Universidade do Estado do Centro de Ciências Sociais Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Guilherme Ferreira Vargues

Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2012

Guilherme Ferreira Vargues

Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do Rio de Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do tííttulo de Doutor, ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profa. Dra. Diana Nogueira de Oliveira Lima

Rio de Janeiro 2012

Guilherme Ferreira Vargues

Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do Rio de Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Sociologia.

Aprovada em 9 de fevereiro de 2012

______Prof.ª. Drª. Diana Nogueira de Oliveira Lima (Orientadora) Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Adalberto Cardoso Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Peter Henry Fry Universidade Federal do Rio de Janeiro

______Prof. Dr. Nilton Santos Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2012

DEDICATÓRIA

Ao meu avô César, criado no Catumbi, fundador do Bafo da Onça, que me iniciou nas andanças pelo universo do samba carioca.

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho é dedicado a todos que de alguma forma o ajudaram a se tornar realidade seja no espaço acadêmico seja na vida. Agradeço em especial algumas pessoas: Aos meus pais, Elizabeth e Júlio Vargues parceiros firmes na difícil travessia que por vezes é a vida. Aos meus avós, todos eles muito importantes na minha vida: Moacyr, César, Dagmar e Otília, entusiastas de minhas pesquisas e defensores fiéis do meu mau jeito com o violão. Ao meu irmão Maurício que toca melhor violão que eu. Ao meu irmão Rodrigo que é bem melhor de contas que eu. Aos meus queridos amigos, em ordem alfabética: André Videira, Alexandre Deraue, Álvaro Neiva, Bii-Right, Bruno Porpetta, Diego Medeiros, Diogo Presidente, Elídio Marques, Gabriel Cid, Rafael Maieiro Duarte, Sandro Félix e Victor Neves. Além de uma lista enorme de pessoas que diversas vezes aqui poderiam ser lembradas. São todos, imitando Vinícius, sustentáculos firmes e perceptíveis na minha vida. À Barbara Bulhões, que gosta de me apoiar no lado desafiante da vida. À minha orientadora Diana Nogueira Lima, grande parceira intelectual na elaboração de todo esse trabalho. Seu firme apoio e disposição foram muito importantes para o desenvolvimento de toda essa pesquisa. A todos os colegas de doutorado que compartilharam momentos de trocas, alegrias e tensões no decorrer desta tese. Aos professores Luís Antônio Machado, Luís Werneck Vianna e Pedro Paulo de Oliveira pela presteza que sempre tiveram com este trabalho. À professora Maria Alice Rezende de Carvalho, orientadora de minha dissertação de mestrado que me ajudou a iniciar esta tese, meus sinceros agradecimentos. A todo sambista, ou não sambista que ritualiza na vida a liberdade. A toda ousadia que se faz sonho, a todo sonho que se faz na luta.

Habitada por gente simples e tão pobre Que só tem o Sol que a todos cobre Como podes, Mangueira, cantar?

Cartola (Sala de Recepção)

RESUMO

VARGUES, Guilherme Ferreira. Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do Rio de Janeiro. 2012. 276f. Tese (Doutorado em Sociologia), Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Este estudo retrata a trajetória de duas lideranças fundamentais não só no plano da Escola de Samba GRES Portela como na trajetória em geral das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. A escolha dos dois personagens, além da conhecida relevância de ambos na história do carnaval carioca, se dá pelo fato de que os dois aparecem como importantes referências de suas agremiações carnavalescas representando e organizando interesses coletivos. Pretendo comparar a trajetória desses dois personagens inserindo ambos em seus contextos históricos. Respectivamente as primeiras três décadas do século XX, e os anos de 1960 até 1980. Elaborando uma pesquisa que compõe um balanço acerca das transformações nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que ao longo do tempo se forjaram como representação máxima dos festejos carnavalescos da cidade. Analisar as Escolas de Samba pode ajudar a compreender o movimento da cultura popular na história recente da cidade, e como essa se articulou com sociedade e política.

Palavras-Chave: Sociologia. Cultura. Carnaval. Rio de Janeiro.

ABSTRACT

VARGUES, Guilherme Ferreira. Samba and fighting: birth and crisis of the samba schools of Rio de Janeiro. 2012. 276f. Tese (Doutorado em Sociologia), Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

This study analyzes the history of two key leaders not only in terms of Portela Samba School, as in the general trajectory of the Samba Schools of Rio de Janeiro. The choice of two actors, besides the known importance of both in the history of carnival, is given by the fact that the two appear as important references for their carnival associations, representing and organizing collective interests. It is intended to compare the trajectory of these two characters by inserting both in their historical contexts. Respectively, the first three decades of 20th Century, and the years 1960 to 1980. The research consists in a review about the transformations in the Samba Schools of Rio de Janeiro, which in the course of time were forged as the main representation of Carnival festivities in the city. Analyze the Samba Schools can help to understand the movement of popular culture in the recent history of the city, and how this has been linked to society and politics.

Keyword: Sociology. Culture. Carnival. Rio de Janeiro.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Vendedor de balaios ...... 39 Figura 2 – Quitandeiras ...... 40 Figura 3 – Mercado Público no Centro do Rio ...... 40 Figura 4 – Vendedor de carnes ...... 41 Figura 5 – Cortiço ...... 41 Figura 6 – O “bota-abaixo” de Pereira Passos ...... 42 Figura 7 – Obras de remodelamento do centro urbano ...... 42 Figura 8 – Vista da Avenida Central ...... 43 Figura 9 – O estilo da Avenida Rio Branco ...... 43 Figura 10 – O Passeio Público ...... 44 Figura 11 – Fotos nas revistas de época ...... 44 Figura 12 – A Praça Onze ...... 45 Figura 13 – Morro da Conceição ...... 45 Figura 14 – Morro da Favella ...... 46 Figura 15 – Pátio da Estação de Madureira em 1909 ...... 46 Figura 16 – O grupo dos 8 batutas ...... 59 Figura 17 – Desfile das Grandes Sociedades ...... 68 Figura 18 – Desfile dos Corsos (1) ...... 68 Figura 19 – Desfile dos Corsos (2) ...... 69 Figura 20 – Desfile dos Corsos (3) ...... 69 Figura 21 – Batalha das Flores ...... 70 Figura 22 – Carnaval de rua no Centro da Cidade ...... 70 Figura 23 – Baile das elites ...... 71 Figura 24 – Charge do jornal O Careta ...... 71 Figura 25 – Charge da revista "fon fon" (1) ...... 72 Figura 26 – Charge da revista Careta (1) ...... 72 Figura 27 – Charge da revista Careta (2) ...... 73 Figura 28 – Charge da revista O Careta (3) ...... 73 Figura 29 – Charge da revista “fon-fon” (2) ...... 74 Figura 30 – Charge da revista "fon fon" (3) ...... 75 Figura 31 – Charge da revista O Careta (4) ...... 75

Figura 32 – Rancho Flor do Abacate, no bairro Laranjeiras ...... 76 Figura 33 – Rancho Aborrecidos ...... 76 Figura 34 – Rancho Ameno Resedá anunciado em O Careta ...... 77 Figura 35 – Personalidades do samba ...... 99 Figura 36 – Parte do pátio da estação de Madureira em 1909 ...... 111 Figura 37 – Sistema eletrificado em 1937 ...... 111 Figura 38 – Moradia de Paulo da Portela ...... 114 Figura 39 – Festa em Oswaldo Cruz em 1930 ...... 116 Figura 40 – Dona Esther em 1950 ...... 120 Figura 41 – Eusébio Rosa, marido de D. Esther ...... 121 Figura 42 – Paulo da Portela ...... 124 Figura 43 – Conjunto vocal ...... 124 Figura 44 – Grupo regional de Paulo da Portela ...... 125 Figura 45 – Paulo e outro componente da escola de samba ...... 129 Figura 46 – Cédula de votação do concurso de Maior Compositor ...... 135 Figura 47 – Velório de Paulo da Portela ...... 149 Figura 48 – Zé Keti e Nara Leão no espetáculo Opinião ...... 160 Figura 49 – João do Vale, Zé Keti e Nara Leão em cena no espetáculo Opinião, em 1964 ...... 161 Figura 50 – Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo de Carvalho, entre outros, no bar Zicartola em 1963 ...... 164 Figura 51 – Roda de samba no bar Zicartola (1) ...... 165 Figura 52 – Roda de samba no bar Zicartola (2) ...... 165 Figura 53 – Semelhança de estilos entre James Brown, Tony Tornado e Maia 172 Figura 54 – DJs Ademir Lemos e Big Boy ...... 178 Figura 55 – Cartaz do Baile da Pesada ...... 180 Figura 56 – Baile da equipe Khaunna (1) ...... 181 Figura 57 – Baile da equipe Khaunna (2) ...... 182 Figura 58 – Desfile (1) ...... 188 Figura 59 – Desfile (2) ...... 188 Figura 60 – Desfile (3) ...... 189 Figura 61 – Mercedes Batista ...... 189 Figura 62 – Atelier criado por Fernando Pamplona ...... 190 Figura 63 – Minueto com a Candelária ao fundo ...... 191

Figura 64 – Castor de Andrade, João Nogueira e Beth Carvalho ...... 199 Figura 65 – O bicheiro Natal...... 202 Figura 66 – O bicheiro Natal e o secretário de turismo Fernando Barata ...... 203 Figura 67 – Candeia em frente à casa da família ...... 222 Figura 68 – Ala dos Impossíveis: Candeia, Waldir 59 e Mazinho ...... 223 Figura 69 – O jovem Candeia (1) ...... 224 Figura 70 – O jovem Candeia (2) ...... 224 Figura 71 – Candeia em cadeira de rodas ...... 224 Figura 72 – Candeia em cadeira de rodas na TV Tupi ...... 225 Figura 73 – Símbolo da Quilombo ...... 238 Figura 74 – Candeia em desfile da Quilombo ...... 241 Figura 71 – Candeia em família ...... 245 Figura 76 – Ensaio na Quilombo ...... 247 Figura 77 – Candeia na sede social da Quilombo ...... 247 Figura 78 – Candeia entre outros ...... 248 Figura 79 – Candeia em matéria para o Jornal do Brasil ...... 248 Figura 80 – Candeia com Martinho da Vila ...... 249

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1. O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO SAMBA COMO SÍMBOLO DA CULTURA NEGRA E IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL: O NASCIMENTO DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO ...... 28 1.1 A formatação espacial de outra cidade: Subúrbios e Favelas ...... 28 1.2 Elite civilizada e Plebe atrasada: a barbárie em oposição à civilização 29 1.3 O negro e o mundo do trabalho na Primeira República ...... 36 1.4 Culturas Populares na cidade em mutação: entre a repressão e a glória ...... 47 1.5 A festa do carnaval ...... 63 1.6 Nascem as Escolas de Samba ...... 78 1.7 Preparando os desfiles oficiais ...... 95 1.8 Cidadãos e Escolas de Samba: Alguns apontamentos para o balanço da afirmação do samba nos anos de 1930 ...... 103 2. DE PÉS E PESCOÇO COBERTO: PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA 106 2.1 Indivíduos x Sociedade: o lugar sociológico da questão ...... 106 2.2 Notas adicionais sobre o subúrbio carioca ...... 110 2.3 A trajetória de Paulo da Portela ...... 113 2.4 Nascem as escolas de samba ...... 126 2.5 Paulo da Portela, cidadão do samba ...... 131 2.6 Algumas considerações ...... 148 3. OS DESFILES RUMO AO APOGEU: ESPETÁCULO, DIVISÃO E PATRONAGEM NAS ESCOLAS DE SAMBA ...... 155 3.1 Ditadura e engajamento artístico ...... 156 3.2 A influência do debate racial ...... 170 3.3 A espetacularização dos desfiles ...... 183 3.4 A patronagem e as escolas de samba ...... 197 3.5 Entendendo a crise que se estabelece entre sambistas “tradicionais” e escolas de samba ...... 203 4. ESCOLA DE SAMBA: A ÁRVORE QUE PERDEU A RAIZ ...... 210 4.1 A trajetória de Antônio Candeia Filho ...... 212 4.2 O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba 216 4.3 A criação da Quilombo através do livro Escola de Samba: a árvore que perdeu a raiz de Candeia e Isnard ...... 230

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 251 REFERÊNCIAS ...... 268

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INTRODUÇÃO

Esta tese busca compreender os movimentos da cultura do samba na cidade do Rio de Janeiro, tendo como foco as escolas de samba, uma vez que constituem a mais destacada manifestação da cultura popular carioca. Para isso, entrarei na trajetória de duas lideranças fundamentais nesse universo, não só no plano da escola de samba Portela como na trajetória em geral das agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro. São eles: Antônio Candeia Filho e Paulo Benjamin de Oliveira. A escolha dos dois personagens deve-se, além da conhecida relevância de ambos na história do carnaval carioca, ao fato de que os dois aparecem como importantes representantes de dois períodos muito distintos na história das escolas de samba e da cultura popular "negra" em nossa cidade. A diversidade de estudos voltados à cultura é proporcional a sua complexidade e ao seu caráter transdisciplinar. A discussão atravessa facilmente diferentes áreas das ciências humanas, o que provoca sua permanente renovação. Mas se, dessa maneira, a forma de abordar o tema varia, podemos notar a presença constante de um mesmo entendimento: estão em relação, dentro de uma sociedade, diferentes expressões culturais, sendo que as interações entre elas são plurais e dinâmicas. A relevância da cultura popular como objeto de pesquisa das ciências humanas e sociais já foi discutida por diversos autores. Destaco aqui alguns como: Mikhail Bakhtin, Peter Burke, Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, Roger Chartier, e mais recentemente, num contexto latino-americano, Jesus-Martin Barbero e Nestor Garcia Canclini. Nestes autores, embora variem as perspectivas e acepções, a cultura popular aparece aqui não só como referida à arte, literatura e música dos segmentos populares de um tempo, mas, além de estar em estado de troca permanente com a cultura da elite, refere-se à quase tudo que pode ser apreendido em uma sociedade, como culinária, danças, vestimentas, festivos e etc. Todas as práticas sociais contém uma dimensão cultural, uma dimensão significante que lhe dá seu sentido, que a constitui e constitui interação na sociedade. Modernamente, a cultura popular, em especial o carnaval, continua a seguir alguns aspectos dessa tradição, principalmente no que diz respeito às máscaras e fantasias com que se enfeita o povo (PACHECO, 2011). E mesmo, com alguma 14

linguagem que incita a inversão, em especial no carnaval popular de rua. Como afirma Bakhtin, trata-se de uma manifestação específica da categoria carnavalesca de excentricidade, da violação do que é comum e geralmente aceito, deslocando a vida do seu curso habitual (Idem). Mesmo que a festa carnavalesca hoje, se submeta a determinada “normatização”, ela é incitada a se rebelar. Perceberemos no decorrer dessa tese como o processo da festa carnavalesca foi sendo coibido de seu elemento transgressor embora, ele não desapareça e nem deixe de fazer parte da cultura carnavalesca em nenhum momento. Para entender o carnaval é fundamental compreender essa tensão para um estado de inversão, onde predomina o hiperbólico e o exagero, além da “sensação” de que as diferenças sociais são temporariamente abolidas, papéis sociais e de gênero se invertem, um espaço de tempo onde ocorria a inversão, morte de um ciclo que se renovava, renascendo sempre para um novo tempo. O carnaval pode não representar literalmente um estado de inversão, mas representa um período de tensão entre transgressão e ordem. Como se nesse espaço do tempo as pessoas fossem tensionadas a ter um comportamento social diferenciado (PACHECO, 2011). Se a cultura do povo pode ser analisada se aproximando das práticas do universo popular é impossível compreendê-la como autônoma ou descolada de uma “cultura das elites”, formando um sistema em blocos antagônicos: povo x elites dominantes. Ou seja, quando Bakhtin analisa os costumes populares encontra uma visão de mundo que ia de encontro ao dogmatismo e a seriedade cultural dos grupos dominantes da época, mas nunca desarticulada. A forma de manifestação dessas “diferenças” estaria na carnavalização dos valores daquela elite. Através da ironia, da paródia, do riso carnavalesco se manifestava uma visão popular dos assuntos cotidianos. Ademais, nos estudos de Bakhtin perceberemos o campo intenso de trocas entre dois universos culturais que podem, sob um olhar mais “duro” parecerem separados. Não existe, como em um laboratório científico, a possibilidade de separar como duas moléculas a cultura popular da cultura da elite, trata-se de perceber que estão em relação, o que muda é a capacidade de cada agente ou grupo social que se encontra em posição evidentemente desigual se impor. A sua separação nada mais é do que um modelo analítico para perceber o grau de intensidade de hegemonia de um grupo na cultura. As culturas se encontram em movimento de circularidade. 15

Articulando-se com a ideia de circularidade cultural exposta em Bakhtin, Carlo Ginzburg tendo como premissa e como referência teórica a Nova História Cultural empreende o estudo dos personagens “anônimos” da História. Ao estudar o estranho caso de um moleiro perdido nos campos de uma Itália em luta contra o avanço protestante, deu corpo a uma profunda reflexão sobre a escrita da história, suas dificuldades, desafios e possibilidades (HERMANN, 2011; PACHECO, 2011). Nesse sentido, a historiadora Jacqueline Hermann (2011) explica que, Carlo Ginzburg fornece um modelo teórico para pensar a cultura popular em sua relação com a cultura erudita de uma maneira singular: por um lado, a cultura popular tenta se constituir rompendo os padrões sociais, se esquivando e se afirmando pela negação a essa ordem; por outro lado, ao mesmo, pode aceitar essa determinação sociopolítica que acaba por difundir o status quo social e político de cada época. Ginzburg atenta para a relação dialógica entre as culturas populares e eruditas. Em um período marcado pela reação da Igreja Católica ao movimento da Reforma Protestante na Idade Média, temos uma cultura erudita que acredita ser a única fonte de cultura e de saber, em grande medida alicerçada pela cultura religiosa católica, rechaçando todas as demais formas de pensamento e de visão de mundo. Por outro lado, destaca Hermann (2011), temos uma cultura popular que se alimenta dessa primeira e da cultura oral de seu tempo, evidenciada ora nas formas de interpretação da cultura religiosa daquele momento e na fala do personagem central do livro O queijo e os vermes, ora nas maneiras de se entender e explicar o mundo em que viviam, ainda muito ancorado no paganismo (HERMANN, 2011; PACHECO, 2011). Dessa forma, fica clara a noção da circularidade entre as culturas populares e eruditas. Partindo da cultura popular, podemos dizer que esta se apresenta nos discursos, práticas e ações submetidas à dominação e, ao mesmo tempo, nos discursos, práticas e ações que ignoram os padrões de dominação estabelecidos ou utilizam-se de algum subterfúgio para não se subjugar (Idem; CANCLINI, 2001). A relação que se estabelecesse é de passividade, negociação e conflito. Entretanto, se por um lado, a dicotomia entre cultura popular e cultura erudita e estabelece e se afirma como maneira de abordar os estudos culturais, por outro lado a circularidade entre ambas demonstra as variações entre uma e outra, ao mesmo tempo em que revela suas dependências. Tal como afirma outro historiador da Nova História Cultural, Roger Chartier: 16

Somos levados de volta à nossa pergunta inicial: como articular (e não só utilizar de forma alternada) esses dois modelos de inteligibilidade da cultura popular que são, de um lado, a descrição dos mecanismos que levam os dominados a interiorizar sua própria ilegitimidade cultural e, de outro lado, o reconhecimento das expressões pelas quais uma cultura dominada consegue organizar, numa coerência simbólica cujo princípio lhe é próprio, as experiências da sua condição? A resposta não é fácil e hesita entre duas alternativas: operar uma triagem entre as práticas mais submetidas à dominação e aquelas que usam de astúcia com ela ou a ignoram; ou, então, considerar que cada prática ou discurso "popular" pode ser objeto de duas análises que mostrem, alternadamente, sua autonomia e sua heteronomia. O caminho é estreito, difícil, instável, mas acredito que seja, hoje em dia, o único possível (CHARTIER, 1995:192). Vasconcelos (2003), em artigo sobre o carnaval rural, percebe que, na contemporaneidade, “as grandes festas populares são organizadas e produzidas também por um jogo político-social multifacetado”. Elas, ao mesmo tempo, unificam e separam, recortam e fazem convergir, aproximam e limitam os sujeitos sociais. Objetiva e subjetiva as ações diante à discutida dicotomia de subordinação e resistência das manifestações populares simbólicas e identitárias. Um campo social complexo e culturalmente híbrido onde se efetiva “a circularidade” percebida em Bakhtin e Ginzburg (Idem). Nesse campo, a cultura popular tradicional, a erudita e a massiva não têm um estatuto único, mas participam de uma mesma esfera simbólica, fazendo com que aquilo que se apresenta como produção dos dominados seja reapropriado pelos dominantes reciprocamente, numa multiplicidade de criações e representações interagidas e mediadas conforme o pensamento de Canclini (2001) sobre Culturas Híbridas (VASCONCELOS, 2003). Ainda, segundo o autor, a subordinação da festa à égide política é observada por Canclini num aspecto que limita seus aspectos de liberdade, reduzindo-a ao âmbito da existência cotidiana que reproduz no seu desenvolvimento as contradições da sociedade. Desse modo, o comportamento liberto, a subversão e a livre expressão se manifestariam de forma fragmentada, havendo a manutenção das desigualdades sociais e as intervenções políticas (Idem). Para apreender e analisar esse fragmento da história dos segmentos populares urbanos e suas práticas culturais, mostrando outro lado da história, tomo 17

como premissa a existência de relações de circularidade entre as diversas formas de expressão cultural presentes em uma sociedade. Assim, pretendo comparar a trajetória de Paulo da Portela e Candeia, inserindo ambos em seus contextos históricos, respectivamente as primeiras três décadas do século XX, e os anos de 1960 até 1980. Vou fazer um balanço das transformações vividas nas escolas de samba do Rio de Janeiro e mostrar como, ao longo do tempo, se forjaram como representação máxima dos festejos carnavalescos da cidade. Acredito que analisar as escolas de samba ajuda a compreender o movimento da cultura popular na história recente da cidade, e como essa se articulou com sociedade e a política. A parcela mais pobre da população carioca operou, através de elementos bastante criativos, sua integração na cidade e, em um movimento triplo em que tradição, incorporação e renovação marcaram sua inscrição no Brasil moderno. Como já alertado anteriormente, este texto procurará fugir dos determinismos que tendem a desvendar este processo de forma romântica ou idealizada, ou mesmo daqueles que desprezam a sociedade civil como importante arena de negociação para nossa história social. Nesse sentido, as categorias de contradição e conflito são centrais à minha análise. Seguindo de perto a sugestão de Bakhtin (1999;1997), Ginzburg (1998) e, muito mais recentemente, Nestor Canclini (2004), considero, portanto, que as culturas – popular e hegemônica – não se encontram isoladas, mas estabelecem trocas entre si que não podem ser explicadas por uma mera relação de oposição dominante / hegemônica x popular / resistente. Novamente nas palavras de Chartier (1995), este movimento desembocou em duas maneiras de perceber o estudo da cultura: O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é privada (CHARTIER: 1995). 18

O caminho mais salutar é aquele que abarca as relações de poder que estão em jogo, considerando as relações culturais como práticas descentradas e multideterminadas pelas relações políticas e sociais, em que conflitos e assimetrias são regulados pelos compromissos entre os atores colocados em posições evidentemente desiguais (CANCLINI, 2004). Tentarei mostrar que se o samba chegou ao patamar de símbolo da nacionalidade não foi só por uma opção do poder público ou mesmo de intelectuais de classe média e outros mediadores, mas também resultado de uma ação bastante intensa empreendida por nosso povo pobre, em maioria sua parcela negra. Negociando com o restante da cidade, essa parcela da população carioca ocupou brechas a partir das quais desenvolveu novos espaços de atuação social, remodelando as relações entre política, classe e cultura.

Procedimentos da pesquisa

Para levar adiante esta investigação sobre a transformação do samba, expressão cultural da população negra e de baixa renda carioca, não apenas em forma musical admitida na cidade moderna, mas em símbolo da identidade nacional brasileira, vou examinar como os personagens se movem em seu contexto. Vou centrar minha atenção em dois momentos: década de 30 e de 70, levando em conta as movimentações de três aspectos, a saber, a cultura negra, o samba e as escolas de samba. Pretendo juntar aqui material para reconstruir a trajetória de dois personagens fundamentais na trama das escolas de samba bem como refazer o ambiente social que os cercava. Quero mostrar como a política e a cultura se cruzam e fazer ver como a ação cultural do povo negro do Rio de Janeiro realiza uma modificação do lugar simbólico destes na cidade. Observando mais de perto duas lideranças centrais, tal como a vida e a coletividade em que circulavam, a intenção é colaborar para o desvendamento do lugar da cultura popular em nossa história recente. Para isso recorri a artigos de época, fotografias, músicas, literatura, textos acadêmicos e em especial aos biógrafos da cultura popular e do samba, cujas contribuições procuro dividir com o meu leitor sempre que possível. Dessa forma, dois tipos de compreensão sobre o samba serão aqui combinados: aquela oriunda de espaço acadêmico, e outra, realizada pelos próprios sambistas, por cronistas e 19

jornalistas, todos eles pesquisadores que vou considerar, genericamente, de nenhuma forma depreciando suas contribuições, como "não acadêmicos". São os biógrafos da cultura popular. Em especial foram muito utilizadas nesta tese as informações do jornalista Sérgio Cabral, em suas inúmeras pesquisas e reportagens sobre as escolas de samba cariocas, ainda também Nei Lopes, Roberto Moura, Haroldo Costa, Marília Trindade Silva, Lygia dos Santos Maciel, entre outros, são pesquisadores e cronistas fundamentais para a compreensão do universo das escolas de samba do Rio de Janeiro. Eles têm um duplo papel nesta análise: são fonte valiosa e rica de dados e documentos e são também personagens do ambiente mais abrangente do samba. Além de reconstruírem o movimento de diversos personagens do mundo do samba, emitem uma visão interna desse mundo, por meio da opinião e do comentário, como que protegendo do esquecimento determinados processos. Tentei reunir até aqui os elementos que podem ajudar a demarcar a leitura desta tese. As escolas de samba são um fenômeno decorrente da festa carnavalesca. Entretanto, minha hipótese, na primeira parte deste estudo, é que sua elevação ao patamar de símbolo maior do carnaval carioca se da na medida em que as escolas acompanham o processo de normatização da festa. Ao mesmo tempo em que normatiza permite também a tão sonhada integração. Os sambistas conseguem mediar sua integração cultural na cidade estabelecendo um pacto com imprensa e prefeitura. Demonstrando afinidade com o movimento político e cultural estabelecido no Brasil no pós 1930. Como mostrarei no primeiro capítulo, as relações construídas ao redor da cultura popular foram ajudando a empurrar a substância segregadora da Belle Epoque nas duas primeiras décadas do século passado. Se o governo e parte da elite teimavam em reformular a cidade excluindo o popular do processo, através da manifestação artística e do esporte foram se forjando os elementos de mediação com esse projeto. Como será exposto no capítulo a seguir, a virada do século XIX para o século XX no Brasil foi marcada por muitas mudanças, tanto no que diz respeito à economia e às instituições políticas, quanto em relação ao cotidiano da população. Em 1888, foi decretada a abolição da escravidão; um ano depois foi proclamada a República. Vivia-se um tempo em que as invenções se multiplicavam, alterando substancialmente a vida do cidadão comum. O automóvel, o telefone, a lâmpada 20

elétrica, o gramofone, o cinematógrafo e o avião foram algumas das invenções que deslumbraram o homem da Belle Époque e que trouxeram um ar de novidade para o século que se iniciava (SEVCENKO, 1992; NEDELL, 1994). O acesso de uma parcela da população a todas essas invenções sugeriam um clima de progresso e civilização e, como boa parte delas se difundiram a partir da Europa Ocidental, esta se tornou o modelo de civilização a seguir. A busca pela ciência, pela razão seria a marca do positivismo que administraria a cidade (Idem). O progresso, entretanto, não se difundiu no Brasil como um todo; praticamente se concentrou na cidade do Rio de Janeiro, então capital política, econômica e cultural do país. O novo regime, implantado em 1889, tenta transformar a cidade numa "Paris tropical", de modo a fazê-la, tanto aos olhos nacionais, quanto estrangeiros, um cartão postal da República, como um símbolo de seu poder e crescimento. A República recém-proclamada precisava mostrar que inaugurara de fato um tempo novo. Assim, foi tomando corpo a ideia de transformar o Rio de Janeiro num cenário capaz de mostrar o que a nova forma de governo efetivamente trouxera de progresso para o país. Acelerar-se-ia a realização de um plano para reformar a cidade no seu traçado urbanístico, na distribuição dos habitantes e nos costumes da população (SEVCENKO, 1992; NEDELL, 1994). Assim, uma potente reforma urbana expulsou a população pobre para os morros e os subúrbios. Ali nasceram comunidades que durante muito tempo tiveram suas práticas culturais vigiadas de perto pela autoridade policial. Com medidas de combate a “vadiagem” se tentou normatizar o comportamento popular (MOURA, 1983). A “modernização capitalista” levada a cabo no Rio de Janeiro encontrava-se a todo vapor e com base no projeto iluminista, acreditava-se, sobretudo, que o domínio científico da natureza permitia o desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento. Por isso, dentro deste plano, a cidade precisaria ser refeita, tal como aos moradores deveriam ser incutidos novos hábitos e valores. O embranquecimento passou a ser ideologia de uma elite que acreditava ver na nossa herança colonial a marca do nosso atraso (SEVCENKO, 1992). Mas numa sociedade em que cada vez mais crescia o interesse pelas coisas do povo, foram ficando evidentes as fissuras do projeto de Pereira Passos. O povo 21

ainda seria descoberto e valorizado pela vanguarda modernista. No cenário musical, Pixinguinha e Villa-Lobos aparecem como o retrato das trocas culturais que não cessariam a parte a pressão positivista (VIANNA, 2002). O projeto da Belle Époque não resistira a onda integradora que varreria a República Velha nos anos de 1930. Com ele iria embora a vergonha do atraso e se procuraria nas massas a sustentação da nova hegemonia. O Estado varguista aparece como o árbitro do conflito entre povo e elite. Procura integrar a população carente ao mesmo tempo em que a tenta manter sob controle. A produção artística negra aparece articulada em um clima de trocas e descobertas com o universo da produção artística mais geral. É o cidadão comum o grande orgulho nacional, aquele que fará a pátria grande e integrada. Esse ambiente atribuiu um novo significado para o lugar do negro, e do povo, em todo o país e em especial nas duas antigas capitais, Rio de Janeiro e Salvador, cidades reconhecidamente permeadas por vasta influência africana em suas práticas culturais. A educação e a cultura aparecem como a chave do desenvolvimento e da integração nacional, só que dessa vez, esse incremento se dá de maneira articulada a cultura do povo. Para estender sua ação disciplinadora a todos os setores da sociedade, o Estado Novo precisou constituir um extraordinário aparato burocrático (VICENTE, 2006). Segundo a pesquisa de Eduardo Vicente (2006), dentro do âmbito musical, por exemplo, ele passou a controlar toda a organização dos bailes, coretos e desfiles de carnaval da cidade, atrelando as escolas ao aparelho estatal em pouco tempo. Assumiu, também, a produção e o controle dos contratos de trabalho dos artistas, bem como a arrecadação dos direitos autorais. Em relação à cultura, o Estado Novo assumiu postura ora elitista, ora mediada, “empenhando-se na ideia de elevação da nação brasileira a um patamar de civilização que a colocasse em igualdade com as nações mais desenvolvidas do mundo”. As preocupações que os intelectuais ligados ao regime demonstrarão em relação à música popular e à radiodifusão irão se relacionar, em grande medida, a esse objetivo (Idem). Diferente da República Velha, os intelectuais dispostos a organizar a cultura no Estado Novo não exigem uma ruptura total com os padrões de comportamento. O clima é de mediação, algo pode e algo não, não pode principalmente o que 22

representa objeção à ditadura Vargas. O governo quer governar com o consenso das massas e dessa forma realiza “um duplo movimento de integração e regulação da vida popular em termos ainda inéditos no país. O trabalhismo é a marca da política que atrela como nunca visto a vida da população à direção do Estado varguista” (VICENTE, 2006: 6). Dentro deste cenário nascem as escolas de samba. Após o sucesso do ritmo em toda a cidade, um inédito pacto entre populares, estado e imprensa impulsiona o crescimento das agremiações carnavalescas. Com o aumento da popularidade do desfile modifica-se também o lugar simbólico da cultura popular na cidade do Rio de Janeiro. No decorrer de algumas décadas, as escolas de samba respondem pela festa, por seu estilo e por seu formato. Aos desfiles vão sendo submetidas notas e normas, temas específicos em exaltação à política vigente e a ordem. O improviso e a transgressão vão perdendo espaço para a normatização e o espetáculo. Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela é um personagem central nesse processo. Configurou-se como uma das lideranças mais destacadas do movimento de afirmação das escolas de samba na cidade. A grande pressão das pessoas articuladas as escolas de samba é por integração na cidade. Isto é, o discurso dominante por parte das escolas é o de que o negro é igual ao branco e logo merece as mesmas oportunidades, é portador de cultura rica e acolhedora só não tem oportunidades de se manifestar. Nascera ai um pacto entre populares e Estado, uma integração regulada. Para que as escolas de samba pudessem desfilar o Estado provocou adequações, como desfiles que exaltassem uma imagem de Brasil que precisava ainda se forjar e enaltecer os feitos da Revolução de 1930. Os desfiles logo tomaram formato de concurso e em algum tempo as normas foram se sobrepondo a espontaneidade inicial do espetáculo. Como principal atração da festa carnavalesca foi modificando também o carnaval. Entretanto veremos que esse processo, de organização de desfiles antecede as escolas de samba, e fora uma marca do sucesso dos antigos Ranchos Carnavalescos que garantiam seus desfiles mediando seus interesses com a policia e o Estado. Em suma, o Estado Novo perseguiu a constituição de uma "cultura nacional" capaz de unificar o país sob a égide do Estado; a elevação do nível estético da cultura popular, de modo a permitir que o país alcançasse um novo patamar de 23

"civilização"; a incorporação à cultura popular dos conteúdos ideológicos propugnados pelo Estado, bem como a eliminação de seus aspectos indesejáveis (VICENTE, 2006: 7). Minha hipótese nessa parte da tese é de que as escolas de samba estimularam o processo de integração cultural dos negros da cidade do Rio de Janeiro. Mostraram como o povo da favela carioca era capaz de realizar o maior espetáculo da festa carnavalesca. Dessa forma deram destaque ao seu grupo modificando seu lugar na cidade. Entretanto, ao preço dessa integração custa a diversificação do patrimônio das escolas de samba. O pacto clientelista estabelecido entre escolas e estado, tal como os acordos com a imprensa ocorreram como reflexo de uma disposição das escolas para se comportar de acordo com o clima político instalado. Minha escolha por, após analisar o nascimento das escolas de samba, avançar no tempo se dá na medida em que no entorno da década de 1960 começam a ocorrer modificações bastante consolidadas no formato dos desfiles que começam a produzir diversas crises nas escolas de samba e no mundo do samba em geral. Um questionamento muito grande sobre o gigantismo do espetáculo, da presença de inúmeros elementos externos às comunidades, da ingerência do patronato, do esquecimento das raízes africanas e acima de tudo o enfraquecimento das comunidades no controle da escola. No ambiente mais geral, as décadas de 1960/70 representaram um período de intensa agitação cultural e política no mundo todo. Não só transformações políticas, mas também mudanças radicais na estética e no comportamento rondaram todo o planeta. Representaram também, a reorganização do movimento negro não só no Brasil, mas também sua radicalização em várias partes do planeta, em especial nos EUA. As lutas por direitos civis tomaram formato de guerra civil naquele país, dali em diante o papel do negro na luta por seus direitos ganharia papel relevante na história daquela sociedade. No Brasil viveríamos a crise do mito da "democracia racial", de maneira diferente do modelo americano o negro brasileiro encontrará canais diversos porém articulados para expressar sua concepção de mundo e sua identidade. Se vivíamos uma ditadura militar, com os canais de participação política atrofiados, a produção 24

artística se torna uma relevante arena de embate com o regime, ou mesmo com a ordem das coisas em geral. Pela produção artística podemos perceber a vontade de um indivíduo ou grupo manifestar seus interesses. Através da produção artística podemos manifestar desejo de acumular dinheiro, vontade de modificar um governo, visões acerca do amor, entendimento sobre raça, religião e tantos outros temas que podem aparecer, inclusive, combinados. O que vale aqui é que quando os mecanismos de participação política formal se encontram limitados e a coerção se coloca acima do consenso tem sido a produção artística campo fundamental de batalha por concepções de mundo em conflito. A ditadura militar no Brasil é marcada por embates duríssimos entre censura e claque artística. Embora existissem artistas "colaboradores" e "favorecidos", tinham aqueles que representavam a oposição ao estado vigente. São músicos, cineastas, teatrólogos, entre outros que declaravam embate aberto ao Estado autoritário. Diversas pesquisas acadêmicas já atestaram as relações entre o campo da produção cultural e a política nos anos autoritários. Entretanto o que me leva a retornar a este tema é outra preocupação. Tal como assinalado anteriormente neste texto, os anos de 1970 representam, entre outras coisas, a reorganização do movimento negro no Brasil, é em 1975 que se dará a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Em compasso com essas mudanças viveríamos também um período de reorganização da identidade negra em nosso país. Um período onde o embate entre a "democracia racial" mantida pela ditadura, onde o negro estaria inserido no elemento ufanista, onde o samba, ritmo das favelas e periferias cariocas, ainda era símbolo da cultura nacional e representação importante da contribuição da cultura negra na formação da identidade nacional. Como as escolas de samba vão aos poucos se tornando símbolo maior da festa carnavalesca do Rio de Janeiro, já nos anos de 1960, as escolas passam por uma reformulação bastante complexa, é a chamada invasão da Escola de Belas- Artes. Ai é o ponto onde as escolas deixam de ser patrimônio da sua comunidade e passam a se articular com um grupo social cada vez mais amplo. O espetáculo cresce em proporção enorme. Os carros aumentam, as fantasias e o enredo passam a ser orientados por profissionais oriundos da Escola de Belas-Artes. As 25

escolas mais tradicionais rejeitam por um tempo essa nova profissão: o carnavalesco (pelo menos tal qual conhecemos hoje). As fantasias das escolas passaram a ser exibidas nos bailes do Teatro Municipal, milhares de turistas do Brasil e do mundo passam a fazer parte da plateia da festa. Artistas, modelos, jogadores de futebol, começam a ocupar os lugares de destaque no desfile. A marcha de integração iniciada nos anos de 1930 fora levando a uma modificação da festa que precisava atender a um campo de interesses cada vez maior. Toda esse espetáculo, fez com que os desfiles, cada vez mais acirrados, levassem as escolas a gastar cada vez mais, e ai entra o papel do mecenato, a figura do banqueiro de bicho. Para alguns sambistas ai se radicalizaria a "descaracterização" das escolas de samba. Era como se tivessem sido dirigidas para algo muito diferente dos propósitos de sua criação, essa seria a visão da oposição, dos sambistas indignados com os rumos das escolas. Um desses sambistas mais "indignados" era Antônio Candeia Filho, no ano de 1975 este promove um enorme "racha" na Portela e no mundo do samba fundando uma nova Escola, a Quilombo. Candeia dizia ali estar protegendo a cultura negra e o samba carioca, tal quais os valores africanos que ele considerava fundamentais para o negro compreender sua própria identidade. Como já dito são tempos de reformulação e modificação na pauta dos movimentos negros. De um lado cresce o assistencialismo na aliança entre escolas e bicheiros, por outro lado cresce também o engajamento político via movimento negro e/ou na luta contra a ditadura. Nesse momento viveremos também a formação de novos movimentos sociais urbanos, começando a aparecer timidamente também nas favelas e nas periferias, como as associações de moradores. A questão do negro que vinha sendo pautada historicamente no campo da "integração", pauta recorrente na história das escolas de samba do Rio de Janeiro, que como já disse possuíam tremenda influência política e cultural na população negra carioca daquele tempo. Com a reformulação da pauta, em especial após a fundação do MNU, o discurso do novo movimento negro passa a sinalizar "reparação". Isto é, a integração passaria, inclusive com uma reparação ao passado de exploração sofrido pelo escravizado africano em nosso país. 26

Não teremos uma substituição de uma identidade por outra, mas teremos dai em diante uma dualização de projetos, de um lado a identidade negra brasileira forjada ao longo da história, a do negro incorporado contra a do negro segregado e espoliado. Qual é a ferramenta da nova identidade? Para o novo movimento negro é a educação. O negro tem que saber sua história e a força da sua cultura para compreender o seu lugar na sociedade brasileira. Esse seria o discurso de Candeia, embora sua articulação com o movimento negro seja um entre outros motivos da sua separação da Portela. Quero demonstrar no decorrer desta pesquisa como essa crise se articulou no mundo das escolas de samba e da produção cultural popular em geral, chegando a se relacionar com um rompimento relevante na história das escolas de Samba, do carnaval carioca e mesmo da identidade negra no Rio de Janeiro de nosso tempo. A fundação da Quilombo, como dito em 1975. Esse movimento estaria em sintonia com o questionamento do papel das escolas de samba de preservarem a cultura negra. A escola estaria tomada, na visão do grupo de Candeia, por dirigentes externos (patronos), por carnavalescos externos e articulada para agradar imprensa, jurados e turistas. O sambista teria perdido a força nos caminhos do carnaval das escolas. Chamo o grupo de Candeia de "africano", pois ao querer despertar a libertação do negro no Brasil se remetem a África em seu discurso. Isso garantiria ao grupo uma identidade secular, uma civilização, fundamental para reafirmar seu papel na construção do Brasil e toda a penúria a qual foram submetidos. Entretanto, como já dito a reorganização do movimento negro no Brasil terá características peculiares. Ela será forjada entre o discurso "africano" e o discurso "americano", este último muito influenciado pelo movimento negro estadunidense. É claro que não encontramos aqui a radicalização política que este atingiu nos EUA, mas ele será bastante influente no campo da produção artística e acima de tudo em forjar uma identidade que poderíamos chamar de: black is beautiful . Esse elemento passa a valorizar a autoestima negra, incentivando os negros a valorizarem, entre outros elementos, seu modo de falar, de se vestir, e ainda, suas diferenças estéticas com pessoas de outra cor. Lembre que no processo analisado na década de 1930, Paulo da Portela, pregava que os sambistas se vestissem de terno para criar uma imagem, que poderia ser inclusive compartilhada por eles como positiva. 27

África, em meio a várias lutas de libertação nacional, e EUA articulam a formação de novas identidades negras. No grupo que chamo aqui de "americano" perceberemos a forte presença do funk americano na música brasileira, as vestimentas, as gírias, os comportamentos, cortes de cabelo e etc. Era como se ser negro fosse de fato diferente, na ginga, na música, no jeito de jogar futebol e isso fosse valorizado. Os cantores Tim Maia, Simonal, Jorge Ben, os bailes do Dj Big Boy que lotavam o Canecão de pessoas, de todas as cores, para ouvir música negra, os chamados bailes black. E é claro que esse dois universos se cruzam e interagem. A sua separação aqui, ademais no Brasil, é utilizada apenas como um modelo explicativo com o intuito de explicar como a influência africana e americana chegaram de forma articulada ao país e a cidade do Rio de Janeiro. Mas o mais importante é que nem as escolas de samba e o carnaval, e nem a cultura e a identidade negra seriam a mesma no Rio de Janeiro e no restante do Brasil. Por isso quero demonstrar em minha pesquisa, tendo em vista a importância da produção artística no período autoritário, como esse movimento de transformação cultural se articulou com política e arte ajudando a reformular todo o sentido de ser negro nas grandes cidades do Brasil. Ainda que o "novo" não tenha derrubado o "velho", se modificaram concretamente as representações culturais associadas ao universo da identidade negra no Rio de Janeiro. Em todo esse ambiente de questionamento, as escolas de samba não passariam despercebidas.

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1. O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO SAMBA COMO SÍMBOLO DA CULTURA NEGRA E IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL: O NASCIMENTO DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO

1.1 A formatação espacial de outra cidade: Subúrbios e Favelas

Se for verdadeiro o esforço das elites por reinventar o país e fazer de sua capital caixa de ressonância da imagem de um Brasil “civilizado”, pode-se dizer que outra cidade teimava em se manifestar por fora dos padrões impostos verticalmente pelo poder público e suas elites. Com suas trocas culturais, práticas híbridas e intensas de manifestações sociais, este mundo extraoficial favorece o surgimento de uma cidade muito mais complexa que a dos croquis dos engenheiros e tecnocratas. Serão duas cidades, uma oriunda da reforma, da regeneração, da norma urbanística, racional e técnica, e outra, o labirinto de malocas, do desemprego compulsório e livre de todas as leis (SEVCENKO, 1992). Serão duas, mas nem por isso estarão desconectadas. Em seu estudo sobre a incorporação da cultura popular na cidade do Rio de Janeiro Souza Reis cita uma importante passagem do poeta Olavo Bilac em que é retratada a confusão entre os domínios territoriais das “duas cidades”. O trecho é de 1906:

“'selvagem' presença negra na recém-inaugurada Avenida Central, principal ícone da Regeneração: [...] Num dos últimos domingos vi passar pela Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha: e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, contra a fachada rica dos prédios altos, contra as carruagens e carros que desfilavam, o encontro do velho veículo [...] me deu a impressão de um monstruoso anacronismo: era a ressurreição da barbaria — era uma idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da idade civilizada [...] Ainda se a orgia desbragada se confinasse ao arraial da Penha! Mas não! acabada a festa, a multidão transborda como uma enxurrada vitoriosa para o centro da urbs [...] (BILAC, 1906 In SOUZA REIS, 2003)

Permanecia o povo a ocupar a cidade maquiada para o progresso. A passagem extraída do texto de Bilac traduz bem não só o desejo de distanciamento, mas também a condenação explícita à produção cultural das camadas populares. 29

Formatava-se o “Monstruoso Anacronismo”. Isto é, o monstro que parecia ter acabado com a reforma urbanística, teimava em sobreviver. Antes concentrada no centro da cidade, a miséria seria deslocada para subúrbios, favelas e bairros populares, e por lá deveria ficar confinada, escondida e quieta. O centro remodelado era tablado apenas para as camadas mais abastadas do Rio de Janeiro. A ideia de subúrbio como uma paragem “de fora” da cidade é bem caracterizada pelo geógrafo Nelson Fernandes:

“Después de estudiar la evolución urbana de Rio de Janeiro y de la palabra suburbio, y constatar su aplicación para los barrios citados, he llegado a la conclusión de que tal uso revela, literalmente, la intención de las elites de colocar a las clases populares fuera de la ciudad, de negarles el derecho a la misma, la ciudadanía y el camino a la escena culta, civilizada y politizada de Rio de Janeiro. Tanto es así, que una de las imágenes más representativas del suburbio es la de ser un sitio sin cultura y sin historia” (FERNANDES: 1998).

1.2 Elite civilizada e Plebe atrasada: a barbárie em oposição à civilização

Nasciam os subúrbios e as favelas, no epíteto de Lima Barreto, o refúgio dos infelizes, terra de gente que procura um futuro fugido. Gente que: “perde o emprego, as fortunas [...] todos que perderam sua situação normal vão se alinhar lá1”. Além dos negros, a crise econômica2da primeira república criou “novos pobres” na cidade. Nas regiões periféricas iriam conviver desde gente muito pobre, até pequenos comerciantes – alguns europeus, em maioria de origem portuguesa –, funcionários públicos de menor escalão, etc. E evidentemente, tal como em nossos dias, uma parcela mais carente tende a se localizar nos morros, lugares mais baratos e próximos ao seu local de trabalho, o que normalmente representaria menos gastos com moradia e transporte.

______1Extraído do romance de Lima Barreto Clara dos Anjos. Citado em Fernandes (1998).

2Uma inflação galopante arrasava a capacidade de consumo da população. Junto a ela vinha a crise do emprego regular, distribuição de renda e moradia. 30

Os subúrbios, além de serem áreas bastante precárias, eram relativamente desarticulados da cidade. Antes da ampliação do sistema de transporte, Roberto Moura (1983), conta que a chegada a lugares como a Penha, por exemplo, era bastante difícil. Eram caminhos atolados de terra batida em uma travessia que se fazia muitas vezes em charrete de burro ou a cavalo. A reforma urbanística é acompanhada de um desenvolvimento do sistema de transporte ferroviário, em especial o que liga as áreas suburbanas ao centro da cidade. Já desde o final do século XIX iniciava-se a construção de linhas de trens que ligavam a atual região da Leopoldina a bairros como Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha, Brás de Pina, Cordovil, Parada de Lucas e Vigário Geral. Logo Ramos e Bonsucesso tornaram-se importantes bairros devido à sua concentração populacional e comercial. Alguns anos depois, já estavam também ligados à linha férrea Mangueira, Deodoro, Vieira Fazenda, Del Castilho, Magno e Barros Filho. A ampliação da capacidade de transporte facilitaria enormemente a mobilidade de parcela da população para essas regiões (MOURA, 1983). Outro caso de ocupação habitacional eram as vilas operárias, pois o decreto de 1882 dava liberações tributárias às empresas que construíssem moradias para seus funcionários. Já na época Passos, houve a construção da Brasil Industrial em Bangu, Luz Steárica, em São Cristóvão, Fábrica Confiança em Vila Isabel, que abrigavam algumas centenas de famílias. Essas moradias, concedidas a uma mínima parcela dos assalariados, representavam pequeníssima parte das habitações da cidade. A maioria da população mais pobre não era atendida por este recurso. Mesmo assim estas comunidades viraram importantes referências em suas regiões (Idem; FERNANDES: 1998). O povo se reordenava na cidade, mas não se desarticulava. Pelo contrário, reformulava e mantinha seus locais de sociabilidade, erguendo importantes canais de comunicação, onde a cultura e a religião formatavam-se como dialeto comum privilegiado. São eles os largos próximos às estações de trens nos subúrbios, as praças da Cidade Nova e os locais de aglutinação nas favelas, como o Buraco Quente na Mangueira. Também alguns bairros, que tomavam o incrível formato de praça, como a Lapa, tornaram-se importante área de intercâmbio da cultura popular com outras parcelas da sociedade. Dessa forma, uma “outra” cidade ia se alimentando à margem da cidade dos boulevards, dos corsos, clubs, da moda chic da burguesia, do five o’clock tea, 31

salões e cassinos. Esta “outra” cidade logo não poderia ser mais negligenciada pelos civilizadores dos primeiros anos republicanos, até porque já fazia parte da história carioca. Fazia-se percebida no elogio ou na penitência do atraso (NEEDELL: 1993). Minha preocupação na primeira parte deste capítulo, além de descrever um pouco do ideário político-social das elites republicanas, é demonstrar como este processo resultou em uma reorganização espacial da cidade, que teve como determinante o deslocamento espacial dos mais pobres. No decorrer do mesmo, irei explorar como esse deslocamento reforçou os laços comunitários nas periferias, onde cultura e religião foram elementos determinantes para essa unidade. Entretanto, é mister afirmar que este movimento se deu sempre articulado com os projetos antagônicos, que ocorriam na sociedade da época, às políticas segregacionistas patrocinadas pelo Estado. Se o governo decidia o que era “civilizado”. Uma parcela da sociedade operou por uma lógica contrária, onde prevaleceu a troca e a integração cultural. Dessa forma, por mais que as parcelas periféricas da cidade tivessem seus locais de encontro e trocas, como as festas – a Pequena África da Cidade Nova, a celebração do carnaval - a relação destas comunidades com o restante da cidade, em especial nas primeiras décadas republicanas, era marcada por forte preconceito e exclusão. Como veremos mais adiante, a própria penetração cultural se dá mais na incorporação de elementos das culturas das classes populares do que na incorporação das comunidades propriamente ditas. Isto é, no que se refere à cidadania e à recepção política da maioria da população na esfera pública, o processo é deficiente3. O caso do morro da Providência, tornado morro da Favella, é emblemático. Ali se formou um lugar de gente muito pobre, em sua maioria negra, a que os jornais se referiam como vagabundos e criminosos (CABRAL, 1996; MOURA, 1983). Era uma gente que a polícia classificava como “vadia e hostilizava. Honra,

______3Não custa lembrar que a ocupação suburbana deu-se não só por negros, ou mesmo gente muito pobre, mas também por diversos imigrantes, desde comerciantes portugueses até operários de outras regiões europeias, como foi o caso de Mangueira e Quinta do Caju. Assim, nem as favelas, nem os subúrbios, nem a região da Cidade Nova foram locais de concentração somente de negros e gente muito pobre. Se a cultura negra apareceu, misturou-se e deixou traços determinantes no local, essa já é a história que nos interessa explorar. 32

hombridade e navalha eram, supostamente, os “valores” em voga ali. A representação da favela daqueles tempos pode ser bem ilustrada com uma passagem de João do Rio sobre o morro de Santo Antônio:

“Eu tinha do morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta. [...] O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade. [...] Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de outras casinhas estreitas, feitas de tábua de caixão, com cercados indicando quintais. A descida tornava-se difícil [...] quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. As casas não se alugam, vendem-se. [...] o preço de uma casa regula de 40 a 70 mil réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, fôlhas-de-flandres, taquaras. [...] Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida da estrada do arraial de Canudos ou a funambulesca ideia de um vasto galinheiro multiforte” (Rio, 1999: 54-55 Grifos Meus).

Outro mundo nas palavras do cronista. A ideia de ausência da civilização, de práticas estranhas à “nova” sociedade, mais davam a impressão da estrada do arraial de Canudos. Isto é, de uma sociedade com práticas sociais "retrógradas" em contraste com o novo padrão social em discussão pela tecnocracia palaciana. Nem tanto, nem tão longe, e nem tampouco pouco incluída, a favela vai formando códigos próprios, embora não muito distantes daqueles que caracterizavam a presença negra nos subúrbios. O certo é que o morro condensava um mundo estupidamente precário e, aos poucos, as autoridades vão mudando o foco de sua atenção à feiura, ao atraso, à doença, à violência e à balbúrdia dos cortiços para as favelas, onde, a tudo isso se somava as habitações sem qualquer estrutura e, a seu ver, repleta de vadios. Por outro lado, ali a repressão seria mais branda do que no centro urbano, o que de alguma forma facilitaria a concentração de atividades culturais e religiosas (FENERICK, 2002). Suas tradições, ali, não seriam apagadas, mas se renovariam mantendo um elo bastante forte com seus elementos ancestrais, mais do que em qualquer outro espaço social. Correspondendo ao que diz a literatura, é intensa, na favela, a dialética entre o novo e a tradição. Segundo Giddens:

“O que é a tradição? “A tradição, digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas. [...] Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada 33

influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente”. (1997: 80).

Enquanto as elites “inventavam” uma nova tradição de inspiração europeia, as classes populares refaziam as suas, em busca da acomodação no espaço geográfico, político e cultural da cidade. Forjam fortes laços de identidade, em especial na produção artística, na festa e na religião. Suas comunidades compõem um espaço no qual o tempo, a concepção de mundo e de sobrevivência tomam um sentido diferente do discurso vinculado ao ideário político das elites da república velha. Aqui, a tradição também se vincula ao futuro. Mas este não é concebido como algo distante e separado, mas como uma espécie de linha contínua que envolve o passado e o presente. É a tradição que persiste, remodelada e reinventada a cada geração. Não há um corte profundo, ruptura ou descontinuidade absoluta entre o ontem, hoje e o amanhã (GUIDDENS, 1997). Não se pode dizer que sejam mundos congelados, dos quais as trocas desapareceram. Ao contrário, são elas que remodelam ambos os espaços: o morro e o subúrbio vão mudar como a sociedade em geral também havia mudado. Se a capital, na sua relação com o “outro”, escolhe o caminho da repressão, o povo, ao promover estratégias de resistência, concebe mecanismos de inclusão e negociação. Neste movimento, suas próprias tradições se renovam dialeticamente, produzindo novas sínteses que irão conformar os diversos segmentos sociais. As classes populares não deixam de perceber na modernidade alguma chance de inclusão e ascensão social, tal como aponta Cid em pesquisa sobre os grupos capoeiras da época:

“No Rio de Janeiro os redutos negros significavam, conforme analisamos, um entrave para a moderna metrópole que a capital ansiava significar para o país. Dá-se início então a uma espetacular repressão a estes redutos. Em meio a repressão, os elementos oriundos deste pedaço carioca africanizado procuram de variadas formas confundir-se e não separar-se, [...] colocando- se como atores nas negociações pela cidade” (CID, 2004: 69)

Nesse contingente das classes populares, encontra-se uma enorme quantidade de ex-escravos do Nordeste que também vieram para o Rio de Janeiro em busca de maiores oportunidades. Localizaram-se sobretudo, nas vizinhanças da Pedra da Prainha, depois chamada de Pedra do Sal. Com a reforma urbana de Pereira Passos, se concentraram na região da Cidade Nova e em favelas 34

adjacentes4. Foi no Rossio Pequeno que capoeiras, malandros, operários, músicos, compositores, passistas e gente do candomblé se encontravam para se fazer comunidade. Era a Pequena África carioca tomando porte e expressão entre os seus5. Se ainda não se sentiam incorporadas nas modernas ideologias positivistas da jovem República, muitas pessoas encontraram na raça, na religião e na cultura importantes focos de solidariedade, demarcando uma gama de interesses comuns que exigem, em boa parte, colaboração estreita entre os diversos grupos. Se a modernidade tentava desagregar, as celebrações das classes populares agregavam, seja por meio de rituais festivos e religiosos, seja em suas atividades lúdicas (MOURA, 1983). Quando a repressão apertava no asfalto, as celebrações corriam para esses espaços. Daí surge a ideia de que o samba vem do morro. Diz João da Baiana:

"E esse negócio de dizer que o samba nasceu no morro também não é realidade. O samba nasceu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos para os morros fazer samba. Não havia essas favelas todas. Existiam a favela dos meus amores e o morro de São Carlos, mais conhecido por Chácara do Céu. Nós sambávamos nesses dois morros"6.

Como o batuque, as atividades de candomblé e outros rituais necessitavam de autorização policial. Em vista disso, é no morro, região menos suscetível à repressão, que o samba vai se aprimorar. Parece claro que com a repressão às manifestações das classes populares no centro urbano, a tendência é que elas se concentrem nas regiões periféricas, em especial no morro, para onde se dirigem atenções repressivas menos ativas. Ainda

______4A ocupação de morros já podia ser notada na cidade nas últimas décadas do século XIX. Em especial gente que participou da campanha de Canudos ocupou o antigo morro da Providência, depois morro da Favella e o Morro de Santo Antônio. No morro da Favella percebeu-se também a formação de habitações exploradas pelo dono do cortiço Cabeça de Porco. Outras ocupações, que depois receberiam a alcunha de favela, já podiam ser notadas na cidade, antes mesmo das citadas, era o caso da Quinta do Caju, Mangueira e Serra Morena. Sobre as favelas no Rio de Janeiro ver Valladares (2000).

5Interessante ressaltar que nesta região havia a presença de vários imigrantes europeus, operários da nascente indústria e pequenos comerciantes, estes estabeleceram interessante relação, tanto de aproximação quanto de conflito, para com o povo negro que ali estava e chegava. Para mais ver Moura (1995).

6João da Baiana, depoimento ao MIS. Série Depoimentos. 35

assim, é importante ressaltar que a repressão –mesmo essa, menos ativa – tem papel relevante para o fortalecimento de algumas áreas de concentração de atividade cultural e religiosa. O próprio Cartola mostra esse quadro já na chegada dos anos de 1920:

"Eu – raramente– descia o morro pra pintar no Estácio. Lá encontrava gente legal como o Ismael Silva, o Brancura, o Baiaco, tudo gente fina. Eles foram os primeiros a elogiar meu samba primeiro, um negócio assim, meio pé- quebrado, meio sem graça, mas muito prestigiado: o Chega de Demanda. Os caras me animaram tanto que aí eu saí fazendo uma porção... Bem que o pessoal do Estácio me chamava. Mas era rabo certo. A polícia fazia o nome, prendendo os frequentadores das rodas de samba do asfalto. Subir lá em cima? De cima pra baixo? Nunca"7.

É assim que Sodré (1998) empresta ao morro a ideia mítica de espaço da liberdade. Um espaço capaz de driblar os valores da cultura dominante, o que o levaria a construir a própria utopia do samba. Uma terra de transitividade, onde a inscrição no moderno toma a cara das classes populares, onde, inclusive, são consultadas algumas brechas e oportunidades dadas pela cidade oficial. Assim, ser do morro vai se firmando como uma identidade especial na cidade. O lugar da barbárie vai revelando dentro de si uma terra desconhecida e por vezes longínqua para quem lá não habitava. “Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade”, como dirá João do Rio, ser do morro ganha o estatuto de uma identidade. Em outras palavras, nos morros e nos subúrbios cariocas, as classes populares encontraram um importante foco de produção de identidade que foi forjando a vitalidade de sua cultura, sem estar necessariamente dependente da produção cultural “permitida” pela elite, nem da nascente indústria cultural e nem do círculo estabelecido de músicos e literatos de classe média. Porém, juntamente, se é verdade que não é dependente, seria um equívoco afirmar que essa produção estará desconectada do restante da cidade. Muito menos seria plausível supor que está descolada da ideia de profissionalização do artista em uma sociedade que,

______7Cartola, depoimento citado in: Silva, M. T. B. da & Oliveira Filho, A. L. - Cartola. Os tempos idos.3ª ed. RJ: Funarte, 1997. p.47. 36

conforme explica Vianna (1995), da boca para fora, parecia condenar a cultura popular, mas a aplaudia em espaços regulados de apresentação artística.

1.3 O negro e o mundo do trabalho na Primeira República

Outro ponto forte para compreender a formatação de uma cidade extraoficial é a dificuldade de inscrição, em especial dos negros, no moderno mundo do trabalho. Trabalhos precários e larga perseguição foram edificando sua presença marginal na história social da cidade. Fossem negros ou nordestinos expulsos pela seca, aos pobres eram destinadas as profissões irregulares e insalubres, agravando, especialmente nos primeiros, sua rejeição à ética da venda do trabalho e à acumulação privada. Ou seja, a expressão moderna e ocidental do trabalho não se fazia presente de forma "esclarecida" na concepção de mundo do ex-escravo. Nas palavras de Florestan Fernandes:

“A repulsão representava uma exigência e, sobretudo, um desafio ao negro para que se despojasse da natureza humana que adquirira anteriormente e adotasse os atributos psicossociais e morais do 'chefe de família', 'trabalhador assalariado', 'empresário capitalista', 'do cidadão', etc. E ainda, mesmo que este se afinasse com os novos tempos, estaria em desvantagem grave, pois não só se pressupunha que o trabalho livre expulsaria o trabalho escravo, mas, ainda, que no regime da livre iniciativa, o branco iria, fatalmente, substituir o negro como agente de trabalho." (FERNANDES, 1965: 66).

