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A crise política no Brasil e o de em 2016

Dejalma Cremonese*

Dormia | A nossa pátria-mãe tão distraída | Sem perceber que era subtraída | Em tenebrosas transações. Chico Buarque1

Resumo: O artigo analisa as ações sociais e políticas que levaram ao afastamento da presidente Dilma Rousseff da Presidência da República no ano de 2016. O trabalho foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica, análise de um banco de dados constituído a partir de leituras e fichamentos de textos, autores e reportagens online dos principais jornais do país entre os anos de 2013-2018. Inicialmente, sustentamos que o modelo político-econômico protagonizado pelo governo de FHC, marcado por mudanças nas áreas fiscal, cambial e monetária, e de Lula, sustentado no consumo e no crédito subsidiado, trouxeram avanços pontuais significativos, mas, de certa forma, esgotaram-se. A ausência de uma coalizão política do governo petista, aliada à crise econômica brasileira, foram determinantes para a eclosão de protestos generalizados promovidos por movimentos sociais conservadores por todo o país no ano de 2013 em diante. Esse cenário de instabilidade social, política e econômica, somado à infidelidade do PMDB ao governo de Dilma Rousseff, contribuíram para o seu afastamento da Presidência da República no dia 31 de agosto de 2016. Esse fato abriu espaço para a inclusão de “novos” atores no cenário político nacional, culminando na posse do vice-presidente . Palavras-chave: Crise política, democracia, impeachment.

The political crisis in Brazil and Dilma Rousseff's impeachment in 2016

The article analyzes the social and political actions that led to the removal of President Dilma Rousseff from the Presidency of the Republic in 2016. The work was prepared from bibliographic research, analysis of a database consisting of readings and text files, authors and online reports from major newspapers in the country between 2013-2018. Initially, we argue that the political-economic model led by the government of FHC, marked by changes in the

* Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSM. Doutor em Ciências Políticas (UFRGS). E-mail: [email protected]

1 BUARQUE, Chico; HIME, Francis. Vai passar. Intérprete: Chico Buarque. In: BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Polygram, 1984. 1 CD. Faixa 10.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 fiscal, exchange and monetary areas, and Lula, sustained in consumption and subsidized credit, brought significant punctual advances, but to some extent exhausted. up. The absence of a political coalition of the Petista government, coupled with the Brazilian economic crisis, was a determining factor for the outbreak of widespread protests promoted by conservative social movements throughout the country from 2013 onwards. This scenario of social, political and economic instability, coupled with PMDB's unfaithfulness to Dilma Rousseff's government, contributed to her removal from the Presidency of the Republic on August 31, 2016. This fact made room for the inclusion of “new” actors. on the national political scene, culminating in the inauguration of Vice President Michel Temer. Key-words: Political Crisis, democracy, impeachment.

Introdução No Brasil, o processo democrático foi construído a duras penas. Depois de longos períodos oligárquicos e ditatoriais, em que as liberdades individuais e a participação política foram suprimidas, o país avançou – após o ano de 1985 – com o movimento “Diretas Já”, a Constituinte de 1988 e a volta às urnas nas eleições de 1989. Até há pouco tempo, vivia-se uma situação peculiar no cenário político nacional. A eleição geral para presidente da República de 2018, depois do processo de afastamento da então presidente Dilma Rousseff, tinha sido a sétima eleição direta consecutiva desde a abertura democrática. Com Dilma Rousseff, ao concluir o seu primeiro mandato e se reeleger em 2014, completavam-se 29 anos de democracia ininterrupta, algo inédito no cenário político até então. Nem mesmo no período democrático de 1945-1964 o Brasil alcançou tais números. No entanto, o processo de impeachment sofrido pela presidente Dilma no dia 31 de agosto de 2016 foi mais um percalço na frágil democracia deste país. O impeachment não se amparou em nenhuma base jurídica legal, atendo-se apenas ao “conjunto da obra” para legitimar o afastamento da então presidente. Assumiu o vice-presidente Michel Temer, do PMDB2, sob fortes acusações de ser o principal articulador do “golpe parlamentar”.3 Passados os dois anos do governo de Michel Temer, o país vê-se à frente de uma forte polarização social e política que vai se refletir na campanha eleitoral polarizada entre Jair Messias

2 O PMDB aprovou a mudança de nome no dia 19 de dezembro de 2017 e voltou a se chamar MDB. 3 O próprio ex-presidente Michel Temer reconheceu em entrevista ao Programa Roda Viva da TV Cultura que o processo de impeachment sofrido por Dilma foi golpe. Disse ele: “– Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”. O peemdebista disse, também, que tentou impedir o avanço do impeachment. Temer citou um telefonema em que ele conversou com Lula. “Eu não era adepto do golpe”, afirmou Michel Temer. Disponível em: https://www.correiodobrasil.com.br/temer-reconhece-impeachment-foi-golpe/. Acesso em outubro de 2019. Sobre o “golpe parlamentar”, conferir também o trabalho de CANELLAS, A.; SILVA(2016).

