência de consolidar essa mesma racionalidade à sua ação é cada vez mais decisiva. Os sistemas de gestão e monitoramento de dados modernizados sob os investimentos do PBSM capitalizam a proximidade do SUAS com os estratos mais empobrecidos da classe trabalhadora para fomentar meios genéricos de gerenciamento da pobreza. Não se pode esperar do Estado capitalista que ele atue sobre a raiz da pobreza, por que isso seria o mesmo que enfrentar a própria ordem capitalista. Mas a forma particular como o Estado atua sobre as necessidades da classe trabalhadora evidentemente diz muito sobre o fato de sua direção estar em disputa com possibilidades reais para o tensionamento do trabalho. 363

O geoprocessamento de dados – central na relação do PBSM com o SUAS – tem fundamento claro na via neopositivista de interpretação do mundo e das práticas sociopolíticas. Ao levar as estratégias de gestão ao limite máximo do aparato manipulatório – método universal da sociabilidade capitalista – o Estado restringe-se ao limiar das acomodações e melhoramento administrativos, operacionalizando variáveis empíricas. Os nexos que estabelecem os expedientes de interrelação entre o Brasil sem Miséria e o SUAS podem não transparecer de imediato a cadeia de funções político-estratégicas e ideológicas que engendram e consolidam. Mas nossa análise procura demonstrar justamente os fios invisíveis e as razões incrustardas nas diversas medidas implementadas e/ou aprofundadas. Neste intricado processo podem ser encontrados traços especificadores da investida gerencialista do Estado brasileiro. A proeminência de um Estado mais interventivo no chamado “campo social” não deixa de ter veracidade. De fato, dados já apresentados nesta tese demonstram maior envergadura do gasto público na assistência social, por exemplo. O próprio PBSM aponta para um Estado que intervém mais ofensivamente sobre as demandas sociais. O que não fica claro de imediato é justamente a forma assumida nessa veia interventista junto às complexas e alarmantes condições de pobreza que assolam o país. Ora, com o PBSM o Estado aprofunda sua lógica gerencialista, ainda que se contraponha retoricamente ao Estado neoliberal. Os governos do PT aprofundaram um padrão eminentemente neoliberalista, sob a camuflagem de uma estratégia pretensamente “neodesenvolvimenista”. Ao carrear a política de assistência social para os objetivos imediatos do PBSM, o governo brasileiro levou ao limite as práticas gerencialistas. Todas essas ações, medidas e ajustes que apresentamos demonstram cabalmente a investida de aperfeiçoar a gestão, através de um modus operandi altamente sofisticado. Utiliza-se da mais alta tecnologia para coordenar, avaliar, monitorar e aprimorar formas de intervenção pública, mediante a centralização de decisões gerais quanto a formatação das ações, deixando á cabo dos demais entes envolvidos – acoplados á estratégias vias mecanismos específicos de adesão e certas espécies de contratos de gestão – a operacionalização imediata das ações, serviços e benefícios. Não só no que tange à política de assistência social, mas a estrutura do PBSM de um modo geral está sedimentada na perspectiva de que é possível acoplar num núcleo duro de gestão – que se expressa no Núcleo Gestor Central – um comando tal de ações que corrigiria os percalços e inconvenientes da restrita articulação empreendida até então. 364

No âmbito de nossa análise, podemos inferir que nenhum ajuste técnico, ainda que fomentado por intensa tecnologia da informação ou sofisticado sistema de gestão pode suprimir os limites técnicos do trabalho parcelado, fragmentado que engendra os diversos processos de trabalho no âmbito das políticas sociais. Pelo contrário, ainda que sejam possíveis muitas acomodações, é impossível extinguir as contrariedades que esta condição acarreta, ainda mais sob a égide de um plano de tamanha alçada, do ponto de vista de todos os entes institucionais e sujeitos políticos envolvidos no processo. Os limites da ação, conforme já viemos abordando, são expressão dos próprios limites políticos e teóricos que o fundamentam. Assim como a via débil da análise teórica de Prohudon, o embasamento político-teórico do PBSM é expressão importante do seu processo de transformismo e miséria teórica. E por isso, evidentemente, não se coloca acima do horizonte burguês. Além disso, acaba por “vê na miséria apenas a miséria” (MARX, 1985, p. 119). Pensemos nessa questão, a partir da própria nomeação da estratégia como “Plano Brasil sem Miséria”. É evidente que essa nomenclatura tem um apelo midiático muito forte e é certeiro no âmbito do marketing político que os governos petistas realizaram em torno do “combate à pobreza”. Mas ele condensa aquela fundamentação restrita e o limite político de um projeto decadente, por que a própria construção do nome oficial do Plano contém não uma simples contingência, mas um paradoxo irresoluto do ponto de vista da realidade concreta: a pauperização como uma face do desenvolvimento capitalista. Não vê na miséria a expressão de uma condição estruturante do modo de produção capitalista, a expressão contraditória que concretiza a lei geral da acumulação: a produção de pobreza aumenta em proporção direta com a produção de riquezas. É elementar, no entanto, explicitar que os limites que visam ser superados quanta a efetivação do PBSM são aqueles relativos à eficácia técnica, a otimização dos recursos e a maximização dos efeitos imediatos sobre o fenômeno que visam intervir: a pobreza. Assim, sob o ponto de vista da funcionalidade da divisão do trabalho para garantia de um produto final compatível com as requisições que o determinaram, o intenso parcelamento do trabalho torna-se um elemento estratégico essencial na transformação do trabalho nas políticas públicas em simples tarefa técnica, destituída de caráter político-ideológico. Isto é, afinal das contas a complexa divisão do trabalho tem um aspecto extremamente funcional quanto ao controle do Estado sobre o trabalho realizado nas diversas instituições que operam o PBSM. Por que o trabalhador dessas políticas, à medida que é submetido a um processo intensivo de divisão do trabalho, perde o controle sobre o processo de trabalho total, distanciando-se cada 365

vez mais de uma apropriação efetiva da realidade objetiva e do resultado final da sua própria atividade. Ainda no que diz respeito à expansão do aparato físico institucional do SUAS, a proteção social especial e seus serviços também foram objeto de ampliação. Foram aplicados pouco mais de R$ 94 milhões no período de 2011-2012, com destaque para aqueles direcionados às populações de rua com ampliação dos Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centros POP). Dados do Censo SUAS de 2014 mostram que no período de 2011 a 2014 o número de Centros POP aumentou aproximadamente 95%, passando de um total de 90 unidades em 2011 para 215 no ano de 2014. Um elemento, porém, que demarca uma espécie de provisoriedade e improvisação é relação entre imóveis próprios e alugados implantação serviço. O gráfico seguinte mostra essa relação.

Gráfico 8 - Proporção de imóveis alugados e próprios para realização dos serviços dos Centros POP entre 2011 e 2014.

Fonte: Censo/SUAS 2014.

Note-se que há uma tendência crescente no número de imóveis alugados no período em questão e um decréscimo no percentual de imóveis próprios. Observamos ainda que essa relação se realiza em função do ciclo do próprio PBSM, demarcando a relação direta entre o 366

serviço implantado e o vigor inicial do Plano, com oscilação decrescente para os imóveis próprios no período de conclusão do ciclo de alcance de metas do PBSM. Outra estratégia importante foi a alteração no desenho do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que para potencializar o combate ao trabalho infantil, abandonou “a antiga estratégia, pautada na oferta de prestação de serviço exclusivo da assistência social, e passou atuar tendo como objetivo principal a articulação de ações voltadas a este público” (IDEM, 2014, p354). Neste Programa, o PBSM investiu mais de R$ 88 milhões. Além disso, procedeu-se ao reordenamento dos serviços de acolhimento em Residências Inclusivas e instituídos equipamentos públicos denominados Centros-Dia. No eixo de acesso à renda, a política de assistência social teve suas atividades ainda mais canalizadas para operação e acompanhamento de benefícios que compõem o PBF e os incrementos financeiros que ele recebeu em função do PBSM. Já demonstramos os ajustes realizados nos benefícios do PBF227 e como eles coadunaram uma estratégia intensiva de melhorar a renda per capta das famílias em extrema pobreza. Dados do Censo SUAS 2014 mostram que 60% dos municípios realizam o cadastramento e a atualização do Cadastro Único nas unidades do CRASs, 52,6% na própria sede do órgão gestor, e 29% nos domicílios das famílias. É importante perceber que estes 29% realizados nos domicílios tem relação com a estratégia da Busca Ativa, que ao final das contas é realizado em grande medida pelas equipes dos CRASs. Dados da MUNIC (2014), no que tange atividades realizadas para a execução de serviços socioassistenciais, demonstra que há substancial efetivação daquelas relacionadas ao eixo de transferência de renda do PBSM e que também é um eixo do próprio PBF.

Quadro 9 – Atividades¹ realizadas para execução dos serviços socioassistenciais

Total de Municípios Cadastramento Gestão de Busca ativa Acompanhamento 5570 socioeconômico benefícios sistemático De famílias em situação de vulnerabilidade Número de Municípios 4 744 4 803 4 874 5 191 que realizam a modalidade de atividade Fonte: MUNIC, 2014. Elaboração própria. 1 Existem outras atividades que não serão trabalhadas no Quadro. Enfatizamos as atividades que parecem ter ligação direta com as ações do PBF e do PBSM.