Em Florestan, a análise sociológica aponta como principal dificuldade para a incorporação do negro à sociedade de classes, a não disseminação de uma ética moderna do trabalho, bem como a pouca vontade, por parte das elites, de realizar uma política de inclusão8. O trabalhador negro não se perceberia como classe no moderno sistema. Segundo Pulici:

“Para os brancos proprietários, ao contrário dos imigrantes, os negros não

______8Para um debate mais complexo sobre o negro na obra de Florestan ver Oliveira (1981) e Coutinho (2011). 37

tinham ambição de prosperarem, nem disciplina ou responsabilidade para o trabalho. Evidentemente que a esses brancos não ocorria pensar que naquele momento, depois de toda uma vida controlada à força e desenraizada de suas origens, o negro, como diz, só desejava uma felicidade, um direito: o de não fazer nada. [...] Outras distorções de natureza semelhante revelam-se na pretensiosa dedução, por parte dos senhores brancos, de que o negro sozinho "não tinha cabeça pra nada", sem indagarem, como era de costume, o porquê desse "não ter cabeça". O que lhes faltava não era, propriamente, a continuidade da tutela dos ex- senhores, mas a experiência e o domínio das técnicas sociais e culturais do ambiente, de cujo uso se viram sempre privados, como escravos, e a cujo acesso se viam excluídos, apesar da liberdade, no meio urbano" (Pulici: 2001).

O povo negro, neste sentido, rejeitava um mundo em que, mesmo que cedesse aos novos mecanismos de regulação produtiva, esbarraria no preconceito e na desigualdade de oportunidades frente ao empregado branco. Se o processo de incorporação se deu, foi mais por força dos excluídos do que por vontade das elites, patrões e burocratas. E como veremos adiante, sua forte produção cultural, aliada à sua capacidade de negociar com o conflito e de interagir com outros segmentos da sociedade, serão elementos muito importantes nesta empreitada. Muitos ofícios lembravam as humilhações da escravidão. Mesmo assim eles se fizeram presentes, em sua maioria no mundo informal, mas também em fábricas, na estiva9 e uns poucos no funcionalismo público. Boa parcela, porém, foi procurar abrigo em formas de vida menos reguladas, eram meretrizes, malandros, larápios, bicudos etc. Roberto Moura nos ajuda a compreender estes tempos:

“A abolição revoluciona inteiramente a vida do negro. Se sua posição como escravo estava longe de se desejável, em nenhum momento o novo Estado republicano se preocupa, em nível de uma política governamental global, com as transformações que evidentemente a libertação oficial provocava na vida do grande número de negros trazidos ou nascidos aqui, que passariam a se defrontar com as peculiaridades do mercado de trabalho livre que se reformulava, privilegiando uma concepção moderna do operário ocidental. [...] Muitos ficavam à margem: prostitutas, cafetões, malandros” (MOURA, 1985: 65).

Outros iriam sobreviver como artistas, em salões, teatros de revista, circos e palcos, utilizando seu talento aprendido e compartilhado durante tempos. Profissões

______9Na região do cais do Porto, não só foram empregados muitos negros, como de lá saíram importantes associações de trabalhadores e movimentos culturais. Essa região, do Rio de Janeiro, também foi forte foco de atração de gente de todo o país. 38

se redefiniriam, formas de ganhar a vida se improvisavam ou definitivamente se inventavam, ficando a maioria dos negros submetidos à condição de “subempregados urbanos, ou assumindo as órbitas do lumpesinato carioca” (Idem: 66). As ruas também viraram um local de labor do negro. Lá se faziam pequenos trabalhos desvinculados da lógica do moderno capitalismo: eram ofícios artesanais - pedreiros, alfaiates, barbeiros, ferreiros, lustradores, pintores, lavadeiras, arrumadeiras – ou serviçais domésticos. Ensinamentos e técnicas iam sendo passados de pai para filho, mãe para filha, amigo para amigo, muitas aprendidas na época do trabalho escravo, quando o negro, por vezes, era um funcionário multitarefa nas fazendas. Uma senhora negra, Dona Carmem, nos narra a “formação profissional” de seu marido, naquela época:

“[..] ele aprendeu com os amigos do pai dele, que era meu sogro, que levava ele para a casa deles para ele aprender. Ele comprava martelo, paus, pregos, levava pra ele aprender a fazer aquelas casinhas de bonecas, e dali que eles conseguiam. Quando abriam oficinas ele aí pedia uma vaga, gostavam dele e aí ele ia aprender [...] Trabalhavam mais como biscateiros, pedreiros, meu marido nunca teve patrão. Em trabalho de obra depois que ele aprendeu, tratava obra por conta própria e botava duas ou três pessoas pra trabalhar como operário. [...] Meu marido não quis ficar na Bahia, aqui no Rio se ganhava mais dinheiro, ele abriu uma oficina e ficou trabalhando aqui, tomava móveis para fazer, e consertava camas, aumentava diminuía, empalhava cadeiras. Um lutador!” (Citado em MOURA, 1985:69)

Nesse tempo de aprendizagem, quem tinha jeito para alguma coisa ia ensinando ao outro. Com as mulheres era o mesmo, o que, a propósito, demonstra a relevância da mulher na família negra. As “tias”, vestidas de baianas em suas barracas de doces, salgados e outros tipos de guloseimas levavam para casa boa parte da renda familiar, como, aliás, foi o caso da famosa Tia Ciata, casada com um pequeno funcionário público, porém muito bem sucedida com seu comércio de doces e aluguel de roupas. Mas o Rio de Janeiro dos boulevards não poderia tolerar um centro repleto de barracas, reprodução de uma verdadeira feira africana. Fora do meio informal, a estiva foi o principal modo de ocupação do trabalhador negro. Assim, montou-se um forte sindicato, conhecido como Resistência, que alguns anos depois daria origem ao rancho Recreio das Flores. Na estiva, negros e portugueses eram rivais e o clima de disputas por vezes era levado às festas como a da Penha. 39

Com dificuldades de trabalhar no mundo formal, os negros protegiam-se entre os seus, mantendo suas tradições e histórias como disciplinas de uma escola da vida. Esse foi o mecanismo que reforçaria, em muito, os laços de identidade que, bem ou mal, demarcariam a inscrição do negro em um mundo do trabalho peculiar, vincado pela informalidade ou pela profissionalização artística. Foram assim fazendo-se uma das várias trilhas que levariam as culturas das classes populares para seu primeiro contato com uma indústria cultural nascente. A seguir, utilizo algumas fotografias da virada do século XX para ajudar a montar o desenho das configurações urbanas daquele tempo10. A Figura 1 e a Figura 2 mostram ambulantes negros espalhados pelo centro urbano.

Figura 1 – Vendedor de balaios

______10 Todas as imagens disponíveis em: . Acesso em: 13 jan.2010. Ver galeria "Rio de Janeiro Antigo / Séculos XIX e XX". 40

Figura 2 – Quitandeiras

Os ambulantes negros que para Olavo Bilac configuravam o "monstruoso anacronismo". O choque entre realidade e a cidade que queria ser fazer europeia. A Figura 3 mostra o Mercado Público no Centro do Rio.

Figura 3 – Mercado Público no Centro do Rio

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Na Figura 4 vê-se a imagem insalubre de um vendedor de carnes. A Figura 5 mostra um cortiço no Rio de Janeiro. Superlotação e insalubridade eram elementos constantes neste lugar

Figura 4 – Vendedor de carnes

Figura 5 – Cortiço

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Condenados na reforma de Pereira Passos, ilustrado na Figura 6, a população dos cortiços tende à ocupação de morros e periferias. Casebres foram destruídos para a remodelação do centro urbano. Na Figura 7, as obras de remodelamento do Centro Urbano do Rio de Janeiro.

Figura 6 – O “bota-abaixo” de Pereira Passos

Figura 7 – Obras de remodelamento do centro urbano

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Figura 8 – Vista da Avenida Central

A Figura 8 mostra a Avenida Central erguida, um marco simbólico da concepção de progresso e civilização. Na Figura 9, a Avenida Rio Branco.

Figura 9–O estilo da Avenida Rio Branco

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Figura 10 – O Passeio Público

Na Figura 10, o Passeio Público e, na Figura 11, o clima de elegância e de estilo europeu nas revistas.

Figura 11 – Fotos nas revistas de época

Fonte: O Careta 6 de abril de 1912.

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Figura 12 – A Praça Onze

Na Figura 12, a Praça Onze, um dos principais pontos de encontro dos sambistas da virada do século XX. Na Figura 13, o Morro da Conceição e, na Figura 14, o Morro da Favella.

Figura 13 – Morro da Conceição

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Figura 14 – Morro da Favella

Na Figura 15, parte do pátio da estação de Madureira em 1909. A expansão dos subúrbios tem ligação direta com o desenvolvimento do sistema ferroviário de uso doméstico.

Figura 15 – Pátio da Estação de Madureira em 1909

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1.4 Culturas Populares na cidade em mutação:entre a repressão e a glória

Na primeira parte deste capitulo analisei a produção simbólica e espacial, por parte das elites, de um Rio de Janeiro em busca de civilizar-se. Argumentei que esse projeto não toma formato uniforme. Outros espaços em uma cidade bastante viva continuaram se manifestando, mesmo que deslocados e excluídos do projeto modernizador. Se, no mundo do trabalho, as classes populares, e em especial a figura do negro, estavam em relativa desvantagem, seja pelo preconceito ou mesmo pela “dificuldade” de incorporação no sistema produtivo, é na produção artística que encontraram o canal mais rico de mediação com a cidade. E em especial a música oferecia-se como forte possibilidade de inserção das classes populares na modernidade carioca. Através de uma ainda incipiente indústria cultural e trocas constantes com outros setores da sociedade, elas ampliam seu espaço social e político no limiar da Primeira República. Nas brechas da “cultura oficial” irá se formatar um espaço de atuação no qual irá paulatinamente se profissionalizar o artista negro. É neste momento que identificamos aquilo que Sodré chama de passagem do ritual em si para uma produção cultural associada à lógica da mercantilização da arte, isto é, o samba11 deixa de falar para si e corre a cidade falando de si (SODRÉ, 1987). Enfrentando censuras, repressões policiais, suas ações irão combinar, ao mesmo tempo, acato com desacato, isto é, negociação e conflito, onde uma aparente adesão a ordem pode trazer, nas entrelinhas, o desrespeito à mesma ordem. Não se trata de compreender a produção cultural das classes populares neste período como determinantemente subordinada à produção cultural das elites. O que acontece, e aí reside a complexidade da questão, é que existe penetração de uma na outra, seja por elementos culturais – onde a cultura demonstra seu caráter híbrido – ou mesmo por estratégias de mobilidade social.

______11Neste estudo não pretendemos entrar nas polêmicas acerca do termo “samba”. Quem inventou, quando virou, no Estácio ou com a gravação de Pelo Telefone? Vale a leitura de Carlos Sandroni:Feitiço Decente. 48

Com dificuldades de incorporação no mercado de trabalho formal, o negro recoloca seus esforços na informalidade e em profissões consideradas ultrajantes como a prostituição, a malandragem do jogo e do biscate. Mas não se pode deixar de entre as formas alternativas de ocupação a atividade artística profissional. Esta última não só rendia algum dinheiro ao artista, mas também permitia que este abrisse brechas em uma sociedade feita de obstáculos rígidos e preconceituosos. Gente negra e pobre se viu relativamente incluída quando se fez pianista, ator, compositor, e etc., mesmo que essa inscrição se desse nos marcos do sincretismo e da transformação relativa das tradições “ditas” originais. Os estudos mostram que as práticas de miscigenação cultural antecedem em muito os anos republicanos, já fazendo parte dos próprios tempos coloniais. Uma história antiga, que encontra registros bastante claros desde a invenção e popularização da modinha e do lundu reside na descrição da sua viagem à Bahia, por Thomas Lindley. Em seu livro (1802), ele narra como eram as festas em Salvador naquele tempo:

“[...] em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões elegantes, concertos familiares, bailes e jogos de cartas. Durante os banquetes e depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum, e nas festas maiores apareciam guitarras e violinos, começando a cantoria. Mas pouco durava a música dos brancos, deixando lugar à sedutora dança dos negros, misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses” (Citado em:VIANNA, 1995: 37).

Mas, de certo, percebo que a virada do século XIX representa um recrudescimento do preconceito para com nossas manifestações populares, na esteirada discriminação com o passado colonial, inclusive com as relações que se estabeleciam entre a casa grande e a senzala. O início da República, até os anos de 1920, representou uma importante mudança de rumo no que respeita a interação entre os estratos sociais. Como venho dizendo, há, nesse momento, um endurecimento da elite para com seu passado e suas heranças, e para com as manifestações populares tidas como desajeitadas à nova ordem. Na tentativa de compreender este processo nada simples e que envolve o que quero entender como resposta dos excluídos do processo modernizador, vale aqui a excelente afirmação de Ginzburg no prefácio do seu Queijos e Vermes:

“Os populares não aceitam tal discriminação, investindo toda a sua energia em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal 49

veículo de coesão e de construção de uma identidade própria, especialmente num contexto que lhes exclui do reconhecimento de direitos. Inclusive, desde muito cedo, desenvolveram-se as trocas culturais, interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais elevados” (23: 1997).

Dessa forma, por mais que as elites imponham seu ideário de segregação espacial e cultural para com parcela da população, associando às culturas populares a ideia de atraso, as tradições culturais do povo, em especial as de origem africana, já eram parte constituinte da expressão do nacional. É somente no século XIX que nossas tradições barrocas, quando se foi capaz de mediar elos bastante fortes entre o público e o privado, que essa cultura de maior interação perderá força e ficará mais restrita ao universo da cultura popular. Quando mais alocada se manifestará com muita força em seus espaços então segregados. Somente quando as teorias darwinistas sociais perdem força, na metade dos anos 20, que essa tendência dominante começa a refluir. Ora pela mediação de gente externa, ora por fortalecimento das estratégias de inclusão impostas pelos populares. Tal como afirma Ginzburg (1997) a coesão do segmento popular vai se reforçando, construindo e ampliando seus elementos de solidariedade entre os seus, porém, pelo menos no Rio de Janeiro urbano, quase sempre procurando caminhos em torno da inclusão e mediação com outros segmentos sociais. Para Vianna (1995) um destes elementos seria o grande “mistério do samba”. Segundo o autor, que realiza um estudo pioneiro sobre a ascensão cultural do ritmo, o fato do samba ter se consagrado como símbolo da cultura nacional está associado a um longo processo de interação entreas chamadas cultura popular e erudita que os anos da República Velha não conseguiram romper por completo. Como já fora verificado, as trocas aconteciam com o apoio de importantes mediadores culturais. Ou seja, indivíduos que agem como mediadores, junto a existência de espaços sociais onde essas mediações são implementadas. Isso tudo, dentro de uma cultura heterogênea, onde podemos perceber, segundo Gilberto Velho (1981), “a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc.” (1981: 16). Interesses que aparecem, por vezes como potencialmente divergentes, em sociedades complexas estipulam cenários de negociação e interação com a realidade (VIANNA: 1995). 50

Entretanto, a meu ver o estudo de Vianna, apesar de sua inegável qualidade e contribuição, não acolhe por completo o processo de reconhecimento social do negro no Rio de Janeiro e suas próprias movimentações de negociação com a cidade. Percebemos que para o autor, o grande agente que levou o samba ao status nacional, são os chamados “mediadores culturais”. Alerto, que esse universo de conflitos e negociações entre segmentos sociais de baixo, médios e de cima toma contornos mais complexos. O “mistério do samba” não está só na acepção da cultura popular por parcela da elite, o grande encontro narrado em seu livro, que juntou em uma mesa pessoas como Pixinguinha, Gilberto Freyre e Villa-Lobos é a simbologia privilegiada da obra que coloca esses “mediadores” no plano determinante para o triunfar do samba. A pergunta que parece nos caber aqui é por que um ritmo produzido pela parcela mais “discriminada” da população toma o contorno de símbolo nacional (mesmo com tantos outros “regionalismos” entrando no gosto de muita gente), suspeito aqui que a força das manifestações populares, em especial as escolas de samba do Rio de Janeiro são elemento fundamental para a compreensão deste assunto, pois a meu ver não representam somente a aceitação e produção do ritmo samba na moderna indústria cultural, mas ajudam a intensificar o processo de reconhecimento social do negro no Rio de Janeiro num complexo jogo de integração social. Porém, é muito importante afirmar que não podemos compreender a produção cultural do povo como um mero conjunto de tradições, ou mesmo, como idealismo folclórico onde se pensa ser possível explicar os produtos do povo como expressão autônoma do seu temperamento. Fechamos aqui com Canclini (1983) e compreendemos que:

“O enfoque mais fecundo é aquele que entende a cultura como um instrumento voltado para a compreensão, reprodução e transformação do sistema social, através do qual é elaborada e construída a hegemonia de cada classe. De acordo com esta perspectiva, trataremos de ver as culturas das classes populares como resultado de uma apropriação desigual do capital cultural, a elaboração específica das suas condições de vida e a interação conflituosa com os setores hegemônicos” (1983: 12 grifos meus)

Interação e conflito, onde diante da situação de desigualdade os negros na cidade do Rio de Janeiro buscaram suas formas de se adaptarem, resistirem ou encontrarem um lugar para sobreviver. Sua ação política e cultural pode ser considerada elemento forte no retrocesso da mentalidade elitista da primeira 51

república. Nessa hora, a cultura popular não aparece como uma mera oposição à cultura dominante, mas como resultado de um processo de interação de parcela da sociedade, que se identifica no espaço social, ampliando seu capital cultural, criando hábitos e práticas próprias. Em momento de maior ofensiva da mentalidade dominante, o efeito é um fortalecimento destes laços no setor que se faz mais orgânico. Se a opressão não chega ao aniquilamento físico o que acontece é isto mesmo, a cultura opera como forte elemento de coesão e identidade. Ainda mais em um cenário onde as ideias dominantes não conseguem se configurar organicamente como as ideias da classe dominante. Herculano Lopes (2000) nos demonstra em seus estudos sobre o maxixe e o teatro de revista na cidade do Rio de Janeiro que a debilidade do projeto afrancesado das elites seria aniquilada por “um movimento subterrâneo e potente de abertura para valores miscigenados de cultura.” (2000: 28). Somente este projeto poderia triunfar como elemento de identidade possível de ser aceito por amplos setores da população, inclusive o popular. O projeto da Paris Tropical não poderia triunfar sem hegemonia. Tal como Souza Reis (2003), Lopes concorda com a ideia de que a partir dos anos 30 esses elementos tomariam maior força na definição da “nossa cara” e seriam relativamente absorvidos e cooptados pelas classes dominantes, onde dominação carismática, unidade nacional, consenso e hegemonia apareceriam de forma mais coordenada e orgânica que nos primeiros anos republicanos, como uma barreira mediando o conflito entre exclusão e incorporação ou cooptação conservadora do povo por parte da elite política. Isto é, fez-se com que o movimento das classes populares não acontecesse de forma tão descontrolada e desamparada como na República Velha. Mas, de qualquer maneira, não podemos desprezar a eficácia com que a cultura popular consegue rejeitar a discriminação elitista, porque parcela das elites e setores médios se abrem relativamente para uma cultura híbrida. A ideia de um Brasil civilizado com a cara do projeto da Primeira República não poderia ocorrer sem aniquilamento em massa não só do povo pobre, mas também de parcela da elite e dos setores médios que não se faziam inseridos em uma cidade que se queria “nova”, desconectada do passado. A produção cultural dos diversos segmentos sociais está em relação, havendo trocas entre elas, afirmando que “o outro não é nunca absolutamente o outro e que há sempre algo de nós nos outros” (CUCHE, 1999:243). Ainda mais quando isso se faz “tradição” na história brasileira. 52

A tentativa aqui é de negar um passado, ou mesmo uma realidade, de interações e trocas culturais entre povo e elite. Esse elemento é uma das chaves na obra de Vianna (1995). Recuperando Gilberto Freyre, o autor traz a ideia de que as mediações entre povo e elite aconteciam para muito além dos tempos republicanos. Em sua linha de raciocínio, Freyre esboça que essas trocas seriam possíveis graças ao fato de que, mesmo com o conflito colonial, predominam em nossa história elementos de harmonia e plasticidade. Assim, mesmo que esta relação não se constituísse de forma sempre pacífica, decretos não conseguiram acabar com ela. Porém, a tensão social, reforçada, em especial, com a abolição da escravidão, conecta-se com o crescimento das teorias raciais no Brasil. Como já foi dito, o discurso de civilização está associado a ideia de branqueamento da população. O fato do samba virar elemento nacional não pode ser só atribuído à ideia de que parcela da elite e dos segmentos médios não se via incorporada em um processo cultural que não tomasse formato miscigenado. Tantos outros ritmos chegavam a estes setores e por que o samba? Meu argumento é que isso se deu porque foi no Rio de Janeiro que as classes populares conseguiram circular de modo a permitir que sua música penetrasse com mais eficiência nas brechas colocadas no âmbito cultural pela modernidade, produzindo sua inclusão simbólica e viabilizando alguma mobilidade social. Assim, defendo que é o povo afrodescendente que vai manobrando os empecilhos ao seu acesso à esfera pública, colocados pela República Velha. A presença do “elemento externo” nas festas com a da Penha é temida pela ação policial repressora, mas esses mesmos “elementos externos” são recebidos na casa da Tia Ciata, na Praça Onze. Sabe-se, por exemplo, que o marido de Ciata consegue um emprego no funcionalismo público graças a uma cura que esta teria empreendido, utilizando-se de suas técnicas religiosas, em influente político daqueles tempos, ninguém menos que Venceslau Brás, presidente do Brasil no período de 1914-18. Não cabe aqui achar que as classes populares possuem intrinsecamente em sua formação uma determinada consciência em si revolucionária que teria sido cooptada e reprimida pelas elites. Sua identidade se faz na vida e nos sentidos que ela toma, se faz mais orgânica quando ganha coesão de grupo. As relações de poder que estão em jogo nas incursões da cultura popular não podem mais ser compreendidas somente como reflexo de uma ação dominadora exercida 53

verticalmente sobre os dominados. Ela passou a ser considerada como uma prática descentrada e multi-determinada nas relações políticas, “cujos conflitos e assimetrias são moderados pelos compromissos entre os atores colocados em posições desiguais” (CANCLINI, 2003: 201). Isto é, não nos parece plausível pensar em uma manipulação onipotente das relações sócio culturais. Romantismo e idealismo normalmente utilizados com fins políticos deturparam um entendimento mais complexo da cultura. Talvez aqui, podemos então, compreender melhor a própria crítica que colocamos em Vianna (1995). Com tantas manifestações culturais do povo rodando o país, por que o samba triunfa como elemento nacional? Concordamos com o autor na ideia de que as trocas e o “interesse pelas coisas do povo” são elementos importantes e antigos, mas somente um estudo da força cultural da Capital no projeto nacional, da particularidade das relações estabelecidas entre sua população, sejam as classes altas, médias e baixas, pode dar esta resposta. Algumas pistas já foram dadas aqui, em especial: 1 – A violenta segregação urbana que demarca comunidades com identidade bastante fortes, em especial nas favelas e em alguns bairros suburbanos – fortalecendo os laços de sociabilidade do grupo oprimido – mas de nenhuma forma estes grupos se encontram desintegrados com o restante da cidade; 2 – A cultura do mundo do trabalho não consegue criar uma produção de ideologia tal como no mundo da moderna indústria. Isto é, a incorporação do mestiço nas “mentalidades” do moderno capitalismo ocidental se dará de forma peculiar; 3 – A aceitação e o desenvolvimento do negro na moderna indústria cultural da cidade; 4 – A flexibilidade cultural que deixa marcas fortes no povo de origem negra do Rio de Janeiro. Que levou por diversas vezes o “sambista” popular a procurar ações esclarecidas de relativa adequação a ordem; 5 – O interesse pelas “coisas do povo” (mesmo que mesclado entre o cosmopolitismo e as manifestações “nacionais) realçado no período que circunda 1920-30; 6 – Fortes espaços de intercâmbio cultural e transcultural, como as festas, a região da Pequena África e bairros como a Lapa, tal como acepção dos artistas brasileiros em países europeus. Ainda que precisássemos de um estudo mais amplo para a comprovação de tais hipóteses acredito que elas podem ampliar a compreensão, neste capítulo, do assim chamado mistério do samba. Passamos pela reorganização espacial da cidade, pela questão da inserção no mundo do trabalho e voltamos a nos concentrar 54

na produção cultural das classes populares, atribuindo o acento devido à dimensão da incorporação do negro na nascente indústria cultural. Souza Reis (2003) chama a atenção para a participação da produção cultural no restante da cidade. Já vimos que se a cidade vai se conformando de maneira mais receptiva à expressão cultural do povo, ela o faz de forma ainda bastante preconceituosa e cautelosa, como se povo na vitrine fosse diferente de povo agindo livremente. Várias figuras ilustres passavam por lugares como a casa de Ciata, tal como vários sambistas eram convidados a apresentações nas casas de gente importante da cidade. Mas a aparição da cultura popular nas ruas era associada à desordem. Dessa forma, mesmo quando o interesse pelas coisas nacionais toma eco, isso não acontece sem restrição. Se a cultura popular agrada paulatinamente, esse agrado ainda é insuficiente para permitir que as coisas sejam feitas do jeito de quem manda. Sergio Cabral (1996) cita a passagem em que João da Baiana narra a apreensão de seu pandeiro na festa da Penha. Vejamos:

“A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento [...] Houve uma festa no Morro da Graça, no palacete do Pinheiro Machado e eu não fui. Pinheiro Machado perguntou então pelo 'rapaz do pandeiro'. Ele se dava com meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, marechal Hermes, coronel Costa, todos viviam nas casas das baianas. Pinheiro Machado achou um absurdo e mandou um recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E eu fui [...] Ele então perguntou por que eu não fora a casa dele e respondi que não tinha aparecido porque a polícia havia apreendido meu pandeiro na festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se poderia mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do seu Oscar, o Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um pedaço de papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro com a seguinte dedicatória: 'A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro Machado” (1996: 27-8).

Figuras ilustres, como se observa, envolvem-se com gente do povo, na casa das Tias ou em eventos como no seu palacete. E é neste primeiro local, a casa das Tias, que as “cidades” se encontravam. Lá eram trocados favores e feitas alianças. Com seu talento, artistas negros frequentavam palacetes da elite, tal como no já citado caso de Venceslau Brás, que foi se tratar com rituais religiosos afro- brasileiros na casa de Ciata e deu-lhe, em troca, um emprego público ao seu marido. Esses lugares passaram a constituir espaços de trocas, onde era permitido manifestar-se de forma mais autônoma devido, em especial, as relações clientelistas estabelecidas entre membros do Estado e frequentadores dessas 55

casas. No interior dos morros e subúrbios mais pobres, onde a repressão era mais branda, a presença de pessoas externas ao mundo das classes populares dava um formato menos profissional à produção cultural. Contudo, podemos destacar, no episódio da tomada do pandeiro de João da Baiana, a construção de laços entre estes artistas populares e membros da elite, laços esses que se marcam e se acentuam nas festas. Especificamente neste caso, o avô de João era da maçonaria, o que fez com que este tivesse boa relação com gente como Irineu e Pinheiro Machado, permitindo a abertura de caminho para a legitimidade da profissionalização. Unindo-se a capacidade de agentes mediadores com o interesse das classes populares, outra dimensão desta atividade ganha espaço, como mostra Muniz Sodré:

“Nesse momento (1920), através do disco e do rádio, o samba fez seu ingresso no sistema de produção capitalista. O poder econômico e político emergente de um modelo escravagista multissecular, que reprimia culturalmente a população negra, começava a criar papéis sociais (como o músico profissional). [...] A comercialização do samba e a profissionalização do músico negro se faziam, evidentemente, no interior de um modo de produção, cujos imperativos ideológicos fazem do indivíduo um objeto privilegiado, procurando abolir seus laços com o campo social como um todo integrado. Compositor se define como aquele que organiza sons segundo um projeto de produção individualizado. Em princípio, o músico negro teria de individualizar-se, abrir mão de seus fundamentos coletivistas (ou comunalistas), para poder ser captado como força de trabalho musical” (1997: 39-40).

Essa mudança para um processo de produção individualizada tem na polêmica acerca da criação do samba Pelo Telefone um exemplo clássico. O samba foi registrado por Ernesto dos Prazeres (Donga), mas, segundo dizem, é mais uma das criações coletivas concebidas na casa de Tia Ciata. Essa “jogada” de Donga teria deixado Hilário Jovino, Ciata e Sinhô, que haviam participado da criação do samba, bastante chateados, a ponto de produzirem uma segunda versão da letra:

“Pelo telefone / a minha boa gente/ manda avisar / Que o meu bom arranjo / Era oferecido / Pra se cantar. Ai, ai, ai / Leve a mão na consciência, / Meu bem, / Ai, ai, ai, / Mas porque tanta presença / Meu bem? Ô que caradura / De dizer nas rodas / Que esse arranjo é teu! / É do bom Hilário / E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu. Tomara que tu apanhes / Para não tornar a fazer isso, / Escrever o que é dos outros / Sem olhar o compromisso”.

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Sandroni (2001) chama a atenção para um feitiço que virou contra o feiticeiro: Sinhô, conhecido pianista mulato da época, era bastante famoso pela frase “samba é como passarinho, é de quem pegar”. Na cidade, em especial nas festas, vários sambas eram cantados em seu refrão, e suas autorias ficavam anônimas. Quando um samba era cantado na Penha era uma vitória daqueles que dele participaram. E o samba ia por aí mudando o tempo todo; o negócio era que o povo cantasse, aí estava a glória. Com a ampliação da possibilidade de ter seu samba gravado e tocar no rádio, diversos compositores passaram a vender sambas para gente famosa (como Francisco Alves) gravar e daí surge a necessidade do registro. É nesse momento que Sinhô ganha a fama de ter “pego” alguns sambas no ar, que nem dele por vezes eram. Sandroni nos ajuda a compreender o momento, ao afirmar que:

“O que se expressa aí é o fato de que se cantavam na cidade inúmeros refrãos anônimos, sem que ninguém se preocupasse em descobrir seus autores. A comparação contida na frase atribuída a Sinhô (“samba é como passarinho, é de quem pegar”) é a mesma que está implícita numa expressão como ‘colheita’ de melodias folclóricas, tão empregadas por autores como Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga: em ambos os casos vê-se a canção popular como um objeto natural, pássaro em uma, vegetal em outra” (2001: 146).

Segundo o autor, a função-autor não estava ainda plenamente estabelecida e parece que este problema, o de pegar samba que não era seu ou só seu ainda não estava bem resolvido. Mas quando algum compositor anunciava este como seu o problema poderia aparecer, ainda mais quando se começou a ganhar algum dinheiro com isso. A polêmica de Heitor dos Prazeres com Sinhô foi clássica. Cabral (1996) explica que o primeiro acusou o pianista de ter levado em sua conta dois conhecidos sambas, “Ora vejam só” e “Gosto que me enrosco” ambos, respectivamente de 1927 e 1928. Sinhô disse desconhecer que os sambas eram de Heitor assim ficou com o refrão, que era o que circulava solto, não registrado, pela cidade. Heitor também seria acusado de “pegar” outro refrão e colocar em seu samba, o caso foi com “Vai mesmo” que dizem ser samba de Antônio Rufino. Mas, de certo é que, nos anos 20, com a moda da compra e venda de sambas essas disputas apimentam um pouco mais. Outro “malandro” conhecido por “pegar” samba no ar era Baiaco, que além de sambista era conhecido por “vender” proteção na região do mangue: “Baiaco atraia o verdadeiro autor para um bar, pedia que ele cantasse enquanto Benedito Lacerda, escondido atrás de um biombo, copiava a 57

melodia” (CABRAL, 1996: 54). Mas, de forma consciente, os sambas de compositores como Ismael Silva, Noel Rosa, eram vendidos a cantores famosos da indústria fonográfica, algumas vezes vinham, inclusive, como parceria (autor/cantor), outras como produção única do comprador. Em entrevista a Sérgio Cabral, Ismael Silva presta seu testemunho sobre a questão:

“Cabral – Você vendeu músicas a ele (Francisco Alves) ? Ismael – Só duas ... Nas outras, ele entrou na parceria e agente dividia o dinheiro que a música rendia. Cabral – Você vendeu o samba por quanto? Bide – Eu não vendi, não ... Cabral – Mas o Francisco Alves entrou na parceria. Bide – Você queria que ele não entrasse? Cabral – Você vendeu música Bide? Bide – Não, nunca. Sabia que muita gente vendia” (1996: 31-32).

Aos poucos, ia fracassando o projeto elitista dos primeiros anos republicanos. A cultura popular ia se apropriando de parcela do mercado cultural, da mesma forma que ia se ajustando sem perder boa parte de seus elementos contraditórios ao discurso da virada do século XIX. A ironia, o deboche a crítica social fazia-se presente no mundo da canção popular, esta iria estabelecer canal de diálogo privilegiado, inclusive nas polêmicas para com o poder público, na cidade do Rio de Janeiro. Ordem e desordem se contrapondo o tempo todo, com relativa vantagem da primeira pela segunda. Assim, o samba ia se constituindo como uma linguagem que serviria para expressar diferenças regionais, desavenças pessoais ou mesmo insatisfações populares (SOUZA REIS: 2003). O ritmo do povo ia edificando um veículo de debate importante, por vezes o povo aguardava a resposta de um compositor a outro, ou mesmo a alguma ação política na cidade. O samba Pelo Telefone ganhou várias letras, em sua maioria satirizando a polícia da cidade, ou mesmo relatando o fim da primeira grande guerra, foi reinterpretado tanto por outros sambistas como cronistas e jornalistas da época:

“O general Foch / Pelo Telefone / Mandou avisar / Que o chefe dos boches / Foram Capitular Ai, ai, ai / Ladrão Kaiser / Para onde é que vais? Ai, ai, ai / Que assim foges / Dos teus generais ...”

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De certo a venda de samba, fez com que gente muito famosa, como Francisco Alves e Mario Reis colocasse no mercado novos compositores, como o próprio Ismael Silva, considerado por muitos o inventor do samba moderno12. E se as disputas acerca do direito autoral do samba esquentavam, podemos associar este elevar de temperamento na disputa a uma crescente legitimidade do samba. Nos anos 20 chegavam os Oito Batutas de Pixinguinha e Donga de bela turnê europeia, o povo cada vez mais gostava do teatro popular de revista (que só perderia espaço com o cinema falado e o rádio) e o maxixe vivia dias de glória (que também perderia espaço com o sucesso do samba moderno)13. Os 8 Batutas, mostrados na Figura 16 tinham sido um conjunto musical formado em 1919 para se apresentar no cinema Palais no Rio de Janeiro. Era uma das salas mais elegantes do país, no conjunto uniram-se, além de Pixinguinha e Donga, China, Nelson Alves, Raul Palmieri, Jacó Palmieri e Luis de Oliveira. Com ritmos variados, desde maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques e catererês, o grupo oscilou entre a exaltação e o protesto. Foi o maestro Júlio Reis um dos mais ferozes críticos, considerando um “escândalo” a presença daqueles músicos (em maioria negros) em lugar tradicional da música erudita. Mas, por outro lado, Xavier Pinheiro, jornalista, saiu em defesa dos músicos, alertando que suas aparições, “têm sido apreciadas por nossa finíssima sociedade, não têm escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso” (CABRAL, 1997: 46). Em pouco tempo o grupo passou a ser convidado para animar festas e promover espetáculos por toda a cidade, naquele mesmo ano, a gravadora Odeon lançaria seis músicas do conjunto musical. O excêntrico milionário Arnaldo Guinle, entusiasmado com o som dos “rapazes morenos” iria financiar decisiva viagem do grupo pelo Brasil e pelo exterior. Vários músicos estrangeiros, artistas ligados a vanguarda modernista europeia se entusiasmam com o grupo ampliando a legitimidade daquele tipo de produção artística. Darius Milhaud, francês, que residira

______12Tal como já citado neste texto, não entraremos aqui nas polêmicas acerca da origem do samba como ritmo musical propriamente dito. Para ler mais sobre assunto recomendo Sandroni (2001) e Sodré (1997).

13Para mais sobre as polêmicas em torno do teatro de revista ler Lopes (2000). Sobre o Maxixe (TINHORÃO, 1999). 59

no Rio de Janeiro entre 1917 e 1919 lança em Paris Le Bouef sur Toit claramente inspirado no maxixe fazendo sucesso na França.

Figura 16 – O grupo dos 8 batutas

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010.

Blaise Cendrars junto de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, dentre outros, fizeram longa viagem pelo país a fim de conhecer seu “ritmo”, apelidaram este empreitada de A Redescoberta-do-Brasil. Nesse clima, de influências modernistas, o violão suplanta aos poucos o piano no gosto dos jovens e ganha força simbólica como instrumento que possibilita a transição entre esses dois mundos, o erudito e o popular (NAVES, 1998: 26). Dessa forma, a música popular, anteriormente vista como "baixa cultura" em detrimento da música erudita, gradativamente assume um papel importante no contexto histórico e artístico brasileiro. Tal fato deve-se às influências modernistas chegadas ao Brasil e que levaram aos músicos brasileiros a ideia de que o estudo da música popular e sua interação com a erudita seria o caminho perfeito para encontrar uma identidade nacional (Idem). Mas o maxixe não passava impune pela censura, em especial dos setores eclesiásticos, que consideravam a dança como vulgar e imoral. Em uma época 60

onde a moral cristã para com o corpo ainda tinha bastante força os passos sensuais do maxixe incomodavam bastante as pessoas de família. Mas eram nas próprias composições que a resposta era dada, J. Efegê (1974) cita uma canção ainda de1904 satirizando a implicância de algumas pessoas com o ritmo excomungado, chama-se Maxixe Aristocrático, de José Nunes: “O Maxixe tem ciência / ou pelo menos tem arte/ Para haver proficiência / basta mexer certa parte / Pois o próprio Padre Santo / sabendo o gosto que tem / virá de Roma ao Brasil / dançar maxixe também”. Se o papa não veio de Roma conhecer o maxixe, o sentimento dos músicos populares dos anos 20 era que o ritmo corria o planeta (CABRAL, 1997). Nossos batutas na França se apresentavam com o nome de L'Orchestre des Batutas. As críticas tradicionais não sumiram, preocupada com a imagem do Brasil no exterior ser representada por aquela “atrasada” manifestação, o Jornal do Comércio de Recife anunciava em nota no dia 1 de fevereiro de 1992:

“E depois ainda nos queixamos quando chega aqui um maroto estrangeiro que, de volta, se dá a divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil” (Citado em: CABRAL, 1997: 73).

Os 8 Batutas retornam de Paris em 1992. A meu ver, o bom acolhimento em terras francesas, nada mais representa que a existência de um interesse pela cultura afrodescendente levantada por uma vanguarda cultural tanto brasileira quanto europeia. Segundo Cabral (1997), além da calorosa recepção aos nossos batutas, fazia sucesso por lá também, os ritmos negros norte-americanos, como o jazz, ainda mais se pensarmos que após a Primeira Grande Guerra vários músicos emigram para a França (SOUZA REIS: 2003). Já caminhamos pela segunda década do passado século. Os tempos pareciam mais receptivos, sabemos que foi por aí que as culturas populares tomaram mais espaço na cidade. Soihet (2003) traz alguns elementos para ilustrar o debate:

“Na década de 1920 novos ares se anunciavam. Após a Primeira Guerra Mundial, desmorona-se a ilusão da Europa como centro de um progresso ilimitado, tomando-se vulto no Brasil um movimento em busca de suas raízes. Num país em que as desigualdades econômicas, políticas, sociais, culturais e regionais eram a marca, constatam diversos intelectuais a urgência de modernização. O que muitos traduziram pela necessidade de viajar pelos demais estados brasileiros, a fim de conhecer suas culturas, 61

objetivando integrá-las à nação em vias de construção. Esse processo, aliado ao desenvolvimento de ideias nacionalistas e à resistência desenvolvida pelos populares, que, apesar de todos os percalços, mantiveram suas manifestações, resultou na valorização das suas formas de expressão cultural, que passaram gradativamente a assumir um lugar reconhecido no espaço público” (2003: 308).

No final dos anos 20, com o advento da gravação elétrica instalaram-se várias gravadoras no país, até 1928 existia apenas a Casa Edison do grupo Odeon. Nessa época é fundada a Parlophon, também da Odeon, a Columbia e Brunswick da RCA. Estas todas com sede no Rio de Janeiro, precisando de músicos para compor seu time de compositores, arranjadores, músicos e cantores. Na cidade berço do samba moderno misturavam-se dois elementos importantes, a existência de rádios e gravadoras, tal como um nascente interesse, agora não só de uma parcela da elite cultural, mas também da política. Como já frisei, se estes elementos não determinaram, ampliaram a chance do samba se constituir na cidade. Estariam ai importantes brechas para a penetração das culturas populares no gosto de nossa sociedade, o samba poderia até não ser a escolha preferencial dos “donos do poder”, mas, foi o povo mais pobre da cidade do Rio de Janeiro que melhor articulou-se com a nova formatação social em foco, explorando caminhos e estratégias de inclusão nas transformações nacionais. Assim, a cultura popular do povo negro do Rio de Janeiro vai tomando força e destaque sem virar folclore como aconteceu com outros movimentos regionais, isso tudo, em uma cidade que ainda se fazia caixa de ressonância para o restante do país. Se foi ação esclarecida ou não, o que importa é que foi feita de forma “flexível” e mediada, onde a ideia de negociação foi aos poucos resfriando o conflito. O interesse pelas coisas nacionais se fazia como um forte elemento de legitimidade da produção artística do povo afrodescendente. Fazendo um misto de preservação com trocas e inovações culturais esta parcela da população desenvolveu um movimento que pode ser bem esclarecido por Canclini (1992), isto é, onde a preservação pura das tradições não aparece sempre como o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situação, “o popular não é vivido pelos sujeitos populares com complacência melancólica com as tradições” (1992: 204). 62

Este acontecimento não é uma característica sui generis do Brasil, segundo as pesquisas de Peter Burke (1981) sobre a cultura popular na idade média, podemos chegarà conclusão de que este processo aconteceu em várias sociedades, onde pensar a cultura popular como isolada por inteiro da cultura hegemônica pode nos levar a caminhos complicados e descolados de um estudo mais realista. Assim, concordando aqui com Vianna, “diversos grupos sociais, com intuitos não coincidentes, participaram – transculturalmente – da fabricação dessa autenticidade” (1995: 173), do samba moderno no Brasil. Os diversos bens culturais são e foram apropriados de maneiras desiguais por diversos grupos sociais em interação constante. A própria imprensa ia “relaxando” suas duras e violentas críticas, mas, estas ainda eram maioria. A Praça Onze, antes anunciada como reduto de malandros passa a ser exaltada por alguns órgãos da imprensa como o verdadeiro celeiro de gente bamba, compositores e sambistas muito criativos. Pelos anos 30 já se diria:

“Ali se reúnem os carnavalescos de verdade, com suas fantasias típicas, com seus choros bem organizados e que dão àquela localidade um brilho invulgar nos festejos de Momo”14.

Nosso desfile chegara a novos tempos. Com o novo Estado e seus novos ideais políticos somar-se-iam mais elementos que podem explicar o triunfo do samba carioca. O desfile vai para as ruas, com dureza, mas com o crescimento da legitimidade do ritmo resta impor a sua presença na cidade daquele samba que ficou alcunhado como samba do morro, o mesmo que sabemos que lá não nasceu, mas se fortaleceu com o intercruzamento do rebuliço político e cultural emergente na cidade do asfalto. Sem embargo, o que posso concluir aqui, é que todos esses movimentos possibilitaram ao povo afrodescendente assegurar-se dos bons resultados de suas táticas de luta e negociação com a cidade em vista do reconhecimento da cidadania, muitas vezes configurada com o direito de praticar a vida que lhes era

______14Noticiado em A Noite, nota-se que a data já é de 18/02/1931. 63

interessada, aumentado sua legitimidade e participação no espaço simbólico da cidade.

1.5 A festa do carnaval

Se as Escolas de Samba são neste capítulo um de meus objetos privilegiados as manifestações culturais das classes populares já se faziam há muito tempo presente no carnaval de rua do Rio de Janeiro. Junto aos blocos, corsos, ranchos e batalhas de entrudo e confete, apareciam também as manifestações de carnaval mais próximas das elites nas grandes sociedades carnavalescas. Segundo Soihet (2003):

“o carnaval constituía-se como a manifestação máxima dos populares, quando, de forma irreverente, utilizando-se da paródia, do deboche, da inversão, traziam à tona suas tensões e insatisfações contra a opressão e a discriminação que sofriam” (2003: 303)

Se o arcaísmo fez de tudo para eliminar o entrudo do carnaval (jogo considerado de mau gosto e de possível origem lusitana), incentivando as grandes sociedades e bailes de mascarados, pela porta de trás, incomodando os defensores do progresso na época, as “maltas perigosas” que afligem o carnaval oficial continuam se manifestando, os cordões e blocos já começam a compor o cenário carioca na Praça Onze, ranchos, como o Ameno Resedá se farão bastante famosos nos anos de 1920 tendo como reverência a porta da casa de Tia Ciata. Mas, como já fomos alertados aqui, não podemos olhar o carnaval de rua em uma bipolarização elite x povo. Diferentes setores estabelecem contatos influindo na formatação do carnaval. E tal como aconteceu com o samba, o interesse de políticos e mediadores por descobrir as manifestações culturais, unido as estratégias de afirmação da população afrodescendente, traz a glória aos diversos ranchos da cidade. Este fato não é irrelevante tendo em questão que o rancho se assemelha em muito ao músico que toca no Odeon ou no grupo dos Batutas, tem regras, disciplina, e valores que levam Coelho Neto (1924), duro crítico dos cordões, a enaltecer os foliões do rancho, que ao seu modo, valorizam com bastante poesia 64

“nossa gente e nossa raça” (SOIHET, 2003). O processo de valorização da cultura popular está intimamente ligado ao carnaval, como percebemos no período da virada do século, as largas avenidas construídas na reforma urbanística não estariam “liberadas” as manifestações culturais daqueles que representavam o atraso. Já apresentei os elementos que levaram a valorização dos ritmos populares, com os ranchos não será diferente. As Escolas de Samba, que em sua maioria vieram de blocos, em especial, terão muito de sua estrutura oriunda dos ranchos. Um dosgrandes diferenciais estará no hoje conhecido samba moderno de suas apresentações. Aquele que se dá o título de inventor a Ismael Silva, grande compositor da Deixa Falar (tratada como o primeiro rancho a se comportar como Escola de Samba). Mais a frente, veremos que as diferenças vão mais além. Mas retornando ao carnaval da belle epoque, percebemos essa época como a do surgimento das seguintes manifestações de carnaval, os cordões, ranchos, blocos e corsos. Segundo Moura (1998) e Fernandes (2003), enquanto os cordões, ranchos e blocos descendem de festas religiosas do mundo colonial escravista, com forte presença de negros e africanos, o corso era, como os automóveis, uma novidade absoluta e deleite da elite moderna da cidade, dando continuidade e reforçando os propósitos das grandes sociedades em busca de um carnaval civilizado. A isto somávamos centenas de diabinhos, morcegos, mortes, índios, clóvis, bailes, festas, Zé pereiras e alguns resistentes focos de entrudo. Havia uma super oferta de participação no carnaval, isso pode ajudar a explicar como alguns tipos de manifestações acabavam tão rapidamente, ou mesmo da transição dos cordões para os ranchos na tradição popular (MOURA, 1998; FERNANDES, 2003). Dessa forma, o rancho aparecia como um cordão mais “civilizado”, ou mesmo mais articulado com o processo político que vai se formatando da virada do século até os anos de 1930. Este faz um movimento parecido com o da profissionalização do compositor, ou mesmo das manifestações da cultura popular mais integradas. Isso não quer, de forma alguma, dizer que os ranchos funcionam como sucessores dos cordões, não é uma relação bem de antecedência e consequência, mas de movimentos paralelos, apesar de ambos nascerem na periferia mais central da cidade, o rancho torna-se a expressão mais complexa de determinado momento do carnaval popular. Essa capacidade do rancho de se reinventar e negociar com o “mundo oficial”, tal como fez a cultura do povo afrodescendente, levam ranchos 65

como o Ameno Resedá a disputar hegemonia com as grandes sociedades pelo menos até a década de 1930(CABRAL, 1997; FERNANDES, 2003). Os primeiros e mais famosos ranchos foram organizados por Hilário Jovino e Tia Ciata. Surgem em especial nas regiões periféricas da cidade, desde a Saúde até a Praça Onze. Aparecem como parcela afrodescendente da cidade continuar celebrando suas manifestações religiosas e festivas, segundo Moura (1993):

“As origens próximas dos ranchos com os pastoris, sua ligação com a festa natalina cristã caracterizada pela saída no dia de reis, e a forma dionisíaca com que o negro se apropria das festas católicas, provoca protestos e interdições que teriam como consequência o deslocamento das principais festas processionais negras para o tempo desinibido do Carnaval, e sua definitiva profanização” (1993: 59).

Nesse sentido, vários festejos de origem negra tiveram sua atividade adaptada às brechas do calendário oficial, e o carnaval absorveu parte destas. Isso não quer dizer uma super organicidade da cultura afrodescendente na cidade, alguns teóricos, ao estudar o samba no Rio de Janeiro, acabam escolhendo esse caminho exagerado. O rancho já aparece como retrato de um tempo onde o conflito é deslocado para uma flexível negociação por parte das classes populares. É um elemento híbrido, não tem nada de cultura pura. Além de estrutura mais “grandiosa” que cordões e blocos, têm alvará da polícia para funcionar, tratam de construir laços com o “mundo oficial” e a imprensa. Segundo Fernandes (2003):

“E dentro desta estratégia estavam a busca de alianças, financiamento, publicidade, solidariedade e outras relações que garantissem a sua legitimidade. E não se pode duvidar da eficácia desta estratégia e da posição de Hilário Jovino dentro da ascensão dos ranchos, quando ele recorda, em sua entrevista de 1931, que o Rei de Ouro (considerado o segundo rancho, depois do Dois de Ouro) foi recebido em 1894 no Palácio do Itamarati pelo Marechal Floriano, então Presidente da República. Aliás, já em plena segunda fase da história dos ranchos, o Marechal Hermes, igualmente Presidente da República, convidou o Ameno Resedá a visitá-lo no Palácio Guanabara, em 26 de fevereiro de 1911”.

Dessa forma, parece mesmo, que a impactante aparição do rancho Ameno Resedá (1908) foi quem colocou os ranchos em outro patamar na cidade e com ele as manifestações públicas do carnaval por conta das classes populares. Já tentei descrever neste capítulo como a cultura popular, e com ela o samba, triunfou na cidade e a rota dos ranchos parece acompanhar bem o hibridismo das manifestações culturais na cidade. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro com 66

eles trazem uma ligação bastante intensa nessa forma de tratar dos problemas de integrar os negros à cidade. Mediadores, negociações, adequações e diálogos constantes com a cidade que outrora puniu e reprimiu com bastante dureza suas manifestações. Evidente que tal como com o samba, não faltaram aqueles, vários, cronistas, literatos, e gente da elite que continuará associando esses movimentos ao barbarismo na cidade em vias de civilizar-se. Tal como já fora dito aqui, é pelos meados de 1920 que a coisa toma mais fôlego mesmo. Assim, outras manifestações eram atacadas enquanto o rancho era citado por grande parte dos formadores de opinião como um “avanço” na manifestação da folia na cidade. Mesmo que o carnaval da elite estivesse ainda configurado nas grandes sociedades, algo que permanecerá vivo por muito tempo, até o sutil avanço das Escolas de Samba já depois do final dos anos 3015. O Ameno Resedá é a marca da mediação. Segundo Cabral (1997), fora formado originalmente por gente do baixo funcionalismo público, tinha em seu naipe de admiradores pessoas como Paulo de Frontim, Arnaldo Guinle, Oswaldo Gomes (respectivamente patrono e diretor do Fluminense Football Club), Coelho Neto, e tinha sua sede no bairro do Catete. No seu desfile inicial a sua exuberância lembrou logo as grandes sociedades, tinham enredo, a corte egipciana, eo caricaturista Amaro Amaral foi contratado para conceber o desfile. Vários músicos profissionais de renome e a presença de um diretor de harmonia com um belo coral levando a frente a marcha-rancho sob a regência de um maestro. Nota-se a semelhança com as Escolas16?

“A orquestra, o coral, o luxo das fantasias, a figuração do enredo e,

______15Um estudo mais complexo pode ser encontrado em Soihet (1998). Não iremos aprofundar o tema em demasiado neste estudo. Ele será aqui abordado mais como introdução a formação das Escolas de Samba. Assim, estamos justificando de alguma forma a “simplicidade” com que a questão pode estar sendo tratada aqui. Nem tudo que sobrou foi rancho, outros cordões como o Bola Preta mantém-se vivos no carnaval até os dias de hoje. Os blocos também continuaram existindo, tendo ligações bem fortes com o surgimento das Escolas de Samba, quando chamamos atenção para os ranchos frisamos a sua estrutura de funcionamento. Escolas em sua maioria surgem de blocos e procuram aproximar com o tempo sua estrutura das do rancho, seja por vontade própria ou pela influência de agentes externos, ou ainda, pelo visível sucesso da estratégia dos ranchos na cidade.

16Outro elemento que vale a pena ser destacado para com os ranchos é a ideia de concurso e temas nacionalistas (mesmo que isso não fosse uma imposição oficial do Estado). 67

sobretudo, a exata coordenação de todos esses valores artísticos para se obter resultado total imponente, era uma inovação deslumbrante e arrebatadora. As agremiações coirmãs reunindo duas ou três dezenas de participantes, pobres de vestuário, sem subordinação a enredo ou a qualquer motivo e, principalmente, sem força musical sentiam-se derrotadas. Seus cânticos eram marcados apenas por batidas compassadas de castanholas, pandeiros, tamborins, e outros instrumentos rudimentares que faziam nada mais que ritmo e percussão” (EFEGÊ, 1965: 94).

Mesmo que inseridos no “pequeno carnaval”17– posterior definição atribuída pela prefeitura para pagar as subvenções das apresentações – os ranchos após o Ameno Resedá de pequenos não teriam nada (CABRAL, 1997), se espalhavam pela cidade e, em pouco tempo, assumiriam forte papel no carnaval carioca, somente ameaçado pela futura hegemonia das Escolas de Samba, mas só pela década de 40, onde, talvez a principal mudança não estivesse somente no formato do ritmo, e aí quero entrar adiante, mas na ideia de que as Escolas, em sua maioria, partem de regiões mais periféricas e aparentemente isoladas que os ranchos, os subúrbios e morros da cidade. Era o chamado samba do morro, oriundo dos blocos, que mesmo não nascendo exatamente por lá, lá se criou, se protegeu e percorreu toda a cidade. Tal como não cansava de dizer Ismael, era samba pra sambar! Pensou como rancho, mas acelerou o samba. Bum Paticumbum Prugurundum. Retirou a orquestra e manteve a base instrumental dos cordões. Mas o certo, é que os ranchos, modelo de organização e ordem, ainda contavam em seu seio com gente da política, agentes policiais, patronos como o Sr.Guinle, gente do funcionalismo público, etc., esse pessoal ajudava a garantir a legitimidade, até na hora de conseguir a complicada licença de funcionamento. A meu ver isso já estava virando uma prática tradicional nas manifestações populares no Rio de Janeiro18, de fato, o exemplo do Rancho será bem rico para as Escolas. A seguir destaco algumas fotografias sobre o carnaval daquele tempo. Coloco também algumas charges do periódico O Careta. Este material ajuda a

______17Para a prefeitura o Pequeno Carnaval seria composto de cordões, ranchos e blocos, mais tarde, pelas Escolas de Samba. O “grande”, que ganhava mais recursos públicos, eram composto, em especial, pelas Grandes Sociedades, Fenianos, Tenentes do Diabo, Democráticos, etc.

18Augras (1998) chama a atenção para o detalhe de que os próprios terreiros de candomblé faziam um esforço para incluir estas pessoas em seu quadro ativo, principalmente gente da polícia. Era uma forma de garantir o funcionamento. Mas isso não quer dizer que muitas dessas pessoas não sejam realmente bem vindas nestes espaços. 68

aprofundar a montagem do ambiente social que envolvia os festejos carnavalescos na cidade.

Figura 17 – Desfile das Grandes Sociedades

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010).

Na Figura 17 vemos o desfiledas Grandes Sociedades no início do século XX. O carnaval mais dirigido às eliites da cidade.

Figura 18 – Desfile dos Corsos (1)

Fonte:(Disponível em: < http://www.spreedcities.com >. Acesso em: 10 jan.2010). 69

Na Figura 18, Figura 19 e Figura 20, o desfile dos Corsos,que encantam a classe média exaltando o fascínio pelo automóvel.

Figura 19 – Desfile dos Corsos (2)

Fonte:(Disponível em: < http://www.spreedcities.com >. Acesso em: 10 jan.2010).

Figura 20 – Desfile dos Corsos (3)

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010). 70

Figura 21 – Batalha das Flores

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010).

A tradicional Batalha das Flores é mostrada na Figura 21. Eram desfiles como os Corsos, onde estes se enfeitavam com flores ornamentais. Na Figura 22, o tradicional carnaval de rua no centro da cidade.

Figura 22 – Carnaval de rua no Centro da Cidade

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010).

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Figura 23 – Baile das elites

Fonte:(Disponível em: < http://www.sambaderaiz.net>. Acesso em: 10 jan.2010).

Na Figura 23, o Baile das elites. A influência de estilo europeu nas fantasias. Na Figura 24, charge do jornal O Careta ironizando o estilo europeu de se fantasiar.

Figura 24 – Charge do jornal O Careta

Fonte: As charges foram extraídas da pesquisa de GONÇALVES, 2010; disponível em http:/www.revistacontemporaneos.com.br. Acesso em: 25 dez.2011)

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Figura 25 – Charge da revista "fon fon" (1)

Na Figura 25,charge da revista "fon fon" criticando a moda das fantasias europeias (17 de Outubro de 1911).

Figura 26 – Charge da revista Careta (1)

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Na Figura 26, charge da revista Careta de 20 de fevereiro de 1909, que mostra o fim dos índios no carnaval com a proibição da fantasia por parte da prefeitura. Abaixo, na Figura 27, no dia 14 de fevereiro de 1914 a revista Careta faz uma provocação às questões sociais e a sua inversão no carnaval.

Figura 27 – Charge da revista Careta (2)

Figura 28 – Charge da revista O Careta (3)

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O Careta de 14 de fevereiro de 1920 (Figura 28) ainda explora a mesma questão. A seguir mais charges relembrando a diversidade do carnaval de “outrora”. Esse movimento em pouco tempo reprimiria os limites impostos na Primeira República.

Figura 29 – Charge da revista “fon-fon” (2)

Charges dão reforço à ideia do carnaval como uma festa "malandra" através de uma década. Revista “Fon Fon”, 4 de fevereiro de 1910 (Figura 29) e 4 de março de 1911 (Figura 30) e Revista o Careta, 4 de fevereiro de 1920 (Figura 31). 75

Figura 30 – Charge da revista "fon fon" (3)

Figura 31 – Charge da revista O Careta (4)

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Figura 32 – Rancho Flor do Abacate, no bairro Laranjeiras

Fonte: (Disponível em: < http://www.sambaderaiz.net>. Acesso em: 10 jan.2010).

Figura 33 – Rancho Aborrecidos

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 jan.2010).

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Na Figura 32, o rancho Flor do Abacate. Na Figura 33, o Rancho Aborrecidos. Os ranchos teriam influência decisiva nos rumos das Escolas de Samba.

Figura 34 – Rancho Ameno Resedá anunciado em O Careta

O Careta de 4 de março de 1911 (Figura 34) anuncia o rancho Ameno Resedá. No caso a imprensa se confunde, algo normal na época, o chamando de cordão. 78

1.6 Nascem as Escolas de Samba

Sempre vencemos, nunca perdemos O nosso time é do Estácio Vamos pra balança Não damos confiança Peso é peso, braço é braço A União faz a força (1927)19

Quando em 12 de agosto de 1928, assim lembra a memória do sambista Ismael Silva, a turma do Estácio fundou um bloco carnavalesco, e mais tarde um rancho, que seria a base das tradicionais agremiações carnavalescas o samba já ocupava relevante espaço no cenário político e cultural do Rio de Janeiro (CABRAL, 1997). Figuras como Sinhô, Pixinguinha, Donga, Noel Rosa já haviam gozado de boa respeitabilidade no mundo cultural da cidade, a Indústria Fonográfica e o rádio somente ampliavam a divulgação das canções populares. Ranchos e blocos já obtinham relativo sucesso no então chamado “pequeno carnaval”. Modificava-se o ambiente da produção cultural tal como as ideias políticas dominantes. Neste espaço, compositores do morro eram “descobertos” pelas gravadoras e “compradores” de samba como Francisco Alves.

"Nenhum outro lugar do país apresentava no início do século XX um mundo popular tão buliçoso e com tanta presença no espaço urbano, do que são evidências as numerosas festas de largo, as procissões, as bandas de música, os terreiros de batuque, os cordões carnavalescos, as rixas de capoeiras, os espetáculos circenses, os teatros de revista, os encontros de chorões, as rodas musicais nas principais lojas do ramo..." (CARVALHO, M.A.R., 2004, p. 41).

