ARTIGO

A VERVE FANTÁSTICA DE UM NATURALISTA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NARRATIVAS FANTÁSTICAS DE ALUÍSIO AZEVEDO*1

Karla Menezes Lopes Niels**

Resumo: o nome de Aluísio Azevedo tem sido apontado pelas historiografi as e pelos manuais esco- lares como o principal nome do Naturalismo no Brasil. Entrementes, cabe-nos perguntar: teria Aze- vedo escrito somenos literatura naturalista? Ou teria ele enveredado por outras vertentes literárias? O presente artigo se ocupará em responder tais questões, apresentando inclusive alguns aspectos de outro tipo de literatura produzida pelo autor.

Palavras-chaves: Aluísio Azevedo. Fantástico. Literatura Brasileira.

UM ESTRANHO NO NINHO

nome do romancista maranhense Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo sempre esteve atrelado à estética real-naturalista, afi nal tem sido apontado pelas historiografi as literárias O e pelos manuais didáticos como o próprio iniciador do movimento literário, em terras tupi- niquins, ao lado de . Os romances: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado, e O Mulato (1881), de Azevedo, teriam sido, portanto, o marco zero do real-naturalismo no Brasil. Se afi liação do Bruxo do Cosme Velho ao real-naturalismo (ou à qualquer escola) tem sido problematizada pela academia (BERNARDO, 2011; ROCHA, 2013; LEMOS, 2014), a afi liação de Azevedo ao naturalismo é consensual entre os estudiosos, haja vista a valorização das obras de caráter

* Recebido em: 26.11.2019. Aprovado em: 03.07.2020. ** Doutora em Literatura Comparada (UFF). Professora de Língua Portuguesa e Literatura da SEEDUC/RJ. E-mail: [email protected].

DOI: http://dx.doi.org/10.18224/gua.v9i2.7890 Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição Sem Derivações 4.0 CC

, Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 | eISSN 2237-4957 65 , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 66

estritamente documental, como O mulato (1881), Casa de pensão (1883), O homem (1887) e O cor- tiço (1890), em detrimento aos chamados romances-folhetins como Uma lágrima de mulher (1879), Memórias de um condenado (1882), Mistérios da Tijuca (1882) e A mortalha de Alzira (1891). Sobre seus romances-folhetins, o historiador Jean-Yves Mérian dirá que o maranhense se violentava ao levar em conta “o gosto dos leitores e as condições do mercado do livro no Brasil [...] em razão de sua situação financeira” (MÉRIAN, 1988, p. 436) ao produzir um tipo de literatura que se desviava do projeto naturalista por ele empreendido. Como é sabido, Azevedo teria sido o primei- ro autor no Brasil a viver e sobreviver única e exclusivamente de seu labor literário. Explicar-se-ia então por essa via o surgimento desde romances real-naturalistas até aos romances melodramáticos e às narrativas fantásticas e detetivescas que agradariam à massa de seus leitores (BOSI, 2006, p. 188; MÉRIAN, 1988, p. 436; MENÓN, 2011, p. 7). Um bom exemplo certamente é a tiragem da primeira e da segunda edição, em livro, de A mortalha de Alzira. Essas comprovam que a narrativa caíra nos braços do seu público leitor, corrobo- rando assim o argumento de Mérian. De fato, as tiragens de ambas as edições impressionam bastante para a época. A primeira edição, de 1894, contou com mil exemplares enquanto a segunda, de 1895, teve uma tiragem de dez mil exemplares, segundo dados levantados por Lainister de Oliveira Esteves (ESTEVES, 2014, p. 5). Um aumento de 900% no número de exemplares de um ano para o outro é um forte indício de que o romance fora um sucesso de vendas. Cumpre observar que o historiador José Veríssimo, ao abordar a produção de Aluísio Azevedo, não faz quaisquer menções nem aos folhetins “pastelões” (cf. Bosi, 2006, p. 188) nem à sua produção de cunho fantástico, como o romance A Mortalha de Alzira, os contos Demônios (1891), O Impeni- tente (1893), Polítipo (1893) e Último Lance (1897) ou mesmo ao romance policial Mattos, Malta ou Matta?2 Sobre esses, dirá somente serem de “pura inspiração industrial” e, por isso, de valor inferior àquela produção que “trouxe à nossa ficção o mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita da sua figuração, maior interesse humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão mais apurada, em suma uma representação menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir” (VERÍSSIMO, s/a, p. 142). Essa visão aparentemente negativa de Veríssimo moldaria os juízos de outros historiadores que viriam após ele, ao ponto de explicarem a produção de uma ficção menos preocupada com as de- núncias político-sociais e mais dada ao folhetinesco à dependência financeira do autor do seu ofício de escritor. Na verdade, tratam-se de juízos nada levianos, uma vez que apenas reproduzem o que o próprio Azevedo dissera aos seus leitores no prefácio da edição de 1894 de A mortalha de Alzira:

