Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Samir Saraiva Cheida

Montagem Audiovisual Transmidiática: é possível pensar em relações entre imagens e sons de diferentes mídias?

São Paulo 2020

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Samir Saraiva Cheida

Montagem audiovisual transmidiática: é possível pensar em relações entre imagens e sons de diferentes mídias?

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profª. Dra. Cecilia Almeida Salles

SÃO PAULO 2020

SAMIR SARAIVA CHEIDA

MONTAGEM VISUAL TRANSMIDIÁTICA: é possível pensar em relações entre imagens e sons de diferentes mídias?

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica.

São Paulo ______de ______de 2020.

Banca Examinadora

______

Profª. Dra. Cecilia Almeida Salles Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______

Profº. Dr. Almir Antonio Rosa Universidade de São Paulo

______

Profª. Dra. Lucia Isaltina Clemente Leão Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: ______Data: ______

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001

AGRADECIMENTOS

Muitas mãos estão presentes de forma invisível nesse trabalho. Mãos carinhosas que me empurraram, apoiaram-me, seguraram-me, guiaram-me e me deram a força necessária para completar essa trajetória.

Pelo amor que recebo todos os dias, faça chuva ou faça sol, agradeço à minha Mariana. Ela é fundamental em todas as minhas decisões, mesmo as mais difíceis. Foram as mãos mais carinhosas e mais apoiadoras. Muito obrigado sempre.

Por sempre me incentivar a ir mais longe e me dar a confiança que me faz enfrentar qualquer situação, agradeço aos meus pais, Marcel e Maria de Fátima.

Por brigar comigo, questionar, me tirar do prumo e não me deixar ir para o caminho mais cômodo, agradeço ao meu irmão Rodrigo.

Por acreditar em mim e no meu projeto, e lutar com toda garra para que ele acontecesse, agradeço à minha orientadora Cecilia Almeida Salles.

Por motivos semelhantes, também agradeço ao professor Almir Almas, que não só me incentivou muito, mas também me ajudou a achar um norte para a minha pesquisa.

Pela colaboração essencial à pesquisa, agradeço ao montador Todd Desrosier. Penso que a contribuição de um montador que trabalhou no processo de edição de The Walking Dead trouxe grande consistência para a argumentação. Obrigado pela dedicação ao responder os meus questionamentos.

Pelas ótimas discussões, agradeço ao grupo de pesquisa em processos de criação. Wagner, Paula, Vinícius, Dani, Luciano, Karina, Ariane, entre outros, é muito bom construir pesquisa com vocês.

Por fim, não posso me esquecer de Lucia Bonafé, Eduardo Chatagnier, Marcelo Souza, Carlos Padeiro, Gustavo Carbonaro e Giuliano Ronco pelo apoio e por terem paciência para ouvir as minhas ideias. RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo investigar as estratégias narrativas transmídia da série The Walking Dead de Frank Darabont e . A série possui um universo narrativo complexo que está distribuído na televisão, em episódios na web, nos quadrinhos, em jogos online, em jogos de videogame, etc. Como hipótese, a investigação utiliza as teorias da montagem para refletir se as combinações de imagens e sons de diferentes plataformas podem construir novos significados. A pesquisa procura identificar como a montagem pode manter a continuidade nos conteúdos de The Walking Dead dispersos nas diferentes plataformas e que novos sentidos podem surgir quando imagens e sons do conteúdo transmídia de The Walking Dead são justapostos. Como referência para análise, recorremos às concepções da linha de pesquisa “Processos de criação na Comunicação e Cultura” liderada pela professora Cecilia Almeida Salles. A montagem e o montador serão destacados como elementos fundamentais para a elaboração do universo ficcional e da estética da série zumbi e, portanto, vistos como parte da complexa rede de criação do sistema transmídia de The Walking Dead. Por fim, a dissertação irá discutir conceitos de autores que refletem a linguagem televisiva, como Henry Jenkins, Jason Mittel e Arlindo Machado, para destacar como The Walking Dead fez parte de um novo modelo de narrativa junto com outras séries que surgiram ao longo das primeiras décadas de 2000. Desta maneira, a pesquisa propõe uma atualização das teorias de montagem com a inclusão do transmedia storytelling como propulsor para novas relações audiovisuais.

Palavras-chave: Comunicação, Processo de criação, Narrativa transmídia, Montagem ABSTRACT

This research aims to investigate the transmedia narrative strategies of the tv series “The Walking Dead” by Frank Darabont and Robert Kirkman. The tv series is an example of narrative complexity and its universe is distributed on television, in webisode, in comics, in online games, in video games, etc. As a hypothesis, the investigation uses editing theories to reflect on whether combinations of images and sounds from different media can build new meanings. The research seeks to identify how the editing can maintain the continuity between the different contents of “The Walking Dead” dispersed on multiplatforms and what new meanings can arise when all the images and sounds from the transmedia content of the series of “The Walking Dead” are juxtaposed. As a reference for analysis, we use the conceptions of the research line “Creation processes in Communication and Culture” led by Cecilia Almeida Salles. The concepts of montage and the role of the editor are highlighted as fundamental elements for the elaboration of the fictional universe and the aesthetics of the zombie series. Therefore, they are part of the complex network of creation of the transmedia system of "The Walking Dead". In addition, the dissertation will discuss concepts by authors that analyse television language, such as Henry Jenkins, Jason Mittel and Arlindo Machadoand to highlight how “The Walking Dead” was part of a new narrative model along with other tv series that emerged during the first decades of 2000. In this way, this research proposes an update of editing theories with the inclusion of transmedia storytelling as a driver of new relations between image and sound.

Keywords: Communication, Creation Process, Transmedia, Storytelling, Editing SUMÁRIO

1. Introdução ...... 11 1. Montagem e a série The Walking Dead ...... 17 1.1. Montagem como princípio ...... 17 1.2. Montagem como linguagem do cinema ...... 21 1.2.1. André Bazin e o “cinema da transparência” ...... 26 1.3. Montagem e televisão ...... 28 1.4. Montagem de The Walking Dead ...... 37 1.4.1. Modelo ilusório ...... 37 1.4.2. Modelo complexo ...... 42 2. A narrativa transmídia de The Walking Dead ...... 52 2.1. Os conceitos de Henry Jenkins sobre transmedia storytelling ...... 52 2.2. Transmedia storytelling e o modelo de narrativa complexa ...... 61 3. The Walking Dead no contexto da complexidade ...... 68 3.1. A complexidade de Morin e a complexidade de Mittel ...... 71 3.2. Processo de criação de The Walking Dead ...... 80 3.3. Esboços de uma nova teoria de montagem...... 90 5. Considerações finais ...... 101 6. Anexo 1: Entrevista com o montador Todd Desrosier, de The Walking Dead e ...... 106 7. Referências Bibliográficas ...... 112 8. Referência Filmográfica ...... 115 11

1. Introdução

A produção de conteúdos audiovisuais no Brasil e no mundo é crescente. O antigo espectador das telas de cinema e da televisão transformou-se e, hoje, também busca as telas de computadores, tablets e celulares para assistir a histórias com imagens e sons. O consumo de narrativas audiovisuais é intenso, o que suscita uma busca incessante por novos enredos e novas tramas por parte dos produtores dos canais de televisão, bem como das plataformas on-demand.

Atualmente, as narrativas audiovisuais podem atravessar os limites dos quadros e serem contadas tanto nas telas de cinema como nas de celular, com enredos que se completam.

Henry Jenkins, pesquisador de mídias do MIT (Massachusetts Institute of Technology), observa, em suas pesquisas, o fenômeno em que elementos ficcionais de uma história são dispersos em diferentes plataformas, o que proporciona uma experiência de entretenimento coordenada. Jenkins define como Transmedia Storytelling uma forma de narrar que se utiliza de diferentes mídias para aumentar os pontos de contato entre espectadores e o universo da obra (JENKINS, 2013).

Dentre as atuais histórias propagadas em diferentes mídias, The Walking Dead (KIRKMAN, DARABONT, 2010) é um dos exemplos mais instigantes. A série sobre um vírus que contamina a população mundial e torna quem é infectado em zumbis surgiu como história em quadrinhos em 2003 e, em 2010, estreou como série de televisão. A partir da série de televisão, surgiram diversos produtos do mesmo universo, como a websérie Torn Apart (NICOTERO, 2011), o spin-off (produto derivado de uma série original) Fear the Walking Dead (ERICKSON, KIRKMAN, 2015), jogos de videogame e jogos para celulares e tablets, como The Walking Dead: No Man’s Land (NEXT GAME, 2015).

TWD1 é uma história de terror em que Rick, um xerife do interior dos Estados Unidos, é baleado num assalto e fica em coma. Quando ele desperta

1 Para melhor fluxo do texto, iremos usar em certos momentos a abreviação TWD para designar a série The Walking Dead. 12 do coma, percebe que um vírus letal se espalhou por todo o mundo, tornando a maior parte da população em zumbis que se alimentam de carne humana. Rick sai em busca de sua família sem saber se sua esposa e seu filho também se tornaram walkers - designação para os zumbis dentro da série.

Em Fear The Walking Dead, acompanha-se, também, na televisão, a saga de uma família da Califórnia na mesma época em que Rick está em coma no estado da Geórgia e o vírus zumbi começou a contagiar a humanidade. Os professores Travis e Madison levam a família para o México fugindo dos canibais. Utilizando-se também das convenções do gênero, Fear The Walking Dead se vale dos mesmos procedimentos da montagem da série TWD para fornecer ao espectador uma experiência semelhante à história em quadrinhos e à série original.

Dentre as adaptações, destaca-se também a websérie Torn Apart, exibida no site do canal AMC, que conta a história de Hannah, o primeiro zumbi que Rick encontra depois de despertar do coma. E por fim, o jogo de videogame The Walking Dead: No Man’s Land, da Next, um drama interativo que também se passa num mundo pós-apocalíptico em que o jogador utiliza os personagens da trama para sobreviver no universo zumbi.

Para que os espectadores das diferentes plataformas entendam que as histórias fazem parte do mesmo universo ficcional, uma série de elementos imagéticos e sonoros é espalhada pelos diferentes capítulos de TWD, os quais mostram o movimento do universo ficcional ao mesmo tempo que mantêm os recursos identitários da série. O modo pelo qual as narrativas das diferentes telas se unem, segue os princípios da montagem.

Ao longo do século XX, com a invenção do cinema e da televisão, a montagem se tornou crucial para a prática de contar histórias. Ao combinar imagens e sons, cineastas perceberam as inúmeras possibilidades de novas relações e novos sentidos que poderiam ser criados com a montagem. Eisenstein, no texto “Palavra e Imagem”, observa que “o princípio da montagem em geral, um princípio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme” (EISENSTEIN, 2002, p.31). 13

A montagem é, portanto, um princípio narrativo que organiza o material filmado para que o espectador entenda a combinação de imagens e sons como parte de uma mesma unidade (AUMONT, 2007, p.62). Uma ferramenta poderosa que pode transcender as interrupções no espaço-tempo que cada corte de um filme proporciona, mantendo a continuidade na relação entre dois planos.

A teoria da montagem já se ocupou, no último século, de entender as relações entre imagens e sons no cinema e na televisão. Lev Kulechov foi pioneiro ao demonstrar como a montagem era essencial para o sucesso dos filmes norte-americanos do começo do século XX. Philipe Dubois apontou que o vídeo, nas décadas de 70 e 80, mesclou imagens e sons de diferentes suportes, cinema e televisão, criando uma montagem em camadas, com espessura. Ken Dancyger, em seu trabalho “Técnicas de edição para cinema e vídeo”, classifica a edição com influência dos videoclipes musicais como edição “estilo MTV”, e percebe esse tipo de montagem nos filmes norte-americanos da década de 90. Os teóricos do audiovisual identificaram que, ao longo da história, a linguagem cinematográfica foi influenciada pela linguagem televisiva e vice-versa.

Entretanto, com o fenômeno das narrativas transmídia, é necessária a investigação das novas combinações de imagens e sons e de como os princípios da montagem foram utilizados nas narrativas multiplataformas. Quais novas relações podem ser observadas quando combinamos as imagens da televisão com as imagens da história em quadrinhos, como no caso da série The Walking Dead? Ou quando combinamos as imagens de duas séries diferentes sobre o mesmo universo, como no caso de The Walking Dead e Fear The Walking Dead (2015)? 14

Figura 01 Figura 02

Figura 03 Figura 04

Figura 05 Figura 06

Figura 07 Figura 08

A maneira de dividir a cena em planos (decupagem) é semelhante, porém o desfecho do spin- off é diferente da série original, e quando a menina vira, mostra-se um zumbi, e Rick acaba atirando na cabeça dele.

Fontes: série “The Walking Dead”, temporada 1, episódio 1, Kirkman e Darabont, 2010 e série “Fear The Walking Dead”, temporada 1, episódio 1, Erickson e Kirkman, 2015.

A primeira vez que percebi os diferentes sentidos que podemos averiguar quando relacionamos imagens de diferentes mídias foi quando comparei o primeiro episódio de The Walking Dead com o primeiro capítulo de Fear The Walking Dead. Como montador, pude colocar os dois episódios na mesma timeline (local do software de edição onde se constrói o filme) e perceber que havia uma série de elementos que uniam as duas séries utilizando os princípios da montagem. Como hipótese, projetei que os criadores de TWD utilizaram-se 15 desses princípios para proporcionar continuidade tanto dentro de cada episódio da série como nas diferentes manifestações do universo nas diferentes plataformas. O espectador, seja dos quadrinhos, do videogame ou da televisão, pode identificar a lógica criada pelos montadores e assim perceber que cada uma das manifestações faz parte do sistema transmídia de The Walking Dead.

Assim, para debater essa hipótese, a dissertação está dividida em três capítulos.

No primeiro, faz-se uma discussão sobre o conceito de montagem para então mostrar como ele é pensado na série transmídia The Walking Dead. Uma reconstituição histórica do desenvolvimento da linguagem cinematográfica é realizada, e, a partir de autores como David Bordwell e Ismail Xavier, demonstra- se como a montagem foi fundamental para a construção do cinema narrativo e como os criadores de TWD se apoderam dessas ferramentas para conceber os episódios da série. Além disso, TWD será comparada a outras séries televisivas surgidas nas décadas de 2000, que, segundo a análise de Jason Mittel, tem como característica um novo modelo de storytelling que ele denomina como narrativa complexa.

O segundo capítulo irá investigar como são as manifestações transmídia do universo narrativo da série. Será apontado que o conceito de transmedia storytelling já era observado pelo pesquisador Henry Jenkins, que discutiu o fenômeno transmídia em obras anteriores às séries dos anos 2000, como na franquia de filmes “Guerra nas Estrelas” (1977) ou Matrix (1999). A partir dos conceitos de Jenkins, uma teoria sobre transmedia storytelling foi construída e serve de base para analisar séries de televisão como TWD. Em seguida, o capítulo demonstra que Jason Mittel aponta em seu livro Complex TV que as narrativas complexas da década de 2000 têm como característica a expansão do universo ficcional para diferentes plataformas. O papel da montagem será discutido nesse novo modelo em que o espectador tem uma função muito mais ativa, e o montador tem menos controle sobre qual informação a audiência está recebendo.

O capítulo três tem como objetivo apontar as características da série transmídia The Walking Dead que se inserem no pensamento da complexidade. 16

Mittel classifica as séries de televisão contemporâneas à história de Robert Kirkman como narrativas complexas e utiliza termos como ambiguidade, ambivalência e desorientação para defini-las. Edgar Morin, ao propor os paradigmas da complexidade, também destaca a ambivalência e a desorientação no pensamento complexo e acrescenta o caos organizador, o grande número de interações e sistemas que funcionam de maneira acêntrica ou policêntrica. A complexidade não aparece apenas na teia das narrativas, mas também no processo de criação. Nesse ponto, podemos trazer as pesquisas sobre processos de criação de Cecilia Salles para olhar The Walking Dead. Pensando a montagem como um lugar de criação, como discutido também no primeiro capítulo, essa parte da dissertação irá analisar a entrevista de Todd Desrosier, montador tanto da série TWD como do spin-off Fear The Walking Dead. Todd conta como foi o processo de criação das duas séries pelo ponto de vista da montagem, como as redes de criação foram construídas, como se elaborou as continuidades entre as duas séries e como Fear The Walking Dead confeccionou novos elementos de linguagem que não seguiram as convenções da série original e que provocaram desorientações e surpresas para o espectador que também assistia à TWD.

Por fim, o capítulo irá discutir como TWD e as narrativas complexas das duas últimas décadas apontam caminhos para uma nova teoria de montagem. Com os novos objetos que surgiram, que se manifestam em rede com interações entre si, e que criam tanto continuidade como ambiguidades quando são observadas, Mittel apontou em seu trabalho o quanto essas novas narrativas da década de 2000 possuem inovações em relação ao que se passou na televisão norte-americana até então. Portanto, é possível indicar quais inovações na teoria da montagem podem ser aferidas a partir da análise de séries complexas como TWD.

Para que outros narradores possam manejar com destreza as ferramentas transmídia da série, a presente dissertação irá debater como o uso da montagem foi elemento fundamental para o processo de criação de The Walking Dead e para a elaboração de novos nexos entre as diversas manifestações do universo da distopia zumbi nas diferentes plataformas.

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1. Montagem e a série The Walking Dead

Para analisar a série The Walking Dead, teremos como recorte as formulações da teoria de montagem a fim de definir um arcabouço conceitual pelo qual será possível apoiar a pesquisa, e limitar, dentro da teoria, quais linhas serão utilizadas nessa dissertação.

Essa pesquisa parte da premissa de que a montagem não acontece apenas na ilha de edição, pois não é apenas o montador que pensa nos princípios de montagem ao realizar uma obra audiovisual. Trata-se de um pensamento, um sistema de ideias que não se encontra somente na linguagem audiovisual, mas nas artes como um todo.

1.1. Montagem como princípio

Sergei Eisenstein, cineasta e teórico fundamental para a consolidação da linguagem cinematográfica, mostra que o princípio da montagem é algo que não está presente apenas no cinema. No texto “Dickens, Griffith e nós”, Eisenstein argumenta que o escritor Charles Dickens evoca o princípio de montagem na literatura:

Em um livro de 1845, The Cricket on the Heart, Dickens começa a história de um grilo que vive na casa de dona Peerybingle com a frase: A chaleira começou a ferver. Uma frase como essa evoca imagens, sons e sensações para o leitor (...). Assim que reconhecemos que a chaleira é um típico plano fechado, um close-up, nós dizemos: como nós não pensamos nisso antes? (EISENSTEIN, 2002, p.43). Evocar imagens, sons e sensações. O cineasta russo evidencia como dentro da literatura as palavras e as frases combinadas constroem novos sentidos e provocam novas sensações. “A chaleira começou a ferver” é uma frase sinestésica, as palavras de Dickens fazem surgir na imaginação do leitor em primeiro plano2 a imagem da chaleira fervendo, sem mais nenhum elemento

2 Primeiro plano: plano em que apenas um objeto ou um personagem é enquadrado.

18 dentro do recorte da câmera. Mais adiante, Eisenstein traz outro trecho de Dickens:

Ao longo das ruas de Paris, as carretas da morte estrondeiam, irreais e desarmônicas. Seis carroças carregam a ração diária de vinho à La Guillotine. Seis carroças rolam pelas ruas. Reconvertendo-as ao que elas eram, através de poderoso encanto, o Tempo, veremos as carruagens dos monarcas absolutos, os coches nobres feudais, os toucadoures de deslumbrantes Jezebeis, as igrejas que não são a casa de meu Pai, mas antro de ladrões, as choupanas de milhões de camponeses famintos (DICKENS apud EISENSTEIN, 2002, p.108). Eisenstein mostra que o autor nos transporta para a Paris do século XIX ao mesmo tempo em que as carroças de vinho evocam as memórias da Paris dos reis absolutistas e dos nobres que faziam parte da corte dos monarcas franceses.

Em outro artigo sobre montagem intitulado “A palavra e a imagem”, Eisenstein ressalta o princípio de montagem também nas artes plásticas. Ele analisa o texto em que Leonardo Da Vinci planeja a pintura do quadro “O Dilúvio”:

Serão vistos alguns grupos de homens, com armas na mão, defendendo os minúsculos pedaços de terra que lhe restaram dos leões, lobos e bestas predadoras que neles procuravam segurança (...). O tumulto aterrador se ouve ressoando pelo ar sombrio, rasgado pela fúria do trovão e dos raios que ele cospe e que o atravessam céleres, levando destruição, derrubando o que se atravessa em seu caminho! (DA VINCI apud EISENSTEIN, 2002, p.43). Leonardo Da Vinci nunca completou o quadro “O Dilúvio”, pois o plano para a sua pintura não se consolidou como o de “Monalisa” ou de “A virgem das rochas”, entretanto, o rascunho que planejava a pintura do mito bíblico, feita pelo artista, chamou a atenção de Sergei Eisenstein. Nesses rascunhos de Da Vinci e nas palavras que o artista italiano usava para descrever como seria sua obra de arte definitiva, Eisenstein percebeu o princípio da montagem. O cineasta russo demonstra que Leonardo, 250 anos antes da invenção do cinema, já pensava em como combinar imagens (“serão vistos alguns grupos de homens”) e sons (“o tumulto aterrador se ouve”) para construir uma cena.

Eisenstein demonstra, a partir desses exemplos, que a montagem é um princípio, um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a justaposição de dois ou mais fatos, fragmentos, objetos, etc. Esse princípio pode ser encontrado em qualquer obra de arte e, especialmente, no cinema:

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(...) o princípio da montagem em geral, um princípio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme (EISENSTEIN, 2002, p.32). Ainda na literatura, o conto “Cara de Bronze” (1956), de Guimarães Rosa, também evoca a linguagem cinematográfica. Além de construir planos abertos e fechados com as palavras, planos em que a localização dos vaqueiros que trabalham para o fazendeiro Cara de Bronze se estabelece junto com passagens de tempo da história, o autor mineiro interrompe a narrativa e no meio do texto pontua como deveriam ser filmados os diálogos dos personagens:

Roteiro:

Interior — Na coberta — Alta manhã

Quadros de filmagem:

Quadros de montagem:

Metragem:

Minutagem:

1. G.P.G. Int. Coberta.

Entrada dos vaqueiros. Curto prazo de saudações ad libitum, os chegados despindo suas croças — bem trançadas, trespassadas adiante e reforçadas por um cabeção ou “sobrepeliz” sobre os ombros, também de palha de buriti………………………….

Som: O violeiro estará tocando uma mazurca.

Som: O fim da mazurca.

Iinhô Ti entra no plano, de costas

Iinhô Ti saúda os vaqueiros recém-vindos…………………………

Som: Touros, de curral para curral, arruam o berro tossido, de u-hu-hã, de desafio. (O touro involuntário, que tem o movimento mau das tempestades.) (ROSA, 1956 – Disponível em: . Acesso em: 25 de abril de 2020).

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Guimarães Rosa, que em 1956 já tinha contato com a linguagem cinematográfica, faz uma reflexão sobre como deveria apresentar imagens e sons para o espectador e, conforme Eisenstein aponta no texto “Dickens, Griffith e nós”, usa a montagem no texto literário. Para conseguir projetar um futuro filme que poderia vir a acontecer a partir da história do solitário Cara de Bronze, o autor mineiro utiliza-se dos princípios da montagem para planejar uma eventual adaptação. No trecho em análise, ele projeta a combinação da entrada de Iinhô Ti no plano com o fim do som da Mazurca (um instrumento musical), e a partir desse momento, o personagem ajuda a contar a razão do apelido do fazendeiro, que pensa que matou o próprio pai. Como um roteirista, Guimarães Rosa pensa nos conceitos da montagem para indicar um filme dentro do conto literário.

O teórico do cinema Jacques Aumont, também percebe a montagem como um conceito, um sistema de ideias que ultrapassa o trabalho de pós- produção audiovisual. Em seu livro “A Estética do Filme”, há a seguinte definição:

A montagem é o princípio que rege a organização de elementos fílmicos visuais e sonoros, ou de agrupamentos de tais elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ ou organizando sua duração (AUMONT et al,1995, p.62). A definição acima é construída a partir da consideração das manifestações do princípio da montagem no campo fílmico. O teórico não chega a ampliar o princípio para outros campos artísticos, mas concorda com Eisenstein que a montagem é um sistema de ideias que norteia uma prática. O autor descreve e sintetiza onde se dá a prática da montagem no cinema, porém amplia a definição mostrando que ela perpassa o roteiro, a direção, a própria pós-produção, e conduz a construção de sentidos de um filme.

