Alda Martins e Alexandra Machado A IMPLOSÃO DA PT

COMO POLÍTICOS E EMPRESÁRIOS SE SERVIRAM DA PT AO LONGO DE 20 ANOS

ÍNDICE

INTRODUÇÃO > A IMPLOSÃO 9

CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE 13 CAPÍTULO 2 > CASAR COM A ZON SERIA OPTIMUS 35 CAPÍTULO 3 > A MÃO INVISÍVEL DO ESTADO 55 CAPÍTULO 4 > O INÍCIO 83 CAPÍTULO 5 > UMA AVENTURA NO BRASIL 93 CAPÍTULO 6 > A QUEDA DO IMPÉRIO 113 CAPÍTULO 7 > A AMEAÇA FANTASMA 129 CAPÍTULO 8 > A INEVITABILIDADE DA OI 147 CAPÍTULO 9 > A FÁBULA DO PAVÃO 171 CAPÍTULO 10 > FIM SEM GLÓRIA 189

CRONOLOGIA 211 AGRADECIMENTOS 215

INTRODUÇÃO

A IMPLOSÃO

A Telecom nasceu para ser grande, e chegou a ser uma das maiores empresas portuguesas. Mas acabou desmembrada e hoje é uma operadora confinada ao mercado nacional. Caída do pedestal, foi vendida aos franceses da Altice, de quem se diz ser um fundo de investimento. A operação Meo, líder de mercado, vive dias de incer- teza. Tal como a Pharol, a outra PT, accionista da Oi e credora da Rio- forte, cotada na bolsa de Lisboa, mas sem qualquer brilho. Aquela que foi, outrora, uma das principais âncoras do mercado accionista portu- guês está hoje a valer menos de um euro por acção. Foi um desfecho imprevisível para uma empresa que chegou a ser recebida em Nova Iorque para abrir a sessão em Wall Street e que jogava lado a lado com os maiores do sector. Era esse o seu desígnio quando foi criada em 1994: nasceu para ser grande e fazer frente aos grandes operadores europeus. O que, até certo ponto, conseguiu. Algumas dessas histórias são contadas neste livro, que revela a influência que o Banco Espírito Santo e o seu dono Ricardo Salgado sempre tiveram na empresa. E não é uma influência recente. O Banco Espírito Santo esteve sempre lá, nos bons e nos maus momentos. Era o accionista privado de referência. Nada se fazia sem Ricardo Salgado dar a sua palavra. Quase sempre a palavra final. Tam- bém na PT ele era o “dono disto tudo”.

9 A IMPLOSÃO DA PT

Mas não foi o único a exercer influência na empresa. A mão do Estado também esteve sempre presente. A operadora, mesmo depois de pri- vatizada, era demasiado grande para que o poder a ignorasse. A PT precisava dos governos, mas estes também precisavam dela. Era um excelente cartão-de-visita estatal, que sucessivos governos acenaram para melhor vender o país lá fora. Foi com ela que José Sócrates conseguiu colocar o computador Magalhães até na Venezuela. Poder e dividendos apetecíveis foi o que todos ganharam... A PT entregou 11,7 mil milhões de euros aos seus accionistas em mais de 20 anos, cerca de 40 vezes a actual capitalização bolsista da Pharol. Se estávamos à espera do desfecho e do desmantelamento do grupo Portugal Telecom? Não. Mas, como se relata no livro, vários sinais podiam ter dado o alerta. Entrevistámos cerca de 50 protagonistas da empresa – alguns dos quais nos pediram sigilo, pelo que optámos por fazer do anonimato a regra deste livro – para percebermos melhor o que aconteceu. Mas não há uma causa isolada. Há a conjugação de factores e um imenso jogo de interesses, a que a crise do Banco Espírito Santo desferiu o golpe final. Este livro não pretende fazer julgamentos. Apenas contar a histó- ria de uma grande empresa portuguesa como foi a Portugal Telecom. Muitos jogos de interesses aconteceram fora dos corredores de Picoas. Iates, hotéis de luxo e restaurantes frequentados pela rea- leza e por estrelas de Hollywood serviram de cenário para encon- tros sigilosos sobre negócios nem sempre concretizados e nunca antes revelados. Uma viagem que começou há mais de 20 anos. De Luís Todo Bom a Zeinal Bava, passando por Murteira Nabo, Miguel Horta e Costa e Henrique Granadeiro, os líderes da empresa que foi maior do que os números faziam crer. Começou o seu caminho com a privatização durante o cavaquismo. Mas foi com o guterrismo que se lançou na maior aventura de sem- pre: a compra por 3,5 mil milhões de reais da licença móvel no Estado de São Paulo. A maior aquisição até então de uma empresa portu- guesa no Brasil.