vou explicar aqui a razão de ser deste livro, porque isso pode interessar às poucas pessoas que conhecem minha obra literária e acompanham, desde 1880, o evolucionário movimento artístico do Naturalismo no Brasil. É uma satisfação que dou aos homens de letras que me to- mam a sério. A Gazeta de Notícias precisava de um romance e encomendou-o, determinando logo, já se vê, o caráter literário que ele devia ter. Não fazia questão de mais ou menos en- redo, contanto que a obra, longe de ser naturalista, fosse bem romântica e bem phantasiosa; obra enfim que pudesse convir ao paladar da grande massa de leitores sentimentais de que na , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 67

maior parte se alimenta aquela folha, mas que ao mesmo tempo não caísse no completo des- agrado daqueles que não admitem obra sem arte, sem verdade. Como veem, a tarefa não era das mais fáceis. O trabalho, porém, seria bem remunerado, ficando-me ainda a propriedade do romance/e o direito consequente de publicá-lo em volume (AZEVEDO, 1894, p. 20).

Ele aceitou o desafio, pois precisava “repousar um pouco o espírito num romance de phantasia” (AZEVEDO, 1894, p. 20) e criar para si mesmo um adversário literário. Sem contar o fato de que seria bem remunerado pela encomenda. Mas a condição imposta à Gazeta de Notícias foi que não assinasse a obra. Usaria o pseudônimo Vitor Leal, nome outrora utilizado por Pardal Mallet e na publicação do conto O esqueleto, um ano antes. No entanto, pouco tempo após a publicação do folhe- tim, Valentim Magalhães, em artigo publicado no Paiz, acaba por revelar verdadeira identidade do au- tor de A mortalha de Alzira; conduzindo-o a, enfim, assumir a autoria na edição em livro do romance. Não podemos saber se, de fato, era somente a questão mercadológica que movia o autor a pro- duzir uma literatura distante da escola real-naturalista ou se o prefácio seria uma forma de justificar o desvio perante à crítica. Entrementes, é importante destacar que esse romance seria somenos um projeto paralelo ao projeto real-naturalista por ele empreendido. Entretanto, cabe perguntar: não seria outra a explicação do desnível da produção do autor? Não teria ele emulado não apenas Émile Zola e Eça de Queiroz, mas, assim como Álvares de Aze- vedo, e Machado de Assis, bebido também de autores como Hoffmann, Allan Poe, Theóphile Gaautier e de outros nomes da ficção fantástica? Júlio França e Marina Sena acreditam que “Aluísio teria sim dado vazão a um modo de escrita que, além de não ser estranho à sua formação como leitor, oferecia uma forma adequada de expressão de sua visão de mundo: a prosa romântica, sobretudo de influxos góticos” (FRANÇA; SENA, 2014, p. 97). O romance A mortalha de Alzira (1891), por exemplo, “é indubitavelmente uma releitura de A morta amorosa de Teóphile Gautier que, por sua vez, foi gerado da semente deixada por Lewis” (MENON, 2011, p. 7) através do romance gótico The Monk (1796). O conto O impenitente, no que lhe concerne, trata-se de uma reelaboração do mesmo tema, a saber, a sobrevida à morte. Sobre o primeiro, Aluísio Azevedo, no prefácio da primeira edição em livro, afirmará ter sido aquele romance inspirado no conto do francês:

[...] o que separa principalmente às duas obras e dá-lhes caracter bem diverso, é que La Morte amoureuse tem a sua razão na lenda do vampiro; em quanto que a Mortalha de Alzira substitúe o truc’ maravilhoso do vampirismo pelos fenômenos náturaes que podem apresentar certas crises hystericas de um nevropatha (AZEVEDO, 1894, p. 28).