O roteirista, ao escrever uma cena, por exemplo, está pensando em montagem, pois prevê como os elementos visuais e sonoros podem se combinar para contar uma história. O diretor transforma o que está no roteiro em imagens e sons que vão ser combinados na edição. O fotógrafo, o diretor de arte, o sonoplasta, todos estão utilizando os princípios da montagem para propor elementos que vão construir o filme.

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Entretanto, logo que o cinematógrafo foi inventado, em 1896, os usuários do aparelho não perceberam prontamente que o invento poderia se tornar um instrumento para a criação de uma forma de arte, e muito menos que seria possível utilizá-lo para a aplicação dos princípios da montagem, que, segundo Eisenstein, já estavam presentes nas outras formas artísticas. Entre o momento de sua invenção e sua consolidação como linguagem, o cinema passou por uma série de experimentações até estabelecer uma gramática capaz de construir uma narrativa.

1.2. Montagem como linguagem do cinema

Logo nos primeiros anos do século XX, o cinema se tornou um fenômeno popular. Tanto os filmes clássicos norte-americanos como os filmes de vanguarda produzidos na União Soviética, na Alemanha e na França obtiveram êxito e conexão com o público consumidor de cinema que se formava. As obras cinematográficas traziam imagens em movimento, e a dinâmica da montagem encantava espectadores do mundo inteiro. Com a alta demanda por películas, o cinema se tornou um meio de comunicação de massa, com uma forte indústria localizada em alguns países produtores de filmes.

Ao final da primeira guerra mundial, o cinema se estabeleceu como uma poderosa mídia de massa. Abraçado por milhares, era também defendido por intelectuais que acreditavam estar testemunhando pela primeira vez na história registrada, o nascimento de uma nova forma de expressão criativa (BORDWELL, 2013, p.29). No livro “Sobre a história do estilo cinematográfico”, Bordwell faz um panorama histórico sobre como o cinema construiu um padrão estilístico. Segundo o teórico, “um estilo é um uso sistemático e significativo de técnicas de mídia cinema em um filme” (BORDWELL, p.17, 2013). Ele também aponta que ao longo dos primeiros 25 anos da história do cinema, historiadores e teóricos, como Kulechov, Robert Brasillach, Maurice Bardeche, Béla Balázs, entre outros, buscavam demonstrar que as imagens que haviam encantado multidões, faziam parte de uma nova forma de arte.

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(...) o que levava tempo era a emergência do cinema como um modo independente de expressão artística. Em particular, o cinema tinha de superar as suas tendências teatrais (BORDWELL, 2013, p.59).

Figura 09 - Filme “Viagem à Lua”, Méliès, 1902. O diretor francês foi pioneiro no uso do cinematógrafo para narrar uma história. Porém, não consegue se libertar do teatro filmado, colocando a câmera na mesma posição de um espectador teatral.

Fonte: Fotograma retirado do filme “Viagem à Lua” de George Méliès, 1902.

Até o final da década de 20, o cinema buscava se emancipar como forma de arte, já que era visto como uma manifestação construída a partir do teatro, da literatura e das artes plásticas. Os teóricos e historiadores argumentam que os agentes criativos do cinema passaram as primeiras duas décadas do século XX buscando construções estéticas próprias e formando características da mídia cinema:

Os defensores do cinema como arte, como os defensores da fotografia antes deles, sentiam-se obrigados a negar que a câmera meramente reproduzia o que se colocava diante dela. Tinham de mostrar que o meio - lente, película, corte - desempenhava, de certa maneira, um papel criativo (BORDWELL, 2013, p.46). Emancipar-se era encontrar uma linguagem, e o cinema, frente a outras formas artísticas, como o teatro, as artes plásticas e a música, encontrou uma linguagem própria, distinta.

Segundo essa linha de pensamento, a essência de qualquer arte deve ser encontrada nas possibilidades distintas do meio para criar formas ou sentimentos (BORDWELL, 2013, p.46).

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Para encontrar essa linguagem, Ismail Xavier, pesquisador da Universidade de São Paulo, aponta que dois movimentos foram fundamentais para os artistas desse primeiro cinema: “a chamada expressividade da câmera e a montagem”. Os dois movimentos, segundo Xavier, estão conectados. A “expressividade” da câmera permitiu que o cinema rompesse com o espaço teatral, colocando a câmera como uma observadora privilegiada do acontecimento. Entretanto, ao levar a câmera para dentro da ação, ela fica fragmentada, o tempo é interrompido e o espaço, recortado. O princípio da montagem será responsável por criar a sensação de continuidade ao que foi destituído com o corte. E assim, tornar a experiência do espectador com o cinema algo mais próximo da sua experiência com o mundo. Ao criar essa ilusão, a montagem assume um papel criativo na prática cinematográfica.

O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituição brusca por outra imagem, é um momento em que pode ser posta em xeque a semelhança da representação frente ao mundo visível…, mas a justaposição de duas imagens é fruto de uma intervenção inegavelmente humana e, em princípio, não indica nada senão o ato de manipulação (XAVIER, 1984, p.24).

Figura 10 – série “The Walking Dead”, temporada 6, episódio 12, Kirkman e Darabont, 2010. Para contar um diálogo entre o personagem Rick e o personagem Morgan, o diretor recorta o espaço da igreja e isola cada personagem no quadro. Ao combinar a imagem de Rick olhando da direita para a esquerda com a imagem de Morgan olhando da esquerda para a direita, a montagem estabelece uma relação entre os personagens independente da fala.

Figura 10 Figura 11

Figura 12

Fonte: Fotogramas retirados da série “The Walking Dead”.

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Ainda em Xavier:

A sequência de imagens, embora apresente descontinuidades flagrantes na passagem de um plano a outro, pode ser aceita como abertura para um mundo fluente que está do lado de lá da tela, porque uma convenção bastante fluente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade admitida em outro nível: o da narração (XAVIER, 1984, p.24). Aqui, é importante marcar que a autonomia do cinema em relação às outras artes consolidou o primeiro padrão estilístico da história dessa nova forma artística. Bordwell classifica o primeiro padrão estilístico como Versão-Padrão, que consiste em um cinema que busca histórias pertencentes a gêneros narrativos bastante estratificados em suas convenções e utiliza-se da decupagem e da montagem para produzir o ilusionismo, bem como deflagrar o mecanismo de identificação. Xavier e o próprio Bordwell chamaram esse padrão de linguagem clássica, delimitaram também o período de construção entre 1896 e 1914, e a sua consolidação com os filmes de D. Griffith, “Nascimento de uma nação” (1915) e “Intolerância” (1916):

O sistema consolidado depois de 1914 principalmente nos Estados Unidos, ao lado da aplicação sistemática dos princípios da montagem invisível, elaborou com cuidado o mundo a ser observado através da janela cinema (XAVIER, 1984, p.41). Entre os teóricos ingleses, norte-americanos e franceses, havia um consenso de que a expressividade da câmera e a prática dos princípios da montagem consolidaram a Versão-Padrão. Lev Kulechov irá destacar a montagem nessa equação, e com o intuito de levar a linguagem clássica para a União Soviética, fez uma extensa pesquisa sobre os filmes norte-americanos das duas primeiras décadas do século XX. Ao investigar sistematicamente os fatores construtivos responsáveis desta prática, que teve um grande sucesso nos públicos de todo mundo, Kulechov chegou a duas grandes conclusões:

(1) o momento crucial da prática cinematográfica é o da organização do material filmado; (2) a justaposição e o relacionamento entre os vários planos expressa o que eles têm de essencial (Kulechov vai nos falar da montagem como elemento chave na compreensão semântica daquilo que se passa na tela (XAVIER, 1984, p.47).

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Figura 13 - Ilustração da experiência feita por Kulechov, em 1921. Ele combinou um único plano do ator com outros fragmentos para construir diferentes sentidos.

Fonte:https://revistamoviement.net/o-efeito-kuleshov-e-a-consciência-intencionalc2bf78ca52bd. Acesso em 25 de abril de 2020.

O postulado do “Efeito Kulechov”, de que uma imagem A combinada com uma imagem B constrói um sentido C, que não estava nem em A, nem em B, parte da observação de como o cinema da Versão-Padrão iludia os espectadores para que eles entendessem o que se passava na tela como parte de um mundo ficcional sustentado com força própria.

Nesse momento da história, final da década de 10 e começo da década de 20, Eisenstein traz esse postulado para uma teoria de cinema que confronta o cinema clássico, e que em lugar de promover a ilusão da representação, escancara o fazer cinematográfico para que o discurso ideológico do filme seja declarado ao espectador.

Kulechov irá influenciar o cinema discursivo de Eisenstein, porém seu projeto prevê um cinema narrativo, que cria ilusões e que mantém o espectador imerso no universo diegético. A Versão-Padrão, discutida por Bordwell, também analisa os avanços da montagem analítica de Eisenstein, contudo, entende que ela se contrapõe à ideologia do cinema clássico. Para conectar a ideologia do cinema clássico ilusionista com a série TWD, vamos deixar o cinema discursivo de Eisenstein de lado e continuar a analisar a evolução da linguagem clássica relacionando Kulechov às teorias de André Bazin e, em seguida, como essa

26 mesma linguagem chega à televisão. Caminho semelhante foi feito por Ismail Xavier em seu livro “O discurso cinematográfico: Opacidade e transparência”, no qual analisa as direções da montagem na teoria do cinema e separa as teorias de montagem do cinema clássico das teorias de Sergei Eisenstein.

1.2.1. André Bazin e o “cinema da transparência”

André Bazin será importante para esta pesquisa, pois o cinema que o teórico francês defende também tem como objetivo a ilusão e o apagamento da descontinuidade:

Qualquer que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade cotidiana (…). Se tentarmos, por um esforço de atenção voluntária, perceber as rupturas impostas pela câmera ao desenrolar contínuo do acontecimento representado e compreender bem por que eles nos são naturalmente insensíveis, vemos que os toleramos porque deixam de subsistir em nós de algum modo, a impressão de uma realidade contínua e homogênea (BAZIN, 1972, p.66 e 67). Bazin argumenta que o cinema, como arte, deve seguir o modelo grego de mimesis e também imitar a realidade, porém, contrapõe o cinema da Versão- Padrão aos filmes lançados após 1928. Ele observa que as produções das décadas de 30 e 40 possuíam duas evoluções tecnológicas em relação ao cinema da Versão-Padrão: a profundidade de campo e a possibilidade de o filme ser falado. A profundidade de campo consiste na “(...) capacidade da lente da câmera de reproduzir vários planos de ação com foco nítido” (BORDWELL, 2013, p.86). O primeiro cinema tinha planos mais fechados para estabelecer a relação entre os personagens e o objeto – pois as câmeras dessa época só conseguiam manter em foco aquilo que estava no primeiro campo visual da imagem –, era mudo, não tinha a capacidade de reproduzir os diálogos dos personagens pelo som. Assim, no fim da década de 30, uma nova linguagem de montagem é consolidada a partir do uso da profundidade de campo e do som dos diálogos:

Em 1938 ou 1939, portanto, o cinema falado conhece, sobretudo na França e nos Estados Unidos, uma espécie de perfeição clássica, fundada, por um lado, sobre a maturidade dos gêneros dramáticos elaborados durante dez anos ou herdados do cinema mudo e, por

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outro, sobre estabilização dos progressos técnicos (BAZIN, 1984, p.102).

Figura 14 - Filme “Cidadão Kane”, Welles, 1941. Segundo André Bazin, o diretor norte-americano é um dos que melhor utilizam a profundidade de campo e o som para construir um cinema que procura imitar a realidade.

Fonte: Fotograma retirado do filme “Cidadão Kane” de Orson Welles.

Segundo o texto “A evolução da linguagem cinematográfica”, o cinema norte-americano, da década de 30, e o italiano, da década de 40, tinham características diferentes do cinema das décadas de 10 e 20 devido à profundidade de campo e do som sincronizado. Bazin defende que o cinema de Orson Welles e Roberto Rosselini resgataram uma vocação ontológica da sétima arte: o realismo. O teórico francês afirma que o cinematógrafo é o aparato que melhor pode imitar a realidade, pois ele capta as imagens e os sons mecanicamente. Logo, ele podia reproduzir na tela as sensações que uma pessoa teria em sua vida real.

(...) a profundidade de campo coloca o espectador numa relação com a imagem mais próxima do que a que ele mantém com a realidade. Logo, é justo dizer que, independente do conteúdo da imagem, sua estrutura é mais realista (BAZIN, 1984, p.102). Todavia, para imitar a realidade, o cinema deveria respeitar a contiguidade física e factual dos acontecimentos. Sendo assim, a narrativa deveria se valer mais de planos contínuos, com a menor quantidade de cortes possível. Se Kulechov havia colocado a montagem num local central da prática cinematográfica, Bazin argumenta que a montagem, no cinema, deve ser residual, ou seja, só deve ser usada com limites precisos. O teórico francês é o

28 defensor do plano-sequência – cena gravada em apenas um plano, sem cortes – e alega que o filme deve ser composto por diversos planos-sequência e que cada corte deve ser mascarado ao máximo para que a contiguidade física e temporal permaneça impressa para o espectador:

Quando o essencial de um evento depende da presença simultânea de dois ou vários fatores da ação, a montagem é proibida. Ela readquire seus direitos toda vez que o sentido da ação já não depende da contiguidade física - mesmo se esta estiver implicada (BAZIN, 1984, p.92). Nesse ponto, as teorias de Bazin acabam se distanciando da estética do cinema clássico. Isso porque, para o teórico francês, o filme deve se valer de planos-sequência e de sentidos ambíguos para produzir a ilusão de que a janela do cinema reproduz o real. Já o cinema clássico dos grandes estúdios continuou incorporando uma montagem expressiva e analítica para construir a mesma ilusão. As teorias de Bazin vão desembocar no cinema moderno e na Nouvelle Vague, porém o padrão clássico irá incorporar o uso do plano-sequência, bem como o uso da profundidade de campo em sua estética.

Paralelamente às evoluções tecnológicas do cinema, um outro evento importante, de grande relevância para a criação da série The Walking Dead, acontece na comunicação audiovisual. A televisão começa a se valer da combinação de imagens e sons para se comunicar e apropria-se dos princípios da montagem para construir sua estética.

1.3. Montagem e televisão

A televisão surge na década de 20 como resultado de vários inventos que possibilitaram transformar sinais elétricos em transmissões eletromagnéticas e, por fim, em imagens. A British Broadcast Company utilizou o modelo de John Logie Baird e passou a usar as ondas de rádio para emitir imagens para os televisores e, assim, uma nova mídia audiovisual passou a acompanhar o cinema e o rádio.

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A nova mídia se tornou popular depois da Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 40 e 50, expandiu-se para diferentes países e tornou-se um grande negócio nos Estados Unidos, assim como o cinema. A televisão herda do cinema a lógica industrial dos grandes estúdios, que fabricavam filmes dentro de uma linha de produção. Diante de um fluxo ininterrupto de imagens e som, a autoria se apaga e quem se destaca são os canais de televisão, a ABC e a NBC norte- americanas, a BBC, no Reino Unido, a TV Globo, no Brasil, a Televisa, no México, entre outros. Dentro desses canais da televisão aberta trabalham roteiristas, diretores, atores, montadores, entre outros, produzindo em escala industrial.

Já na segunda metade do século XX, a televisão se tornou o principal meio de comunicação em massa, atingindo o maior número de pessoas ao redor do mundo. Estabeleceu um modelo de negócios rentável, em que vende o espaço dos intervalos para veicular propagandas: quanto maior a audiência do programa, mais caro o preço do intervalo comercial.

Ainda, assim como no cinema, a televisão também se propõe a contar histórias e veicular ficções, e isso significa que não só herda a lógica industrial dos grandes estúdios cinematográficos, mas também se apropria da Versão- Padrão para formatar suas narrativas. Os autores das ficções televisivas utilizam os princípios da montagem, combinando elementos visuais e sonoros, para construir sentidos. Entretanto, a narrativa televisiva tem características próprias da mídia, algo que Bordwell defendeu como preponderante para o meio se emancipar como forma artística. A possibilidade do corte ao vivo e o uso de gêneros de não-ficção são elementos distintos da televisão em relação ao cinema, e, portanto, a televisão é um meio com linguagem e estética própria.

Arlindo Machado, em seu trabalho “Televisão levada a sério” (2000), aponta que uma das características inerentes à televisão é a transmissão das imagens em sons no tempo presente. Ao contrário do cinema, com a televisão é possível registrar e transmitir eventos ao vivo.

Em todos os meios audiovisuais anteriores à televisão, os realizadores sempre necessitam de um tempo, de um “recuo” para dar sentido e consistência ao material significante que estão elaborando. Esse intervalo de elaboração corresponde ao tempo da escolha do motivo,

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do enquadramento, da composição, da revelação e copiagem dos negativos, da montagem, da sonorização, etc. Em outros termos, para que uma foto ou um filme apareçam como materiais significantes plenos, deve haver um intervalo separando o momento em que o referente posa para a câmera e aquele em que o espectador frui o produto final. Esse intervalo corresponde ao tempo da manipulação, no qual todas as possibilidades de articulação do código fotográfico ou cinematográfico são experimentadas, para permitir que o material gravado possa render os melhores resultados possíveis. Na transmissão direta, entretanto, todo esse arbítrio do sujeito enunciador, se não perde definitivamente o seu poder de agenciamento, perde pelo menos a possibilidade de contar com o tempo da manipulação. Em tempo presente, os realizadores devem dar consistência ao material no mesmo momento em que esse material ainda está sendo tomado e sem· ter condições de pré-visualizar os resultados antes que o produto chegue ao receptor (MACHADO, 2000, p.130). A televisão permite que uma nova modalidade de montagem aconteça: a montagem ao vivo. Tanto dentro do estúdio quanto na transmissão de um evento, o diretor de imagens pode dispor de uma variedade de câmeras para cobrir o objeto, recortando o espaço e o objeto com diferentes ângulos de câmera, e mesmo fragmentando o espaço, consegue manter a unidade temporal do evento. Pensando que um dos problemas que o montador de um filme tinha ao realizar um corte era manter a continuidade em algo filmado de maneira descontínua, a televisão proporciona um grande avanço para as teorias da montagem:

Ora, tomar as mensagens “legíveis” ao espectador no mesmo momento em que elas ainda estão sendo enunciadas constitui fenômeno inédito na história do audiovisual, com consequências inumeráveis nos planos da criação e da recepção (MACHADO, 2000, p.130). Arlindo Machado retoma uma percepção de Umberto Eco sobre o trabalho do diretor de imagem, que se caracteriza “como uma peculiar congenialidade com os eventos, uma forma de hipersensibilidade, e intuitividade que lhe permita crescer com o evento, acontecer com o acontecimento” (ECO apud MACHADO, 2000, p.134). Ambos os autores destacam a potência do corte ao vivo criado simultaneamente ao evento a fim de criar uma nova estética para a montagem:

Numa transmissão direta de televisão, entretanto, qualquer espécie de controle do material significante deve ser efetuada no próprio ato da emissão. Como isso nunca é inteiramente possível, já que a imponderabilidade dos eventos tomados no próprio ato não pode ser de todo controlada não há como impedir que se manifestem no resultado final todas essas rebarbas subjacentes à mensagem, com suas insinuações, equívocos e desarranjos que evidenciam a

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manipulação. Evidentemente, uma emissão direta de televisão não tem “ponta”, nem claquete, mas da mesma forma que no processo de enunciação cinematográfica há os tempos mortos, em que “nada está acontecendo” do ponto de vista da coerência estrutural ou da consistência narrativa, há os erros, as desconexões, as soluções apressadas e sem funcionalidade, quando não ocorre fato mais grave, como um acesso de tosse no apresentador ou um enquadramento inesperado que revela os bastidores, a girafa de microfone, a presença da câmera, ou qualquer coisa simplesmente inominável (MACHADO, 2000, p.131).

Figura 15 - Estúdio de jornalismo dentro da rede Globo. Câmeras dispostas na frente do cenário, para melhor captar a ação do apresentador.

Fonte:https://www.torcedores.com/noticias/2016/11/edicao-paulista-do-globo-esporte-faz-o- desafio-do-manequim-em-encerramento-do-programa. Acesso em 25 de abril de 2020. Acesso em 25 de abril de 2020.

Ao organizar as câmeras ao redor dos objetos, seja num telejornal, um jogo de futebol, ou mesmo uma ficção, o diretor e diretor de imagens – profissional que faz os cortes das câmeras numa mesa de edição – necessitam posicionar os cinegrafistas de modo que nada se perca, e nessa organização, o que seria um erro ou um descontrole da montagem no cinema, torna-se parte do estilo da estética televisiva.

Contudo, para a montagem de ficção, temos um problema em relação à maneira como se cria a montagem ilusória. Em um esquema industrial em que se deve produzir muito para construir o fluxo televisivo (MACHADO), a decupagem das obras ficcionais da televisão seguiu a decupagem do corte ao vivo. É mais prático e mais barato repetir certas características de produção nas diferentes gravações. Ao apenas cercar com câmeras o objeto, a câmera não entra na cena em si, ela acaba ficando limitada em relação ao recorte do espaço

32 se pensarmos na expressividade da câmera que Ismail Xavier nos indica como característico da montagem ilusória.

Até o fim do século XX, as séries, novelas e os produtos dramatúrgicos da televisão tinham como característica o uso da montagem ilusória a que se refere Bordwell e Xavier, apagando as interrupções de espaço-tempo que um corte proporciona e as intervenções dos realizadores dos produtos, sejam eles os roteiristas ou os montadores. A narrativa da televisão, antes dos anos 2000, seguiam as convenções do cinema clássico, tanto na dramaturgia calcada em gêneros tradicionais quanto na direção e na montagem, que privilegiam a transmissão do enredo para o espectador. Entretanto, a organização das câmeras seguindo o modelo do corte ao vivo já colocava uma diferenciação entre a ficção televisiva e a ficção feita no cinema.

Segundo o autor Jason Mitttell, professor de cultura midiática e cultura fílmica na Middlebury College, a televisão americana mudou durante os anos 2000. No livro Complex TV, Mittell argumenta que:

(...) nas duas últimas décadas, um novo modelo de storytelling emergiu como alternativa às formas episódicas e serializadas que caracterizou a maior parte da TV americana desde sua origem, um modelo que eu chamo de complexidade narrativa. Nós podemos ver tamanha inovações narrativas em sucessos como Seinfield, Lost, Arquivo-X, How I met your Mother, assim como sucessos de crítica, mas sem grandes números de audiência, como Arrested Development, Veronica Mars, Boomtown e Firefly (MITTEL, 2015, p.17).

A dramaturgia televisiva norte-americana, até o começo dos anos 2000, tinha dois grandes modelos: o episódico e o serializado. No episódico, como The Simpson, a cada semana “se rejeitava a continuidade entre cada episódio para sempre retornar a um estado de equilíbrio em que Bart estava na quarta série, Maggie era uma eterna recém-nascida, uma família disfuncional congelada no tempo (…) as transformações voltavam para trás depois de cada episódio” (MITTEL, 2015, p.21). Já o formato serializado se manifestava nas soap opera, “com décadas de acúmulo narrativo e com o fim eternamente adiado (...) e geralmente eram melodramas que se passavam durante o dia” (MITTEL, 2015, p.22).3 O professor norte-americano aponta que as séries e as novelas norte-

3 Arlindo Machado em “Televisão levada a série” também faz essa distinção das narrativas televisivas, identifica os formatos serializados e episódios, mas também observa uma terceira

33 americanas possuíam uma dramaturgia simples, calcadas em gêneros de fácil identificação, como o melodrama e a comédia, e também não fugiam da linguagem clássica destacada por Bordwell e Xavier.

Mittel define o novo modelo de narrativa da seguinte maneira:

O que é uma narrativa complexa? No seu modelo mais básico, a narrativa complexa redefine a forma episódica sobre a influência da narrativa serializada. É um equilíbrio entre as duas formas. Não é necessário que em todo capítulo haja um fechamento como na narrativa episódica (MITTEL, 2015, p.18). Um exemplo dessa nova narrativa está no seriado “Arquivo X” (1993), uma série de Chris Carter que se iniciou nos anos 90 e terminou em 2002, e assim se transformou ao longo das temporadas em uma narrativa complexa. A série, que conta a história dos agentes do FBI, Fox Mulder e Dana Scully, em investigações de casos com fenômenos paranormais, tinha, no começo, uma estrutura episódica: cada episódio tinha uma estrutura que se fechava em si mesma, uma história com começo meio e fim que não dependia do anterior, muito menos deixava ganchos para o episódio seguinte. Ao longo das temporadas e com a transposição da série para o cinema, numa manifestação transmídia, a trama da abdução da irmã de Mulder por extraterrestres e a participação do pai do detetive numa conspiração entre humanos e alienígenas para dominar a Terra passa a tomar conta da maioria dos episódios e os acontecimentos de cada episódio reverberam no episódio seguinte e na percepção do arco da série.

