música y

Explicando para confundir

Nos anos 1970 a MPB encontrou diferentes formas de recriar o experimentalismo tropicalista

Amauri Stamboroski Jr.

u tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundin- Secos & Molhados, e Tom Zé tinham pouca ou do/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado/ Pra poder cegar/ quase nenhuma abertura com as gravadoras maiores e multi- Tô ficando cego/ Pra poder guiar”, cantarola Tom Zé nacionais que estavam começando a entrar no mercado, como “Eem “Tô”, quarta faixa do álbum Estudando o , a Philips”, explica Vargas, justificando a escolha dos nomes de 1976. Indiretamente, o refrão do cantor baiano poderia se analisados na pesquisa. referir ao impacto da produção musical dos artistas escolhidos Mas, além das realidades do mercado, outros dois fatores pelo historiador Herom Vargas, professor titular do programa ainda pesam no surgimento dessa geração experimental. de mestrado em comunicação da Universidade Municipal de “Existe uma repressão muito forte da ditadura militar na São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Metodista de primeira metade dos anos 1970. Esses artistas, como outros São Paulo (Umesp), como foco da pesquisa Experimentalismo da música popular, vão tentar driblar a questão da censura. e inovação na música popular brasileira nos anos 1970. Além de Mas, diferentemente de um Chico Buarque, não têm um viés Tom Zé, Novos Baianos, Walter Franco e Secos & Molhados político declarado, aberto, eles operam pelas frestas. Traba- compõem entre si um apanhado díspar, mas que conta uma lhavam a linguagem da canção como um caminho de provo- história da criatividade e da experimentação da música bra- cação”, reflete Vargas. sileira num período em que a indústria fonográfica no Brasil Por fim, há também o contexto internacional da contra- passava por um momento de expansão e centralização. cultura – nome que se deu ao conjunto de atitudes e novas Em seu trabalho de 1994 O berimbau e o som universal, Enor relações sociais e também artísticas que começam a se deli- Paiano, autor de Tropicalismo: bananas ao vento no coração near na segunda metade da década de 1960 na Europa e EUA do Brasil (Scipione), colhe alguns dados que demonstram e que reverberam de diferentes formas mundo afora, do maio o crescimento do mercado fonográfico brasileiro na época: de 1968 francês ao tropicalismo brasileiro. 444,6% entre 1966 e 1976, num período em que o crescimento Para falar dessa nova geração, o pesquisador recorreu ao ter- acumulado do PIB foi de 152%. Entre as empresas que mais mo “pós-tropicalismo”: “O termo pós-tropicalismo tem sido faturavam com esse crescimento estava a Continental, grava- empregado com razoável discernimento para nomear um seg- dora brasileira fundada em 1929 e sediada em São Paulo, que mento da produção musical do período que, de alguma maneira, contava com um elenco de artistas populares e regionais. “A seguiu parte de seus passos”, escreveu ele no artigo “Categorias Continental foi a maior gravadora nacional de todos os tem- de análise do experimentalismo pós-tropicalista na MPB”. “O pos”, enfatiza Eduardo Vicente, professor da Escola de Co- tropicalismo criava suas novidades dentro do contexto dos fes- municações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) tivais de música televisivos, muitas vezes numa crítica à própria e autor da pesquisa Música e disco no Brasil: a trajetória da esquerda. Os Novos Baianos, por exemplo, faziam isso já den- indústria nas décadas de 80 e 90, de 2002. tro da canção, num contexto mais musical”, diferencia Vargas. “Lá por 1970 a Continental decide ir além do seu elenco O grupo de Luiz Galvão e Morais Moreira é emblemático des- regional e começa a gravar músicos novos. Walter Franco, sa transição. Formado em 1969 em Salvador, mudou-se em 1971