227 Cf: página 337 dessa tese. 367

Conforme expresso no Quadro anterior, as atividades relacionadas direta ou indiretamente com as ações do PBF e do PBSM estão presentes em maioria massiva dos municípios brasileiros, demonstrando o amplo alcance destes programas e a importância que eles assumem na dinâmica municipal da política de assistência social. Apesar de não podermos realizar uma comparação rigorosa com dados da MUNIC de 2009, período anterior a implementação do PBSM é possível trazer alguns dados que ajudam a perceber algumas mudanças. O primeiro dado elucidativo diz respeito à nomenclatura assumida pelas atividades, percebendo-se um maior rigor técnico-conceitual em 2013. Por exemplo, na MUNIC de 2009 apareciam atividades como: Proteção social pró-ativa; Recepção/acolhida; Escuta; Atendimento sociofamiliar; Atendimento Psicossocial; Cuidados pessoais; Todas estas nomenclaturas não aparecem mais na MUNIC de 2013. Isso pode está relacionada à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassitenciais, aprovada em 2009 que visava justamente padronizar os serviços, benefícios e ações, inclusive com novos conceitos para designar práticas já existentes. Evidente que há uma importância neste aspecto, por que a Tipificação traz um direcionamento importante quanto aos serviços prestados e sua padronização em face dos possíveis despropósitos existentes ao longo da multifacetada realidade político-cultural dos diversos municípios. Efetivamente, no entanto, a mudança de nomenclatura na explicitação das atividades responde às demandas da própria tecnificação e burocratização da gestão e sistematização das políticas e os aspectos relativos a relatórios, metas quantitativas, entre outros elementos que convergem na direção de dá uma homogeneização conceitual compatível com as demandas dos sistemas de monitoramento e vigilância no sentido de sua modernização, mas que concretamente não mudam conteúdo e direção concreta de tais serviços/ações/programas/projetos. Em relação a algumas atividades que mantém a mesma denominação, temos algumas alterações que valem tomar nota. Em 2009, a gestão dos benefícios era realizada apenas em 3958 municípios; A busca ativa era realizada apenas em 2746 municípios. Notamos, assim, uma expansão inconteste nessas duas atividades que remetem ao PBSM e expansão do PBF. No que tange à Busca ativa, por exemplo, é importante ressaltar o aumento inconteste dessa estratégia, demarcando o fato de que em 2009 ela era exercida por iniciativa própria dos municípios, sem impacto no cálculo do IGD-PBF. Sua formalização se deu pelo PBSM e o uso do incentivo financeiro na implementação da estratégia certamente é um dos motivos desse aumento do número de municípios na execução dessa atividade. 368

Dados do Censo/SUAS 2013 mostram as situações frequentemente identificadas nos territórios de abrangência dos CRASs. Vale apresentar o Gráfico.

Gráfico 9 - Percentual de CRAS por situações frequentemente identificadas no território de abrangência - Brasil, 2011 a 2013

Fonte: Censo/SUAS 2013

É fácil evidenciar que as situações com maior frequência de identificação são famílias em descumprimento de condicionalidades do PBF, jovens em situação de “vulnerabilidade e risco social”, famílias em situação de insegurança alimentar, situações de negligência em 369

relação a crianças e adolescentes, famílias elegíveis não inseridas nos programas ou benefícios de transferência de renda. Não obstante o fato de que algumas dessas situações têm relação com aspectos como violência familiar e doméstica, por exemplo, e a importância e legitimidade que a política de assistência social vem ganhando no que tange a este aspecto, podemos observar uma dinâmica fortemente influenciada pela lógica e demandas relacionadas aos programas de “enfrentamento à pobreza”. Esse movimento não pode ser creditado apenas aos programas assistenciais ou mesmo ao PBSM de um modo geral. Estes intensificaram e aceleraram o processo de expansão da rede do SUAS para tornar a assistência social funcional às suas requisições. Esse processo tem origens remanescentes, que vêm desde a difícil regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social e ganha novos contornos com a própria elaboração da PNAS, que como afirmamos já sedimentava um caminho para conversão desta política em “política de enfrentamento á pobreza”, sob forte influência de conceitos abstratos como “vulnerabilidade e risco social” . Mauriel (2012) traz muitas reflexões quanto a esta questão, demonstrando as mudanças que a nova redação da LOAS228 confluem para que o “combate à pobreza” deixe de ser um dos objetivos da política de assistência social, para ser o principal motivo de existência dessa política. A perspectiva do combate à pobreza, ação de caráter temporário e focalizada em determinados segmentos populacionais classificados por critérios variados de “vulnerabilidade”, mas sempre condicionados à comprovação de renda insuficiente, tem origem histórica mais recente na condução das agências sociais internacionais. Cada vez mais distante do enfoque universalista de proteção social, tais programas parecem ganhar autonomia e existência própria quando se observa que sua institucionalização foi acontecendo desarticulada e desvinculada do Sistema de Seguridade Social como um todo (MAURIEL, 2012, p. 191).

Há uma tendência de “caminho paralelo” (IDEM, p.191) que atravessa a estruturação do SUAS, e à despeito dos limites conceituais e filosóficos que a definição do campo de “combate à pobreza” no marco regulatório impõem a esta política social, ela ainda permanece em disputa. Mas esse paralelismo vai esfacelando cada vez mais perversamente as possibilidades de empreender uma direção progressista à política de assistência social. Finalmente, o eixo “inclusão produtiva” tem como um dos principais destaques o Programa Nacional de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho (Acessuas Trabalho) que integra o PRONATEC Brasil Sem Miséria. O Programa visa promover o acesso da população em “situação de vulnerabilidade social” aos cursos existentes de capacitação e qualificação

228 Lei Nº 12.435, de julho de 2011. 370

profissional, mas não os executa diretamente. Suas ações são de articulação, mobilização, encaminhamento e monitoramento da trajetória. A proposta de incentivar e viabilizar a inclusão produtiva dos usuários da política de assistência social já estava nos princípios estruturantes do SUAS, conforme consta na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004)229 e na NOB-SUAS (2005). Ocorre que tal aspecto foi identificado como uma das principais fragilidades da política de assistência social, uma vez que não se garantia programas efetivos de inclusão produtiva que auferisse resultados significativos de geração de trabalho e renda. [...] muitos Centros de Referências de Assistência Social (CRAS) há tempos implementam diretamente nos equipamentos cursos de formação profissional. Entretanto, a ausência de diagnósticos adequados sobre a demanda do mercado de trabalho, bem como de equipes técnicas preparadas para realizá-las resultou, com frequência, em ações com pouca eficácia do ponto de vista da inclusão produtiva. Ao internalizar nos CRAS ações cuja expertise se encontrava alhures, os governos municipais acabavam promovendo ações fora da competência da assistência social, o que se revertia, em muitos casos, em cursos com caráter pontual, promovidos de forma fragmentada e que nem sempre resultam em inclusão produtiva, seja via mercado ou empreendedorismo (AMÂNCIO, 2015, p. 78)

Deste modo, uma das principais questões que passaram ao centro do debate governamental e que esteve no cerne do diagnóstico base da formulação do PBSM foi o fato da política de assistência social não conseguir assegurar que os beneficiários fossem levados a independerem dos programas assistenciais, sobretudo os de transferência de renda, como o PBF. E a reposta ao problema estrutural é mais administração! Segundo Licio, Mesquita e Curralero (2011) verificou-se um grande desafio no sentido de pautar e priorizar o público atendido pelo PBF no âmbito dos programas públicos “de modo a abrir novos espaços de inclusão e ampliar espaços já existentes” (p.465). No que toca especificamente as estratégias de inclusão produtiva, como dispositivos para operacionalizar as chamadas “portas de saída” dos programas assistenciais vale conferir os apontamentos dos autores. Até 2010, apenas 1.491 beneficiários do PBF tinham sido atendidos pelo Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado do Ministério do Trabalho. Em 2010, cerca de 256 mil famílias do PBF foram beneficiadas pelos programas de microcrédito Agroamigo (23 mil) e Crediamigo (233 mil) do Banco do Nordeste (BRASIL, 2011). Tais resultados evidenciam a fragmentação desses programas, que

229 Conforme se dispõe na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004, p. 36), são considerados serviços de proteção social básica de assistência social, entre outros, promoção e integração ao mercado de trabalho; Na Norma Operacional Básica do SUAS (NOB-SUAS, 2005, p. 103) aponta-se como responsabilidade do SUAS na gestão Plena: “executar programas e/ou projetos de promoção da inclusão produtiva e promoção do desenvolvimento das famílias de vulnerabilidade social”

371

operam na casa dos “milhares” de beneficiários, enquanto o PBF opera na casa dos “milhões” (IDEM, p. 465).

Em termos percentuais, a proporção de beneficiários do PBF atendidos pelo Programa Agroamigo foi de apenas 11,3%, e do Crediamigo, 34,6%. Isto apenas em dois programas específicos existentes, além de outras ações, projetos e programas cuja incidência sobre o público atendido pelo PBF era pífia, conforme destacam:

Exemplo disso ocorreu com o Planseq/ Próximo Passo, programa de qualificação profissional do Ministério do Trabalho, cuja articulação com o PBF deu-se sob o protagonismo do governo federal em praticamente todas as etapas de implementação, sem uma atuação articulada dos demais entes federados, o que refletiu, em certa medida, a descoordenação da política de emprego, com sobreposições e vácuos de atuação dos entes federativos. No caso específico do Planseq da construção civil, as negociações com estados e municípios limitaram-se à área da assistência social, a qual, junto com os gestores do PBF, via com algum ceticismo a execução de uma ação sem que alguma articulação local fosse realizada (LICIO, MESQUITA e CURRALERO, 2011, p. 468).

