UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

VERDADE TROPICAL: TROPICÁLIA MOTE CONTÍNUO, BRASIL MOTO-CONTÍNUO

Aline Fernandes Menezes

2017 VERDADE TROPICAL: TROPICÁLIA MOTE CONTÍNUO, BRASIL MOTO-CONTÍNUO

Aline Fernandes Menezes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Nogueira Alves

Rio de Janeiro Agosto de 2017

VERDADE TROPICAL: TROPICÁLIA MOTE CONTÍNUO, BRASIL MOTO-CONTÍNUO

Aline Fernandes Menezes Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

Examinada por:

______Prof. Dr. Luis Alberto Nogueira Alves – PPGCL, UFRJ (Orientador)

______Prof.ª Dr.ª Priscila Saemi Matsunaga – PPGCL, UFRJ

______Prof. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus – PPGLEN, UFRJ

______Prof. Dr. João Roberto Maia da Cruz – FIOCRUZ (Suplente)

______Prof.ª Dr.ª Danielle dos Santos Corpas – PPGCL, UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro Agosto de 2017 DEDICATÓRIA

Para Diogo, pelo mote contínuo.

AGRADECIMENTOS

Aos professores, que me inspiraram e agora compartilham comigo da dura tarefa de crer; À minha mãe, que me fez e me ajuda a continuar me fazendo, pelo imponderável; Aos amigos, incluindo minha irmã e meu pai, que seguem de mãos dadas; Aos alunos que salvam e renovam esperanças; Ao Colégio Pedro II, divisor de águas; Ao Filipe, às presenças e às faltas que nos movem; Ao Luis, meu orientador, por me ensinar humildade e empatia sem nem querer; Ao Dennis, que é amigo sem pedir nada em troca, por me fazer saber com quem contar; Ao Diogo, que parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz, por enfrentar a fera.

RESUMO

VERDADE TROPICAL: TROPICÁLIA MOTE CONTÍNUO, BRASIL MOTO-CONTÍNUO

Aline Fernandes Menezes Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

Esta dissertação discorre sobre o livro Verdade tropical, de , publicado em 1997. Trinta anos depois da eclosão do movimento, o cantor vinculava seu gesto ao desejo de contar a “história do tropicalismo”. Ultrapassando as pretensões confessas, o livro também funciona como uma autobiografia do autor e crônica de uma geração. Neste trabalho, discutiremos as peculiaridades formais da obra, cuja prosa híbrida conjuga ensaísmo e narração. Além disso, também traçaremos reflexões sobre as possibilidades de intervenção trazidas pela narrativa autobiográfica e pelo relato de memória, identificando a forma como o tropicalismo e o debate cultural da década de 1960 como um todo foram rememorados por Caetano no final dos anos 1990. Constituirão parte primordial do arcabouço teórico deste trabalho os estudos do crítico Roberto Schwarz sobre tropicalismo e Caetano Veloso, sobretudo seu ensaio “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”, publicado em 2012. Buscando expandir os limites da reflexão, a dissertação, por fim, tentará relacionar a continuidade dos debates sobre a década de 60 – e sobre o tropicalismo – à não resolução de questões que continuam ditando os teimosos destinos do país.

Palavras-chave: Tropicalismo; Caetano Veloso; Verdade tropical; Música popular brasileira; Canção brasileira.

Rio de Janeiro Agosto de 2017 ABSTRACT

VERDADE TROPICAL: TROPICALISM, A PERPETUAL TRUTH, BRAZIL, A PERPETUAL MOTION

Aline Fernandes Menezes Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

This dissertation analyzes the book Verdade tropical, written by Caetano Veloso and published in 1997. Thirty years after the start of the movement, the singer connected his writing to the desire of telling the "history of tropicalism". Even surpassing said pretensions, the book also functions as the author's autobiography and the chronicle of a whole generation. We'll discuss the specific formal traits of Veloso's work, in which hybrid prose essayism and fiction are combined. Furthermore, we'll meditate on the intervention possibilities brought by his autobiographical narrative and the story in his memoir, pinpointing the way in which tropicalism and the 60's cultural debate were remembered and rewritten by him in the late 90's. The works of the literary critic Roberto Schwarz will be fundamental to the theoretical framework of this study, especially the essay "Verdade tropical: um percurso de nosso tempo", published in 2012. Searching to expand the boundaries of the reflexion, this dissertation tries to approach the continuity of the debates around the 60's - and about tropicalism - to the non-resolution of the questions that keep dictating the stubborn destiny of the country.

Keywords: Tropicalism; Caetano Veloso; Verdade tropical; Brazilian popular music; Brazilian song.

Rio de Janeiro Agosto de 2017 EPÍGRAFE

Pelo óbvio Pelo incesto Vamos comer Caetano Pela frente Pelo verso Vamos comê-lo cru

Vamos comer Caetano Vamos começá-lo Vamos comer Caetano Vamos revelarmo-nus. Adriana Calcanhoto – “Vamos comer Caetano” SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

1. “EU NASCI PRA SER O SUPERBACANA” ...... 18 1.1. O lado doutor: a prosa ensaística ...... 23 1.2. O lado pop star: a prosa narrativa ...... 33

2. “ONDE QUERES O SIM E O NÃO, TALVEZ” ...... 39 2.1. “Disforia da cristalização”: a desvinculação das esquerdas ...... 40 2.2. Ruptura e apego: um “novo” projeto Brasil ...... 58

3. “E HOJE DANÇA NO FRENETIC DANCING DAYS”...... 71 3.1. Transe ...... 72 3.2. Divino, maravilhoso ...... 80 3.3. Panis et circensis ...... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 100

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 108

INTRODUÇÃO

Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína. (Caetano Veloso, “Fora da ordem”1)

No ano de 2017, o Brasil comemora os cinquenta anos de importantes acontecimentos de sua vida artística recente. Em 1967, mesmo sob os cerceamentos impostos por uma ditadura civil-militar de direita, a produção cultural de esquerda florescia, mas já captava – alguns mais precocemente – a mudança na direção dos ventos. Naquele ano, vinham a público obras como Terra em transe, filme dirigido por Glauber Rocha; O rei da vela, peça escrita por Oswald de Andrade e montada em 67 por Zé Celso Martinez; e Tropicália, penetrável de Hélio Oiticica. Era também o ano do susto tropicalista: ainda que tenha surgido como movimento organizado apenas em 1968, foi no ano anterior que Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram-se no III Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record, dando início efetivamente às intervenções tropicalistas no quadro da canção popular. Essas intervenções aconteciam em um momento no qual a arte havia se convertido em esfera privilegiada para a discussão dos rumos políticos do país. Mirando um horizonte revolucionário, muitos artistas de esquerda acreditavam que ela deveria assumir um papel politicamente responsável, contribuindo para a conscientização das massas. Essa crença mobilizava, no início da década de 60, projetos como os do Centro Popular de Cultura, desmontado pelo golpe de 1964. A busca pela comunicação com o povo, porém, permaneceria em outras manifestações, como nas canções de protesto, que chegavam ao interlocutor desejado sobretudo por meio das engrenagens da incipiente (mas promissora) mídia televisiva brasileira, em expressiva expansão naquela década. Representando uma “segunda geração” da bossa nova, a música de protesto – além do engajamento explicitado sobretudo nas letras de suas canções – também defendia o apego às raízes brasileiras, postura que, naquele momento, além de consequências estéticas, apresentava consequência políticas. Àquela altura, o anti-imperialismo era uma das principais bandeiras da esquerda brasileira, atitude que se fazia presente também no campo artístico. Nesse contexto, o engajamento político ostensivo e a recusa aos elementos estrangeiros sustentados pelos artistas das canções de protesto colocavam-nos em posição diametralmente

1 VELOSO, 2003a, p. 186. 11 oposta à da Jovem Guarda e de seu “iê-iê-iê”, por eles considerado alienado e entreguista, mas que alcançava sucesso popular. Abrindo terceiras vias, o tropicalismo irrompe no polarizado cenário da música popular brasileira sob a marca da ambiguidade. A canção tropicalista propunha novas formas de se contrapor ao poder: ao deslocar o teor crítico para os processos construtivos da canção e para o mise-en-scène, dava início a um novo tipo de engajamento – cuja eficácia nunca foi uma unanimidade –, concentrado, sobretudo, na micropolítica do corpo e do sexo. Os olhares desconfiados recebidos pelo tropicalismo – principalmente por parte dos artistas engajados – também eram motivados por sua postura descomplicada (em alguns momentos, até mesmo eufórica) com relação ao mercado e a incorporação que fazia de símbolos da cultura estrangeira, processo amparado no conceito oswaldiano de antropofagia cultural. A explosão tropicalista que acontecia no final da década de 60 marcava o fim de um período no qual, como aponta Roberto Schwarz, o Brasil estava “irreconhecivelmente inteligente”. Como resultado de um processo de democratização pelo qual o país passava e que foi sumariamente sustado pela eclosão, em 1964, da contrarrevolução, formou-se uma geração de jovens que compartilhavam do desejo de intervir efetivamente no futuro do país. Inspirados pelos ventos da Revolução Cubana, de 1959, eles mobilizavam, no início da década seguinte, discussões sobre medidas que, se colocadas em prática, teriam impactos profundos em sua estrutura desigual, como a reforma agrária. A crença em um Brasil mais igualitário, porém, foi dissipada pela chegada dos militares ao poder, mas a percepção do encurtamento dos horizontes – ou, pelo menos, da dimensão devastadora desse encurtamento – ainda demoraria algum tempo para ser alcançada, contribuindo, para isso, a instauração do AI-5, o “golpe dentro do golpe” que, no final de 1968, extirpava qualquer esperança mais teimosa. Captando, no calor do momento, a virada da maré, o tropicalismo já era a transfiguração do estreitamento dos horizontes revolucionários, carregando em si não só os símbolos da modernização conservadora que o regime ditatorial levava a cabo, mas também a descrença em qualquer tipo de saída revolucionária coletiva.

Em 2017, comemoram-se também os vinte anos de publicação da obra Verdade tropical, de Caetano Veloso. Trinta anos depois de iniciada sua intervenção tropicalista na vida artística brasileira, o músico escrevia um livro tendo como principal objetivo “contar e interpretar a aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na

12 segunda metade dos anos 60”2. No final da década de 90, enquanto Caetano rememorava sua aventura, o país já havia atravessado o processo de redemocratização e, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, seguia cumprindo a agenda neoliberal, mantendo-se, afinal, alinhado aos objetivos que, trinta anos antes, haviam levado os militares ao poder. Àquela altura, Caetano Veloso também não era mais o jovem tropicalista que adentrava o mundo artístico escandalizando as audiências, lutando contra opressões e suscitando desconfiança entre seus pares. Já era figura consagrada no show business e empreendia esforços no sentido de internacionalizar a circulação de suas músicas. Mantinha, no entanto, a postura interventora, o gosto pelo atrito e a ambiguidade que já se manifestavam em sua personalidade naquela época, e que continuariam ditando o tom de seu discurso revisionista. Caetano escreve em um momento no qual o tropicalismo por ele idealizado já havia passado pelo crivo da crítica, permitindo-lhe selecionar o que seria endossado ou atacado. Mesmo tendo como principal intento confesso funcionar como uma “história do tropicalismo”, Verdade tropical ultrapassa os limites da reflexão estética ao se configurar também como autobiografia de seu autor e crônica de uma geração. A narrativa focaliza sobretudo os acontecimentos ocorridos nos anos de 1967 e 1968, os mais decisivos para o movimento, mas também se volta, por exemplo, para a infância e a adolescência do cantor em Santo Amaro. Na rememoração de suas primeiras experiências, momento em que a obra assume tons de romance de formação, são privilegiadas aquelas a partir das quais o narrador tirou lições valiosas que seriam posteriormente aproveitadas em sua incursão tropicalista. Além disso, ao atrelar trajetória pessoal aos grandes acontecimentos da época, Verdade tropical recompõe o panorama artístico e político do Brasil da década de 60, conseguindo captar a atmosfera de crenças revolucionárias, ebulição artística, polarização de ideias e revanchismos midiáticos que envolvia o debate de então. Em linhas gerais, ainda que nem sempre linearmente, o livro dá conta de um período que vai da década de 50 à primeira metade da década de 70. Nas frestas do percurso do narrador, é possível acompanhar a trajetória de ascensão e queda (não necessariamente percebida dessa forma por Caetano Veloso) de uma geração que acreditou poder intervir radicalmente nos rumos do país, mas cujas esperanças foram sumariamente interrompidas pelo golpe. Com a publicação de Verdade tropical em 1997, Caetano reivindicava para si a posição de pensador do movimento e ratificava o protagonismo que assumira desde a sua

2 VELOSO, 1997, p. 16. 13 concepção. Conjugando vida pessoal, vida pública e criação artística, o livro de Caetano Veloso aproxima-se de congêneres como Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira, ou O observador no escritório, de Carlos Drummond de Andrade. A originalidade da obra, porém, vincula-se ao fato de ela deslocar suas reflexões para o campo da música popular, o que não deixava de ser uma consequência do redimensionamento pelo qual essa esfera já havia passado no quadro das artes nacionais a partir da década de 60.

Ao eleger Verdade tropical como seu objeto de estudo, esta dissertação objetiva não apenas explorar a natureza híbrida da obra, que conjuga prosa narrativa e ensaística, dando origem a um texto que transita entre os gêneros, mas também refletir sobre a interpretação por ela proposta do tropicalismo e do debate cultural e político da década de 60 como um todo. Quando o livro é publicado por Caetano Veloso em 1997, independentemente dos interesses confessos ou escusos que o mobilizavam, ele se impõe como gesto de intervenção no passado recente. Sendo assim, o modo como conta – e, principalmente, interpreta – trinta anos depois os acontecimentos de uma década decisiva para a vida política brasileira pode refletir o percurso de realinhamento aos interesses do capital pelo qual o país como um todo passava desde a eclosão da contrarrevolução em 1964, hipótese na qual este trabalho se ampara. Dito isso, o primeiro capítulo desta dissertação visa sobretudo a investigar as peculiaridades estruturais de Verdade tropical. Partindo da dualidade pop star / intelectual, traço marcante da personalidade de Caetano evidenciado pela publicação do livro, busquei relacioná-la à sua forma híbrida, que justapõe prosa narrativa e prosa ensaística. No capítulo, essa hibridização é encarada como uma forma de o autor estender os limites de sua intervenção. Em linhas gerais, por meio da prosa ensaística, o autor/narrador poderia resgatar certos debates daquela época, contando com o benefício argumentativo de já saber o rumo que as coisas tomariam nas três décadas seguintes. No entanto, as pretensões ensaísticas de Verdade tropical não ocorrem às custas de um apagamento do “eu”, como é comum ao gênero. Na obra, há um narrador que, amparado em sua memória, revisita acontecimentos recentes, matéria na qual se ampara as interpretações da época realizadas pelo autor/narrador. Dessa forma, o primeiro capítulo também reflete sobre as potencialidades da prosa autobiográfica, que permite ao personagem/autor/narrador transformar-se e reconstituir-se como sujeito, saindo de uma posição de alienação frente à História e situando-se como agente de sua vida e da coletividade.

14 No segundo capítulo desta dissertação, o conceito de “disforia da cristalização” concebido por Luiz Tatit em sua análise das canções de Caetano Veloso serve como base para a reflexão sobre a busca constante por uma posição de originalidade empreendida pelo narrador de Verdade tropical. No livro, a singularidade de suas visões é construída, principalmente, a partir do embate com figuras da época, como o dramaturgo Augusto Boal ou o compositor Geraldo Vandré. Ao revisitar as disputas da década de 60, antigos inimigos são trazidos à tona, e passam a ser explorados à guisa de antagonistas da narrativa. Partindo da análise de alguns desses embates, tento, ainda no segundo capítulo, refletir sobre a argumentação construída implicitamente por Caetano a partir dos acontecimentos narrados, mobilizada para a defesa da tese de que as mudanças – estéticas, mas com reverberações políticas – trazidas pelo tropicalismo representariam algum tipo de gesto libertador das estreitezas da arte participativa de esquerda. Por ser o capítulo desta dissertação que mais se debruça sobre o modo como o tropicalismo é representado em Verdade tropical, também serão discutidas certas distinções existentes entre o movimento tropicalista do final dos anos 60 e aquele que é recontado por Caetano no final da década de 90. No terceiro capítulo, o distanciamento estético que o narrador propõe da arte participativa, desenvolvido no capítulo anterior, desemboca na discussão sobre o distanciamento político que também é colocado em prática pelo movimento tropicalista. Extremamente ambíguo, o tropicalismo inaugurava uma nova forma de engajamento, encarada por muitos, no calor do momento, mais como um desengajamento. No capítulo, a interpretação feita por Caetano do filme Terra em transe, de Glauber Rocha, apontada pelo próprio cantor como decisiva para o tropicalismo, serve como base para as reflexões sobre a mudança no quadro político que a postura tropicalista já denunciava. Tal mudança explicaria, também, um desconcertante final eufórico que a obra assume em sua quarta parte, mesmo após ter rememorado uma injusta prisão do protagonista pela ditadura e a total dissipação da atmosfera de efervescência artística que a instauração do AI-5 havia representado, com suas censuras, perseguições, prisões, exílios e mortes. Com otimismo e senso de oportunidade singular, o narrador consegue ter esperanças no momento em que, ao lado perdedor, só restava constatar as ilusões perdidas. Era o encerramento de um período cujas questões deixadas em aberto ainda continuam ditando os rumos do país. Como o capítulo tenta desenvolver, certas viravoltas empreendidas por Caetano em Verdade tropical fazem dela, afinal, uma obra representativa do percurso empreendido pelo Brasil até então, que interferia nas lentes usadas pelo narrador para enxergar o passado.

15 Por fim, as “Considerações finais” tentam dar conta da minha experiência de leitura e estudo da obra em um momento cujos ecos da década de 60, mais especificamente do golpe civil-militar de 64, fazem-se mais do que nunca presentes, vide a manobra política que tirou ilegitimamente do poder, em 2016, a presidente democraticamente eleita. Assim, procuro esboçar alguns paralelos entre a derrota da esquerda transfigurada pela obra e certos aspectos do cenário político recente, já me desculpando de antemão por qualquer erro em que eu possa incorrer ao lidar com os dados “no calor do momento”. Em 1997, justificando o resgate que seu livro fazia da década de 60, Caetano afirma:

(...) o relato das experiências de um ‘pop star intelectual’ de um país do terceiro mundo pode trazer uma ou outra luz inesperada sobre a aventura dos anos 60, já que esse período – que só é considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios surgidos então, e que ainda os temem justamente por os saberem presentes demais em sua nova latência – continua com sua temática aberta ao pensamento que se queira pôr acima dos costumeiros descarte ou nostalgia.3

Quando lidas vinte anos depois, sob a sombra de um novo golpe de Estado, as palavras de Caetano assumem sinistros tons premonitórios. Ao que tudo indica, os “desafios surgidos então”, aparecem, mais do que nunca, “presentes demais em sua nova latência”. No ano de publicação do livro, a Tropicália ainda era o mote que mobilizava a produção de Caetano, que a enterrou, mas com ela nunca rompeu definitivamente. Lidas hoje, as questões revisitadas pela obra – que mobilizavam o debate da época, mas que permaneceram sem solução – ainda dizem algo sobre os teimosos destinos do país. O Brasil segue, pois, em movimento moto- contínuo. Cumprindo o sábio conselho de apoiar-me nos ombros de gigantes, preciso salientar que esta dissertação não existiria se não fossem todos os caminhos que me foram abertos pelos estudos de Roberto Schwarz sobre Oswald de Andrade, tropicalismo e Verdade tropical. Ensaios como “Cultura e política 1964-1969”4 e, principalmente, “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”5 foram essenciais para a construção das análises esboçadas neste trabalho, como logo perceberá o leitor já familiarizado com os textos mencionados. Busquei, no entanto, ampliar um pouco o raio das reflexões do crítico, tentando incorporar discussões mais específicas sobre a música popular da década de 60 e a própria produção musical de Caetano.

3 VELOSO, 1997, p. 19. 4 SCHWARZ, 1978. 5 SCHWARZ, 2012. 16 No mais, expresso meu sincero desejo de que este trabalho possa contribuir para futuros estudos no âmbito da música popular, do tropicalismo e da obra de Caetano Veloso. Espero, também, que esta dissertação possa somar às discussões sobre a canção brasileira, campo que, embora venha encontrando mais espaço de debate em instituições como a Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ainda é pouco explorado nas faculdades de Letras do país.

17 1. “Eu nasci pra ser o superbacana” Toda essa gente se engana Ou então finge que não vê que Eu nasci pra ser o superbacana Eu nasci pra ser o superbacana (Caetano Veloso, “Superbacana”6)

(...) Desde menino, eu tenho um negócio meio místico, eu era predestinado a salvar o mundo. E... quando a realidade às vezes parece confirmar, isso me angustia, entende? (Caetano Veloso, em entrevista à revista Bondinho7)

No dia 19 de fevereiro de 1998, Caetano Veloso recebeu, pela Universidade Federal da Bahia, o título de doutor honoris causa. Pela primeira vez, a UFBA realizava essa cerimônia fora de sua reitoria: a honraria foi entregue a Caetano no topo de um trio elétrico, em Salvador. Na parte de baixo, cerca de cinco mil pessoas8 acompanhavam o recebimento do título, que garantia ao cantor a entrada num rol de seletos artistas baianos, como o escritor Jorge Amado, o compositor Dorival Caymmi e o cineasta Glauber Rocha – também agraciados pela UFBA em 1980, 1984 e 1994, respectivamente. À multidão presente, Caetano, em tom de brincadeira, afirmava: “Eu agora sou doutor e vocês vão ter de me respeitar!”. Ainda que o discurso de Caetano esboce uma tentativa de não supervalorizar a honraria recebida – ironizando o histórico fascínio que os títulos exercem sobre os brasileiros, a ponto de pautarem significativamente nossas relações sociais –, não se pode dizer que ela era completamente inesperada. Em vários momentos de sua carreira, Caetano reivindicou para si o direito de responder por “questões culturais sérias”9. Nesse sentido, é difícil não enxergar na aceitação crítica que Caetano recebia da intelectualidade, ou de parte dela, uma consagração do “lado doutor” por ele cultivado no decorrer de sua trajetória artística. Paralelamente a isso, o fato de a cerimônia ter sido acompanhada por milhares de pessoas – mais especificamente, foliões – evidencia que a consagração, além de acadêmica, era também popular. A quebra de protocolo foi justificada pelo então reitor da UFBA, Felippe Serpa: “Queremos a inserção da universidade na sociedade. Por isso, optamos por

6 VELOSO, 2003, p. 58. 7 Entrevista ao repórter Hamilton de Almeida, publicada na revista Bondinho, de São Paulo, número de 31 de março a 13 de abril de 1972, sob o título “Quem é Caretano? – O Caretano sou eu”. 8 Todas as informações referentes à ocasião de recebimento do título, inclusive citações, foram retiradas da notícia “’Doutor’ Caetano recebe título sobre trio elétrico”, de autoria de Fabio Schivartche, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em 20 de fevereiro de 1998. 9 VELOSO, 1997, p. 430. 18 homenagear Caetano na rua, junto com o povo que está pulando o carnaval”. Na ocasião, o discurso de Paulo Brandão, propositor da homenagem, foi entremeado por intervenções musicais do homenageado, dando à inusitada cerimônia ares de espetáculo, e fazendo jus à posição que Caetano Veloso já ocupava no show business àquela altura. A improvável justaposição entre reconhecimento acadêmico e consagração popular – tudo isso acontecendo em pleno carnaval da Bahia! – ecoa a conciliação entre “floresta” e “escola” perseguida por Oswald de Andrade em seu Manifesto da poesia pau brasil. Evidencia, também, a dualidade músico popular/intelectual explorada por Caetano desde o início de sua carreira10, e reforçada pela publicação – em 1997, um ano antes de se tornar doutor – de sua autobiografia Verdade tropical. A singularidade dessa posição de “pop star intelectual” sustentada por Caetano Veloso é salientada pelo próprio artista na introdução de seu livro, quando reflete sobre o alcance de sua prosa:

Uma das razões de eu ter hesitado durante tanto tempo em topar escrever este livro foi a desconfiança de que o que eu poderia dizer nele – e o modo como eu poderia dizer – seria afinal demasiado complicado para quem se aproxima de um livro sobre música popular, e por demais próximo da música popular para quem está disposto a ler livros complicados. Mas, mesmo sem superar essa desconfiança – e me perguntando, à medida que ia escrevendo com grande interesse, a quem poderia interessar um livro assim –, decidi não dar desmedida atenção ao temor de parecer pretensioso ou desproporcional (ou quem sabe por demais modesto e preciso), atendo-me à constatação de que os livros simplesmente devem ser escritos para quem gosta de ler livros.11

No trecho, Caetano Veloso vincula a hesitação em escrever seu livro à preocupação com sua recepção, questionando-se “a quem poderia interessar” sua prosa. O receio – talvez egoico, talvez mercadológico, talvez meramente retórico – de não ser lido justifica-se, segundo o autor, pelo fato de Verdade tropical ser um livro de música popular escrito por um músico popular. Vale dizer que, como ressalta Roberto Schwarz, o adjetivo “popular”, nesse contexto, não está em sua acepção antiga, que “nas circunstâncias brasileiras envolve semianalfabetismo, exclusão social e direitos precários”, mas sim em sua acepção moderna, “definida pelo mercado de massas e pela indústria cultural”12. Caetano Veloso faz parte de

10 Na introdução de Verdade tropical, Caetano Veloso diz: “[o livro] é uma retomada da atividade propriamente critico-teórica que iniciei concomitantemente à composição e à interpretação de canções, e que interrompi por causa da intensidade com que a introjetei na música.”. VELOSO, 1997, p. 18. 11 Ibidem, p. 19. 12 SCHWARZ, 2012, p. 54

19 uma geração de músicos populares cuja formação está muito mais próxima à de Vinicius de Moraes (para citar um nome que também transitou entre a cultura erudita e a popular) do que a de Cartola, por exemplo. Trata-se, portanto, de um grupo que frequentou ambientes acadêmicos e tirou deles importantes contribuições tanto para suas escolhas estéticas quanto políticas, sem as quais o desejo de pensar a música brasileira que Caetano nutriu desde cedo seria improvável, e sua efetivação, praticamente impossível. A mesma ressalva pode ser feita quando esse adjetivo é empregado na expressão “música popular” utilizada pelo cantor. Ainda que Verdade tropical traga referências a outros momentos de nossa tradição musical, os esforços crítico-teóricos empreendidos recaem, principalmente, sobre a música popular dos anos 1950/60/70. Ou seja: sobre um momento crucial para sua consagração, e para a posterior conversão em gênero musical (MPB). Sendo assim, nessa expressão, o “popular” não corresponde à música de fato produzida pelo “povo” – categoria sempre em disputa, entendida aqui como composta pelas parcelas mais baixas da sociedade, em situação de exclusão ou de semiexclusão –, mas às canções midiáticas e urbanas, que – em contraposição à “música folclórica” e à “música erudita”13, com nenhuma ou pouquíssima circulação nos meios de comunicação massivos – eram escoadas para as multidões via rádio, TV e discos. Assim como aconteceu com o termo “popular”, que passou por uma ressignificação14, a própria Música Popular Brasileira (agora grafada com maiúsculas) também foi revalorada – conste que com significativa ajuda, direta e indireta, de figuras como Chico Buarque e Caetano Veloso15. Prova disso é a divisão que atualmente ocorre entre MPB e outros gêneros

13 ver SANDRONI, 2004. 14 Sobre isso, Sandroni (2004) afirma que, até os anos 1940, a expressão “música popular” era usada para fazer referência a uma manifestação artística predominantemente rural, que equivaleria ao que hoje chamamos de “música folclórica”. O livro Música popular brasileira, por exemplo, lançado por Oneyda Alvarenga em 1947 dedica à música urbana apenas vinte de suas 374 páginas. Sandroni (2004) observa, também, que “a ‘associação entre ‘popular’, em arte, ao predominantemente rural remonta a nossos primeiros folcloristas, como Celso de Magalhães (e seus artigos sobre “A poesia popular brasileira”) e Sílvio Romero (e seus livros sobre os “Contos e cantos populares do Brasil”)”. Mário de Andrade, escritor do talvez primeiro ensaio dedicado à canção dos discos (“A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos”, de 1937), empregava a expressão “música popular” quando se referia às manifestações rurais, e “popularesco”, para as urbanas. Negando-se a vincular sua música ao adjetivo “popularesco”, cujo tom é nitidamente perjorativo, os primeiro músicos urbanos que, além de criarem, também começaram a pensar criticamente o seu ofício, como Alexandre Gonçalves Pinto e Francisco Guimarães (SANDRONI, 2004) reivindicaram para si o uso do adjetivo “popular”, que passou a ter, quando aplicado à música, um sentido mais próximo ao que utilizamos hoje. 15 Em entrevista dada à Folha de São Paulo em 2004, Chico Buarque sugere a existência de um “esgotamento da canção”: “A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade de sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido”. Em contrapartida, Marcelo Jeneci, músico paulista contemporâneo que reivindica para 20 musicais brasileiros, como “pagode”, “sertanejo”, “forró” ou “axé”, hoje bem mais “populares”, nos vários sentidos do termo, do que a chamada Música Popular Brasileira. Na década de 90, momento de confecção e publicação de Verdade tropical, quando alguém dizia “gostar de MPB”, já estavam implícitos nessa afirmação não apenas um perfil de consumo, mas principalmente um atrelamento do indivíduo a valores ditos “de bom gosto”, que, no Brasil, não podem ser desvinculados da noção de classe. Esse fato, por si só, já serviria para minimizar as preocupações de Caetano: ao que parece, no momento em que Verdade tropical foi publicado, a “música popular” já havia entrado há algum tempo no rol de interesses de quem está “disposto a ler livros complicados”. Como Caetano não explicita os motivos que o levam a classificar seu Verdade tropical como um livro complicado, resta-nos supor que o juízo de valor está vinculado à tentativa de não apenas narrar acontecimentos, mas também analisá-los criticamente, dando origem a um texto híbrido, que combina prosa narrativa e ensaística. De fato, o ensaio não é um gênero de ampla circulação: geralmente, fica restrito a âmbitos mais acadêmicos, frequentados por parcelas mais escolarizadas da sociedade, ou seja, uma minoria. Essa minoria seria justamente aquela “disposta” a ler “livros complicados”. Como escolaridade está diretamente associada a poder aquisitivo no Brasil, infere-se que as demais parcelas (aquelas que, supõe Caetano – de uma forma acima já problematizada –, seriam as principais interessadas em um livro sobre música popular) pertencem justamente a estratos sociais mais populares, ou seja, aos quais é negado, ou consideravelmente dificultado, o acesso a espaços acadêmicos. Logo, é possível perceber que as pressuposições feitas pelo artista a respeito da recepção de seu livro estão atreladas a noções de classe, o que torna curioso o fato de Caetano escolher empregar, nesse contexto, o adjetivo “disposto” (“quem está disposto a ler livros complicados”). A escolha pode, sim, ser apenas recurso retórico, suavizando a arrogância que ficaria mais explicitada caso decidisse escrever “aptos a lerem livros complicados”, por exemplo. Mas poder ser lida, também, como forma de tangenciar a questão de classe, já que o “estar disposto ou não a fazer algo” parece pertencer, sobretudo, ao campo das vontades individuais. Esse processo, aliás, também está presente na utilização do verbo “gostar”, empregado na frase que dissolve o aparente impasse criado por Caetano: “os livros devem ser escritos

sua música o selo de “Nova MPB”, afirmou em entrevista recente que a sua geração está fazendo hoje algo “tão importante quanto o que aconteceu no Festival da Record”, ocorrido em 1967. Embora a “velha” MPB continue servindo como parâmetro para a “nova”, é interessante perceber como o jovem artista dessa geração se coloca no mesmo patamar, evidenciando a disputa simbólica pela qual a categoria segue passando, disputa essa que tende a se torna geracional. 21 para quem gosta de ler livros”16. Provavelmente relacionada à adoção de um “estilo humilde” – próximo ao que Auerbach denominou sermo humilis, cujo emprego mais denuncia do que sublima as pretensões intelectuais do livro –, não deixa de ser incômoda a vinculação, mesmo retórica, do acesso a “livros complicados” a uma questão meramente de disposição ou de gosto. Ainda justificando a existência de seu livro, o autor prossegue:

Tenho encontrado pelo mundo muitas pessoas inteligentes que se interessam pela música popular brasileira: talvez as anedotas, confidências e análises que apresento aqui despertem sua curiosidade e os prendam à leitura. Por outro lado, o relato das experiências de um “pop star intelectual” de um país do terceiro mundo pode trazer uma ou outra luz inesperada sobre a aventura dos anos 60, já que esse período – que só é considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios surgidos então, e que ainda os temem justamente por os saberem presentes demais em sua nova latência – continua com sua temática aberta ao pensamento que se queira pôr acima dos costumeiros descarte ou nostalgia.17

Nesse trecho, Caetano afirma estar encontrando pelo mundo “pessoas inteligentes que se interessam pela música popular”, leitores em potencial (cuja caracterização como “pessoas inteligentes” apenas reforça as considerações feitas nos parágrafos anteriores), que poderiam se interessar pelas “anedotas, confidências e análises” apresentadas. São esses três elementos os responsáveis por grande parte da força narrativa de Verdade tropical, já que a sua conjugação dá origem a uma prosa híbrida, que combina “crônica de uma geração, autobiografia do autor e história do tropicalismo”18, este último servindo como grande fio condutor da obra. Nela, as “anedotas e confidências” – o lado pop star –, que dão corpo à faceta narrativa de Verdade tropical, estão a serviço das “análises” realizadas – o lado intelectual –, que compõem sua veia ensaística. Como o título “Verdade tropical” já sugere, o tropicalismo é o centro em torno do qual as partes do livro orbitam. É ele que pauta as escolhas feitas pela voz narrativa, servindo como principal critério de seleção e organização das ideias, além de ser ponto de chegada das relações entre elas estabelecidas. Das 470 páginas19 de Verdade tropical, apenas quinze se voltam para o período pós-1973, mesmo o livro tendo sido escrito já na década de 90. Com o período pré-1967, o autor é um pouco mais generoso: são 67 páginas, que correspondem à

16 VELOSO, 1997, p. 19. 17 Idem. 18 SCHWARZ, 2012, p. 52. 19 A quantidade de páginas é referente à edição de Verdade tropical publicada em 1997 pela Companhia das Letras, e leva em consideração apenas a parte propriamente textual. 22 “Parte 1” do livro – seção composta por três capítulos, que concentram boa parte dos traços de Bildungsroman existentes na obra. Mesmo remontando a períodos anteriores à explosão tropicalista, a maioria dos acontecimentos trazidos à tona nessa primeira parte são decisivos para a formação de Caetano, mais especificamente para o papel que ele viria a assumir no tropicalismo e na vida artística brasileira como um todo. Como é típico dos romances de formação, as situações se transformam em experiências “das quais o narrador extrai um conhecimento que daí em diante se tornará claro e distinto, aproveitável para as aventuras subsequentes”20. O primeiro capítulo, “Elvis e Marilyn”, é construído, principalmente, em torno de dois eixos: o modo como o jovem Caetano percebe e interpreta, a partir de Santo Amaro, o processo de americanização que atingiu com força o país na década de 50; e seu primeiro contato com João Gilberto, figura que, desde então, nunca deixou de exercer fascínio sobre o cantor, sendo elevado à condição de seu “mestre supremo”. O segundo capítulo, “Bethânia e Ray Charles”, apresenta o início da interrompida trajetória acadêmica de Caetano, concentrando-se em sua saída de Santo Amaro e chegada a Salvador para estudar na Universidade Federal da Bahia, onde tem contato tanto com o que já havia de consolidado na tradição artística, quanto com as novidades das vanguardas. É o capítulo, também, que conta sobre sua primeira ida ao Rio de Janeiro e São Paulo, como “tutor” de sua irmã Maria Bethânia. Por fim, o capítulo “Intermezzo baiano”, narra o retorno de Caetano à Bahia, que seria, porém, interrompido por seu ingresso no universo dos festivais musicais televisivos, motivo pelo qual volta, em menos de um ano, ao Sudeste. Sendo assim, americanização, João Gilberto, vida acadêmica e início, via mídia, da carreira musical formam uma constelação cujas estreitas relações com o tropicalismo ainda serão mais bem exploradas por este trabalho.

1.1. O lado doutor: a prosa ensaística

As demais quase 400 páginas – divididas em duas partes – concentram-se, portanto, no período que vai de 1967, ano no qual as apresentações de Caetano e Gilberto Gil no III Festival da Música Popular Brasileira prenunciam o surgimento do tropicalismo (que, porém, só se configuraria como movimento organizado no ano seguinte), a 1973, ano em que

20 ALVES, MAIA & LEMUS, 2014, p. 395. 23 seus idealizadores promovem a “morte” do movimento. A atenção dada a esse período de cinco anos é coerente com as motivações que levaram o autor, segundo ele mesmo, à escrita e publicação de Verdade tropical:

O que se pretende contar e interpretar neste livro é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas – entre eles o próprio narrador – queriam poder mover-se além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade cultural universalizante e internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil.21

No longo período transcrito, o tropicalismo é caracterizado como um “impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 60”, movimento cujos protagonistas queriam: a) “mover-se além da vinculação automática com as esquerdas”; b) dar conta da “revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo”; c) dar conta, também, da “fatal e alegre participação na realidade cultural universalizante e internacional”; e, ainda, d) fazer de todo esse processo “um desvelamento do mistério da ilha Brasil”. O sujeito tropicalista, portanto, mobiliza diferentes e grandiosas ações, com miradas política, cultural, social (e sociológica). Os níveis de êxito ou fracasso atingidos por essas ambições ainda é matéria em discussão para a crítica. A frase, porém, é reveladora do modo como o tropicalismo é encarado por esse autor, cuja posição de protagonismo com relação ao movimento não apenas é salientada no discurso, como reafirmada pelo próprio gesto de publicação de Verdade tropical. Aliás, o título pretensioso, que anuncia um contato do leitor com a Verdade, pode reforçar algumas reflexões. Trazer à tona, três décadas depois, um ponto de vista que se quer – e se vende como – definitivo sobre a “aventura da Tropicália” é ter em mãos um trunfo considerável na disputa pelo sentido do movimento. Afinal, para o cantor, o modo como se dá a inserção do tropicalismo na História, mais especificamente o modo (sempre passível de mudança) como ele será visto por seus extemporâneos, afeta diretamente a maneira que ingressará nela também o seu principal idealizador. No final da década de 1950, alguns anos antes de o tropicalismo se delinear como movimento, o panorama político brasileiro encontrava-se dividido em duas tendências: o nacionalismo econômico e o desenvolvimento industrial22 – que, por estar muito dependente

21 VELOSO, 1997, p. 16. 22 DUNN, 2009. 24 de investimentos estrangeiros, era rechaçado por aqueles que defendiam a importância da soberania nacional. Refletindo-se no campo artístico, essa dicotomia contribuía para polarizar a produção musical da época. No início da década de 60, a música popular brasileira dividia- se em canções de explícito engajamento político, as chamadas “músicas de protesto”, e o iê- iê-iê da Jovem Guarda, que, embora mobilizasse grande audiência, encontrava muita reprovação por parte, principalmente, de uma esquerda artística que havia trazido a questão da dependência cultural novamente ao centro do debate. Essa parcela da classe cultural fazia oposição ferrenha à incorporação de elementos estrangeiros à música popular nacional. Em artigo publicado em 1966, “Boa palavra sobre a música popular” 23 , Augusto de Campos – que, no debate, colocava-se em campo diametralmente oposto ao dos chamados artistas engajados – captura a atmosfera da época: “Não é segredo para ninguém que a ‘brasa’ da jovem guarda provocou um curto-circuito na música popular brasileira, deixando momentaneamente desnorteados os articuladores do movimento de renovação, iniciado com a bossa-nova”. A música urbana nacional encontrava-se, portanto, em uma encruzilhada, e perguntava-se sobre seu destino. Prova disso é a organização do debate “Que caminhos seguir na música popular brasileira?” pela revista Civilização Brasileira, publicado em maio de 1966. Dele, participaram figuras como Nara Leão, José Carlos Capinam, Ferreira Gullar e Caetano Veloso, cuja fala dá o tom da contenda:

A questão da música popular brasileira vem sendo posta ultimamente em termos de fidelidade e comunicação com o povo brasileiro. Quer dizer: sempre se discute se o importante é ter acesso a uma visão ideológica dos problemas brasileiros, e se a música é boa, desde que exponha bem essa visão; ou se devemos retomar ou apenas aceitar a música primitiva brasileira. A única coisa que saiu neste sentido – o livro do Tinhorão, defende a preservação do analfabetismo como uma única salvação da música popular brasileira.24

Há duas questões diferentes sendo trazidas à tona pelo cantor. A primeira – que diz respeito à “comunicação com o povo brasileiro” – é sobretudo política, e pontuada pela discussão sobre o engajamento da canção, defendido por alguns intelectuais como característica sine qua non da produção artística da época. A segunda – que diz respeito à “fidelidade ao povo brasileiro” – é (ainda que com sensíveis reverberações políticas) sobretudo estética, pontuada pela

23 Em CAMPOS, 1974, p. 59. 24 Em COELHO & COHN, 2008, p. 19. 25 discussão sobre a incorporação de elementos estrangeiros à canção, ou seja, a “modernização” a que Caetano faz referência. Nesse sentido, a citação a José Ramos Tinhorão, crítico marxista cuja intransigente postura de enfrentamento da bossa nova encontrava dura oposição até mesmo no campo da esquerda 25 , não era gratuita. Tinhorão, nacionalista ferrenho, intentava desmistificar o movimento, que caminhava a passos largos rumo à consagração artística. Em Música popular: um tema em debate – livro a que Caetano se refere em sua fala, publicado em 1966 – o crítico chega a afirmar que, por conta da incorporação que fez do jazz estadunidense, a “bossa nova abastardou o ritmo tradicional brasileiro [o samba], de grande ‘vida interior’, trocando-a pela importação de células rítmicas cerebrinas ou estereotipadas”26. Além disso, também criticava o processo de apropriação no qual, segundo ele, a bossa nova estaria intricada, fazendo “com que a música das camadas mais baixas seja estilizada pela semicultura das camadas médias (...) para acabar sendo elevada à categoria de música erudita pelas minorias intelectualizadas”27. Ainda contrapondo-se a Tinhorão, Caetano faz sua defesa da bossa nova, apontando-a como elemento-chave para a resolução do aparente impasse:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. (...) João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez.28

Assim como defenderia anos mais tarde em Verdade tropical29, a bossa nova é vista pelo jovem Caetano como o momento em que a música popular brasileira deu seu passo à

25 Em um artigo publicado no seminário O Pasquim (nº 361, 28/05 a 03/06 de 1976), intitulado “Tinhorão agente da CIA?”, Sérgio Cabral perguntava, em tom de chiste, mas também de provocação: “Não será José Ramos Tinhorão um agente remunerado da CIA contra a música popular brasileira?”. E justificava: “Qualquer compositor de classe média, por mais talento que tenha, é logo acusado de deturpador (…) Noutro dia, ele chamou Caetano Veloso de mau caráter simplesmente porque Caetano dedicou um dos seus discos a Clementina de Jesus”. Para Tinhorão, marxista que nunca se filiou a nenhum partido, Sérgio Cabral “escreveu aquilo porque tinha entrado no PCB e o partido era da esquerda do Opinião, a esquerda festiva, e eu não”. 26 TINHORÃO, 1997, p. 64 27 Ibidem, p. 62. 28 Em COELHO & COHN, 2008, p. 20. 29 “Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. (...) A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delírios para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever nosso gosto, o nosso acervo – e o que é mais importante – as nossas possibilidades. João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba (...) marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que 26 frente rumo à emancipação, sem que para isso tivesse que se alienar da influência estrangeira. Dessa forma, ao propor uma “retomada da linha evolutiva” da música popular nacional a partir da bossa nova, o cantor já se posicionava em campo contrário ao de boa parte da classe artística nacional, sobretudo sua parcela de esquerda. Isso mostra que Caetano se insere no cenário cultural brasileiro não apenas já intervindo nas discussões sobre os seus caminhos – e o convite para participar do debate realizado pela revista Civilização brasileira é prova disso –, como “enfrentando” e “sendo enfrentado” por boa parte da crítica de esquerda. Para o cantor, porém, a contraposição no campo das ideias, que é, afinal, consequência natural do lugar por ele reivindicado no debate cultural, tomava, muitas vezes, a forma de perseguição pessoal. Em grande medida, isso era consequência da utilização da mídia, sobretudo impressa, como principal espaço de discussão, tendo em vista o fato de a música brasileira ainda não ocupar um lugar de prestígio nos espaços acadêmicos (“a única coisa que saiu nesse sentido – o livro de Tinhorão (...)”). Assim, seguindo a lógica da indústria cultural, a transformação do embate de ideias em embate de gênios dava ares folhetinescos à contenda, e mobilizava a audiência. Essa personalização do debate, de certa forma, acompanharia Caetano Veloso ao longo de sua trajetória artística e intelectual. Em Verdade tropical, ela pontua grande parte das considerações que o cantor traça sobre a esquerda brasileira. Isso pode ser percebido sobretudo na segunda parte do livro, que se concentra nos acontecimentos dos anos 67/68, os mais decisivos para o tropicalismo, e também aqueles em que esse debate artístico parecia alcançar o seu ápice. No primeiro capítulo da segunda parte, intitulado “Transe”, Caetano relembra o embate com Tinhorão:

(...) o primeiro artigo longo que escrevi na minha vida (...) foi uma catilinária sobre o livro de José Ramos Tinhorão sobre música popular. Este era um ensaio de sabor sociológico em que a bossa nova aparecia, por um lado, como submissão cultural ao modelo americano e, por outro, como apropriação indébita da cultura popular pela classe média. Era a defesa do ideário nacional-popular que permeava os julgamentos dos esquerdistas brasileiros. Escrevi o artigo para uma revista universitária porque achava intolerável que aquelas ideias fossem aceitas sem discussão pelos alunos mais inteligentes da universidade. Eu sabia que a bossa nova era outra coisa – e uma coisa preciosa para todos nós – e produzi o texto como uma atitude de luta: eu o queria uma intervenção eficaz na formação das mentes das pessoas com quem convivia.30

sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva – o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba”. VELOSO, 1997, p. 36. 30 VELOSO, 1997, pp. 114-115. 27 No discurso do narrador, estão implícitas não apenas uma certa megalomania de Caetano Veloso, cujos gestos parecem sempre carregar pretensões grandiosas (“eu o queria uma intervenção eficaz na formação das mentes das pessoas com quem convivia”) – e a aproximação que o cantor faz de seu artigo aos célebre discursos de Cícero, cônsul romano, é bastante reveladora nesse sentido –, como também certa empáfia que o coloca na posição de quem tem a posse da verdade (“Eu sabia que a bossa nova era outra coisa – e uma coisa preciosa para todos nós”). Também é possível verificar que José Ramos Tinhorão é usado como metonímia dos “esquerdistas brasileiros” (o sufixo empregado por Caetano não deixa de carregar um juízo de valor), cujos julgamentos, segundo o cantor, seriam permeados pelo “ideário nacional-popular”. Que Tinhorão defendia ferrenhamente esse ideário, como o continua defendendo até hoje, não há dúvidas, no entanto, afirmar que o mesmo permeava os julgamentos de todos os “esquerdistas brasileiros” é um tanto difuso. A intervenção de Caetano Veloso se fazia presente não apenas no âmbito do debate intelectual, mas também no campo da própria produção artística, ainda que de forma geralmente mais velada. “A voz do morto”, canção por ele composta e interpretada em 1968 pela sambista Aracy de Almeida, demonstra isso. Seu título parodia o da música “A voz do morro”, canção de Zé Kéti que havia estourado em 1955, por conta do filme Rio 40º, de Nelson Pereira dos Santos. A letra de Zé Kéti é composta de forma que o samba vire a própria instância de enunciação: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei do terreiro”. “A voz do morro” é composta num momento em que “se acreditava, ainda, no samba como redentor, mensageiro da alegria, suposta entidade unificadora das disparidades nacionais”31, como evidenciam os seguintes versos da canção: “Sou eu quem levo a alegria / Para milhões de corações brasileiros / Salve o samba, queremos samba / Quem está pedindo é a voz do povo de um país”. Em “A voz do morto”32, Caetano Veloso utiliza-se do mesmo recurso, mas o samba- narciso de Zé Kéti dá lugar a um “defunto autor”:

Estamos aqui no tablado Feito de ouro e prata E filó de nylon

Eles querem salvar as glórias nacionais As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva

31 SANCHES, 2000, p. 20. 32 VELOSO, 2003a, p. 71. 28 Ninguém me engana Eu sou alegre Eu sou contente Eu sou cigana Eu sou terrível Eu sou o samba.

A voz do morto Os pés do torto O cais do porto A vez do louco A paz do mundo Na Glória! (...)

Já se valendo da técnica tipicamente tropicalista de colagem, a canção superpõe desejo de reconhecimento (“tablado”), tesouros nacionais (“ouro e prata”, “filó”), avanço industrial (“nylon”, propositalmente grafado como no inglês), nacionalismo (“Eles querem salvar as glórias nacionais”), apego às raízes populares (“Ninguém me salva”) e crítica ao purismo (“Ninguém me engana”). De forma irônica, o samba – “morto” que ainda tem voz – define-se por meio de um conhecido verso de Roberto Carlos, representante maior da Jovem Guarda: “Eu sou terrível”. Com a música, Caetano dava o golpe de misericórdia no moribundo samba33, já abatido pela bossa nova. Era preciso abrir espaço para o novo, para Caetano, para os tropicalistas. Prova disso é a gravação, em 1969, da canção “A voz do vivo”, também de sua autoria. Como o título já indica, “A voz do vivo” era a antípoda de “A voz do morto”. Dessa vez, seu intérprete não era mais um representante da velha ordem, e sim seu parceiro Gilberto Gil. Ao se colocar como herdeiro direto da bossa nova (e, por isso mesmo, seu “assassino”), Caetano herda, também, boa parte das críticas e desconfianças que a mesma suscitava. Contribuíam ainda mais para isso sua postura descomplicada (e, às vezes, algo eufórica) com relação ao mercado, e sua suposta falta de engajamento em um momento no qual ele parecia mais necessário do que nunca – afinal, diferentemente da bossa nova, surgida

33 Em Sobre as letras, livro publicado em 2003, ao comentar “A voz do morto”, Caetano Veloso minimiza a intervenção, creditando boa parte da intenção musical à própria Aracy de Almeida: “Assim como ‘Baby’ me foi sugerida por Bethânia, ‘A voz do morto’ me foi ditada pela Aracy de Almeida. Ela estava em São Paulo para fazer a Bienal do Samba, que era um festival só de sambas, e estava muito irritada com a ideologia em torno daquilo. Ela veio falar comigo: ‘Pô, me tratar como glória nacional pensando que vão me salvar? Puta que pariu, salvar o caralho! Estão pensando que vão salvar o samba na televisão? Salvar o caralho! Quero que você faça um samba porque você que é o verdadeiro Noel, porque você é novo! (…) Eu estou de saco cheio desse negócio de Noel Rosa, ter que arrastar esse morto pelo resto da vida. Quando eu canto é a voz desse morto! E ninguém me engana com essa porra não, de festival do samba. Faça uma música da pesada para eu graver, esculhambando com essa porra toda!’. Ela me ditou o samba! Fiz essa musica, ela adorou e gravou”. VELOSO, 2003b, p. 17. 29 em 1958, o tropicalismo nasce não em uma atmosfera de otimismo, mas já sob os cerceamentos de uma ditadura civil-militar. Roberto Schwarz, crítico de primeiro hora do movimento, em artigo publicado no início dos anos 7034, chamava a atenção para sua natureza alegórica, problematizando-a. Para Schwarz, a técnica tropicalista de combinação do arcaico e do moderno tem como resultado a construção de uma alegoria do Brasil. Porém, segundo o crítico, essa justaposição de antigo e novo, embora esteticamente eficaz, ocorre de forma que a imagem produzida “componha um absurdo, esteja em forma de aberração, a que se referem a melancolia e o humor deste estilo”35. Por isso mesmo, ela parece negar qualquer potencial de transformação dialética, abrindo espaço, inclusive, para uma possível “euforia identitária”. Era o início de um vigoroso debate que iria se estender até os dias atuais, e que será retomado no segundo capítulo deste trabalho. Seria equivocado pensar, no entanto, que a visão de Schwarz representava uma unanimidade na crítica artística brasileira, mesmo entre a crítica de esquerda. É certo que houve outras oposições ao movimento, como a de Boal, para o qual o tropicalismo agredia “o predicado e não o sujeito”36, e a de José Ramos Tinhorão, que, mantendo-se coerente às suas críticas à bossa nova, dirigia duras palavras37 ao tropicalismo em sua Pequena história da música popular: segundo seus gêneros, livro publicado em 1974. Porém, havia também aqueles que enxergavam o movimento de forma mais otimista. Além do grupo concretista, entusiastas do tropicalismo mesmo quando ele ainda se delineava, outras vozes saíram em sua defesa. Celso Favaretto, por exemplo, em Alegoria alegria, livro publicado em 1979, partiu da ideia da alegoria tropicalista identificada por Schwarz, mas a positivou: a insolubilidade das contradições brasileira construiria uma imagem indeterminada e fragmentada do Brasil que poderia então ser ativada para satirizar a cultura oficial. Em Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, livro também publicado em 1979, Heloísa Buarque de Holanda contrapunha-se ao ensaio de Schwarz, afirmando que o mesmo “ainda que informado explicitamente pelo conceito benjaminiano de alegoria, resulta muito próximo da crítica de Lukács a esse conceito no sentido da exigência da perspectiva finalista para a obra de arte”38.

34 SCHWARZ, 1978. 35 Ibidem, p. 76. 36 BOAL, 1968. 37 “De fato, a partir de meados de 1968, a chamada tropicália ou tropicalismo, sem ideologia, sem programa e musicalmente sem linguagem (“É impossível saber onde eu quero chegar. Palavra que eu não sei. Vou fazendo música”), constituiu na verdade uma série de eventos do tipo improvisado (...).” (TINHORÃO, 2013, p. 303). Ironicamente, Ironicamente, mesmo com as duras críticas, o tropicalismo ganhou – pelas mãos de Tinhorão – sua primeira inclusão na História da Música Popular Brasileira 38 HOLLANDA, 2004, p. 69. 30 Caetano Veloso também se colocou no debate, respondendo, direta e indiretamente, às críticas de Schwarz. A letra de “Love, love, love” é um exemplo disso: “Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo / Até aí tudo bem, nada mal / Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo / O Brasil tem ouvido musical/ Que não é normal”39. De forma mais direta, em Verdade tropical, o cantor também se posiciona:

Schwarz [no artigo “Cultura e política, 1964-1969”] não demonstrava (...) nem hostilidade nem desprezo pelo nosso movimento. Ao contrário: dava- lhe grande destaque dentro do esquema que apresentava das relações entre cultura e política no Brasil pós-64. Estávamos longe da rejeição total que tivemos de um Boal, por exemplo. De todo modo seria uma honra para mim que o tropicalismo recebesse tanta e tão terna atenção de um pensador naturalmente tão pouco identificado com nossa sensibilidade. (...) Impressionava-me que opusesse o método de alfabetização Paulo Freire ao que os tropicalistas faziam: isso era exatamente uma repetição do que tinha acontecido em minha vida. Mas sua redução da “alegoria” tropicalista ao choque entre o arcaico e o moderno, embora revelasse aspectos até então impensados, resultava finalmente empobrecedora.40

Em “Cultura e política, 1964-1969”, a oposição que Roberto Schwarz estabelece entre o método Paulo Freire e o movimento tropicalista está baseada no potencial de superar as contradições das quais partem. Diferentemente do que ocorre no tropicalismo, que, para Schwarz, fixa a contradição na forma de absurdo, no método freiriano, o “arcaísmo da consciência rural” conjuga-se à “reflexão especializada de um alfabetizador”41, não sendo, porém, essa conjugação entre arcaico e moderno insolúvel, visto que há a possibilidade de alfabetização. No trecho, o narrador afirma que a oposição entre o método de alfabetização Paulo Freire e o tropicalismo “era exatamente uma repetição” do que havia acontecido em sua vida porque, segundo conta, o golpe ocorrido em 1964 tinha lhe surpreendido no momento em que estava prestes a se engajar “numa ação politicamente responsável e socialmente útil”, que era justamente a alfabetização de adultos por meio do método freiriano. O gesto, contudo, é sustado pela eclosão da contrarrevolução antes mesmo de ser colocado em prática:

Eu tinha ido a uma reunião para a formação de instrutores voluntários quando a notícia de que um golpe de Estado se daria naquela mesma noite nos fez interromper os trabalhos. Alguns participantes quiseram continuar, argumentando que sem dúvida tratava-se de um boato infundado. Mas os mais experientes, baseados no peso das fontes das quais surgira o alerta, desfizeram imediatamente a sessão, recomendando-nos que fôssemos para

39 VELOSO, 2003a, p. 174. 40 Idem, 1997, p. 450. 41 SCHWARZ, 1978, p. 76. 31 casa, enquanto eles averiguariam se havia algum esquema de resistência em que se engajar. Saí perplexo do prédio da Escola de Economia (...).42

Ceifada a possibilidade de ser “socialmente útil” por meio da alfabetização de adultos (“a mera educação de contingentes da massa brasileira teria significado uma revolução em si mesma”43), restava a Caetano continuar com suas intervenções em um campo àquela altura ainda não tão impactado pela ditadura, o artístico. Sendo assim, no discurso do autor, o tropicalismo aparece superposto ao método Paulo Freire, se não pela grandiosidade de suas pretensões ou eficácia de seus resultados, pelo menos pelo fato de ser, naquele contexto, algo possível de ser colocado em prática pelo artista, o que, porém, não abala a argumentação de Schwarz, na qual a oposição entre tropicalismo e Paulo Freire é desenvolvida em outros termos. Assim, o principal ataque de Caetano à Schwarz aparece em sua interpretação do tropicalismo. Ainda que demonstrando certo respeito ao pensamento do crítico, e mais uma vez empregando seu peculiar “estilo humilde”, que serve menos para exaltar o outro e mais para envaidecer-se (“seria uma honra para mim que o tropicalismo recebesse tanta e tão terna atenção de um pensador naturalmente tão pouco identificado com nossa sensibilidade”), Caetano finaliza (e a utilização da conjunção adversativa “mas” prenuncia justamente a apresentação de uma ideia que terá maior peso argumentativo): “Mas sua redução da ‘alegoria’ tropicalista ao choque entre arcaico e o moderno (...) resultava finalmente empobrecedora”. Como já exposto, o autor de Verdade tropical afirma que seu livro carrega a pretensão de “contar e interpretar (...) a aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 60”, o tropicalismo. Na frase, as palavras “contar” e “aventura”, pertencentes, sobretudo, ao campo semântico da narração, são colocadas ao lado do verbo “interpretar”, pertencente, sobretudo, ao campo da crítica. Dessa forma, mais do que trazer à tona uma perspectiva – vale dizer, privilegiada – sobre o movimento, a ser somada a tantas outras narrativas já existentes, Caetano Veloso dialoga diretamente com aqueles que, indo além da mera documentação, procuraram interpretá-lo, como José Ramos Tinhorão e Roberto Schwarz. No entanto, para o que há de ensaístico em Verdade tropical, a imbricação existente entre sujeito e objeto de análise é uma “faca de dois gumes”: por um lado, confere aos

42 VELOSO, 1997, pp. 308-309. 43 Idem. 32 argumentos de Caetano Veloso certa aura de “autoridade”, afinal, infere-se que ninguém mais apto a discorrer sobre um movimento do que seu próprio idealizador; por outro, confere ao discurso a parcialidade típica daqueles que advogam em causa própria, sempre sob o risco de caírem na autoindulgência desmedida. Afinal, por melhores que tivessem sido as intenções que mobilizaram o cantor a empreender essa “aventura tropicalista”, e não há dúvida de que elas existiam, a exposição das mesmas não elimina a possibilidade de equívocos. Como sintetiza Roberto Schwarz de modo lapidar: “Nem sempre as formas dizem o que os artistas pensam”44.