De fato este já era um cenário razoavelmente consolidado quando a formação das primeiras escolas de samba a partir dos anos de 1920. Mas, é no final da mesma década que o “samba moderno” mostra a sua cara, e ele e suas

______19Atribui-se este samba de 1927 a Bide. Nota-se na letra o forte orgulho de seu agrupamento carnavalesco. 79

comunidades começam aos poucos a ganhar notoriedade. Conforme o escritor Nei Lopes:

“esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual ao chegar aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o, legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades negras cariocas criaram as escolas de samba”. (LOPES, 2005)

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de valorização da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre outras. Um elemento novo surge, e queremos aqui chamar a atenção para este fato, o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a um espaço público que até então pouco as incorpora. Tal como nas palavras de Sérgio Cabral, “o Deixa Falar além de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia”. (CABRAL, 1996:41) Evidente que a incorporação do samba pela sociedade carioca tinha reduzido bastante a perseguição ao sambista, porém não podemos dizer esta caminhou em paralelo a exclusão social e a discriminação violenta da população afrodescendente20O processo de formação da Deixa Falar, seguido logo por Estação Primeira de Mangueira (junção de diversos blocos situados no morro de Mangueira) e Oswaldo Cruz (a “futura” Portela) mostram a tendência a organização em busca da legitimidade e força de suas agremiações, e é nesse momento que a ordem começa a sobrepor a desordem. O relato da impressa, de pesquisadores do assunto, de cronistas de época demonstra uma preocupação grande destes sambistas em

______20Por mais que estejamos afirmando aqui que pelos anos de 1920 o samba do morro começa a ganhar cenário, uma matéria de jornal de 1929 mostra que este ainda é visto com muito preconceito frente as outras manifestações carnavalescas, veja só: “Pernas finas e tornas escolhem sempre calções curtos e camisetas que deixam ver pobres peitos deprimidos. Tem-se a impressão de esqueletos cobertos com uma camada lacônica de pele e carne mumificada. Por outro lado, indivíduos de origem muito recente na Etiópia, com as mesmas camisetas de meia, axilas à mostra onde parecem localizar-se ninhos de rato”. (POUBEL, 2004) Não podemos confundir as coisas, afirmação mesmo, só lá para 1940/50 em diante. A condição melhora, mas não é um mar de rosas. 80

mostrarem-se ordeiros, “civilizados”, para uma sociedade que ainda os enxerga com bastante receio e preconceito. Por outro lado, formaliza-se – nos anos que envolvem 1930 – também por parte do poder público e pelas elites culturais um processo que já tinha se desencadeado alguns anos antes, e como já destaquei, de valorização, mesmo que de forma mediada e por vezes “folclorizada” de raízes e manifestações “puras” e autênticas da cultura popular brasileira. O sucesso do samba tinha sido feito aproveitando-se, inclusive, dessa medida, e com as Escolas encontraria tática parecida. Aí está um dos argumentos centrais da primeira parte de minha pesquisa, na medida em que as Escolas de Samba buscam se “enquadrar”, ou melhor, negociar, se envolver no cenário político e social que circunda os anos de 1930/40 ela reproduz em parte este processo em suas comunidades de origem.Isto faz com que as Escolas de Samba tornem-se importantes ferramentas de negociação com outras instituições que até então tinham com elas canais bastante atravancados. Desde a promessa de construção de quadras (ou ainda terreiros), melhorias para as comunidades, recursos para o desfile, isso sem falar, na “relativa” respeitabilidade do sujeito do morro. O povo pobre vai ganhando aos poucos visibilidade ao se fantasiar luxuosamente, cantando e gingando como ninguém, mas por outro lado, a festa opõe-se ao regulamento, a síncope, a harmonia detalhada, as notas dos “doutores jurados” avalizando a produção artística das favelas e comunidades pobres do Rio de Janeiro. Mais uma vez o samba ia falar de si ao povo da cidade, mostrando-se expressão cultural valiosa de um povo ainda em incorporação a modernização conservadora colocada em prática pelo novo regime.Se antes já era quase impossível ignorar os canais construídos pelo samba na cidade, agora seria cada vez mais difícil ignorar a força das comunidades que tinham nos desfiles carnavalescos sua maior exibição pública. Dessa forma concordamos com Fenerick ao afirmar que: "o samba moderno não poderia ser feito apenas pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele precisava dos dois universos culturais agindo mutuamente para a sua criação e difusão." (2002) Exatamente assim se dá a integração, o patrimônio se amplia, as tradições se recriam e se constrói uma manifestação cultural que tem a marca da mediação entre comunidades carentes, Estado, outras instituições e ainda de uma diversidade de ‘mediadores culturais’ oriundos de diversos outros segmentos sociais. É nesse sentido, que trazemos o sucesso dos ranchos como um elemento 81

de forte influência na formatação das Escolas. Só que estas além de empreenderem importante estratégia de incorporação, construíram junto de seus apologistas a ideia de tradição. A tradição que “inventa” as Escolas como a essência do carnaval carioca, e por vezes da cultura popular brasileira, lembra-se em seus desfiles a Bahia, a África, o Rio de Janeiro como matrizes da formação cultural das Escolas. Criando um enredo que começa na Bahia e firma-se no Rio de Janeiro, conquistando todo o país. Voltamos então à questão do surgimento das Escolas. Como já dissemos, a Deixa Falar surge como bloco (logo depois vira rancho, e nunca chega propriamente a ser “oficialmente” uma escola de samba). O nome “escola” vem (segundo o próprio Ismael) porque os bares frequentados pelos sambistas, entre eles o Bar Apolo e o Café do Compadre, ficavam nas redondezas de uma escola normal no Largo do Estácio. Sem entrarmos aqui na polêmica sobre a quem cabe a primazia da alcunha de “Escola”, surgiam depois Mangueira, Portela e Unidos da Tijuca. Mas o importante, é que ao falar da formação do bloco Deixa Falar percebemos como sua estrutura já incorpora em si elementos de organização e racionalização do desfile de carnaval (CABRAL, 1996). E na onda das transformações culturais dos anos 20 vai surgindo o primeiro gene de Escola.

"O jovem Ismael e sua roda de camaradas do largo do Estácio (Bide, Baiaco, Brancura, Nilton Bastos, Francelino, Tibério etc.) frequentavam morros vizinhos e até mesmo redutos negros mais distantes, como Irajá e Osvaldo Cruz. Certamente motivados pelo que viam nessas visitas, num sadio propósito de emulação, resolveram fazer um samba para sair às ruas e descer à cidade" (LOPES, 2003, p.46).

Ou no depoimento de Heitor dos Prazeres, na revista Manchete de 1966, sobre a construção da Deixa Falar, explicando a formação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro:

“Elas substituíram os ranchos, que já não eram mais frequentados pelos grandes sambistas. A ideia de formação das escolas de samba nasceu aos poucos, nos anos 20, durante os carnavais. Eu costumava sair tocando cavaquinho. Às vezes, olhava para trás, via mais de 200 pessoas que me seguiam, dançando. Eu levava nos ombros um pano da costa, de cores viva, usado normalmente pelas baianas. Meus acompanhantes o seguravam pelas pontas e o levantavam como se fosse uma bandeira. Acontecia o mesmo com outros instrumentistas. Passamos a nos organizar no Estácio, esquina da Rua Pereira Franco, ponto de reunião de Ismael Silva, Rubens Barcelos e outros sambistas, onde Francisco Alves nos procurava para comprar sambas. Formei um grupo de pastoras, uma das 82

quais era Clementina de Jesus. Mais tarde, sambistas da Mangueira e de outros bairros a se juntar ao nosso grupo. Finalmente, em 1927 (sic), com Nascimento, Saturnino, Ismael Silva e muitos outros, fundamos a Escola de Samba Deixa eu Falar, a primeira do Brasil. A designação Escola de Samba está associada a escola normal, que funcionava no Estácio, sendo os sambistas de fama então chamados de mestres ou professores. Surgiram depois as escolas de samba da Portela, Mangueira e Unidos da Tijuca” (CABRAL, 1996: 51)

O depoimento de Heitor traz marcas interessantes, não só dá uma tônica mítica para o nascimento da Escola de Samba, como coloca a alcunha de grandes sambistas aos bambas do Estácio e dos morros e subúrbios, os associados ao samba moderno, como destaca o pioneirismo da Deixa Falar como Escola de Samba. Olha aí as tradições sendo recriadas pelos sambistas, assim vai. Esse elemento é constante no mundo do samba. Mas quem faz pesquisa etnográfica conhece bem esse fenômeno: nenhuma memória é objetiva. Trata-se sempre de uma reconstituição, e até mesmo uma resignificação. É natural que sambistas coloquem sua origem no topo da história do samba. Mas aqui, não se trata de perceber o processo de formação das Escolas de Samba como algo que rompe inteiramente com o elemento lúdico e ritualista das primeiras manifestações da cultura afrodescendente e busca se racionalizar, ou mesmo com o samba mais ligado a indústria cultural, os ranchos, blocos e etc. Nem velho, nem novo. Mas sim, como resultado do processo de hibridização cultural levado ao mundo do samba21, desde a virada do século XIX até os anos de 1930. O samba continua sendo uma importante ferramenta de mobilidade e legitimidade para a parcela negra e mulata da cidade, ademais, para uma nova geração de artistas que “vivem” do e no universo do samba carioca. Se ele gestava nos morros e periferias, teve no carnaval e no clima mais ameno com as manifestações populares a chance de sua glória. Foi por isso que neste capítulo tentamos entender como o samba (ou a música popular produzida por em sua maioria gente negra) ajudou a configurar um novo cenário para as classes populares na cidade do Rio de

______21Volto a frisar aqui que não pretendo entrar na polêmica de quando surge de fato o samba. A única distinção que irei fazer de fato, é que com a Deixa Falar podemos trabalhar com a ideia de marco inicial do samba-moderno. Por vezes citarei o termo samba quando alguns estudiosos do assunto poderão bradar: isso é maxixe. Volto a recomendar o estudo de Sandroni (1998). 83

Janeiro, evidentemente em especial, para a parcela de origem negra22. Ao que me parece as Escolas de Samba são processos articulados com as estratégias de sucesso (pensando em incorporação) empreendidas pelos músicos negros, pelos ranchos e etc., seja no que tange mobilidade, seja no que permita fazer a festa mais ao seu modo23. Em 1930 já são cinco as escolas de samba da cidade: Cada Ano Sai Melhor (Morro de São Carlos), Estação Primeira de Mangueira, Oswaldo Cruz, Para o Ano Sai Melhor (Estácio) e Vizinha Faladeira (Praça Onze). Todas elas vinham de algum bloco ou da fusão de outros já existentes, reforçando a ideia de unidade em suas comunidades24. E como relata com precisão Augras (1998) as escolas já começavam a apreender o caminho rumo à respeitabilidade, nesse bojo o nome “escola” ganhava cada vez mais terreno sobre a anterior estrutura dos blocos carnavalescos. Cabral (1996), relata que foi nessa época que Francisco Guimarães, o cronista Vagalume, a quem se devem tantos depoimentos relevantes para a história do samba, recolheu da boca de um velho morador do morro do Salgueiro os seguintes versos: “O samba tem sua escola e a sua academia também”. Longe de serem agrupamentos desordeiros, as novas formações estavam falando da sua importância na transmissão e preservação do saber (AUGRAS,1998:25). O desejo de ascensão social e reconhecimento pela sociedade como um todo não só do samba como do negro, visto ser a educação a via oferecida pelo sistema e pelas comunidades carentes. Acho importante construir aqui um quadro com alguns elementos sobre a cultura do mundo do samba, reproduzido com algumas alterações, mas com base na pesquisa de Lima (2005), acerca da velha guarda da Portela:

______22Evidente que nos anos 20/30 o samba já não era mais um patrimônio somente de afrodescendentes. Diversos compositores e “gente” envolvida com as Escolas já compunha um universo social mais amplo.

23Não podemos pensar que as pessoas fazem ações culturais só para ter inclusão / mobilidade social. Mas também para realizar o mundo a sua forma, o elemento lúdico da festa.

24Isso não significa, como veremos, uma unidade entre as comunidades, mas sim uma unificação de cada comunidade em torno de uma ou duas escolas. 84

* Mediação cultural – A mediação cultural é aqui entendida como a ação dos indivíduos e grupos, ou o local de realização, que efetiva uma relação de troca entre indivíduos, grupos, espaços, de culturas diferentes, formatando o modernohibridismo cultural. * Identidade cultural – Uma contínua criação/recriação da identidade afro- brasileira. Como percebemos esse elemento é fundamental na construção de uma identidade via Escola de Samba. * Afirmação social – A visibilidade positiva adquirida pelos desfiles possibilitou maior inserção dos afro-brasileiros em nossa sociedade historicamente preconceituosa. * Memória coletiva – Assim como várias manifestações populares, o samba funciona como memória de um povo. Dando não sentimento de pertencimento ao grupo, mas como de patrimônio histórico e cultural. * Sociabilidade – Possibilita processos de integração social fortalecendo os laços comunitários. * Solidariedade – É um elemento próprio do mundo do samba, fruto histórico das relações estabelecidas para a sobrevivência entre as camadas pobres da população. * Respeito aos direitos, contradições e conflitos – Há uma série de valores morais que preservam a família, a liberdade religiosa e política. No entanto, ao lado desses valores, aparecem o alto consumo de bebidas alcoólicas, as relações com a contravenção, as relações machistas, que refletem as condições materiais, históricas e culturais de parcela da população da cidade. * Tradição e renovação – Tradição e renovação se afirmam dialeticamente. * Socialização de saberes – Esse é o elemento crucial da cultura do samba, sem o qual não seria possível o desenvolvimento dos outros. Por quê? Porque não se trata somente da socialização e transmissão de saberes com referência à composição, instrumentalização e dança do samba, bem como organização das Escolas de Samba e eventos como o desfile na avenida, que por si só já são importantes. Trata-se, ao mesmo tempo, de socializar ethos, códigos, estratégias de sobrevivência, de resistência cultural, de afirmação de grupos sociais. Estes pontos nos parecem bastante importantes, e em especial a ideia, já referenciada, de “educar” a vida comunitária, fazendo não só o que Estado não fazia, mas “preparando” estes para serem negros, ou mesmo pobres, na cidade do 85

Rio de Janeiro25. Este foi mais um dos elementos que mostravam o compromisso dessas agremiações com propósitos bastante orgânicos, ainda, pautados na construção de laços bastante fortes com suas comunidades26e na disposição de construir alianças em seu favor. O lugar da escola de samba aparece aqui como um importante espaço de sociabilidade e aprendizado sobre a vida. Tal como a demonstração sincera de parcela das comunidades cariocas que percebem nos desfiles um importante espaço de incorporação pública. Eram elementos dos padrões de comportamento dentro da escola, os compositores iam buscar em suas letras contar ao povo a “história” de seu país e da cultura africana, mesmo que alvo de críticas e controversas, como a de Nei Lopes, esse se tornou um importante foco de identidade.

“às escolas de samba cariocas – cujos terreiros (terreiros e não “quadras”, como hoje) até os anos de 1970 obedeciam a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé, com acesso à roda permitido somente às mulheres, por exemplo –, veja-se que elas, hoje, são, ainda, um veículo em que a temática africana é recorrente. Muito embora seus enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva meramente folclorizante” (LOPES, 2005).

Além da grande capacidade de sociabilidade e respeito frente à comunidade, podemos também, perceber, que esta medida “educadora” por parte das escolas mostrava uma possível preocupação destes grupos com a necessidade de “legitimar-se” frente à opinião pública mostrando as transformações que elas traziam na celebração do carnaval e na vida comunitária27. Até porque se fizermos essa análise, vamos perceber que na verdade, as primeiras Escolas de Samba, são suas comunidades, e quase todo o mundo se envolve com o desfile. O terreiro da escola de samba não era só lugar de algazarra, mas de trabalho, trocas e debates,

______25Se não pudermos dizer que este era um interesse esclarecido por parte das Escolas, o povo pobre percebe a mudança da vida daqueles que se aproximam das Escolas.

26 Na verdade é mais um ensinar a viver, a se preparar para o mundo, conforme o depoimento do compositor Casquinha da Portela, “... o samba ilustra a pessoa, o samba ensina muita coisa, depois a gente aprende, aqui dentro [da Portela] mesmo a gente aprende, não é, no desenvolver da... do tempo e tal, e daí vai aprendendo alguma coisa, bastante coisa, né”. (LIMA, 2005)

27 Evidentemente, não podemos colocar essa questão na seguinte linha, as Escolas mudam a comunidade. Parece-me que as Escolas são as comunidades. Elementos muito íntimos para serem decifrados na maneira de quem influência quem. 86

produzia identidade e o povo do morro queria mostrar que lá não havia só confusão (GOLDWASSER, 1975). Ora, então a mudança na Escola, pode configurar uma mudança na comunidade e vice-versa. Na verdade, podemos perceber, como irei tratar adiante, o surgimento de intelectuais, fortes líderescomunitários, mas também o entendimento da Escola de Samba, como uma espécie de liderança coletiva das comunidades. Da Matta (1973), também, chama a atenção para um argumento bastante importante na formação das escolas de samba, estas surgiam de um interesse de dentro para fora (ao que nos parece menos demarcado pelos ensejos da indústria cultural, mas não desarticulado). Esse interesse surgido no interior das comunidades garantia sua força interna, sua coesão e sua autenticidade. Em nosso estudo podemos levar este elemento com mais um fortalecedor de seus laços de identidade e de sua força nas relações com outras instâncias de poder. Evidente que essa preocupação por parte das escolas em busca da sua “legalização” e “legitimidade” frente às autoridades, não diminuía a rivalidade que faz parte dos desfiles até os dias de hoje, nada comparado às violentas brigas do carnaval do início do século, mas a questão é que no início a coisa também era mais feia (acredito inserir este contexto no ponto Respeito aos direitos, contradições e conflitos apresentado em nosso quadro anterior). Os concursos, ainda antes do tempo desfile oficial, eram alvo de controvérsias e confusões por parte dos sambistas das diversas agremiações. Isso pode mostrar também, que mesmo forte o desejo da “legitimidade” eram forte ainda as rixas oriundas de outros tempos, aí a coisa ainda estava muito cada um por si, estar vinculado à comunidade e a uma escola ainda era (e talvez ainda seja) muito mais forte do que estar integrado a uma cidade (pelo menos no desenrolar competitivo). O interessante aqui, é que o samba constitui-se como uma linguagem bastante integradora entre as classes populares, mas com o fortalecimento das Escolas a questão da comunidade se fortaleceu, construindo inclusive novas querelas e transportando outras dos tempos dos blocos e etc. Na verdade o carnaval sempre teve certo clima de rivalidade na cidade, isso muito antes das Escolas de Samba existirem. Este ponto, o das rivalidades, me remete a história de José Gomes da Costa, conhecido como Zé Espinguela, morador da Rua Engenho de Dentro, lá ficava 87

também seu terreiro. Segundo Cabral (1996), Espinguela era tradicional pai de santo da cidade, um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira que além de organizar eventos em seu terreiro era forte apoiador das escolas, pois trabalhava no jornal A Vanguarda onde publicava letras e anúncios sobre o samba, era também muito bem visto entre os grandes nomes da música popular na época, entre eles Francisco Alves. Mas vamos à história, em 29 de janeiro de 1929, dia de Oxóssi e São Sebastião, Espinguela resolveu promover um concurso para escolher o melhor samba, vamos ao breve relato do jornalista Claudio Vieira:

“No terreiro da Rua Engenho de Dentro, Zé Espinguela reuniu sambistas dos principais redutos de batucada do Rio. Vieram os do Conjunto Oswaldo Cruz, que mais tarde daria origem à Vai Como Pode, depois Portela; os do Estácio, representando a Deixa Falar; o primeiro grupamento de batuqueiros a usar o dístico de escola de samba; e os da Mangueira, onde o anfitrião tinha seus envolvimentos. Pelas regras do organizador, cada conjunto concorreria com dois sambas. O grupo de Oswaldo Cruz era representado por Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres; a Mangueira, por Cartola e Arturzinho; não há registro sobre os do Estácio. Nem na memória de Cláudio Bernardo da Costa, 91 anos, o sócio número um da Portela, que estava lá naquele dia. Talvez seja o único remanescente do encontro histórico. E lembra como foi. ‘Cada grupo levou torcida de 45 a 50 pessoas, se tanto. Tínhamos dois sambas, um do Antônio Caetano e outro do Heitor; que era muito amigo de Paulo e veio do Estácio se juntar a nós. Heitor tinha trânsito no meio musical. Era muito expedito. Mas o samba de Caetano era melhor que o dele’" (VIEIRA, 2003).

Cada escola concorreria com dois sambas e foi à escola de Paulo da Portela que ganhou. No dia seguinte, Espinguela publica no A Vanguarda a preferência pelo samba de Heitor dos Prazeres e daí começa o fuxico de que Mangueira e Estácio iam lá e quebrar o troféu, a turma do Estácio, enciumada, ficou indócil com a escolha. Mas, na hora de entregar o prêmio, o sabido Espinguela, atento às rivalidades, apareceu na escadaria da Escola Benjamin Constant, na Praça Onze, com três taças cada uma com uma fita lembrando as cores de cada escola. Isso de fato evitou um sério conflito e pelo que parece a ideia de concurso precisava matutar um pouquinho mais. Como observamos, tudo bem que a linha era a ordem suplantar a desordem, mas quem disse que as intenções pela legalidade e legitimidade das escolas seria 88

maior que o calor das tradições rivais existentes a tanto tempo – ou mesmo as recentemente inventadas28 – no carnaval, muita gente ali já tinha dado bofetada um no outro a algum tempo atrás. Mas a tendência era que a coisa ficasse mesmo mais ordeira, não que acabassem as rivalidades, mas estas seriam feitas de forma mais “politizada” em diante, até para evitar a justificativa da polícia de reprimir os sambistas, mesmo com alguns conflitos futuros, porém exceções como veremos adiante, mas por vezes bastante violentos. Mas voltando a questão dos campeonatos, o primeiro desfile mesmo das escolas seria realizado com o apoio do então jornalista Mário Filho promovido pelo jornal Mundo Sportivo. O lugar só podia ser um: a pequena África, a então Praça Onze. O jornal O Globo também logo compraria a ideia anunciando em sua manchete de 5 de fevereiro de 1932:

“Depois de amanhã, a Praça Onze será teatro do grande campeonato de samba promovido pelo Mundo Sportivo. […] O êxito do formidável certame está acima de qualquer dúvida. Basta ver o número de concorrentes, aliás, impressionante. As ‘escolas’ que se candidataram aos grandes prêmios são as melhores da cidade. O Rio verá de fato a massa encantadora dos morros descerem para a Praça Onze”. (CABRAL, 1998: 69 – grifos nossos).

Agora era a imprensa articulando-se as escolas de samba29, isso teria um papel determinante, e como veremos adiante em uma exposição mais teórica sobre o tema, não vitimando a escola e a sua política, mas sim, realizando um jogo de toma lá da cá, surge o regulamento do desfile, com ele a ordem e a porteira da “legitimidade” para além das suas comunidades vem se aproximando30. Se dermos

______28Usamos aqui o termo inventadas para dizer que mesmo que o samba tenha criado um canal de ligação entre o povo da cidade, as comunidades construíram em si forte identidade (tentei levantar estas questões na segunda parte deste capítulo). Com os desfiles, a disputa entre comunidades “inventou”, inclusive, novas tradições na cidade.

29Como já foi citado os ranchos tinham desenvolvido importante relação com a imprensa carioca. Outro elemento que quero destacar, é que só pelos anos 40 é que a Escola acaba por ficar tão ou mais importante que os Ranchos. Quando a Portela ganha 7 títulos na década de 40, chega a se falar em “promoção” desta para a categoria de Rancho. Segundo Cabral (1998), esta parece ter sido a opção da Deixa Falar. Agora, dado interessante, mesmo com a Deixa Falar nunca sendo propriamente uma Escola, quase nenhum sambista discorda do seu pioneirismo.

30 Outra manchete descrita por Poubel (2004) mostra a questão dos interesses e objetivos, já vamos chegar mais a esta questão, mas vale a manchete de 1932, quando ainda nem era oficial o desfile: “Faz-se este anno a oficialização do Carnaval com o fim patriótico e utilitário de atrair turistas à famosa cidade guanabarina”. 89

mais uma breve olhada no texto de O Globo, vamos perceber o surgimento do trato do samba do morro com feições exóticas mais próximas das raízes africanas, tinha um peixe para ser vendido nisso, não? Tendo a concordar com a sugestão de Monnik Poubel (2004), onde, à medida que cresce o controle sobre o samba e deixa-se de reprimi-lo – tornando o carnaval festa oficial – “o exotismo da cultura negra passa a ser motivo de atração abrindo espaço para sua valorização e consumo”. É um processo a se discutir. Parece-me que nesta época ainda era cedo (as manchetes preconceituosas ainda são muitas, e acho que a indústria cultural da época ainda não é dotada de elementos tão complexos), mas vamos ao artigo:

“O samba dos morros nem sempre desce à cidade. Às vezes, fica lá em cima, longe de qualquer possibilidade de ser transportado para o disco. Há malandros que não admitem a vitrola porque têm a impressão de que, na chapa, o samba perde a sinceridade, a graça emotiva e doce, o espírito delicioso”. (CABRAL,1998:71)

O samba do morro aparecendo como samba de resgate frente ao samba “erudito”31das ruas do centro da cidade. Este ainda discriminado começava a ocupar seu espaço timidamente, revelando novos talentos e acima de tudo, uma nova expressão cultural que tomava já mais o corpo da comunidade (a rapaziada de Mangueira, os bambas de Oswaldo Cruz, a turma do Estácio, e outros mais) do que a do sujeito sambista, da questão somente do talento individual32. Já se coloca a ideia da comunidade articulada para o sucesso do desfile, articulando-se com a cidade em busca do seu apoio na empreitada carnavalesca. Daí, para ampliar ainda mais a questão, vale uma fuga em Sodré, para o negro, após a abolição, “a apropriação da cidade como estrutura de encontro interétnico, criação festiva e confrontação simbólica” (1988:134) se intensificou, pois

______31O samba “mais erudito” que tanto fazia sucesso na ‘cidade das letras’ estava em parte envolvido principalmente por sambistas já conhecidos e alguns indivíduos de formação música erudita. A aparição das camadas mais populares e suas comunidades, foi arrematando adeptos como o próprio Noel Rosa, e dando visibilidade a outros como Ismael Silva, Paulo da Portela, Carlos Cachaça, Heitor dos Prazeres, Cartola e outros mais. Mas o que mais me chama a atenção e gosto de explorar este ponto aqui, é o surgimento da ‘comunidade’ como porta voz do ‘novo’ samba.

32 Com o surgimento das escolas de samba, seus ‘talentos’ ficam fortemente associados a sua comunidade, Cartola (Mangueira), Ismael Silva (Estácio), Paulo da Portela (Oswaldo Cruz), o próprio Noel Rosa (com a mais recente Vila Isabel, A vila não quer abafar ninguém / só quer mostrar que faz samba também) entre outros. 90

como nas palavras de Augusto Lima, “antes o negro tinha seu lugar – fixo e desumano, é verdade – mas depois ele não tinha lugar algum. E são as Escolas de Samba, em nossa análise, um dos mais importantes instrumentos dessa penetração” (LIMA, 2005), desse lugar. Mas, retomemos ao desfile daquele ano. Apesar de o concurso ter sido feito meio que no improviso, Pimentel que trabalhava com Mário Filho “sacou” um regulamento, arrumou uns sanduíches de mortadela, bastante cerveja e escolheu o júri, sua mulher Eugênia, Orestes Barbosa e outros (CABRAL,1996). Como relata Sérgio Cabral, o desfile começou as 20h30 e logo a Praça Onze estava lotada. Das 19 escolas presentes foi a Estação Primeira que conquistou o concurso, apresentado os sambas Pudesse meu ideal, de Cartola e Carlos Cachaça, e Sorri, de Lauro dos Santos, seguida por Vai Como Pode empatada com a Para o Ano Sai Melhor (também conhecida como segunda linha do Estácio) e Unidos da Tijuca. Neste ano, também, o muito aplaudido Heitor dos Prazeres foi premiado pela prefeitura com o um conto de réis pelo samba Mulher de Malandro gravado por Francisco Alves (CABRAL,1996). Com a razoável cobertura jornalística as escolas ganham alguma visibilidade no restante da sociedade, mas como já dissemos dois elementos já surgem, e mediados com agentes externos às comunidades, o regulamento e o júri, este último composto para além dos citados por Raimundo Magalhães Júnior, José Lira, Fernando Costa e J. Reis que por mais que tivessem algum envolvimento com o mundo do samba foram escolhidos pelo jornal organizador. É talvez, neste sentido, que alguns anos depois (1939), em pleno desfile, Paulo Benjamin de Oliveira, personagem destacado nesta pesquisa, iria entregar ao júri, em tom irônico, um diploma “deles” da comunidade, para “eles” do júri, a coisa pegou muito bem até porque a Portela ganhou o título este ano (CABRAL, 1998). Vale a letra do samba de Paulo:

Teste ao Samba (Paulo da Portela)

Vou começar a aula diante da comissão muita atenção que eu quero ver se diplomá-los posso

salve o fessor (professor) dá mão prá ele senhor 91

quatorze com dois doze noves fora tudo é nosso (bis, refrão)

Relatando a cobertura da imprensa, (já voltando a 1932) O Jornal do Brasil, publica a seguinte nota com o título de Carnaval na Praça Onze:

“A Praça Onze de Junho, tradicional pelos seus folguedos tipicamente característicos, manteve, ainda este ano, gargalhadamente, os seus foros de reduto inexpugnável da genuína festa da cidade” (CABRAL, 1998: 73).

A imprensa saúda a ordem e a alegria frente os “antigos e violentos” blocos com navalhas que por ali passavam. Porém, importante, opção de todo mundo, ou de quase todo mundo, basta lembrar que por estes e outros motivos a primeira escola virou rancho, Deixa Falar33. Um elemento forte em nossa discussão é que a busca da ordem não é só movimento de cima para baixo, isto é, pura imposição das elites culturais e políticas. Monique Augras (1998) traça uma importante análise do papel dos concursos de escolas de samba. Para a autora, pensando em controle social, os concursos de escolas de samba se tornam eficazes ferramentas. Premiando o desempenho de determinado grupo, se reforçam os padrões de representação, dissuadindo outros grupos de escolher rotas alternativas. Sob a aparência de valorizar a produção desses grupos, o concurso institui uma hierarquia de valores, estéticos alguns, ideológicos quase todos, que, “ao legitimar certas atuações e desqualificar outras, acaba assegurando a manutenção de um modelo estável e de fácil fiscalização. E o primeiro passo para tanto é a regulamentação do desfile” (1998: 31). As escolas passaram a se exibir fora do carnaval em teatros e festas sociais. 1933 teria um desfile com mais pompa, mas nada ainda comparado aos ranchos, em especial pelo financiamento e espaço na imprensa antes e durante o carnaval. Isto, é claro, sem falar das Grandes Sociedades que ainda dominavam o terreno do luxuoso carnaval das elites.

______33Se fala que a Deixa Falar não virou Rancho só pela legitimidade destes, maior que das Escolas, mas também por assim não estar submetida aos regulamentos e normas que pareciam nortear o desfile das Escolas. 92

E 1932, deu o empurrão, anunciando o sucesso daquele evento feito sobre determinadas normas e padrões. A apresentação fez relativo sucesso, tanto que no ano seguinte o jornal O Globo assumiu a promoção dos desfiles, estabelecendo a lista de quesitos para a orientação da comissão julgadora. Vale aqui citar uma das matérias feita pelo jornal, assinada por Carlos Pimentel e Jofre Rodrigues:

“Mangueira, Buraco Quente… A cidade sabe que o morro de Mangueira existe porque já o viu de longe. Verde ingênuo igual aos outros morros verdes. Mas a cidade nunca subiu o morro. […] Ela percebe que aquilo faz parte do seu território e se espanta de não conhecer a si própria”.

Uma matéria que demonstra o tom de uma cidade exótica, de um morro suave e pobre que encanta os carnavais de agora. Ainda a cidade de João do Rio, o morro e a civilização. Mas, continuando o artigo notamos também o discurso do papel do samba na mudança de um morro que “já foi” mais violento, ou mesmo, menos “adequado” aos padrões sociais da cidade:

“Raimunda era a porta-bandeira. Dançam as pastoras Nirce, Morena e Maria. Os braços, como serpentes, se enroscam em corpos imaginários. Entra tia Lucinda. Está velha, velhíssima, mas o samba a remoça. Viu quase tudo nascer a Mangueira, onde mora há 19 anos. Antes – diz ela - , a Mangueira não era assim. À noite, havia tirose sangue, por causa de mulher e de bebida. Agora, a Mangueira está diferente. Quase nunca há uma briga. Foi o samba que conseguiu esse prodígio – esclarece Saturnino (presidente da escola) – Todos sabem que, se houver briga, a polícia acaba com o samba. Por isso, quando alguém quer brigar, desce” (CABRAL, 1996:72- 74).

Interessante elemento, o morro ficou mais ordeiro para se “ajustar” e não ser “proibido” pelas autoridades, antes era desordeiro nas palavras de Tia Raimunda. Mas ficou mais “legítimo” à cidade toda e parece ter ficado mais “agradável” no que tange a opinião de Tia Raimunda e do presidente da escola Seu Saturnino. O morro não mudou só por vontade da polícia e da política oficial. As estratégias empreendidas por seus moradores, em especial por membros das escolas tiveram papel bastante relevante. O resultado é negociado (uma espécie de negociação e conflito entre comunidades e poder público), e me parece que foi assim mesmo, alcançando os objetivos dos próprios moradores em ver a terra onde o samba se fazia cotidiano mais articulada com a cidade, ou mesmo mais tranquila e “civilizada”.Voltando ao 93

desfile, a comissão julgadora fora formada por intelectuais, jornalistas e sujeitos interessados no mundo do samba. Poesia do samba, enredo34, originalidade e conjunto são os quesitos oficiais. Agora a letra do samba já é levada em consideração e parece que é neste ano que surge o primeiro samba-enredo de fato, foi na Unidos da Tijuca terceiro lugar naquele ano. O título foi para escola mais popular da cidade e preferida da imprensa, a do morro de Mangueira, bicampeã do carnaval. A cobertura do Correio da Manhãfoi entusiasmada: “a escola de samba de Mangueira foi, sem dúvida alguma, um sucesso” (CABRAL, 1996: 82). A Unidos da Tijuca foi saudada pela imprensa como a primeira vez em que um samba principal aparecia de acordo com a descrição do enredo, era “O Mundo do Samba” da Unidos da Tijuca. Sabemos que nesta época as escolas desfilavam com dois ou mais sambas, um de ida, um de volta e quase sempre estes sambas eram improvisados na hora pelos versadores da escola que iam improvisando segundo o clima do desfile e da plateia. A Unidos da Tijuca veio com três sambas este ano e o terceiro veio com a novidade, além da firmeza frente ao enredo, a ideia de uma segunda parte (Idem: 83), veja:

Somos Unidos da Tijuca E cantamos o samba brasileiro Cantamos com harmonia e alegria O Samba é nascido no terreiro

Não queremos abafar Nem também desacatar Viemos cantar o nosso samba Que é nascido no terreiro Perante o luar

Os sambas enredos só se popularizaram por volta dos anos 40, mas, ajustes importantes como este não podem passar despercebidos. O fato é que a normatização do desfile seria um processo vivo dali em diante, quanto mais aumentava a atenção despertada pelos sambistas no “mundo do asfalto” mais

______34O enredo já existia nos Ranchos. O Deixa Falar, que vira Rancho, desfila em 1932 com o enredo A Primavera e Homenagem à Revolução de Outubro. Saudando o golpe político de 1930. A ideia de enredos nacionalistas já começa a dar frutos, incentivado por mediadores, por opções dos próprios sambistas e nessa época mesmo por opção do governo. Contrário do que alguns pensam, o Estado Novo não outorga esta adequação, são as Escolas que a antecipam. E repito, não só por vontade de inclusão, mas também por estarem inseridas em um sentimento que tomava ares culturais e políticos de valorização da pátria em toda a população. 94

ampliava a interferência de elementos “externos” a sua formação. Fora isso as escolas também se organizavam e tornavam-se mais profissionais, no caso da Mangueira, por exemplo, em pouco tempo já incorporava em si um corpo administrativo com assembleias, reuniões e etc. Mas a ideia de samba-enredo não agrada a todos, o próprio Cartola apareceria como um de seus grandes críticos, pois ela desvirtuaria o movimento fundante das escolas, amarrando mais o desfile e o tornando espetáculo bastante organizado e calculado. Este foi também a primeira vez em que o desfile havia sido inscrito no programa oficial de carnaval elaborado pela prefeitura do Distrito Federal e pelo Touring Clube. Pedro Ernesto deslocou pequena verba para o concurso, além de realizar aparições nas comunidades prometendo quadras e etc. Essa proximidade do prefeito com o universo das escolas até hoje o faz ser lembrado por muito sambistas, ePaulo da Portela era um dos que o admiravam, como uma espécie de patrono das escolas cariocas (Idem, 1997). Um fato que demonstra esse avanço organizativo foi a tentativa de despejo de sete mil moradores do morro do Salgueiro, em 1934. Emílio Turano, “dono” de outros morros cariocas, dizia ter comprado o Salgueiro por 20 contos de réis. O sambista Antenor Gargalhada organizou a resistência, transformando a Escola de Samba Azul e Branco em uma verdadeira associação de moradores. Conforme relata Cabral, “a escola contratou o advogado João Luís Regadas para defender os salgueirenses e, no dia 8 de janeiro, o juiz da Terceira Pretoria Cível, Nelson Hungria, deu ganho de causa ao pessoal do morro” (CABRAL,1997:87). Aí a escola de samba assumiu claramente o papel de representante da comunidade na luta contra a ameaça de despejo. Separar uma coisa da outra seria muito difícil, no caso, despejar o povo do morro do Salgueiro seria o equivalente a despejar a 35 Escola de Samba Azul e Branco de seu local de origem . Neste mesmo ano, o carnaval fora antecipado para o dia de São Sebastião (20 de janeiro) e o jornal O País, junto ao chefe do gabinete do prefeito, Lourival Fontes, organizaram uma grande festa em homenagem ao prefeito Pedro Ernesto.

______35A Escola de Samba Azul e Branco localizava-se no Morro do Salgueiro que hoje tem como sua representante a conhecida Acadêmicos do Salgueiro. Na verdade a atual escola surgiu da fusão, em 1953, da Azul e Branco e da Depois Eu Digo. Em 1958 a escola adota o famoso slogan Nem melhor, nem pior, apenas diferente. 95

Desta vez com bilheteria, onde as Escolas de Samba receberam apenas 7% da renda (o restante da distribuição foi 35% para as Grandes Sociedades, 30% para os Ranchos, 25% para os Blocos, e 3% para o Andaraí Clube Carnavalesco). E no final das contas, as escolas de samba abrem mão da sua quantia minoritária em nome das Grandes Sociedades. Pode ser que esta atitude demonstre um meio das escolas serem “bem vistas”. A iniciativa foi do representante da Cada Ano Sai Melhor, Rafael Alberto Corte e Flávio Costa, o presidente da Deixa Malhar do Rio Comprido “deixou escapar” aos jornalistas que na verdade aquela havia sido uma medida tomada com o intuito de que as escolas de samba ganhassem o apoio dos grandes clubes da cidade para a sua própria festa (CABRAL,1997). A Estação Primeira, que desfilou com o enredo “República da Orgia” sagrou- se mais uma vez campeã. E recusou-se, já que eleita pelo júri “oficial” do evento no Campo de Santana, a disputar um evento com júri popular realizado depois no Estádio Brasil, colocando seu título a mercê de uma ‘guerra de torcidas’. A vencedora deste segundo desfile foi a Recreio de Ramos. E de fato as coisas não andaram muito bem no desfile no Estádio Brasil, houve uma violenta briga entre a Azul e Branco e a Vizinha Faladeira. Um dirigente da Azul e Branco na época narrou o seu lamentar pelo conflito: “temos nos batido para acabar com essa mentalidade de rixa. E haveremos de conseguir” (CABRAL, 1998). ‘Essa mentalidade’ ia dando lugar a uma nova realidade, mais ordeira, menos violenta, mas, ainda não tão vazia de rivalidades, estas ainda serão muitas, mesmo que expressadas de outra forma. Mais desfile e menos navalha.

1.7 Preparando os desfiles oficiais

Em 1934 a Escola de Samba Vai Como Pode solicita ao delegado Dulcídio Gonçalves a renovação de sua licença de funcionamento. O delegado responde sugerindo a mudança de nome da escola, e afirma que não daria a licença a nenhuma Vai Como Pode (considerado pelo delegado nome chulo), sugere Portela que era o nome da rua principal da comunidade, o pessoal aceita (CABRAL, 1998). No mesmo ano, outro fato, de valor bastante relevante para a história do carnaval acontece, é formada e sancionada em 6 de setembro a União das Escolas de 96

Samba. Eram as escolas se organizando na busca de alcançar o mesmo status das grandes sociedades, dos ranchos e outros festejos. Em carta endereçada ao prefeito e ao departamento de turismo a entidade explicita seus objetivos:

“os núcleos onde se cultiva a cultura verdadeira música nacional, imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial da brasilidade. [...] Explicas que estão as finalidades desta agremiação, sob vosso patrocínio, composta de 28 núcleos, num total aproximado de 12 mil componentes, tendo uma música própria, seus instrumentos próprios e seus cortejos baseados em motivos nacionais, fazendo restringir o carnaval de rua, base de toda a propaganda que se tem feito em torno de nossa festa máxima” (citado em AUGRAS, 1998: 34).

Em sintonia com o clima cultural e político da época as Escolas lançavam o manifesto de fundação de sua entidade representativa. Ora, não podemos pensar que isto tenha sido mera influência do poder público e pensar que os populares estariam absolutamente desconectados do rebuliço de ideias que acontecia naquele tempo. Outro elemento que mostra o avanço de seu grau de organização e legitimidade é um dos artigos do decreto da prefeitura:

“Artigo único – Os auxílios às escolas de samba para a exibição no carnaval, quando concedidos a juízo da Administração, serão entregues à União das Escolas de Samba, que os distribuirá equitativamente pelas suas federadas, sujeitas, porém, à fiscalização por parte da diretoria Geral de Turismo que, para isso, registrará a lei da União” (Idem: 34).

Mesmo que a verba e a atenção recebida estivessem longe de acompanhar o peso das Grandes Sociedades, ou mesmo dos Ranchos, as Escolas mostravam disposição em se enquadrar nas regras do jogo e o prefeito, na época Pedro Ernesto, não perderia tempo em incentivar a subvenção e a premiação. Segundo Augras (1998) esse comportamento, das Escolas, caminha em sintonia com a expectativa oficial. Não que isso se configure como um processo de repressão e dominação, e sim como uma construção mútua das novas manifestações populares no carnaval, ou mesmo do papel das classes populares no jogo político da cidade. Até, pois como se sabe, Pedro Ernesto estava fundando o seu Partido Autonomista do Distrito Federal. Segundo Queiroz (1984):

“A tolerância e mesmo a benevolência que a prefeitura do Rio de Janeiro demonstrou então para com as Escolas de Samba sem dúvida decorreu destas circunstâncias. Inúmeros testemunhos se referem às verdadeiras transações que se operavam entre fundadores de escolas de samba, chefes 97

políticos em diversos níveis, candidatos e vários postos, altos funcionários em diversos níveis, candidatos a vários postos, altos funcionários em busca de prestígio. Destes solicitavam os fundadores das escolas melhorias e privilégios para elas, contra certo número de votos no momento das eleições; e obtiveram o que desejavam” (1984: 901).

Tudo bem que trocas e aproveitamentos se estabeleceram, mas só temos que tomar cuidado com a tônica de que tudo fora decidido por cima, isto é, os desfiles só ocorreram devido à boa vontade da prefeitura em aceitar a nova manifestação. Esse elemento desvaloriza o empenho dos populares em garantir um espaço reconhecido para suas manifestações e sua disposição em negociar para concretizar esse objetivo. Ao mesmo tempo, que os ventos políticos e culturais pós- 1930 valorizam o carnaval popular, dispondo mesmo do interesse de integrar esta parcela da população através da cultura. (SOIHET: 1998). Tanto nos parece correta a argumentação de Soihet (1998), que se dermos uma olhada no regulamento estabelecido pela UES encontraremos um elemento bastante discutido nos estudos sobre Escolas de Samba, já no segundo ano de seu funcionamento a entidade estipula a adoção de enredos nacionalistas, isto é, temas nacionais, diferentemente do próprio Rancho que não exige tal referência. Uma autocensura dos diretores das Escolas ora, já promovendo-se como raiz da cultura nacional, ora, adequando-se, ou mesmo sendo um elemento do clima cultural e político vigente. Isso não representa ser “fantoche” do Estado, até porque, o DIP só iria incentivar essa “exigência” no carnaval de 194036. Acredito que a capacidade das Escolas tornarem-se símbolo nacional, tem ligação muito íntima com esta flexibilidade. Assim, segundo a mesma autora, a institucionalização do samba no caminho da construção da UES seria resultado da:

“1 – preocupação dos sambistas com a sua organização, para facilitar a divulgação e a aceitação do samba pelos diversos setores da sociedade brasileira, não ficando este restrito aos segmentos populares; 2 – possibilidade de abrir um canal de comunicação entre as escolas e os demais organismos da sociedade, prática cada vez mais necessária às atividades dessas agremiações, especialmente na época do carnaval,

______36Em 1939 a Escola Vizinha Faladeira seria excluída dos desfiles por não abordar temas nacionais. 10 meses antes mesmo da criação do DIP. A censura mais dura frente aos sambistas se dará somente com o governo Dutra. Podemos também entender, está autocensura dos sambistas no período da ditadura, como uma medida que antecipa a exigência, mantendo relativa autonomia do movimento. 98

quando era preciso haver um relacionamento mais estreito com os órgãos responsáveis pelo planejamento das atividades carnavalescas; 3 – necessidade de os sambistas possuírem um órgão que defendesse seus interesses, principalmente o controle dos direitos autorais dos compositores, que, via de regra, tinham suas músicas furtadas por cantores conhecidos que as registravam como de sua autoria” (1998: 141).

Todo esse clima de institucionalização, negociação, busca por respeito e legitimidades, em muito tem ligação com a posição de grandes lideranças comunitárias bastante articuladas com políticos, funcionários públicos e gente da imprensa. Segundo Lutgarde Barros em pesquisa sobre a cultura popular no nordeste brasileiro (1988), “a consequência mais imediata da cultura popular é o surgimento de muitos homens do povo produtores de ideologia” (1988: 143). Aqui, posso sugerir que as comunidades construíram seus intelectuais e lideranças, gente que unificava e articulava sob um formato de liderança a representação coletiva daquele lugar. Cartola e Carlos Cachaça unificaram o morro da mangueira em uma Escola, em depoimento de Cartola recolhido em Moura (1988):

“eles viram (o povo do morro) a organização, o modo como mudamos da água para o vinho e foram se chegando e foram acabando os bloquinhos. Depois fez-se a junção geral. No ano seguinte, mestre , Tia Tomásia foram praticamente tudo para a Estação Primeira, 'nós vamos disputar com o Estácio! Vamos disputar com a Favela! É a Mangueira que está em jogo' . E aquilo foi vindo, e nós chegamos onde está hoje”.

Antes de continuar esta questão, propriamente a do papel dos intelectuais e lideranças, o discurso de Cartola demonstra que o próprio sentimento de comunidade, gestado ao longo de mais de uma década é um elemento bastante forte na constituição do formato das Escolas de Samba, vamos disputar com a Favela! É a Mangueira que está em jogo. E a meu ver, as Escolas só ajudam a reforçar mais ainda este elemento, porém ampliando o patrimônio social do samba na cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que amplia a legitimidade deste setor da população para com o restante da cidade. Esse fator é muito forte, basta ir ao ensaio de qualquer Escola de Samba, para perceber como seus membros caminham na quadra como figuras ilustres ao meio de muita gente que nunca teve contato com a comunidade. Fazer parte da Escola também poderia ter um elemento de autoestima social. Outro membro destacado das Escolas era Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, personagem de nosso próximo capítulo. Podemos dizer com certa 99

tranquilidade que este carpinteiro e lustrador fora uma das mais expressivas lideranças populares da vida carioca. Além de grande compositor e passista, era uma espécie de relações públicas da Portela. Na época de desfile Paulo corria às redações de jornais da cidade diplomaticamente avisando as novidades do carnaval portelense, além de tudo era grande apoiador de Pedro Ernesto (CABRAL, 1998). Seu prestígio dentro e fora da comunidade era muito grande, do lado de dentro a liderança de Paulo era muito clara, a Portela tinha que dar o exemplo, tinha que acabar com a ideia de que Escola de Samba era lugar de vagabundo. Assim ele anunciava: “Quero todos de pés e pescoços ocupados”, todo mundo de sapatos e gravata no desfile, ninguém de chinelos, de camisa com colarinho aberto e gola de pé como faziam os malandros daquele tempo. No mundo do samba, o prestígio de Paulo era inquestionável.Ganhou mais de uma vez os diversos prêmios dados às personalidades do samba, que era patrocinado por parte da imprensa carioca edepois pela UES37. Na Figura 35, a seguir, Paulo Benjamim de Oliveira (Paulo da Portela), Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Alcebíades Barcelos (Bide) e Armando Marçal caminham no bairro Engenho de Dentro.

Figura 35 – Personalidades do samba

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

______37Paulo da Portela é objeto do segundo capítulo desta pesquisa. 100

Na verdade, a maioria das escolas tinha o seu “Paulo”, o da Portela sem dúvida foi o mais atuante. Como vimos, tinha também nos seus quadros gente com relação boa com as “autoridades” da época. Mas mesmo assim, mostrando a antecipação das Escolas frente à boa vontade do poder público, a polícia ainda marretava em muito os sambistas, dizia-se naquela época que os maiores inimigos das Escolas de Samba eram a polícia e a chuva. Eram coisas que só iam acontecer no carnaval. Como o ritmo expressão dos setores mais marginalizados da cidade cresceu a ponto de seu representante anual, eleito cidadão do samba (depois cidadão Momo) escolher as regras de comportamento na cidade no carnaval (evidentemente, tudo não passava de uma brincadeira). Em 1936 Paulo da Portela, foi eleito Cidadão Momo38 da cidade, a imprensa publicou o primeiro decreto de Paulo para o período do carnaval:

“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram conferidos para governar durante o tríduo da folia, Considerando que o nosso regime republicano não se coaduna com um reinado, nem mesmo carnavalesco, Considerando que o samba nasceu no morro e rei não frequenta morro, Considerando que no carnaval não pode haver vassalagem, Considerando que a monarquia, pelas próprias extravagâncias do rei, por mais popular que seja não pode encarnar o samba, a verdadeira alma do carnaval, Resolvo destronar o rei, que terá a sua cidade como ménage, ficando sem efeito todo e qualquer decreto lavrado pelo monarca, a estas horas reduzido à expressão mais simples” (CABRAL, 1998: 111).

Não era o mesmo povo que assistiu bestializado a formação da República assinando, aqui pelas Escolas de Samba, sua aliança como novo regime? Agora veremos as regras escolhidas por Paulo para gerir a cidade, sabemos que após o decreto, o jornal A Pátria estampou em manchete: O RIO SOB A DITADURA DO CIDADÃO DO SAMBA! Vejamos o decreto:

“1 Ficam suspensos todos os pagamentos de pensões, lavadeiras, senhorios e a todos os cadáveres. 2 Os patrões dos empregados que forem despedidos por estarem a serviço

______38Em tempos de república, a ideia de Rei Momo pegava mal e virou Cidadão Momo, esse prêmio é uma variação do cidadão do samba que Paulo já havia conquistado. 101

do Cidadão do Samba ficarão sujeitos a multas de 500 mil-réis a um conto de réis, o que será escriturado nos livros de ouro das escolas a que pertencerem. 3 Os homens da prestação ficam na obrigação de fornecer todas as fazendas necessárias à indumentária de carnaval durante os folguedos da República do Samba, sob a condição de receberem como sinal apenas um por cento do valor da respectiva compra. 4 As patroas ficarão com a incumbência de tomar o lugar de suas empregadas para o melhor brilhantismo da festa. 5 Todo cidadão encontrado na rua que não esteja completamente embriagado pela alegria, sujeitar-se-á à pena de cinco dias de prisão na Praça Onze, na balança, num roda de batucada, a fim de compreender as delícias do samba. 6 Todos os aristocratas desta democratíssima república são condenados, sumariamente, a aderir ao meu governo, a fim de compreenderem que o samba é feito de pedaços d'alma, cintilações do cérebro, muito amor e grande dose de amor pátrio. 7 Durante minha administração, os bebês ficam incumbidos de se defenderem com suas mamadeiras, enquanto as babás caem no pagode rasgado. 8 Todo aquele que, por atraso mental ou por mal fingida hipocrisia não queira concordar com o absoluto domínio do samba, deve ir se desguiando de fininho para não ser considerado desmancha-prazeres” (Idem: 112).

Na verdade, tudo não passava de uma boa brincadeira, mas na declaração de Paulo estavam os elementos dafesta ao avesso, do mundo na forma que os populares o queriam. Não que assim se fizesse o carnaval, como já disse a própria polícia não entendia essa questão e continuava atrapalhando a festa. O discurso traz em si elementos também de apoio à república e sintonia com o discurso de valorização das coisas nacionais, anunciando a hegemonia do samba como seu fiel representante e a futura, e breve, hegemonia das Escolas. Mas ao cuidado, devemos atentar para não cair na polêmica que fora travada em cima da tese de Da Matta (1978) sobre as suspensões sociais na época do carnaval, onde este se faria “situação-limite de informalidade e de incontinência total”, enxergando este como um período de communitas, onde é imperativa a marca de inversão das hierarquias na sociedade. Se for de certo que Paulo com seu discurso disputa poder em defesa do grupo que o faz representante, não podemos assimilar a situação do carnaval do Rio de Janeiro como um papel de simples “inversão” (e nem me parece que assim Da Matta o trata), mas sim de demonstração das concepções de mundo e vida dos populares, tal como a época onde se demonstram com mais força suas estratégias de negociação, organização e relacionamento social entre si e com o restante da cidade. Segundo Amaral (2000), Roberto Da Matta define o carnaval, dotado de um ritual com um discurso simbólico que destaca certos aspectos da realidade e os 102

agrupa através de inúmeras operações como junções, oposições, integrações e inibições. Segundo a autora, os rituais podem dividir-se em: ritual de separação ou ritual de reforço, onde uma situação ambígua torna-se claramente marcada; ritual de inversão, onde há quebra dos papéis rotineiros e ritual de neutralização, combinação dos dois tipos anteriores (DA MATTA, 1978). O carnaval brasileiro é considerado por Da Matta como um ritual de inversão, onde as hierarquias por alguns momentos se apagam: o pobre fantasia-se de príncipe, o homem de mulher e assim por diante. O indivíduo não desaparece no grupo, pois segundo Da Matta (1978: 93), "o projeto da sociedade brasileira, com suas regras e seus ritos, é o de dissolver e fazer desaparecer o indivíduo". No carnaval, contrariando o projeto social, as leis são mínimas: "É o folião que conta. É o folião que decidirá de que modo irá brincar o carnaval" (DA MATTA, 1978: 115 in AMARAL, 2000). Essa perspectiva da inversão é criticada por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1992), que observa que isto pode acontecer no nível dos sentimentos e expectativas. Como se formasse um clima de inversão, no entanto, diz ela, ao se adotar essa perspectiva, acaba-se deixando de lado o fato de que a festa, tal como se organiza, apresenta estruturas e hierarquias que devem ser analisadas de perto para verificar se esta visão de que existem, na festa carnavalesca, orientações opostas às do cotidiano não é simplesmente uma visão teórica que pode ou não encontrar respaldo na realidade experimentada pelos indivíduos. Em termos de estrutura social não existe, na verdade, nenhuma inversão no Carnaval, seja ele o de rua, o das escolas de samba ou mesmo dos clubes. E a tendência futura é de ampliação da exclusão das comunidades do desfile carnavalesco e das festas populares. Ainda, segundo Queiroz:

“Adotando somente tal perspectiva para o conhecimento da festa carnavalesca, este fica exclusivamente circunscrito às emoções que a comemoração desperta nos participantes; e as emoções constituem, assim, as únicas vias para se chegar a uma explicação dos comportamentos. [...] Não levando em conta senão a ideia que se formula a respeito da festa, perde-se todo um leque muito rico de significados que decorrem das relações entre o mito que afirma a instalação da desordem social e a conservação das estruturas sociais que, na verdade, continuam imutáveis sob a desordem aparente” (QUEIROZ, 1992: 196).

Para a autora, os dias de folia devem ser compreendidos como um rito de um mito sobre a sociedade ideal:

103

"O conceito de Carnaval [...] é concebido como resultado de aspirações, conscientes ou inconscientes, orientadas para uma sociedade ‘outra’, na qual não existiriam nem injustiças, nem coerções; assim, mobilizaria a ação dos indivíduos no sentido de instalar uma sociedade de liberdade e paz. Muito embora o ideal não tenha sido nunca atingido, apesar de a festa se repetir ano após ano, acredita-se sempre que o objetivo será um dia alcançado; em todo caso, o fato de que ela se realiza novamente nas datas fixadas mostra que a esperança está sempre presente, assim como o apego e o gosto pelo folguedo: uma vez que a sociedade alternativa pode durar quatro dias, por que não poderia ela se instalar finalmente de modo definitivo?" (QUEIRÓZ, 1992:182).

1.8 Cidadãos e Escolas de Samba: Alguns apontamentos para o balanço da afirmação do samba nos anos de 1930

Mesmo que até a década de 1950 as Escolas de Samba ainda não representassem o elemento máximo da festa carnavalesca brasileira, tentei neste capítulo, compreendendo o período que nasce na Belle Epoque carioca até a ascensão do Estado Novo demonstrar os elementos que deram a tônica no formato das Escolas de Samba, e como com elas, as classes populares inauguram um novo cenário de participação social na república. Tentei demonstrar como este cenário não é fruto somente de uma ação do poder público para com os populares, como se acostumou a pensar com o fortalecimento da ditadura Vargas. Tentei mostrar os elementos sociais que favoreceram este acontecimento, em especial as ações das classes populares na cidade do Rio de Janeiro, que terminaram na construção daquele que passou a ser chamado de O maior espetáculo da Terra pelos cariocas. Nos anos que circundam 1930, este elemento fica mais forte, pois a compreensão de hegemonia em nosso país passa pelo entendimento de que, os interesses dos diversos segmentos sociais não poderiam mais ser ignorados por qualquer grupo que aspirasse à hegemonia política no Rio de Janeiro e no país, fazendo-se esta cidade caixa de ressonância para todo o país e capital da república, este cenário somente se fortalecia. A reconstrução da nacionalidade encontra no samba um de seus elementos mais agregadores, até pelo comportamento de trocas culturais flexíveis, desenvolvido pelos setores envolvidos no mundo do samba no Rio de Janeiro. Soihet (1998) traz um importante elemento para este debate, onde a autora acredita em um momento que as forças convergem. De um lado, os populares, que se dispõem à conquista do espaço público não mais se contendo em 104

seus grupos religiosos e tradicionais. De outro, a proposta de valorização da cultura popular por um Estado que se dispõe a realizar a união entre a elite e as massas e que, com a junção entre natureza e cultura, por intervenção da política, faria a tão sonhada integração. No caso, o carnaval, sendo a maior festa popular, passa a ser alvo de forte atenção. Assim, as Escolas de Samba, simbolizam o crescimento da participação popular no espaço simbólico e material da cidade, umas variedades de elementos, que tentei esboçar neste estudo, facilitam esse acontecimento. Veremos um cenário de concessões mútuas, onde os populares aproveitaram todas as brechas dadas de forma bastante criativa e articulada, que podem ser bem definidas em outra declaração do nosso Paulo da Portela: “devemos impor a cultura e a arte de nossa raça, respeitando e fazendo respeitar as normas e leis. O sambista deve ser responsável e correto, cultivando a união e evitando a violência” (ARAÚJO, 1991: 185). Em 30 de janeiro de 1936, segundo Cabral (1998), um ensaio da Estação Primeira era transmitido diretamente para a Alemanha nazista em edição especial da Hora do Brasil. Era a escola usada como propaganda do regime ao seu “aliado” no exterior, claro, que não podemos dizer que a Mangueira era nazista, acredito que nem se tinha este questionamento, mas claramente apoiava a participação em tal ação governamental, isso claramente dava legitimidade, o que foram mostrar aos alemães para falar do Brasil? A Escola de Samba, que coisa estranha frente a ideologia racial daquele país. E a disputa, não ficava só por conta do Estado, os comunistas também entraram na disputa, seus periódicos como a Tribuna Popular enfatizariam sempre a importância daquela manifestação da cultura popular. Os anos da década de 40 viveriam uma verdadeira guerra fria39no samba, culminando no fechamento pelo regime da UGES (agora União Geral das Escolas de Samba) acusada de ter comunistas no seu quadro, em especial devido ao forte apoio da Tribuna Popular a entidade, que culminou em um desfile no Campo de São Cristóvão, no dia 15 de novembro de 1946, em homenagem a Luiz Carlos Prestes sujeito bastante querido por Paulo da Portela. Também, não que os portelenses fossem comunistas, mas o povo admirava o Cavaleiro da Esperança. Este elemento

______39Para saber mais sobre a relação estabelecida entre comunistas e escolas de samba ver a pesquisa de Guimarães (2005). 105

serve para mostrar que as Escolas de Samba não estavam somente subordinadas a ordem acima de tudo, mas também, aos poucos, vão deixando de ser patrimônio somente de seus “fundadores”, entrando em cena mais como um espetáculo que traz na sua expressão artística a mediação de vários interesses, cada qual com a sua capacidade de influenciar e produzir a síntese cultural expressa na sua produção. Influenciam, cada qual a sua intensidade relativa, o povo, a assistência, o turista, o julgador, o patrocinador, o rádio, a indústria fonográfica, os políticos, e etc. Mas, a comunidade onde ela se originou, continua tendo na escola, um canal privilegiado de expressão de seus interesses e concepções de mundo, disso não nos resta dúvida. Só fica difícil de perceber para aqueles que continuam enxergando as classes populares de forma estanque, incapaz de construir estratégias alternativas aos modelos clássicos de guerra social e outros estereótipos de padrão reducionista. No capítulo seguinte vamos nos aproximar mais de um personagem específico no período aqui analisado, é Paulo Benjamin de Oliveira ou Paulo da Portela. Como já fora dito aqui, Paulo foi a principal referência da Portela nesse período, além de que fora uma das figuras mais respeitadas e articuladas no universo do samba carioca. Compreendendo este personagem dentro de sua conjuntura poderemos perceber com mais força o movimento de afirmação, ou melhor, de integração da cultura popular no Rio de Janeiro do último século.