A direção e a montagem de “Arquivo X” também seguiam a decupagem cinematográfica. Filmada no Canadá, muitas vezes fora do estúdio, a série tinha como característica o uso da câmera dentro do espaço diegético, em oposição à decupagem de sitcoms e soap operas de antes dos anos 2000, que cercavam a cena com as câmeras. Com os recursos da montagem, essa presença da câmera dentro da cena era apagada e o espectador mantinha a ilusão de que a instância narrativa era invisível.

modalidade, em que apenas o “espírito geral ou a temática se preservam, porém, em cada unidade a história e os personagens mudam” (MACHADO, 2000, p.84). São os casos dos programas “Comédia da vida privada” (1995-97) ou The Twilight zone (1959-1964).

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A percepção do tempo muda dentro da concepção da nova e complexa televisão. Os capítulos das soap operas e episódios das séries antes dos anos 2000 possuíam poucas conexões temporárias entre si, já que os mesmos eram vistos com intervalos de uma semana. Já os episódios das novas séries possuem maior interconexão, pois “quanto mais a série nos lembra que os eventos narrativos têm um impacto cumulativo, mais podemos esperar continuidade e consistência” (MITTEL, 2015, p.23). Essa nova maneira de construir os capítulos das narrativas influencia profundamente o roteiro e a montagem. No modo simplificado, não era necessário a criação de “ganchos”4 entre cada episódio, já na narrativa complexa, é necessário manter a atenção do espectador em suspense para que ele volte a assistir à série na outra semana.

As mudanças tecnológicas também transformaram a nova televisão, e uma das mais importantes foi o crescimento da venda de DVDs com a temporada completa da série televisiva. Agora, os espectadores podem assistir aos episódios sem o intervalo de uma semana, em continuidade, como se fosse um longo filme dividido em capítulos (binge watching). Com isso, há uma grande mudança de percepção das séries:

As narrativas complexas de hoje são projetadas para um espectador perspicaz não só para prestar atenção a uma única vez, mas também para observar a profundidade das referências, maravilhar-se com exibições da construção narrativa e continuidades e apreciar detalhes que exigem o uso livre do botão de pausa e rebobinar. Comédias complexas como Arrested Development estimulam o poder de rebobinar e congelar os DVDs para capturar piadas visuais de frações de segundo e pausar o ritmo frenético para se recuperar do riso (MITTEL, 2015, p.38). Stevie Johnson argumenta que a forma complexa de narrar ofereceu aos espectadores um treinamento cognitivo, permitindo que eles consigam resolver maiores problemas e tenham uma capacidade de observação mais apurada (apud MITTEL). Os DVDs de séries, como Arrested Development, estimulam a audiência a se debruçar sobre cada episódio e a estudar cada piada, cada referência. Além disso, essa audiência acaba adquirindo maior consciência da

4 Gancho: instrumento específico para prender a atenção e mantê-la suspensa por algum tempo. O montador corta a ação em um momento decisivo e só mostra o desfecho da ação no capítulo seguinte.

35 narração e exige da construção narrativa maior sofisticação, maior apuro estético.

A convergência das mídias acompanha o novo modelo narrativo e pode proporcionar maior sofisticação na história. A possibilidade de levar a trama das séries para o videogame, a internet, o celular, entre outras mídias, permite que o contato do espectador com o universo diegético não aconteça apenas na tela da televisão. A continuidade e os ganchos das séries não ocorrem apenas entre episódios, mas também entre a manifestação da série nas diferentes mídias. O novo modelo narrativo é transmídia e Mittel dedica um capítulo de Complex TV para descrever como as séries se relacionam com essa convergência – o texto de Mittel sobre transmídia será analisado no próximo capítulo.

O autor utiliza os critérios da análise cinematográfica de David Bordwell para classificar esse novo modelo da televisão americana, a narrativa complexa, como um modo narrativo distinto:

Para Bordwell, um “modo narrativo é um conjunto historicamente distinto de normas de construção e compreensão narrativa”, que cruza gêneros, criadores específicos e movimentos artísticos para forjar uma categoria coerente de práticas. Bordwell descreve métodos cinemáticos específicos, como Hollywood clássico, o cinema de arte e o materialismo histórico, todos abrangendo estratégias distintas de narração de histórias, ao mesmo tempo em que se referem uns aos outros e se baseiam em outros modos (MITTEL, 2015, p.17). O autor de Complex TV mostra, em exemplos como Lost, Breaking Bad, How I Met Your Mother, entre outros, os métodos que os autores dessas séries utilizaram para conseguirem construir um conjunto de características que as unem dentro de um modelo que se destaca em relação à tradição da televisão norte-americana até então. Podemos, inclusive, retomar a definição de Bordwell de estilo cinematográfico – “um estilo é um uso sistemático e significativo de técnicas de mídia cinema em um filme” – para definir que as séries confeccionadas ao longo das duas primeiras décadas de 2000 possuem um estilo próprio e robusto.

The Walking Dead (KIRKMAN, DARABONT, 2010) surge na televisão dentro desse modelo narrativo. A série sobre um vírus que contagia a população mundial e transforma quem é infectado em zumbi manifestou-se primeiro como história em quadrinhos, e seu universo foi posteriormente adaptado para a

36 televisão. É uma narrativa transmídia, com traduções intersemióticas para o videogame, redes sociais e uma segunda série televisiva. A série original foi, por muito tempo, líder de audiência nos Estados Unidos, e seu capítulo com maior número de espectadores foi o primeiro episódio da quinta temporada, em 2014, em que 17,4 milhões de aparelhos estavam ligados no programa:

(...) na era digital, um programa de televisão é permeado por uma teia interextual que empurra os limites textuais para fora, obscurecendo as fronteiras experimentais entre assistir a um programa e interagir com seu paratexto. Da mesma forma, o texto em série em si é menos objeto de contar histórias do que uma extensa biblioteca de conteúdo narrativo que pode ser consumida por meio de uma ampla gama de práticas, sequências, fragmentos, momentos, escolhas e repetições (MITTEL, 2015, p.7). The Walking Dead está inserida em um modelo narrativo no qual as séries televisivas são valorizadas por sua qualidade dramatúrgica e por apresentar o equilíbrio entre o episódico e o serializado. Os capítulos da série de televisão acontecem uma vez por semana e o que acontece em um episódio tem consequências e continuidade no seguinte. Porém, vale destacar a sofisticação do universo de TWD, pois a construção narrativa se dá em diversas manifestações, permitindo aos espectadores e fãs não só assistir ao programa, mas também “interagir com o seu paratexto”.5 Robert Kirkman, o criador da história em quadrinhos e showrunner das séries, construiu uma extensa biblioteca de conteúdos narrativos que se entremeiam e propõem conexões complexas, ainda mais se compararmos com as séries anteriores aos anos 2000. Robert Kirkman não apenas passa o universo dos quadrinhos para a televisão, como recria personagens e tramas para melhor explorar as características das mídias pelas quais TWD irá se manifestar.

Quando analisamos a montagem de TWD, é importante pensar em como os montadores criaram a continuidade e a consistência entre os episódios da série principal e entre a história em quadrinhos, o spin-off Fear The Walking Dead, os jogos de videogame e a websérie.

5 Segundo Mittel, paratextos são todas manifestações que uma série de televisão oferece ao espectador para que ele possa se relacionar com a narrativa. Traillers, making-offs, aplicativos, websites e as manifestações transmídia são todos textos que orientam o espectador para que ele interaja com o universo da série.

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1.4. Montagem de The Walking Dead

1.4.1. Modelo ilusório

Em TWD, há um claro objetivo de criar uma ilusão de que o universo zumbi faz parte de uma narrativa verossímil e realista. E esse universo é dividido nas manifestações transmidiática, porém percebido como parte de um espaço ficcional autônomo.

Assim como “Arquivo X”, a série de Robert Kirkman é filmada fora do estúdio pois se aproveita da expressividade da câmera para recortar o espaço e obter o melhor ponto de vista para narrar a trama. Mesmo em um período com várias câmeras digitais de qualidade, a série é filmada em película 16mm, a escolha pela plataforma analógica é uma maneira que diretores e fotógrafos encontraram para que a série tivesse imagens que se assemelhasse a filmes de terror da década de 70 e 80. Segundo o fotógrafo Stephen Campbell: “O programa, filmado em 16mm, tem um grão mais aparente. Isso proporciona desfoque no movimento, e assim, adiciona um pouco da cara de filmes clássicos de terror na série”6.

O gênero terror zumbi é outro importante elemento característico de todas as manifestações artísticas. A história em quadrinhos, as duas séries televisivas, a websérie, os jogos de videogame, os episódios todos são filmados e montados segundo as convenções do gênero. David Bordwell e Kristin Thompson definem: “terror é reconhecível pelo efeito emocional que quer causar: chocar, causar asco, repelir, amedrontar. O monstro é uma violação do nosso senso comum” (BORDWELL, THOMPSON, 2013, p.106). O gênero possui convenções reconhecíveis pelos espectadores, como uma montagem que constrói uma dilatação do tempo, uma fotografia que privilegia a escuridão, maquiagem pesada, muitos efeitos especiais.

TWD aproxima-se das teorias de montagem que observam um cinema com o objetivo ilusório: a teoria da Versão-Padrão de Bordwell, ou do cinema

6 CPN_EDITOR. Creative planet network, 2016. Disponível em:. Acesso em: 25 de abril de 2020.

38 clássico, segundo Ismail Xavier. Kulechov sustenta que a montagem cria novos sentidos e, portanto, no contexto desse cinema ilusório, também deve trazer as teorias do professor russo para pensar TWD. O cinema discursivo de Eisenstein será deixado de lado nesse momento, pois não é o objetivo de TWD escancarar o discurso e a ideologia por trás da obra.

Seguindo a análise da teoria do cinema clássico que interessa à pesquisa, Xavier observa que durante a consolidação da Versão-Padrão, diretores e montadores propuseram dois objetivos fundamentais para a consolidação do estilo: impedir que o espectador percebesse que a cada corte há uma interrupção no espaço e no tempo, e criar a ilusão de que dentro da janela cinematográfica um mundo real independente de um narrador possa estar passando diante dos olhos do espectador. As regras de continuidade, a relação de campo - contracampo, os cortes no movimento dos corpos, entre outros, são convenções da montagem cinematográfica para criar a impressão no espectador de que o filme contém uma unidade temporal e espacial.

O cinema clássico se apoia no modelo grego de tentar imitar a realidade e se assemelha ao modelo dramático defendido por Aristóteles em “A Poética”. Para o filósofo, o drama se caracteriza justamente pela unidade de tempo e de espaço. A montagem, com suas convenções, constrói a unidade temporal e espacial, e com isso, o espectador não percebe que há um narrador combinando imagens e sons para contar a história, o que cria uma impressão ilusória de realismo sobre o que se passa na tela.

Há outra ilusão essencial criada pelo jogo da montagem que imprime uma relação psicológica entre o espectador e o filme que é específica da arte cinematográfica. Quando é mostrado o plano de um personagem olhando um objeto, em seguida mostra-se o plano subjetivo do personagem com o objeto na tela, o olhar do espectador prende-se ao olhar do personagem. Dessa maneira, a montagem, além de criar a ilusão da unidade espaço-temporal e do realismo, também transporta o espectador para dentro da tela, para dentro da ação. Nesse sentido, a operação descrita comprova o que Kulechov afirma sobre a justaposição de imagens, que é na relação entre elas que se constrói um novo sentido.

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Em “Guerra nas Estrelas” (1977), por exemplo, quando o cineasta mostra um plano dos olhos de Luke Skywalker e em seguida mostra outro com a figura de Darth Vader, não é só Luke quem está olhando para o seu inimigo: o espectador pega emprestado os olhos do jedi para também encarar Darth Vader. Retomando Aristóteles, a maior força da forma dramática em relação à forma épica é justificada pelo fato de o drama ser vivido, não contado. A catarse e o envolvimento do espectador do drama são maiores por não haver um intermediário entre o universo da história e quem assiste à narrativa dramática. No jogo psicológico proposto pela montagem, o espectador se torna Luke Skywalker e vai lutar contra o Darth Vader.

Plano subjetivo de Luke Skywalker aproxima o espectador da ação. A montagem cria a ilusão que o espectador está dentro do espaço diegético.

Figura 16 Figura 17

Fonte: Fotogramas do filme “O Retorno do Jedi” (1983).

É importante salientar que com a organização de câmeras para o corte ao vivo, as séries televisivas, as sitcoms e as soap operas não conseguiram realizar essa relação psicológica, já que as câmeras não podiam invadir o espaço diegético e assumir o lugar dos personagens. Já em TWD, a câmera assume o ponto de vista de personagens como Rick, Daryl, Michone e Carol, e com o jogo da montagem o espectador se vale dos olhos desses personagens e praticamente invade o universo narrativo.

Sobre a eliminação da distância entre espectador e universo narrativo, Ismail Xavier cita Béla Balázs em seu livro “O Discurso Cinematográfico – Opacidade e Transparência”:

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Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio da composição contida em si mesma e que, não apenas elimina a distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de que ele está no interior da ação, reproduzida no espaço ficcional do filme (BALÁZS, 1923, APUD, XAVIER, 1984, p.39). Hoje, a distância entre o espectador e a obra de arte, citada por Béla Balázs, é ainda menor. Agora, não precisamos sair de casa para ir ao cinema, as imagens e os sons chegam até nós pela televisão, pelo computador e pelo videogame. Podemos carregar as narrativas em celulares e tablets. O universo de séries como TWD salta da tela e nos cerca nas diferentes mídias e paratextos a partir dos quais suas narrativas são espalhadas.

Nos jogos de videogame ou online, não só assumimos os olhos de (personagem principal de The Walking Dead), mas também suas mãos e suas armas para matar os zumbis e seus inimigos. Dentro do Twitter e do Facebook, podemos criar perfis de personagens e falar, expressar ideias, como se fôssemos Rick Grimes ou . O espectador pode se tornar personagem e simular uma vivência no interior do universo ficcional de The Walking Dead.

A relação que temos com a representação, hoje, faz parte de um processo que começa na defesa da forma dramática feita por Aristóteles, passa pelos efeitos ilusórios da pintura renascentista (também observada no livro “Discurso Cinematográfico”, por Ismail Xavier, ao comentar o texto: “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, de Jean Louis Baudry (2005)) e culmina com a invasão do universo ficcional dentro de nossas casas e nossas vidas. A montagem transmídia afirma esse modelo de representação.

Numa série transmídia, os princípios da montagem podem continuar contribuindo para a manutenção da unidade espaço-temporal, e, principalmente, para dar coerência e coesão para as diferentes narrativas do mesmo universo ficcional dispersas nas diferentes mídias. Em The Walking Dead, é possível perceber diversos elementos da montagem, como sons, trilha sonora, ritmos de suspense (típicos do gênero terror), o que contribui para dar unidade aos conteúdos e manter a série coerente ao modelo ilusório. Porém, a combinação de imagens e sons agora não é pensada apenas intramídias, mas intermídias. Um novo procedimento de montagem se dá ao justapor as imagens e sons de

41 mídias diferentes. Um exemplo dessa relação pode ser visto em The Walking Dead e na websérie Torn Apart.

Figura 18 - episódio 1, temporada 1 da Figura 19 – “Torn Apart”, episódio 1, série “The Walking Dead”. Nicotero, 2011.

Fonte: “The Walking Dead”, Kirkman e Fonte: “Torn Apart”, Nicotero, 2011. Darabont, 2010.

No primeiro episódio da série televisiva, Rick Grimes utiliza uma bicicleta que achou na rua para chegar até à casa do personagem Morgan, onde irá receber a notícia de que o mundo foi invadido por um vírus zumbi. Rick pega a bicicleta num local onde uma zumbi de cabelos loiros, com metade do corpo decepado, tenta morder o protagonista da série. Na websérie, acompanhamos a história da personagem loira antes dela ser contaminada. Porém, além da dramaturgia, a imagem da bicicleta vermelha e da mulher de cabelos loiros faz o espectador se lembrar do primeiro episódio da série televisiva e conectar a imagem da websérie com a da série. Pela justaposição de imagens das diferentes mídias, é perceptível que ambas as histórias fazem parte do mesmo universo e, segundo Kulechov, constroem um novo sentido que não estava na imagem da série televisiva sozinha, nem mesmo na imagem da websérie vista de maneira independente: um novo sentido que fortalece a ilusão proporcionada pela linguagem clássica.

O exemplo acima demonstra como os criadores de The Walking Dead utilizam-se dos princípios da montagem, mais especificamente, da montagem clássica, para conseguir criar continuidade – também chamado de raccord, por Bordwell – entre o que acontece na série televisiva e na websérie. O espectador junta as imagens das diferentes mídias numa única narrativa. Aqui, a montagem

42 transmídia acontece ao se conectar com os princípios da Versão-Padrão, teorizada por Bordwell.

Entretanto, The Walking Dead e suas manifestações também constroem estruturas de montagem mais complexas que superam a linguagem clássica e se aproximam das estruturas modernas observadas pelo teórico Noel Burch, e também por outras características da narrativa complexa pensada por Jason Mittel.

1.4.2. Modelo complexo

Ainda no livro “Sobre a história do estilo cinematográfico”, Borwell aponta outras versões estilísticas para a história do cinema. Com o lançamento de filmes europeus, como “Hiroshima meu amor”, “Acossado”, “A aventura”, e também de filmes brasileiros do cinema novo, Bordwell se apoia nas observações de Noel Burch sobre esses filmes para montar a Versão-Oposicionista do desenvolvimento do estilo, posicionando o cinema moderno como antagônico ao cinema clássico narrativo:

Noel Burch constitui um exemplar notável dessa tendência. Apesar de Burch não ter escrito nenhuma história sinóptica, suas monografias e seus artigos, dos anos 1950 e 1990, delineiam cumulativamente um amplo programa de pesquisa. Em todo o seu trabalho, a estratégia foi estudar a produção cinematográfica ocidental do ponto de vista dos modos de oposição que “desnaturalizam” as convenções da técnica dominante e que sugerem outras maneiras de fazer filmes (BORDWELL, 2013, p.12). Burch escreve artigos para a Cahiers du Cinema durante a década de 50 e 60, e irá observar que o cinema realizado por Antonioni, Resnais e Godard se opõe à Versão-Padrão e à montagem ilusionista clássica. Os filmes, cuja montagem tinha o objetivo de “tornar imperceptíveis as mudanças de plano com continuidade ou proximidade espacial” (BURCH, 1969, p.31) e com “a crença no falso pressuposto de que o cinema seria um meio de expressão realista (BURCH, 1969, p.31), são classificados pelo autor inglês como filmes com o grau zero de estilo cinematográfico. Em oposição ao grau zero, Burch defende: Atualmente, é preciso repensar o conceito da função e da natureza da mudança de plano, do mesmo modo que o fazer cinematográfico como

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um todo e sua relação com a narrativa. Começamos a perceber que uma organização racional dos cortes (e dos próprios raccords) se impõe...acreditamos que, no futuro, a mudança será, para o cinema, a base de estruturas infinitamente mais complexa (BURCH, 1969, p.32 e 33). O cinema que Burch apoia visa a estruturas de montagem mais complexas, na qual o corte não responde imediatamente à vocação realista de manter o espectador orientado no espaço diegético e com a sensação de tempo presente e fluído. O cinema que Burch apoia proporciona ao espectador uma experiência mais complexa, e confronta a orientação com a desorientação.

(...) vê-se que este tipo de desorientação pressupõe uma continuidade espacial e temporal coerente, um contexto previamente articulado com raccords de compreensão imediata. Uma utilização mais sistemática e estrutural da desorientação provocada pelo raccord de compreensão retarda, dependeria basicamente da definição de uma espécie dialética entre raccords deste gênero e os outros (BURCH,1969, p.33). A desorientação, vista pela montagem clássica como um erro, é observada por Burch como um procedimento que estressa a estrutura de um filme, permitindo uma relação entre espectador e filme mais sofisticada e menos previsível, mesmo no contexto do cinema narrativo. Godard, ao utilizar os falsos raccords em “Acossado”, não renuncia à ficção, e o espectador, mesmo estranhando a descontinuidade em um primeiro momento, aceita o corte fora da convenção como parte da linguagem de uma narrativa em que a ambiguidade e a desorientação são aceitas:

(...) outras possibilidades poderiam surgir da não-resolução desses raccords abertos. O cinema daí resultante é um cinema cuja matéria- prima é a própria ambiguidade, em que o espaço real é constantemente checado, em que o espectador jamais poderia orientar-se (BURCH, 1969, p.35). A montagem transmídia de The Walking Dead também propõe estruturas complexas e manifesta, ao mesmo tempo, um sentido de continuidade entre os vários fenômenos, mas também ambiguidades e desorientações. Na dramaturgia, Carol, uma das personagens mais importantes da série, tem boa índole na história em quadrinhos, porém se torna uma das assassinas mais cruéis da série televisiva. Mesmo com a diferença fundamental na adaptação, entendemos que a Carol da série televisiva é a Carol da história em quadrinhos. “(...) se não houver essas múltiplas sensibilidades para a ambiguidade, para a ambivalência (ou contradição), para a complexidade, será muito pequena a

44 capacidade de entender o sentido dos acontecimentos” (MORIN, 2013, p.14). Carol é uma manifestação complexa, e reflete as ambivalências que Edgar Morin observa num mundo multidimensional e incerto. Ainda em Morin, “uma realidade, pessoa ou sociedade se apresenta sob aspecto de duas verdades diferentes ou contrárias, ou então apresenta duas faces, não se sabendo qual é a verdade” (MORIN, 2013, p.9) e que ambivalência é “quando um processo apresenta dois aspectos de valores diferentes e às vezes contrários” (MORIN, 2013, p.10).

Na dissertação de mestrado “Processos de criação do personagem Walter White em Breaking Bad: entendendo o perigo”, o autor Osmar Guerra discute a ambivalência e a ambiguidade de Walter White, protagonista de uma série contemporânea à TWD, Breaking Bad, também utilizando os conceitos de Morin. Segundo Guerra, o personagem possui uma segunda personalidade, Heisenberg, que convive com o pai de família e professor de química do ensino médio:

Em outras palavras, em Walter encontramos ambiguidade, pois em diversos momentos da história não sabemos quem está agindo, se Heisenberg ou Walter, e apresenta ambivalência, pois o mesmo Walter que se mostra conservador como cidadão, decide eliminar quem atrapalha seus objetivos, mesmo crianças, por exemplo. O Walter e o Heisenberg moram no mesmo corpo e devem conciliar ambiguidade e ambivalência na conduta e na construção do pensamento (GUERRA, 2018, p.81). Carol e muitos outros personagens de TWD possuem essa contradição, essa ambivalência. Porém, o que é novo na série zumbi é que precisamos ver os quadrinhos e a série televisiva, montar as imagens e sons das duas plataformas para chegar a essa conclusão. A Carol da televisão possui várias características da Carol da história em quadrinhos, mas outras são completamente contraditórias em relação à primeira personagem. Morin demonstra que essa capacidade do humano em ter diferentes comportamentos é parte de sua natureza complexa.

A compreensão humana comporta o entendimento não só da complexidade do ser humano, mas também das condições em que são modeladas as mentalidades e praticadas as ações. As situações são determinantes, como demonstram as circunstâncias de guerra em que as virtualidades mais odiosas podem concretizar-se. Os terroristas, de certa maneira, vivem uma ideologia de guerra em tempos de paz (MORIN, 2015, p.14 e 15).

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A Carol dos quadrinhos vive situações distintas daquela da televisão, pois os plots, as tramas, são diferentes. Logo, ela vai ter comportamentos diferentes, uma vez que é influenciada por essas novas condições.

Mittel discute em Complex TV que uma das características do novo modelo narrativo é possuir histórias com ambiguidades e desorientações, também superando o modelo clássico e a Versão-Padrão de Bordwell:

Em todas essas séries, a falta de dicas explícitas e sinalizações criam momentos de desorientação, pedindo aos espectadores que se envolvam mais ativamente para compreender a história. Os espectadores regulares que dominam as convenções internas de narrativa complexa de cada programa ganham como recompensa um maior entendimento sobre a história. Essas estratégias podem ser semelhantes aos recursos formais do cinema de arte, mas se manifestam em contextos expressamente populares para audiências de massa - podemos estar temporariamente confusos com momentos de Lost ou Alias, mas esses programas nos pedem para confiar na recompensa que eventualmente chega a um momento de compreensão complexa, mas coerente (MITTEL, 2015, p.50).