10 INTRODUÇÃO

Enquanto jornalistas, fomos assistindo às manifestações sucessi- vas de utilização da marca PT como bandeira do país. Observámos a valorização dos títulos. Noticiámos resultados em alta ao longo de vários anos. Pelo meio as viagens a vários países – Brasil, Cabo Verde, Namíbia –, onde a empresa deixou o seu saber nas telecomunicações. Prognosticava-se pois outro desfecho. Mas o poder de accionistas que apenas com 10% do capital mandavam na empresa – como o Banco Espírito Santo personificado pelo intitulado “dono disto tudo”, Ricardo Salgado – e de sucessivos Governos, que mesmo numa empresa priva- tizada não abdicaram da golden share, teceram outro rumo que a ges- tão muitas vezes não contrariou. Foi o caso da posição de força que o então primeiro-ministro José Sócrates, ao abrigo das acções douradas, acabou por tomar na venda da Vivo e que traçou a trajectória final. Mas terá sido, anos antes, a OPA da Sonaecom sobre a PT o momento fracturante, quer da empresa quer do próprio sector. Paulo e Belmiro de Azevedo não ganharam mas deixaram a sua marca na história das comunicações. Enfrentaram o poder da PT, que acabou partida em duas. A concorrência no sector aumentou. Mas acabaram, também, por empurrar a gestão para um retorno accionista sem precedentes. Os accionistas queriam dinheiro. A PT deu-lhes. Ao longe já rufa- vam os tambores da crise. O Lehman Brothers caiu. A banca tremeu e o mundo também. Já não havia espaço para tantos dividendos. Nem dinheiro fácil para investimentos e para fazer frente à parceira Tele- fónica. Vulnerável, a PT ficou ali… disponível para tudo o que veio a seguir. Uma entrada na Oi que só trouxe problemas, adensados com a queda do BES. Este negócio é um dos exemplos visíveis da permea- bilidade da PT aos interesses de governantes. Só o Governo de Passos Coelho não quis intervir na operadora. Sem Estado e já com os accionistas de referência debilitados ficou à mercê dos brasileiros, que rapidamente venderam a operação nacional e dei- xaram os activos internacionais entregues à sua sorte. O desmantelamento que a gestão da PT disse pretender impedir na OPA da Sonaecom foi o que acabou por acontecer anos mais tarde e às mãos de quem dizia defendê-la. O perigo, afinal, estava dentro da própria empresa. E fê-la implodir.

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CAPÍTULO 1

O GRITO DE REVOLTA DO NORTE

Era uma segunda-feira como tantas outras na sede da Portugal Telecom (PT) em Picoas, Lisboa. Pressentia-se alguma coisa naquele décimo pri- meiro andar, que albergava os gabinetes dos administradores. Naquele dia 6 de Fevereiro de 2006 a história de uma das maiores empresas portuguesas estava prestes a mudar. Para sempre. O telefone de Miguel Horta e Costa tocou. O presidente da Portugal Telecom atendeu. “Fala Miguel Horta e Costa.” Do outro lado da linha, Paulo Azevedo, filho do patrão da Sonae, no seu gabinete na Maia, deu a novidade: “É para o informar, em primeira mão, que tomámos a decisão de lançar uma OPA sobre a PT.” Ele e o pai, Belmiro de Aze- vedo, tinham dividido entre si a lista de telefonemas que se sucede- ram à entrega do anúncio preliminar do lançamento da oferta pública de aquisição (OPA) na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). A Sonae, através da sua subsidiária Sonaecom, acabava de lançar uma OPA sobre a PT a 9,5 euros por cada acção. O comunicado foi publicado às 21h11 desse dia. Ao receber a chamada, o presidente executivo da PT hesitou, per- plexo. Como é que a Sonae ousava dar aquele passo de “David contra Golias”? Como é que uma empresa tão mais pequena, a Sonaecom, pretendia deitar a mão à PT? Chegou a pensar-se que o alvo da OPA era a PT Multimédia (PTM), mas logo se percebeu que não, já que esta era uma empresa controlada pela PT, o que obrigava a que a ope- ração tivesse de ter o aval da PT e dos seus accionistas.