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2. DE PÉS E PESCOÇO COBERTO: PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA

2.1 Indivíduos x Sociedade: o lugar sociológico da questão

Paulo da Portela foi uma das principais lideranças de um movimento artístico que elevou as escolas de samba do Rio de Janeiro a ser uma das principais atrações festivas da cidade. Sob todos os aspectos este movimento sócio histórico modificou positivamente o lugar da cultura popular no Rio de Janeiro. Isto é, Paulo foi liderança de um movimento que ajudou a remodelar o pacto urbano, onde a população negra foi elevada ao nível de protagonista da maior festa popular da cidade. As escolas de samba da capital fluminense são fundadas no final da década de 1920 e em menos de trinta anos ganham a centralidade da festa carnavalesca carioca. Em pouco tempo, as escolas se tornariam o cartão postal da cidade e símbolo de identidade cultural do carioca em todo o país. De que modo as escolas de samba funcionaram como dispositivo de integração cultural da comunidade negra da cidade, no período entre a primeira república e o governo Vargas? O primeiro período, sobre o qual me prolonguei no capítulo anterior, é de fundação das agremiações carnavalescas. Deste momento, participaram diversos ilustres compositores bem conhecidos de nosso tempo, como Cartola, Paulo da Portela, Ismael Silva, Noel Rosa e tantos outros. Acima de tudo, aquele foi um tempo de união em busca de um lugar que mudasse a imagem e a realidade do sambista na cidade. Um segundo período pode ser identificado na história da escola de samba, quando nos aproximamos da sua consolidação no início dos anos de 1960. Nesse período, o crescimento das agremiações produz divisão, questionamento e mudança, Cartola sai da Mangueira, Paulinho da Viola se afasta da Portela, Candeia funda uma nova escola de samba se remetendo ao passado glorioso de Paulo Benjamin de Oliveira. Mesmo aqueles que concordavam com os rumos que as escolas tomavam enxergavam nos seus fundadores a figura do herói. Ao analisar o discurso de pessoas que conviveram com Paulo da Portela percebemos o tom enaltecedor. 107

Paulo é quase sempre tratado com alguém diferente e heróico (FARIAS, 1999). Sem esquecer aqui a crítica de Bourdieu (1997) a certa magnificação da história da vida como método de conhecimento histórico-sociológico, e levando em conta que as pessoas se apropriam criativamente das histórias que vivem e nesse momento como indivíduos portam os sentidos como espécie de objetividade coercitivamente externa, é importante reter que realizam e reinterpretam ao interpretarem suas atitudes. Munidos desse alerta, podemos seguir em frente, mas de todo modo, a valorização da história de Paulo da Portela pelos seus contemporâneos parece ser em si, um elemento que atesta a sua legitimidade no grupo. Diversas vezes o pesquisador tem acesso a práticas sociais do passado através de textos ou depoimentos. Melo (2010), debatendo com Chartier, percebe que o fundamental no trabalho do pesquisador vem a ser justamente o de procurar entender as relações entre o discurso, às práticas sociais e o contexto os quais ele se refere. Nesse sentido o discurso deve ser pensado como mediação, e não deve, portanto, ser entendido como possuindo uma identidade imediata com a as práticas sociais de determinado grupo (MELO, 2010). Tal como Farias (1999) e Melo (2010), entendemos o indivíduo como uma entidade capaz de atribuir e recriar os sentidos. Dessa forma, a individualização é incorporada não apenas como um atributo intrínseco ao agente pelas forças homogeneizantes do concerto societal, porém diz respeito também ao modo como, segundo circunstâncias e recursos específicos (culturais, simbólicos e materiais), os sujeitos podem desenvolver táticas que incidem sobre o sentido (FARIAS, 1999). Deste modo, se essas intervenções não subvertem toda uma ordem, podem, contudo permitir ao indivíduo inserir no seu posicionamento na teia social tanto diferença quanto distinção, ao impor a própria vontade mesmo contra resistências. Paulo se tornou uma unanimidade nesse universo que circunda a produção cultural do samba. Ao se remeter a um personagem dessa importância na trajetória de seu grupo, seus membros podem elaborar visões que enaltecem o lugar de sua principal referência e do seu próprio grupo. Como já alertado, isso não significa que seu discurso não seja uma impressão complexa de uma realidade histórico-social e mesmo, do lugar de determinado processo e personagem na história (FARIAS, 1999). É claro também, que em ambientes de produção artística (ou mesmo em movimentos culturais mais abrangentes) existe uma tendência a romantização do 108

passado, ou melhor, do momento de fundação. Tende-se a atribuir uma pureza a este momento, como com os primeiros sambistas, os fundadores da Bossa Nova, os instituidores do Partido Alto, os criadores do Rock and Rool e etc40. Por esse caminho percebo Paulo como um personagem central na análise da trama que envolve o sucesso dos desfiles carnavalescos na cidade. Por isso enfrentaremos aqui uma discussão acerca da chave sociológica41 entre indivíduo e sociedade. Em "A Sociedade dos indivíduos" (1994), Elias demarca que a sociedade é composta por indivíduos e estes são constituintes da coletividade, ambos imbricados, não sendo plausível ponderar os termos de forma apartada. Não há sociedades sem indivíduos e, analogamente, não há indivíduos sem sociedade. Conforme seus habitus, para falar também em termos bourdieusianos, os indivíduos, integram e compõem a sociedade, modelando-se e modelando-a ao se pautarem uns com os outros. A construção teórica de Elias sobre a questão indivíduo/sociedade explora as relações ativas entre os termos – e suas caracterizações – em distintas sociedades e tempos históricos. Segundo Bariani (2005), ao analisar a vida do compositor Mozart, Elias propõe também um enigma superior: “Após lidar com a intrincada questão da relação indivíduo/sociedade, e estabelecer as configurações e modos de articulação possíveis entre os termos, como lidar com a incômoda figura do indivíduo que – possuidor de características especiais, talento e peculiaridade – ameaça transpor as barreiras que limitam a ação do homem singular numa sociedade? A saber, como lidar com uma liderança como Paulo da Portela que, em sua condição individual, extrapola os limites do homem comum e avança vorazmente sobre as rédeas da história, tentando influenciá-la decisivamente”. Segundo Elias:

______40Mais adiante veremos como esse tipo de visão permeou o discurso de uma geração de sambistas que resolveu, em meados da década de 1970, questionar os caminhos rumo a espetacularidade e a patronagem dos bicheiros, que modificaram sensivelmente diversas escolas de samba.

41Nas últimas décadas, a sociologia é tomada por uma insatisfação com os modelos teóricos predominantes no pós-guerra, acusando nestes uma tendência em operar dicotomicamente, privilegiando ou ação, ou estrutura. São exemplos importantes dessa crítica acadêmica pesquisadores como Elias, Giddens, Bourdieu, Habermas, entre outros. 109

“Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode transformar sua sociedade de um só golpe”. (ELIAS,1994: 48).

Entretanto, cada sociedade e cada momento da história têm modos e ritmos próprios que determinam formas particulares de configuração e de inter-relação entre indivíduo e sociedade. A relação indivíduo/sociedade está permeada pelas particularidades de cada sociedade, conjuntura, de cada período histórico. Não existe uma fórmula geral indicando a grandeza exata da margem individual em todas as fases da história e em todos os tipos de sociedade. Tal como argumenta Elias (1994), o que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem da “estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age” (1994: 50). De nenhum tipo de sociedade essa margem estará completamente ausente. Entretanto, a forma e a extensão dessa margem individual de decisão podem variar consideravelmente, conforme a adequação e a estatura pessoais do ocupante da função. Aqui, a margem de decisão é não apenas maior como também mais elástica; nunca, porém, ela é ilimitada (BARIANI, 2005). Dessa forma analisamos o movimento de Paulo da Portela, homem de seu tempo e que soube assumir a liderança de seu grupo se aproveitando de todas as brechas de sua sociedade para modificar qualitativamente o lugar do seu grupo na cidade do Rio de Janeiro. Paulo como indivíduo se relaciona com uma sociedade que, como qualquer outra, tem por trás um sistema de coerções para que o indivíduo se condicione. Mas, como esse indivíduo não se anula, ele percebe na própria vida social os espaços de atuação que modificam a sua capacidade de negociar, interferir e se posicionar em uma verdadeira disputa por poder. Se olharmos mais profundamente a vida de Paulo, articulando sua trajetória mais específica com o universo que consideramos no capítulo anterior, podemos perceber como essa liderança emerge de seu contexto e, ao mesmo tempo, negocia e dinamiza o seu ambiente. As principais referenciais à história de Paulo Benjamin de Oliveira são extraídas da pioneira pesquisa de Silva & Santos (1980), biógrafas de Paulo da Portela. A Fundação Nacional de Artes (Funart) durante 110

muitos anos financiou pesquisas sobre personalidade do universo cultural da cidade do Rio de Janeiro, a pesquisa de Silva & Santos sobre Paulo da Portela foi uma dessas. Outra fonte muito preciosa, foi o já bastante citado As Escolas de Samba do Rio de Janeiro do jornalista e pesquisador Sérgio Cabral (1998).

2.2 Notas adicionais sobre o subúrbio carioca

Até o início do século XIX, a ida aos subúrbios era feita no lombo dos animais ou nas carretas. A Estrada de Ferro Central do Brasil chegava somente até Cascadura, que foi a região escolhida para a instalação de uma das quatro primeiras estações da Estrada de Ferro Dom Pedro II da região, ainda em 1858. É somente no ano de 1890, que o trem chega a Madureira e a implantação da estrada de ferro torna o bairro um importante eixo ferroviário, remontando à época em que fora ponto de convergência das estradas para Santa Cruz, Jacarepaguá e Irajá, quando a região foi importante ponto de comércio e parada de viajantes42. A ramificação ficaria completa em 1898 com a inauguração da Linha Auxiliar, inicialmente chamada Inharajá e, hoje, a importante Estação de Magno, assim chamada em homenagem ao engenheiro Alfredo Magno de Carvalho. Ao lado desta estação foi montado o mercado em 1914, em pouco tempo o bairro de Madureira firmar-se-ia como o principal centro de comércio do subúrbio carioca. Nessa época, também, fora instalado o bonde puxado a burro, o que durou até 1929 quando a eletricidade chegou à linha que ia até Irajá. Em 1937, com eletrificação dos trens suburbanos da Central, Madureira foi definitivamente deixando para trás a configuração rural de outros tempos. O bairro que já iniciara um processo de urbanização consolidava-se como o mais forte núcleo comercial e cultural do subúrbio carioca. Se, no censo de 1920, Madureira

______42Uma importante pesquisa sobre o papel do sistema ferroviário no desenvolvimento do subúrbio do Rio de Janeiro pode ser encontrada em: PECHMAN, Robert Moses - A gênese do mercado urbano de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. IPUR, UFRJ, 1985, tese de mestrado. 111

sequer aparecia marcado como bairro, duas décadas mais tarde um novo censo registraria um expressivo crescimento populacional: 111.300 habitantes onde antesse contavam somente 27.106. Nesse ritmo, a antiga região agrícola tornou-se uma zona residencial e comercial avançada na cidade. Pechman (1985), Santos (1996), Vianna (2008). Abaixo, parte do pátio da estação de Madureira em 1909 (Figura 36). Reparar nas casas ao fundo, de construção bem típica da Central do Brasil nessa época. (Foto Augusto Malta). A seguir (Figura 37) a mudança já com a eletrificação do sistema em 1937.

Figura 36 – Parte do pátio da estação de Madureira em 1909

Fonte:(Disponíveis em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Figura 37 – Sistema eletrificado em 1937 112

Fonte: (Disponíveis em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Inicialmente, a modificação da região se deu, sobretudo na segunda metade do século XIX, à medida que as novas estações iam surgindo apareciam novos loteamentos oriundos do desmembramento das grandes fazendas de cana de açúcar solapadas pela crise da economia canavial na cidade. Os lotes atraiam todo o tipo de gente, de migrantes a pessoas que não podiam arcar com os custos da moradia no centro urbano. Os migrantes que ocupavam a região eram formados, sobretudo, por ex- escravos e seus descendentes, provenientes das fazendas da região do Vale do Paraíba, do interior de Minas Gerais, e de fazendas do interior do próprio Rio de Janeiro. Essa gente, de essência rural, foi ajudando a elaborar uma comunidade, marcadamente, organizada em torno das festas religiosas, da música e da dança. Foi no ano de 1898, que foi inaugurada a estação Rio das Pedras, atual Oswaldo Cruz. Mas a ocupação do bairro só ganharia força entre os anos de 1905 e 1920, como já visto, em especial pelo processo de reurbanização do centro do Rio de Janeiro, empreendido por Pereira Passos, que como já decorri no capítulo anterior superinflacionou o preço das moradias na cidade, levando várias famílias a fazer sua vida nos subúrbios. Paulo Benjamin de Oliveira, que nasceu no bairro da Saúde em 1901, chegou em 1920 para morar com a família em Oswaldo Cruz, uma localidade com estilo campestre, com propriedades simples, enfeitadas por mangueiras e abacateiros. A 113

vida da comunidade ia, aos poucos, organizando-se mesmo em torno dos hábitos religiosos, das festas, da música e do futebol (Silva & Santos,1980). Como já alertei, Paulo nasceu em meio ao rebuliço político da reforma urbanística, onde a população pobre, em especial a parcela negra, teve que se redefinir material e simbolicamente enquanto grupo social nos morros43 e subúrbios da cidade. A implantação da ordem positivista e higienista da República Velha criou a necessidade de reestruturar a cidade. Com o grande número de migrantes em direção ao Rio de Janeiro, a ocupação populacional das regiões suburbanas da cidade, como Oswaldo Cruz, aumentou. Essa região foi se transformando em área residencial para as camadas populares, fator impulsionado, como já dito no capítulo anterior, pela industrialização dos subúrbios e com eles a construção de diversas vilas operárias; o papel desempenhado pelos trens e pelos bondes; o custo mais baixo das moradias e, principalmente, a reforma urbana que desalojou as pessoas do centro urbano.

2.3 A trajetória de Paulo da Portela

Paulo se mudou para Oswaldo Cruz na década de 1920. Podemos dizer que o bairro que deu origem a Portela lembrava em muito uma cidade do interior, uma roça oriunda do desmembramento de diversas fazendas. A população suburbana, em sua maioria, se deslocava diariamente para trabalhar no centro do Rio de Janeiro, ou em outros subúrbios (em especial nas fábricas e em pequenos estabelecimentos comerciais). Segundo Silva & Santos (1980), diferente de Madureira, que já contava com bonde, se andava mesmo de cavalo. O bairro era repleto de currais e valões. Não havia calçamento nem luz, as pessoas moravam em pequenas chácaras, vilas e habitações coletivas. A parte mais pobre do subúrbio

______43Muitos trabalhadores permaneceram no centro da cidade por falta de condições econômicas para mudarem para outras regiões, como as suburbanas. Como já informei a principal alternativa para esses indivíduos foi à ocupação dos morros que era o lugar de moradia barata. O primeiro capítulo constitui uma referência bem completa sobre esse processo. 114

lembrava em muito as favelas urbanas. Na Figura 38 abaixo, a moradia de Paulo e sua família localizada na Estrada da Portela, 338.

Figura 38 – Moradia de Paulo da Portela

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

Os espaços de lazer e encontro foram sendo forjados pelos seus moradores dando continuidade a tradição das festas rurais44. As festas têm um elemento fortíssimo de coesão social nessa região, as pessoas viviam como um grupo onde todos se conheciam. Dessa forma, várias residências se tornaram ponto de encontro da comunidade, quase sempre por motivação artística ou religiosa. Seu Napoleão, na Estrada da Portela. Seu Vieira, na rua Perdigão Malheiros (local hoje conhecido como buraco quente), eram importantes festeiros do bairro. Dona Martinha, Dona Neném e Dona Esther famosas mães-de-santo da época tinham sua casa sempre aberta para a comunidade. O binômio festa-religião articulava a vida social do grupo, e é quase impossível separar um do outro. As celebrações religiosas em geral, tal como os terreiros de candomblé eram locais de folguedos constantes. No Brasil diversos autores das ciências sociais trataram a temática da festa, e para a maior parte destes autores, em especial aqueles que trataram do universo do samba (GOLDWASSER, 1975; LEOPOLDI, 1978; DA MATTA, 1978; MAGNANI,

______44Como já dito, grande parte dos moradores de Oswaldo Cruz viam de migrações rurais e da fuga da especulação imobiliária no centro da cidade. É importante também frisar que boa parte das referências, curiosidades e dados foram extraídos da excelente pesquisa de SILVA, Marília T. Barbosa e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela. Traço de união entre duas culturas. Edição Funarte, Rio de Janeiro, 1980. 115

1984; BRANDÃO, 1989), a festa brasileira possui sempre uma face positiva, mediadora e edificante. Brandão (1989), ao estudar as festas no interior de vários estados brasileiros, observaria que a festa é:

"[...] o lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio 'não festejado', e aquilo que deve ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado, celebrado". (BRANDÃO, 1989:8).

A festa envolve os mesmos sujeitos, objetos e estrutura de relações da vida social e os transfigura. Para Amaral (2000), a festa exagera o real. Ela se apossa da rotina, mas não a rompe; excede sua lógica, e é nisso que ela força as pessoas ao breve momento da transgressão. Assim, a ideia de transgressão relaciona-se, para ele, ao exagero, à ultrapassagem de limites, ao excesso. As próprias inversões são exageros, simbolizando aspectos sempre latentes no comportamento das pessoas. A festa no Brasil tem especificidades desde o princípio da colonização, como aponta Mary Del Priore (1994). Em primeiro lugar, porque é uma festa que a maior parte das vezes não “nasce” no Brasil, tendo sido para cá transplantada pelos colonizadores do período colonial, que fizeram dela entre outros, instrumento de inserção dos portugueses, catequização dos índios e negros e tornou menos difícil a vida num lugar estranho, com um meio ambiente desconhecido e por vezes hostil. Como não podia deixar de ser, atenta Rita Amaral (1998), todos acresceram à festa sua parcela de símbolos, enriquecendo-a. Para se moldar à realidade cultural brasileira a festa europeia foi sofrendo grandes transformações, não apenas dos aspectos mais formais, mas também de sentido, sendo uma festa ao mesmo tempo lúdica, transgressora, utópica e uma linguagem para a qual se traduziram e se traduzem, desde sempre, as expectativas populares, vindo a constituir inclusive um “modelo de” e “para” (GEERTZ, 1978) a ação popular e de organização coletiva (AMARAL, 1998). A pesquisa da antropóloga Rita Amaral (1998), sobre os sentidos das festas brasileiras, argumenta que a festa brasileira possui um papel constitutivo, que não pode ser visto como inconsequência e simples busca do prazer, mas antes, do que se pode chamar de uma:

“primeira "tomada" de consciência dos direitos e deveres de cidadão, em tudo que isto implica de aprendizado de participação, seleção e negociação; 116

que ela pode conter tanto o desejo de extravasar sentimentos e anseios, como preocupações de ordem social e/ou políticas” (1998:56).

As festas eram determinantes na rotina dos subúrbios e Paulo da Portela estava sempre presente. Seu parceiro Antônio Caetano45, em depoimento para Silva & Santos (1980), conta que o primeiro bloco de Oswaldo Cruz foi fundando por Paulo. Era um bloco bem pequeno (com 12 membros na fundação) e ainda não tinha o formato que daria origem às escolas de samba, era um bloco de marcha- rancho, mais um fato que atesta a relação construída no capítulo anterior de Paulo, tal como de outros sambistas que criaram as escolas de samba, com a estrutura dos Ranchos carnavalescos46. Mesmo distante do miolo central, Oswaldo Cruz também era frequentado pelos outros sambistas do restante da cidade. A casa de seu Napoleão, por exemplo, era muito frequentada pela turma de sambistas do Estácio: Brancura, Baiaco, Aurélio e Ismael Silva, que eram frequentadores do candomblé que seu Napoleão mantinha no bairro do Estácio, na Rua Maia de Lacerda. Depois das sessões religiosas, começava a festa de batucada (CABRAL, 1996).Na Figura 39 abaixo, uma imagem de uma festa em Oswaldo Cruz no ano de 1930.

Figura 39 – Festa em Oswaldo Cruz em 1930

______45Antônio Caetano, como veremos adiante, fundou, com Paulo da Portela e Antônio Rufino dos Reis, o Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz, que depois deu origem à Portela. Estes três personagens ficaram conhecidos como o “primeiro triunvirato da Portela”.

46No primeiro capítulo demonstrei a estreita relação entre o modelo dos Ranchos e das Escolas de Samba. 117

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

O "novo ritmo", o chamado Samba Moderno que se gestava no Estácio tinha nessas festas ponto de encontro com a cultura local de Oswaldo Cruz. Foi nessa casa que pessoas como Paulo da Portela e Ismael Silva se conheceram. Na verdade, estou afirmando aqui, que mesmo com a reorganização espacial da cidade, diversos espaços continuaram funcionando como local de troca e encontro entre grupos geograficamente mais afastados. Segundo a pesquisa do musicólogo Thiago Aquino (2004), sobre o jongo no Rio de Janeiro, nessa época, as festas de Oswaldo Cruz não eram animadas pelo samba, mas sim pelo Jongo e pelo Caxambu47, que era uma manifestação de origem rural e oriunda das tradições africanas.

______47Ainda, segundo Edson Carneiro (1966), na cidade do Rio de Janeiro, a região compreendida pelos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, já nos anos imediatamente posteriores à abolição da escravatura, centralizou durante muito tempo a prática desta manifestação na zona rural da antiga Corte Imperial, atraindo um grande número de migrantes ex-escravos, oriundos das fazendas de café do Vale do Paraíba. Entre os precursores da implantação do Jongo nesta área se destacaram a ex-escrava Maria Teresa dos Santos muitos de seus parentes ou aparentados além de diversos vizinhos da comunidade, entre os quais Mano Elói (Eloy Anthero Dias), Sebastião Mulequinho e Tia Eulália, todos eles intimamente ligados a fundação da Escola de Samba Império Serrano, sediada no Morro da Serrinha. 118

Estes ritmos foram fundamentais no sistema de trocas que deu origem ao samba moderno e fazem parte do cenário de Oswaldo Cruz até nossos dias. O Jongo da Serrinha é um importante movimento de resgate cultural. Agrupa diversos jongueiros da cidade e trata de preservar a tradição e o folclore do movimento. A página eletrônica do Jongo da Serrinha traz informações relevantes:

"O jongo influenciou decisivamente o nascimento do samba no Rio de Janeiro. No início do século 20 o jongo era o ritmo mais tocado no alto das primeiras favelas pelos fundadores das escolas de samba antes mesmo do samba nascer e se popularizar. Os antigos sambistas da velha guarda das escolas de samba realizavam rodas de jongo em suas casas. Nessas festas visitavam-se uns aos outros, recebendo também jongueiros do interior [...]. O jongo, por ser uma festa de divertimento, mas com aspectos místicos, fez com que a dança se restringisse aos ambientes familiares. Por isso, ao contrário do samba, que logo conseguiu hegemonia nacional, acabou sendo pouco divulgado. O fato do jongo ser praticado apenas por idosos e proibido para os mais jovens foi outro fator que levou a dança a um processo acelerado de extinção".

O interessante nessa citação é o fato de que as próprias informações oferecidas pelo grupo atestam uma espécie de "sagacidade" do samba moderno em ocupar o espaço de representante da cultura afro-brasileira na mediação com o restante da cidade. Atestam dois elementos importantes, a separação (mesmo que apenas formal) entre festa e religião negra e o fato do jongo ser proibido para os mais jovens. Este segundo elemento está diretamente ligado ao primeiro, pois a ideia de que só os mais velhos podem participar tem ligação com o respeito das tradições religiosas que só poderiam ser levadas a cabo por pessoas experientes e trabalhadas na religião. Outro elemento precisa ser também anotado, as tradições do “samba rural” ou “regional” vão sendo suplantadas mais facilmente no meio urbano e nas favelas, pois ali se faz mais forte o fortalecimento do campo da profissionalização artística, onde o samba-regional vai se aproximar de ritmos de salão como o lundo e a modinha demarcando uma transformação no ritmo fundamental para sua entrada na sociedade do Rio de Janeiro, tal como pode ser atestado na importante pesquisa de Carlos Sandroni (1998), sobre as transformações do universo rítmico do samba carioca. Retornando as festas do subúrbio da cidade, Paulo da Portela aos poucos foi se forjando como o principal organizador dos eventos festivos de Oswaldo Cruz. 119

Como nos atesta Silva & Santos (1980), tornou-se organizador das festas da casa de Dona Esther, a mais famosa mãe de santo do bairro. As festas de D.Esther em pouco tempo se tornaram o centro da vida social da região. Sua casa era frequentada desde pela comunidade até por artistas de rádio, como Pixinguinha, Donga, Ademilde Fonseca, entre outros. Tal como aconteceu na casa da negra Ciata na Praça Onze, a casa de D.Esther se tornou importante espaço de encontro entre diversos grupos da cidade, desde gente muito pobre, mediadores culturais, até políticos locais. Ainda, segundo as autoras e Cabral (1998), Paulo da Portela é relatado por seus contemporâneos como um “mestre de cerimônias” dessas festas, dotado de algumas características fundamentais para entender sua força no grupo: liderança ecarisma. A casa de D.Esther pode ser compreendida dentro da discussão feita no capítulo anterior sobre a pequena África, a casa da negra Ciata. Dona Esther e seu marido possuíam condição financeira privilegiada para os padrões do bairro, foram morar lá por desavenças com o bloco onde eram casal de mestre sala e porta- bandeira em Madureira. Sua casa era frequentada pela comunidade e se fazia assim lugar de conexão entre outras pessoas da cidade, desde sambistas de outra região até políticos locais, jornalistas e artistas da indústria fonográfica. Tal como já apontei no inicio desta pesquisa, lugares como a casa de Tia Ciata e Dona Esther apontam o entrecruzamento e a convivência dos “mundos aparentemente paralelos” da sociedade carioca (elite e povo), sendo usados como exemplo de permeabilidade os encontros onde se reuniam chorões, batuqueiros, sambistas e capoeiras, ao lado de representantes da elite intelectual e artística. Este grupo forma uma elite da comunidade popular e passa a atuar como força social ativa nas negociações sociais engendradas na comunidade, em especial, pelo respeito que adquirem para além de suas casas. Além de que, é nas casas das tias que se reafirmavam valores e símbolos da comunidade negra. Estes espaços são um laboratório constante para novas experiências estéticas onde as novidades da cultura urbana eram divulgadas. Assim, funcionavam como espaço de mobilização social. Porém funcionavam também como espaço de mediação, levando em consideração que pessoas com certa influência no mundo exterior (à comunidade) transitavam pelo local. 120

Na Figura 40 abaixo, Dona Esther já mais velha, no aniversário de Antônio Caetano em 1950. Ela está no centro da foto com os braços no ombro de Caetano.

Figura 40 – Dona Esther em 1950

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:104)

Na Figura 41, Eusébio Rosa, marido de Dona Esther, figura muito conhecida em Oswaldo Cruz.

121

Figura 41 – Eusébio Rosa, marido de D. Esther

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

Fala-se que D.Esther tinha um estilo muito rígido e brigão. Segundo Silva & Santos (1980), alguma colocação em demasiado autoritário de Dona Esther teria aborrecido Galdino Marcelino dos Santos, partideiro respeitado nas rodas de samba de Oswaldo Cruz, que ao brigar com D.Esther, saiu de seu bloco e estimulou a criação um bloco que saísse a rua, e não somente ficasse no quintal, como acontecia com o de D.Esther. Dessa forma, no ano de 1922, a rapaziada de Galdino Marcelino resolveu fundar um bloco que desfilasse na rua48, e assim nascia o baianinhas de Oswaldo Cruz, que tinha como ponto de localização a esquina da Estrada da Portela. Foi nesse bloco que se deu o encontro definitivo de Paulo da Portela, Antônio Rufino e Antônio Caetano, os futuros fundadores da Portela.

______48 Um fator interessante é o início do relaxamento para com as manifestações negras. Elas começam a ocupar a rua, antes tinham que ocorrer em casas fechadas e sob a máscara de ritual religioso. Nesse momento também, as casas das tias deixam de ser um local tão privilegiado enquanto foram nos tempo de repressão. Era somente ali que aconteciam as trocas culturais mais amplas e mediadas com o restante da cidade. 122

Em 1923, o bloco já tinha até estatuto e visava uma organização séria, inclusive, com estrutura de diretoria. Paulo era o segundo diretor de harmonia. Foi nessa época também que se firmou o apelido de Paulo da Portela. Bento Ribeiro era a estação vizinha a Oswaldo Cruz e lá vivia outro Paulo, também sambista. Para diferenciar o pessoal começou a chamá-los de Paulo Bento Ribeiro e Paulo da Portela, em referência a Estrada da Portela, principal via de Oswaldo Cruz. (SILVA & SANTOS, 1980) Entretanto, o bloco não durou muito tempo, em especial por conta de uma briga entre seus membros, e o triunvirato Paulo, Rufino e Caetano criavam no ano de 1926 o Conjunto Carnavalesco Escola da Samba de Oswaldo Cruz, já fazendo uma referência direta ao movimento que se fortalecia no Estácio e na Mangueira. Paulo era o presidente, Caetano o secretário e Rufino o tesoureiro. Os encontros do conjunto se davam num espaço alugado atrás de um botequim, no número 412 da Estrada da Portela. As reuniões se davam nas casas dos participantes e também dentro dos vagões do trem (Idem). Veja o relato de Ernani do Rosário, um de seus passageiros, citado em Nóbrega (1997:85):

"O pessoal da Portela se reunia diariamente. Mas era no trem. A reunião era na Central. Aqueles que trabalhavam vinham no trem das seis e quatro, da Central para Osvaldo Cruz, esse trem era paradouro, vinha parando em todas as estações desde o Engenho de Dentro a Cascadura. A turma desabava toda em Osvaldo Cruz, a maioria. Outros iam para Bento Ribeiro, Madureira e adjacências. Ali se passava o samba. Já começava a passar o samba na Central, enquanto esperava a hora do trem. O pessoal ia chegando quatro horas, quatro e meia, até seis e quatro, quando chegava o trem. E uma turma ia de Osvaldo Cruz. Quando chegava umas cinco horas, tomava um banhozinho, botava o paletó, enfiava o tamborim debaixo do braço e partia pra lá pra se reunir. Na estação D. Pedro II, o carro de prefixo Deodoro era a sede móvel da Portela, a sede volante. As pessoas iam de Osvaldo Cruz até a Central pra poder voltar junto. Nesse tempo não tinha roleta, não tinha coisa nenhuma. O sujeito entrava no trem, o condutor ia cobrando, picotando as passagens. Muita gente não pagava. O hábito de viajar no seis e quatro durou muito tempo. Meu pai era sapateiro. Eu ajudava a ele. Se acabava mais cedo, não tinha importância: esperava o seis e quatro".

Segundo depoimento de Antônio Osário, membro do grupo:

"Ali no trem passávamos os sambas. Quando chegava no domingo, grande parte já conhecia de cor. Saía nego de mansinho, aí, tamborim debaixo do braço, pandeiro, só não tinha cuíca. [...] Paulo vinha sempre nesse carro, andava de um lado para o outro no trem, advertindo às vezes quem se comportava mal. Ele sempre organizando. Tinha bastante moral sobre os outros." (SILVA & SANTOS, 1980:44) 123

Nélson Fernandes da Nóbrega (1997), geógrafo estudioso do desenvolvimento das escolas de samba do Rio de Janeiro, dá uma importante impressão sobre o grupo que se formava nas reuniões do trem da central:

"No alvorecer da Portela, impressiona desde logo como esses grupos populares foram capazes de aderir a projetos próprios com uma militância profunda, suficiente para superar os estratagemas de exclusão e confinamento previstos no urbanismo “desurbanizante e desurbanizador” da República Velha. Um dos episódios que marcam esta epopeia foi o estabelecimento de uma “sede” móvel da Portela, no trem da Central das 18:04 h, que, mesmo depois da obtenção de sede fixa, deve ter continuado a ser um dos meios de aglutinação daqueles sambistas que, ao invés de se alienarem e se entediarem com a longa viagem, discutiam seus problemas, estabeleciam parcerias artísticas e musicais". (1997:51)

Muita gente que morava em Oswaldo Cruz trabalhava no centro e voltava junto no trem cantando e discutindo sobre a escola de samba. Interessante notar, que Osário, em seu depoimento, destaca o papel de Paulo em não permitir a bagunça, já fazendo referência a sua reputação de ordeiro, de estimulador de um tipo de comportamento que retirasse o estigma de baderneiro dos sambistas. O mesmo processo, como aparece no capítulo anterior, ocorreu na fundação da Mangueira, através da unificação dos blocos do morro sob a liderança dos Arangueiros de Cartola, estimulando um determinado tipo de comportamento que aparecia como propício à obtenção de êxito. Os membros do conjunto de Paulo confeccionaram ternos brancos iguais, sapatos tipo carrapetas e chapéus de palha. Esse tipo de estratégia ia à sintonia de mudar a imagem dos sambistas. Utilizar vestimenta refinada ao invés de sandálias e camisetas que, perante a sociedade da época, só eram reforçadores dos estigmas já sofridos pelos negros. Nessa época Paulo cunhou o seguinte lema: Sambista, para fazer parte do nosso grupo, tem que usar gravata e sapato. Todo mundo de pés e pescoço ocupados. Nas fotos abaixo podemos perceber o estilo dos sambistas de Oswaldo Cruz. Na Figura 42, foto clássica de Paulo da Portela, percebemos o estilo elegante do sambista.

124

Figura 42 – Paulo da Portela

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Na Figura 43, foto do conjunto vocal organizado por Paulo da Portela ainda nos anos 30.

Figura 43 – Conjunto vocal

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102) 125

Na Figura 44, foto do grupo regional de Paulo da Portela em apresentação em 1938.

Figura 44 – Grupo regional de Paulo da Portela

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Segundo suas biógrafas (SILVA & SANTOS, 1980:74), essa estratégia49 teve como ponto de reflexão uma festa que ocorrera em Oswaldo Cruz, na casa de D.Esther, neste evento iria muita gente importante para os padrões do lugar. O grupo de sambistas do Estácio chegou vestido de camiseta e bermuda e não pode entrar. É como se a associação ao estigma impedisse a mobilidade de parte do grupo social, logo outra parte do grupo se apressa em modificar seu comportamento negociando sua inclusão. Tal como analisado no capitulo anterior, esse movimento não pode ser compreendido somente nos marcos de uma estratégia de adequação, é preciso compreender quanto existe de um mundo no outro (elite x povo), e quanto do entrecruzamento cultural na sociedade do Rio de Janeiro foi forjando novos horizontes na cultura popular. Os chorões se tornaram a referencia quanto à

______49 Seria impossível afirmar se a estratégia de Paulo visava somente remover o estigma. No campo das individualidades esse tipo de ação é mais complexa, envolvendo, inclusive, o agente com os movimentos mais gerais que a sociedade executava. 126

profissionalização artística na cidade por troca entre elite e povo, e por representar uma possibilidade de reconhecimento e integração. Dirigindo-se ao momento de fundação da escola de samba Portela, Antônio Caetano, um dos seus fundadores, traz elementos esclarecedores sobre a relação com o Estácio em depoimento às biografas de Paulo da Portela:

"Eu resolvi chamar de escola de samba porque, nessa época, a gente cantava samba que o Estácio fazia, aprendia com eles o ritmo. Agora, o Estácio era um grupo, um conjunto daquele pessoal que cantava ali no Estácio e ia para a Mangueira, São Cristóvão. Eles ainda não tinham organização de escola de samba, mas usavam o nome". (Idem:44)

Se o samba moderno, tal como ritmo, nasceu no Estácio, seu modelo de organização no formato de escola de samba aprumou-se em Mangueira e Oswaldo Cruz. Segundo o outro fundador, Antônio Rufino, falando de Ismael Silva:

"O próprio Ismael Silva, com todo o respeito eu digo, ele foi um homem de muito valor para a MPB. Foi o homem que, dizem, e eu acredito, tivesse trazido um ritmo de samba para desfile de escola de samba, isso é muito comentado. Mas não é um sambista de dirigir escola de samba e fazer o que o Paulo fez". (Idem:46, grifos meus)

Nosso personagem, apesar de ser considerado por todos no mundo do samba um grande compositor, ficou, de fato, marcado como o grande organizador da escola de samba Portela e de um padrão de escola de samba, ou mais ainda, de uma estratégia de comportamento “bem sucedida”, que influenciou e/ou estimulou outros grupos a adotar. Ao perceber a eficácia do comportamento de Paulo, outros grupos tendem a acompanhar o exemplo. Como já decorremos, Paulo também seguiu um exemplo já executado pela estrutura organizativa dos ranchos que gozavam de certo prestígio nos festejos carnavalescos e pela mediação entre grupos sociais ocorridas nas casas das tias de lei, como Ciata e Esther. É interessante notar como essas lideranças processaram via cultura a modificação do lugar simbólico do negro na cidade. Como bem observou o estudioso da religiosidade negra no Brasil, Júlio Braga:

“O negro soube criar e soube valer-se de situações sociais e culturais que lhe permitiram, de alguma maneira, alcançar resultados práticos, necessários à consolidação de alguns de seus interesses fundamentais [...] Toda vez que interessou aos propósitos de suas reivindicações sociais o negro soube, com extrema competência, aproveitar-se da situação social em que vivia. Conduziu seu projeto maior de ascensão social com 127

habilidade, sabendo negociar, aproveitando as raras ocasiões favoráveis para sedimentar bases sólidas que ainda servem de substrato às diferentes frentes de lutas” (1995:18).

Outro fator também atribuído a Paulo foi a introdução de baianas mulheres nos desfiles, como já disse no capítulo anterior. Antes, quem ia vestido de baiana eram os homens, inclusive, com uma navalha na perna para "garantir" e defender o bloco. Mas, como percebemos, os tempos vão mudando e a navalha e a briga vão sendo suplantadas pela ordem e disciplina. Daqui em diante entrarei mais na ação de Paulo no universo dos desfiles carnavalescos. Focarei mais no universo de Paulo, enquanto o capítulo anterior demarcou o movimento mais geral de afirmação das escolas de samba na cidade.

2.4 Nascem as escolas de samba: o crescimento da popularidade de Paulo da Portela

Segundo Silva & Santos (1980), o conjunto musical de Paulo da Portela em pouco tempo se tornava o mais popular do bairro de Oswaldo Cruz, e diferente da rivalidade de outros tempos Paulo procurava participar dos outros blocos e ranchos que nasciam no bairro, levava sambas para eles e invariavelmente era convidado para ser padrinho de um novo bloco ou rancho. Esse tipo de atitude diminuía a rivalidade, e motivava gente que queria fazer um bloco, inclusive, a abrir mão para participar do conjunto de Paulo. Esse tipo de relação seria fundamental no futuro das escolas de samba, onde a rivalidade nos desfiles seria equilibrada com uma relação de alguma coesão entra as escolas, fundando inclusive, adiante, uma importante organização, a UES, a União das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Aos poucos a estrutura de escola de samba foi se firmando, sempre em prol da organização e da disciplina. Nô, membro antigo da escola de samba Portela, nos traz um depoimento sobre o início da escola, demarcando o estilo da fantasia da comissão de frente:

" [...] a primeira vez que nós saímos, foi uma cartolinha azul e branca, calça de flanela branca e paletozinho azul, porque cada escola de samba naquele 128

tempo era muito simples" (Idem:60).

Repare a referência à simplicidade da comissão de frente se comparada aos tempos atuais. Entretanto, a fantasia era um terno com cartola, muito semelhante, guardada as devidas proporções, as roupas elegantes utilizadas, inclusive, no centro urbano revitalizado. Detalhes como esse mostram no mínimo a interação cultural na cidade, porém, ainda podem revelar elementos de negociação com a ordem. A vestimenta da comissão de frente é uma prova do processo de mediação cultural que ocorria. Tanto pela vontade de se mostrar “civilizado”, quanto pelo efetivo sistema de trocas culturais que ocorriam na cidade. Nos desfiles de escolas de samba, um elemento é certeiro, existe sempre a busca de certa inversão (pobre se fantasia de rei, etc.), mas aqui a inversão é condicionada, de alguma forma, pela ordem. No lugar de um desfile desordeiro, uma comissão de frente elegante na roupa e na coreografia apresenta a escola de samba, dando a tônica do modelo de festa que esta apresentaria para a cidade. O comportamento das escolas de samba começa aos poucos a modificar o sentido da festa carnavalesca estimulando no lugar da transgressão a ordem. Mesmo que ocorra inversão, a ironia e a sátira aparecem de forma controlada. Paulo da Portela apareceu como o cicerone desse espetáculo, que ao invés de produzir rompimentos, produziu integração e valorização da produção artística popular. Mas a integração é a custa da redução da autonomia artística das comunidades, tal como analisei no capítulo anterior, a adequação a ordem é fundamental para compreender o sucesso dos desfiles carnavalescos. No ano de 1931 o conjunto de Paulo da Portela muda de nome e se firma como escola de samba, nasce a Vai como Pode. Nome que seria substituído em 1935 por Portela. Em pouco tempo os blocos de sujos, desorganizados e indisciplinados segundo o padrão da época se aproximariam dos modelos de organização bem sucedidos do rancho carnavalesco. Na Figura 45 abaixo, Paulo e outro componente fantasiado no carnaval de 1930 para o desfile.

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Figura 45 – Paulo e outro componente da escola de samba

Fonte: Disponível em Cabral (1997:123)

Silva e Santos (1980), biógrafas de Paulo e principal referência dos dados aqui analisados, são unanimes em dizer que a maior parte de seus entrevistados atribui a Paulo da Portela a adaptação social dos sambistas de Oswaldo Cruz. Isto é, os contemporâneos de Paulo destacam o papel dele na modificação do comportamento do sambista. O plano de Paulo era apresentar o sambista como alguém civilizado e ordeiro, disposto a participar do clima integrador e de valorização do folclore50 que se fortalecia na ditadura de Vargas.

______50No capítulo seguinte veremos como aos poucos a visão “folclorista” foi determinante para o formato do projeto de identidade nacional do regime varguista. 130

Um fator interessante que as autoras citam é uma briga da Deixa Falar com o Jornal do Brasil. A confusão fez com que o jornal lançasse nota atacando o rancho que começava a ter problemas com a imprensa. Em contraponto, as autoras citam a boa relação de Paulo com a imprensa como determinante para o seu sucesso num mundo mais amplo que o seu. Segundo as autoras Paulo dizia sempre: "Todas as minhas conquistas, eu digo, sem pejo de errar, devo-as à imprensa, esse poder inconfundível que honra e dignifica a nossa nacionalidade" (Idem:72). Paulo mais do que dividir quer integrar o seu grupo, por isso escolhe a via diplomática, sempre muito bem apresentado, ele estava nas redações de jornal divulgando o mundo do samba, depois, a sua futura relação com o prefeito Pedro Ernesto o fará porta-voz direto das escolas com a prefeitura. Em 1935 o desfile das escolas de samba, gozando do sucesso dos anos anteriores, passa a fazer parte do calendário oficial da prefeitura. Nesse ano é fundada também a UES (União das Escolas de Samba). Nasceu um regulamento mais rígido, premiações em dinheiro, patrocínio e uma relação mais íntima e clientelista dos novos sambistas com o poder público. Como já analisado no capítulo anterior, o governo municipal se torna o principal financiador, junto a imprensa, dos desfiles. Neste ano, a Vai como Pode viraria definitivamente Portela, por sugestão do delegado Dulcídio Gonçalves, que não gostava do nome anterior, achava um nome desordeiro e sugeriu Portela para liberar o registro, a rapaziada da escola de samba aceitou a sugestão, tudo isso no clima onde a ordem suplanta a desordem. (CABRAL, 1998) A radicalidade da primeira república em criar um projeto de civilização embranquecida e positivista vai sendo substituída pelo projeto pedagógico e integrador da Era Vargas, mediante, é claro, uma integração controlada. Tal como a boa afirmação de Rocha (2008:219):

“Frente ao processo civilizatório, imaginado como inelutável pelos defensores do iluminismo e, por conseguinte, do Evolucionismo aplicado à sociedade, os valores e os costumes correspondentes ao mundo da cultura popular considerados ameaçados de desaparecimento passaram a merecer a defesa de inúmeros intelectuais que, em concorrência àqueles movimentos intelectuais, viram nas festas, na poesia, nos jogos, nas músicas e nas danças das classes subalternas, não só uma forma de resistência cultural, senão um sistema cultural de preservação do 'espírito do povo'”.

131

Nesse momento de valorização de uma identidade popular, mesmo que folclórica, dirigida por cima (como anotei no capítulo anterior), podemos pensar que os sambistas caem numa armadilha tutelar, mas na verdade, sua vida e seu prestígio mudam na medida em que se inserem no processo vigente. Paulo da Portela é um personagem totalmente inserido nessa mudança, quer redefinir o lugar do seu grupo, à medida que os empecilhos vão diminuindo vai se aproveitando das situações de conotação progressistas e integradoras empreendidas pelo Estado. Se antes o negro encontrava se em condições de segregação o clima integrador do novo governo fora utilizado como espaço de fortalecimento da cultura popular na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, foram as ações empreendidas pelos sambistas que fizeram com que as escolas de samba se tornassem a representação maior produção cultural popular no Rio de Janeiro. A disposição em suplantar o conflito pela ordem ou pela mediação resultou na inclusão das escolas de samba na máquina clientelista do Estado. Na Era Vargas, como bem analisa Farias (1999), o debate em torno da questão do nacional e do ser brasileiro “toma o caminho norteado pelo primado modernista do elo entre a tradição colonial popular (folclore) e a vanguarda moderna internacional”. A literatura especializada no tema já debateu satisfatoriamente a transformação do campo cultural brasileiro nesse momento, “quando passa a comportar a proposta de mestiçagem e o elemento popular se torna o núcleo ontológico da cultura brasileira (da brasilidade)”. (FARIAS, 1999). Ainda, segundo o autor, como reposição do passado colonial, os modernistas apreendem na cultura popular a primitividade originária da nação. É, então, aquela, legitimada como a fonte de insumos para um projeto político e ideológico de construção de uma identidade nacional (ORTIZ, 1984), cuja obra de Villa-Lobos se torna o modelo exemplar. Concordo com Edson Farias (1999), em ótimo artigo sobre a vida de Paulo do Portela, este percebe que, o advento da Revolução de Trinta e da Era Vargas transfere seletivamente para a esfera do poder estatal parcelas dos grupos urbanos imbuídos da mentalidade de modernização do país (militares, empresários, acadêmicos, músicos e outros) e de alguma forma envolvidos com as manifestações pelo fim do poder oligárquico e da supremacia do modelo agroexportador, ocorridas durante os anos vinte. 132

Entre esses, incluíam-se justamente vários dos intelectuais ocupados com a temática da cultura brasileira, devotados ao tema do popular. Incluem-se como especialistas simbólicos, verdadeiros tutores das representações sociais e dos modos de classificação das práticas culturais, imprescindíveis na tarefa articuladora inclusa nas atividades do ordenamento político central (FARIAS, 1999). É nesse ambiente propicio a trocas e integração, que as escolas de samba se fortalecem aproveitando-se da possibilidade de negociar sua entrada na arena cultural “oficial” da cidade, em um primeiro momento, como cliente do Estado.

2.5 Paulo da Portela, cidadão do samba

No dia 14 de março de 1935, o jornal A Nação, lançava um concurso que visava segundo sua própria matéria:

"o triunfo final da gente humilde, da gente que vive nos meios mais ou menos inferiores. O operário nunca foi lembrado num grande certame para ser o vencedor. E esse sensacional concurso que hoje iniciamos, ninguém a não ser dos morros poderá concorrer, pois que é um concurso exclusivamente para os homens que vivem nos morros. Nunca até hoje o malandro do morro, o sambista que passa a vida inteira lá em cima, a olhar as luzes que banham essa cidade maravilhosa teve a coroa de um reinado, de um grande triunfo". (SILVIA & SANTOS, 1980:84)

Antes de qualquer coisa, quero reforçar a confusão que o próprio jornal faz com a associação mítica do samba ao morro. Este lugar comum da nossa história já fora debatido no capítulo anterior. Entretanto, o concurso diz ser exclusivo para o pessoal do morro, no entanto, logicamente envolve o subúrbio, está ai estabelecida uma conexão, ou confusão, interessante entre precariedade, exotismo e identidade. Retornando ao concurso de 1935, o pessoal de Oswaldo Cruz percebe nele uma importante fonte de legitimação da sua agremiação e lança Paulo como candidato ao prêmio de "Maior Compositor das Escolas de Samba". Segundo Silva & Santos (1980: 87), Antônio Caetano assume o papel de cabo eleitoral comprando uma enorme quantidade de jornais e os distribuí em Oswaldo Cruz. Cada jornal tinha um cupom cédula que deveria ser recortado e depositado na urna do jornal. A cada semana saia a parcial, Paulo liderava e o jornal comentava no dia 11 de abril: 133

"Paulo da Portela continua sendo o mais cotado dos concorrentes ao nosso sensacional concurso para eleição do maior compositor das nossas Escolas de Samba. Aliás, justifica-se a dianteira em que se acha o sério concorrente de Madureira. É que Paulo sabe cativar a simpatia do público, com seus bons modos, com a sua distinção e, sobretudo, pela camaradagem com a qual ele se dá com o pessoal que o rodeia. Quando seu nome surgiu na lista entre os que procuraram galgar o primeiro posto, todos demonstraram a solidariedade a Paulo" (grifos meus).

A imprensa elogiava o candidato que tinha se mostrado distinto reelaborando a imagem do sambista na cidade. O que Paulo estabelece, de forma esclarecida ou não, é um pacto com imprensa e Estado. Uma relação que pode custar um preço, a adequação a um padrão de cliente, por outro lado, colocou a população negra da cidade em melhores condições de negociar sua integração, mesmo que essa se dê com modificações dos seus hábitos, comportamentos e tradições. No dia 18 de junho, A Nação publica a vitória de Paulo:

"Paulo da Portela venceu. Com a última apuração ontem realizada, finalizou o concurso [...]. Madureira pode ser hoje considerada a "bastilha do samba" [...]. O vencedor é um legítimo rei que agora se consagrou. Contribuindo há largos anos para a supremacia que o samba, nossa verdadeira música, agora adquiriu, não poderia ser mais oportuna a consagração que vem de receber". (Silvia & Santos, 1980:90)

No ano seguinte Paulo recebeu um prêmio de outro órgão da imprensa, o jornal Diário da Noite elegeu o sambista de Oswaldo Cruz Cidadão-Momo do carnaval carioca. Exatamente no dia 21 de fevereiro, mais de cem mil pessoas se apertavam nas ruas compreendidas entre a estação Pedro II e a Esplanada do Castelo, para saudar Paulo, que chegou de trem escoltado pela escola de samba Portela. Centenas de automóveis formaram-se atrás do caminhão onde Paulo se apresentou vestido com seu já tradicional terno e gravata. Silvio Caldas51 entregou o prêmio em dinheiro e a chave da cidade para Paulo que discursou para o povo. No dia seguinte, a imprensa publicou os decretos de Paulo:

“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram conferidos para governar durante o tríduo da folia, considerando que o

______51 Silvio Caldas fora um dos grandes cantores da chamada "Era do Rádio". 134

nosso regime republicano não se coaduna com um reinado, nem mesmo carnavalesco, considerando que o samba nasceu no morro e rei não frequenta morro, considerando que no carnaval não pode haver vassalagem, considerando que a monarquia, pelas próprias extravagâncias do rei, por mais popular que seja, não pode encarnar o samba, a verdadeira alma do carnaval, resolvo destronar o rei, que terá a sua cidade como ménage, ficando sem efeito todo e qualquer decreto lavrado pelo monarca, a estas horas reduzido à expressão mais simples” (CABRAL, 1998: 111).

Dessa vez Paulo está atacando a ideia de um Rei Momo, aproximando do debate já feito por parte da imprensa e da UES, tal como do poder público, em não fazer referências à monarquia, exaltando assim os valores da república. No ano seguinte a UES, junto o jornal A Rua, organizarão o concurso chamado Cidadão Samba. Entretanto, um elemento aqui pode mostrar que as coisas começavam a não ser tão unanimes em torno de Paulo. Segundo (SILVIA & SANTOS, 1980:104) Em 1936 a UES já havia brigado pela organização do concurso junto com o jornal A Rua alegando que não deveria existir o concurso que Paulo ganhou, já exigindo a criação do cidadão-samba, mesmo assim Paulo participou ativamente da premiação de cidadão-momo, sendo, como observamos, aclamado pelo povo nas ruas da cidade. No ano seguinte, durante a organização do concurso, o jornalista Enfiado que pertencia a UES saiu do jornal A Rua indo para A Pátria e quis levar o concurso com ele. A UES apoiou o concurso de A Pátria. Porém, Paulo ganhou o concurso do A Rua criando um clima polêmico com a entidade, mas não com a comunidade mais geral do samba. Noel Rosa (SILVIA & SANTOS, 1980:105) já tinha se manifestado contrário ao concurso que Paulo ganhou, inclusive se recusando a participar, de "maior compositor" em 1935. Ele alegava que o concurso não estava procurando premiar o melhor compositor de fato. E é verdade, que Paulo era mais um organizador do que o maior compositor. Paulo era uma relação pública muito mais “eficiente” do que Cartola que era considerado, talvez, o grande compositor do morro segundo o próprio Noel. De alguma forma, o sucesso de Paulo começava a incomodar figuras do mundo do samba. Seu excesso de prestígio começava a ofuscar os outros e dava poder a Oswaldo Cruz, em detrimento das coirmãs. Mas, mesmo assim, a UES voltou atrás na sua decisão de não apoiar o concurso de 1937 e ratificou o prêmio

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aPaulo, que nunca mais voltaria a ganhar. Na Figura 46 abaixo a cédula utilizada no concurso, extraída pesquisa de Silva & Santos (1980:112).

Figura 46 – Cédula de votação do concurso de Maior Compositor

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

O jornal A Pátria , no dia 4 de fevereiro de 1937, estampou em manchete: O RIO SOB A DITADURA DO CIDADÃO DO SAMBA! Vejamos o decreto:

“1. Ficam suspensos todos os pagamentos de pensões, lavadeiras, senhorios e a todos os cadáveres. 2. Os patrões dos empregados que forem despedidos por estarem a serviço do Cidadão do Samba ficarão sujeitos a multas de 500 mil-réis a um conto de réis, o que será escriturado nos livros de ouro das escolas a que pertencerem. 3. Os homens da prestação ficam na obrigação de fornecer todas as fazendas necessárias à indumentária de carnaval durante os folguedos da República do Samba, sob a condição de receberem como sinal apenas um por cento do valor da respectiva compra. 4. As patroas ficarão com a incumbência de tomar o lugar de suas empregadas para o melhor brilhantismo da festa. 5. Todo cidadão encontrado na rua que não esteja completamente embriagado pela alegria, sujeitar-se-á à pena de cinco dias de prisão na Praça Onze, na balança, num roda de batucada, a fim de compreender as delícias do samba. 6. Todos os aristocratas desta democratíssima república são condenados, sumariamente, a aderir ao meu governo, a fim de compreenderem que o samba é feito de pedaços d'alma, cintilações do cérebro, muito amor e grande dose de amor pátrio. 7. Durante minha administração, os bebês ficam incumbidos de se defenderem com suas mamadeiras, enquanto as babás caem no pagode rasgado. 8. Todo aquele que, por atraso mental ou por mal fingida hipocrisia não 136

queira concordar com o absoluto domínio do samba, deve ir se desguiando de fininho para não ser considerado desmancha-prazeres.(CABRAL, 1998: 114)”

O mesmo jornal anunciava ainda:

"Foi com um vozerio alegre que o povo abriu alas aos batedores da polícia. Pouco depois a multidão rompeu numa estrondosa salva de palma: é que o Cidadão-Samba, elegantíssimo dentro de sua casaca branca, guarnecida de alamares prateados e envolvido pelos reflexos berrantes dos fogos de bengala, surgia à frente saudando o povo carioca e pedindo passagem para a sua gente! (Idem: 114)”

No jornal Gazeta de Notícias de 13 de fevereiro de 1937:

"Quando entrou na Praça Onze o cidadão-samba à frente da Escola de Samba Portela, a multidão prorrompeu em aclamações e estrepitosas palmas, demonstrando assim a grande popularidade de que Paulo da Portela já é credor". (SILVIA & SANTOS, 1980:109)

Mais alusões à elegância (as normas e padrões de etiqueta daquele “negro civilizado”), carisma e liderança atribuídos a Paulo da Portela. O grande diplomata de Oswaldo Cruz e Madureira, segundo o Jornal do Brasil, em 24/02/1937: "Como era esperado, estiveram no galho a Embaixada de Ouro da Escola de Samba Portela, chefiada por Paulo da Portela, o intérprete número um do samba no Brasil". Os anos de 1935, 1936 e 1937, apesar das dissidências, foram fundamentais na escalada de sucesso de Paulo da Portela. Passou a ser uma espécie de embaixador do samba na cidade, era convidado para eventos de todo o tipo, o que o levaria inclusive a se afastar um pouco da organização do carnaval de sua escola de samba. Outro elemento que atesta o sucesso de Paulo em Oswaldo Cruz é o seu número de afilhados na região, segundo suas biógrafas eram 36 ao total. É muito comum em situações de maior precariedade vislumbrar no padrinho alguém que posa “orientar” ou mesmo “ajudar” o afilhado no decorrer da vida. Elementos como este demarcam a força dos laços comunitários e o respeito da comunidade por Paulo. Enaltecendo a ação do indivíduo Paulo da Portela, Silva & Santos (1980), fazem um interessante comentário sobre a trajetória de Paulo, levantando algumas opiniões, que destacam a sagacidade do personagem, como um dos elementos de sua distinção. Destaco que as próprias biógrafas, no decorrer da pesquisa, atribuem 137

a Paulo características distintivas que de alguma forma diferenciariam sua ação na sociedade. Aqui, entendo este tipo de narrativa, que projeta o personagem quase ao nível de herói, como uma exaltação que atesta o lugar e o reconhecimento do próprio personagem na história:

"Sua ideia de vencer era a de conseguir chances na outra cultura, adotar- lhe os padrões, ter fama, dinheiro, ser aceito como igual. Quantas pessoas, na comunidade de Oswaldo Cruz, queriam para si o que Paulo da Portela queria para elas? Muito poucas, talvez nenhum sonhasse tão alto. Mas ele continuava querendo, à revelia dos dois lados: a favela que zombava de suas incompreensíveis pretensões e a outra cultura que tentava caiar-lhe a pele, dando-lhe títulos em troca de seu talento - príncipe negro, preto alma branca. Procurando ser amado pelos dois lados, Paulo não percebia que um deles acabaria por crucificá-lo. Ou os dois" (SILVIA & SANTOS, 1980:94).

O comentário das biógrafas de Paulo da Portela mostra Paulo como alguém que percebeu para além da comunidade, das desavenças menores, modificando o lugar do seu grupo. Mas ao mesmo tempo, mostra a incapacidade de um personagem suportar a pressão de agradar concomitantemente ao binômio elite x povo. Segundo elas, ao adotar padrões da elite Paulo abriu a porta para a entrada da sua cultura, entretanto os esquemas de mediação estabelecidos nem sempre são harmônicos, gerando algum tipo de conflito. Em novembro de 1937, um evento no Uruguai aumentaria as animosidades entre Paulo e a UES. José da Rocha Soutello, presidente da Federação das Pequenas Sociedades (composta em maioria pelos Ranchos) organizou uma viagem de um grupo de sambistas a Montevidéu. Entre outros, o grupo era composto por Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Marília Batista, a concertista de violão Ivone Rabelo, o maestro Júlio de Souza e o grupo Turunas Cariocas. Alcunhou o grupo de Embaixada do Samba. O presidente da UES, em franca oposição ao prestígio de Paulo questiona a viagem, alegando que ela não representava as escolas de samba e publica, aos 29 de novembro de 1937, no Diário da Noite, a seguinte nota: "Mas esse senhor, embora se conheça nele um perfeito sambista, não quer dizer que esteja credenciado para representar oficialmente a gente do samba". E continua:

"forçado pela atitude desse senhor, que se aliara a pessoas que tudo fizeram para desprestigiar a diretoria desta União, e, consequentemente, as próprias escolas, agitando o meio sambista, procurando cindir uma organização oficial e representante máxima do samba". (SILVIA & SANTOS, 138

1980:115)

O presidente da UES ainda finaliza dizendo que o grupo levaria para o Uruguai não é de samba, mas sim de "uma série de marchas nacionais". Esta última declaração em sintonia com a afirmação do samba moderno frente a tradicional marcha rancho que vinha saindo aos poucos de moda. Segundo Silvia & Santos (1980), O grupo que foi para o Uruguai era bastante amplo, desde integrantes de ranchos até cantores do rádio. Segundo o presidente da UES Paulo estaria viajando com gente que havia, de alguma forma, desprestigiado as escolas de samba. Entretanto, Paulo se colocava acima das rivalidades, sendo sempre lembrado como mediador e negociador, o que pode em algum momento desgastar sua legitimidade frente um grupo ou outro membro descontente. As relações nesse universo ainda se dão em demasiado no âmbito das pessoalidades, uma questão não atendida a uma escola, um bloco, um sambista, quase sempre é levada como uma desavença pessoal e desonrosa. Veremos que esta ideia “de levar para o lado pessoal” é fundamental para entender a variedade de rixas e problemas que atravessavam o universo das escolas de samba e da vida da comunidade em geral. No ano de 1938 não houve vencedor dos desfiles das escolas, uma chuva tomou a cidade prejudicando a apresentação. Entretanto, como já citado no capítulo anterior, este ano marca a antecipação das escolas frente à política nacionalista do governo federal. As escolas agora, por determinação da UES, terão que apresentar somente temas nacionais em seus enredos. No ano seguinte, a UES caça o cargo de Paulo no conselho fiscal da entidade com a alegação de que Paulo não vinha tendo tempo de se dedicar por inteiro a entidade. Tal fato leva o sambista a se empenhar com toda a força no carnaval da Portela. Seus contemporâneos dizem que, neste ano, Paulo assumiu a liderança de todos os setores da escola de samba: enredo, samba, harmonia, fantasia, ficara tudo por sua conta. Rosário, amigo de Paulo, em depoimento para Silva & Santos conta como foi:

"Esse ano eu não saí na Portela, não. Mas eu frequentava muito a sede, ficava na sede com o Paulo. Ele resolveu que todo mundo ia fantasiado de acadêmico, porque o nome que ele deu ao enredo era Teste ao Samba. A capa dos acadêmicos era de crepe-cetim ou cetim-lamé. Aí o Paulo fez crepe-cetim, que era mais caro, e eu saí no bloco de Olaria, porque não 139

podia gastar tanto dinheiro. Do samba eu me lembro, sim! todos gritavam respondendo à tabuada" (1980:112).