Figura 20.

Fonte: revista “The Walking Dead” edição número 42, Kirkman, 2007.

Figura 21.

Fonte: “The Walking Dead”, temporada 5, episódio 10, Kirkman e Darabont, 2014.

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A Carol dos quadrinhos cuida das crianças do grupo e mantém um relacionamento com . Quando é traída por seu companheiro, tenta o suicídio, porém não consegue. Também tenta um relacionamento com Rick Grimes, o que faz com que sua melhor amiga, , desfaça a amizade. Sentindo-se sozinha, Carol se atira nos braços de um zumbi para morrer com uma mordida na jugular.

Já quando assistimos à Carol na série televisiva, numa situação semelhante aos volumes 3 e 4 dos quadrinhos, em lugar de procurar o suicídio, a personagem mata a namorada de Tyreese, esconde o corpo de Rick e dos outros integrantes do grupo. Ou seja, a Carol da televisão carrega ambivalências, é boa e má ao mesmo tempo, mas carrega também semelhanças em relação ao personagem dos quadrinhos, só que possui uma personalidade mais complexa.

Para que os episódios televisivos não se tornem previsíveis, variações da trama são construídas, e as mesmas situações têm desfechos diferentes da história em quadrinho. Isso contribui para uma ligação mais complexa entre a imagem da narrativa escrita e a imagem da série televisiva. Essa ligação não se dá apenas por raccord e continuidade, mas também por descontinuidade, desorientação e ambiguidade. O choque entre as duas variações da trama produz novos nexos, o que torna a percepção da obra muito mais sofisticada do que uma série que é transmitida apenas por um canal.

Figura 22. Figura 23 e 24.

Fonte: revista “The Walking Dead”, edição número 12, Kirkman, 2003.

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Figura 25. Figura 26.

Fonte: série “The Walking Dead” temporada 2, episódio 1, Kirkman e Darabont, 2011.

Na história em quadrinhos, quando Rick, Shane e Carl vão para a floresta, Carl mata Shane para proteger o pai. Na televisão, quando há a mesma situação, no primeiro episódio da segunda temporada, espera-se que Carl vá matar Shane, mas é Carl quem recebe uma bala perdida e quase morre. A montagem da série televisiva leva o espectador a pensar que o mesmo desfecho da história em quadrinhos irá acontecer. Porém, o que se vê na imagem é o garoto baleado, e não o personagem Shane. No universo de TWD, a imagem de Carl baleado justaposta à imagem de Shane morto cria um novo sentido, como Kulechov aponta. Porém, a incoerência narrativa aproxima a montagem transmídia de TWD à estrutura da Versão de Oposição defendida por Noel Burch.

Não podemos, certamente, afirmar se quem viu a série também leu a versão em quadrinhos. Porém, quando acompanhamos a história em quadrinhos e a série televisiva, percebemos que há muitas tramas desenvolvidas na HQ que inspiram as tramas da série televisiva. Robert Kirkman, criador da história em quadrinhos e da série, tem a preocupação de surpreender os leitores da HQ que assistem à série:

Eu odeio saber o que está por vir. Como um fã, odeio quando percebo que estou no terceiro do ato de um filme e a história está terminando. Odeio poder contar os comerciais e saber quando estou perto do fim de um programa de TV. Odeio que você pode sentir quando está no fim de um livro ou de uma HQ. Alguns dos melhores episódios de Game of Thrones são estruturados e ajustados de uma forma perfeita que faz com que o seu cérebro não consiga perceber se você está assistindo por 15 ou 50 minutos (...) e quando o final chega (...) você está atordoado. The Walking Dead sempre foi construído em torno da surpresa. Não saber o que vai acontecer quando você virar a página, quem vai morrer, como eles vão morrer (...). Isso foi essencial para o sucesso da série. Foi o sangue que circulou por todos esses anos, e manteve as pessoas engajadas. Uma das formas mais interessantes pelas quais os criadores de conteúdo responderam a essas mudanças

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é criar um modo de narração de histórias mais autoconsciente do que o tipicamente encontrado na narração convencional da televisão (THE walking dead: sem aviso, quadrinhos que inspiram série chegam ao fim. O Globo, 2019. Disponível em: . Acesso em: 25 de abril de 2020).

A história em quadrinhos vendeu 50 milhões de cópias em mais de 60 países. TWD na televisão é um fenômeno de audiência nos Estados Unidos e no mundo, atingindo milhões de pessoas. Pela popularidade das duas manifestações, Robert Kirkman se precaveu para que a série televisiva sempre pudesse surpreender o espectador.

Retoma-se aqui o exemplo de The Walking Dead e The Fear The Walking Dead. Na série principal, em TWD, há vários momentos em que um personagem do grupo protagonista se torna zumbi. A decupagem e a montagem das cenas geralmente seguem um padrão, a partir do qual se observa o novo zumbi de costas, em um plano médio, e no contraplano um segundo personagem se aproximando em uma câmera baixa e chamando o nome do novo zumbi. Esse não responde, e, no ponto alto da trilha sonora, ele se vira para a câmera com um pedaço de carne humana na boca.

No episódio piloto de Fear The Walking Dead, antes de o vírus se espalhar por Los Angeles, há a mesma situação: um personagem está de costas, em um plano médio, e o outro se aproxima do mesmo, em uma câmera baixa chamando o nome do próximo zumbi. Como o espectador de TWD já conhece o código, o que ele espera é que o personagem que vai se virar é um zumbi e que uma perseguição será iniciada. No fim da cena, no ponto alto da música, o personagem vira para câmera e o que se vê não é um zumbi. Porém, toda a tensão construída só funciona pois comparamos os dois produtos do mesmo universo, criando uma montagem virtual entre The Walking Dead e Fear The Walking Dead.

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Quando Madison vê o diretor da escola de costas. Para quem assistiu a série ou leu os quadrinhos, espera que o diretor tenha se tornado um zumbi.

Figura 27. Figura 28.

Figura 29.

Fonte: série “Fear The Walking Dead”, temporada 1, episódio 1, Erickson, Kirkman, 2015.

Todd Desrosier, montador de The Walking Dead e do piloto do spin-off Fear The Walking Dead, foi entrevistado para a realização da pesquisa. Sobre a relação entre as duas séries, ele recebeu a seguinte pergunta:

“A segunda hipótese principal do meu trabalho é que, embora existam elementos de conexão entre as duas séries, também existem elementos de desorientação para que o espectador não sinta que os episódios sejam previsíveis. Se a série de TV copiar o enredo da história em quadrinhos, não trará nada de novo ao espectador. No primeiro episódio de Fear The Walking Dead, há um bom exemplo desse tipo de desorientação. O personagem Madison se aproxima do diretor da escola e, pelo movimento da câmera e pela música, os espectadores pensam que o diretor da escola se tornou um andarilho. No entanto, quando se vira para Madison, ele ainda não se tornou. Você também tem a preocupação de criar elementos de desorientação para criar surpresas na história?”.

E Desrosier respondeu da seguinte maneira:

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“Sim! Tudo isso foi feito intencionalmente. Usando os elementos do gênero de uma maneira em que esperávamos que não fosse previsível. Além disso, mostrando a desintegração de uma família em dificuldades quando o público já sabe o que vai acontecer com elas. A narrativa do Fear The Walking Dead (FTWD) estava centrada mais em ver como a família reage à medida que as coisas desmoronam ao seu redor. Em TWD, tudo isso aconteceu fora das câmeras quando Rick Grimes estava em coma. Ele acorda para ver que tudo mudou, mas o que eles queriam mostrar é o que aconteceu com as pessoas no momento em que tudo começou a mudar e como elas sobreviveram ao processo.”

O montador reforça a tese de que o piloto de FWTD foi editado de maneira a criar desorientação para manter a imprevisibilidade e as surpresas. A montagem transmídia deve se valer desses recursos, pois cada um dos episódios construídos a partir do universo narrativo contém forte conexão com uma rede de episódios que, de alguma forma, já contou muito ao espectador. Se o montador simplesmente repetir os recursos e os procedimentos de montagem, o resultado será presumível e monótono. Uma montagem com ambiguidades e ambivalências – portanto, complexa – é necessária para manter a atenção dos espectadores em todas as unidades da série transmídia.

Em outro momento da resposta, Desrosier nos fala que construía os episódios pensando que o espectador “já sabe o que vai acontecer com as famílias”, logo, já sabe que os zumbis irão destruir a civilização, enquanto os personagens principais de FWTD ainda não sabem. Ele reforça o que Mittel nos diz sobre os espectadores da narrativa complexa: “essas séries (...) pedem aos espectadores que se envolvam mais ativamente para compreender a história. Os espectadores regulares que dominam as convenções internas de narrativa complexa de cada programa ganham como recompensa um maior entendimento sobre a história” (MITTEL, 2015, p.50). A montagem dos episódios, para esse espectador mais atento e mais ativo, exige estruturas complexas e com maior consciência da representação.

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Mittel aponta que as séries do novo modelo possuem um modo de narração mais autoconsciente do que o tipicamente encontrado na narração convencional da televisão. A autoconsciência seria marca da complexidade:

Esses momentos de espetáculo levam a estética operacional ao primeiro plano, chamando a atenção para a construção da narração e nos pedindo para nos maravilharmos com o modo como os escritores a realizaram (MITTEL, 2015, p.43 e 44).

Ao utilizar a mesma decupagem, as mesmas trilhas, o mesmo ritmo, Todd Desrosier cria uma marca na montagem e sinaliza ao espectador a autoconsciência da narração, a presença do montador no episódio.

A necessidade de produzir em escala industrial acaba colocando um limite para as experimentações na montagem transmídia. As duas séries de televisão estão há muitos anos no ar e já não conseguem criar as surpresas e as desorientações que havia nas primeiras temporadas. A criação de uma nova série e de uma trilogia de filmes pode ser a chance para a construção de novas descobertas para a montagem transmídia.

Mesmo com os objetivos da Versão-Padrão, de criar continuidade, unidade e coerência entre as imagens e sons das diversas manifestações do universo, ou com objetivos da Versão de Oposição, de criar descontinuidade, desorientação e ambiguidade na combinação entre as imagens e sons do universo de TWD, os princípios da montagem criam esses sentidos, esses nexos. Logo, assim como a montagem foi princípio criador de Da Vinci, Dickens, Griffith e Eisenstein, a montagem também é criadora nas narrativas transmídia – os conceitos de montagem complexa podem e devem ser aplicados em outras narrativas transmídia.

O próximo capítulo dessa dissertação tem como objetivo investigar como a construção do sistema transmídia de The Walking Dead (FREDERICO, 2018, p.19) irá contribuir para a elaboração dos novos procedimentos de montagem que o presente capítulo procurou demonstrar.

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2. A narrativa transmídia de The Walking Dead

Após examinar a série TWD sob um viés analítico pautado nas teorias de montagem, o capítulo dois investiga as manifestações transmídia do universo narrativo da série. TWD surge em um momento em que experimentações com narrativas multitelas inspiravam diversos autores da televisão norte-americana. Os autores do filme Matrix (1999) e da série Lost (2006) arriscaram expandir o universo narrativo e propuseram outras formas para os espectadores se relacionarem com os respectivos enredos. TWD também expandiu sua narrativa, porém se beneficiou das experiências anteriores para construir o seu próprio modelo. Este capítulo tem como objetivo mostrar como TWD se conectou a outros modelos de narrativas transmídia mantendo, ao mesmo tempo, suas especificidades, que contribuíram para os novos procedimentos de montagem defendidos no primeiro capítulo.

2.1. Os conceitos de Henry Jenkins sobre transmedia storytelling

O que é uma narrativa transmídia? Henry Jenkins, pesquisador do MIT (Massachusetts Institute of Technology), popularizou o termo durante os anos 2000, porém as narrativas transmídia já foram contadas bem antes das transformações tecnológicas que as produções audiovisuais sofreram nas duas primeiras décadas do milênio. Segundo Carlos Scolari (2014), pesquisador argentino, o romance Don Quixote de La Mancha foi apropriado por diversas culturas e ressignificado em diferentes mídias, como histórias ilustradas, pinturas, cerâmicas, entre outros, e por isso é possível atestar a expansão do universo narrativo de Don Quixote desde que o romance foi pela primeira vez publicado, em 1614. Jenkins cita também “As aventuras de Indiana Jones”, de 1992, que conta a história do arqueólogo nos anos de sua formação, amplificando o enredo da trilogia cinematográfica dos anos 80. Ambos são exemplos de narrativas transmídia. Jason Mittel também observa que essa forma de contar história não é inédita: “Qualquer estudo cuidadoso da transmídia contemporânea deve reconhecer que a transmídia não é um fenômeno novo, mas é anterior à era digital” (MITTEL, 2015, p.292).

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Jenkins aponta que a narrativa transmídia, que ressurge nos anos 2000, é uma “resposta à convergência das mídias - uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento” (JENKINS, 2008, p.47). O pesquisador do MIT escreve sobre narrativa transmídia no livro “Cultura da Convergência”, cujo foco é a convergência dos meios de comunicação. A possibilidade de se comunicar por diferentes meios foi explorada não só pela ficção, mas por outros gêneros televisivos, como realitys shows e jornalismo, e pela publicidade. Não só Jenkins, mas teóricos diversos estudam outros campos da comunicação e objetos, como os realitys American Idol e Survivor, e demonstram como a convergência das mídias criou um relacionamento diferente entre receptor e emissor.

A ficção televisiva também se transformou na era da convergência das mídias. O fato de o espectador ter acesso a múltiplos e diferentes suportes midiáticos, torna possível a expansão de uma narrativa para esses diversos pontos de acesso. Outra característica importante desse ressurgimento da narrativa transmídia é o papel do espectador. Ao invés de um espectador passivo, que recebe as informações da narração (BORDWELL), essa nova narrativa transmídia convida a audiência a sair do sofá e participar do processamento da informação (JENKINS, 2008, p.47). Os espectadores simulam o papel do arqueólogo Indiana Jones e caçam vestígios e pistas da história em diferentes canais, compartilhando suas observações com outros fãs em fóruns de discussões online ou em redes sociais. Jenkins indica que, além da convergência das mídias, outro fenômeno importante que surge no começo dos anos 2000 é a cultura participativa: o espectador, além de consumir a informação em grupo, de forma coletiva, tem um papel ativo e pode reconstruir a história, ressignificar os conteúdos.

Um exemplo que ilustra esse novo papel do espectador está na série Black Mirror (Brooker, 2011), produzida pelo serviço de streaming Netflix. No episódio Bandsnatcher (2018), o espectador participa de uma ficção interativa em que com o controle remoto pode escolher o que o protagonista da história deve fazer em cada momento de decisão. Após um pequeno tutorial apresentado no começo do episódio, o espectador literalmente comanda as ações do

54 programador Fionn Whitehead, e todas as decisões têm consequências narrativas, levando o programador à morte, à prisão ou ao sucesso de seu jogo de vídeogame. Com a convergência das mídias, destacada por Jenkins, o espectador participa da construção da narrativa, seja na televisão, no computador ou no celular, suportes pelos quais é possível acessar o serviço de streaming Netflix.

É importante destacar que Jenkins, ao falar das narrativas transmídia, não deixa de inseri-las em um contexto mercadológico: “Então sejamos claros: há fortes motivações econômicas por trás da narrativa transmidiática” (JENKINS, 2008, p.145). A Netflix, hoje, é um dos mais poderosos produtores de conteúdo audiovisual do mundo, por isso, os textos de Jenkins também tratam os espectadores como consumidores. Sua obra é referência não apenas para os estudos de cinema e televisão, mas também para estudos de comunicação, em geral, publicidade e propaganda inclusas:

A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento (JENKINS, 2009, p.41). A relação com as mídias é outra e, portanto, a relação entre o espectador e a ficção torna-se diferente. Com mais pontos de acesso, a narrativa está dispersa e necessita de uma participação ativa do espectador para compreender o universo da narrativa, pois não basta que ele permaneça frente à televisão e à tela de cinema, é necessário que articule as informações contidas nas diferentes plataformas para que seja possível compreender aquele universo de representação por completo.

Assim, Jenkins chega a uma idealização da narrativa transmídia, combinando o espalhamento da ficção em diferentes mídias de maneira sistêmica e o novo comportamento do espectador, que busca informações do universo ficcional em diferentes pontos.

Transmedia storytelling representa um processo em que elementos de uma ficção são dispersos sistematicamente através de múltiplos canais com o objetivo de criar uma experiência de entretenimento

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coordenada. Idealmente, cada mídia daria sua própria contribuição para revelar a história (JENKINS, 2013, tradução nossa).7 Para Jenkins, o fenômeno que melhor exemplifica seu modelo de narrativa transmídia é o universo do filme Matrix (1999), das irmãs Wachowski. A construção do universo ficcional desse filme aconteceu em três longas metragens, uma série de curtas metragens em animação, duas coleções de história em quadrinhos e outra série de jogos de videogame. Vistos independentemente, cada parte da série se sustenta em si, mas ao mesmo tempo contribui para a confecção do universo de Matrix (1999):

Uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor - a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em game sou experimentado como atração de um parque de diversão (JENKINS, 2009, p.135). Tal estética traz uma relação atualizada da montagem e do montador com o espectador. Se antes o espectador recebia as informações sobre um universo narrativo apenas de uma tela por vez, agora são passadas por diversas telas e tudo ao mesmo tempo. Se antes o espectador só receberia as informações do universo do filme Matrix quando fosse ao cinema, agora ele pode assistir aos curtas-metragens de Animatrix (2003) na tela do celular e ao mesmo tempo jogar Enter The Matrix (2003) no videogame. Antes, o montador se empenhava em transmitir a informação por imagens e sons para apenas um local, a tela de cinema, e somente por um intervalo fechado de tempo – as duas horas em que o espectador ficava sentado na frente da tela. O universo narrativo se restringia a apenas uma tela. Com a nova relação entre a ficção e o espectador, a narrativa rompe esses limites e se espalha no tempo e no espaço, atingindo o espectador por vários pontos de contato. Matt Hanson (2004) refere-se a esse apagamento com o termo screen bleed (sangramento da tela). A montagem, portanto, combina imagens de diferentes telas para narrar as histórias, e essa combinação

7 JENKINS, Henry. Confessions of na acan-fan. Henry Jenkins, 2013. Disponível em: . Acesso em 15 de abril de 2020.

56 se dá ao longo do tempo e do espaço, não apenas na sessão de uma hora e meia do cinema.

Os cineastas (de Matrix) plantam pistas que só farão sentidos quando jogamos o game. Abordam uma história paralela, revelada por uma série de curtas de animação que precisam ser baixadas da web e vistas num DVD separado (JENKINS, 2009, p.134). Matrix e Bandsnatcher são exemplos de como os princípios de montagem se modificam e ganham complexidade, e assim como Eisenstein propõe, “ultrapassam em muito os limites da colagem de fragmentos de filme” (EISENSTEIN, 2002, p.31). Almir Almas, pesquisador da Universidade de São Paulo e especialista em televisão digital, discute, em seu artigo “TV e cinema expandidos. Dispositivos e Enunciação” (2016), como algumas obras fora da televisão e dentro do campo do cinema expandido e da televisão expandida também propõem essa nova relação da montagem com espectador:

Verifica-se, nesses trabalhos, um tour de force na transposição entre signos e hibridização artística de linguagem e gêneros; na expansão de gêneros e formatos de cinema, televisão, vídeo, videoarte e videopoema; no uso de interfaces computacionais e sistemas cibernéticos; na expansão de dispositivos técnicos referencias de cinema e televisão; nas rupturas e hibridação entre artes e linguagens; no rompimento em seus limites dos códigos existentes; na expressão da arte e da percepção de tempos e espaços e de visão do mundo (ALMAS, BARAÚNA, 2016, p.109).

Almas demonstra que a convergência de mídias não muda a relação da montagem apenas na televisão comercial. Nos trabalhos que ele realiza com videoarte, videopoemas, VJing e cinema ao vivo, existe uma montagem de diferentes linguagens proporcionada por mídias diversas e, assim, criam-se novos sentidos. Na instalação “Cubo” (2005 a 2010), ou na performance audiovisual “Corpo 4k” (2014), a montagem ao vivo realizada por VJs combina diferentes suportes, e como não há uma plateia fixa, os sentidos produzidos são variáveis e a percepção do tempo e do espaço varia de espectador para espectador. Já no filme interativo para televisão “Trapézio” (2011), de Marília Fredini, trabalho acadêmico orientado por Almir Almas, o espectador pode, como em Bandsnatcher, ter o controle do destino dos personagens utilizando um software desenvolvido por Fredini e Thiago de André. Nesses trabalhos apresentados por Almas, “o que se busca é a construção de processos de

57 espacialização, que, por sua vez, mexem com os paradigmas de montagem e da relação do espectador com a obra” (ALMAS, BARAÚNA, 2016, p.128).

O sistema transmídia de The Walking Dead, entretanto, está inserido na televisão comercial norte-americana, e isso traz potências na medida em que cria limitações. Segundo o artigo “Storytelling Transmídia: Narrativa para multiplataformas”, de João Carlos Massarolo, a televisão contemporânea é quem melhor se apropriou do conceito de transmídia storytelling:

(...) foi no âmbito da produção seriada televisiva norte-americana que se desenvolveu a chamada “complexidade narrativa”. Esse processo de reconfiguração da narrativa se deu de forma simultânea ao desenvolvimento das tecnologias de reprodução e armazenamento de dados, notadamente as plataformas de reassistência (aplicativos para “segunda tela” – Smart TV, smartphones e tablets, entre outros dispositivos). Esses canais oferecem ao telespectador a possibilidade de reassistir a episódios ou trechos do seriado de TV da sua preferência, inúmeras vezes, por diferentes ângulos e diferentes suportes. Deste modo, o telespectador realiza análises mais aprofundadas das estratégias do storytelling televisivo que serviram para formatar o termo “complexidade narrativa”, no contexto cultural da convergência (MASSAROLO, 2013, p.338). O espectador de The Walking Dead não olha apenas para uma tela, ele pode absorver a trama da luta entre humanos e zumbis por meio de múltiplas telas, as plataformas de reassistência, como aponta Massarolo. Porém, para ligar o conteúdo das diferentes telas e ajudar a entender que o que se passa no celular faz parte do mesmo universo transmitido na televisão, o espectador precisa de sinais dados pelos autores para que ele identifique o universo de TWD. No artigo “Narrativa transmídia e Educação: panorama e perspectivas” (2013), o professor João Carlos Massarolo e o pesquisador Dario Mesquita afirmam a necessidade de emitir sinais que tentem, de alguma forma, unificar o que se passa nas diversas mídias:

Ao estimular movimentos migratórios das audiências entre diversas plataformas, a narrativa transmídia oferece em cada mídia experiências de mundo que sejam únicas e exclusivas, desde que esse mundo seja estruturado de forma coesa e coerente. As jovens audiências já estão acostumadas a participar do processo criativo de construção dos personagens e de suas histórias, se constituindo no principal motivo da sua migração de uma plataforma para outra (MASSAROLO, MESQUITA, 2013, p.36). Os sinais podem ser emitidos por diferentes criadores da produção audiovisual, como dramaturgia, roteiro, direção, direção de arte, fotografia. Porém, a montagem, ao lidar com a finalização do processo de construção de

58 sentido da obra, é fundamental na construção desses sinais para que o espectador entenda todas as narrativas vindas das diferentes telas como parte da mesma trama.

O modelo transmídia de TWD não aconteceu da maneira idealizada por Jenkins. O sucesso da história em quadrinhos, em 2003, foi o motivo de o universo ter sido transportado para as outras mídias. Não houve, em um primeiro momento, uma coordenação de ações para que TWD fosse disperso sistematicamente em diferentes mídias.

Marie-Laure Ryan, pesquisadora de narrativas audiovisuais da universidade de Utah (2013), afirma que um universo transmídia pode ser formado de duas maneiras: quando a história é concebida desde o início para ser vivida de forma transmídia pelo público – seguindo o modelo de Jenkins – ou quando é fruto do efeito ‘bola de neve’”, isto é, quando a “narrativa goza de tanta popularidade, ou torna-se tão eminente na cultura, como o sucesso da história em quadrinhos, que espontaneamente ela gera uma variedade de sequências, ficção de fãs e adaptações, seja na própria mídia ou entre mídias” (RYAN, apud FREDERICO, 2018).