De acordo com dados do Estudo Técnico do MDS, realizado por Ferrarezi e Jannuzzi (2016), no período de 2012 a 2014 os municípios receberam 254,4 milhões do Pronatec para fortalecer o já existente Acessuas Trabalho, no que tange as ações de inclusão produtiva. Com uso de dados do próprio Cadastro Único e da estratégia de Busca Ativa, os CRASs, principalmente, direcionaram esforços para que este Programa “chegasse” ao público do PBF que ainda se encontrava em condição de extrema pobreza. Os autores explicam a opção por “utilizar o SUAS para essa ação em função da “rede de assistência social” contar com a “proximidade à população”, o que facilita o fluxo de informação e encaminhamento aos cursos do Pronatec”. O Programa teve adesão de 292 no ano de 2012; 739 municípios em 2013 e 1.379 municípios em 2014. Entre 2011 e 2014, de acordo com dados da SAGI foram realizadas 2836925 matrículas para o Bolsa Formação – auxílio aos indivíduos a se formarem nos cursos do Pronatec. Deste total, 1789505 (63,15) eram indivíduos inscritos no CadÚnico, sendo 936743 beneficiários do PBF e os demais 852759 apenas inscritos no Cadastro Único. É cristalina a estratégia do PBSM em direcionar esforços para o mesmo objetivo: focalizar na extrema pobreza. Não é uma focalização pequena. É uma focalização massiva, mesmo que isso pareça um paradoxo em termos. Mas não é, na medida em que não se tratam de programas esporádicos ou disseminados contingentemente, e sim uma ampla ação massificadora que visa intervir sobre a imensidão da superpopulação relativa do país e sobre as frações mais 372

precarizadas da força de trabalho por programas dessa natureza, desprezando a constituição de um amplo sistema de seguridade social. Já Amâncio (2015), em outro estudo do MDS230 enfatiza que “uma das principais atividades pactuada com os municípios que recebem recursos do Acessuas Trabalho é a realização de atividades de mobilização junto ao público inscrito no Cadastro Único para Políticas Sociais” e que, neste quesito, a articulação com o SUAS foi muito proveitosa, uma vez que houve crescimento de 67,6% de atividades deste tipo, entre o segundo semestre de 2012 e o segundo semestre de 2014.

Gráfico 10 - Atividades de mobilização junto ao público do Cadastro Único para participação do Acessuas/trabalho

Fonte: Amâncio, 2015.

O Censo SUAS 2014 explicita a centralidade do Pronatec e Pronatec/PBSM no que diz respeito aos encaminhamentos de usuários para as chamadas “oportunidades do mundo do trabalho”. 59,4 % dos encaminhamentos são para as “oportunidades” do Pronatec/PBSM e 62, 3% para os demais cursos do Pronatec. Aparecem outros campos como Cursos técnicos de instituições municipais/estaduais (35,55), Microcrédito 15,1% e outros espaços sem grande expressão percentual.

230 Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. – N. 24. 373

Mas o pesquisador do MDS afirma que, não obstante a perspectiva de integração dos usuários ao mercado de trabalho seja um objetivo da política de assistência social, esta não é uma atribuição exclusiva da política. Assim, atesta o autor, o ACESSUAS/Trabalho traz um novo marco conceitual quanto ao eixo de inclusão produtiva que já fazia parte da política de assistência social, mas agora demarcando o caráter articulado e intersetorial com outras políticas. Em suas palavras, Desta forma, o Acessuas coloca-se como um agente articulador nos territórios, inserido no âmbito da Proteção Social Básica, cumprindo os princípios do SUAS e em alinhamento com as diretrizes do BSM no eixo da inclusão produtiva, em sua vertente urbana. Ele reforça o BSM ao possibilitar a efetivação das estratégias territorial, intersetorial e transversal que compõem o Plano, sobretudo, ao consolidar em seu âmbito a Busca Ativa (AMÂNCIO, 2015, p. 84).

Na prática, é fortalecida a lógica gerencialista para a política de assistência social. Toma-se por suposto sua capilaridade nos mais recônditos espaços em que se encontram os usuários potenciais dos programas assistenciais e suas diversas frentes de ação, e capitaliza essa propriedade em função das demandas imediatas de gestão da pobreza para os objetivos centrais do programas em tela. Entre as pessoas matriculadas no Pronatec Brasil sem Miséria (acumulado até junho de 2014), 430,4 mil tiveram vínculo empregatício formal entre 2012-2014. Isto é, 37,6% do público inscrito no Pronatec Brasil sem Miséria esteve no mercado de trabalho formal no período. Entre os beneficiários que “transitaram no mercado formal de trabalho, 183,7 mil (42,7%) obtiveram o emprego após a matrícula em um curso do Pronatec Brasil sem Miséria” (CAMPELLO, COSTA e FALCÃO, 2014). Estes dados são muito elucidativos do tipo da temporalidade, contextualidade e do caráter ocasional da modalidade dessa intervenção. Os dados apontam que os beneficiários “estiveram” e “transitaram” pelo mercado de trabalho formal. Claro. Os dados não são eternos. Mas contextualizando, é possível entender a razoabilidade destes resultados muito relacionados ao efeito econômico nos níveis de emprego em função da “breve alavancada” dos investimentos públicos e privados realizados por conta dos mega eventos a serem realizados no Brasil, mais especificamente a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Inclusive foi uma tática muito importante para o governo conseguir intermediar mão-de-obra e inserir o público do Pronatec/PBSM no circuito formal do emprego, assegurar a reserva de vagas nas obras de infraestrura e construção civil justamente para esse público. Isso tem um significado importante para ponderar o cunho provisório dessa modalidade de política pública voltada para geração de trabalho e renda. Não é difícil perceber isso vendo as tangentes e crescentes ampliações na taxa de desemprego que se 374

seguiram depois de 2014 em função do acirramento da crise capitalista e, particularmente no Brasil, do exaurimento da estratégia intervencionista do governo brasileiro assentado no padrão de intervenção financiado pelo fundo público, com escarça participação autônoma do capital privado. Retomando a argumentação quanto a funcionalidade do SUAS para o Estado gestor operar as ações do PBSM, é preciso explicitar que a efetivação de um processo dessa envergadura requer que se invista capacitar uma força de trabalho para operacionalização desse arsenal técnico, burocrático e terminológico. As demandas por capacitação dos trabalhadores do SUAS é algo recorrente nas Conferências, Conselhos, Comissões Intergestoras entre outras instâncias, além de ser uma requisição enfática dos próprios trabalhadores. é preciso preparar uma força de trabalho. De acordo com o MDS, o Capacita/SUAS231 “tem o objetivo de garantir oferta de formação e capacitação permanente para profissionais, gestores, conselheiros e técnicos da rede socioassistencial do SUAS” com a finalidade de garantir “ implementação das ações dos Planos de Educação Permanente, aprimorando a gestão do SUAS nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios”. Foi a partir das deliberações da VII Conferência Nacional de Assistência Social, em 2011, que se deflagrou os processos mais sólidos que viriam a culminar na aprovação da estratégia do Capacita/SUAS, instituída por Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social, em 2012. A VII Conferência Nacional de Assistência Social é realizada em 2011 na antessala da constituição do PBSM e da iniciação de sua implementação. Nesta Conferência o tema central era a Gestão do trabalho no âmbito do SUAS, considerado um dos principais gargalos para efetivação de serviços de qualidade e efetivos, bem como para aprofundar o caminho de profissionalização da política de assistência social. As demandas relativas à questão do trabalho são evidentemente legítimas e precisam ser enfrentadas no sentido de superar a intensiva precarização das relações e condições de trabalho no âmbito do SUAS. Mas, a via da gestão do trabalho é também um campo em disputa e perpassa pela própria necessidade de constituição de um determinado padrão de trabalho a ser realizado no serviço público. Visando superar alguns obstáculos ainda tangentes à dinâmica da descentralização político- administrativa e, portanto, ao próprio processo de municipalização da política de assistência social, uma dada direção hegemônica para o campo da gestão do trabalho acomoda-se a própria dinâmica de modernização do SUAS, com a investida do PBSM. Ou seja, a própria

231 Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/gestao-do-suas/gestao-do-trabalho- 1/capacitasuas . Acesso em 26/04/2018. 375

organização do trabalho no âmbito da política passa a ser objeto de uma intensiva via de gestão. Quando se pensa na estruturação dos serviços do SUAS e da própria “política de recursos humanos” fica patente a questão da divisão do trabalho, dado os aspectos relativos: as diversas profissões que compõem as equipes técnicas, a padronização dos serviços, a divisão entre modalidade de proteções: básica e especial e as formas que assumem mediante a formatação de esquemas tecnocráticos que vão desde a designação de coordenações setoriais, que sempre se dão em cunho de indicação das administrações públicas e não em função de formação profissional, os aspectos de hierarquias e a cisão profunda entre núcleos de elaboração e núcleos de execução dos serviços. Ademais, toda formatação dos programas contam com uma logística pré-definida e moldada sobre a própria demanda técnica a que se submete. Os diversos mecanismos acionados pela modernização da gestão perfazem o perfil de uma ótica de hipertrofia do gerencialismo em função dos diversos fazeres técnicos pré- estabelecidos como alimentação de sistemas, rotinas institucionais, formulários, coleta de dados, busca ativa, acompanhamento de condicionalidades, termos de adesão. Tarefas estas altamente parceladas, cindidas entre gestão da política e execução dos serviços, que ao final complexificam a divisão do trabalho, ao tempo que oferecem a própria condição elementar dessa mesma divisão do trabalho: a perda de controle dos trabalhadores – no caso dos técnicos que operam os serviços – sobre o processo total do trabalho e do resultado final dele. É evidente que este processo não passa sem conflito, haja vista a relação da autonomia profissional com o controle técnico a que estão submetidos. Por certo, isto impacta na disputa pela direção da política de assistência social, mas em meio a uma ofensiva tão esmagadora para imputar uma dada lógica tecnicista e instrumental à política social, a própria luta pela direção social de cada parcela social do trabalho coletiva torna-se minimamente impactante em função da perda de controle do processo total. O fetiche da gestão também comparece neste aspecto concorrendo para a transformação de trabalhadores – com saberes teóricos, práticos e valores éticos próprios e concernentes a suas diferentes formações profissionais – em instrumentos a serem gerenciado com vistas à produtividade e consequente alcance de dados objetivos e metas específicos. Neste âmbito a capacitação dessa força de trabalho torna-se preponderante para a via governamental hegemônica. No cerne dessa tática foi desenvolvido uma Rede Nacional de Capacitação e Educação Permanente do SUAS Sistema de Monitoramento Acadêmico. 376

