SÃO BENTO DO SAPUCAÍ, histórias e memórias organização Francisco M. P. Teixeira O projeto nasceu há poucos anos aqui mesmo em SBS. Nasceu do entendimento meu e de outras pessoas de que era preciso ampliar e enriquecer o conhecimento dos sambentistas sobre suas origens e sua

São Bento do Sapucaí: Histórias e Memórias / Orga- história. Conhecimento que é na verdade, autoconhecimento das pes- nização Francisco Maria Pires Teixeira. São Bento do soas, das famílias e das instituições que reúnem e formam esta comu- Sapucaí: Museu da Mantiqueira, 2018. nidade. ISBN

1.História 2.(....) Das conversas, consultas, reflexões e troca de ideias - num inte- resse e envolvimento crescentes - firmou-se a convicção de que um livro seria um bom ponto de partida para a busca e exposição desse olhar sobre nós mesmos.

Projeto editorial O formato do livro foi apresentado e aceito em pouco tempo: uma projeto e coordenação editorial pesquisa sobre as fontes e referências da memória, do registro históri- Prof. Francisco Maria Pires Teixeira co, um texto estruturado em blocos temáticos desdobrados em subte- foto capa mas e - o mais importante - uma obra coletiva escrita por autores com Geraldo Francisco da Silva ou sem experiência, que aderiram voluntariamente ao projeto e pude- diagramação ram escolher autonomamente o que gostariam de escrever dentro do Alberto Ribeiro Lima que o projeto oferecia.

Constituído um pequeno comitê de gestão do projeto, este andou 2018 às vezes mais desenvolto e outras com mais dificuldade. Houve per- Museu da Mantiqueira MuMan calços e atrasos, mas foi concluido. Não se conseguiu, até o presente, www.museudamantiqueira.com.br www.muman.com.br publicá-lo como era o propósito, mas seu acolhimento no site do MU- MAN garantirá que não fique oculto, relegado. Sua exposição por meio digital certamente garantirá que se alcance e cumpra seu destino: o de estimular os sambentistas a buscar, pesquisar e enriquecer com suas memórias a história desta terra e desta gente.

fmpt, 15, 09, 2017 sumário 1 O Lugar No tempo das comitivas A Mantiqueira Maria Bernadete Costa Prado Galileu Garcia Jr. 18 2 21 Vida Social O Baú Os bairros Isaura Aparecida de Lima e Silva Maria Bernadete Costa Prado (1942-2000) 22 5 Famílias Nas curvas da memória: Maria Benedita Carlos Pereira o rio Sapucaí-Mirim e os Piracuaras 25 Diana Costa Poepcke A Santa Casa: de instituição de caridade 8 a hospital de referência na região 11 Viver da Terra Maira Silva de Aguiar Narcizo Lavouras e criações Ana Maria Leopoldo e Silva Maria Cristina Magalhães Púpio 28 João Carlos Púpio Saberes e fazeres de São Bento: 12 a cultura popular moldando a alma do povo Armazéns, lojas e tropas: memórias Beatriz Lomonaco do tempo em que produtos e freguesia Creverson Claro chegavam a galope Vera Pena Diana Costa Poepcke 31 15 33 Lazer e Cultura 47 Política 61 Religiosidade A rua de cima São Bento do Sapucaí 1932 A Matriz Aurora Marigilda da Rosa Santos Marcos Antônio da Silvaz Bruna da Rosa Santos 34 (Marcos Folheiro) 62 Bandas e bailes nas histórias sambentistas 48 Festas religiosas, procissões e andores. Walkyria Ferraz Entre mineiros e paulistas: aspectos jurídi- Gilberto Donizeti de Souza Fátima Machado cos da administração do território 64 36 Diana Costa Poepcke. 67 Modernização Cinema, Rádio e TV em São Bento do 51 A estrada Sapucaí 54 Educação Francisco Maria Pires Teixeira Maria de Fátima Machado O Grupo 68 39 Lidiane da Silva Cesar Gonçalves E os turistas chegaram Esportes: das glórias do passado ao futuro Eufrásio José de Carvalho, Márcia Azeredo promissor 55 70 Emílio Fernandes O Colégio Entre o passado e o futuro Alan Soares Ferreira Flávio Pedrosa Marília Ribeiro Souza 41 Marcos Antônio da Silva 72 São Bento do Sapucaí em prosa e verso Francisco Maria Pires Teixeira João Pedro Venâncio 58 44 O Lugar

Pedra do Baú vista do Bairro do Sítio - Foto: Diana Poepcke

sumário 1 A Mantiqueira Galileu Garcia Jr.

O relevo do solo, o clima incomparável, as águas abundantes e salutíferas, as madeiras de construção variadas e abundantes, a pedra apropriada para os calçamentos e para as alvenarias mais apuradas, as facilidades de abastecimento de todo gênero [...], tudo ali se encontra como se fora uma região predestinada. Teodoro Sampaio, Viagem à Serra da Mantiqueira, 1893.

Por interesses e circunstâncias pessoais, em meados de 2000 aca- bei me aproximando desta montanha. Vinha em busca de um pedaço de chão, onde pudesse me estabelecer e que fosse uma opção ao meu dia a dia numa grande metrópole.

Aos poucos comecei a observar e registrar paisagens e imagens que foram me levando a outros lugares, onde conheci pessoas em pa- pos intermináveis e ouvi estórias fantásticas sobre personagens que já se foram. Quando percebi, estava cruzando a serra de cima a baixo. Do meu canto fui conhecendo aos poucos meus vizinhos mais próxi- mos e também suas famílias, sempre através de uma boa prosa.

A cidade entre morros e vales / Foto Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 2 A Montanha tou como a segunda barreira a vencer a caminho do interior do Brasil através das Minas Gerais. Vencê-la, no final do século XVII, foi um fato Esta grande formação montanhosa tem, desde sua apropriação pez histórico determinante para a conquista do interior brasileiro. la colonização portuguesza no século XVIII, o nome de Mantiqueira, originário do “Amantiquir” dos índios, “Montanha que chora” em tupi A história brasileira se funde a partir daí com a história de nossa guarani, por suas numerosas nascentes e cachoeiras, córregos e ri- serra. Suas trilhas ancestrais, abertas por animais e índios e usadas beirões vertendo águas limpas e frescas. Denominação bela e profé- pelos bandeirantes e mineradores, foram passagem obrigatória para tica para este lugar. A serra tornou-se grande provedora de água para os tropeiros escoarem, em lombo de burros e mulas, a produção da o sudeste brasileiro, dádiva da natureza para a região, principalmente região serrana para as terras baixas do vale do Paraíba e litoral e trazer após o avanço da industrialização e urbanização no vale do Paraíba e de lá, os artigos que ela própria não produzia. E mais do que garantir na grande São Paulo. as trocas comerciais, o que esses caminhos e tropas fizeram foi inte- grar um território montanhoso, extenso e formado por três diferentes Além das águas abundantes, a serra é um lugar que nos deslumbra áreas políticas, criando o que hoje são as estradas e passagens da com alguns dos mais altos picos do Brasil e que ainda preserva, em nossa serra. meio às manchas da Mata Atlântica original, florestas valiosas como a ombrófila mista, com suas araucárias e podocarpos em uma convi- Porque, seja ele em parte mineiro, paulista ou fluminense, a unida- vência pacífica. Recursos naturais em abundância, clima ameno e atri- de geopolítica desse território se fez necessária para preservar uma butos paisagísticos privilegiados, fazem destas terras altas, um lugar cultura muito própria encontrada no seu povo, em suas casas, suas de enorme relevância ambiental para nosso país e consequentemente festas, sua culinária e, enfim, na sua história que é parte da história para o nosso planeta. do Brasil, pois seja ele também mineiro, paulista ou fluminense, o ci- dadão mantiqueirense é um brasileiro que tem origem e identidade comuns a milhares de outros que vivem nestes10.000 km2 aproxima- damente, em quase 70 municípios dos três estados. Suas vozes

Mas, o que mais me chamou a atenção, desde o início da minha história com este lugar, foi a incrível identidade que existe entre as São Bento do Sapucaí pessoas, seus personagens, seus povoados e distritos espalhados na amplidão da Mantiqueira. Incrível porque, mesmo na dispersão geo- Para mim, percorrer suas estradas e conhecer seus caminhos nos gráfica de uma serra que delimita três estados brasileiros – São Paulo, últimos dez anos - no verão com suas águas abundantes, no outono Minas Gerais e –, essa gente conseguiu criar e manter com sua luz cristalina, no inverno com as baixas temperaturas e os laços e marcas de forte convivência socioambiental. vales cobertos de neblina e depois, na primavera, com as floradas de tantas cores – tem sido sem dúvida uma experiência importante em A serra não foi obstáculo, ao contrário. Ao longo do tempo, as fa- minha vida. mílias e as comunidades encontraram formas de viver nas terras altas e isoladas. Geraram saberes, regras, costumes, tradições, valores e Mas essa experiência começou a valer mesmo,quando cheguei a memórias que foram transmitidas entre gerações e que consolidaram São Bento do Sapucaí no ano de 2000 e me deparei com esta cidade uma identidade social e cultural própria, interiorana, mais rural que neste vale verde cercado de montanhas, com rios e nascentes por urbana, algo arcaico e distanciado da modernidade. Convivendo com todos os lados e com seu grande monumento natural: a majestosa a globalização cultural, este nosso retrato regional segue registrando Pedra do Baú aparecendo de forma onipresente. e preservando parte importante do que podemos chamar de Brasil profundo. São Bento foi o início da descoberta e convivência com a Mantiqueira. Este lugar que me acolheu foi o que escolhi para ficar e servir de refe- rência para um recém-chegado de São Paulo.

Caminhos Logo que cheguei percebi a importância dos valores em São Bento. Valores imateriais! Senti que ela respirava história, uma história guar- Depois da “irmã” Serra do Mar se impor como primeiro grande pa- dada por suas famílias, rurais e urbanas, que pela forma íntima como redão no Sudeste brasileiro junto ao litoral, a Mantiqueira se apresen- Foto Geraldo F. da Silva, 2014 se relacionam, acabaram conservando em seu seio estes valores e

sumário 3 costumes já esquecidos ou abandonados em cidades maiores e glo- balizadas culturalmente.

Histórias e memórias orais que fui absorvendo à medida que ficava mais próximo dessas pessoas. Fantásticas histórias de vida que se fundem com a história do nosso país, revelando-se a cada instante, a cada pausa e em cada nova palavra.

São Bento, cidade plantada num vale à beira do rio Sapucaí Mirim, possui topografia similar a outras cidades da Mantiqueira, de altos e baixos, vales e montanhas. É preciso subir e descer essas encostas para conhecê-la, admirar suas vistas, visitar seus moradores, entrar nas suas casas, viver e sentir seu cotidiano me trás uma paz ancestral.

Andar pelos seus caminhos nos obriga sempre mudar nosso olhar. Dependendo de onde se está, o ponto de vista é sempre diferente, e este, para mim,tem sido até hoje um grande exercício.

Do vale, São Bento esparrama-se para bairros rurais próximos ou distantes, como o Paiol, Serrano, Pinheiro, Baú, Quilombo, Cantagalo e outros. As distâncias não impedem seus moradores de promover e participar das festas – religiosas, sobretudo – e eventos com que prestigiam e conservam costumes e tradições locais. Mas é para o centro urbano, naturalmente que tudo converge. É onde a gente “da roça” vem encontrar amigos e parentes, fazer compras, ir à escola ou ao posto de saúde, usar seus serviços, participar das festas e come- morações e confraternizar.

Veio daí, então, o projeto “caminhos da Mantiqueira”. Ele nasceu quando eu, sentado em minha varanda no bairro do Serrano, olhando as fotos e ouvindo as entrevistas já feitas, acreditei que tinha que ir mais longe. Os personagens e pessoas que eu estava conhecendo me “Povoado de dia”, tela de Nelson Screnci, 2014 levariam a outras histórias em cidades vizinhas.

Ditinho Joana, Manoel Tropeiro, seu Ângelo Flavio e Antônio Maceto, os mosaicos de Angelo Milani e os amigos da Casa da Cultura Miguel Fontes escritas Fontes orais Reale foram definitivamente pilares nos quais pude me apoiar. Suas referências, sugestões e críticas fizeram com que o meu projeto tives- Teodoro Sampaio, Viagem à Serra da Mantiqueira. São Paulo: Benedito da Silva Santos (Ditinho Joana) se uma identidade e uma cara desde o início. Brasiliense, 1978. Manoel Macedo dos Santos (Manoel Tropeiro) Quero dizer que este livro de “histórias e memórias” avança na mes- Galileu Garcia Júnior, Caminhos da Mantiqueira. São Paulo: Empresa ma direção. Ele vai em busca de um resgate que irá fortalecer mais das Artes, 2011. Ângelo Flávio ainda a construção de uma identidade para a cidade e mostrar diferen- tes aspectos e pontos de vista sobre a nossa São Bento do Sapucaí, Antonio Maceto através dos olhares de seus autores e editores. A cidade que me aco- lheu foi a mesma que eu escolhi para aprender mais sobre a história de seus habitantes, de suas famílias.As famílias que nela vivem nos fazem pensar sobre como a vida eraem um Brasil mais distante, num Brasil mais autêntico e, por que não, em um Brasil mais real.

sumário 4 Somente a 12 de agosto de 1940, dois sambentistas, Antônio Teixeira de Souza e João Teixeira de Souza, os irmãos Cortez, como Um sonho eram mais conhecidos, enfrentando a arrogância do Barão, atingiram O Baú o cume. Isaura Aparecida de Lima e Silva Muita gente tentou penetrar em seus mistérios e nada conseguiu, além de uma grande frustração. A Rainha da Mantiqueira atraía a Escalar a Pedra do Baú era um sonho que Antônio sempre acalen- (1942-2000) atenção de todos quando viam. Para lá se dirigiam pessoas de vários tara desde a infância. Era uma ideia fixa, uma obsessão, quase um Estados e até do estrangeiro, sem conseguir escalar a massa lisa e fanatismo. “Ainda hei de ver o que há em cima daquela pedra. Um dia, abrupta. eu subo lá”, costumava dizer o teimoso homem. Passou a vida inteira a tentar e nunca desistiu de concretizar essa aventura. Muito falaram pelo caminho e acertaram que somente no dia seguinte dariam a notícia à população da cidade. Foram recebidos festivamente, e os familiares não cabiam em si de contentamento ao vê-los são e salvos. Isaura, Pedra do Baú, um mito, uma maravilha, uma justiça, 1988.

Do alto da serra da Mantiqueira, observando o Vale do Paraíba e o Sul de Minas, protegido pela natureza, cercado de matas virgens por todos os lados, intrincado de obstáculos, o monstruoso gigante de granito continuava ostentando sua virgindade e imponência, sem que ninguém ousasse incomodá-lo na sua majestade.

Isaura Aparecida de Lima e Silva, anos de 1990 Enfim, os pioneiros sambentistas no topo do Baú, 1940; acervo M. Coutinho / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 acervo M. Coutinho / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 sumário 5 tro. [...] Fracassada uma vez, tentava outra, e assim o tempo foi passando.

Depois de cerca de vinte minutos, com muita coragem, apesar dos Muitos anos se passaram nessa luta pela conquista da pedra, até espinhos que lhe feriam a carne, rasgando-lhe as vestes, conseguiu que convidou seu irmão para tentar novamente, certo de que não fa- subir pela pedra. Chegou a uma altura de onde já se podia ver o cume lhariam dessa feita. Marcaram a partida para o dia seguinte, 12 de do gigantesco rochedo. Encontrou novamente outra laje lisa e, sem agosto do ano de 1940. [...] pensar no perigo, pôs-se a subir por ela como um animal acuado. Por várias ocasiões, quase rolou pelo despenhadeiro, segurando-se ape- nas com seu pulso forte. Já com as forças minadas, o corpo a tremer, Uma escalada transpôs o obstáculo e andou mais um pedaço do mato cheio de ca- rafás que lhe rasgavam a pele, e faziam o sangue tingir de vermelho Partiram. Ao romper da aurora, já haviam caminhado vários quilô- suas roupas. O destemido sambentista não desanimava e queria ver, metros e viam á frente, lá no alto, a monstruosa pedra. Após algu- lá de cima da Pedra do Baú, a sua terra natal. Vencendo obstácu- mas horas aproximaram-se do sopé do rochedo, onde começava a los grandes e pequenos, Cortez realizou seu grande sonho: atingiu o verdadeira aventura. Ambos estavam exaustos da longa caminhada cume gigante e segurou no bigode do monte barão! Sua emoção foi e pararam para descansar um pouco. Um pica-pau passou voando tamanha que não sabia como contê-la. Parecia estar num paraíso, sobre eles, fazendo grande alarido como que incitá-los a continuar respirando ar puro a 1950 metros de altitude. O coração batia forte e na jornada. Eram exatamente sete e meia da manhã, quando retoma- descompassado e, num ímpeto de felicidade, como que para agrade- ram a marcha. Tudo parecia correr conforme o sonho de Antônio e cer a Deus, arrancou um arbusto e fez uma cruz, deixando o testemu- prosseguiram sem grandes dificuldades até a altura de uns 180 me- nho no local. tros aproximadamente. Com espanto e surpresa, depararam com um grande paredão, liso e vertical, que lhes obstruía a passagem. Como Nesse momento, lembrou-se do irmão e, como um doido, começou transpô-lo, se eram oito metros de pedra lisa, sem nada para se segu- a descer pelo mesmo caminho. Precisava ajudar João a subir tam- rar? Pensaram um pouco e decidiram descer; cortaram uma árvore na bém; não era justo guardar só para si a glória da façanha realizada. mata, para, encostando-a na pedra, tentar subir pelo tronco. E assim Seria muito egoísmo de sua parte se o fizesse. Outrossim, tinha ne- o fizeram. Com grande sacrifício, levaram-na até o local desejado, en- cessidade de dividir com alguém a felicidade, a alegria de contemplar costaram-na à massa granítica. Faltava-lhes a força física nas pernas tão maravilhosas paisagens e braços, tal o cansaço que se apossava de ambos. Entretanto, o de- sejo de vencer aquele obstáculo e ver o que havia além dele era mais forte que tudo, que qualquer outra coisa. Dominaram o tremor dos membros e, como dois gatos, foram subindo pelos galhos.

Vencido o paredão, Antônio disse a João que teriam um trecho sem muitas dificuldades e que, com ânimo forte e coragem chegariam ao topo. A uns duzentos metros de altura depararam com outra laje, tan- gente ao abismo. E agora? Tentariam? Colocariam a vida em risco? O que fazer?... Desistir, depois de tanto sacrifício?... Não!

Antônio era o mais velho (cinquenta e um anos) e por isso achava ter vivido o bastante para se arriscar mais e, pensando assim, deu iní- cio à aventura mais arriscada de sua vida. Agarrando-se às parasitas da pedra, às trincas, bem pequenas por sinal, num ressalto aqui, ou acolá, várias vezes quase rolando pelo abismo, conseguiu superar o perigo. João ficou do outro lado, rezando e pedindo a Deus pela vida dele. Aguardando-o numa área tão pequena que mal cabiam seus pés (30 cm.), sem poder se mover, tendo à frente um abismo de 250 me- tros de altura.

Por ordem de Antônio, ficou ali, imóvel, aguardando os aconteci- Depois da escada de ferro, o abrigo quase pronto para os visitantes no alto do Baú - acervo M. Coutinho / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 mentos, enquanto o outro tentava sozinho, penetrando matagal aden-

sumário 6 Uma conquista

Passearam por toda a pedra e descansaram à sombra das árvores. Visto que horas iam adiantadas e a descida era tão perigosa quanto fora a subida, decidiram pôr-se a caminho. Duas horas mais tarde, es- tavam a salvo, pisando terra firme. Anoitecia. Marcaram uma direção incerta através da trilha percorrida de manhã e seguiram a picada, lo- go se perdendo no emaranhado da mata. Na escuridão da noite, um chamava pelo outro, sempre aos gritos. Perambularam assim durante um bom tempo e, enfim, localizaram-se pela voz.

Antônio rolou por uma pedra de uns cinco metros de altura, escon- dida no capim, ficando de cabeça para baixo, sem ânimo para se le- vantar, tal o cansaço de seu corpo. João, ao ver o irmão em situação tão periclitante, abriu picadas até ele, entregando-lhe uma vara de carafá para que se apoiasse e se levantasse dali.

A noite ia bem alta quando conseguiram transpor a mata, saindo em um descampado de onde avistaram as luzes da cidade. Pararam na casa de José Lourenço, que os aguardava ansiosamente. Em resumo, contaram os fatos e regressaram para casa, penetrando na escuridão da noite.

Muito falaram pelo caminho e acertaram que somente no dia se- guinte dariam a notícia à população da cidade. Foram recebidos fes- tivamente, e os familiares não cabiam em si de contentamento ao vê -los são e salvos. Pedra do Baú, Monumento Natural Estadual desde 2010 Foto Geraldo F. da Silva, 2013 A esposa de Antônio, assim que ele entrou em casa, foi perguntan- do se tinha conseguido o que queria e chamando-o de aventureiro. Encontrou João como deixara: imóvel e no mesmo lugar. Ao dar-lhe Sorrindo, o marido respondeu-lhe: “querer é poder, o importante é a notícia, percebeu nos olhos dele o brilho da felicidade que sentiria se saber querer”. Dizendo isso, foi se sentando no primeiro banco que também pudesse subir. Antônio, rapidamente, arrancou um arbusto fi- achou pela frente. O cansaço o aniquilava. no, ali mesmo, e atirou a ponta para o outro. Estava um pouco apreen- sivo, pois João era bem mais pesado que ele e um pequeno descuido Contou à família os fatos da escalada e resolveu dar uma volta na seria fatal, ambos rolariam pelo abismo, não sobrando nada. Tomadas praça, contar para os amigos que ainda estivessem acordados a faça- todas as precauções, iniciaram a subida corajosamente. Antônio era nha da conquista que muitos achavam impossível. mais ágil devido à estatura física e ajudava o irmão nos lugares mais Antonio Teixeira de Souza, um dos irmãos Cortez da subida ao topo perigosos e, assim, chegaram ao cume da pedra. Caminharam por da Pedra do Baú em 12 de agosto de 1940; toda a superfície, até o ponto mais alto, de onde gritaram a plenos acervo M. Coutinho - Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 pulmões, para alguns matutos que os observavam incrédulos, boquia- N.E. – A reprodução deste texto – do livro Pedra do Baú, um mito, bertos, duvidando daquilo que seus olhos viam. uma maravilha, uma justiça. Itaquaquecetuba: Bianchi Editores, 1988, p. 50/54 – rende justa homenagem àquela que, não sendo historiadora Com o que restou de suas camisas ensanguentadas acenaram para de formação, inaugurou as pesquisas e estudos históricos samben- aquela gente. tistas. Isaura gostaria do reconhecimento e da continuidade do seu trabalho em obras de outros pesquisadores, inclusive nestas histórias e memórias da sua cidade.

sumário 7 “Vamos nadar hoje? Vamos! Juntavam dez moleques e... vamos na- ma das pontes da cidade, nadando e pescando. Expedito Antônio dar!” Era assim que começava uma das brincadeiras prediletas da da Silva, com o apelido de Expedito Folheiro, nascido em 1920, tam- infância de Luiz Ferreira da Costa, conhecido como Luiz Leopoldo, bém aprendeu a pescar e a nadar no rio. Mora, desde a infância, nas Nas curvas da memória: sambentista nascido em 1923 que, além de jogar futebol, gostava de proximidades da igreja de São Benedito, em um dos locais utilizados “nadar no Sapucaí”. Eram outros tempos, e outro era o rio Sapucaí- para banho chamado “Prainha de São Benedito”. No entanto não era o rio Sapucaí-Mirim e os Mirim. Antes da retificação, o rio era mais largo, sinuoso e cheio. “O permitido nadar no rio Sapucaí-Mirim, sobretudo pela periculosidade. rio aqui tinha água de montão!”, lembra João de Oliveira Pinto, pes- A polícia procurava as crianças que ficavam nadando e, ao encontrá piracuaras cador sambentista nascido em 1926 e chamado por João Alexandre -las, confiscava as roupas deixadas nas margens e as levavam para Diana Costa Poepcke na cidade. Em sua infância aprendeu a pescar, nadar e muitas vezes a delegacia. Logo, as crianças tinham que ir até lá para recuperá-las. desceu o rio de canoa. O espírito competitivo, comum entre crianças e adolescentes, Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma estava presente. Campeonatos de natação eram organizados para do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, As curvas e as brincadeiras descer o rio. Os competidores pulavam das pontes e nadavam até o mas nas profundezas são tranquilos e escuros como lugar marcado como “ponto de chegada”. O percurso exigia um gran- os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma São Bento nasceu e cresceu à beira do rio Sapucaí-Mirim. Este, por de esforço físico e nem todos conseguiam concluir a “prova”! Luiz coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio sua vez, nasce em Santo Antônio do Pinhal, no estado de São Paulo, Leopoldo explica: “era uma competição, você ia no rio até enquanto é uma palavra mágica para conjugar a eternidade. percorre um trecho em terras mineiras na cidade de Sapucaí-Mirim, pudesse, a hora que não estava aguentando mais, pegava no barran- João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, volta ao estado paulista, em São Bento, para definitivamente correr co e saia fora. [...] [eram] uns dez, doze moleques e quem chegava A terceira margem do rio, 1962. por Minas Gerais. Suas águas banham os municípios de Paraisópolis, eram três ou quatro só.” Entretanto, era um rio diferente e também Conceição dos Ouros, Cachoeira de Minas e Pouso Alegre, onde se mais perigoso: “[...] o rio naquele tempo não era esse rio de agora não. juntam às do rio Sapucaí para percorrer aproximadamente 140 km até Era ‘cheinho’, você não via barranco. Era só água mesmo e uns dois a represa de Furnas. metros de fundura. Se caísse na água tinha que saber nadar mesmo, senão morria!”. Nadar no rio era comum e estava presente no cotidiano da cida- de. As crianças e jovens de São Bento se divertiam pulando de ci- O prêmio para quem subisse ao pódio? A fama na cidade!