13 A IMPLOSÃO DA PT

Ricardo Salgado foi dos primeiros a tomar conhecimento da OPA. O seu telefone não parou de tocar nesse dia. Desde Miguel Horta e Costa a Belmiro de Azevedo, todos se apressaram a informar o ban- queiro, uma figura-chave no desenrolar dos acontecimentos e que esteve sempre presente na vida da PT desde a privatização. Ainda nos bastidores, e em segredo, a Sonaecom tinha optado por antecipar três dias o anúncio. No fim-de-semana já havia evidências de que muita gente sabia da OPA. O próprio Governo já estava a par da situação. Dias antes, o primeiro-ministro José Sócrates chamou ao seu gabi- nete, em São Bento, o ministro Mário Lino, que tutelava o sector. Belmiro de Azevedo e o filho queriam falar-lhes de uma operação que pretendiam realizar. “Tomamos a devida nota.” Foi a resposta de Sócrates ao clã Azevedo, dando assim um “nim” à operação. Uma postura que manteve ao longo dos meses que se seguiram. E que deu força à empresa do Norte para avançar. O Governo ter man- tido o segredo bem guardado era um bom indicador para a Sonae, visto que uma fuga de informação significaria que o assunto não era do agrado do Executivo. Uma convicção que chegou a ser par- tilhada nos corredores da Maia quando ainda não se suspeitava da volta que o jogo ia dar. No final daquele dia 6 de Fevereiro, que mudaria o curso da histó- ria, correram à sede da PT não só administradores e gestores mas tam- bém advogados. As conversas prolongaram-se até às duas da manhã. Estava a ser montado o gabinete de crise. E o núcleo que garantiu, nos meses seguintes, uma oposição feroz à Sonae. O conselho de administração, convocado para o dia seguinte por Ernâni Lopes, então chairman da operadora, concordou por unanimi- dade em opor-se à operação. As conversas paralelas ao conselho iam todas dar à OPA. Havia posições mais extremadas. Patrick Monteiro de Barros, accionista com assento na administração e com fortes laços de amizade com Ricardo Salgado, queria guerra. Ernâni Lopes, habi- tuado a longas batalhas, tentava acalmar os ânimos. Afinal, o que era aquilo comparado com o resgate que teve de negociar com o FMI no início da década de 1980, quando foi ministro das Finanças.

14 CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE

Quase todos os accionistas com assento no conselho temiam que a OPA levasse ao desmembramento da PT, por entenderem que esta era a única forma de o investimento ser viável para a Sonae, que há anos reclamava a necessidade de separação das redes que a PT detinha (cabo e cobre). Ambas as redes ofereceriam os mesmos serviços – voz, Internet e televisão –, o que, no entender da Sonae, diminuía a possi- bilidade de concorrência no mercado. Antes da OPA, em Julho de 2005, a Sonae tinha apresentado queixa na Comissão Europeia contra o que alegava ser o abuso de posição domi- nante da Portugal Telecom, reforçado pela detenção de duas redes, uma vendida uns anos antes pelo Estado à própria Portugal Telecom, um negócio feito com o Governo PSD de Durão Barroso. Aumentar a con- corrência no sector das telecomunicações era, também, um projecto do Governo de Sócrates, o que deu igualmente esperança ao grupo do Norte. As queixas acabaram por morrer. A que contestava a venda da rede fixa pelo Estado à PT sem concurso público foi retirada pela própria Sonae no decurso da OPA. A outra, na qual a Sonae se quei- xava do poder da PT no acesso à Internet de banda larga, foi remetida por Bruxelas para a Autoridade da Concorrência nacional e aí morreu. Os dois lados queriam na OPA o apoio implícito ou explícito do Governo. Afinal, o Estado ainda era detentor das chamadas acções douradas (golden share), o que lhe dava poder de veto sobre algumas decisões na PT. Além disso, uma operação de 11 mil milhões de euros, envolvendo uma empresa que tinha com o Estado um contrato de con- cessão, era razão suficiente para o necessário crivo hierárquico. Miguel Horta e Costa telefonou ao ministro Mário Lino. Mas não esperou que o Governo formalizasse uma posição oficial sobre a OPA para premir o gatilho. No mesmo dia em que o Público escreveu “Governo desmarca-se da administração da PT” – o que deixava no ar duas ideias: ou o Executivo via com bons olhos a operação ou não queria tomar partidos naquela fase –, Horta e Costa alertou para os riscos de desmantelamento do grupo, caso a operação tivesse sucesso. Naquele momento ninguém imaginava que, mesmo sem a Sonae, o grupo acabaria por se desfazer dez anos mais tarde.