O Capacita/SUAS foi implementado com a finalidade precípua de preparar os trabalhadores do SUAS para atuarem em conformidade com a nova padronização dos serviços assistenciais, as demandas inerentes ao sistema informatizado de gestão orçamentária e ferramentas de avaliação e monitoramento, que se não eram requisições exclusivas da execução e acompanhamento das ações do PBSM, tinham neste aspecto seu principal fundamento. O que é um avanço importante em um campo de trabalho com exíguo investimento e capacitação profissional. Uma apresentação sucinta dos módulos trabalhados nos cursos e capacitações já são suficientes para demarcar a transversalidade do PBSM na estratégia do Capacita/SUAS. Quadro 10 - Cursos do capacita SUAS232 CURSOS PÚBLICO OBJETIVOS Curso 1: Profissionais de nível Realizar nivelamento dos Introdução ao Provimento superior que atuam na profissionais de nível dos Serviços e Benefícios provisão dos serviços superior atuantes nos Socioassistenciais do socioassistenciais no serviços socioassistenciais SUAS e à Implementação âmbito dos CRAS, quanto aos conhecimentos, de Ações do Brasil Sem CREAS, Centros Pops, habilidades e atitudes Miséria (BSM) Serviços de Acolhimento necessários ao provimento Institucional e Serviços dos serviços e benefícios Volantes. socioassistenciais e à implementação das ações do BSM. Curso 2: Gestores e técnicos de Capacitar gestores e Atualização em nível superior das técnicos estaduais e Indicadores para secretarias de assistência municipais para realizar Diagnóstico e social dos estados, do diagnósticos, levando em Acompanhamento do Distrito Federal e dos consideração o contexto SUAS e do Brasil Sem municípios e socioeconômico e a Miséria (BSM) coordenadores de CRAS e dimensão da pobreza nos CREAS. estados e municípios, de forma a subsidiar a elaboração dos Planos Municipais de Assistência Social, bem como o acompanhamento dos programas e ações do SUAS e BSM.

232 Retivemo-nos na explicitação apenas dos cursos de capacitação. Mas o MDS mantém uma imensa engrenagem de “Ações intelectual-pedagógicas” para a formação e preparação de quadros para atuar no âmbito do SUAS. Para uma análise detida desse processo, consultar a Tese de Doutorado de Adilson Aquino Silveira Júnior intitulada A Assistência Social e as Ideologias do Social-liberalismo – Tendências Político-pedagógicas para a formação dos Trabalhadores do SUAS

377

Curso 3: Técnicos de nível médio e Fornecer aos trabalhadores Atualização em Gestão superior que atuam que atuam na gestão dos Financeira e Orçamentária diretamente nas atividades Fundos de Assistência do SUAS de gestão dos fundos de subsídios conceituais e assistência social. operativos atualizados sobre procedimentos relacionados ao sistema de planejamento orçamentário brasileiro e à gestão financeira e orçamentária do SUAS. Fonte: Rizzotti, 2015.

Os objetivos são muito claros e corroboram nossa afirmação inicial quanto à dinâmica das capacitações e as necessidades de formar uma mão-de-obra habilitada a atuar segundo os parâmetros da modernização da gestão e as requisições técnicas do PBSM. E não se trata de cursos esporádicos, metodologias múltiplas, adesões parciais por parte dos Entes federados. É uma grande investida por parte do governo para atingir a massa dos trabalhadores do SUAS e potencializar efeitos multiplicadores. Boas, Ferrari e Castro (2015), em pesquisa para o MDS, trazem dados que dão a dimensão da magnitude deste programa. Em primeiro lugar, vale dizer que todos os Estados da Federação e o Distrito Federal aderiram ao Programa. Entre 2012 e 2014 o CapacitaSUAS já havia certificado 13.568 trabalhadores e 10.728 estavam em processo de capacitação. Este total de 24.296 trabalhadores representava “65,55 % do total da meta de 37.062 trabalhadores capacitados, estabelecida na primeira etapa de pactuação com os estados” (BOAS, FERRARI e CASTRO, 2015, p. 37). O potencial de disseminação de uma estratégia dessa envergadura não é desprezível. Sem embargo das contradições que a dinâmica do trabalho nas políticas sociais engendram a partir tanto da direção política e ética que os trabalhadores dão ao seu fazer profissional e dos próprios conflitos que surgem a partir dos usuários que convergem na disputa dos rumos da assistência social, o efeito de reprodução da perspectiva imbuída nesses processos de capacitação tem impacto real sobre o padrão de política social hegemônico sob o projeto político dos governos petistas e sua busca de conciliação entre “crescimento econômico e justiça/inclusão social”. Essa perspectiva opera tanto no plano do discurso, quanto no plano da prática. E isso se mediatiza pela prevalência de uma racionalidade técnica e ideológica que vai instrumentalizar os processos de capacitação e consequentemente a ação prática desses trabalhadores. 378

Através dessas mediações intelectuais-pedagógicas, o que busca adquirir concreticidade e capilaridade é um rol de novas e renovadas ideologias, corporificadas nos conceitos, valores e racionalizações expressos nos conteúdos dos processos educativos desenvolvidos (cursos, capacitações, seminários, palestras, etc.) e cristalizados nos instrumentos pedagógicos utilizados (cartilhas, apostilas, livros, etc.) (SILVEIRA JR., 2016, p. 22-23).

A generalização de uma dada racionalidade técnica pressupõe, necessariamente, a incursão definitiva de suas características centrais no cotidiano e na lógica institucional, que não pode ser efetivado senão mediante sujeitos trabalhadores que operam essas instituições. Este é, portanto, instrumento fundamental para que a racionalidade hegemônica seja generalizada no quadro prático-concreto da realidade institucional. Trata-se de algo indispensável para que as requisições do Estado gerencialista tenham êxito: o pleno alinhamento dos trabalhadores aos objetivos imediatos do projeto para a política de assistência social. A formação/capacitação da força de trabalho para atuar frente as demandas técnicas e operacionais das políticas sociais sob a batuta do Estado gestor pressupõem entronizar de modo enraizado uma cultura de alta performance que impera sobre instituições e trabalhadores mediante a pressão do produtivismo, do alcance de metas, da busca constante de melhoramentos dos resultados de cada instituição, setor, programa. É essa força de trabalho, totalmente habilitada a operar segundo os padrões e determinações da forma de gestão hegemônica e empenhada (e/ou pressionada pelos constrangimentos do trabalho assalariado) em concretizar o projeto vigente para as políticas sociais – neste particular, a política de assistência social – que é crucial para o êxito do padrão gerencialista estatal ou do Estado gestor que comanda centralmente à distância. A final, se o Estado assume a função de tomadas das decisões centrais ( referentes à modalidade de ação e aos limites orçamentários) e cuida do gerenciamento estratégico, é imprescindível que às instituições por ele articuladas e sua força de trabalho sejam capazes de operar com máxima eficácia o projeto por ele gestado. A gestão é reificada. É como se ela tivesse incorporado as próprias características humanas e fosse dotada de vida própria. As pessoas que a executam estão submetidas ao seu quadro amplo de técnicas, procedimentos, padrões operativos e são capacitadas para reproduzir esse mesmo aparato, numa concepção estritamente tecnicista e instrumental do processo da intervenção humana no campo da ação pública. De modo que o “aperfeiçoamento” constante do modelo de gestão para as políticas sociais e a ação do Estado de um modo geral é uma demanda do próprio sistema instituído e que converge na mesma linha do alinhamento neopositivista de dotar os fenômenos concretos em objetos 379

manipuláveis por variáveis basicamente quantitativas, tendo o domínio empírico como critério básico da verdade. Na verdade a realidade de toda ação do Estado capitalista é muito mais complexa e contraditória do que sua performance na gestão. É uma tentativa muito produtiva de anular o conflito que está na base da direção que o Estado assume e sua real condição classista. Nada mais fecundo à dominação irrestrita do capital às esferas da ação estatal do que tentarem ocultar as implicações de classe que estão subjacentes as práticas efetivadas, sob o escrutínio da suposta neutralidade que os aprimoramentos técnicos supostamente comportam. Trata-se, ao fim e ao cabo, da fetichização da técnica de gestão. São muitos os vieses e mediações pelas quais a ideologia hegemônica adentra os mais diversos campos da vida social. Entre a assistência social e o PBSM, o intricado de conexões que viemos problematizando pauta à ofensiva conservadora com verniz moderno. Abaixo alguns dados mostram o impacto real do PBSM sobre a expansão da estrutura do SUAS e da força de trabalho da assistência social233:  Entre o início do plano (junho de 2011) até outubro de 2014 foram aprovadas propostas para a construção de 609 Centros de Referência de Assistência Social (Cras);  Foram criadas 1.256 equipes volantes, voltadas ao atendimento em localidades dispersas e rurais de todo o país;  Foram entregues 116 lanchas para atendimento remoto na Amazônia e no Pantanal;  Entre 2011 e 2012 foram implantados 288 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas);  Os Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP) – criado exclusivamente no âmbito do PBSM – somam 302 implantados no país entre 2012 e 2014, criando 24.975 vagas em serviços de acolhimento para pessoas em situação de rua;  De 2012 a 2014, as prefeituras que aderiram ao Programa Acessuas Trabalho receberam repasses de R$ 254,4 milhões;

