pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca – impressões etnográficas sobre a produção de um desfile de escola de samba da Estrada Intendente Magalhães

Piñas y bananas en los “patios” del carnaval carioca – impresiones etnográficas acerca de la producción de un desfile de escuela de samba de la ruta Intendente Magalhães

Bananas and pineapples in Rio’s carnival “backyards”: ethnographic views on the production of a parade at Intendente Magalhães Avenue

Leonardo Augusto BoraI

Resumo:

Palavras chave: O artigo lança questionamentos sobre os processos de criação, gestão e confecção dos desfiles das escolas de samba apresentados na Carnaval carioca Estrada Intendente Magalhães, Zona Norte do . Longe do megaevento anualmente realizado na “Passarela do Samba” (o Escolas de samba Sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí, na região central da cidade, onde desfilaram, em 2016, 26 escolas – 14 no Grupo de Acesso Estrada Intendente A e 12 no Grupo Especial), o dito “carnaval do povo” reúne cerca de 60 Magalhães agremiações, fato que desperta um paradoxo: apesar de concentrar o maior número de escolas de samba, os desfiles da Intendente permanecem invisibilizados e inseridos em uma lógica produtiva bastante diferente daquela observada nos arredores da Sapucaí (o que é interessante do ponto de vista etnográfico). A partir do relato de um caso específico, o carnaval apresentado em 2015 pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, do Largo da Batalha, Niterói, pretende-se problematizar tal universo, redirecionando as luzes dos estudos culturais para os “quintais” do carnaval carioca.

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 46 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016

Resumen:

El artículo tiene preguntas sobre el proceso de la creación, gestión Palabras clave: y producción de los desfiles de las escuelas de samba de la ruta Intendente Magalhães, Zona Norte de Rio de Janeiro. Lejos del Carnaval carioca mega evento que se celebra anualmente en la “Pasarela de Samba” (el Sambódromo de la Avenida Marqués de Sapucaí, en el centro de Escuelas de samba la ciudad, donde desfilaron, en 2016, 26 escuelas - 14 en el Grupo Calle Intendente Magalhães de Acceso A y 12 en el Grupo Especial) el dijo “carnaval del pueblo” reúne a alrededor de 60 escuelas, un hecho que suscita una paradoja: a pesar de concentrar el mayor número de escuelas de samba, los desfiles de la ruta Intendente Magalhães permanecen invisibles y dentro de una lógica de producción muy diferente de la observada en las proximidades de Sapucai (lo cual es interesante bajo el aspecto etnográfico). A partir de la descripción de un caso específico, el carnaval que fue presentado en el año 2015 por el Gremio Recreativo Escuela de Samba Académico Sossego, del Largo da Batalha, Niteroi, tenemos la intención de discutir tal universo y redireccionar la luz de los estudios culturales para los “patios traseros” del carnaval de Rio.

Abstract:

Keywords: The article takes questions about the creation process, management and production of the parades presented by the samba schools in Rio’s carnival Intendente Magalhaes Avenue, North Zone of Rio de Janeiro. Far away from the great event that is annually made in “Samba Strip” (the Samba schools Sambadrome - Marques de Sapucai Avenue, in the downtown area, where paraded, in 2016, 26 schools - 14 in the Access Group A and Intendente Magalhães 12 in the Special Group), occure the “carnival of the people”, brings Avenue together about 60 associations, a fact that awakes a paradox: despite concentrate the largest number of samba schools, the carnival of the Intendente Magalhães Avenue remains invisible and placed in a very different productive logic in spite of that observed in the vicinity of Sapucai (which is interesting from the ethnographic point of view). From the report of a specific case, the carnival from 2015 presented by Gremio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, from Largo da Batalha neighborhood, Niteroi, we intended to discuss about that universe, redirecting the light of cultural studies to the “backyards” of Rio’s carnival.

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tício existente entre Madureira, Campi- nho e Oswaldo Cruz que os olhares des- Bananas e abacaxis nos “quintais” te trabalho serão direcionados – menos do carnaval carioca – impressões com a pretensão absolutizante de encer- etnográficas sobre a produção de um rar respostas e mais com a curiosidade desfile de escola de samba da Estrada acadêmica de levantar provocações. Intendente Magalhães As lentes investigativas enfoca- rão os arredores da Estrada Intendente I - Introdução Magalhães, lugar onde são realizados, desde 2002 (antes, as apresentações A tela “Carnaval em Madureira”, ocorriam na Avenida Rio Branco), al- de Tarsila do Amaral, instiga a curiosida- guns dos desfiles de escolas de samba de devido à presença de uma torre Ei- da cidade do Rio de JaneiroIII, quais se- ffel estilizada em meio aos barracos da jam, os dos chamados “grupos menores” paisagem suburbana – uma “liberdade - ainda que mais inflados, uma significa- criativa” da artista, recém-chegada da tiva contradição. Em 2004, 22 agremia- França, ou, o que é mais provável, uma ções se apresentaram na localidade; em referência direta à decoração de um co- 2013, com o encerramento dos desfiles reto que levou para os festejos daquela do Grupo B (“terceira divisão”) na Mar- localidade o símbolo maior da “Cidade quês de Sapucaí (houve um inchaço do Luz”?II Datado de 1924, o quadro expres- Grupo de Acesso A, renomeado Série sa o mergulho da intelectualidade brasi- A, que passou a se apresentar em dois leira de então, primeiras décadas do sé- dias, sexta-feira e sábado de carnaval, culo XX, em um universo cultural distinto: antecedendo os desfiles do Grupo Es- os bairros do chamado “Sertão Carioca”, pecial, fixados há décadas no domingo situados nas mais afastadas (em rela- e na segunda-feira de Momo), o número ção às Zonas Sul e central) regiões da de escolas desfilantes na Intendente foi Zona Norte da cidade – que já tinham em a 37; em 2016, somadas as escolas das Madureira um coração pulsante. Quase Séries B, C, D e E, o montante de agre- um século depois, o bairro permanece miações chegou a 58, sendo que uma enquanto ponto central para se pensar o delas, Escola de Samba Cultural Zam- mapeamento da cultura popular urbana bear, não compareceu ao desfile. do município, especialmente pela pre- sença de terreiros de Umbanda e Can- Os números elencados revelam domblé (que transitam pelo Mercadão, que se trata de um evento bastante plu- espaço sincrético) e demais manifesta- ral, tão importante para a compreensão ções ligadas à ancestralidade afro-brasi- das tramas socioculturais que enredam leira: a Feira das Yabás, os bailes Char- o carnaval carioca quanto as reflexões me do Viaduto Negrão de Lima, o Jongo acerca dos blocos e dos desfiles das da Serrinha, os blocos carnavalescos e “grandes” escolas de samba, concentra- as escolas de samba – com destaque dos na Marquês de Sapucaí. É de causar absoluto para e Império Serrano, estranhamento, portanto, a constatação duas das “Quatro Grandes” (modo como de que, passados quase quinze anos da historicamente é nomeado o quarteto for- completa transferência dos desfiles da mado pelas escolas mencionadas mais a Rio Branco para o asfalto do subúrbio, a Estação Primeira de Mangueira e o Aca- sequência de desfiles da Estrada Inten- dêmicos do Salgueiro, agremiações da dente Magalhães continua à margem dos grande Tijuca). Pois bem: é para o inters- estudos acadêmicos e da mídia carnava-