A afirmativa do autor certamente permite inferir que ele teve contato com esse tipo de litera- tura. Portanto, acreditamos que emulá-la não seria um defeito, mas parte de um projeto literário em curso, mesmo que paralelo ao seu projeto naturalista. Já o conto O impenitente, apesar de guardar estreitíssima relação com o conto do francês Gau- tier é praticamente compilação de uma lenda que rondava pelo de outrora. Em Assombrações , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 68

do Recife Velho, Gilberto Freyre recupera inúmeras narrativas provenientes da cultura oral do povo daquele estado, como a história de um frade e uma prostituta que parece ser exatamente a mesma de Frei Álvaro e Leonília (FREYRE, 1987, p. 33-34). Apesar de não se saber ao certo em que século circulara tal lenda na cidade de Recife, ou mesmo se ela viajou pelas regiões e pelos estados brasileiros, não se pode desconsiderar a estreita semelhança entre a crônica e o conto azevediano. Dois padres libertinos que seguem um fantasma crendo ser uma mulher sedutora e que por fim deparam-se com um cadáver preparado para ser velado e enterrado. Um expediente, cumpre assinalar, já usado antes por Álvares de Azevedo no segundo conto de Noite na Taverna (1855), “Solfieiri”. Azevedo não mudou praticamente nada no teor da lenda copilada por Freyre, apenas inseriu mais dados à narrativa: o nome da mulher e a relação que o Frei e ela mantiveram quando essa ainda era viva. Conforme Azevedo, a possível alucinação do Frei teria sido motivada pela

força de pensar nela, [e] foi tal o seu desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde re- zar, nem pôde dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou abertos, tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade e de desejo (AZEVEDO, 1983b, s/p).

Até mesmo o símbolo religioso deixado na casa da morta não foi esquecido. Se o frade da lenda esquecera um relicário, o Frei Álvaro deixara um crucifixo:

em seguida, olhou em derredor de si, desconfiado e tímido e, como não houvesse na sala uma só imagem sagrada em companhia da morta, desprendeu do pescoço o crucifixo e foi piedosa- mente dependurá-lo na parede, à cabeceira dela (AZEVEDO, 1983b, s/p).

Seja qual tenha sido a motivação do iniciador da escola real-naturalista no Brasil a escrever algo distante dessa estética, o fato é que ele produziu uma literatura de cunho imaginativo de valor que não pode e não deve ser ignorada. Por isso, o presente trabalho se debruçará sobre algumas das caraterísticas dessa sua produção, tomando por base dois de seus, Demônios e O impenitente.

DO DIA FEZ-SE A ESCURIDÃO

Para o romantismo, a dicotomia noite e dia, escuridão e claridade desempenha um papel im- portante para a construção do imaginário e da ambientação dos cenários, geralmente conferindo-lhes um ar onírico. A noite, na perspectiva de August Schlegel, uniria duas faces do ser: a humana e a monstruosa, a iluminada e a obscura, a demoníaca e a divina:

a luz do sol é a razão enquanto moralidade aplicada à vida ativa, na qual somos dependentes das circunstâncias da realidade. A noite, todavia, envolve-a com véu benévolo e, por outro lado, através dos astros, dá-nos uma visão das dimensões do possível; ela é o tempo dos , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 69

sonhos. [...] a noite é a mãe de todas as coisas, reitera-se na vida de cada pessoa: a partir do caos original e por intermédio do amor e do ódio, da simpatia e da antipatia, o mundo vai adquirindo forma para ela (SCHLEGEL apud PONCIANO, 2003, p. 73).