1.2. O lado pop star: a prosa narrativa

Em Verdade tropical, a efetivação das pretensões ensaísticas não ocorre, porém, às custas de um apagamento do eu. Embora, convencionalmente, os textos analíticos pressuponham o distanciamento entre pesquisador e objeto (o que, na forma, é refletido pela supressão das marcações linguísticas de 1ª pessoa, salvo casos em que a subjetividade por ela impressa não comprometa a separação entre sujeito e matéria), o livro de Caetano Veloso apresenta tom abertamente confessional:

Tive (...) que me permitir transitar [em Verdade tropical] do narrativo ao ensaístico, do técnico ao confessional (e me colocar como médium do espírito da música popular brasileira – e do próprio Brasil) para abranger uma área considerável do mundo de ideias que o assunto central [o tropicalismo] sugere.45

À revelia da afirmação feita pelo autor de que o livro “não é uma autobiografia”46, apontamento que, provavelmente, leva em consideração menos as diferenças formais do que a distinção de fins, Verdade tropical costuma ser encarado pela crítica e pelo mercado editorial como um “livro de memórias”. A classificação encontra justificativa, principalmente, na narratividade impressa pelo depoimento de um eu que revisita seu passado e o reconta. Entendendo a autobiografia como relato de uma vida individual na qual autor, narrador e

44 SCHWARZ, 2012, p. 101. 45 VELOSO, 1997, p. 18. 46 Idem. 33 personagem mantêm uma relação de identidade – ligando-se entre si através de um pacto47 –, a obra de Caetano parece preencher os requisitos. A história de vida trazida à tona em Verdade tropical, porém, é incompleta: ao estabelecer o tropicalismo como critério de seleção, são deixados de lado acontecimentos que talvez encontrassem espaço em um livro memorialista com objetivos mais modestos. Em “L’écriture de soi”48, Michel Foucault defende a tese de que a escrita de si remontaria a tempos antigos, tendo sua origem na cultura greco-romana. Segundo o autor, seu gérmen estaria contido em formas como os hypomnemata e a correspondência. Os hypomnemata, que consistiam em livros de contabilidade, registros notoriais ou mesmo cadernos pessoais que serviam de agenda, reuniam “citações, fragmentos de obras, exemplos e ações de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória”49. Essa materialização da memória das coisas lidas, ouvidas e pensadas representaria algum tipo de tentativa de “constituição de um eu”. Para Foucault, algo parecido aconteceria na correspondência, em que o olhar se volta não apenas ao destinatário, mas, invariavelmente, ao próprio remente, que “se oferece ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”50. No entanto, embora a escrita de si possua raízes na antiguidade clássica, é certo que a sua efetivação como narrativa de si está diretamente relacionada ao advento da modernidade. A afirmação do homem e a confiança irrestrita na razão, produto de tempos esclarecidos culminam no redimensionamento do lugar do sujeito no social. A separação que passa a existir entre homem e mundo (“O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem poder”51) abre espaço para a construção de uma superioridade do homem sobre o homem. A descentração do locus permite, então, que ele ocupe uma “posição de exterioridade em relação à sociedade, colocando-se em uma perspectiva na qual existe o espaço de tecer juízos: olhar, observar, valorar, avaliar, valorizar, enfim, questionar”52. Dessa forma, o sujeito moderno se constitui como indivíduo a partir da diferença com o meio, e, consequentemente, consigo próprio. Nesse sentido, as narrativas autobiográficas – cuja efetivação do modo tal qual a conhecemos data do século XVIII, com a publicação d’As confissões, de Rousseau – darão conta justamente da percepção (e construção) da singularidade de uma existência. Contrapondo-se às Confissões de Santo

47 LEJEUNE, 1975. 48 FOUCAULT, 1992. 49 Ibidem, p. 135. 50 Ibidem, p. 150. 51 ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 21. 52 TEIXEIRA, 2003. 34 Agostinho, texto no qual a escrita de si tem como critério a relação com o Divino, e constitui- se como meio de chegada a Ele, na obra homônima de Rousseau, a existência em si é o que passa a ser oferecido como objeto de conhecimento. Assim, a tentativa de integração ao Cosmos cede espaço à manifestação de uma individualidade que, quanto mais se provar singular, mais encontrará justificada sua existência. Portanto, ao se inscrever na tradição iniciada por Jean Jacques-Rosseau, Verdade tropical se constitui não apenas como história do tropicalismo, mas também como história de vida, ainda que a distinção entre elas, por vezes, não fique muito explícita. Na obra, a relação íntima de criador-criatura existente entre sujeito e objeto dilui as fronteiras que separam Caetano do movimento por ele idealizado, o tropicalismo. Esse efeito, no entanto, não é casual. Segundo seu autor, “[Verdade tropical] é antes um esforço no sentido de entender como passei pela Tropicália, ou como ela passou por mim”53. A formulação – na qual, vale destacar, sujeito e objeto são termos facilmente intercambiáveis – justifica, afinal, a não abdicação do tom confessional, mesmo em um texto que se deseja analítico. Embora a exploração da subjetividade possa comprometer a recepção de uma obra cuja principal motivação é intervir no debate intelectual – daí a afirmação, aparentemente incoerente, de que Verdade tropical não é uma autobiografia –, ela também abre espaço para novas possibilidades. Por ser também história de vida, Verdade tropical permite ao seu narrador transformar-se e reconstituir-se como sujeito. A partir da tomada de consciência das nuanças de seu percurso, o indivíduo pode “ressignificar suas experiências, sair de uma posição de alienação frente à História, situando-se, através de sua história, como agente de sua vida e da coletividade”54. Trata-se de uma possibilidade de manipulação da(s) realidade(s) por meio do discurso que, embora não seja impossível de ser feita no âmbito ensaístico, certamente encontra maior potência na narração. O processo de ressignificação do passado pode ser notado, por exemplo, na forma como é narrado o aparecimento dos “rapazes de jeans e botas” e das “moças de rabo-de- cavalo e chicletes na boca” no pacato cenário santamarenses:

Costumo dizer que, se dependesse de mim, Elvis Presley e Marilyn Monroe nunca se teriam tornado estrelas. Fui eu, no entanto, o primeiro a mencionar – não sem que isso representasse um certo escândalo – a Coca-Cola numa letra de música no Brasil. Na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock’n’roll e tentavam imitar suas aparências.

53 VELOSO, 1997, p. 18. 54 TEIXEIRA, 2003. 35 Rapazes de jeans e botas, moças de rabo-de-cavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos. Mas não apenas eles eram minoritários: eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres.55

À época com 15 anos, Caetano Veloso enxergava seus “colegas americanizados” como exóticos, porém medíocres. Isso não o impedia, porém, de partilhar com os “santamarenses razoáveis”, uma “atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico”56. Essa “atitude crítica condescendente” – um traço, aliás, presente em outros momentos da narrativa, inclusive quando é a ditadura o que está sob análise – condenava não exatamente a “inautenticidade cultural” daqueles jovens, mas a “inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar um estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar”57. Por fim, o narrador conclui: “Mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia”58. A afirmação feita pelo narrador de que teria sido “o primeiro a mencionar – não sem que isso representasse um certo escândalo – a Coca-Cola numa letra de música no Brasil”59, reforça o paralelo que pode ser estabelecido entre o modo como o jovem Caetano se posiciona frente ao processo de americanização sentido em Santo Amaro e o modo como ele viria a se posicionar, alguns anos mais tarde, frente à incorporação de elementos estrangeiros à canção popular, em um momento no qual o combate ao imperialismo era uma das principais bandeiras levantadas pela esquerda brasileira. No trecho, a postura apresentada por alguns jovens santamarenses não é condenada simplesmente por representar uma incorporação de referências estrangeiras, mas pelo fato de essa incorporação ter sido feita de maneira ingênua, correspondendo à mera apropriação de um estilo “cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar”, e que, além de tudo, não carregava em si “nenhum traço de rebeldia”60. Nesse sentido, não é exatamente a atitude dos jovens o que está sendo condenado por seu discurso, mas o modo como ela é colocada em prática, dado que sua inaptidão (“elas não sabiam como acompanhar”) impedia algum tipo de incorporação mais crítica e produtiva do conteúdo . Trata-se, portanto, de uma postura frente às influências externas que –

55 VELOSO, 1997, p. 23. 56 Idem. 57 Idem. 58 Idem. 59 Idem. 60 Sobre isso, o narrador acrescenta: “(…) suas atitudes, que sugeriam uma tentativa canhestra de ganhar status dentro de uma escala de valores já dados e mal interpretados, eram, a meus olhos, uma nítida marca de conformismo”. Ibdem, p. 24. 36 sobretudo depois de seu contato com o conceito oswaldiano de antropofagia cultural – viria a ser defendida, na década de 60, como caminho para resolver a questão do imperialismo que polarizava o panorama da música popular brasileira, dispondo em polos opostos a música engajada, de visível caráter nacionalista, e o “iê-iê-iê”, encarado pela esquerda artística como uma manifestação “entreguista”. Quando essa questão da dependência cultura é trazida à tona em um contexto diferente daquele dos anos 60, o discurso parece querer evidenciar uma postura “antropofágica” em estado germinal apresentada pelo jovem Caetano, cuja existência, embora totalmente possível – o que se está questionando aqui não é a veracidade dos fatos trazidos à tona pelo narrador –, dificilmente teria sido percebida nos termos em que é aos leitores apresentada. Se o gesto narrado acontece em meados da década de 50, o discurso que o revisita é produzido cerca de 40 anos depois. Trata-se, portanto, de um fenômeno interpretado em retrospectiva por um narrador que tem a seu favor não apenas o fato de já “conhecer o futuro”, mas também o de já ter se armado intelectualmente. Afinal, as limitações de conhecimento de mundo apresentadas por um jovem de 15 anos, por mais excêntrico que seja, é uma verdade que não é escamoteada pelo narrador: “Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes regionais ou nacionais – não lidávamos com tais noções (...)”61. Dessa forma, o tropicalismo, além de ser, em sua relação com a “linha evolutiva da canção”, o tema central de Verdade tropical, é também o filtro através do qual Caetano Veloso enxerga o passado, o presente e faz projeções para o futuro. O livro, porém, não fica restrito à discussão musical stricto sensu. Como gira em torno de um movimento que idealizava-se como “um desvelamento do mistério da ilha Brasil”62, é natural que haja uma ampliação dos limites do debate levantado. O trecho de Verdade tropical acima transcrito, em que o autor afirma ter tido que “permitir” se colocar como “médium do espírito da música brasileira” e, mais ainda, como médium “do próprio Brasil” (o título do livro, aliás, também se relaciona com essa pretensão de Caetano), é prova dessa ampliação. Ao desenvolver a ideia de formação da música popular brasileira – defendendo a tese de que a bossa nova seria justamente o momento decisivo de emancipação intelectual –, Caetano retoma o debate sobre dependência cultural. Essa questão, que já havia sido colocado em pauta pelos modernistas paulistas na década de 20, voltava a ocupar o centro das discussões artísticas na década de 60, agora alcançando outros campos, como o cinema e a música popular nacionais. A retomada se dava sobretudo no campo da esquerda, e estava

61 Idem. 62 Ibidem, p. 16. 37 intimamente relacionada ao horizonte revolucionário vislumbrado em um momento no qual o país parecia finalmente começar a romper com as desigualdades herdadas do período colonial. Como se sabe, esse horizonte se mostraria, afinal, uma miragem, e a esquerda brasileira viu suas esperanças serem esmagadas pela eclosão da contrarrevolução. Por conjugar trajetória pessoal à experiência histórica brasileira, Verdade tropical passa a funcionar também como crônica de uma geração cujas pretensões grandiosas foram sumariamente sustadas pelo golpe. Quando o livro retoma, 30 anos depois, o debate daquela época, o que emerge de suas páginas é a experiência de uma esquerda derrotada63. Contando com o trunfo de já saber o rumo das coisas, o narrador se desvincula desse “lado perdedor” (no discurso de Caetano, o tropicalismo aparece como um movimento que queria poder “mover-se além da vinculação automática com as esquerdas”, por exemplo), mas mantém-se a uma “distância segura” daqueles que venceram, garantindo a originalidade de sua posição.

63 SCHWARZ, 2012. 38

2. “Onde queres o sim e o não, talvez” Onde queres família, sou maluco E onde queres romântico, burguês Onde queres Leblon, sou Pernambuco E onde queres eunuco, garanhão Onde queres o sim e o não, talvez E onde vês, eu não vislumbro razão (Caetano Veloso, “O quereres”64)

Exponho as minhas [posições] com todas as confusões, complicações e ingenuidades esperáveis de um temperamento artístico. Assim, sou um liberal de extrema esquerda, um ateu místico, um individualista que ama a sociedade e um irracionalista apaixonado pela razão. (Caetano Veloso, em entrevista ao jornal O globo65)

Como desenvolvido no capítulo anterior, ao se configurar como narrativa de si, permitindo, portanto, a construção de um eu, o narrador que emerge das páginas de Verdade tropical reclama sua individualidade sobretudo por meio da exaltação da originalidade das posições por ele defendidas –, e da reivindicação do direito de defendê-las. Afinal, “é proibido proibir”. Entre o jovem Caetano que olhava para os “jovens americanizados” com certo desdém, mas cujas motivações o distanciavam também dos demais “santamarenses sensatos”; o artista que exaltava a bossa nova como momento de emancipação da música popular brasileira ao mesmo tempo em que a enterrava; e o intelectual que reivindica sua liberdade “frente à vinculação automática com as esquerdas”, sem nunca, no entanto, posicionar-se abertamente no campo oposto, há como ponto de interseção a busca por um lugar incomum, tão inusitado que, por vezes, coloca em aparente harmonia até mesmo as oposições mais inconciliáveis. “Como um objeto não identificado”, Caetano Veloso adentra o campo artístico brasileiro, na década de 60, abrindo terceiras vias – em muitos aspectos, ambíguas –, que, quando revisitadas na década de 90, mais do que se apresentarem como consequências dos impasses da época, parecem querer se estabelecer como verdadeiros “ovos de Colombo”.

64 VELOSO, 2003a, p. 149. 65 Entrevista concedida a João Paulo Cuenca, publicado no site de O globo no dia 12 de junho de 2007, sob o título “Caetano: ‘Sou um liberal de extrema esquerda’”. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/cultura/caetano-sou-um-liberal-de-extrema-esquerda-4182790>. Acesso em 16 de junho de 2017. 39 Neste capítulo, a busca de Caetano pela originalidade de sua posição aparece atrelada aos debates da época revisitados pelo narrador. O resgate das rivalidades da década de 60 traz à tona personagens que passam a ocupar a posição de antagonistas, garantindo boa parte do vigor narrativo da obra. No rol dos vilões, duas personalidades se destacam: Augusto Boal e Geraldo Vandré, que, em diversos momentos da narrativa, cumprem o papel de se opor às intervenções do protagonista. Este capítulo explorará duas situações de embate entre Caetano e esses artistas, buscando vinculá-las à reafirmação de certas características tropicalistas, sobretudo no que diz respeito à postura frente à cultura estrangeira e a seu modo de enxergar o Brasil.

2.1. “Disforia da cristalização”: a desvinculação das esquerdas

Em O cancionista, Luiz Tatit defende a existência de uma “faixa contínua ligando Caetano – enquanto personalidade, personagem e visão de mundo original – a suas composições e interpretações, numa interdependência muito mais acirrada do que a que preside normalmente esse tipo de relação”66. Nesse sentido, Tatit considera o que chama de “disforia da cristalização” um dos traços de personalidade assimilados no gesto artístico do cantor. Entendendo que esse traço se faz presente também em Verdade tropical, a exposição do conceito pode ser produtiva. Segundo o crítico, Caetano, durante toda a sua carreira, manifestou-se de forma contrária a ideias que tendessem à cristalização, visto que esse processo, ao minar as diferenças individuais, representaria uma ameaça ao fluxo natural da cultura. Como alvo da crítica a essa cristalização de ideias, poderiam estar tanto o comportamento de toda a comunidade, quanto maneirismos de pequenos grupos:

Tudo ocorre como se Caetano tivesse uma antena especial para captar maneirismos em vias de cristalização, ou pontos de esterilidade no processo cultural, e outra antena voltada para os pontos de efervescência em que as produções fluem com inteireza e espontaneidade, sem conflito artificial, passando pelas frestas da crítica e gerando fatos novos em cumplicidade com o futuro. Munidos delas, provoca guinadas desconcertantes na canção brasileira, chamando atenção ora para os gestos experimentais (Arrigo Barnabé), ora para as intervenções de massa (Tim Maia), ora para o desconhecido (Edith do Prato), ora para o fartamente consagrado (João

66 TATIT, 2012, pp. 263-264. 40 Gilberto), ora para o comportamento apolíneo (Augusto de Campos), ora para o dionisíaco (Jorge Mautner), ora para o detalhe (A Rã), ora para o universo (Um Índio). E, nessas guinadas, frequentemente vai e volta com tanta rapidez que provoca o efeito de “avesso do avesso”67.

Em Verdade tropical, a busca por essas intervenções desestabilizadoras pontua boa parte dos temas centrais desenvolvidos transversalmente no livro. Ela aparece, sobretudo, nas discussões sobre o engajamento político apresentado e defendido por boa parte da esquerda cultural brasileira da década de 60 – cujas posturas, muitas vezes, eram mais anti- imperialistas do que propriamente anticapitalistas68. Ao revisitar os debates daquela época, a “esquerda nacionalista”69, como a chama Caetano, aparece atrelada aos rótulos de ortodoxa70, retrógrada71, xenófoba72; enfim, é encarada como um “ponto de esterilidade”, limitadora dos horizontes da criação artística. Em “Bethânia e Ray Charles”, segundo capítulo do livro, é representativa dessa atitude a narração que Caetano Veloso faz de sua experiência com Augusto Boal em Arena conta Bahia, descrita por ele como “sofrida, mas muito ilustrativa”73. Antes de começar a narrá-la, Caetano contextualiza:

O governo militar que se instaura com o golpe em 64 só é sentido como não ditatorial em retrospecto e se comparado à dureza do regime que passou a vigorar a partir de 68. Em 65, procurava-se meios de gritar “abaixo a ditadura” e, bem antes de começarem a crescer os movimentos estudantis que levaram multidões à rua, a produção cultural, sobretudo o teatro, tomava a si a responsabilidade de veicular o protesto. (...) Augusto Boal, o carioca diretor do grupo paulista Teatro de Arena, era um expoente desse teatro participativo e, embora seu Opinião, apesar de muito bom, não me tivesse parecido melhor que os nossos próprios shows em Vila Velha, ele era um homem brilhante e falava sobre a personalidade teatral que mais interessava aos brasileiros de então – Bertolt Brecht – com mais segurança e sinceridade do que qualquer outro que eu tivesse ouvido antes.74

67 Ibidem, pp. 265-266. 68 “Antes de 64, o socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes. A razão esteve em parte ao menos na estratégia do Partido Comunista, que pregava aliança com a burguesia nacional. Formou-se em consequência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combative e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno”. SCHWARZ, 1978, p.63. 69 VELOSO, 1997, p. 280. 70 Ibidem, p. 120. 71 Ibidem, p. 306. 72 Ibidem, p. 210. 73 VELOSO, 1997, p. 81. 74 Ibidem, pp. 81-82. 41 Posicionando o diretor na esfera do teatro engajado, Caetano apresenta Boal de maneira crítico-amorosa – como as reiteradas conjunções concessivas parecem querer evidenciar. A essa apresentação, seguem comentários sobre Arena conta Zumbi, peça que também era por ele dirigida:

O Zumbi também era um musical, mas, diferentemente do Opinião, não era um apanhado de canções diversas entremeadas de textos e apresentadas por cantores, e sim uma peça concebida em conjunto com um compositor cujas canções inéditas eram cantadas por atores. Nesse sentido, se o Opinião se assemelhava aos shows de bolso dos clubes noturnos, o Zumbi se assemelhava aos musicais da Broadway. (...) os efeitos almejados e assim obtidos, bem como as licenças de estilização tanto da cena quanto da música, eram de natureza dos encontradiços nos musicais convencionais: o resultado era, para mim como para o imenso público que lotou o teatrinho por longos meses, irresistível.75

Além de fazer uma provocativa comparação entre Opinião e Broadway, o discurso de Caetano explicita que ele e o “imenso público” – majoritariamente de esquerda, como fica posteriormente claro – chegam ao mesmo veredito sobre a peça, mas a julgam a partir de critérios distintos:

O Teatro de Arena contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder escravo negro que criou o maior e mais famoso quilombo – aldeia de ex-escravos rebelados – da história da escravidão no Brasil. A ideia de um território livre conquistado por ex-cativos corajosos se prestava naturalmente a todo tipo de alusão ao governo ditatorial e à nossa falta de liberdade sobre ele. Mas a glamourização da heroicidade do personagem central – que, no entanto, era apresentado rotativamente por cada um dos atores, numa homenagem às ideias coletivistas –, realçada pela graça da música, abria como que uma clareira agradável em nossas mentes. À época, teria soado como uma verdadeira blasfêmia – ou um esnobismo – alguém dizer bem de Zumbi nesses termos, eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esses para meu entusiasmo, embora não escondesse totalmente de mim mesmo a importância profunda desses aspectos “frívolos” e gostasse do Zumbi como quem gosta de The sound of music ou do Peter Pan da Disney. Um espectador culto de esquerda teria preferido uma desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos autores ou pela simplificação “maniqueísta” (a palavra aparece muito no período) dos enfrentamentos do povo heroico com seus algozes do que esse tipo de louvor. (...) A liberdade de gostar de Zumbi do modo como eu gostava, ao mesmo tempo aproximou-me a afastou-me de Boal.76

Como afirma o narrador, a apreciação da peça só é dada nesses termos no momento de sua escrita (“eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esses para meu

75 Ibidem, p. 82. 76 Ibidem, pp. 83-84. 42 entusiasmo”), ainda que existisse de forma incipiente em seu “eu do passado”. Na sua visão, gostar de Zumbi – herói alçado à condição de símbolo nacional – como quem gosta de um herói do universo pop estadunidense seria uma “blasfêmia” – e a palavra reforça o caráter dogmático que Caetano impõe à esquerda brasileira da época – imperdoável para os “espectadores cultos de esquerda”, que teriam preferido, segundo ele, uma desaprovação da peça baseada em parâmetros mais “politicamente corretos”. O comentário que Caetano tece sobre maniqueísmo (“(a palavra aparece muito no período)”) diz respeito a uma postura abertamente defendida por Augusto Boal em seu teatro. Exemplo disso, o trecho a seguir é retirado do programa da I Feira Paulista de Opinião, de 1968, intitulado “Que pensa você da arte de esquerda?”:

A exortação, os processos maniqueístas, as caracterizações de “grosso modo”, as simplificações analíticas gigantescas foram também constantes nos espetáculos dos CPCs. Esta é a linguagem do teatro popular. A verdade não era nunca tergiversada – apenas a sua apresentação era simplificada. A técnica maniqueísta é absolutamente indispensável a este tipo de espetáculo. Os repetidos ataques ao maniqueísmo partem sempre de visões direitistas que desejam, a qualquer preço, instituir a possibilidade de uma terceira posição, da neutralidade, da isenção, da equidistância ou de qualquer outro conceito mistificador. Na verdade, sabemos que existe o bem e o mal, a revolução e a reação, a esquerda e a direita, os explorados e os exploradores. Quando a direita pede “menos” maniqueísmo, está na verdade pedindo que se apresente no palco também o lado bom dos maus e o lado mau dos bons – pede que se mostre personagens que sejam bons “e” maus, da direita “e” da esquerda, revolucionários-reacionários, a favor “mas” muito antes pelo contrário.77

A “terceira posição” criticada por Boal no programa dizia respeito justamente àquela ocupada pelos tropicalistas, como o dramaturgo explicita em parágrafos ulteriores (“a terceira linha é o tropicalismo chacriniano-dercinesco-neo-romântico”78). É válido perceber que esses personagens gerados a partir da dissolução de maniqueísmos – “que sejam bons ‘e’ maus, da direita ‘e’ da esquerda, revolucionários-reacionários, a favor ‘mas’ muito antes pelo contrário” – guardam, de fato, muitas semelhanças com o que Caetano tenta fazer em Verdade tropical. Ela aparece, por exemplo, em suas tentativas de desconstrução da ideia de que a esquerda brasileira da década de 60 detinha o monopólio das “boas intenções”:

77 BOAL, 1968. Disponível em < https://institutoaugustoboal.org/2012/11/24/que-pensa-voce-da-arte-de- esquerda-augusto-boal/>. Acesso em 16 de junho de 2017. 78 Idem. 43 [Em 64] Os estudantes ou eram de esquerda ou se calavam. No ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém, em sã consciência, discordar do ideário socializante. A direita só existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis. Assim, as passeatas “com Deus pela liberdade”, organizadas por “senhoras católicas” em apoio ao golpe militar, nos surgiam como cínicos gestos hipócritas de gente má. A poetisa americana Elizabeth Bishop, no entanto, que viveu no Brasil de 52 a 70, em cartas a amigos nos Estados Unidos, exulta com essas passeatas que, segundo ela, tinha sido “originalmente organizadas como paradas anticomunistas” mas que “se tornaram marchas da vitória – mais de 1 milhão de pessoas na chuva!”. E conclui: “Era totalmente espontâneo, eles não podiam ser todos ricos reacionários de direita”.79

Caetano, embora demonstre mal-estar, não ataca diretamente a visão que Bishop apresentava do movimento que pôs na cadeia não apenas ele, mas alguns de seus “melhores colegas” e “melhores professores”. O narrador se refere a uma “visão distorcida” que tinha dos fatos na época, e, sem que chegue a concordar com a escritora, defende a legitimidade de sua perspectiva. No trecho abaixo, o grifo é do próprio autor:

Leio essas palavras hoje com mais assombro pela distorção da minha perspectiva na época do que pela ao menos equivalente exibida pela autora. Não é sem mal-estar que tomo conhecimento de sua versão do golpe de Estado, mas é uma lição a mais (...) constatar que alguém amável – e uma mulher poeta! – no Brasil de então pudesse assim resumir o movimento militar que pôs na cadeia meus melhores colegas e meus melhores professores: “Uns poucos generais corajosos e os governadores dos três estados mais importante se juntaram e, depois de umas 48 horas difíceis, tudo estava acabado. As reações [favoráveis] têm sido realmente populares, graças a Deus”. Havia o que se podiam considerar boas intenções na direita, portanto.80

A crítica definitiva a Boal, porém, é construída a partir de sua experiência com o diretor em Arena conta Bahia. Segundo o narrador, quando ainda estava planejando a peça, Boal “encomendou canções especiais, uma seleção de canções já existentes referentes à Bahia e sugestões para um roteiro”81. O roteiro sugerido baseava-se em uma lenda baiana: “(...) nós optamos por uma adaptação da macabra história da menina enterrada viva pela madrasta e que, de por sob a terra onde brotam seus cabelos como capim sedosos, canta todos os dias para o capineiro que tenta em vão dar fim ao teimoso capinzal”82. Embora Caetano não faça esta relação, a lenda, em alguma medida, traduzia um pouco da experiência e pretensões do grupo baiano, recém-chegado a terras paulistas. Naquele momento, eles começavam a

79 VELOSO, 1997, p. 15. 80 Ibidem, pp. 15-16. 81 Ibidem, p. 84. 82 Idem. 44 despontar no cenário musical brasileiro, Bethânia antes de todos. Além dela, e do próprio Caetano, também participavam da peça Gal, Gil e Tom Zé. O texto final proposto, porém, não agradou nem a Caetano nem ao diretor (“O resultado foi uma tolice que nada tinha a ver com o mundo de Boal”83):

Boal considerou – com extrema delicadeza – que tendíamos mais para uma atmosfera demasiado lírica, e abandonando de todo as nossas ideias de enredo, passou a escolher, dentre as canções que selecionamos, um repertório que lhe permitisse encenar algo condizente com seu prestigiado teatro de luta. Duas coisas me saltaram à vista: ele não aceitou uma só canção de Dorival Caymmi, de quem, naturalmente, tínhamos sugerido muitas; e, diante das minhas restrições aos arranjos cheios de tiques – nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da Bossa – que encontravam nele fácil acolhida quando sugeridos pelos músicos, ele se justificou dizendo mais ou menos o seguinte: “Você pensa em termos de buscar uma pureza regional e por isso reage a esses efeitos, eu penso em toda uma juventude urbana que eu preciso atingir e que entende essa linguagem”. Dois anos mais tarde, no meio do furacão tropicalista, eu muitas vezes encontrava na lembrança dessas palavras argumento para reafirmar minha posição. Enquanto Boal, em defesa das opções estéticas da esquerda, desancava o nosso trabalho num manifesto assinado e distribuído à entrada de uma faculdade em São Paulo, aonde nós, os tropicalistas, tínhamos sido chamados para um debate sobre o movimento.84

Mesmo sob as limitações documentais naturalmente apresentadas pela prosa que se ampara na memória, Caetano incorpora um curioso discurso direto à narrativa, relatando o que havia “mais ou menos” dito Boal. Mais interessante, porém, é como a própria fala de Boal – proferida em um momento anterior à sua oposição direta ao tropicalismo – é incorporada agora pelo advogado de defesa do movimento. A “pureza regional” prescindida pelo diretor em Arena conta Bahia em prol da adequação de sua linguagem à da “juventude urbana” é implicitamente comparada por Caetano ao gesto tropicalista, cujas críticas recebidas geralmente se amparavam em uma suposta falta de fidelidade a raízes regionais. Para ilustrar isso, é possível usar palavras do próprio Boal, escritas em 1968:

O tropicalismo é importado – desde o desenvolvimentismo de JK, quando apareceu o cinema novo, a bossa nova e a nova dramaturgia brasileira, o Brasil não importava arte. Agora, em cinema, é comum assistir a filmes dirigidos por Vincent Minelli (ou quase) para MGM, coisas do gênero “Garota de Ipanema”; em teatro, assiste-se à avalancha inglesa misturada com a crueldade provinciana, copiada de Grotowsky Living Theatre, em música, depois do iê-iê-iê vemos a maioria dos nossos cantores procurando