São Bento, década de 1940; acervo Fátima Machado / Foto Durval José de Campos

sumário 8 As curvas e os piracuaras

Se de dia se nadava e pescava, à noite era hora de montar o ca- tueiro: uma vara de linha curta fincada e deixada no barranco do rio. De manhã, quando o sol raiava, era hora de olhar os peixes fisgados. “Pegou quanto? Peguei ‘tanto’! E você? Ah, eu também peguei ‘tan- to”, os piracuaras – apelido dos pescadores da cidade – puxavam su- as linhas e comparavam o rendimento da noite. Mas, “armar o catuei- ro” não era tão simples. Os pescadores tinham que levantar bem cedo para ir buscar o peixe, caso contrário poderiam encontrar uma pedra amarrada na ponta da linha: o peixe fora roubado!

O verão é a melhor temporada para a pesca, pois durante o in- verno os peixes ficam entocados nos barrancos do rio. João Alexandre explica que no “tempo de calor era tempo bom de pesca. E tempo de frio era ruim porque o peixe esconde. Tem que pescar de mão, pegar com a mão na toca do peixe.” A pesca de mão era outra modalidade muito difundida na cidade, consistia em se entrar no rio e pegar o pei- xe com as próprias mãos, sem nenhum equipamento.

O rio Sapucaí-Mirim era rico em peixes como mandiguaçu, tabara- na, curimbatá, piaba, lambari e o famoso dourado. Para cada peixe se usava uma isca e uma técnica específica, a gosto do pescador. As iscas utilizadas eram a minhoca, a tripa de galinha, o milho, a carne bovina, a lesma, o lambari e até o siriri de cupim. Para facilitar a pesca era comum cevar os peixes, isto é, alimentá-los em um determinado ponto do rio, atraindo-os e acostumando-os àquele local.

Enchentes e retificação: novos contornos e significados

A coisa era feia. Quem ouvisse barulho de foguete no meio da ma- drugada podia saber: a enchente descia das cabeceiras do rio e já alcançava Sapucaí-Mirim. Como a cidade mineira fica acima de São Bento no curso do rio, o aviso vinha de lá. Começava, então, a correria dos sambentistas para subir os móveis, acordar as crianças e sair das Joaquim Berti, piracuara no Sapucaí Mirim; acervo familiar Idalécio Berti casas. A água estava chegando.

As enchentes eram preocupação constante. Era corriqueiro co- locar utensílios domésticos em cima de mesas e cadeiras para que não entrassem em contato com a água. E para sair das casas quando as águas já tomavam conta das ruas? De canoa! Se não fosse possí- vel sair da casa em tempo, o jeito era esperar em cima dos telhados até a água abaixar.

sumário 9 As enchentes foram parte do cotidiano da cidade por muito tempo. Isso até, segundo lembram os mais antigos, ser executado o Projeto de Retificação do rio Sapucaí-Mirim no início da década de 1970, no mandato do prefeito José Bourabeby.

Retificar um rio é tornar seu trajeto o mais retilíneo possível a fim de diminuir as enchentes, que entre outros fatores, são causadas pelo excesso de curvas que acompanham o relevo. Mas a retificação não é neutra. Ela modifica o rio e suas relações com os ambientes por onde passa.

O rio Sapucaí-Mirim tem influenciado o cotidiano da cidade de di- versas maneiras em diferentes momentos da sua história. Por muito tempo suas águas foram um lugar de diversão e lazer, constituindo um espaço valioso de sociabilidade. As enchentes e as pescas dimi- nuíram, mas não foram extintas e o rio, por sua vez, ganhou outras formas e significados.

Fontes escritas

BERALDO, Ana et al. Sapucaí, o caminho das águas. Ferrer Comunicações: Pouso Alegre, MG, 1996.

COSTA, Maria Lúcia Prado (2007). O Rio Sapucaí: Anotações Para Uma Narrativa Histórica. Fundação Dezoito de Março. Disponível em: Acessado em 18/07/2014.

MEYER, Casimiro. Planta da Cidade de S. Bento do Sapucaí. Código de Ref: BR_APESP_IGC_IGG_CAR_I_S_0111_001_001. Disponível em: Arquivo Público do Estado de São Paulo Acessado em 19/05/2014.

Fontes orais

Expedito Antonio da Silva (Expedito Folheiro)

João de Oliveira Pinto

Luiz Ferreira da Costa (Luiz Leopoldo)

Enchente, anos 1950; acervo Maria José e Luiz Leopoldo

sumário 10 Viver da Terra

Confecção de balaios para mudas na Fazenda do Estado, em 1956; acervo CATI / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 11 Lavouras e criações

Maria Cristina Magalhães Púpio João Carlos Púpio

Cuidas da terra e a regas; fartamente a enriqueces. Os riachos de Deus transbordam para que nunca falte o trigo, pois assim ordenaste. Encharca os seus sulcos e aplaina os torrões; tu amoleces com chuvas e abençoas as suas colheitas.

Salmo 65.9-10 -NVI

Numa casa grande da rua do bairro do Bumba em São Bento do Sapucaí, nascia, em meados da década de 50, a caçula de uma famí- lia de 12 filhas de dona Guiomar e seu , o sr. José Benedito Pires de Magalhães, o “Juca do Aníbal”. Homem simples, muito trabalha- dor, sem estudos, legítimo homem do campo.

A cada filha que nascia nas mãos da parteira, dizia sempre: “mais uma Maria...” Maria Isabel, Maria José, Maria Cristina, e por ai foi. Doze “Marias” e nenhum “José” para ajudá-lo no cultivo da terra e no cuidado das criações. Mas seguiu em frente, mesmo sem o esperado filho homem. Com empenho e iniciativa, buscou os próprios caminhos depois do aprendizado com o pai. Desenvolveu atividades e negó- cios, aproveitou as oportunidades que a lavoura e a criação ofereciam. Como outros de sua geração, acreditou ser possível vencer as dificul- dades e viver dignamente da terra numa pequena e modesta cidade da Mantiqueira.

Instalações e pomares da Fazenda do Estado, CATII / Foto Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 12 A dura lida do campo – da “roça” – voltava a impor-se como base de de 6 alqueires, onde cultivou arroz, milho, feijão, batata, banana e ce- Tempos difíceis sustentação econômica do município. Mas com inovações técnicas e bola. Para esses cultivos, enfrentou os desafios financeiros para aqui- comerciais no pensar e fazer dessa subsistência – algumas surpreen- sição de equipamentos agrícolas, em tempos em que o crédito subsi- Em 1940, o mundo estava mergulhado na II Guerra Mundial, um dra- dentes –que os homens da terra começavam a introduzir. Entre eles, diado era extremamente escasso. ma que envolveria também nosso país. São Bento do Sapucaí com- Juca do Aníbal. pletava 108 anos de existência, com cerca de 20 000 habitantes, na Nas épocas de colheita, mais dificuldades, agora comerciais. maioria moradores da zona rural. A perda de territórios e população, • Romarias Quando havia muita oferta de cereais, os preços despencavam e, mui- com a emancipação dos atuais municípios de Campos do Jordão e tas vezes, não valia a pena levar os produtos ao mercado, pois não Santo Antônio do Pinhal, e as grandes mudanças da economia regio- Buscando alternativas, seu Juca adquiriu um caminhão “Chevrolet pagavam sequer o frete. Era mais interessante utilizá-los, em especial nal do Vale do Paraíba nessa, e nas décadas seguintes, acarretariam 1936”, para auxiliá-lo em suas atividades da terra. Aos domingos, o milho, no preparo de “silos”, garantindo alimento para o setor da consequências inevitáveis para São Bento. “guardados para descanso”, ele fazia “romarias” levando os romeiros pecuária na estiagem. para cumprir suas promessas em Aparecida do Norte. O município encolheu, as dificuldades cresceram nesse contexto • Criações de transição. Das culturas de café e de fumo, dominantes na primeira ​O caminhão era equipado com bancos de madeiras tipo “pau de metade do século passado, e de alguns experimentos, como o cultivo arara” e cobertura de lona. Ali iam as famílias levar seus pedidos e vo- Na década de 50, alguns desses “homens da terra” já haviam ini- da azeitona, pouco restou. Manejo inadequado, falta de crédito, baixa tos de gratidão fundados em suas crenças e buscar ajuda à “Senhora ciado as atividades neste setor. Seu Juca, com sua pequena proprie- produtividade e concorrência de outras regiões foram determinantes Aparecida” para suas dificuldades na vida do campo. A viagem - de- dade no Paiol Grande, assim como outros, entrara no ramo criando do insucesso. Coube, então, a cada um buscar formas de sobrevi- morada, por estradas de chão batido, trechos de serra e muitas cur- gado leiteiro e, paralelamente, rebanhos de carneiros. Ao mesmo tem- vência em atividades agropecuárias– do cultivo intensivo da banana vas, lugares em que era preciso descer para empurrar nas subidas... po, expandiu sua criação de porcos para Santo Antônio do Pinhal, e incremento da produção de leite e criação de suínos a empreendi- – já valia como prova de fé e agradecimento. no bairro do Pico Agudo. Lá também desenvolveu a criação de gado mentos comerciais como o beneficiamento do arroz, milho e feijão e solteiro, o chamado “boi de corte”, vendido para consumo de carnes. o transporte de pessoas e mercadorias entre o município e o Vale do • Suinocultura Paraíba. Num início bastante difícil, as pocilgas de criação de porcos em maior volume, os “chiqueiros”, ficavam nos fundos das residências. “De um limão uma limonada” Os porcos eram comprados no bairro do Campestre e trazidos pelas estradas, atraídos por espigas de milho jogadas ao longo do caminho. Nos períodos de estiagem, quando o inverno e a seca na região O abate dos porcos, de forma bem primitiva, ocorria no final da tarde. eliminavam os pastos, resolvia-se o problema de alimentação para o Abatia-se, em média, 40 suínos semanalmente, e após esse trabalho gado e os porcos com o armazenamento do milho em “silos”, além de fazia-se a “pelagem dos porcos”: a cada lote de 25 porcos abatidos, alimentá-los com farelo de trigo. Os homens da terra eram iluminados eles eram enfileirados no chão e cobertos com folhas de bananeiras pela energia da terra, que lhes mostrava alternativas. “De um limão se e galhos de pinheiros e acendia-se, então, uma grande fogueira sobre faz uma limonada”, dizia-se na época. Ou seja, de um problema tira- eles. Contam os antigos, que essa queima da pelagem dos suínos ge- va-se a solução. rava um enorme “clarão” na cidade. O que ajudava a fraca iluminação pública da época. O gado de corte naquela ocasião tinha seu mercado em pequena expansão, o que tornava quase inviável, na época, o seu transporte Os porcos abatidos – do seu Juca e de outros criadores – eram para a região do vale do Paraíba. Mais uma vez, fazendo do “limão transportados diretamente aos açougues de Campos do Jordão no uma limonada”, seu Juca decide adquirir um caminhão com “gaiola”, mesmo caminhão que fazia as “romarias” de fins de semana. sendo esse o primeiro veículo próprio para transporte rodoviário dos bois para os matadouros. Atrás dele vieram outros na mesma ativida- • Lavoura de dos caminhões com gaiola, entre eles Fausto Goulart, filho do fa- moso fazendeiro e criador de gado leiteiro e de corte, sr. João Goulart, Muitas dificuldades havia na época não somente em relação à área e o sr. Antônio Oliveira da Rosa, conhecido como “Pé de Ferro”. mecanizável – restrita –, mas também aos fenômenos naturais, como excesso de chuvas, que provocavam grandes enchentes nas lavouras e, outras vezes, secas, solo árido, e, no inverno, muita geada. Porém A Cooperativa de Laticínios o homem da terra continuava dando seu suor e sua aplicação. Acervo CATI, meninos aprendizes em trabalhos da roça, sob orientação da Os pequenos produtores de leite iam crescendo e, de forma ainda Fazenda do Estado - Reprod. Geraldo Francisco, 2015 No bairro do Paiol Grande, o sr. Juca do Aníbal, adquiriu uma área bem primitiva, o transporte do leite era feito em latões sobre o lombo

sumário 13 de burros “cargueiros”, em charretes ou carroças. Tinham eles tantas Não há dúvida de que foi esse “espírito forte típico de pioneiros” nossa terra natal, em definitivo, já há alguns anos. Agora aposentados, dificuldades que dificilmente poderiam apontar as maiores delas. que alimentou o empreendimento, permitindo que ele vingasse e, por fomos convidados a resgatar a história do “Viver da Terra”, vivido pe- longo tempo, prestigiasse e apoiasse a labuta do homem do campo. los nossos pais. Um privilégio, que agradecemos. No verão, eram as chuvas que inundavam as várzeas e as estradas, enlameando os caminhos das roças e dificultando ainda mais a che- gada até a cidade. No inverno, eram as neblinas e geadas, que causa- O viver da terra Fontes escritas vam grandes prejuízos, com queimas de pastos e bananais. O leite era trazido a um posto de recebimento da Vigor, mantido na cidade por No final da década de 60, São Bento do Sapucaí ainda tinha um Bíblia Sagrada – Versão-NVI uma entidade local autônoma. grande desafio a vencer: “as enchentes”, que geravam enormes pre- juízos às famílias no centro da cidade e a boa parte da comunidade Manual Histórico da Cooperativa de Laticínios SBS, Ainda na década de 40, dadas as dificuldades e limitações do setor, rural e suas lavouras. reuniram-se 18 produtores de leite, então chamados de “Fazendeiros pesquisa e texto, prof. Francisco M.P. Teixeira. Sambentistas”, para constituir uma sociedade cooperativa ligada à Foi neste cenário que o então candidato a prefeito desta pacata ci- agropecuária leiteira. No encerramento daquele encontro estava cria- dade, o dr. José Bourabeby, médico que atendia na Santa Casa local, Tião Tino, Antes da Escrita. São Bento Sapucaí, 2014. da a Cooperativa de Laticínios de São Bento do Sapucaí Ltda. Na decide disputar, em 1966, o pleito para o executivo municipal. Como mesma assembleia definiu-se o local da sede e área de atuação, in- sua bandeira, prometia a solução do problema das enchentes. cluindo os municípios vizinhos. Foram aprovados os estatutos e eleita Fontes Orais a primeira diretoria da entidade, tendo à frente o sr. Antônio da Costa ​Sabendo dos grandes desafios para vencer tais eleições, ele decide Manso, conhecido por Nico Costa, e entre os sócios fundadores esta- escolher para seu vice-prefeito um homem natural da cidade, nasci- José Goulart va o sr. José Benedito Pires de Magalhães, seu Juca do Aníbal. do no bairro do Quilombo, com larga experiência na vida do campo e forte influência nas comunidades locais. Fechando a chapa com seu Benedito da Silva Santos (Ditinho Joana) Embora o projeto fosse bom e necessário, sua concretização não Juca do Aníbal, o escolhido, ele vence as eleições. seria simples, nem fácil. Após algum tempo desde sua constituição Benedito Barros (Barrinha) formal, a Cooperativa instala sua sede em um pequeno terreno doa- O prefeito eleito Bourabeby, aliado do governo do Estado, traz do, na rua Miguel Chiaradia, a “rua da biquinha”, sendo o doador o os recursos financeiros necessários para a devida retificação do rio Expedito Antonio da Silva (Expedito Folheiro) fazendeiro sr. Cândido Rodrigues Salgado. Era uma rua–estrada com Sapucaí na virada dos anos 60 para 70. Além de cumprir a promessa saída estratégica da cidade para as roças e pastos do Paiol Grande. de campanha, com essa obra ele dava impulso formidável à moderni- Foi aí que a Cooperativa começou a receber os latões de leite de seus zação da cidade, com iluminação, calçamento e rede de esgoto. associados, ainda nas mesmas condições de transportes da época: cargueiros, charretes e carroças. O homem do campo, Juca do Aníbal, agora vice-prefeito da cidade, começa a se preocupar com o bem estar social do município e, em Foram esses homens do campo, como João Bibiano, Juca do Aníbal, parceria com o prefeito empreendedor Bourabeby, lançam em 1970 Armando Goulart, Nico Costa, Targino de Oliveira, Racine Ferreira a pedra fundamental do Recanto São Benedito, obra esta que teve Venâncio, homens rudes, mas determinados, de pouca instrução,mas início e conclusão no governo municipal do falecido prefeito Bento hábeis para os negócios, que assumiram a luta pela implantação da Nunes Duarte. Cooperativa de Leite de São Bento do Sapucaí. Os tempos mudaram, Maria Cristina viveu nesta terra até os vinte Com todas essas limitações e dificuldades, ainda assim era visível anos de idade. João Carlos Púpio, terceiro neto de João Goulart, ape- o processo de consolidação da organização na década de 60, a qual sar de ter vivido aqui até os dez anos de idade, retornava nos períodos passou de 395 cooperados para 670 na década de 70, e sua produ- de férias, revivendo, para ele, os “bons tempos de enchentes” e ou- ção, de 4,5 para 7,9 milhões de litros de leite recebidos anualmente. tros fenômenos naturais que faziam história em São Bento.

Com esse espantoso crescimento – que refletia a modernização do Mas a história diz que o bom filho a casa torna, vindo então para município na época – foi então desenvolvido o primeiro supermercado sua cidade natal em 1977, onde aqui se casou com a filha caçula de de São Bento dentro do espaço da Cooperativa. O objetivo era aten- Juca do Aníbal, o homem da terra. Casaram-se e foram viver na cida- der seus cooperados-associados, oferecendo desde medicamentos de grande, São José dos Campos, mantendo aqui uma residência, no veterinários, produtos agropecuários, alimentos, roupas, botas, calça- velho sítio do Paiol Grande onde quase tudo começou... dos, ferragens etc. Verdadeiramente, os filhos a casa retornam. Hoje estamos aqui em

sumário 14 Armazéns, lojas e tropas: memórias do tempo em que produtos e freguesia chegavam a galope

Diana Costa Poepcke

O que dá alegria para a gente é a freguesia: conversar, dar risada, conta um causo e conta outro. A gente fica sabendo das coisas. É a própria freguesia que alegra os comerciantes. Um vem contando um causo, outro vem contando outro, contando do passado. Deixa a turma alegre.

José Félix, 2014

O comércio é uma das mais antigas formas de relação social huma- na. As atividades comerciais se transformaram e se adequaram das mais diversas maneiras ao sabor das mais variadas necessidades so- ciais e econômicas. Em São Bento do Sapucaí, as atividades comer- ciais eram diversas. Entre 1909 e 1910, no registro de Arrecadação de Imposto sobre Indústria e Profissões aparecem a destilaria de bebidas dos Chiaradia & Cia e o hotel de Antonio Alves Ferreira Jr, além de consultórios de dentistas, barbearias, pharmacias, armazéns, bote- quins e alfaiates.

Sr. Zé Felix na sua venda do Paiol Grande / acervo Museu da Mantiqueira

sumário 15 A saga do produto: do produtor ao balcão

Luiz Ferreira da Costa, nascido 1923, é conhecido na cidade por Luiz Leopoldo. Seu pai, Leopoldo Alves da Costa, montou uma má- quina de beneficiamento de arroz já na década de 1930 e, anos mais tarde, chamou seu filho para trabalhar com ele. Foi assim que, em 1941, Luiz Leopoldo iniciou suas atividades no comércio.

A máquina de beneficiamento era aonde os lavradores levavam sua produção de arroz para beneficiar, ou seja, prepará-lo para ocon- sumo. O arroz beneficiado era ensacado e devolvido ao produtor ou vendido aos armazéns da região. Luiz Leopoldo ainda se recorda de maioria dos seus clientes. Na cidade: José Dias, Lázaro Neto, Lúcio, José Carvalho, ‘Tião’ Neto, José Galdino, Boanézio, Helói. Já nos bair- ros rurais: no Paiol Grande: José Félix; no Cantagalo: José do Onofre; no Baú: Joaquim Carvalho; no Serrano: ‘Dito’ Mujano; e no Quilombo: Peixoto.

O comércio era rico em armazéns. Armazéns s&m (secos & molha- dos), típicos do século XIX, vendiam uma gama variada de produtos, de grãos in natura a granel até farináceos e utensílios de uso domés- tico e ferramentas de trabalho, em grande parte de origem artesanal. Eram estabelecimentos rústicos onde os produtos ficavam expostos em sacarias abertas e eram pesados em balanças. Cabia ao aten- dente do balcão pesá-los e ensacá-los na hora, quando não eram os próprios fregueses que levavam seus vasilhames para acomodar os produtos em cargueiros, charretes e carroças após a pesagem.

José Rodrigues de Lima, nascido em 1924, conhecido como Zé Félix, iniciou sua vida no comércio em 1961, ao comprar o Armazém do Paiol Grande, fundado por seu pai Caetano Rodrigues de Lima na década de 1930. Além do arroz que era buscado em São Bento, havia os demais produtos típicos de um armazém de secos & molhados. Na parte dos secos: farinha de trigo, farinha de milho, macarrão, café, açúcar. Já nos molhados se incluem as bebidas: a cerveja, o refrige- rante, o quinado – e a danada da cachaça. Para Zé Félix, “armazém que não tivesse uma pinga não tinha freguês. ‘Beudo’ tem toda vida, todo tempo tem!”. Luiz Leopoldo na montagem da máquina de arroz; acervo familiar Maria José e Luiz Leopoldo As mercadorias chegavam a São Bento das mais diversas maneiras. José Roberto de Oliveira, nascido em 1941, está no comércio desde ros e cavalos e iam buscar lá a mercadoria. Vinham em carguei- Justino Pereira, Joaquim Marcondes do Amaral, Adolpho Marcondes 1958. Herdou a loja de tecidos Casa São Benedito de seu pai, Benedito ros, em lombo de burros. Toda a mercadoria vinha assim. Toda do Amaral, Estevam Alves da Costa, Manuel Soares de Gouvêa, José Albano de Oliveira, que a fundou em 1928. Na loja se vendiam tecidos em cargueiro feito em bambu. Pereira de Siqueira, José Chiaradia, Cândido José da Silva, Manuel do tipo brim, xadrez e gabardine, chapéus Cury e Ramenzoni, capa [Teodoro] da Silva, Joaquim F. de Freitas, João d’Oliveira Mello, Antônio Ideal, sapatão, lenços e cintos. José Roberto narra a saga dos produ- ​As tropas de cavalos e burros e seus cargueiros – balaios de bambu Cardoso dos Santos, entre outros. tos para chegar até a sua loja: colocados no lombo do animal, um de cada lado – foram, por muito tempo, o meio de transporte mais utilizado para o intercâmbio de pro- As estradas melhoraram a partir da década de 1970, facilitando os Vinham de São Paulo. Vinham até Pinda [...] chegavam em ca- dutos entre o Vale do Paraíba e a Serra da Mantiqueira. Só nos anos deslocamentos na região. Os comerciantes tinham agora a opção de minhão mesmo. E depois de Pinda, tinha o pessoal que tinha bur- de 1907 a 1910 registraram-se no município as tropas de Cândido

sumário 16 realizar as viagens e as compras por conta própria. Maria José Dias tudo “para marcar””.O comerciante anotava em um caderno a mer- de ideias e valores. Comprar e vender assumem características que da Costa, a Dona Zé, nascida em 1927, ainda guarda uma das suas cadoria comprada e só na hora do pagamento é que se colocava o transcendem a mera perspectiva monetária. primeiras notas-fiscais, de 1982, do Bazar 3 Marias. Dona Zé mon- preço. O sistema da caderneta, o famoso fiado, tinha, algumas vezes, Fontes escritas tou seu bazar com variedades de roupas, tecidos, artigos para casa, seus problemas: a inadimplência. Zé Félix tinha um bom ditado para brinquedos, papelaria e, sobretudo, armarinhos. Para repor o estoque a situação: Acervo de periódicos da Casa da Cultura Miguel Reale, São Bento era necessário fazer viagens longas – na época – para outras cidades do Sapucaí, SP. como São Paulo, Monte Sião e Borda da Mata. Vender fiado muita coisa acontece, CAMARA MUNICIPAL DE SÃO BENTO DO SAPUCAÍ. Livro a gente perde o dinheiro Arrecadação de Imposto Indústria e Profissão. 1908 - 1917. Os fregueses e a colheita, o pagamento e a caderneta: outras relações. e o freguês desaparece! OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: re- lações sociais e experiência da urbanização. São Paulo, 1850-1900. Por muito tempo, não só as mercadorias chegavam à cidade pelas Falar em comércio – da caderneta e do pagamento por colheita ao São Paulo: Alameda, 2005. tropas, mas também os fregueses. Com as estradas precárias, era pagamento eletrônico, das charretes aos carros – é tratar de relações comum o freguês chegar a cavalo. As ruas eram movimentadas. Luiz sociais, de pessoas, de conversa, de encontro, de laços de amizades, Leopoldo lembra que era tanto movimento na rua Dr. Rubião Júnior de causos, de dificuldades e de vitórias. Enfim, para além da merca- Fontes orais que “tinha hora que ficava igual de automóveis [hoje], desde a esqui- doria, nessa prática histórica existe o encontro, a socialização, a troca na, mas de cavalos. Dava muito cargueiro, tropa, carro de boi, cavalo, José Roberto de Oliveira bagageira, charrete, tudo quanto é veículo de transporte.”. José Rodrigues de Lima (Zé Félix) Os fregueses iam a cavalo, com suas tropas e cargueiros para trazer as compras. Os armazéns e as lojas se preparavam para recebê-los, Luiz Ferreira da Costa (Luiz Leopoldo) reservando terrenos e mourões para o repouso dos animais. Na hora do almoço, a cortesia da casa era servir um refrigerante para acompa- Maria José Dias da Costa (Da.Zé) nhar a sardinha em lata ou o virado de frango que os fregueses traziam de casa.