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 48 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 lesca, padecendo da chamada “invisibili- um centro comercial a céu aberto. Du- dade” – termo utilizado à exaustão pelos rante o carnaval, porém, as lojas de ba- agentes envolvidos. Raras são as maté- terias, motores, para-brisas e acessórios rias jornalísticas de fôlego dedicadas ao perdem o protagonismo para as barra- evento, e ainda mais raros os trabalhos quinhas de salgados, doces de tabulei- universitáriosIV. Observando tal lacuna, ro, cervejas e drinks multicoloridos. Ali, o que se pretende aqui é debater alguns ao redor das estruturas provisórias de questionamentos sobre a cadeia produti- arquibancadas, cabines e banheiros quí- va desses “desfiles desconhecidos”. micos, ganha contornos o “carnaval do povo”, cenário mambembe que emoldu- A fim de verticalizar a leitura e ra a apresentação de mais de cinquenta exercitar em maior profundidade os pres- escolas de samba – um evento gratuito supostos etnográficos, será brevemente que contrasta com o megaevento orga- relatada a experiência de trabalho que nizado no Sambódromo (onde imperam resultou no desfile de 2015 da Escola de as catracas, os crachás e as cobiçadas Samba Acadêmicos do Sossego, do Lar- “credenciais” de acesso à pista, comer- go da Batalha, bairro da Região Adminis- cializadas – oficial ou extraoficialmente trativa de Pendotiba, Niterói. Trata-se de – a preços exorbitantes). um imediato caso de “hibridismo geográ- fico”: uma agremiação não sediada na ci- Ainda que o carnaval da Intendente dade do Rio de Janeiro que participa dos Magalhães esteja inserido no programa desfiles da “”, fato oficial da Riotur, é fato que ele permane- que pode parecer corriqueiro (são inúme- ce à margem do eixo turístico que movi- ras as escolas da Baixada Fluminense – menta as maiores cifras da arrecadação como não pensar no caso Beija-Flor de municipal – o “circuito” que engloba as Nilópolis? – e ao menos cinco as escolas regiões centrais (onde desfilam blocos da imensa região de São Gonçalo, Niterói tradicionais, como o Bola Preta e o Ca- e Maricá que participam dos festejos ca- cique de Ramos, sem falar nos festejos riocas), mas que traz no seu bojo um ma- albergados pela Marquês de Sapucaí) e nancial de conflitos e trocas simbólicas. a Zona Sul (o cenário tropical que teste- O exercício do distanciamento e a leitura munhou o “boom” dos blocos de rua, ao crítica da cadeia produtiva dos desfiles longo da primeira década do século XXI, muito poderão contribuir para uma visão após anos de decadência vinculados a menos nebulosa do “carnaval do povo”, diferentes fatores, entre eles a violência tirando-o, momentaneamente, da amar- urbana). Por mais significativa que seja a gada invisibilidade. presença dos grupos de sujos, piranhas (homens vestidos de mulheres), clóvis e bate-bolasV nos bairros da Zona Norte II – “Na Intendente Magalhães se faz do Rio de Janeiro, não é uma surpresa a samba também” ausência de tais manifestações culturais nos espaços decisórios encabeçados A Estrada Intendente Magalhães, pela Sebastiana (no caso dos blocos) importante via que permeia os bairros e no “perfil” (do material de divulgação de Madureira, Oswaldo Cruz, Campinho, às transmissões audiovisuais – televi- Vila Valqueire e Sulacap, é conhecida sivas e radiofônicas) do internacional- por concentrar uma série de lojas de mente comercializado carnaval do Rio. materiais automotivos – tanto que tam- A Intendente Magalhães, nesse mesmo bém é chamada de “Intendente Autosho- sentido, permanece a ser uma “surpre- pping”, como se a própria estrada fosse sa” para muitos pesquisadores, especta-

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 49 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura dores, foliões naturais da cidade, o que de “disputa espacial”. Uma disputa pela dirá para visitantes (não se tem notícia hegemonia: ainda no Brasil-colônia, os de qualquer iniciativa vultuosa do Poder grupos de brincantes Público ou do empresariado privado no sentido de dinamizar o turismo carnava- que conseguiam se impor, seja por lesco da região, atraindo investidores). que razão fosse, adquiriam prestí- O descompasso observado transforma o gio e ampliavam sua capacidade de lugar em uma territorialidade esfumaça- organização [...]. Esse poder carna- da, marcada por sucessivos conflitos e valesco também iria se traduzir na negociações – perspectiva interpretativa possibilidade do grupo determinar o desenvolvida por teóricos do carnaval trajeto que seguiria, certamente pe- como Felipe Ferreira e Maria Laura Vi- las ruas mais importantes da cida- veiros de Castro Cavalcanti. de. [...] O próprio público que acorria ao centro da cidade para assistir à É de Ferreira a ideia de que o car- passagem das sociedades passava naval do Rio de Janeiro é uma festa cons- a privilegiar as ruas por onde desfi- truída (sendo o século XIX, mais especifi- lariam os grupos mais importantes camente o “Congresso das Summidades e, portanto, mais aguardados, es- Carnavalescas”, de 1855, o ponto nevrál- tabelecendo uma nova disputa pelo gico para a compreensão dissoVI) sobre espaço e uma nova valorização dos um território em disputa – não à toa, fala lugares festivos. Começava a se es- que em meados da década de 1840 as tabelecer uma espécie de hierarquia “cerca de 30 ruas estreitas limitadas por espacial festiva, marcada pela defi- morros e áreas alagadas do centro do nição dos lugares carnavalescos [...] Rio de Janeiro” (FERREIRA, 2012, p. 81) (FERREIRA, 2012, p. 82). já eram vistas, pela imprensa da capital do Império, como um palco de conflitos Não é difícil compreender que tal carnavalescos, um barril de pólvora à “hierarquização espacial festiva” per- beira da explosão. Hoje, primeiras déca- manece viva e, no caso dos desfiles das de século XXI, não mais é vista, nas das escolas de samba, encontra na páginas jornalísticas destinadas à cober- Avenida Marquês de Sapucaí, onde o tura dos festejos, a oposição terminoló- equipamento Sambódromo cintila em gica entre “Pequeno” e “Grande” carna- flashes e luzes, e na Estrada Intenden- vais, por exemplo, mas é fato que o teor te Magalhães, onde a iluminação é um conflitivo permanece. A enxurrada de re- dos principais desafios enfrentados pe- portagens anuais sobre brigas e prisões los carnavalescos, uma quase oposição decorrentes do “xixi na rua” ou da “des- binária. Na região de Madureira, as “es- truição de canteiros”, em especial nas or- colas pequenas”; no Centro, “as escolas las de Ipanema e Leblon, comprova o ex- grandes”. Curioso é o fato de que não posto. Também não são raras as notícias mais existe uma “zona de transição”, de conflitos entre grupos de bate-bolas, espécie de “purgatório carnavalesco” na Zona Norte da cidade – notícias es- para as escolas da Série A que comete- tas que, no mais das vezes, contribuem rem o “pecado” do rebaixamento: se até para uma espécie de “criminalização pri- 2012 o desfile do Grupo B ocorria na mária” de uma prática cultural das mais Sapucaí, na “terça-feira gorda”, desde complexas e interessantes. Na visão de então o Sambódromo alberga apenas Felipe Ferreira, dada esta longa duração as duas primeiras divisões (Especial e histórica, não se pode pensar o carnaval Acesso A), inexistindo uma rede de se- do Rio sem que se atente para o senso gurança para salvar uma “escola gran-