83 Ibidem, p. 85. 84 Idem. 45 fantasias e até Roberto Carlos, que já era símbolo acabado da mais burra alienação, voltou da Europa com os óculos e os bigodes de John Lennon.85

Antes de retomarmos as reflexões sobre o embate entre Caetano e o dramaturgo em Verdade tropical, é importante entendermos melhor as discordâncias existentes entre a arte participativa e o tropicalismo no final da década de 60. No trecho transcrito, as críticas de Boal focalizam o momento tropicalista, porém, antes mesmo de ele se consolidar como movimento organizado, Caetano Veloso e Gilberto Gil já tentavam intervir no “nacionalismo ortodoxo” defendido por grande parte da classe artística brasileira por meio da proposição do que chamaram de “Som universal”. Para aprofundar as consequências políticas dessa intervenção estética, é preciso resgatar algumas particularidades da década de 60, que mobilizavam o debate artístico. Embora algumas já tenham sido citadas no capítulo anterior, convém detalhá-las melhor, a fim de dar conta da especificidade de um período em que participação política e produção artística andaram lado a lado, sendo mesmo encaradas por alguns como esferas indissociáveis. Em sua biografia, Luiz Carlos Maciel chega a afirmar que a principal crença da juventude de sua geração – e sua noção de “geração” está bastante atrelada à juventude de determinada classe social, formação cultural e localização geográfica, vale dizer – era “a atribuição à arte de uma função transformadora da sociedade”86. O desenvolvimentismo proposto por Juscelino Kubitschek na década de 50, embora tenha proporcionado a modernização da infraestrutura e da indústria nacionais, abrindo espaço para uma euforia metonimizada na construção de Brasília – o plano piloto que faria o país decolar rumo ao “progresso” –, não interviu satisfatoriamente nas desigualdades sociais existentes no cenário brasileiro. A Revolução Cubana, que acontece em 1959, mobilizada por ideais nacionalistas e socialistas, servia de inspiração e lembrança da necessidade de implementação de transformações sociais radicais no Brasil. Nas artes, o exemplo insular contribuía para o aparecimento de projetos culturais que enfatizassem a necessidade de uma arte participativa, com reais possibilidade de alcance das massas. Em Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, Marcelo Ridenti, com base nas categorias conceituais esboçadas por Michael Lowy e Roberto Sayre, defende a ideia de que a maioria dos artistas brasileiros de esquerda adotou um espírito de “romantismo

85 BOAL, 1968. Disponível em < https://institutoaugustoboal.org/2012/11/24/que-pensa-voce-da-arte-de- esquerda-augusto-boal/>. Acesso em 16 de junho de 2017. 86 MACIEL, 1996, p. 73 apud DUNN, 2009, p. 59. 46 revolucionário” na década de 60, caracterizado, em linhas gerais, pela crítica radical à modernização capitalista e busca pelas “raízes nacionais”87. Envoltos em promessas revolucionárias, os primeiros anos dessa década foram marcados por tentativas de transformação efetiva da realidade social brasileira. Nas artes, talvez o exemplo mais emblemático disso seja a criação, em 1962, do Centro Popular de Cultura (CPC). Sua estrutura estava baseada, em parte, no Movimento de Cultura Popular (MCP), um programa de alfabetização aparelhado pelo método Paulo Freire e patrocinado (a bem da verdade, com fins mais eleitoreiros do que propriamente “revolucionários”) pelo governo de Miguel Arraes, em Pernambuco. Denunciando a dependência econômica com relação ao capital estrangeiro e defendendo uma política econômica mais nacionalista, o CPC contava com a participação de artistas como o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Cacá Diegues e músicos como Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré. Ele nascia da crença de que a revolução não poderia ser efetivada apenas por meio do ativismo sindical e da política eleitoral. Seu principal objetivo, portanto, era “aumentar a consciência política por meio de atividades educativas e culturais voltadas para as massas, ao mesmo tempo em que buscava forjar uma ampla aliança de trabalhadores, camponeses, intelectuais, artistas e nacionalistas radicais entre os militares”88. Fazia isso a partir do programa cultural proposto pelo Partido Comunista Brasileiro, ou seja, defendendo um paradigma popular-nacional (havia a crença de que apenas o “popular” era autenticamente nacional) para a produção artística. A primeira parte do livro de Caetano Veloso reflete bem o horizonte socializante vislumbrado e perseguido durante os primeiros anos da década de 6089. Com o intuito de sustar as mudanças sociais profundas que pareciam se mostrar cada vez mais palpáveis, a contrarrevolução irrompe, em 1964, sob a forma de uma ditadura civil-militar 90 pró- capitalista. Era um “balde de água fria” na esquerda brasileira, que não estava suficientemente mobilizada para apoiar o governo de João Goulart e resistir efetivamente ao golpe articulado pela direita. Dessa forma, chegava ao fim o período de experiência democrática pela qual o país passou entre os anos 1945 e 1964.

87 RIDENTI, 2000, pp. 55-7. 88 DUNN, 2009, p.61 89 A primeira parte do livro, por exemplo, remonta a atmosfera de ebolição cultural vivida pelo jovem Caetano em Salvador. Na época, a Universidade Federal da Bahia, onde começou a estudar, despontava como importante mobilizadora cultural da cidade. Isso se explicava, em parte, pelo fato de Edgar Santos, reitor da universidade de 1946 a 1961, apostar no papel de liderança na modernização da Bahia que a universidade deveria assumir. Para promover sua “desprovincialização cultural”, ele investiu substancialmente na área de Ciências Humanas e Artes, abrindo faculdades de música, teatro, dança e artes visuais. DUNN, 2009, p. 71. 90 DREIFUSS, 1981. 47 Chegava ao fim, também, a experiência dos Centros Culturais de Cultura, sem que isso representasse, contudo, a morte das esperanças no potencial revolucionário da arte. Prova disso é que, nos anos seguintes, até o AI-5 ser instaurado, houve grande produção cultural de esquerda, possibilitada pelo fato de a perseguição política ter se voltado, nos primeiros anos, sobretudo para os grupos que representavam perigo mais iminente à manutenção da ordem, como aqueles ligados à massa operária e camponesa91. No entanto, é preciso ressaltar que essa produção tinha sua circulação limitada a grupos diretamente ligados à produção ideológica, como estudantes, jornalistas, artista, alguns sociólogos e economistas e parte do clero.: “Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um lado para as comissões de governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e jornais do país, não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado – produz para consumo próprio”92. Com a dissolução do CPC, vários de seus dramaturgos ajudaram a compor o Grupo Opinião. Sua primeira e mais famosa produção foi o Show Opinião, que buscava dar continuidade à aliança entre produção artística e cultura popular, objetivo outrora perseguido pelo CPC. O show contava com a participação de Nara Leão, cantora bossa-novista (posteriormente substituída por Maria Bethânia), João do Vale, cantor e compositor do Maranhão, e Zé Kéti, sambista do Rio de Janeiro, e combinava música popular à narrativa dramática: as apresentações musicais eram entremeadas por falas dos músicos, que emitiam suas opiniões sobre a cultura e a política daquela época. A intervenção política ambicionada pelo espetáculo esbarrava justamente nas limitações de seu alcance, possíveis de serem constatadas neste depoimento de Heloísa Buarque de Hollanda:

Lembro-me de ter assistido ao show de pé várias vezes, arrepiada de emoção cívica. Era um rito coletivo, um programa festivo, uma ação entre amigos. A plateia fechava com o palco. Um encontro ritual, todos em “casa”, sintonizados secretamente com o fracasso de 64, vivido como um incidente passageiro, um erro informulado e corrigível, uma falência ocasional cuja consciência o rito superava.93

A expressão “ação entre amigos” utilizada por Heloísa Buarque de Hollanda evidencia a tautologia existente na mensagem proposta pelo Opinião: de certa forma, ela chegava quase que exclusivamente ao público cultural urbano de esquerda, aquele que com ele já

91 SCHWARZ, 1978, p. 92 SCHWARZ, 1978, p. 62. 93 HOLLANDA, 1992, p. 35 apud DUNN, 2009, p. 76. 48 compartilhava ao menos similar postura ideológica, contribuindo para essa dimensão de “ritual” que o espetáculo, como afirma a crítica, assumia. Nesse panorama, a canção popular – com potencial de infiltração nas massas muito maior do que aquele apresentado por outras formas artísticas, como o teatro, a literatura ou as artes plásticas – consolida-se como esfera privilegiada para os debates que estavam sendo então travados. Uma consequência disso foi a divisão da bossa nova em duas vertentes distintas, fenômeno decisivo para a configuração daquilo que hoje chamamos de MPB. De um lado, havia os bossa-novistas que continuavam apostando nos elementos jazzísticos e urbanos nos quais se baseava o movimento. Do outro, aqueles que exploravam cada vez mais o samba urbano de raiz e gêneros “folclóricos” rurais, como Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré94. É dessa última vertente que descende diretamente, nos primeiros anos de regime militar, a chamada “música de protesto”. Embora heterogênea, a produção dos artistas dessa “segunda geração” da bossa nova tinha como ponto de interseção a defesa das tradições musicais brasileiras, protegendo-as das cada vez mais frequentes influências estrangeiras. As canções de protesto alcançaram grande sucesso sobretudo entre um público jovem, urbano e de esquerda, processo em grande parte alavancado pelo fenômeno dos festivais televisivos de música. No entanto, esse sucesso não se comparava à consagração popular conquistada pelo iê-iê-iê da Jovem Guarda, cujas músicas chegavam às massas principalmente via rádio, mas contavam também com uma boa ajuda da incipiente televisão brasileira. Funcionando sob a lógica do mercado, ela explorava a coexistência, em sua programação, dessas duas tendências aparentemente conflitantes como forma de ampliar a audiência. Essa polarização da canção popular brasileira acirrava as disputas da época, como exemplifica o embate com Geraldo Vandré narrado por Caetano Veloso em Verdade tropical. O conflito tem como pano de fundo a participação de Caetano no programa televisivo da TV Record Frente Ampla da Música Popular Brasileira. Como ele conta, Paulo Machado de Carvalho, dono e diretor-geral da emissora à época, havia chamado para uma reunião artistas como Wilson Simonal, Nara Leão, Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e Gilberto Gil, além do próprio Caetano, com o intuito de pensar em um novo programa musical:

Todos falaram com entusiasmo sobre a necessidade de defender nossas características culturais. Geraldo Vandré chegou a ficar com os olhos cheios d’água, tomado pela própria eloquência. Gil corroborou as heroicas intenções, somando a elas alguma reflexão sobre os novos meios de

94 DUNN, 2009, p. 77. 49 comunicação de massa (...). Paulinho Machado de Carvalho, depois de ouvir a todos, concordar com as indignações e alistar-se no exército de salvação da identidade nacional, propôs que, em vez de tentar revitalizar o Fino da Bossa, se criasse um novo programa, desta vez democratizando as lideranças, distribuindo entre as estrelas crescentes as responsabilidades. Quatro “núcleos” se criaram: um de Elis, um de Simonal, um de Vandré e um de Gil.95

Foi, segundo Caetano, como estratégia de marketing do programa – resultado de uma ação do “exército da salvação da identidade nacional”, como o narrador ironicamente nomeia – que se organizou uma passeata contra a guitarra elétrica, vista por ele como “mais uma macaqueação da militância política”96. Caetano, que – diferentemente de Gilberto Gil – não participou da passeata, assistiu-a passar do alto de um hotel, ao lado de Nara Leão. No trecho, o narrador evidencia o caráter “opressor”, daquela “ridícula e perigosa jogada de marketing”97: “Nara e eu assistimos, assombrados, de uma janela do Hotel Danúbio, à passagem da sinistra procissão. Lembro que ela comentou: ‘Isso mete até medo. Parece uma passeata do Partido Integralista’”98. Para não deixar dúvidas, Caetano conclui explicando que o Partido Integralista era “a versão brasileira do nazi-fascismo, um movimento católico- patriótico-nacionalista de extrema direita nos anos 30 do qual alguns antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar”99. O conflito direto com Vandré, porém, acontece posteriormente, às vésperas do programa comandado por Gil, mas pensado sobretudo por Caetano, ir ao ar. Segundo o cantor, a necessidade de responder à marcha contra a guitarra elétrica havia exacerbado sua “verve rebelde”: “Achei que, na noite de Gil, o programa deveria se transformar num escândalo anti-nacionalista e anti-MPB”100. O cantor propôs, então, que Maria Bethânia aparecesse no programa de minissaia, portando uma guitarra elétrica à moda roqueira, e cantasse uma música de Roberto Carlos com o sugestivo título “Querem acabar comigo”. O refrão da canção, de nítida afirmação pessoal, dizia: “Querem acabar comigo / Nem eu mesmo sei por quê / Enquanto eu tiver você aqui / Nada vai me destruir”. A intervenção proposta por Caetano Veloso irritou Vandré:

De algum modo, o texto que eu escrevera para Bethânia dizer caíra nas mãos de Vandré. Era uma consideração da força mitológica da figura de Roberto

95 VELOSO, 1997, p. 159. 96 Ibidem, p. 161. 97 Idem. 98 Idem. 99 Idem. 100 Idem. 50 Carlos, de sua significação como vislumbre do inconsciente nacional, de como ele era, comoventemente, “a cara do Brasil” de então. Quando Beta, depois de dizer isso, cantasse “Querem acabar comigo”, ficaria claro com o que queriam acabar – e quem queria. Vandré se enfureceu. Surgiu na porta do quarto de Gil, onde estávamos trabalhando, e, quase chorando, com os pelos dos braços arrepiados, gritava que nós não podíamos fazer aquilo, que seria um ato de agressão a tudo o que tínhamos de melhor, que minhas observações sobre Roberto Carlos talvez fizessem sentido num ensaio sociológico mas não num programa em que a música brasileira tinha de se afirmar contra o que Roberto Carlos apresentava. Tentei argumentar. Mas ele estava demasiadamente emocionado e disse que faria de tudo para impedir que aquilo acontecesse. Ele ameaçava interromper o número de Bethânia, de criar um caso.101

Algumas linhas à frente, comentando o programa comandado por Geraldo Vandré (que tinha como uma de suas convidadas a sambista Clementina de Jesus, à época recém- lançada, aos sessenta anos de idade, por Hermínio Bello de Carvalho, no show Rosa de Ouro), Caetano Veloso volta a chamar atenção para os “traços opressores” sustentados por certa parcela da esquerda brasileira, da qual faz questão de se distanciar:

Conhecedora de velhos lundus e sambas arcaicos, com uma voz grave e líquida e uma figura de máscara africana, essa mulher [Clementina de Jesus] era um tesouro que ficara escondido numa vida de empregada doméstica (...). Pois bem, o público do Teatro Paramount, jovem e paulista, embora majoritariamente estudantil e nacionalista de esquerda, não tinha ideia de quem fosse Clementina, nem mesmo estava preparado para ouvir o samba em estado tão cru e autêntico. Ao vê-la surgir no palco, murmurou assustado e, ao ouvi-la cantar, vaiou, sendo que de alguns jovens presentes (de ambos os sexos) ouvi gritos de “fora, macaco!”. Eu próprio, entre revoltado e amedrontado, levantei-me e gritei para os que puderam e quiseram me ouvir: “Paulistas imbecis, vocês não sabem nada. Racistas filhos da puta! Respeitem Clementina”, e saí do teatro.102

Contudo, nesse mesmo ano, a intervenção mais significativa de Caetano e Gilberto Gil aconteceria no III Festival da Música Popular Brasileira, também organizado pela TV Record: “decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução”103. Era o prelúdio tropicalista. No festival, as músicas “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, representantes do chamado “Som universal” proposto por Caetano e Gil, destoavam nitidamente das demais canções concorrentes. Segundo o compositor, “Alegria, alegria” era uma “marchinha alegre, de algum modo contaminada pelo pop internacional”104, que trazia na letra “algum toque

101 Ibidem, p. 162. 102 Ibidem, p. 164. 103 Ibidem, p. 165. 104 Idem. 51 crítico-amoroso sobre o mundo onde esse pop se dava”105. O título da canção, cuja letra em primeira pessoa narra de forma fragmentada o percurso de “um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade”106, remetia a um famoso bordão do apresentador de televisão Abelardo Barbosa, o Chacrinha: “Seu programa tinha enorme audiência e, como se fosse uma experiência dadá de massas, às vezes parecia perigoso por ser tão absurdo e tão energético”107. Abortada a ideia de subir ao palco com a banda que acompanhava Roberto Carlos em suas apresentações108, Caetano Veloso aposta em um grupo de rock argentino chamado Beat Boys, “muito talentosos e conhecedores da obra dos Beatles”109. Segundo o narrador, “o aspecto do grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas representava de modo gritante tudo o que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam”110. O primeiro choque, portanto, é comportamental: tem a ver com seus cabelos, suas roupas e o objeto que portavam. Esse procedimento viria a ser muito explorado pelos tropicalistas futuramente, que passaram a se preocupar com o mise-en-scène de modo até então pouco presente na música popular:

Quando chegou a hora de as canções serem apresentadas, os lances foram tão dramáticos quanto poderíamos ter esperado, mas, naturalmente, de maneiras muitas vezes imprevistas. O mero fato de eu ter comigo no palco um grupo de rock era já um escândalo antecipado. (...) O fato é que, enquanto meu currículo era enunciado pelos apresentadores do programa, os Beat Boys, como estava estipulado que todos os grupos acompanhantes de cantores fizessem, apareceram no palco para ligar seus instrumentos e tomar posição, surpreendendo a plateia com seus cabelos longos, suas roupas cor- de-rosa e suas guitarras elétricas de madeira maciça. Iniciou-se uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa antes que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores, diretores, produtores e público. 111

Além de “Alegria, alegria”, “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, uma canção que adaptava temas básicos do canto de capoeira ao método harmônico de cortes bruscos, também contava com guitarras em seus arranjos – sob responsabilidade de Rogério Duprat, músico

105 “ (...) havia a distância necessária para a crítica – para mim, uma condição da liberdade –, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas”. Ibidem, p. 166. 106 Ibidem, p. 166. 107 Ibidem, pp. 166-67. 108 “Para o tratamento, imaginei usar uma formação já existente no mundo do iê-iê-iê, possivelmente a própria banda de Roberto Carlos, o RC7. Foi mais por timidez do que por opção estética que não convidei os músicos do Rei. Ibidem, pp. 167-68. 109 Ibidem, p. 168 110 Ibidem, p. 169. 111 Ibidem, p. 172. 52 erudito de vanguarda que viria a ser um importante apoiador do tropicalismo. Na música, as guitarras do trio de rock Os Mutantes, composto por três adolescentes paulistas apresentados por Duprat a Gil, combinavam-se ao berimbau e à grande orquestra, e contrastavam com o violão – instrumento-símbolo dos músicos nacionalistas –, que o cantor baiano empunhava no momento de sua apresentação. As apresentações de Caetano e Gil marcavam o início daquilo que viria a se chamar tropicalismo, gesto que se quis “revolucionário” em sua dissolução dos antagonismos da época:

(...) o que viria se chamar tropicalismo pretendia situar-se além da esquerda e mostrar-se despudoradamente festivo (...). Parti para a aventura de “Alegria, alegria” como para a conquista da liberdade. Depois do fato consumado, eu sentia a euforia de quem quebrou corajosamente amarras inaceitáveis. Gil, ao contrário, considerando que, se se dava tamanho peso ao que se passava em música popular, e se nós estávamos tomando atitudes drásticas em relação a ela, algo pesado deveria nos acontecer em consequência – um cálculo que eu, em minha excitação, evitei – entrou em pânico.112

A vinculação de seu gesto a uma “conquista da liberdade” e à quebra de “amarras inaceitáveis” está relacionada ao que Luiz Tatit chamou de “disforia da cristalização”, conceito apresentado no início do capítulo. Essa postura seria radicalizada no ano seguinte, com o lançamento do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis. Em “Superbacana”, por exemplo, uma das canções do LP composta por Caetano Veloso, há uma referência metafórica ao papel – encarado como obstrutor e arcaico – assumido pelos artistas nacionalistas: “Um batalhão de cowboys / Barra a entrada da legião dos super-heróis”113. A “revolução” que Caetano pretendia empreender na música popular brasileira – à qual resistiam fervorosamente artistas como Boal e Vandré – encontra em João Gilberto e, principalmente, em Oswald de Andrade exemplo e legitimação dos quais precisava. A antropofagia cultural proposta pelo poeta modernista na década de 1920 buscava responder à questão da dependência cultural, também no centro do debate artístico daquela época. Em Verdade tropical, o capítulo “Antropofagia” cumpre o papel de traçar paralelos existentes entre tropicalismo e o conceito de Oswald de Andrade. Representativo da faceta ensaística do livro, é um dos momentos da obra em que mais se evidencia a tentativa de interpretação do movimento.

112 Ibidem, p. 179. 113 VELOSO, 2003a, p. 58. 53 No capítulo, o narrador afirma que seu primeiro contato efetivo com Oswald tinha acontecido através da montagem de O rei da vela, realizada por José Celso Martinez em 1967114. É somente depois, por meio do grupo dos poetas concretos, que ele entra em contato com os dois principais escritos doutrinários do autor modernista: o Manifesto da poesia pau brasil e o Manifesto antropófago. Em entrevista concedida a Augusto de Campos em 1968, os conceitos de Oswald de Andrade são utilizados como forma de legitimação da intervenção tropicalista, também ela desejosa de se opor “contra as coisas da estagnação”:

Acho a obra de Oswald enormemente significativa. Fiquei impressionado, assustado mesmo, com aquele livro de poemas que você me deu [Oswald de Andrade, textos escolhidos e comentados por Haroldo de Campos]. Só conheço de Oswald esse livro e o Rei da Vela. E mais aquele estudo do Décio, Marco Zero de Andrade, maravilhoso. Fico apaixonado por sentir, dentro da obra de Oswald, um movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas da estagnação, contra a seriedade. (...) Uma outra importância muito grande de Oswald para mim é de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo.115

Como bem resume Caetano Veloso em Verdade tropical: “A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva”116. O narrador retoma o debate da época e mobiliza, com base em Oswald, argumentos que – se já existentes naquela época, como comprova a sua entrevista de 1968 –, certamente podem ser mais bem desenvolvidos nas páginas de seu livro. A relação que Caetano Veloso estabelece com João Gilberto também se relaciona com a antropofagia oswaldiana. No primeiro capítulo, quando narra seu primeiro contato com o músico, Caetano faz a seguinte afirmação:

114 A apresentação de José Celso Martinez é feita pelo narrador em contraposição a Augusto Boal: “Eu vira um espetáculo do Oficina – Os pequenos burgueses de Górki – em 65, época em que Bethânia estava com o Opinião em São Paulo. A montagem me encantara. O estilo do diretor José Celso Martinez Corrêa era ao mesmo tempo mais tradicional e mais sutil do que o de Boal. Lembro que, ao sair do teatro, pensei em como era problemático que eu gostasse talvez mais daquilo do que do meu querido Arena conta Zumbi. O Zumbi era um passo, uma conquista, não havia dúvida, mas em Os pequenos burgueses, do Oficina havia uma sensibilidade que me reportava aos espetáculos da Escola de Teatro da Bahia de Eros Martim Gonçalves e do Teatro dos Novos de João Augusto Azevedo. Uma sensibilidade que o Zumbi, muito mais esquemático, não mostrava. E foi a visao de Os pequenos burgueses de Zé Celso – muito cheio de nuances, muito “europeu” – que me deu a percepção de que o Zumbi de Boal era Americano, brodwayesco”. Ibidem, p. 241. 115 In COELHO & COHN, 2008, pp. 112-13. 116 VELOSO, 1997, p. 247. 54

A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delírios para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e – o que é mais importante – as nossas possibilidades. João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba (...) catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antônio Carlos Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça (...) como deu sentido às buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham tentando uma modernização da música através da imitação da música americana (...) marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva – o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba.117

A mudança promovida por João Gilberto, por ser revolucionária (“um processo radical de mudança de estágio cultural”), representa uma ruptura, mas esse passo à frente é dado sem abrir mão de dados de nosso acervo cultural, mais especificamente do samba. Diferentemente de artistas como Dick Farney, Lúcio Alves e Johnny Alf, que “vinham tentando uma modernização através da imitação da música americana”, não há a simples assimilação acrítica de modelos estrangeiros. João Gilberto bebeu na fonte do jazz estadunidense, mas incorporou seus procedimentos de tal forma “que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente”. Como “cereja do bolo”, o processo empreendido por João Gilberto reverbera nas mais diferentes classes: chama a atenção de figuras tão díspares entre si quanto poderiam ser os músicos eruditos e os mestres de bateria de escolas de samba. Portanto, é o gesto por assim dizer antropofágico de seu “mestre supremo” o que gera grande admiração em Caetano Veloso. No capítulo “Antropofagia”, essa relação é reiterada: “Nós [tropicalistas] tínhamos certeza de que João Gilberto (...) era um exemplo claro de atitude antropofágica. E queríamos agir à altura”118. Após a longa digressão, cabe retomar o debate entre Caetano Veloso e Augusto Boal. Ainda inconformado com o fato de um espetáculo que almejava “contar” a Bahia ter desprezado todas as canções de Dorival Caymmi sugeridas, Caetano prossegue com a sua interpretação da experiência:

117 Ibidem, pp. 35-6. 118 Ibidem, p. 249. 55 O fato é que, em 65, participei com entusiasmo do Arena conta Bahia, pois era estimulante ver a maestria de Boal em compor desenhos moventes com nossos corpos, e era uma felicidade estar ao lado de Bethânia, Gil, Gal, Tom Zé e Piti, mas disse a todos eles – e repeti inúmeras vezes para mim mesmo – que devia haver algo fundamentalmente errado em se montar um musical sobre a Bahia em que não havia lugar para um canção de Caymmi. As canções escolhidas tinham em comum uma caracterização nordestina que as afastava do estilo propriamente baiano – da graça, do gosto, da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na Cidade do Salvador. Mas o Nordeste de “Carcará” era já marca da persona pública de Bethânia e da música de protesto em geral. Eu, no entanto, sonhava a nossa intervenção na música popular brasileira radicalmente vinculada à postura de João Gilberto, para quem Caymmi era o gênio da raça.119

A contraposição que Caetano estabelece entre as composições de Caymmi e “Carcará”, canção de protesto composta por Chico Buarque, e talvez o maior sucesso do Opinião de Boal, reflete a distinção das lentes utilizadas pelo diretor e pelo tropicalista para enxergar o Nordeste, mais especificamente a Bahia. O narrador fala em uma “caracterização nordestina” existente no espetáculo que o distanciava “do estilo propriamente baiano”. Nas entrelinhas, há certa crítica ao modo como o Nordeste vinha sendo representado pelos artistas engajados, que apostavam quase unicamente na exploração de sua faceta mais rural e subdesenvolvida, tomando-o, em bloco homogêneo, como símbolo dos problemas sociais endêmicos do país. Para Caetano, que, diferentemente de Boal, havia nascido e crescido naquela região, a simplificação incomodava. Pelos brasileiros mais ao Sul, a Bahia é constantemente vinculada a julgamentos de base racista que estereotipam seus habitantes como preguiçosos e inaptos às demandas da vida moderna, ao mesmo tempo em que lhe é conferida certa aura romantizada de “berço da civilização tropical brasileira”. As descrições que Caetano faz primeiro de Santo Amaro – cidade que era provinciana, mas não estava totalmente apartada do processo de modernização vivido também em regiões menos periféricas do país –, e posteriormente de Salvador – centro de ebulição cultural no início da década de 60 – colocam em xeque essa visão do “Nordeste Carcará”, que limitava a representação “da graça, do gosto, da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na cidade do Salvador”. A canção “Clever Boy Samba”, uma das primeiras composições de Caetano Veloso, que nunca chegou a ser gravada, mas foi utilizada como inspiração para a composição de “Alegria, alegria”120, remonta, ainda que em tom de sátira, o cosmopolitismo da cidade de Salvador (sem esconder, porém, os traços de atraso que permaneciam presentes): “Pela Rua Chile eu desço / Sou belo rapaz / Cabelo na testa fecha

119 Ibidem, p. 85. 120 Ibidem, p. 165. 56 muito mais / Vou fazer meu ponto / Ali no Adamastor / Mesmo subdesenvolvido / Vou fazendo a ‘Dolce Vita’ (...) Adoro Ray Charles / Ou ‘Stella by Starlight’ / Mas o meu inglês não sai do ‘good night’”121. Para contrapor-se definitivamente a Boal, e a tudo o que ele representava, Caetano apresenta como prova cabal de suas distintas visões de mundo o modo como o espetáculo Rosa de ouro foi recebido por ele e pelo dramaturgo:

Lembro de ter um começo de discussão com Boal por causa de outro espetáculo musical que tinha estreado no Rio e a respeito do qual nossas opiniões divergiam diametralmente. Era o inesquecível Rosa de ouro, que revelou Paulinho da Viola (aos 24 anos) e Clementina de Jesus (aos sessenta) (...). Para Boal, esse espetáculo que me comovia pelo modo poético como apresentava músicos autênticos da mais refinada tradição de samba carioca, era “folclórico”. (...) me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto claramente o que sugerimos como beleza possível para nós. E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte- americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou – o que mais me interessava – como propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo. A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo. E para isso todo truque era bom.122

O espetáculo, que comovia Caetano “pelo modo poético como apresentava músicos autênticos da mais refinada tradição de samba carioca”, era encarado por Boal como “folclórico”. Embora não fique totalmente claro o sentido com que esse adjetivo é utilizado, os comentários feitos posteriormente pelo narrador permitem inferir uma noção de “folclórico” vinculada ao tipo de tratamento dado ao samba em Rosa de ouro, que o afastava justamente de aproveitamentos mais críticos, como aquele explorado no Opinião. De certa forma, é a distinção entre o “autêntico” e o “folclórico” – conceitos que não são entendidos da mesma forma pelos dois – o que está na base das considerações feitas por Caetano sobre Arena conta Bahia: a exploração estética e política dos traços mais atrasados do Nordeste em detrimento do que nele havia de belo e positivo (esfera da qual muitas canções de Caymmi dariam conta), também é interpretada por Caetano como uma forma de “jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto (...) o que sugerimos como beleza possível para nós”.