​Fazer a compra era um evento. Dona Zé conta que, no tempo em que morava no sítio, no antigo bairro do Esgoto – hoje, bairro do Pinheiro –, sua mãe ia à cidade fazer compra poucas vezes ao ano: “a minha mãe fazia compra três vezes no ano, só. Ela tinha bastante filhos. Juntava o dinheiro de ovo e de frango que vendia e vinha. Ela e a cunhada dela. Faziam aquela compra grande.”

​As compras eram espaçadas e em grande quantidade em virtude da dificuldade de locomoção, mas também porque o capital da roça dependia da colheita que, por sua vez, era sazonal. Os fazendeiros tinham fartura, mas não tinham o dinheiro em espécie, investido nas atividades da fazenda. Ossos do ofício! O comércio adaptou-se a es- sa sazonalidade, facilitando o pagamento para os fregueses: era co- mum o prazo de colheita. O pagamento era feito anualmente após a colheita. Era um ciclo: o cliente comprava, plantava, colhia, ia pagar e já aproveitava para fazer outra compra. As compras eram grandes, principalmente de tecidos, como não existiam roupas prontas, era ne- cessário comprar os tecidos e confeccioná-las na costureira ou no alfaiate, para toda a família e para o ano todo.

​O sistema utilizado para o controle dos débitos e créditos era a ca- Loja Nova Apparecida, anúncio do jornal O FUTURISTA 22-5-32 derneta, era o “pra marcar”. “Compravam chapéus, sapatões e era Foto Diana Poepcke, 2014

sumário 17 Lá vem a comitiva

Quando descia a boiada Isto me faz lembrar também que, muitas vezes, os boiadeiros que No tempo das comitivas vinham de Paraisópolis traziam a boiada para a fazenda do meu pai, Pela trilha dos escravos Joaquim Costa. Depois de juntar os animais no curral, acomodavam- se eles no paiol no meio das espigas de milho. Depois de comer, joga- Maria Bernadete Costa Prado Toda mãe preocupava vam uma capa de boiadeiro e dormiam em cima.

Recolhendo pra dentro de casa No dia seguinte, cedinho, antes de amanhecer, eu ouvia um cha- mando o outro assim: “acorda Beijo, tá na hora”. O nome dele era Toda a criançada Benjamin. Era um sofrimento esse trabalho, pois viajavam muito tem- po sem se alimentar. Quando encontravam um sitiante que morava à beira da estrada e lhes oferecia alguma comida, menos mal, senão passavam até fome nessa lida. Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte Uma hora depois que Lida dura, mas que também tinha coisas boas. Como recorda da. Muito gado, muita gente, pela vida segurei De minha casa avistava Maria Cipriano, conterrânea do Quilombo, hoje morando na cidade: “a passagem das comitivas por São Bento provocava um certo medo, Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei Todos aqueles bois mas não deixava de ser um espetáculo; a cidade parava para ver o desfile das boiadas e dos tropeiros”. Ou como recordava o sr. João Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo Tocados pelos boiadeiros Goulart, boiadeiro sambentista já falecido: “tocar as boiadas daqui até o matadouro não era coisa pouca, mas era o que tinha na época; era E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando Trabalhadores brasileiros. muito chão para a comitiva andar, mas no fim dava resultado, bom pros donos e pros peões”. As visões se clareando, até que um dia acordei.

Minha mãe sempre alertava De São Bento para Cruzeiro, Rio de Janeiro e São Paulo. Theo de Barros e Geraldo Vandré, Disparada, 1966. Quando pela estrada eu andava Mas quem pode lembrar melhor dessa história é quem dela parti- Porém com todo cuidado cipou pessoalmente. Como Silvino Pereira de Andrade, boiadeiro de Paraisópolis que vivenciou aquela época, transportando o gado de Um dia pra casa voltava sua fazenda no bairro do Cantagalo.

Até a década de1960 não era comum o transporte do gado por ca- Brincando e pulando... A comitiva – nas suas memórias – passava por São Bento, onde minhões. Eu, criança, observava as boiadas que vinham tocadas de era retirada a nota fiscal, exigida pelo frigorífico. Viajava-se em média Minas, entravam pelo Cantagalo, desciam pela “trilha dos escravos”, de 30 km por dia, passando por São Bento, Zé da Rosa, Piracuama, passavam pelo Coimbra e pelo nosso bairro, o Quilombo, seguindo Pinda, Cachoeira Paulista, Embaú e finalmente chegavam a Cruzeiro. para o seu destino distante, o matadouro da cidade de Cruzeiro no De repente um boiadeiro Essa viagem durava mais ou menos seis dias. Vale do Paraíba. Com o cavalo me amparava Havia comitivas que tomavam outros rumos, como a do Zé Veríssimo, ​Era o tempo das comitivas. Tempo de muitas lembranças. Como a outro mineiro de Paraisópolis, que ia para o Rio de Janeiro. Nessa, De um boi bravo a bufar o gado era embarcado nos vagões do trem de ferro na estação de do dia em que um boi bravo me cercou num canto da estrada. Me so- Pindamonhangaba. correu um boiadeiro valente e capaz, que espantou o boi e me livrou Investindo querendo me atacar. do perigo. Uma história que conto neste poema. ​ Já em 1948, as comitivas começaram a ir também para São Paulo. Saindo do Sul de Minas, pousavam na fazenda do sr. Henrique Venâncio, onde se localiza hoje o posto e restaurante Barracão, e se- guiam para São Paulo, por Monteiro Lobato, São José dos Campos,

sumário 18 O último tropeiro

Manoel Macedo dos Santos, ou Manoel do Agino, ou Manoel Tropeiro, nascido e criado no Paiol Grande, trabalhou com as tropas desde os 7 anos: “Na época tinha muita lavoura de milho, feijão e abó- bora.Também levava lenha e capado (porco) pra vender em Campos do Jordão .O transporte de carro de boi também era usado. A tropa levava até o ponto, e o carro de boi conduzia até onde era destinado pra levar as mercadorias.” Os tempos mudaram e os cargueiros não carregam mais o milho, a mandioca e os capados do povo da roça. Hoje as tropas são para mostrar, reconhece lamentoso: ‘Há uns vin- te anos levo a tropa para apresentar em festas de rodeios. Já fui pra várias partes do Brasil, em Conceição dos Ouros fui por terra, levei e trouxe a tropa tocada, mas é muito sofrimento. Agora quando saio, o caminhão vem pegar a tropa no embarcador aqui no Paiol. Tenho uma coleção de troféus que recebo quando participo dessas apresenta- Frigorífico Armour, São Paulo, anos de 1960, outro destino das comitivas ções, mas não sou remunerado por isso, acho que deveria receber por levadas de São Bento; participar, pois tenho muitos gastos com os animais”. cit. da Internet, Frigorífico Armour São Paulo imagens Frigorífico Armour

Jacareí, Santa Isabel e Arujá. Pousavam em Cumbica, antes de cruzar Vida de boiadeiro a Vila Carrão, o Tucuruvi e chegar à Freguesia do Ó e ao Frigorífico Armour, onde o gado era entregue para o abate. Alguns peões retor- Vida nada fácil, mas bem integrada à organização da comitiva. Os navam de ônibus e dois voltavam a cavalo trazendo de volta a tropa. tempos mudaram, mas o modelo atual das que ainda sobrevivem em lugares do Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso do Sul, mostra co- Segundo ainda o sr. Silvino, além da comitiva de gado bovino, tam- mo eram as comitivas meio século atrás – como atesta Sílvia Corrêa bém eram levados para esses frigoríficos suínos e aves, também to- Petroucic em sua bela pesquisa, A cozinha sertaneja. cados por terra. A comitiva é composta de: comissário, capataz, ponteiro, peão Ao perguntar como ele e seus companheiros suportavam tamanho culateiro, afiadores, segundeiros, chaveiros, arribadores. Boiada mui- sacrifício realizando esse trabalho, o sr. Silvino respondeu, parecido to grande, com 1500 cabeças, tem que ser dividida em duas, condu- com o que dissera o sr. João Goulart e o que pensava, em geral, o zidas uma atrás da outra. As mulas são em número um pouco maior pessoal envolvido nessa atividade: “era um trabalho árduo, mas tão que o dobro dos peões, lideradas por uma égua chamada de égua comum na época que não tinha o que fazer; era enfrentar com natura- madrinha. lidade. Havia aqueles que seguiam à frente saindo alguns dias adian- tado, levando os alimentos que iam ser preparados para esperar a comitiva. Antes de dormir, contavam causos, cantavam, se distraíam Os peões, além do comissário até que caiam no sono. Sabiam que a jornada era longa e difícil.” e do capataz, têm funções específicas.

Jornada de dificuldades, às vezes inesperadas, como conta o sr. O ponteiro vai à frente da boiada, toca o berrante se houver algum Toninho Joana, tio do mestre artesão Ditinho Joana e meeiro da fazen- perigo. Seus toques e repiques norteiam tanto os colegas como o da do meu avô, com lavouras de fumo, feijão e arroz. Não era boiadei- gado. Os primeiros cinco dias costumam ser mais tensos porque os ro, mas também fazia viagens de tropa de burros até Pinda levando animais ainda estão indóceis não estão acostumados com o estradão. seus produtos e criações e, de lá, trazendo mantimentos de que a Depois acostumam com a marcha diária de 30 km. Atrás do ponteiro, cidade carecia. “Certa vez – lembra ele – a gente saiu do Quilombo, ainda na cabeceira da boiada, dos lados direito e esquerdo, vem os tocando grande quantidade de perus. Quando entardeceu, eles co- afiadores. meçaram a empoleirar nas árvores. Tivemos que pernoitar por ali, nos arredores de Eugênio Lefévre, no alto da serra. Foi um fato engraçado, Rodeando as reses, em seguida, os segundeiros. Mais atrás quase nos pegou de surpresa, mas terminou bem.” no meio da boiada, os chaveiros. Às vezes um boi fujão parece adivi- Manoel do Agino, o último tropeiro / Foto Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 19 nhar o destino da jornada e se embrenha pelas matas. Aí, o peão arri- bador tem que ir atrás do animal. Coitado se voltar sem ele!...

Boiadeiro, prática quase extinta, só sobrando uns restinhos aqui e ali. Não resistiu às imposições da modernização urbana e industrial. Mas, como todas as profissões que ajudaram a construir este país, essa foi verdadeira desbravadora de nossa região.

E o berrante, ontem e hoje, faz uma cicatriz na alma. Que coisa linda e mais triste que ecoou por tantos anos nos contrafortes da Mantiqueira, conduzindo as boiadas serra abaixo, atravessando o Vale do Paraíba, gerando trabalho e riqueza para esta população.

Fontes escritas

Sílvia Corrêa Petroucic, Cozinha sertaneja, a comida do peão de boiadeiro. Barretos: Instituto Valente,s/d.

Fontes orais

Silvino Pereira de Andrade

Manoel Macedo dos Santos (Manoel Tropeiro)

João Goulart

José Goulart

Antonio José da Silva (Toninho Joana)

Maria Aparecida Ferreira (da. Maria Cipriano)

sumário 20 Vida Social

Família Vicente Chiaradia, foto tirada em Aparecida nos anos de 1930; Tião tino, menino, último à direita ao lado do pai; acervo familiar.

sumário 21 Os bairros Maria Bernadete Costa Prado

Subindo a serra, eu vou pro mato, Na minha terra passa um regato De água limpa, tão limpinha e doce de beber Vou contemplar o sol no amanhecer.

Carlinhos Goulart, Serrano, do CD Sem eira nem beira, 2014.

A Estância Climática de São Bento do Sapucaí situa-se a leste do estado de SP. Compreende uma área de 270 km², com uma popula- ção de pouco mais de 10 000 habitantes.

Seu clima é ameno e saudável. O solo fértil permite uma agricultura diversificada que, ao lado da pecuária, forma a base econômica do município que também produz hortifrutigranjeiros para cidades e regi- ões vizinhas.

Os bairros, na maioria distantes do núcleo urbano, fazem divisa com municípios do estado de São Paulo e de Minas Gerais. Nessa proximi- dade criam vínculos e relações e desenvolvem um intercâmbio social e econômico que favorece o trabalho e o escoamento da produção.

Os bairros

Eles são quase duas dezenas, espalhados pelo território municipal. Uns maiores e outros menores, mais antigos ou mais recentes, mais próximos ou mais distantes da cidade. Todos com suas tradições, su- as memórias e seus personagens.

Aqui, dadas as limitações deste trabalho, citam-se apenas três bairros: uma amostra dessa diversidade social e histórica.

Baú: bairro formado por três unidades distintas, Baú Velho, Baú do Centro e Baú de Cima. Começa na ponte do Rodeio, divisando com Bairro do Paiol Grande ao por-do-sol/Foto Geraldo F. da Silva, 2013

sumário 22 o município mineiro de Sapucaí-Mirim, e se estende até o limite com Foi um bairro muito esquecido, por ser um dos mais distantes. De Quilombo: um dos bairros mais próximos do centro urbano e de Campos do Jordão. Tem a maior parte da população no Baú do Centro lá, vinha-se à cidade apenas quando se precisava resolver assuntos história curiosa, começando pelo fato de que a maior parte do local (atrás da Pedra do Baú) de documentação ou fazer compras. pertence à Cúria Diocesana.

O nome do bairro, Baú, teve origem na grande quantidade de árvo- Há alguns anos essa situação começou a mudar para melhor com Moradores antigos contam o que ouviram de seus ancestrais: um res chamadas “Embaú”, ou Embaúba, e na proximidade com a Pedra o projeto “Turismo de Base Comunitária” da Secretaria Municipal de senhor português, dono de muitas terras na região, tinha uma filha do Baú. Turismo e Desenvolvimento, em parceria com o Senar – SP. Projeto com uma negra escrava. Era Maria Joana de Jesus, filha dedicada ao ambicioso de turismo rural, aproveitando a base agrícola da economia pai que lhe doou uma área de oito alqueires, parte da qual ela, mais local. tarde, doou à Igreja. Cópia da escritura lavrada e registrada em cartó- Personagens rio encontra-se com o bisneto, Ditinho Joana. Atualmente o bairro conta com duas hospedarias, um café da roça, Agenor de Lima, um senhor que viveu quase um século. Viveu e monitores pra acompanhar os visitantes em trilhas e passeios exu- Esta região, ainda segundo memórias antigas, fora local de refugia- trabalhou muito nesse bairro. Dizem os mais velhos que quando era berantes, artesanatos e doces. Tudo plantado, colhido e produzido dos escravos, vindos das fazendas das Gerais, como chamavam a recém-nascido, sua jovem mãe o entregou para sua madrinha que o localmente. De forma mútua os moradores se ajudam e oferecem ati- Província, hoje estado, de Minas Gerais. A serra que divide o bairro do criou como filho. Com 17 anos, na Revolução de 1932, foi recrutado vidades de qualidade. O bairro oferece entretenimento como: leite ao Quilombo com Minas possui uma trilha chamada Trilha dos Escravos. para lutar, conseguiu sair ileso dos combates e voltou para sua casa. pé da vaca, caminhadas, bicicleta, cavalos, trilhas, bom almoço no Por ela, os negros desciam com seus patuás e aqui encontraram re- fogão à lenha, contação de causos ao redor da fogueira e muito mais. fúgio ideal. À margem do rio, se instalavam, demarcando o local com Casou-se e, na velhice, ficou aos cuidados da filha Rosa. Morava uma cruz, onde mais tarde construíram a igreja de pau-a-pique e, ao próximo da igreja de Santa Cruz, Baú do Centro. Faleceu dia 18 de O bairro também faz parte da Rota Caminho da Fé, por onde pas- redor, fizeram suas habitações com igual despojamento. Eram o espí- abril de 2014, com noventa e nove anos completos, deixando para sua sam os peregrinos do interior do estado rumo a Aparecida do Norte. rito e a forma dos quilombos coloniais: um pátio com a cruz ao centro, família um forte exemplo de vida. Enfim, o progresso chegou, com novos e importantes empreendimen- as casas e a igreja em volta. tos privados, como o cultivo da azeitona e produção de azeite extra- Luiz Silveira Cunha, conhecido por Sr. Luiz Ilhéus. Pessoa de lide- virgem e com programas públicos de eletrificação, urbanização e in- Destocavam a terra, cultivavam o milho, a mandioca e a batata por rança e carisma cristão. Paciente, dedicava-se aos jovens com amor. ternet banda larga. serem culturas rápidas. A criação de porcos predominava sobre a de Presidente e fundador da Juventude Franciscana, Jufra. outros animais, devido à rusticidade da espécie.

Cantagalo: o nome está ligado à economia local, ao negócio de Os negros viviam em harmonia com a natureza, usufruindo dos re- frangos com a vizinha Luminosa, antigamente paulista (Candelária), cursos naturais para o sustento do Quilombo. Dividiam a produção e hoje distrito da cidade mineira de Brazópolis. compartilhavam a experiência adquirida em suas vivencias e convi- vências com os índios e os brancos. Colocavam em prática os dotes culinários e nos deixaram valiosas relíquias gastronômicas, que hoje fazem parte do cardápio de nossa cozinha.

Personagens

Vários foram os filhos ilustres dessa terra. Dentre eles destacam-se: Joaquim Costa Manso proprietário da Fazenda Boa Vista, localizada entre o bairro do Quilombo e o bairro do Pinheiro. Sua fazenda com 200 alqueires de terra foi grande produtora de café, fumo e cereais. Trabalhava em sistema de parceria, do fazendeiro com os meeiros, tu- do que produzia era dividido entre ambos.

Joaquim Pereira da Costa, desde menino já reinava no porão da fa- zenda do pai, fazendo pequenos trabalhos com cangas e carrinhos de carneiro, carregando lenhas para o sustento da casa.

Depois de adulto, tornou-se um mestre na arte de produzir o carro Chegando ao bairro do Cantagalo/ Foto Geraldo f. da Silva, 2015 A pracinha do bairro do Quilombo / Foto Geraldo F. da Silva, 2015 de boi e fazê-lo cantar, transportando os produtos da fazenda do pai.

sumário 23 Dona Luzia, descendente de escravos, guerreira que sempre lutou para preservar as tradições herdadas de sua avó. Conquistou o res- peito e o envolvimento de todo bairro. Mantém a congada de São Benedito, tradicional da festa do13 de maio, mistura de religiosidade e diversão entendida como parte relevante da cultura local.

Ditinho Joana, escultor reconhecido internacionalmente por seus trabalhos. Uma história que começou, segundo ele próprio conta, ao Fontes escritas encontrar uma raiz de árvore parecida com um cachorro em um dia de trabalho nas terras do sr. Joaquim, filho do fazendeiro Joaquim Costa FERRAZ, Walkyria. Um mundo rural a descobrir, disponível em: Manso. Fez a escultura e, então, a arte tomou o lugar da lavoura. Acesso em: 29 jan 2015-01-29 Feh Prado, artista plástica, bisneta de Joaquim Costa Manso pro- duz lindos trabalhos em acrílico sobre tela. Foi premiada na França e em Portugal por seus trabalhos o Jardim de Jandyra e Flores para Fontes orais Mariah. Benedito da Silva Santos (Ditinho Joana)

José Domiciano Ferreira (Zezé Marcolino) Evolução Antonio José da Silva (Toninho Joana) O bairro vem evoluindo, desde a pequena e primitiva usina instala- da junto à cachoeira. A água da represa da propriedade do sr. Alencar Maria Luíza Pereira Fidelix abastecia o Quilombo e a cidade, e gerava a energia elétrica consumida no bairro. Com a implantação da SABESP a água passou a ser administrada por esta, mas ainda por bastante tempo aquele reservatório continuou a ser a principal fonte provedora da cidade e do Quilombo, até a transferência da captação para o riacho do Paiol Grande.

Hoje não é mais um bairro somente com produção agrícola e com pecuária como antigamente. Com a formação da associação de artesãos do pavilhão Arte no Quilombo, o bairro se tornou um reduto de artesãos em que o foco está nos trabalhos com a fibra de banana e palha de milho, mas que estimularão outras formas de criar e expres- sar a arte popular.

É um bairro social e culturalmente marcante, mas que deverá pros- seguir com novos projetos e investimentos públicos nas atividades culturais, em segurança, saúde e educação.

Quanto à educação escolar, tal como está sendo adotado em outros bairros rurais, também no Quilombo começou a funcionar em 2015 o Programa Mais Educação, Ensino Fundamental em regime integral, do 1º ao 5º. Ano. Um avanço notável da educação infantil nas comunida- des rurais do município.

sumário 24 Famílias Maria Benedita Carlos Pereira

Trabalhava das 7 às 5, foi no tempo dos mil-réis. Sonhava com mil e duzentos, mal dava pra comer, só com muita economia. Comprar roupa eu não podia, das 5 até as 9 muita coisa eu fazia. A família aumentava e da dívida eu não saía.

Tião Tino, Minha vida em versos, de Antes da escrita, 2013.

“Em São Bento todo mundo é parente” é uma frase ainda muito ouvida. E verdadeira, a julgar pe- los sobrenomes comuns a tantas pessoas de, re- lativamente, poucas famílias: Pereira, Venâncio, Chiaradia, Marcondes, Azeredo, Lima, Souza, Rosa, Mendes, Dias, Costa, Caninéo, Braga, Goulart, Azeredo, Salgado, Olivetti e Pedrosa, entre outras.

Poucas famílias, mas de origens e trajetórias di- versas. De filhos de imigrantes italianos a descen- dentes de índios e negros, a composição familiar sambentista é, como não podia deixar de ser, re- produção local do grande mosaico étnico e familiar brasileiro.

Aqui, destaques sobre alguns desses grupos familiares:

Chiaradia

Os italianos estão entre os imigrantes pioneiros Cena de um casamento, anos de 1940; acervo Sílvia Maria Rennó Dias / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 a subir do Vale do Paraíba para a Mantiqueira na

sumário 25 virada do século XX. Uns seguiram para o Sul de Minas, outros, como os Chiaradia, aqui se estabeleceram, lançaram raízes e constituíram novas famílias com o cultivo do trigo, do fumo e do café.

Dessas famílias, uns se mantiveram ligados à terra, como Sebastião Pinto dos Santos Chiaradia, o Tião Tino, lavrador e poeta. Outros pu- deram seguir carreiras de maior relevo, como Francisco Chiaradia Neto, nascido em São Bento em 1912, formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, concursado como juiz de direito em 1945 e promovido ao Tribunal de Alçada Criminal em 1969, onde atuou até 1978, quando faleceu. O Dr. Chiquito, como era carinhosamente conhecido, foi casado com Cidália da Rocha Santos Chiaradia, da. Vidinha, professora, também sambentista, falecida no início de 2015. Desse casamento nasceram os filhos Benedito, Maria Dalila e Francisco.

Olivetti

Também imigrantes italianos, originários da região do Piemonte, presume-se terem chegado ao Brasil no final do século XIX. Em São Bento do Sapucaí, a família Olivetti foi fruto da união de Francisco Olivetti com Alzira de Souza Olivetti e gerou quatro filhos Benedicto, Maria, Luiz e Francisca.