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Bolsonaro (PSL – SP) e (PT – SP). vence as eleições 2018 com 55,13% dos votos válidos. Bolsonaro vence com uma pauta conservadora contando com o apoio massivo do eleitor evangélico do país. Como bem nos lembram Levitsky e Ziblatt (2018), na era moderna as democracias morrem lentamente, muitas vezes por meio de processos legítimos. Os líderes autoritários não chegam mais ao poder através de um conflito armado, mas por meio de eleições.4 Partindo da análise baseada em um banco de dados constituído a partir de leituras e fichamentos de textos, autores e reportagens online dos principais jornais do país entre os anos de 2013-2018, o objetivo deste artigo é analisar os principais fatos e atores políticos envolvidos na crise política dada a partir do esgotamento do modelo político-econômico proposto pelos governos FHC-Lula, desencadeando protestos de movimentos conservadores contra o governo de Dilma Rousseff, seu processo de impeachment até a análise do governo de Temer. Dessa forma, o artigo está estruturado em 4 seções distintas. Inicialmente, discutem-se os antecedentes da crise política iniciada no ano de 2013 com uma avaliação dos principais fatos dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. A segunda seção trata do esgotamento do modelo petista pautado no consumo e no crédito subsidiado, que levou o movimento conservador para as ruas das principais cidades do país a partir do ano de 2013. A terceira seção trata das conjugações sociais e políticas que levaram ao processo de impeachment de Dilma Rousseff. A quarta e última seção analisa os dois anos do governo Temer.

Antecedentes Em termos econômicos, o Brasil conheceu, nos anos 90 do século passado, a hegemonia ideológica neoliberal, que se contrapôs ao Estado interventor das décadas anteriores. O ideário liberal se pautou nos fundamentos do chamado Consenso de Washington, ocorrido em 1989.5 O que antecedeu ao ideário neoliberal foi a crise econômica

4 Conferir o trabalho de LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. (2018). 5 O consenso de Washington formou-se a partir da crise do consenso keynesiano e da correspondente crise da teoria do desenvolvimento econômico elaborada nos anos 40 e 50. Por outro lado, essa perspectiva é influenciada pelo surgimento, e afirmação como tendência dominante, de uma nova direita, neoliberal, a partir das contribuições da escola austríaca (Hayek, Von Mises), dos monetaristas (Friedman, Phelps, Johnson), dos novos clássicos relacionados com as expectativas racionais (Lucas e Sargent) e da escola da escolha pública (Buchanan, Olson, Tullock, Niskanen). Conferir o trabalho de BRESSER-PEREIRA, L. C. A crise da América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal. Disponível em http://www.bresserpereira.org.br/papers/1991/91-AcriseAmericaLatina.pdf. Acesso em outubro de 2019.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 brasileira marcada pela estagnação, pela alta inflação e pelo fracasso de diferentes planos econômicos: Plano “Cruzado”, Plano “Verão”, Plano “Bresser” e Plano “Collor”.6 No plano social e político o país avançou com o movimento das “Diretas Já” e com a abertura democrática. Milhares de pessoas foram às ruas em manifestações que pediam eleições livres no país. Logo após tivemos a Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, que trouxe ideais progressistas e nacionais:

“[...] o compromisso com a democracia e com a afirmação dos direitos sociais, e um substancial aumento dos gastos públicos voltados para a educação, a saúde pública e os programas de renda mínima foram resultados dessa Constituição, assim como foi a grande descentralização de recursos para os municípios”.7

Bresser-Pereira cita a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) como um dos principais avanços sociais da época. Se, no âmbito econômico, tivemos estagnação e até retrocesso, o novo ciclo foi marcado, em termos sociais e políticos, com avanços significativos sob os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda no âmbito político, Bresser-Pereira (2014) reforça a consolidação da democracia com as eleições de 2002 ao afirmar que o Brasil estava atravessando a transição de uma democracia das elites para uma democracia social e de opinião pública. Na questão econômica foi colocado em prática o “pacto liberal-dependente”, que se inicia com o governo Collor, mas é interrompido por um processo de impeachment. Assume Itamar Franco, que fez um governo mais nacionalista. Logo após, no entanto, assume o governo o presidente Fernando Henrique Cardoso, que dá continuidade ao ideário neoliberal, promovendo privatizações ─ inclusive de serviços públicos ─ e a abertura dos mercados. É também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil conheceu, no dia 1º de julho de 1994, o “Plano Real”, que controlou a alta da inflação dos anos anteriores. O Plano Real foi dividido em 4 fases: a primeira ocorreu entre 1993 e 1994, em que foi realizado um ajuste fiscal baseado no corte da despesa pública, inclusive da despesa social. A segunda consistiu na imposição de uma inércia inflacionária pelo mecanismo da URV (Unidade Real de Valores). A terceira fase se constituiu na reforma monetária, que transformou a URV em uma nova moeda, reduzindo a taxa de inflação de 45% ao mês para um índice próximo a zero. Por fim, na última fase tivemos a consolidação do plano.

6 Cf. o trabalho de BRESSER-PEREIRA, L. C. A construção política do Brasil: sociedade, economia e estado desde a Independência. São Paulo: Editora 34, 2014. 7 Ibidem, (p. 271).