121 CALADO, 1997, pp. 119-20. 122 Ibidem, p. 87. 57 Nesse sentido, o que Caetano viria a chamar de “folclorização do subdesenvolvimento” 123 , e que está na base de sua crítica derradeira a Boal e aos nacionalistas, seria encarada por ele como uma evidência de que o “nacionalismo dos intelectuais de esquerda (...) pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil”. Para o narrador, a postura seria, afinal, mera estratégia política, que, já chegando pronta, impedia- nos de “propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo”, o que seria, afinal, uma das grandes pretensões de sua Tropicália.

2.2. Ruptura e apego: um “novo” projeto Brasil

O embate entre Caetano e Boal ocorre menos no plano narrativo do que no ensaístico: se colocadas em suspensão as interpretações que o narrador faz dos acontecimentos, as ações narradas – pelo menos aquelas que dizem respeito especificamente à sua participação em Arena conta Bahia – não configuram atitudes de confronto direto124. Mais importante do que a trama desenvolvida é a interpretação que o narrador faz da mesma – verdadeira esfera na qual se dá a contenda. Dessa forma, as ações são utilizadas como ponto de partida para reflexões sobre a visão da esquerda nacionalista da época, e sobre o quanto elas se distanciavam das de Caetano. Esse afastamento acontece, sobretudo, em dois sentidos, ambos de alguma maneira relacionados ao seu entendimento do que é “gostar das coisas do Brasil”. O primeiro, já desenvolvido neste capítulo, diz respeito à postura com relação à influência estrangeira, questão “resolvida” por Caetano por meio da incorporação ao tropicalismo do conceito oswaldiano de antropofagia cultural, para o qual a absorção do conteúdo estrangeiro, se crítica, não ocorre às custas da exclusão da matéria nacional. O segundo consiste em um sentimento particular, que mais perdoa do que critica, das coisas e do país125 desenvolvido por Caetano, no qual o narrador se baseia para criticar o “nacionalismo dos intelectuais de esquerda”. Esse sentimento está na raiz de outra dualidade a ser investigada em Verdade

123 “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot-dogs, como em todas as cidades grandes”. VELOSO apud DUNN, 2009, p. 91. 124 Schwarz (2012, p. 65) afirma que há, em Caetano, um “traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo propriamente dito”, que “combinava com o momento brasileiro do pré-golpe, quando durante algum tempo pareceu que as contradições do país poderiam avançar até o limite e ainda assim encontrar uma superação harmoniosa, sem trauma, que tiraria o Brasil do atraso e seria a admiração de todos.” 125 SCHWARZ, 2012, p. 70. 58 tropical: a conjugação de atitudes de ruptura e apego, mais um traço da personalidade ambígua de Caetano Veloso. Mesmo tendo feito primeira comunhão e assistindo regularmente às missas dominicais, Caetano Veloso decide, ainda na infância, comunicar à família seu ateísmo. Não faz isso, porém, de maneira a gerar um embate direto: “Não o fiz em tom oficial – nem mesmo com tanta clareza – por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha Ju”126. O posicionamento – que guarda correspondências com a atitude “crítico-amorosa” sustentada pelo narrador frente aos jovens americanizados, e com o modo como os dados da realidade são apresentados em sua música “Alegria, alegria” – é representativo da conjugação de ruptura e apego que pautará muitas das intervenções do artista. De fundo recorrentemente conciliador, essa combinação compõe, junto à dualidade músico popular/intelectual, uma das linhas de força de Verdade tropical, e encontra desdobramentos tanto em seu plano narrativo, quanto ensaístico. No primeiro, ela se faz presente sobretudo no retrato de si construído pelo narrador, e também nas características do movimento por ele idealizado, cuja história é contada na obra. No segundo, relaciona-se intimamente às análises artísticas e políticas empreendidas. A forte relação que o narrador estabelece com Santo Amaro, lugar onde nasceu, é representativa dessa combinação. Bastante idealizada, a cidadezinha baiana é o cenário das primeiras aventuras de Caetano, que a pinta com tons idílicos:

Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara. (...) Quase todo mundo era visivelmente mestiço. Que o país fosse pobre não era uma vergonha (embora eu passasse depois a torcer para que ele enriquecesse). Supúnhamos que éramos pacíficos, afetivos e limpos. Era inimaginável que alguém nascido aqui quisesse viver em outro país.127

Indo de encontro à atitude de grande parte de seus colegas santamarenses, para os quais o alargamento dos horizontes provincianos era um desejo profundo128, o narrador conta que, ao precisar se mudar para Salvador a fim de terminar seus estudos, “não tinha nenhum desejo de

126 VELOSO, 1997, p. 28. 127 Ibidem, p. 253. 128 “Lembro de Roberto, meu irmão imediatamente mais velho do que eu, vociferando contra a vida estreita que se levava ali, impaciente por ir embora para Salvador, que, pouco mais tarde, ele estaria impaciente para deixar por São Paulo. Emanuel Araújo, meu colega do ginásio que se tornaria renomado artista plástico, expressava sentimentos semelhantes aos de Roberto com ainda mais veemência – e fez o mesmo itinerário. Hercília, a menina que eu amava com o coração maior que o mundo, (…) tinha desenvolvido uma retórica de desprezo arrogante pela nossa cidadezinha natal que chegava a ser ofensiva”. Ibidem, p. 57. 59 deixar Santo Amaro”129. Justificando seu posicionamento, Caetano afirma: “(...) atava-me à convicção de que, se queria ver a vida mudada, era preciso vê-la mudada em Santo Amaro – na verdade, a partir de Santo Amaro”130. No polo oposto ao dos colegas atraídos pela “cidade grande”, sua irmã, Maria Bethânia, não aceitava a ida para a capital: “Mas o meu apego a Santo Amaro não era nada comparado à reação de Bethânia à nossa saída de lá: (...) ela simplesmente não aceitava a mudança”131. Distanciando-se tanto dos colegas cujo desejo de sair de Santo Amaro inviabilizava qualquer apego à cidade, quanto de sua irmã, para quem a ida para Salvador era, mais do que indesejada, inaceitável, Caetano encontra seu meio-termo:

Eu não encarava com desagrado a possibilidade de ir viver em Salvador: a cidade de que eu mais gosto no mundo já era querida e conhecida desde a infância, e, se a questão era alargar os horizontes da vida, Santo Amaro podia parecer-me o lugar ideal para um santamarense tentar fazê-lo, mas mudar para Salvador não deveria significar um impedimento: Salvador era bem perto de Santo Amaro (...).132

Esse rompimento inevitável de Caetano Veloso com a sua cidade natal – amenizado pela ideia de que o trajeto Salvador-Santo Amaro não era, afinal, algo tão complicado de ser feito – não ocorre às custas de um efetivo desligamento. Santo Amaro permanece na medida em que serve como ponto de acumulação de experiências que serão aproveitadas em intervenções futuras, como elementos que as explicam ou as legitimam. Ser o primeiro compositor brasileiro a inserir “Coca-cola” em uma de suas letras e subir ao palco do III Festival da Música Popular Brasileira, em 1967, acompanhado das guitarras do grupo argentino Beat Boys são intervenções, afinal, coerentes com a atitude frente à americanização tomada por Caetano, ainda adolescente, em Santo Amaro, o que confere certa integridade à sua personalidade. À preocupação com a inteireza dos gestos133, por sua vez, soma-se a exaltação de sua singularidade. Caetano é um menino nascido em cidade provinciana (ainda que sensivelmente tocada pelo horizonte socializante da época), que é, porém, satisfeito com sua condição o suficiente para, no final de sua adolescência, não desejar de lá sair. Ao mesmo tempo, é o jovem que entra no show business levantando como principal bandeira o ataque àquilo que ele considerava haver de mais “provinciano” na música popular brasileira.

129 Ibidem, p. 56. 130 Ibidem, p. 57. 131 Idem. 132 Idem. 133 No capítulo “Tropicália”, o narrador afirma: “(…) profundamente influenciado por meu pai, desenvolvi uma verdadeira obsessão da (sic) integridade”. 60 Mais do que constatar o modo como essa “dupla fidelidade” de Caetano se faz presente – ou se quer presente – desde seus primeiros anos de vida, o que nos interessa explorar é a forma como a conjugação caetanista de ruptura e apego desdobra-se nas características do movimento tropicalista por ele idealizado, e de que modo ela é mobilizada em prol da (tentativa de) resolução de certas questões da época. Em linhas gerais, nas artes brasileiras da segunda metade do século XX, o tropicalismo também representou rompimento e continuidade. Levando em consideração seu contexto histórico mais imediato, o da década de 60, ele rompeu com os procedimentos estéticos em voga, principalmente no que se refere à música. Em contrapartida, representou um ponto de convergência das vanguardas artísticas brasileiras do século XX, integrando processos do concretismo, as revoluções musicais trazidas pela bossa nova, além de antropofagia e da poesia pau brasil oswaldianas. Esse processo de ruptura e continuidade também é possível de ser identificado no que diz respeito à modernização e tradição. O tropicalismo mostrou-se sintonizado com a modernidade internacional e com os avanços tecnológicos. Ao mesmo tempo, resgatava “dicções esquecidas pela MPB, como a de Carmen Miranda, Araci de Almeida ou Vicente Celestino”134, mostrando-se comprometido em dar continuidade a uma tradição da música popular. A ruptura proposta por Caetano Veloso no início da década de 60 – a “aventura tropicalista” da qual o livro tenta dar conta – vincula-se intimamente, como já exposto, àquilo que Luiz Tatit chamou de “disforia da cristalização”. Ela está na base de seu projeto mais explícito e ruidoso, já explorado na primeira parte deste capítulo, que estava “comprometido com a ruptura e a dessacralização dos padrões coercitivos que imperavam na MPB da época”135. No entanto, a esse projeto, soma-se um segundo, mais implícito e paciente, que consiste na tentativa de retomada do ethos da canção de rádio. Como é possível constatar em Verdade tropical, a formação musical de Caetano é impregnada pelo contato que o artista teve com as canções de rádio da década de 50136. Inclusive, sua primeira aparição midiática, que ocorreu no programa Esta noite se improvisa, da TV Record – espécie de game show no qual cantores e compositores deveriam, a partir de uma palavra dada, encontrar uma música que a contivesse –, já evidenciava seu grande conhecimento do repertório nacional137.

134 TATIT, 2012, p.264. 135 Ibidem, p. 275. 136 “Eu ouvia e aprendia tudo no radio, mas à medida que, ainda na infância, ia formando um critério, ia deixando de fora uma tralha cuja existência eu mais perdoava do que admitia”. VELOSO, 1997, p. 254. 137 “[Com o programa Esta noite se improvisa] eu estreava na TV e a partir de então meu conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memoria se tornaram lendários”. Ibidem, p. 139. 61 A inclinação que Caetano passou a apresentar pelo iê-iê-iê de Roberto Carlos deve-se, em grande medida, à percepção do potencial de comunicação apresentado pela jovem guarda, cuja recepção pelo público contrapunha-se à rejeição que encontrava em boa parte da classe artística. Tratava-se de um alcance comparável apenas aos dos grandes cantores de rádio da década anterior, como Orlando Silva, Emilinha Borba, Nélson Gonçalves etc, e que dialogava diretamente com as pretensões grandiosas do tropicalista. A inserção, no disco-manifesto Panis et Circensis, da música “Coração materno”, de Vicente Celestino, evidencia não apenas essa tentativa de retomada, como comprova que – embora pareçam apontar para direções distintas – os dois projetos se sobrepõem. De forma mais específica e com maiores consequências, essa dialética ruptura-apego interferiria sensivelmente no procedimento tropicalista de justaposição do arcaico e do moderno. Antes de relacioná-la à dualidade supracitada, é produtivo entender de que forma essa justaposição é explorada pelos tropicalistas, e em que medida ela encapsula certa experiência brasileira daquela década. Como Caetano Veloso observa em Verdade tropical, o golpe de 64 foi “um gesto exigido pela necessidade de perpetuar (...) desigualdades, que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar”138. A modernização, que, no governo precedente, parecia não apenas visar ao desenvolvimento econômico ou tecnológico, mas também a uma transformação social, dá lugar, no regime militar, a um processo de modernização conservadora, que se utilizava sobretudo do capital estrangeiro para dar conta da atualização da infraestrutura sem, no entanto, mexer nas bases desiguais da sociedade brasileira. Pelo contrário, com a contrarrevolução, valores sociais e culturais arcaicos e reacionários (metonimizados em sinistras Marchas da Família com Deus pela Liberdade, por exemplo) foram reativados: “no conjunto de seus efeitos secundários, o golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc”139. Utilizadas como massa de manobra, a pequena burguesia e a burguesia rural garantiam a base popular do golpe, que as mobilizava, mas não as representava. Tecnocrata e pró- estadunidense, “moderno”, portanto, em um sentido mais estrito do termo, ao Governo militar pouco importava os interesses desses grupos. Assim, a contrarrevolução nascia da combinação do moderno – representado pelas “manifestações mais avançadas da integração imperialista internacional”140 – e do arcaico –

138 Ibidem, p. 15. 139 SCHWARZ, 1974, p. 71. 140 Idem. 62 representado pela “ideologia burguesa mais obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas tradições”141. Consequências da sobreposição de diferentes fases de um mesmo sistema, avanço e atraso não se auto-excluíam: “a integração imperialista, que em seguida modernizou para os seus propósitos a economia do país, revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político de que necessita para a sua estabilidade”142. Dialeticamente, “de obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a instrumento internacional da opressão mais moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional passa a forma de submissão”143. Ainda baseando-nos em Schwarz, é possível afirmar que essa experiência servia de matéria prima do tropicalismo, cujo efeito básico estaria “justamente na submissão de anacronismos (...) à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil”144. A canção “Tropicália”, que funciona como matriz estética do movimento, é talvez a mais representativa desse procedimento. Por meio da colagem de imagens contraditórias, vemos emergir da canção um Brasil metaforizado, país em que traços arcaicos e modernos coexistem. Na música, a orquestra mistura naipes eruditos de sopros e cordas a instrumentos folclóricos, como viola caipira, bongô, agogô e triângulo. Além disso, ainda podem ser percebidos recursos de música de vanguarda, como incorporação de melodias de timbres e acordes dissonantes, elementos aleatórios e sons eletrônicos. Surge, então, a voz do baterista Dirceu, recitando: “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou...”. O trecho é cômico graças a seu caráter anacrônico: há, ao mesmo tempo, referência à carta de Pero Vaz de Caminha, elemento do nosso passado histórico, e ao gravador Gauss, elemento moderno. Atendo-nos, agora, à letra da música podemos observar outros momentos em que essa coexistência aparece. Há, logo nos primeiros versos, o recorte da cena. Por meio de uma técnica cinematográfica, delimitam-se os limites espaciais do lugar em que o eu-lírico se encontra:

sobre a cabeça os aviões sob os meus pés os caminhões aponta contra os chapadões

141 Ibidem, p. 72. 142 Idem. 143 Idem. 144 Idem. 63 meu nariz145

Os “aviões”, “caminhões” e “chapadões” presentes na cena servem para indicar, mais do que um lugar no espaço, um “lugar” no tempo. O eu lírico se posiciona entre o novo e o antigo, o moderno e o arcaico, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. Esse lugar em que convivem elementos cronologicamente contrastantes é exaltado no primeiro refrão, no qual se propõe um viva à “bossa” e a “palhoça”, sendo um o moderno e o outro, o primitivo. A justaposição entre o arcaico e o moderno largamente empregada pelo tropicalismo novamente aponta para um procedimento que já havia sido posto em prática pelos modernistas de primeira hora, mais especificamente por Oswald de Andrade. O Manifesto da poesia pau brasil, primeiro dos escritos doutrinários de Oswald, foi o texto que inaugurou o primitivismo nativo, um dos elementos-chave de sua produção poética. Ponto de interseção entre as vanguardas europeias, o primitivismo era utilizado principalmente como meio de se afastar das tradições passadistas, buscando, para isso, os elementos originários da arte. Essa busca era feita basicamente por dois caminhos: o da simplicidade formal, como no Cubismo, e o da descarga de emoções, através dos sentimentos, da valorização do espontâneo ou da exploração do inconsciente, como no Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo, respectivamente. No caso do Manifesto da poesia pau brasil, Oswald de Andrade, influenciado pelas vanguardas, apostou em ambos os caminhos, pendendo tanto para o primitivismo psicológico – ao valorizar os “estados brutos da alma coletiva” – quanto para o primitivismo formal – ao simplificar as formas que captariam a originalidade nativa de fatos como o carnaval (“Wagner submerge ante os cordões de Botafogo”), a história nacional (“Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil”), a língua do dia a dia (“A língua sem arcaísmos, sem erudição”) ou a miscigenação (“A formação étnica rica”)146. No entanto, o Manifesto pau brasil não se constitui apenas pelo primitivismo nativo. Oswald também propõe nele a conciliação entre a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, como fica claro no seguinte trecho: “Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ e de equações”147. Assim, o poeta aponta para a necessidade de união do primitivo de nossa terra – a “mamadeira”, o “chá de erva-doce” – com o inevitável progresso do século XX – a “geometria”, a “álgebra” e a “química”:

145 VELOSO, 2003a, p. 53. 146 NUNES in ANDRADE, 2011. 147 ANDRADE in TELES, 1997, p. 330. 64

Do ponto de vista do escritor, a escola denota a sociedade letrada, com suas instituições formais e recursos tecnológicos, e a floresta atua como uma metáfora natural do que foi excluído ou marginalizado dos centros econômicos, políticos e culturais de poder e prestígio. 148

Para Oswald, a partir dessa tensão entre o cosmopolita e o primitivo, nasceria a poesia de fato brasileira, e, finalmente, nosso produto cultural de exportação. Ironicamente, o símbolo da exploração da metrópole seria agora subvertido em elemento emancipador. Essa libertação, no entanto, só aconteceria a partir da aceitação de nossas contradições, fazendo delas ponto primordial, e positivo, de nossa identidade. Era necessário aceitá-las porque seria por meio da justaposição de orientações opostas que abandonaríamos a situação de mero receptáculo de tendências culturais provenientes de países dominantes e assumiríamos uma posição internacional culturalmente relevante. Tanto no Manifesto da poesia pau brasil quanto no Manifesto antropófago, Oswald de Andrade defende um processo de construção de identidade nacional apoiado não na dissolução das contradições brasileiras – principalmente no que diz respeito à sobreposição do arcaico e do moderno –, mas sim na coordenação desses elementos. Uniam-se, assim, elementos típicos do Brasil-Colônia a elementos representativos da modernidade do início do século XX. O resultado dessa justaposição, conjunto marcado pela heterogeneidade, é elevado, conforme ressalta Roberto Schwarz, “à dignidade de alegoria do país”:

(...) com Oswald o tema [da dualidade], comumente associado a atraso e desgraças nacionais adquire uma surpreendente feição otimista, até eufórica: o Brasil pré-burguês, quase virgem de puritanismo e cálculo econômico, assimila de forma sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-burguesa, desrecalcada e fraterna; além do que oferece uma plataforma positiva de onde objetar à sociedade contemporânea. Um ufanismo crítico, se é possível dizer assim.149

Se, por um lado, a interpretação triunfalista de nosso atraso provoca, ainda utilizando as palavras de Schwarz, uma interessante “viravolta valorativa”, promovida por um poeta que não se colocava em posição de inferioridade com relação aos países ditos de “primeiro mundo”, ela também apresentava certos riscos. Schwarz chama a atenção para o fato de o sujeito da antropofagia ser “o brasileiro em geral, sem especificação de classe”. A noção de antropofagia – pensando no contexto em que foi forjada – não está desvinculada, porém,

148 DUNN, 2009, p. 33. 149 SCHWARZ, 1987, p. 13. 65 dessa especificação, visto que ela é fruto justamente da experiência de uma determinada classe:

A ideia da antropofagia é também marcada pelo signo de uma elite que buscava se tornar cosmopolita e, ao ser pensada como realizada, pode fomentar certa concepção conservadora de sociedade. Por exemplo, nesta concepção, poderíamos afirmar que, como somos todos antropófagos, não precisamos nos importar com o que nos é imposto, pois devoramos tudo e com isso acabamos com o velho problema das hegemonias políticas, culturais, econômicas entre os países.150

Dessa forma, a positivação de certas contradições de nossa realidade sociológica traz a perigosa possibilidade de que algumas coisas não sejam modificadas simplesmente porque fazem parte de nossa identidade nacional. A exotização de nosso atraso torna-se, portanto, um recurso produtivo nas mãos daqueles que não eram por ele diretamente atingidos. Nesse sentido, a visão otimista de Oswald com relação a certas contradições brasileiras possibilita, ainda que a seu despeito, a integração de seu discurso ao da modernização conservadora. Além disso, a conciliação sugerida não deixa de refletir uma visão ingênua de que o progresso vem para todos. Abrindo os braços para a modernização, concebendo-a como um processo inerentemente positivo, que nos catapulta para um estágio superior àquele em que nos encontramos, queremos crer que os recorrentes avanços científicos e tecnológicos nos colocam muitos passos à frente do que éramos e muitos passos atrás do que ainda viremos a ser. Com isso, reproduz-se “o mito do progresso, como tempo linear, homogêneo e vazio, um vetor que aponta sempre para o futuro, com promessas de felicidade e de fartura que não se cumprem, nem poderiam mesmo se cumprir”151, e ignora-se o fato de que , em vários aspectos, o progresso contribui justamente para deixar ainda mais à margem aqueles que não podem, ou melhor, aqueles a quem é negado o direito de o acompanhar. Na esteira das críticas feitas a Oswald, o tropicalismo também corre riscos parecidos quando incorpora procedimentos e ideias semelhantes às propagadas pelo poeta modernista. Retomando a discussão sobre “Tropicália”, chamam a atenção os seguintes versos:

o monumento não tem porta a entrada é uma rua antiga estreita e torta e no joelho uma criança sorridente feia e morta

150 LIMA, 2012, p. 119. 151 BUENO, 2008, p. 261. 66 estende a mão152

A figura paradoxal da criança, ao mesmo tempo sorridente e morta, e que, mesmo morta, ainda estende a mão é talvez o símbolo maior na canção das consequências perversas da modernização conservadora. O potencial crítico que ela possui é inegável. Uma ressalva, no entanto, precisa ser feita: a técnica de colagem empregada na letra de “Tropicália” indiferencia os símbolos do atraso que são justapostos aos elementos modernos. No refrão, por exemplo, a “palhoça”, habitação rústica e pobre – símbolo do subdesenvolvimento – é colocada lado a lado da “bossa” – símbolo da modernidade musical. Ambas são, afinal, exaltadas: “Viva a bossa-sa-sa-sa! Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça!”153. A ironia contida nessa exaltação encontra-se sempre sob o risco de não ser encarada como tal, principalmente quando descolada do contexto histórico em que foi escrita. Dessa forma, torna-se incerta a linha entre crítica e integração, fenômeno do qual resulta o caráter ambíguo do movimento:

Diante de uma imagem tropicalista, diante do disparate aparente surrealista que resulta da combinação que descrevemos [entre o arcaico e o moderno], o espectador sintonizado lançará mão das frases da moda, que se aplicam: dirá que o Brasil é incrível, é a fossa, é o fim, o Brasil é demais. Por meio destas expressões em que simpatia e desgosto estão indiscerníveis, filia-se ao grupo dos que têm o “senso” do caráter nacional.154

A dificuldade em diferenciar, no tropicalismo, o que é crítica e o que é integração relaciona-se, portanto, à dualidade ruptura-apego, que está na base das posturas crítico- amorosas de Caetano. Em Verdade tropical, ao falar sobre o processo de composição de “Tropicália”, o narrador afirma:

Pensando num velho samba de Noel chamado “Coisas nossas”, que enumerava cenas, personagens típicos e características culturais da vida brasileira e os emoldurava com o refrão “O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas” (...), imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes, só que, como no caso de “Alegria, alegria” em relação a “Clever boy samba”, não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então.155

Além do refrão transcrito pelo narrador, a canção de Noel Rosa que serviu como inspiração para a escrita de “Tropicália”, contém outros versos que merecem ser destacados:

152 VELOSO, 2003a, p. 53. 153 Idem. 154 SCHWARZ, 1978, p. 76. 155 VELOSO, 1997, p. 184. 67

Malandro que não bebe, Que não come, Que não abandona o samba Pois o samba mata a fome, Morena bem bonita lá da roça, Coisa nossa, coisa nossa

(...)

Baleiro, jornaleiro Motorneiro, condutor e passageiro Prestamista e o vigarista E o bonde que parece uma carroça, Coisa nossa, muito nossa156

Como se pode perceber, ao enumerar “cenas, personagens típicos e características culturais da vida brasileira”, a canção de Noel, gravada pela primeira vez em 1932, também captura – como não poderia deixar de captar, já que se trata de um dado da realidade nacional – a coexistência do arcaico e do moderno, sintetizados na figura do “bonde que parece uma carroça”. As presentificações mais inaceitáveis desse atraso, o “malandro que não bebe, que não come”, são emolduradas por um refrão que, aliado à melodia da música, faz seu potencial crítico diluir-se em uma possível euforia identitária: é “coisa nossa, muito nossa”. No trecho transcrito, Caetano afirma que seu desejo era, assim como em “Alegria, alegria”, fazer com que “Tropicália” “não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então”. Se há nela uma posição crítica, advinda de sua faceta satírica, há também uma posição amorosa, um “gostar das coisas do Brasil”. Essa dualidade, quando explorada em um texto no qual as imagens sobrepõem-se indiscriminadamente, abre espaço para o risco de não se saber bem, afinal, o que está sendo criticado e o que está sendo exaltado: “[‘Tropicália’] era a canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”157. Ao inventariar os absurdos do país, o tropicalismo encapsulava a modernização conservadora levada a cabo pela contrarrevolução. Tornava-se, enfim, sinistro espectro da derrota das esquerdas. Quando revisitado por Caetano Veloso trinta anos depois, esses pontos de negatividade ligados ao movimento são minimizados, priorizando-se o que havia nele de positivo e eufórico. As ambiguidades do movimento tornam-se, portanto, terreno fértil para sua reinterpretação. Em Verdade tropical, a justaposição entre o arcaico e o moderno é

156 Disponível em . Acesso em 19 de junho de 2017. 157 VELOSO, 1997, p. 185. 68 encarada, mais do que reflexo direto do contexto da época, como uma “nova” (o procedimento nunca chegou a ser de fato uma novidade proposta pelos tropicalistas, vale dizer) e desrecalcada forma de encarar o Brasil:

(...) nós [tropicalistas] tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos que era necessário, tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos. Tínhamos de destruir o Brasil dos nacionalistas, tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca (...), o Brasil com seu jeitinho e seu Carnaval (...) Na verdade queríamos ver o Brasil numa mirada em que surgisse a um tempo super-Rio internacional-paulistizado pré-Bahia arcaica e pós-Brasília futurista.158

Minimizando as negatividades do tropicalismo, Caetano acaba mais corroborando do que contestando as críticas ao movimento baseadas na “euforia identitária” que o espreitava:

(...) há pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas deste monstro católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana. Claro que reconheço que reflexos de um turbante de banana não seriam particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido no Brasil. Apenas sei que este fato “Brasil” só pode liberar energias criativas (...) se não se intimidar diante de si mesmo. E se puser seu gozo narcisístico acima da depressão de submeter-se o mais sensatamente possível à ordem internacional.159

Assim, o cantor deixava claro que reconhecia a existência de uma exotização do Brasil tanto no tropicalismo quanto na antropofagia. No entanto, afirma que pior do que assumir nossos traços exóticos seria escondê-los (“neutralizar as características esquisitas deste monstro católico”) apenas para assumir um lugar de “respeitabilidade internacional”. A “viravolta valorativa” a que faz referência Schwarz ao falar de Oswald ganha continuidade no tropicalismo, visto que ele também visa a um desrecalcamento da sociedade brasileira, que deve parar de “se intimidar diante de si mesmo”, e privilegiar um “gozo narcisístico” em detrimento da submissão. Transformar, pois, tabu em totem. Porém, Caetano parece desconsiderar – ou, pior, relevar –, a preço de quê “as características esquisitas deste monstro católico tropical” são mantidas. Mais uma vez, a reafirmação de uma identidade e a resolução

158 Ibidem, p. 51. 159 Ibidem, pp. 251-2. 69 do problema de nossa dependência cultural parecem valer o preço da exotização de nosso atraso.

70 3. “E hoje dança no Frenetic Dancing Days”

Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu Ela me conta, sem certeza, tudo que viveu Que gostava de política em mil novecentos e sessenta e [seis E hoje dança no Frenetic Dancing Days (Caetano Veloso, “Tigresa”160)

Algumas empresas se assustam com coisas novas, mas no fim até o susto é rentável. Como nos Estados Unidos se vendem abrigos atômicos atapetados, e na França houve uma campanha que lançou um disco com Sartre e Cohn-Bendit, falando durante a revolução de maio. Tudo se vende. (Caetano Veloso, em entrevista ao Jornal do Brasil161)

As discussões levantadas no capítulo anterior parecem evidenciar a tentativa por parte do narrador de Verdade tropical de vincular as opções estéticas assumidas pelo tropicalismo não a uma necessidade de reordenação de certos parâmetros artísticos imposta pela eclosão da contrarrevolução, mas sobretudo a algum tipo de intervenção libertadora que vinha “salvar” a produção cultural das amarras criadas pela arte participativa. Assim, a incorporação ostensiva de elementos da cultura estrangeira, sobretudo da cultura pop estadunidense, e a justaposição do arcaico e do moderno – dois dos principais traços do movimento – são apresentadas como formas encontradas pelos tropicalistas de superar o conservadorismo estético e a visão “equivocada” de Brasil supostamente defendidos por uma esquerda ortodoxa. Embora, na obra, as críticas de Caetano Veloso focalizem sobretudo questões estéticas – postura alinhada com a sua vontade de fazer do livro uma “história do tropicalismo” –, elas ultrapassam, com maior ou menor esforço do narrador, essa esfera e chegam ao campo propriamente político, o que não poderia mesmo deixar de acontecer em uma narrativa que reconta e interpreta um momento em que cultura e política amalgamavam-se, como já exposto. De maneira análoga ao movimento empreendido com relação às opções estéticas, o estreitamento dos horizontes da arte participativa, que, afinal, era consequência direta da dissolução das crenças revolucionárias, ganha curiosos acentos positivos na prosa de Caetano. Esse posicionamento está na raiz da ambiguidade tropicalista (e caetanista) engajamento/adesão ao mercado, dualidade sobre a qual este capítulo se debruçará.