Benedicto, nascido em 20 de novembro de 1905, fixou-se ainda jovem na capital, São Paulo, empregando-se num escritório de con- tabilidade. Casou-se com dona Marina Salgado Olivetti, nascida na vizinha Pindamonhangaba em 13 de janeiro de 1907. Tiveram os fi- lhos Mirza, Cid e Celso. Como funcionário público de carreira, Dicto. Olivetti ocupou cargos de destaque no desenvolvimento e apoio aos municípios no Estado de São Paulo.

Luiz, nascido em 6 de agosto de 1907, casado com Aparecida Azeredo Olivetti, nascida em 2 de dezembro de 1917. Tiveram como filhos Aparecida e Luiz. Comerciante em São Bento do Sapucaí, atuou em favor de instituições sociais importantes para a comunidade local, como a Santa Casa. Mereceu respeito e carinho da população, dei- xando seu nome da história da cidade. Ana Rosa da Silva e João de Moura Coelho, moradores do Paiol Grande; acervo familiar / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015

Pedrosa Dantas brasileiro. Dom Paulo faleceu em1962, sendo sepultado no Mosteiro matemática e desenho lecionou no Colégio Dr. Genésio Cândido São Bento. Era tio de Flavio Pedrosa Dantas, o professor Flavio, como Pereira por quase 50 anos. Família mais ligada à educação e às artes. é conhecido. Sua irmã, Cecilia Pedrosa Dantas, estudou no Conservatório Musical Monsenhor Felisberto Marcondes Pedrosa fez seminário em São Professor Flavio nasceu em São Paulo. É casado com dona Terezinha de São Paulo. Menina ainda, tocou órgão na igreja Santa Cecilia em Paulo. Ordenou-se sacerdote em 1904, assumindo a paróquia de Monteiro Dantas e tem cinco filhos: Flavio Pedrosa Dantas, Maria do São Paulo e em São Bento, onde, aos 15 anos de idade, apresen- Santa Cecilia. Mais tarde, inspirado no apóstolo Paulo, mudou o no- Rosário de Fatima Dantas, Maria Cecilia Monteiro Dantas, Francisco tou-se no antigo teatro Santa Terezinha em concerto beneficente para me para Paulo e ingressou na ordem beneditina. Foi o primeiro Abade Jose Monteiro Dantas, Maria Helena Monteiro Dantas. Professor de a Santa Casa de Misericórdia. No recital de piano, peças de Gluck,

sumário 26 Beethoven, Cezar Franck, Schuman, Schubert, Brahms e Villa Lobos. Recordar o passado, viver o presente Outros tempos e muitas mudanças. A clássica pergunta... “de qual A jovem pianista encantou a plateia. família você é?” perdeu força. Como perderam muitas das tradições Até meados do século XX, quando se consolidaram as mudanças familiares, sociais e religiosas, incapacitadas de moldar comporta- trazidas pela urbanização e pela emancipação feminina, as famílias mentos e manter os fios que ligavam antigas e novas gerações. Souza eram constituídas de pai, mãe e filhos, às vezes 10 ou mais.

Nesta região serrana onde se aninha São Bento do Sapucaí há que Nessas estruturas patriarcais – como as de São Bento –, era costu- Fontes escritas prestigiar os sitiantes e proprietários que, de pequenas glebas de ter- me pedir a bênção aos pais, avós, tios e padrinhos. O pai era o pro- ra e muito trabalho, tiraram o sustento de suas famílias e contribuíram vedor e a mãe a educadora. A mulher vivia sob a tutela do pai, irmão Tião Tino, Antes da Escrita. São Bento do Sapucaí: MFC Produções, para o enriquecimento de nossa cidade. ou marido. Hoje, os filhos chamam os pais de “você”, não mais de 2013. “senhor” ou “senhora”. Neste contexto destaco a família do senhor Luiz Venâncio de Souza Fontes orais e sua esposa da. Sebastiana Maria de Souza, ele nascido no Bairro Nesse passado ainda recente, os jovens namoravam, noivavam, pa- dos Souzas e ela natural de Conceição dos Ouros, vinda para São ra depois casarem. Hoje, não há mais o vai e vem das moças na rua de Francisco Chiaradia Bento ainda pequena. O casal teve dezesseis filhos, dez mulheres e cima, nem os rapazes ficam nas calçadas observando-as, os encon- seis homens. Seu Luiz tirava o sustento da família de um sítio que tros acontecem em barzinhos e praças. Eles se casam ou vão morar Benedito Chiaradia possuía no bairro do Campestre e depois em outro mais abaixo, no juntos, tem 1 ou 2 filhos, raramente mais que isso. Serrano. Cleide Talarico Dias Em tempos idos, os rapazes de São Bento, filhos de pais pouco Nesse sitio, seu Luiz mantinha uma pequena plantação variada pa- mais abastados, estudavam em Pouso Alegre e outras cidades pró- Antônio Caninéo ra consumo próprio, cultivava fumo e tirava leite. Mas a principal ati- ximas em Minas e as moças em colégios do Vale, como o internato vidade era a criação de porcos, que ele vendia para abatedouro de Nossa Senhora do Carmo, em Guaratinguetá. Os rapazes de menor Aparecida Olivetti Pindamonhangaba e mais tarde para São José dos Campos. Eram lo- posse ajudavam o pai na lida do campo ou se estabeleciam no comér- tes de cem a cento e vinte porcos por vez que ele tocava serra abaixo cio, enquanto as meninas aprendiam a cozinhar, bordar, costurar, en- José Antonio da Silva a pé, sendo depois levados de caminhão pelo comprador. fim, as prendas domésticas. Hoje, rapazes e moças contam com mais opções de educação e formação profissional dentro e fora da cidade. Vicente Luiz de Souza Os filhos, além de ajudar o pai na lida do sítio, aprendiam cedo a ter atividades próprias, como levar em burros lenha da roça para vender As crianças até seus 10 anos brincavam de boneca, pular corda, Ana Maria Ferreira na cidade, numa época em que ainda eram raros os fogões a gás. pega-pega, carrinho de rolimã e tantas outras brincadeiras que es- timulavam a criatividade e a sociabilidade, pois muitos brinquedos Seu Luiz faleceu aos 65 anos e da. Sebastiana aos 80. Deixaram eram construídos por elas próprias. Hoje, passam horas sozinhas à conhecimentos e valores que ajudaram seus filhos a continuar na lida, frente da televisão em seus computadores ou tablets e o celular as respeitando e tirando seu sustento da terra. acompanha em todo lugar.

Se hoje, em demonstração de fé, as famílias vão a Aparecida do Norte, assistem missa de manhã e voltam no final da tarde para São Bento, no passado, as famílias se reuniam, alugavam quartos ou ca- sas e lá iam cheias de bagagem e mantimentos em caminhões cober- tos com lona e banco de tábuas de madeira passar um fim de semana na Capela, como diziam. Hoje, o uso desse meio de transporte, o “pau de arara” é impensável.

sumário 27 A Santa Casa: de instituição de caridade a hospital de referência na região

Maira Silva de Aguiar Narcizo Ana Maria Leopoldo e Silva

Quando o Estado estava ausente de muitos aspectos da vida dos indivíduos e quando estes experimentavam a necessidade de proteção contra a doença [...], era para o auxílio de associações filantrópicas que apelavam na sua busca de socorro e ajuda. Maria Beatriz Nizza da Silva, USP, 1990.

Nos moldes das tradicionais casas de caridade da colonização por- tuguesa, São Bento do Sapucaí ganhou no início do século 20 a sua Santa Casa de Misericórdia, instituição filantrópica de atendimento aos pobres na doença, no abandono e na morte. A ideia nasceu e prosperou por iniciativa do padre Francisco Reale, filho de imigran- tes italianos e vigário na cidade desde 1900. Junto com seu irmão, o médico Braz, formou a comissão encarregada de construir o primeiro pavilhão do Hospital de Misericórdia. O edifício de “feição moderna”, erguido no largo do Rosário, atual Praça Marcondes Salgado, foi inau- gurado em 21 de outubro de 1911. A Santa Casa, entre os anos 1930 e 1940; acervo Casa da Cultura Miguel Reale / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 Nos primeiros anos, ainda sem estatutos, a Santa Casa funcionou como uma casa de caridade. Recebia carentes e doentes que não ti- apressou sua estruturação jurídica e administrativa. Em 12 de maio de A diretoria e o provedor decidiram promover leilões de gado e ini- nham condições de se tratar em suas casas, muitas vezes longe do 1918, a instituição ganhou seu primeiro estatuto e foi eleita uma nova ciaram uma campanha para angariar fundos. Iniciaram as reformas e centro urbano. Não havia médico residente e os atendimentos eram diretoria. construíram um novo prédio que, além de três quartos para doentes feitos pelos farmacêuticos da cidade. pagantes, tinha capela e até galinheiro. Precariedade Assim como as demais Santas Casas do país, o hospital sobrevivia de doações e enfrentava sucessivas crises financeiras. Em 1934, o Essa entrada de recursos permitiu contratar em 1943 quatro frei- Os problemas financeiros começaram a surgir em poucos anos. Em recém-empossado provedor José dos Reis Coutinho encontrou “um ras da Ordem das Vicentinas para cuidar do serviço hospitalar, co- 13 de janeiro de 1918, o jornal Correio de São Bento denunciou o ris- casarão velho, descuidado, sujo, cheio de goteiras, sem o mínimo mo previa o estatuto. Cinco anos depois, foram substituídas pelas da co iminente de fechamento do hospital por falta de recursos. A situ- conforto ou recursos de higiene,” segundo registrou em livro ata da Ordem Franciscana, do Rio de Janeiro, e em 1968, houve nova troca ação de precariedade da Santa Casa sensibilizou os sambentistas e época. na direção com a chegada das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora de Fátima, de São Gonçalo (RJ). O convênio durou só alguns meses

sumário 28 e quem passou a cuidar do atendimento foi a auxiliar de enferma- ceber os médicos de Paraisópolis e de Campos do Jordão, que inter- Referência gem Regina Caninéo. “A situação era bem precária. Quem atendia os navam seus pacientes aqui,” recorda. doentes que chegavam à noite eram o provedor e o capelão, padre Em 1978, Vitor Monteiro contratou novos médicos especialistas, Pedro do Valle Monteiro”, diz Regina. Além da visão modernizadora de Monteiro, outro fato que ajudou a completando uma equipe de nove profissionais. A Santa Casa ainda mudança de perfil da entidade foi a criação do Recanto São Benedito, ganhou um laboratório de análises clínicas, serviços de fisioterapia, As freiras da Congregação Filhas de Nossa Senhora das Graças, de em 1973, que passou a acolher os pacientes deixados pelos familiares Raios-X e monitores cardíacos. Campos de Jordão, foram convidadas pelo padre para assumir essa na Santa Casa. função. Junto com as irmãs, veio a adolescente Maria Aguiar, de 15 “O maior talento do dr. Vitor era sua visão administrativa, sua dedi- anos. Ela passou a morar e a trabalhar na Santa Casa como ajudante RECANTO SÃO BENEDITO: cação e paixão. Equipou o hospital, conseguiu recursos e fez convê- na cozinha, auxiliar de enfermagem, chegando ao cargo de diretora nios com o antigo INPS”, lembra Dr. Marcus. “Com o avanço adminis- do hospital. Maria lembra que na década de 70 o atendimento médico conforto e cuidado para quem mais precisa trativo da Santa Casa, São Bento virou referência”. continuava deficiente. A instituição distribuía cestas básicas e sopa para os carentes. Também atendia os desabrigados das enchentes Em 1973, padre Teófilo idealizou e fundou o Recanto São Benedito Em 1982, as freiras de Campos do Jordão foram embora. E a morte do rio Sapucaí, ainda não retificado. “Existiam no máximo quatro do- para acolher idosos e pessoas carentes em situação de abandono na repentina do jovem superintendente Vitor Monteiro pegou todos de entes internados, pacientes crônicos sem família, que ali envelheciam cidade. Muitos deles viviam em casinhas de quarto e cozinha constru- surpresa. “O trem já estava andando, não tinha como frear”, explica e morriam.” Ela se lembra da má fama do lugar, o que fazia os ido- Marcus, que assumiu a superintendência por seis anos e foi substitu- sos preferirem ficar internados em Campos do Jordão. Temiam o “chá ído pelo dr. João Carlos, no cargo até hoje (2014). da meia-noite”: quem dormisse lá não voltava para casa, segundo se dizia. No início dos anos 90, o sistema de saúde no país foi municipali- zado (SUS) e a Santa Casa deixou de atender as consultas de rotina, responsáveis por 90% da sua receita. Com a assistência básica à po- Modernização pulação concentrada nos Centros de Saúde, a arrecadação despen- cou. Voltaram os graves problemas financeiros. Os pacientes, nessa época, eram atendidos pelo médico José Bourabeby. Candidato a prefeito de São Bento aproveitava os com- Para enfrentar a crise, dr. Marcus e a administradora Maria Aguiar promissos políticos para fazer consultas na casa dos eleitores e até lançaram, em 1994, o carnê do sócio colaborador: contribuição men- mesmo nos bares. Nessas andanças, segundo Regina Caninéo, ele sal de 10% do salário mínimo, o que dava direito a um número de con- prescrevia as receitas até em pedaços de jornal. sultas e exames. Em 2013, este sistema mudou e hoje os associados têm descontos nas consultas e exames. No final de 1972, o dr. Bourabeby deixou São Bento. A diretoria contratou então o médico Vitor Monteiro, que iniciou um processo de Atualmente, 90% do atendimento é do SUS. Com 40 leitos, cerca profissionalização e modernização da instituição. Junto com o pro- de 60 funcionários e 23 médicos, sete deles fixos, a Santa Casa ainda vedor José Antonio Mello, lutou para obter recursos estaduais para a Recanto São Benedito / Foto Geraldo F. da Silva, 2015 sobrevive de repasses governamentais, das mensalidades dos asso- reforma do prédio. Pôs a funcionar o centro cirúrgico e a maternida- ciados e de minguadas doações. de, reformou a clínica médica, contratou médicos, entre eles, Marcus ídas na década de 50 por iniciativa do padre Pedro e da Associação Erthal Monnerat, João Carlos Ferreira e José Márcio de Miranda que dos Vicentinos. Vencida a resistência inicial,todos se mudaram em seguem fazendo parte do corpo clínico. 1982 para a casa reformada de um antigo juiz de São Bento, que abri- gou a primeira sede do Recanto, segundo conta Selma Duarte, por Nos 11 anos de sua administração, Monteiro modernizou as insta- longos anos atuando na entidade. lações e equipamentos, transformou a Santa Casa em um hospital de verdade. “Ele era um visionário e a instituição virou uma referência na A atual sede da instituição foi inaugurada em 1990 graças à doa- região”, explica dr. Marcus. ção de um terreno por Joaquim da Costa Manso Neto. Em 2000, com o corte de verbas do governo estadual, o Recanto passou por uma Recém-formado, Marcus chegou de Niterói (RJ) trazendo sua ma- grave crise financeira, já contornada. Uma nova ala foi construída em linha de instrumentos e levou um susto com a cidade que encontrou 2011 para abrigar toda a estrutura administrativa e várias reformas re- em 1975. “As ruas eram de terra, os pacientes chegavam a cavalo. alizadas para aumentar o espaço, o conforto e o cuidado aos idosos. A Santa Casa funcionava como um asilo. Fiquei apavorado”, confes- sa. Mas o entusiasmo do superintendente contagiou o jovem médico. “Implantamos o centro cirúrgico, começamos a fazer cesáreas e a re-

sumário 29 CEPROCOM: atividade social reforçada

Com o crescimento da cidade nas décadas de 60 e 70, a Santa Casa registrou um aumento preocupante de crianças internadas: mais de 30 por mês. A criação do Ceprocom, Centro Promocional Comunitário de São Bento do Sapucaí, e a vinda do padre Ronaldo de Castro pro- vocaram redução significativa nesses índices. A entidade passou a mobilizar a comunidade, principalmente em relação às práticas ali- mentares e de higiene e à prevenção de diversas doenças.

Fundado em 1969 pelo padre Teófilo, o Ceprocom começou a fun- cionar de fato em 1972. Sua primeira ação foi a criação de cursos de corte e costura, explica Maria do Carmo Santos Silva, coordenadora da instituição, onde trabalha desde 1988. Fontes escritas

Ineficiência e dificuldades de gestão ao longo dos anos retardaram Acervo documental da Santa Casa de Misericórdia de São Bento do o fortalecimento da entidade. Em 1992, o Ceprocom iniciou uma nova Sapucaí fase com liderança de Selma Duarte, consolidada quatro anos depois com a atuação e liderança do padre Ronaldo. O Ceprocom ganhou vida nova e novos projetos, como atividades musicais e esportivas Fontes orais e o atendimento às crianças com necessidades especiais, até então inexistente na cidade. Marcus Erthal Monnerat

João Carlos Ferreira

Maria Aguiar

Maria do Carmo Santos Silva

Regina Caninéo

Selma Duarte

Terapias especiais para necessidades especiais; crianças fazem equotera- Terapias especiais para necessi- pia no Ceprocom / Foto Geraldo F. da Silva, 2015 dades especiais; crianças fazem equoterapia no Ceprocom Foto Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 30 mésticos e suportes da fé. Expedito Folheiro. Do avô e do pai, herdou o gosto acurado pelo ma- nuseio das folhas de cobre e tornou-se um dos mais reconhecidos e Barro, madeira, palha de milho, bambu, fibra de bananeira, cobre – respeitados profissionais dessa arte. Dono de muitos talentos, foi tam- Saberes e fazeres de São o artesanato tradicional aproveita o material que a natureza oferece. bém músico e pedreiro; animava bailes de carnaval enquanto erguia Mas são os dons e habilidades longamente desenvolvidos, que per- suas construções, dentre as quais o primeiro abrigo no alto da Pedra Bento: a cultura popular mitem transformar essas matérias em objetos de uso ou de arte, que do Baú. povoam a vida cotidiana e nos encantam com sua criatividade. As he- moldando a alma do povo ranças paulistas e mineiras se mesclam nesta cidade de fronteira, pro- A distinção entre artesanato e arte popular é muito discutível e, na duzindo um “virado” com fortes traços da cultura rural da Mantiqueira, maior parte das vezes, bastante tênue. Em geral, se assinala que tal mas com personalidade própria. diferença reside no fato, de que o artista produz peças originais e úni- Beatriz Lomonaco cas, enquanto o artesão trabalha com séries. Ditinho Joana é um dos É do casamento entre a arte e os fazeres cotidianos que nasce o artistas mais célebres da região, além de ser um grande contador de Creverson Claro encanto do mundo rural. Muitos artistas e artesãos, nascidos ou re- “causos”. Morador do bairro do Quilombo, Ditinho é um escultor auto- sidentes na região, formam esse grupo de “mãos sábias”.Os limites didata, cujas peças em madeira descartada retratam a vida na roça de Vera Pena deste breve texto impõem que evoquemos apenas alguns destes nu- maneira bela e singular. Seus trabalhos já foram expostos em várias merosos encantadores que trazem até nós um pouco da arte e do co- cidades do Brasil e são também conhecidos no exterior. nhecimento “dos antigos”. Dentre as diversas manifestações da cultura popular, as danças Em São Bento ainda se pode encontrar, por exemplo, carros de boi, se destacam pelo esforço de manter vivas suas modalidades e carac- cangas e cangalhas feitos artesanalmente. Joaquim Pereira da Costa, terísticas tradicionais. A catira, por exemplo, foi resgatada de um pe- O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em o muito querido Quim Costa, foi um grande mestre nesse ofício intrin- ríodo de relativo esquecimento pelo empenho do sr. Emanuel Santana relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando cado e, nele trabalhou, até falecer em março de 2014. Ainda menino dos Santos (mais conhecido como Sr. Neco), decidido a trazer de volta nos parece que passou à frente delas, ainda são fazia carrinhos de madeira e instrumentos aprendidos primeiramen- as tradições familiares. De calça e chapéu pretos, camisa branca, os dedos que têm de lhe explicar as investigações te com o carpinteiro Carapina e, mais tarde, com o mestre Antonio lenço vermelho ou amarelo no pescoço, os catireiros dançam batendo do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o Cipriano. Aos 17 anos fez seu primeiro carro de boi com as madeiras pés e palmas de maneira ritmada. A catira, cateretê ou pagode, é uma barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura então utilizadas: jacarandás, taiúvas, ipês, paus-de-óleo e pereiras. dança conhecida desde a época colonial, que reúne traços de danças do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de Tinha consciência do caráter artístico de seu trabalho, que lhe rendeu indígenas, africanas e europeias. Em São Bento do Sapucaí, a catira papel estendida, a orografia das texturas, o entramado até prêmios. deriva também das chamadas danças de mutirão, entoadas quando das fibras, o abecedário em relevo do mundo. os trabalhadores se reuniam nos campos para a semeadura ou colhei- José Saramago, A caverna, 2000. Já o sr. João do Boi, inspirado nessa lida da roça, sabe como nin- ta; a música era improvisada e cantada em forma de desafio. guém esculpir miniaturas perfeitas de carros de boi, cavalos e boizi- nhos, como que para brincar e, ao mesmo tempo, dignificar o mundo A congada é outra dança típica da zona rural, praticada inicialmente do trabalho. por escravos. Era comum nas festas, em que os negros dançavam em Os dedos delicados que moldam o barro, os fortes que amassam homenagem ao santo da devoção local, e para expressar a alegria pe- o cobre, as mãos firmes que martelam, esculpem, forjam e pintam de Presépios, oratórios, santos e animais ainda são produzidos por vá- lo fim da escravidão. Em nossa região, a congada teve início no bairro modo tão inteligente quanto belo estão, quase sempre de maneira rios figureiros que trabalham com argila não cozida. Das vaquinhas dos Martins, no município vizinho de Gonçalves. Em São Bento, a tra- anônima, presentes em todos os bairros de São Bento. Dentre os mui- e cavalos modelados para as brincadeiras infantis, nasceram verda- dição foi trazida pela avó de da. Luzia Maria da Cruz, conhecida mo- tos recortes que poderíamos escolher para abordar o tema da cultura deiros talentos. Da. Jandira Peres, da. Angélica, da. Arminda, a fale- radora do bairro do Quilombo, comunidade que conta com um gran- local – os festejos populares, a expressiva comunidade de artistas que cida da. Joca, sr.Valter, da. Cida do Quilombo, Verônica Venâncio do de número de descendentes de escravos. Atualmente, ela mantém a escolheu a cidade como residência, a religiosidade com profundas Serrano são alguns dos representantes dessa arte singela que tanto tradição entre seus familiares e traz membros de novas gerações para raízes no cotidiano – este nos pareceu o mais adequado: o da cultura enfeita a vida das famílias e sua fé. integrar o grupo. A Congada de São Bento do Sapucaí homenageia popular, sobretudo rural, que se traduz numa artesania de qualidade São Benedito, santo padroeiro dos escravos. É dançada todo dia 13 peculiar e de forte presença na vida sambentista. É importante destacar o trabalho do sr. Miguel de Oliveira, que apri- de maio e também em outras festividades para as quais o grupo é morou a técnica de reciclagem da fibra de bananeira, desenvolvendo convidado, como a festa de Reis, em 6 de janeiro. Apresentaremos brevemente alguns dos fazeres locais e das mãos em escala comercial vários tipos de objetos, como luminárias, cestas hábeis cujas marcas são visíveis na paisagem da cidade e da roça; e bolsas, dando visibilidade e valor a uma matéria-prima até então E como não falar da música que sustenta essas tradições? As ro- tais atividades impregnam o dia-a-dia, se traduzem em vocabulários pouco utilizada na cidade. das de viola, reunindo famílias e amigos nas roças animam festas e próprios e causos sem fim, instalam-se em hábitos e crendices, ma- encontros até nossos dias. Em geral, os grupos ainda se dedicam terializam-se em apetrechos de trabalho e de lazer, em utensílios do- Não poderíamos também deixar de mencionar o trabalho do sr. a músicas de “raiz”, como as modas de viola e desafios de canto.

sumário 31 Dentre os violeiros mais antigos, há grande interesse em preservar a de fubá assada na palha de bananeira, a canjiquinha, a paçoca com tradição, transmitindo-a para as gerações mais novas. Campo Belo & carne-seca, a quirera e o virado de banana (sobremesa típica da roça, Companheiro e Presidente & Secretário são duplas bastante conheci- feita com bananas maduras e farinha de milho). A cambuquira (broto das, juntamente com Dito Campos, Joaquim (do bairro do Paiol), Odair de aboboreira), a serralha (folha), a paçoca de amendoim, o torresmo e Fontes escritas (do Córrego da Foice) e João e Rosinha (do bairro do Serrano), artistas o café com farinha de milho ainda fazem parte dos hábitos alimentares que felizmente mantêm a deliciosa tradição de se reunir na rodoviária de nossa gente. Pesquisas dos jovens participantes dos projetos culturais da Casa aos domingos para tocar e cantar, para deleite dos passantes. da Cultura Miguel Reale Os produtos artesanais, as músicas, danças e a culinária são ape- Mãos inspiradas e trabalhadeiras também praticam suas artes na nas alguns dos preciosos elementos que moldam a identidade e a cozinha. história de um lugar. Nesses saberes e fazeres se preservam as mar- Fontes orais cas do passado; com amor e dedicação, a cultura popular continua a A culinária de São Bento é muito próxima à cozinha mineira, com produzir objetos e experiências muito especiais. A todas essas mãos Oliveira José dos Santos (“Companheiro”) seus pratos à base de milho, fubá, feijão e carne. A culinária local incansáveis e talentosas, nossa homenagem e gratidão. sofreu influência da alimentação dos tropeiros que ligavam a região Fernanda Prado ao Vale do Paraíba. Por meio deles, a população tinha acesso ao sal grosso, farinha de trigo e açúcar mascavo, e ao consumo de produtos Maria Bernadete Costa Prado como o queijo curado, a paçoca de carne, o bacalhau e a carne-seca. As especialidades da região ainda incluem a rosca doce, a broinha Maria Alexandra Silva Santos