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OPA HOSTIL

Na declaração, aprovada pelos accionistas com assento no board da empresa e lida à hora dos telejornais, Miguel Horta e Costa consi- derou a OPA não solicitada, mas, ao seu jeito, com delicadeza, e sem ponta de agressividade, acrescentou: “logo, hostil.” A palavra não tinha sido a escolha do conselho – António Viana- -Baptista, o português representante da Telefónica, foi quem mais se opôs à utilização do termo –, mas era evidente que aquele grupo de accionistas, encabeçado pelo Banco Espírito Santo (BES) com pouco menos de 10% do capital, queria tudo menos entregar a “jóia da coroa” ao grupo de Belmiro de Azevedo. O conselho falou em uníssono, ou quase. A excepção foi a operadora espanhola, cujas razões se perceberam semanas depois. Estava tam- bém já à espreita da sua oportunidade. A Telefónica acabou por apoiar a Sonae, mas manteve-se sempre presente na administração da PT. O cenário de guerra estava montado. Um dia mais tarde, Miguel Horta e Costa juntou no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, mil quadros da empresa e deu o mote ao citar o general russo Kutuzov quando este enfrentou as tropas de Napoleão: “Não os convidámos.” O recado era claro. Iam pôr a Sonae fora da jogada. Os mil quadros aplaudiram e posicionaram-se nas trincheiras. Apesar de ter sido dos primeiros a saber, Ricardo Salgado só se pronunciou publicamente sobre a oferta dois dias depois. E fê-lo no luxuoso hotel Amanjena, em Marraquexe, Marrocos, onde um quarto custa mais de 1700 euros por noite. Um hotel de milionários. Tam- bém aqui, seis anos mais tarde, a empresária angolana Isabel dos San- tos reuniu, em festa privada, os amigos para o seu aniversário. Uma festa das arábias, como lhe chamaram. O BES não fazia a coisa por menos. Como era seu apanágio, pelo menos uma vez por ano levava jornalistas em viagens faustosas sob o pretexto de apresentar a estratégia do grupo. Como bom estratega e apreciador de uma boa disputa, Salgado não deixou de elogiar a iniciativa de Belmiro de Azevedo e o que a oferta representava para o mercado de capitais. Homem fleumático e pouco

16 CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE dado a reacções primárias, fez inclusive piadas com o tema, não sem mandar os seus recados. Criticou o preço oferecido e a possível saída da PT de alguns mercados estrangeiros caso a Sonae garantisse a empresa. O tal desmembramento que se temia passava pela venda de activos no exterior, como por exemplo a Vivo, no Brasil. Era um activo valioso e ajudaria a financiar a oferta. E foi logo esse ponto que Ricardo Salgado atacou. “Nós consideramos que a PT é de facto uma campeã nacional porque tem uma dimensão espectacular” para os nossos padrões “e é a única multinacional não financeira do país.”1 Por essa altura circulava pelos jornais a hipótese de haver interes- sados em lançar ofertas concorrentes à da Sonaecom sobre a PT. Até se noticiou a possibilidade de o Grupo Espírito Santo (GES) correr nessa pista paralela. Ricardo Salgado refutou a entrada do seu grupo familiar neste jogo de ofertas concorrentes, mas mostrou disponibili- dade para juntar esforços e impedir o sucesso da OPA da Sonaecom. “O Grupo Espírito Santo não tem vocação para gerir empresas de tele- comunicações. E [o banco] não vai financiar o GES. Mas se o grupo qui- sesse avançar com uma OPA teria recursos financeiros para o fazer”2, no entanto, acrescentou que não tinha sido contactado para “ajudar” a construir uma oferta concorrente. O tempo mostraria que afinal o BES geria mais a empresa de telecomunicações do que dizia. Já o banco de investimento do BES (o BESI, gerido pelo primo José Maria Ricciardi, o seu maior rival dentro da família, como o tempo demonstraria) tinha sido convidado, em conjunto com outros bancos, para assessor da PT na “defesa dos interesses de todos os accionistas”. O Grupo Espírito Santo não patrocinou ofertas concorrentes, que aliás não chegaram a existir, mas garantiu reforços na defesa da OPA. Naquele dia em Marraquexe, Salgado até se atreveu a brincar quando o seu telefone tocou: “se calhar é já o Pereira Coutinho [o nome do empresário tinha sido lançado para as manchetes dos jornais como potencial concorrente à PT] a avisar-me que também vai lançar uma