As mesmas autoras, afirmam que Paulo da Portela, ressentido com as disputas com a UES, desde os tempos de Cidadão do Samba, não poupou recursos para fazer da Portela a maior escola do desfile daquele ano. Segundo elas, “a resposta do príncipe negro aos dirigentes da UES viria no desfile” (idem: 123). O samba desse ano também tem uma novidade, tal como o da Unidos da Tijuca de 1933, tem mais cara de samba enredo, com duas partes e uma sequencia baseada diretamente no enredo. Vejamos o samba:

Vou começar a aula Perante a comissão, muita atenção Que eu quero ver Se diplomá-los posso Salve o "fessô" Dá nota à ele senhor Quatorze com dois doze Noves fora tudo é nosso

Cem dividido por mil Cada um com quanto fica? Não pergunte à caixa surda Não peça cola à cuíca Lá no morro Vamos vivendo de amor Estudando com carinho Que nos passa o professor

Paulo estruturou toda a escola em função do samba. Na frente da escola vinha Paulo, vestido de professor entregando diplomas aos jurados. A alegoria principal era um gigantesco quadro negro com os dizeres antenados ao clima político vigente: Prestigiar e amparar o samba, Música típica e original do Brasil, e incentivar o povo brasileiro. Naquele ano Paulo fora tão ovacionado como a escola, depoimentos da época dizem que as pessoas se empolgavam e queriam ver Paulo, o dono da noite naquele ano. Conforme o relato de Cabral:

“O desfile de 1939 voltou à Praça Onze, vencendo a resistência do Delegado Dulcidio Gonçalves que queria levar todos os desfiles das ‘pequenas’ sociedades para o Campo de São Cristóvão. Conseguiu tirar da Av. Rio Branco as apresentações dos Ranchos e dos Blocos [...]. E a grande sensação do desfile das escolas foi a Portela. Pela primeira vez uma escola de samba (com exceção da ala das baianas e dos mestres- salas e porta-bandeiras) apresentou-se com as fantasias inteiramente 140

voltadas para o seu enredo. Até então, fosse qual fosse o enredo, não poderiam faltar os sambistas ostentando as cabeleiras brancas de algodão e as fantasias de nobres dos tempos imperiais. Naquele ano, porém, Paulo da Portela criou o enredo ‘teste ao samba’ e fez a escola inteira exibir-se com uniforme de estudante, enquanto fazia o papel de professor. O samba, também composto por ele, tinha um pouco daquele non sense das letras das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo e, ao mesmo tempo, não deixava de ser um samba enredo, pois a letra tinha tudo a ver com o tema apresentado pela escola. [...] Foi uma sensação, Paulo entregava um diploma e cada integrante da escola. O repórter do jornal O RADICAL assinalou em sua matéria sobre o desfile: ‘Um fato despertou a nossa curiosidade: foi o interesse que todo o público acotovelado na Praça Onze demonstrou em torno da figura de Paulo da Portela. Parecia que grande parte daquela multidão lá estava somente para aplaudir o famoso sambista, a quem não regateava as melhores demonstrações de simpatia. Pode-se dizer assim que, depois da Portela e da Mangueira, Paulo da Portela foi a grande atração que a Praça Onze apresentou" (CABRAL, 1998: 122).

Em janeiro de 1940 foi inaugurado no jardim do Palácio Monroe o busto de Catulo da Paixão Cearense, famoso seresteiro brasileiro. A homenagem a Catulo está em sintonia com o novo governo, que mesmo de forma autoritária busca dar sentido positivo ao cancioneiro popular. Naquele dia, o maestro Villa-Lobos, um dois mais importantes mediadores culturais do período organiza um grande desfile onde seria revivido o carnaval antigo, o grupo ganhou o nome de Sociedade do Cordão. (CABRAL, 1998). Índios, morcegos, diabinhos, rainhas compunham as fantasias do grupo, típicos dos folguedos até o início do século XX. Nesses trinta anos muita coisa mudou e entre elas, a transferência da hegemonia dos ranchos para as escolas de samba. Mas o que parecia acontecer era que o samba de fato ganhava espaço de destaque no rádio, nos salões e nas festividades urbanas. O choro, o maxixe, a modinha ainda eram os mais tocados nos salões, mas na festa do carnaval, a hegemonia das escolas de samba começava a nascer, nas próximas décadas estaria plenamente estabelecida (Idem). Para este mesmo ano Paulo idealizou o enredo Homenagem a Justiça. Conta-se que, contrariando a vontade de Paulo, um grupo de pastoras da Portela, ao invés de cantar "salve a justiça", cantou "pau na justiça" no decorrer do desfile, fato que teria desagradado o júri e prejudicado o bicampeonato, a escola ficou em quinto lugar (CABRAL, 1998). Os depoentes sobre a situação não sabem dizer se fora uma atitude de cabeça pensada das pastoras, o que mostraria a face da ironia (elemento forte das práticas culturais populares e, em especial, do samba de rua do 141

Rio de Janeiro) de alguma forma aparecendo e perturbando a harmonia do movimento de integração a qual Paulo da Portela estava ligado. Com a chegada da década de 1940 as escolas começam a ultrapassar os ranchos em popularidade. Segundo Sérgio Cabral (1998), no ano de 1941 termina o Ameno Resedá, o maior dos ranchos cariocas, pondo fim a uma tradição de mais de 30 anos de desfile. As escolas de samba, finalmente começavam a se tornar representantes maiores da festa popular carioca.Neste ano, Paulo preparou novamente o enredo, que se chamava Dez anos de glória. O enredo era uma homenagem as dez anos do governo de Getúlio Vargas, mostrando a sintonia de Paulo e do universo do samba com o novo regime. Quando falamos dessa sintonia, não podemos atestar aqui o quanto à estratégia de Paulo e dos sambistas tem de esclarecida, ou mesmo ciente das concessões feitas, ou mesmo quanto o clima político da época animou de “esperança” os populares. Esta última me parece uma opção sempre mais palatável, isto é, Paulo e as pessoas do mundo do samba, do universo popular em geral, parecem se “animar” com o clima integrador estabelecido no pós-1930. (Idem) Paulo, porém, não pode acompanhar de perto o desenvolvimento final do carnaval da escola de Oswaldo Cruz. No dia 5 de fevereiro viajou para São Paulo com Cartola e Heitor dos Prazeres, junto a um grupo de ritmistas e pastoras para cumprir um exaustivo calendário de apresentações organizado pelo Centro Paulista de Cronistas Carnavalescos e pela Rádio Cosmos de São Paulo. A Folha da Manhã anunciava no dia 5 de fevereiro de 1941:

“A chegada dos maiorais guanabarianos, Cartola, Heitor dos Prazeres e Paulo da Portela a esta capital, acompanhados de suas escolas de samba, trouxe, sem dúvida alguma, uma colaboração das mais eficientes para o abafativo Carnaval do Povo que a conhecida emissora do Dr. Ferreira Fontes está levando a efeito em terras de Piratininga. Autênticos ases da música popular brasileira, para a qual vêm trabalhando sem desfalecimentos, os sambistas visitantes conseguiram firmar rapidamente entre nós um prestígio duradouro e que nada mais é do que a expressão viva e eloquente da bossa inata da gente do morro”. (CABRAL, 1998: 125)

Paulo já era conhecido nos circuitos sambistas de São Paulo e Cartola depois que teve seu samba Quem me vê Sorrindo gravado pelo maestro 142

Stokowsky52gozou de alguma fama. Os três fizeram grande sucesso em sua passagem pela terra da garoa. Entretanto precisavam voltar ao Rio de Janeiro para o desfile de suas escolas, no dia 21 de fevereiro (CABRAL, 1998). Paulo e Cartola eram figuras máximas de suas escolas, impossível pensar o desfile sem eles, mas as coisas não correram bem. Os laços pessoais, as rixas e desavenças, por vezes, são decisivas nas trajetórias dos personagens aqui. Paulo chegou ao Rio de Janeiro em cima da hora do desfile e combinou com Cartola e Heitor dos Prazeres que os três desfilariam nas escolas de cada um: Portela, Mangueira e De Mim Ninguém se Lembra (de Heitor). Eles usariam um terno com listras preto e branco que poderiam ser usados em todas as escolas, era o traje do Conjunto Carioca, como ficou conhecido o grupo em São Paulo. (CABRAL, 1998; SILVA & SANTOS,1980). O depoimento de Nô nos ajuda a reconstruir o fatídico e determinante episódio, veja:

“Mané Bam-Bam-Bam (presidente da Portela na época), enxergou Heitor dos Prazeres e seu sangue ferveu. Lembrou dos desentendimentos, das apreensões, do samba roubado do Rufino, da navalhada. E dirigiu-se ao chefe: - Seu Paulo, o senhor pode desfilar com roupa de outra cor, mas eles não. Só o senhor de preto e branco. O resto, só de azul e branco. - Que é isso, Mané? Nós viemos direto da Central, meus amigos são convidados, eles vão comigo! - Não, Paulo, você pode ficar no conjunto de qualquer maneira, em qualquer lugar. Eles têm que ficar atrás da bateria. O sangue de Mané Bam-Bam-Bam continuou a ferver, olhos cravados no rosto impassível de Heitor dos Prazeres. Paulo, com a firmeza e calma do líder, consciente do indispensável de sua presença para o bom andamento de tudo, retrucou: - Olha, Mané, ou vamos os três, ou eu não desfilo! - Então está bem, Seu Paulo pode sair! Respondeu Bam-Bam-Bam levantando a corda. Paulo passou por debaixo do cordão de isolamento seguido pelos dois companheiros de trabalho e viagem. Os componentes, perplexos, continuavam em silêncio, bocas e bateria mudas. Só que não dava mais tempo para discutir se foi certo ou errado. Lá da frente veio a ordem: Entrar a Portela!”(SILVA & SANTOS,1980:87).

______52 Leopold Stokowski foi um famoso regente orquestral norte-americano, bem conhecido por conduzir sem batuta. Stokowski também foi retratado em um desenho do Pernalonga em um desenho de 1948. 143

E naquele ano ganhou a Portela. Paulo não tinha participado do desfile por uma questão de desavença de Bam-Bam-Bam com Heitor dos Prazeres. Todos os três já tinham desfilado com aquela roupa na Mangueira e na De Mim Ninguém se Lembra. Na Portela não puderam desfilar. Paulo ficou em demasiado aborrecido e se afastou definitivamente da escola. Depois da confusão, Paulo foi para a casa de Cartola na Mangueira. Dona Neuma e Cartola dão depoimento interessante a Silva & Santos sobre o diálogo que estabeleceram com Paulo depois do ocorrido:

“ – Cartola, eu não podia permitir que ele me desse ordens. Afinal por que é que eu fui a São Paulo? Pra divulgar o samba, levar mais alto ainda o nome da Portela! Então? E ele ainda vai me desacatar em público, me mandar sair por baixo da corda, desacatar você e o Heitor? Que cor diferente coisa nenhuma! Você sabe que quando a gente desfila todo ano o pessoal do Estácio invade a nossa corda com aquelas sombrinhas vermelhas e ninguém diz nada. E são dez, vinte pessoas. Como é que ele ia impedir a entrada de três pessoas só porque estavam de preto e branco? E logo nós, que todo mundo sabe quem somos! Não, foi desaforo, foi pretexto, a Mangueira não impediu que nós três desfilássemos, a De Mim Ninguém se Lembra também aceitou. Isso não foi desculpa, Cartola. Está muito mal contado, foi desaforo demais. Ou eles se desculpam direitinho ou nunca mais piso lá!” (1991:89)

Passado uma semana foram Cartola, Carlos Cachaça e Paulo a Oswaldo Cruz para tentar resolver a questão. Pegaram um táxi e ainda levaram junto um valentão da Mangueira, o Chico Porrão, era para o caso de Bam-Bam-Bam (que era um valente53 de Oswaldo Cruz) esquentar com eles. Cartola relata que ao chegar à quadra subiu numa mesa e fez um discurso sobre a importância de Paulo para a Portela. Conta que se assustou com a recepção fria da escola e a resposta de Bam-Bam-Bam: “Nós não queremos mais esse moleque aqui dentro”. Paulo ficou muito alterado e gritou uma frase jamais esquecida por vários membros da Portela, lembrada até hoje na escola: “Senhores, senhoras e crianças da Portela: Vós sois uns ursos!” (Idem:89). Paulo então foi para a Lira do Amor, e no enredo do carnaval de 1946, mostrou mais uma vez sua relação de entusiasmo e apoio com os movimentos do

______53 A figura do valente é antiga no universo das escolas de samba, dos morros e subúrbios. Normalmente é alguém muito forte e que participava de brigas e gozava de algum respeito além do coercitivo. 144

novo regime político, em entrevista ao jornal Tribuna Popular de 22 de fevereiro de 1946:

"Posso adiantar que os feitos de nossa gloriosa FEB não serão esquecidos. Aliás, a nossa escola sempre teve em alta conta os soldados expedicionários, os melhores filhos do povo. Aproveito o ensejo para frisar o seguinte: em meados do ano de 1944, quando mais intensos eram os preparativos para o embarque da Força Expedicionária, a fim de participar, juntamente com os gloriosos exércitos aliados do completo esmagamento do nazi-fascismo, a escola de samba Lira do Amor ofertou à Liga da Defesa Nacional, instituição patriótica que melhor zelou pelos nossos pracinhas, apreciável soma em dinheiro e centenas de maços de cigarros".

Na mesma entrevista mostra a vocação para a liderança e conclama a prefeitura a reduzir os impostos para o que ele chama de carnaval da vitória, isto é, um desfile em homenagem a vitória dos aliados na segunda grande guerra.

"Necessitamos obter da prefeitura, a isenção do pagamento dos impostos, bem como da licença a nós exigida de alguns anos para cá. A municipalidade tal como fazia antes do início da segunda guerra mundial, deve restabelecer, e em melhores condições, o pagamento do auxílio financeiro às escolas de samba, atração dos turistas e divertimento máximo do povo. Os diretores das escolas de samba devem filiá-las à União das Escolas de Samba, a fim que tenham uma entidade que zele pelos seus interesses perante as autoridades. Filiadas as escolas a esta entidade, a mesma poderá patrocinar, no carnaval que se avizinha um desfile da Vitória que a nossa gloriosa FEB ajudou a obter contra o nazismo sanguinário nos campos de batalha do Velho Mundo".

No mesmo ano, a Tribuna Popular, jornal ligado ao Partido Comunista Brasileiro, numa política de aproximação com o meio popular cariocaresolve patrocinar um desfile das escolas de samba, que contaria, inclusive, com a presença do senador Luís Carlos Prestes no Estádio de São Januário. Ainda retomaria a escolha, agora pelo seu jornal, do Cidadão-Samba e da Embaixatriz do Samba. O desfile do dia 15 de novembro foi um sucesso, foi montado um júri diferente dos anteriores (em maioria composto por jornalistas). Criou-se uma comissão principal, com a presença do etnógrafo Edson Carneiro, do maestro Francisco Mignone, do jornalista Pedro Mota Lima, do compositor Mario Lago e do desenhista Paulo Werneck(CABRAL, 1998; SILVA &SANTOS,1980). A Tribuna Popular de 1946 destaca o enredo da Lira do Amor, a nova escola de Paulo:

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"'HOMENAGEM AO SENADOR DO POVO'

A Escola de Samba Lira do Amor abafou também. Os rapazes da Paulo da Portela, o famoso compositor popular que nasceu e foi criado no samba, cantaram perante o palanque onde se encontrava a Comissão Julgadora, e os convidados de honra, o senador Luis Carlos Prestes, o ministro da Polônia, outros parlamentares e escritores, o seguinte samba de autoria de José Brito, que arrancou prolongados aplausos da enorme assistência: Prestes, Cavaleiro da Esperança. Foi o homem que pelo povo relutou Seu nome foi disputado dentro das urnas Oh! Carlos Prestes Foi bem merecida a cadeira de Senador És o cavaleiro que sonhamos De ti tudo esperamos Com todo amor febril Para amenizar nossas dores E levar bem alto as cores Da bandeira do Brasil" (CABRAL,1998:129)

Paulo estava lá, de pé no palanque da Comissão de Honra, ao lado de Dorival Caymmi e do próprio Prestes. Quando a Lira Passou, Paulo deu um grande abraço em Prestes que retribuiu o abraço (Idem). Pedro Ernesto e Prestes sempre foram os políticos preferidos de Paulo da Portela. O interessante é que as relações de clientela entre Pedro Ernesto e Paulo não impediam a autonomia do personagem e sua admiração conhecida por Prestes (que era uma figura muito querida no país, apesar da sua prisão). Como relatei no capítulo anterior, a relação entre o PCB e o mundo do samba se aqueceu nesse período. Segundo a mesma matéria da Tribuna Popular:

"Poucos minutos antes da Lira do Amor desfilar, Paulo da Portela, o famoso compositor que todo o Rio conhece, o Paulo da Portela, dos grandes carnavais do passado, subiu ao palanque para dar um abraço em seu nome e no da sua Escola ao Senador Luiz Carlos Prestes. Foi um momento de grande emoção para todos os presentes. O senador mais votado da República retribuiu o abraço de Paulo da Portela com outro bem forte".

Logo depois, no dia 29 de dezembro de 1946. Paulo declarava à imprensa sua adesão ao Partido Trabalhista Nacional. O Diário trabalhista, no mesmo dia, assim anunciou:

"[...] estamos diante de Paulo Benjamin de Oliveira, o grande Paulo da Portela, o maioral do samba carioca, o homem que centraliza as atenções das escolas de samba e ranchos cariocas. Nos nossos morros, nos nossos subúrbios, mais longínquos, o tamborim, a cuíca e o pandeiro, num ritmo todo nosso, refletem o estado de alma das nossas grandes massas trabalhadoras que reúnem cerca de cem mil adeptos. Escusado é dizer que se trata de enorme massa de trabalhadores, das mais variadas profissões, 146

desde o simples gari até o metalúrgico ou o pequeno lavrador. E Paulo da Portela é o líder dessa gente humilde, boa e operosa, cheia de fé nos destinos do Brasil".

O jornal já coloca Paulo como um líder popular, a principal referência do universo do samba na cidade. Tendo em consideração a popularidade do samba nos morros e subúrbios, Paulo se fortalece como grande liderança popular. E segue a interessante entrevista:

"-Já pertenceu a algum partido político? -Nunca fiz parte de qualquer organização política. A minha política tem sido a do samba. Já ajudei a muitos políticos e se promessa valesse? ... As nossas Escolas de Samba, as nossas casas nada têm. -Qual foi o maior amigo das Escolas de Samba? -Pedro Ernesto. Depois dele, só os jornalistas. -Qual o seu programa? - Messias Cardoso fez-se credor da minha confiança e é um grande amigo das Escolas de Samba. Tive também o apoio do grande jornalista que é Eurico de Oliveira, diretor do Diário Trabalhista e assim apresentei no Partido Trabalhista Nacional o meu programa que foi integralmente aceito e que é o seguinte: 1 - Auxílio permanente e eficiente ao recreativismo; 2 - Isenção de Impostos e facilidades de locomoção para nossas grandes exibições públicas; 3 - Criação de eficiente serviço de assistência social, pelo governo, nas sedes das Escolas de Sambas; 4 - Construção de sedes adequadas, embora simples; 5 - Criação de escolas diurnas e noturnas nos morros; 6 - Proteção à infância abandonada e à velhice desamparada; 7 - Desenvolvimento do folclore nacional. - E como conseguiu se identificar com esse novo partido? Levado pelos meus amigos, os jornalistas Oscar Messias Cardoso, Peixoto do Valle e K. Noa e os meus colegas Benjamin Luiz da Silva e Flávio Costa. O nosso primeiro encontro foi em Itacurussá, numa concentração trabalhista ali realizada no domingo".

A entrevista demonstra um Paulo da Portela encarnando a figura de grande representante de um dos maiores espetáculos populares do país. O ingresso de Paulo na política não seria diferente, seria a articulação de um discurso em defesa das escolas de samba e de seu povo. Seu programa gira em torno do lazer, da produção de cultura popular, e da assistência social e educacional aos mais desfavorecidos. Conforme explica Silva & Chinelli (2002), sua inserção na política se dará por demandas exclusivas a favor das escolas de samba e de clientela com a comunidade. O povo do samba cobra a fatura da mediação pedindo mais acesso as estruturas e serviços públicos, e na maior parte das vezes essa relação se dá nos marcos do clientelismo. 147

Na matéria, Paulo cita mais uma vez a sua boa relação com Pedro Ernesto e com a imprensa. Um quanto o outro foram peças chave no crescimento das escolas de samba do Rio de Janeiro. As subvenções e apoio dado pela prefeitura e por parte da imprensa foram decisivos para que as agremiações carnavalescas chegassem ao estrelato nacional. Paulo, como grande mediador entre universos sociais distintos, era também o grande cicerone do mundo do samba carioca, se chegava alguém importante que quisesse conhecer o samba Paulo era logo chamado. Ele era uma espécie de guia no subúrbio, diversos turistas estrangeiros foram levados a Oswaldo Cruz “sob os cuidados de Paulo”. Segundo suas biógrafas, entre os diversos visitantes ilustres de fora estiveram o professor Henri Wallon da Sourbone de Paris, a famosa artista Josephine Baker, o museólogo norte-americano Aaron Copland, este último levado pelo maestro Villa-Lobos para conhecer Paulo. Vários políticos famosos também foram ciceroneados por Paulo, como Frederico Trotta, Lindolfo Collor, Lourival Fontes, Pedro Ernesto, Mourão FIlho entre outros. O depoimento do sambista Nonô do Jacarezinho a Silva & Santos (1991:135), destaca o papel cicerone e diplomático de Paulo:

"Paulo andava de escola em escola e eu também gostava de andar assim pelas escolas. Então, eu via muito a atuação do Paulo da Portela. Nós tínhamos uma senhora que foi uma das fundadoras da escola, grande trabalhadora, dona Andreza Nogueira, que deixou muita saudade no Jacarezinho. Então, por intermédio dela, o Paulo da Portela ia sempre lá no Jacarezinho e quando ele chegava comandava o ensaio. De lá íamos para o Recreio de Inhaúma, para o cenáculo do Samba, que tinha no Caxambi, para os Acadêmicos do Engenho da Rainha, e ele chegava, sozinho ou com aquela comitiva e puxava o samba, entendeu? Quer dizer que ali, no meio da comitiva, os sambas eram deles e daqueles rapazes".

O interessante do depoimento de Nonô é a forte relação que Paulo construía com as escolas de samba "menores". É sabido que Paulo sempre foi um incentivador delas, chegando mesmo a ajudar financeiramente e com sobras da Portela outras escolas. Dessa forma também aumentava o respeito por Paulo nas diversas escolas que nasciam na cidade. No dia 24 de agosto de 1941, Paulo seria o cicerone da visita de Walt Disney ao universo do samba carioca. O desenhista estava na cidade e quis conhecer o samba brasileiro, o pessoal de Oswaldo Cruz, e diversos biógrafos da cultura popular (SILVA & SANTOS,1980; CABRAL, 1996), contam que baseado em Paulo 148

da Portela nasceu a primeira versão do papagaio Zé Carioca, que é um pouco diferente da consagrada hoje em dia. Acompanhado de uma enorme equipe, Walt Disney chegou ao Brasil hospedando-se no Copacabana Palace. A embaixada americana foi quem entrou em contato com Paulo da Portela. Paulo já tinha se afastado da Portela nessa época, mas passando por cima das desavenças fez sua última visita a escola ciceroneando Walt Disney numa triunfal apresentação da escola de samba. A equipe de Walt Disney gravou tudo para utilizar em um musical sobre os ritmos latinos. Era o musical Alô Amigos que estreava nos cinemas com um personagem baseado em Paulo da Portela (a primeira versão do Zé Carioca). Ainda relacionado ao cinema, Paulo participou do elenco de três filmes: Favela de Meus Amores de Humberto Mauro e O bobo do Rei e Pureza de Joracy Camargo e Mesquitinha. Tudo isso em uma vida relativamente curta que teria fim no dia 30 de janeiro de 1949. O Globo noticiava no dia seguinte:

"Morreu Paulo da Portela. Em sua residência, à Rua Carolina Machado, n.950, em Oswaldo Cruz, faleceu ontem vítima de um ataque cardíaco, o velho carnavalesco Paulo Benjamin de Oliveira, mais conhecido por Paulo da Portela".

No dia seguinte publicou O Radical:

"A morte traiçoeira e implacável roubou, aos morros, o sambista maior: Paulo da Portela - tamborim, pandeiros, cuícas e ganzás emudeceram e a dor, em silêncio, tomou conta de tudo - Favela, Mangueira, São Carlos, Matriz e Salgueiro no pranto mais sentido - Uma popularidade que se traduziu na apoteótica consagração das multidões ao animador das escolas de samba. [...] a morte do sambista que foi mais um poeta do povo, porque era pelo povo que ele ritmava os acordes de seus sambas incomparáveis". [...] Pelo samba de Paulo da Portela, as figuras mais representativas do Brasil artístico, do Brasil cultura e do Brasil sociedade subiram, finalmente, as ladeiras íngremes dos morros cariocas. Foram estatelar-se nas rodas dos catretas, embasbacados aos sacolejos das pastoras. E mais do que isso: pelo samba de Paulo da Portela o morro perdeu a forma sinistra de outros tempos e, aos olhos dos descrentes, apareceu, melhor e mais humano, na sua miséria, na miséria de seus habitantes que, como Paulo da Portela, se tinha um crime, esse crime era o da própria miséria pelas culpas alheias" (SILVA & SANTOS,1980:131 grifos meus).

149

Paulo da Portela estava num circo e ao perceber a sua presença a plateia começou a aplaudir, conclamaram Paulo a ir ao palco do circo. De lá Paulo comandou sua última festa de samba da qual saiu carregado. Ao chegar à casa morreu dormindo às cinco horas da manhã.Seu enterro fora realizado às duas horas da tarde do dia seguinte. O Correio da Manhã noticiou assim o enterro no dia 31 de janeiro de 1949:

"[...] Avaliava-se a afluência de gente ao enterro de Paulo da Portela em mais de 15.000 pessoas. O comércio de Madureira fechou para o saimento e aquela massa de gente foi atrás do caixão até Irajá: o bumbo marcava a cadência, uma espécie de cantochão saía em fio de voz, dos lábios da multidão".

O bicheiro Natal, então presidente da Portela, quis levar Paulo para ser enterrado na quadra da escola, mas sua esposa não deixou e Paulo foi velado por uma multidão em sua própria casa. No dia seguinte a centena do jogo do bichou deu 2908 número do túmulo de Paulo da Portela, imagino que muita gente ganhou um trocado por isso. Porém, na verdade, pode ter sido uma última homenagem do bicheiro Natal ao amigo falecido. Abaixo imagens do velório, ou gurufim, de Paulo da Portela.

Figura 47 – Velório de Paulo da Portela

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:101)

2.6 Algumas considerações 150

O ambiente analítico que circunda a nossa análise é a complexificação da história através da análise da sociedade resgatando a história de vida de um indivíduo destacado no contexto (FARIAS, 1999; BARIANI, 2005; MELO; NABES, 1988). Sem Paulo da Portela as escolas teriam seguido a marcha que analisamos aqui? Provavelmente sim, mas o importante aqui é analisar como um negro no Rio de Janeiro da virada do século se tornou um protagonista destacado na guinada da condição cultural de seu grupo. Na realidade, me interessa, ao estudar a vida de Paulo, a ampliação de horizontes na pesquisa. Recorro a uma citação de Elias:

"[...] cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais e decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e a nada mais, que chamamos sociedade” (ELIAS, 1994:21).

Sendo o Rio de Janeiro capital da república era de se esperar que como “caixa de ressonância” da cultura e política nacional a cidade elaborasse símbolos que atravessassem o país. Tentei até aqui analisar os elementos que levaram as escolas de samba ao triunfo na cidade do Rio de Janeiro. Analisando as movimentações de Paulo da Portela e seu grupo, percebemos como o povo negro pode se beneficiar e modificar sua condição na urbe se articulando com determinada conjuntural cultural e política que se estabelecia no país. Nesse sentido, entre as diversas manifestações artísticas se destacou aquela que conseguiu agrupar as “novas” comunidades e se apresentar como disposta a negociar a integração cultural em vigência. Recuperando Elias, preocupei-me aqui em analisar uma espécie de habitus da jovem liderança do mundo do samba. Trata-se de uma proposta teórica capaz de historicizar a figura do indivíduo destacado, com base na análise da trajetória individual (social) de Paulo da Portela. O contexto social aparece em conexão à vida e à obra do trabalho de Paulo; a figuração estava em mutação. De uma sociedade que reprimia a manifestação da cultura popular a uma sociedade que passou a valorizar as coisas do povo, mesmo que de forma tutelada (FARIAS, 1999). 151

A escolha de Paulo da Portela, em "colaborar" com a ordem estabelecida pode parecer frente uma análise prematura resignada. Entretanto, Paulo aparece como um indivíduo virtuoso e consciente do papel que seu grupo teria de realizar para se elevar naquele tempo sem choques ou mesmo ruptura. Paulo não era um dirigente político, um ativista social, nada disso, era uma liderança popular, que como uma espécie de diplomata negociou com a elite o desenvolvimento da sua produção cultural e da sua comunidade. Se o país mudava se ocupou em movimentar a inscrição dos negros sambistas nesse cenário, acima de tudo se sentia sendo incorporado, acreditava que seu modo de viver poderia ser reproduzido, aumentando a chance de o grupo ser aceito na cidade. Utilizando-me da análise de Bakhtin (1999;1997) acerca da festa carnavalesca nos tempos do Renascimento, posso dizer que a principal diferença entre a produção artística de Paulo da Portela e daquela analisada por Bakhtin é a supressão de alguma ironia e espontaneidade que ocorre nas festas populares e em especial no carnaval, por um clima de condicionamento, seriedade e “profissionalização” dos desfiles, isto é, de parte da festa carnavalesca. O improviso irá aos poucos ser substituído pelo ensaiado, o controle e o formato de concursos serão fundamentais para amarrar às escolas um padrão. É esse padrão que faz com que a festa apareça como “controlável” para governo e elites. Mas, não podemos esquecer que o preconceito com a produção artística popular ainda era muito forte e foi essa “vontade” de se transformar para se integrar que garantiu ao povo negro carioca colher os frutos de sua integração cultural. É interessante perceber que partindo de Bakhtin (1999;1997), iremos compreender as festividades, qualquer que seja o seu tipo, como uma forma primordial de interação marcante na civilização humana. A vinculação com os fins superiores da existência humana, com o mundo dos ideais, é condição essencial para que aconteça um clima de festa (MELO; MONTES, 1996). Esta relação, contudo, só se realiza plenamente nas festas populares e públicas, em especial no carnaval. Nele cria-se a sensação onde todos temporariamente são iguais, penetrando o povo momentaneamente no reino utópico da universalidade, liberdade e abundância; ocorre o triunfo de uma liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, abolindo-se provisoriamente todas as relações hierárquicas, regras e tabus (MELO; MONTES, 1996). 152

Estabelecem-se, desta forma, entre os indivíduos, relações novas, aparentemente mais humanas, desaparecendo provisoriamente a distinção social. Importa acentuar que para o autor o princípio da festa popular do carnaval é indestrutível, fecundando os diversos domínios da vida e da cultura. Não retomarei aqui a discussão abordada no primeiro capítulo sobre a tese de inversão das hierarquias sociais de Da Matta (1984). Entretanto, quando retorno a Bakhtin (1999) quero demonstrar como as escolas de samba de alguma forma se chocam com a espontaneidade das festas populares. A autocensura realizada pelas próprias escolas impôs regras e condicionamentos para a realização dos desfiles, modificando, como nas palavras de Monis Sodré (1998), a essência do ritual, antes dirigido para si (para a comunidade) e depois dirigido para falar de si (para a plateia)54. Falar de si para a cidade e se apresentar como um espetáculo organizado, digno de representar a urbe para todo o mundo. Morre um pouco do lúdico, da espontaneidade, da ironia, das raízes e renasce um processo que é o resultado das trocas culturais estabelecidas entre povo e elites no Rio de janeiro. Entender este processo significa tentar perceber como os sambistas se tomaram da tarefa de penetrar na conjuntura da forma mais “eficiente” possível, isto é, sentindo, se envolvendo e procurando se integrar ao processo em curso no pós 1930. Tal como destacou Farias (1999), Paulo da Portela deve ser analisado ao nível da experiência individual de um microcosmo, ou seja, nas relações de sua comunidade, viagens pela Brasil e sucesso prematuro, convívio com detentores do capital simbólico e financeiro, a elite e a imprensa, aliado ao macrocosmo, isto é, o momento de efervescência de um Brasil em ebulição e mudança. A partir de sua experiência individual Paulo da Portela tentará transformar as regras do campo cultural reinantes à época da Primeira República. Por mais que não se tenha feito hegemonia, esse período agiu com bastante preconceito sobre a cultura popular. Farias (1999), anota que os sambistas, nada mais eram do que referências do atraso. Por meio de suas experiências individuais supracitadas,

______54Sodré (1998) acredita que o samba perde a sua característica de ritual onde todos participavam ativamente na elaboração da festa e se torna um ritual elaborado por uns para outros apenas assistirem, sem interferir no andamento daquele ritual. 153

Paulo da Portela tentará reagir de uma forma específica às estruturas que regiam à lógica do campo cultural, exigindo um maior reconhecimento sem, no entanto, fazer exigências geradoras de demasiado conflito. Se as condições históricas para o desenvolvimento das escolas de samba do Rio de Janeiro se solidificavam, Paulo adentrou por dentro delas. O incremento da possibilidade de comunicação e circulação do universo do samba com o restante da cidade é um ponto complexo nas mudanças estruturais sofridas na capital da República no período Vargas (Idem). As ações do grupo de Paulo se sintonizam com as mudanças, entretanto, remodelam o pacto que se estabeleceria dali em diante. Segundo Nóbrega (1999:36):

“A história das escolas de samba é também uma parte da história da relação dos grupos populares do Rio de Janeiro com seu espaço vivido e meio ambiente, os bairros populares, subúrbios e favelas. Foi especialmente através desta instituição que os grupos expulsos da cidade contra-arrestaram a marginalização e a segregação político-cultural “desmoralizante”, inerentes ao processo de modernização urbana do Rio de Janeiro, posto em marcha desde o final do século XIX. Através delas estes grupos construíram e aperfeiçoaram o convívio comunitário, se reinterpretaram e conquistaram uma identidade na cidade".

Farias (1999), reforça a relação com as pesquisa de Elias sobre os indivíduos destacados, que ele chama de gênios. Percebemos que a genialidade é construída a partir da experiência individual/ social. Elias objetiva explicar sócio historicamente o que aos olhos do senso comum paira sem explicação: o gênio. Aparentemente, as qualidades artísticas são inatas (de origem divina, ou biológica, a depender da crença), sem relação com os contextos históricos em que o indivíduo existe. Constrói-se aqui uma tentativa de demonstrar como as experiências individuais são absolutamente indissociáveis ao problema da estrutura de um determinado tipo de sociedade. Não fosse a experiência individual jamais teria reagido à ordem social; ao passo que não fosse o momento em que se encontrara a figuração de sua sociedade teria alcançado o sucesso e a fama. De qualquer forma, a experiência de Paulo da Portela ilustra o fato de que as estruturas constroem cotidianamente os indivíduos, no entanto, apenas os indivíduos e suas articulações sociais são capazes de transformar, cotidianamente, as estruturas. Da relação entre o macro e o micro, no jogar com as escalas, constata-se quão profícua é a articulação entre os níveis sociológicos de observação. 154

Paulo tornou-se uma liderança de seu grupo, reproduzindo em Oswaldo Cruz o ambiente de sucesso já encontrado na casa da negra Ciata na Praça Onze, isto é, o ambiente de troca entre dois mundos diferentes, porém nunca desarticulados55. Soube, além disso, se articular com as elites e a diversidade dos mediadores culturais existentes na cidade. Na verdade Paulo apresentou seu povo de outra forma para o restante da cidade. O governo embutido de uma lógica integradora se aproximou deste movimento, conferindo vantagens, mesmo que orientadas pelo seu projeto de desenvolvimento nacional (FARIAS, 1999). Ao contrário do Mozart de Elias que enfrentou uma sociedade da corte que restringiu sua possibilidade de transformação, Paulo foi se adaptando ao cenário de mudança que ocorria e dele foi tirando proveito e compromisso. Nosso personagem chegou talvez ao estrelato máximo que um sambista poderia chegar naquela época e por estas ações pagou também o preço de um pequeno isolamento até seu trágico afastamento da Portela. Nesse caso, Paulo saiu da Portela, mais do que por sua relação com governo e imprensa, e sim por sua relação com o mundo do samba. Paulo se tornou o diplomata não oficial das escolas de samba, isto é, maior do que a própria Portela. Paulo colocou-se a frente das rivalidades ainda existentes e isso colaborou para sua saída. Seu tencionamento se deu, também, com as outras escolas “grandes” da cidade que desejavam ampliar seu poder no pacto clientelista entre escolas, Estado e imprensa. No mundo do samba, pensando de uma forma mais ampla, a legitimidade de Paulo era incontestável. Ao morrer não conseguiu gravar mais do que duas músicas, seu talento político era maior que o de compositor, Paulo era, acima de tudo, o “relações- públicas” da Portela e das escolas de samba. A trajetória de Paulo expressa neste capítulo complexifica a história do apogeu das escolas de samba e servirá como referência para o próximo capítulo. Onde Paulo aparece como um mito e referência para aqueles que discordam dos rumos das escolas de samba por volta dos anos de 1970. As escolas de samba que antes integraram pela via cultural o negro da cidade passam a ser questionadas

______55Ver no capítulo 1 esse tipo de discussão acerca das relações históricas de trocas entre povo e elite no Brasil. 155

culturalmente pelos seus e por outros mediadores culturais. A árvore que perdeu a raiz é o nome do manifesto que Candeia e outros sambistas lançaram para criticar os caminhos dos desfiles. Paulo será retomado no futuro como um herói pelos sambistas insatisfeitos. Entretanto, a mudança na festa,a diminuição da espontaneidade, a entrada de novos grupos sociais dentro das escolas de samba, entre outros elementos, começou nos tempos de Paulo da Portela. As escolas de samba representaram o momento em que a ordem suplantou a desordem, aliados a prefeitura e a imprensa configurou-se um novo lugar cultural para o negro no Rio de Janeiro. Daqui em diante o processo só tende a crescer e culminar nos colossais desfiles de nosso tempo, ampliando ainda mais o hiato entre as raízes da festa popular e os atuais desfiles carnavalescos. Se a tese de Da Mata (1984) aparece mostrando a inversão, a ironia, o lúdico da vida nos dias de folia, as escolas de samba pressionam de alguma forma para a teatralização da festa, da festa que tenciona, em outros espaços, para a inversão. Os desfiles organizam e criam modelos de conduta, reduzindo parte do inesperado, da surpresa, da espontaneidade. Mas ao que eu entenda os desfiles das escolas de samba se propuseram a outro objetivo. O processo até aqui é, tal como na expressão de Raquel Soihet (2002), estudiosa das letras de samba-enredo, a ordem suplantar a desordem realizando assim, a integração cultural. No capítulo a seguir avançaremos alguns anos no espetáculo carnavalesco e tentaremos entender melhor as transformações ocorridas nas escolas de samba do Rio de Janeiro.

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3. OS DESFILES RUMO AO APOGEU: ESPETÁCULO, DIVISÃO E PATRONAGEM NAS ESCOLAS DE SAMBA

Na primeira parte desta tese tentei demonstrar como os mecanismos da produção artística popular impulsionaram a modificação do lugar simbólico do negro na sociedade do Rio de Janeiro. No período anterior, as escolas de samba agitaram um movimento de integração cultural da parcela negra da cidade, elevando o lugar das comunidades a elas relacionadas, mais precisamente, subúrbios e favelas. Nesse jogo de negociação e conflito a sociedade do Rio de Janeiro reacomodou as relações entre raça, cultura e política. Nos anos que se sucedem as escolas de samba vão rapidamente se tornando um símbolo cultural fundamental na identidade da cidade, inclusive, do pacto de negociação passiva e clientelista estabelecido entre elite e povo na Era Vargas. Com a ampliação do espetáculo carnavalesco, as escolas de samba vão, aos poucos, deixando de ser patrimônio prioritário dos seus fundadores ou de sua comunidade de origem. Esse processo já estava claro nos capítulos anteriores. O sucesso inicial das escolas de samba acontece na medida em que esta aparece como um movimento cultural disposto a negociar a sua integração, mediando o conflito e estabelecendo um pacto com governo, imprensa e uma diversidade de mediadores culturais. Forjam-se novamente canais de encontros entre dois universos que durante determinado tempo tiveram seus mecanismos de negociação truncados. Com a conjuntura política pós 1930, se remodelam os entendimentos sobre o papel do povo no novo regime, mesmo que este seja chamado a viver uma integração regulada, na qual o equilíbrio de forças tende a realizar transformações que mantenham o status quo do grupo dominante. Daqui em diante, daremos um salto de aproximadamente trinta anos na história, onde encontraremos a primeira crise nesse processo, crise que acompanhará uma modificação do entendimento político e cultural do lugar do negro na sociedade brasileira. Nos anos de 1970 a valorização de uma nova estética cultural negra se espalha pelo Brasil e por todo mundo, esta se fez presente nas cisões ocorridas no universo das escolas de samba, que, nesse momento, passam a ser questionadas como um lugar que não representa a “cultura autêntica” 157

do negro e sim, cada vez mais, uma cultura espetáculo dirigida a um público cada vez mais eclético. É nesse período que se fortalece a figura do carnavalesco externo a comunidade, na maior parte, artistas plásticos oriundos das escolas de belas-artes que passam a assinar o desenvolvimento do carnaval. Os sambistas insatisfeitos, que defendem um retorno às origens, passam a questionar o presente, isto é, os desfiles impecáveis, gigantescos e com temas “complexos” que podem fazer toda a diferença na acirrada disputa que se tornou o desfile carnavalesco. Por isso, me aproximo de uma figura destacada nessa “oposição” ao triunfo das escolas de samba, Antônio Candeia Filho, que protagonizou um racha na escola de samba Portela denunciando com eco na sociedade os “descaminhos” das escolas de samba. Sua trajetória e seu movimento podem nos ajudar a compreender um ciclo fundamental de um processo, isto é, do nascimento à consolidação e a primeira crise importante. Se as escolas ajudam a integrar culturalmente o povo negro na cidade, agora passam a ser questionadas, por um grupo, por promover um desserviço ao passado e também ao movimento de politização do negro – e da cultura em geral – que estava em voga naquele tempo.

3.1 Ditadura e engajamento artístico.

O início da década de 1960 representa um período de fortalecimento do autoritarismo político encarnado no regime militar instalado em 1964. A ditadura atrofiou os canais de questionamento, comunicação e participação política, perseguindo de forma violenta seus opositores. Diversos autores, entre eles, Fernandes (1977), Ferreira (2003), Fico (2003), Ridenti (2004), exploraram o caráter antidemocrático e autoritário do movimento militar de 1964. Segundo o historiador Jorge Ferreira (2005), depois de sobreviver às "crises da República" de 1954, 1955 e 1961, o sistema instaurado em 1945 foi derrubado pelo golpe militar e civil de abril de 1964. Para o autor, o novo tipo de ditadura explicar-se-ia pela fobia da Revolução Cubana nas administrações norte- americanas e nas elites conservadoras brasileiras; pela radicalização de parcelas 158

significativas da sociedade brasileira – à direita e à esquerda do espectro político – e pelas incoerências dos defensores da "legalidade constitucional". A Doutrina de Segurança Nacional e serviços de informações, censura, propaganda e polícia política truncam o direito à livre expressão democrática. Neste cenário, a produção artística como arena de disputa se fortalece no país. Como já dito, apesar da forte censura instalada, são inúmeras as manifestações artísticas de oposição à ditadura, se fortalece uma linguagem de protesto onde as manifestações artísticas passam a ser fundamentais na denuncia do modelo vigente. O engajamento artístico foi buscar temas e discussões que questionassem o modelo de desenvolvimento nacional e as pressões autoritárias embutidas a ele. Este discurso pretendia esclarecer o povo da opressão a qual eram submetidos. Acreditava-se aqui que a arte engajada poderia ajudar a denunciar o sistema autoritário e restabelecer a democracia. O artista assumiria o dever pedagógico de denunciar ou mesmo de esclarecer a população da realidade social brasileira (SANTOS, 2010). Este novo discurso, colocado como “revolucionário” ou pelo menos, “anti- autoritário”, é posto em prática no cenário cultural brasileiro. É nesse período que se fortalece a “canção de protesto”, que levantaria um importante debate em torno do engajamento do artista e do papel da produção artística em geral na transformação social. Esse movimento é articulado à política dos Centros Populares de Cultura (CPC)56 da União Nacional dos Estudantes (UNE), que possuíam como slogan: Fora da arte política não há arte popular, esse processo redefine não só o papel da música enquanto objeto artístico e cultural, como a do próprio artista enquanto agente social. Em outras palavras, para um grupo de artistas o uso social e político da arte passa a ser revelado, incentivando seu papel transformador, formando o artista declaradamente engajado (SANTOS, 2010).

______56O CPC também realizava, além da experimentação musical, trabalhos com a literatura, o teatro e o cinema, com destaque para a produção do filme Cinco Vezes Favela, de Cacá Diegues. Antes do próprio CPC, é importante anotar a criação, em 1944, no Rio de Janeiro, do Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da cultura negro-africana. Muitos de seus quadros aderiram ao projeto do CPC. 159

O engajamento nas artes se ampliou modificando sensivelmente o campo artístico. Um bom exemplo são compositores como Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Carlos Lyra, Nara Leão e até mesmo Vinícius de Moraes que, apesar de usufruírem do status alcançado na Bossa Nova, dentro desse cenário, migram para um novo posicionamento estético e político. Márcia Tosta Dias (2000), no seu livro Os Donos da Voz, importante estudo sobre a indústria fonográfica brasileira –, marca, como os principais levantes artísticos da época: o Cinema Novo, o Tropicalismo, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), e a Bossa Nova (WANDER, 2002). Segundo Wander (2002), antes do golpe de Estado de 1964, a produção cultural no País era intensa e dialogava muito com o pensamento político e social. A partir do golpe, essa produção passa a ficar mais escondida e, em 1968, com o AI-5 (Ato Institucional nº 5), entra na clandestinidade. “O Tropicalismo chega nessa época flertando com várias vertentes, do subterrâneo até o mais comercial, e atacou o regime pelo veio mais moral do que político. A Jovem Guarda teria outra postura, também menos engajada e mais comercial” (Idem). Ainda segundo Dias (apud Wander, 2002), os movimentos mais imersos na luta política e ideológica, “ocorrerão nas cisões da Bossa Nova e no fortalecimento do “artista engajado”, no Cinema Novo, nos teatros Opinião (de Oduvaldo Vianna Filho57, o Vianninha), Arena (de José Celso Martinez Correa) e no do Oprimido (de Augusto Boal). Como discutimos aqui, boa parte desses movimentos cresceram ou se articularam no seio do CPC da UNE” (Idem). Frederico Coelho (2008), percebe no célebre espetáculo Opinião um ritual contestatório da classe média carioca com figuras importantes da produção artística popular. “Nara Leão, Zé Keti e João do Valle sintetizavam as contradições do país, assumindo em cima de um palco, seus papéis de agentes sociais naquele agitado ano de 1965. A peça funcionava como um espetáculo engajado, onde diversos temas relevantes para o desenvolvimento nacional eram discutidos”. A desigualdade social e a crise política estabelecida eram motes principais das canções apresentas.

______57Para saber mais sobre a interessante trajetória de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, ver o excelente trabalho de Moraes (2001). 160

Nara Leão, uma das cantoras mais conhecidas do Brasil, ao gravar o LP Opinião afirma seu encontro com a música como discurso social, aparecendo aqui como um mediador de relações entre o seu grupo artístico e sambistas como Zé Keti e João do Valle. O clima é de se aproximar e experimentar a cultura popular, trocar, romantizar, proteger, ou mesmo alertá-la da perda de sua memória (COELHO, 2008). A letra de Zé Keti, cantada no espetáculo é uma síntese da denúncia dos problemas das favelas cariocas, veja a seguir a letra da música e algumas imagens relacionadas ao espetáculo:

Acender as velas, já é profissão, Quando não tem samba, tem desilusão. Desilusão!... É mais um coração que deixa de bater. Um anjo vai pro céu... Deus me perdoe, mas vou dizer... Deus me perdoe, mas vou dizer: O doutor chegou tarde demais Porque no morro não tem automóvel pra subir, Não tem telefone pra chamar E não tem beleza pra se ver... E a gente morre sem querer morrer!... (Acender as velas - Zé Keti)

Figura 48 – Zé Keti e Nara Leão no espetáculo Opinião

Fonte: (Disponível em: < http://blogln.ning.com>. Acesso em: 10 dez.2011).

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Figura 49 – João do Vale, Zé Keti e Nara Leão em cena no espetáculo Opinião, em 1964

Fonte: (Disponível em: < http://blogln.ning.com>. Acesso em: 10 dez.2011).

O historiador Arnaldo Contier (1998), em pesquisa sobre a relação da canção de protesto e o CPC da UNE, explica que a inserção da canção popular no âmbito do contexto cultural e político dos anos 60 nos levou a discutir a música como um discurso altamente complexo na sua feitura e na sua recepção pelos públicos. No show Opinião, por exemplo, deu-se uma convergência de músicas oriundas de outros contextos culturais e estéticos, ainda segundo autor:

“Eu sou o morro e Malvadeza Durão, dos filmes neo-realistas de Nélson Pereira dos Santos, de 1955 e 56 (Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte) ou Borandá de Edu Lobo (cantada nos espaços de Copacabana) ou trechos do filme de Glauber Rocha - Deus e o Diabo na Terra do Sol - ou ainda a Marcha de Quarta-Feira de Cinzas de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes lançada com sucesso em 1962. Essa rápida difusão do projeto nacionalista na canção popular de colorações engajadas levou a uma valorização da música nas peças de teatro (a descoberta da dramaturgia de B. Brecht), filmes, shows ou manifestações políticas (passeatas)”.

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O conceito vanguardista e totalizante de cultura defendido pelo CPC interferiu na criação e na divulgação da música que circulou nos mais diversos espaços da cidade do Rio de Janeiro. A música Upa, Neguinho, originalmente um segmento da peça Arena contra Zumbi58, tornou-se um sucesso isolado de Elis Regina nos palcos do Teatro Paramount, em São Paulo, e transmitido através do video-tape para as principais cidades do país. Foi apresentada, inclusive, no famoso teatro Olympia em Paris (CONTIER, 1998). A construção e sacralização desse imaginário musical num discurso engajado, segundo Contier (1998), marcadamente ideológico, implicaram no afloramento de rivalizações no cenário artístico. Diversos movimentos artísticos foram considerados pelos defensores da canção de protesto como alienantes, tais como: alguns temas da Bossa Nova (o sorriso, o violão, a flor, o mar de Copacabana); o iê-iê-iê, o rock, defendido pelos artistas da Jovem Guarda ou mesmo até pelo movimento tropicalista. Sintetizando, Contier (1998) demonstra que a chamada “canção de protesto”,num primeiro momento, representava uma possível intervenção política do artista na realidade social do país, contribuindo assim para a transformação desta numa sociedade mais justa. Ainda segundo o autor:

“Imbuídos desse imaginário político, aproximaram-se de arranjadores (maestros), de intérpretes, de intelectuais (ligados aos CPCs, ISEB ou Departamentos de Sociologia das Universidades), de instrumentistas, almejando induzir, implícita ou explicitamente, através de suas canções (formas, instrumentos ou ritmos sacralizados como representações de uma memória genuinamente brasileira ou nacional: violão, frevo, urucungo, moda-viola) algumas práticas revolucionárias, a partir de suas mensagens” (1998).

O matiz ideológico que representava a “canção de protesto” e o seu conteúdo político atingiam um segmento do público sintonizado com essa proposta política: estudantes universitários, profissionais liberais dos grandes centros urbanos. Outros textos, não explicitamente políticos, excessivamente metafóricos por vezes, como o movimento tropicalista, atingiam todos os tipos de público, incluindo setores mais conservadores da sociedade (CONTIER, 1998; RIDENTI, 2000).

______58Arena conta Zumbi é um musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal em 1965, com música de Edu Lobo, direção de Augusto Boal e direção musical de Carlos Castilho. 163

Segundo Ridenti (2000), dentro desse cenário que envolve rivalizações e a pressão do autoritarismo político, a canção de protesto não se representou como hegemônica nesse embate, tendo a produção considerada “não-engajada” maioria do mercado consumidor musical. Entretanto, sua “mensagem” e sua forma embutida de fazer arte se espalharam por todo o país, representando um importante movimento de renovação estética e artística e ademais, de revelação de uma vanguarda artística articulada aos movimentos democratizantes e crítica à desigualdade social.Ainda articulando artistas e engajamento político, outro depoimento interessante pode ser dado pelo compositor bossanovista Carlos Lyra em entrevista para o sítio eletrônico da União Nacional dos Estudantes, ele fala da importância do processo gestado no CPC da UNE em dezembro de 2006:

“Movimentou tudo, na cultura, na música, porque foi o movimento que transformou a Bossa Nova em MPB. Nós aproximávamos a música do morro, da área rural à classe média. Foi a partir dali do CPC, que surgiu a música regional que existe do jeito que ela é hoje, o forró, outros ritmos, tudo veio dessa maneira. Aquilo influenciou o Rio de Janeiro, a arte, a música brasileira e nós acreditávamos que era mesmo uma revolução cultural. Queríamos levar aquilo pro povo todo, pro Brasil inteiro”.

E segue, revelando mais informações sobre a sua formação:

“Juntamos dinheiro para construí-lo vendendo um disco da UNE chamado "O Povo Canta". Depois que arrumamos lá tínhamos todo tipo de atividade, desde cinema, peças, show, poesia, literatura de cordel, fazíamos de tudo. As apresentações eram sempre abertas ao público e muita gente comparecia de todo o Rio de Janeiro. O lugar era realmente um grande centro cultural, e o trabalho do CPC tinha grande a aceitação e a participação do público. Chegamos a fazer um show no Teatro Municipal que ficou famoso, reuniu Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Tom, Vinícius e outros artistas”.

O depoimento de Carlos Lyra revela o teor vanguardista e pedagógico do projeto do CPC. Nós aproximávamos a música do morro, da área rural à classe média é a representação consciente do papel de vanguarda (para o seu grupo) e de mediador cultural. O discurso revela ainda a vontade de conhecer e divulgar os ritmos populares de todo o país. Essa percepção dá andamento ao movimento modernista, porém, amplia a ligação entre pesquisa (de descoberta e preservação) e “desalienação” (política e cultural) da população, em especial aquela considerada marginalizada. Aqui a arte teria o sentido pedagógico de revelar a realidade do país e combater a ditadura 164

militar. O show citado por Carlos Lyra que colocou no mesmo palco Cartola e Vinícius de Moraes é uma representação desse encontro entre artistas populares e mediadores culturais. Esse encontro só reforçou a ida de diversos sambistas oriundos das escolas para o cenário da nascente Música Popular Brasileira (MPB), lá foram realizar sua arte “autêntica”, enquanto as escolas se uniformizavam e passavam a só responder pela festa carnavalesca. Uma boa representação dos encontros entre artistas populares e outros setores da classe média pode ser bem representado na Figura 50, retirada no ano de 1963 no bar Zicartola, do compositor mangueirense Cartola. Na fotografia estão: Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo de Carvalho, entre outros. Essa interação alimentou uma banda bem crítica ao caminho que seguiam as escolas de samba. Zé Keti mesmo, nessa época já se apresentava como um sambista que começava a se desvincular das escolas de samba. É como se para esse grupo, as escolas começassem a deixar de ser a representação mais pura da festa popular carioca e da cultura negra, e passassem a ser um evento para a mídia, o público, o patrocinador, o turista.

Figura 50 – Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo de Carvalho, entre outros, no bar Zicartola em 1963

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

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Figura 51 – Roda de samba no bar Zicartola (1)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Figura 52 – Roda de samba no bar Zicartola (2)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

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Na Figura 51, uma fotografia de roda de samba no Zicartola. A Figura 52 mostra outra roda de samba no mesmo local, esta com Anescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, Paulinho da Viola e Zé Keti. À esquerda, abaixo, o compositor

Hermínio Bello de Carvalho. Segundo Maurício Barros Castro (2004), que desenvolveu uma dissertação de mestrado sobre o estabelecimento, o Zicartola foi criado por Cartola no ano de 1963, e em pouco mais de dois anos de atividade foi um importante local de renovação e entrecruzamento cultural. A programação musical da casa era invejável. A seleção de artistas fixos contava com Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Leléu, Jorge Zagaia, Padeirinho, João do Vale, Geraldo das Neves e, é claro, o próprio Cartola. Também havia lugar para novos nomes, como por exemplo, Paulinho da Viola, que recebeu ali seu primeiro cachê como profissional. Cabral (1998:78) conta, que o estabelecimento de Cartola foi transformado pela classe média da Zona Sul em ponto de encontro da moda e, a cada noite, atraia centenas de fregueses interessados em se aproximar da cultura popular. O local também começou a reunir pessoal do Cinema Novo e os artistas de esquerda ligados ao CPC. Esse tipo de encontro foi definitivo nas transformações artísticas do período. Diversos músicos se aproximam dessa preservação e “denúncia social”, se autonomizando, ou mesmo abandonando as escolas de samba, que nesse momento começam a viver exatamente seu auge de popularidade na cidade como um todo. Dessa forma, paralelamente à renovação promovida em espaços como o Zicartola, as escolas de samba conquistaram efetivamente a hegemonia do carnaval carioca. Como abordarei adiante, os desfiles cresceram, se tornaram mais organizados e de maior apelo popular. Além disso, como veremos adiante, a partir do final da década de 1950, com a decadência da marchinha e do samba tradicional como trilha sonora da folia, o samba-enredo se desenvolveu e ocupou o espaço deixado pelas outras modalidades. Entretanto, o engajamento e o encontro artístico produzido na relação entre compositores populares e artistas da classe média levarão diversos sambistas a denunciarem o crescimento e perda de sentido no espetáculo que se tornaria o desfile das escolas de samba. Diversos compositores, como o já citado Zé Keti, Paulinho da Viola, Cartola e Candeia, mesmo que oriundos das escolas de samba, nesse momento começavam 167

a se destacar como artistas da MPB. Dessa forma, como alertei antes, suas produções artísticas começavam a se tornar, de alguma forma, independentes das escolas de samba. Outro espetáculo realizado pelo CPC que mostra também esse tipo de encontro e preocupação foi o Rosa de Ouro. Lançado em março de 1965 no Teatro Jovem, alcançou sucesso semelhante ao show Opinião. “Concebido pelo produtor, compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho, o show promoveu o retorno aos palcos da grande dama do Teatro de Revista, Aracy Cortes, acompanhada por um grupo de cantores-compositores formado por Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Anescarzinho do Salgueiro” (DOMUS, 2009). O grande destaque do Rosa de ouro, no entanto, foi Clementina de Jesus, uma senhora de 64 anos que estreava profissionalmente como cantora, até então ela trabalhara como empregada doméstica. “Recém-descoberta por Hermínio, Clementina arrancava entusiasmados aplausos da plateia ao entoar com sua voz poderosa os belos sambas e cantos africanos de seu repertório” (Idem). Cartola, que participou do espetáculo, também fora reencontrado pelo jornalista Sérgio Porto, ele estava esquecido na Mangueira e trabalhava como lavador de carros. Com o apoio de amigos da “classe média” abriu o bar Zicartola com sua esposa Dona Zica, dai em diante sua carreira, antes interrompida, tomaria sucesso que nunca tinha encontrado (CASTRO, 2004). Procurando uma síntese, posso afirmar que a trajetória de um artista neste período, estaria necessariamente vinculada a uma escolha dentre as possibilidades do campo artístico, a partir, inclusive, de sua postura política. A cisão que o discurso “engajado” conseguiu criar na cultura nacional agia diretamente na formação de públicos e mercados consumidores. Dessa forma, o reencontro entre a música popular e outros segmentos artísticos foi um dos elementos que impulsionaram a criação de um novo movimento, bastante articulado com a ideia de “denúncia”, “preservação e troca cultural”, atingindo, o debate acerca da questão da autenticidade da produção artística. Vamos pensar no seguinte cenário: a produção artística popular se torna base simbólica da formação nacional e matéria privilegiada no mercado cultural (condições interligadas), torna-se cultura de massa e adquire a conceituação de 168

inautêntica por um grupo, porém, como observamos aqui, essa autenticidade está em demasiado marcada pela questão do engajamento estético e político do artista. No primeiro momento analisado (década de 1930/40), a produção artística popular começa a se massificar junto ao desenvolvimento de uma identidade nacional. Participa, através de uma série de intermediações, tanto do Estado, quanto da mídia e da indústria cultural, da articulação dos símbolos formadores das identidades nacionais. Porém, pretendo prolongar outro elemento que é a prevalência de uma visão folclórica sobre a cultura popular nessa fase (Estado Novo), este debate é fundamental para compreender a modificação na visão da produção artística popular no período analisado aqui. Tal como relata o estudo de Vilhena (1997,1990), ainda até os anos de 1950 o folclore era considerado um tema quente, segundo o autor, tomou formato de movimento organizado, produtivo e influente no cenário cultural brasileiro. Um dos elementos que reforça essa visão é a forte atuação da Comissão Nacional do Folclore (CNFL), que funcionou até 1967. As grandes críticas que se abateram sobre os folcloristas começaram, sobretudo na universidade, o rigor exigido pela crescente sociologia não deixaria impune o olhar folclórico sobre a cultura do povo. Ainda, segundo Vilhena & Cavalcanti (1990:88):

“O confronto entre a escola paulista de sociologia, representada por Florestan Fernandes, e os folcloristas da CNFL nos revela um debate entre dois modelos distintos de ciência, modelos esses que apontam para diferentes projetos de modernização para o Brasil. Do ponto de vista da produção de conhecimento, a hegemonia obtida pelo primeiro modelo no campo das ciências sociais no decorrer desse período pode ser identificada como uma das causas da marginalização nos estudos do folclore”.