Ditinho Joana, seu ofício, sua arte /Foto Geraldo F. da Silva, 2009

sumário 32 Lazer e Cultura

Cine São Bento, final dos anos 50, exibindo “A Guerra dos Mundos”; acervo José Sérgio Carvalho sumário 33 Os clubes Romances e namoros Um dos primeiros clubes da cidade foi o Clube do Esporte, também A rua de cima conhecido como Clube dos Quinze, por funcionar por um período na São inúmeras as recordações. De cada pessoa entrevistada, um Aurora Marigilda da Rosa Santos Rua 15 de novembro, no prédio do atual colégio IEPS. Suas instala- depoimento saudoso, uma passagem interessante. Todas se referindo ções foram depois transferidas para a rua Alferes Pedrosa, em um ca- à “rua de cima” como o lugar mais importante e aprazível da cidade. sarão de esquina hoje conhecido como “casarão do Reynaldo”. Com Especialmente nos sábados, domingos e dias de festas religiosas – novo nome, o Clube Social, era frequentado por famílias da classe dias e festas “sempre aguardados ansiosamente”, como disse dona mais alta. Já a população de menor poder aquisitivo frequentava o Cidália da Rocha Santos Chiaradia, da.Vidinha, matriarca da família ... A Alferes Pedrosa não foi mais uma rua, mas sim “a Centro Operário, situado pouco adiante, na rua Dr. Gama Rodrigues. Chiaradia que, vivendo fora de São Bento depois de casada, nunca rua” da cidade na época. Foi o lugar onde a convivência deixou de mostrar seu amor à cidade, passando aqui finais de sema- intensa e próxima alimentou a felicidade de muita gente. Nesse contexto de elitização comum às cidades brasileiras, mesmo na e, regularmente, as férias com filhos e netos na casa que mandou Onde cada um viveu sua história, da sua maneira, e às pequenas e interioranas, quem quisesse associar-se e frequentar o construir – na “rua de cima”, é claro. parece ter guardado dela somente boas lembranças. Clube Social tinha que conquistar seu espaço. Nessas ocasiões, os moços colocavam o seu melhor “pareio” de Aurora Marigilda da Rosa Santos, 2014. roupas (ternos) e as moças colocavam vestidos rodados, “vestidos O cinema godê”, usavam cintos ou laços para realçar a cintura e desfilar pela “rua”. Passear ali era motivo de felicidade para os jovens, adolescen- Buscando em suas memórias, seu Cirilo recorda que os filmes tes e para os casais na época, assim contam minha mãe, da. Aurora exibidos no cinema eram pouco variados. Os mais comuns eram os e da. Reni Venâncio, professora aposentada, com os olhos cheios de de bang bange os do Mazzaropi. Com o passar dos anos, outros gê- recordações e lembranças boas. neros, como os românticos, passaram a ser exibidos no cinema da cidade. Nos dias de festa, as moças solteiras passeavam de um lado para Tomado de pura emoção e sensibilidade, Cirilo de Castro Rosa, o o outro, de braços dados, quase sem parar, e os moços, ficavam nas “Seu” Cirilo, no retorno à infância e juventude, não traz só lembranças Quando terminava a sessão, as pessoas iam para as suas casas e laterais só observando os passeios. Quando um deles se interessa- simples e ingênuas do carrinho de pipoca com que, por anos a fio, logo a rua silenciava, quase deserta. Seu Cirilo, tarde da noite, guar- va por alguma das moças, procurava aproximar-se e, discretamente, marcou presença na entrada do cinema. Como outros convidados a dava seu carrinho num cômodo do cinema e também tomava o cami- acompanhá-la. Quando percebiam que os pais não estavam por perto relembrar esses tempos – versão sambentista dos “anos dourados” nho de casa, certo de que mais uma missão fora cumprida e que o dia ou quando conseguiam despistá-los, conversavam nas esquinas ou entre as décadas de 40 e 60 –, ele traz o testemunho pessoal e pri- estava ganho. nas travessas da rua. vilegiado do cotidiano social de São Bento do Sapucaí, num de seus lugares mais destacados na época, a rua Alferes Pedrosa, inscrita na Os namoros eram tímidos e discretos. Tinham que ser, pois, apenas memória da cidade como a “rua de cima”. por conversarem ou caminharem lado a lado, os pares já eram consi- derados namorados e comprometidos.... Outros tempos.... Da porta do cinema, enquanto vendia suas pipocas e amendoins, ele observava as pessoas caminhando do jardim da praça General Marcondes Salgado até a subida da rua 15 de Novembro para o largo Comércio local da Matriz, “num vai e vem” quase sem parar. Ali aconteciam os encon- tros, os namoros, as amizades. Tanto para frequentadores como para os seus moradores, a “rua” era pouco movimentada de segunda a sexta. De dia e de noite, um A concentração de gente ali era grande nos fins de semana, anima- movimento rotineiro. da pelas sessões do Cine São Bento e pelas festas e bailes do Clube Social e do Centro Operário. As pessoas frequentavam o comércio como o armazém do José Jacinto, posteriormente o depósito de material de construção do Renato Barbosa e o armazém do Elói, onde ainda hoje funciona o Armazém Estancia, do sr. Boanésio.

Frequentavam também a farmácia do Dario, na esquina onde hoje está a loja do Pedrinho (Casa Mirim), e o antigo prédio do Fórum, de- Rua de Cima com igreja da Matriz ao fundo, circa 1950

sumário 34 pois substituído pelo atual, onde funcionou por um período o Centro com a Capitão Procópio, onde se instalaram o novo Clube Social, a As conversas mostram que a Alferes Pedrosa não foi mais uma rua, de Saúde e o Banco do Brasil, e hoje funciona a agência dos correios. Churrascaria do Baiano – um dos primeiros restaurantes da cidade – e mas sim “a rua” da cidade na época. Foi o lugar onde a convivência o novo e moderno edifício do Fórum. intensa e próxima alimentou a felicidade de muita gente. Onde cada um viveu sua história, da sua maneira, e parece ter guardado dela so- Casas e casarões Para selar de vez o deslocamento do eixo urbano, vieram a insta- mente boas lembranças. lar-se na avenida duas novas agências bancárias. Primeiramente, no Atualmente desativado e com restauração inacabada, de proprie- final da década de 70, a do Banco do Estado de São Paulo, Banespa, Nostalgias à parte, esses depoimentos emocionados revelam a “rua dade de José Rubens Goulart Pereira, o casarão da esquina da pra- atualmente Santander e, algum tempo depois, a do Banco do Brasil. de cima” como um marco na história de São Bento do Sapucaí. Na ça General Marcondes Salgado foi ocupado pelo Hotel Central. Bem No mesmo embalo, foram chegando novos bares, lojas, lanchonetes, história de uma época representativa, que ficou no passado, mas per- localizado – no marco inicial da “rua de cima” – por muito tempo foi restaurantes, supermercados... Foram se promovendo ali as grandes manece na memória de muitos que aí viveram sua juventude. o único hotel da cidade, hospedando visitantes e viajantes de toda festas e procissões religiosas, o carnaval, os desfiles cívicos... região. Quero destacar que foi um prazer pesquisar este tema. Afinal, tam- bém pude desfrutar de bons momentos da “rua de cima”. Na ado- Já no casarão que hoje pertence à família de Reynaldo Limp Nostalgia, sentimentos lescência, lá estive passeando na companhia de minha irmã e das (Reynaldo da farmácia, já falecido) funcionou, como foi dito acima, amigas. o Clube Social, até este dar lugar ao atual Clube São Bento Social, Cerca de dez pessoas foram ouvidas para este relato. Quase todas instalado ali perto, virando a esquina e descendo a Capitão Procópio demonstraram empolgação ao contar fatos ou acontecimentos viven- Era a passagem dos anos 70 para os 80, o fim dessa história. Marcondes Azeredo. A edificação foi também por algum tempo sede ciados na “rua de cima”. Algumas foram mais longe nas recordações, Lembro-me do movimento ainda intenso de pessoas em dias de fes- do CEPROCOM (Centro Promocional Comunitário). esforçando-se para se lembrar de detalhes esquecidos. Todas se en- tas, das paqueras, dos primeiros encontros, das investidas e dos bate volveram neste resgate de um passado que, a seu ver, merece ser -papos descontraídos. Dos rapazes na calçada apreciando o passeio O casarão onde hoje está o colégio IEPS, na subida para a igreja preservado. das meninas. matriz, foi sede do Sindicato Rural e também moradia particular. O tér- reo recebeu a agência do “Banco da Lavoura”, posteriormente “Banco A paquera dos jovens misturava-se com a presença das famílias e Real”. Foi a primeira agência bancária da cidade, como conta o sr. eu tive a oportunidade de vivenciar e guardar essa e outras experi- José Assis, funcionário do banco de 1962 a 1966. ências. Difícil esquecer-se do cinema e dos filmes do Mazzaropi que assistimos, eu e a turma lá de casa. Difícil esquecer-se do “seu” Cirilo e da atenção e paciência com que vendia suas pipocas e amendoins Da rua para a avenida aos frequentadores do cinema e da rua de cima.

A “rua de cima”, além da atmosfera social que a envolveu, ganhou destaque por ser mais elevada e menos vulnerável às enchentes que Fontes orais todos os anos invadiam e afligiam a cidade. Foi também a primeira a receber melhorias da urbanização, como calçamento de bloquetes, Aurora Pereira da Rosa calçadas e iluminação. Cirilo Castro Rosa Entre o final dos anos 70 e início dos 80, porém, a “rua de cima” começou a perder movimento e encanto. Contribuiu para isso a deca- José Assis Pereira dência do cinema, impactado pela chegada da televisão e mudança dos padrões de convívio familiar e social. Reni Venâncio e Silva Fiéis à saída de festa religiosa na Matriz, anos de 1950; acervo Casa da Mas, provavelmente, o que mais contribuiu para o declínio da “rua” Cultura Miguel Reale / Reprod. Geraldo Francisco da Silva, 2015 Cidália da Rocha Santos Chiaradia (Da. Vidinha) foi a própria modernização da estrutura da cidade. No desenho urba- no, a avenida Conselheiro Rodrigues Alves tornou-se a principal via de circulação e a nova praça Monsenhor Pedro, o centro geográfico e social da cidade.

Junto com a praça, diversos comércios e serviços colaboraram pa- ra que a avenida se tornasse movimentada. Dentre eles, o “bar do Nelson Mendes”, depois “bar do Peteleco”, na esquina da avenida

sumário 35 Bandas e bailes nas histórias sambentistas

Walkyria Ferraz Fátima Machado

Era tão movimentado o baile de carnaval que certa vez a serpentina acabou e tivemos que dar um jeito de buscar em Paraisópolis. A estrada era de terra e imagina a aventura.

Expedito Folheiro, 2014

“Às nove horas a orquestra dá o sinal. Os pares se arrojam ao salão principal e dançam a primeira quadrilha. As harmonias desta como que seduzindo os espíritos, neles produziram um entusiasmo deliran- te e dentro um pouco as danças sucediam-se com curtos intervalos” (Imprensa Ituana, 22.11.1883). A citação está na internet, sem uma identificação precisa da fonte. Não se refere a São Bento, é genérica. Mas a cena descrita não é muito diferente das que foram vivenciadas nos casarões e clubes sambentistas em épocas passadas.

Bailes e saraus

Desde tempos remotos em que São Bento do Sapucaí se grafava com “h” e “y” e era da Comarca de Pindamonhangaba, as pessoas que aqui residiam eram alegres e animadas. Em tempos menos dis- tantes, gostavam de um caminhar na “rua de cima”, como era co- nhecida a atual rua Alferes Pedrosa, o local mais agitado da pequena cidade da Pedra do Baú.

Orgulhosas, as pessoas contam as histórias de uma época passa- da, com o cuidado e entusiasmo de quem carrega um grande tesouro, de fazer os olhos brilharem e os sorrisos saudosos brotarem ao canto da boca. Banda de Santos que tocou na inauguração do Clube São Bento Social em 1964; acervo da. Licinha

sumário 36 Quando os bailes e saraus são relembrados, é como se pudésse- bebida no meu vestido, mas como éramos amigas ficamos na boa. E mos ouvir o som dos instrumentos ao fundo e visualizar, como em um conseguiram arrecadar dinheiro, só não sei quanto”, diverte-se. filme, os salões repletos de rapazes de ternos feitos por alfaiates da cidade, emoldurados com gravatas, suspensórios e chapéus, ávidos Anos se passavam e o clube seguia animado. Sempre com seus por tirar uma moça bonita para dançar em seus vestidos de “Godê concursos de dança; carnavais com serpentinas e marchinhas; forma- Guarda-Chuva” e saias engomadas, moda da época, como diz da turas de final de ano; sua “biblioteca” de livros e revistas; jogos à von- Maria Alice Dias Venâncio, da. Licinha. tade e bar/lanchonete. Nem mesmo a enchente, que de vez em quan- do afogava a rua do clube, desanimava as pessoas de irem aos bailes. Conta o sr. Expedito Antonio da Silva, “seu” Expedito Folheiro, que o primeiro clube da cidade – ainda em ruas de chão de terra e postes Nos anos 70 a cidade acelerou. Com o título de Estância Climática espaçados e luzes fracas em meados da década de 1930 – era um ca- para o município, inauguração do Hotel Estância e melhorias urbanas, sarão alugado por uma associação para promover bailes, na referida São Bento do Sapucaí crescia e se destacava na Serra da Mantiqueira. rua Abade Pedrosa, 119, onde hoje há um comércio de gás. Com isso, cresciam também as festas na rua e os bailes nos salões do São Bento Social, do Centro Operário São José (atual Clube dos 30) Seu Expedito, que nasceu em 1920, tocou na 1ª banda do municí- e até no Acampamento Paiol Grande, que de tão chiques levavam as pio, “Banda da Biquinha”, por ser formada e ter os ensaios perto de mulheres a fazerem seus vestidos de festa nas costureiras e enrolarem uma bica no começo do caminho para o bairro do Paiol Grande. Mais os cabelos com “bobes e bigudinhos”. tarde seria chamada de “Banda de São Benedito”. Era ela que anima- va os bailes do primeiro clube social e embalava as noites festivas das Em meados da década, o engajado e memorável professor José 20h até a madrugada. “Era tão movimentado o baile de carnaval, que Maria Priante, “seu Priante”, assumia como Presidente. Já fundador certa vez, a serpentina acabou e tivemos que dar um jeito de buscar e animador da Fanfarra Municipal, dedica-se agora à construção da em Paraisópolis. A estrada era de terra e imagina a aventura”, diverte- segunda parte do prédio, o “Salãozão”, como é conhecido até hoje. se com a lembrança o Seu Expedito. Na mesma década formou-se a banda jovem “Sam Boys 70”, que re- ferenciava os “Beatles”, a banda inglesa no auge da fama.

Bandas e clubes Diretoria do Clube São Bento Social, 1964; acervo da. Licinha Já nos anos 80 o clube destacava-se com o grupo “Renascer”, uma chapa de amigos, que unidos, revolucionaram a época. Bandas de Segundo as pesquisas, nesta mesma década de 30 duas bandas renome, decorações e adereços de acordo com os temas dos bailes, faziam a alegria do povo, apresentando-se alternadamente no coreto São Bento Social tudo era feito com afinco e carinho pelo grupo. Os bailes aconteciam da praça Gal. Marcondes Salgado, “a praça em frente ao Hospital”. animados e o Carnaval seguia com suas danças, as pessoas rodavam Eram a Corporação Musical Independente e a Corporação Musical 24 Nos embalos dos “anos dourados”, em março de 1958, um grupo o Salãozão de braços dados ao som da “Banda do Zi”. Por entre as de Outubro. Ambas eram patrocinadas por partidos políticos da épo- se reuniu na casa do professor Sílvio Xavier e fundou o “São Bento trocas de presidências, o Clube São Bento Social se fixou como o lo- ca, “Jagunços” e “Botões”. Social, Sociedade Recreativa e Literária”. Sua sede – que inicialmente cal dos bailes no município: Baile da Aleluia; Baile do Aniversário da contava apenas com o “Salãozinho” - foi inaugurada em 15 de agos- Cidade; Baile da Virada do Ano; Baile a Fantasia; Baile da Espuma; Tempos depois, em meados de 40/50, pasmem!, São Bento do to de 1964, na rua Cap. Procópio Marcondes de Azeredo – “a rua do Baile de Halloween; Baile do Havaí e muitos outros. Sapucaí contava com dois clubes e um cinema na “Rua de Cima”. Fórum” – onde permanece até hoje. Os sapatos de bico fino já escorregavam nos assoalhos dos casa- Esse ritmo festivo vem embalando por décadas a querida São Bento rões, sendo um clube na rua Alferes Pedrosa, 79, hoje o “casarão do Consta que o primeiro presidente do clube foi o Sr. Expedito Púppio do Sapucaí. Ora lembra mais os calmos saraus de épocas passadas, Reinaldo” chamado de “São Bento Selecto Clube” e o outro na Rua e o Baile de Inauguração contou com a presença de pessoas impor- ora se agita com os bailes mais animados “de parar a cidade”. Como XV de Novembro, 74, o atual “casarão da escola IEPS”. Os clubes tantes como o Deputado Estadual Benedito Matarazzo; e a banda que em uma dança, as fases vão e voltam. O importante mesmo é que na pendiam para os populares times de futebol da época, “Esport Club” embalou a data festiva foi o “Conjunto Miramar Musical”. história das terras sambentistas nunca se deixou de bailar. e “9 de Julho” e a rixa entre os jogadores passava para as pistas de dança. Então, frequentemente, as pessoas se dividiam nas festas des- Para a construção da sede do clube, as pessoas se mobilizaram tes dois casarões – quem torcia por um time não podia ir ao baile que com o intuito de ajudar. Da. Licinha recorda a realização, ainda no clu- o outro time promovia e vice e versa - e concorriam para ver quem be antigo, do concurso da “Rainha das Rosas”, onde ela e outra moça promovia os melhores bailes. foram convidadas a participar. “Meu pai ficou sentado em um bar que tinha na frente do clube perguntando como estava a eleição da rainha. O concurso era para arrecadar dinheiro, mas não me lembro bem ao certo como. E no fim eu ganhei. A outra participante jogou um copo de

sumário 37 Zé Pereira, Quem foi a primeira pessoa que confeccionou o boneco no muni- Por gerações, esse tradicional folclore carnavalesco dos bonecões, folclore vivo nos carnavais sambentistas. cípio não se sabe exatamente. Referencia-se o nome “Zé Franco” ao que chegam a 4 metros de altura, carrega multidões de crianças, jo- possível pioneiro. Mas sabe-se que os irmãos João e Antônio Cortez vens e adultos pelas ruas da nossa pequena cidade de São Bento do “Olha o Zé Pereira, com a faca na jibeira”... Com bumbos e tambo- – os mesmos que conquistaram o topo da Pedra do Baú – não ficaram Sapucaí. Ao passar do cortejo festivo marcado por batidas animadas res, esse refrão era cantado para avisar que o Zé Pereira estava pas- na história do município somente pela conquista da rocha, mas tam- e jatos de sprays de espuma e de água, todos são convidados a se sando nas ruas da cidade e o tempo do carnaval estava chegando. E, bém por serem artífices do bonecão Zé Pereira. Mais tarde passou- juntar e se divertir no carnaval da “Família Zé Pereira”. em São Bento, carnaval sem o Zé Pereira não é carnaval. se a maestria da confecção de bonecos para o filho de seu Antônio Cortez, Bento Cortez. A tradição dos bonecões nas danças e brincadeiras carnavalescas Fontes escritas veio da Europa em séculos passados, porém, por aqui temos pesqui- Os bonecos antigos eram feitos com barro de olaria (que servia de sas e narrativas de que esta simpática figura do Zé Pereira, já estava molde para a face do Zé Pereira) e depois de bem seca começavam Maria de Fátima Machado, Pesquisa dos Dados Históricos de São presente após alguns anos de fundação da cidade. A coletânea dos a cobrir com pedaços de jornais com grude feito de farinha de trigo Bento do Sapucaí, novembro de 2004. “Dados Históricos de São Bento do Sapucaí”, de Fátima Machado, até ficar com uma textura relativamente forte. Para a pintura, usava-se registra o relato da já falecida da. Maria do Rosário que fala “de um tinta em pó com clara de ovo para dar brilho. O corpo do boneco tinha Isaura Aparecida de Lima e Silva, São Bento do Sapucaí – Tradição tal de Chico Minas, vindo de Brazópolis”. Ele era alto que chegava uma armação de jacá de bambu e suas mãos eram feitas de areia re- e Cultura, Editora Paraíso Gráfica, 1999. a quase 2 metros, magro e desengonçado. Chico Minas teria sido, vestidas com napa. de acordo com o relato, o modelo para a confecção do primeiro Zé Pereira sambentista. O tempo foi passando e o Zé Pereira se consolidava cada vez mais Fontes orais como atração principal do carnaval sambentista. Mais recentemente, Já Seu Expedito Folheiro diz lembrar, desde a sua infância, em me- a confecção dos bonecos e a organização dos roteiros pela cidade Maria de Fátima Machado ados da década de 1930, dos tambores pela cidade anunciando o Zé passaram a ser e responsabilidade da Prefeitura Municipal. Pereira, na época, um único boneco. Outra curiosidade relatada, é que Maria Alice Dias Venâncio na terça-feira de Carnaval as pessoas levavam o bonecão até a ponte Em meados de 1990 os bonecões foram refeitos, sob a orientação da saída para o Sul de Minas e o jogavam no rio Sapucaí, simbolizan- do funcionário público, artista plástico e artista amador de Teatro, sr. Expedito Antônio da Silva do o fim das festividades de Momo e o começo da Quaresma. José Vicente da Silva. Os bonecos passaram a ser feitos em blocos de isopor de 50 centímetros de espessura esculpidos com um punhal. A técnica de esculpir isopor fora aprendida com Bento Cortez. Já na feitura do corpo substituiu-se o jacá de bambu por uma estrutura de ferro fino, mais resistente, e por uma tela de plástico. Além disso, co- locaram-se correias de couro para que os candidatos a entrar nos bo- necos pudessem ter mais controle e segurança ao carregá-los.

Em 1994 foi confeccionado o “Pereirinha Filho”, chamado de “Kiko”. E em 1996 a “família Zé Pereira” ficou completa, com a confecção da “Mariazinha”.

Zé Pereira, carnaval de 2016/ foto Alberto R. Lima Zé Pereira, carnaval de 2016/ foto Alberto R. Lima

sumário 38 Cinema, Rádio e TV em São Bento do Sapucaí Maria de Fátima Machado

...ao anoitecer o aparelho era ligado e por volta de 19h começavam a chegar pessoas, amigos da família, para assistir a TV. Era uma sala retangular grande, com uma mesa para oito lugares ao centro, duas cadeiras de braços, um móvel/vitrola e uma cristaleira, onde, em cima dela, ficava o aparelho. Os adultos sentavam- se nas cadeiras afastadas e colocadas perto das paredes, as crianças ficavam sentadas no chão e embaixo da mesa. Do lado de fora, na rua à janela, ficavam ainda pessoas que também vinham assistir os programas, e isso todos os dias até por volta de 21h.

Maria de Fátima Machado, 2014.

Nas décadas centrais do século passado a vida em São Bento transcorreu em ambiente de forte isolamento. Forte, mas sem impedir que a cidade se aproveitasse dos meios de comunicação e entreteni- mento que cresciam na vida do país. Entre eles, o cinema, o rádio e a televisão foram os destaques.

Até o final dos anos de 1960, o cinema ocupou lugar especial na vida social sambentista. Tudo começou lá atrás, nos tempos do “cine- ma mudo”. Mas foi com o advento, e o sucesso, do “cinema falado” que as sessões do Cine São Bento, bem instalado na histórica “rua de cima”, viraram ponto de encontro obrigatório de fim de noite nos sábados, sobretudo quando não havia bailes programados e quando os filmes traziam grandes astros do cinema nacional, como Mazzaropi e Grande Otelo, e de Hollywood, como Tirone Power e Debora Kerr.