Os quadrinhos de X-Men, por exemplo, tiveram um caminho semelhante ao de TWD como fruto do “efeito bola de neve”. As HQs de Stan Lee tiveram grande sucesso nos anos 60, 70 e 80, e foram adaptadas para o cinema, a televisão e o videogame entre os anos 90 e 2000.

Como não segue a idealização de Jenkins, o sistema transmídia de TWD acaba colocando ainda mais questões para a montagem, como o capítulo um aponta. A trama da história em quadrinhos está correndo adiantada em relação à trama da televisão e do videogame, e quando se comparam as imagens dos quadrinhos com as manifestações audiovisuais, novos sentidos são criados, tendo em vista que no modelo idealizado isso talvez não acontecesse. A montagem tem menor controle sobre a compreensão da narrativa, pois não há como regular a experiência de cada espectador, não há como garantir que quem assistiu à série de televisão também viu a história em quadrinhos. Para o criador Robert Kirkman, essa sensação de surpresa é importantíssima para que o universo zumbi permaneça vivo.

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O personagem , por exemplo, não aparece na história em quadrinhos. Ele surge primeiro na televisão, na série de 2010 de Robert Kirkman e Frank Darabont. O personagem tem um papel fundamental para o universo transmídia de TWD enquanto protagonista de dois jogos de videogame: The Walking Dead: Survival Instinct (2013) e The Walking Dead: No Man's Land (2015). No primeiro volume da história em quadrinhos, quando Rick passa a noite no acampamento dos sobreviventes junto de sua família após despertar do coma, um bando de zumbis ataca o acampamento e consegue morder , irmã de Andrea. Quando ocorre a mesma situação na série de televisão, Rick não está no acampamento durante a chegada dos zumbis. Apesar de o desfecho ser muito parecido, a irmã de Andrea é mordida por um dos zumbis, e quem acaba sendo responsável por afastar os walkers é Daryl. Se o leitor da história em quadrinhos vê o episódio, ele fica surpreso, pois a situação é parecida, mas não é a mesma.

Na revista em quadrinhos, Rick está no acampamento antes da chegada dos zumbis. Na mesma situação na série da televisão, Rick havia saído do acampamento para buscar armas para o grupo. Shane e Dale estão ao redor do fogo, na mesma situação vivida na história em quadrinhos.

Figura 30. Figura 31.

Fonte: série “The Walking Dead”, Fonte: revista “The Walking Dead”, edição temporada 1, episódio 5, Kirkman e número 12, Kirkman, 2003. Darabont, 2010.

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Amy, a irmã de Andrea, é atacada por zumbis tanto na história em quadrinhos quanto na série de televisão. Para criar uma continuidade entre a história em quadrinhos e a série de tv, o diretor utilizou o mesmo enquadramento da HQ na televisão, e quando o espectador junta a imagem dos quadrinhos com a imagem da televisão, tem a impressão de que a trama da HQ é a mesma da versão audivisual. O desfecho do personagem é o mesmo.

Figura 32. Figura 33.

Fonte: revista “The Walking Dead” edição Fonte: série “The Walking Dead” temporada número 12, Kirkman, 2003. 1, episódio 5, Kirkman e Darabont, 2010.

Figura 34 - Na história em quadrinhos, Rick e Shane matam os zumbis e afastam o perigo do acampamento.

Fonte: revista “The Walking Dead”, edição número 12, Kirkman, 2003.

Na série de televisão, Daryl, Shane e Dale são os responsáveis por resolver o conflito, até a chegada de Rick. Como Daryl não está na história em quadrinhos e é um personagem importante para o desenvolvimento da série de TV, bem como do sistema transmídia, ele acaba tendo protagonismo no desenlace da trama.

Figura 35. Figura 36.

Fonte: série “The Walking Dead”, Fonte: série “The Walking Dead”, temporada 1, episódio 5, Kirkman e temporada 1, episódio 5, Kirkman e Darabont, 2010. Darabont, 2010.

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Robert Kirkman, criador e roteirista do episódio descrito, e Frank Darabont, escritor e showrunner da primeira temporada, criaram uma situação na qual eles propuseram para o espectador uma variação da situação da história em quadrinhos. Colocam para quem assiste, um questionamento: e se Rick não estivesse no acampamento quando a hora chegasse? Será que Daryl iria conseguir salvar a família de Rick?

Gisele Frederico, em sua dissertação de mestrado sobre o sistema transmídia de TWD, também observa como a trajetória de criação do universo zumbi proporcionou pontos de tangência entre as diferentes manifestações, e como esses contatos geraram novos sentidos, bem como o primeiro capítulo dessa dissertação.

Quando a obra transmídia se constitui pelo "efeito bola de neve", os meios são agregados lentamente e os resultados do diálogo entre eles pode ser facilmente identificado. Nossa hipótese é que sistemas transmídia funcionam como um conjunto de linguagens que se tocam e geram novos conteúdos (FREDERICO, 2018, p. 37). Ao aproximar a linguagem dos quadrinhos com a linguagem televisiva, novos conteúdos são gerados, e isso faz com que esse conceito se aproxime também da lógica de montagem, especialmente do efeito Kulechov, em que diferentes fragmentos se chocam para formar um novo sentido, que não se vê isoladamente em cada fragmento.

2.2. Transmedia storytelling e o modelo de narrativa complexa

Jason Mittel também escreve sobre transmídia em sua pesquisa sobre a televisão da década de 2000. Para o autor, a expansão do universo ficcional para diferentes telas é uma característica do novo modelo narrativo visto no capítulo um:

O século XXI viu o surgimento de extensões narrativas inovadoras agrupadas sob o termo narrativa transmídia, expandindo significativamente o escopo de uma série de televisão em uma variedade de outras mídias, de livros a blogs, videogames e quebra- cabeças (MITTEL, 2015, p.292). Mittel reconhece o modelo de Jenkins, porém escreve sua pesquisa após mais experiências transmídia, como as séries Breaking Bad e Lost. Mittel aponta que Lost segue o modelo de Mittel, ou seja, a expansão do universo em

62 diferentes mídias da série de Vince Gilligan é coordenada, e cada mídia serve para contar algo que se conecta à “nave-mãe”. Mittel chama esse modelo de Jenkins de What Is.

O modelo de Jenkins de transmídia equilibrada vamos chamar de "O que é", no qual a coerência da trama é distribuída pelas mídias. É uma possibilidade interessante para os contadores de histórias e merece a atenção que recebeu (MITTEL, 2015, p.314). Porém, mesmo em Lost, os autores fazem algo semelhante à TWD. Como a trama sobre os sobreviventes do desastre de avião possui saltos temporais, tanto para o passado como para o futuro, os jogos de videogame de Lost propunham realidades alternativas, situações com os mesmos personagens que se diferenciavam da “nave-mãe”, a série de televisão. Mittel chama esse modelo de What If.

Essa abordagem à transmídia apresenta possibilidades hipotéticas em vez de certezas canônicas, convidando os espectadores a imaginar histórias alternativas e abordagens para contar histórias que claramente não devem ser tratadas como possíveis cânones (MITTEL, 2015, p.315). Quando Kirkman e Darabont reproduzem a mesma situação da história em quadrinhos, o ataque zumbi ao acampamento, porém mudam os elementos da narrativa, trocando personagens que participam da situação, os escritores criam novas possibilidades, novas hipóteses narrativas. Para o montador e a montagem, é a possibilidade de, mesmo com a história em quadrinhos já contando o desfecho da situação, criar expectativas e surpresas para o espectador.

Mittel, ao observar o modelo de Jenkins na televisão norte-americana, percebe que “a maioria dos projetos transmídia que surge da televisão protege a ‘nave-mãe’” (MITTEL, 2015, p.295). Mesmo com as possibilidades da narrativa multitela, o modelo de negócio da televisão norte-americana ainda se baseia na atração de espectadores para um programa de televisão e na venda dessa audiência a anunciantes, por isso, a proteção da “nave-mãe”, para que seja possível a venda dos anúncios durante a exibição do objeto principal. Entretanto, na entrevista para essa pesquisa, o montador Todd Desrosier fala sobre a proposta do spin-off Fear The Walking Dead de criar uma experiência distinta da série original, a “nave-mãe” The Walking Dead:

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“Fear The Walking Dead foi um processo de moldagem de uma nova experiência separada da “nave-mãe” e de descobrir os melhores ritmos e maneiras de contar a história junto com o showrunner e o diretor”.

Mesmo dentro do modelo de negócios tradicional da televisão norte- americana, Fear The Walking Dead propõe uma série de variações da linguagem audiovisual em relação à “nave-mãe”, como o uso de outra fotografia (a série é gravada em HD ao invés do 16mm da série original), outros personagens (nenhum personagem do spin-off vem dos quadrinhos) e como o próprio montador da série afirma, com outros ritmos e outras maneiras de contar a história sobre o mesmo universo. A série derivada claramente expande a narrativa de Robert Kirkman, porém cria uma variação dentro do próprio universo, seguindo o modelo What If citado por Mittel. Segundo o pesquisador, o modelo ideal de Jenkins nem sempre foi seguido literalmente, o que proporcionou novas experiências narrativas:

É útil distinguir entre o ideal proposto de transmídia equilibrada de Jenkins, com nenhum meio ou texto desempenhando um papel primário sobre os outros, com o modelo mais comum de transmídia desequilibrada (MITTEL, 2015, p.294).

O sistema transmídia de TWD se conecta com as outras experiências transmídia que foram propostas ao longo da primeira década de 2000, as que seguiram o modelo de Jenkins e as mais arrojadas e desequilibradas, que intencionalmente criaram variações e contradições da trama nas diferentes telas. Também por aparecer mais tarde, TWD se aproveita das tentativas e erros de outros autores para consolidar sua experiência transmídia. Mittel destaca o sucesso da proposta da série zumbi:

Na melhor das hipóteses, em jogos como The Walking Dead, os programas de televisão oferecem novas histórias de um mundo estabelecido que permitem aos jogadores navegar no mundo das histórias e interagir com personagens estabelecidos, mas esses sucessos são comparativamente raros (MITTEL, 2015, p.302).

Jenkins já havia apontado que havia uma dificuldade dos primeiros jogos de videogame para obter uma relevância narrativa em relação à “nave-mãe”, seja por uma questão de recursos tecnológicos ou por dificuldade de adaptar o

64 enredo para a linguagem dos jogos eletrônicos. Ele aponta como alguns espectadores das continuações de Matrix ficaram frustrados com o fato de que informações que apareciam em Matrix Reloaded ou Matrix Revolutions só eram esclarecidas no jogo Enter the Matrix. Aquele que não teve acesso a certos ocorridos no jogo, não entendeu o que se passou nesses filmes e, por isso, os dois longas-metragens finais da trilogia não obtiveram o mesmo sucesso do primeiro. Mittel analisa os jogos de videogame de TWD, e destaca que as novas narrativas dos jogos se diferem da série principal, porém ainda permitem que o jogador mantenha a relação com os personagens vistos na televisão

Uma estratégia comum para superar essa lacuna entre as caracterizações da televisão e dos jogos é focar um jogo de ligação em um novo protagonista colocado dentro de um mundo de história já estabelecido (MITTEL, 2015, p.301).

Daryl, que não está na história em quadrinhos, porém é protagonista de dois jogos de videogame, e está na série de televisão, é um exemplo desse tipo de protagonista. O personagem acaba ajudando a criar uma superação da lacuna entre a HQ, os jogos e a TV. Além disso, ajuda a criar continuidade entre as diferentes telas, expandindo o universo da narrativa. Frederico acrescenta que é importante manter as características de cada meio em que se passa a história: “O universo narrativo é uma potencialidade à espera da linguagem adequada que irá explorar determinado fragmento de uma história mais complexa. Portanto, o meio define o que será contado, não o contrário” (FREDERICO, 2018, p.38). Os autores de TWD sempre tiveram o cuidado de não repetir completamente as tramas em cada um dos meios para os quais se expandiu, sempre houve um respeito às suas características, adaptando a trama à linguagem de cada mídia.

Em outro exemplo de expansão do universo, é perceptível a personagem fazendo essa ligação. No capítulo 13 da décima temporada da série “nave-mãe”, Michonne tem uma alucinação e passa a imaginar como seria o seu passado se não tivesse se juntado ao grupo de Rick. Em seu delírio, ela vira “braço direito” de Negan – inimigo de Rick durante algumas temporadas –, persegue Rick e é responsável pela morte de alguns de seus aliados. Após a

65 alucinação, Michonne retorna ao seu estado normal e volta a defender os filhos de Rick e os personagens com os quais tem afinidade.

No jogo The Walking Dead, No Man´s Land (2015), tem-se uma nova fase incluída a cada episódio da série de televisão, e cada um deles sempre se refere ao que acontece no capítulo da semana. Quando o capítulo 13 foi veiculado, o game propôs ao jogador uma fase com uma extensão da alucinação de Michonne. Em vez de seguir a linha narrativa da série, quem jogou pôde fazer a personagem Michonne continuar como uma aliada de Negan.

No episódio 13, assim como no capítulo 13 da televisão, Michonne tem uma variação de sua trajetória na televisão e passa a acompanhar Negan contra o grupo de Rick.

Figura 37. Figura 38.

. Figura 39.

Fonte: jogo “The Walking Dead”, No Man´s Land, 2015.

Em lugar de copiar a trama da série televisiva ou fazer complementos de informação da série, o jogo propõe uma variação do universo, expandindo a alucinação de Michonne para uma linha alternativa do enredo original. A

66 personagem torna-se, no game, algoz de Glenn, um dos maiores aliados de Rick. Na figura abaixo, Michonne se aproxima de Glenn, e na figura seguinte, ela mata o personagem.

Michonne, agora aliada de Negan, mata Glenn, um dos parceiros de Rick. Na história em quadrinhos e na televisão, quem mata Glenn é o próprio Negan. Aqui, nessa variação da trama, Michonne, controlada pelo jogador, é quem golpeia o aliado de Rick. Figura 40 Figura 41

Fonte: jogo “The Walking Dead, No Man´s Land”, 2015.

O jogo simula, portanto, uma linha narrativa alternativa a partir do episódio da série de televisão. Com a narrativa transmídia, é possível criar para a mesma obra variações, outros caminhos para a história. No capítulo três, veremos como esse conceito se conecta com o que Cecilia Salles fala sobre o inacabamento da obra de arte. Salles afirma que o processo de criação se dá ao longo do tempo, e as possibilidades do projeto artístico são testadas nas diferentes obras do autor. Com a narrativa transmídia, as diferentes possibilidades do projeto artístico podem ser aferidas simultaneamente, sendo assim, as pesquisas sobre processos de criação ganham novos objetos de investigação, a exemplo do sistema de TWD.

O jogo também tem uma outra relação com o espectador, pois convida-o a participar da construção da narrativa e, como um jogador ativo, a assumir o controle da personagem Michonne nessa variação da trama. Como Jenkins aponta, a participação do espectador é fundamental para a expansão do universo da narrativa. Pela relação afetiva que o espectador tem com Michonne na “nave-mãe”, o espectador-jogador assume o papel ativo defendido por

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Jenkins e articula as novas informações passadas pelo jogo para ajudar a construir uma nova alternativa na trama.

Mittel não chega a defender o modelo What If em relação ao modelo What Is. “Os dois modelos podem ser melhor vistos como vetores ou tendências, em vez de categorias distintas, com fluidez e desfoque entre as duas abordagens” (MITTEL, 2015, p.315). Ele mostra que dentro da televisão norte-americana, as duas propostas foram realizadas. O sistema transmídia TWD tem exemplos dos dois modelos. A websérie Torn apart, por exemplo, ao contar a trama da bicicleta que Rick encontrou no primeiro episódio da “nave-mãe”, é uma amostra do modelo What Is em TWD. Nesse modelo, a série zumbi segue a linguagem ilusória de montagem, em que as imagens das diferentes mídias têm continuidade entre si. Já no modelo What If, a combinação de imagens da série com as do jogo, por exemplo, aproxima-se da montagem complexa, em que elementos contraditórios podem conviver no mesmo universo narrativo.

Com novos procedimentos de montagem estabelecidos por uma experiência transmídia única, que tem características próprias e que problematiza o modelo proposto por Jenkins, TWD é um objeto que deve ser analisado também no contexto dos processos de criação. O capítulo seguinte irá continuar essa análise e procurar entender o sistema TWD no contexto da complexidade, já que se encararmos apenas os capítulos e episódios da série separadamente, não iremos enxergar como o universo foi criado e como ele se difere de outras narrativas do mesmo período.

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3. The Walking Dead no contexto da complexidade

As manifestações de The Walking Dead na televisão, na história em quadrinhos e no videogame, fazem parte de um contexto de indústria televisiva, de meios de comunicação de massa. Como observado no capítulo um, a série principal (2010), primeira tradução da HQ para o audiovisual, segue no ar na televisão aberta norte-americana com milhões de espectadores assistindo a cada um de seus capítulos. Mesmo com os novos procedimentos de montagem que TWD propôs, destacados nessa dissertação, cada episódio respeita o tempo dos intervalos comerciais e cria os “ganchos” entre blocos para prender a atenção da audiência, como outras séries e novelas veiculadas sempre fizeram. Quando observamos cada capítulo separadamente, a montagem, de maneira geral, segue o modelo ilusório, inclusive os capítulos montados por Todd Desrosiers8 nas primeiras e terceiras temporadas de Fear The Walking Dead (2013).

Quando deslocamos o olhar da pesquisa e deixamos de investigar a especificidade de cada capítulo, passamos a analisar como os episódios e as manifestações de TWD interagem entre si, assim a série se destaca de outros exemplos de ficções televisivas. Gisele Frederico, em sua dissertação de mestrado, “A modelização na construção estética do sistema transmídia The Walking Dead”, aponta a complexidade de TWD como justificativa para sua investigação:

Dentro deste contexto, buscaremos identificar o processo de formação da identidade estética de uma obra complexa, em que diversas linguagens estão submersas e em contato, criando novos textos e novas formas de contar uma história. Para tanto, escolhemos o sistema transmídia The Walking Dead como nosso objeto de análise (FREDERICO, 2018, p.19).

8 Todd Desrosier é o montador da TWD entrevistado para a pesquisa.

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Frederico argumenta que a complexidade9 de TWD surge quando as diversas linguagens das múltiplas manifestações entram em contato e criam uma nova estética para narrar o universo zumbi. Frederico também agrupa essas manifestações e chama o todo de “sistema transmídia”. O agrupamento segue os conceitos de Henry Jenkins sobre a convergência digital e sobre transmedia storytelling, como visto no capítulo dois:

Os sistemas transmídia agregam meios tradicionais - livros, cinema, quadrinhos, rádio, televisão - e meios digitais e interativos - video games, aplicativos de segunda tela e meios de natureza distintas em uma mesma obra reforça o que Henry Jenkins chamou de paradigma da convergência digital, segundo o qual novas e antigas mídias interagem de formas cada vez mais complexas (FREDERICO, 2018 p.19).10 Ao investigar as manifestações de TWD dentro do sistema transmídia (FREDERICO), em vez de separá-las e analisá-las individualmente, a pesquisa se aproxima do paradigma de complexidade de Edgar Morin. O teórico francês propõe uma abordagem que refuta o reducionismo do pensamento clássico e busca uma construção do conhecimento científico sempre investigando o fenômeno no seu contexto: “Só posso compreender um todo se conheço, especificamente, as partes, mas só posso compreender as partes se conhecer o todo” (PASCAL apud MORIN, 2018, p.181).

Morin propõe uma sociologia de conhecimento e traz para o homem que faz ciência uma responsabilidade, cobrando dele a consciência de seus atos. A ciência deve ser encarada com ética e com a assunção de que sujeitos a constroem, portanto, são passíveis de questionamentos e fragilidades para essa tarefa:

Nos falta uma ciência capital, a ciência das coisas, do espírito ou noologia, capaz de conceber como e em que condições culturais as

9 Gisele Frederico, ao usar o termo complexidade ou o adjetivo complexo, não está se referindo ao pensamento da complexidade de Edgar Morin, o qual iremos abordar em outro momento do capítulo.

10 Frederico demonstra, em seu texto, como se dá a construção estética no sistema transmídia de The Walking Dead, e para isso analisa e compara a decupagem, a fotografia e a montagem na história em quadrinho, nas séries televisivas e no jogo de videogame. A abordagem de Frederico percebe as características da Versão-Padrão (ou do cinema clássico) como parte preponderante da construção estética de TWD. Entretanto, não foca sua pesquisa na montagem, apenas, e dessa maneira não investiga aspectos levantados na presente dissertação.

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ideias se agrupam, se encadeia, se ajustam, constituem sistemas que se auto regulam, se auto defendem, se auto multiplicam, se auto propagam. Falta-nos uma sociologia do conhecimento científico que seja não só poderosa, mas também mais complexa do que a ciência que examina (MORIN, 2018, p.26 e 27).

No texto “O desafio da complexidade”, Morin sugere uma mudança sobre como a ciência deve ser encarada, a partir de um novo paradigma para a construção do conhecimento, e enumera as características deste paradigma. A complexidade é “o esforço para conceber um incontornável desafio que o real lança à nossa mente” (MORIN, 2018, p.176), sendo assim, aceita a incompletude do conhecimento humano. O paradigma da complexidade orienta a construção do conhecimento científico com uma metodologia que não retira a parte do todo, apenas isola para analisá-lo; a parte deve ser analisada no todo, reconhecendo as interações da parte com o seu entorno. Nessas interações, os limites entre cada fenômeno são difíceis de serem apontados. O paradigma da complexidade lida com o acaso, com a desordem, com a aleatoriedade e imprevisibilidade dos fenômenos. O observador volta para a observação, fazendo com que a separação entre sujeito e objeto seja encerrada. Por fim, uma das maiores mudanças que o pensamento da complexidade propõe é a maneira como o ser humano é visto, colocando-o dentro dessa complexidade e permitindo que seja entendido como produto das inúmeras interações entre natureza, linguagem e cultura.

Morin, como um pensador da cultura e pesquisador da comunicação, analisa que a maneira a partir da qual se enxerga o homem dentro da cultura, é coerente com a sua visão sobre ciência e complexidade. Os conceitos de interação e pluralidade são fundamentais para que esse homem experimente novas expressões da linguagem audiovisual, como a série TWD apresentou nas últimas décadas.

Morin fala, como já foi visto, de interações no ambiente macro da cultura, ao enfatizar que a existência de uma vida cultural e intelectual dialógica, na qual convive uma grande pluralidade de pontos de vista, propicia o intercâmbio de ideias. Esse espaço de trocas, por sua vez, possibilita o enfraquecimento dos dogmatismos e normatizações. Este movimento resulta em crescimento e na possibilidade de expressão de desvios, ou sejam em modo de evolução inovadora, reconhecidos e saudados como originais (SALLES, 2006, p.150).

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Nesta dissertação, The Walking Dead é analisada a partir da perspectiva de pensamento da complexidade. Em lugar de examinar cada manifestação do universo narrativo individualmente, cabe a esse trabalho comparar cada manifestação no interior do sistema transmídia TWD e como a interação interna das mídias, por exemplo, entre a história em quadrinhos com o jogo de videogame, gera novas relações, novos sentidos, novas expressões de linguagem. Esse sistema também é investigado junto com outros, bem como outras séries televisivas que surgiram na mesma época, no mesmo espírito do tempo, conforme visto na análise sobre o modelo narrativo de Jason Mittel.

Em seguida, para entender os processos de criação do sistema, iremos investigar qual é a relação que os sujeitos participantes da confecção do universo têm com os objetos. Justamente por TWD ser um produto de uma indústria audiovisual, centenas de profissionais trabalham para a feitura da série. Para analisar The Walking Dead, observaremos as pesquisas sobre processos de criação de Cecilia Salles. No livro “Redes de criação” (SALLES, 2015), a pesquisadora mostra como o locus da criatividade não está centralizado no autor, mas disperso em rede no contexto em que está inserido. Quando se observa uma série como TWD, é possível encontrar as marcas de autoria nos diversos processos de criação e em diversos profissionais que contribuem para confecção das narrativas e da linguagem.

3.1. A complexidade de Morin e a complexidade de Mittel

Como foi exposto no capítulo um, o pesquisador Jason Mittel também utilizou o termo “complexo” para definir o modelo narrativo que a televisão norte- americana adotou a partir dos anos 2000. Retomando o seu conceito, o modelo narrativo define-se da seguinte maneira:

O que é uma narrativa complexa? No seu modelo mais básico, a narrativa complexa redefine a forma episódica sobre a influência da narrativa serializada. É um equilíbrio entre as duas formas. Não é necessário que em todo capítulo haja um fechamento como na narrativa episódica (MITTEL, 2015, p.18).