80 z dezembro DE 2012 lobo a O G

Tom Zé em show no Rio de Janeiro em 1973 Arquivo / Agênci foto

pESQUISA FAPESP 202 z 81 para o Rio de Janeiro e, sob a influência de João Gilberto, começou a incorporar diferentes elementos do samba ao seu rock em álbuns como e Novos Baianos FC. “Pegue a regravação deles para “O samba da minha terra”, de Dorival Caymmi. Quando o Pepeu Gomes entra com a guitarra você ouve riffs, so- los, que são da linguagem associada ao rock. Mas a música ainda é um samba”, exemplifica Vargas. contracultura Além da música, o comportamento do grupo – que por um período de tempo conviveu coletivamente em um sítio no Rio de Janeiro – também foi importan- 1 te na continuidade do tropicalismo. “Os 1 Walter Franco Novos Baianos traduziram o que pode- em show de 1975 ríamos chamar de ‘versão brasileira da 2 Secos & Molhados contracultura’”, afirma o professor e se apresentam no pesquisador da Unicamp José Roberto Maracanã em 1974 Zan. “A vida em comunidade, as drogas, 3 Novos Baianos o procedimento tropicalista de combinar em ensaio de 1972 elementos musicais do pop internacional com a música brasileira (samba e gêne- ros regionais como o ) compõem um estilo que expressa ressonâncias da contracultura na nossa música popular.” Outro grupo que expressou sua dis- cordância através do corpo e da per- formance – e, inevitavelmente, do rock 2 – foi Secos & Molhados. Mesclando rock progressivo, blues, incorporando re- Esse artifício era amplificado pela meno de vendas da indústria fonográfica ferências folclóricas luso-brasileiras própria performance de Matogrosso no brasileira naquele período”, observa Zan. (em “O vira”) e com a utilização cons- palco e na televisão, que no início dos “Acredito que a experiência do grupo tante de poesia – de nomes como Vi- anos 1970 reclamava um novo papel he- definiu novos padrões de encenação da nicius de Moraes, Manuel Bandeira e gemônico. No artigo “Corpo e perfor- canção num momento em que a televisão Fernando Pessoa, entre outros –, o trio mance no experimentalismo do grupo se consolidava como o principal meio de teve uma carreira meteórica, com dois Secos & Molhados”, Vargas descreve comunicação de massa no país. Ao mes- álbuns lançados entre 1971 e 1974 e um com precisão a postura do cantor: “Sua mo tempo, as performances antecipavam enorme sucesso popular, impulsionado figura é altiva (peito nu estufado e ca- a invenção do clip, um novo componente pelo apelo visual das maquiagens e da beça erguida), mesmo de pés descalços, da linguagem da música popular.” teatralidade sexualmente ambígua do os olhos são arregalados, a voz aguda é Diferentemente desses casos em que a vocalista Ney Matogrosso. marcante, movimentos exagerados da experimentação se traduziu em sucesso As maquiagens em preto e branco que boca marcam a pronúncia das palavras, popular, Walter Franco é um exemplo de marcaram a visualidade do grupo acon- movimentos de quadris insinuam outros como o radicalismo mais aguerrido não teceram meio que ao acaso. Antes do su- códigos, penas, colares e lantejoulas bai- encontrava eco fora da vanguarda, que cesso de Secos & Molhados, Matogrosso lam com o corpo, séries de movimentos acabou sendo batizada, especialmente era ator e, numa apresentação do grupo de dança ou completamente livres sobre pela sua postura de enfrentamento, de na Casa da Badalação e Tédio, clube anexo o palco transformaram-se em códigos de “malditos”. O compositor paulistano co- ao teatro Ruth Escobar, chegou atrasado, desprendimento. Não eram movimentos meça a ganhar projeção a partir da sua diretamente de uma peça infantil em que ensaiados e sempre iguais”. apresentação em 1972 no VII Festival estava atuando anteriormente e, na pres- Ao invés de afastar o público em um Internacional da Canção, da Rede Globo, sa, subiu ao palco ainda maquiado. João país ainda conservador, o efeito foi con- apresentando a música “Cabeça”. Sem Ricardo, fundador e principal compositor trário: shows lotados país afora, turnê no letra, a faixa era uma colagem de frases da banda, e o companheiro Gérson Conrad México, álbuns vendidos às centenas de e fragmentos, sobre uma camada de sons ficaram animados com a reação da plateia milhares. “Os dois LPs do grupo Secos & sintetizados. Apesar de ter sido hosti- e resolveram adotar o estilo. Molhados foram, talvez, o maior fenô- lizado e vaiado pelo público durante a

82 z dezembro DE 2012 E e o que “não seria música” – acusação DO /A intermitente do público às vaias nos STA