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 50 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 de” de uma eventual queda – fato ocor- que fazem subir andares inteiros acima rido em 2016, quando a popularíssima da chamada “estrutura fixa” de cada car- foi rebaixada ro alegórico - e da área de concentração- para o carnaval da Intendente e reacen- VII de cada escola - as agremiações que deu discussões sobre os inúmeros por- se concentram na região do “Balança”, quês de não se utilizar a Passarela do em direção à torre da Central do Brasil, Samba para o desfile de ao menos mais precisam passar, na curva de acesso à uma subdivisão (o Grupo B), o que não Passarela do Samba, por debaixo do Via- apenas geraria mais receita, do ponto duto São Sebastião, o que limita, desde de vista turístico-econômico, como ga- a criação do Sambódromo, as estruturas rantiria uma transição mais suave entre fixas das alegorias que por ali transitam o terceiro e o segundo grupos. ao máximo de 07 metros de altura).

A queda da Caprichosos de Pila- A fenda abissal permanece quan- res revelou, para parte da imprensa car- do os números referentes ao corpo de navalesca contemporânea, que não é desfilantes são comparados (e é preciso exagerada a afirmação de que existe um levar em conta que se está comparando abismo econômico-estrutural entre a In- apenas o “primeiro grupo” da Intendente tendente Magalhães e a Marquês de Sa- Magalhães com o segundo e “último gru- pucaí. Os números falam por si: de acor- po” da Marquês de Sapucaí; se tomadas do com o regulamento oficial da LIESB para análise as Séries C, D e E, o cho- (Liga Independente das Escolas de Sam- que é mais intenso): as escolas de sam- ba da Série B) para o carnaval de 2016, ba da Série B, em 2016, deveriam des- as escolas de samba do grupo poderiam filar com no mínimo 400 componentes; apresentar no máximo 01 carro alegórico as escolas de samba da Série A, com o (com até 04 metros de altura e 07 metros mínimo de 1200 componentes (três ve- de largura, sendo proibido o acoplamento zes mais, portanto). O número mínimo de chassis) e 02 tripés ou quadripés (es- de ritmistas exigido para as baterias da truturas sobre rodas com no máximo 03 Série B, de acordo com a LIESB, foi fi- metros de diâmetro e 04 metros de altu- xado em 80; o número mínimo de ritmis- ra, podendo apresentar, cada um, apenas tas exigido para as baterias da Série A, uma figura viva). No Grupo de Acesso A, de acordo com a LIERJ, 130. de acordo com o regulamento da LIERJ (Liga das Escolas de Samba do Rio de Os dados numéricos evidenciam Janeiro) para o mesmo carnaval de 2016, algo lógico: é fato que qualquer escola cada escola de samba poderia apresentar de samba da Série A que se vê rebaixa- o máximo de 04 carros alegóricos (com a da para a Série B tem de passar por um possibilidade de 01 acoplamento, o que, processo de encolhimento estrutural do na prática, totalizava o máximo de 05 car- desfile (do contingente humano às cons- ros alegóricos), sem limitação do número truções mecânicas), o que pode ou não de pessoas em cima e sem a imposição acarretar em um esvaziamento do corpo de números fechados para os limites de simbólico da agremiação para além dos altura e largura (na prática, a largura das minutos de desfile (no máximo 40 minu- alegorias oscilava entre 10 e 12 metros, tos, na Série B, e no máximo 55 minutos, uma vez que a largura da Marquês de na Série A). Devido à cadeia de diminui- Sapucaí é de 14 metros; a altura poderia ções, torna-se difícil prever se uma esco- atingir os impressionantes 11,5 metros, a la rebaixada terá fôlego (e dinheiro – a depender do uso de engrenagens manu- subvenção total, somados os montantes ais ou hidráulicas - talhas e elevadores oferecidos pela Prefeitura da cidade e as

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 51 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura fatias decorrentes da venda de ingressos, sentou, na noite de terça-feira de car- da comercialização de CD’s e DVD’s, da naval, 17 de fevereiro, “duas realidades transmissão televisiva da Rede Globo, opostas”: os preparativos e os desfiles entre outras fontes legais de receita, for- das escolas de samba Portela, do Grupo necida para cada escola de samba do Especial (Marquês de Sapucaí), e Chatu- Grupo de Acesso A, em 2016, foi de R$ ba de Mesquita, da “quinta divisão” (Gru- 1,2 milhões; para as escolas da Série B, po de Acesso D, Intendente Magalhães). na Intendente Magalhães, sem transmis- Entre outras comparações, os repórteres são televisiva, sem ingressos, sem CD’s Thiago Jock e Danielle Zampollo, sob ou DVD’s, R$ 140 mil)VIII para retornar ao orientação de Caco Barcellos, apresenta- grupo de origem. Quem não transita pe- ram a informação de que “as escolas do los corredores carnavalescos pode supor Grupo Especial recebem um apoio de R$ o oposto: afinal, uma escola oriunda da 5 milhões da Prefeitura do Rio”, enquanto Sapucaí não “desce” para a Intendente a agremiação da cidade de Mesquita, na Magalhães com mais estrutura, experi- figura da vice-presidente Tatiane Pereira, ência e dinheiro acumulado? Na prática, precisava “se humilhar” e pedir R$ 30 mil isso se revela uma falácia: poucas, aliás, para o prefeito – pedido que não foi aten- raras, são as escolas com o “caixa” em dido, levando a dirigente às lágrimas. As dia. No geral, imperam as dívidas colos- “feijoadas” (eventos socioculturais típi- sais e as “cartas de crédito” – uma espiral cos das agremiações carnavalescas) de de endividamentos que acarreta, entre ambas as escolas também foram objeto outros graves problemas, a “cultura do de comparação: no preparo da feijoada calote”IX e o apreço pelos “contratos de portelense, mais de 20 cozinheiras e 720 boca”, sem papéis assinados nem ga- quilos de carne; para a feijoada da Cha- rantias jurídicasX. Além dos problemas fi- tuba de Mesquita, pedidos de doação nos nanceiros, a experiência prática também arredores da quadra de ensaios – e a vi- revela que é comum o sentimento de bração quando da “conquista” de 2 quilos “apequenamento”: as escolas, depois de de feijão preto, que seriam preparados, rebaixadas, tendem a se ver diminuídas junto aos demais ingredientes, por 04 co- enquanto corpos sociais que são, e per- zinheiras, em “06 panelinhas”. Na feijoa- dem, consequentemente, parte da força da da Portela, mais de 6 mil pessoas e humana (a chamada “garra”) empreendi- lucro não revelado; na feijoada da Chatu- da em outros carnavais. ba, público discreto e lucro de R$ 700.