160 VELOSO, 2003a, p. 318. 161 Entrevista concedida a Mônica Soutello e publicada originalmente no Jornal do Brasil, em 26 de setembro de 1968, sob o título “Divino, maravilhoso”. In.: COELHO & COHN, 2008, p. 162. 71 Criado em uma família na qual a admiração pela União Soviética coexistia com o retrato de Franklin Roosevelt pendurado na parede da sala162, o posicionamento político de Caetano Veloso traz, também, a marca da ambiguidade. Em Verdade tropical, dois capítulos são particularmente importantes para a compreensão dessa dualidade: “Transe” e “Divino, maravilhoso” – que abrem e fecham, respectivamente, a segunda parte do livro. O primeiro gira em torno sobretudo do impacto que o filme Terra em transe, de Glauber Rocha exerce sobre o narrador, e de como essa influência teria sido decisiva para a eclosão do movimento tropicalista163. O segundo tem como acontecimento central o programa da TV Tupi Divino, maravilhoso – comandado por Gil e Caetano, mas com a participação fixa d’Os Mutantes, Gal e Tom Zé –, interrompido pela prisão dos protagonistas pela ditadura.

3.1. Transe

Antes de apresentar a leitura um tanto particular que Caetano faz do filme de Glauber Rocha e suas consequências, cabe refletir um pouco sobre o que ele representou no contexto cultural daquela época. Terra em transe vem a público no ano de 1967, quando o diretor baiano já havia lançado dois dos principais filmes de sua cinegrafia: Barravento, em 1962, e Deus e o diabo na terra do sol, em 1964, pouco antes do golpe. Dispostos lado a lado, eles remontam um percurso que vai da teleologia à autocrítica do fracasso, em consonância com o movimento empreendido pela arte participativa como um todo (é verdade que não ao mesmo tempo e nem sempre com a mesma autocrítica). Em 1967, quando muitos ainda acreditavam em saídas e repetiam velhas fórmulas, Glauber constatava os impasses e evidenciava o encurtamento dos horizontes no momento pós-golpe. Não por acaso, Terra em transe tem como protagonista um intelectual de esquerda: Paulo Martins, poeta, jornalista e aspirante a

162 “Meu pai orgulhava-se de, no fim da guerra (…), ter feito meu irmão Roberto, então pequenino, enganchado sobre seus ombros, levar a única bandeira da União Soviética do desfile em Santo Amaro. Ele o fizera acintosamente para mostrar insubmissão ao anticomunismo católico reinante – tomando posição independente no nascedouro da guerra fria. Por outro lado, na parede da sala de jantar de nossa casa, via-se uma fotografia de Franklin Delano Roosevelt. Meu pai dizia que essa homenagem – que durou talvez uns poucos anos – se devia ao fato de esse president dos Estados Unidos ter sido um grande defensor da democracia.” VELOSO, 1997, p. 315. 163 Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Ibidem, p. 69. 72 político. A narrativa, em forma de delírio agonizante que antecede a morte, reconta de maneira não linear a trajetória do personagem. É por meio dessa rememoração que sabemos que Paulo foi, em sua juventude, apadrinhado por Porfírio Diaz, líder de perfil direitista que almejava o poder central de Eldorado, “país interior, atlântico” em que se desenrola a ação – e onde qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Sabemos, também, que ele se envolveu amorosamente com Sara, militante comunista ortodoxa, sob influência da qual se desligou de Diaz, e se aproximou de Felipe Vieira, líder populista de tendências esquerdizantes. Traindo o antigo padrinho, Paulo alia-se ao empresário do ramo das comunicações Júlio Fuentes para editar um documentário que comprometesse a imagem do aspirante a ditador. É o mesmo Júlio Fuentes, no entanto, quem se alia à multinacional Explint e, junto a Diaz, depõe, por meio de um golpe de Estado, o presidente Fernandéz. Fracassado em todas as suas tentativas, Paulo lança-se em gesto suicida contra as barreiras militares, morrendo ao som de tiros, mas com arma em punho. Contrapondo-se a maniqueísmos, como observa Ismail Xavier,

o poeta jornalista concebido por Glauber é ambicioso, tem apetites de poder que definem uma conformação de herói de mãos sujas dentro de uma oscilação onde, ora é a figura do engajamento, ora compõe a subjetividade corroída, entregue a dissipações alheias ao mundo da política. Em exasperação constante, ele propala a sua “fome de absoluto”, nostalgia de ordem metafísica que o afina mais à “loucura de Diaz” – ou seja, à metafísica conservadora – do que ao jogo tático e aos vaivéns históricos da política das reformas. Não surpreende, portanto, seu trajeto de oscilações, atropelos e contradições na lida com o povo.164

Talvez uma das cenas mais representativas dessas “oscilações, atropelos e contradições na lida com o povo”, seja aquela em que Paulo Martins, tapando a boca de um líder sindical, dirige-se (com o propósito brechtiano de distanciamento) provocativamente ao público, perguntando: “Está vendo quem é o povo? Um analfabeto! Um imbecil! Um despolitizado!”. Ainda baseando-nos na análise de Ismail Xavier, é possível observar um traço constante de autoritarismo no protagonista de Terra em transe, “que denuncia o filho dileto das elites, na figura do militante”165. Em xeque, estava a relação entre o povo, em sua noção de “nação pré- política (onde se encontra a energia)”, e a elite que se sentia responsável por fazer “emergir a

164 XAVIER, 2012, p. 121. 165 Idem. 73 nação política, o cidadão consciente”166. Tratava-se da relação, pois, que vinha balizando a arte participativa até então, com o intelectual colocando-se em papel de conselheiro-mor a intervir nos destinos políticos do país. Nesse sentido, no filme, “o poeta está no centro de tudo, mas o momento das desilusões de Terra em transe põe a nu as contradições do intelectual engajado num momento em que ele toma a consciência de suas ilusões quanto aos caminhos da história e quanto ao próprio papel no círculo dos poderosos”167. A maneira como Caetano Veloso enxergava “oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte” 168 precisa, portanto, ser analisada. O narrador inicia sua colocação afirmando que o filme, embora lhe parecesse desigual169, trazia uma “outra visão da vida, do Brasil e do cinema”170, que amenizava as falhas técnicas:

(...) no caso de Terra em transe, o próprio poeta protagonista trazia, envolta em sua retórica, uma visão amarga e realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada (o filme é o momento de golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer).171

Caetano prossegue afirmando que o filme não foi um sucesso de bilheteria, chegando mesmo a causar “escândalo entre os intelectuais e artistas da esquerda carioca”172:

Uma cena em particular chocava esse grupo de espectadores: durante uma manifestação popular – um comício – o poeta, que está entre os que discursam, chama para perto de si um dos que o ouvem, operário sindicalizado, e, para mostrar quão despreparado ele está para lutar pelos seus direitos, tapa-lhe violentamente a boca com a mão, gritando para os demais assistentes (e para nós também): “Isto é o Povo! um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!”. Em seguida, um homem miserável, representante da pobreza desorganizada, surge dentro da multidão tentando tomar a palavra e é calado com um cano de revólver enfiado na sua boca por

166 Idem. 167 Idem. 168 SCHWARZ, 2012, p. 77. 169 “O filme como um todo, no entanto, me pareceu desigual. E me agastava que ele não o fosse menos – era-o mesmo bem mais – do que Deus e o Diabo na Terra do Sol. As lamentações de seu principal personagem – um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar, muito além da justiça social, ‘o absoluto’ – por vezes me soavam francamente subliterárias. Além disso, certos defeitos intoleráveis do cinema brasileiro – as festas grã- finas inconvincentemente encenadas, as figurantes mulheres que são incentivadas pelos diretores a fazerem uma deplorável caricature provinciana de glamour sexual, a incapacidade de contar pelo menos um trecho da história com clareza, mesmo quando a evidente intenção seria essa etc. etc. etc. – continuavam todos lá.” VELOSO, 1997, p. 103. 170 Idem. 171 Ibidem, pp. 103-4. 172 Ibidem, p. 104. 74 um segurança do candidato. Essa imagem é reiterada em longos close-ups destacados do ritmo narrativo e desse modo se transforma num emblema.173

O narrador, então, tira as suas conclusões,

vivi essa cena – e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar – como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorreria com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo. (...) era a própria fé nas forças populares – e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo – o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si.174

Em seu discurso, “populismo” não aparece em sua acepção sociológica usual de “liderança personalista exercida sobre massas urbanas pouco integradas”175. Para Caetano, a sua morte está relacionada à descrença “no papel especial reservado ao povo trabalhador nas concepções e esperanças da esquerda, que reconhecem nele a vítima da injustiça social e, por isso mesmo, o sujeito e aliado necessário a uma política libertadora”176. Não só essa “fé nas forças populares” é perdida, como também “o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”, afirmação à qual Schwarz pergunta provocativamente: “e já não sentem”? As lições tiradas por Caetano Veloso do filme de Glauber, se corretas, representariam, em última análise, o fim do modelo que vinha alimentando até então toda a arte participativa de esquerda. Para Caetano, porém, o horizonte que se abria era promissor: “Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências. Nada do que viria a se chamar ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem esse momento traumático”177. A “hecatombe” que “excitava” Caetano é apontada, afinal, como fenômeno libertador: “O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava”178. Assim, o cantor se distanciava de toda a arte participativa que estava sendo feita até então e, pelo menos no que diz respeito à forma de ver o Brasil, aproximava-se, em certo sentido, dos primeiros modernistas da década de 1920. A fala de Ferreira Gullar sobre a

173 Ibidem, p. 104. 174 Ibidem, pp. 104-5. 175 SCHWARZ, 2012, p. 79. 176 Idem. 177 VELOSO, 1997, p. 105. 178 Idem. 75 poesia engajada do início da década de 60, é representativa dos distintos olhares lançados para o país pela arte participativa daquela época e pelos primeiros modernistas:

Considero oportuno (...) estabelecer um paralelo entre a redescoberta que fazemos hoje no Brasil [na década de 60] e a que fizeram os intelectuais da revolução modernista de 1922. Àquela época também se redescobria o Brasil. Os poetas falavam em “independência cultural”, cem anos depois da independência política, como hoje falamos em independência econômica. Os modernistas viveram, também, numa época de intensa agitação na vida política e de consideráveis transformações na vida econômica do país, cuja consequência seria a revolução de 1930. Mas a sua etapa era, ainda, a da independência cultural, ou seja, a ruptura com o domínio que Portugal continuava a exercer sobre a intelectualidade e que refletia na obra e no comportamento dos escritores que burilavam a sintaxe lusa (...) Quarenta anos depois, redescobrimos o país. Já não agora meia dúzia de jovens das metrópoles a querer rivalizar com a Europa, carregada de tradições, remexendo nos igarapés e pensando em Paris. Pelo contrário, são agora 25 milhões de nordestinos que começam a falar pela voz de seus líderes e a nos revelar o que há por trás das rendas do Ceará, dos candomblés da Bahia; que gente viaja nos líricos trenzinhos caipiras e nos navios-gaiola; que vida vive o homem da Amazônia. Nada tem de pitoresco o Brasil que hoje redescobrimos (...). O Brasil que os modernistas descobriram era um Brasil lírico. O Brasil que hoje se nos descobre é um Brasil político. Para cada momento, uma poesia.179

As miradas “antropológica, mítica, mística, formalista e moral” que Caetano Veloso vislumbrava estavam, afinal, muito mais afinadas com o “Brasil lírico” descoberto pelos modernistas de primeira hora do que com o “Brasil político” de grande parte dos intelectuais de esquerda da década de 60 – que exigiria sobretudo miradas sociais, políticas, econômicas. Não por acaso, Oswald de Andrade passaria logo a ocupar o rol das afinidades eletivas de Caetano, e, em sua esteira, ganharia a companhia do grupo dos poetas concretos. Mas a mudança no quadro político-social que acontecia 40 anos depois também evidenciava as limitações na incorporação dos conceitos oswaldianos. A antropofagia cultural da qual o cantor lançou mão no tropicalismo, por exemplo, embora “resolvesse” questões estéticas que mobilizavam o debate artístico da época, não intervia em facetas mais perversas do imperialismo, das quais resultava o próprio golpe de Estado. Em um sentido mais estritamente político, Caetano distanciava-se, porém, tanto dos modernistas da década de 20 quanto dos artistas de esquerda da década de 60. Na verdade, como constata Roberto Schwarz, distanciava-se de uma longa tradição crítica brasileira:

179 GULLAR, 2010, pp. 102-3. 76 (...) quando Caetano faz suas as palavras de Paulo Martins, constatando e saudando através dela a “morte do populismo”, do “próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”, é o começo de um novo tempo que ele deseja marcar, um tempo em que a dívida histórico-social com os de baixo – talvez o motor principal do pensamento crítico brasileiro desde o Abolicionismo – deixou de existir. (...) Esta ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente.180

Distanciava-se, inclusive, de Glauber Rocha, diretor do filme que lhe causou toda a epifania. Em “O intelectual fora do centro”181, Ismail Xavier defende a ideia de que não só Paulo Martins mas todo o filme de Glauber estavam amparados na oposição entre nação pré-política e elite conscientizadora. Segundo ele, o que a marcha dos acontecimentos evidenciava era a visão de que o essencial na mobilização da unidade inocente que é o povo (Xavier reforça que “em Glauber, a culpa nunca é do povo”182) era a capacitação de formulação da liderança: “Não surpreende que o esforço do poeta seja sempre na mesma direção: substituir Diaz por outra figura paterna mais sensível às demandas nacionais e populares. Desde o início a frase- chave é: ‘Precisamos de um líder’”183. Assim, Paulo Martins desacredita não do princípio básico da estratégia da esquerda, mas na capacidade de Vieira de “conduzir o país a um novo patamar histórico”. Caetano, diferentemente, questiona os esquemas:

Eu sinceramente não achava que os operários da construção civil em Salvador, ou os poucos operários das fábricas reconhecíveis como tais, ou ainda os comparativamente muitos operários da Petrobrás – tampouco as massas operárias vistas em filmes e fotografias – pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro da minha vida. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do “povo”, eu, na plateia, vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim.184

O trecho, que fecha o capítulo “Transe”, faz referência às “novas tarefas” que o filme anunciava para o narrador. Dentre elas, a principal seria a aventura tropicalista que passa a ser narrada nos capítulos seguintes. Nesse sentido, “Transe” cumpre o papel de apresentar a película de Glauber Rocha como ponto de ruptura decisivo para a deflagração do

180 SCHWARZ, 2010, p. 79. 181 Um dos capítulos que compõem o longo ensaio “Terra em transe: alegoria e agonia”. In.: XAVIER, 2008, pp. 63-121. 182 Ibidem, p. 122. 183 Idem. 184 VELOSO, 1997, p. 76. 77 tropicalismo, que mais tarde também encontraria na montagem de Zé Celso Martinez de O rei da vela – peça publicada por Oswald de Andrade em 1937, mas que ainda não havia sido encenada – alicerces para as transformações que estava tentando empreender185. O capítulo também dita o tom de “prisão mental” com que a esquerda brasileira da década de 60 seria pintada pelo narrador durante toda a segunda parte do livro. Consonante com a preocupação com a integridade de sua personalidade, Caetano faz questão de se mostrar, desde cedo, desconfiado do ideário que mobilizava muitos de seus colegas: “(...) minha atitude reticente em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles uma irônica desconfiança. Eu era um desses temperamentos artísticos a que os mais responsáveis gostam de chamar de ‘alienados’”186. Em seu movimento de afastamento dos ideais de esquerda – que culminaria na “iluminação” proporcionada por Terra em transe –, processo que é narrado ao longo do capítulo, Caetano esbarra em figuras decisivas para a sua tomada de posição, como o artista Rogério Duarte187. Ao apresentá-lo, o narrador afirma que ele “parecia a um tempo querer nos resguardar de um certo cinismo amargo que a vida já lhe tinha ensinado, e nos alertar contra a adesão inocente ao ideário dominante nos meios intelectuais” 188. Polemista, a postura provocadora de Rogério logo causa encantamento em Caetano. Sua opinião com relação ao incêndio da UNE, ocorrido no primeiro dia do golpe de 1964, é rememorada nestes termos pelo narrador:

Tremi ao ouvi-lo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia mesmo ter sido queimado. O incêndio da UNE, um ato violento de grupos de direita que se seguiu imediatamente ao golpe de abril de 64, era motivo de revolta para toda a esquerda, para os liberais assustados e para as boas almas em geral. Rogério expunha com veemência razões pessoais para não afinar com esse coro: a intolerância que a complexidade de suas ideias encontrara entre os membros da UNE fazia destes uma ameaça à sua liberdade. O estranho júbilo de entender com clareza suas razões, e mesmo de identificar-

185 “Eu tinha escrito ‘Tropicália’ havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia a música popular. No texto de apresentação que fez imprimir no programa, Zé Celso dedicava o novo espetáculo a Glauber e à capacidade de responder à realidade da época que o Cinema Novo exibia – e de que o teatro estava carente. E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador. Isso confirmava minha percepção de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer em música.” VELOSO, 1997, p. 244. 186 Ibidem, p. 114. 187 “(…) eu não teria talvez reagido como reagi esses estímulos se não fosse pela influência determinante que já vinha fazia algum tempo exercendo sobre mim a inteligência e a sensibilidade de um intellectual singular que entrara na minha vida no último mês de 64 e que a essa altura, dois anos depois, já se tornara um verdadeiro amigo: o também baiano Rogério Duarte, que tinha se mudado para o Rio no ano em que eu chegara a Salvador.” VELOSO, 1997, p. 106. 188 Ibidem, p. 107. 78 me com elas, foi maior em mim do que o choque inicial produzido pela afirmação herética. Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à UNE. Isso que para muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de firmeza e rigor: ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais opressores destes.189

A “afirmação herética” de Rogério Duarte, capaz de gerar revolta em “toda a esquerda”, nos “liberais assustados” e nas “boas almas em geral”, era recebida por Caetano Veloso com “estranho júbilo”, marcando, mais uma vez, uma originalidade de posição. O narrador afirma que seu amigo possuía “razões pessoais” para não lamentar o incêndio da UNE, visto que a “complexidade de suas ideias” não era tolerada pelos estudantes do movimento, o que ameaçava sua liberdade. O modo como Caetano narra esse acontecimento é importante porque resume a forma como a esquerda brasileira da década de 60 é representada em seu livro, sobretudo na segunda parte. Muito além de discordar das “complexas” ideias de Rogério Duarte, o narrador afirma que os estudantes de esquerda não as “toleravam”, palavra que denota uma opressão, reafirmada pelo comentário de que essa intolerância seria uma “ameaça” (qual?) “à sua liberdade”. A primeira identificação, portanto, ocorre por ambos apresentarem ideias que contrastavam com as do meio em que circulavam. Porém, a maior identificação com Rogério – e o principal motivo para o personagem ser trazido à tona pelo autor especificamente nesse capítulo – decorre de seu posicionamento oposto ao “ideário dominante nos meios intelectuais”, sem, no entanto, enquadrar-se no grupo dos “reacionários” (ainda que não ache necessariamente ruim o ato fascista colocado em prática por eles). A difícil posição defendida por Rogério Duarte é, então, interpretada pelo narrador: “ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo de grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais opressores destes”190. É essa a postura que Caetano mimetiza em Verdade tropical, refletida na estrutura da obra. A segunda parte do livro, introduzida pelo capítulo “Transe” e concentrada sobretudo nos anos de 1967 e 1968, é interrompida pela prisão de Caetano pelo regime ditatorial de direita. A terceira parte de Verdade tropical reconta os dias de Caetano no cárcere e finaliza com a sua saída da prisão para o exílio, rememorado, por sua vez, na quarta – e última – parte. Na estrutura de Verdade tropical – composta por esses quatro segmentos, mais uma “Intro” e um apêndice “Veredas” –, segunda e terceira partes, que dão conta, respectivamente, de sua experiência “opressora” com as esquerdas e de sua experiência opressora com a direita são

189 Ibidem, p. 107. 190 Idem. 79 colocadas em espelhamento, querendo compor os dois lados de uma mesma moeda. Daí, resultaria a importância da terceira via tropicalista.

3.2. Divino, maravilhoso

Assim como Rogério Duarte era capaz de detectar “embriões de estruturas opressivas”, sem contudo confundir-se com seus “atuais opressores”, Caetano Veloso afastava-se do ideário de esquerda – percurso que, quando revivido 30 anos depois, é apresentado como um processo consciente de ruptura com a “adesão automática às esquerdas” – sem se colocar, porém, em posição diametralmente oposta a ela, daí a ambiguidade que deriva de seu gesto. Naquele contexto, a oposição efetiva representaria adesão ao ideário golpista, atitude que nunca foi tomada pelos tropicalistas, ainda que seja nítida a mudança empreendida pelo movimento na forma de demonstrar inconformismo por meio da arte. Atendo-nos ao âmbito da música popular, quando comparadas às canção de protesto, é possível observar, nas músicas tropicalistas, o deslocamento do teor crítico do conteúdo para os processos construtivos da canção. Tal mudança, se, por um lado, ajustava os ponteiros da música popular brasileira, principalmente por meio da incorporação de recursos de vanguarda – coisa que a poesia já vinha fazendo há algumas décadas –, por outro, criptografava o teor crítico contido em suas mensagens, o que poderia ser uma interessante estratégia em tempos de crescente cerceamento das liberdades, mas dificultava o entendimento pelas massas às quais chegavam via discos, rádio e televisão. O descompromisso com uma arte mais pedagógica já era, afinal, sintoma da perda da “fé nas forças populares”. Além de deslocar-se para os processos construtivos da canção, o teor crítico também passa a se fazer presente no mise-en-scène de suas apresentações, herança direta do impacto do teatro de Zé Celso Martinez em Caetano. Às vésperas do AI-5, o grupo tropicalista se apresentava no programa de TV Divino, Maravilhoso de forma cada vez mais extravagante:

Fizemos um [programa] atrás de grades e dentro de gaiolas (o proscênio era tomado por uma grade de madeira imitando ferro, outras jaulas menores, dentro da grande jaula que era o palco guardavam Os Mutantes, Gal, Tom Zé etc.; Jorge Ben cantava dentro de uma jaula que pendia do teto): no final, eu vinha do fundo do palco berrando o sucesso de Roberto Carlos “Um leão

80 está solto nas ruas” e quebrava as grades, convidando todo o elenco de participantes a colaborar comigo nessa destruição.191

O modo como a apresentação visivelmente desafiava o poder de então mais aproximava do que afastava os tropicalistas da arte participativa, a despeito das tentativas empreendidas pelo narrador em Verdade tropical de dela desvincular-se. Distanciavam-se, porém, ao priorizar sobretudo questionamentos de ordem comportamental, propondo uma micropolítica do corpo e do sexo em consonância com as bandeiras levantadas nos protestos de 1968, cujas reivindicações chamavam mais a atenção de Caetano do que os interesses dos “comunistas ortodoxos”:

No final dos anos 60, período do tropicalismo, as ideias da nova esquerda referentes a liberdade sexual, mudanças comportamentais etc. – aliadas à revalorização de Hollywood e do rock’n’roll – davam espaço a que se exibisse desprezo pelos comunistas ortodoxos. O “Partidão” era careta. Além de sempre atrelado ao que parecesse útil a Moscou na política interna convencional praticada em cada país.192

A prova maior da interseção existente entre arte participativa e tropicalismo vem sob a forma da prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil em 27 de dezembro de 1968. De forma literariamente muito eficaz, o narrador de Verdade tropical tenta, então, expressar a sensação de injustiça que a medida lhe trazia. Expõe, assim, o sentimento de ser duplamente injustiçado: pelas esquerdas, que não enxergavam sua arte como suficientemente engajada, e pela direita, que o prendia sem lhe dar maiores explicações:

No dia 13 de dezembro de 1968, um golpe interno no governo militar lançou o Ato Institucional nº 5, suspendendo o habeas-corpus, dando poderes à polícia de invadir domicílios, enfim, instaurando um regime policial truculento que fez, em retrospecto, os primeiros quatros anos que passáramos sob os militares parecerem razoáveis e amenos. Eu estivera em Salvador por uns dias e viajei para São Paulo exatamente no dia 13. Ao chegar em casa, fiquei sabendo do que ocorrera. Não medi a extensão e a profundidade das mudanças anunciadas pelos noticiários da TV. Claro que a linha dura tomara o poder. Mas nós justamente éramos vistos com hostilidade pelas esquerdas mais barulhentas. Nossa simpatia íntima e mesmo secreta por Marighella e os iniciadores da luta armada – embora nossa admiração por Guevara tivesse sido sugerida na canção “Soy loco por ti, América” – não era do conhecimento nem dos radicais nem dos conservadores. (...)

191 Ibidem, p. 342. 192 Ibidem, p. 316. 81 O Divino, maravilhoso ainda teria mais duas ou três edições comandadas por Tom Zé: esperavam que voltássemos para retomar o programa. Mas não voltaríamos.193

No plano ensaístico, a sensação de injustiça converte-se em estratégia argumentativa que transforma sua prisão em prova maior do equívoco cometido pelos artistas de esquerda que os julgavam alienados:

(...) nós não tínhamos muito por que pensar que os militares queriam nos prender. Estávamos tão habituados a hostilizações por parte da esquerda, éramos tantas vezes acusados de alienados e americanizados, que quando me vi diante daqueles policiais, imaginei que me estavam levando para uma conversa com algum oficial de São Paulo, o qual nos trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público, e, no máximo, exigiria explicações sobre a passeata dos 100 mil.194

Quando Caetano diz imaginar que o oficial os “trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público”, é difícil acreditar que essa era a real percepção que o cantor – do alto de suas grandes pretensões – tinha da situação. Mais provavelmente, trata-se de uma reprodução do modo como acreditava ser visto por parte da esquerda, imagem posta em xeque pela sua prisão. Como dito, os dias de clausura do tropicalista são rememorados na terceira parte de Verdade tropical, composta por um único capítulo de 65 páginas, intitulado “Narciso em férias” – que parece encapsular a experiência claustrofóbica do cantor. Contrapondo-se à segunda parte do livro, em que personagem e acontecimentos históricos entrelaçavam-se intimamente, a terceira é marcada pelo descolamento do sujeito do contexto da época. Formalmente, no plano narrativo, isso se reflete no tom intimista que a prosa assume, na qual se ressalta não o sentido político do gesto, mas sobretudo as reflexões de cunho existencial que podem ser tiradas da experiência: “Muito literária, atravessada por exercícios proustianos, ela se concentra nas perturbações do sono, da libido, dos humores e da razão causadas pela perda da liberdade” 195 . No plano ensaístico, reflete-se no discurso que assume tons autorreflexivos, como demonstra este (machadiano) trecho:

Quem leu os primeiros períodos deste capítulo pode ter se perguntado com um riso de mofa, em face das longas digressões sobre o sono (que juro ter me esforçado para reduzir ao mínimo) se afinal era Marcel Proust quem aqui

193 Ibidem, pp. 343-4. 194 Ibidem, pp. 342-3. 195 SCHWARZ, 2012, p. 103. 82 relatava sua prisão. Anos antes dessa manhã em que fui preso, Rogério Duarte me disse, com aquele seu poder de me impressionar, que não sei quem tinha dito que a primeira regra para escrever bem era não imitar Proust. Eu não tinha lido Proust então e nem mesmo pensava em fazê-lo. Foi um deslumbramento quando o fiz e esse deslumbramento dura até hoje. Não teria a coragem de sequer pensar que ousaria tentar imitá-lo. Mas acontece que gosto dos períodos longos e, na verdade, acho que não sei me expressar, mesmo em conversas de outra maneira. E o tema do sono, da dificuldade de dormir, das sutilezas de adormecer, se é relevante para a apreciação de todos os aspectos da minha vida, é fundamental para a narrativa deste episódio da prisão.196

Não por acaso, os traços autorreflexivos ficam evidenciados sobretudo na parte do livro em que Caetano perde qualquer possibilidade de intervenção no mundo por meio de suas manifestações artísticas. Ao perder seu lugar na práxis vital, a arte volta-se para si mesma. Ainda no que diz respeito a mudanças na forma narrativa, o narrador infalível presente em toda a segunda parte do livro – que “narra (no presente) como se já conhecesse o desfecho”197, impossibilitando, pois, que o momento de engano ou auto-engano ocorra – dá lugar àquele que põe em xeque a própria consciência, duvidando de sua memória e, consequentemente, de sua própria narrativa, nela amparada:

Na verdade, não sei se foi nesse dia da chegada ou se foi quando passamos pelo mesmo estabelecimento no caminho de volta, dois meses depois que vi essa vizinha de Macalé.198

Mas o sargento ou quem quer que fosse que me acordou – seria um homem só? – apenas me olhou rapidamente e seguiu seu ritual de inspeção (...).199

Depois de muito tempo – mas o que era “muito tempo”? -, comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso (...).200

Tampouco sei o que fazia com a escova cada vez que deixava um quartel, nem mesmo o que fiz com ela ao ser solto. O modo como nossa memória seleciona é curioso. Claro que não lembramos “tudo”.201

Lembro de sentir a cueca, que vestia sobre o corpo molhado, secando em contato com a pele. Mas não sei se pode confiar nessas lembranças: eu não estava suficientemente desperto ou lúcido no momento mesmo em que realizava esses atos para guardar deles uma ideia precisa.202

196 VELOSO, 1997, pp. 351-2. 197 ALVES, MAIA & LEMUS, 2014, p. 398. 198 VELOSO, 1997, p. 354. 199 Ibidem, p. 358. 200 Ibidem, p. 359. 201 Ibidem, p. 375. 202 Ibidem, p. 376. 83 Ao se descolar do contexto histórico, a perspectiva individualizante priorizada pelo narrador traduz o sentimento de isolamento experimentado por Caetano Veloso, cuja postura interventora já não tinha mais como ser colocada em prática. O mundo, que podia ser questionado, modificado, enfim, vivido nas duas primeiras partes de Verdade tropical, transforma-se em uma distante fotografia nas páginas das revistas que chegavam contrabandeadas à sua cela:

Um dia Dedé me trouxe uma revista Manchete com as primeiras fotografias da Terra tiradas de fora da atmosfera. Eram as primeiras fotos em que se via o globo inteiro – o que provocava forte emoção, pois confirmava o que só víamos em representações abstratas – e eu considerava a ironia de minha situação: preso numa cela mínima, admirava as imagens do planeta inteiro, visto do amplo espaço.203

Como observa Roberto Schwarz, o ângulo intimista adotado pelo narrador de Verdade tropical não deixa de ser um traço de originalidade204 da obra, convertendo, três décadas depois, a fraqueza do protagonista em algum tipo de “heroísmo ao contrário”. Contudo, consiste também em estratégia que o distancia daqueles que haviam sido anteriormente apresentados pelo narrador como rivais – processo que garante muito da força narrativa da segunda parte do livro. Ironicamente, o cárcere colocava em igualdade Caetano e os artistas de esquerda que a ele se contrapunham durante boa parte de Verdade tropical. A perspectiva individualizante adotada em “Narciso em férias” – capturada, em algum grau, pela ambiguidade existente no título – possibilita que o narrador não precise “reatar o fio com a posição avançada e guerreira em que se encontrava no momento em que a direita política o atingiu”205. Além disso, caso seguisse a tradição do gênero, a argumentação que o narrador constrói implicitamente a partir de sua prisão seria significativamente prejudicada. Estendendo ao máximo a sensação de injustiça que o arbitrário cerceamento da liberdade lhe trazia, é só nas últimas páginas do capítulo, e, portanto, apenas em seus últimos dias da prisão, que Caetano consegue uma resposta satisfatória sobre os motivos que o levaram a estar preso:

203 Ibidem, p. 393. 204 “Onde a tradição do gênero manda o prisioneiro político dar um balanço dos acontecimentos passados e das perspectivas futuras, o artista adota o papel anticonvencional de anti-herói e anota outras coisas, não menos importantes, como a incapacidade de chorar ou de se masturbar (...) acarretada pelo cárcere; ou a precedência invencível da superstição sobre o bom senso quando se trata de especular sobre a eventual libertação” SCHWARZ, 2012, p. 103 205 Ibidem, p. 104 84

Ao chegar à porta do escritório do capitão (...), pensei que ia desmaiar. (...) Depois de me olhar por muito tempo (...) , formulou, numa voz calma, compreensiva, humaníssima, doce mesmo, a seguinte pergunta: “Você está se sentindo injustiçado?”. Respondi prontamente e com uma firmeza que não correspondia ao meu estado mental: “Sim, senhor. Me sinto”. E experimentei um grande alívio: como fora previsto, nenhuma agressão física me seria infligida. Ele andou um pouco de um lado para o outro com um ar grave mas não hostil, e disse com tristeza sincera: “Eu entendo”. Seus olhos, que tinham se desviado de mim, voltaram a me fitar com a antiga frieza. “Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos?”, continuou, e, mostrando uma discreta vaidade intelectual ao citar os nomes e as ideias de Freud e Marcuse (os nomes de Marx ou Lênin eram pronunciados banalmente, sem a mesma excitação), expôs toda a sofisticada interpretação que fazia do tropicalismo. Referiu-se a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra desestruturar aparecia e, usando-a como palavra- chave, ele denunciava o insidioso poder subversivo do nosso trabalho. Dizia entender claramente que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo.206

Com um senso de oportunidade singular, a prisão arbitrária é positivada ao se tornar prova definitiva do engajamento tropicalista, transformando a experiência no cárcere em episódio que passa a ser encarado com orgulho pelo narrador: “Depois eu me orgulharia de que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo. Afinal a conversa com o sargento revelava que – como eu tantas vezes tinha tentado convencer meus opositores – nós, os tropicalistas, éramos os mais profundos inimigos do regime”207. Assim, a prisão arbitrária de Caetano e Gil passa a representar uma viravolta que, com ares folhetinescos, redimia o mocinho injustiçado. Mas o narrador vai além: mais do que comprovar o engajamento tropicalista, o acontecimento é usado para afirmar que sua intervenção era mais eficaz e perigosa do que a de seus “opositores”. Os tropicalistas eram os “mais profundos inimigos do regime”, aqueles cujo gesto era “muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo”. Ora, não estava também boa parte da esquerda artística da época presa ou exilada? Claro que a prisão, por si só, não representaria evidência suficiente da superioridade tropicalista frente à arte participativa no que diz respeito à eficácia de sua intervenção. O juízo estava, pois, amparado basicamente nas palavras do capitão, que enxergava no gesto tropicalista o potencial de abalar as estruturas por meio do questionamento da ordem em um sentindo mais amplo, daí a ênfase na palavra “desestruturar”. Por isso, era importante evidenciar a sua destreza intelectual. A “sofisticada interpretação que fazia do

206 VELOSO, 1997, pp. 400-1. 207 Ibidem, pp. 385-6. 85 tropicalismo”208 o capitão do Exército enche de gozo narcísico o narrador, criando uma curiosa via de identificação entre prisioneiro e algoz. No início do trecho transcrito, o narrador afirma que o capitão interessa-se por ele, perguntando numa voz “calma, compreensiva, humaníssima, doce mesmo” se o cantor sentia-se injustiçado por sua prisão. Mais à frente, as reais intenções do capitão para a conversa são expostas, e ele retoma a “antiga frieza”. No entanto, constrói-se, no discurso, uma sinistra cumplicidade – baseada sobretudo na interpretação que é feita do tropicalismo – entre vítima e agressor:

Em suma, ele [o capitão] demonstrava estar muito mais inteirado das motivações reais para que Gil e eu estivéssemos presos do que o major Hilton, deixando implícito que sabia serem falsas as histórias de bandeira e hino e, portanto, irrelevante que eu tivesse provado inocência nisso. Não deixava de haver uma estranha atmosfera de cumplicidade entre mim e ele: poderíamos rir do major e seus ingênuos princípios e seu sotaque mineiro.209

A passagem desconcerta pela maneira descomplicada com que capitão e prisioneiro igualam- se a partir não da compaixão pelo cerceamento da liberdade ou pela sensação de injustiça experienciados pela vítima, mas da capacidade que ela possui de replicar a atitude de opressão. Cúmplices, eles poderiam rir da estreiteza intelectual do major ou de seu sotaque “caipira”. O distanciamento do ideário da direita que o narrador de Verdade tropical tenta empreender durante toda a terceira parte do livro – movimento cuja força motriz é justamente a sua prisão – não impede, portanto, que a obra apresente lapsos visivelmente regressivos. Fazendo-se mais uma vez presente, a postura crítico-amorosa está na base de certas passagens nas quais a ditadura é pintada com tons bastante generosos, para não dizer complacentes, sintoma também do realinhamento político pelo qual o cantor já havia passado na década de 90:

Hoje são muitas as evidências de que, por um lado, qualquer tentativa de não-alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais, e de que, por outro lado, todo projeto nacionalista de independência econômica levaria a um fechamento do país à modernidade.210

De certa forma, sentíamos que o país ter chegado a desrespeitar todos os direitos humanos, sendo um fato consumado, poderia mesmo ser tomado

208 Ibidem, p. 401. 209 Idem. 210 Ibidem, p. 52. 86 como um sinal de que estávamos andando para algum lugar, botando algo de terrível para fora, o que forçava a esquerda a mudar suas perspectivas.211

(...) tínhamos, por assim dizer, assumido o horror da ditadura como um gesto nosso, um gesto revelador do país, que nós, agora tomados como agentes semiconscientes, deveríamos transformar em suprema violência regeneradora.212

No discurso do narrador, o “horror da ditadura” (decorrente, afinal, do “alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista”): a) extirpava o “perigo vermelho”, com suas suspensões de direitos básicos (aqui, Caetano reproduz, em algum grau, o discurso da própria ditadura, que desrespeitou todos os direitos humanos para proteger o povo “de ter todos os seus direitos humanos desrespeitados por uma ditadura comunista”); b) impedia o “fechamento do país à modernidade”; c) apontava rumos para o país, forçando a esquerda “a mudar suas perspectivas”; e, por fim, d) era “violência regeneradora”, “gesto nosso”, “gesto revelador do país”. De maneira próxima à percepção tida por Gil quando sob efeitos do chá ayahuasca, que podia “amar, acima do temor e de suas convicções ou inclinações políticas, o mundo em suas manifestações todas, inclusive os militares opressores”213, Caetano, em seu modo particular de gostar das coisas do Brasil, consegue enxergar promessas e benefícios no gesto que havia justamente sustado qualquer horizonte revolucionário assinalado ao longe. Que pese para Caetano o fato de que não estava sob o efeito de substâncias psicoativas. Em Verdade tropical, o artista tropicalista idealizado por Caetano era aquele que rechaçava, ao mesmo tempo, o establishment da direita e o da esquerda, aspiração de uma “nova forma de transgressão” que é alegorizada na intervenção feita pelo cantor em uma passeata contrária à ditadura, acontecimento rememorado também no capítulo “Divino, maravilhoso”:

Numa das noitadas de conversa e cerveja do 2002, Waly, Luís Tenório (...) e eu ficamos acordados até o dia nascer e continuamos falando sem parar até

211 Ibidem, p. 50. 212 Ibidem, p. 51. 213 “Um jovem jornalista carioca chamado Carlos Marques (…) trouxe para Gil, de volta de uma viagem ao Amazonas aonde ele tinha ido fazer uma reportagem, uma garrafa do que ele dizia ser uma beberagem indígena sagrada que produzia visões deslumbrantes e estados de alma elevadíssimos. (…) Gil tomo uma dose no mesmo dia em que devia embarcar num avião para trazer Nara, sua filhinha de dois anos, do Rio para São Paulo. Ele conta que, ao chegar ao Aeroporto Santos Dumont, deparou-se com um grupo de militares que ali estavam inaugurando não sei que exposição ligada à força aérea. As mudanças de percepção causadas pela droga tinham justamente começado a se manifestar. Ele chegou a São Paulo contando que captara sentimentos indescritíveis na presence dos militares. Dizia que era como se tivesse entendido o sentido ultimo do momento de nosso destino como povo, sob a opressão autoritária, e, ao mesmo tempo, podido situar-se como indivíduo sozinho, consciente do dever de trazer sua filhinha com cuidado, mas também podendo amar, acima do temor e de suas convicções, o mundo em suas manifestações todas, inclusive os militares opressores”. Ibidem, p. 308. 87 quando o sol já ia bem alto. De repente, percebemos um alarido vindo da rua. Olhando do nosso vigésimo andar, vimos tratar-se de uma passeata de protesto estudantil contra a ditadura. Decidi descer para ver de perto. (...) O cortejo seguia pela avenida Ipiranga e, ao alcançar a praça da República, foi interceptado por destacamentos policiais em imensos carros blindados – os chamados “brucutus” – e dispersou-se numa correria. Muitos estudantes eram alcançados por policiais, que os espancavam. Meus dois amigos seguiam a meu lado calados e tensos. Eu estava usando um casaco militar europeu antigo (um “casaco de general”) sobre o torso nu, jeans, sandálias e um colar índio feito de dentes grandes de animais. Meu cabelo estava enorme e emaranhado, indo alto acima da cabeça e quase chegando aos ombros. Minha figura era surpreendente para a hora e o local (os homens de cabelos muito longos ainda eram raros) e se mostrava mesmo assustadora para a maioria das pessoas de quem me aproximava. Eu interpelava os passantes, protestando contra sua indiferença medrosa (e, quem sabe?, seu apoio íntimo) em face da brutalidade policial. Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes, dos soldados e de mim. Eu estava seguro de que, naquela situação, ninguém me tocaria um dedo.214

Caminhando na contracorrente da manifestação, Caetano Veloso não se juntava aos protestantes – que, quando alcançados pelos policiais, eram espancados –, mas também não compactuava com a brutalidade daqueles que reprimiam o ato. Em vez disso, direcionava-se aos passantes, “protestando contra sua indiferença medrosa”, embora ele mesmo não interpelasse diretamente os agentes da opressão, calculando os riscos de sua “ira santa” (“ninguém me tocaria um dedo”). Na cena, portanto, manifestantes, soldados e o artista tropicalista eram grupos distintos que assustavam os “homens e mulheres” que por ali passavam. Diferentemente do protesto, cuja força concentrava-se na coesão do grupo, por isso dispersado pelos policiais, a intervenção de Caetano podia ser feita individualmente. Além disso, realizava-se a partir do próprio corpo. Por meio, por exemplo, da roupa vestida: do “casaco de general” que era usado sobre o torso nu, e do jeans que coexistia com o colar feito de dentes de animais. Por meio, também, da vasta cabeleira, usada em um tempo em que os “homens de cabelos muito longos ainda eram raros”. Completando o percurso de descrença nas forças coletivas que havia iniciado no primeiro capítulo da segunda parte do livro, Caetano lança-se sozinho à manifestação, querendo contrapor-se à esquerda e à direita, mas correndo o risco de ser visto apenas como um louco ocasional, possibilidade, afinal, que resguardava a sua segurança naquele momento. Ao revisitar o acontecimento, o narrador ressalta que a intervenção era calculada: “Eu estava consciente de estar encenando um happening. Era uma performance extravagante e séria que se dava à luz do sol. (...) Nessa estranha descida à rua, eu me sabia um artista realizando uma

214 Ibidem, p. 318. 88 peça improvisada de teatro político”215. Esbarrando nos obstáculos de recepção por parte de seus “espectadores”, o “teatro político” de Caetano converte-se, então, em espetáculo particular:

Eu era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos.216

3.3. Panis et circensis

Em Verdade tropical, a vontade de estar “livre de amarras políticas tradicionais” pavimenta a terceira via proposta pelos tropicalistas. Sobretudo nas três primeiras partes da obra, Caetano expõe o desejo constante de estar “à esquerda da esquerda”217, aspiração, inclusive, que explica muito da admiração que o cantor sente pela luta armada, mas que é sensivelmente prejudicada por seus lapsos regressivos. Buscando “reagir contra a opressão”, os tropicalistas propunham novas formas de engajamento, que se queriam distintas das propostas pelas “esquerda ortodoxa” sob a forma da arte participativa. Compartilhavam com ela, porém, do mesmo objetivo e do mesmo inimigo. Além disso, as acusações de conservadorismo estético feitas por Caetano Veloso esbarravam nas brechas encontradas por artistas como Glauber Rocha e Zé Celso Martinez. Logo, talvez não seja equivocado inferir que o distanciamento proposto pelo tropicalismo da esquerda devia-se mais à postura adotada com relação ao mercado do que a qualquer outra discordância apontada pelo narrador. Notando a relevância desse fator nas discussões da época, em certo momento do livro, ao falar sobre os festivais televisivos, Caetano afirma:

(...) em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social e de avanço na modernização. As questões de mercado, muitas vezes as únicas decisivas, não pareciam igualmente nobres para entrar nas discussões acaloradas.218

215 Ibidem, p. 319. 216 Idem. 217 Ibidem, p. 446. 218 Ibidem, pp. 177-8. 89 Porém, as “questões de mercado” também não chegam a aparecer com muita força nas discussões acaloradas do livro: embora sobrem críticas à esquerda e à direita, o mercado é resguardado, mesmo sendo um elemento importante no pano de fundo das discussões. Naquela época, o crescimento da mídia era um dado que não podia ser ignorado. Se, na década de 50, houve um boom das estações de rádio, cujo número cresceu quase 225%219; na década de 60, era a vez da expansão das estações de televisão, que aumentaram de 15 para 52, ou seja, 250%. Isso acompanhado pela também multiplicação do número de televisores nos lares brasileiros, que, em 1970, chegavam a 4,8 milhões, contra os 78 mil que existiam em 1958. A massificação cultural, consequência direta da expansão midiática, é encarada de maneira descomplicada por Caetano Veloso, em alguns momentos até mesmo eufórica. Muito influenciado por Edgar Morin – intelectual a ele apresentado por Rogério Duarte –, o cantor percebia a “poeticidade” existente na cultura pop, na publicidade e na cultura de massas como um todo220 No livro, Guilherme Araújo talvez seja o personagem-chave para o entendimento dessa relação entre tropicalismo e mercado. Empresário do grupo baiano desde sua primeira descida ao Sudeste, Guilherme enxergava no potencial dos novatos uma forma de alavancar sua incipiente carreira no show business. Com grandes pretensões, o empresário sonhava, inclusive, com a expansão de suas atividades para mercados estrangeiros, convertendo “internacional” ao elogio máximo que poderia direcionar a um artista:

Ele repetia sem cessar um elogio a Bethânia que era uma síntese do seu critério: “Internacional, meu querido. Ela é a mais internacional de todas as artistas brasileiras”. Para ele, nós, os outros baianos, éramos a confirmação do que ele vira em Bethânia. Éramos “chiques” e “modernos” e poderíamos ser “internacionais”.221

Nos primeiros trechos em que o empresário é apresentado, o narrador demonstra certo receio com relação à figura de Guilherme Araújo. Fala, por exemplo, que precisava resistir a certas “ideias mais frívolas” 222 por ele defendidas. Fala, também, sobre o receio de contaminar seu projeto com “o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial”223.

219 Todos os dados foram coletados do Sétimo e Oitavo Censos Gerais de 1960 e 1970, conduzidos pelo IBGE. Apud DUNN, 2008, p. 65. 220 “Foi Edgar Morin – cujos livros Rogério comentava e às vezes me lia em voz alta – quem, ao tratar as estrelas hollywoodianas e as personagens das revistas em quadrinhos em termos de uma nova mitologia, abriu o caminho em minha mente para o entendimento que eu futuramente viria a ter da arte pop, para a absorção mais intense da poeticidade de Godard, para todo um redimensionamento do rock’n’roll e do cinema americano.” 221 VELOSO, 1997, p. 126, 222 Ibidem, p. 127. 223 Idem. 90 Para demonstrar boas intenções, Guilherme Araújo seduzia os baianos com a possibilidade de se fazer um produto de qualidade voltado para as massas. Sobre Gal, por exemplo, Guilherme afirmava que “ela poderia tornar-se uma espécie de nova rainha do iê-iê-iê. Não uma cantora comercial qualquer, mas uma nova forma de cantora comercial, uma super-Wanderléa, com um repertório inteligente”224. Como não poderia ser diferente, visto que a negação desse dado colocaria em risco os seus próprios interesses como empresário, Guilherme Araújo instigava os baianos a desproblematizarem sua relação com a indústria cultural, dado visto por ele como incontornável: “Ele dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nós tínhamos nos metido. Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo só poderíamos entender se o penetrássemos.”225 As promessas de Guilherme Araújo encontravam receptividade em Caetano Veloso, que combinava suas pretensões de intervenção radical na música popular brasileira à admiração pelos grandes cantores da década de 50, sobretudo pela sua capacidade de alcance. A isso, somavam-se as discussões com Rogério Duarte e Zé Agrippino sobre o potencial da cultura de massas, a desconfiança com relação ao ideário de esquerda, além da própria expansão midiática que, ao fundo, vinha acontecendo no Brasil. Juntos, esses talvez tenham sido os principais fatores que pavimentaram os primeiros degraus da jornada de Caetano no show business. No fundo, porém, não eram só os tropicalista os que estavam sendo cooptados pela indústria do entretenimento. Outro exemplo emblemático talvez seja o de Chico Buarque, cujo talento e aparência caíram como uma luva na construção de personagem feita pela mídia. A diferença entre Caetano e Chico é que este foi precoce em assumir uma posição desconfiada com relação à estrutura que o lançou à fama, como comprova o enredo da peça Roda viva, escrita no final de 1967 e encenada no início de 1968, sob a direção de José Celso Martinez. Diferentemente, Caetano não demora muito a incorporar o discurso de Guilherme Araújo, reconhecendo-o, inclusive, como um “co-idealizador do movimento”:

[Guilherme] foi, de fato, um co-idealizador do movimento. Suas habilidades propriamente empresariais foram sempre muito discutíveis (embora aí ele também mostrasse originalidade) – e se tornaram bastante desastradas com o passar do tempo –, mas seu desejo de deixar uma marca indelével na história do entretenimento no Brasil realizou-se plenamente.226

224 Idem. 225 Ibidem, p. 131. 226 Ibidem, p. 132. 91

Antes mesmo de o tropicalismo surgir como movimento organizado, Caetano já imprimia na letra de “Alegria, alegria” o desejo de exibição midiática: “Ela nem sabe até pensei / Em cantar na televisão”. Na contracapa do LP Tropicália ou Panis et circenses, Rogério Duprat provocava: “Mas, e vocês, mal saídos do calor do borralho, vocês baianos, (...) como receberão a notícia de que um disco é feito para vender? Terão coragem de ganhar muito dinheiro?”. O discurso-happening que Caetano Veloso fez no III Festival Internacional da Canção Popular, momento de culminância do embate com a plateia de esquerda, também confirmava essa consciência: “Nós não entramos no festival desconhecendo tudo isto. Nunca ninguém nos viu falar assim. (...) Tivemos coragem de entrar em todas as estruturas”227. Por fim, em entrevista posterior sobre o acontecimento, Caetano ratificava:

A vaia que recebi foi dada por um grupo que quis repudiar o que consideravam uma agressão à música popular brasileira. Infelizmente, foi uma atitude bastante reacionária (...) Entrei no festival para destruir a ideia que o público universitário soi disant de esquerda faz dele. Eles pensam que o festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. Mas a verdade é que o festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram.228

Em debate realizado na FAU em junho de 1968, Gilberto Gil também não escamoteava a dimensão comercial da arte tropicalista: “(...) nós estamos aqui para vender. Não fomos nós que fizemos de nossa música mercadoria. Mas ela só penetra quando vendida”229. Na crista da onda, os tropicalistas chegavam à conclusão de que, se “tudo se vende”, que o potencial de penetração do mercado fosse então devidamente explorado, possibilitando não apenas o consumo em larga escala de um produto esteticamente rebuscado, mas também realizando algum tipo de crítica endógena ao sistema. Nesse percurso de adesão descomplicada ao mercado, alguns tropicalistas mais desconfiados, como Tom Zé, iam ficando pelo caminho, motivo principal para caírem, pelo menos por um tempo, no ostracismo, e serem relegados ao papel de coadjuvantes do movimento. A visão otimista lançada para o mercado de massas fez com que os tropicalistas se aproximassem de figuras como Guilherme Araújo, Rogério Duarte, Zé Agrippino e os concretistas, sem contar com os próprios artistas da Jovem Guarda e com uma parcela do

227 Cf. Ambiente de Festival, compacto Philips, n. 365.257 PB, gravado ao vivo no Tuca, 15.9.1968.

228 Cf. Luiz Carlos Maciel, “Caetano: 1965 a 1971”. Jornal de Amenidades, Rio de Janeiro, 1971, p. 22. 229 In.: COELHO & COHN, 2008, p. 130. 92 Cinema Novo. No entanto, demarcava ainda mais certas diferenças existentes entre eles e a esquerda. Em um trecho do livro, ao falar sobre a reação do público de esquerda à apresentação tropicalista feita na Boate Sucata, o narrador afirma:

Wanda Sá chorou com pena de ver nossos talentos desperdiçados em comercialismos, Francis Hime achou que tinha descoberto o que seria a nossa tática ou estratégia de fingir aderir ao sistema para ganhar espaço e eventualmente contrabandear coisas de qualidade, alguns poucos se mostravam simplesmente hostis, muitos foram ausências significativas.230

Pertencente a esse segundo grupo, Geraldo Vandré travava mais um embate com os tropicalistas, dessa vez relacionado à inserção no mercado. Segundo Caetano, o músico queria “tornar-se a bola da vez com uma contrafação da música participante de língua espanhola, principalmente a chilena”231. Para isso,

Vandré tentava estancar a correnteza – que era, afinal, uma exigência da força da MPB – propondo a Guilherme, nosso empresário, que nos dissuadisse de entrar no páreo: alegava que o Brasil necessitava daquilo que, Vandré, estava fazendo (ou seja: canções “conscientizadora das massas”) e que, como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada vez, nós todos deveríamos, para o bem do país e do povo, jogar todas as cartas nele. Essa estranha proposta de renúncia foi feita de fato a Guilherme por Vandré – e muitas vezes eu me perguntei se não seria isso um esboço dos prestígios oficiais de que gozam, em nome da história, figurões insossos de países comunistas.232

Contrapondo-se, Caetano afirma que os tropicalistas queriam justamente acabar com “o hábito de ser ter uma ‘bola’ a cada vez, apostando numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras”. A democratização existente na diversificação da oferta está inscrita no discurso da livre concorrência no qual o narrador acredita233, e é convertida em mais uma das liberdades que o movimento teria alcançado:

Uma das marcas da Tropicália – e talvez seu único sucesso histórico indubitável – foi justamente a ampliação do mercado pela prática da convivência na diversidade, alcançada com o desmantelamento da ordem dos nichos e com o desrespeito às demarcações de faixas de classe e de graus

230 VELOSO, 1997, p. 306. 231 Ibidem, p. 281. 232 Idem. 233 “(…) reconheço no tropicalismo uma reverência à livre competitividade e uma desconfiança dos Estados centralizadores” Ibidem, p. 259. 93 de educação. Essa saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns críticos chatos chama de “complacência cínica pós-60”.234

Para Caetano, a inexistência de uma “bola da vez” abriria espaço para que os estilos concorressem “nas mentes” das pessoas – impedindo a existência de discursos únicos, mesmo aqueles que se apresentassem como “para o bem do país e do povo”. A disputa aconteceria, também, “nas caixas registradoras”, evidenciando a consciência do aspecto comercial ao qual toda a música popular – e não apenas a música tropicalista – estaria atrelada. Em entrevista recente à Folha de S. Paulo, motivada pelos 50 anos do movimento, Gilberto Gil afirma que o maior legado do tropicalismo seria justamente essa “diversificação” que ele encabeçou: “A maior proposta do tropicalismo era a consideração plena da diversidade cultural brasileira, da pluralidade, dos vários modos de ler cultura, de fazer cultura, de vender cultura. Eu acho, portanto, que o legado está aí”235. A culminância da perda da fé nas forças populares fez com que as massas atingidas pela canção deixassem de ser vistas como o povo – que, conscientizado, converter-se-ia em aliado na luta política – para serem vistas como público a ser conquistado. Na visão dos tropicalistas, ao ocupar a posição de público – e, portanto, de consumidores dos produtos culturais –, às massas caberia decidir aquilo que mais lhe interessa, e a diversificação – que, para ser efetiva, necessitaria de uma improvável ausência de intervenção do mercado na oferta desses produtos – consistira em processo de democratização. Muito além das diferenças formais, está nessa percepção da parcela atingida pela canção a principal diferença entre a música tropicalista e as músicas de protesto. Retomando o embate com Vandré, a incapacidade de atender a seu pedido deriva também do fato de que não eram mais os artistas que exerciam o controle do conteúdo, e sim o próprio mercado, decidindo quais ritmos e valores transmitidos tornar-se-iam hegemônicos. Na sociedade de massas, a canção configura-se como um dos objetos de consumo mais presentes no cotidiano, “submetendo as pessoas a um banho contínuo de sons e mensagens” e tornando-se, portanto, “suporte ideal para a circulação da ideologia”236. No entanto, não deixa de estar atrelada às imposições exercidas pelos meios em que circulam: “Por estar inscrita no capitalismo, a canção, enquanto música comercial, transforma em valor de troca os afetos e representantes de pulsões, pois a sua produção visa à exploração do inesgotável mercado do

234 Ibidem, p. 281. 235 Disponível em: . Acesso em 6 de julho de 2017. 236 FAVARETTO, 2000, p. 138. 94 desejo”237. Como assinala Sanguineti, trata-se de um controle ao qual nem mesmo as produções de vanguarda conseguem fugir, apresentando-se, muitas vezes, como “a oferta de um fetiche mais misterioso do que qualquer outro, a oferta de uma mercadoria pela qual ainda não havia nenhuma procura reconhecida”238. Nesse sentido, se, por um lado, a postura ambígua do tropicalismo permitia justamente que esse rígido controle acontecesse de forma menos eficaz, aumentando o raio de disseminação de suas críticas; por outro, não anulava o fato de que, para que elas fossem efetivadas, seria preciso contar com um mercado efetivamente democrático e em constante expansão. De qualquer forma, embora faça sentido a acusação feita por Caetano Veloso contra certos artistas de esquerda, que se utilizavam de estruturas proporcionadas pelo mercado para a propagação de suas ideias, mas escamoteavam certas contradições existentes nesse gesto, a forma pouco problematizada com que ele encara o caráter comercial de sua arte – baseado na crença de que o mercado já era ponto consolidado a partir do qual qualquer intervenção deveria se dar – evidencia a mudança nos ventos gerada pela contrarrevolução. Segundo Nicholas Brown, a vitória da direita fez com que o país passasse precocemente da situação moderna à situação pós-moderna, entendida como aquela em que “o capitalismo não é mais relativizado por um possível horizonte de superação”239. Em consonância, Heloísa Buarque de Hollanda defende a ideia de que a falta de uma perspectiva finalista na arte tropicalista decorreria do fato de ela mesma ser a expressão da descrença no Futuro:

O problema do Tropicalismo não é (...) saber se a revolução brasileira deve ser socialista-proletária, nacional-popular ou burguesa. Sua descrença é exatamente em relação à ideia de tomada de poder (...). Recusava, portanto, o Tropicalismo a esperança no futuro prometido como redentor: “Eles só falam no dia de amanhã / só vivem o que dizem / o dia de amanhã”.240

A essa altura, vale retomar as discussões sobre o happening proposto por Caetano Veloso. Para Roberto Schwarz, o acontecimento seria talvez o ponto alto da narrativa, com sua riqueza decorrendo “não da integridade de seu gesto central”, bem menos “límpido” do que afirmava o tropicalista, “mas da afinidade deste com a desagregação que se processa à sua volta” que, “como num romance realista”, seria “representativa do momento”241. As páginas em que o acontecimento é narrado justapõem