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Depois de oito anos de governo de FHC, a proposta de centro-direita vê-se esgotada. O PSDB não consegue fazer o sucessor de FHC. Lula, depois de três derrotas consecutivas, vence as eleições em 2002. Bresser-Pereira (2014) destaca a consolidação do capitalismo e da democracia no país. Um candidato de esquerda assume o poder, mas sem alterar o sistema econômico. Lula compromete-se com o mercado com a “Carta aos Brasileiros”, dizendo que manteria os contratos com as empresas capitalistas caso fosse eleito. Essa postura decepcionou alguns setores mais à esquerda dentro do próprio partido, fazendo com que alguns membros deixassem o partido e fundassem o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). O governo Lula ficou marcado pela boa gestão na questão social, em especial com a ampliação do programa Bolsa Família, fazendo com que mais de 28 milhões de pessoas fossem retiradas da pobreza. A renda média per capita da população brasileira aumentou 40% no período. Era, na verdade, um governo dúbio, pois que, por um lado, beneficiou os pobres, mas, por outro, não deixou de contemplar os interesses do mercado. No final do governo Lula, em 2008, argumenta Bresser-Pereira (2014), irrompe a grande crise global, “[...] uma crise maior do capitalismo neoliberal, semelhante à crise desencadeada em 1929 [...]”, tendo a sua origem nos Estados Unidos.8 Apesar das dificuldades econômicas do fim do mandato, o presidente Lula conseguiu eleger o seu sucessor. Dilma Rousseff vence as eleições em 2010 e assume em janeiro de 2011 com a intenção de dar continuidade ao governo anterior; no entanto, por uma combinação de diferentes fatores econômicos, a tão esperada continuidade do crescimento não aconteceu. Diz Bresser-Pereira (2014) que “[...] o crescimento não foi retomado, enquanto que a taxa de inflação subia um pouco, o suficiente para provocar um grande alvoroço na oposição e na mídia”.9 Em termos políticos, a presidente Dilma não revelou grande habilidade, não conseguindo alcançar o sucesso do seu antecessor. Ainda durante o governo Lula, o PT foi acusado da prática do “mensalão”. Outro fator negativo foi o baixo crescimento econômico dos primeiros anos do governo Dilma, mais a manipulação das contas públicas efetuada pelo Tesouro, que levou o governo Dilma a enfrentar forte rejeição da classe média, rejeição manifestada mediante grandes protestos por todo o país durante junho de 2013. Logo após, Dilma recupera a sua popularidade com os programas “Mais Médicos” e “Minha Casa, Minha Vida”, vindo a ser reeleita em outubro de 2014, mas os seus dias ocupando a cadeira da Presidência estavam contados.

8 Ibidem, (p. 351). 9 Ibidem, (p. 359).

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Os protestos de 2013 O outono de 2013 ia definhando e o frio do inverno preanunciava dias cinzentos no hemisfério sul. Tudo seguia seu curso normal naquele mês que entraria para a história. O país se preparava para aplaudir os jogadores do seu esporte favorito; afinal, a Seleção Brasileira de futebol entraria em campo para disputar a Copa das Confederações realizadas no Brasil, campeonato que a seleção sagrou-se campeã. Festas juninas eram programadas e a fogueira já aquecia as mentes e os corações dos brasileiros. No entanto, aquele mês de junho igual a tantos outros não seria um mês qualquer. O Brasil fora surpreendido por protestos que eclodiram de uma demanda específica: a precariedade do transporte público e a luta pela diminuição de 20 centavos das passagens urbanas na capital paulista. O que ninguém entendia, no momento, era que essas “reivindicações” seriam a ponta do iceberg de movimentos ideologicamente vinculados ao espectro mais à direita que se alinhavam com a clara intenção de barrar os avanços progressistas do PT que, à época, estava no poder há mais de 10 anos. Do espaço virtual, através das redes sociais, os protestos ganharam as ruas e o grito coletivo ecoou alto e forte, reivindicando direitos sociais de qualidade: “Queremos saúde, educação e segurança padrão FIFA”, “Transporte público de qualidade!”, gritava um grupo de manifestantes. Mais à frente, cartazes exibiam frases como: “Queremos ética” “Abaixo a corrupção”, “Somos contra a PEC 37”. Os partidos mais à esquerda no espectro político e o próprio governo de Dilma Rousseff demoraram a entender que se tratava de um avanço de grupos reacionários contrários às suas pautas. Mas quais seriam as verdadeiras causas daqueles protestos? A democracia representativa estaria em crise? Éramos uma nação envergonhada de seus políticos? A bolha do consumo teria se esgotado? Quem eram os manifestantes? Acaso seriam os “filhos” da era Lula e Dilma que ascenderam para a classe C e queriam continuar avançando nas conquistas, ou os seriam os filhos da classe média tradicional que teriam perdido privilégios, sofreram corrosão salarial, tiveram o poder de compra diminuído pela volta da inflação, bem como protestavam contra o crescente endividamento das famílias? Cabe citar a famosa tese de Jean- François Revel (1984) em Como terminam as democracias: Uma sociedade torna-se mais perecível quanto mais problemas resolve e sua longevidade mais se assegura quanto menos os resolve. Uma inferência célebre de Tocqueville, e nesse caso a história ulterior lhe deu razão, consiste em ter observado que uma sociedade luta mais contra a autoridade quando o nível de satisfação das necessidades é mais elevado. Em outras palavras, as reivindicações tornam-se mais agressivas à medida em que foram amplamente coroadas de êxito e,

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sobretudo, quando a espera de conquistar vantagens sempre superiores não parece ilusória, o que supõe uma aquisição substancial de prosperidade e de liberdade. As democracias liberais, durante o penúltimo quarto do século XX, isto é, durante os anos em que mais se enriqueceram e liberalizaram, tornaram-se cada vez mais instáveis, explosivas, ingovernáveis.10