Por essas e outras, as poucas O contraste igualmente é a tônica reportagens jornalísticas dedicadas a do artigo “Olha a desigualdade aí, gen- apresentar ao público o universo carna- te!”, de Aydano André Motta, para o Pro- valesco da Estrada Intendente Maga- jeto Colabora. Mais do que enfocar as lhães costumam enfocar as dificuldades trocas simbólicas e financeiras que ocor- financeiras. Via de regra, não se olha rem dentro e ao redor das quadras das para o “carnaval do subúrbio” enquanto agremiações, o jornalista enfatizou as re- “fim”, mas tão somente enquanto “meio”: lações conflitivas existentes no chamado o meio de acesso à Marquês de Sapu- Barracão do Samba, um galpão bastante caí, o que reforça as discrepâncias. Mais grande, localizado à Rua Carlos Xavier, do que um “carnaval alternativo/criativo”, 603, na zona nebulosa entre os bairros apregoa-se a ideia de um “carnaval de de Madureira, Campinho e Oswaldo Cruz dificuldades”. Foi o que aconteceu em (segundo os dados da LIESB, o barra- fevereiro de 2015, quando o programa cão se localiza em Campinho; de acordo Profissão Repórter, da TV Globo, apre- com o jornalista, em Oswaldo Cruz). O

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 52 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 espaço, sabidamente administrado pelo fados, etc.) e o “primo pobre”, o barracão ex-policial Marcos FalconXI (tanto que, coletivo nas franjas da Intendente Ma- nas imediações, é mais conhecido por galhães. O fluxo de peças escultóricas e “Barracão do Falcon”, lugar situado em fantasias é intenso: caminhões, dia após frente ao “Campo do Falcon”), reuniu, dia, levam e trazem o “lixo” dos carnavais durante os preparativos para o carnaval produzidos na Cidade do Samba, o que de 2016, as alegorias de 29 das esco- torna uma tarde de observação em tal es- las de samba desfilantes na Intendente paço suburbano, o que dirá na semana Magalhães, podendo ser compreendido que antecede o carnaval, qualquer coisa como um “condomínio”. Trata-se de um que não monótona. Trata-se de uma eno- espaço híbrido (e conflitivo) por exce- velada rede de trocas econômicas e sim- lência: além de “fábrica” de alegorias e bólicas: devido ao alto custo de materiais adereços, funciona enquanto igreja neo- como blocos de isopor e galões de tin- pentecostal (o Ministério Selando a Paz, ta, e principalmente devido ao alto custo cujos cultos são ouvidos pelos trabalha- da mão-de-obra qualificada, as escolas dores da “festa profana”) e ponto de reu- que desfilam na Intendente Magalhães niões comunitárias, atraindo longas filas se veem na dependência das doações e, de moradores das redondezas. As esco- quando o dinheiro sobra, da compra de las ali albergadas pagam aluguel anual fantasias, esculturas e adereços (às vezes (R$ 5.500, em 2016) e dispõem de um alegorias inteiras) refutados pelas coir- certo conforto (banheiros, cozinha, ilu- mãs que se apresentam na Sapucaí. As minação, teto com poucas goteiras, um influências políticas são notáveis: esco- faxineiro) e de uma certa segurança (as las das séries B, C, D e E geograficamen- presenças de um bombeiro civil e de um te situadas nas mesmas regiões contro- guardião permanente). ladas (no caso dos bicheiros, traficantes e milicianos) por dirigentes e patronos Na visão de Aydano André Motta, de escolas do Grupo Especial tendem a o Barracão do Samba é um complexo receber auxílio das “vizinhas” abonadas, cultural dos mais inusuais e criativos: “a uma vez que não oferecem concorrência peculiar sustentabilidade também dita o direta. Comenta-se que, em não havendo ritmo de trabalho no barracão de Oswal- a “ameaça” de uma escola como a Boca do Cruz. Praticamente nada vai para o de Siri (em 2016, no Grupo de Acesso C), lixo – e muito material descartado pelas desbancar a grandes da Cidade do Samba ganha vida (oito vezes campeã do Grupo Especial, no sufoco das últimas divisões” (MOTTA, sediada no mesmo bairro de Ramos em 2016). O autor enfatiza a ideia de que há que a Boca surgiu enquanto bloco e virou uma conexão direta entre os galpões da escola de samba, em 2011), é fato que o Cidade do SambaXII (o complexo inaugu- famoso bicheiro Luizinho Drummond, pa- rado em 2006, na Zona Portuária, onde trono da Imperatriz há mais de 35 anos, as 12 agremiações do Grupo Especial não hesita em prestar auxílio, cedendo confeccionam as suas alegorias e fanta- esculturas e materiais em geral, à outra sias em barracões de 7 mil metros qua- escola da localidade. Os laços de influên- drados e 19 metros de altura, com direito cia de Drummond, na extensa territoriali- a estruturas de guindastes, alarmes an- dade que engloba o Piscinão de Ramos e tichamasXIII, câmeras de segurança, re- o Complexo do Alemão, além de bairros feitórios, banheiros espaçosos, inúmeras como Penha, Olaria e Bonsucesso, são salas de criação, reunião e administração fortalecidos com o fortalecimento da Boca equipadas com “luxos” como aparelhos de SiriXIV – comprovação da tese de Maria de televisão e ar-condicionado, almoxari- Laura Cavalcanti de que “as grandes es-

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 53 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura colas de samba estabeleceram redes de val é feito com base em amor, empenho reciprocidade que atravessam diferentes e esperança. O dinheiro é pouco e por bairros e diferentes grupos sociais” (CA- isso o lema é trabalhar com o que se tem VALCANTI, 1994, p. 75). É por isso que o e com o que se pode. A criatividade é a único carro alegórico confeccionado pela alma do negócio.” (LACERDA, 2013). A jovem escola no Barracão do Samba, seleção lexical do autor, com palavras para o desfile de 2016, ostentava inúme- como “amor”, “empenho” e “esperan- ras esculturas de animais africanos que ça”, ajuda a construir uma visão positiva em 2015 haviam sido confeccionadas na (e subjetiva) do carnaval da Intendente Cidade do Samba, para o desfile da Im- Magalhães – uma espécie de “protesto peratriz Leopoldinense (em 2015, a Im- afetivo”, na tentativa de valorizar o even- peratriz cantou a África por meio do en- to por meio da sentimentalidade. O teor redo “Axé Nkenda”; em 2016, a Boca de do artigo de Lacerda, nesse sentido, Siri cantou a África por meio do enredo é mais ameno que o de Aydano André “Do Reino das Yabás... As Candaces e a Motta, que, apesar de valorizar o traba- riqueza cultural do Brasil”). lho dos agentes em trânsito no Barracão do Samba, lança mão de uma cartela de Não escaparam dos ouvidos de pequenas (e ácidas, na proporção inver- Motta os dramas referentes aos endivi- sa) ironias e provocações. Resta a ideia damentos. Quando trata do assunto, o de que, com mais ou menos açúcar, o autor aproveita para apresentar ao lei- preparo de um desfile carnavalesco a tor outras características marcantes do ser apresentado na Estrada Intendente trabalho desenvolvido no Barracão do Magalhães é uma iguaria de sabor não- Samba: a multifuncionalidade dos profis- -padronizado, não faltando indigestões e sionais e a capacidade de transitar por notas adstringentes. diferentes agremiações:

Dívida é das palavras mais repetidas III – Bananada de abacaxi no Mercado entre as alegorias em Oswaldo Cruz. Popular Por isso, precisa paciência para re- ceber o salário, resigna-se o artista Trabalhei como carnavalesco de plástico Paulo Campos, que se divi- escolas de samba que se apresentaram de no trabalho em dez escolas – fe- na Estrada Intendente Magalhães no liz da vida. “Aqui, reside a verdadeira período de 2012 a 2016. Ao longo dos alma carnavalesca. Lá (na Cidade do quatro carnavais atravessadosXV (todos Samba), tem almoxarifado, compras, assinados em parceria com demais ar- estrutura. O nosso é lixão, tudo reci- tistas), não apenas conheci inúmeros clado”, descreve. “Tem de ser artista territórios e agentes à margem do poder mesmo!” (MOTTA, 2016). estatal como aprendi uma linguagem própria – a “linguagem carnavalesca”, O caráter de “abnegação” dos ar- dos nomes dos materiais específicos tistas que se empenham em construir os do setor às expressões de línguas afri- desfiles do carnaval de Madureira é igual- canas utilizadas para ocultar segredos. mente destacado no artigo “Na Intenden- Aos poucos, pude observar na prática te Magalhães se faz samba também!”, do algumas colocações de teóricos como professor de História e blogueiro (e jura- Maria Laura Cavalcanti e Nilton Santos, do dos desfiles do Rio de Janeiro e de no que tange à atuação do profissional Porto Alegre) Thiago Lacerda. Segundo “carnavalesco”. Os dramas relaciona- ele, “na Intendente Magalhães o carna- dos ao pagamento dos salários, apre-

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 54 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 sentados por Cavalcanti, foram sen- mento de valores acordados para o de- tidos na pele (e no bolso) no decorrer senvolvimento de tarefas no barracão. de todas as experiências – seja pelos O problema atinge até mesmo escolas valores irrisórios negociados, seja pelos que, antes da abertura dos envelopes atrasos, “beiços” e “calotes”. Da mesma com as notas na quarta-feira de cin- forma, compreendi, ainda no ano de es- zas, eram cotadas ao título neste car- treia como carnavalesco, 2012, quando naval (2016). O desrespeito, é claro, é ajudava a preparar o desfile de 2013 da mais corriqueiro com profissionais de Mocidade Unida do Santa MartaXVI, en- menor nome. (RODRIGUES, 2016). tão no Grupo de Acesso D, o que Nilton Santos quer dizer ao afirmar que não se A denúncia do jornalista mencio- pode enxergar a “profissão carnavales- na os “profissionais de menor nome”, ou co” como algo “homogêneo e estável” seja, aquelas que ainda não passaram (SANTOS, 2009, p. 76). A ausência de por “escolas grandes” do Grupo Espe- regulamentações e demais exigências cial e, consecutivamente, não tiveram as profissionais específicas eram aspectos suas assinaturas fixadas no “panteão” notáveis na comissão carnavalesca da da Marquês de Sapucaí. Na Intendente qual eu fazia parte, marcada pela hete- Magalhães, a situação dos trabalhadores rogeneidade profissional (cada um dos é ainda mais delicada – e o Barracão do 07 membros reunidos sob o salário co- Samba, o lugar que centraliza as ativida- letivo de R$ 5 mil ao todo – o que tota- des criativas nos arredores do palco dos lizou R$ 714 reais individuais, ao final desfiles de Madureira, adquire o caráter do processo – possuía uma “profissão de centro nervoso de tais complicações oficial” para além do fazer carnavalesco, (mesmo, eis o dado interessante, entre e nenhuma profissão se repetia) e pela aquelas que são consideradas as mais instabilidade financeira (o valor acorda- estruturadas escolas do cenário). do foi pago somente depois do desfile e não houve qualquer contrato assinado). Em meados de 2014, atendendo Diz o antropólogo: a um convite do carnavalesco Alexan- dre Louzada (que então estava à frente O lugar do carnavalesco como pro- da escola de samba Portela), eu e Ga- fissional estabelecido e disputado briel Haddad nos desligamos da Moci- por seus inventos artísticos deve ser dade Unida do Santa MartaXVII e migra- necessariamente contraposto a seu mos para o Grêmio Recreativo Escola outro lado, o da precariedade, e, por de Samba Acadêmicos do Sossego, de vezes, da descartabilidade diante da Niterói. A “azul e branca do Largo da Ba- falta de um contrato de trabalho for- talha”, fundada em 10 de novembro de mal respeitável e respeitado (SAN- 1969 e tendo a lira grega como símbolo, TOS, 2009, p. 75). foi inúmeras vezes campeã do carnaval niteroiense e passou a desfilar na cidade Ainda sobre a precarização das do Rio de Janeiro em 1997. Em 2014, relações trabalhistas no universo carna- a agremiação se preparava para desfilar valesco do Rio de Janeiro, o jornalista no Grupo de Acesso B. Renan Rodrigues, do jornal O Globo, es- creveu o seguinte: Ainda nas primeiras conversas tra- vadas com a diretoria da entidade, nas fi- Em parte das Escolas de Samba, guras do então presidente Gustavo Faria mesmo entre as integrantes do Grupo Gomes e do ex-presidente e braço polí- Especial, há relatos de falta de paga- tico José Adriano Vale, apelidado Folha,

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 55 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura percebemos que as questões financei- com a diretoria, sabíamos que a ausên- ras também eram o calcanhar de Aquiles cia de um contrato formal nos tornava da escola (na Mocidade Unida do Santa bastante vulneráveis diante de propos- Marta, durante os preparativos para o tas de trabalho a menores valores ou carnaval de 2014, havíamos vivenciado até valor nenhum – o problema direto uma sucessão de crises acarretadas pe- da inexistência de um piso salarial, con- los rombos financeiros – consequência forme o registrado por Maria Laura Ca- imediata da ruptura de certos contratos valcanti e Nilton Santos). de locação da quadra de ensaios da es- cola). Gustavo não apenas “chorou” a O maior desafio enfrentado pela diminuição do valor do “contrato de tra- escola era a ausência de quadra. “Qua- balho” (que, nos termos legais, com firma dra” é o nome como é conhecida a sede registrada em cartório, nunca existiu) que de uma escola de samba, lugar onde são propusemos (finalmente acertado em R$ realizadas reuniões, atividades festivas 15 mil – o total a ser dividido entre os (aniversários, feijoadas, shows, etc.) e, dois carnavalescos) como enfatizou uma é claro, as disputas de samba-enredo obrigatoriedade: o enredo a ser desen- (sequências de apresentações, com jul- volvido deveria tratar das relações entre gamentos e eliminações semanais, dos África e Brasil, uma vez que este havia sambas que pleiteiam a preferência da es- sido o pedido da Prefeitura de Niterói às cola para embalar a apresentação oficial) 03 escolas do município que desfilavam e as maratonas de ensaios que culminam no carnaval carioca (Unidos do Viradou- no desfile. Por questões contratuais que ro, então no Grupo Especial; Acadêmicos nunca nos foram totalmente reveladas - a do Cubango, na Série A; e Acadêmicos noção de “segredo” (NATAL, 2014), muito do Sossego, na Série B). O objetivo da presente entre as escolas de samba - o Prefeitura era promover o projeto “En- Acadêmicos do Sossego se viu despeja- contros com a África”, previsto para 2015 do da quadra localizada na Rua Jornalista (mas que acabou se materializando ape- Sílvia Thomé, no ano de 2009. Na ausên- nas em 2016). cia de uma sede própria, passou a utilizar como local de ensaios (depois de ampla Não se podia negar o pedido da negociação com a Prefeitura) a estrutura Prefeitura por uma questão objetiva: ele provisória do Mercado Popular do Largo condicionava o recebimento da subven- da Batalha, uma tenda situada na Ave- ção municipal, um trunfo para a trinca nida Rui Barbosa. Sem iluminação ade- de escolas, que, além da subvenção quada ou sistema de som, o espaço do anual concedida pela Riotur, gozava do Mercado se convertia em território híbri- privilégio de ter uma outra fonte de ren- do: nas manhãs de sábados e domingos, da originária do Poder Público. O amplo albergava produtores e comerciantes de conhecimento da dupla subvenção fa- pescados e hortifrutigranjeiros; quando zia com que o Acadêmicos do Sossego caía a noite, recebia a escola de samba fosse uma das escolas mais bem vistas e demais manifestações circundantes do do carnaval da Intendente Magalhães: universo carnavalesco – terminados os com fama de “boa pagadora”, sustenta- ensaios, por vezes ocorriam “descidas de va positivos comentários de bastidores, Santos” (incorporações de entidades de tanto que inúmeros artistas sondavam Umbanda e Candomblé). a vaga de carnavalesco da escola – vi- venciamos, por conta disso, um quadro Problemas derivados da “condição de permanente ameaça (por mais que degredada” eram muitos, sobrando episó- confiássemos no acordo apalavrado dios conflitivos. As relações entre feirantes