Em relação à estruturação e/ou ampliação de equipamentos de proteção social básica e especial de média e alta complexidade o PBSM investiu cerca de R$ 240 milhões. Parece, de

233 Dados extraídos do artigo “Eixo de acesso a serviços e a ação Brasil Carinhoso do Plano Brasil sem Miséria”, que se contra na Coletânea: “O Brasil sem Miséria”, organizado e publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e combate à fome em 2014. 380

fato, um amplo investimento. Mas pensando do ponto de vista de que este valor é o acumulado de 03 anos e que o nível de desenvolvimento desses serviços não teve melhoria significativa evidencia-se os limites da estratégia empreendida. Tereza Campello (2017), em balanço de sua atuação à frente do MDS à época da consolidação do PBSM, indica o impacto do Plano sobre a expansão da assistência social. Conseguimos dar mais capilaridade à assistência social pública, ampliando a rede pública de atendimento nos territórios mais vulneráveis e de difícil acesso, tornando os benefícios e serviços socioassistenciais acessíveis a 30 milhões de famílias. Partimos, em 2003, de uma situação onde não havia nenhum equipamento próprio financiado pelo Governo Federal, para chegar a uma situação de 7 mil Centros de Referência em Assistência Social (CRAS e CREAS), em 2010, e 10.000 em 2015, presentes em todos os municípios brasileiros. O número de trabalhadores no SUAS é expressivo. Uma das medidas implantadas durante a minha gestão foi incluir na Lei que instituiu o SUAS a autorização para que os recursos federais transferidos a estados e municípios pudessem ser utilizados para pagamento das equipes de referência do SUAS, induzindo a profissionalização da política. Os trabalhadores inseridos na gestão pública da Assistência Social, somam mais de 272 mil. Soma-se a esta força de trabalho, os 330 mil profissionais inseridos nas mais de 17 mil entidades e organizações de assistência social (não governamentais) que integram a rede de proteção socioassistenncial. O SUAS conta, atualmente, com mais de 600 mil profissionais (CAMPELLO, 2017, p. 99).

Fica evidente na fala da ex-Ministra o impulso real que as intervenções e investimentos do PBSM impôs ao campo do SUAS. Está subjacente a tal processo a narrativa de uma suposta “potencialidade endógena institucional” bem ao gosto das teorias neoinstitucionalistas (BARBOSA, 2012) como se a ampliação das instituições de assistência social – via ampliação do número de equipamentos sociais que compõem a rede socioasstiencial do SUAS , por exemplo – fosse capaz de potencializar os efeitos esperados com o PBSM. O Plano traz nitidamente esse caráter de hipervalorizar o alcance institucional, na medida em que uma “grande” política central articuladora possa dizimar os problemas antes existentes a partir da constituição de uma nova sinergia cumulativa que fomente a ação articulada de vários setores no sentido de aperfeiçoar aquilo que ainda não logrou o alcance desejado. Por atribuir demasiada importância à influência das normas, regras formais e informais que regem as instituições, a influência neoinstitucionalista assevera às dinâmicas instituições capacidade endógena de imputar sobre os trabalhadores, agentes técnicos e demais sujeitos envolvidos na atividade pública os valores dos programas, ações e estratégias implementados, de modo a confluírem mais decisivamente para o alcance daquelas metas e objetivos institucionais. Trata-se de mais uma faceta assumida pelo fetiche da gestão, para tentar extinguir os impedimentos óbvios e irrefutáveis da intervenção Estatal sobre uma 381

dinâmica estruturante do próprio desenvolvimento capitalista: a produção e reprodução da pobreza. Fica patente a importância atribuída à institucionalização das ações do Plano, expresso na importância atribuída a cada instituição participante da gestão e execução do mesmo, como se as possibilidades estratégicas estivessem dadas elas mesmos no cerne da própria institucionalidade pertinente a cada Ministério, Secretaria, Equipamento Social, ONGs que compõem o amplo leque de execução do PBSM. No entanto, a própria Campello traz dados da Vigilância Sociossistencial, de 2015, e do Censo SUAS de 2014, que asseveram os limites de desenvolvimento dos principais equipamentos de proteção social básica e especial, explicitando que “pouco mais de um terço dos Cras não alcançaram ainda um “nível de desenvolvimento aceitável”. Desse contingente, vale destacar, 26% apresenta um nível de desenvolvimento bastante baixo”. No tocante aos Creas, “40,7% das unidades não alcançam o nível médio (nível 3) na escala de desenvolvimento do IDCreas (que varia de 1 a 5)”. Se considerarmos que estas são análises a partir de indicadores construídos pela própria gestão do SUAS e os limites que eles encerram do ponto de vista da análise qualitativa, podemos inferir que as condições de efetivação dos serviços socioassitenciais ainda são limitados e precários. É verdade que houve expansão do número de CRASs, CREASs, criação de Centros POP, Equipes Volantes, enfim de todo o aparato institucional do SUAS, mas não é menos verdade que a realidade efetiva dessa expansão não reverteu a precarização dos serviços que marcaram a frágil implementação do SUAS ao longo de todo o país. Os recursos aplicados pelo Plano através do MDS não são desprezíveis. A execução orçamentária deste Ministério no tocante ao PBSM foi de mais de R$ 27 bilhões em 2013 e quase 30 bilhões em 2014. No entanto, é preciso esclarecer que esses recursos foram dispersos entre muitas ações do PBSM efetivadas no âmbito da política de assistência social e desenvolvimento agrário. E ainda mais expressivo é o fato de que o volume maior dos recursos aplicados foram direcionados para os programas de transferência de renda. Na ação orçamentária intitulada “Transferência de Renda Diretamente às famílias em condição de pobreza e extrema pobreza” o valor total pago ao final de 2013 foi de quase R$ 24 bilhões. Em 2014, essa mesma ação executou mais de R$ 26 bilhões. Assim, temos que 88% dos recursos do PBSM executados pelo MDS foram aplicados em programas de transferência de renda em 2013, e 86% em 2014. 382

O PBSM parece ter ficado restrito a um único ciclo (2011-2014). Alguns programas continuam existindo, sobretudo os benefícios inclusos no já existente PBF. Em termos orçamentários, por exemplo, o PBSM não foi objeto do contingenciamento de R$ 23 bilhões das despesas do executivo. Mas, com a deposição de Dilma da presidência, o PBSM parece vir sendo desestruturado ou não recebendo a mesma atenção e investimento do governo federal. Inclusive, esta é uma questão que impactou na pesquisa dos resultados em relação aos anos de 2015 e 2016, posto que as publicações governamentais sobre o Plano ficaram restritas basicamente ao período de 2011 e 2014. Na prestação de contas da Presidência da República, relativa ao exercício financeiro de 2016234 aponta-se que “apesar da previsão de encerramento em 2014, algumas ações continuaram a ser executadas sob a chancela do PBSM até 2016, mesmo com a desmobilização da Sesep”. O relatório esclarece ainda que com a troca de gestão e a transição de governo, iniciada em junho de 2016, foram determinadas “novas diretrizes para execução das políticas sociais”, com “redesenho de programas e mudanças nas estruturas regimentais dos órgãos”. Deste modo, No Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) teve início a elaboração da Estratégia Nacional de Inclusão Social e Produtiva, denominada de Programa Incluir, visando à inclusão social e produtiva das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. As iniciativas exitosas do Plano Brasil sem Miséria, como a Ação Brasil Carinhoso, foram mantidas e outras estão sendo reformuladas para avançar nos eixos da inclusão produtiva e do acesso aos serviços públicos. Com a publicação do Decreto nº 8.949, de 29 de dezembro de 2016, a Sesep foi extinta e criada a Secretaria de Inclusão Social e Produtiva (Sisp/ MDSA), tendo como um dos objetivos a implantação do novo programa a partir de 2017. Desta forma, as ações de inclusão social e produtiva previstas nos Decretos nº 7.492, de 02 de junho de 2011, e nº 6.393, de 12 de março de 2008, serão incorporadas, no que couber, à Estratégia Nacional de Inclusão Social e Produtiva / Programa Incluir (BRASIL, 2016, p. 5).