1. http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/presidente_do_bes_elogia_iniciativa_do_enge- nheiro_belmiro.html 2. http://www.publico.pt/economia/noticia/espirito-santo-nao-prepara-opa-concorrente-e-so-avanca- -em-posicao-minoritaria-1247445

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OPA.” Se estava nervoso ou preocupado, isso não transpareceu. Entre todas as respostas que foi dando às perguntas dos jornalistas garantiu “estar tudo controlado”. Mas ainda teria de esperar mais de um ano para dar o grito de vitória. Para já, era o grito de revolta do Norte que estava dado. A Sonaecom queria criar condições de concorrência no mercado porque, pelo seu diagnóstico, havia espaço para a concorrência no móvel mas não havia no fixo, pelo facto de a PT ter acesso às duas principais redes que che- gavam a casa dos clientes. A televisão paga não era na altura um tema decisivo no sector, mas a expansão do acesso à Internet em banda larga já era uma preocupação. Com a compra da PT, os gestores da Sonae acreditavam que resolveriam a situação de posição dominante, uma vez que não viam na regulação sectorial nem na supervisão da con- corrência vontade e meios para mudar a situação. A hipótese era, por isso, comprar a PT e vender uma das redes fixas.

FILHO DE PEIXE SABE NADAR

Muito antes, no início de 2005, a OPA era só uma ideia na cabeça de Paulo Azevedo. Ficou a maturar. Primeiro foi discutida com Ângelo Paupério, um dos homens fortes da Sonae (que em 2015 assumiu com Paulo Azevedo a co-presidência da Sonae), e posteriormente, apresen- tada ao pai Belmiro de Azevedo. O empresário, que sempre acolheu na sua filosofia empresarial o risco, acedeu desde o primeiro momento, e como accionista principal da Sonaecom suportou a operação e apoiou todos os passos. Também António Horta Osório, então presidente do Santander Totta (anos mais tarde transformado pelos media em banqueiro-estrela, sobretudo após a sua ascensão à presidência do britânico Lloyds), foi decisivo. Chegou a discutir com Paulo Azevedo uma operação com a mesma dimensão. Uma troca de ideias, meses antes, que acabou por ajudar o jovem gestor Azevedo a ponderar a exequibilidade do financiamento e beneficiar da visão que o banqueiro tinha dos mer- cados. As dúvidas, no entanto, eram muitas.