Francisco de Oliveira (1992:72), também anota que a identidade entre o folclore e a cultura popular se rompe nos anos de 1950, folclore passa a ser tradição; cultura popular; transformação. Aqui a arte popular passou a significar um meio para atingir determinado fim e dar consciência ao povo. Se antes o folclore era visto como parte do processo de construção da nação, passou a ter uma conotação negativa já no decorrer dos anos de 1950. Passou a ser visto como expressão de atraso cultural. 169

A produção cultural popular começa a ganhar forte carga ideológica, Vilhena (1997) mais uma vez alerta que, tal como no movimento folclorista que ajudou a redefinir o lugar da “cultura popular”59 no projeto nacional, o movimento que culminou no CPC da UNE também organizou uma gama de intelectuais imbuídos de uma missão e um projeto na construção de uma cultura nacional. Tal como elabora o sociólogo e ativista do CPC, Carlos Estevam no seu livro manifesto sobre a entidade:

“A cultura popular, essencialmente, diz respeito a uma forma particularíssima de consciência: a consciência política, a consciência que imediatamente deságua na ação política. Ainda assim, não a ação política em geral, mas ação política do povo. Ela é o conjunto teórico-prático que co-determina juntamente com a totalidade das condições materiais objetivas, o movimento ascensional das massas em direção à conquista do poder na sociedade de classes” (1963:30).

O discurso de Estevam ganha conotação explicitamente marxista. É interessante aqui também expor um depoimento do poeta Ferreira Gullar (1965:1). Participe influente do processo do CPC.

“A expressão 'cultura popular' surge como uma denúncia dos conceitos culturais em voga que buscam esconder o seu caráter de classe. Quando se fala em cultura popular acentua-se a necessidade de pôr a cultura a serviço do povo, isto é, dos interesses coletivos do país. Em suma, deixa-se clara a separação entre uma cultura desligada do povo, não-popular, e outra que volta para ele e, com isso, coloca-se o problema da responsabilidade social do intelectual, o que obriga a uma opção. Não se trata de teorizar sobre a cultura em geral, mas de agir sobre a cultura presente procurando transformá-la estendê-la, aprofundá-la”.

A passagem com o texto de Gullar aprofunda o sentido político inscrito na 'missão' e 'projeto' destinados ao intelectual frente à cultura popular (como um todo) e ao engajamento da produção artística popular. O antropólogo Gilmar Rocha (2008), nos seus estudos sobre o folclore no Brasil, aponta que esse processo revelaria três formas de pensar a cultura popular, a primeira como arte do povo,

______59Embora eu já tenha afirmado nesta pesquisa que prefiro os termos produção cultural, ou produção artística que simplesmente cultura, por diversas vezes (em especial na referência de outros autores) ele pode aparecer aqui relacionado à 'cultura popular' ou simplesmente 'cultura'. Quando não existirem referências, estou tratando de cultura no termo mais amplo, quando não, estarei chamando de produção artística ou cultural. 170

como o equivalente do folclore; a segunda como arte popular relacionada à indústria cultural (onde entraria o samba também); e a terceira como arte popular revolucionária, segundo o autor, a arte “produzida pelos intelectuais e artistas com o propósito de produzir consciência de classe e, por conseguinte, a transformação da realidade social” (2008:226). A produção artística popular vai se deslocando da visão folclórica e vai se aproximando de uma visão revolucionária. O extremismo dessa posição vai apostar que a 'cultura popular' era portadora de uma cultura 'autêntica', 'pura' e, portanto, menos corrompida. A massificação da produção artística passa a ser questionada, passa a ser acusada de “inautêntica” e “despolitizada”. O fato é que a massificação inicial do samba não é vista com maus olhos pelos sambistas, mas com o estabelecimento das transformações que relato a seguir, diversos sambistas, jornalistas, intelectuais, e etc., irão questionar a escola de samba como um processo artístico que perdeu sua autenticidade e se subjugou a outros interesses. Diversos membros das escolas de samba se juntam ao movimento de engajamento artístico, que como alertei, procura nas raízes da arte popular a saída para a arte mercadológica, em especial aquela que era financiada ideologicamente pelo Estado autoritário. Entretanto, o debate sobre a autenticidade da arte aparece na crise das escolas de samba interligado a diversos componentes. Como já fora descrito, o engajamento afeta membros das escolas de samba, e sua maior expressão se dará na preservação da identidade cultural africana. O movimento intelectual e político do engajamento artístico atinge o compositor popular, mas seus debates mais entusiasmados ficarão mais restritos aos círculos militantes de classe média. O mais interessante desse processo para as escolas de samba é o encontro de diversos de seus membros como esse clima de engajamento artístico. Muitos deles irão sair ou criticar as transformações que ocorrem nos desfiles carnavalescos e nas estruturas das escolas de samba. Esse movimento politiza a atuação do compositor popular, ao mesmo tempo em que faz este reforçar a sua “cultura original”. Aqui, o sambista começa a mirar para a África e redescobrir o sentido de ser negro no Brasil. Evidente, que nesse clima de engajamento artístico, a questão racial também aparece como pauta política e cultural e está totalmente ligada ao debate aqui colocado sobre 171

engajamento político e estético, que em outras coisas, reascendeu a valorização de uma estética “autêntica”, popular e "livre" das influências mercadológicas.

3.2 A influência do debate racial

Embora, não tenha sido a chave determinante na transformação cultural do universo racial brasileiro das primeiras décadas republicanas, o movimento negro é fundamental para entender o clima de engajamento no debate político da época adiante. É parte importante de um universo que articula sambistas com a política racial específica, isto é, para além da atuação engajada (dos CPC's) discutida anteriormente60. No início dos anos de 1960, são encontradas diversas organizações de cunho acadêmico e artístico que visam à autoafirmação negra. Inspirados nas lutas dos negros norte-americanos e nas guerras de libertação africanas, os movimentos brasileiros miram para os EUA e a África como resposta a seu suposto estado de “alienação”. Ao invés da integração racial e cultural a palavra de ordem passa a ser reparação. Estes movimentos reivindicam a ideia de que os negros têm uma história baseada em sua herança africana e querem fazer com que esta história seja resgatada, expandida e assumida. É nesse período que se fortalecem e surgem tanto a Quilombo de Candeia, como o Centro de Estudos Afro Asiáticos, a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, o Centro de Pesquisas da Cultura Negra, o Movimento Negro Unificado, entre outros movimentos políticos e culturais, e espaços de pesquisa acerca da questão racial. (MOURA, 1989; HANCHARD, 2001).

______60Já alertei que tanto o movimento de engajamento artístico, quanto o movimento negro não se fazem hegemonia no período, são aqui analisados porque são muito influentes no processo que analiso, isto é, de rompimento com a massificação cultural das escolas de samba. Os trabalhos de Hanchard (2001), Moura (1989), Nascimento (1982), são importantes fontes de aprofundamento das questões aqui apresentadas, além de servirem como referência para este tópico. 172

Acima de tudo, no plano das pesquisas questiona-se o mito da democracia racial atribuído a Gilberto Freyre, que seria acusado de escamotear a opressão histórica sofrida por negros no Brasil. E é nesse clima, de retorno às origens que uma parcela do movimento negro passa a ter nas escolas de samba um alvo de acusação, que representa distorção, alienação e destruição do passado africano. A questão é bastante complexa, o clima é de autoafirmação negra, a influência americana chega mais nos intercâmbios acadêmicos e culturais do que propriamente no clima de guerra civil que tomaram os guetos americanos daquele tempo. Comportamentos, mudanças nas vestimentas, na música, no corte afro de cabelo, revelando uma estética positiva black is beautiful, mais do que propriamente um movimento político organizado, ocorreu uma modificação da autoestima negra no Rio de Janeiro e em todo Brasil. A cultura de rua dos guetos americanos é muito importante na reformulação do ambiente cultural do negro nas grandes cidades brasileiras. Na imagem abaixo, o cantor Tim Maia, em 1968, aparece como uma representação desse estilo black. Note que o cantor valoriza um estilo diretamente influenciado pela black music norte-americana. As roupas, o ritmo, o cabelo remetem aos grupos de soul music dos EUA. Nas fotos abaixo comparo Tim Maia, o cantor e ator Tony Tornado e a referência da Soul Music norte-americana, James Brown.

Figura 53 – Semelhança de estilos entre James Brown, Tony Tornado e Tim Maia

Fonte: arquivo pessoal

Por outro lado, o movimento organizado exige reparação aos negros. Em um movimento que denuncia a opressão sofrida pelo negro ao longo da história do Brasil, tal como a ausência da cultura negra na história oficial. 173

Sua influência no meio da produção cultural se dará nos grupos que se remetem a África, onde o negro teria uma cultura riquíssima que precisava ser preservada. Sabendo seu passado, o negro se orgulharia dele e imporia com autoestima renovada e visão esclarecida seu lugar na sociedade brasileira. Por mais que para estes últimos Paulo da Portela seja um mito das escolas de samba, os negros não devem fazer aquele movimento inicial de incorporação à sociedade (denunciada como) preconceituosa, usando ternos clássicos no samba, modificando seus hábitos e costumes. No quilombo de Candeia o traje e as cores são de referência cultural negra e a invocação da África é permanente. Um detalhe que irei aprofundar adiante é essa reinvenção do passado. Os fundadores das escolas de samba, que iniciaram o processo de integração, são tratados como heróis, enquanto o presente representa a desconfiguração do que as escolas de samba já foram um dia. Quando alertei a complexidade do tema, falo da confusão operada entre passado e tradição, tal como a sua ligação com a superação dos problemas de ordem racial no país. É por ai que quero chegar. E alerto, não tratarei aqui de uma história do movimento negro no Brasil, me interessa a influência desse clima cultural e político no maior espetáculo popular carioca daquele tempo. Vale a pena aqui ressaltar novamente, a critica elaborada por Hobsbawm (2002), onde o estudo das tradições aparece como um caminho para esclarecer as relações humanas com o passado. Todas as pessoas, inclusive os pesquisadores, acabam por forjar imagens do passado que tem, por algumas vezes e em diversos níveis, um fundo político, uma apreensão romântica, idealizada etc (SANTOS, 2000). Dessa forma, alguns discursos sobre o passado contribuem, conscientemente ou não, para a reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mundo da investigação acadêmica, mas também à esfera pública onde o homem atua como ser político (SANTOS, 2000). No capítulo 2 alertei sobre as construções feitas sobre a imagem de Paulo da Portela nas entrevistas realizadas com seus contemporâneos. De toda forma, sabemos que esse tipo de referencia “heróica” a um personagem da História representa, de alguma forma, uma grande legitimidade desse personagem em seu grupo e na sociedade de sua época. 174

Retornando as transformações culturais ocorridas durante a década de 1970, destaco que a influência da cultura negra estadunidense toma ares de uma renovação estética e de autoestima nos circuitos culturais urbanos. No meio acadêmico e político fortalecerá pesquisas e reivindicações acerca da ideia de ampliação dos direitos civis. Dá África, além do matiz artístico, virá à referência às lutas por descolonização, uma transformação da visão do lugar histórico do negro na sociedade brasileira, denunciando o abuso do passado escravista e a necessidade de reparação e esclarecimento no presente. Entretanto, o Brasil, pós-abolição do escravismo, não viveu no plano dos direitos uma segregação racial oficial, tal como ocorrerá em alguns estados dos EUA e na África do Sul. Logo, esse tipo de reivindicação perderia força para a ideia de reparação. As próprias pesquisas se preocuparão mais em desenvolver os entraves impostos a incorporação do negro na sociedade brasileira, fortalecendo o sentimento de retorno as questões do passado escravocrata (VERDECANNA, 2009). A pauta que vai se fortalecendo nos núcleos políticos negros é a ideia de que o negro tem uma história escamoteada, e que foi obrigado a se escravizar. De alguma forma esse “equivoco” do passado precisaria ser reparado. E aqui, o movimento negro surge como o espaço de obtenção de valorização de uma identidade, que mesmo após a abolição continua a ser reprimida. É um espaço onde membros marginalizados no processo social construíam suas significações e manifestaram seu pertencimento. Que o antropólogo Kabelengue Munanga, vice- diretor do Centro de Estudos Africanos da USP, define como:

“A tomada de consciência de um segmento étnico-racial excluído da participação na sociedade, para a qual contribuiu economicamente, como o trabalho gratuito como escravo, e também culturalmente, em todos os tempos na história do Brasil” (1994:187).

Dessa forma, o movimento negro constituiria uma afirmação baseada na ideia de dívida histórica. Alertaria que os negros foram submetidos a trabalho forçado e não remunerado envolvendo uma série de castigos corporais. A retomada da identidade negra é objetivo da ação desse grupo por meio da luta contínua por reparação e reconhecimento da dívida histórica com a parcela negra da sociedade 175

brasileira. Tentando incentivar a equiparação das desigualdades sócio raciais no país. Ainda, segundo Munanga, falando sobre o mito da democracia racial:

“O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias [...] exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das camadas não-brancas de terem consciência dos mecanismos de exclusão da qual são vitimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes” (2006:89).

Levando em conta a relevância do professor Kabelengue Munanga no movimento negro, percebemos na passagem anterior os elementos formadores do discurso reparatório. A escravidão é a grande liga entre passado e presente. Lembrá-la é um alerta para o negro contemporâneo. Ela é a chave da reivindicação e estará presente em diversos espaços de efervescência negra nos anos de 1970, junto dela a remissão à cultura africana que teria sido enfraquecida por um modelo que privilegiou os valores das elites nacionais brancas. Segundo Abadias Nascimento, outro importante expoente ideológico e político do movimento negro brasileiro:

“Evocar o tráfico, lembrar constantemente a escravidão, deve constituir para os brasileiros uma obrigação permanente e diária, sem que isso represente nenhuma forma de autoflagelação patológica e muito menos o extravasamento de um pieguismo lacrimogêneo. Esta hipótese está muito distante da minha proposição. O que quero dizer é que o tráfico e escravidão formam parte inalienável do ser total dos afro-brasileiros. Erradicá-los da nossa bagagem espiritual e histórica é o mesmo que amputar o nosso potencial de luta libertária, desprezando o sacrifício dos nossos antepassados para que nosso povo sobrevivesse” (NASCIMENTO, 2002:98).

Todas as citações anteriores são de intelectuais engajados nos círculos militantes do movimento negro. As coloquei aqui no intuito de demonstrar a visão que gerou o atual discurso de reparação pelas questões do passado escravista. O encontro entre o movimento político internacional e o brasileiro modificou substancialmente a configuração das lutas acerca da questão racial no Brasil. Como 176

já coloquei anteriormente, esse processo estará baseado em dois elementos: a ideia de reparação e a crítica ao mito da democracia racial. O antropólogo Peter Fry (2005), no seu “A persistência da raça” pode nos dar importantes pistas para travar esse debate entre o clima racial brasileiro e a leitura construída pelos círculos militantes negros. O encontro que o pesquisador estabelece entre Brasil e África é determinante para que ele se aproxime de uma visão de que os processos raciais no Brasil, embora existam paralelos, são diferentes dos africanos e norte-americanos. Esse elemento é muito importante para entender as dinâmicas particulares do processo brasileiro. Segundo Fry, tanto no Brasil quanto em outras colônias portuguesas ocorreu um privilégio da ideia de conversão do nativo a cultura dominante, isto é “a conversão dos diversos grupos étnicos à cultura dominante”. No período posterior a República Velha se inicia “o elogio da miscigenação cultural e biológica” (2005:175). É por isso, segundo o autor, que o desenvolvimento das questões raciais no Brasil toma caminho peculiar. Aqui recoloco a ideia de que no Brasil não aconteceu à mesma separação entre negros e brancos ocorridas nos EUA e na África do Sul. Segundo Fry (2005), nos EUA predominaram a ideia de que um único ancestral negro era suficiente para produzir um “afro-americano”, no Brasil se acredita na ideia de que um indivíduo herda características de todos os seus ancestrais. Isso geraria segundo o autor, um “arco-íris de categorias raciais que vai do preto-azulado ao mulato-claro. Uma pesquisa realizada em 1976 revelou a existência de nada menos que 135 categorias desta natureza” (2005:176). Outro elemento peculiar é a difusão das práticas culturais afrodescendentes. A religião e o samba são rapidamente difundidos na cidade. Como já alertado no capítulo inicial, foi no universo da produção cultural e da religião que a identidade negra se difundiu com mais força e mediou sua integração na cidade do Rio de Janeiro. Nas casas de santo e nas escolas de samba foi se fortalecendo uma primeira identidade de grupo capaz de intervir positivamente pelos seus membros na cidade. Espaços que serviram como dispositivos de integração e mediação cultural. Nas escolas de samba, os desfiles, os encontros, eram um espaço lúdico em que sempre havia a inserção de reivindicações identitárias. No carnaval, colocar a escola de samba nas ruas era uma forma de por alguns dias, negociar com a 177

cultura padrão e apresentar a cultura negra à cidade. Nas casas de santo as figuras de referência, que exercem a formação espiritual, colaboram para a fundamentação do pensamento ideológico. Por meio da valorização religiosa e cultural, educa seus devotos para uma atuação política e racial. Como já esclareci, no pós-golpe militar de 1964, se amplia o movimento negro organizado, se fortalece a ideia de dívida histórica com o passado da escravidão. E se fortalece também num universo mais amplo que o dos próprios negros um sentimento valorativo frente às favelas e a cultura e a arte popular, movimento que se articula com a política do CPC da UNE61 e com a investida de intelectuais de esquerda nas camadas populares, que de uma forma pedagógica pretendiam dar-lhes consciência política. A presença da cultura negra é comum à vida cultural brasileira. Quero levantar a hipótese de que a influência do movimento negro não se fez hegemônica nos círculos culturais. Mas se fez presente, no capítulo seguinte quero mostrar como ela aparece no discurso do sambista Antônio Candeia Filho. Na realidade, levantei toda essa discussão para mostrar que existe uma pressão para o negro olhar para o passado e preservar sua cultura, além de lutar por sua identidade e história. Esse movimento criará uma nova banda artística, uma nova valorização estética, mas nunca os ares de guerra urbana do gueto estadunidense. O negro passa a ser valorizado pela sua produção cultural, num termo mais amplo que os alicerces da cultura popular, passa a ser agente de redefinição do seu espaço, seja na apreciação da estética black is beautiful dos guetos estadunidenses, ou mesmo na valorização do engajamento político por equidade sócio racial no país. O detalhe importante, é que o próprio clima político autoritário, como já alertado, empurra o movimento da política clássica, para a arena da produção cultural. De todo modo, o movimento black e a redefinição da identidade negra no Rio de Janeiro, modificou comportamento, gostos, criando novos símbolos de etnia para

______61Vale uma nota para esclarecer que o movimento artístico negro sofre influência do movimento política, mas isso não significa uma adesão, pelo contrário tende a continuar aquecendo o espírito de trocas que acompanha a sociedade brasileira dos últimos tempos. O próprio Teatro Negro de Abdias do Nascimento critica o CPC por tentar se apropriar da luta racial para seus interesses políticos. 178

a população negra (e inclusive um novo mercado artístico em torno dele). Em pouco tempo os bailes musicais blacks ficariam lotados em todo o Rio de Janeiro, embora, como já alertado, não tivessem os contornos dos conflitos ocorridos nos guetos americanos, são fundamentais para a compreensão da identidade negra no Brasil. Segundo o antropólogo Peter Fry:

“A proliferação de bailes afro-sul em São Paulo e no Rio é um exemplo de situações em que os brasileiros negros criam novos símbolos de etnia, de acordo com sua experiência social. Embora algumas pessoas acreditem que esses fenômenos são exemplos de 'dependência cultural’, ou da capacidade das multinacionais de vender os produtos que bem entenderem, não tenho dúvida de que, apesar de tudo, eles representam um movimento de grande importância no processo de identidade no Brasil” (FRY, 1982:15).

Os primeiros bailes, no inicio dos anos de 1970, ficaram conhecidos como "Bailes da Pesada", eram realizados aos domingos no bairro de Botafogo, na casa de shows Canecão. Segundo a pesquisa de Hermano Vianna (1988) sobre o nascimento do funk carioca, o locutor de rádio Big Boy e o discotecário Ademir Lemos, duas figuras lendárias para os funkeiros, foram os responsáveis pelos Bailes da Pesada, que reuniam cerca de cinco mil pessoas de diferentes bairros da cidade. Abaixo uma foto dos DJs Ademir Lemos e Big Boy (Figura 54) e outrado cartaz da festa (Figura 55).

Figura 54 – DJs Ademir Lemos e Big Boy 179

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Figura 55 – Cartaz do Baile da Pesada

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Como conta o jornalista Silvio Essinger (2005), no seu “Batidão: uma história do funk”, Newton Alvarenga Duarte, o Big Boy foi Formado em Geografia e acumulou inúmeras funções na área de jornalismo e produção cultural. Ele foi o primeiro a quebrar a regra das locuções rígidas nos rádios. Com o estilo de locução bem acelerado e, digamos assim, “meio louco”, Big Boy ganhou vários adeptos entre os inúmeros ouvintes da Rádio Mundial, chegando a ter três programas ao mesmo tempo no ar: Cavern Club, Big Boy Show e Ritmos de Boate. Big Boy foi uma figura fundamental na história dos grandes bailes que se realizaram ao longo dos anos 70, onde centenas de equipes de som disputavam a preferência de milhares de jovens. Os lendários Bailes da Pesada eram verdadeiros confrontos de equipes, onde o equipamento de cada equipe de som (isto é, a potência e a qualidade do som) era fundamental como elemento de distinção e sucesso do baile. Cada DJ se desdobrava para mostrar ao público as novidades do Soul Music americana, bem como, os grandes DJs e equipes do movimento internacional. O DJ famoso era aquele que além da melhor equipe detinha o melhor acervo e contato com as novidades vindas do exterior (ESSINGER, 2005:67). 181

Big Boy foi o difusor de uma série de modismos e comportamentos em seus programas de rádio: sapato na época chamava-se pisante, dentre outros costumes. Algumas das características principais dos frequentadores dos bailes da pesada eram as seguintes: cabelos no estilo black power, óculos escuros, gravata borboleta, bengala, calça boquinha de sino e sapato cavalo de aço (Idem). Embora essas festas tocassem também rock e outros ritmos da indústria pop internacional (em maior parte dos EUA), o que estava em efervescência e no centro da festa era o soul de James Brown, Wilson Pickett e Kool and Gang (Idem). Com o passar dos anos, os Bailes da Pesada foram transferidos para clubes do subúrbio carioca. Um dado interessante foi que a partir de então, esses bailes passaram a ser realizados a cada fim de semana num bairro diferente, favorecendo o surgimento de novas equipes de som que animavam pequenas festas e descentravam os grandes bailes. Na Figura 56 e na Figura 57abaixo, um baile da equipe Khaunna no clube Mackenzie do Méier, ainda na década de 70, demonstra algumas característica dos bailes nos subúrbios cariocas, as potentes caixas de som e quantidade grande de frequentadores, em sua maioria, negros.

Figura 56 – Baile da equipe Khaunna (1)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

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Figura 57 – Baile da equipe Khaunna (2)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Como estes bailes estavam sempre lotados, diversas equipes de som, como a Soul Grand Prix, Revolução da Mente, Black Power, Atabaque, Khaunna, dentre outras, conquistaram fama e algum dinheiro nessa época. Em pouco tempo o subúrbio carioca era tomado pela febre da black music. Porém, segundo Hermano Vianna (1988), as grandes equipes de som começaram a tomar uma atitude pedagógica de valorização da identidade negra, seguindo o movimento cultural que diversos outros grupos da cultura negra seguiam na sociedade. O interessante aqui é que se fortalece um mercado fonográfico e de diversão “marginal”, desalinhado da indústria fonográfica dominante. Embora diversos artistas permaneçam nas gravadoras tradicionais, grupos marginalizados começam a montar uma indústria fonográfica periférica no subúrbio carioca. O que acontece, é que nesse momento, o funk perdia as características de pura diversão e passava a se constituir como um movimento político de superação do racismo (o que acabou por empurrar os bailes para os subúrbios); e segundo, porque a polícia do regime militar achava que por trás das equipes de som existissem grupos clandestinos de esquerda, de forma que alguns discotecários ligados ao movimento Black Rio chegaram a ser presos. Conforme Vianna (1988), o engajamento artístico nos bailes foi um motivo para o esvaziamento destes em 183

alguns pontos da cidade, produzindo cisões no grupo, mas, reforçando uma identidade negra muito forte no subúrbio da cidade. É por isso, que mesmo com o processo de “guetização” dos Bailes da Pesada, o crescimento destas festas despertou o interesse comercial das gravadoras do país, além de criar novas gravadoras oriundas do próprio subúrbio e das equipes dos bailes. Os primeiros discos lançados levavam o nome das equipes mais famosas, começando pelo LP Soul Grand Prix depois chegando à vez da Dynamic Soul, da Black Power e mais tarde da Furacão 2000 (Vianna, 1998). Os exemplos do Teatro Opinião e do Baile da Pesada são fundamentais para compreender o cenário racial do Brasil da década de 1970. Em um primeiro momento ocorre um reaquecimento histórico das relações de troca entre artistas populares, mediadores culturais e elites. Em um segundo momento, que não atravessa necessariamente o primeiro, uma parte dos grupos artísticos populares radicaliza na luta pela valorização da cultura afro-descendente. Esse segundo plano irá produzir cisões e ira acusar as escolas de samba, por exemplo, de terem perdido sua essência, de não representarem mais a herança cultural negra. Retornando ao cenário mais geral, é certo que em tempos de repressão, a música, o comportamento e a estética em geral mais uma vez aparecem como canal de proliferação de símbolos alternativos ao sistema vigente e ao ambiente cultural mais amplo da sociedade. A luta política organizada ainda precisaria enfrentar a derrubada da ditadura militar para ver sua expansão se efetivar. Mas pelas ruas, novos signos conviviam com o ambiente nacional remodelando mais uma vez as relações entre cultura, raça e política nos principais centros do Brasil. É muito difícil separar esses universos, o novo tipo de engajamento acerca da questão racial, o movimento artístico e comportamental e a valorização da cultura africana. A escola de samba funcionou como um lugar de integração e passou a ser questionada culturalmente pelo seu próprio universo criador. Aqui as escolas de samba, espaço fundamental para entender a integração cultural do negro no Rio de Janeiro, passam a ser criticadas, dentro de um campo artístico em transformação, como uma árvore que perdeu a raiz (na comparação criada por Antônio Candeia), que deixou de ser porta-voz da identidade negra e passou a ser um espaço “invadido”, onde o que interessa é agradar jurados, elites e mídia. Percebemos que a dureza desse tipo de acusação anda perto da modificação da visão da questão racial no país e da redefinição da valorização estética negra, ao 184

mesmo tempo em que meche com a romantização da tradição. Os sambistas descontentes miram no passado africano e na fundação quase mítica de suas agremiações, a resposta para a perda da autenticidade da produção cultural ligada às escolas. Era como se as escolas devessem ser veículos propagadores da cultura, da história, da herança negra, ajudando este a superar a “alienação” e se engajar na luta por equidade social entre as raças. Além disso, deveria ser também mais resistente as “inovações” que poderiam ferir sua autenticidade. Na primeira parte desta pesquisa, as escolas de samba eram o principal espaço de sociabilidade do subúrbio carioca, agora teriam que rivalizar com os bailes black, charme e shows realizados nos clubes por artistas populares que vão se autonomizando das escolas de samba e ganhando público próprio no envolto cultural da recente Música Popular Brasileira ou mesmo do movimento de gravadoras de pequeno porte oriundas dos Bailes da Pesada. Nesse cenário, as escolas de samba não gozam da mesma legitimidade que possuíam no meio artístico popular, pois esse campo se redefiniu em diversos sentidos. Entretanto, um deles prevaleceu, foi à valorização da cultura popular, de suas raízes, de sua complexidade e sofisticação. Essa é a banda cultural que entrará em choque com as transformações ocorridas nas escolas de samba e nos desfiles carnavalescos. A escola de samba será acusada de ter perdido sua autenticidade e servir a uma gama de interesses cada vez mais expressados na “deformação” da cultura popular. No capítulo seguinte esse debate (autenticidade) irá aparecer em uma face mais complexa, na análise do manifesto crítico de Candeia dirigido às escolas de samba. Adiante, irei penetrar no universo mais restrito das escolas de samba nesse período para no capítulo seguinte me aprofundar na rachadura iniciada por Antônio Candeia na Portela. Vamos conhecer adiante as principais transformações ocorridas nas escolas de samba nos dois períodos analisados aqui nesta pesquisa. Com mais alguns elementos poderemos mapear os fatores que podem ter intensificado as divergências no universo carnavalesco carioca.

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3.3 A espetacularização dos desfiles62

Em 1960, como relata Cabral (1998), Nélson de Andrade, presidente da Acadêmicos do Salgueiro, faz um convite ao então responsável pela cenografia do Teatro Municipal e julgador do carnaval carioca Fernando Pamplona para que este elaborasse o enredo do carnaval da escola naquele ano. O enredo era Zumbi dos Palmares e o artista plástico aceitou o convite levando junto de si seu companheiro de trabalho no Municipal, o cenógrafo e figurinista Arlindo Rodrigues e o aderecista Nilton Sá, tal como Pamplona, oriundo da Escola de Belas-Artes. A escola de samba já contava com o casal de artistas Marie Louise Nery e Dirceu Nery ela era suíça e especialista em folclore, ele nordestino e cenógrafo teatral (COSTA, 1992:67; CABRAL, 1998). O Salgueiro é considerado a primeira escola de samba a fazer essa ponte, normalmente os responsáveis pelo desenvolvimento do desfile eram pessoas autodidatas oriundas da própria escola, existiam um ou outro figurinista do teatro de revista que trabalhavam nas escolas nas proximidades do desfile. Alguns sambistas descontentes dirão que aumenta ai a ingerência de membros externos à comunidade. Entretanto, a presença de um “técnico”, aderecista, cenógrafo, escultores, mesmo que autodidata, é constante na história da preparação dos festejos no carnaval carioca. No período de glória dos grandes Ranchos que, como já alertei no capítulo 1, servem de referência às escolas de samba, essas funções estavam bem definidas. No pós-1960, essa mudança revelaria uma transformação estética no formato dos desfiles. A influência desses carnavalescos modificaria desde a concepção do enredo, comportamento de alas, padrão de alegorias, entre outros elementos. Com o aumento da popularidade dos desfiles e do número de setores da sociedade envolvidos direta ou indiretamente com as escolas de samba, seu

______62A maior parte das referências deste ponto do capítulo foi extraída da obra. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro de Sérgio Cabral (1997) e da pesquisa da historiadora Monique Augras intitulada: O Brasil do Samba-Enredo (1998). Ainda se encontra a importante colaboração de Nei Lopes no seu: O samba, na realidade: A utopia da ascensão social do sambista (1981). 186

patrimônio se amplia e nesse processo novos mediadores e personagens entram na definição do formato e padrão das apresentações carnavalescas. Se pensarmos na análise feita anteriormente de que a produção artística da elite e do povo encontram constantes canais de troca, mediação e redefinição, podemos pensar as escolas de samba, como um movimento que, embora tenha suas raízes na cultura popular foi se remodelando no encontro com o universo cultural mais amplo da cidade. Passou a representar e responder por um patrimônio maior que a comunidade que a originou. Segundo afirma Cabral (1998), a primeira apresentação de Pamplona teve alguma resistência da comunidade do Salgueiro e o papel do presidente como mediador dos interesses foi fundamental. No carnaval se consagrou a máxima de negros pobres fantasiados de reis, rainhas, representando um momento lúdico onde estes se tornavam o maior personagem do evento. No enredo de Pamplona eles viriam fantasiados de escravos numa enorme ala. Com uma leveza nunca vista, e com a bateria pela primeira vez fantasiada de acordo com o enredo o Salgueiro sagra-se campeão naquele ano, impondo, assim a reflexão sobre o novo padrão de desfile ali inaugurado. Entretanto, se a glória do Salgueiro parece continuar com a vitória do carnaval de 1963. Nilton de Sá, da equipe de Pamplona, dá entrevista ao Correio da Manhã às vésperas do carnaval daquele ano, onde se coloca arrependido de ter participado do carnaval da escola. Segundo Nilton:

“Embora tenha sido uma das coisas mais bonitas que já fiz e tenha visto o meu trabalho admirado por milhares de pessoas, o que envaidece um artista, a tese que defendo é que a intromissão do intelectual nos fatos da tradição popular concorre para a sua degeneração. […] ameaça o caráter forte que o negro imprimiu à escola de samba. A artista plástica quer se utilizar da escola de samba porque ela está em evidência. Os ranchos, de menor interesse do público e das autoridades, ficaram intocados pelos intelectuais, assim como as escolas menores. Já chega a péssima influência do teatro de revista, notadamente nos últimos anos, em seus figurinos e coreografias. A Portela é a que mais se ressente com essa imitação, visível pelo mau gosto das plumas e das baianas de umbigo de fora.” (CABRAL, 1998: 186).

Nilton de Sá já chama a atenção para uma tendência à imitação dentro das escolas de samba, sugerindo que a força da cultura negra vinha sendo substituída pelo estilo extravagante das coreografias e vestimentas do teatro de revista. Aqui ele se coloca como alguém que se arrepende de interferir na tradição negra, quase 187

uma devoção à originalidade da cultura, que estaria ameaçada de perder sua autenticidade. A vitória de 1963 fora triunfal, o desfile se mudou para a Avenida Presidente Vargas e pela primeira vez foram cobrados ingressos. Cerca de 30 mil espectadores assistiram a vitória do Salgueiro com o enredo em homenagem a Chica da Silva. Tal como em Zumbi dos Palmares, a jovem escola, com seu slogan nem melhor e nem pior, apenas diferente, iria a rompimento ao clima de valorização dos heróis da história oficial, valorizando, agora, personagens de outra banda, antes marginalizados (CABRAL, 1998). É importante se atentar a uma questão aqui, embora sejam considerados membros externos (pelos oposicionistas à sua presença) às escolas, os profissionais de belas-artes estão inseridos no clima de valorização da cultura africana, e ainda mais, em um clima pedagógico de valorizar novos heróis e novas questões. O desfile do Salgueiro contava com uma ala coreografada pela bailarina Mercedes Batista que levantou muitos questionamentos no universo das escolas, mas que arrebatou os jurados. Aí em diante o Salgueiro passa a incomodar as outras escolas, no sentido de que a inovação estava rendendo títulos. Sérgio Cabral (1998) relata que a pergunta mais frequente, no meio do samba, naquele ano fora: isto é carnaval? Questionando o título do Salgueiro. Abaixo, na Figura 58, uma imagem do desfile demonstra a modificação estética pela influência dos novos carnavalescos. Além de fantasias elaboradas com novos recursos e materiais, de uma proposta estética refinada, percebemos também a coreografia de alas como um elemento que causa tremendo impacto no público, mas reduz a liberdade do folião dentro do desfile.

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Figura 58 – Desfile (1)

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Outras fotografias ajudam a mostrar a transformação no impacto visual do desfile do Salgueiro.

Figura 59 – Desfile (2)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011). 189

Figura 60 – Desfile (3)

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Porém, a ideia de redução de liberdade com a ala coreografada pode ser relativizada. Candeia mesmo era um grande organizador de alas coreografadas, a famosa Ala dos Impossíveis na Portela. O que pegou e chamou a atenção no desfile do Salgueiro, foi o estilo clássico da coreografia, remetendo-se à influência da bailarina Mercedes Batista, do Teatro Municipal, que foi quem a elaborou. Na Figura 61 abaixo, Mercedes Batista naquele ano, no desfile do Salgueiro:

Figura 61 – Mercedes Batista

Fonte:(Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011). 190

Mercedes Batista foi a primeira bailarina negra do Teatro Municipal, isso mostra o quanto é complexa essa relação entre pessoas “de dentro” e “de fora” das escolas de samba. O próprio carnavalesco Fernando Pamplona se mostra, como já citado, um elaborador de enredos que exaltam a história dos negros. Sua relação com Abdias de Nascimento, importante liderança política do movimento negro, mostra o quanto ainda seria imbricada essa relação no futuro das escolas de samba. Abaixo mais imagens do desfile e do atelier criado por Fernando Pamplona no barracão da escola de samba.

Figura 62 – Atelier criado por Fernando Pamplona

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

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Figura 63 – Minueto com a Candelária ao fundo

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

A clássica cena do minueto dançado com a Candelária ao fundo (Figura 63 acima) foi o diferencial da coreografia de Mercedes Batista. Se hoje se discute se a teatralização em alas ou carros alegóricos é ou não a nova tendência nos desfiles na Sapucaí, naquele ano, o Salgueiro desafiou os desfiles da época ao trazer Mercedes como coreógrafa do palco do carnaval. Fruto de sua experiência como bailarina do Teatro Municipal carioca, Mercedes Batista é, portanto, introdutora de uma concepção artística inovadora para as escolas de samba. Entretanto, como já alertei a grande mediação que compõe os desfiles permite que a estratégia do Salgueiro tenha respaldo em um corpo de jurados composto por diversos membros das escolas de belas-artes e em alguma parte da imprensa que quer celebrar o pacto entre este setor e sambistas (CABRAL, 1998). O pioneirismo do Salgueiro, não se deu somente na entrada dos profissionais artísticos, também se marcou na presença do público na quadra da escola. Desde os anos de 1950, as escolas começam a receber um público cada vez mais eclético em suas quadras e o Salgueiro foi a escola que melhor soube adaptar sua quadra ao gosto da classe média e dos turistas, fazendo-se referência nesse tipo de frequência naquele tempo, inclusive nos anos de 1970, leva seu ensaio para clubes de classe média fora da favela (CABRAL,1998). O fato é que seguir o exemplo do Salgueiro pode ser uma tentação irresistível, tendo em vista o prestígio precoce alcançado por seus carnavais. Mas 192

esse processo não é simples, escolas como a Mangueira e a Portela veem na sua tradição a força dos seus desfiles. A Mangueira contratou em 1964 o escultor de vanguarda Amílcar de Castro para confeccionar algumas de suas alegorias. Os sambistas da Mangueira não gostaram do resultado, alegando conotações fálicas no carro e dispensaram o trabalho (Idem). O clima era de questionamento e Pamplona, que não dirigiu o carnaval de 1963, ficando este a responsabilidade de Arlindo Rodrigues, responde as acusações no jornal a Tribuna da Imprensa:

“Dizem que o Salgueiro contrata figurinistas e bailarinos profissionais para organizarem e dirigirem o espetáculo. Isso é importante, pois que infâmia. Jamais qualquer um de nós foi contratado ou recebeu um centavo sequer pelo seu trabalho para o carnaval. Parece que o mesmo não ocorre em outras escolas. A Portela, cinco anos atrás, tinha uma figurinista e decoradora francesa, Deb Bourbonis, que fez vários carnavais para ela. Sorense, figurinista da TV Tupi, cobrava a quatro anos Cr$ 2 mil para cada desenho que fazia para as escolas de samba. E figurinistas das revistas da Praça Tiradentes que ainda hoje trabalham para o carnaval das escolas?”.

O jornalista Haroldo Costa (1984), no seu Salgueiro, 50 Anos De Glória, conta que o Salgueiro não era uma escola com muito dinheiro, seu bicheiro Osmar Valença era de porte econômico modesto. Na Portela de Natal já existia como atesta Pamplona pessoas ligadas ao teatro de revista. Entretanto, a revolução estética que sacudiu o carnaval nasceu no Salgueiro. Isabel Valença, esposa de Osmar e destaque da escola, foi convidada a levar sua roupa de Chica da Silva ao desfile de fantasias de luxo do Teatro Municipal estabelecendo uma relação definitiva entre determinada vanguarda artística e os sambistas. Pamplona retornaria ao Salgueiro, ao lado de Arlindo Rodrigues em 1969, após uma participação de Clóvis Bornay como carnavalesco. Em entrevista cedida a Helenise Guimarães, o artista faz um balanço de sua participação no Salgueiro:

“se não tivesse havido Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta, Pamplona, Maria Augusta, haveria outros, porque é mais ou menos por aí, como a galinha e o ovo, o material ajuda a progredir a solução e ela exige que haja novos materiais para que você possa fazer a revolução estética” (SANTOS, 2009:56).

Na pesquisa de Nilton Santos (2009) aqui estaria um dos elementos importantes da transformação estética, a introdução de novos materiais, como a ráfia e o isopor, tal como o destaque dado ao figurino e ao apelo visual. Aqui se 193

encontrariam dois universos, como podemos perceber nas “novas” temáticas, como Zumbi, Chica da Silva, encontrando o mundo dos “intelectuais” da Escola de Belas- Artes com o universo da produção cultural popular. Como atesta Pamplona em entrevista para site O batuque (2008), esse mundo estava em circularidade. Inclusive, é como se mediadores culturais do nível de Pamplona integrassem intelectuais negros de fora da escola com elas, como pesquisadores, políticos e etc.

“o presidente me convidou para fazer o Salgueiro. Eu falei pra ele: “Só se for uma coisa que está na minha , que é o Quilombo dos Palmares”. Eu tinha colaborado com Abdias Nascimento vendendo ingresso pro Teatro Experimental do Negro, com Solano Trindade. Fotografei tudo de graça. Trabalhei com a Mercedes Batista, com o maestro Abigail Moura, que fazia a Orquestra Afro-Brasileira. Eu quis fazer uma homenagem ao maior negro”.

Pamplona atesta nesse comentário sua relação com uma figura importante do movimento negro brasileiro, no caso, Abdias Nascimento. Entretanto, as críticas acerca do futuro das escolas de samba irão colocar a ingerência da dupla carnavalesca– patrono como o nó da crise que se instalaria com o rompimento de Candeia na Portela. Em mais uma passagem da entrevista, Pamplona revela mais elementos do seu encontro com a cultura popular e com o Salgueiro:

“Carnaval não era meu interesse fundamental, e nunca foi. Era uma expressão cultural, popular e autêntica. Uma vez, estava conversando no Vermelhinho, que naquela época era o ponto de reunião do Rio de Janeiro, pois não havia teatro e nem galeria na Zona Sul. Quem trabalhava com arte se reunia no Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre, em frente à ABI, onde todos os grandes nomes da época se reuniam. Do Di Cavalcanti ao Pancetti ao Augusto Rodrigues, Mário Pedrosa, Mário Barata e vai por aí. E um dia, um sujeito chamado Mereceu Tati, que era o copydesk do Jorge Amado, trabalhava no Departamento de Turismo e Certames, que hoje é a Reitor, e que comandava todas as festividades no Rio, me convidou para ser jurado e fui júri do carnaval de 1959. Eu fui criado com conto de fadas, não foi com super-herói, não. Eu gostava muito do Império Serrano. Eu achava que Império Serrano era uma serra onde tinha castelo, onde havia uma princesa. Como eu comecei a frequentar a UNE, mesmo antes de começar minha vida universitária, fui influenciado por um sujeito chamado Rogê Ferreira, que morreu em São Paulo e foi fundador do partido Socialista. Entrei pro partido e virei um revolucionário chinfrim. Eu adorava o nome Mocidade Independente. Eu queria ser mocidade e ser independente. Era uma escola pequena. Mas quando eu vi o Salgueiro entrar pela primeira vez – e eu era Rio Branco, no Acre, que era vermelho-e-branco também – virei Salgueiro. O presidente me convidou para fazer o primeiro enredo”.

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Pamplona destaca as escolas de samba como expressão cultural, popular e autêntica, foi convidado para ser jurado dos desfiles num ambiente social repleto de mediações, que são a representação da história das escolas de samba. Porém, perceba uma face do processo: os membros do júri que se tornam carnavalescos são os que irão agradar ao júri, provocando um processo de remodelação dos desfiles por pressão da ascensão das escolas que adotavam “novos padrões”. Não quero dizer que é um processo intencional. Entretanto, é natural que ao perceberem o crescimento do Salgueiro, outras escolas adotem seu comportamento. No carnaval do ano de 1970, notam-se outras mudanças significativas no desfile quanto ao seu porte. A transferência para a Av. Presidente Vargas eleva para 25 mil o número de expectadores. Ao todo foram distribuídas 1200 credenciais de imprensa. A TV Tupi e a TV Rio realizam a cobertura junto a inúmeras estações de rádio. Pela primeira vez seria configurada uma revista oficial do desfile para ser distribuída entre os espectadores. Nesse período aumenta consideravelmente a frequência da classe média nos ensaios e no desfile das escolas de samba. Desde o ano de 1965, a Portela apresentava uma ala inteira apenas com artistas da mais poderosa rede televisiva da época, a TV Excelsior (CABRAL, 1998). Outro fator interessante de anotar foi que a Secretaria de Turismo, preocupada com os atrasos dos desfiles, que prejudicavam a transmissão de televisão63, instituiu a punição de dez pontos para cada escola que não respeitasse o tempo limite de 75 minutos para o desfile, além da limitação para 2500 componentes. Esse tipo de medida gerou vários protestos entre os sambistas. Tanto que no primeiro ano de sua execução, o Salgueiro que havia se consagrado campeão, teve que dividir seu título depois com Mangueira, Império e Portela, que perderam pontos por atrasar sua passagem na avenida (Idem). Importante notar que a força dos laços entre Estado, imprensa e escolas de samba apresentava por vezes turbulências, mas nunca capazes de desestabilizar uma relação que parecia para ambos a marca da consagração das escolas de samba. Porém, a divisão e o descontentamento começam a tomar parte dos grupos que são alijados de algumas escolas para que essas continuem seu movimento de

______63Inclusive, segundo Lopes (1998), o desfile já era transmitido diretamente, ou em videoteipe para mais de dez países no planeta. 195

inovação e mediação ou mesmo de patronagem, criando protestos articulados de oposição às escolas. Em 1970, uma pesquisa realizada pelo Jornal do Brasil, atestou que 53% dos cariocas consideravam as escolas de samba a maior atração do carnaval carioca (CABRAL, 1998:187). É nessa época que as quadras começam a mudar seu perfil de frequência. E, além disso, as escolas começaram a realizar ensaios especiais fora de suas comunidades, atingindo assim um público cada vez maior. O Salgueiro logo saiu da sua quadra no alto do morro e foi para o Clube Maxwell na Tijuca, a Portela foi se apresentar no Clube do Botafogo. Já a Estação Primeira de Mangueira inaugurava o seu Palácio do Samba, uma obra de grande porte, com camarotes, bares, áreas reservadas (Idem). Os ensaios da Mangueira fizeram a quadra da verde e rosa o maior cliente da cervejaria Brahma na cidade (Idem). Definitivamente os ensaios não eram mais lugar de um acerto de alas, de resolver problemas de harmonia e coreografia, isso seria a parte técnica. Agora eram também festas para turistas, classe média, personalidades e etc. Esse cenário de mudanças estéticas e sociais é bem explicitado por Sérgio Cabral, que aqui representa um agente ligado ao mundo do samba e crítico a algumas das transformações ocorridas no interior das escolas, basta lembrar que Cabral escreve o prefácio do livro de Candeia, entretanto, como já se passou nesse capítulo, enaltece o trabalho de Pamplona no Salgueiro64. Segundo este importante biógrafo da cultura popular:

“Os elementos ligados à tradição do samba – a harmonia, a dança, a bateria e o próprio samba – abriam espaço para as atrações mais ligadas ao aspecto visual do samba. E, também de ano para ano, era cada vez menor o número de negros desfilando. Os mais extremados chegaram a sentenciar a morte dessa manifestação carnavalesca do povo do Rio de Janeiro” (CABRAL, 1998:196).

______64 A ideia de separar a invasão das belas artes no samba, do alijamento político de seus membros é um ponto importante que será discutido no final do capítulo. Até que ponto, qual o elemento que provoca a crise no mundo das escolas de samba? No quadro geral das críticas feitas por sambistas tradicionais, o alijamento do poder decisório para modificar o cenário de invasão de membros externos, isto é, a perda de poder para o retorno às tradições forma o movimento mais plausível. 196

O samba-enredo se popularizou ainda mais com as gravações que vinham ocorrendo desde 1969. No ano de 1972, o samba-enredo do Salgueiro, Festa para um rei negro torna-se a música mais executada nos arredores do carnaval carioca, consagrando o termo Pega no ganzê. Naquele ano a revista O Cruzeiro (que realizava tradicional cobertura do carnaval do Rio) alerta que “as escolas de samba entraram definitivamente na era da comunicação de massa”, e que o “samba- enredo tradicional longo e pesado, traz problemas quase insolúveis para a sua divulgação radiofônica em horários que não sejam exclusivamente dedicados ao samba”. Na mesma matéria, o presidente da Associação das Escolas de Samba, Amauri Jório, concordava com a crítica de que as escolas de samba haviam “perdido a sua autenticidade”, mas observava: “honestamente não vejo nenhum prejuízo nisso. Pelo contrário. Jamais seriam o que são hoje se não fosse o crescente espírito de criatividade” (Idem: 197). Nesse depoimento se coloca uma das chaves de minha análise, a disputa entre tradição e inovação. As posições se dividem entre aqueles que querem as escolas mais ligadas às comunidades, ao seu sistema rítmico e visual original e aqueles que percebem a inovação como um processo positivo para as escolas. Como o corpo de jurados já era composto por pessoas oriundas do Teatro Municipal, da Escola de Belas-Artes, jornalistas e pesquisadores do carnaval, parte das mudanças fizeram sucesso com o júri, incentivando outras escolas a seguirem o caminho “irreversível” da “profissionalização”65 e do espetáculo. Além de que, isso apareceu como uma forma das escolas “menores” disputarem com as tradicionais. Em entrevista recente que realizei com, Walter Duarte, diretor de carnaval da Imperatriz Leopoldinense pude atestar esse tipo de estratégia, segundo ele:

“Todo mundo fala que a Imperatriz faz desfile frio, técnico, impecável. Mas ai ganhou três carnavais seguidos, voltamos a ganhar em 1989. Foi a forma que encontramos de nos aproximar das grandes e vencer desfiles. Hoje os desfiles são decididos por décimos, é isso, ou é profissional ou não vence”.

______65Ao utilizar o termo profissionalização é importante destacar alguns pontos. As escolas de samba não assumem um formato de empresa, ou mesmo de uma estrutura profissional. Profissionalização aqui aparece como a entrada de especialistas nas escolas, seja na elaboração do carnaval, na construção das alegorias, ou mesmo na composição do samba-enredo. 197

E junto a essa marcha, começa a se fortalecer a figura do patrono, oriundo do jogo do bicho. Na Portela, o bicheiro Natal indicou para a presidência o outro bicheiro Carlinhos Maracanã. Nota-se aqui a interessante relação entre futebol e samba, explico: anos antes Natal indicou Carlinhos para a presidência do Madureira Atlético Clube. Depois Castor de Andrade, além de financiar a Mocidade Independente de Padre Miguel, sustentava também o clube do Bangu. Natal era um bicheiro de outro tipo se comparado aos que conhecemos de trinta anos atrás. Era um sujeito oriundo de Oswaldo Cruz e muito ligado à comunidade, negro e apaixonado pela Portela. Até hoje, Natal é considerado junto a Paulo da Portela um dos maiores nomes da história da agremiação. Seu período na direção da Portela fora o mais vitorioso de todos os tempos. A mesma legitimidade de Natal não acompanharia o bicheiro português Carlinhos Maracanã que teria que enfrentar várias crises no período em que esteve frente à escola de samba Portela sucedendo Natal. O crescimento dos desfiles levou, no ano de 1972, as escolas de samba, através de sua associação, a entrar com uma ação judicial exigindo direito de arena, isto é, que as emissoras de televisão pagassem uma taxa pela transmissão dos desfiles. Entretanto essa questão ainda se arrastaria até o ano de 1984. No ano seguinte, através de um acordo com a gravadora Top Tape, sai o primeiro disco oficial dos sambas-enredo, este fora um dos mais vendidos e executados em todo território nacional (CABRAL,1998). Com esse novo dinheiro, oriundo das vendas e execuções do disco, as escolas passaram a pagar os compositores vencedores, o que, segundo alguns sambistas, gerou um processo de mercantilização do samba-enredo, onde diversos grupos começaram a formar escritórios especializados em criar sambas leves e animados que caíssem na boca do povo antes do carnaval. Esses grupos disputavam em várias escolas, ganhando vários prêmios e impondo esse tipo de prática aos compositores tradicionais das escolas. Sobre o problema desses “escritórios” o compositor Gustavo Clarão e o músico e biógrafo da cultura popular Haroldo Costa dão interessante depoimento ao jornalista Sidney Rezende:

“Sei de alguns que pegam quase todas as sinopses e fazem os sambas. Aproveitam-se do talento que tem, mas aí também já é demais. Acho que deturpa as disputas e, com o dinheiro que eles têm, acabam dominando os discos de samba-enredo - comenta Gustavo Clarão. Por outro lado, é inegável a boa qualidade de alguns sambas de escritório. 198

Compositores, críticos e sambistas são unânimes ao comentarem que alguns hinos entraram para a galeria de inesquecíveis. Não se pode negar que eles são bons. Não são maioria, mas sem qualidade eles não venceriam, sem dúvidas - avalia Haroldo Costa “66.

No ano de 1974, Castor de Andrade assumia a direção da Mocidade Independente de Padre Miguel. Castor já era bastante poderoso no arredor de Bangu, pois era, além de bicheiro diretor do Bangu Atlético Clube, financiando o time num período em que o Bangu teve a felicidade de levar o título estadual de 1966. Castor é uma daquelas figuras controversas, que despertava respeito na comunidade, além de um bicheiro era uma referência carismática fundamental para entender as relações sociais nas regiões dominadas pelo jogo do bicho na periferia do Rio de Janeiro. Agora já eram três os bicheiros nas escolas, sinalizando um processo que vinha se fortalecendo, no futuro cada bicheiro vai querer ter uma escola, serão poucas as que ficariam sem sua ingerência. Mais do que os fundadores, quem manda agora são os bicheiros que vão se apoderando, em especial, de escolas de menor tradição, com exceção da Portela que tem a entrada de Carlinhos Maracanã apadrinhada por Natal. A patronagem se estabelecia como uma prática constante nas escolas modificando o lugar de gerência nos assuntos do carnaval. Um episódio ocorrido na Portela é bem esclarecedor da crise que se formava em algumas escolas. Carlinhos Maracanã impôs a escola o samba composto por Jair Amorim e Evaldo Gouveia, passando por cima da comissão de compositores da Portela, decretou o samba feito por elementos externos como o que seria executado no carnaval. Evidente que se gerou enorme crise, que culminou no afastamento de Paulinho da Viola, Zé Keti e Candeia. Jair e Evaldo, compositores de boleros não tinham alguma ligação com a Portela. Quebrou-se uma velha tradição que só admitia sambas compostos por sambistas com mais de um ano de filiação na ala de compositores. Carlinhos veria ocorrer na Portela, duas cisões, uma criadora da Quilombo e outra mais a frente que criaria a Tradição em 1983.

______66Blog do jornalista Sidney Rezende, 11/08/2008. http://www.sidneyrezende.com/noticia/16558. 199

3.4 A patronagem e as escolas de samba

Se a revolução estética incomodou alguns setores do mundo do samba, fora a ingerência da patronagem que modificou radicalmente a estrutura de poder estabelecida no carnaval carioca. Em busca de prestígio e poder, diversos banqueiros de jogo do bicho se aproximam do carnaval e também do futebol. As escolas de samba se tornam o maior símbolo da cidade e se o espetáculo não para de crescer, é com o dinheiro dos banqueiros de bicho que ele será financiado. Tal como afirma Machado & Chinelli (2004), em artigo nodal para a compreensão do tema:

“trata-se de poder propriamente político. As escolas, na mesma proporção em que se tornam peças-chave do carnaval carioca, são um importante instrumento eleitoral. Por si só, isto já obrigaria os partidos e as máquinas políticas a se relacionarem com os banqueiros do bicho que controlam ou fazem parte da diretoria das escolas. Mas, além disto, é preciso não esquecer que o próprio jogo do bicho é, independentemente de sua associação com as escolas de samba, ele mesmo importante reduto eleitoral. Isto significa que as escolas de samba também desempenharam um papel mais passivo, funcionando, às vezes, como simples mediadoras entre as organizações políticas e o jogo do bicho” (2004: 208).

Trata-se de através do prestígio de ser organizador da maior festa popular carioca ampliar seu poder de barganha frente o governo e os partidos políticos. A escola de samba aparece como mediador da relação entre o jogo do bicho e o restante da sociedade carioca. Repare o caso de Castor de Andrade, importante bicheiro de Bangu e Padre Miguel, que termina sua vida morando na Av. Atlântica em Copacabana, onde oferecia festanças convividas pela alta sociedade carioca. O que permitiu a Castor transitar entre esses diversos níveis sociais fora a capacidade mediadora da escola de samba e do futebol, que como eu disse, se tornou patrimônio e referência para um setor da sociedade para além da favela e subúrbios. Outro ponto importante, é que como o negócio do bicho é ilícito, as escolas se tornaram uma forma também de administrar o dinheiro utilizado no esquema. Ele entrava na escola e saia limpo no desfile de carnaval. Na Figura 64abaixo, o bicheiro Castor de Andrade, e os sambistas João Nogueira e Beth Carvalho no desfile da Portela já em 1979. Figura 64 – Castor de Andrade, João Nogueira e Beth Carvalho 200

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Entretanto, essa relação é mais intricada, se voltar ao início desta pesquisa perceberá que as escolas constroem um modelo de natureza apolítica. Concordando com Machado & Chinelli (2004), no primeiro momento as escolas se aliam aos partidos políticos, ao poder público (como clientes) e a imprensa para ver o interesse do seu grupo garantido. Tal como asseverava Paulo da Portela, o candidato do samba é aquele que ajuda o samba. Foi nessa época que políticos como Pedro Ernesto se tornaram “parceiros” das escolas. Nessa fase o clientelismo é fundamental para entender a relação estabelecida entre a prefeitura e as agremiações. Num segundo momento, com o seu crescimento e visibilidade, as escolas passam a ser financiada por bicheiros que injetando dinheiro na escola a utilizam como um espaço de mediação de seus interesses com o restante da sociedade, tal como de fomento de prestígio e carisma. Nessa fase, o patronato vai substituindo as relações de clientela. Ainda segundo os autores:

“associadas às organizações de jogo do bicho numa relação que, é bom não esquecer, confere aos banqueiros um poder indiscutível e crescente – se organizam e racionalizam internamente, procuram livrar-se da posição de clientes do poder público pressionando cada vez mais pela autonomia definida em termos econômicos” (Idem: 209).

O jogo do bicho tem sua provável criação em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A intenção por trás da ideia era atrair mais gente para o zoológico e compensar o corte de verbas do governo. Para alimentar todos os animais, Drummond mandou imprimir o 201

desenho de 25 bichos nos ingressos. Pontualmente às 5 da tarde, sorteava um deles. Quem tivesse a figura vencedora ganhava 20 vezes o valor da entrada. Segundo Raiter (2008), em pouco tempo, o jogo do bicho deixou de ser um simples sorteio e se transformou em um jogo de azar. “Para combater as apostas, que se tornaram uma mania em toda a cidade, a Prefeitura impediu o sorteio em 1895. Entretanto, a proibição de alguma forma fortaleceu os bicheiros”. Se antes eles compravam os ingressos no zoológico e os revendiam pela cidade, a partir daquele momento eles se juntaram para realizar o sorteio por conta própria. Ainda, “nem a criminalização do jogo, em 1946, conseguiu segurar o esquema. Àquela altura, o bicho já era um costume instalado no imaginário popular, apoiado em uma rede de relações pessoais e na tradicional corrupção para driblar a repressão. A condenação mais comum ao jogo era que ele representava uma vontade de ganhar dinheiro e viver a vida sem trabalhar” (Idem). E como já foi esclarecido no início desta pesquisa, havia, entre as elites republicanas daquele tempo, um constante esforço de dignificar o trabalho e um estilo de vida que condenava determinadas práticas sociais estabelecidas na cidade. O esquema do jogo do bicho multiplicou-se conforme prosperaram a febre das apostas e os negócios ilícitos em torno dele. O jogo produzia diariamente instantes de efervescência coletiva entre os citadinos. A tensão provocada pela expectativa do resultado foi descrita pelo cronista Luiz Edmundo:

“De duas e meia às três da tarde as cozinheiras entravam em férias. Hora mestra do dia, hora de correr o bicho! De resto, toda a cidade está sobressaltada e atenta. […] De repente, a lufada da notícia na cidade: – Urso, com 92! Urso! A nova corre célere de boca em boca. Meia hora depois não há uma pessoa na cidade que não saiba o resultado do jogo. Nas casas é um verdadeiro delírio!”(1987:65).

Se o jogo já era uma prática comum na cidade desde a virada do século XIX, a entrada de um banqueiro numa escola de samba se deu com Natal da Portela nos anos de 1930. A vida de Natal é interessante, ainda jovem, Natal fora vitima de um grave acidente que amputou seu braço direito. Depois disso, pela dificuldade de trabalho, passou a ser anotador de jogo do bicho. Mesmo sem compor um único samba, Natal, após transformar-se em bicheiro, passou a patrocinar a Portela, tornando-a primeira escola de samba a ter um bicheiro como patrocinador. 202

Natal conquistou respeito e admiração na comunidade e, além disso, passou a representar a escola em todos os lugares onde era requisitado, executando a função que antes era de seu amigo Paulo da Portela. Natal veio a falecer em cinco de abril de 1975, deixando três filhos e vários fãs, além da escola de samba que ajudou a divulgar. Após sua morte, a agremiação decidiu elegê-lo presidente de honra da Portela em homenagem póstuma. Natal era a representação das relações entre escola de samba, imprensa e poder público, tal como Paulo da Portela rodava as redações de jornal em busca de apoio, Natal era um homem com algum acesso ao gabinete da presidência da república. O ministro Negrão de Lima convidou, no ano de 1959, Natal e a Portela para uma exposição ao Palácio do Itamaraty para se apresentar a Duquesa de Kent. Podemos considerar Natal um tipo diferente de bicheiro, pois era um membro já da Portela e com muito respeito na comunidade. No capítulo seguinte, podemos atestar essa imagem analisando a visão positiva de Candeia sobre Natal. Nas fotosabaixo, extraídas do sítio da Portela, Natal aparece primeiro sozinho (Figura 65) e depois com Fernando Barata, secretário de turismo do Rio de Janeiro (Figura 66).

Figura 65 – O bicheiro Natal

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

203

Figura 66 – O bicheiro Natal e o secretário de turismo Fernando Barata

Fonte: (Disponível em: . Acesso em: 10 dez.2011).