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 56 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 e sambistas não eram amistosas, o que brasilidade – para o bem ou para o mal, caracterizava um quadro de disputa es- dados os estereótipos. pacial. A diretoria da agremiação acusava os comerciantes de sabotagem: suposta- As trocas (comerciais e simbó- mente atrasavam o desmonte das bancas licas) de bananas e abacaxis se de- e deixavam o local sujo para prejudicar senharam, ao nosso gosto, enquanto a organização do Sossego. Além disso, conjunto de possibilidades: estéticas, a escola se via sem um espaço fixo para uma vez que poderíamos fugir dos cli- guardar objetos: materiais de outros car- chês da África de savana e mergulhar navais, mesas, cadeiras, caixas de som, no visual tropicalista afro-brasileiro; fi- frigobares, bandeiras e instrumentos mu- nanceiras, posto que já sabíamos que sicais, para ficar em poucos exemplos. O a escola receberia, graças às negocia- principal empecilho, no entanto, era a im- ções realizadas com diretores em co- possibilidade de cobrar ingressos (um pro- mum, doações de grandes esculturas blema de arrecadação): devido à ausência da (entre elas, de “paredes”, além da precariedade das 09 bananas e 01 índio); e mesmo te- instalações, não havia como limitar a en- máticas em sentido estrito: atendería- trada das pessoas na tenda. Refém dos mos ao pedido da Prefeitura, falaría- valores comercializados no bar, a escola mos das relações entre África e Brasil não obtinha lucro: os ensaios custavam a partir de um viés inusitado e ainda caro, dada a logística de transporte de não explorado no carnaval, dialogarí- coisas (todos os instrumentos da bateria e amos com a geografia da cidade-sede todas as mesas e cadeiras, em especial), (Niterói possui o Morro do Abacaxi e a sem falar nos cachês dos músicos. Enseada do Bananal) e, o que julgáva- mos o mais importante, brincaríamos Um tanto impressionados com a com a condição híbrida da escola, que complexidade das relações entre sam- se via obrigada a ensaiar em uma feira bistas e feirantes, eu e Gabriel Haddad – lugar em que eram comercializados, optamos por pensar um enredo que, de todos os dias, bananas e abacaxis. alguma forma, falasse do hibridismo Abraçando de vez a brincadeira, de- que caracterizava o momento da escola mos à narrativa um título intencional- – uma espécie de denúncia em tom de mente longo: “Banananás: o encontro brincadeira, ao sabor carnavalizante. da Rainha Mariola Banana Pacova do Encontramos um caminho narrativo na Congo e d’Angola com o Rei Amazôni- obra “Made in Africa”, de Luís da Câma- co Ananás Ibá-Caxi, da corte dos aba- ra Cascudo. Nesse livro, os capítulos caxis de Serpa”. “O mais popular africanismo do Brasil”, sobre a palavra “banana”, e “Guerras do Se o enredo foi bem recebido pelos ananás e do abacaxi”, sobre a etimolo- representantes da Prefeitura da cidade, o gia do fruto de mesmo nome, sugerem mesmo não se pode dizer com relação a que o tráfico negreiro e os movimentos uma parte significativa dos componentes diaspóricos transatlânticos levaram o da escola. Em linhas gerais, esperavam a abacaxi brasileiro para a África, onde “África convencional”, que julgavam “mais se popularizou (especialmente na re- apropriada” para o universo da Intenden- gião entre Angola e Senegal), e trou- te Magalhães. Isso se refletiu na “safra” xeram a banana africana para o Bra- dos sambas concorrentes: não houve um sil, onde foi prontamente incorporada destaque positivo, o que obrigou a direto- à dieta alimentar da população e, mais ria a propor a junção de duas obras (uma do que isso, tornou-se um símbolo de leve e jocosa, impregnada do espírito

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 57 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura das marchinhas, e outra mais descritiva, que eu e Gabriel listávamos, adequando considerada “pesada”). O resultado foi as tarefas às habilidades manuais de cada assimilado com estranhamento e em mo- um. Diferentemente das outras agremia- mento algum houve uma comemoração ções que produziam as alegorias no es- expressiva – fato que acendeu as lanter- paço coletivo, o Acadêmicos do Sossego nas da preocupação. possuía uma sala de trabalho equipada com ventiladores e mesas – um trunfo As fantasias da escola foram con- negociado com a administração do Barra- feccionadas em um ateliê de fundo de cão em virtude do fato de que o presiden- quintal, administrado pela Ialorixá (mãe te Gustavo havia realizado empréstimos de santo) Lúcia Santos. Localizado no para algumas coirmãs que estavam com o bairro Viçoso Jardim, no mesmo espa- pagamento do condomínio atrasado. No- ço em que funcionavam dois terreiros vamente, um jogo de poder. (um de Umbanda e um de Candomblé), o ateliê, bem como o Barracão do Sam- Faltando duas semanas para o ba, revelou-se um espaço de disputas, desfile, os problemas explodiram ea conflitos e, principalmente, segredos. Os tranquilidade do trabalho se viu abalada: carnavalescos e os dirigentes da esco- devido a triangulações financeiras mal la não podiam entrar em determinadas explicadas entre a presidência e um dos salas das construções (onde parte do diretores da escola (que ficara responsá- material para a feitura das fantasias era vel pelo pagamento de ferreiros, carpin- guardado), uma vez que não eram inicia- teiros, aderecistas e iluminadores), parte dos nos rituais afro-brasileiros. Além dis- dos trabalhadores alegou não ter recebi- so, era comum a percepção de que os do o valor acordado no prazo estipulado funcionários, em sua maioria Filhos-de- e decidiu cruzar os braços. As tensões se -Santo, utilizavam de linguagem cifrada avolumaram porque o presidente, doen- (termos em yorubá) quando precisavam te e acamado, não podia comparecer ao falar algo que não podia chegar ao co- Barracão; a palavra do diretor, “homem nhecimento dos artistas. Obviamente, de confiança” dele, era inabalável: os pa- eu e Gabriel Haddad jamais tivemos to- gamentos estavam corretos e não havia tal domínio sobre a confecção das rou- motivo para a “greve”. Assustados com a pas, o que gerou alguns quadros de ten- lentidão do andamento dos trabalhos, eu são – agravados devido às pendências e Gabriel Haddad tentávamos, sem su- financeiras. O orçamento total de cada cesso, administrar a crise. Quando falta- fantasia (material mais mão-de-obra) gi- vam 07 dias para o desfile, o carro abre- rou em torno de R$ 250, um preço ele- -alas ainda estava na “fase da madeira”, vado para o padrão da Intendente Ma- ou seja, sem qualquer decoração. galhães, mas irrisório se comparado aos valores com que são comercializadas as O trabalho de carpintaria foi fina- fantasias de alas do Grupo Especial, que lizado apenas na quarta-feira da sema- podem chegar a R$ 1,5 mil. na que antecedia os desfiles. Em virtude dos atrasos, o processo de decoração da A imersão no Barracão do Samba alegoria teve de ser feito às pressas, em ocorreu 03 semanas antes do carnaval, exatos 06 dias (contando com a terça- quando eu e Gabriel Haddad começamos -feira de carnaval, dia do desfile, quando a dar as coordenadas de trabalho a uma o carro alegórico já havia sido retirado do equipe contratada pela diretoria. A che- Barracão do Samba e aguardava os últi- fe de adereçaria, Ana Maria Alves Silva, mos preparativos na rua, debaixo de chu- encarregava-se de distribuir as atividades va). Última agremiação a desfilar na noite