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A série The Walking Dead, como já foi discutido, está inserida nesse modelo narrativo no qual as séries televisivas são valorizadas por sua qualidade dramatúrgica e por apresentarem o equilíbrio entre o modelo episódico e o modelo serializado. Os capítulos da série de televisão acontecem uma vez por semana, e o que se passa em um episódio tem consequências e continuidade no seguinte. Com uma narrativa transmídia, a construção narrativa se dá em diversas manifestações, o que permite os espectadores e fãs a não só assistir o programa, mas interagir com o seu paratexto, com sua teia intertextual. Segundo Mittel, os paratextos das séries são fundamentais para a maior complexidade da narrativa e para a maior interação do espectador com o universo da série:

Na era digital, um programa de televisão é permeado por uma teia intertextual que empurra os limites textuais para fora, obscurecendo as fronteiras experimentais entre assistir a um programa e interagir com seu paratexto. Da mesma forma, o texto da série em si é menos objeto de contar histórias do que uma extensa biblioteca de conteúdo narrativo que pode ser consumida por meio de uma ampla gama de práticas, sequências, fragmentos, momentos, escolhas e repetições (MITTEL, 2015, p.7). Em The Walking Dead, há uma série de paratextos para o espectador se entreter e também se entremear. Há uma biblioteca extensa de conteúdos para difundir o mundo da série de Kirkman. Mittel pontua que as manifestações transmídia são parte do paratexto da série, mas têm maior complexidade e fazem parte do modelo narrativo que ele defende quando “o objetivo principal é expandir o storyworld e ampliar o engajamento com a série ao invés de refletir ou promover o programa” (MITTEL, 2015, p.294).

Mittel propõe que os paratextos mais complexos são aqueles que se diferenciam de materiais promocionais como traillers, capas de DVD’s, ou making-offs. Segundo o autor, as manifestações transmídia podem criar pontos de contato interativos entre o espectador e universo narrativo. Para isso acontecer, há um estímulo a fim de que o criador não somente transfira o conteúdo dos quadrinhos para a televisão, como também, no caso de Robert Kirkman, recrie personagens e transforme tramas para melhor explorar as características de cada mídia por onde TWD irá se manifestar. Quando The Walking Dead foi transposta dos quadrinhos para as séries de TV e para o videogame dessa maneira, em uma recriação, uma tradução intersemiótica

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(PLAZA)11, a trama zumbi ganhou outras características que são defendidas pelo modelo narrativo de Jason Mittell. A sofisticação do paratexto é tão importante para Mittel quanto o equilíbrio entre a forma episódica e a forma serializada para caracterizar o modelo complexo.

Apesar de usar o mesmo termo, há diferenças entre a concepção de complexidade para Edgar Morin e para Jason Mittel. Morin está debatendo um conceito mais amplo da ciência, uma nova sociologia do conhecimento, uma outra postura para os cientistas e uma nova interpretação para as relações entre o homem e os objetos. Já Mittel é um pesquisador da televisão norte-americana, mas é possível integrar o conceito mais amplo de Morin nos seus estudos sobre o audiovisual.

Em Morin, o paradigma da complexidade é um orientador sobre como construir o conhecimento científico. Ao mesmo tempo, a complexidade é observada nas interações humanas. Para Mittel, o modelo narrativo da televisão norte-americana é um padrão complexo, pois supera um modo narrativo mais simplificado que havia nas histórias antes dos anos 2000 e porque as novas estruturas das histórias combinavam o padrão episódico com o padrão serializado.

Como pensador da cultura, Morin também fez investigações sobre a linguagem audiovisual em seu texto “A alma do cinema”, que analisa as interações entre os espectadores e o filme, apontando para o processo de projeção que o espectador faz de si na tela do cinema12 e como ele absorve o mundo diegético em um processo de identificação. Projeção e identificação são conceitos-chave para o jogo ilusório da montagem, principalmente o conceito de

11 Segundo Julio Plaza, “numa tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência a formar novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria característica diferencia, tendem a se desvincular do original” (PLAZA, 2013, p.30). Dialogando com estudo dos signos de Charles Pierce, Julio Plaza mostra que em uma tradução artística, como ocorre nas transposições de TWD, novos significados são criados no novo sistema sígnico que podem fugir dos sentidos iniciais.

12 Como visto no capítulo um, em que é defende-se que a ilusão da montagem faz com que o espectador empreste os olhos de Luke Skywalker, entra na ação e luta com Darth Vader.

74 montagem das séries que Mittel investiga, como visto no capítulo um13. Morin comenta como a partir desse jogo da montagem os espectadores transportam o mundo diegético para o seu cotidiano:

Os garotos de Paris e Roma brincam de peles vermelhas, polícias e ladrões. Da mesma maneira que as garotas brincam de mães e miúdos de assassinos, as mulheres sérias, no cinema, brincam de prostitutas e os mais pacatos funcionários de gangsters. A força da participação do cinema pode levar a uma identificação com os desconhecidos (XAVIER, 1983, p.163). Ainda sobre o paradigma da complexidade, Morin valoriza a contradição – “podemos acrescentar um problema-chave que é o problema da contradição” (MORIN, 2018, p.186) –, a ambiguidade – “Para entender o que acontece e o que vai acontecer no mundo, é preciso ser sensível à ambiguidade” (MORIN, 2015, p.9) – e a ambivalência – “A segunda coisa necessária para esse entendimento é a ambivalência” (MORIN, 2015, p.10). Morin confronta a lógica clássica que tinha valor de verdade absoluta e geral, mas quando a mesma chegava a uma contradição, era sinal de que um erro nessa lógica havia acontecido. Com a nova maneira de encarar a ciência, é possível aceitar que os fenômenos poderiam carregar o dialógico e a diversidade de sentidos.14

Em 1961, o pesquisador Morin realizou um filme, junto com Jean Rouch, chamado "Crônicas de um verão". Com uma pergunta que orienta todo o documentário, Morin e Rouch investigam no filme se os cidadãos parisienses são felizes. O filme não deixa de ser mais uma reflexão de Morin a respeito do cinema e do audiovisual, e a todo momento os dois cineastas, dentro da própria obra, discutem os caminhos que a direção e a montagem de filme devem seguir. Ao final, Morin chega à conclusão de que esse documentário pode gerar diferentes sensações. Alguns espectadores preferem as situações em que os personagens atuam, em que há uma representação por parte dos entrevistados, enquanto outros preferem os personagens sinceros, que não parecem atuar para

13 Sobre esse jogo da montagem nas séries complexas: “Já em TWD, a câmera assume o ponto de vista de personagens como Rick, Daryl, Michonne e Carol, e com o jogo da montagem o espectador empresta os olhos desses personagens e praticamente adentra o universo narrativo”.

14 Morin comenta que quando Niels Bohr indicou que era possível aferir tanto o comportamento corpuscular quanto o comportamento ondulatório da partícula (ambivalência), era preciso aceitar a contradição (MORIN, 2018, p.186).

75 a câmera, como proposto pelos cineastas. O filme fica em aberto, aceitando que ele pode ser os dois ao mesmo tempo. Em uma entrevista para a série “Fronteiras do Pensamento”, Morin diz que “no fundo, é talvez essa ambivalência que se sobressai no filme. Então, é a cidade, no fundo, o concentrado de toda a civilização, e é aí que se encontram todas as ambivalências”15.

Em 2011, Morin aponta para o filme que ele dirigiu em 1961 e mostra que nele há um dos conceitos-chave do paradigma da complexidade, a capacidade de algo ter dois valores opostos simultaneamente.

Mittel, professor e pesquisador da linguagem audiovisual na Middlebury College, discute, em Complex TV, que uma das características do novo padrão narrativo é possuir histórias com ambiguidades e desorientações, superando o modelo narrativo da televisão norte-americana, que se calcava no cinema clássico:

Em todas essas séries, a falta de dicas explícitas e sinalizações criam momentos de desorientação, pedindo aos espectadores que se envolvam mais ativamente para compreender a história. Os espectadores regulares que dominam as convenções internas de narrativa complexa de cada programa ganham como recompensa um maior entendimento sobre a história. Essas estratégias podem ser semelhantes aos recursos formais do cinema de arte, mas se manifestam em contextos expressamente populares para audiências de massa - podemos estar temporariamente confusos com momentos de Lost ou Alias, mas esses programas nos pedem para confiar na recompensa que eventualmente chega a um momento de compreensão complexa, mas coerente (MITTEL, 2015, p.50). O modelo clássico, discutido por David Bordwell no texto Narration in the fiction film e em outros trabalhos, como “A arte do cinema” e “A história do estilo cinematográfico”, caracteriza-se pela ilusão de que o que se passa na tela, seja de televisão ou cinema, é um mundo real com autonomia própria, sem a presença de um narrador que costura imagens e sons para o espectador. Entre uma imagem e outra, o corte é suprimido pela ilusão da continuidade. Além disso, contrariando o cinema moderno e de arte, o modelo clássico se estrutura por narrativas com começo, meio e fim, em que os espectadores seguem uma ordenação linear, causal e no tempo presente. A ordem do mundo, destituída no

15 FRONTEIRAS DO PENSAMENTO. Fronteiras, 2011. Vídeo com Edgar Morin, Crônica de um verão .Disponível em: . Acesso em 26 de março de 2020.

76 começo das histórias de um filme ou de um episódio clássico de TV, é restabelecida ao fim da narrativa, deixando o espectador em uma posição segura e sempre orientado para o que está acontecendo na tela.

Mittel aponta que nos episódios das séries de modelo complexo, o espectador convive com a desorientação, a contradição e a ambivalência, ou seja, características da complexidade pensada por Morin. Emulando o cinema moderno, discutido por Noel Burch no trabalho “Práxis do cinema”, os episódios complexos não dão respostas rápidas para o espectador, e isso o mantém com uma sensação de dúvida, incerteza, muitas vezes sem saber quem é o vilão e quem é o herói:

Séries de fantasia abundam sem marcações ou sinais claros, como Os Sopranos, Buffy e Battlestar Galactica. Elas apresentam visões de eventos que oscilam entre a subjetividade do personagem e a realidade diegética, jogando com uma fronteira ambígua para oferecer profundidade de caráter, suspense e comédia... Programas de televisão complexos convidam a desorientação e confusão temporárias, permitindo que os espectadores desenvolvam suas habilidades de compreensão por meio de visualização de longo prazo e engajamento ativo (MITTEL, 2015, p.49). O sistema transmídia de The Walking Dead também propõe estruturas complexas, pois manifesta, ao mesmo tempo, um sentido de continuidade entre os vários fenômenos, e de ambiguidades e desorientações. Se apenas seguíssemos separadamente a série de televisão e a história em quadrinhos, seria possível observar que as histórias têm sentidos diferentes. Porém, quando comparamos as duas mídias e percebemos as interações entre ambas as narrativas, como propõe o paradigma da complexidade, é possível construir novos sentidos.

Como foi visto no capítulo um, Carol, um dos personagens mais importantes do universo de TWD, é uma pessoa de boa índole na história em quadrinhos, porém uma das assassinas mais cruéis da série televisiva. E mesmo com a diferença fundamental na adaptação, entendemos que a Carol da série televisiva é a Carol da história em quadrinhos. Além dela, temos o personagem Tyreese Williams, um potente líder que muitas vezes confronta o protagonista Rick Grimes. Quando a filha de Tyreese, Julie, morre envenenada pelo namorado, no volume 3 da HQ, Tyresse estrangula Chris, responsável pela morte de sua filha Julie, contrariando as ordens de Rick. Já na série de televisão,

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Tyreese também é um forte lutador, porém não possui filhos. Sua personalidade, na televisão, é diferente daquela da HQ – é mais doce e mais afável.

Na HQ, Tyresse é explosivo com o namorado de sua filha. No episódio 14 da quarta temporada, Tyresse ajuda Carol a cuidar de três crianças cujos pais morreram na prisão. Ele acolhe as três meninas e protege as duas para que não sejam mortas por zumbis.

Figura 42

Figura 43

Fonte: série “The Walking Dead”, temporada 4, episódio 14, Kirkman e Fonte: revista “The Walking Dead”, edição Darabont, 2015. número 15, Kirkman, 2005.

Na tradução intersemiótica feita para a televisão, os personagens demonstraram características contraditórias em relação ao que apresentam nos quadrinhos. “Se não houver essas múltiplas sensibilidades para a ambiguidade, para a ambivalência (ou contradição), para a complexidade, será muito pequena a capacidade de entender o sentido dos acontecimentos” (MORIN, 2015, p.14). Carol e Tyreese são manifestações complexas, e refletem as ambivalências que Edgar Morin observa num mundo multidimensional e incerto. Ainda em Morin, “uma realidade, pessoa ou sociedade se apresenta sob aspecto de duas verdades diferentes ou contrárias, ou então apresenta duas faces, não se sabendo qual é a verdade” (MORIN, 2015, p.9) e que ambivalência é “quando um processo apresenta dois aspectos de valores diferentes e às vezes contrários” (MORIN, 2015, p.10).

Em outro exemplo, no spin-off Fear The Walking Dead, há outra manifestação transmídia do universo: o personagem Morgan Jones faz um

78 movimento que explicita a complexidade do sistema transmídia de TWD e as possibilidades da montagem transmídia. Morgan participa das oito primeiras temporadas da série original, e no fim da oitava, desiludido com a liderança de Rick, parte para o oeste dos Estados Unidos para viver como um ermitão. No primeiro episódio da quarta temporada de Fear The Walking Dead, Morgan, que até então não havia participado do programa derivado, é mostrado primeiro interagindo com os participantes da série original, que tentam convencê-lo a ficar no leste do país, para depois passar a interagir com Nick e Alice Clark, os protagonistas da série derivada. Morgan atravessa as manifestações transmídia, e esse episódio é um nó fundamental na teia intertextual de TWD, pois explicita a conexão entre as tramas dos dois programas.

Figura 44 - Primeiro episódio da quarta temporada mostra Rick, da série The Walking Dead, tentando convencer Morgan a não cruzar os Estados Unidos e ficar com o grupo na Costa Leste. Para emular a série original, esse trecho do episódio também é filmado em 16mm, ao contrário do restante do episódio que é gravado em câmeras digitais.

Fonte: série “Fear The Walking Dead”, temporada 4, episódio 01, Kirkman e Darabont, 2018.

Morgan, um aliado de Rick e dos protagonistas de TWD, num primeiro momento, torna-se um inimigo da família Clark, atrapalhando os planos de Nick, Madison e Alicia para sobreviver no apocalipse zumbi. Os três primeiros episódios da quarta temporada despertam sentimentos ambíguos no espectador, já que Morgan e a família Clark estão em lados opostos do confronto, e por isso o espectador se identifica com ambos os lados. A

79 ambivalência destacada por Morin no paradigma da complexidade mais uma vez se faz presente.

As duas séries de televisão são parte dessa teia intertextual, essa rede de nós que colocam em evidência o universo narrativo da série. A ideia de rede será retomada em Cecilia Salles com o trabalho "Redes da Criação"(2006), que será discutido a seguir.

Ao atravessar as duas séries, Morgan une as imagens das duas manifestações transmídia e, num processo de montagem intermídias, constrói um novo sentido de continuidade. Se o espectador assistiu ao programa TWD no dia 15 de abril de 2018, em que Morgan deixa o grupo de Rick no leste dos Estados Unidos, e em seguida viu o primeiro episódio de Fear The Walking Dead, no mesmo 15 de abril de 2018, pôde combinar as imagens dos dois programas e criar um terceiro sentido, um senso de continuidade, apagando os limites entre os quadros dos dois programas.

Morgan luta com seu bastão tanto na série original quanto na série derivada. Combinar as duas imagens é um ato de montagem, e como consequência tem-se a construção da continuidade entre as duas séries. Figura 45 Figura 46

Fonte: série “The Walking Dead”, temporada Fonte: série “Fear The Walking Dead”, tempora- 8, episódio 03, Kirkman e Darabont, 2018. rada, 1 episódio 01, Kirkman e Darabont, 2018.

Até aqui, a dissertação procurou explicitar como o sistema transmídia de The Walking Dead construiu múltiplos sentidos quando examinado como um todo, como um caldeirão efervescente em que as diversas manifestações se

80 chocam e produzem tanto a continuidade entre as imagens como a ambiguidade e as contradições, apontadas por Morin como características da complexidade. Para a realização de uma obra com esse emaranhado de sentidos, com essas complicações narrativas – outro termo usado por Morin para caracterizar a complexidade –, diversos profissionais e criadores fizeram parte do processo, com múltiplas interações no trabalho em grupo. TWD faz parte do modelo narrativo complexo defendido por Mittel, diferenciando-se das soap operas das décadas de 80 e 90 por permitir que o espectador interaja com um universo narrativo amplificado e com diversas portas de entrada. Para integrar as manifestações e criar os múltiplos sentidos de uma série do modelo complexo, o sistema transmídia de TWD não seria possível sem um processo complexo de criação e sem uma equipe de montadores envolvidos nas traduções intersemióticas da HQ de Robert Kirkman. Uma equipe de montadores diversa, com diferentes projetos artísticos, e que participou de tomadas de decisões importantes para a construção dos sentidos das séries.

Por essas características de TWD, a presente investigação se aproxima dos conceitos do grupo de pesquisa em processos de criação liderados pela professora Cecilia Salles. No livro “Redes da criação”, a autora “parte da necessidade de pensar a criação como rede de conexões, cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade das relações que a mantém”. (SALLES, 2006, p.17). Assim como o grupo de pesquisa, essa investigação tem como norte pensar a criação do sistema TWD como um objeto com múltiplas conexões e interações entre os diversos membros das várias equipes, porém com o foco na montagem.

3.2. Processo de criação de The Walking Dead

Uma narrativa transmídia como TWD, espalhada em rede por diversos elementos interconectados, também é acompanhada por um processo de criação complexo e dinâmico. The Walking Dead é produzido por diversos autores: roteiristas, diretores, produtores, montadores e até mesmo fãs, que fazem a lapidação de um objeto vivo, inacabado e longe de encontrar seu fim.

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Enquanto a história em quadrinhos foi encerrada em 2019, as séries televisivas continuam no ar, sem previsão para acabar, e com força narrativa para continuar, futuramente, por muitos anos.

Robert Kirkman, o criador da revista em quadrinhos, interage com especialistas das diferentes mídias, já que televisão e videogame possuem características próprias, e adapta o universo criado nos quadrinhos absorvendo os estímulos das diferentes linguagens. Enquanto na história em quadrinhos ele é o líder da criação, na série original ele se torna mais um escritor na sala de roteirista liderada pelo showrunner Scott Gimple, fazendo com que ele mesmo seja responsável por traduzir a sua obra para uma diferente linguagem. Salles comenta em “Redes de Criação” como o processo artístico é permeado por múltiplas linguagens:

Ao acompanhar diferentes processos, observamos na intimidade da criação um contínuo movimento de tradução intersemiótica, aqui vista como transcodificação entre diferentes linguagens, que acontece durante o processo (…). Retomando minha proposta inicial, a constatação de que todo processo de criação é um percurso tradutório que nos oferece um instrumento fértil, para discutirmos a poética contemporânea. Em uma grande montagem de linguagens surgem obras que não suportam classificações clássicas que as colocam em compartimentos ou gêneros. Essa poética faz da intersemiose, intrínseca a todo fazer artístico, a própria materialidade da obra (SALLES, 2006, p.157). Kirkman, mesmo sendo o primeiro autor do universo, torna-se mais um detonador da rede de criação de TWD. Ele participa das diferentes traduções intersemióticas, inclusive escrevendo roteiros das séries de TV, mas tanto em TWD como em FTWD, ele convive com outros diretores, outros showrunners e outros montadores. A obra não percorre um percurso linear de criação, mas um processo não-linear e com uma série de inter-relações.

A não linearidade nos leva ao conceito de rede, embora este abarque muitas outras questões (...). Musso (2004, p.31) propõe uma definição de rede que, embora faça permanente referência a “estruturas”, nos oferece várias portas de entrada profícuas para esse debate. Musso fala em elementos de interação, interconexão instável no tempo, e variabilidade de acordo com regras de funcionamento (SALLES, 2006, p.23). Os objetos de TWD não são vistos de forma isolada, os espectadores encontram portas de entrada na trama zumbi nos quadrinhos, na televisão, na web e no videogame. Por estar em processo contínuo de criação, há ainda uma

82 constante sensação de imprevisibilidade e instabilidade no objeto. O anunciado adeus ao personagem Rick Grimes na série televisiva se transformou em uma oportunidade de transportar o protagonista da série para o cinema uma trilogia sobre o personagem foi anunciada pelos criadores da saga). O fim da história em quadrinhos, em 2019, não significa o fim da obra. TWD continua se espalhando pelas diversas mídias, como o mapa de interações de proteína citado por Cecilia Salles no livro “Redes da criação”:

Figura 47 - mapa de interações de proteína.

Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Interatômica#/media/File:Schziophrenia_PPI.jpg. Acesso em: 25 de abril de 2020.

Os elementos de interação são os picos ou nós da rede, ligados entre si: um conjunto instável e definido em um espaço de três dimensões. Morin (2002, p.72) descreve interações, em outro contexto, como ações recíprocas que modificam o comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos (SALLES, 2006, p.24). Dessa maneira, a criação do universo narrativo de TWD também é vista como um sistema complexo, uma rede em que os autores e as manifestações do universo interagem, interconectam-se e estabelecem nexos entre si para conseguir dar conta da multiplicidade narrativa, por isso trata-se de

83 um pensamento de criação compartilhado. “As interações são, muitas vezes, responsáveis por essa proliferação de novos caminhos: provoca uma espécie de pausa no fluxo da continuidade, um olhar retroativo e avaliações que geram uma rede de possibilidades de desenvolvimento da obra” (SALLES, 2006, p.17). A partir da ideia de Cecilia Salles, conclui-se que a criação de novos caminhos narrativos de The Walking Dead só foi possível graças às interações que os autores das diferentes mídias tiveram entre si.

Nesse sentido, Kirkman se torna um nó dessa rede, detonando a criação a partir da história em quadrinhos, mas também interagindo com outros escritores e montadores nas séries de televisão e nos jogos de videogame. Ele está presente como alguém que propõe novos sentidos, mas que também colabora com a criação de outros artistas envolvidos no processo:

Por um lado, a multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento do sujeito; ao mesmo tempo, o próprio sujeito é múltiplo. A multiplicidade das interações e do próprio sujeito são também enfatizadas por Colapietro (1989), ao afirmar que o sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. É distinguível, porém, não separável de outros, pois sua identidade é constituída pelas relações com outros; não é só um possível membro de uma comunidade, mas a pessoa como sujeito tem a própria forma de uma comunidade (SALLES, 2006, p.151). Vale ressaltar que há um espelhamento entre o processo de criação e o sistema transmídia de TWD. A figura do mapa de proteína que Salles usa para ilustrar as interações do processo de criação também pode ser utilizada para ilustrar a teia intertextual desse sistema transmídia. As interações entre os nós da rede de criação se espelham nos nós do sistema transmídia, e o mérito das manifestações de TWD é emular a complexidade de um mapa de proteína, como aponta Morin e Salles.

É importante também salientar que a pesquisadora não considera o processo artístico reto, linear, com um objetivo tangível pelo método racional de causa e efeito, muito menos um processo subjetivo, baseado apenas na genialidade de um autor. Os autores de TWD fazem parte de uma rede complexa, com muitas interconexões, e esse grupo segue tendências, rumos vagos, que orientam os processos de criação, porém são carregados de imprecisões e incertezas. O livro “Gesto inacabado”, de Cecilia Salles, ressalta como a obra de arte é um processo contínuo dessas tendências, e a

84 apresentação da obra nada mais é do que um estágio do processo, jamais a finalização de um projeto. TWD vem se manifestando desde 2003 e seu sistema apresenta diversos estágios desse processo, com diferentes interações, produzindo diferentes interpretações do universo narrativo, além do vasto grupo de profissionais inseridos nesse projeto.

No livro "Processos de Criação em Grupo", Salles destaca as potências dos projetos de criação coletivo, como é possível a construção de desvios instigantes e arrojados quando o projeto é abraçado por mais de um sujeito.