Se já existiam bicheiros no mundo do samba, é no transcorrer dos anos de 1970 que se modifica o cenário de ação individual, de um ou dois bicheiros que gostavam de carnaval, para a ação de grupo que culminaria nos anos de 1980 na criação da Liga Independente das Escolas de Samba, hegemonizada pelo poder do jogo do bicho. Os bicheiros controlariam em pouco tempo toda a estrutura dos desfiles. E assim, essa estrutura vai se autonomizando da condição de cliente do Estado atendendo a um novo “chefe” que vai se dotando de carisma, na maior parte das vezes dispensando o uso de “testa de ferros” e assumindo diretamente a presidência das escolas. A escola de samba se ampliou o suficiente para se tornar um enorme aporte de prestígio. Isso em parte explica a atração exercida nos banqueiros e também nos profissionais de belas-artes que passam a trabalhar diretamente na execução do carnaval dos bicheiros. 204

A magnitude dos desfiles vê no dinheiro do bicho a saída para o sucesso. Além dos mais, como pesquisou Chinelli (1992), as escolas de samba vão ampliando suas atividades no decorrer de todo o ano, com atividades assistenciais, esportivas e etc., que precisam de uma quantidade maior de recursos para seu funcionamento. O dinheiro do bicho modifica a escola radicalmente, impõe a liderança do patrono, modifica as relações de poder na escola, permite a entrada de novos membros no desfile, e diversifica a atividade das escolas, ligando-as, principalmente, a práticas assistenciais, que reforçam o poder do patrono e a legitimidade da agremiação na comunidade. Entretanto, o jogo é de mão dupla, o poder dos bicheiros não é absoluto, é baseado na intima combinação entre carisma, isto é, na capacidade da escola vencer, e também na violência. Outro famoso patrono do Rio de Janeiro é Aniz Abraão David, o Anísio. Em pouco tempo, Anísio transformou a modesta escola Beija Flor de Nilópolis em uma das mais conhecidas do Rio de Janeiro. Anísio chegou em 1974 e nos dois primeiros anos de existência a Beija Flor veio com enredos homenageando o golpe militar de 1964. Anísio era descendente de libaneses que foram morar na região de Nilópolis, lá ele se tornou importante banqueiro de jogo do bicho (CABRAL, 2008). Anísio contratou o carnavalesco Joãozinho Trinta, que na época tinha se sagrado campeão no Salgueiro, por salário nunca visto no carnaval. Aplicou uma enorme quantidade de recursos pessoais na escola de samba. (Idem) Nos tempos atuais, além de controlar economicamente o jogo do bicho na região, Anísio tem seu irmão como prefeito da cidade de Nilópolis, sendo ele mesmo também prefeito em outra ocasião. Tentando criar uma conexão com o passado, a tendência que se fortalece nos anos de 1970, com relação ao primeiro capítulo que trata dos anos pós-1930, é a mudança do clientelismo de Estado para a situação de patronagem. E com o incremento dessa prática, a tendência é que os banqueiros passem a atuar em bloco defendendo seu interesse nas escolas, tal como faziam na divisão das áreas de atuação do bicho, onde tentavam estabelecer regras de convivência para não prejudicar os negócios e não ter problemas com a polícia. O interessante é que a LIESA viria a ser depois um espaço de encontro e equilíbrio entre os banqueiros de bicho do Rio de Janeiro, mas essa consolidação só ocorreria no ano de 1984, com a criação da liga dirigida pelos bicheiros. 205

Silva & Chinelli (2004), mais uma vez, sintetizam alguns pontos que ajudam a explicar o processoda relação escola e patronagem: a) a escola de samba necessita de mais recurso, tendo em vista o gigantismo do espetáculo, as subvenções do Estado se tornam insuficientes; b) o bicheiro tem na escola de samba espaço de prestígio e poder, aumentando o seu poder de barganha com outros agentes; c) a escola de samba amplia suas atividades na comunidade em víeis assistencial, utilizando-se dos recursos do bicho para tal; d) e por fim, a relação histórica estabelecida entre o universo popular e a contravenção do jogo do bicho.

3.5 Entendendo a crise que se estabelece entre sambistas “tradicionais” e escolas de samba

Neste capítulo, tentei sintetizar a conjuntura que circunda os anos de 1970 no Rio de Janeiro, me direcionando sob aspectos mais relevantes da produção artística negra. Tal como coloco no início do capítulo, neste período a identidade do grupo afrodescendente brasileiro sofre significativa modificação, pela influência dos movimentos de libertação no continente africano, da luta por direitos civis nos EUA, mas, em especial é expansão da produção artística vinculada ao movimento black que toma ares de revolução comportamental e estética. Dessa forma, entendo esse movimento como uma expressão bastante ampla, que envolve desde um estilo musical, uma forma de se vestir, de cortar o cabelo, de falar. O importante é compreender que este movimento tem como característica central a valorização de uma estética negra, um estilo que se remete, mesmo que comercialmente, à África e aos guetos estadunidenses. A canção de protesto se fortaleceu na medida em que a ditadura militar empurrava a luta política para o campo da produção artística. O artista engajado, além de valorizar a arte brasileira, precisava pedir o fim do regime autoritário. Embora esse modelo não possa ser considerado generalizante, ele serve para explicar uma pressão sobre o campo artístico para torná-lo, sob uma cara pedagógica, instrumento de conscientização política. Uma grande parte, inclusive, do mercado constituído da indústria fonográfica brasileira se tornou consumidor 206

dessa proposta, diversas vezes rivalizando com os grupos considerados por eles “alienados”, como a jovem guarda, por exemplo. Outro aspecto que já vinha ocorrendo desde os tempos de CPC da UNE, era uma reaproximação entre intelectuais e povo. Como relatei aqui no capítulo o show de João do Vale, Zé Keti e Nara Leão é um marco dessa relação. A denúncia dos problemas sociais se dá no encontro entre compositores populares e uma variedade de mediadores culturais. Se em um primeiro momento, na década de 1930, esse encontro proporcionou a valorização da cultura popular (de forma folclórica), agora, amplia a universalização do movimento democratizante, tendo em vista que passa a perceber no povo uma chave fundamental para as transformações sociais. Neste ambiente, de valorização e engajamento dos artistas é natural que este clima se faça também presente na produção artística das camadas populares. Uma banda da produção artística negra e popular estará preocupada em através da arte valorizar a história do seu povo, isto é, através da produção cultural resgatar a história do negro e valorizar sua cultura. Candeia, que conheceremos melhor no capítulo a seguir, pode ser inserido nessa banda. Queria que as escolas de samba se tornassem um lugar de preservação e valorização da cultura negra e de luta permanente contra o racismo. O grupo de Candeia representa a articulação entre membros do universo do mundo do samba e uma diversidade de mediadores culturais que enxergam a valorização da produção cultural do povo e a sua respectiva preservação como um elemento muito importante. Como mostrarei adiante, o manifesto de Candeia é a representação dessa articulação. A preocupação que está colocada aqui é preservar a escola de samba que estaria se descaracterizando e perdendo suas raízes. Os grupos descontentes se enfraqueceram em boa parte das escolas que seguiram o irreversível caminho da espetaculização. Quando Joãozinho Trinta ganhou o segundo carnaval pelo Salgueiro em 1975, o Jornal do Brasil dedicou uma página inteira para uma reportagem de Lena Frias com o seguinte título: Escolas de Samba S.A. A matéria falava do crescimento vertiginoso dos desfiles e já levantava a polêmica sobre as transformações nas escolas de samba, sobre a perda da originalidade, da espontaneidade das agremiações (CABRAL, 1998). No mesmo ano, Cartola, em depoimento ao jornalista Sérgio Cabral afirma:

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“Isso tudo é uma esculhambação, não tem nada a ver com a gente. Não dá mais para entrar numa escola, em qualquer escola. Há uma invasão, um cinismo. Isso virou uma indústria e cada um quer levar o seu”. (CABRAL: 1998, 210)

Cartola é uma figura de suma importância na história da música popular brasileira, além disso, é uma importante referencia das escolas de samba na cidade. Sua irritação com os desfiles mostram o quanto perdem espaço os grupos mais “tradicionais” nas escolas de samba. Em entrevista para a revista Fatos & Fotos em janeiro de 1977, O interprete Dominguinhos da Costa Oliveira, mais conhecido como Dominguinhos do Estácio, revela mudanças significativas no formato do samba-enredo, veja:

“Não dá mais para fazer músicas com letras muito grandes, repassadas de poesia. O negócio agora é aguentar no refrão e jogar pra frente. Hoje tudo funciona num esquema profissional. É dinheiro, só dinheiro. Samba-enredo como poesia pura, sem apelação, não cola mais”. (Idem, 211)

Dominguinhos é um personagem superintegrado ao universo das escolas de samba, possui emprego no carnaval carioca como “puxador” até os dias de hoje (já passou, inclusive, por diversas escolas). Esse depoimento nos remete um pouco ao espírito que vai cercando o “negócio” do desfile carnavalesco naquele tempo. Quando se fala em jogar refrão pra frente o cantor fala em jogar para a animação, para a empolgação, no sentido de empolgar a plateia cada vez mais diversificada. Embora, isto não seja assunto tratado nesta pesquisa, nesse período o andamento rítmico do samba-enredo enredo é notadamente acelerado. Cabral (1996), conta que o tradicional compositor de Nilópolis Cabana, lhe confidenciou que Joãozinho Trinta alterou 27 dos 31 versos escritos pelos compositores da escola no samba-enredo de 1977. Mas o reinado de Joãozinho e Anísio se carregava das glórias de transformar uma pequena escola da baixada fluminense em bicampeã do carnaval carioca. Os desfiles caros e monumentais dirigidos por carnavalescos oriundos da escola de belas artes provocaram cisões no universo do samba. Mas o certo é que a maior parte das escolas de samba foi se adequando ao crescimento do espetáculo. O desfile foi tomando formato cada vez mais técnico e seu alto custo foi aos poucos substituindo o antigo clientelismo de estado, o apoio da imprensa, pelo 208

financiamento econômico dos desfiles por patronos oriundos do esquema do jogo do bicho. Roberto Pontual,crítico de artes plásticas e jurado de desfiles carnavalescos, presta um interessante depoimento em entrevista ao Jornal do Brasil em Janeiro de 1977:

“O desfile das escolas de samba vai se tornando, ano a ano, um show maior, uma parada em processo de elefantíase, um concurso de monumentos, uma Disneylândia pátria, um circo de maravilhamento, um bolo para o refinado apetite dos gourmets. É coisa que só os olhos cegos não querem ver. […] Culpar isoladamente as artes plásticas por se ter chegado a esse ponto é procurar um atalho mais rápido para uma resposta que lembra muito a condição de bode expiatório”. (Cabral, 1998: 215)

Esse pacto entre artistas, escolas de samba e bicheiros nem sempre se deu de forma tranquila. Alguns desses bicheiros agem por trás das escolas, ficando em segundo plano, alguns se tornam presidentes e também, a principal referencia carismática das escolas. Nas escolas de samba com menos tradição esse movimento é bastante claro. O bicheiro se torna além de financiador do desfile a principal referência da escola, seja seu estilo, mais carismático, ou mais coercitivo, mais “durão”. Uma das consequências do crescimento da estrutura dos desfiles e das escolas é o aumento da quantidade de dinheiro dentro das agremiações. A escola de samba começa a pagar pelos serviços prestados a ela (como costureiras, aderecistas, figurinistas, carnavalescos etc.). Com o valor do direito autoral sob a gravação fonográfica dos sambas enredos, as escolas passaram a pagar prêmios para os vencedores, criando uma carreira de compositores que viviam de disputar samba-enredo, também, como uma forma de sustento, ou renda extra, para além do status da vitória no concurso. Uma série de compositores da favela e da periferia é beneficiada com o crescimento das escolas de samba. Fora do período dos desfiles, diversos deles realizam shows pela cidade, alguns alcançando também grande sucesso na indústria fonográfica. Adiante, veremos que esse elemento fortaleceria a autonomia de alguns desses cantores e compositores das suas escolas de origem. Estes músicos serão fundamentais para entender a critica ao formato dos desfiles. Diversos deles, como Cartola, Paulinho da Viola, Zé Keti, Candeia, e tantos outros, estarão abandonando suas escolas de origem, ou mesmo todo o processo 209

dos desfiles, se dedicando em maior parte a MPB e a uma carreira de artista profissional. Outros sambistas enxergam o crescimento das escolas como a ascensão social e elevação cultural do seu grupo. O sucesso dos desfiles é um elemento que aumenta a autoestima do povo das favelas e periferia. Diversos membros das comunidades se encontram envolvidos em demasiado com a escola de samba para ocorrer-lhes o rompimento. O rompimento se dará nos grupos articulados entre compositores de escolas de samba, artistas, jornalistas, intelectuais, entre outros mediadores de diversos extratos sociais. Candeia se relacionou com esses grupos, foi membro do Movimento Negro Unificado (MNU) e se articulou com o rompimento do movimento de integração cultural vigente desde os tempos de Paulo da Portela. Como tentei elaborar aqui a ideia é valorizar e preservar a cultura negra, mirando para o passado africano e a necessidade de reparação da exploração da escravidão. Quando o Quilombo de Arte Negra é criado por Candeia é pensado como um lugar de resgate, preservação e difusão da cultura africana. Além disso, se presta também a tarefa pedagógica de “desalienar” o negro brasileiro, resgatando as tradições da cultura africana e sua história de opressão. Tal como relata João Batista Vargens em 1975 quando entrevistava Candeia:

“Candeia [...] entusiasma-nos falando vibrantemente de sua ideia de criar um centro de arte negra capaz de fazer frente à espoliação que o sambista vem sofrendo e de pesquisar e difundir a cultura negra, sem dúvida para ele a viga mestra da cultura brasileira” (VARGENS, 1987:15).

Para Candeia todos ganhavam na festa carnavalesca e o sambista mal pago, subempregado era o explorado que perdia suas raízes culturais na transformação que ocorria nas escolas de samba cariocas. No capitulo adiante iremos explorar a trajetória de Candeia e a criação da Quilombo.

210

4 - ESCOLA DE SAMBA: A ÁRVORE QUE PERDEU A RAIZ

Ana Maria Rodrigues (2002), no seu “Samba Negro, espoliação branca”, explica que escolas de samba são submetidas a um processo disciplinador nos seus desfiles; e no decorrer das décadas seguintes, do controle, passa-se à descaracterização, apropriação e expropriação das mesmas. A oficialização do carnaval, segundo a autora, dará início não só a perda da espontaneidade, desta manifestação cultural, como a sua comercialização gradativa no decorrer tempo. Essa é a visão mais comum sobre o processo que transforma aos poucos as escolas de samba do Rio de Janeiro. Entretanto, tentei demonstrar até agora como esse processo fora mais complexo. Até aqui analisamos a década de 1930 como um período onde a escola de samba funciona como um movimento de integração cultural das manifestações populares na cidade do Rio de Janeiro. Mas do que uma imposição do poder público, os integrantes das escolas de samba demonstram afinamento e vontade política de se integrar a cidade e a política oficial, mais do que se separar. São duas fases diferentes como tentei mostrar até agora. O processo pedagógico e integrador da Era Vargas incluiu o povo, que num jogo de negociação e conflito modificou positivamente o seu lugar na nova sociedade brasileira. Esse movimento, encabeçado por figuras, como o aqui analisado, Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, foi fundamental para o crescimento rápido e estrondoso dos desfiles carnavalescos, embora certa "dureza" na pesquisa de Rodrigues (2002) não perceba as estratégias populares a fundo, reduzindo em demasiado o processo a uma orquestração das elites, aconteceu de fato uma modificação do ritual original que formou as escolas de samba, e isso se deu com a participação direta dos sambistas. O samba falava para si, o ritual se bastava e todos eram participes (SODRÉ, 1998). Com as escolas de samba ocorre a transformação, a especialização, a apresentação, o público na arquibancada. Modificavam-se elementos importantes da festa popular. A escola de samba trazia a organização, caminhava para a ordem, em sintonia com o novo regime e como tentei comprovar até aqui, com o apoio dos sambistas. Tal como explica Augras (1998), os desfiles aos poucos vão ajudando a embutir um padrão nas apresentações, o qual descarta sensivelmente 211

imprevisibilidades políticas e artísticas. Como tem avaliação e premiação, as escolas vão se condicionando as normas que definiam a apresentação carnavalesca. Dessa forma, a espontaneidade seria quebrada pela previsibilidade, isso interessaria a todos que organizam uma festa que supera o espectro de seus fundadores e se torna patrimônio de toda a cidade. Ao mesmo tempo em que a festa se modifica, altera-se também o status cultural do grupo negro marginalizado, embora essa integração cultural signifique também uma possível perda de autonomia do grupo, no caso dos negros ex-escravos de matriz africana e regional. Se nos anos de 1930 o povo era convidado a de forma regulada participar da entrada do Brasil na modernidade, em 1970 o povo se dividida no olhar sobre o regime autoritário; se uma parte dele se empolgava com o "Brasil Grande" da ditadura, outra parte se alinhava ao campo artístico de protesto, protesto esse que ultrapassava a crítica ao regime e, como vimos no capítulo anterior, tomava ares de revolução estética e comportamental. Diversos intelectuais se voltaram para a produção cultural do povo, estimulando e acentuando um sentimento de retorno às raízes, de busca da autenticidade. Descobrir a arte do povo e politizar o povo, preservar e ao mesmo tempo militar pela difusão da história, do processo, da diversidade da história do negro africano. Caro leitor, esse capítulo se aprofunda num personagem central nesse dividido ambiente artístico, Antônio Candeia Filho iria protagonizar um dos momentos de maior crise na história daquele que é considerado, por muitos até hoje, a maior expressão da cultura popular carioca. Em seu manifesto anuncia que a escola de samba é uma árvore que perdeu a raiz, se "embranqueceu", se distanciou do projeto original dos seus criadores. O passado aparece como a saída para a crise do presente. Candeia quer resgatar a história, mas também quer educar os membros de seu “quilombo” para a luta política e cultural pela equidade racial. Ao invés de integração, o movimento aqui é de afirmação e reparação. Candeia é um artista engajado que se envolve no clima de questionamento acerca da questão racial e que influencia diretamente no processo de crítica a "espetacularização" dos desfiles das escolas de samba. Tal como Paulo da Portela, estudar a vida desse personagem só enriquece o propósito dessa pesquisa. Adiante 212

vamos adentrar a história da vida de Candeia e do Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo.

4.1 - A trajetória de Antônio Candeia Filho67

Candeia nasceu em 17 de agosto de 1935 no bairro de Oswaldo Cruz. Candeia vinha ao mundo enquanto Paulo Benjamin de Oliveira se tornava a principal referência cultural do bairro. Filho do gráfico Antônio Candeia e de Maria Candeia, foi criado sob a forte identidade cultural da escola de samba Portela. A imagem de Oswaldo Cruz elaborada no segundo capítulo, aos poucos vai se remodelando pela presença dos conjuntos habitacionais e diversos campos de futebol. Cerca de vinte anos passados, diversos migrantes de todo o país ajudavam a ocupar a região. A Portela já tinha uma quadra, e diversos outros blocos incrementavam a cultura sambista da região. Candeia morava próximo a linha férrea, na Rua João Vicente, seu pai, como dito, também chamado Candeia, era uma figura muito conhecida no bairro e participe direto dos festejos locais, tal como nos retrata Francisco Santana, um dos maiores compositores da Portela em entrevista para Vargens:

“Todos os domingos ele fazia uma sopa e, depois de tomarmos umas e outras, íamos para a casa dele. Cantávamos sambas debaixo das amendoeiras e lá para três ou quatro horas é que voltávamos para nossa casa para o almoço. A sopa sustentava mesmo, o Casemiro dizia que aquilo não era sopa e sim um cozido. O velho era boa praça. Saía na ala dos Cacetes, antigo nome da comissão de frente” (2008:24).

O pai do sambista Candeia, além de tipógrafo era flautista e foi uns dos criadores das Comissões de Frente das escolas. Assim, nascido em casa de

______67

______As principais referências sobre a vida de Antônio Candeia foram retiradas da obra de Vargens (2008) e das pesquisas de Buscácio (2005), e de Cunha (2009). 213

bamba, o garoto já frequentava as rodas onde conheceria Zé com Fome, Luperce Miranda, Claudionor Cruz e outros. Com o tempo, aprendeu violão e cavaquinho, começou a jogar capoeira e a frequentar terreiros de candomblé (Idem, 25). O clima boêmio e festivo fazia parte do bairro e na casa de Candeia sempre estavam presentes sambistas de toda a região. Um relato interessante da infância de Candeia é dado por ele mesmo em entrevista dada ao Jornal do Brasil no dia 20 de dezembro de 1974:

“Papai Noel não sabe sambar. Por isso nunca foi convidado para o Natal em casa do velho Antonio Candeia, na Rua João Vicente, em Oswaldo Cruz. Pagodeiro ilustre, portelense antigo, com estágio em gloriosas associações carnavalescas (Ameno Resedá, Rancho das Flores, Kananga do Japão), Antonio Candeia comemorava o Natal à sua moda, à moda do seu povo. Nada de pinheirinho, peru com farofa, nozes e alienações similares. Natal era com feijão e samba a noite inteira. No aniversário dos filhos a dose se repetia. [...] Eu tinha uma tristeza. No aniversário das outras crianças tinha bolo, essas coisas. No meu era feijoada, limão, partido-alto. Festa de adulto”.

A forte marca cultural da ceia da casa de Candeia demonstra que todo o processo que chamo de integração cultural (capítulo 1 e 2) foi feito sobre um ambiente de concessões e restrições, isto é, de mediação, negociação e conflito. Na casa de nosso personagem a cultura natalina (pois a ceia aparecia) precisaria conviver com cultura ancestral. O ambiente natalino se entrecruza com a vida do negro desde o período colonial, não seria diferente aqui, entretanto, é importante ressaltar a presença da cultura negra nas modificações que o ritual natalino, e diversos outros, passaram em nossa sociedade. O desenvolvimento da cultura religiosa brasileira foi evidentemente marcado por uma série de negociações, trocas e incorporações. É por isso, que ao mesmo tempo em que podemos ver a presença de equivalências e proximidades, também temos uma série de particularidades que definem várias diferenças. O sincretismo, o entrecruzamento artístico e religioso, e outros tipos de trocas, acabaram articulando uma experiência cultural própria para a sociedade do Rio de Janeiro e de outras regiões brasileiras, tal como Salvador. A canção abaixo, de Martinho da Vila, conhecido sambista e amigo próximo de Candeia traz elementos interessantes para compreender as relações sincretistas no samba.

" Saravá, rapaziada! - Saravá ! Axé pra mulherada brasileira! - Axé! 214

Êta, povo brasileiro! Miscigenado, Ecumênico e religiosamente sincretizado Ave, ó, ecumenismo! Ave! Então vamos fazer uma saudação ecumênica Vamos? Vamos! Aleluia - aleluia! Shalom - shalom! Al Salam Alaikum! - Alaikum Al Salam! Mucuiu nu Zambi - Mucuiu! Ê, ô, todos os povos são filhos do senhor!

Deus está em todo lugar. Nas mãos que criam, nas bocas que cantam, nos corpos que dançam, nas relações amorosas, no lazer sadio, no trabalho honesto (Idem).

Onde está Deus? - Em todo lugar! Olorum, Jeová, Oxalá, Alah, N`Zambi. . . Jesus! E o espírito Santo? É Deus! Salve sincretismo religioso! - Salve! Quem é Omulu, gente? - São Lázaro! Iansã? - Santa Bárbara! Ogum? - São Jorge! Xangô? - São Jerônimo! Oxossi? - São Sebastião! Aioká, Inaê, Kianda - Iemanjá! Viva a no Nossa Senhora Aparecida! - Padroeira do Brasil! Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá São Cosme, Damião, Doum, Crispim, Crispiniano, Radiema. . . É tudo Erê - Ibeijada Salve as crianças! - Salve! Axé pra todo mundo, axé Muito axé, muito axé Muito axé, pra todo mundo axé Muito axé, muito axé Muito axé, pra todo mundo axé Energia, Saravá, Aleluia, Shalom, Amandla, caninambo! - Banzai! Na fé de Zambi - Na paz do senhor, Amém!"

Até hoje, diversas festas como as de São Jorge no bairro do Campinho reúnem milhares de representantes da umbanda carioca (onde São Jorge é sincretizado como Ogum). Tive a oportunidade de visitar essas festas algumas vezes e é muito comum a presença de fiéis de todos os tipos, desde aqueles que vão visitar somente a igreja católica de São Jorge (a festa é do lado da igreja) e outros que vão praticar rituais afro-religiosos na festa. Muitos outros, vestidos com camisas vermelhas (em homenagem ao santo), vão continuar a batucada e a bebedeira de cerveja ao lado da própria igreja. 215

Como já relatei no capítulo 2, a interação entre festa e religião é muito forte e definidora no perfil da região suburbana do Rio de Janeiro. Criado nesse ambiente, o filho de seu Candeia foi aos poucos desenvolvendo sua habilidade para o mundo do samba. Em algum tempo, o jovem Candeia se juntou aos filhos de outros sambistas e formou um grupo que ficou conhecido como a Turma do Muro. Vargens (2008:27) nos conta que a Turma do Muro se vestia muito bem e se portava com educação e garbo. Terno de linho, gravata e sapatos encomendados sob medida em Madureira. Repare a sintonia de Candeia e seus amigos com o estilo de Paulo da Portela e de diversos outros sambistas. Sempre bem arrumados, com elegância e um estilo de vestimenta que remete a discussão colocada no início da pesquisa, isto é, a ideia de integração cultural. Os sambistas queriam demonstrar ao restante da cidade que não eram desocupados, vestidos de qualquer forma. Mas aqui, o ponto central é que os sambistas procuram se vestir de forma tão elegante quanto aos homens que passeavam no centro urbano da cidade. Embora, fosse semelhante o estilo, os sambistas colocavam suas diferenças, como o sapato bicolor, o terno branco, o uso do chapéu de palha, o lenço no pescoço, entre outros adereços. Vale lembrar o episódio, exposto no capítulo 2, sobre a expulsão dos sambistas do Estácio de uma festa na Casa de Dona Esther, em Oswaldo Cruz. Os sambistas chegaram de camiseta furadinha, bermuda e chinelos, como tinha gente importante no samba, D. Esther solicitou que eles se retirassem da festa. Paulo da Portela sempre citava esse episódio como fundamental na sua visão de que os negros deveriam mostrar ao restante da cidade que também eram “civilizados”. Paulo dizia, “de pés e pescoço cobertos”, e o jovem Candeia seguia a ideia do fundador da Portela. Precocemente, Candeia se tornaria também um promissor compositor da escola de Madureira e Oswaldo Cruz e aos 17 anos de idade ganhava o seu primeiro samba na Portela. Isso em 1953, em sintonia com o primeiro movimento das escolas de samba, o samba era nacionalista e exaltador da República, veja o samba (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008):

"Foi Tiradentes, o Inconfidente / Foi condenando a morte / Trinta anos depois o Brasil se tornou independente / Era o ideal se formar um país livre e forte / Independência ou morte / Mais uma nação livre era o Brasil 216

Foi em 1865 que a história / Nos traz Riachuelo, Tuiuti / Foram duas vitórias reais / Foram os marechais Deodoro e Floriano / E outros vultos mais / Que proclamaram a República / E quantos anos após foram criados / Hinos da pátria amada / Nossa bandeira foi aclamada / Pelo mundo todo foi desfraldada"

Embora uma parte do movimento artístico brasileiro estivesse se aproximando cada vez mais da canção de protesto no universo do samba isso se daria pela entrada de figuras de destaques das escolas de samba na nascente MPB. No capítulo anterior mostrei como esse processo se aqueceu no decorrer dos anos 60. Diversos setores da sociedade carioca começam demonstrar alguma insatisfação com o caminho vultuoso que tomava o espetáculo carnavalesco da cidade. Mas, nas escolas de samba em geral ainda prevalecia um ambiente mais particular, o pacto entre Estado, imprensa e escolas ainda vigorava e agora ganhava um novo e determinante participe: a máquina do jogo bicho. Como perceberemos, o "racha" na Portela, liderado por Candeia, acontecerá num momento de radicalização dessa ampliação do patrimônio das escolas de samba. Não podemos esquecer, que o momento do rompimento se dará, quando o bicheiro Carlinhos Maracanã se torna presidente da escola e desautoriza a comissão de compositores, convidando dois respeitados cantores de boleros para fazer o samba da agremiação.

4.2 - O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba

A questão do embate sobre a espetacularização dos desfiles é acentuada nas décadas de 1960 e 1970 através da entrada, nas agremiações, de algumas pessoas oriundas de espaços não tradicionais e que possibilitaram com que perspectivas diversas reorganizassem as concepções dos desfiles das escolas de samba. Ressalto que a “entrada” de “pessoas estranhas” nas escolas de samba diz respeito diretamente à entrada destas pessoas em suas estruturas organizacionais e não somente como espectadores. Nessa época, inicia-se o processo de associação da figura do carnavalesco a de um intelectual competente em criação 217

artística (que incluía adereço, fantasia, figurino entre outros) e que passa a ser a figura central na definição dos rumos das escolas de samba nos desfiles. Esse processo ocorria em sintonia com a valorização do desfile das escolas de samba, nesse tempo já existia a gravação do LP com os sambas do ano (naquela época cantados pelos cantores de maior destaque na indústria fonográfica), a transmissão em video-tape (para diversas partes do mundo), e uma nascente indústria turística que orbitava em torno do desfile das escolas. As quadras das escolas ficavam lotadas, como já alertei, de diversos setores da sociedade carioca. A tendência "irresistível" para a espetacularização vai chegar com mais força nas escolas de menor tradição na época, como foi o caso do Salgueiro. Cavalcanti (1995:57) nos conta que o presidente do Salgueiro, Nelson Andrade, em 1960, contratou Fernando Pamplona e toda a sua equipe para a escola de samba. Fernando Pamplona teria sido o jurado que deu as notas mais altas para a vermelho e branco no carnaval anterior. Pamplona foi para o Salgueiro e fez um desfile que recebeu notas máximas dos jurados, ai se criou uma "tendência irresistível", era preciso fazer como o Salgueiro para vencer as grandes, ou era preciso fazer o que seria dali em diante a marca de diversas escolas na Avenida Marques de Sapucaí, quem mandava era o bicheiro, e o sambista deveria fazer o seu papel, distanciando- se dos tramites dirigentes da escola de samba. Acima de tudo, tal como os desfiles em forma de competição ajudaram a dar normatização para o processo, a entrada do universo das “belas artes” configurou um novo padrão carnavalesco, os sambistas descontentes poderiam, inclusive, serem castigados por um júri e uma sociedade que parecia cada vez mais aprovar a novidade. Quem estava insatisfeito era gente mais tradicional do samba, intelectuais diversos, acadêmicos, artistas da MPB, alguns jornalistas etc. Como relatado no tópico de abertura deste capítulo, o jovem Candeia parecia caminhar em sincronia como o movimento tradicional das escolas de samba. Percebemos que as estratégias adotadas por ele coincidem com o movimento do grupo maior no qual está inserido, o dos compositores de escola de samba. As primeiras composições vitoriosas de Candeia estão em sintonia com a visão ufanista da letra de samba enredo que ganha força durante o período do Estado Novo e perpetua com força até os anos de 1960. 218

Entre 1952 e 1959, Candeia emplacou cinco vitórias na disputa da escola. Todos os sambas se remetiam a valorização dos símbolos e glórias nacionais. Em 1959, o enredo “Brasil, panteão de Glórias”, em parceria com os compositores Waldir 59 e Casquinha. O samba ufanista, além da exaltação aos pracinhas da FEB, cita personagens como Duque de Caxias, Santos Dummont, Ruy Barbosa, entre outros (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008). Veja a letra do samba:

“Brasil, pantheón de glória Salve os heróis de nossa história Há muitos anos atrás Felipe Camarão e outros vultos mais Expulsaram os invasores Do território nacional Salve, Caxias imortal guerreiro Patrono do brioso Exército brasileiro Santos Dumont Pioneiro da aviação Rui Barbosa Imortalizou a nação Com sua rara inteligência, Naquela nobre conferência Salve a FEB imponente, viril Nós saudamos as glórias do Brasil Lá, lá, lá Lará, lará…”

Com tantas vitórias Candeia se torna um dos sambistas mais respeitados na Portela. E no ano de 1961, – junto de Casquinha, Arlindo, David do Pandeiro, João do Violão, Piccolino e Bubu da Portela – funda o grupo “Mensageiros do Samba”. Segundo a pesquisa de Castro (2004), o grupo se apresentou diversas vezes no famoso bar de Cartola e Zica, o “Zicartola”. Em 1966 lançaram seu primeiro LP pela gravadora Polydor (Idem). Um detalhe interessante sobre o grupo de Candeia é a “profissão oficial” de cada sambista. Naquela época era praticamente impossível um sambista viver somente da música. Candeia era policial civil, Casquinha bancário, Arlindo era detetive, David do Pandeiro, policial militar, João do Violão era funcionário público de baixo escalão, Piccolino, estivador e Bubu da Portela era torneiro mecânico. Como já relatado nesta pesquisa, diversos sambistas encontravam “tranquilidade” em cargos de menor escalão do funcionalismo público. A maior parte destes cargos era articulado por alguém de influência pública que acabava ajudando os sambistas (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008; CUNHA, 2009). 219

Depois dos anos de 1950, outra profissão que começa a ser comum no mundo do samba é a de policial. No próprio grupo de Candeia, são três os sambistas que tem essa profissão. Candeia passou no concurso para a polícia no início dos anos 60. Antes era também funcionário público, trabalhava no Ministério da Aviação e Obras Públicas executando serviços burocráticos gerais. Ser policial nos 60 garantia um salário razoável, além de que dotava o sambista de distinção social, ele adquiria poder e o respeito, embora coercitivo, de um policial. Negro, alto, forte, destemido e bom de briga, o policial Candeia se tornou temido até pelos amigos do samba, como atesta seu principal biógrafo João Baptista Vargens (2008:56).

“A figura dele era controversa. Muitos sambistas antigos reclamavam que ele chegava cobrando identidade e levando em cana quem estava em situação irregular. Consta que chegou a prender o próprio irmão. Mas outros dizem que ele estava certo, já que era a função dele”.

Ainda menino, Vargens se tornou amigo de Candeia. Após a morte do sambista, ele resolveu participar do concurso de monografias da Funarte. O resultado é o livro “Candeia — Luz da inspiração”, que tal como mencionado no início do capítulo, é a principal fonte de informações organizadas sobre a vida de Candeia. O livro de Vargens é a fonte privilegiada de informações desse capítulo, além de Vargens uma diversidade de entrevistas e artigos jornalísticos também serviram de base para esta parte da pesquisa. Vargens conta ainda que Candeia ficou tão truculento que certa vez chegou a esbofetear uma prostituta que lhe rogara uma praga. Algum tempo depois, ao voltar de uma noitada, já na manhã de 13 de dezembro de 1965, Candeia se envolveu em uma briga de trânsito no Centro do Rio. Depois de bater em dois passageiros e esvaziar seu revólver nos pneus do caminhão que se chocara com seu carro, ele levou cinco tiros do motorista. Das várias histórias que rondam esse acidente, popularizou-se a história que a praga da prostituta vingou. E o que pega, no universo da cultura popular, fica como verdade. Assim se formou a ideia de que Candeia teria sido vítima de uma praga. Diversos sambistas falam dessa história. A força da religião, do mau olhado, dos bons presságios, da limpeza espiritual, e tantos outros termos e processos místicos era assunto levado muito a sério pelos sambistas. 220

O fato é que a vida de Candeia mudaria completamente dali em diante. O acidente é sempre citado pelos sambistas, e por seu principal biógrafo, como um momento de mudança radical na vida e no posicionamento político-social de Candeia. Acho interessante expor aqui o relato de Vargens sobre o acidente de Candeia. Como já dito, além de pesquisador, Vargens era um amigo pessoal de Candeia e demonstra em seu relato o nível de envolvimento que tinha com o sambista.

“Duas horas da madrugada, fui embora. Estava em Madureira esperando um táxi e ele, que foi levar o pai em casa, me chamou para ir ao Leblon. Insistiu e, por ele estar bêbado, resolvi ir. Candeia ia levar uma pequena em casa. Ele morava em Botafogo e trabalhava no Leblon. Passamos na Mangueira, lá não estava bom. Então, seguimos pro Leblon. Quando chegamos, a moça resolveu ir para Botafogo e de lá, pensando que fôssemos para a farra, decidiu voltar para Madureira. Na saída do Catumbi-Laranjeiras, quando vínhamos no final da Marquês de Sapucaí, perto da Presidente Vargas, Candeia bateu no caminhão e botou o carro na frente. Desceu. Olhou o para-lama. Viu que estava amassado. O ajudante pulou. Caiu perto de Candeia. Candeia deu uma 'colada' no cara e o cara fugiu. O outro ajudante pulou e a mesma coisa. Ai, ele falou pro italiano que estava dentro da boleia: agora é você! O cara mandou tiro e saltou a pé. A garota do Candeia correu atrás do cara com o revólver sem bala. E Candeia caído. Suspendi o homem, botei-o no ombro e fiquei na frente de um táxi. A pulsação dele a zero. Ao deixar o Candeia no Souza Aguiar desmaiei. Depois fui apanhar a arma do Candeia e os documentos no caminhão”.

Candeia levou ao todo cinco tiros, ficou mais de três meses no hospital e de lá saiu paralítico da cintura para baixo. É um consenso geral em todos que falam sobre Candeia, que este episódio fora bastante definidor na vida do sambista. Dai em diante Candeia entra em um período de profunda depressão. Um ano depois do acidente Candeia escreve a seguinte carta para amigos:

“Inicio de um Ano Novo, antevisão da derrota me apavora: começo a perder a fé em minhas possibilidades de recuperação. Sinto que os amigos e parentes também já não acreditam na minha reabilitação, até os de casa já se mostram saturados. Estou morrendo de dentro para fora. Somente um milagre poderá modificar esta situação. Perco gradativamente o interesse pelo presente e pelo futuro, vejo-me amarrado dentro de um barco, que se encaminha lentamente para o precipício. Apesar de todas as adversidades, continuarei lutando, praticando os exercícios e tomando medicamentos. Em momento algum me entregarei ao desânimo ou ao desespero. Após um ano decorrido, sou obrigado a reconhecer que não obtive nenhuma melhora digna de registro”. (VARGENS, 2008: 51-52)

221

Passado alguns meses, os amigos de Candeia organizariam uma grande festa no Jacarepaguá Tênis Clube. Foi a primeira vez que Candeia cantou em público novamente após o acidente. Vargens (2008), conta que, mesmo que muito receoso, Candeia aceitou ir ao evento. Quando chegou ao clube e viu todos os amigos, tudo lotado, não quis nem descer do carro. Só saiu porque a multidão de amigos logo o cercou. Nesse dia Candeia sai do seu exílio doméstico, e numa cadeira de roda voltou a comandar uma roda de samba para uma multidão que se espremia na quadra do Jacarepaguá Tênis Clube (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008). No mês seguinte seus parceiros o levam para São Paulo, onde Candeia se apresenta na quadra da Mocidade Alegre e em algumas estações de rádio. Retorna ao Rio de Janeiro e aos poucos vai reencontrando sua produção musical. Segundo Vargens (2008), aposentado do emprego, em uma cadeira de rodas, o sambista começa a canalizar toda sua energia para os assuntos relativos ao mundo do samba. Seja na arte da composição, seja na militância pela preservação das raízes culturais das agremiações carnavalescas. Essa militância o levaria a romper com as outras escolas de samba e criar a Quilombo. Um interessante detalhe que Vargens (2008) demarca, é que devido ao estado físico de Candeia, seu retorno ao mundo samba transformou sua residência numa local de festa permanente. Quase todos os dias aconteciam rodas de samba comandadas por Candeia nos fundos da sua casa. Assim Candeia voltava a produzir. Passa o momento mais difícil e o sambista “sentado em trono de rei, ou aqui nessa cadeira”, retomaria sua vida artística com uma amplitude nunca alcançada antes. Em 1970, é lançado seu primeiro disco solo chamado: “Autêntico, Samba, Original, Melodia, Portela, Brasil, Poesia”. Neste disco, reconhecidamente uma obra prima do mundo do samba, todas as faixas são compostas por Candeia. Dai em diante Candeia começa a ser gravado por diversos sambistas mais conhecidos, como Paulinho da Viola e Clara Nunes, ambos ligados a Portela. E em seu segundo disco, em 1971, lançaria o samba que demarcaria seu retorno e sua nova fase:

“De qualquer maneira Meu amor eu canto De qualquer maneira Meu encanto, eu vou sambar Com os olhos rasos d'água 222

Com o sorriso na boca Com o peito cheio de mágoa Ou sendo a mágoa tão pouca Quem é bamba não bambeia Falo por convicção Enquanto houver samba na veia Empunharei meu violão Sentado em trono de rei Ou aqui nesta cadeira Eu já disse, já falei Seja qual for a maneira Quem é bamba não bambeia Falo por convicção Enquanto houver samba na veia Empunharei meu violão”

Seu terceiro disco seria lançado em 1975, se chamava “Samba de Roda” e apresentava um conteúdo mais diversificado, contava com ritmos afro-brasileiros como o jongo, pontos religiosos de umbanda, cantigas de maculelê e capoeira. Ainda contava com diversos partidos de compositores amigos de Candeia. Este processo, de usar diversos compositores amigos em algum disco, era e é muito comum no mundo do samba, quando um compositor popular se destacava ele se esforçava para gravar sambas de seus amigos que “ainda” não estavam fazendo o mesmo sucesso, era uma forma de alavancar a carreira alheia (CUNHA, 2009). Este processo ocorreu na gravação do LP “Partido em Cinco”. Candeia alavancou a carreira de outros sambistas. Vargens (2008), conta que foi ai que o hoje conhecido sambista Wilson Moreira conseguiu largar a profissão de carcereiro e viver financeiramente somente da música. Abaixo algumas imagens da trajetória de Candeia. A seguinte é uma foto de Candeia em frente à casa que morou na infância, onde na época morava sua avó.

Figura 67 – Candeia em frente à casa da família 223

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:103) Figura 68 – Ala dos Impossíveis: Candeia, Waldir 59 e Mazinho

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:103)

224

A Ala dos Impossíveis, montada por Candeia ainda na Portela. O interessante é que a ala inovou na coreografia do samba. A fantasia fiel ao ambiente ufanista. Abaixo o jovem Candeia e seu violão ainda antes do acidente.

Figura 69 – O jovem Candeia (1)

Fonte: Disponível em Vargens (2002:103) Figura 70 – O jovem Candeia (2)

Fonte: Disponível em Vargens (2002:104)

Candeia em casa após o acidente. Nas fotografias abaixo, já notamos o sambista aparecendo publicamente com suas cadeiras de rodas que o acompanhariam nas rodas de samba até o final de sua vida.

Figura 71 – Candeia em cadeira de rodas 225

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:104) Figura 72 – Candeia em cadeira de rodas na TV Tupi

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:104)

Em paralelo ao crescimento de sua carreira artística, aumentava também o prestígio de Candeia na Portela, lembre que antes do acidente Candeia já era da ala dos compositores, tendo vencido diversos concursos de samba na escola. Como alertei, é nesta fase que vai começar o tensionamento entre Candeia e Carlinhos Maracanã, o bicheiro, novo presidente da Portela. Embora o prestígio de Candeia 226

aumentasse com a comunidade da escola de samba, a autonomia dos sambistas era severamente reduzida com a presença dos patronos, os bicheiros do samba. Sem espaço para opinar,em 11 de março de 1975, Candeia, Paulinho da Viola, André Motta, Carlos Monte e Cláudio Pinheiro lançam um documento endereçado para Carlinhos Maracanã propondo mudanças na escola. O documento propunha elementos radicais como: a redução do número de componentes, maior controle da ala dos compositores, proibição de torcidas organizadas na escolha do samba-enredo. Ao que parece, Carlinhos Maracanã nem considerou o documento. Abaixo destaco algumas importantes passagens do texto em questão.

“Escola de Samba é Povo em sua manifestação mais autêntica! Quando se submete às influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo. Se hoje em dia são unanimes opinião e posição contrárias da imprensa em relação à Portela, é porque a Portela, apesar de sua tradição de glória, se deixou descaracterizar pelas interferências de fora. Aceitou passivamente as ideias de um movimento que, sob o pretexto de buscar a evolução, acabou submetendo o samba aos desejos e anseios das pessoas que nada tinham a ver com o samba. Durante a década de sessenta, o que se viu foi a passagem de pessoas de fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O sambista, a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes desprezado e até perseguido. O sambista não notou que essas pessoas não estavam na escola para prestigiar o samba. E aí, as escolas de samba começaram a mudar. Dentro da escola, o sambista acabou fazendo a mesma coisa com o desfile”.

Aqui já fica claro o caminho que Candeia iria tomar. Como sinalizei no capítulo anterior. Candeia começa a acusar a atual diretoria da Portela de descaracterizar as tradições das escolas de samba. Aqui o sambista elabora a ideia de que foram os próprios sambistas que permitiram a entrada de “influências externas” nas escolas de samba. Em um primeiro momento o sambista entendeu isto como uma vitória do samba, um sucesso da penetração do ritmo em todo o país, mas Candeia quer dizer que foi ai que começou a descaracterização, foi ai que o sambista perdeu o controle da escola. O documento segue em tom de alerta para os perigos desta descaracterização. Aqui os autores falam, do que chamei, no capítulo anterior, de tendência irresistível, isto é, uma tendência inevitável a copiar o formato de desfile que mais agrada o júri e a opinião pública mais geral.

“A Portela adotou a Águia porque era o símbolo do que voa mais alto, acima 227

de todos. E, inatingível, a Portela nunca imitava nada dos outros. Sempre criava. Hoje, o que a Portela está fazendo é procurar copiar o que se pensa que está dando certo em outras escolas”.

A pesquisadora Ana Cunha (2009), em sua pesquisa sobre Candeia, levanta alguns eixos fundamentais do documento, estes eixos são determinantes no projeto cultural que culminaria na fundação da Quilombo. Abaixo as principais visões (e saídas) do grupo de Candeia na crise da Portela:

2. A centralização demasiada das decisões nas diretorias, alijando os componentes da escola do processo. Como sugestão, separar os organizadores das atividades da escola em dois setores: administrativo e carnavalesco. O principal ponto seria transformar o departamento cultural em uma “comissão de carnaval”, que teria mais liberdade na condução da organização dos desfiles e independência nas suas decisões em relação ao setor administrativo; 3. O “gigantismo” dos desfiles, devido ao excesso de participantes, aos quais chamaram de “figurantes” em contraponto aos “componentes”. A solução do problema se daria com o encerramento das inscrições de novas alas na Portela; a limitação do número de componentes em cada ala; a eliminação de alas sem representatividade na Portela; e principalmente o ingresso dos componentes no quadro social da Portela e a presença das alas nos ensaios com a bateria. Nesse processo de “redução do efetivo da escola” seriam adotados como critério a antiguidade, obediência ao figurino e desempenho nos últimos anos; 4. A autonomia demasiada do figurinista – que atualmente corresponderia ao carnavalesco – e o desacordo na confecção dos figurinos diante do desconhecimento dos componentes da escola. A principal sugestão seria recrutar auxiliares para o figurinista entre pessoas que pertençam à escola e preparação de uma fantasia modelo para cada ala, com indicação de tipos de tecido a serem usados, preços dos materiais e local onde poderão ser adquiridos; 228

5. A grandiosidade das alegorias, que eram usadas como recurso para os participantes que não sabem sambar. Para a redução da grandiosidade das alegorias a sugestão principal seria a escolha de um artista capaz de dar confecção leve, com material moderno, à concepção dos carros. Um ponto importante seria a possibilidade futura de os integrantes da escola fazerem suas próprias alegorias e fantasias; 6. As restrições impostas à liberdade de criação dos compositores da escola. Nesse ponto são sugestões: dar liberdade de criação ao compositor, quanto ao número de versos; modificar o procedimento de escolha do samba-enredo, que passaria a ser feito pela comissão de carnaval; a obrigatoriedade de, no mínimo, dois compositores para cada samba de enredo; a retomada dos concursos e festivais de samba, não só de sambas-enredo, mas também de samba de terreiro e partido alto; e a fixação de um número de compositores, condicionando a filiação à abertura de vagas na ala dos compositores; 7. Os destaques “intrusos” que desconhecem os enredos e atrapalham a evolução da escola. Para esse ponto foi proposta a avaliação anual dos destaques conforme as necessidades de cada enredo; 8. O desconhecimento dos enredos e de como se portar no desfile por parte dos integrantes. Para correção desse ponto, a sugestão foi a promoção de mais encontros com os diretores responsáveis pelas alas, principalmente a participação nos ensaios; a promoção do ensaio geral, com a formação das alas em sua ordem de desfile; e a melhoria da comunicação interna na escola, entre componentes e diretorias, por meio de jornais, quadros de avisos, entre outros meios; 9. A postura descomprometida da Portela com o seu “papel de liderança no samba”, ocasionando prejuízos para a evolução e a inovação dos desfiles das escolas de samba e a submissão aos regulamentos. A posição dos signatários era que a Portela, e as escolas de samba em geral, deveriam estar à frente da elaboração 229

dos regulamentos e definição dos critérios de julgamento dos desfiles das escolas de samba.

Nota-se a dureza do texto. Era um ataque ao modelo de carnaval vigente na cidade. A única saída para Candeia seria mesmo a criação de uma nova escola de samba, que acabaria reunindo sambistas de todas as outras. As escolas que se transformavam e que se harmonizavam com as novas regras agradavam o júri e levavam o título do campeonato de desfiles. A concorrência por títulos estimulava uma padronização dos desfiles. As escolas que trouxeram as “inovações” agradaram um público mais amplo, como seria possível disputar sem ceder? A questão é que as escolas mais recentes procuraram na diferenciação uma forma de rivalizar a disputa do carnaval carioca, antes concentrada nas escolas mais tradicionais. Mais uma vez, o documento se coloca claramente contra as inovações que, segundo eles, descaracterizam o mundo do samba. Não tendo sua revindicação atendida, Candeia e Paulinho da Viola saem da Portela. Alguns anos depois diversos outros sambistas, como João Nogueira, Clara Nunes, seguirão o mesmo caminho. Para Candeia o triunfo – que o samba acreditava viver – seria o fim das próprias escolas. O capítulo anterior serviu para reconstruir o ambiente social de Antônio Candeia Filho. Nesse capítulo nos interessa mais a imersão no manifesto de rompimento redigido em 1972 por Antônio Candeia e Isnard Batista. Aqui Candeia vai questionar as transformações no mundo do samba, o compositor vai valorizar a tradição, a autenticidade e o engajamento do sambista em defesa de seu patrimônio artístico e cultural. Vale a pena explicar que autenticidade aqui foge do debate erudito x popular, seria a articulação entre autêntico e cultura de massa, isto é, a capacidade de um grupo ter uma visão própria sobre o que é autêntico, e como, a cultura de massa pode emular uma autenticidade a alguma manifestação artística. Aquilo que é considerado autêntico em uma apresentação de samba por um grupo de turistas, por exemplo, – a performance, a dança e os excessos físicos – seria considerado totalmente inapropriado a um cantor de música clássica. O que se coloca aqui, nesta pesquisa, não é uma suposta diferença entre essas expressões musicais, até porque elas parecem óbvias por si, e sim como a articulação entre autenticidade, cultura de massa e comercialismo, se desdobra na música e nas culturas. 230

Entendo claramente que Candeia questiona os excessos comerciais das escolas de samba, que ferem a autenticidade do espetáculo, entretanto seu maior questionamento estará na transferência de poder nas decisões da escola. Esse poder passa do sambista para o patrono, no caso o bicheiro, interessado em ampliar o patrimônio social da escola de samba, para assim ampliar seu respeito na cidade, o que acaba por descaracterizar os desfiles. Mas a questão central não é somente a descaracterização dos desfiles, é como isso se deu. Para Candeia foi através da gradual perda de poder do sambista para as “pessoas de fora” da escola. O grupo de Candeia rompe com a Portela porque suas revindicações não seriam atendidas pela escola, na Portela quem mandava agora era o bicheiro Carlinhos Maracanã. Como já relatei, diversos setores da sociedade carioca, ligados ao mundo do samba, se tornam solidários a Candeia. Hoje mesmo se tornou senso comum algumas pessoas questionarem as transformações dos desfiles carnavalescos. A maior parte das críticas está na ideia de que as transformações do espetáculo retiraram a espontaneidade da festa. A festa padronizada atende a interesses tão amplos que não pode mais se parecer com uma procissão popular, e sim um desfile de gala, caro e disputado por turistas de todo o planeta. O grupo de Candeia busca no passado a resposta parcial para o presente. A outra parte está na ação engajada do sambista, para defender sua história e sua cultura. A escola de samba precisa atender a um grupo muito amplo, de patrocinadores ao jogo político dos bicheiros. Candeia resolve que a única forma de ativar seu protesto é romper não só com a Portela, mas também com a liga das escolas de samba. Candeia criaria a Quilombo, uma escola que não participaria dos desfiles oficiais da cidade.

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4.3 - A criação da Quilombo através do livro Escola de Samba: a árvore que perdeu a raiz de Candeia e Isnard

Vale aqui a leitura de parte da sincera apresentação escrita por Sérgio Cabral ao livro de Candeia e Isnard:

“Este livro é um grande avanço na luta dos artistas populares contra os preconceitos. É uma obra sem intermediários, escrita pelos próprios personagens. Não é, portanto, um livro de escritor, mas um repositório de informações, experiências e posições que não são apenas dos dois autores. Pertencem também aos velhos sambistas que formaram um dos mais importantes centros de criação popular do Rio de Janeiro, a Escola de Samba Portela. Antônio Candeia Filho é uma figura fascinante. A vontade de contribuir com sua gente ultrapassa até os limites do grande compositor que é. Ele promove, protesta, sugere e estimula. Quando notou que as escolas de samba estavam saindo do controle dos sambistas, tratou de criar a Quilombo que é atualmente um exemplo vivo de como o povo carioca pode cultivar suas manifestações sem servir aos interesses dos aproveitadores. […] Lembro-me de um telefonema de uma leitora para a redação, no qual ela manifestava a sua preocupação: - eu gostaria de visitar uma escola de samba … mas não há perigo? Quando foi constatada a falta de perigo, as escolas quase foram tomadas de assalto. Figurinistas famosos encontraram nelas um novo campo de trabalho e de experiências profissionais. Participantes dos desfiles de luxo do baile do teatro municipal passaram a misturar-se com os sambistas numa promiscuidade que só fez atrapalhar a beleza da apresentação das escolas de samba. Os jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão abriram seus espaços para o acontecimento – é a passarela era bem maior. Um prato cheio para todas as vaidades. O negro e o mulato jogados e abandonados pelo preconceito social e racial aos morros, às favelas, aos bairros de baixo nível econômico das cidades, começaram a exprimir seu sofrimento, sua desesperança e também sua vontade alegre de viver na batucada, no lundu, no maxixe, no choro, capoeira, no frevo, no caxambu, no jongo, no samba, no samba-choro, no samba-canção, no samba de breque, no samba batucada que em nossos dias representam grande parte do patrimônio do povo brasileiro. Os cultos do candomblé dão sentido à vida e amenizam os sofrimentos de um mundo incerto. O candomblé penetrou no povo brasileiro, criando valores estéticos (artísticos), utilizando o canto acompanhado de atabaques, agogôs, cabaças e outros instrumentos de percussão, as danças características, as vestimentas próprias dos participantes, a grande aglomeração de espectadores”. (CANDEIA & ISNARD, 1968: 3-4)

Comumente, as pessoas que compartilhavam das reuniões de culto afro- brasileiro se integravam às manifestações ligadas às Escolas de Samba, Blocos e Ranchos. Os divertimentos daqueles que partilhavam das sessões religiosas eram os blocos e as escolas de samba, pela identificação que existe e também pelo 232

padrão socioeconômico que representam, mantendo-se a autonomia de cada uma delas. Nessa parte do texto é elaborada uma espécie de legado da cultura negra e da cultura do mundo do samba para a formação cultural nacional. São explicadas a variantes rítmicas que compõem este universo como o lundu, o jongo, o caxambu e a capoeira. Aqui Candeia também iria revelar uma visão que afirma a difícil luta por integração racial no Brasil. Expressões como “venceu o preconceito” são usadas diversas vezes no decorrer da pesquisa. Esse tipo de pesquisa vai de encontro a ideia defendida por Candeia de resgatar a História dos negros no Brasil, lembrar a escravidão, as humilhações, mas também a riqueza da sua cultura e das suas manifestações sociais. Cita a religião, a festa, a culinária, a música, a vestimenta para recompor um universo mais nítido ainda nos dias atuais (CUNHA, 2009). Seriam estes negros, oriundos do candomblé, do jongo e da capoeira que fundam as escolas de samba. Para os autores, libertos das senzalas se deslocam para favelas e bairros periféricos dando fortalecimento a sua cultua e ao seu laço comunitário. Candeia aqui reata a discussão que é apresentada no capítulo 1, isto é, os primeiros caminhos da integração cultural negra no Rio de Janeiro, que tiveram nas escolas de samba a sua maior expressão para fora de seu grupo. O livro continua se fixando nas “proezas” dos antepassados, na valorização da figura de Paulo da Portela, o fundador da Portela. Os autores usaram mais de 50 páginas para demarcar a importância da história da agremiação. Realizaram uma tremenda coleta de dados com diversos membros da escola, no decorrer do texto diversas histórias, citações e informações são atribuídas a estas pessoas. Abaixo observamos uma citação a casa de Dona Esther (capítulo 2), mãe de santo e principal organizadora dos festejos locais ainda antes da fundação da Portela.

“Dona Esther alojava em sua casa mais de cinquenta pessoas. Sua residência era tão grande que ia de uma rua a outra (Joaquim Teixeira a Antonio Badaje, em Osvaldo Cruz). As pessoas de sua época fazem questão de lembrar que dona Esther era mulher muito bonita e de boa condição financeira, ajudando sempre que possível ao Conjunto Osvaldo Cruz (Portela). […] Dona Esther era considerada da lei, ou melhor, fazia suas reuniões místicas (macumba). Contam em Osvaldo Cruz, pessoas do bairro, que ela demorou tanto a morrer porque adiava a sua morte mandando outras pessoas em seu lugar”. (Idem: 23)

Tal como cito no primeiro e segundo capítulo desta tese as Donas de Lei como Tia Ciata e Dona Esther foram fundamentais na interlocução do samba com o 233

restante da cidade, suas residências foram importantes espaços de intercâmbio social e cultural. Eram figuras respeitas no bairro e carregadas de estigmas religiosos, como o “dom” da feitiçaria e do curandeirismo. O interessante é mostrar como Candeia tem um cuidado em construir o passado mais privativo de Osvaldo Cruz, valorizando o papel de cada figura de destaque, mais de cem personagens locais são citados em seu livro (CUNHA, 2009). Abaixo, outra passagem relevante sobre a fundação da Portela fala da importância destas festas, organizadas no bairro de Osvaldo Cruz, veja:

“Sr. Napoleão, pai de Natal, Vicentina e Nozinho, organizavam, em seu terreiro, reuniões de caxambu. A essas reuniões compareciam elementos do Estácio como Ismael Silva, Brancura, Valdemar da Babilônia, Baiaco entre outros. Esses convidados compareciam às festas através da irmã do Sr. Napoleão, tia de Natal, que por sua vez era de outra lei e só participava depois de conseguir Marlene (benção, licença, perdão) do Sr. Napoleão, o dono e responsável pelo terreiro. É inegável a influência destas festas, tipos reuniões de caxambu e jongo que o Sr. Napoleão e o Sr. Vieira faziam realizar. Essas reuniões duravam, às vezes, dois dias. Eram também precedidas de baile com sanfona, onde todos comiam e bebiam e principalmente se divertiam. Queremos deixar claro que o Estácio não existia como Escola de Samba, mas os integrantes daquela região que vinham a roça, como era considerada Osvaldo Cruz, incentivavam os primeiros sambistas da azul e branco e indiretamente influenciaram o nascimento da Portela” (Idem: 45)

Aparece a imagem rural do subúrbio aliada a importância das festas na vida social da comunidade, espaços de intercâmbio e celebração de um determinado modo de viver a vida. Aqui Candeia ratifica a influência do Estácio no nascimento da Portela, tal como faz um relevante relato destas festas, do lugar da religião, da música, da cultura em geral. Em outra passagem, os autores salientam a importância do estilo “civilizado” adotado pelos primeiros sambistas. Em suma, o manifesto de Candeia remonta a história da Portela e mostra uma leitura muito articulada do passado:

“Outro fato marcante da fundação foi o de Caetano, Paulo, Rufino, Zé da Costa e Álvaro Sales terem resolvido comprar ternos iguais, chapéu de palha, sapato tipo carrapeta e anel de prata com iniciais de seus nomes. A finalidade era moralizar o que faziam, ou seja, mostrar a polícia que considerava os elementos ligados ao samba, como malandros, que eles apesar de sambistas eram homens de bem, que apenas gostavam de cantar e compor seus sambas”. (Idem: 47)

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Aqui os autores demonstram o conhecimento da estratégia adotada, “A finalidade era moralizar o que faziam”. No início deste capítulo, através dos relatos de Vargens (2002), identifico que a geração de Candeia adotou a mesma estratégia na juventude. A chamada “turma do muro”, da qual Candeia era membro, mandava fazer seus ternos sob medida em Madureira, essa estratégia foi aos poucos se tornando uma marca forte na estética do mundo do samba. Adiante Candeia levanta um elemento muito interessante, já expliquei a história do bicheiro Natalino José do Nascimento, o Natal na Portela. Contei que foi um bicheiro diferente, de ligação forte com a comunidade, nascido e criado em Osvaldo Cruz. Embora os sambistas descontentes ataquem o atual presidente, o bicheiro Carlinhos Maracanã, o que parece mesmo importar é o seu desenlace com as raízes portelenses. Natal é citado diversas vezes de forma muito elogiosa no manifesto. “Natal muito ajudou para a Portela atingir o sucesso, na compra da sede, no apoio financeiro e pessoal” (Idem: 89). Aos três anos de idade, Natal veio com o pai para o Rio de Janeiro. Aos 19 anos foi trabalhar na Central do Brasil e com 25 anos sofreu o acidente de trem em que perdeu o braço direito. Após o acidente, envolveu-se com o jogo do bicho e fundou a Haia, que durante muito tempo foi uma das maiores organizações do jogo do bicho da cidade do Rio de Janeiro. Como falei no capítulo anterior, marcou sua passagem também como grande incentivador do Madureira Futebol Clube. Natal era conhecido por ajudar instituições de caridade e igrejas, e por quem lhe pedisse dinheiro. A história da Portela está intimamente ligada à vida de Natal, desde a participação de seu pai na história de fundação da Portela (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008; CUNHA, 2009). Foi com a morte de Paulo da Portela, em 1949, que Natal resolveu investir na escola de samba. Patrono da escola, Natal construiu, em 1959, a antiga sede da Portela, conhecida como a Portelinha, motivo de grande orgulho dos Portelenses, assim, nota-se porque Natal era um bicheiro distinto. E como já falei, o português Carlinhos Maracanã veio pelas mãos de Natal, mas nunca teria a mesma legitimidade que o outro bicheiro. No ano de 1980, o próprio filho de Natal, Nézio Nascimento, rompido com a Portela, fundaria uma nova escola com outros portelenses, a GRES Tradição (Idem). Retirando algumas passagens do manifesto de Candeia e Isnard, tentei demonstrar a visão do passado, a pesquisa histórica descritiva realizada pelos dois. 235

Nesse estilo, Candeia vai passear pela história do samba e da Portela, descrevendo minuciosamente cada estória, relato, curiosidade, títulos, desfiles, história dos ritmos musicais e uma variedade de outras informações sobre o universo do samba carioca e de Osvaldo Cruz. Adiante o sambista retoma o confronto e começa um capítulo intitulado: “Cultural própria da Escola de Samba”, onde aponta:

“Vamos nos colocar no chão com a cultura popular brasileira, buscá-la onde estiver: no morro, na Escola de Samba, no bloco, no botequim, no terreiro, na rua, nas rodas de samba e congêneres. Vamos respeitar a arte popular, sem preconceito ou paternalismo, tudo sem impor nada, respeitando sempre sua espontaneidade, sua força original, sua criatividade” (Idem: 67).