O fantástico surge em meio ao romantismo e dele herda esse gosto pelo soturno, pelo obscuro. Segundo o italiano Remo Ceserani, “a ambientação preferida do fantástico é aquela que remete ao mun- do noturno” (2006, p. 77). O português Filipe Furtado, ao falar dos cenários desenvolvidos a partir do romance gótico, dirá que tudo aparece imiscuído em um cenário ausente de “luz e cor” (1980, p. 124). Sendo assim, a narrativa fantástica oitocentista, seja romântica, seja pós-romântica privilegia um cenário soturno, pouco iluminado e acinzentado; por isso, os sistemas temáticos que apontam para a noite, para a escuridão e para o mundo obscuro tornam-se elementos próprios de uma ambien- tação que serve ao fantástico como ponto de partida para o desenvolvimento da ambiguidade narrati- va e, por conseguinte, do evento dúbio que propiciará a personagem e leitor hesitarem, titubearem e vacilarem frente a contemplação do evento insólito. É a noite em que o mal se evidencia, que os espectros aparecem, que as superstições se tornam mais afloradas e a percepção turva. Sem iluminação que permita ver claramente o que acontece, a imaginação humana torna mais suscetível a aceitação do sobrenatural. Sendo assim, a ambientação noturna torna-se essencial nesse tipo de narrativa. Como fora bem pontuado por Enéias Tavares e Bruno Anselmi Matangrano “os realistas e na- turistas [sic] não abandonaram a todo a fixação romântica por cenas mórbidas e paisagens noturnas. Antes, ampliaram esse escopo, passando a cogitar um cientificismo onipresente nas explicações reais ou ficcionais sobre o insólito” (TAVARES, MATANGRANO, 2018, p. 43). Em Demônios, de Aluísio Azevedo, toda a narrativa se passa em meio à escuridão de uma noite sem fim; aliás, ao nosso ver, esse é o ponto central nesta narrativa – o cataclismo do mundo que não amanhecera. O narrador acorda no meio da noite com a sensação de que dormira mais do que o pre- visto. Ao despertar, percebe que o dia ainda não amanheceu, a despeito da sensação de quem dormiu demais e passou da hora. Aos poucos, percebe que luz e sons vão desaparecendo paulatinamente. Até mesmo a luz da vela bruxuleia fracamente:

só então notei que a luz da vela, à semelhança do som do tímpano, também não era intensa como de ordinário e parecia oprimida por uma atmosfera de catacumbas [...] a miserável chama, de- pois de espreguiçar-se um instante, foi contraindo, a tremer, a tremer, bruxuleando, até sumir-se de todo, como o extremo lampejo do olhar de um moribundo. E fez-se então a mais completa e a mais cerrada escuridão que é possível conceber. Era a treva absoluta; treva de morte, treva de caos; treva que só compreende quem tiver os olhos arrancados e as órbitas completamente vazias; treva, como devia ter sido de existir no firmamento a primeira nebulosa (AZEVEDO, 1893, p. 18, p. 35).

Aquela escuridão inexplicável aterrorizava o narrador. E não apenas por causa da ausência de claridade, mas também pela impossibilidade de contar o tempo. Sem o nascer e pôr-do-sol, como lidar com a passagem do tempo? Como saber se passou um, dois ou três ou mais dias? , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 70

ó meu Deus! Se continuasse pra sempre aquela incompreensível noite, como poderia eu saber os dias que se passavam? Como poderia marcar as semanas e os meses? O tempo é o sol; se o sol nunca mais voltasse o tempo deixaria de existir; só haveria eternidade! (AZEVEDO, 1893, p. 33).

Aquela escuridão não somente lhe privava do sentido da visão, como também da possibilidade de controlar o tempo, um processo de involução da humanidade paralelo ao processo involutivo pelo qual passariam as personagens. É imperativo observar que a despeito de o espaço em Demônios ser a própria cidade do , a escuridão inexplicável em que se se encontra a cidade é que será responsável pela poten- cialização dos sentimentos de medo, hesitação e até repulsa. Quando o narrador decide ir até o encontro de sua noiva, Laura, para saber se ela também esta- va morta como os demais, se depara com uma rua demasiadamente escura, silenciosa, fria. Segundo França e Sena (2014), a cidade figura nesse conto como um genuínolocus horribilis, tomado por trevas e lama, assemelhando-se a um labirinto que o narrador precisa percorrer para encontrar a casa de Laura. Vejamos como o narrador descreve essa urbe.