Para o sociólogo Manuel Castels, os protestos que eclodiram no país a partir do ano de 2013 trouxeram o ineditismo dos brasileiros manifestando-se fora dos canais tradicionais, como partidos ou sindicatos. As pessoas cobravam soberania política. Foi um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. E mais: uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuidava da qualidade de vida nas cidades. O pontapé inicial foi a crise do transporte urbano, mas, como vimos, por detrás estava subjacente um modelo de desenvolvimento que entrava em crise pautado no consumo e no crédito subsidiado. Como bem se expressou o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica: “conseguimos, até certo ponto, ajudar os pobres a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”.11 Segundo dados, nos governos de Lula e Dilma, mais de 35 milhões de pessoas foram incluídas no sistema. Incluídos pelo consumo de bens, como fogão, geladeira, TVs, automóveis e acesso à Internet, mas não pela cultura até alcançar a cidadania plena.12 É evidente que a democracia pressupõe partidos fortes, ideológicos e consolidados. No entanto, já se percebia naquele momento o deficit da concepção da democracia representativa.13 Desta forma, é permitido afirmar que os procedimentos eleitorais não estavam sendo suficientes. Havia uma crise de representação. Votar de tempo em tempos parecia não contemplar os reais interesses da população. Neste sentido, é preciso alargar o conceito de democracia, uma democracia mais substancial que pressupõe maior participação e resolução das demandas sociais.14 Perguntado se havia uma crise da democracia representativa na época, assim se expressou Manuel Castels: Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo

10 Revel, (1984, p. 25.) 11 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46624102. Acesso em 05 jul. 20119. 12 35 milhões de pessoas ascenderam à classe média. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/35-milhoes-de-pessoas- ascenderam-a-classe-media/. Acesso em: 20 dejulhode 2019. 13 Cf. o trabalho de Moisés (2008, p. 12). 14 Cf. otrabalhosobre a democracia substancial em Brilhante e Pase (2015).

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que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.15

Essa posição é compartilhada pela professora de mídia digital Giselle Beiguelman (FAU-USP). A pesquisadora é cética quanto à atitude dos políticos: “Parece que eles tentaram colocar um 'curativo' para solucionar um problema muito mais grave”. Segundo ela, “[há] uma crise na democracia representativa. A Internet aumentou a quantidade de informação e hoje as pessoas estão de olho nas ações governamentais. Os protestos devem continuar enquanto não forem feitas reformas profundas”.16 O prognóstico da pesquisadora estava certo. Realmente os protestos se intensificaram, principalmente com a insatisfação quanto aos rumos do governo de Dilma Rousseff. Dilma perdeu força entre a opinião pública e entre os partidos aliados culminando no seu afastamento em definitivo da Presidência da República. A próxima seção trata desse fato.

O impeachment de Dilma Rousseff Como já citamos, Dilma Rousseff assumiu seu mandato em 1º de janeiro de 2011 sendo o primeiro governo de continuidade, depois de quase 123 anos de vida republicana.17 Na economia, o governo Dilma empreendeu um grande esforço inicial de conter a inflação. Tratava-se na época de uma conquista importante que, momentaneamente, fora vencida, graças aos cortes orçamentários de R$ 50 bilhões de ajustes fiscais colocados em prática pelo governo. Vencida essa batalha inicial, o governo se preparou para encarar outro problema: uma nova crise mundial que se aproximava. Na dimensão política, a instabilidade parecia ser ainda maior. O governo Dilma enfrentou, já no seu primeiro mandato, altos níveis de corrupção em seus principais ministérios, vindo a demitir três ministros por irregularidades – Antônio Palocci, ministro da Casa Civil, Alfredo Nascimento, ministro dos Transportes e Wagner Rossi, ministro da Agricultura – e Nelson Jobim, ministro da Defesa, demitido pelas contundentes declarações

15 Entrevista de Manuel Castells ao jornal O Globo, publicada em 29/06/2013. Acesso em 20/10/2019; . 16 “‟Epidemia‟ de manifestações tem quase 1 protesto por hora e atinge 353 cidades” In: 17 Mesma orientação econômica e política do seu antecessor.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 feitas contra o próprio governo. A “faxina” proposta por Dilma, como ficaram conhecidas as ações da presidenta, acabou gerando instabilidade, tensão e descontentamento na base aliada: “o clima na base aliada está como no Rio Grande do Sul de manhã cedo: gelado e com cerração”, afirmou o presidente da Câmara, Marco Maia (PT/RS) na época.18 A corrupção se insere na herança da cultura política brasileira, que sempre se configurou repleta de vícios e mazelas. Com a ascensão do PT ao poder, pensava-se que o partido fosse conduzir a política de uma maneira diferenciada. Manteve, no entanto, os velhos métodos de fazer política, sustentado no clientelismo e no patrimonialismo, tudo em nome da governabilidade. Por essas razões, as ações da “faxina ética” proposta por Dilma na época gerou insatisfação e constrangimento dentro do seu próprio partido, pois havia um entendimento, dentro do próprio PT, de que, quanto mais Dilma acentuava a “faxina” política, mais corrupto o governo anterior parecia, na medida em que os ministros que caíram todos foram indicações de Lula. O que se percebia, no entanto, era que a reengenharia política encabeçada por Lula ia sendo desmontada. O cientista político Fábio Wanderley Reis criou uma nomenclatura para demonstrar o distanciamento de Dilma de seu antecessor e padrinho político: chamou de “deslulização”: “A deslulização do governo me parece fatal, dada as diferenças entre eles no modo de fazer política”.19 O caminho da “faxina ética” proposto por Dilma foi um caminho arriscado. Dilma encontrava-se em um dilema, pois não tinha como dar continuidade a uma pauta tão periclitante, na medida em que o respaldo político que precisava para sustentá-la era nulo, com exceção de alguns políticos como o senador Pedro Simon, que saiu em defesa da presidente. Para dar continuidade à limpeza ética, Dilma precisaria do apoio popular irrestrito. Mesmo tendo, nesse momento, uma aprovação popular e a opinião pública favorável, bem como alguns setores da classe média, Dilma encontrava-se em uma encruzilhada perigosa: ou dava continuidade à “faxina” política ou corria o risco de ver a sua base de sustentação política se esfacelar e comprometer a sua governabilidade. Os problemas éticos da administração petista, as dificuldades econômicas que atingiram boa parte da classe média que vinha perdendo seu poder de compra e a ameaça da volta da inflação foram os pontos centrais para o acirramento das manifestações levando