18 CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE

Seria financiável? Era possível lançar uma OPA sobre a PT? E a ser financiável, como o fariam? Dali à prática demorou alguns meses. Primeiro, as conversas informais. Algumas em casa de Paulo Aze- vedo com pessoas como Ângelo Paupério ou Osório de Castro, advo- gado de longa data da Sonae e padrinho do mentor da OPA. Em paralelo, prosseguia a “luta” pública da Sonaecom nas conversas com o Governo e com os jornalistas sobre as preocupações da empresa em relação à hegemonia da PT no mercado das comunicações, mas ainda sem que transparecesse a vontade de lançar uma operação daquela envergadura. No ambiente romântico e envolvente da Tapada de Mafra, num dia chuvoso, numa das poucas vezes em que esteve descontraidamente à conversa com jornalistas, Paulo Azevedo atirou: “qualquer dia ainda lançamos uma OPA sobre a PT.” As gargalhadas foram generaliza- das. Outro sinal, também ainda subliminar, foi a entrevista que, em Janeiro de 2006, deu à revista Visão, na qual deixou no ar a hipó- tese da existência de um plano B caso não conseguisse levar a bom os esforços para obrigar à separação das redes. Um apelo feito ao Governo, mas que já tinha chegado à Comissão Europeia, sob a forma de queixa formal. Nos encontros com os media, desde há muito, ficara clara a von- tade da Sonaecom de “partir” o que dizia ser o monopólio da PT nas comunicações em Portugal. Paulo Azevedo e a sua equipa, sobretudo Luís Reis, uma das figuras-chave na OPA, e António Lobo Xavier, o advogado do Norte cujo rosto esteve sempre ligado às lutas do grupo Sonae, defenderam como ninguém a necessidade de a incumbente vender uma das redes e separar os negócios de grosso (disponibili- zação da rede a outros operadores) e retalho (venda de comunicações aos clientes finais) da “velhinha” rede fixa. Não controlando os dois negócios, a PT não teria acesso a informação de outros operadores, seus clientes na área grossista, e abriria espaço a uma maior concor- rência nos serviços aos consumidores. De uma maneira ou de outra, a Sonaecom queria ver diminuído o poder da PT no fixo. No final de 2005, a menos de três meses do lançamento da OPA, a PT controlava cerca de 90% do negócio de telefone fixo, 85% do

19 A IMPLOSÃO DA PT acesso à Internet através do ADSL (tecnologia que permitia na rede de cobre velocidades de Internet mais elevadas) e 69% dos acessos por modem via cabo. No relatório anual desse ano, o regulador, a Anacom, referiu que o serviço de acesso à Internet foi caracterizado por um crescimento muito significativo de clientes, particularmente expressivo nos servi- ços de banda larga. Em 2005, cerca de 35% dos lares possuíam liga- ção à Internet, e, destes, cerca de 75% de banda larga.

O BASTIÃO DE SÓCRATES

Na política nacional, os ventos pareciam soar de feição à mudança. José Sócrates, que tinha tomado posse para a sua primeira legislatura como primeiro-ministro a 12 de Março de 2005, apresentava-se, mesmo aos olhos da direita mais conservadora, como um político capaz de provo- car uma disrupção com o passado. O discurso da tomada de posse do XVII Governo Constitucional foi nesse sentido e Sócrates captou, desde logo, a atenção dos Portugueses ao atirar-se a um dos poderes mais fortes em Portugal, o das farmá- cias. Nesse discurso falou da necessidade de alterar a legislação para que os medicamentos de venda livre, não sujeitos a receita médica, passassem a ser vendidos em qualquer estabelecimento, mesmo que não uma farmácia. “Para este Governo, a defesa da concorrência e a defesa do consumidor são para levar a sério”, disse na ocasião. Dias depois anunciava a intenção de cortar as férias dos juízes. Sócrates também foi arrojado em relação às comunicações. O seu Governo propôs-se a intensificar a inovação tecnológica e foi ainda durante a primeira legislatura que reforçou o existente Plano Tecno- lógico e que surgiram outros programas como o Simplex, lançado em Julho de 2008. Com uma capacidade de trabalho fora do comum, era centraliza- dor, gostava de estar a par dos pormenores e pensava pela sua pró- pria cabeça. Terá simpatizado com Paulo Azevedo e com a ideia de aumentar a concorrência no sector, expandindo mais rapidamente a