E segue:

“Ao substituirmos os valores autênticos das escolas de samba, nós estamos matando a arte-popular brasileira que vai sendo desta maneira aviltada e desmoralizada no seu meio-ambiente, pois Escola de Samba tem sua cultura própria com raízes no afro brasileiro. Deixar a manifestação popular realmente entregue ao povo (sambistas); Extinção das subvenções do Estado, uma vez que já não significam tanto para as Escolas de Samba. Estabelecendo-se aí uma distinção entre os verdadeiros sambistas e os profissionais (faturamento fabuloso); Distinção entre Escola “Show”e Escola Cultura Popular; Preparação dos jurados; Infiltração da classe média substituindo os valores autênticos pelo poder econômico” (Idem: 65).

Na passagem anterior aparecem as raízes do projeto que culminaria na formação da Quilombo, Candeia chega a chamar a criação de uma Escola Cultura Popular, uma agremiação engajada no resgate histórico e na militância pela equidade racial. É destaque também a influência da classe média, dos artistas e dos frequentadores. Candeia, alijado do poder na Portela, vai criar uma nova escola de samba. E mirando para o futuro conclui seu manifesto:

“Consideramos de máxima importância a preparação das novas gerações de sambistas que na própria Escola poderiam e deveriam ser estimulados. E para tal, podiam lançar mão de sambistas especializados nos diversos setores supervisionando e criando técnicas de atividades e torneios infantis e juvenis. Estas questões que levantamos em nosso trabalho estão vinculadas ao futuro e ao ideal das Escolas de Samba, nossa finalidade não é outra senão a de preservar e defender a arte-popular cujos valores precisam ser alicerçados”. (Idem: 69)

O projeto sambista de Candeia é pedagógico, como já disse quer esclarecer as futuras gerações do que ele considera um esquecimento de raízes, as escolas de samba não representam mais “seu povo” e Candeia além de sambista vai se 236

aproximar de um tipo muito particular de militância política, vai montar uma escola de samba que seja veículo dessa ação. Segundo Candeia e Isnard:

“Os brasileiros fortemente pigmentados de escuro somam cerce de trinta milhões. Certos apóstrofos da miscigenação pregam a rápida extinção do negro. E assim estaria automaticamente resolvido o problema. A parte branca, ou menos negra, continuará monopolizando o poder político, o poder econômico, o privilégio da instrução e do bem-estar, alheia as imposições da famigerada Lei Áurea – a Lei da Magia Branca, na correta definição de Antonio Callado. Sob a Lei da Magina Branca, o negro é igual a qualquer outro brasileiro” (Idem: 83).

Para Candeia, o papel dos negros na construção histórica do Brasil é fortemente notado através de diversas manifestações artísticas e sociais. Os negros, os sambistas, estavam sendo cada vez mais alijados do “poder” nas escolas de samba. E sem conhecimento do processo, as novas gerações seriam absorvidas por uma espécie de nova cultura. A Quilombo teria como principal finalidade levar a conscientização para a sua comunidade. A escola iria organizar festas, cursos, oficinas artísticas e iria desfilar fora do desfile oficial, sem disputar, seu carnaval também seria completamente idealizado pela comunidade (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008; CUNHA, 2009). A marca do debate racial fora fortíssima na nova agremiação, fundada no ano de 1977, desfila até 1986, e apresentou os seguintes enredos em seus desfiles: 1977 – Apoteose de Mãos, enredo sob a necessidade de união dos negros; 1978- Ao povo em forma de Arte, que propõe o resgate da cultura negra; 1979 – 90 anos da abolição; 1980 – Dia de Graça, em homenagem as festas religiosas negras; 1981 – Solano Trindade, importante poeta negro; 1982- Zumbi dos Palmares; 1983 – Revolta da Chibata; 1984 - Rainha Mina do Maranhão; 1985 – Luis Gama, advogado e jornalista negro; 1986 – Cinco séculos de resistência afro-brasileira. Vejamos adiante mais alguns detalhes sobre a criação da Quilombo, antes passando por mais uma passagem do manifesto de Candeia e Isnard:

"Os verdadeiros sambistas, ou seja, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, os passistas, os ritmistas, os compositores, as baianas, os artistas natos de barracão, são, hoje em dia, colocados em segundo plano em detrimento de artistas de telenovelas, dos chamados ‘carnavalescos’, ou seja, artistas plásticos, cenógrafos, coreógrafos e figurinistas profissionais. Ao substituirmos os valores autênticos das Escolas de Samba, nós estamos matando a arte-popular brasileira, que vai sendo desta maneira aviltada e desmoralizada no seu meio-ambiente, pois Escola de samba tem sua cultura própria com raízes no afro-brasileiro."(Idem:56) 237

Candeia, já sem espaço na Portela, recebeu de um amigo o pedido de ajuda na compra de instrumentos para um bloco, intitulado Quilombo dos Palmares, que pretendia fundar em um terreno baldio, na Rua Pinhará, no bairro de Rocha Miranda. Foi aí que o que era uma simples ideia começou a se tornar realidade: a criação de uma nova escola de samba, livre das imposições que tomavam conta do carnaval, feita por pessoas que tinham identificação na luta pela preservação do samba. Nascia então, no dia 08 de dezembro de 1975 o "Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo", ou simplesmente, o GRANES Quilombo. Segundo Vargens (2008), as cores da escola foram escolhidas pelo próprio Candeia: o dourado, que representava o ouro e homenageava Oxum (que no sincretismo religioso é representada por Nossa Senhora da Conceição), o branco, que simbolizava a paz e a pureza e o lilás, que nas palavras de Candeia, era inspirado na beleza de uma flor e representava a África. Seu símbolo, uma palmeira, em homenagem ao mais conhecido quilombo, o Quilombo de Palmares. Entre seus fundadores destacavam-se Waldir 59, (parceiro de Candeia em diversos sambas enredo feitos para a Portela), Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Élton Medeiros, Monarco, os jornalistas Lena Frias e Juarez Barroso, entre outros. Abaixo uma imagem com símbolo da nascente escola.

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Figura 73 – Símbolo da Quilombo

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 13 jan.2010

Como já dito, muitos foram os colaboradores de Candeia na construção da nova escola. Como foi abordado no capítulo anterior, já havia em torno da ideia do Quilombo, e de outras frentes culturais, uma rede de sociabilidade para tomada de decisões que antecedia e preparava a fundação. Torna-se relevante pensar sobre o universo simbólico que o Quilombo busca construir – tendo inicialmente Candeia como principal articulador – e como se deram as fronteiras do Quilombo: o imaginário compartilhado desse quilombo contemporâneo, dotado de “liberdade”, “autenticidade” e “tradição”, enfim, de proteção contra os “inimigos”. E, sobretudo, como espaço de “resistência” e de “defesa” (BUSCÁCIO, 2005; CUNHA, 2009). Entre os fundadores estavam amigos da “turma do muro”, parceiros de samba e da Portela, da polícia, jovens artistas, jornalistas, pesquisadores, universitários e familiares, com destaque para os nomes a seguir. Da “turma do muro”, destaque para Waldir 59, que foi amigo e parceiro de Candeia em dezenas de músicas. Dos companheiros da Portela estavam presentes Paulinho da Viola, Isnard Araújo (que redige o manifesto aqui apresentado junto com Candeia), Monarco e 239

Wilson Moreira. Isnard, médico e morador de Oswaldo Cruz, em 1975, compunha o departamento cultural da Portela como responsável pelo projeto de pesquisa sobre a história da escola, nominado Museu Histórico Portelense, cujo trabalho iniciou gravando depoimentos dos componentes mais antigos da escola. Esse trabalho de pesquisa de Isnard foi fundamental para a elaboração do manifesto dele e de Candeia. Wilson Moreira, outro grande parceiro de Candeia, que utilizamos um depoimento adiante, foi um dos primeiros integrantes da ala dos compositores da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, mas, em 1968, transferiu-se para a Portela e foi parceiro de Candeia em sambas-enredo para a escola. Participou da ala de compositores do Quilombo e assinou, em parceria com Nei Lopes, os sambas-enredos de 1978 e 1979. Como Candeia, era reconhecido como bamba nas rodas de partido-alto (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008). Segundo a pesquisa de Buscácio e de Cunha, dos compositores que acompanharam Candeia, destaque para Elton Antônio Medeiros, o Elton Medeiros, e Rubem Confete. Elton, em 1964, passou a frequentar o Zicartola, ocasião em que conheceu Paulinho da Viola. De 1967 a 1969, integrou o conjunto Os cinco crioulos, formado por Paulinho, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Rubem dos Santos, conhecido como Rubem Confete, nasceu e foi criado em Madureira; é compositor e jornalista. No Quilombo, atuava como compositor e mestre-sala. De 1975 a 1977, trabalhou na Rádio Roquete Pinto como comentarista e produtor do programa A Hora e a vez do samba. No ano de 1976 foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisa de Cultura Negra (IPCN). De 1975 a 1992 escreveu para vários jornais e revistas, entre eles, Pasquim, jornal Lampião, Revista Nacional, Revista Panorama, jornal Tribuna da Imprensa e revista Unidos da Tijuca. (BUSCÁCIO, 2005: 128; CUNHA, 2009) Entre os jornalistas, a participação destacada de Juarez Barroso, Marlene Ferreira Frias, ou Lena Frias, como costumava assinar, e Dulce Alves. Juarez Barroso foi jornalista, do Jornal do Brasil e escritor. Nasceu em Campos Belos (CE) em 19/10/1934. Faleceu no Rio de Janeiro em 1976. Lena Frias era tida como conhecedora da cultura popular, especialmente da cultura afro-brasileira. Em 1973, por indicação de Juarez Barroso, passou a ser redatora do Jornal do Brasil e tornou- se especialmente conhecida em 1976, quando publicou, também no JB, uma série de reportagens sobre o movimento negro e o movimento que, segundo alguns, foi 240

intitulado por Lena de Black Rio. Faleceu em 12 de maio de 2004. Dulce Alves, também radialista, trabalhou por mais de 26 anos na Rádio Tupi e era comentarista de carnaval. Faleceu em 1992 (Idem). Na época, o recém-formado em Letras, João Baptista Vargens, após um dos inúmeros encontros promovidos por Candeia para a criação da escola em dezembro de 1975, escreveu um manifesto de fundação, que exprimia de forma incisiva os propósitos e ideais da nova escola que nascia (BUSCÁCIO, 2005, CUNHA, 2009). Vargens criou uma relação de bastante proximidade com Candeia, e como já alertei é fonte privilegiada para este capítulo. Abaixo, o manifesto de fundação escrito por Vargens :

Estou chegando... Venho com fé. Respeito mitos e tradições. Trago um canto negro. Busco a liberdade. Não admito moldes. As forças contrárias são muitas. Não faz mal. Meus pés estão no chão. Tenho certeza da vitória. Minhas portas estão abertas. Entre com cuidado. Aqui, todos podem colaborar. Ninguém pode imperar. Teorias, deixo de lado. Dou vazão à riqueza de um mundo ideal. A sabedoria é meu sustentáculo, O amor é meu princípio, A imaginação é minha bandeira. Não sou radical. Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura. Gritarei bem alto desafiando um sistema que cala vozes importantes Que permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem. Sou franco-atirador. Não almejo glórias. Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio. Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão. Nada de forjadas e malfeitas especulações literárias. Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais. Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: Não me incomodem, por favor. Sintetizo um mundo mágico. Estou chegando...

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O final do manifesto é bastante significativo daquele clima, quase "romântico" de rompimento. Aqui o grupo coloca claramente algumas de suas críticas, perceba nas passagens extraídas do manifesto acima: Com minha comissão de frente digna de respeito, criticando aqui as comissões coreografadas que começavam a surgir; Intimamente ligado às minhas origens, na busca da raiz da sua identidade cultural; Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: Não me incomodem, por favor. Um ataque direto as interferências estéticas e organizacionais de membros externos a escola de samba. Note que Candeia não cita a questão do jogo do bicho, seu problema com o bicheiro de sua ex-escola estava muito mais na questão do poder. É claro que após o rompimento com a Portela a ação política de Candeia vai para além das adequações que ele tinha proposto a agremiação. Candeia avaliou, talvez só depois, que era preciso romper com o esquema tradicional de desfiles para colocar seu plano em prática. O Jornal do Brasil anunciava, no dia 17 de dezembro de 1975, em uma reportagem de página inteira, o nascimento do Quilombo. Veja um trecho da reportagem de Juarez Barroso, abaixo também a fotografia de Candeia no desfile:

Figura 74 – Candeia em desfile da Quilombo

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 13 jan.2010

"As escolas de samba cariocas agigantaram-se, deformaram-se à medida que se transformaram (ou pretenderam transformar-se) em shows para turistas. O tema é polêmico, tratado por quase sempre em tom 242

passional. Deformação ou evolução? Será possível o retorno à pureza, ao comunitarismo dos anos 30, quando essas escolas se consolidaram? (...) O sambista Candeia, liderando outros sambistas descontentes com a situação, prefere responder de modo objetivo. E responde com a fundação de uma nova escola de samba, Quilombos, escola que terá sede em Rocha Miranda e irá para a Avenida mostrando como era e como deve ser o samba. (...) E continuava o sonho: ‘Uma escola em que tudo fosse feito pelo povo. As costureiras do lugar fazendo as fantasias. Não ia ter esse negócio de figurinistas de fora não. As alegorias também, tudo de lá mesmo, escolhido lá.’ (...) E uma coisa fica bem clara: Quilombos, mais que uma escola de samba, será uma escola de sambistas, um modelo para outras escolas, uma referência."

O sambista Wilson Moreira, amigo e parceiro de Candeia, relembra:

"Ele falou: ‘Wilson, eu vou fundar uma escola de samba. Você tá comigo?’. Eu falei: ‘Candeia, eu só não vou sair da Portela...’. “Não, não precisa sair da Portela, ninguém precisa sair de suas escolas. Como o Xangô tá com a gente, Elton tá com a gente, Clementina tá com a gente, fulano, beltrano, sicrano..., Jorginho Peçanha tá com a gente’. Jorginho do Império. Eu falei: Tá legal! Vamos fundar a Quilombo."

Em 1976, em matéria para o jornal Última Hora, o próprio Candeia resume os propósitos do GRANES Quilombo:

“- Desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira; - Lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular; - Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando as das escolas de samba, e as transformam em rentáveis peças folclóricas; - Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira, destacando a importância do elemento negro em seu contexto; - Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não corrompidos “pela evolução” imposta pelo sistema, possam cantar seus sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro.” (VARGENS, 2002: 56)

Candeia se tornou um importante ativista da questão racial. E com a situação política do Brasil naquela época, em que a falta de liberdade ainda imperava, mesmo com o regime militar já enfraquecido, favoreceu a capacidade que a Quilombo de Candeia alcançou de “aglutinar as pessoas”, funcionando como uma “válvula de escape”, “um lugar de resistência”, segundo Vargens um Quilombo dos Palmares revivido. Vargens (2008:70) exemplifica o processo:

"Então, a ideia do Candeia e do grupo que o apoiou era salvaguardar isso, 243

que é, na verdade, uma identificação com a cultura nacional. Em uma época em que todas as forças progressistas trabalhavam para aglutinar. Essa era uma maneira de aglutinar as pessoas, não é? Foi por isso que a Quilombo conseguiu juntar 3.000 estivadores, ou juntar 3.000 ou mais trabalhadores da construção civil durante as suas festas lá. E não era só samba e comida. Havia palestras, exibição de filmes, debates. Esse espaço você não tinha nem dentro das universidades, porque havia uma repressão. Então era um quilombo mesmo, um lugar de resistência. A coisa não foi tão elaborada conscientemente, não é? Mas, partindo das pessoas que criaram o grupo – isso a gente vê hoje, trinta e tantos anos depois –, era um movimento... Na verdade, uma válvula de escape para aquilo que não se tinha: um, na universidade; outro, dentro do seu jornal; outro, dentro da sua escola de samba. Então, como o Quilombo dos Palmares, que aglutinou não só negros, todo mundo sabe disso, mas pessoas que estavam marginalizadas dentro da sociedade na época e foram para lá, para o Quilombo, porque lá tinha abrigo e tinha proteção. E o escudo eram os grandes artistas que frequentavam, como Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clara Nunes. Essas pessoas foram importantes também, porque deram visibilidade à coisa, ao trabalho. E o Candeia, que, além das ideias, tinha o dia todo para ficar telefonando, desde o fornecedor de carne ou de cerveja até o artista, o amigo, o jornalista para divulgar. Ele tinha tudo na mão dele".

Como já dito, a Quilombo vai articular todo um universo artístico que se posiciona criticamente a espetacularização dos desfiles. Assim, eu seu primeiro ano, a escola não só se apresentou pelas ruas dos subúrbios de Coelho Neto e Acari, como fechou o carnaval na Avenida Presidente Vargas. O impacto parece ter sido positivo, como sugerem os comentários da imprensa:

"A presença da Escola de Samba Quilombo foi, na verdade, a grande novidade no desfile de campeões do Carnaval 77, fechando com chave de ouro uma festa que teve tudo igual aos anos anteriores. [...] Com um contingente de 400 pessoas, dentre as quais os astros da música popular Paulinho da Viola, Candeia, Martinho da Vila, Xangô e Clementina de Jesus, diversos intelectuais e sambistas de outras agremiações, Quilombo, com suas fantasias tricolores, branca, lilás e dourado, quase rouba o espetáculo, que ficou por conta da Beija-Flor e seu Carnaval-Evolução, e do Canarinho das Laranjeiras. [...] Desfilando livre e descontraída pela avenida, sem esquemas, imposições, figurinos ou estrelas, despreocupada com novas fórmulas de 70, apresentação musical ou com contagem de pontos, a escola de samba Quilombo mostrou, ontem, o verdadeiro papel de uma escola de samba e apresentou seu Carnaval de 77 visando apenas realizar a mais genuína festa brasileira". (A Notícia, 23/2/1977). "A escola desfilava sem subvenção e carregava apenas duas faixas fazendo alusão ao “samba sem pretensão” e ao “samba dentro da realidade brasileira”. Para os mais atentos, esta diferença tomou outra dimensão nas cinco horas que antecederam o momento do desfile. Na Rua General Caldwel, esquina com a Presidente Vargas, o Quilombo reunido, tendo Candeia ao centro, tocava samba-de-roda, lutava capoeira e dançava o jongo – dança dos escravos – quase esquecido da festa de que participaria em breve"(Movimento, 7/3/1977).

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Candeia era, tal como foi Paulo da Portela, a principal figura daquele movimento. Para se ter uma ideia da importância de Candeia na organização e estruturação da escola, cito o depoimento do sambista Pedro dos Santos, um dos primeiros integrantes da Quilombo (VARGENS, 2008):

"Em 77, tinha o Candeia, o Quilombo tinha uma facilidade tremenda. Ele chegava e falava assim: ‘O que é que está faltando aí?’, para os chefes de alas. ‘Está faltando o quê?’ Ou para as costureiras. E eu falava: ‘Para a Ala das Crianças e para a Ala das Baianas está faltando pano.’ O Candeia saía e, quando ele voltava, o carro cheio de peças de pano. A gente: ‘Comprou aonde?’ ‘Comprei?! Eu sou o Candeia, rapaz! Eu sou o Candeia! Eu ganhei. Foi doado para o Quilombo. Ia em São Paulo e trazia peças de bateria do Quilombo, trazia essas coisas todas. Era tudo facilidade. Tinha as costureiras, tinha as máquinas... A esposa dele que comandava tudo, a dona Leonilda. Fazia aquelas feijoadas, aquelas comidas, fazia festival de chope, para angariar fundos, para o Quilombo fazer alguma coisa".

O desfile de 1978 foi especial: marcava a última participação de Candeia no comando de sua escola. O samba enredo foi composto por Wilson Moreira e Nei Lopes. "Ao povo em forma de arte" é uma obra prima, que demonstra a preocupação do sambista em preservar sua cultura e seus valores em um tempo em que tudo parecia se perder. Quem esteve lá pôde presenciar a emoção do Casquinha que às lágrimas dizia: "Tá tudo direitinho. tudo certinho. Parece a Portela de antigamente". Eis o samba daquele ano:

Quilombo pesquisou suas raízes E os momentos mais felizes De uma raça singular E veio pra mostrar essa pesquisa Na ocasião precisa Em forma de arte popular Há mais de quarenta mil anos atrás A arte negra já resplandecia Mais tarde a Etiópia milenar Sua cultura até o Egito estendia Daí o legendário mundo grego A todo negro de "etíope" chamou Depois vieram reinos suntuosos De nível cultural superior Que hoje são lembranças de um passado Que a força da ambição exterminou Em toda a cultura nacional Na arte e até mesmo na ciência O modo africano de viver Exerceu grande influência E o negro brasileiro 245

Apesar de tempos infelizes Lutou, viveu, morreu e se integrou Sem abandonar suas raízes Por isso o Quilombo desfila Devolvendo em seu estandarte A história de suas origens Ao povo em forma de arte

A letra do samba resume bem os propósitos da nova escola de samba: resgate, memória, educação e resistência. Aqui Candeia resume bem a sua visão da epopeia de Paulo da Portela: E o negro brasileiro / Apesar de tempos infelizes /Lutou, viveu, morreu e se integrou / Sem abandonar suas raízes / Por isso o Quilombo desfila / Devolvendo em seu estandarte / A história de suas origens / Ao povo em forma de arte. O projeto de Candeia é pedagógico e quer disputar hegemonia, isto é, se colocar como uma alternativa de arte engajada para o artista negro daquele tempo. A seguir, algumas fotografias 68e imagens da vida de Candeia e da Quilombo. Abaixo algumas imagens de Candeia na sede social da Quilombo no Clube Vegas em Acari69.

Figura 75 – Candeia em família

______68 ______Fotografias disponíveis em: . Acesso em: 13 jan.2010.

69 ______As fotografias de Candeia que não citarem referência foram extraídas da pesquisa de Vargens (2008). 246

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Figura 76 – Ensaio na Quilombo

Figura 77 – Candeia na sede social da Quilombo

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Na foto acima Candeia brinca com o megafone na gravação do filme "Partido Alto" de Leon Hirszman em 1976 na sede da Quilombo. Abaixo, com Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito.

Figura 78 – Candeia entre outros

Na próxima foto, Candeia aparece na sede da Quilombo em matéria para o Jornal do Brasil com a presença de diversos sambistas. Na legenda da foto se lê: Não se toma o lugar do padre.

Figura 79 – Candeia em matéria para o Jornal do Brasil

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 13 jan.2010 249

Em apresentação com o sambista Martinho da Vila no Jacarepaguá Tênis Clube, um ano após seu acidente:

Figura 80 – Candeia com Martinho da Vila

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 13 jan.2010

Com seu novo espaço cultural, Candeia adentra o universo político que atravessa a questão racial no país, como levantei no capítulo anterior, a postura de Candeia está em sintonia com a de diversos grupos orgânicos do movimento negro brasileiro. O espaço da Quilombo não será só frequentado por sambistas insatisfeitos, será tomado por intelectuais de diversos tipos alinhados a questão racial e da crítica ao processo de espetacularização da cultura popular. Ele cria uma escola que mira no passado e tenta se proteger da descaracterização, imposta, segundo o sambista, pela invasão externa, pela entrada de diversos grupos de interesse que se apropriaram das escolas de samba. Adiante, em minhas conclusões apontarei como o passado aparece aqui para tentar salvar o presente. O ambiente engajado da cultura dos anos 70, a agitação política, o clima político na África e nos EUA se esbarram com negros que não iriam aceitar o movimento de distanciamento de suas bases operadas em algumas escolas. Concluo com a letra do samba exaltação da GRANES Quilombo: “De manhã, quero os raios de sol / Quero a luz, que ilumina e conduz”. Com a esperança de novos tempos, Candeia compôs o samba Nova escola, em 1977. O 250

samba simbolizou as expectativas de seu autor – mentor e idealizador do GRANES Quilombo – em relação ao futuro do samba e das escolas de samba na cidade do Rio de Janeiro. Candeia acrescenta:

“A magia, e a fascinação / Voa um poeta, nas asas da imaginação / A arte é livre e aberta / A imagem do seu criador / Samba é a verdade do povo / Ninguém vai deturpar seu valor / Canto de novo”.

Os versos de Candeia projetam sua visão de arte relacionada à liberdade do sambista como protagonista dessa liberdade, da representação do samba, como expressão artística popular, e da resistência às mudanças de “valores” que acreditava como intrínsecos ao samba. Era a primeira grande crise da história das escolas de samba, e dali em diante o universo do samba carioca, como veremos adiante em nossas conclusões, nunca mais seria o mesmo. Candeia não conseguiu frear em definitivo o processo que as escolas de samba viviam, mas estimulou os sambistas a novas aventuras por fora de suas escolas, é como se, as escolas, neste momento perdessem um pouco do seu respeito numa parte considerável do mundo do samba carioca.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa foi elaborada em cima de dois ícones na história do samba carioca. Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela e Antônio Candeia Filho. A ideia de comparar estes dois personagens, além de nos trazer uma dimensão mais particular desta história, se deu, acima de tudo, na ideia de que em um primeiro momento, o de Paulo, a escola de samba iria se configurar como um importante mecanismo de integração cultural na cidade e depois, no momento de Candeia, como um espaço culturalmente criticado por diversos membros do complexo universo do samba e das escolas de samba cariocas. As escolas nascem e se fortalecem na primeira parte desta pesquisa, num segundo momento passam a ser questionadas por um grupo que promove o primeiro rompimento sério no processo de fortalecimento dos desfiles carnavalescos. A criação da Quilombo foi fruto do sentimento de diversos sambistas, nos anos 80 as escolas de samba viveriam uma verdadeira diáspora de seus membros mais tradicionais, que se sentiam cada vez mais distantes do campo decisório, quem mandava cada vez mais na escola eram os patronos do jogo do bicho, os patrocinadores, os visitantes. Embora Candeia mire Paulo da Portela de forma romântica, pois procura na busca do passado a resposta da crise de seu tempo, Paulo iniciou esse caminho de integração, procurou dar ordem ao samba, insistiu que os membros das escolas de samba precisavam de um comportamento exemplar. Paulo pôs fim às brigas e confusões nos desfiles, exigia vestimenta elegante na tentativa de valorizar seu grupo e mostrar, dessa forma, sua vontade de se integrar a modernidade, mostrando que suas manifestações culturais podem contribuir com o projeto nacional, coisa que de fato tomaria vulto no período de governo de Getúlio Vargas. Com o povo na vitrine do novo regime, o samba carioca é elevado ao status de símbolo nacional. O sambista passa a ser valorizado e alvo de atenção do governo e da imprensa. Se o projeto nacional varguista passava pela hegemonia dos setores populares, o samba não poderia ficar de fora e se portou como expressão muito eficiente para esse processo de normatização. Aceitou as normas, as subvenções e conseguiu construir os desfiles no centro da cidade. 252

O Governo de Getúlio Vargas entendia que as escolas de samba formavam um conjunto de valores culturais, originários de uma diversidade de comunidades representativas dascamadas populares; dentro de sua ação de aproximação com o povo, seria de grande relevância dar o apoio estatal para a realização do evento. A iniciativa e a participação efetiva dos governantes ao longo dos anos possibilitou que os desfiles fossem reconhecidos pelas autoridades, trazendo, consequentemente em seu bojo o reconhecimento das diversas classes sociais, refletidas na imprensa. Durante a Era Vargas, a imprensa já se mostra bastante afeita ao evento, desaparecendo, quase que por completo as designações de selvageria, barbárie ou inculto em relação às escolas de samba. Esse processo pressionava um comportamento especial dos sambistas frente à ordem. Os desfiles normatizavam, o Estado Novo tencionava a elaboração dos enredos, o júri composto em maior parte pela imprensa acabava por premiar um determinado padrão de desfile, que como já explicado, acaba por criar uma tendência irresistível para as outras escolas. No final de sua vida o próprio Paulo da Portela já demonstra sua insatisfação com a Portela e as outras escolas. Paulo foi um militante do samba, se tornou uma figura nacional e o sambista mais conhecido do Rio de Janeiro. Mas o final de sua vida é a prova de como a escola de samba já era cobiça de um setor muito mais amplo que seus fundadores. O que ainda mantém a Portela mais ligada a suas tradições é a longa presidência de Natal, que após a morte de Paulo passa a dirigir a Portela. Embora fosse bicheiro, nossa pesquisa já levantou diversas vezes a particularidade deste processo. Os sambistas da primeira geração controlaram sua mediação com o restante da sociedade. Em um determinado momento a escola de samba começa a ficar muito maior que estas personalidades. Cartola iria romper com a Mangueira, tal como diversos sambistas “tradicionais” romperam com suas agremiações. Entretanto as escolas seguem sua marcha, permanecendo por diversos anos como a principal atração do carnaval carioca. Resumindo, na primeira fase desta pesquisa analisamos o processo de nascimento e fortalecimento das escolas de samba do Rio de Janeiro. Para isso entramos mais fundo na vida do principal personagem social daquele processo, Paulo da Portela. Minha preocupação é mostrar como o samba se torna símbolo nacional, e com eles as escolas, através de um sofisticado processo de mediação cultural. Sambistas negociaram seu futuro com a cidade, aproveitaram todas as 253

brechas dadas e tiraram os frutos de uma integração, mesmo que imperfeita, que modificou o status quo do grupo na cidade. Tento fugir de uma visão romântica do processo, que tende a atribuir ao sambista da primeira fase uma fascinação quase heroica e insurgente. Parece-me que a ordem sobrepôs à desordem, os desfiles acabaram com o violento carnaval do centro urbano, e de alguma maneira foram integrando ao restante da cidade, o ambiente cultural dos subúrbios e favelas cariocas. Todos saudavam a ordem e como relatei na primeira parte, inclusive os próprios sambistas de alguma forma entendiam benefício em se organizar, sentiam como positiva a presença pública, não policial é claro, em suas comunidades. Entenda que a única presença pública, até a Era Vargas, nas favelas cariocas, é a policial, e que aparecia para reprimir “comportamentos indesejados”, como rodas de samba e capoeira, e rituais religiosos. O governo Vargas poderia contar com as escolas de samba no esforço de propagação dos ideais nacionalistas, fenômeno esse que não foi restrito ao Brasil, e sim uma realidade que solapou o mundo no período entre guerras. Não há, portanto, “manipulação” pura se não houver o desejo de “ser manipulado”. Nenhuma relação se estabelece em mão única. Os dois lados estabelecem seus interesses, conquistando vantagens, cedendo em alguns pontos, ocasionando assim uma relação que se estabelece no terreno da “aliança” do “pacto”, no campo da “negociação e do conflito”. Essa é a chave do capítulo 1, como o processo de segregação da Primeira República, não conseguiu se fazer hegemonia no plano local e nem tão pouco no plano nacional. O projeto positivista seria substituído por outro integrador, o olhar sobre o popular se modificaria, com o fortalecimento dos estudos sobre o folclore se tentaria dar ao povo o sentido de uma cultura nacional. O samba, o rádio, a imprensa e diversos outros agentes seriam fundamentais nessa tarefa. Com essa disposição das duas partes, isto é, Estado e povo, estabelece-se um complexo jogo de negociação e conflito com a participação ativa de diversos mediadores culturais. É essa gama de agentes que eleva a escola de samba à condição de espetáculo maior da cidade. Mas esse processo se dá com ativa participação dos sambistas, é isso que tento provar na primeira parte. A escola de samba ajuda o grupo a se apropriar das situações políticas criadas para mudar diversos valores a seu favor. 254

Paulo da Portela se torna uma figura conhecida na cidade, tem reuniões constantes com políticos, viaja o país representando a Portela, era pessoa frequente nas redações jornalísticas (FARIAS, 2008). O plano tinha dado certo, as escolas cresceram, mas com elas cresceu o interesse de todos por seu capital social, sua força política, sua potência carismática. O crescimento do espetáculo recheou as escolas de novos atores, que modificariam de forma definitiva sua forma de se organizar, apresentar e se relacionar com sua comunidade. É aqui que aparece a trajetória de Candeia na Portela. Conforme relatamos, nos anos de 1960 o Salgueiro, impressiona com um novo padrão de desfile carnavalesco. O desfile tinha sido todo elaborado pelo artista plástico Fernando Pamplona. A coreografia foi toda elaborada pela bailarina negra Mercedes Baptista do corpo oficial do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O enredo performático, com alas distintas e bem vestidas, levou a escola ao campeonato. O Salgueiro é um exemplo de escola que se articulou com o crescimento das escolas de samba no Rio de Janeiro. Ela detinha muito menos prestígio que Portela e Mangueira, por isso trouxe para dentro da escola diversos profissionais que indiretamente participavam do desfile, seja na crítica, na consultoria artística, ou no próprio corpo de jurados do desfile. Fernando Pamplona antes de ser carnavalesco era jurado, se seu desfile agradou o júri e a crítica mais geral da cidade estava ai criada uma “tendência irresistível” a seguir o modelo adotado pelo Salgueiro. Antes as quadras eram precárias e mínimas. A frequência era muito limitada à comunidade, sambistas de outras agremiações e algumas figuras ilustres (como políticos, jornalistas) que por vezes apareciam por lá. Antes de todas as escolas, o Salgueiro levou seu ensaio para o Clube Maxwell na Tijuca, ficou lotado. As outras quadras também se ampliaram e passaram a receber público cada vez maior nos fins de semana. Nos anos 70 a Mangueira inaugurava o seu Palácio do Samba, uma quadra mais moderna pronta para atender o público com mais conforto. Na mesma década a Mangueira era o maior cliente da cervejaria Brahma no Rio de Janeiro. Era uma nova época para os desfiles, a transmissão televisa atingia (em video-tape) pelo menos 25 países na década de 60. Era a principal atração turística da cidade e como contou o jornalista Sérgio Cabral, quando a classe média descobriu que era seguro frequentar as quadras todas ficariam lotadas no fim de semana. Essa tamanha quantidade de interesses modificaria a escola, mas 255

outroelemento seria ainda mais decisivo nesse jogo, a chegada dos barões do jogo do bicho como patronos das escolas. Ao apoiar uma escola de samba ou um clube de futebol, o patrono “limpava” seu dinheiro e sua imagem de contraventor. Ao ser um mecenas daquela comunidade se tornava uma referência local importante, ganhava favores na sociedade, elegia vereadores e etc. Hoje, o presidente da escola de samba Beija- Flor de Nilópolis governa a cidade da escola, tem vários vereadores e uma tremenda legitimidade com a comunidade. A Portela tinha o seu bicheiro, o amigo pessoal de Paulo da Portela, Natal. Foi durante a gestão vitoriosa de Natal que Candeia acendeu como compositor da escola. Aqui o tempo já era outro e as coisas estavam bem diferentes do tempo de Paulo. Paulo da Portela, analisa Farias (2008),“não assistiu as transformações que se iam desenhando no carnaval carioca, em consonância às transformações materiais e simbólicas vivenciadas pela cidade (e o país), tendo seu momento dinâmico na década de cinquenta. Sua morte prematura, o tinha impossibilitado de assistir a entrada em cena de um conjunto de trabalhos intelectuais e artísticos imbuído do intuito de redefinir a participação e situação da população negra no país e a valorização de uma estética afro-brasileira”. Paulo, também, ainda segundo o autor, não viveu por completo a situação na qual o comando político e estético do sambista e da escola de samba foi gradualmente cedendo lugar a novos atores - carnavalescos, patronos, aderecistas etc.– afinados com a racionalização instrumental das ações capazes de garantir política e economicamente a monumentalidade do desfile, garantindo divulgação nacional e internacional para o desfile das Escolas de Samba, tal como afirma Farias (2008), “a intenção cosmopolita do samba balizou o projeto cultural de Paulo. É fruto da colisão entre o sentido da direção tomada pelo encadeamento de relações na base do carnaval da cidade com a intençãopioneira de Paulo de emancipar a população negra como grupo étnico, a partir da valorização das expressões culturais afro-brasileiras como objetos de lazer e entretenimento para desfruto de todos”. Paulo precisava agir dentro de um campo muito mais pantanoso que nosso segundo personagem, Candeia. Mas, de alguma forma, Paulo atuou sobre as condições subjetivas e objetivas de seu tempo, seu plano – mesmo que historicamente diferente do de Candeia – era modificar simbolicamente o lugar da 256

cultura negra no Rio de Janeiro, elevando a escola de samba e com elas sua comunidade. Paulo viveu o período em que os elementos da ascensão social do sambista começaram a aparecer com mais força já perto de sua morte, viveu dentro deste ambiente de negociação entre escolas e outros agrupamentos sociais. Paulo, acima de tudo, viveu no momento de integração cultural que tinha na cultura do samba sua maior chave. Candeia não, sua fase mais engajada se alinha com o período de reafirmação da questão racial e com o clima de engajamento político do artista em um país solapado por uma ditadura militar. Vive também a crise da visão folclórica, para Candeia qualquer projeto cultural era um projeto político e pedagógico de esclarecimento das pessoas articuladas à cultura afro-brasileira. Na tentativa de pontuar os processos, posso resumir em alguns pontos a trajetória das escolas de samba no período analisado. Como já sabemos, as escolas de samba nascem no final dos anos de 1920, e em menos de vinte anos estariam ocupando papel privilegiado nos festejos do carnaval carioca. Podemos destacar aqui algumas fases fundamentais:

a) Os tempos de Luta por Integração: Data de sua fundação, até sua afirmação na chamada Era Vargas. Trata-se de entender como o samba, manifestação cultural dos segmentos mais discriminados e precarizados da cidade toma relevo na cidade. Ampliando seu patrimônio e estabelecendo trocas com segmentos das elites, e da classe média urbana o movimento das escolas de samba vai aos poucos ajudando a modificar o lugar do negro e sua produção cultural na sociedade carioca. Dentre os trabalhos que analisaram este período destaquei a pesquisa pioneira de Vianna (1995), ainda Fenerick (2003), Cunha (2001), Soihet (2003), Sodré (1985) e Moura (1983 e 1987); b) Os tempos de afirmação: O novo projeto de país apresentado no Estado Novo modifica o consenso político estabelecido no período anterior, inserindo o povo e suas manifestações culturais em um novo pacto político. Mesmo que dirigido por cima o país toma um clima de valorização do popular e sua produção como essência da identidade nacional. As escolas de samba, inclusive por suas 257

próprias estratégias, inserem-se nesse projeto estabelecendo espaços de negociação com o Estado (nesse período o Estado passa não só a organizar os desfiles como pressionar “enredos” às Escolas de temas de seu interesse). Tupi (1985), Soihet (2003), Augras (2004) e Lopes (2004) são importantes trabalhos de pesquisa sobre o período. Além do valioso compêndio de entrevistas e pesquisas e fontes jornalísticas de Cabral (1974), este, fonte inesgotável de informações para o decorrer de toda a pesquisa. Estes também são tempos quentes, de disputa por acesso aos espaços de produção cultural entre Estado e comunistas, vale a leitura de Guimarães (2004) acerca do tema; c) Os tempos do mecenato, jogo do bicho e da academia: no final dos anos de 1960, as escolas de samba já ocupam espaço bastante privilegiado no cenário do carnaval carioca e é evidente que essa ascensão não se dará de maneira combinada a melhoria das condições de vida da parcela mais carente da cidade. É nessa época que surgem dois elementos bastante importantes no mundo do samba, o polêmico aparecimento do mecenas (normalmente na figura do contraventor, o “bicheiro” de nossos tempos) e a entrada de membros “externos” à sua origem em seu seio, isto é, estamos aqui falando da entrada de membros, em especial, da faculdade de belas artes (aqui seria cunhado o termo tão falado hoje no mundo do samba: academia), quer seriam carnavalescos, escultores, bailarinos e etc. Também começa a ficar mais intensa a participação de outros segmentos sociais no fazer desfile, na elaboração do enredo, e na arquitetura de carros alegóricos e fantasias. Nesse período podemos perceber a escola de samba com a cara de nosso tempo, ali está uma virada, a escola de samba vai deixando definitivamente de compor-se como patrimônio “exclusivo” de sua comunidade. Nilton Santos (2004) é uma importante fonte para compreender esse debate, ao realizar uma longa série de entrevistas com a carnavalesca Maria Augusta, partícipe fundamental daquele período. Goldwaisser (1975) e Castro (1999 e 2006) realizaram importante 258

etnografia acerca da elaboração dos desfiles e do dia a dia das escolas, sendo fonte importantíssima para compreender a época; d) A dualização de projetos: no início dos anos de 1970 começam a ocorrer, sejam dentro ou fora das escolas de samba, discursos de crítica ao crescimento excessivo das Escolas, nesse tempo figuras como Cartola, Paulinho da Viola, Candeia e tantos outros começam a expressar o seu descontentamento com o rumo dos desfiles. Intelectuais de diversos segmentos também começam criticar. É o tempo da “Super Escola de Samba S/A”, nome de samba de Aluízio Machado, onde a última palavra é dada pela tríade, bicheiro- carnavalesco-patrocinador. Foi em 1975 que ocorreu o analisado racha na Portela de Candeia e outros sambistas, que saíram para fundar a GRANES Quilombo. Daí em diante começa a se fortalecer um projeto alternativo as escolas tradicionais, alguns anos depois são criados o Clube do Samba de João Nogueira e o Cacique de Ramos, espaços que além de alternativos denunciam as dificuldades do sambista nas escolas tradicionais.

Candeia é uma personagem que surge na terceira fase, no fortalecimento do mecenato do bicho e da "invasão" da escola de belas artes. Em um primeiro momento, como mostramos no capítulo anterior, Candeia está absolutamente com a trupe mais tradicional do samba, em outro momento seu engajamento constrói um rompimento com a marcha de espetacularização da festa carnavalesca. O Candeia da primeira fase elaborou sambas nacionalistas, afinados com o clima dos anos 40/50, Candeia só começa a questionar quando os alicerces centrais do poder na escola de samba mudam de mão, quando aparece o mecenato do jogo do bicho aliado a presença de profissionais das belas artes nos desfiles. Pelo seu acidente, pela forma como retornou ao samba, pelo respeito que já tinha, Candeia se tornou o líder de um "Quilombo" insatisfeito, sua produção artística engajou, e acabaria por seguir o caminho de tantos outros sambistas na recente MPB, se afastando definitivamente das escolas de samba. Em entrevista ao Jornal do Brasil, no dia 17/12/1997, o sambista Martinho da Vila explica um pouco esse ambiente: “não tinha jeito, as escolas maiores foram sendo quase assaltadas, sério. […] A maior parte dos sambistas foi para outra seara, eu mesmo fui fazer as 259

minhas andanças, até que a Russa virou presidente da Vila Isabel e eu voltei com tudo”. Aqui está a diferenciação fundamental de Paulo da Portela e Candeia. Paulo articulou a unidade de dois mundos aparentemente separados, digo aparentemente, pois nunca estiveram completamente descolados. Tornou-se um articulador fundamental da integração racial pela cultura, já Candeia um crítico da subordinação desta integração, que tomaria proporções muito maiores em seu tempo. Candeia de alguma forma vai romper com o movimento original das escolas de samba, de entusiasmo com a integração com o restante da sociedade. Em Candeia a reparação ultrapassa a integração. Afinado com o novo discurso racial, nosso personagem quer denunciar a exploração a qual o negro foi (e é) submetido, e exige reparação, a forma escolhida: a conscientização. São outros tempos, os estudos raciais avançam e se aproximam das pesquisas acadêmicas estadunidenses sobre o tema, a influência da luta por direitos civis e as lutas pela descolonização africana agitam o planeta. Candeia se filia ao Movimento Negro Unificado. Prestigia Paulo da Portela em seu discurso, mas salienta que falta algo, e o que falta é conhecer o passado, a necessidade de ser um negro engajado. O Candeia da primeira fase usava os mesmos ternos que consagraram a estratégia de Paulo da Portela, “de pés e pescoço coberto”, o sambista elegante, “civilizado”, ordeiro. O Candeia da Quilombo usava roupas coloridas que remetiam a trajes africanos, estava abandonando a estratégia anterior. Abaixo reproduzo uma entrevista de Candeia no encarte de seu disco, Candeia 20 anos. Aqui fica clara a visão “africana” de Candeia, isto é, embora o país esteja dentro do clima de agitação black (me refiro a influencia estética e comportamental da música negra americana nos anos 70), ele mira para a África como matriz da cultura que o negro deve buscar. As fontes em caixa alta estão como no próprio encarte, veja:

“- Candeia, você está engajado no movimento negro? Candeia: - Houve a libertação dos escravos, mas não prepararam o negro pra assumir uma posição na sociedade. Não adianta libertar o negro para deixá- lo marginalizado no meio da rua, perambulando, assaltando, porque não tem o que fazer; ficando na ociosidade. Ele ficou escravizado por outro meio, sem o chicote, mas ficou alijado do processo de desenvolvimento social. Então se refletiu. Eu não procuro espelhar nada que se RELACIONE 260

COM O NEGRO AMERICANO, QUE NÃO ME INTERESSA. Eu recorro à CULTURAAFRICANA, À CULTURA MÃE, BÁSICA. Assim mesmo, essa sofreu um processo de violentação. Eu considero o negro brasileiro O MAIOR HERDEIRO CULTURAL AFRICANO. O NEGRO AMERICANO JÁ ESTÁ POR FORA DE TUDO, JÁ SOFREU UMA LAVAGEM CEREBRAL, já não está ligado às suas origens. É necessário que haja uma comunidade negra, de estudos afro-brasileiros. Tem muito negro que não pode participar de uma comunidade deste tipo. Eles estão distanciados e se europeirizaram. Oassunto é tão difícil QUE QUANDO A GENTE TOCA NELE, ELE GANHA UM ASPECTO DE RADICALIZAÇÃO. MAS SE SER RADICAL É DEFENDER AS NOSSAS COISAS, ENTÃO EU SOU RADICAL. O negócio é assumir uma posição, temos um espírito comunitário. O nosso movimento é aberto. Quando eu assumo que sou negro, as pessoas podem ver nisto um tom de agressividade”.

Candeia parte para o confronto, em outra época para o samba é claro, que de alguma forma vai criticar profundamente o espaço que antes serviu para integrar. Como em um jogo de acúmulo de forças Candeia acredita que não há mais necessidade de perder tanto na negociação e atiça o conflito. Na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), a GRANES Quilombo estava representada com delegados, ninguém menos que Lélia Gonzales, militante bastante conhecida da questão racial. Em uma conferência sobre direitos das mulheres negras, Lélia explica sua visão:

“Nós ainda temos um grande trabalho, pela frente no sentido de nos vermos como um país multi-étnico, com uma diversidade de manifestações culturais e onde o lugar do negro em termos culturais é a grande fonte na qual toda uma produção artística oficial vai se inspirar.Por um exemplo, que não é brasileiro, no caso do rock inglês vemos qual é o solo de onde brotou esse rock, onde é que os rapazinhos brancos, por exemplo de Liverpool, como no caso dos Beatles, foram se abeberar numa música negra vinda da Jamaica. No caso brasileiro é a mesma coisa. O que se constata é que toda uma produção cultural se faz em cima da apropriação do trabalho de produção dessa cultura negra que é evidentemente marginalizada. Podemos perceber inclusive, no nível da linguagem, um tipo de classificação que domina essa ideologia dominante. Em termos de música popular temos MPB e o samba que formam dois conjuntos que são classificados separadamente. Música popular brasileira é uma coisa e samba já é outra, que tem outro espaço do qual o “crioléu” não pode sair. Portanto, todo um trabalho, nos mais diferentes níveis dessa realidade brasileira tem que ser efetuado no sentido de sensibilização, de mobilização para a questão negra. No meu caso, fiz um tipo de escolha, que foi a militância de rua, participando de organizações negras, de seminários, na medida em que nós, os intelectuais negros orgânicos somos tão poucos, realmente existe um grande leque de atividades para poder responder às exigências que nos são colocadas. E, ao mesmo tempo, existe uma militância, no nível do movimento (negro), que, a meu ver, é de uma grande importância de atuação nos meios não negros”.

261

O engajamento artístico dos anos 60/70 é também um tensionador da vida de Candeia e diversos outros sambistas que se articularam com espaços como o CPC da UNE na elaboração de projetos artísticos engajados entre membros do CPC e artistas populares. Foi assim o Teatro Opinião de Nara Leão, João do Vale e Zé Keti. O que importa é que dentro deste ambiente profícuo a Quilombo se tornou espaço de escape para os sambistas e ativistas da cultura negra. O samba no Rio de Janeiro nunca mais seria o mesmo dai em diante, não só por culpa da Quilombo, mas porque as escolas de samba perdiam uma parte dos seus membros para outros movimentos artísticos. Em entrevista ao Correio Brasiliense, no dia 22/01/78, Candeia e Paulinho da Viola explicam a necessidade do engajamento dos sambistas.

“Paulinho da Viola – Eu acho que as pessoas estão pegando aspectos isolados. O negócio não é esse. Nós temos de pegar aquilo que aconteceu. Primeiro nós temos de fazer um levantamento da história do samba. O que ele significou, como ele surgiu, porque/em que condições/quem eram as pessoas que faziam isso no começo, em que condições elas faziam, o que eles diziam, o que eles comiam, o que eles pensavam, porque eles tomavam cacete. Candeia – Isso que você tá falando aí é o que eu considero cultura própria do sambista, que é onde se choca com “esses caras” que não têm vivência, esse conhecimento. Isso exatamente, em termos objetivos: a comida, a vestimenta, o linguajar, tudo isso faz parte dessa cultura”.

E seguem debatendo:

“Paulinho da Viola – É, os sambas enredos são escolhidos arbitrariamente, não existe democracia nas escolas, quer dizer, o povo da escola não vota, isso é que tem que ser denunciado, entende? Não existe um Conselho Fiscal que seja representativo de escola, essas coisas todas têm que ser denunciadas. Candeia – O sambista não tem participação ativa no samba... PV – Participação ativa no samba. Uma escola hoje é uma coisa abstrata, quer dizer, quando uma escola deveria apesar de, aquele negócio que a gente falou na entrevista, apesar de: compromissos com turismo, e coisa e tal, apesar de ser uma coisa já infiltrada e tudo, deveria, (deve) prevalecer dentro da escola valores que são fundamentais à manutenção do samba, quer dizer: uma escola de samba o que é? Implica inclusive no seu patrimônio, na sua história, no seu patrimônio cultural, quer dizer, o que é o que é? Todos os seus elementos antigos, toda a história daquilo ali, o acervo, a maneira como se dançava, os sambas tradicionais, escola de samba. [...] C – Pra tentar mostrar é que a criação da Quilombo tá aí. Pra tentar mostrar o que era o jongo, a capoeira, o samba de roda, o samba de caboclo, uma série de manifestações que praticamente estão em extinção, tá igual à fauna, que o homem chegou lá e depredou. Então, pra manter esse tipo de coisa, é necessário que haja uma lembrança viva, porque sem as coisas 262

tradicionais, a coisa se perde realmente. Porque nossos filhos vão perguntar dentro de pouco tempo, nossos netos, talvez, sei lá, o que foi o sambista. […] PV – Sambistas: vocês precisam tomar consciência com relação ao que está acontecendo, porque o que está acontecendo é o seguinte, todo sambista tem que tomar conhecimento do que está acontecendo, todo sambista, quer dizer, todos aqueles caras que têm realmente um vínculo, ligados à escola, tudo aquilo que tem sido feito até hoje com relação às escolas é um negócio que precisa ser esclarecido, precisa ser discutido, como estamos discutindo aqui. É que parece que existe um complô, a impressão que se tem é que tudo que existe nos ambientes todos de escola de samba, é sempre no sentido de apagar uma memória, rapaz, apagar no sentido assim de dizer: “O passado foi uma coisa que morreu”.

Aqui é como se o grupo dos sambistas começassem a ter suas "lideranças", seus "intelectuais", e esse discurso não iria criar propriamente cisões, mas criaria reordenamentos, modificaria as escolas de samba por dentro e por fora. Em entrevista concedida a revista Manchete de 22/03/1985, o sambista João Nogueira explica a continuidade da crise da Portela, já depois da criação da Quilombo e da morte de Candeia:

"perdemos tudo, chegou uma hora que o Nézio [filho do bicheiro Natal], já tinha articulado uma série de reuniões para fazer uma resistência, aos poucos eles foram nos empurrando para fora e nós criamos a Tradição, que tem eu e Paulo César Pinheiro como compositores do samba deste ano".

Achei muito importante citar a entrevista anterior de Candeia nas conclusões da pesquisa. É muito relevante ver Candeia e Paulinho da Viola juntos no mesmo debate. As fotos dos debates e atividades culturais da Quilombo mostram um grupo muito grande de sambistas conhecidos frequentando o espaço, mesmo que parecendo repetitivo cito mais uma passagem da entrevista, onde Candeia conclama Paulinho e esclarece seu engajamento70:

“Candeia - Certo, Paulinho. Agora, uma coisa que era muito importante, não parece nada, mas que tem que ser dito alto e bom som, é de que, eu sei que é teu pensamento também, falo por você, no caso, de que toda a nossa luta, todo nosso trabalho, pra não ser confundido, nós não temos nenhum interesse político, não pretendemos ser diretor da Portela, nós falamos como sambistas, pelo que vivemos, certo? Quer dizer, por trás de nossa posição, não existe nada a ser escondido. Não tenho pretensão, não quero ser diretor, não quero ser tesoureiro, não quero honraria, não quero receber

______70RABELLO, João Bosco. “Escola de Samba. Cultura Popular”. Correiro Brasiliense. Suplemento Especial. 22/01/1978. 263

nada assim pra mim. Com toda sinceridade, mal comparando, não vou dar uma de Pelé, cruzar os braços e dizer que tá tudo bom, uma democracia bonita, e tal, igualdade, tudo jóia, certo? Dar uma de Pelé e deixar o barco pegar fogo. Então, nosso trabalho, é claro, não estamos lutando em honra própria, mas e até por aqueles que não têm condições de falar, eu às vezes até chamava a atenção do Paulinho e dizia: “Olha, Paulinho, você tem, quer queira, quer não, uma posição de liderança perante esse pessoal, eles esperam que você... tem que chegar e falar, porque a gente tem realmente que falar”. […] PV - […] A gente, você já cansou de ver anúncio, assim, não tô falando que o turismo fez isso, entende, mas a gente já cansou até de anúncio. Eu já vi um anúncio do Haiti, para Executivos, que era uma mulher seminua, sabe, com o seio de fora, sabe, era um convite para negócios pro Haiti e pra ser lá, pra uma ilha dessas, Havaí, não sei onde é que é. Era uma mulher com o seio de fora, entendeu? Eu já vi declaração de nego, aqui, de autoridades aí, dizer que o que nós temos que vender mesmo é mulher pelada, e que nós temos que vender mulher, futebol, samba, essas coisas todas. Que isso é que nós temos que vender. Turismo daqui, não pode vender outra coisa. Quer dizer, existem essas implicações, que precisam ser analisadas, entende? O que eu sinto é isso. O que tem de ser denunciado, rapaz, é essa coisa arbitrária, que vem de cima pra baixo, dentro de uma escola de samba. Quer dizer, um cara se arvorar e dizer: EU mudo o samba-enredo, EU decido o que é isso, EU faço isso, EU faço aquilo, ou então vira outro e diz: “quem não estiver satisfeito vá para a arquibancada”. É isso que tem que ser denunciado, quer dizer, nenhuma escola de samba... C – Brasil, ame-o ou deixe-o...? PV – Não... é o cara chegar e dizer: olha aqui, quem não estiver satisfeito que vá pra arquibancada. Isso aí... C – É uma coisa altamente fascista. PV – Então, isso aí é que ... eu acho que... Quer uma sugestão para matéria? Abre a matéria assim: “QUEM NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ PRA ARQUIBANCADA”. Ou “O SAMBISTA QUE NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ RECLAMAR NA ARQUIBANCADA”. “Pronto, é assim que a gente tem que abrir a matéria”.

Em quatro capítulos tentei remontar essa travessia ao estrelato das escolas de samba do Rio de Janeiro. Uma tentativa de colaborar na busca dos “mistérios”do samba carioca. Minha preocupação foi mostrar como um grupo oprimido da cidade viu na cultura um potencial espaço de integração social e mudança qualitativa do seu lugar na sociedade; depois uma parte deste grupo se desprendeu da marcha ao espetáculo e se engajou na denúncia e na luta por equidade racial. As escolas de samba foram (e talvez ainda sejam) o elemento central do carnaval carioca, até os anos 80 concentravam toda a atenção dos sambistas. O rompimento de Candeia acontece em um momento que outros espaços iriam começar a rivalizar com as escolas tradicionais, não só no Quilombo. Os subúrbios cariocas presenciaram o nascimento de novos movimentos artísticos como o Fundo de Quintal e o Cacique de Ramos que aos poucos ganhavam a comunidade para um carnaval mais espontâneo, de rua. Como revelei também nesta pesquisa, uma 264

parte da juventude negra se encaminhou para o movimento da black music estadunidense, valorizando mais uma estética comportamental negra. Esse movimento, que não parece agradar tanto Candeia, de qualquer forma ajuda atiçar a valorização de uma estética baseada em valores étnicos. Se antes a ideia era usar o terno e se parecer com os frequentadores do centro “civilizado” era porque existia um motivo, ou mesmo uma vontade dos grupos segregados de se integrar, o que levantamos com Candeia é o fortalecimento do engajamento racial dentro da arena artística. Candeia segue o movimento questionador de seu tempo e propõe transformar a escola de samba numa máquina de disputa e memória. Não distanciando tanto Candeia e Paulo, podemos lembrar que Paulo, no fim da vida, se candidatou a deputado e uma de suas bandeiras mais fortes era a criação de escolas públicas, dentro das escolas de samba, para os filhos dos sambistas, com uma disciplina específica: História da África. Paulo era um entusiasmado com o projeto integrador da Era Vargas, um homem cívico, sem formação escolar ou política, era lustrador e sambista e se tornou o maior relações-públicas do universo do samba carioca de seu tempo. Candeia viveu em um mundo onde ser negro, e o complexo das relações políticas e artísticas,já era um bocado diferente do "ser negro" no tempo de Paulo da Portela. No tempo de Candeia, diversos artistas negros se tornaram porta-vozes do seu grupo e foram buscar no engajamento acerca da questão racial a realização da atividade política. Possuem um sentimento de valorização bastante militante do universo da cultura negra. Recria-se uma África diferente daquela criada na casa de Tia Ciata nos meados de 1920, naquela, o que valia era a presença viva dos rituais sincretizados. Nessa “nova África” o que vale é a pesquisa, e o fortalecimento do ritual original como forma de afirmar e singularizar o papel do negro em nossa sociedade. Se eu for falar de vencedores diria que quem venceu fora a escola de samba, tendo em vista, que a agremiação de Candeia não durou muito tempo (embora tenha sido "reativada" nos anos 90) e as escolas de samba aí estão até hoje, cada vez mais monumentais. Mas também respondem cada vez menos pela totalidade dos festejos carnavalescos, principalmente no mesmo setor que ajudou a criar a Quilombo. Afastaram-se mais de suas comunidades, mas ainda dizem muito delas, basta chegar fevereiro na periferia carioca e ver os vários aparelhos de televisão 265

colocados na porta de casa esperando a Portela, a Mangueira, a sua escola de coração passar. Em um Brasil de revoluções passivas, nenhum projeto que abarcasse um consenso tão restrito como o de Candeia, e o do próprio movimento negro de seu tempo teria facilidades de se fazer hegemônico, mas a história não é e não pode ser contada a partir só das grandes estratégias “vencedoras”. O projeto de Candeia e tantos outros representaram uma vontade muito forte de enfrentamento àquilo que levou as escolas de samba ao apogeu, a sua capacidade de se articular com os diversos segmentos da sociedade, Estado, Instituições, e etc. Candeia se articulou a resistência dos movimentos sociais, tempos românticos e sectários, porém cheios de sentido e carentes de investigação. Candeia e outros sambistas estimularam e foram partícipes de um rico movimento cultural que até hoje solapa os mais engajados. Não se trata de entender os contemporâneos de Paulo da Portela com complacências, trata-se de entender as estratégias empreendidas pelo grupo negro de Oswaldo Cruz em busca de afirmação na cidade. Em tempos diversos e com acúmulos diversos nossos personagens irão se movimentar se tornado referências fundamentais de seus grupos. Paulo se tornou a referência maior para os sambistas mais tradicionais, isto é, busca a saída para os descaminhos carnavalescos no passado. Mas esse passado, como comentei no capítulo anterior, não estará livre da racionalização de Candeia. Segundo o compositor, os sambistas "do tempo de Paulo da Portela", precisavam de diversas estratégias (de negociação) para sobreviver a rígida vigilância e exclusão social. Nesta tônica, Paulo continua um herói para Candeia. E, como tenho afirmado no fim desta pesquisa, a principal dificuldade de Candeia na Portela teria sido sua falta de autonomia, o mesmo espaço que Paulo aos poucos foi perdendo, embora, sua morte prematura o tenha privado disso completamente. No estilo de samba, Candeia rumou à liberdade e reorganizou o ambiente sociocultural do samba carioca. Concluo com mais um de suas canções:

Está chegando a hora agora Eu quero ver Quem vai sair Quem vai chorar Quem vai ficar de fora 266

Vou viver na avenida O que se deixa da vida Vou sambar até o sol raiar

Nosso enredo já não é segredo de ninguém Mas temos medo Pois o samba custe o que custar Vai Ganhar E vai levar a melancolia Desta vida desigual A razão da alegria Do povo é samba, é carnaval

A razão da alegria Do povo é samba, é carnaval 267

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