A partir dessa “explicação” do Relatório fica evidente a desestruturação do PBSM a partir de um de seus eixos estruturantes: a inclusão produtiva. Sendo mantidas, conforme indicamos ações relativas ao Brasil Carinho e aos benefícios de extrema pobreza que passaram a integrar o PBF. Outra via de análise para aferir essa desestruturação é a verificação de dados orçamentários apresentados no Painel do Orçamento Federal – Brasil sem Miséria. Neste dispositivo é possível verificar o montante de recursos aplicados

234 Disponível em: http://www.cgu.gov.br/assuntos/auditoria-e-fiscalizacao/avaliacao-da-gestao-dos- administradores/prestacao-de-contas-do-presidente-da-republica/arquivos/2017/pcpr-2016-informacoes- adicionais.pdf. Acesso em 22/04/2018. 383

A estratégia principal do PBSM na sua articulação com a política de assistência social, convergiu para canalizar sua condição estratégica – de atuar diretamente na ponta, nos locais em que estão inseridos os usuários “elegíveis”, em profunda sintonia com as diretrizes gerencialistas. Neste passo, aprimora a capacidade operacional de administrar as expressões mais drásticas da pobreza, sobre o fetiche da gestão. Nas “Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”, Marx depura suas reflexões filosóficas acerca dos fundamentos do Estado e da política, trazendo elementos teóricos importantes para pensar os limites da intervenção do Estado sobre o fenômeno do pauperismo, que à época, 1844, assolava e assombrava a Europa. Ao tecer duras críticas ao artigo de Arnold Ruge, que assinava o artigo publicado no jornal Vorwarts, sob o pseudônimo de “Um prussiano”, Marx expõe as principais estratégias empreendidas pelos Estados europeus para intervenção no pauperismo e atesta o fracasso histórico das diversas medidas adotadas, demonstrando o caráter contraditório do Estado moderno, bem como a própria impossibilidade de resolver o problema do pauperismo sem que fossem superadas a divisão do trabalho, as relações de produção capitalistas e, portanto, a existência do próprio Estado. As diversas formas de explicação do pauperismo nos países de industrialização já consolidada, como a Inglaterra e a França, situavam-se entre falhas na administração, na própria legislação relativa aos pobres, falhas nos processos educacionais, culpabilização dos pobres, repressão da mendicância e, assim, não chegavam ao cerne da questão que era o próprio fundamento da existência do capitalismo, conforme comprova Marx. Assim também, a questão do pauperismo, na Alemanha, não era resultado da peculiaridade de um país não- político, como queria Ruge. A ineficácia das ações estatais em relação ao pauperismo não estava circunscrita a nenhuma das questões elencadas, mas sim ao próprio fundamento ontológico do Estado de repousar na contradição entre interesses gerais e interesses particulares. A atividade do Estado gira em torno da organização desses interesses contraditórios, tendo na administração sua atividade organizadora, logo “todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas” (MARX, 1844, p. 8). Devido a impossibilidade do Estado em suprir as contradições dos diversos interesses em presença no âmbito da sociedade civil e nas formas como elas se manifestam no espaço do Estado, a administração limita-se sempre a uma atividade formal e negativa. Ainda assim, ele procura adornar sua atividade com todas as medidas possíveis de correção administrativa, e 384

para o enfrentamento do fenômeno do pauperismo procura aprimorar seu potencial administrativo, sob a retórica de que é possível acomodar as ingerências do fenômeno pela via da administração. Deste modo, o Estado pode “descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los,” mas o “Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração” (MARX, 1844, p. 8). A essência do Estado não mudou, permanece assentado nas contradições que sedimentam a sociabilidade capitalista, assim como também o pauperismo continua sendo consequência inevitável dessas relações. A administração política segue sendo a única forma possível dentro dos limites do Estado burguês. As medidas acionadas pelo Estado brasileiro, sob a condução de Dilma, ratificam esses limites inerentes à ação do Estado e a ineficácia de suas intervenções sobre a pobreza, sendo ineficaz quanto à sua erradicação. O Plano Brasil sem miséria é expressão exímia destes limites.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em se tratando de pesquisa, o ponto de chegada é sempre um novo ponto de partida. Sob a perspectiva do materialismo histórico, um processo de pesquisa nunca esgota o seu objeto de estudo, por que findado o seu percurso, a síntese do concreto pensado abre outros caminhos, inquietações, questionamentos. Deste modo, nossas considerações finais não pretendem e nem podem atestar conclusões encapsuladas, uma vez que a realidade concreta de qualquer objeto é sempre mais complexa do que a capacidade de apreensão do pesquisador. O que nos é facultado empreender, neste momento de finalização de um longo esforço reflexivo/analítico, é uma breve síntese dos achados da nossa tese. Neste trabalho buscamos situar os processos recentes de transformação da política de assistência social no âmbito do movimento mais amplo do desenvolvimento capitalista no Brasil, a partir da crítica da economia política dos governos petistas. Para garantir essa perspectiva de análise, foi fundamental aprofundarmos os estudos sobre desenvolvimento capitalista, para desvelarmos o caráter farsesco e apologético que a ideia do “desenvolvimento” evoca sob o domínio do capital. Então, foi possível compreender que desenvolvimento, no capitalismo, é sempre complexificação das relações produtivas que estão na base do próprio capital e não um processo etapista que garante o avanço do pior ao melhor. Assim, adensamos nosso entendimento sobre a lei geral da acumulação capitalista que é na verdade a condição imanente e inextricável do desenvolvimento capitalista, que não assegura avanços em termos de progressos civilizatórios, necessariamente. Por outro lado, gera, inevitavelmente, novas contradições que atestam sempre grau relativo de empobrecimento da classe trabalhadora. O amiúde do processo de complexificação do capitalismo expresso, entre outros fenômenos, na transição para o imperialismo, pôde também ser trabalhado. Neste particular, demonstramos a intrínseca propensão expansionista do capital, que reproduz formas variadas de exploração de países de capitalismo avançado sobre países de capitalismo dependente, o que repõe sempre em novo patamar a dinâmica das expropriações e a lógica predatória da divisão internacional do trabalho. A lei do desenvolvimento desigual e combinado é que sustenta as assimetrias e tempos desiguais do desenvolvimento das forças produtivas nos diversos países e dá substância à própria demanda do capital por espaços de investimento. Subsidiariamente, adentramos a discussão do Estado para uma maior apreensão do seu caráter de classe, das contradições latentes e sua indispensabilidade às demandas do capital e 386

da reprodução da força de trabalho. O Estado capitalista tem função central na garantia das condições gerais de reprodução do capital e assume dianteira de afiançar a acumulação capitalista, como cuidadoso “guardião dos interesses do capital”. Suas funções são mais intensamente acionadas nos contextos de crise capitalista. Esta também foi uma demanda importante no nosso estudo: entender a propensão do capital às crises cíclicas e afunilar a compreensão sobre a crise estrutural, no que alcançamos importantes elementos possibilitados por um avanço nas leituras das fontes marxistas de inequívoca contribuição neste campo de discussão. Determinantes importantes foram desvendados como a importância das crises cíclicas para a renovação das forças produtivas e início de novos ciclos de acumulação, bem como o caráter particular da crise estrutural que se arrasta desde a década de 1970, que não oferece novas margens para novos ciclos expansionistas, senão apenas meros períodos de alívio temporários, seguidos de novas manifestações parciais da mesma crise estrutural. Ao particularizar a análise na realidade concreta do Brasil, nossos achados sobre desenvolvimento capitalista no Brasil foram promissores na medida em que possibilitaram a releitura da nossa formação social e as implicações desta sobre o padrão de desenvolvimento capitalista que se efetivou no país, sob batuta de uma burguesia antidemocrática e do poderio das oligarquias na disputa pela direção social do Estado. O Estado, que como vimos, teve papel central na constituição e desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil, sobretudo, assentado na ideologia desenvolvimentista, que procurava arregimentar consensos para legitimação e socialização do projeto de sociabilidade burguês para toda sociedade brasileira. O ciclo desenvolvimentista esteve na base da industrialização brasileira, sob o processo de substituição de importações, assumindo culminância na era JK. Mas é sob o Estado autocrático burguês que o processo de monopolização do capital se concretiza nessas latitudes, inclusive com espraiamento do processo de “industrialização do campo”. Sobre forte repressão da classe trabalhadora, o capitalismo brasileiro ratificou seus fundamentos dependente e segregacionista, que atravessam toda nossa formação social. Com estes elementos, pudemos perceber a intrínseca relação entre dinamização capitalista e autoritarismo no país, o que aponta para uma intricada imbricação entre capital e vias antidemocráticas da acumulação capitalista, no Brasil. O que pode ser uma pista teórica para pensar os novos processos sociopolíticos que se adensam com o impeachment, demarcando, possivelmente, o início de um novo ciclo de acomodações político-econômicas com forte assentamento em pautas autocráticas. Possivelmente, abra-se uma via de pesquisa sobre a 387

relação da inflexão centralizadora e autoritarista do Estado e as demandas de recomposição do desenvolvimento capitalista na particularidade do capitalismo dependente e periférico. O padrão associado e dependente, fortemente amparado no endividamento público garantiu uma expansão capitalista sobre predomínio do desenvolvimentismo, entre as décadas de 1950-1980, que se exaure em meados da década de 1980, com a eclosão da dívida da crise e o movimento de redemocratização brasileira. É na aurora dos anos 1990 que o neoliberalismo passa a pautar a dinâmica do desenvolvimento capitalista. Nossos achados permitiram apreender o processo deletério do neoliberalismo sobre a indústria, as políticas sociais e sobre o patrimônio público estatal. Sob a gestão do Estado neoliberal, a economia brasileira ascende ao mundo das finanças como plataforma de valorização financeira, realimentando uma posição subalterna na divisão internacional do trabalho. Aprofundamos a compreensão do processo que culmina na chegada do PT à Presidência da República, no lastro da crise de legitimidade do projeto neoliberal em função das mazelas sociais decorrente de suas diretrizes. Pudemos tratar do processo de transformismo do PT e de sua involução à pequena política, sob o círculo de ferro do pragmatismo eleitoral e desvelamos elementos básicos do tímido projeto de desenvolvimento do PT. Nisto, foi possível apreender a via da conciliação de classes petista, que assegurou grande margem para sustentação do projeto petista de gestão da crise do capital. Neste particular, ficaram evidentes os limites tangentes de tal projeto, que não possibilitou uma arrancada a um novo ciclo de substituição de importações, aprofundando a dependência da economia do país em relação ao agronegócio e as commodities. No mais, os investimentos na fusão de grandes indústrias brasileiras para garantir maior nível de competitividade no mercado internacional não favoreceram uma nova posição no circuito mundial do capital. A despeito das grandes expectativas de movimentos sociais, da classe trabalhadora e das frações mais progressistas das classes sociais no Brasil, o projeto político do PT enveredou por uma via ultraflexibilizada de sua agenda democrática popular, que, não obstante o impacto geral no quadro da pobreza extrema e dos ganhos em função do ajuste real do salário mínimo, nem de longe enfrentou as demandas de reformas estruturais tão amplamente defendidas na consolidação do PT como partido de esquerda. A construção de uma narrativa e de uma estratégia político-governamental que procurava conciliar desenvolvimento econômico e distribuição de renda, centrou a perspectiva do “alívio à pobreza” bem ao gosto da direção pleiteada pelos organismos multilaterais, sobre filiação do social-liberalismo. 388