20 CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE

Internet. Assim, o projecto da OPA servia alguns destes propósitos. A separação das redes permitia aumentar a concorrência do sector. Havia, no entanto, um senão que preocupava São Bento: a elimina- ção de concorrência no móvel, visto que a OPA previa a junção da TMN com a Optimus. O que significava que o mercado ficaria com dois ope- radores em vez dos três que existiam (TMN, Vodafone e Optimus). Os ingredientes pareciam servir a Sonae e o Governo. A Sonae, à sua maneira, nunca pediu apoio explícito ao Governo. Mas quis saber se havia constrangimentos à operação. Sem uma obstrução política de fundo e com sinais de que a operação passaria na regulação, porque potenciava a concorrência na rede fixa, faltava apenas conseguir o financiamento. O esboço foi desenhado em três dias, que incluíram um fim-de-semana. Entre um e outro almoço no restaurante O Fernando, perto do aeroporto Sá Carneiro na Invicta, famoso pelo cabrito, Ângelo Paupério e o administrador do Santander Totta, Elias da Costa, que já tinha estado em andanças governativas, desenvolveram o plano, transmitido depois a António Horta Osório, então presidente executivo do Santander Totta, que, por sua vez, se encarregaria de o apresentar ao todo-poderoso Emilio Botín, presi- dente do banco espanhol Santander. Para a Sonaecom era claro que a OPA era financiável porque se propunha vender activos. A equipa de Paulo Azevedo sabia que não podia controlar o mundo por questões, sobretudo, monetárias. A opção era entregar a brasileira Vivo aos espanhóis da Telefónica e ficar em Marrocos com a Méditel. Isso estava claro na mente dos oferentes, ainda que publicamente a informação fosse a de que a Sonaecom não gosta de estar em operações que não controla ou em controlo conjunto. “A Sonaecom começará por avaliar as possi- bilidades de conseguir controlar as operações em que o grupo PT é actualmente accionista, especialmente no caso do Brasil e de Mar- rocos. Na medida em que esse controlo não seja possível, procu- rará reafectar os recursos, envolvidos nas operações em referência, à aquisição de outros operadores baseados na tecnologia GSM/3G, com especial interesse em países africanos e do Sudeste europeu. Em todo o caso, é propósito determinante e claro deste plano que

21 A IMPLOSÃO DA PT não haja diminuição do total dos recursos afectos à expansão inter- nacional do grupo Sonaecom/PT.”3 O projecto previa também gerir a relação com Angola, na Unitel, e acrescentar-lhe valor. Apesar de Belmiro de Azevedo, enquanto empre- sário, se ter sempre afastado de Angola. Admitia-se ainda a expan- são para outras geografias. Em Portugal separavam-se as redes fixas – cobre e cabo – e juntavam-se TMN e Optimus. Um plano que deu garantias genéricas a Botín para aceitar financiar a operação. Eram precisos pelo menos 11 mil milhões de euros! Já que, além da oferta sobre a PT, esta operação obrigava a uma OPA sobre a PT Multimé- dia, controlada pela PT, e podia implicar algum refinanciamento da dívida da PT. Nesta fase, antes de 6 de Fevereiro, ainda era importante que a infor- mação se mantivesse entre um núcleo restrito de pessoas. A equipa da Sonaecom desdobrava-se entre Lisboa e Porto. Muitas das conversas eram em trânsito aéreo, o que implicava a utilização de códigos ver- bais. O futebol, ou outras matérias que estivessem na ordem do dia, servia esse fim. Se o tema era concorrência, Abel Mateus era o nome que não podia ser pronunciado e naquelas viagens transformava-se no presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Tudo para não dei- xar transparecer do que conversavam. O segredo foi mantido até 6 de Fevereiro de 2006.

A DEMORA QUE MATOU A OPA?

Os accionistas da PT não foram o único obstáculo que a Sonae teve de enfrentar. A operação teve também de passar pelo crivo dos regulado- res, em especial da Autoridade da Concorrência. Abel Mateus, então presidente desse supervisor, não tinha mãos a medir. Ainda o efeito surpresa da OPA da Sonaecom não se havia desvanecido, já o mer- cado era confrontado com a oferta, também ela hostil, lançada pelo BCP ao BPI, a 13 de Março de 2006. O Millennium BCP queria ficar