Essa “época de ouro”, rica e agitada, da cultura de massa viria a ter dois outros protagonistas: o rádio, onipresente nos lares brasileiros, e depois a TV, ainda mais poderosa e influente. Com eles, a vida social não seria mais a mesma, nas grandes e pequenas cidades. A presença da televisão nos anos 1960, curiosidade e admiração; acervo da. Licinha

sumário 39 TV. Era uma sala retangular grande, com uma mesa para oito lugares A primeira retransmissão da torre de São Bento foi da TV Tupi ao centro, duas cadeiras de braços, um móvel/vitrola e uma cristalei- Paulista na década de 60. Em Sistema VHS passaram a ser transmiti- A era do Rádio ra, onde, em cima dela, ficava o aparelho. Os adultos sentavam-se dos também os canais da Rede Globo, TV Record, TV Bandeirantes. nas cadeiras afastadas e colocadas perto das paredes, as crianças Logo que chegou o Sistema UHF, diminuiu o tamanho das antenas Não podemos nos referir ao advento da TV sem mencionar antes ficavam sentadas no chão e embaixo da mesa. Do lado de fora, na e os aparelhos de 85V passaram a contar com um dispositivo para o rádio. Na realidade, o rádio foi o veículo que informou, divertiu e rua à janela, ficavam ainda pessoas que também vinham assistir os controlar a recepção dos canais – controle manual, o remoto ainda ia emocionou as famílias brasileiras país afora,em boa parte do século programas, e isso todos os dias até por volta de 21h. Essa frequência, demorar. passado. naturalmente, foi diminuindo à medida que cada um foi adquirindo seu próprio aparelho. Foi um começo modesto, uma entrada em cena nada espetacu- A primeira transmissão radiofônica no Brasil ocorreu no dia 7 de se- lar, até que, nos anos de 1970, se resolvessem essas dificuldades de tembro de 1922. Começava aí o que viria a ser mais adiante, nas dé- Inconformados com a má recepção do sinal da transmissão de TV, transmissão e recepção e se iniciasse a programação em cores. Com cadas de 1940 e 1950, a “era do Rádio” no Brasil. Eram transmitidos alguns amigos se juntaram para a instalação de uma torre de retrans- ela se consolidava a era da Televisão. Em São Bento, como no Brasil, musicais de inúmeros gêneros, radionovelas, noticiários, programas missão do sinal para São Bento do Sapucaí: Durval José de Campos, os aparelhos de TV, mais e mais sofisticados, passaram a ocupar o de humor, seriados de aventuras, transmissões esportivas, hora certa, Oduval Azeredo Pinto, conhecido como Vavá, Nivaldo Teixeira Pinto, lugar central nas casas e na vida das famílias. Outros tempos de infor- jingles deliciosos. Durante anos, o brasileiro viveu ao pé do rádio, sua Benedito de Oliveira conhecido como Sargento Oliveira e Matheus mação, entretenimento e sociabilidade se apresentavam. principal fonte de informação e deleite. Púppio. Nessa parceria, um era responsável pela parte técnica e ou- tros pela campanha de captação de recursos. São Bento do Sapucaí também viveu a “era do Rádio”, e com mui- tas fãs. As amigas reuniam-se em casas uma das outras para juntas Com a assessoria de uma empresa especializada da cidade de ouvirem pela Radio Nacional do Rio de Janeiro as radionovelas, como Brazópolis-MG, procuraram um melhor ponto para instalação da tor- Fontes escritas a ”Direito de Nascer”, que foi ao ar em 1951e virou o maior fenômeno re. O lugar escolhido foi um platô no alto da Serra do Coimbra. A es- de audiência em toda a América Latina. As radionovelas foram cen- colha deve ter sido boa na época, mas as dificuldades enfrentadas Observatório da Imprensa – Texto adaptado de Ruy Castro, 2002 trais na história do rádio brasileiro. Alimentaram a imaginação dos ou- foram muitas: acesso, transporte, energia elétrica, aquisição dos equi- vintes, fundamentalmente mulheres, senhoras e senhoritas que acom- pamentos, construção dos abrigos, aquisição de um veículo, entre ou- VIIEncontro Nacional de Histórico da Mídia –Texto adaptado de panhavam fielmente o enredo, e projetaram uma série de rádio atores tras tantas. Plínio Marcos Volponi Leal. 2009 que, depois do sucesso no rádio, fariam sucesso na televisão. Através de um trabalho efetivo junto à populaçãoe a órgãos go- Wikipédia –Radionovelas vernamentais, o grupo levantou o numerário para a instalação da torre de retransmissão. Parcerias foram firmadas, uma delas com o A era da Televisão Acampamento Paiol Grande, que cedeu a energia elétrica para a torre. Fontes orais Mas, para levar essa energia seria necessária a construção da linha de A TV no Brasil teve sua pré-estreia em 03 de abril de 1950, ainda transmissão. Lembro-me do meu avô Durval construindo as fôrmas Luiz Vicente dos Santos de forma experimental. Em 10 de setembro começam as transmis- em madeira para receber o cimento e fabricar os postes, que iriam sões regulares da TV Tupi de São Paulo, a primeira emissora de tele- levar a energia elétrica para o alto do Coimbra. A Prefeitura também Claudemir de Oliveira visão do Brasil, fundada pelo empresário pioneiro, Francisco de Assis foi grande parceira, cedendo funcionários para a construção dos dois Chateaubriand Bandeira de Melo. abrigos feitos com tábuas e cobertos com telhas para a fixação dos Waldemar Teixeira de Almeida postes. Durval, eletricista e gerente da Cia. Sul Mineira de Eletricidade, Quando chegou a televisão em São Bento do Sapucaí, o primeiro hoje a Elektro, foi o responsável pela instalação das linhas de energia aparelho adquirido foi o da pintora Adelaide de Melo (da. Adelaidinha) e da operação da torre. e o segundo foi o do sr. Artur Gonçalves (sr. ). Tive o privi- légio de ter em minha casa a terceira TV da cidade, uma Pionner de O primeiro transporte que os amigos conseguiram adquirir foi uma válvulas e muitos botões de controle na parte da frente. camionete velha, mais tarde trocada por um jipe, também de segunda mão. Esse jipe Willys de cor verde e capota preta surrada, conhecido A transmissão vinha diretamente de São Paulo através de antenas em toda a cidade como o jipe da televisão, foi o transporte utilizado tipo escama de peixe ou retangulares; o som com muito “chiado” e a até os anos 80. A manutenção dos equipamentos era difícil, pois a imagem quase um fantasma de tantos chuviscos e interferências. cada tempestade as descargas elétricas atingiam as torres. E lá ia o sr. Durval para consertar, levando a “matula” com alimentação e água Lembro-me, que ao anoitecer o aparelho era ligado e por volta de e junto o cachorrinho “Dudu”, pequinês, que o seguia para todo lado. 19hs começavam a chegar pessoas, amigos da família, para assistir a

sumário 40 Esportes: das glórias do passado ao futuro promissor Emílio Fernandes Alan Soares Ferreira

Em 1962 a seleção brasileira de futebol alojava-se na cidade vizinha de Campos do Jordão, em preparação para disputa da Copa do Mundo do Chile. Comandados por Pelé e Garrincha, os atletas subiram o complexo rochoso durante sua estadia na região. A escalada deu sorte à seleção, pois naquele ano ela veio a reconquistar a taça “Jules Rimet”, e seu segundo título mundial.

Sobre a seleção brasileira na Pedra do Baú:

http://www.ovale.com.br/esportes/brasil-de-1962-subiu-a-pedra- do-bau-antes-de-faturar-copa-1.538355?localLinksEnabled=false

Berço das mais diversas práticas esportivas, a cidade é palco de grandes conquistas e carrega em seu passado, belos relatos que de- vem ser compartilhados, como o da charmosa e quente rivalidade fu- tebolística que dividia a população e do pioneirismo audacioso dos irmãos Cortez no famoso complexo “Pedra do Baú”, além dessas marcantes histórias o presente indica um futuro tão rico e memorável quanto aos feitos já alcançados.

Futebol e paixão

No mais antigo documento encontrado nesta pesquisa, um impor- tante jornal local semanal, Correio de São Bento, na edição de 13 de Agosto de 1916, relata a evolução do futebol local, revelando a antiga e histórica paixão sambentista por este esporte. Voo de parapente na Pedra do Baú /foto Geraldo Francisco da Silva, 2012 A notícia traz o embate entre as agremiações do São Bento Foot-

sumário 41 Ball Club e do Pery Foot-Ball Club, equipe da vizinha Paraisópolis, já próxima do fim, quando o árbitro marcou pênalti para o São Bento. na o quanto complicado pode ser a conquista de uma única via. Eliseu cidade mineira com grande potencial futebolístico na época. Na oca- Revoltado com a marcação, após muita confusão, um dos integrantes Frechou conta um fato marcante relacionado à escalada e a Pedra do sião os visitantes venceram o jogo pelo placar mínimo, 1 a 0, resultado do 09 de Julho colocou a bola debaixo do braço e não deixou a co- Baú, que foi a conquista da via norte, o primeiro feito amplamente di- enaltecido pelo jornal, pois o adversário era um dos melhores times brança ser feita, acabando com o jogo e o campeonato. vulgado na mídia em 1992. Após cinco dias de trabalho árduo, os qua- da região. O jornal registra também o encontro entre os clubes após a tro escaladores, Edson Struminski, Eliseu Frechou, José Luis Pauletto partida no hoje extinto Hotel dos Viajantes, que contou com a presen- Uma rivalidade que ia além dos gramados e envolvia a vida social e Antonio Carlos Meyer, enfim, alcançaram o objetivo tão desejado e ça ilustre do sr. Plínio Salgado, como mostra o trecho da reportagem: e familiar. Como lembram e ainda contam os mais antigos, os pais conquistaram uma das vias mais exigentes do conjunto rochoso. proibiam as filhas de namorar torcedores e jogadores do time rival. “[...] Esse match veio provar que os nossos rapazes teem feito gran- Torcedores de um dos dois clubes evitavam passar nos domínios do Atualmente, moram na cidade mais de quarenta escaladores, além de progresso no foot-ball, equivalendo o presente resultado a quase adversário nos períodos que antecediam os embates. São exemplos de tantos outros que frequentam anualmente o município em busca uma vitória, dado o valor do team paraisense, que é um dos melhores do que acontecia na cidade por conta desta charmosa, apaixonada e, de desafios e aventuras radicais. Hoje, São Bento do Sapucaí é uma do Sul de Minas. por vezes, tensa competição. das principais rotas de escalada do estado de São Paulo.O município conta com famosas vias para o esporte, do boulder ao big wall, com A’ noite o “S. Bento Foot-Ball Club” ofereceu no Hotel dos Viajantes, Mas, tão curioso quanto o início desta rivalidade foi o seu término. diversos graus de dificuldade, firmando-se como centro de atração um jantar aos foot-ballers de Paraisópolis, ao qual estiveram pre- Apesar de serem e atuarem como equipes adversárias, os confrontos para escaladores profissionais e amadores. sentes 70 a 80 pessoas. Nessa ocasião o Sr. Plínio Salgado saudou tinham apenas um vencedor, a equipe pioneira do município. Quando com enthusiasmo os rapazes paraisenses,[...]”(Correio de São Bento, 09 de Julho ganhou sua primeira partida do São Bento, acabaram-se 13/08/1916, acervo da Casa da Cultura Miguel Reale) os embates. Como o 09 de Julho era um time de “renegados” do São Bento, a graça do confronto era impedir que vencessem. Com sua pri- Além da escalada meira conquista, teve fim a romântica rivalidade local. Mas quando o assunto é esporte radical, São Bento do Sapucaí vai Romântica rivalidade O futebol não deixou de existir na cidade, times nasceram nos muito além da escalada. O município possibilita a prática dos mais di- bairros do município e até hoje o futebol é o esporte com mais adep- versos esportes radicais, como voo livre, trilhas, rally, rapel, inclusive Com o passar dos anos, em meados de 1930 nascia a maior rivali- tos na cidade. Alguns sambentistas, inclusive, investiram em seus ta- rapel nas cachoeiras, highline, entre outros. dade entre clubes do município. Até então, o único clube existente da lentos e se tornaram jogadores profissionais. cidade era o Sport Club São Bento, que disputava torneios regionais, O Highline, modalidade onde o Slackline é praticado em alturas vez ou outra com contratações de jogadores profissionais, com o ob- relevantes, vem sendo praticado, pasmem, no conjunto rochoso da jetivo de reforçar o time – o que gerava custos e responsabilidades Pedra do Baú. O corajoso filho da terra, Carlos Eduardo de Lima, o aos dirigentes. Os próprios jogadores do time contribuíam para esses Radicalismo pioneiro Cadu, como é chamado na cidade, nos conta que ele trouxe ao mu- investimentos, com doações em dinheiro e bens a serem rifados ou nicípio, em torno de quatro anos atrás, o slackline e posteriormente o leiloados, como bezerros e porcos. Uma prática generosa, mas que Na década de quarenta nascia uma das práticas mais procuradas highline, sendo o primeiro a fazer uma travessia, nesta fita de 2,5 cms teve um desdobramento imprevisto. no município hoje em dia, a escalada. Segundo matéria publicada no de largura, no complexo da Pedra do Baú. A travessia se deu no es- site da Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí (http://www.ca- paço entre as pedras do bauzinho e do baú. Cadu nos conta que ele e Jogadores que não tinham condições ou não queriam contribuir marasbs.sp.gov.br), tudo começou no dia 12 de Agosto de 1940. Com seus companheiros foram os primeiros a fazerem um vídeo técnico de eram “coincidentemente” escalados para o banco de reservas, revol- a expedição ao topo da famosa Pedra do Baú, liderada pelos irmãos uma travessia de higline realizada na Pedra do Baú, travessia da “via tando-se e até abandonando o time. Um dos contribuintes, jogador do Cortez, João Teixeira de Sousa e Antônio de Sousa Cortez, o comple- das Maritacas”, com 60 metros de comprimento e em torno de 230 segundo quadro - a “Equipe B”, do Sport –, doador de um jogo de ca- xo rochoso que atinge a altitude de 1950 metros e tem aproximada- metros de altura. O vídeo pode ser facilmente encontrado no Youtube misas, ao chegar atrasado para uma partida não foi escalado. Irritado, mente 400 metros de parede, foi vencido pela primeira vez. Dois anos - Via das Maritacas na Pedra do Baú – Highline. pegou suas coisas e foi embora. Diante da situação, num bate papo depois foram encravados degraus de ferro que facilitam o acesso ao informal com companheiros de trabalho, motoristas da cidade, surgiu alto da rocha. a ideia da criação de um segundo time na cidade, para competir com a equipe pioneira. Nascia a Associação Atlética 09 de Julho e com ela A escalada como esporte, na forma praticada hoje em dia, deu seus Diversidade e audácia a maior rivalidade entre clubes de futebol do município. primeiros passos no município em 1967, segundo o famoso escalador residente da cidade, Eliseu Frechou, com a conquista da via “Chaminé Estes relatos contados são apenas alguns fatos de esportistas que Para se ter ideia do tamanho da rivalidade entre os clubes, um fato dos Coroas”, na face leste da Pedra do Baú. Em 1974 conquistaram ou nasceram aqui ou vieram nos visitar. Muitos outros relatos estão à curioso narrado pelo senhor Antônio Benedito da Silva, atleta que jo- a via normal da Pedra, para em 1976 conquistarem então, a via do espera de bons ouvintes, como o caso de ciclistas e corredores que gou por ambas as equipes, o famoso “seu Piscuta”, conta que em um Bauzinho. de peito aberto enfrentaram e enfrentam as mais diversas dificuldades torneio regional disputado na cidade vizinha de Paraisópolis, as duas em busca de seus objetivos e ganham não só o Brasil, mas o mundo equipes sambentistas se enfrentavam e a partida estava empatada, E para quem não conhece o esporte e suas dificuldades, não imagi- afora, além de diversos títulos e muitas histórias pra contar. São sam-

sumário 42 bentistas como nós que levam e honram o nome do município nos enchendo de orgulho.

Por esses e tantos outros esportes, histórias e mais histórias, aven- turas e pioneirismos, São Bento é muito conhecida no cenário espor- tivo, cidade que possibilita a prática dos mais diversos esportes, dos mais calmos aos mais radicais, dos mais amadores aos profissionais, dos mais discretos aos mais notórios, contando sempre com corajo- sos e audaciosos filhos da terra, que encontram nas dificuldades de- graus para se motivarem em busca de seus objetivos.

Fontes escritas

Acervos documentais da Câmara Municipal e Casa da Cultura Miguel Reale

Fontes orais

Eliseu Rodrigues Frechou

Carlos Eduardo de Lima

Antonio Benedito da Silva

Sair para pedalar de manhã, no friozinho da serra, é bom demais /foto Geraldo Francisco da Silva, 2012

sumário 43 ral, modesto, mas ativo, que nas décadas de 1920 e 1930 emergiu a obra – e aqui “densa” toma o sentido de carregada, profunda e cheia figura intelectual e política nacional de Plínio Salgado. O mesmo am- de vigor e propriedade. biente que, pouco mais tarde, revelaria a figura literária, ainda incógni- São Bento do Sapucaí em ta, mas já extraordinária, de uma certa Benedicta Rezende. Segundo o advogado Dr. Genésio Cândido Pereira Junior, samben- tista que a conheceu bem de perto, Ditinha era uma Pereira, e como prosa e verso tal, “não podia fugir a raia”. Em São Bento do Sapucaí, lembra ele, “as Pereiras sempre foram todas mulheres muito inteligentes, fechadas, cultas e muito lúcidas”. Mas acima de qualquer coisa, “as Pereiras João Pedro Venâncio eram reconhecidas por serem tão danadas”. E seguramente Eugênia foi, sim, deveras danada.

... do pequeníssimo coração visível dum remoto Brasil esquecido ou seja de muitos pequenos brasis, sem nenhum vislumbre do amanhã melhor, entregues à própria sorte, o que é já um princípio de morte, nasceram estas páginas que intentam anunciar a presença deles na face da Terra. Eugênia Sereno, O Pássaro da Escuridão, 4ª.ed., 1978

Em 1922, o modernismo irrompe na cena brasileira com a Semana da Arte Moderna no Theatro Municipal de São Paulo. Novas expres- sões e manifestações artísticas mostram força, país afora. A pro- posta é romper com o tradicional e inovar. E coube à literatura – pro- sa e poesia – formar com as artes plásticas a “comissão de frente” do movimento modernista.

Mas, considerando justamente esse contexto nacional de avanço Almanach de S. Bento, organizado por Plinio Salgado/ fonte: Google e mudança cultural, quando o verso se liberta e o coloquialismo ga- nha vez, cabe perguntar: em uma cidadezinha do interior paulista, acanhada e escondida no verde escuro da Serra da Mantiqueira, A prosa, Eugênia Sereno Eugênia Sereno/ fonte: Google poderia a nova literatura prosperar por lá? Benedicta Rezende, familiarmente chamada de Ditinha Rezende, Surpreendentemente, a resposta é sim. Mesmo na sua timidez, tornou-se Eugênia Sereno, seu pseudônimo de escritora. Uma filha da um vilarejo rural pode ser solo fértil para as letras e fonte generosa terra que se impôs, por talento e persistência, no mundo das letras. Em 1940, ela, rompendo com a tradição dos casamentos endogâ- para escritores. Uma mulher de origem culturalmente modesta e crescida em cidade micos – realizados dentro do clã familiar ou entre clãs próximos – co- pequena e isolada, que se mostrou capaz de conceber uma obra no- nheceu e casou com o escritor e editor, Mario Graciotti, de São Paulo. Foi o caso de São Bento do Sapucaí. Não seria pela timidez ou tável. Publicado em 1965, O Pássaro da Escuridão de pronto teve re- Na capital, estimulada pelo marido e integrada a um círculo mais am- pela ruralidade de sua gente que o modernismo não haveria de me- conhecida sua relevância literária, sendo merecedor do prêmio Jabuti plo das letras e artes, pôde escrever seu livro e publicá-lo. Mario foi drar na terra sambentista. Não seriam a discrição e isolamento do de 1966 na categoria de “autor revelação na ficção nacional” daquele fundamental para a repercussão do livro de Eugênia, com suas rela- lugar que impediriam a busca insistente de informação e conheci- ano. ções e contatos com escritores, jornalistas e críticos de revistas e su- mento pelos meios de contato possíveis com os grandes centros do plementos literários. país – troca de cartas, compra de livros pelo correio, assinaturas de Benedicta Rezende nasceu em São Bento do Sapucaí, em 13 de se- jornais e revistas nacionais e estrangeiras. Foi deste ambiente cultu- tembro de 1913. Era uma mulher densa, tão densa quanto sua própria Eugênia Sereno fez um retrato único de sua terra em O Pássaro da

sumário 44 Escuridão. Ela amava sua São Bento e podia ver o potencial que ali O que é tudo e à grande Não prestei mais atenção ao resto do poema. Simplesmente parei a existia. Mesmo não vivendo mais na cidade, foi nela que se inspirou e aula para exclamar “Esta cidadezinha é São Bento!”. sobre ela que escreveu - sua amada Mororó, “pequeníssimo coração E tudo aqui é em ponto mais pequeno... visível dum remoto Brasil esquecido ou seja de muitos remotos brasis A cidadezinha do interior da qual foi falada na África, a cidadezinha sem nenhum vislumbre do amanhã melhor, entregues à própria sorte”. Eu desejava ir-lhe fazer uma visita de Ribeiro Couto mencionada no poema de Jorge Barbosa, indiscuti- velmente, era São Bento! Para a literatura de Ribeiro Couto, São Bento Os sambentistas se chocaram um pouco com o livro – talvez pela mas isso é coisa impossível. do Sapucaí foi, de fato, uma descoberta. lisura com qual aborda o leitor. As opiniões se dividiram, para alguns, foi um retrato muito sombrio e duro da cidade, para outros, apenas Eu gostava de ver de perto as coisas Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto, escritor modernista, nascido uma realidade pouco conhecida, mas indiscutivelmente rica e dinâmi- em Santos em 1898, descobriu São Bento do Sapucaí, quando veio ca. Eugênia, afinal, foi muito franca no que escreveu, não confundin- espantosas que todos me contam para a cidade no cargo de promotor público, na década de 1920. Na do seu amor com complacência pelos vícios e costumes do povo da mesma função, passou ainda por cidades vizinhas do Vale do Paraíba terra. de Você, e Sul de Minas. Mas foi a pequena São Bento que o cativou, com o seu jeito simples e rústico de viver, que ele transpôs para alguns de Eugênia Sereno morreu em 3 de maio de 1981. Sua façanha derra- de assistir aos sambas nos morros, seus melhores contos e poemas. Como este, sobre os rituais familia- deira foi manter-se viva até hoje. Não por acaso o Prêmio Cultural do res de fazer, servir e tomar o velho e bom café. IEV, atribuído anualmente pelo Instituto de Estudos Vale Paraibanos, de esta cidadezinha do interior atende pelo nome Eugênia Sereno. Ela segue viva como testemunha e Café guardiã de memórias que não merecem morrer. que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita ternura. Sabor de antigamente, sabor de família, [...] Café que foi torrado em casa, Os versos, Ribeiro Couto Que foi feito no fogão de casa, com lenha do mato de casa, E, então, em atenção aos versos, venho agora contar meu próprio causo. Café para as visitas de cerimônia,

Eu já me encontrava empenhado na pesquisa para a produção des- Café para as visitas de intimidade, te texto, quando em um dia, numa aula na Faculdade de Letras, da Universidade de Taubaté, minha professora discorria sobre literatura Café para os desconhecidos, para os que pedem pousada, africana. A certa altura, ela menciona Jorge Barbosa, escritor nascido em Cabo Verde, modernista. para toda a gente. [...]

A sala inicia, assim, a leitura de um poema do tal escritor. O poe- Há que se dizer, porém, que Ribeiro Couto se apaixonou foi mesmo ma chamava-se Você: Brasil, e nele Jorge Barbosa exaltava o Brasil, por uma sambentista, Ana Jacinta Pereira. Mais uma Pereira para mar- fazia elogiosa menção de suas belezas e declarava sua vontade de car esta história, mais uma Pereira danada, que conquistou o escritor conhecê-lo. e o fez escrever sobre sua cidade para que fosse conhecida no outro lado do Atlântico, na Europa, onde o casal passou a viver depois de A primeira vista era apenas um poema africano, aliás, nem mesmo Ribeiro Couto ingressar na diplomacia brasileira. Sem esquecer que nutria esperanças de ouvir no curso de Letras algo a respeito da litera- Ana Jacinta Pereira, esposa de Ribeiro Couto, era tia da outra Pereira tura de uma pequena cidadezinha do interior, chamada São Bento do danada, Ditinha Rezende, nossa Eugênia Sereno. Para o bem das le- Sapucaí. Esta impressão durou apenas até o momento em que lemos tras, as histórias pessoais se cruzaram. determinado trecho: O fato é que o potencial de São Bento do Sapucaí não estava ape- [...] nas naqueles que nela nasciam, mas também naqueles que por este pedacinho de terra passavam, se apaixonavam e não mais o esque- Eu gosto, de Você, Brasil. ciam. Aconteceu com Ribeiro Couto. Enquanto caminhava com Ana Ribeiro Couto porVicento do Rego Monteiro/ Pereira pela bela Champs Elysées, no coração de Paris, criava um Você é parecido com a minha terra. fonte: Google dos seus mais belos contos. E não foi sobre o Arco do Triunfo ou as

sumário 45 elegantes lojas da avenida, mas sobre o largo da Matriz de São Bento Fontes escritas do Sapucaí, com seus casarões coloniais e figuras inesquecíveis, Nhá Rosa, o capitão Candinho, o agente do Correio, o juiz e... a amada Eugênia Sereno. O Pássaro da Escuridão. São Paulo: Hucitec, 4ªed., Ana, sua “Menina”. 1978.