18 Clima da base é „gelado‟ diz Marco Maia (PT – RS). Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/clima-na-base-e-gelado-diz-marco-maia-1.591329. Acesso em abril de 2019. 19 Argumento de Fábio Wanderley Reis. A “deslulização” do governo Dilma. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/46592-conjuntura-da-semana-governo-dilma-cenarios-incertos. Acesso em maio de 2018.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 milhares de pessoas às ruas. Aliada a isso estava a disseminação da informação da corrupção que atingia o governo no caso do “Petrolão” e que gerou um sentimento de indignação e ódio. A pauta dos manifestantes, predominantemente branca, de classe média alta e alta, centrou-se na corrupção e no impeachment da presidente. Dilma conseguiu terminar o seu primeiro mandato a duras penas. Entra na disputa da reeleição tendo como principal oponente o senador Aécio Neves (PSDB – MG). A vitória de Dilma foi apertada no segundo turno com uma diferença de apenas 3,28% dos votos. Passados os louros da vitória da reeleição e os aplausos da posse da presidente Dilma, o que se presenciou, depois de um mês e alguns dias do seu segundo governo, eram ares de fim de festa e de ressaca política. Tratava-se de um governo que, como dizia Ricardo Kotscho, ex-secretário de imprensa do governo Lula, corria o risco de acabar antes mesmo de ter começado. O cenário econômico externo continuava desfavorável atingindo em cheio a economia interna fazendo com que o governo aumentasse a taxa de juros em meio ponto porcentual, para 12,25%, o que freava ainda mais a competitividade da indústria brasileira e gerava mais desemprego. Para evitar o risco de recessão, o governo implantou – com atraso – medidas amargas para “ajustar a máquina”: controle fiscal, cortes nos gastos, mudanças no seguro-desemprego, aumento de impostos sobre o crédito ao consumidor e importações, mudanças no Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) para o setor de cosméticos e, por fim, o aumento nos tributos sobre os combustíveis, fazendo aumentar os preços de forma assustadora, pois, em alguns postos, o litro da gasolina aumentou R$ 0,40 a R$ 0,50 centavos – em torno de R$ 15,00 a R$ 30,00 a mais para a população encher o tanque. O governo Lula-Dilma passou 12 anos subsidiando o crédito para a população consumir mais, mas esse modelo esgotou-se gerando o endividamento generalizado da população. Tardio foi o ajuste fiscal: dava a entender que tivemos 12 anos de gastança desenfreada – depois chegou a hora do aperto – de pagar a conta. Por fim, o governo Dilma teve dificuldades no controle da inflação, culpando a situação de estiagem que atingiu grande parte do território nacional na época. A falta do produto “água” incidiu no aumento dos preços em geral. Além do mais, a falta d‟água repercutiu na produção das indústrias paulistas. Em termos políticos, o governo Dilma perdeu o apoio da base aliada no Congresso Nacional: , do PMDB, venceu as eleições no Congresso Nacional somando 267 votos e tornando-se presidente daquela casa. O candidato oposicionista, Júlio Delgado (PSD), conquistou mais 100 votos (apoiado pelo PSDB). Somando os dois, temos 367 deputados, contra apenas 136 do candidato Arlindo Chinaglia (PT), o candidato oficial do governo. A vitória de Eduardo Cunha do PMDB – ala oposicionista ao governo Dilma – fez

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 com que o governo Dilma recuasse e passasse a negociar com o Congresso. Eduardo Cunha, um desafeto político de Dilma, não tardou em aceitar e encaminhar o processo de impeachment proposto pela professora Janaína Paschoal e os juristas Miguel Reale Júnior e Hélio Bicudo.20 O que era uma suspeita ficou confirmado: o vazamento da conversa entre Romero Jucá, senador licenciado do PMDB, partido aliado de Dilma, e ministro do Planejamento de Dilma e Sérgio Machado – (ex-presidente da Transpetro) demonstra que o processo de afastamento de Dilma Rousseff teria um objetivo: barrar a Operação Lava-Jato: “Jucá, você tem que ver com seu advogado como é que a gente pode ajudar. [...] Tem que ser política, advogado não encontra [inaudível]. Se é político, como é a política? Tem que resolver essa porra... Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”. O processo de votação, no Congresso, do impeachment de Dilma foi vexatório. Presenciamos deputados votando não pelo impeachment de Dilma em si, mas votavam “Em nome de Deus, do seu estado, por seus pais, mães e filhos...”. Poucas menções aos supostos crimes de Dilma. Além do mais, Dilma foi julgada por políticos “ficha suja”. Segundo dados da ONG Transparência Brasil, 60% dos membros do Congresso tinham processos pendentes com a Justiça. O próprio Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, era réu. Por fim, com o processo de impeachment aceito pelo presidente do Congresso, Eduardo Cunha (PMDB), um político com credenciais éticas pouco louváveis, o povo brasileiro viu um festival de horrores na votação do processo de impeachment num domingo à noite em rede nacional. Embalados por som de batidas de panelas, finalmente o fim do ciclo petista de governar chegava ao fim. Dilma saiu derrotada da Câmara dos Deputados. Foram 367 votos favoráveis a seu afastamento, 137 contrários, além de 7 abstenções e 2 ausências. Assumiria o vice de Dilma, Michel Temer, que entrou para a história política do país como um conspirador, um traidor. Afinal, o “golpe parlamentar” fora tramado por ele, Eduardo Cunha, boa parte do PMDB e oposição. Dilma foi deposta pelas supostas “pedaladas fiscais”, prática recorrente em administrações públicas.21