3. Comunicado da Sonaecom de 27 de Fevereiro de 2006.

22 CAPÍTULO 1 > O GRITO DE REVOLTA DO NORTE com o BPI e estava disposto a pagar 4,3 mil milhões de euros. Outra bomba no mercado de capitais e no supervisor da concorrência, que tinha de avaliar se estas fusões implicavam problemas concorrenciais. Meticuloso e com pouca vontade de tomar decisões erradas ou pouco fundamentadas, o presidente da Autoridade da Concorrência tinha agora a vida bastante dificultada. Estavam na sua secretária dois mega- processos. Só o da PT chegou aos 55 volumes. E as pressões, vindas de todos os lados, também não contribuíram para uma decisão célere. O parecer da Autoridade da Concorrência no caso da PT só chegou em Dezembro. Exactamente 99 dias úteis foi o tempo que demorou a análise. Terá o tempo matado a oferta? É difícil de dizer, mas foi apro- veitado pelos opositores da OPA para reunirem armas e accionistas que, a 2 de Março, na assembleia-geral da PT, derrotaram a operação. Entre 6 de Fevereiro de 2006 e 2 de Março de 2007 muita água cor- reu debaixo da ponte. Ricardo Salgado será para sempre apontado como o mobilizador silencioso da “cortina de ferro” que se ergueu nesse período contra a Sonae e o facto é que conseguiu, em certa medida, pôr em prática o que tinha dito no dia 9 de Fevereiro de 2006 em Marraquexe. Impediu o sucesso da OPA.

A POLÉMICA ADMINISTRAÇÃO

Henrique Granadeiro, um alentejano de Rio de Moinhos, uma pequena aldeia do concelho de Borba, que vingou por si como se orgulha de contar, chegou à comissão executiva da PT, tal como Rodrigo Costa, que vinha das lides internacionais, no final de 2005, por alargamento da equipa de cinco para sete elementos. José Sócrates tinha chegado ao Governo. Não gostava da administração da PT e não quis esperar por 2006 para colocar homens da sua confiança. Apesar de os lugares não terem ficado logo definidos, já era evidente que os dois iriam inte- grar a equipa de gestão em 2006. Mudanças que previam a substitui- ção de Miguel Horta e Costa, então presidente da comissão executiva, cujo mandato estava a terminar. Horta e Costa não reunia simpatias do Governo socrático, não só pelo estilo, mas também por ter assinado a

23 A IMPLOSÃO DA PT venda da Lusomundo Media a Joaquim Oliveira, deixando para trás a Prisa, empresa espanhola “amiga” do PSOE (partido socialista espanhol). Até se admitiu a possibilidade de Henrique Granadeiro ser o chair- man e Rodrigo Costa o presidente executivo. Costa foi convidado a integrar a PT por Granadeiro, que o apresentou a Ricardo Salgado. E tinha mais do que o acordo do Governo, em particular do ministro Mário Lino, que confiava no que lhe tinham dito sobre o gestor que saía da Microsoft para a operadora portuguesa. Acabou por entrar na PT mas “apenas” como vice-presidente. Contudo, não seriam estes dois nomes os que suscitariam mais alarido nos corredores de Picoas. É que nessa altura entravam também para a administração da PT Rui Pedro Soares, Fernando Soares Carneiro e Armando Vara. Todos eles, mais tarde, protagonistas de casos de justiça que levaram por arrasto o nome da PT. Tinham também em comum simpatias ou militâncias com o PS. E foi assim que a 21 de Abril de 2006, em pleno decurso da OPA, Henrique Granadeiro assumiu a presidência; Zeinal Bava, cujo per- curso profissional se confunde com a história da própria empresa, ficou o braço direito e número dois na lista divulgada; e Rodrigo Costa surgiu como o terceiro elemento. Granadeiro, amigo pessoal de José Manuel Espírito Santo – “um irmão adoptivo”, como mais tarde, já em 2015, viria a assumir na comis- são de inquérito à gestão do GES/BES – e muito próximo de Ricardo Salgado, acabou por ser a escolha do banqueiro para a presidência. Servia o propósito do banqueiro de agradar a Sócrates, que conhe- cia bem Granadeiro. Consideravam-se “amigos”. Uma solução que agradou aos socialistas, mas não a todos os accionistas. Pouco tempo depois Patrick Monteiro de Barros, amigo de infância de Ricardo Sal- gado, e a Cinveste, do coronel Luís Silva, o homem da Lusomundo, saíram do capital da PT. Zeinal Bava era à data o presidente executivo da PTM e da TMN, cargos que acumulava com a administração financeira do grupo, uma escolha de Miguel Horta e Costa. Ganhou protagonismo na OPA. Ape- sar de ser o número dois de Granadeiro, nunca se conheceu simpa- tia pessoal entre os dois. No entanto, para o exterior, demonstravam

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