Saí. Lá fora, na rua, o meu primeiro impulso foi olhar para o espaço. Estava tão negro e tão mudo como a terra. A luz dos lampiões apagara-se de todo, e no céu já não havia o mais tê- nue vestígio de uma estrela. Treva! Treva! Treva! Dispus-me a partir, tenteando [sic] o chão com os pés, sem despregar das paredes as minhas duas mãos abertas na altura do rosto. Passo a passo venci até a primeira esquina. Esbarrei com um cadáver encostado as grades de um jardim; apalpei-o: era um polícia. Não me detive; segui adiante, dobrando para a rua transversal. Começava a sentir frio. Uma densa umidade saía da terra, tornando aquela maldita noite ainda mais dolorosa. Mas não desanimei, prossegui pacientemente, medindo o meu caminho, palmo a palmo, e procurando reconhecer pelo tato o lugar em que me achava. E seguia, seguia lentamente. Já me não abalavam os cadáveres com que eu topava pelas cal- cadas. Todo o meu sentido se me concentrava nas mãos; a minha única preocupação era me não desorientar e perder na viagem. E la ia, la ia, arrastando-me de porta em porta, de casa em casa, de rua em rua, com a silenciosa resignação dos cegos desamparados. De vez em quando, era preciso deter-me um instante, para respirar mais a vontade. Doíam-me os braços de os ter continuamente erguidos. Secava-me a boca. Um enorme cansaço invadia-me o corpo inteiro. Ha quanto tempo durava ja esta tortura? Não sei; apenas sentia claramente que, pelas paredes, o bolor principiava a formar altas camadas de uma vegetação aquosa, e que meus pés se encharcavam cada vez mais no lodo que o solo ressumbrava (AZEVEDO, 1893, p. 37, 38).

A dificuldade de locomoção por causa da ausência de iluminação, dos cadáveres espalhados pelas vias e da vegetação lodosa se assemelha a sensação de se estar dentro de um labirinto sem con- seguir achar a saída. O caminhar por entre aquela vegetação, em que o pé afunda e quase imobiliza as pernas, é ainda dificultado pelos corpos espalhados pelas vias e, principalmente, pela total escuridão. , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 71

Sem lampiões nas ruas e sequer estrelas brilhando no céu para guiar o narrador em seu caminho, trilhá-lo se torna quase impossível. Será também durante uma noite silenciosa que O Impenitente Frei Álvaro, do conto azeve- diano, avistará “uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos ne- gros derramados” (AZEVEDO, 2018, s/p), mulher que o protagonista julga ser Leonília, sua outrora amante. A escuridão da noite silenciosa é cortada por um faixo de luz vindo de um cômodo da casa. Ao entrar e avistar o cadáver da mulher, as tochas que iluminavam a sala onde se encontrava o esquife “apagaram-se e fez completa a escuridão [...] lá fora, a noite se tinha feito também negra e os ventos se tinham desencadeado em fúria, ameaçando tempestade” (AZEVEDO, 2018, s/p). Observe-se que a ambientação do conto vai de uma noite silenciosa a uma noite escura e tem- pestuosa. A escuridão e a tempestade aumentam o medo sentido pelo monge ao ver que o cadáver naquela sala era de sua antiga amante. Seu desespero é tamanho que sai correndo temeroso que o fantasma da morta o perseguisse.

O ALÉM-TÚMULO E AS HISTÓRIAS DE FANTASMAS

A histórias que exploram as possibilidades de vida após a morte, bem como da imortalidade do ser, sempre permearam o imaginário humano. Com o advento do positivismo e do iluminismo, no universo da razão científica não cabia mais crenças religiosas que tentassem explicar por vias sobrenaturais o que acontece conosco após a morte. O que não queria dizer que o imaginário hu- mano abandonaria tais questões. Além da ambientação noturna, a vida dos mortos e seu retorno ao mundo dos vivos é apontado por Ceserani (2006) como um sistema temático recorrente na litera- tura fantástica:

também a vida dos mortos e de seu retorno não é um tema novo: basta pensar no Diálogo dos mortos, nas visitas ao além-mundo de grandes personagens (de Virgílio a Dante), nas bruxas e nos espíritos dos dramas shakespearianos, nas evocações dos romances cavalhei- rescos, no Fausto. Mas também esse tema, no fantástico, se constrói com novos aspectos. Interioriza-se. Liga-se a novas explorações filosóficas e experimentações pseudocientíficas, com o desenvolvimento das filosofias materialistas e sensitivas, das filosofias da vida e da força, dos experimentos sobre o magnetismo. A temática tem profundas raízes antropoló- gicas, e vínculos fortes com a vida material e as convenções sociais. Por um lado, as pul- sões do eros e os condicionamentos materiais e sociais; por outro, o novo modelo cultural sugerido pelo amor romântico (concebido como fusão e anulação total, quase magnética, de dois espíritos e dois corpos). Ambos produzem uma temática do imaginário que é feita de projeções fantasmáticas, sublimações extremas, espiritualizações do eros (CESERANI, 2006, p. 80).