20 Janaína Paschoal foi uma das autoras do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, junto com os juristas Miguel Reale Júnior e Hélio Bicudo. A peça foi encomendada pelo PSDB, pela qual pagou à advogada R$ 45 mil. Seu desempenho no processo que levou à queda de Dilma levou-a a ser eleita deputada, nas eleições de 2018, com cerca de 2 milhões de votos. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/janaina- paschoal-admite-que-dilma-nao-caiu-por-pedaladas-fiscais/. Acesso em janeiro de. 218. 21 Conferir o trabalho de Nunes (2019).

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Michel Temer, o breve Como já expressamos, tudo começou em 2013 quando as primeiras manifestações eclodiram em diversas cidades do país. A insatisfação proveniente de boa parcela da classe média centrava-se na crise econômica e na crise política que assolava o governo Dilma. Com a reeleição de Dilma, em 2014, em uma vitória apertada sobre seu oponente, Aécio Neves, 51,6% dos votos contra 48,3%, a polarização política no Brasil só aumentou. A fragilidade econômica, o aumento da inflação e a perda do apoio no Congresso Nacional preanunciavam dias nebulosos para o segundo mandato do governo Dilma. Tudo indicava que os rumos do país mudariam com o governo Temer. No entanto, no âmbito econômico e social, o país estava longe de apresentar sinais de recuperação. Tudo estava indo muito mal, mas, para piorar, veio a delação de Joesley Batista, dono do grupo J&F e do frigorífico JBS à Polícia Federal, com a revelação de diálogos pouco republicanos entre o presidente Temer e Joesley. No fundo, se evidenciava a relação promíscua entre o público e o privado no Brasil – prática bem recorrente em nossa história. O recebimento de propina do deputado de confiança de Michel Temer fugindo com uma mala de R$ 500 mil foi o ápice dessa relação. Temer acabou sendo acusado de corrupção passiva, obstrução da Justiça e organização criminosa pela PGR – Procuradoria Geral da República. Michel Temer lutou com unhas e dentes para não ser afastado depois de ter sido denunciado pela PGR. O deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ), relator na Câmara, deu parecer favorável à denúncia oferecida pela PGR. Para salvar Temer, o Planalto, de forma escancarada, modificou 20 deputados num universo de 66 da Comissão de Constituição e Justiça. Foram 20 trocas para votar contra a denúncia. Além do mais, os ministros de Temer receberam mais de 60 deputados desde que o presidente fora denunciado. O Governo “abriu os cofres públicos”, literalmente, apesar da crise econômica, para emendas de parlamentares ao orçamento. Por um lado, houve cortes no orçamento para educação, segurança e saúde; por outro, muitos parlamentares foram beneficiados por votarem a favor do Temer. O fato é que Michel Temer se livrou do processo. No Congresso, assistimos novamente a um show de horrores e bizarrices com xingamentos, empurra-empurra, sem falar na excentricidade e no triste protagonismo do deputado Wladimir Costa, do partido “Solidariedade”, o mesmo que tatuou o nome do presidente Temer no ombro esquerdo, ao votar a favor do impeachment de Dilma. Anomalias e idiotices pessoais à parte, o resultado foi que a oposição não conseguiu os 342 votos necessários para encaminhar o processo contra Michel Temer. A oposição só conseguiu 227 votos contra os 263 votos dos deputados da base governista, uma diferença de 36 votos pró-Temer. No total, 492 deputados votaram, 02 se

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 abstiveram e 19 não compareceram. Assim, Temer concluiu o seu mandato apesar de ser o presidente mais rejeitado da história até então. Pesquisa Datafolha divulgada no dia 02 de outubro indicava uma reprovação de 73%, sendo que apenas 5% aprovavam o seu governo. Da mesma forma, a pesquisa da CNI/setembro de 2017 dizia que 92% não confiavam em seu governo. Então, como explicar o paradoxo de Temer terminar seu governo? Como foi possível Temer resistir com um cenário desfavorável da economia em queda e a imediata relação com a alta do desemprego? O retrocesso deu-se nos aspectos econômico, social e político. Como Temer resistiu de forma implacável às frequentes denúncias do Ministério Público Federal e da Suprema Corte? As imagens eram reais da roubalheira registrada em áudios com a voz do próprio presidente. Vídeos e fotos de malas de dinheiro que o envolvem diretamente e seu ex-ministro. Prestando bem a atenção, a resposta para essas perguntas não são tão paradoxais quanto parecem. O certo é que o governo Temer cumpriu o seu papel em administrar para grupos que, de certa forma, saíram beneficiados. Temer recebeu apoio principalmente dos deputados da “bancada do BBB”: boi, bíblia e bala, ligados ao setor do empresariado, ruralistas e segmentos conservadores. Sim, Temer trabalhou com afinco nas principais propostas reivindicadas por esses segmentos: das 36 “propostas para o Brasil sair da crise”, enviadas ao governo Temer pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), 29 avançaram. Um índice de 80% de atendimento. Os ruralistas encaminharam 17 reivindicações – 13 foram atendidas – ou 76%. Os destaques são os avanços na reforma trabalhista e a regulamentação da terceirização, junto com o programa de refinanciamento de débitos tributários das empresas. No setor rural, os grandes produtores foram contemplados com a generosa renegociação de débitos, com a lei da regularização fundiária e a flexibilização das regras de financiamento ambiental. Já a bancada religiosa segue barrando projetos contrários aos seus interesses e promovendo outros como o “escola sem partido”. A bancada da bala encaminha projetos que alteram a seu favor o Estatuto do Desarmamento e a revisão da maioridade penal de 18 para 16 anos. Por fim, vimos malas de dinheiro da empresa JBS nas mãos de um primo do senador Aécio Neves, que continua livre, leve e solto até hoje. Da mesma forma, assistimos ao assessor direto do Presidente Temer, o deputado Rocha Loures, troteando com dinheiro de propina da mesma JBS. E mais, foram encontradas 8 malas com mais de 51 milhões de reais com as digitais de Geddel Vieira, ex-braço direito do presidente Temer. Geddel acumula crimes desde os anos de 1990, no entanto, sua mãe alega que o filho é “doente”. Aliás, a mala de Loures virou necessaire comparada às bagagens de Geddel. Mesmo que venha a se

