O Caso Do Conflito Territorial Na Ilha Da Marambaia Resumo a Década De 1990 Inaugurou Um Período
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Proprietários ou Invasores? O Caso do Conflito Territorial na Ilha da Marambaia Aline Caldeira Lopes * Resumo A década de 1990 inaugurou um período de incerteza entre os moradores da Ilha da Marambaia (Estado do Rio de janeiro) que passaram a conviver com a dinâmica do trâmite de ações judiciais de reintegração de posse ajuizadas pela União Federal que os considerava “invasores” do território administrado pela Marinha do Brasil desde a década de 1970 e ocupado por eles há pelo menos cento e cinqüenta anos. O quê impulsionou a iniciativa da Marinha do Brasil para que a relação com comunidade passasse a ser mediada por ações judiciais e pela oposição entre “proprietários” e “invasores”?As mobilizações nacionais em torno do reconhecimento de territórios remanescentes de quilombos no Brasil na década de 1990 e a publicação da primeira norma federal (1995) de regulamentação do artigo constitucional que declara a propriedade da terra “aos remanescentes das comunidades dos quilombos” é uma hipótese. Nossa pesquisa parte deste questionamento inicial para narrar o conflito entre a comunidade da ilha da Marambaia e a Marinha do Brasil traçando as estratégias dos atores no período do conflito entre os anos de 1996 a 1999. Palavras-chave: processo social, território, direito. Abstract The 1990s ushered in a period of uncertainty among the residents of the Island of Marambaia (State of Rio de Janeiro) that came to live with the dynamics of proceedings of lawsuits filed repossession by the Federal Government believed that the "invaders" of territory administered by the Navy of Brazil since the 1970s and occupied by them for at least one hundred and fifty * Mestranda do programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/ UFRRJ). Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). years. What drove the initiative of Brazil to the Navy that the relationship with the community come to be mediated by lawsuits and opposition between "owners" and "invaders"? The national mobilisations around the recognition of territories remaining quilombos in Brazil in 1990 and the publication of the first federal standard (1995) to regulate the constitutional clause that states the ownership of land "to the remnants of Quilombo communities" is a hypothesis. Our research part of this initial questioning to narrate the conflict between the island community of Marambaia and Navy of Brazil outlining the strategies of the actors during the conflict between the years 1996 to 1999. Keywords: social process, territory, right. Introdução A Ilha da Marambaia situa-se no litoral da Costa Verde ao Sul do Estado do Rio de Janeiro no município de Mangaratiba na entrada da Baía de Sepetiba, defrontando-se com a Ilha Grande. A Restinga da Marambaia possui uma extensão de aproximadamente 42 km e é separada do continente pelo Canal do Bacalhau em Barra de Guaratiba no município do Rio de Janeiro. A Ilha da Marambaia não é de fato uma ilha cercada de água por todos os lados, porém recebe esta denominação devido ao porte das elevações que se erguem no extremo Oeste no final da longa restinga. O seu ponto culminante é o Pico da Marambaia (647 metros de altura) e sua vegetação reúne uma das últimas reservas de Mata Atlântica do sudeste brasileiro com áreas de restingas (incluindo praias e dunas) e manguezais como ecossistemas associados 1 O mapa de ocupação territorial da ilha da Marambaia está dividido em áreas de rios, estradas não pavimentadas, caminhos e trilhas, áreas de sítios arqueológicos, praias, depósito 1 Escola Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais. Disponível em www.mar.mil.br . Acessado em 20 de janeiro de 2010. de lixo, cemitério, heliporto, área residencial, campo de pouso, cobertura vegetal, área militar da Marinha e área de manobras militares 2. Na Marambaia funcionou o empreendimento escravista do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que manteve no local um lucrativo empreendimento escravista no século XIX, e as marcas deste tempo permaneceram, assim como dos projetos assistenciais da Fundação Cristo Redentor e da Escola de Pesca, períodos que marcaram cada trecho da ilha e podem ser notados ainda hoje na disposição das casas, nas ruínas das senzalas e da casa grande, nas denominações de morros e picos. Algumas décadas na Marambaia se passaram como se fossem séculos e outros séculos como se fossem décadas. A Marambaia é marcada também pelas relações econômicas e de sociabilidade desenvolvidas ao longo de cerca de cento e cinqüenta anos por homens e mulheres escravizados no século XIX e por seus descendentes juridicamente livres e da instalação do Centro de Adestramento Militar da Ilha da Marambaia, o CADIM, que desde a década de 1970 alterou significativamente na ilha. De receptora de alunos para a Escola Técnica Darcy Vargas para iniciarem os estudos na prática pesqueira - período em que a Marambaia foi o destino de estudantes de todo o país - atualmente