Cada sujeito envolvido no processo de criação carrega sua história e seus interesses, e no confronto entre esses diversos entes, explodem novas ideias e novos sentidos, fazendo com que o local da criatividade deixe de isolar-se no indivíduo e passe a habitar a rede de interações desses sujeitos. Salles dialoga com Vincent Colapietro acerca de como os sujeitos da criação são múltiplos e passíveis de influência do meio cultural que vivem:

Colapietro (2014) ao descrever o sujeito, sob o ponto de vista semiótico (Pierce), como um ser histórico e concreto, culturalmente sobredeterminado, inserido em uma rede de relações, enfoca sob outra perspectiva, a inevitável inserção no calor e imprinting cultural, discutida por Morin. Para Colapietro, estamos sempre já no meio de outras pessoas e de outros significados; assim, nossa função é definida, ao menos em termos de nosso tempo e espaço (SALLES, 2017, p.35). O processo de criação em grupo traz para o projeto esse sujeito histórico e concreto que sofre as interações do seu meio cultural e, ao mesmo tempo, que pode trazer para o projeto um novo olhar, mais uma contribuição. Mais à frente, Salles, ainda em debate com Colapietro, traz a conceituação do pesquisador norte-americano sobre os locais da criatividade: Em outro momento, Colapietro (2003), ao discutir a criatividade, fala da impossibilidade de identificar o seu locus com a imaginação, especialmente quando a imaginação é concebida como um poder inerente à psique individual, em outras palavras, o locus da criatividade não é a imaginação de um indivíduo. Ele enfatiza que é imperativo, portanto, falar em loci da criatividade, aqueles onde as práticas interagem. Na mudança do enfoque do self em si mesmo para a explicação do sujeito sob o ponto de vista das práticas entrelaçadas, o locus da criatividade é pluralizado e historicizado (SALLES, 2006, p.151). O processo de criação tem a participação de diversos sujeitos que, dentro das redes de relações, chocam-se e produzem novos nexos, que esses sujeitos 85 sozinhos não construiriam da mesma maneira. A pluralidade de históricos de vida dos sujeitos e suas ambições são fundamentais para caracterizar o projeto artístico que é construído ao longo do processo.

Trata-se de uma rede de projetos pessoais construída em nome de um projeto comum, que não é estático e está constantemente sendo avaliado e repensado. A própria caracterização do projeto buscado é feita em meio a diálogos e negociações, para que sejam tomadas decisões, definidos critérios e determinados os rumos, que direcionam a construção de um espetáculo específico. Tudo acontece em meio a colaborações e comandos, que as hierarquias internas de cada grupo definem (SALLES, 2017, p.50). No caso de TWD, em que o projeto é detonado por Robert Kirkman, o sistema transmídia é um processo comum criado em grupo, com um líder que orienta o projeto e detona o universo da obra. Mesmo com um grupo grande de profissionais, há um líder claro – o autor da história em quadrinhos que também participa da criação das manifestações transmídia. O que é interessante no caso de Kirkman é que ele também se permite dentro do processo deixar de ser o líder e passa a ser liderado pelos showrunners e pelos montadores, o que contribui para o processo de criação da série, porém de um outro local. Isso estimula a adesão desses outros profissionais ao projeto, que passam a ter autonomia para liderar e tomar decisões:

De Masi (2005, p.163) destaca como acabamos de ver, a relevância em muitos casos, de se observar a importância do líder de infundir no grupo esse estado de profunda adesão ao objetivo comum (...) isso nos leva a um interessante espaço de reflexão dos processos em grupo: quais seriam as regras do jogo de outras atividades em equipe, como o cinema o teatro, a dança, etc? (SALLES, 2017, p.137 e 138). Robert Kirkman tem objetivos manifestos para a confecção do universo de TWD. Como visto no capítulo um, logo na primeira revista de The Walking Dead ele escreve uma introdução e destaca seu objetivo ao escrever a série zumbi. Como a trama da revista em quadrinhos foi tão potente e sedutora, outros autores aderiram ao objetivo de Kirkman em retratar um mundo em que a civilização ruiu, porém, cada autor contribuiu com novos sentidos ao interagir com Kirkman e com o universo da série, além de haver grande participação por parte dos montadores.

Como parte da pesquisa, foi realizada uma entrevista com o montador Todd Desrosier, da série original The Walking Dead e da série derivada Fear The

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Walking Dead. Todd montou um episódio da quinta temporada da série original e alguns episódios de três temporadas da série derivada. A dissertação parte do princípio de que o montador tem um papel fundamental na construção da narrativa de um filme ou de uma série, e Desrosier, quando questionado se tinha liberdade durante o processo de criação, nos responde: “Com certeza, a todo momento. É para isso que somos contratados. Só posso falar sobre as três primeiras temporadas da FTWD e, realmente, apenas o piloto e a terceira temporada, foram essas em que trabalhei - houve muitas mudanças na FTWD depois daquilo que não tenho consciência. Mas até onde eu sabia, realmente estávamos nos esforçando para algo muito, muito diferente da “nave-mãe” em termos de visual (filmado em HD, não em filme), tom e história. Nós não queríamos nos repetir”.

Além da possibilidade de conduzir o episódio da série com autonomia em relação ao roteirista, diretor e outros membros da criação, Desrosier aponta como a série derivada procurou ter uma originalidade, atribuindo características diferentes da série original para que o espectador não tivesse um sentimento de redundância e repetição.

Cecilia Salles discorre sobre como as interações podem modificar o projeto artístico:

Morin (2002, p.72) discute a natureza de interações na cultura como ações recíprocas, que modificam o comportamento ou a natureza dos elementos nelas envolvidos, supõem condições de encontro, agitação, turbulência e tornam-se, em certas condições, inter-relações, associações, combinações, comunicação, etc., ou seja, dão origem ao fenômeno de organização (SALLES, 2017, p.110 e 111). As agitações e turbulências lembram os choques e conflitos apontados por Eisenstein como criadores de novos sentidos na montagem e no cinema. Assim como dois fragmentos em choque produzem um novo significado (EISENSTEIN), o confronto e o conflito entre dois sujeitos podem também criar novas direções. Desrosier, em debate com as ideias de Kirkman, produz episódios de Fear The Walking Dead com outros sentidos. A segunda temporada da série derivada FTWD tem uma grande discussão sobre o muro que Trump quis construir para isolar o México dos Estados Unidos, algo que Kirkman não manifesta como objetivo de sua história em quadrinho. Salles percebe que

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Eisenstein entende o processo de criação em grupo como um embate de ideias dos vários sujeitos:

Eisenstein dá maior complexidade a essa discussão sobre os processos em equipe que, como vimos, são formados por sujeitos em comunidade, que, ao mesmo tempo, deixam marcas de sua subjetividade em suas escolhas. “Nunca toquei numa orquestra, mas acredito que uma estranha ocupação leva as pessoas ora a se envolverem, ora a se divorciarem do traçado tão especial da ação coletiva” (...) é o coletivismo do trabalho, quase uma dança marcada coletivamente, que une o movimento de dezenas de pessoas numa única sinfonia (EISENSTEIN apud SALLES, 2017, p.44). Sobre esse ambiente de encontros e ações coletivas, o entrevistado Todd Desrosier fala sobre os autores envolvidos no processo de The Walking Dead e Fear The Walking Dead, e como, na série derivada, todos estavam na mesma direção de criar independência da série original, direção detonada também pelo showrunner (roteirista-chefe) de FTWD, David Erickson:

“Quanto às orientações para a montagem de TWD, eu fiz um episódio para a 5ª temporada, então usei todos os episódios anteriores e as contribuições de alguns dos outros editores e, claro, o diretor do episódio (que também era o diretor de fotografia do programa) e o Showrunner para orientação. Fear The Walking Dead foi mais sobre a criação de uma nova experiência separada da "Nave-mãe" e a descoberta dos ritmos certos e da maneira de contar a história com o Showrunner / Escritor e Diretor”.

O local da montagem de TWD, era o mesmo de Fear The Walking Dead, e esse ambiente de efervescência foi importante para a interação de Desrosier com outros membros participantes do processo criativo.

“Não trabalhei diretamente com nenhum outro editor, mas conversávamos durante o almoço sobre os episódios. Às vezes, pedia conselhos e outras vezes discutimos como as coisas foram feitas no passado ou o que estava acontecendo em suas ilhas de edição nos vários episódios em que estavam trabalhando”.

Ainda sobre o projeto em equipe, dentro do departamento de pós- produção de uma série como essa, há vários profissionais envolvidos na montagem, e esses diversos sujeitos contribuem para o processo de criação dos episódios. Pode-se citar como exemplo brasileiro o documentário “Democracia em vertigem” (2019), de Petra Costa, que é assinado por 10 montadores. Em

88 entrevista para o podcast Sala de Edição16, Karen comenta que enquanto ela trabalhava com a diretora numa ilha de edição, um editor júnior, Joaquim Castro, preparava timelines para as duas numa segunda ilha de edição. Enquanto Karen folgava no fim de semana, Bruno Lacevicius trabalhava aos domingos dando um outro olhar para a montagem realizada por ela.

“Democracia em vertigem” talvez seja um caso limite, pois a produtora Netflix investiu muitos recursos para a realização do documentário cujo processo de realização durou cerca de três anos, mas mostra o quanto o processo de montagem exige uma equipe ativa no processo de criação. Em um projeto transmídia, como TWD, há também essa necessidade, e o projeto possui montadores, montadores-juniores, assistentes de edição, entre outros profissionais. Uma temporada de 16 episódios de TWD é montada por 5 profissionais. Na entrevista com Desrosiers, foi perguntado como funcionava o fluxo do trabalho da montagem de um episódio:

“O fluxo de trabalho do projeto era muito semelhante à maioria dos outros projetos, com a exceção de que TWD é um dos únicos programas ainda gravados em filme (16 mm), o que muda a maneira como o material chegava até nós na pós-produção. As diárias chegavam na finalizadora, nossos assistentes digitalizavam e organizavam o material em pastas para cada cena, e já editavam cada cena em uma timeline.17 Depois que uma grande quantidade de cenas teve uma primeira versão editada pelos assistentes, começamos a colocá-las em uma timeline maior. E uma vez que tudo isso foi feito e revisado, na maioria das vezes simultaneamente, começamos a trabalhar nos efeitos sonoros e na música – existe uma vasta e crescente biblioteca de músicas e efeitos sonoros de episódios anteriores já compostas pelo músico. Nós simulamos os efeitos visuais na sala de edição e esses são aprimorados gradualmente ao longo do processo”.

Desrosiers aponta na entrevista quantos profissionais participam do processo de criação da montagem. Antes de ele ter acesso, editores mais novos

16 SALA DE EDIÇÃO. Sala de edição, 2019. Disponível em: . Acesso em 15 de abril de 2020. 17 Dentro de um software de edição, a timeline é o local onde o filme é editado.

89 fazem um primeiro corte do material. Ele e o showrunner fazem a revisão e afinação do corte. Compositores já deixaram pronto para eles uma série de efeitos sonoros, sons de zumbi andando ou mastigando carne, por exemplo, para auxiliar na ambientação das cenas. Novas músicas são compostas para cada episódio. Alguns efeitos visuais também já ficam disponíveis para a edição, temporariamente, para depois serem finalizado por um profissional de VFX (efeitos especiais). Mesmo filmado em 16mm, TWD tem muitas cenas que utilizam o recurso do Chroma-key para que mais zumbis sejam acrescentados à cena com recursos da computação gráfica.

Ainda sobre o processo de montagem, Desrosiers discorre sobre outros membros da equipe envolvidos no corte dos episódios e o tempo de cada etapa:

“O período de tempo necessário para produção e edição é diferente para cada cenário e programa. Diferente para piloto18 e para o restante dos episódios da série. Os pilotos geralmente são maiores, têm mais dias de filmagem e você geralmente tem mais tempo para trabalhar no processo do que em uma série em funcionamento. Mas, em geral, temos de 8 a 10 dias de filmagem. 4 dias para terminar o corte dos editores19, 4 dias para trabalhar com o diretor, de 5 a 7 dias para trabalhar com o showrunner e, em seguida, dependendo se o estúdio e o canal são entidades independentes (no caso da AMC, produtora de TWD são os mesmos), você terá mais dias para trabalhar nos comentários feitos pelo estúdio e pelo canal. Então, cerca de um mês e meio a dois meses para um episódio do começo ao fim e mais tempo para um piloto. Depois disso, geralmente há testes de audiência e outras alterações residuais que também levam algumas semanas ou mais”.

Além de toda a equipe de edição e pós-produção, Desrosiers conta como assistentes de direção, diretores e o showrunner também são integrantes do

18 Episódio piloto é o primeiro episódio da série, geralmente utilizado para os produtores venderem o projeto para o canal. Depois que o piloto é aprovado, o restante da temporada é gravado e editado.

19 Rough Cut, Editor Cut, Fine Cut e Picture Lock são as etapas de montagem de um episódio dentro de produtoras e canais norte-americanos. O corte do editor é a segunda etapa, o corte fino é feito com o diretor, e o corte final é aquele aprovado pela produtora e pelo canal.

90 processo de montagem de um episódio. Relembrando um conceito defendido no primeiro capítulo, a montagem não é realizada apenas por um profissional, é pensada em todos as etapas do projeto audiovisual pelos diferentes departamentos. Não se pode esquecer que TWD é um produto transmídia de uma indústria audiovisual, ou seja, executivos do estúdio e do canal de televisão também influem nas tomadas de decisão para o corte final de um episódio.

A entrevista de Desrosier explicita um pouco sobre como foi o processo de montagem das duas séries televisivas, e por meio dela pode-se aferir como um processo em grupo pode detonar novos sentidos e novas estéticas narrativas, assim como descritos por Cecilia Salles no seu trabalho “Processos de criação em grupo”. As inovações de linguagem audiovisual podem não ter sido realizadas de forma intencional, mas aquilo que se vê ao justapor as imagens da história em quadrinhos com as imagens das séries, dos jogos de videogame e celular deve ser discutida à luz da teoria da montagem.

3.3. Esboços de uma nova teoria de montagem

Foi nesse ambiente excitante, com múltiplas interconexões entre os sujeitos criadores, que o sistema transmídia de TWD se desenvolveu. Segundo o pensamento de Morin e de Cecilia Salles, repetir a fórmula não é garantia de que novos sistemas sofisticados e com inovações estéticas vão acontecer novamente. A ciência e o processo artístico não são projetos lineares e causais, como desde o começo desse trabalho estamos afirmando. Porém, um ambiente que permite a efervescência, as interações, “possibilita o encontro de brechas para a manifestação de desvios inovadores” (MORIN apud SALLES, 2017, p.23).

Alfred Hitchcock não escreveu nenhuma linha sobre teoria do cinema, entretanto, “Janela Indiscreta” (1954) e “Um corpo que cai” (1958) são obras em que, ao mesmo tempo em que se narra uma história, também é apresentado como Hitchcock concebe o cinema e a relação entre filme espectador, de acordo

91 com Ismail Xavier em seu curso sobre o cineasta inglês exibido na TV Cultura.20 Nessa investigação, não procuramos entender como Kirkman concebe uma teoria de cinema, mas vamos partir do pressuposto de que é possível enxergar novos procedimentos de montagem nas experiências transmídia propostas pelo sistema TWD, assim como Ismail enxerga no cinema de Hitchcock essa teoria e Kulechov enxergou novos procedimentos de montagem no cinema norte-americano das primeiras décadas do século XX.

The Walking Dead pode parecer, sob olhar mais rasteiro, mais uma narrativa que revisita o gênero terror e a mitologia do zumbi, sem grandes inovações ou revoluções estéticas. As limitações impostas pela lógica da televisão industrial são evidentes, e ao longo dos anos, cada um dos paratextos foi perdendo a força de inovação do começo da série. Atores que não renovaram o contrato com a AMC resultaram na morte de personagens importantes que foram eliminados da narrativa não por escolhas dramatúrgicas, mas por questões de produção.

Esse desgaste aconteceu com muitas séries citadas por Mittel como parte do novo modelo narrativo. A necessidade de cumprir grade, acordos comerciais ou uma maior longevidade fez com que séries como TWD ou mesmo Game of Thrones (2011) e Lost (2004) acabassem perdendo o frescor de inovação de quando surgiram.

Entretanto, cerca de 20 anos de exposição desse modelo narrativo fez com que uma geração de espectadores aprendesse a lidar com esse modelo. Esse espectador adquiriu ferramentas para conseguir compreender e interagir com os diferentes engajamentos que as tramas complexas propõem. Ao assistir a uma nova série, o espectador tem a experiência e o conhecimento prévio que modificam a maneira como ele vai se relacionar com o signo.

Pierce chama esse conhecimento prévio de “experiência colateral”:

Um Signo pode trazer à Mente novas hipóteses, ou um sentimento, uma sensação (...) uma coisa, um evento, uma lei, etc. Mas nunca pode transmitir algo a uma pessoa que não teve a experiência direta ou ao

20 ISMAIL XAVIER. TV Cultura, 2013. Disponível em:

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menos a experiência pessoal original com o mesmo objeto; a experiência colateral (PIERCE, 1908, tradução nossa).21 Ao assistir séries do modelo narrativo complexo, como Lost, e interagir com o paratexto da série de J.J. Abrams, cheio de mistérios e labirintos, o espectador consegue manejar a narrativa transmídia de TWD com mais destreza e facilidade.

A não-linearidade da narrativa, os saltos de um personagem da história em quadrinhos para a televisão, o surgimento de uma trama no videogame que põe em xeque algo visto na série original, ou seja, as complicações que uma narrativa complexa e transmídia só serão compreendidas por um espectador treinado para entender esses novos signos.

Cecilia Salles dialoga com André Parente para explicitar como o espectador contemporâneo lida com a edição não-linear das narrativas:

Esse procedimento defendido pelo escritor (Calvino) e conquistado por sua obra nos faz lembrar de uma afirmação de André Parente (2004) que, de certo modo, relaciona essa discussão de Calvino à memória e ao conceito de rede que move nossas reflexões. Ele diz que a “contemporaneidade se caracteriza cada vez mais pela edição ou a forma como as partes do sistema são montadas e articuladas. Se vivemos a época do homem dividido, do homem sem qualidades, ou sem essência, é porque operamos cada vez mais como um editor ou montador e nossa memória é cada vez mais como uma ilha de edição não - linear” (SALLES, 2006, p.88). Cecilia Salles fala de interações nos processos de criação, em como as obras não são os fins de projetos, mas sim eventos de uma busca incessante dos artistas ao longo do tempo, bem como a forma como os nós da rede interagem uns com os outros:

Estes eventos, por sua vez, não podem ser tomados como etapas, em uma perspectiva linear, mas como nós ou picos da rede, que podem ser retomados a qualquer momento pelo artista (...). Devemos aprender a lidar com a criação na perspectiva temporal onde tudo se dá na continuidade, ao longo do tempo – no universo do inacabamento. Para tal, precisamos estar alertas às suas inserções na história e na cultura, compreender sua relação com o futuro e lidar com a

21 DIGITAL COMPANION TO C. S. PIERCE. Commens, 2020. Disponível em: . Acesso em: 17 de março de 2020.

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impossibilidade de se definir início e fim, entre tantas outras questões (SALLES, 2006, p.37).

Ao analisar o projeto de um artista, as obras são lançadas uma atrás da outra, e por isso é necessário juntá-las para perceber as interações. Em um sistema transmídia, as obras e as interações são lançadas e podem ser vistas simultaneamente. Robert Kirkman, em 2015, continuava a escrever a história em quadrinhos, ainda era produtor-executivo de TWD e lançava o spin-off Fear The Walking Dead.

As interações são muitas vezes responsáveis por essa proliferação de novos caminhos: provocam uma espécie de pausa no fluxo da continuidade, um olhar retroativo e avaliações, que geram uma rede de possibilidades de desenvolvimento da obra. Essas possibilidades levam a seleções e ao consequente estabelecimento de critérios (SALLES, 2006, p.26). As interações, os novos caminhos, as ambivalências que o universo criado por Kirkman possibilitam são expostas no sistema transmídia. Esses nós são montados para o espectador nas várias telas e, assim, apreendidos por ele. Pode haver uma tensão entre o que é mostrado na HQ, por exemplo, e o que é mostrado na televisão.

Essa tensão foi bem explorada no primeiro episódio da sétima temporada da série televisiva. Nos quadrinhos, o personagem Glenn é escolhido entre os protagonistas para morrer nas mãos do vilão Negan. O final da sexta temporada na televisão reproduz a mesma situação, em que Negan está escolhendo qual dos personagens principais vai morrer, porém, como em outros episódios da série na televisão, não se copiou o que acontece nos quadrinhos. A audiência ficou seis meses sem saber se Glenn seria mesmo a vítima do bastão de Negan. A desorientação causada pelo choque entre o que ocorre nos quadrinhos e o que ocorre na televisão causou uma grande expectativa, refletida em audiência no primeiro capítulo da sétima temporada.

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Na história em quadrinhos, nós vemos quem Negan escolheu para matar no fim da edição. Na televisão, para manter o mistério de uma temporada para outro, não vemos quem Negan escolheu para matar.

Figura 48. Figura 49.

Fonte: revista “The Walking Dead”, edição Fonte: série “The Walking Dead”, temporada número 100, Kirkman, 2012. 6, episódio 16, Kirkman e Darabont, 2015.

A série televisiva original teve recordes de audiência nos Estados Unidos, os dois episódios atingiram a marca de 17 milhões de espectadores. O espectador, que já acompanhou outros momentos assim na série, e que já tinha a experiência colateral, ou seja, já tinha contato com a HQ, com a websérie e com o videogame, lidou com a desorientação do modelo narrativo proposto por Mittel e conseguiu compreender e se entreter com a montagem entre os fragmentos das diferentes mídias.

Outro exemplo dessa desorientação causada pelo choque entre os fragmentos de mídias diferentes pode ser visto na nona temporada. No capítulo quatro dessa temporada, a personagem Michonne, companheira de Rick, vive um conflito. Ela era uma guerreira letal que usava um sabre para matar tanto os zumbis como os inimigos de sua comunidade. Porém, agora se tornou uma entusiasta de uma nova civilização, e passa o dia lendo livros sobre a construção da democracia nos Estados Unidos, sobre como construir elementos pacíficos da vida em comunidade. Ela tenta passar a imagem de uma pessoa racional e equilibrada durante o dia, entretanto, durante a noite, sai dos muros da comunidade com seu sabre para matar os zumbis que vagueiam no entorno da cidade. No começo do capítulo, vemos uma montagem paralela em que Michonne vive o conflito.

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Figura 50 - A rotina de Michonne: de dia, uma dona de casa, que cuida da filha e do marido Rick. De noite, uma guerreira que usa o seu sabre para matar zumbis nas cercas da comunidade. Figura 50 Figura 51

Fonte: série “The Walking Dead”, temporada 9, episódio 04, Kirkman e Darabont, 2018.

Em um dos diálogos mais instigantes da série, Negan, o vilão que outrora quase acabou com Rick e Alexandria, e que matou Glenn e Abraham, percebe o conflito em Michonne e questiona a máscara equilibrada que a heroína quer aparentar. Michonne quase cede ao impulso de matar seu inimigo, porém se recompõe e mantém o vilão preso em sua cela. Negan, na verdade, provocava Michonne, pois queria ser morto pela guerreira, já que não encontrava mais sentido para a sua vida sem a presença de sua arma, o bastão de baseball batizado de Lucille.

Numa cena bem contrastada e escura, em que a película em 16mm contribui para escolha de fotografia da cena, Negan questiona a vida que Michonne tem em Alexandria, esperando que ela o matasse. Porém, ao fim da cena, e do capítulo, Michonne não cede às provocações de Negan, volta para sua vida com Rick e sua filha. Figura 52 Figura 53

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Figura 54.

Fonte: série “The Walking Dead”, temporada 9, episódio 04, Kirkman e Darabont, 2018.

No jogo de celular No Man´s Land, da Next Games, que lança novos conteúdos interativos a cada episódio novo de TWD, o capítulo quatro da nona temporada é acompanhado da missão “Olhos na Escuridão”. A missão é protagonizada por Michonne, e vemos a personagem em uma situação semelhante à do começo do episódio, quando ela matava zumbis com o seu sabre perto das cercas de Alexandria.

Capa da missão de Michonne no jogo de celular “No Man´s Land”. Enquanto o episódio de TWD é exibido na televisão, o espectador pode jogar simultaneamente, em uma segunda tela, o jogo. O espectador joga com a personagem Michonne, que é a protagonista das cenas do episódio.

Figura 55 Figura 56

Fonte: jogo “The Walking Dead: No Man´s Land”.

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Por um lado, há uma continuidade entre o que acontece na televisão e o que acontece no jogo. Quando combinamos as imagens da televisão com as imagens do jogo, a ações de Michonne atravessam os limites da tela de TV e se complementam na tela do celular.