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 confirmar a anulação dos benefícios judiciais concedidos ao todo poderoso Joesley Batista, como poderemos apagar as imagens de nossas memórias e do youtube com as malas de dinheiro com propina para Aécio e para Temer? Por outro lado, do “quadrilhão” da Cúpula Nacional do PMDB na ala do governo Temer, quem não tem foro privilegiado está preso. Continuam soltos os protegidos pelo escudo do foro: além do próprio Temer, os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência). Estão atrás das grades o ex-ministro Geddel Vieira Lima e os ex-presidentes da Câmara e Eduardo Cunha. Michel Temer chegou a ser preso no dia 21 de março de 2019, em cumprimento expedido pelo juiz Marcelo Bretas da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, da Operação Lava Jato daquele estado. No entanto, foi solto após passar 5 dias preso. No dia 8 de maio de 2019 Temer é preso novamente, mas no dia 14 de maio solto novamente.22

Considerações finais Ao encerrar este trabalho percebe-se que, aos poucos, vai se desmontando a farsa do impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula sob a gerência do ex-juiz Sérgio Moro, “dono” da Operação Lava Jato, junto com e outros procuradores da República. Tudo foi extremamente pensado e arquitetado para que Dilma fosse deposta e Lula ficasse fora das eleições de 2018. Não bastou o ex-juiz Sérgio Moro forjar provas, condenar e prender Lula. Dados revelados pela “Vaza Jato”23 demonstram que Moro ocuparia um cargo no futuro governo de Bolsonaro. Esse assunto já era tratado antes mesmo das eleições, como também divulgou o ex ministro do governo Bolsonaro, Gustavo Bebianno: “Foi a primeira vez que o Paulo Guedes mencionou que estava conversando com o Sergio Moro. Ele me contou que já tinha tido cinco ou seis conversas com o Sergio Moro e que ele estaria disposto a abandonar a magistratura e aceitar esse desafio como ministro da Justiça”, afirmou Bebianno.24 O fato é que Bolsonaro (PSL) venceu as eleições para presidente da República com 55,13% dos votos válidos (57,79 milhões de votos absolutos) no segundo turno da eleição

22 Até este momento o ex presidente Temer não foi julgado nem condenado. 23 Vaza Jato é o termo pelo qual ficou conhecido, na imprensa brasileira, o vazamento de conversas, realizadas através do aplicativo Telegram, entre o ex-juiz Sérgio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, além de outros integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato. A divulgação das conversas foi feita pelo jornalista estadunidense , do periódico virtual , em junho de 2019. 24 Universo On Line – UOL. Guedes chamou Sergio Moro para ministério antes do 2º turno, diz Bebianno. Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/11/18/guedes-chamou- sergio-moro-para-ministerio-antes-do-2-turno-diz-bebianno.htm. Acesso em outubro de 2019.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 presidencial contra Fernando Haddad (PT), que ficou com 44,87% dos votos válidos (com um total de 47,04 milhões de votos de eleitores). No segundo turno foi computado 11,08 milhões de votos nulos ou brancos (9,57% do eleitorado) e não compareceram à votação 31,37 milhões de brasileiros (21,30% do eleitorado). Se considerarmos que o Brasil tem 147 milhões de eleitores aptos a votar, excluímos os votos de Haddad, 47 milhões, mais os votos brancos e nulos, 11 milhões, mais as abstenções 31 milhões, temos 89 milhões de eleitores que não votaram em Bolsonaro, votaram em branco ou se abstiveram. Neste caso, apenas um terço dos eleitores brasileiros votaram em Bolsonaro, o que lhe garantiu a vitória. Portanto, a governabilidade é uma tarefa bastante difícil para um governo que tem apenas um terço de apoio do eleitorado. A eleição foi marcada fortemente pelo viés ideológico entre “esquerda” e “direita”, que traz aspectos liberais na economia e conservadores nos costumes. Defensor da Ditadura Militar e de seus governos, Bolsonaro conta com o vice-presidente, General Mourão, e mais de 130 militares das Forças Armadas nos primeiro e segundo escalões. Dos 22 ministros, 8 são militares. Por falar em Ministérios, Bolsonaro tem no Ministério da Economia e da Justiça o seu par de azes: o economista Paulo Guedes e Sérgio Moro, o mesmo juiz que esteve à frente da Operação Lava-Jato, que comandou o processo que condenou Lula à prisão. O fato novo nessa eleição é que o presidente eleito usou meios de promoção e de convencimentos pouco usuais. Até a última eleição víamos os partidos maiores, como PSDB e PT utilizarem estratégias de marketing profissionais. Os marqueteiros davam o tom das campanhas. As mídias formais eram essenciais para a eleição. Tempo de TV e rádio, além de coligações, elegiam presidentes. Além disso, eram campanhas milionárias. Bolsonaro não tinha tempo relevante de TV e rádio, seu partido era pequeno, suas coligações insuficientes. Mas, como já exposto, soube se utilizar das novas mídias. As mídias que potencializaram sua campanha: Facebook, Twitter, Instragram e Youtube. Não podemos verificar a eficiência ou não do WhatsApp na campanha, porque é difícil de rastrear as mensagens. Mas, dentre as redes sociais elencadas acima, Bolsonaro lidera o “ranking” de seguidores. A adesão de seguidores é de 20 milhões somando todas as redes.25 Quando este artigo se encerra, Bolsonaro não concluiu ainda o primeiro ano de seu governo. O governo de Bolsonaro tem sido marcado pela excentricidade de boa parte dos seus ministros, somada às trapalhadas do próprio presidente e ataque à imprensa. São tantas “idas e