Quem disse que a arte não precisa de algumas doses de nostalgia Rita Elisa Sêda, Sônia Gabriel,Eugênia Sereno: a menina dos va- e imaginação? galumes. São José dos Campos: ComDeus,2010.

Alberto Venâncio Filho, Ribeiro Couto, Melhores Contos. São Paulo: Global, 2002. Outras letras José Almino, Ribeiro Couto, Melhores Poemas. São Paulo: Global, De alguma forma, há em São Bento do Sapucaí um potencial tími- 2003. do, contudo, pujante para a literatura. Houve e há mais literatos nesta cidadezinha do que seus próprios moradores conhecem. Fontes orais Dentre os nascidos em São Bento e os que sobre a cidade es- creveram e escrevem, temos Eugênia Sereno, Plínio Salgado, Júlia Dr. Genésio Cândido Pereira Junior Marcondes Longo, Isaura Aparecida de Lima Silva, Fátima Machado, Miguel Reale, Dr. Genésio Junior, e ainda outros verdadeiramente re- centes, como Tião Tino e Tarcísio Bregalda.

Nesta cidade são tantas as curiosidades e os quês e porquês e os casos e acasos intrigantes. Devo dizer que eu mesmo também com- partilho do sonho danado de ser escritor. Afinal, por acaso, sou nada além que um neto de mais uma Pereira, Dona Aurora Pereira da Rosa.

sumário 46 Política

Sede antiga da Prefeitura Municipal de São Bento do Sapucaí, atualmente ocupada pela Câmara Municipal; acervo José Sérgio Carvalho sumário 47 São Bento do Sapucaí 1932 Marcos Antônio da Silva (Marcos Folheiro)

Uma onda de civismo avança então de forma avassaladora entre os paulistas em torno dessa causa, mobilizando sociedade e políticos, dando força ao chamado “Movimento Constitucionalista”.

Marcos Antonio da Silva, 2015.

A vitória na derrota

O Brasil passava por uma séria crise política causada pelo agrava- mento da situação econômica e social, quando em outubro de 1930, Getúlio Vargas promoveu a deposição do então Presidente Washington Luís e assumiu o governo na chamada Revolução de 30. Em 1931, o café produzido no Brasil aumentou em muito a sua produção, o que provocou a queda do preço no mercado internacional. O desemprego era muito grande e o país mergulhava numa grave crise social. Getúlio Vargas sofria o revés político dessa crise, embora tentasse remen- dá-la, procurando uma aproximação com os produtores de café de São Paulo, comprando a produção excedente para ser incinerada ou jogada ao mar. Havia uma forte pressão paulista pela indicação de um interventor local no estado, mas a inabilidade política de Getúlio não cede às pressões e ele nomeia um dirigente de sua confiança, o per- nambucano João Alberto Lins de Barros, não visto com bons olhos pelos políticos e a elite produtora de café de São Paulo.

Museu da Revolução de 1932, integrado à Pousada do Quilombo / Fotos Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 48 O contexto São Paulo contava com o apoio de outros estados, para que seu mo- pontos dos altos da Mantiqueira. vimento fosse bem sucedido. Em mais uma tentativa de resolver a crise entre São Paulo e o seu Em contato com o padre Pedro do Valle Monteiro, pároco de São governo, Getúlio nomeia como novo interventor o paulista Pedro de Sem ter a confirmação da adesão desses outros estados, mas acre- Bento do Sapucaí, e o prefeito D’Alessandro, Dom Octávio Toledo, homem que gozava de muito respeito por parte dos políticos ditando no sucesso da causa da “revolução” e imaginando ser ela um que conhecia o padre muito bem, pois era natural de sua diocese, co- do estado. Mas, ao mesmo tempo, Getúlio resolve intervir sobre a in- anseio nacional, São Paulo, precipitou os acontecimentos e partiu pa- locou-os a par da situação e da promessa de não confronto armado dústria paulista na política tarifária e preços, enfraquecendo o estado ra a luta, unindo a sociedade paulista em torno da Força Pública. por parte dos mineiros contra os paulistas. e transferindo a hegemonia política para o Rio Grande do Sul. De seu lado, o pároco de São Bento do Sapucaí reuniu na igreja Isso bastou para que a crise política entre São Paulo e o governo fe- Nas trincheiras Matriz o povo fiel e os soldados que aqui estavam para defesa das deral se agravasse, provocando a união entre os opositores e os gru- fronteiras paulistas. Deu-lhes conhecimento da proeza do bispo de pos econômicos, apoiados pelo interventor Pedro de Toledo. Foi esse São Paulo se preparava para a luta enquanto Getúlio intensificava Pouso Alegre no tratado extra oficial de não confronto por parte dos contexto que levou à formação em 9 de julho de 1932 de uma Junta sua propaganda. Acusou os paulistas de pretenderem a desunião do soldados mineiros, exigindo a mesma garantia por parte dos paulis- Revolucionária Paulista. país e a quebra da federação, conseguindo desestimular os interven- tas. Daí a ausência de confrontos sangrentos e as poucas informa- tores de outros estados a apoiarem São Paulo. ções que se tem sobre os embates nesta região. Uma onda de civismo avança então de forma avassaladora entre os paulistas em torno dessa causa, mobilizando sociedade e políti- São Paulo então procurou guarnecer suas divisas concentrando cos, dando força ao chamado “Movimento Constitucionalista”. Este suas tropas no Vale do Paraíba, no sul e nas divisas com o Paraná. Temores vinha crescendo desde maio, com comícios e confrontos de rua, onde Assim tiveram início os confrontos de “trincheiras” nos limites de morreram quatro jovens paulistas. Getúlio manda destituir Pedro de Minas Gerais e Serra da Mantiqueira. Mesmo assim era grande a apreensão dos moradores de São Bento Toledo, o que só aumenta a intensidade da reação paulista. do Sapucaí, temerosos de um possível confronto entre as forças mi- Assim, São Paulo concentrava o grosso de suas forças no Vale do neiras já alinhadas com o governo de Getúlio Vargas e os soldados O movimento constitucionalista tinha como escopo devolver não só Paraíba, e enviava forças reduzidas para as divisas do Sul de Minas, paulistas destacados e os voluntários arregimentados. Estes começa- a São Paulo, mas a toda nação, o “regime constitucional”. E é claro contando ainda com o apoio dos mineiros, o que não ocorreu. Embora ram a deixar a cidade e procurar abrigo na zona rural e até em cidades fosse muito forte a vontade do povo mineiro em se manter ao lado dos do Vale do Paraíba. Muitos nem sabiam o que estava acontecendo, paulistas, alguns equívocos diplomáticos levaram o comando militar mas temiam por suas filhas solteiras, pois comentava-se que, em ca- mineiro a concentrar suas forças nas divisas com São Paulo, iludido so de invasão, elas seriam abusadas pelos invasores. que foi pela propaganda getulista de que São Paulo subjugaria Minas Gerais. Algumas informações não confirmadas dão conta de que havia dis- paros de arma de fogo dos dois lados apenas para confirmar suas posições e que esses disparos eram de balas de festim, não causan- Em São Bento do danos à vida das pessoas. Caso alguém precisasse passar pelas linhas de fogo, tanto do lado paulista quanto do lado mineiro era ne- O Segundo Comando Militar de São Paulo, chefiado pelo Gal. cessário apresentar um “salvo conduto”, emitido pelo comando local Euclides Figueiredo, destacou um pequeno pelotão de homens lidera- da tropa. dos pelo capitão Olegário Marcondes, para guarnecer as divisas entre São Bento do Sapucaí e Paraisópolis no Sul de Minas, destacamen- Ninguém podia sair da cidade ou entrar sem esse passe, pois a to que se juntou aos homens da Força Pública local, de apenas dois ordem era para atirar em quem tentasse ultrapassar a linha de fo- praças. Passaram então a recrutar voluntários para empunhar armas e go depois das dezoito horas. Não foi o que pensou o soldado José braçais para abrir as valas das trincheiras que protegeriam a cidade de Lourenço que tinha uma namorada em Paraisópolis e queria vê-la. uma possível invasão pelas forças do Quarto Batalhão de Engenharia Acreditando que não seria molestado, já que não havia confrontos di- de Itajubá. retos, resolveu desafiar o perigo. Dada ordem de parar e se identificar esse não se importou com a advertência e continuou, tendo sido alve- Destaca-se aqui a diplomacia do bispo de Pouso Alegre, Dom jado por um disparo, ferido mortalmente, vindo a falecer no bairro do Octávio Chagas de Miranda, que confabulava com o comando militar Lambari, hoje pertencente ao município de Gonçalves-MG. mineiro no sentido de se evitar um derramamento de sangue entre os irmãos paulistas e mineiros. Conseguiu a promessa de que as tropas Aqui mais uma vez entra a figura do padre Pedro do Valle Monteiro. Peças do acervo do Museu da Revolução de 1932, integrado à Pousada somente se concentrariam nas divisas para protegê-las de uma possí- Sabendo da morte do soldado paulista, tomando de uma bandeira do Quilombo; Fotos Geraldo F. da Silva, 2015 vel invasão paulista, a exemplo do que já estava acordado em outros branca, parte para as linhas de batalha e convence os mineiros de

sumário 49 deixá-lo dar sepultura digna de um cristão ao desafortunado comba- Desativada a defesa e embarcados os soldados de volta a tente. Com a ajuda de dois voluntários traz o corpo enrijecido de José Pindamonhangaba, o comandante paulista resolveu ficar na cidade Lourenço, condecorado pós-morte como Sargento José Lourenço. para visitar uns parentes moradores do alto do Serrano. Com a cidade já desguarnecida, as tropas mineiras tomaram-na de assalto e pren- deram o capitão Olegário Marcondes. Mais tarde soube-se que fora Desmobilização mandado preso para a Ilha de Fernando de Noronha. Depois de liber- tado seguiu na vida militar, alcançando o posto de general. Faleceu Este sítio armado durou três meses. Em meados de outubro de 1932 em 1953, tendo sido enterrado em Pindamonhangaba sua terra natal. chega a notícia de que a Revolução havia terminado e que os solda- dos paulistas deveriam retornar ao quartel em Pindamonhangaba. Foi Invadindo a cidade, as tropas mineiras, que tinham em sua compo- desfeito o acampamento instalado no prédio do Grupo Escolar Cel. sição também soldados gaúchos, alojaram-se no Grupo Escolar Cel. Ribeiro da Luz e dispensados os voluntários entre os quais se encon- Ribeiro da Luz, ocupando a antiga posição dos paulistas. Essa ocu- travam Paulino Piazzaroli, Joaquim Garcia, Benedito Tucum, Osvaldo pação pelas forças federais foi pacífica, enquanto os soldados volun- Mello (Vardo Melo), os irmãos Joaquim Custódio dos Santos e João tários se evadiam para o mato com medo de serem presos também. Custódio dos Santos, Luiz Dominguinhos, Júlio Ribeiro da Luz (Julio Anacleto), Castorino Gomes Ribeiro, Pedro Antonio da Silva (Pedro O que se destaca da Revolução de 1932 nesta cidade é o fato de Folheiro) e Agenor de Lima (do Baú). Foram aconselhados pelo capi- que ela valeu muito mais pelo espírito cooperativo e de respeito mútuo tão Olegário Marcondes a deixar a cidade e a dar fim nas fardas para entre mineiros e paulistas. E graças à intervenção do bispo de Pouso não correrem o risco de alguma escaramuça por parte dos soldados Alegre, Dom Octávio Chagas de Miranda e a ação do padre Pedro do mineiros. Vale Monteiro que com a devida ação diplomática evitaram o pior nes- ta região.

Fontes escritas

As Constituintes brasileiras – edição especial de Retratos do Brasil, Política Editora de Livros, Jornais e Revistas Ltda,1986

Jornal Vale Paraibano, edição especial de 23 de maio de 1982

Minas e a Revolução Paulista, Octávio Miranda Gouveia, 1991.

Magnos Borges, Terras Altas do Sapucaí.

Fontes orais

José Antonio de Almeida

Expedito Antonio da Silva

Maria Cândida de Jesus

Agenor de Lima

Agenor de Lima, ex-combatente sambentista de 1932 em foto de 2011; acervo familiar - Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015 sumário 50 Entre mineiros e paulistas: aspectos jurídicos da administração do território Diana Costa Poepcke.

Enfim, as divisas sambentistas foram alvo de polêmicas e disputas ao longo da história, tanto para os mineiros, quanto para os paulistas. Entender os processos das divisões territoriais e das emancipações dessa região é apreender as “maneiras de governar”...

Diana Poepcke, 2015

A formação de uma cidade se dá, principalmente, a partir de di- visões territoriais e jurídicas. As mudanças dos modelos governa- mentais, segundo o filósofo francês Michel Foucault, influenciaram diretamente nessas estruturas, na racionalização do poder e na pas- sagem de um Estado administrativo – pautado na territorialidade de fronteiras e em uma sociedade de regras e disciplinas – para um Estado governamental – que tem por objetivo final a população e utiliza o saber econômico como ferramenta de controle social. Com a independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, estabeleceu- se o Império com a Constituição de 1824. Dentre outras determi- nações, traçavam-se os parâmetros jurídico-administrativos do ter- ritório. O território nacional seria delimitado no âmbito administrativo pelas freguesias, vilas e cidades; já no âmbito jurídico pelos termos e comarcas.

Um município e quatro distritos Peças do acervo do Museu da Revolução de 1932, integrado à Pousada do Quilombo / Fotos Geraldo F. da Silva, 2015 São Bento do Sapucaí está localizada na divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. A sinuosidade de fronteiras entre os es- tados causa polêmica e não é de agora. Em 1867, as divisas “tortu-

sumário 51 osas” da Villa de São Bento do Sapucahy-Mirim – que implicavam di- retamente nos limites entre as Províncias de São Paulo e Minas Gerais – eram pauta de discussões no Congresso Legislativo da Província de São Paulo pela dificuldade de acesso, visto que “tem de atravessar terrenos de S. Paulo, entrar em terrenos mineiros, depois sahir em ter- ras de S. Bento para chegar à Villa de S. Bento”.Situação hoje familiar aos moradores, mas ainda estranha aos visitantes.

Em 1832, já com a edificação de uma capela na localidade, instau- rou-se a Freguesia de São Bento do Sapucahy-Mirim. As freguesias são divisões territoriais menores que implicam na presença de um pá- roco e estão submetidas a uma vila ou cidade – partes de uma unidade municipal. São Bento pertencia ao município de Pindamonhangaba. Com a Lei Provincial nº23 de 16 de abril de 1858, foi elevada à cate- goria de vila, unidade político-administrativa. A vila por sua vez está vinculada à existência de uma Câmara de Vereadores e uma cadeia. Com as Câmaras eleitas, os cidadãos podiam aprovar leis e cobrar impostos. O título de cidade seria atribuído 38 anos depois, em1876.

As designações da divisão jurídica de um território são os termos e as comarcas. O termo delimita o espaço geográfico sob jurisdição da vila, nele incluídas suas freguesias. O Termo da Villa São Bento do Sapucahy-Mirim é definido, como referido acima, em 1858. Já em 1890, com o Decreto estadual nº 64 de 30 de junho, São Bento ganha a condição de Comarca, que estabelece sua autonomia judiciária.

São Bento, como se vê, possuía um vasto território vinculado à sua Comarca. Na formação administrativa do Estado, referente ao ano de 1933, o município abarcava quatro distritos: São Bento do Sapucaí (distrito-sede), Santo Antônio do Pinhal, Candelária e Campos do Jordão. Os três últimos eram povoados antigos, já empenhados na conquista de sua emancipação política e administrativa.

De Candelária a Luminosa

Em 1869, a Capela de Nossa Senhora de Candelária foi a primei- ra da localidade a ser elevada à categoria de freguesia, no município Peças do acervo do Museu da Revolução de 1932, integrado à Pousada do Quilombo / Fotos Geraldo F. da Silva, 2015 de São Bento do Sapucaí. Por algum tempo, ela foi a única freguesia de São Bento. Mas, aos poucos, a Freguesia de Candelária foi con- quistando autonomia administrativa e política. Após a instalação da vembro, pela Lei Estadual 2.694. Tal documento descreve a nova divisa instituindo-o como município. Já a região de Candelária mantém-se Comarca de São Bento, Candelária adquiriu o título de Distrito de Paz entre os estados e os novos territórios adquiridos. O artigo 6º informa como distrito de Brazópolis, mas renomeado como Luminosa. em 1895, antes mesmo de Campos do Jordão. a incorporação dos povoados compreendidos entre o Morro da Divisa e o Morro da Jangada ao município de São Bento. Já na Assembleia O distrito ficou vinculado ao município sambentista até 1936. Em Legislativa do Estado de Minas Gerais, o mesmo acordo foi aprovado De Villa Jaguaribe a Campos do Jordão 28 de setembro desse ano foi feito um convênio entre Minas Gerais e pela Lei 115 do mesmo 3 de novembro de 1936, anexando o distrito São Paulo para a retificação de suas divisas na Mantiqueira. Foi apro- de Candelária ao município de Brazópolis. Também é a mesma que O clima do povoado da Villa Jaguaribe e os seus fins medicinais vado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 3 de no- emancipa o distrito de Sapucaí-Mirim – ainda parte de Paraisópolis – são conhecidos desde outrora. No período imperial, a localidade era

sumário 52 um ponto importante de tratamento de doenças pulmonares e ou- Pinhal passou para a jurisdição da Estância Municipal de Campos do Fontes escritas tras “moléstias” segundo relatos do Livro do Tombo nº2, do Arquivo Jordão. Mas no decreto-lei nº 14.334, que fixa a divisão administrativa Eclesiástico da Paróquia de São Bento do Sapucaí, de 1889. O fluxo e judiciária do Estado para o ano de 1944, o distrito volta a integrar o de pessoas na Villa Jaguaribe era intenso, o que atraía interesses po- município de São Bento. líticos – como registrou Theodoro Sampaio na sua “Viagem à Serra da ABREU, Diores Santos. Arrolamento das fontes históricas do Mantiqueira” de 1893. O anseio de emancipação do distrito era patente, assim como a Município de São Bento do Sapucaí, Estado de São Paulo. Revista de participação popular. Em 1958, é aprovada uma resolução para a rea- História da USP, nº 45, 1º semestre de 1961. Disponível em: radores ao Congresso Legislativo alegando que: a Villa Jaguaribe pos- nicípio. A partir de então, uma sucessão de recursos e leis foi imposta suía uma renda significativa, sofria com um descaso por parte da mu- até finalmente, com a Lei nº 5.285de 18 de fevereiro de 1959 – que CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pe- nicipalidade de São Bento, recebia muitos visitantes para tratamento dispõe sobre o quadro territorial, administrativo e judiciário do Estado los seus temas, conceitos e autores. Trad. Ingrid Muller Xavier. Belo e contava com um número expressivo de eleitores que encontravam para o quinquênio 1959 -1963 – fica criado na nota 107, o município Horizonte: Autêntica Editora, 2009. dificuldades para votar em virtude da distância da sede. Após averi- de Santo Antônio do Pinhal. São Bento do Sapucaí, na tentativa de guações do Congresso junto à Câmara de São Bento, foi promulgada anular tal emancipação, apresentou alguns recursos junto ao Tribunal CHAVES, Edneila Rodrigues. As Câmaras Municipais no Império nesse ano a Lei nº 1.471, criando, no povoado de Villa Jaguaribe, o de Justiça de São Paulo, depois ao Supremo Tribunal Federal e até do Brasil. In: Hierarquias sociais da Câmara Municipal em Rio Pardo Distrito de Paz de Campos do Jordão. mesmo ao Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, com o advo- (Minas Gerais, 1833-1872). Tese de doutorado. Universidade Federal gado Dr. Genésio Cândido Pereira Filho. Nas disposições do quadro Fluminense. Niterói, 2012, p.25. Por ser uma estância de tratamento para doentes, o governo do administrativo, judiciário e territorial do Estado, tanto de 1963 quanto estado implantou em Campos do Jordão, com a Lei nº 2.140 de 1926, de 1964, Santo Antônio do Pinhal consta como município autônomo, FILHO, Pedro Paulo. História de Campos do Jordão. Aparecida: uma Prefeitura Sanitária. Tal instituição fazia parte das circunscrições mantendo, entretanto, sua vinculação judiciária à Comarca de São Editora Santuário: 1986. administrativas especiais para a manutenção de estâncias hidromine- Bento. rais e climáticas do estado, como Águas de Lindóia, Guarujá e Águas INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. São Bento da Prata. O Prefeito era nomeado pelo Estado. Entretanto, nos docu- Enfim, as divisas sambentistas foram alvo de polêmicas e dis- do Sapucaí. Disponível em Acessado mentos da divisão administrativa referente ao ano de 1933, Campos putas ao longo da história, tanto para os mineiros, quanto para os em 21/10/2014, às 15:27. do Jordão figura no município de São Bento. O decreto nº 6.501 de paulistas. Entender os processos das divisões territoriais e das eman- junho de 1934 “cria na divisão administrativa do Estado, os municípios cipações dessa região é apreender as “maneiras de governar” que SILVA, Zildo Aparecido; SILVA, José Antônio Marcondes. Santo destinados a estâncias de tratamento ou de repouso”. formam a governamentabilidade de Foucault. Percebe-se, entre as Antônio do Pinhal, de Sertão a Município 1785 a 2009. SuperGrafPaper: consequências, o desaparecimento do modelo familiar de governo e Santo Antonio do Pinhal, 2009. A instalação da Comarca de Campos do Jordão se deu em o surgimento da população como o objetivo de governo, a governa- 1944 pelo decreto-le inº14.334, desvinculando-a por completo de São mentalização do Estado, e sobretudo, a ampliação da cobertura do SAMPAIO, Theodoro, Viagem à Serra da Mantiqueira. São Paulo: Bento. Constava neste decreto o quadro da divisão administrativa e poder do Estado. Brasiliense, 1978. judiciária do Estado, na qual Campos do Jordão aparece como co- marca e cidade-sede. Era inevitável que São Bento, com sua localização emblemática, Acervos documentais da Assembleia Legislativa do Estado de São viesse a se envolver nessas tramas. Desde 1867 questionava-se sobre Paulo os “terrenos da [Província] de Minas ficarão [encravada] na Província de S. Paulo”. Ou seria o contrário? Diário Oficial do Estado de São Paulo

Santo Antônio do Pinhal Acervo documental da Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí

Mais que as anteriores, as conquistas de independência política e Acervo documental da Paróquia de São Bento do Sapucaí administrativa de Santo Antônio do Pinhal são marcadas por uma anti- ga e forte participação popular. Em 1859, tem-se um abaixo-assinado enviado à Assembleia do Estado e um pedido de elevação da Capella de Santo Antônio do Pinhal a Freguesia. Com a Lei Provincial de nº2 de 1861, o pedido foi atendido, mas revogado em1876. Já em 1880, com a Lei Provincial n° 13, fica definitivamente instaurada a Freguesia de Santo Antônio do Pinhal.