Conferimos que a retomada do debate sobre desenvolvimento como projeto nacional, mostrou-se mais uma vez como apologia da acumulação capitalista e a base de legitimação desse projeto assentou-se, sobretudo, nos programas de “combate à pobreza”, via transferência de renda. Esse arranjo se assentou na franca expansão e centralidade da política de assistência social, capitaneada para os objetivos de gestão da pobreza, em um governo de conciliação de classes. Entendemos os fundamentos dessa guinada da política de assistência social, no campo da seguridade social, e constatamos importantes avanços no âmbito da regulamentação e da própria gestão de um campo da proteção social historicamente marcado pela dispersão, imprecisão conceitual e pulverização das ações e recursos nos mais diversos espaços do Estado. Estes fundamentos apontam na direção de um processo que trabalhamos como modernização conservadora da assistência social, em função da tentativa de conferir uma nova narrativa para a política, com um arsenal heurístico e conceitual mais sofisticado. O que na verdade se verificou, foi a consonância dos fundamentos teórico-políticos da política de assistência social com o campo teórico e ideológico neoconservador. Em termos prático-concretos a modernização da assistência social é abalizada pela implantação do Plano Brasil sem Miséria, que favorece amplos investimentos em termos de ampliação dos chamados equipamentos sociais do SUAS e do aprofundamento e expansão de um aparato de gestão único e centralizado. No decorrer do estudo as dinâmicas de paralelismo dos programas de “alívio à pobreza” com a política de assistência social foram ficando cada vez mais explícitas, pelo que entendemos ser um processo orgânico da intervenção do Estado face às necessidades da fração da classe trabalhadora mais empobrecida: a patente dificuldade de consolidar um campo de direitos progressistas no âmbito da assistência social, em detrimento da constituição de programas esporádicos, seletivos e focalistas de “alívio à pobreza”. Essa dinâmica assume, com o Plano Brasil sem Miséria, um novo patamar de paralelismo que atravessa o próprio SUAS e neste particular, demandou um amplo de investimento por parte do Estado da própria expansão e modernização da política de assistência social. Esta via modernizadora, no entanto, se mostrou compatível com o conservadorismo histórico da assistência social e os novos vieses do pensamento conservador que se alastra na política social contemporânea, e passa pela retórica do risco, da vulnerabilidade, do capital humano, do empreendedorismo e a ativação para o trabalho. 389

O Plano Brasil sem Miséria foi detalhado e analisado, pelo que conseguimos apreender seus principais componentes político-ideológicos e tácitos-concretos no cerne do próprio padrão de política social consolidado sob os governos petistas, pautado na focalização e seletividade. E adensou a via de intervenção do Estado sobre as demandas da classe trabalhadora, mormente aquela que compõe a superpopulação relativa ou a fração mais precarizada do trabalho. Ao acionar uma gama variada de atores e instituições estatais, o Plano Brasil sem Miséria se configurou como uma grande estratégia de operacionalização de programas, projetos e benefícios já existentes e implantação de poucas novidades. Observamos que esse movimento aprofundava a divisão do trabalho no campo da reprodução social, na medida em que o número de instituições e pastas envolvidas acarretava tensionamentos quanto às diversas formas de trabalho envolvidas, rotinas e culturas institucionais, valores e hierarquias diversas. Compreendemos então, que a intensificação da técnica da gestão impetrada pela coordenação do Plano procurava fazer frente aos patentes desafios postos pelo aprofundamento da própria divisão do trabalho acionada para lidar com a pobreza. Neste sentido, a evocação da gestão como panaceia para organizar os trabalhos e garantir eficiência compõe a narrativa e a estratégia tecnicista para lidar com problemas da totalidade da intervenção estatal. Inferimos que o fetiche da gestão constitui a forma de tentar suplantar os inconvenientes da própria lógica de organização do trabalho sob a engrenagem do Brasil sem Miséria. De modo efetivo, o impacto real do Plano sobre a pobreza não é desprezível, mas demonstramos que não avança em termos de integralidade das ações no campo da política social, tampouco garante à propalada perspectiva da intersetorialidade. Para o campo da assistência social, propriamente dita, reforça a ótica gerencialista e tecnicista, pautada em padrões de produtividade e otimização de recursos. Apesar de ter financiado certa expansão dos equipamentos sociais, os investimentos do Plano Brasil sem Miséria no SUAS não se traduziram em qualidade dos serviços ou tiveram impacto sobre o quadro amplo de precarização das condições e relações de trabalho dos profissionais que atuam na área. O projeto de conciliação de classes petista começa a mostrar esgarçamento a partir das jornadas de junho de 2013 e assume expressão radicalizada na disputa acirrada das eleições presidenciais em 2014, que acabou por eleger Dilma para seu segundo mandado. A pauta central dos debates girava em torno de impetrar as contrarreformas para fazer frente à crise econômica mundial ou manter os “avanços sociais recentes”, com prioridades para a política 390

social. Com a defesa desta última plataforma, Dilma chegou à presidência com uma margem mínima de maioria, um oponente inconformado e uma direita raivosa, sedenta por embargar o exercício do mandado legítimo da presidenta. A intensa pressão política e econômica colocava o governo Dilma na eminência do colapso, quando ela começa a fazer uma brusca rotação ao “centro-direita”, passando a aplicar justamente o conjunto de medidas de arrocho fiscal contrariando compromisso firmado em campanha. Desta feita, aqueles “pacotes de maldades” que já se colocava como ameaça real à classe trabalhadora brasileira para 2015, “independentemente de quem vencesse as eleições” acabou sendo de “interesse do próprio PT e dos setores econômicos que sustentavam o poder [...]” aproveitar a conjuntura de forte instabilidade para aprovar “várias medidas de interesse do capital e do governo, sem que a classe trabalhadora se rebelasse e conseguisse barrar os ajustes” (QUEIROZ, 2016, p. 536). Enfim, procedeu-se à cartilha neoliberal de primeira linha, impactando sobre direitos da classe trabalhadora, programas e políticas sociais e sob as condições de vida da classe média. Entre 2015 e 2016 tendências fortemente cotrarreformistas foram empregadas pelo governo Dilma e seu Staff técnico,235 de clara direção liberal conservadora ao mais afinado gosto do mercado financeiro em um contexto de eminente caos político. A irrupção de escândalos de corrupção e uma investida sem trégua da direita e extrema direita contra o PT tornavam o contexto do segundo governo Dilma insustentável. Neste ínterim, estavam postas condições históricas favoráveis à expansão do mais aberrante veio conservador da sociedade brasileira, que capitaneado pela ala política mais interessada na queda de Dilma236 – inclusive sua base aliada, o PMDB, sob batuta de Michel Temer – tornou-se uma das molas propulsoras do impeachment. A despeito de divergências jurídicas quanto à condução e ao mérito do processo — corretamente qualificado como golpe de estado institucional, dada a inexistência da qualificação definitiva do crime de responsabilidade, constitucionalmente punível com o impeachment — acionado em meio ao maior escândalo de corrupção generalizada já registrado na história do país — envolvendo os mais altos escalões dos principais partidos políticos, altos dirigentes de estatais e vários executivos de empreiteiras e grandes empresas privadas — o efeito social e político dele foi uma

235 Note-se, por exemplo, a nomeação de Joaquim Levy, exímio seguidor das orientações neoliberais da Escola de Chicago, para Ministro da Fazenda.

236 “Apesar da falsa moralidade ética que envolveu a retórica em prol do impeachment, a comoção criada pela mídia nacional em torno da Operação Lava-Jato e o mote anticorrupção, o que tais afirmativas nos revelam é sua exclusiva justificativa econômica. Em outras palavras, o fim do ‘ciclo PT’ tornara-se uma prerrogativa para contrarrestar a queda à taxa de lucro das distintas frações da burguesia no país, o que exigiria uma política econômica e uma celeridade no ajuste fiscal já não mais possíveis sob a égide petista” (MARQUES, 2016, p. 51). 391

espécie de reprodução, à brasileira, da ascensão do conservadorismo na conjuntura internacional (SOUZA, 2016, p. 273-274).

Assegurados pela mais alta cúpula do grande capital e pelos grupos de mídia massificadora, essa investida conservadora consolidou o impeachment que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República. A chegada de Temer ao Planalto Central, conjugado com um Parlamento ávido por Emendas Parlamentares,237 expressivamente conservador e majoritariamente denunciados nos processos de investigação sobre corrupção, marca a ascensão de uma ofensiva ultraliberal de largas proporções. Sob a falácia do combate à corrupção, da necessidade de ajuste das contas públicas e do enfrentamento à crise econômica, o governo Temer – cuja reprovação popular é massificada238 – passa a implementar uma série de medidas, cujo impacto social tem se mostrado desastroso. Os dados sobre pobreza e extrema pobreza em 2016 já davam conta desse desastre. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua (2017), o Brasil voltou, em apenas dois anos, ao número de pessoas em extrema pobreza registradas dez anos antes, em 2006. Em relação aos pobres, o patamar de 2016 – 21 milhões – é o equivalente ao de oito anos antes, em 2008, e cerca de 53% acima do menor nível alcançado no país, de 14 milhões, em 2014. Evidencia-se claramente o impacto do PBSM no ano de 2014 e a regressão desses avanços a partir da crise (2015-2016) e das medidas adotadas por Temer. De acordo com a pesquisa da PNAD Contínua (2017), tudo indica que a piora nos indicadores relacionados à pobreza e à extrema pobreza não se alterou em 2017, mas os dados do desemprego são alarmantes, tendo fechado o ano com 12,3 milhões de desempregados. Medidas de austeridade fiscal duras, que geram cortes de gastos públicos, inclusive com aprovação da polêmica Emenda Constitucional Nº 95, que define e limita o teto do gasto público por 20 anos; aumentos de tributos e impostos, em bens de uso intensivo como gasolina e gás de cozinha, ataques ao salário mínimo, com ajuste abaixo da inflação, a drástica aprovação da Reforma Trabalhista; e ainda em curso, a ampla investida para aprovação da Reforma da Previdência e a aceleração de projetos de privatização.