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 58 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 de desfiles do Grupo B, já com os primei- fincado na Sapucaí: há, sim, outros es- ros raios de sol da quarta-feira de cinzas paços carnavalescos a serem investiga- no céu, o Acadêmicos do Sossego cru- dos. Como bem pontuou Gilberto Velho, zou a Intendente Magalhães com beleza apesar da violência galopante e dos altos e alegria, mas pecou em pontos centrais, índices de exclusão social, “com adapta- como evolução (abriu 03 “buracos” – es- ções, angústia e sofrimento a população paçamentos entre alas) e samba-enredo do Rio de Janeiro trabalha, canta, dan- (a música se “arrastou” no decorrer do ça, faz festas como o carnaval” (VELHO, desfile). O júri, valendo-se do olhar téc- 2008, p. 26). Aqui, neste artigo, objetivou- nico, não aprovou a “bananada”: apesar -se mostrar, em linhas gerais e inconclu- de bem avaliada nos aspectos plásticos sas, o quanto de trocas, tensões, dramas e de ter gabaritado o quesito “enredo”, a e negociações se escondem por debaixo escola terminou em 9º lugar, exatamente da “capa de invisibilidade” dos desfiles no meio da tabela da classificação final. suburbanos – o “carnaval de Madureira” Passado o desfile, descobrimos que a retratado por Tarsila cresceu e continua Prefeitura de Niterói, que havia prometi- vivo, pulsante, surpreendente. do a subvenção de R$ 250 mil, liberara apenas R$ 200 mil, fato que gerou um Como surpreendente e desafiado- sem-fim de confusões envolvendo os ra se esboçou a história do carnaval de pagamentos restantes. A escola, que no 2016 da escola de samba Acadêmicos do período pré-carnavalesco se dera ao luxo Sossego. Na quinta-feira após as “cinzas de emprestar dinheiro para algumas coir- redentoras” poetizadas por Carlos Drum- mãs, saiu do desfile de 2015, orçado em mond de Andrade, o presidente Gustavo R$ 350 mil, endividada e com a autoes- faleceu. Ele, que não participara do desfile tima ferida. O “Rei Abacaxi”, ao final, se porque entrara em coma (vítima de uma revelou espinhoso e azedo. infecção hospitalar e de complicações res- piratórias atreladas a um quadro de obesi- dade mórbida), partiu e levou consigo uma IV – Conclusões série de respostas para questionamentos (financeiros, administrativos, políticos) “Arena de enfrentamento” que é que apertaram os sapatos da agremia- (CAVALCANTI, 1994, p. 71), o multiface- ção às portas do desfile. Ainda sem qua- tado carnaval do Rio de Janeiro expressa dra e endividada até o pescoço, a escola a combinação nem sempre pacífica de não sabia o que viria a seguir. O tesou- “heterogeneidade e diversidade” (VE- reiro da antiga administração, Luiz Carlos LHO, 2008, p. 09), marcas indeléveis das Santos, assumiu a presidência, negociou grandes metrópoles globais. Como visto, a permanência dos carnavalescos e dos o cenário carnavalesco centralizado na demais segmentos (todos, sem exceção, Estrada Intendente Magalhães, que pos- com pendências financeiras) e deu início sui no Barracão do Samba o seu cama- aos trabalhos que desembocaram em um rim maior e que se vê conectado a terri- enredo sobre a obra do poeta Manoel de tórios dos mais distantes e improváveis, Barros (autor do livro “Meu quintal é maior como o Largo da Batalha ou os terreiros do que o mundo”), que completaria 100 consagrados a Omolu e ao Caboclo Sete anos em 19 de dezembro de 2016. Inti- Flechas da mãe de santo Lúcia Santos, tulado “O Circo do Menino Passarinho”, o todos em Niterói, do outro lado da Guana- enredo redigido por mim e Gabriel Haddad bara, se apresenta, ao olhar etnográfico, também homenageava a memória da es- enquanto manancial investigativo. Eis um cola, que já desfilara uma série de enre- contraponto à elitização do megaevento dos sobre natureza e infância.

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 59 pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

Apesar dos incontáveis problemas NATAL, Vinícius Ferreira. Cultura e Memória na que se encadearam ao longo dos prepara- Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. (Mes- tivos (entre eles, o maior: a transferência trado em Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014. dos feirantes para a nova sede do Merca- do Popular do Largo da Batalha, um espa- PEREIRA, Aline Valadão. Os bate-bolas do car- ço com 270 metros quadrados e 32 boxes naval carioca contemporâneo: dinâmicas e dis- fixos, e a posterior demolição da tenda putas simbólicas. In: CAVALCANTI, Maria Lau- provisória para a construção de uma pra- ra; GONÇALVES, Renata Sá (org.). Carnaval ça – o que desalojou duplamente a esco- em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 173-194. la, obrigada a negociar o aluguel de um espaço recreativo chamado Clube da Tor- QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval re), a agremiação azul e branca terminou brasileiro. O vivido e o mito. São Paulo: Brasi- a apuração de 2016 como a campeã do liense, 1999. Grupo B, conquistando a cobiçadíssima vaga para desfilar, em fevereiro de 2017, RODRIGUES, Renan. Por um carnaval mais pro- fissional. Disponível no sítio http://www.samba- na Marquês de Sapucaí. As serpentinas cast.com.br/2016/03/por-um-carnaval-mais-profis- que enrolaram tal vitória exuberante, po- sional/. Acesso em 23/05/2016. rém, isso é prosa para um outro enredo e para outras saladas de frutas. SANTOS, Nilton. A arte do efêmero. Carnavales- cos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

VELHO, Gilberto (org.). Rio de Janeiro: cultura, po- lítica e conflito. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Bibliografia