A despeito do cunho moralizante do conto O impenitente, ele principia por apresentar o es- pectro de uma mulher que é avistado e perseguido pelo Frei Álvaro. Toda a narrativa gira em torno , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 72

do fantasma dessa mulher que parece retornar para lembrar e, quiçá, punir o Frei pela sua conduta pecaminosa e promíscua. As pulções do eros de que fala o italiano Ceserani, tornam-se ainda bastante evidentes na descrição que Azevedo faz do espectro, posto que, confere especial atenção à formosura do vulto percebido pelo religioso:

lá embaixo, no pátio, dentro dos muros do convento, um vulto de mulher passeava sobre o lajedo. Não podia haver dúvida! Era uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos negros derramados. Céus! E era Leonília!. sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra mulher aqueles cabelos tão formosos aquele airoso menear de corpo!

Se em O impenitente, a presença de um espectro é evidente, em Demônios surge sutilmente. Na primeira versão, que data de 1891, quando o narrador e Laura saem a caminho do mar tropeçando trôpegos por entre cadáveres e lodos, sentem a presença de almas sofredoras aprisionadas naquelas flores de fungo, bolor e lodo:

E continuamos a caminhar por entre aqueles monturos vivos, oprimidos pelo aflitivo resfo- legar de almas cansadas. De repente, Laura tremeu toda e cingiu-me medrosa contra o meu corpo. – Que tens tu, minha pobre flor? Ela me respondeu que dentre o respirar daqueles monstros, distinguia um gemido de dor. – Um gemido? E era humano? – Sim, sim! Disse ela, sem falar. E, nesse instante, outro longo e doloroso gemido veio confir- mar as palavras da minha companheira (AZEVEDO, 1891, s/p).

À medida que conversam com essas vozes, descobrem que estão ali aprisionados pelos seus maus feitos em vida, seu castigo eterno. A despeito do cunho moralizante do trecho, a imagens grotescas despertadas pela descrição servem à narrativa como forma de potencializar seu efeito receptivo. Estavam em meio a um cataclismo em que apenas narrador e a noiva pareciam ser sobreviventes dos que morreram, pecadores condenados a passar a eternidade presas num purgatório terrestre, que os sobreviventes precisavam atravessar:

[...] continuamos a derivar penosamente por aquele tenebroso labirinto de lodo soluçante. Aqui, era alguém que chorava as mortes por ele próprio cometidas; ali, já outro, carpia lá- grimas alheias que os seus feitos perversos provocaram; [...] E afinal tudo era já um clamor aflitivo de agonizantes, envenenados pelo próprio coração; um convulso e revolto estortegar de almas desesperadas, que se estrangulavam, curtindo as próprias fezes. [...] E as falas e os soluços subterrâneos não se calavam; e as palavras borbulhavam à flor do lodo, fervilhando como se viessem expelidas por um vulcão de cóleras humanas (AZEVEDO, 1891, s/p). , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 73