237 Em 2016 o Governo Temer incluiu no Orçamento Federal R$ 9,1 bilhões em emendas individuais para os Deputados e Senadores. Em 2017, o presidente liberou R$ 10,7 bilhões em emendas parlamentares. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/temer-libera-10-7-bilhoes-em-emendas-parlamentares-em-2017. Acesso em: 10/05/2018.

238 No final de 2017, 74% da sociedade brasileira reprovava o governo Temer, conforme pesquisa do IBOPE apresentada no G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/governo-temer-e-aprovado-por-9-e- reprovado-por-88-diz-ibope.ghtml. Acesso em: 10/05/2018. 392

Ao tempo em que duras medidas que destroem direitos e corroem a frágil democracia brasileira, o governo libera contas inativas do FGTS com nítida finalidade de apassivar os ânimos da classe trabalhadora, mas com ampla funcionalidade para dinamismo econômico do mercado interno, além de ajustar os benefícios do Programa Bolsa Família.239 O Orçamento da União para o ano de 2017 foi de R$ 3.489.243 trilhões de reais. O gasto federal com pagamento de juros da dívida foi de R$ R$ 557 bilhões.240 O Orçamento teve cortes importantes para 2017, a fim de “cobrir o rombo das contas públicas”. A Folha de São Paulo241 apontava que os cortes seriam : R$ 20,1 bilhões só nos ministérios; R$ 10,9 bilhões das emendas de parlamentares; R$ 10,5 bilhões das obras do PAC. O Correio Braziliense242 explicitava que os ministérios da Defesa, dos Transportes e da Educação foram os mais atingidos pelos cortes no Orçamento. “Juntas, as três pastas somam R$ 15,1 bilhões da tesourada, ou 36,6% do corte nas despesas discricionárias previstas pelo governo”. Para o campo da assistência social os prognósticos iniciais são preocupantes e as análises prospectivas, assustadoras. Analistas e trabalhadores da área vêm problematizando os perigos eminentes para o SUAS e para a institucionalidade por ele construída. Em que pese todos os limites que analisamos ao longo desse estudo, também demarcamos os avanços concretos em termos de regulamentação, de legitimidade e de mecanismos concretos de financiamento a fundo, por meio do qual os recursos públicos do Orçamento Federal chegam aos municípios, garantindo o funcionamento do SUAS. A realidade que se coloca é de uma profunda inflexão na política de assistência social em direção aos elementos mais conservadores e arcaicos deste campo no cenário brasileiro. A criação do Programa Criança Feliz,243 para o qual a primeira-dama do país foi convidada a ser uma espécie de embaixadora, remota ao que há de mais anacrônico na política de assistência social: o retorno ao primeiro-damismo. Em suma, as perspectivas para o SUAS são de grandes impactos negativos que deflagram uma nova fase de sobreposição de programas ou mais enfaticamente na reprodução

239 O reajuste foi de 12,5 no valor dos benefícios, a serem pagos a parit de julho de 2016. 240 Disponível em: http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2017/marco/orcamento-2017-prova-teto- dos-gastos-achata-despesas-sociais-e-beneficia-sistema-financeiro. Acesso em: 02/05/2018.

241Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2017/03/orcamento-tem-corte-de-r-421-bilhoes- maior-que-o-esperado.html. Acesso em 12 de janeiro, de 2018.

242 Disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2017/04/01/internas_economia,585320/educacao- perde-r-4-3-bilhoes-com-corte-no-orcamento.shtml. Acesso em 12 de janeiro, de 2018.

243 O Programa Criança Feliz é criado através do decreto presidencial n. 8.869/16, em 05 de outubro de 2016. 393

do paralelismo de programas assistenciais que ao fim e ao cabo são estratégias de gestão da pobreza, tendo na focalização seu fundamento precípuo. Em termos propriamente orçamentários a situação é muito grave. Estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), de 2017, demonstra a preda de mais de 458 milhões nos recursos para cofinanciar o SUAS somente entre 2016 e 2017. O maior corte foi no âmbito da Proteção Social Básica, com uma queda de 15%, cerca de R$ 227 milhões. Na Proteção Social Especial de Média Complexidade, a queda foi de 23% cerca de R$ 113 milhões; para os serviços de Alta Complexidade a perda foi de 25%, um valor em torno de R$ 69 milhões. No tocante à consolidação da gestão, expressos no repasse do IGD-SUAS, o estudo demonstra o corte de 35%, ou seja, quase R$ 50 milhões. Uma questão que corrobora nossas reflexões quanto à reprodução do paralelismo e dos impactos do Programa Criança feliz no SUAS é o dado apontado pelo estudo sobre as reais possibilidades de o corte de mais de R$ 458 milhões “ter sido utilizado/remanejado para custear a implantação e a implementação do novo programa federal” (CNM, 2017, p. 4). Para 2018 a Lei Orçamentária Anual (LOA) também representa cortes para o SUAS.

Quadro 11 – Lei Orçamentária Anual (LOA) 2018 referente aos serviços socioassistenciais do SUAS

Código Descrição 2017 2018 Corte Programa 2037 Consolidação do SUAS 2A60 Proteção Social Básica 1.272.023.105 1.211.465.055 60.558.050 Ação 2A65 Proteção Social 376.022.448 299.500.445 76.522.003 Especial de Média Complexidade 2A69 Proteção Social 209.357.047 189.845.000 19.512.047 Especial de Alta Complexidade 8893 IGD-SUAS 111.323.913 102.327.456 8.996.457 Fonte: Congresso Nacional (2017;2018). Elaboração própria.

A perda de recursos na área é significativa. É um ataque frontal à frágil estrutura do SUAS. É expressão exímia da investida contra as políticas sociais e sedimenta um projeto de desmonte, que no caso de uma política social de institucionalidade pública tão recente e com 394

grande caminho pela frente na consolidação de um aparato institucional, tem impactos deletérios. Mas, muito além dos rebatimentos no campo da assistência social, a ofensiva do capital capitaneada pelo Estado aponta para um novo estágio de dominação burguesa no país, em que não cabe mais a via de conciliação de classes e onde o avanço da onda conservadora e do fascismo assentam bases danosas para o trabalho. Os retrocessos em termos de direitos trabalhistas e políticas sociais expressam um acirramento da luta de classes, onde a classe trabalhadora vem perdendo muito em função das demandas mais reacionárias do capital. Neste contexto, o autoritarismo e o conservadorismo vêm dando a direção dos processos sociopolíticos sem máscaras. Mais do que nunca, urge fortalecer a resistência e colocar a emancipação humana no centro das lutas sociais.

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______. DECRETO Nº 6.135, DE 26 DE JUNHO DE 2007. Dispõe sobre o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal e dá outras providências.

______. Lei 10.836/2004. Cria o Programa Bolsa Família no âmbito do Programa Fome Zero.

______.DECRETO N.º 7.492, DE 2 DE JUNHO DE 2011. INSTITUI O PLANO BRASIL SEM MISÉRIA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011- 2014/2011/Decreto/D7492.htm.

______Decreto-Lei nº 314, de 13 de Março de 1967. Define os crimes contra a segurança nacional.

______. Lei.4. 390/1962, altera a Lei 4. 131, conhecida como Lei de Remessas de Lucro.

417

______.Lei 8.080/90 Cria o Sistema Único de Saúde.

______Lei 7.601/98. Realiza mudanças na legislação trabalhista.

______.Lei 11.101/2005. Lei de Falências.

______. Lei Complementar nº 87. Isenta do pagamento do ICMS os produtos primários e os produtos industrializados e semielaborados destinados à exportação.

______. Lei 12.865 prevê a isenção da cobrança de 9,25% do PIS e da Cofins na venda da soja para todos os fins comerciais.

______. Lei 10.820/2003. Regula o empréstimo consignado.

______. Lei 8.212/91. Lei Orgânica da Seguridade Social.

______. Lei 8.213/91 estabelece o Plano de Benefícios da Previdência Social.

______. Lei 8.080/90. Institui o Controle Social no SUS.

______. Lei nº 8.742/93. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)

______. Leis nº:12.435/2011 altera a LOAS e regulamenta o SUAS.

______. Norma Operacional Básica (NOB/SUAS). Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005.

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______. PORTARIA GM/MDS Nº 246, DE 20 DE MAIO DE 2005. Aprova os instrumentos necessários à formalização da adesão dos municípios ao Programa Bolsa Família, à designação dos gestores municipais do Programa e à informação sobre sua instância local de controle social, e define o procedimento de adesão dos entes locais ao referido Programa.

______. PORTARIA Nº 256, DE 19 DE MARÇO DE 2010. Estabelece normas, critérios e procedimentos para o apoio financeiro à gestão estadual do Programa Bolsa Família e dá outras providências.