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BARBIERI, Ricardo José de Oliveira. Cidade do Samba: do barracão de escola às fábricas de car- naval. In: CAVALCANTI, Maria Laura; GONÇAL- VES, Renata Sá (org.). Carnaval em múltiplos pla- nos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 125-144. I Lenardo Augusto Bora. Doutorando (bolsista CNPq) do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Lite- CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. ratura – Teoria Literária da Universidade Federal do Carnaval carioca – dos bastidores ao desfile. Rio Rio de Janeiro (UFRJ). Brasil. Contato: Leonardobo- de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. [email protected]

FERREIRA, Felipe. Escritos carnavalescos. Rio de II Sobre o assunto, ver FERREIRA, 2012, p. 166-171. Janeiro: Aeroplano, 2012. É necessário registrar que a Estrada já sediava, desde 1989, alguns dos desfiles de blocos da cidade do Rio LACERDA, Thiago. Na Intendente Magalhães se de Janeiro. faz samba também! Disponível no sítio http://www. sidneyrezende.com/noticia/198793. Acesso em III Um dos mais significativos é o trabalho desenvol- 22/05/2016. vido por Ricardo José de Oliveira Barbieri durante o Mestrado em Antropologia da UFRJ, origem do livro “A Acadêmicos do Dendê quer brilhar na Sapucaí”. Ver MOTTA, Aydano André. Olha a desigualdade aí, BARBIERI, 2012. gente! Disponível no sítio http://projetocolabora. com.br/inclusao-social/olha-a-desigualdade-ai- IV Sobre o assunto, é importante a leitura de PEREIRA, -gente/. Acesso em 22/05/2016. Aline Valadão, 2008, p. 173-194.

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 60 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016

V Nas palavras do teórico, “o dia 18 de fevereiro de em 07 de fevereiro de 2011. Na ocasião, as escolas de 1855 é saudado pelos primeiros historiadores do carna- samba Portela e União da Ilha do Governador perde- val brasileiro como a data de nascimento da folia carna- ram milhares de fantasias e parte das alegorias que le- valesca moderna no país. O evento que teria marcado variam para o desfile; a Acadêmicos do Grande Rio, a essa verdadeira revolução foi o desfile de um grupo de mais atingida pelas chamas, perdeu absolutamente tudo cerca de 80 pessoas – o Congresso das Summidades – e precisou reconstruir às pressas (porém sem o medo Carnavalescas – que, segundo José de Alencar, seria do rebaixamento, uma vez que a Liga Independente das o primeiro ‘passeio de máscaras’ a se realizar na corte Escolas de Samba, em parceria com a Riotur, optou por (...).” In: FERREIRA, 2012, p. 91. não rebaixar qualquer escola, naquele ano) as fantasias e as alegorias do enredo sobre Florianópolis. VI “Concentração” é o nome que se dá ao período de tempo e ao espaço físico em que as escolas de samba XIV Nesse ponto, também é válida a leitura de Maria se preparam para o desfile, organizando as alas e os Isaura Pereira de Queiroz: “Existe uma relação visível carros alegóricos de acordo com o roteiro enviado ao entre a densidade da população de um subúrbio, a ri- corpo de jurados. queza do ‘seu’ banqueiro do bicho e o sucesso da ‘sua’ escola de samba.” In: QUEIROZ, 1999, p. 99. VII No comparativo com as cifras do Grupo Especial, a questão ganha contornos de absurdez: cada uma das 12 XV Nesse ponto, é preciso atentar para uma das pon- escolas do “1º Grupo” recebeu, em 2016, excluídos os derações de Maria Laura Cavalcanti: o ciclo de todo patrocínios privados e as injeções de dinheiro provenien- carnaval de escola de samba é adiantado, afinal, “a te dos “patronos” (agentes, em sua maioria, vinculados confecção de um desfile começa mal terminado o car- ao Jogo do Bicho, havendo, também, casos conhecidos naval do ano anterior, com a definição de um novo de traficantes e milicianos), o montante de aproximada- enredo a ser levado pela escola à avenida. Dessa for- mente R$ 6 milhões (05 vezes mais em relação ao valor ma, na maior parte do tempo, o ano carnavalesco está concedido às escolas da Série A e mais de 40 vezes o sempre um ano na frente do calendário corrente, pois valor concedido às escolas da Série B). nele tudo converge para o seu desfecho festivo.” (CA- VALCANTI, 1994, p. 15). VIII “Beiço”, “volta” e “calote” são expressões utilizadas, no universo do carnaval, para definir o não pagamento XVI Naquele momento, eu participava de uma comis- de um valor devido. são da qual também faziam parte os desenhistas Rafael Gonçalves (cenógrafo e figurinista pela EBA-UFRJ), Ví- IX Tal fato já havia sido detectado por Maria Laura Ca- tor Saraiva (cineasta pelo IACS-UFF) e Gabriel Haddad valcanti quando da pesquisa de campo (que gerou a (formado em Relações Internacionais pela Unilasalle), o sua tese de Doutorado em Antropologia), no barracão jornalista Fábio Fabato (formado pela UFF e autor de da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1991 uma série de livros sobre as escolas de samba), o an- e 1992. No livro “Carnaval Carioca – dos bastidores ao tropólogo Vinícius Natal (mestre em antropologia urbana desfile”, versão revista da tese, a autora afirma que os pela UFRJ) e o experiente carnavalesco (idealizador da interlocutores Renato Lage e Lilian Rabello, então car- comissão e coordenador do projeto, assessor de im- navalescos da escola da Zona Oeste carioca, entendiam prensa da área de moda) Eduardo Gonçalves. Ao todo, que as cobranças financeiras se apresentavam como éramos 07 profissionais de diferentes áreas, todos em- um dos mais complicados pormenores dos bastidores penhados em desenvolver para a escola do Morro Dona da criação: “Fechar o contrato era um aspecto especial- Marta, de Botafogo, um projeto artístico que a tornasse mente sofrido em sua (Renato Lage) relação com a es- competitiva e livre do medo de “enrolar a bandeira”, ou cola. (...) A situação era, em suma, a seguinte: o contrato seja, encerrar as atividades carnavalescas. se fechava abaixo de suas expectativas, entretanto no decorrer do ano ganhavam no final mais do que o nego- XVII Dos 07 membros originais da comissão, resta- ciado. Cabe lembrar a natureza muito particular desse ram 04 (eu, Gabriel Haddad, Rafael Gonçalves e Vitor contrato: ‘É mais na palavra – comenta Renato – bem Saraiva) para o carnaval de 2014. Ambos os desfiles poucos fazem’”. In: CAVALCANTI, 1994, p. 64/65. (2013 e 2014) foram vitoriosos, conduzindo a escola para o Grupo B. Após o nosso desligamento, Rafael e XI No período de 2014 a 2016, Marcos Falcon foi vice- Vitor permaneceram na escola, tendo elaborado o des- -presidente da Portela. Nas eleições de 29 de maio de file de 2015, que terminou em 5º lugar. 2016, a chapa encabeçada por ele foi a vencedora por aclamação. Falcon presidirá a escola até 2019.

XII Sobre o impacto cultural da Cidade do Samba, ver BARBIERI, 2008, p. 125-144.

XIII Apesar da presença de sistema antichamas em to- dos os barracões, um incêndio de grandes proporções consumiu uma ala do complexo (04 galpões, sendo que 01, utilizado para atividades culturais, estava vazio),

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