237 SANGUINETI, 1970 apud FAVARETTO, 2000, p. 138. 238 Idem. 239 Apud SCHWARZ, 2012, p. 79. 240 HOLLANDA, 2004, p. 70. 241 SCHWARZ, 2012, p. 93. 95

planos de conquista da primazia artística, ditadura militar, agitação e militância revolucionária, indiferença dos passantes, clima psicodélico, arte de vanguarda, pancadarias de rua e auditório, celebridade midiática, medo, coordenadas da Guerra Fria etc. –, em que se objetiva com força memorável, sem paralelo talvez na literatura brasileira, o custo espiritual da instalação do novo regime.242

O percurso feito nas três primeiras partes de Verdade tropical recompõe a trajetória de ascensão e declínio de um processo de democratização interrompido antes de ser efetivado: o clima de efervescência cultural e de crença em mudanças radicais no país, presente em toda a primeira parte do livro, dá lugar, após o golpe, a um gradual estreitamento dos horizontes da arte participativa, que é obrigada a rever seus parâmetros – debate que mobiliza, por sua vez, a segunda parte da obra. A pulverização definitiva das esperanças – em certo sentido convertida pelo narrador em “evento libertador” – viria sob a forma de prisões e exílios de artistas que representassem perigo à manutenção da ordem, cerceando a liberdade, inclusive, do próprio Caetano e levando à morte precoce do movimento, já na terceira parte da obra. Assim, na quarta – e última – parte do livro, as disputas artísticas e ideológicas saem de cena, e a narrativa se concentra em dispersões do exílio, reflexões sobre sexualidade e psicodelia, e na reconciliação com a pátria forçosamente abandonada, reencontro que se dá em pleno Carnaval. No discurso, a tendência caetanista à conciliação faz com qualquer traço de rancor com relação à ditadura seja colocado em suspensão: “Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil”243. Ao narrar o evento que coroa seu retorno à terra natal, Caetano prioriza, imprimindo um tom um tanto kitsch, a “retomada das esperanças” que estava ocorrendo naquele momento. Na cena, o narrador passeia pelas ruas de Salvador no Carnaval, sem deixar de observar as mudanças comportamentais que ocorriam à sua volta (“Impressionou-me muito a combinação de hippies com foliões tradicionais e a quantidade de gays ostensivos”244). É esse o momento em que um trio elétrico em forma de foguete espacial, nomeado “Caetanave” surge ao longe, sob a chuva, tocando sua marchinha “Chuva, suor e cerveja”:

242 Idem. 243 VELOSO, 1997, p. 467. 244 Ibidem, p. 465. 96 O gosto tão tropicalista pelos trocadilhos, por causa da poesia concreta (Joyce!) e dos filmes de Godard, retomando assim pela graça ingênua de pessoas do povo da Bahia, me tocou. Além disso, a imagem da espaçonave, que trazia a mitologia das viagens siderais tão típicas naquela época; o renascimento da grande canção de Carnaval se dando por meu intermédio; o milagre da chuva; tudo compunha uma festa completa de recepção para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do imaginário.245

Caetano decide, então, subir no trio-elétrico:

Dali eu via os pingos da chuva que brilhavam à luz da decoração das ruas: se olhássemos para cima, tínhamos a perfeita impressão de estar mergulhando aceleradamente, por entre as estrelas, no espaço sideral. Embaixo, eu via pela primeira vez a multidão do Carnaval de uma distância que revelava sua força e seu mistério. Depois de tocar “Atrás do trio elétrico”, o Tapajós [nome do trio que comportava a “Caetanave”] voltou a tocar “Chuva, suor e cerveja”. Senti alguma coisa bater em meu rosto que não era uma gosta de chuva. Aproximei a mão para descobrir o que era. A coisa voou para meu peito na direção das luzes do caminhão e veio pousar em mim. Eu então disse para Roberto: “Quer dizer que há esperança?”. Ele respondeu com a alegria tranquila de quem não esperava por nada menos: “Claro!”.246

O sucesso que “Chuva, suor e cerveja”, marchinha que homenageia os amores furtivos de Carnaval, fazia era representativo da virada que ocorria na carreira de Caetano, marcando seu distanciamento do tropicalismo, ainda que nunca tenha chegado a romper definitivamente com essa estética em sua trajetória artística. Já era sintoma, também, do desmantelamento da arte participativa como um todo, mais especificamente das canções de protesto. Na discografia de Caetano, o (peculiar) engajamento tropicalista deu espaço à radicalização de experimentalismos colocada em prática no disco Araçá azul, que, no entanto, mostrou-se um fracasso de público, também não sendo bem recebido pela crítica especializada. Em trabalhos posteriores, como Bicho, de 1977, as canções já se mostrariam mais alinhadas ao espírito dos anos 70, como comprova a psicodélica “Odara”. Ao voltar para o Brasil, Caetano, evidentemente, encontra um cenário muito diferente daquele retratado nas duas primeiras partes de Verdade tropical. A efervescência política e cultural que dava força à narrativa sai de cena, permitindo-nos constatar a eficácia alcançada pelo “golpe dentro do golpe” na desarticulação de qualquer oposição ao regime. Depois do AI-5, não restavam muitas opções para a esquerda além da morte através da luta armada, o exílio ou a loucura. É significativo, portanto, que a volta de Caetano para o Brasil esteja apoiada mais em um discurso esperançoso do que na lamentação do desarranjo.

245 Ibidem, p. 466. 246 Ibidem, pp. 466-7. 97 Representativo do realinhamento pelo qual Caetano – e todo o país – passava, na quarta parte do livro, até mesmo o desejo de se portar como um agente da “ultra-esquerda” é colocado em xeque:

Havia muito que oscilávamos, mais ou menos conscientemente, entre nos caracterizar como ultra-esquerda – a verdadeira esquerda, uma esquerda à esquerda da esquerda – ou como defensores da liberdade econômica, da saúde do mercado. No nosso próprio campo, fazíamos as duas coisas: empurrávamos o horizonte do comportamento cada vez mais longe, experimentando formas e difundindo invenções, ao mesmo tempo que ambicionávamos a elevação do nosso nível de competitividade profissional – e mercadológica – aos padrões dos americanos e dos ingleses. Uma política unívoca, palatável e simples não era o que podia sair daí.247

Dessa forma, mesmo quando se posiciona à esquerda, as intervenções tropicalistas atingem, sobretudo, o “horizonte do comportamento”, alargando-o. É verdade que a descrença no poder das forças populares não tinha sido uma invenção tropicalista, e sim a consequência, que se mostrou irreversível, do golpe de Estado. Nesse sentido, os tropicalistas só foram mais precoces na captação desse fenômeno se comparados a artistas que, mesmo após o golpe, ainda acreditavam na possibilidade de mobilização de forças coletivas. Essa constatação não tira o peso, porém, do fato de a supressão das esperanças no povo ter sido encarado como acontecimento promissor por Caetano Veloso. Assim, o tropicalismo já era o sintoma de primeira hora das mudanças pelas quais a arte brasileira via-se obrigada a passar: “o binômio Arte/Sociedade, que era antes tomado na perspectiva da palavra didática e de tomada do poder a longo prazo, começa agora a abandonar os grandes projetos e a se configurar numa prática de resistência cultural, transformando-a no binômio Arte/Vida”248. Perdidas as crenças nas forças populares, mas confiante em sua luta contra as opressões, o artista tropicalista deslocava a revolução para o campo das liberdade individuais, percurso que desaguaria no desbunde dos anos 70. Contrapondo-se à fragmentação de forças perceptível no happening realizado pelo artista no final de 1968, a coesão com a multidão retomada no episódio da Caetanave à época de seu retorno do exílio – Caetano sente-se ligado “espiritualmente” ao povo, em uma espécie de catarse coletiva carnavalesca – não deixa de ser apresentada como um happy end pelo narrador de Verdade tropical. Em seu plano narrativo, portanto, a obra não se distancia muito daquilo a que Joseph Campbell nomearia “monomito”: há um herói, que aceita o chamado à

247 Ibidem, p. 446. 248 PEREIRA, 2005, p. 58. 98 “aventura tropicalista”, encontrando pelo caminho mentores (Rogério Duarte, Guilherme Araújo, os irmãos Campos, João Gilberto, Oswald de Andrade etc.) e parceiros (Maria Bethânia, Gilberto Gil, Os Mutantes etc.) que o auxiliam na transposição dos obstáculos a ele impostos (“perseguição” pela esquerda artística) até culminar em seu grande desafio (prisão e exílio pela direita), resultando em algum tipo de “morte e ressureição”. Terminada a aventura, o herói pode, então, voltar ao seu ponto de origem. Ele retorna ao espaço conhecido, mas já não é mais o mesmo: traz consigo uma “verdade” alcançada através da experiência que pode ser compartilhada com os demais, garantindo a sua consagração. Verdade tropical deve muito de sua força às ambiguidades de seu autor, sempre em busca de posições originais. Sua faceta camaleônica não deixa de ser, afinal, uma poderosa arma de adaptação à ordem que se impõe. Quando Caetano sobe à sua “nave”, ele não o faz mais como artista disposto a mobilizar as massas em prol de objetivos maiores, mas como personalidade do show business que recebe, envaidecido, o carinho de sua plateia. Caetano percebia a virada da maré, e seguia o fluxo. A partir daquele momento, não haveria mais espaço para a arte política, pelo menos não no sentido com que essa expressão era empregada na década de 60. Em contraposição, o mercado exultava. O desfecho triunfalista da narrativa, escrita na década de 90, faz com que, em última análise, a perspectiva adotada por Caetano Veloso esteja muito mais próxima à dos vencedores – a despeito das tentativas empreendidas pelo narrador de se desvencilhar da direita – do que à da esquerda derrotada, ainda que isso o distancie, em alguns sentidos, do próprio Caetano da década de 60, o que mobiliza as contradições da obra. Assim, além de funcionar como crônica da década de 60, ela não deixa de ser um testemunho do modo como a ditadura estava sendo revisada trinta anos depois. No entanto, quando lida a contrapelo249 – como transfiguração das ilusões perdidas de uma geração que se quis revolucionária –, a “verdade tropical” trazida à tona pelo autor revela os altos custos gerados por uma brusca ruptura no percurso democrático do país, realizada em prol da manutenção dos privilégios de uma elite. Sustava-se o processo de resolução de certos problemas estruturais, que nunca mais voltariam a ser discutidos naquelas proporções. Para quem consegue enxergar a beleza contida nas promessas daquela época, é difícil compactuar com qualquer outra impressão que não seja a de fracasso.

249 Seguindo o conselho de Schwarz: “Assim, a melhor maneira de aproveitar este livro incomum talvez inclua uma boa dose de leitura a contrapelo, de modo a fazer dele uma dramatização histórica”. SCHWARZ, 2012, p. 110. 99 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos? Será, será, que será? Que será, que será? Será que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos? (Caetano Veloso, “Podres poderes”250)

A quarta – e última – parte de Verdade tropical encerra-se com o capítulo “Araçá azul”, centrado na produção e lançamento do disco homônimo. Até então, Araçá azul era a obra que mais se distanciava das características tropicalistas, embora pudesse ser considerada, em algum sentido, herdeira direta do movimento. Segundo o narrador, o lançamento do disco era “um movimento brusco de autolibertação dentro da profissão”251 e representava uma tentativa de mergulho no universo da música experimental252, radicalizando, em certo sentido, posturas que já se encontravam presentes no movimento, mas que eram exploradas de forma mais vendável. Assim, ainda que afirme nunca ter rompido efetivamente com o tropicalismo, Caetano diz compreender por que o disco lançado em 1973 é encarado por muitos como o “final de uma etapa”253. Araçá azul recebeu alguns elogios da crítica especializada, mas não conseguiu agradar às massas. Segundo o narrador, “o disco bateu recordes de devolução”254. De certa forma, o fracasso comercial de Araçá azul, que não era necessariamente acompanhado por uma recepção hostil pela crítica especializada, evidenciava os limites encontrados pelos produtos de vanguarda em sua distribuição pelo mercado. Evidenciava, também, os limites apresentados pela arte experimental em sua comunicação com as massas, debate outrora já suscitado pela própria produção tropicalista. Caetano afirma que Araçá azul era uma tentativa, que se mostrou falha, de retomar o projeto interrompido pela sua prisão e posterior exílio – a saber, o de uma intervenção que, em 68, possibilitaria sua “iminente saída do mundo da música pop”255. Como não escapa ao próprio narrador, sua decisão “(mesmo que fantasiosa) de abandonar a profissão tinha sido

250 VELOSO, 2003a, p. 180. 251 VELOSO, 1997, p. 488 252 Ibidem, p. 489. 253 Ibidem, p. 491. 254 Ibidem, p. 486. 255 Ibidem, p. 489. 100 desconstruída pela prisão e pelo exílio”256. A dificuldade encontrada por Caetano de se desvencilhar das engrenagens do show business – e, portanto, do mercado – faz com que sua tentativa de reatar com o desejo antigo de “desligar-se do mundo pop” não se efetive. Nesse sentido, embora não tenha sido exatamente esta a perspectiva empregada pelo narrador ao vincular a continuidade de sua carreira a gestos do regime autoritário, a prisão e o exílio são parte do esforço contrarrevolucionário do qual o emaranhamento de Caetano nas redes da comercialidade já era efeito. Findas a rememoração e a interpretação da jornada tropicalista, o último segmento de Verdade tropical funciona como um apêndice ou, talvez melhor, um posfácio à obra, dando conta de, assim como realizado na introdução, alinhar as discussões levantadas na década de 1960 aos interesses que mobilizam o debate na época da publicação do livro. Resumindo os acontecimentos biográficos e artísticos pós-1973 a praticamente um parágrafo, Caetano faz questão de mostrar fidelidade a certas posturas daquela época, como no que diz respeito à sua relação otimista com o mercado:

Por causa da atenção a coisas como a TV Globo, a axé music, o rock-Brasil – e mesmo o Asdrúbal Trouxe o Trombone – ouvi de amigos mais ou menos íntimos o comentário de que eu embarcava em muitas canoas furadas. Mas eu acreditava que podia andar sobre as águas. Eu amava os discos experimentais de Tom Zé ou de Walter Franco, os filmes de Júlio Bressane e de Rogério Sganzerla – mas sabia que meu lugar era lá no meio da corrente central da cultura de massas brasileira, muitas vezes nadando contra a maré ou apenas atrapalhando-lhe o fluxo, outras, tentando desimpedir-lhe o caminho.257

Encerrando a sua argumentação, Caetano posiciona, por fim, o tropicalismo na “onda libertária dos anos 60”: “Perguntar-se sobre o tropicalismo é perguntar sobre o sentido da singularidade brasileira com a força dessa onda”258. Recorrendo a Eric Hobsbawn, o narrador relembra que o século XX foi por ele nomeado “o século americano”259, momento no qual, em matéria de cultural popular, ou se era americano ou se era provinciano. Nesse sentido, o tropicalismo é descrito por Caetano como “um modelo de enfrentamento dessa questão que só agora se torna mundialmente inteligível”260, processo, aliás, ao qual a publicação de seu livro se vincula.

256 Idem. 257 Ibidem, p. 496. 258 Ibidem, p. 500. 259 Idem. 260 Idem. 101 Quando afirma que as motivações por trás do tropicalismo eram as mesmas que o levavam, trinta anos depois, a escrever Verdade tropical261, o narrador está amparado, sobretudo, na crença do lugar central que o Brasil poderia vir a ocupar no ordem mundial no final da década de 90:

A grande movimentação que levou a chama civilizatória das áreas quentes para o frio Norte do hemisfério norte parece estar – depois de atingir o Japão e tigres asiáticos neocapitalistas e China neocomunista – madura para fazer um desvio de rota. Ter como horizonte um mito do Brasil – gigante mestiço lusófono americano do hemisfério sul – como desempenhando um papel sutil mas crucial nessa passagem é simplesmente uma fantasia inevitável.262

Para Caetano, a proximidade das motivações baseava-se na postura de enfrentamento que o tropicalismo apresentou na década de 60, que também pressupunha uma mudança na forma de encarar o país – o já desenvolvido “desrecalque” tropicalista. Segundo o narrador, o tropicalismo queria-se responsável “pelo destino do homem tropical”, agindo como “um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche” 263 . Assim sendo, Verdade tropical, configura-se como “um esforço de divulgação internacional do gesto” 264 , o que lhe permite reverberar essas pretensões tropicalistas, agora à luz das “novas possibilidades” trazidas pelo mundo pós-Guerra Fria. A visão mítica de Brasil com a qual Caetano Veloso sempre flertou – estando ela intimamente relacionada a muitas das escolhas feitas pelo artista em sua carreira e à própria verdade tropical que seu livro encerra – encontra em João Gilberto, seu mestre supremo, a prova e a promessa de um futuro grandioso:

Fique apenas claro aqui que a vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto como redentor da língua portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira – de sua desumana e deselegante estratificação –, como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas. Por meu intermédio, o tropicalismo tomou a realidade da música popular brasileira no Brasil pela sua vocação mais ambiciosa materializada no som de João.265

261 “Trinta anos decorreram entre a deflagração do movimento tropicalista e os dias em que escrevo estas últimas páginas. Naturalmente muitos pensamentos que aqui aparecem desenvolvidos e conclusos eram ainda informes em mim durante a ação narrada. Mas também é verdade que muitos outros estiveram mais vividamente claros em minha mente no calor da hora do que puderam ser agora reconstruídos. E outros tantos se mantiveram imutáveis em seu ritmo e forma por todos esses anos. Outros, ainda, são simplesmente novos em mim. O que vale mesmo ressaltar é que o que me levou ao tropicalismo aqui me traz”. Ibidem, p. 496 262 Ibidem, p. 501. 263 “Antônio Cícero, no (…) O mundo desde o fim, relembra a revolta de Nietzsche contra a tendência dos pensadores ‘moralistas’ a depreciarem o homem tropical: em favor de quê, pergunta o filósofo alemão, “das zonas temperadas? Em benefício dos homens temperados? Daquilo que é moral? Do mediocre?’”. Idem. 264 Ibidem, p. 16 265 Ibidem, p. 502. 102

A lição tomada pelo discípulo a partir do contato com a obra do bossanovista influencia não apenas sua crença em um destino pessoal glorioso, mas também em um destino nacional glorioso, para o qual contribuiria decisivamente o gesto tropicalista: “(...) depois dele [de João Gilberto], na minha profissão não se pode aceitar nada menos do que fazer a massa mundial comer o biscoito fino que se fabrica no Brasil”266. Da confluência desses dois destinos derivariam as imbricações existentes entre os acontecimentos históricos e a travessia do personagem. Essas imbricações, por sua vez, ditariam o tom otimista e, em certos aspectos, até mesmo triunfalista que seu discurso assumiria em Verdade tropical. Ao atrelar o destino do herói ao do país, o fracasso nacional simbolizaria o fracasso pessoal e vice-versa. A visão de Brasil da qual Caetano não consegue se desvencilhar é, afinal, o que ditava os limites de sua crítica com luva de pelica feita às “características esquisitas deste monstro católico tropical”267, em sua peculiar conjunção de apego e ruptura. Tal movimento tornaria Caetano um otimista irretratável. “A vereda que leva à verdade tropical” de Caetano Veloso desemboca em um país mítico, capaz de ser belo nas dores e delícias de sua condição. Arriscando a aproximação inusitada, o Brasil de Caetano Veloso não é muito diferente daquele proposto por outro João, o Guimarães Rosa, cujo ano de “encantamento”268 coincide com o ano de lançamento das bases tropicalistas. Embora isto não seja uma unanimidade na crítica rosiana, há aqueles que enxergam na obra do autor uma certa sentimentalidade com um mundo atrasado, marcado pelas disputas entre oligarquias e seus rastros de violência e pobreza. Quando recriado por Rosa, esse mundo configura-se como oposição à civilização técnica, materialista e supressora de afetos. Dito isso, as aproximações entre Rosa e o tropicalismo vão muito além das “Veredas” que nomeiam o “posfácio” de Verdade tropical. Elas também estão presentes, por exemplo, na conjugação do arcaico e do moderno em que se baseiam. Em Rosa, embora o conteúdo seja arcaico, a linguagem é moderna em sua incorporação de recursos poéticos à prosa, que a aproxima de técnicas vanguardistas. A reinvenção, no entanto, é feita a partir daquilo que há de mais radical – e, portanto, de mais antigo – nas línguas. Da mesma forma, o mundo arcaico que, em Rosa, opõe-se à modernidade não deixa de se atrelar às suas convicções sobre os rumos do Brasil. Como observa Daniel Piza, “Riobaldo era um símbolo do país, de sua eterna

266 Ibidem, p. 258. 267 Ibidem, p. 252. 268 João Guimarães Rosa faleceu em 19 de novembro de 1967. 103 indefinição entre polos, e no entanto dessa mesma indefinição é que poderia nascer a felicidade. Uma vez expiada a sua culpa (...), ele goza de uma tranquilidade, (...) e nisso está a diferença para com as tragédias gregas”269. Num estado de espírito característico da década de 50, influenciado pela euforia desenvolvimentista, Guimarães Rosa acreditava que das ambiguidades poderia nascer um futuro grandioso. Em Verdade tropical, Caetano compartilha com Rosa dessa visão de país, fio que o ata, também, à outra ponta de sua carreira, ou seja, à aventura tropicalista. O Brasil “pré- Bahia arcaica e pós-Brasília futurista”270 ambicionado pelos tropicalistas é, afinal, um Brasil fora do tempo, daí o caráter mítico que ele assume no movimento, colocando-o sempre sob o risco de cair na euforia identitária, perigo ao qual sua narrativa também não consegue fugir. Nesse sentido, aproxima-se do místico-sertão-mundo de Guimarães Rosa, também a rejeitar delimitações temporais rígidas. No livro de Caetano, o discurso derrotista é evitado, não havendo o risco, portanto, de por em xeque o destino nacional vislumbrado pelo tropicalista, no qual as ambiguidades seriam convertidas em instrumento não apenas de resolução dos problemas internos como também forma de intervenção no quadro das hegemonias culturais. Assim como Caetano Veloso e Guimarães Rosa, Machado de Assis também fazia de sua obra um desvelamento das ambiguidades nas quais o país se amparava e por meio das quais “funciona”. A diferença é que ele, em sua percepção privilegiada da sociedade brasileira, lançaria para elas um olhar muito mais desconfiado. A situação atual do país atesta a sensatez, como não é novidade, da mirada machadiana. Caetano, no entanto, permanece fiel a antigas posições, como comprova sua fala em entrevista concedida à Folha de S. Paulo sobre os 50 anos do tropicalismo, na qual comenta a atual situação política do país:

Muitas vezes, voltam à minha memória as palavras de Rogério Duarte (...) quando Jânio (...) venceu a eleição para a Prefeitura de São Paulo contra um Fernando Henrique favorito, em 1985. "Eu gostei. Gosto do que acontece." Era um nietzscheanismo que me fascinava. Quando olho para as figuras de Temer, parecendo saído de 1953 – e, como disse a "Economist" num artigo favorável a ele, com o gestual de um mágico de palco –, e de Trump (um pop retrógrado), me lembro do "gosto do que acontece". Mais prosaicamente, às vezes torço para que os ajustes do governo Temer deem certo, só porque não gosto de ver o Brasil não funcionar. Mas meus projetos e sonhos são de grandeza, de ver brotar no Brasil uma força que libere a criatividade de todos os homens e mulheres que nasceram

269 PIZA, 2006, p. 37. 270 VELOSO, 1997, p. 51. 104 falando português na América e desenhe uma ordem social que ilumine o mundo.271

Os projetos e sonhos de Caetano nunca deixaram de ser de grandeza. A crença do narrador em um futuro prodigioso, apesar de um tanto hercúlea em sua resistência longeva às mais diversas intempéries, adaptando-se às direções em que o vento sopra, aprisiona-o, em Verdade tropical, a uma interpretação dos acontecimentos recentes que, mesmo a seu despeito, alinha seu discurso ao dos vencedores. Sob as sombras de um novo golpe, Caetano mantém seu otimismo e esperança em uma nova “ordem social” iluminada pela “criatividade de todos os homens e mulheres que nasceram falando português”. “Nosso Brasil” segue, portanto, sendo “no outro mundo”. Aliás, o verso do poema “Hino nacional”, de Carlos Drummond de Andrade, vem a calhar em um momento no qual as ilusões foram novamente perdidas. Fazendo ainda mais necessária a leitura a contrapelo da obra, a ocorrência de um novo golpe de Estado em abril de 2016 tornou inevitável a comparação entre a derrota enfrentada pela esquerda em 1964 e aquela que seria novamente sofrida 52 anos depois. Os tempos de aparente bonança vividos durante a era PT, que mobilizaram crenças na construção de uma sociedade efetivamente democrática, eram interrompidos por um nova quebra da ordem constitucional. Muito além de representar mera troca de poder, o governo golpista não perdeu tempo em derrubar os avanços sociais colocados em prática nos treze anos de governo petista, dando fim a qualquer esperança de legado e expondo as deficiências da suposta guinada progressista pela qual o país estava passando nos anos anteriores. É importante, portanto, que o resgate da década de 60 seja acompanhado por uma reflexão sobre a repetição de fenômenos que possibilitaram a gestação de um novo ovo da serpente. Em sua revisão do maio de 1968, o crítico alemão Robert Kurz defende a tese de que o movimento foi falho na sustentação e no desenvolvimento de novas ideias de emancipação que superassem a sociedade ocidental e capitalista272. Não por acaso, portanto, Caetano vincula seu tropicalismo à “onda libertária dos anos 60”. Segundo Kurz, o movimento de 68 lidava com a crítica radical à forma de reprodução social do fetichismo da mercadoria como um programa minoritário, infiltrado “no máximo indiretamente nas declarações do movimento”, e que “foi então compreendido, se tanto, num sentido apenas culturalista”273.

271 Disponível em: . Acesso em 19 de julho de 2017. 272 KURZ, 1996. 273 Ibidem, p. 41. 105 Dessa forma, ele não ultrapassava o horizonte da socialização pela mercadoria, e, com isso, seguia caminhando em círculos:

O que pela última vez esteve em cartaz no Maio parisiense foi o eterno filme dos movimentos revolucionários “socialistas” e “proletários” do Ocidente: um breve avanço rumo a um horizonte desconhecido, para então ser compelido pela massa inerte da consciência monetária a regressar à forma de circulação burguesa, cuja incessante reforma resta como o único e exclusivo objetivo lastimavelmente imanente.274

Para ilustrar essa adesão ao mercado, Robert Kurz menciona, por exemplo, o caso do político Cohn-Bendit que acreditava poder servir-se das leis do mercado de forma soberana, como radical de esquerda antiautoritário. Trata-se de uma pretensão muito parecida com a que Caetano Veloso defende em Verdade tropical, principalmente nos momentos em que reivindica uma posição “à esquerda da esquerda” para o tropicalismo, sem contudo apresentar, ao longo de todo o livro, qualquer postura mais dura com relação ao mercado, ausência que não deixa de ser significativa. Ingressar na circulação burguesa com conteúdos antiburgueses – “uma vez que a circulação na sociedade burguesa, na qual o próprio amor assume forma mercantil, é o único modo de intermediação em que as ideias podem difundir- se ampla e rapidamente”275 – é uma possibilidade cuja recusa é, segundo Kurz, “ridícula”. No entanto, ele adverte: “(...) o problema está em saber se as ideias possuem de algum modo um sólido núcleo antiburguês e se podem conciliar-se com uma práxis que ultrapasse o sistema da forma-mercadoria totalizada”276. Nesse sentido, o movimento de 68 foi, para o crítico, condescendente. Esse seria o motivo que explicaria o fato de Cohn-Bendit ter se convertido a “um idiota histórico da economia de mercado”277. Não me parece equivocado estender as considerações do crítico também ao movimento tropicalista em seu modo de dialogar com as pautas de maio de 68. Trinta anos depois, Caetano não enxergaria com maus olhos o governo neoliberal de FHC, permanecendo com sua fé nos destinos nacionais inabalada. Assim como o tropicalismo optava pela via da adesão ao mercado, o governo petista também se mostrou apto a adaptar-se às suas engrenagens. Segundo André Singer, a reeleição de Lula em 2006 demarcava um realinhamento de bases sociais que daria origem ao que

274 Ibidem, p. 43. 275 Idem. 276 Idem. 277 Idem. 106 nomeou “lulismo”278. Para ele, esse sistema empolgava o subproletariado ao distribuir promessas de redução de desigualdades, sem representar, com isso, uma real ameaça à ordem estabelecida. O realinhamento das bases sociais, no entanto, faria descer do barco uma fração da classe média cuja contraposição aos avanços sociais trazidos por certas políticas do governo convertia-se na reativação do que havia de mais conservador em sua visão de mundo, ressuscitando velhos provincianismos, moralismos tacanhos e preconceitos antes impronunciáveis. Dez anos depois, seriam utilizados como massa popular legitimadora do golpe. Quando votaram em Lula em 2006, a motivação dos eleitores de classe popular articulava-se prioritariamente a interesses de consumo: havia a sensação de que, com ele no comando, aumentaria seu poder de compra vinculado não apenas aos produtos tradicionais, mas também àqueles aos quais nunca antes havia tido acesso, como celulares, computadores ou passagens aéreas279. A percepção se mostraria correta: como André Singer argumenta, ainda em 2002, Lula já havia se unido a partido de centro-direita, assinado carta-compromisso com garantias ao capital e se declarado o candidato paz e amor280. A política de conciliação de classes proposta pelo PT tem a ver, portanto, com uma democratização por meio da inserção ou reposicionamento no mercado, que continua, afinal, ditando as regras do jogo. Nessa lógica, qualquer tentativa de ruptura com a ordem receberá uma resposta à altura do capital, que encontra pouca resistência em uma esquerda desarticulada e fragmentada, além de sensivelmente prejudicada pela volta de um anticomunismo com grande potencial de circulação sobretudo entre as classes médias e baixas. O capital que surge como o grande vencedor dos embates narrados em Verdade tropical é o mesmo que conduziria, quase vinte anos depois, uma nova interrupção do percurso democrático. De forma enviesada, a obra de Caetano não deixa de trazer à tona uma verdade que, caso não passe a ocupar o centro da crítica, tende a continuar conduzindo o país a rumos sombrios nos quais a democracia seguirá sendo exceção.

278 SINGER, 2012, p. 51. 279 Ibidem, p. 63. 280 Ibidem, p. 62. 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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