a administração da ilha opera no sentido de tornar-la de uso exclusivo das Forças Armadas. A Marambaia contemporânea é fruto de lutas históricas, das disputas cotidianas de diversas gerações e administrações. Aparece-nos que estão em jogo no conflito contemporâneo da ilha duas formas opostas de apropriação do território. De um lado a Marinha do Brasil, para quem a Marambaia é local privilegiado para atividades de treinamento militar com a possibilidade de realização de treinamentos de tiro com bala real. Para a comunidade quilombola a Marambaia é espaço de pesca, vida, festa e reprodução física e cultural. As duas formas de apropriação do território ilha da Marambaia estão em conflito e demonstram-se incompatíveis, mas uma delas foi alçada a uma condição de direito superior por um artigo da Constituição Federal de 1988 em seus atos de disposições constitucionais transitórias e por suas regulamentações. 2 Ibdi No início do nosso período de análise (1996), os sucessivos comandos do CADIM já conduziam investigações sobre reformas, construções e ampliações de casas na ilha desde 1994 e a segunda metade da década de 1990 inaugurou na ilha da Marambaia um período de disputa sobre os direitos de utilização do território em um novo campo, que, ao menos para os moradores quilombolas era desconhecido: o campo jurídico. Foram cerca de onze ações de reintegração de posse ajuizadas entre o ano de 1996 e 1998 sob o argumento de que os “réus” eram “invasores de terreno da União” e que deveriam ser expulsos imediatamente, inautida altera partes, isto é: sem que pudessem ao menos se pronunciar no processo judicial. Estas iniciativas judiciais ocorreram num contexto social marcado por uma disputa local envolvendo, de um lado, os moradores nativos da ilha que tentavam conquistar uma autonomia permanente para dispor do seu território e do outro lado o Estado brasileiro que, através da Marinha do Brasil, impunha um controle detalhado e hierarquizante, muitas vezes autoritário, sobre o que poderia e o que não poderia ser feito na ilha, inclusive submetendo ao seu jugo atividades ordinárias como a reforma das unidades habitacionais ocupadas pelos nativos. O que foi modificado nas relações de poder e no contexto sócio político para que aqueles que ocupavam a região por cerca de cento e cinqüenta anos e antes eram denominados “nativos” fossem agora classificados como “invasores” e não detentores de direitos, sendo- lhes exigida a certidão de propriedade? Como explicar que relações que, até então eram mediadas pelo uso da coação física e moral, agora o fossem por leis e decisões judiciais?A publicação da primeira norma de âmbito nacional que regulamentava o reconhecimento dos territórios quilombolas no Brasil no ano de 1995 pode ser um caminho a ser seguido na busca de resposta para estes questionamentos, ou ao menos para que seja apresentado como uma possibilidade O objetivo deste artigo é desenvolver uma reflexão sobre o conflito social na ilha da Marambaia através das estratégias dos atores envolvidos e a partir da visibilidade nacional dos instrumentos de regulamentação do artigo constitucional que reconheceu, em 1988, o direito à propriedade de comunidades remanescentes de quilombos no Brasil 3. Nossa análise está compreendida, para fins metodológicos, entre os anos de 1996 e 1999: período marcado pela primeira ação de reintegração de posse como instrumento para retirada da comunidade do local até o início do processo de reconhecimento, demarcação e titulação do grupo como comunidade remanescente de quilombos pela Fundação Cultural Palmares. A partir deste recorte temporal, serão analisados dados que seja decorrência deste período, de modo que a delimitação do período não atue como uma limitação à nossa análise. Sobre a Estratégia dos Atores em Conflito: Um Panorama da Década de 1990 Após sua inclusão na Constituição Federal de 1988, o “artigo 68” (ADCT) passou cerca de sete anos sem qualquer regulamentação de abrangência nacional que orientasse a sua efetivação. Isto se passou não sem a pressão de organizações sociais de luta pela terra que em alguns Estados como o Pará pressionaram os governos locais para que realizassem a titulação através de regulamentações estaduais 4. A primeira manifestação do poder público pelo desdobramento do dispositivo constitucional foi a portaria 307 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, que regulamentava a demarcação e a titulação das áreas quilombolas sobre áreas públicas e foi publicada no ano de 1995 5. A iniciativa estava inserida num contexto de mobilização nacional pela titulação de territórios reconhecidos como quilombolas, ainda que incipiente (CHASIN, 2009). Para uma reflexão sobre as estratégias dos atores no conflito que se desenvolveu na ilha da Marambaia entre o ano de 1996 e 1999 é necessário que, inicialmente, tenhamos em mente quais eram as possibilidades em jogo. Os debates em torno da interpretação do “artigo 68” na década de 1990 atravessavam uma questão chave: a definição da categoria constitucional “remanescentes das comunidades dos quilombos”(ARRUTI, 2007).