O cenário com as árvores, os muros de Alexandria, os latões de lixo que vemos no episódio da televisão são elementos que também estão no cenário do jogo, e quando vemos as duas imagens das duas mídias, a ação de Michonne atravessa a tela da televisão e continua no jogo. A descontinuidade, a interrupção, as separações entre as imagens são apagadas pelo princípio da montagem.

Figura 57 Figura 58

Fontes: série “The Walking Dead”, temporada 9, episódio 04, Kirkman e Darabont, 2018 e jogo “The Walking Dead: No Man´s Land”.

Por outro lado, não sabemos em que momento o espectador irá jogar No Man´s Land. Se o espectador jogar depois do fim do episódio, quando o conflito de Michonne parece resolvido, a combinação de imagens pode ser outra.

Ao final do capítulo da televisão, Michonne volta a se relacionar com a filha de Rick, e, após a conversa com Negan, parece ter contido seu instinto de matadora. Quando combinamos a imagem dela com a do jogo de celular, as imagens em que ela volta a matar os zumbis à noite, pode dar outra interpretação para o conflito do personagem. Figura 59 Figura 60

Fontes: série “The Walking Dead”, temporada 9, episódio 04, Kirkman e Darabont, 2018 e jogo “The Walking Dead: No Man´s Land”.

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Nesse exemplo, ao invés de continuidade, o sentido que a montagem transmídia, intermídia nos oferece é de ambiguidade, pois não é possível saber se Michonne realmente superou sua fúria e sua pulsão pela barbárie. A personagem ganha complexidade ao demonstrar ambivalência e contradição, e essas características são construídas em uma operação de montagem.

Por fim, voltamos ao primeiro capítulo da quarta temporada de Fear The Walking Dead, já citado aqui nesse segmento da pesquisa. O episódio é realmente digno de mais análises, pois consegue tanto conceber a continuidade do universo da série que vem da história em quadrinhos e da série original, como apresentar desorientações, ambiguidades e ambivalências em um procedimento de uma montagem complexa.

Além da presença dos personagens Rick, Carol, Morgan e Jesus, da história em quadrinhos e da série original, o episódio apresenta imagens que têm semelhança estética com a HQ e com a série de 2003:

Figura 61 - As imagens em preto e branco da história em quadrinhos são emuladas na série de televisão, utilizando uma fotografia praticamente dessaturada e com o grão da película 16mm aparente, como na série “The Walking Dead”. Figura 61 Figura 62

Fontes: revista “The Walking Dead” edição número 13, volume 3, 2005 e série “Fear The Walking Dead”, temporada 4, episódio 1, 2018.

Ao mesmo tempo em que a fotografia contribui para a continuidade entre a imagem da mídia história em quadrinhos e da mídia televisão, apagando os

99 limites das telas e dando a impressão de que as duas imagens são parte da mesma unidade narrativa, direção e montagem nos confundem, desorientam- nos e, assim como as séries do modelo narrativo de Mittel, faz-nos ter uma interação mais engajada com a narrativa.

Quando os novos aliados de Morgan se aproximam de um ser humano no meio da estrada, em um primeiro momento pensamos que é um zumbi que atrapalha o caminho deles. Porém, ao se aproximar da figura, ao invés de um zumbi quem está no meio do caminho é Alicia Clark, uma das protagonistas do spin-off. Figura 63 Figura 64

Figura 65 Figura 66.

Figura 67 Figura 68.

Fonte: série “Fear The Walking Dead”, temporada 4, episódio 1, 2018.

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Na sequência acima, direção e montagem utilizam-se dos mesmos recursos de linguagem que indicam ao espectador que o ser no meio da estrada é um zumbi. A trilha de suspense, a decupagem fragmentada e montagem dilatada fazem o espectador, que já teve a experiência colateral, imaginar que verá mais um morto-vivo. Porém, ao término das imagens, quem aparece por trás dos cabelos é Alicia, que em lugar de se juntar ao grupo de Morgan, ameaça a equipe com uma faca. O montador joga com os elementos estéticos previamente conhecido pelo espectador para causar a desorientação.

A pesquisa realizada até aqui não quer deixar esquemas ou técnicas fechadas para que produtores e montadores façam novas séries com preceitos de uma montagem transmídia. Como Cecilia Salles aponta, um processo de criação, mesmo em uma estrutura industrial como a televisão, não é linear, tem a influência do acaso e carrega as subjetividades de inúmeros criadores, entre eles o montador. O que a pesquisa procurou demonstrar é que com o novo modelo narrativo sugerido por Mittel, observado na televisão norte-americana desde o começo dos anos 2000, as séries de ficção ganharam complexidade, ao superar o modelo episódico das antigas séries e ao espalhar o seu universo nos paratextos, num processo de convergência digital que Henry Jenkins chama de transmedia storytelling. Essas séries produziram novas imagens que, combinadas em diversas telas, produziram sentidos, sejam eles seguindo o modelo ilusório do cinema clássico, ou produzindo desorientação, ambiguidade e contradição, como a versão de oposição apresentada por Noel Burch. Os roteiristas e montadores das próximas séries, dos próximos sistemas transmídia, devem ter a consciência de que é possível realizar esses novos procedimentos de montagem, que combinar as diversas telas, as diversas mídias, pode criar sentidos, e essa nova possibilidade da teoria da montagem pode ser usada como linguagem do universo narrativo. Com as horas de maratonas de séries que o espectador da televisão já assistiu e interagiu, essa linguagem terá grande probabilidade de ter sucesso e ser compreendida pela audiência. Esse é o legado que esta pesquisa procura deixar.

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5. Considerações finais

A dissertação, “Montagem audiovisual transmidiática: é possível pensar em relações entre imagens e sons de diferentes mídias?”, procurou responder algumas perguntas no que tange à criação de novos sentidos ao deslocar o olhar para o sistema transmídia e ao investigar as interações entre os conteúdos das várias plataformas de The Walking Dead. Além disso, também procurou analisar de que maneira tudo isso aconteceu.

Com os vários exemplos colocados ao longo da dissertação, foi possível verificar diversos novos sentidos que são consequência dessas interações atuais – continuidade ou raccord entre as imagens das várias telas, raccord de efeito retardado (BURCH), desorientações, ambiguidades e, principalmente, maior complexidade para o universo ficcional de TWD. Os personagens e as tramas ganham mais elementos para que o espectador construa relações mais sofisticadas com a narrativa.

A pesquisa é voltada para o entendimento sobre como esses sentidos foram criados e como esses novos procedimentos dialogam com a teoria de montagem. Dessa forma, o intuito da reflexão é deixar pistas para que outros pesquisadores possam analisar objetos transmídia tão instigantes como TDW, e para que os novos autores, e entre eles estão inclusos os montadores, possam construir narrativas tão elaboradas como a trama zumbi.

Assim, o primeiro capítulo da dissertação procurou construir um diálogo entre o sistema transmídia de TWD e as teorias de montagem. Houve uma demonstração de como as manifestações da série seguem as convenções da Versão-Padrão (BORDWELL) e os montadores buscam realizar cortes que apagam as interrupções no espaço-tempo, tanto dentro de cada episódio da série como entre as imagens das manifestações transmídia, seguindo o modelo ilusório do cinema clássico, discutido por Ismail Xavier. Por outro viés, a montagem transmídia também pode elaborar estruturas complexas, como defendido pelo teórico Noel Burch. Ainda, ambiguidades e desorientações podem ser encontradas quando os conteúdos audiovisuais são justapostos, com a intenção de construir estruturas mais complexas como é afirmado pelo

102 montador Todd Desrosier, responsável pela edição de episódios da série The Walking Dead e do spin-off Fear The walking dead. Portanto, há uma intenção clara por parte dos autores em pensar uma montagem transmídia.

Ainda no primeiro capítulo, mostramos que esse novo lugar da montagem na ficção televisiva é observado em outras séries que, segundo o teórico Jason Mittel, são parte de um novo modelo de storytelling denominado de complexidade narrativa. Houve uma mudança de linguagem na televisão norte- americana durante os primeiros anos do novo milênio, e TWD acompanha esse modelo mais sofisticado de construir narrativas. As novelas e sitcoms são substituídas por tramas que equilibram o formato episódico com a narrativa serializada, a câmera ganha a expressividade que marca o cinema clássico e a montagem cria o efeito ilusório de identificar o espectador com os personagens da representação (XAVIER).

No segundo capítulo, foi discutido que o novo modelo de ficção televisiva é acompanhado por uma mudança tecnológica que transforma a relação entre o espectador e a mídia. Henry Jenkins chama essa mudança de convergência das mídias e argumenta em seu livro que a narrativa transmídia da década de 2000 é uma resposta estética a essa transformação. Com os conceitos de Jenkins, podemos entender as estratégias transmídia de TWD e perceber como a relação do espectador com a trama da série zumbi é diferente daquela que tinha com filmes, novelas e sitcoms veiculados antes da década de 2000. Consequentemente, a relação da montagem com o espectador muda radicalmente, pois ao invés de emitir as informações sobre a narrativa por apenas uma plataforma, agora a montagem e o montador têm que lidar com a dispersão da informação em múltiplas plataformas. A convergência das mídias faz com que a montagem não aconteça apenas em um determinado espaço- tempo fechado, com um sistema de informações controladas, mas é dispersa em diferentes momentos e diferentes experiências, como no episódio Bandersnatcher da série Black Mirror, em que o espectador pode construir a história que ele quer a partir das opções encontradas no controle remoto. O espectador de TWD também pode compor a narrativa que ele quer, escolhendo por qual plataforma ele vai assistir ao conteúdo. Logo, a sofisticação da narrativa

103 e da montagem, com a transmedia storytelling, é acompanhada por uma evolução na capacidade do espectador em compreender e interagir com essas narrativas.

Ainda no capítulo dois, a dissertação discute como Jason Mittel atualiza os conceitos de Jenkins. O autor de Complex TV fala que a narrativa transmídia é característica do modelo complexo dessa nova televisão dos anos 2000. Além disso, mostra que alguns conceitos de Jenkins eram idealizados, e as experiências transmídia das séries, como a experiência de TWD, trouxeram outras estratégias para a distribuição do conteúdo multiplataforma. Mittel aponta duas possibilidades de estratégia narrativa, What Is e What If, para os conteúdos transmídia e indica que as séries propuseram construções de tramas com os dois modelos. A entrevista de Todd Desrosier explicita que em Fear The Walking Dead, ele e o showrunner buscaram criar variações de narrativa e de linguagem em relação à história em quadrinhos e à “nave-mãe” The Walking Dead. O resultado é uma série com características e estéticas próprias, mas que ainda faz parte do universo ficcional zumbi. O jogo para celular e tablet No Man's Land, também cria variações para a série, mostrando os personagens assumindo papéis diferentes daqueles desenvolvidos no programa original. Assim, a narrativa transmídia ganha complexidade com essas alternações.

Já o terceiro capítulo da dissertação aproxima o sistema transmídia de TWD do pensamento da complexidade. Mittel denomina o novo modelo narrativo como complexo, e Edgar Morin enxerga que as interações entre o ser humano com a natureza, com a cultura e com a linguagem demonstram que o homem deve ser analisado dentro do paradigma da complexidade. Há diferenças entre o que Mittel e Morin denominam como complexo, mas há semelhanças importantes. As estratégias de construir alternativas para a “nave-mãe” de TWD, levantadas pelo montador Todd Desrosier, constroem ambivalências, trocas de papéis, contradições e confusões para o espectador. Mittel diz que esses elementos são parte de um novo modelo narrativo, enquanto Morin, em seu texto “Os desafios da complexidade”, defende que esses valores fazem parte da concepção sobre cultura e conhecimento humano.

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Inclusive, Morin fez parte da montagem de um filme, “Crônicas de um verão”, e experimentou os múltiplos caminhos que um longa ou um episódio de uma série podem tomar na ilha da edição. Uma característica fascinante da narrativa transmídia é a possibilidade de ver, ao mesmo tempo, esses múltiplos caminhos de um universo ficcional. A história em quadrinhos é uma versão da trama zumbi, a primeira série de TV é outra versão, o spin-off segue outro caminho, os jogos de videogame trocam as valências dos personagens. Kirkman, criador da história em quadrinhos, pode ver as múltiplas perspectivas do seu universo construídas por diferentes equipes para plataformas diversas. O conceito de uma obra artística inacabada e em constante transformação é usado por Cecilia Salles para analisar o processo de criação. Salles defende o objeto artístico como algo imprevisível, instável e como parte dos inúmeros caminhos do projeto de cada artista. Com a narrativa transmídia, Kirkman tem a possibilidade de testar hipóteses e caminhos para sua visão, e englobar a visão de outros colaboradores para a confecção do universo zumbi.

O audiovisual é um processo de criação coletivo, e a participação de outros roteiristas, dos showrunners, dos diretores, montadores e fotógrafos deixou o projeto de Kirkman ainda mais sofisticados. O uso da película 16 mm para emular o contraste e o uso do preto e branco na história em quadrinhos foi uma das grandes contribuições da fotografia e do fotógrafo para a série The Walking Dead, elemento que auxiliou a montagem para que o espectador pudesse perceber um sentido de continuidade entre a HQ e a série. Diretores e montadores estudaram a história em quadrinhos para também emular o ritmo e o tom de terror buscados por Robert Kirkman e Charles Adlard. Em um processo de criação em grupo, como aponta Salles, as interações entre os artistas produziram novas visões, novas alternativas, desvios instigantes e arrojados do projeto inicial de Kirkman.

Por fim, ainda no capítulo três, há uma reflexão sobre os caminhos para uma atualização sobre a teoria da montagem. Não há aqui uma pretensão de reescrever o que importantes autores já falaram sobre os princípios da edição, mas apresentar evidências que, como o novo modelo narrativo – que surgiu nos anos 2000 – novos procedimentos de montagem foram criados e novos sentidos

105 puderam ser exibidos. Além disso, como destacaram Jenkins e Mittel, há a presença de um novo espectador, muito mais participativo e com capacidade cognitiva muito maior. Claro que não é possível pressupor que todos os espectadores vão ter a mesma experiência colateral conceituada por Pierce. Porém, a televisão, a TV a cabo e os serviços de stream já contam com audiências segmentadas, e assim é possível ter a difusão de narrativas mais complexas para públicos que participam e interagem com os conteúdos. O montador e quem pensa a montagem podem contar com esse espectador para construir conteúdos mais sofisticados e surpresas mais elaboradas.

No momento em que escrevo as últimas palavras da dissertação, The Walking Dead continua vivo. Os moribundos zumbis estão presentes na série de televisão, no spin-off, videogame e aplicativos, porém sem a mesma sofisticação narrativa que marcou o começo da série. Depois de 17 anos da primeira edição da revista em quadrinhos, os autores não são mais os mesmos e buscam novos horizontes para o tema, com a previsão de lançamento de uma trilogia de filmes e de uma nova série. Como fã, espero que haja uma renovação, e que novas experimentações audiovisuais e de montagem aconteçam novamente. Porém, se isso não acontecer, por um esgotamento natural do tema, as experiências que os autores buscaram realizar ao longo dos últimos anos já servem de norte para a elaboração de novas narrativas transmídia.

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6. Anexo 1: Entrevista com o montador Todd Desrosier, de The Walking Dead e Fear The Walking Dead

Todd Desrosiers é um importante montador de séries norte-americanas, e já participou de inúmeros exemplos de narrativas do modelo complexo descritas por Jason Mittel. Ainda, além de já ter montado episódios da série “nave-mãe” The Walking Dead e Fear The Walking Dead, Desrosiers montou episódios de Californication (2009), The Following (2013), The Umbrella Academy (2019) e Talles from the Loop (2020). Na entrevista a seguir, ele nos conta sobre o processo de criação das séries zumbis sob o ponto de vista da edição. A entrevista está apresentada integralmente.

Samir: How did you join the Walking Dead work team? Had you already watched the The Walking Dead or read the graphic novel before joining the team? Desrosiers: I was finishing up the first season on The Affair when I got a call from the Post Producer on The Walking Dead. (I’m not certain how they got my name as I don’t have an Agent, but when it gets right down to it, Hollywood is a small town and word gets around about ones talent and attitude. So it’s always best to be and do one’s best when working on any show). It seems one of their main editors had jumped away before the season ended to work on a feature film and they needed someone to fill in for one episode. I ended up meeting with the Exec Producer/Showrunner Scott Gimple and not long after that meeting I was informed that they wanted me to come aboard for episode 515 “Try”. I had watched the show sporadically but had never read the graphic novel. Between a heavy workload and family it’s never easy to keep up with all the various television series that are on the air at any one time. So I had fallen a bit behind, but binged watched the episodes I hadn’t seen before I met with Scott Gimple.

Samir: “The Fear The Walking Dead” pilot was released in August 2015 and in March 2015 the episode “Try” of “The Walking Dead”, in which you have worked, was shown. Was it on purpose that you first edit an episode of TWD and then

107 edited the spin-off? What kind of guidance did you receive to edit the episode of TWD and the pilot of Fear The Walking Dead? Desrosiers No, it wan’t on purpose. In fact in the beginning both of those two shows were being developed independently of each other (except at the top with AMC). It was more about a matter of location serendipity. Both post-production offices were in the same building, I was going down the elevator to get some coffee when I bumped into the director of the Fear The Walking Dead Pilot episode, whom I had worked with before. He asked if I wanted my name thrown into the hat of potential editors. I said of course. It was another few weeks before I had a meeting with the Showrunner of the first 3 seasons, . We hit it off well and the rest is history. As far as guidance for TWD, I did one episode for season 5, so I used all the previous episodes and input from some fo the other editors, and of course the director of the episode (who was also the show’s Director of Photography) and the Writer/Exec Producer and the Showrunner for guidance. Fear, was more about carving out a new experience separate from the “Mothership” and finding the right rhythms and way to tell the story with the Showrunner/Writer and Director.

Samir: What was the relationship with the other members of the crew? You replied in your email that you did not keep in touch with Robert Kirkman. But whose directors and script team members have worked with you during the process?

Desrosiers Editing usually doesn’t have much of a relationship with any of the actors nor production crew, with the exception of the DP and 1AD on occasion. So, really my relationships always are with the directors, writers and exec. producers / showrunners on every episode of television I’ve ever worked on. On both TWD and FTWD all of that held true… but with both I never had any feedback directly from Mr. Kirkman nor had I ever met him in person. It’s rare if an editor on either series does if I’m not mistaken.

Samir: I read in an interview that TWD is edited on the AVID platform, which has a number of tools for editing the project with a team. How was the project

108 wokrflow? Did you work and talk with the other editors of the tv series? Did you use bins and timelines from other editors to build your timeline?

Desrosiers: The project workflow was very similar to most other projects, with the exception that TWD is one of the only shows still shooting on film (16mm) so that does change how the footage gets to us in post. But besides that, everything was very ordinary. Dailies would arrive in post, our assistants would ingest and organize the material into bins for each scene and edit each scene into it’s own sequence. Once a large enough amount of scenes have been rough cut we’d begin to put them into a larger timeline. And once (and most times simultaneously) all of that was done and touched up we’d begin to work on the sound effects and music (of which there is a vast and ever growing library of walker sfx and temp music from previous episodes from the composer). We would mock up temp vfx and those would be enhanced incrementally through the process. I didn’t work directly with any other editor but we would talk over lunch about things. Sometimes I would ask for advice and other times we’d just discuss how things have been done in the past or what was happening in their rooms on the various episodes they were working on. I never had to use any other bins or timelines of any other editors, but that was only because of the episode I was working on didn’t really demand it. If there were flashbacks, etc. then of course I would need to incorporate the others work.

Samir: The first main hypothesis of my work is that there are elements of the montage language of The Walking Dead series that are present in Fear The Walking Dead to ensure a unity between the two series. When you were editing Fear The Walking Dead, did you take language elements from the original series to edit the spin off? If yes, what elements did you try to rebuild?

Desrosiers: I can only speak to the first 3 seasons of FTWD (and really only the pilot and season 3 as those were the ones I worked on) - there have been many changes to FTWD after that of which I have no awareness. But as far as I was aware, they actually were striving for something very very different from the “mothership” in terms of look (shot on HD not film) tone and story. They didn’t want to be repeating themselves. Of course there is the commonality of the genre

109 and story themes (Walkers gotta be Walkers after all) that the two series share but it was a very different creative environment than working on TWD.

Samir: Other manifestations of the series, such as the webserie and video games and online games also keeps a consistency of language. Is there an approach of the series' editors with the webserie and online games creators? Desrosiers: Unfortunately I can’t help you on this one, Samir, I have no input or knowledge of the web-series or video game units of the AMC/Walking Dead universe.

Samir: The second main hypothesis of my work is that while there are elements of connection between the two series, there are also elements of disorientation, so that the viewer does not feel that the episode is predictable. If the tv series copy the plot of the comic, it will not bring anything new to the tv viewer. In the first episode of Fear The Walking Dead there is a good example of this kind of disorientation. The character Madison approaches the school principal, and by the camera movement and the music, the viewers think that the school principal has become a walker. However, when he turns to Madison, he has not yet become. Do you also have the concern of creating elements of disorientation to create surprises in the history? Desrosiers: Yes! All of that was done intentionally. Using the elements of the genre in a way that hopefully wasn’t predictable. Plus, showing the disintegration of a struggling family when we the audience know what will happen to them. The narrative of FTWD was centered more on seeing how the family reacts as things fall apart around them. In TWD all of that happened off camera as Rick Grimes was in a coma. He wakes to see everything has changed. But what they wanted to show is what happened to the people at the moment everything began to change and how did they survive the process.

Samir: During the editing process, do you have freedom to create? Can you propose a cut of a scene, a cut of dialogues, the exchange of place of elements

110 of the narrative? How do you show your ideas and cut versions to the showrunner or the producers of TWD?

Desrosiers: Absolutely and always. That’s what we’re hired to do. However, we also have to be working within the universe of the story that has already been created before we’ve arrived onto the production. More so if you’re coming in late in the game as I was in TWD. It was season 5. Late in the season. It’s the biggest show on TV at that moment in time. The phrase “if it’s not broken, don’t fix it” was foremost in my mind. They already had a very clear identity, story, characters and a film-grammar that they were using. It was more a situation there of adapting to that environment and utilizing my own unique pov to enhance what had already come before me. For the FTWD pilot, it was a much different story. Yes, I was honoring all the work that had been done by Dave Erickson in writing the pilot and by the director and all of the talented actors who had been rehearsing and working up til the point that the dailies ended up in front of me. But I let my instincts guide me through my editors cut and then I set to work with the director and writers and producers to shape what would eventually become the pilot. For the FTWD season 3, they had further shaped what they wanted the show to look and feel like, so it was more about jumping back into that world and adapting and enhancing where I saw it.

Samir: How long did it take you to edit an episode? How many versions of the cut did you make to reach the final cut?

Desrosiers: The length of time needed is different for each scenario and show. Different for pilot vs. series. Pilots are usually bigger have more shooting days and you usually have more time to work through the process than on an up and running series. But in general 8-10 days of shooting. 4 days to finish editors cut. 4 days to work with the director. 5-7 days to work with the exec producer and then depending if the Studio and Network are independent entities or in AMC’s case they are the same you will have more days for each to work on the notes given by each. So about a month and 1/2 to two months for a series from beginning to end and more time for a pilot. Usually where the time expands is when you get into the Studio / Network realm and going through the process of

111 refining or changing the episode according to their notes. After that there’s usually audience testing and further changes from those that consumes a few weeks or more.

Samir: The two series are still in the air and are still in the process of creation. You have even came back to Fear TWD to edit the third season. Have there been changes in the editing language of the first season to the third season? Has the public have any influence on these changes?

Desrosiers: I think the pilot to the 3rd season did have many changes, but most of those were usually concurrent with how much the actual story had changed. Where once there was a teeming city and a family on the edge of financial distress and a difficult emotional journey, fighting each other and with their son the drug addict, now there was a family fighting together for survival amidst a collapsing world. The 3rd season found them at an encampment where people had created a minor society for protection and they had to navigate all those political challenges as well. The pilot was this slow winding of tension since we the audience knew what was coming but the family / society didn’t. So there was far more tension than horror. Whereas the 3rd season was heavier with the horror/action elements and fully utilizing all the genre elements therein. Well, I’m not sure if the public had a direct influence. Maybe indirect, as always through ratings and social media feedback. But the FTWD storytellers never really wanted to copy TWD. And by season 3 the feedback was really positive. In fact many were writing how at that point they enjoyed FTWD more than TWD itself. Of course many changes happened after that. But that was all after my tenure on the show.

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