25 Poder 360. Jair Bolsonaro alcança 20 milhões de seguidores nas redes sociais. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/jair-bolsonaro-alcanca-20-milhoes-de-seguidores-nas-redes-sociais/ . Acesso em 04 nov. 2019.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 vindas”, “caneladas” que até mesmo o presidente reconhece: “desculpem as caneladas, não nasci para ser presidente, nasci para ser militar...”, disse ele.26 Surpreende uma afirmação dessas de alguém que, por trinta anos, esteve no centro do poder político no Congresso Nacional. Percebe-se também recuos, mal-entendidos, conflitos com o Congresso e nas redes sociais. No ambiente virtual, o presidente tem sérias dificuldades em frear o ímpeto de seu filho, Carlos Bolsonaro, responsável pelas redes sociais do pai desde o tempo de campanha. Os eleitores mais atentos já perceberam os vacilos e erros e se mostram um tanto preocupados com os rumos do governo. Segundo pesquisa Datafolha divulgada no dia 7 de abril, os índices de aprovação na largada do governo Bolsonaro são menores que os de qualquer presidente eleito após o período da democratização (1985). Três de cada cinco brasileiros consideram que o presidente faz menos do que se esperava (61% das pessoas ouvidas). Aumentou também o pessimismo dos brasileiros em relação à corrupção: o percentual passou de 19% para 40%, principalmente entre os mais jovens, mulheres e nordestinos. Ao ler um gráfico que mostra que ele é menos inteligente em relação a Dilma e Lula, Bolsonaro respondeu à imagem postando no twitter uma gargalhada “kkkk”. Tem-se dúvida se Bolsonaro riu por concordar ou por não ter entendido os gráficos. Perguntado sobre sua avaliação sobre a pesquisa, Bolsonaro simplesmente respondeu: “não vou perder tempo para comentar pesquisa do Datafolha”. Dias 29 e 30 de agosto de 2019 o DataFolha foi novamente a campo para avaliar o governo Bolsonaro. A Pesquisa Datafolha foi divulgada no dia 02 de setembro pelo jornal “Folha de S.Paulo” mostra os seguintes percentuais de avaliação do governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL): Ótimo/bom: 29%; Regular: 30%; Ruim/péssimo: 38%; Não sabe/não respondeu: 2%.27 As barbaridades promovidas pelo governo Bolsonaro em termos econômicos levaram a China, maior parceiro comercial do país, a reduzir a compra de carne e soja em decorrência do uso abusivo de agrotóxicos. Somente nos primeiros 66 dias deste ano foram 86 novas substâncias liberadas no país (muitas delas banidas fora do Brasil). Além de ser uma “bomba- relógio” contra a saúde pública, esse ato impactará drasticamente nas exportações brasileiras. O Ibama foi violentado, funcionários foram demitidos, cortando recursos e diminuindo atribuições. O IBGE foi atacado pelo presidente após divulgar os números do desemprego no

26 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/nao-nasci-para-ser-presidente-nasci-para- ser-militar-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em outubro de 2019. 27 Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/09/02/38percent-reprovam-e-29percent- aprovam-o-governo-bolsonaro-diz-datafolha.ghtml. Acesso em: 06 nov. 2019.

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Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1, Nº 3, p. 70–87, Setembro– Dezembro de 2019 país. Cortes foram efetuados no Programa Minha Casa/minha vida, reforma agrária, aquisição de alimentos, demarcação de terras de comunidades tradicionais e a triste realidade de mais de 13 milhões de desempregados. 1 milhão de contratos do FIES estão atrasados e milhões de pessoas sem atendimento por causa da crise do programa Mais Médicos. No entanto, de todos os erros, o pior estrago foi na Educação, que, não por acaso, no 99º dia teve troca de comando: saiu Ricardo Vélez Rodrigues e entrou Abraham Weintraub, um “discípulo” do professor Olavo de Carvalho que tem mais atacado as Universidades públicas do que apresentar propostas para a pasta. Por fim, o governo de Bolsonaro ainda é uma incógnita para os analistas. Por um lado tem se mostrado liberal na economia, mas, por outro, conservador até reacionário nos valores.

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