A E festivais contra toda música que saísse

G ê NCI desse insondável “padrão”. Dessa forma, Tom Zé vai buscar di- rquivo/A a ferentes recursos para desconstruir a lobo 3 lobo canção a partir de dentro. “Um exemplo a O G é o uso do ostinato, célula rítmica e me- lódica repetida durante toda a música. a /Agênci ec s Ele utiliza isso em várias composições

ld Fonld do período, e a cada repetição algo no- a on

R vo acontece na música. Esse uso não é

E 2 muito comum na música popular, que DO /A costuma ter uma estrutura dividida em STA

A E primeira e segunda parte, refrão, solo G ê NCI etc.”, observa Vargas. EIRO /A

H Além disso, Tom Zé fazia o uso amplo IN de objetos “não musicais” dentro de suas

DOMICIO P composições, adaptando propostas da van-

1 guarda erudita. “O que me salvou foi que fotos eu sou um péssimo compositor, um pés- 3 simo cantor e um péssimo instrumentis- ta. Então, quem é péssimo, tanto faz tocar piano como tocar enceradeira!”, declarou o músico em 2006, explicando suas escolhas. Além da música, o comportamento dos Um terceiro ponto que Vargas gosta de observar na obra do compositor nes- artistas era fundamental como continuidade se período é certa mistura de sinais, com do trabalho dos Novos Baianos Tom Zé invertendo, misturando e se apro- priando de estilemas relacionados a dife- rentes gêneros populares. Em Estudando o samba essa vocação aparece com vigor, e o músico analisa, decompõe e recompõe apresentação, a canção foi encarada com guarda Paulistana, do final dos anos 1970 “estruturas rítmicas, estilemas melódi- simpatia pelo júri presidido por Nara e início dos 1980. “Parece haver ali um cos e temáticos, timbres instrumentais e Leão, e para evitar que a obra polêmica diálogo”, nota Zan. “Vale ouvir e compa- formas tradicionais de interpretação do fosse premiada, a emissora acabou des- rar as composições ‘Cabeça’, de Franco, e samba”, como explica Vargas no artigo tituindo o júri, amplificando a polêmica. ‘Minha cabeça’, de Luiz Tatit e Zé Carlos “As inovações de Tom Zé na linguagem Após o entrevero, Franco acabou con- Ribeiro, presente no LP Rumo, de 1981.” da canção popular dos anos 1970”. “Há tratado pela Continental, onde lançaria Outro músico cuja obra setentista vai no disco uma versão para ‘Felicidade’, dois álbuns: Ou não, de 1973, e Revólver, ter uma influência posterior na música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ele de 1975. “É possível fazer um paralelo brasileira é Tom Zé. Participante do nú- desconstrói a música, fica estranha, mis- entre a poesia concreta e o trabalho de cleo central do tropicalismo, compondo tura o compasso binário do samba com Franco, especialmente no sentido da con- com os Mutantes e gravando no álbum- um violão no compasso ternário e apre- cisão”, nota Vargas. “Ele utiliza poucas -manifesto Tropicália ou panis et circen- senta entradas de ruídos, sons gravados.” notas, uma melodia muito restrita, letras sis, de 1968, o músico baiano, discípulo de Essa fase da música ainda deve render em sua maioria curtas. Mas ele demons- Hans Joachin Koellreutter, teve uma fase novas discussões. “Quero estudar me- tra os sentidos no canto, no arranjo, na especialmente criativa – mas de pouco lhor essas condições em que se desen- performance. ‘Cabeça’, por exemplo, não impacto imediato – nos anos 1970. volveram esses artistas nos anos 1970 e tem letra, é só uma frase, mas a cada re- falar sobre a Continental e a ditadura, as petição, ao vivo, ele dá um novo sentido. experimentação gravadoras e o pano de fundo da época”, A poesia concreta tem isso: a mensagem Em álbuns como Todos os olhos e Estu- conta o pesquisador. n precisa ser concisa, mas ao mesmo tem- dando o samba, Zé elege a canção como po precisa ter muito sentido dentro dela seu veículo de experimentação e críti- para ser compreendida pelo público.” ca. Seu objetivo era remodelar o que Projeto A preocupação com a palavra e os ele mesmo mais tarde viria chamar de Experimentalismo e inovação na música popular experimentos atonais e com colagens “acordo tácito” entre artista e público, brasileira nos anos 1970 – nº 2009/18261. Modalidade: Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. acabaram influenciando uma geração em que existia uma ideia preconcebi- Coordenador: Herom Vargas - Universidade posterior de músicos, na chamada Van- da do que seria uma canção “de fato” Metodista. Investimento: R$ 11.587,00 (FAPESP).

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