Se, na segunda e terceira versão do conto, a palavra labirinto não é utilizada por Azevedo em nenhum momento para descrever aquele cenário apocalítico em que se tornara a cidade do Rio de Janeiro, na primeira versão, ele o utiliza para descrever o cenário que formavam aquelas almas presas ao lodo, justamente porque, enquanto passavam, as vozes daqueles fantasmas os iam chamando, os fazendo desviar o caminho. Tudo o que desejava Laura era fugir depressa daquele lugar e daquelas vozes fantasmas. O trabalho com temas relacionados à sobrevida à morte não se dá somente pela aparição de espectros. Ao analisar La morte amoureuse, de Théophile Gautier, o teórico franco-búlgaro Tzvetan Todorov afirma que “na literatura fantástica, [a] necrofilia toma pelo general [sic] a forma de um amor com vampiros ou com mortos que voltaram a habitar entre os vivos” (TODOROV, 2012, p. 72). Afinal o vampiro seria um ser que conseguiu atingir a imortalidade e, assim como um fantasma, está num mundo que não lhe pertence, o mundo dos vivos. Da mesma maneira, a erotização de uma relação necrófila produziria o mesmo efeito estético do surgimento de um espectro ou um vampiro na narrativa. Se Aluísio Azevedo, em O Impenitente, estabelece um estreito diálogo com o Gautier, de La morte amoureuse, através da recuperação do frade e do espectro da prostituta, em Demônios uma va- riação do tema é retomada pela necrofilia, talvez num diálogo com o iniciador do fantástico no Brasil, Álvares de Azevedo3. Na cena em que o narrador vai até a residência de sua noiva para verificar se esta havia ou não sobrevivido ao cataclismo, encontra-a em estado letárgico, “tão fria e inanimada como os outros” (AZEVEDO, 1893, p. 46). Nesse momento, “ajoelha-se ao lado de sua cama e bei- ja-a profundamente cingindo-a contra seus braços: [...] se tua alma impaciente não esperou por minha alma, teu corpo será na morte o companheiro inseparável do meu corpo” (AZEVEDO, 1893, p. 48). O que parece ser apenas uma insinuação de uma relação sexual, na segunda versão do conto azevediano, trazia ares de luxúria e volúpia em sua primeira versão:

compreendia divinal e suprema volúpia do noivado de dous espíritos que se unem para sem- pre. Compreendi o dulcíssimo enlevo de Eloísa; compreendi o êxtase das virginais esposas de Jesus, quando, queimadas em vida, sorriam tranquilamente para o céu (AZEVEDO, 1891, s/p).

É importante ressaltar que, apesar de haver uma tentativa de amenização da cena necrófila pelo desmentido da morte pelo desmaio, isso não minimiza o efeito moralmente repulsivo da passagem e nem mesmo a morbidez da cena.

Considerações finais

Como dissemos antes, em O Impenitente, mesmo que Aluísio Azevedo recupere uma lenda que circulava por Recife, não podemos desconsiderar que há neste conto também uma emulação de La Morte amoureuse, do francês Gautier. Entrementes, se em O Impenitente, há uma reelaboração do conto francês, em Demônios, o maranhense é totalmente inovador. , Goiânia, v. 9, n. 2, p. 65-75, jul./dez. 2019 74

Aluísio Azevedo, mesmo na sua literatura chamada mercadológica, como é o caso dos dois contos aqui considerados, não abriu mão do cientificismo e de outras marcas de sua literatura natura- lista. Se no primeiro conto o espaço é indeterminado como é praxe na literatura de cunho fantástico; no segundo, o autor ocasiona a aclimatação do fantástico ao Brasil, ao privilegiar a cidade do Rio de Janeiro, capital brasileira naquele século, como cenário. O maranhense Azevedo em sua experimentação fantástica, especialmente empreendida no conto Demônios, parece unir o cientificismo da teoria evolucionista Darwiniana e o onírico do fan- tástico esboçando um tipo de ficção que poderíamos considerar como a narrativa precursora da ficção científica no âmbito brasileiro.

A NATURALIST’S FANTASTIC VERVE: CONSIDERATIONS ABOUT FANTASTIC NARRATIVES OF AZEVEDO

Abstract: Aluísio Azevedo’s name has been pointed to by historiographies and textbooks as the main name of Naturalism in Brazil. In the meantime, we must ask: had Azevedo written only naturalistic literature? Or would he have embarked on other literary strands? This article will deal with answer- ing such questions, including some aspects of other literature produced by the author.

Keywords: Aluísio Azevedo. Fantastic. Brazilian Literature.

Notas

1 O presente trabalho constitui-se em um recorte de minha tese: NIELS, Karla. Fantástico à Brasileira: mani- festações do fantástico no Brasil oitocentista. 2018. Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. 2 Reeditado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, em 1985, cerca de cem anos após a sua publicação e folhe- tim, atribuindo a sua autoria, antes indeterminada, ao autor de O mulato, Aluísio Azevedo. 3 No conto “Solfieiri” do jovem paulista Álvares de Azevedo há uma cena necrófila que é amenizada por uma possível catalepsia da donzela. Diferentemente, no entanto, do que ocorre no maranhenhe Aluísio Azevedo, após a morte de fato da moça, o narrador a enterra sob seu leito, ratificando sua tendência necrófila.

Referências

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