No ano de 1935, já como distrito policial, Santo Antônio do

sumário 53 Educação

Formatura no Ginásio, 1967, classe mista; acervo José Sérgio Carvalho sumário 54 No marco de seu centenário, encanta-me dizer que conheci a esco- O nosso querido G. E. “Cel. Ribeiro da Luz” está la Coronel Ribeiro da Luz nos idos de fevereiro de 1986. Chegava eu, em grande movimento com suas instituições, então com seis anos, para o primeiro dia de aula. O Grupo e o mesmo acontece com seu Orfeão. O Orfeão está constituído de 35 meninas e 25 Tudo era grandioso, o edifício com enormes janelas, o monumental meninos que alegram nossas festas escolares portão artístico de ferro, que deveria ser ultrapassado para acessar o Lidiane da Silva Cesar Gonçalves cantando com todo amor e carinho nossas interior do prédio. A escada de cinco degraus que me desafiava a se- canções brasileiras e hinos patrióticos. guir o longo corredor que se apresentava a minha frente e me permiti- Eufrásio José de Carvalho, ria alcançar o grande átrio. Ingressara num castelo! (Jornal A voz infantil – Órgão do Grupo Escolar Candu Marques, Lu Mendes (colaboradores) Coronel Ribeiro da Luz – São Bento do Sapucaí. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir o som metálico de um sino. Ano VII – nº 14 – Agosto e Setembro de 1965) De repente minha imaginação de criança pequena dizia-me que já não estava no castelo, mas em uma igreja. Ainda posso ouvir a voz do

O Grupo Escolar, anos de 1930/ 1940; acervo Casa da Cultura Miguel Reale / Reprod. Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 55 senhor Roberto (Betão, como era conhecido), que cuidava do sino e educação de nossa cidade. Paulo, tal preocupação resultou na criação de cerca de 170 escolas no das filas de alunos, mantendo a ordem e algum silêncio para receber estado em quatro décadas. os professores nesse lugar que inicialmente me pareceu um castelo, depois um templo, hoje a escola de sempre: séria, precisa, formosa. O Grupo Escolar de São Bento do Sapucaí nasceu dessa propos- A escola e a cidade ta. Escola primária no seu início, mas que, acabou por tornar-se um centro de educação e instrução para seus estudantes e todos os ha- Muitas gerações de sambentistas e também de cidades vizinhas, ali bitantes da cidade. A partir de 11 de agosto de 1915, passou a cha- Origens aprenderam as primeiras letras. “Nomes ilustres passaram por aque- mar-se Grupo Escolar Coronel Ribeiro da Luz. Seu prédio foi tomba- les bancos escolares!” diz Ildefonso Mendes Neto, lembrando com do, dado o alto valor histórico na evolução educacional do Estado de A escola Coronel Ribeiro da Luz nasceu por decreto do governo sorriso saudoso de sua época de menino, das professoras que o en- São Paulo, juntamente com outras 122 escolas públicas da capital estadual de 1911 e pelo empenho do prefeito Francisco Olivetti (co- cantavam e das brincadeiras de moleque ao pé das três magníficas e do interior, pelo Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, nhecido por sinhô Lima) em iniciar o saneamento da parte baixa da palmeiras que compunham a fachada e o conjunto arquitetônico do Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAT), conforme cidade, onde seria construída. São Bento ganharia a escola euma da prédio. Também centenárias, resistiram impavidamente às intempéries publicação no Diário Oficial SP do dia 07 de agosto de 2002, páginas s suas principais vias públicas, chamada de “Rua Nova” do tempo. Testemunhas mudas das incontáveis gerações de educan- 1 e 52. Fez, sem dúvida, o orgulho de seus filhos ilustres, como Plínio dos e educadores que por ali passaram. Sobreviveram até ao acidente Salgado, Abade Pedrosa, Desembargador Affonso José de Carvalho, Inaugurada em 1915, a escola foi denominada “Grupo Escolar com um pequeno “teco-teco” que voava tão baixo sobre a cidade que Eugênia Sereno, entre tantos outros que souberam elevar o nome de Coronel Ribeiro da Luz”, homenagem a um político importante da ci- acabou caindo na rua em frente ao prédio. sua terra natal. dade, mineiro de nascimento, que ostentava título de patente militar ainda outorgado, na época, pelo governo aos chefes políticos locais. O “Coronel”, como segue sendo carinhosamente chamada a esco- Segundo os registros e as memórias dos entrevistados, no Grupo es- la, foi e continua sendo palco de muita festa e diversão, consolidando colar existiam classes masculinas e femininas separadas por um gran- a fama dos sambentistas de “povo festeiro”. Uma das lembranças 100 anos depois de portal no meio do corredor da escola. E houve quem se lembrasse mais vivas no espírito daqueles que passaram pela escola em épocas da época de uma cerca dividindo o pátio, para manter separados me- diferentes, diz respeito às comemorações e festas. “Chegar à quar- O ensino em São Bento do Sapucaí se difunde cada vez mais, gra- ninos e meninas. ta série sempre foi motivo de celebração.Como acontece nos finais ças aos seus dirigentes que tudo vêm fazendo para educar com alegria dos cursos universitários, no final do ano, havia baile com padrinhos a infância de sua terra. Hoje o município conta com 7escolas rurais e Ao longo de seus 100 anos, a construção manteve-se sólida, pas- e lindos vestidos confeccionados especialmente para a ocasião”.As duas escolas urbanas, sendo uma creche-escola recém- inaugurada, sando por todo esse tempo sem qualquer abalo.Esse edifício majes- professoras Janice, Zezé e Alicinha, reunidas em uma sala em meio a atendendo a 180 alunos de 0 a 5 anos de idade. Em fevereiro de 2015 toso nunca sofreu, por exemplo, com as enchentes do rio Sapucaí, muita recordação e alegria nos fizeram lembrar o quanto esperávamos também foi inaugurada a Escola de Ensino Fundamental Fundação aquelas que inundavam a cidade antes da retificação do rio. Contudo, pela data anunciada desde os primeiros anos em que cursávamos o Paiol Grande com período integral. não deixou de buscar melhorias. Nas últimas décadas passou por su- Coronel.. cessivas reformas. Destacam-se a de 1980 e a de 2011, quando foram Tombada como patrimônio histórico, mantendo seu diferencial em construídas mais duas salas de aula em prédio anexo de dois andares, As famílias sambentistas de maiores recursos enviavam suas fi- relação ao seu entorno, a EMEF Coronel Ribeiro da Luz, é um esta- acompanhando a estrutura do prédio original. lhas para fazer o curso normal e adquirir o diploma de normalista em belecimento de ensino que se impôs e soube cultivar o respeito e o Taubaté ou São José dos Campos. Uma vez formadas, retornavam reconhecimento dos que ali passaram e dos que ali estão.Isto, princi- Nestas reformas foram incorporadas ainda outras construções, co- para lecionar no Grupo Escolar ou nas escolas rurais do município, o palmente, pelo ensino que a escola ministra e por seu corpo docente mo uma quadra coberta para a prática de esportes, além de classes que possibilitou a muitas crianças o acesso ao ensino primário que, de que, tanto no prédio sede como nas escolas rurais a ela vinculadas, adicionais para atender a crescente demanda por vagas. Tudo, tanto outro modo, talvez lhes fosse inviável. dedica-se a que os nossos jovens alcancem uma base sólida, capaz quanto possível, sem alterar o seu belo estilo arquitetônico neoclássi- de garantir sua formação cidadã e o engrandecimento cultural de São co, ponto de referência no ensino deste município e cartão postal da Bento do Sapucaí e do Brasil. cidade. Escolas para a República Prova disso são os excelentes resultados obtidos pelo município nas No arquivo público da EMEF Cel. Ribeiro da Luz, encontra-se um avaliações de rendimento escolar promovidas pelos governos federal livro de matrículas da primeira escola pública masculina preliminar, lo- Como é sabido, a instalação de estabelecimentos de ensino em ci- e estadual. Entre as 39 cidades que compõem a Região Metropolitana calizada no largo do Rosário, cuja primeira ata é datada de 18/12/1907. dades do interior fez parte do movimento de incremento da instrução do Vale do Paraíba, São Bento do Sapucaí, através da EMEF Coronel Outro livro registra atas da escola pública feminina do Distrito de Paz primária gratuita promovido pelos governos estaduais paulistas entre Ribeiro da Luz, conquistou a segunda colocação no Ideb (Índice de de Candelária, município de São Bento do Sapucaí na época, datado o final do século XIX e o início do século XX. Desenvolvimento da Educação Básica), de acordo com o resultado da de 25/05/1917. A partir de 1937 os registros passam a referir- se às prova aplicada em 2013, obtendo a pontuação de 6.1, ficando atrás Escolas Emergentes do bairro do Monjolinho e do bairro do Serrano. A República recém-constituída considerava fundamental a instru- somente de São José dos Campos. Possivelmente, se trata dos mais antigos documentos da história da ção primária pública e gratuita para a formação de cidadãos. Em São

sumário 56 Importante frisar que a Meta Projetada – meta traçada por meio de vinculadora das escolas rurais: EMEF® Bairro do Quilombo, EMEF® Fontes orais estudos para o desempenho de cada escola nas provas em cada ano Bairro do Baú, EMEF® Bairro do Torto e a Escola Coronel Ribeiro da – era de 5.5 em 2013, sendo que para 2017 é de 6.0. São Bento do Luz vincula as escolas: EMEF® Bairro do Pinheiro,EMEF® Bairro do Angélica da Rosa Aparecido Sapucaí não só ultrapassou a meta do ano anterior, como a meta de Cantagalo. EMEF® Bairro do Serrano. 2017. Antônio Armando Cesar

A lembrar ainda que este é um trabalho conjunto, desenvolvido pe- Fontes escritas Aurora Marigilda da Rosa los professores e pela equipe gestora. É um trabalho que começa des- de cedo, no ensino infantil, e esta avaliação só confirma que os alunos EMEF CEL. RIBEIRO DA LUZ,PROCESSO:24929/86 TOMB.: Res. Benedita José da Silva Cesar estão recebendo um ensino de qualidade no município. SC 60 de 21/07/10, D.O.: 11/11/10, pgs. 112,113 e 114 Gleids Jacob Teixeira Pinto Livro do Tombo Histórico, Inscrição nº 377, p. 103 a 110. Escolas rurais Ildefonso Mendes Neto Jornal da APM do Coronel Ribeiro da Luz “O Coronel” e “A voz Em 1998, as escolas antes estaduais foram municipalizadas. infantil” Maria Alice Dias Venâncio Desde então “o” Coronel passou a denominar-se Escola Municipal de Ensino Fundamental Coronel Ribeiro da Luz, sediando as escolas Livro Tombo da Secretaria dos Negócios do Interior de 1907 Maria de Godoy Azeredo rurais. WOLFF, Sílvia Ferreira dos Santos, Escolas para a República. São Maria do Carmo Carvalho de Souza Algumas dessas escolas estaduais foram fechadas por insuficiência Paulo: Edusp. 2010. de número mínimo de alunos para manter salas em funcionamento. Maria do Carmo Natalina da Rosa CORRÊA, Maria Elizabeth Peirão et alii, Arquitetura Escolar Paulista Atualmente a escola do bairro do Paiol Grande mudou suas de- 1890-1920. São Paulo: FDE, 1991. Maria Janice pendências e deixou de ser considerada rural, passando a ser sede Maria José Dias de Oliveira

Marisa Jacob

Raquel Maria Aparecida Pereira

Reni Venâncio e Silva

Selma de Oliveira Duarte

Tereza Venâncio e Silva

Escola rural do bairro do Paiol Grande / Foto Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 57 O Colégio

Flávio Pedrosa Marcos Antônio da Silva Francisco Maria Pires Teixeira

... instituição auxiliar da escola, terá por finalidade colaborar no aprimoramento do processo educacional, na assistência ao escolar e na integração família-escola-comunidade.

Art. 2 dos Estatutos da Associação de Pais e Mestres da EEPSG Dr. Genésio Cândido Pereira,1980

A documentação existente é pouco precisa no detalhamento dos trâmites legais da instituição, em São Bento do Sapucaí, do primei- ro estabelecimento público de ensino secundário nos anos de 1950. Tudo aponta para a aquisição pela Prefeitura de dois lotes junto à Praça Marcondes Salgado, depois doados ao governo estadual para ali ser construído um ginásio. Sobre o que não há dúvida, porém, é quanto à querela que se deu em relação à denominação da escola. De “Ginásio São Bento” ela virou “Colégio São Bento” e, por fim e ofi- cialmente, “Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Dr. Genésio Cândido Pereira”. O nome aprovado pela Assembleia Legislativa sus- citou críticas e reclamações, mas não deixava de ser correta home- E. E. Genésio Cândido Pereira / Foto Geraldo F. da Silva, 2015 nagem ao ilustre advogado e intelectual, que se destacara pelo em- penho em promover a educação na cidade, da participação na fun- O Ginásio Como também não foram pequenas as dificuldades dos primei- dação do “Externato São Luís” em 1915, ao apoio à implantação do ros tempos. A escola começou a plena carga, logo após sua oficiali- “Educandário São Bento” em 1948. Não foi pequeno, igualmente, o empenho dos promotores da nova zação no início de 1957. Começou já com as quatro séries ginasiais, escola, dos que criaram as condições para que a cidade a recebesse, mas com as classes distribuídas pelos espaços disponíveis na cidade do prefeito Sebastião de Mello Mendes ao vigário Monsenhor Pedro – como no Grupo Escolar Cel. Ribeiro da Luz e no Centro Operário do Valle Monteiro, passando por Antônio Costa Manso e José Antônio São José – enquanto se erguia o prédio próprio. As turmas variavam Teixeira Pinto, entre tantas outras personalidades. bastante em número de alunos, de 10 a 30 aproximadamente.

sumário 58 Da mesma forma, foi preciso improvisar um pouco na constituição “o júbilo de toda a cidade pelo ensejo da instalação do Colégio, que do corpo docente. Não poucos professores, de dentro e de fora da veio fazer justiça à cidade e atender os anseios do povo”. Nada mais cidade, tiveram que assumir mais de uma disciplina, casos de José verdadeiro. Maria Priante (História e Geografia), Flávio Pedrosa Dantas (Desenho e Trabalhos Manuais) e Anne Marie Inge Arruda Câmara (Inglês e Francês). O ambiente escolar Tudo se acomodou em menos tempo que o previsto. Em poucos anos, o prédio próprio original estava finalizado e ocupado no seu “A escola era extensão da família”, recorda o ex-aluno da turma de endereço definitivo à praça Gal. Marcondes Salgado, 57. O corpo do- 1959, a segunda do Ginásio, Benedito de Oliveira Filho, popularmente cente, a direção, a APM e, o mais importante, as atividades escolares conhecido como Possante. “Vou falar com teu pai, menino!” era, se- curriculares e extracurriculares estavam estruturadas e cumprindo su- gundo ele, expressão corriqueira dos mestres quando chamavam a as funções. atenção de algum aluno mais irrequieto na classe.

Tudo pronto para seguir avançando. E falavam assim mesmo. Não só porque se conheciam, quando não eram parentes próximos, mas também porque não faltavam oca- siões de encontro de mestres e pais, na missa de domingo, na feira do mercado, no cinema, nas festas. O Colégio Típica das pequenas cidades interioranas “onde todos se conhe- Os avanços vieram. Já em novembro de 1964 era criada pelo go- cem e todos são parentes”, essa conexão do ambiente familiar com verno estadual, junto ao ainda “Ginásio São Bento”, a Escola Normal, o ambiente escolar podia representar, por vezes, uma interferência na destinada à formação de professores do ensino primário. Por diversas autonomia do planejamento e execução das atividades pedagógicas. circunstâncias, sua efetiva implantação só viria a acontecer no início Mas não deixava de ter suas vantagens, no maior envolvimento das da década seguinte, combinada com a implantação do “Colégio São famílias na formação escolar de seus filhos. Bento”. Formação que, após a criação do Ginásio e, na sequência, do Este, pode-se dizer, foi o avanço mais importante. Depois de Colégio, ganhava um horizonte muito mais amplo. Era possível agora prolongadas argumentações e articulações com o Executivo e o às crianças e jovens sambentistas, à sua grande maioria, começar e Legislativo estaduais, o antigo “Ginásio Estadual” foi transformado, concluir, em escola pública da sua cidade, todo o ciclo da educação em 1969, no “Colégio Unificado São Bento”, ganhando depois a de- básica. Não era pouco. nominação oficial atual.

A argumentação central foi a da necessidade de atender a de- manda local de completar o ensino básico numa pequena cidade dis- tante e de muito difícil acesso, na época, às escolas públicas de cida- Nem só de aulas vive a escola des maiores. A argumentação complementar foi a da possibilidade de ajuste e ampliação das instalações no prédio já existente. Desde o seu surgimento,o Genésio teve um papel importantíssimo no cenário cultural de São Bento. Como a cidade era carente de even- Sem perda de tempo, o Colégio abriu as matrículas, contratou tos, a equipe gestora, juntamente com o Grêmio Estudantil, passou a professores e entrou em funcionamento. Com os improvisos inevitá- organizar eventos que contemplassem tanto a população local como veis, é certo. Lembra Maria Odete Dias Teixeira, ex-professora de in- a regional, já que nela estudavam alunos de outras cidades próximas. glês e português, que foi convidada a assumir as aulas quando ainda cursava o 3º ano da Faculdade de Letras. Organizavam-se bailes para arrecadar fundos para o grêmio, bailes estes famosos pela organização e brilho que causavam na sociedade, Nada, porém, que refreasse o ânimo e impedisse a celebração do ocasião de encontros familiares e de amigos. As festas juninas que advento da nova escola. Celebração solenemente feita, como de pra- envolviam não só a comunidade estudantil como também toda a cida- xe, no salão do Cine São Bento em 15 de março de 1969. No seu de que assumia as festanças com os casamentos “caipiras” engraça- Fanfarra / acervo Casa da Cultura discurso, o prof. José Maria Priante, presidindo a cerimônia, ressaltou dos e descontraídos, organizados pelo professor José Priante. Eram

sumário 59 famosos os torneios de futebol de salão e voleibol, organizados pelo professor José Antonio Teixeira Pinto (o Zé Mulher), que agitavam as noites frias de inverno, quase a única opção de lazer da população afi- cionada por esportes. Muitos alunos chamados “bons de bola” passa- ram por estes torneios, como o “Ché, Zé Toco, José Antonio Careca, Paulo Bundinha...” e muitos outros.

A Fanfarra organizada pelo professor Priante foi talvez a mais impor- tante das ideias e a que melhor representou o espírito coletivo e repre- sentativo da escola. Foram inúmeros os torneios regionais e estaduais por que passou e sempre com brilho representou não só a escola co- mo a cidade, tornando-se orgulho de todo sambentista.

Em tempos mais recentes, já no final do século XX, eram os fes- tivais de teatro estudantil organizados pelos professores André Luiz de Carvalho e Camilo que agitavam a comunidade estudantil, se es- merando nos ensaios para mostrar o melhor de cada turma e,é claro, contando com a torcida dos familiares e da comunidade local convi- Fanfarra do Ginásio São Bento, anos de 1970; dada para o evento. O mesmo valendo para os festivais de música, à frente, seu criador e animador, sempre com intuito de elevar e diversificar a manifestação cultural no prof. José Maria Priante; âmbito escolar e social. Vale repetir que a escola sempre teve papel de acervo José Sérgio Carvalho relevante importância cultural junto a comunidade local.

Melhores condições, valores e desafios.

Várias mudanças na política educacional do país passaram pela vi- da da instituição. Algumas benéficas, outras nem tanto. Mas o certo é que a escola tem sobrevivido a tudo isso. A escola ganhou uma bi- As avaliações institucionais feitas pelo MEC e pela Secretaria blioteca bem organizada, que serve aos interesses pedagógicos de Estadual de Educação tem mostrado que o resultado desse esforço alunos e professores. Ganhou novas salas aumentando a sua capaci- na nossa escola tem alcançado mesmo modestamente, mas com êxi- dade em acolher mais alunos e professores. Uma nova quadra cober- to, as perspectivas exigidas. É preciso talvez resgatar o envolvimento ta foi construída para atender as aulas de educação física. cultural dos estudantes com teatro, música e saraus. Modernizar a educação não quer dizer que é preciso abdicar daquilo que favorece Hoje a escola está equipada com laboratório, sala de multimídia, Esses novos desafios levam a mudanças radicais na forma de os novos rumos, ou deixar de usar experiências que deram resultado sala de computação. A parte administrativa foi equipada com com- transmitir os conhecimentos necessários à formação exigida pelo no- no passado para traçar o futuro. putadores, tudo isso para atender aos novos desafios que se impõem vo contexto. Novos professores, novas idéias e novas tecnologias são nesse século, de uma educação mais voltada à profissionalização implantadas com a finalidade de formar esses alunos para ocupar seu e ao mercado de trabalho, como destaca a LDB (Lei de diretrizes e espaço no mundo atual. Resgatar e exercitar em meio a tudo isso al- Fontes escritas Bases da Educação Nacional) de 1996. As dificuldades são muitas, guns valores éticos, familiares e sociais são os desafios mais difíceis, pois a sociedade mudou. Mesmo nas pequenas cidades interioranas, mas a meta é essa: em primeiro lugar o ser humano, a despeito da Acervo documental da EE Dr. Genésio Cândido Pereira como São Bento, onde o ambiente familiar se envolvia com o ambien- concorrência e influência dos meios de comunicação social que de- te escolar. Também nestas comunidades, hoje, pai e mãe trabalham e vem ser utilizados a favor do mister de ensinar. transferem o papel de educador aos professores, que tem formação Fontes orais para serem apenas orientadores educacionais e acabam assumindo funções próprias da família. Benedito de Oliveira Filho

Maria Odete Dias Teixeira

sumário 60 Religiosidade

sumário 61 Assim como os colonizadores portugueses ao chegarem ao Brasil de São Paulo e Minas e disputadas por paulistas e mineiros. Eram – quando a primeira coisa que fizeram foi a celebração da missa –, também distantes de vilas e povoados maiores, o que aumentava as também por aqui o início do povoado em terras da Mantiqueira foi dificuldades da sua população. Para minorá-las, ao menos nopla- A Matriz marcado pela demonstração da fé católica de sua gente na edificação no espiritual, o fazendeiro José Pereira Álvares doou uma gleba de Bruna da Rosa Santos de capelas e igrejas. terras para nela se construir uma igreja em louvor a Nossa Senhora do Rosário. De Pindamonhangaba trouxe o vigário padre Luiz Justino Velho Columbreiro, que benzeu o local, colocou ali uma cruz e uma Antes de uma cidade bandeira de Nossa Senhora com o dístico: “Nossa Senhora Mãe dos Homens, comovei os maus corações”. Esperava-se, com isso, conso- Segundo as fontes disponíveis, foi por volta de 1820 que se cons- lidar a presença dos paulistas na região frente aos seus rivais mineiros. truiu a primeira capela nestas redondezas. Estava situada no lugar de- Em 1849, São Bento do Sapucaí era apenas uma nominado Guarda Velha, na Fazenda Sapucahy-Mirim, e foi dedicada Não foi o que aconteceu. As rivalidades e conflitos não cessaram. Freguesia, com a paróquia estabelecida e uma igreja a São Bento. Nela foi colocada a imagem do fundador da ordem be- Interrompida diversas vezes, a edificação da igreja prolongou-se por Matriz muito modesta de pau a pique. Foi durante as neditina, esculpida em madeira, que hoje se encontra na sacristia da largo tempo. Não se sabe ao certo quando ficou pronta, esta que foi a missões realizadas nesse ano que surgiu a ideia de Igreja Matriz de São Bento. primeira igreja construída em São Bento do Sapucaí. Foi demolida por construir uma nova igreja Matriz e um cruzeiro. volta de 1903 e, mais tarde, com a dedicação do Revmo. Pe. Pedro do Bruna Santos, 2014 Eram terras situadas na divisa – mal demarcada – das províncias Valle Monteiro, reconstruída e reinaugurada em julho de 1934.

Em 1849, São Bento do Sapucaí era apenas uma Freguesia, com a paróquia estabelecida e uma igreja Matriz muito modesta de pau a pique. Foi durante as missões realizadas nesse ano que surgiu a ideia de construir uma nova igreja Matriz e um cruzeiro.

A construção começou em 1853 e estendeu-se por mais de meio século. O templo foi erguido por fora da primitiva capela de pau a pi- que, demolida só após a cobertura do telhado, pois era a única em condições de celebrar a Santa Missa na Freguesia.

A obra foi concluída em 1917 pelos padres carmelitas descalços. Mesmo depois de várias reformas, a Igreja mantém seu estilo e beleza arquitetônica de mais de 100 anos de história. É um belo e grandioso templo comparado com outros da região, porém a Igreja Matriz é mui- to mais que suas paredes grossas de taipa de pilão.

Muito além de um templo

De fato, quando se diz “Igreja Matriz de São Bento”, logo vem à mente a imagem do belo templo construído por escravos, da bela e sóbria construção de taipa. Mas, ela vai muito além de ser apenas uma edificação religiosa, um templo para os fiéis católicos. Sua histó- ria foi, aos poucos, envolvendo-se com a vida e a história da cidade, realizando e ampliando o ideal da “Igreja somos nós” – nós, os sam- bentistas que a tiveram e tem como referência.

Talvez pelas cheias do rio ou pela necessidade de estar perto das igrejas, a cidade foi se desenvolvendo nas partes altas, em volta do Igreja Matriz / Foto Geraldo F. da Silva, 2013 sumário 62 templo e das suas celebrações. Num de seus contos mais conhe- Outra boa memória: na época do Pe. Pedro do Valle Monteiro, 1929 cidos, Largo da Matriz, Ribeiro Couto fala das coroações de Nossa a 1974, as crianças que iam à catequese recebiam um cartãozinho, no Senhora no mês de maio. Antes do Concilio Vaticano II não havia mis- final do ano na festa do Natal elas podiam trocar os cartões por pre- sas à noite, rezava-se o santo terço e ao final realizava-se a coroação. sentes, brinquedos ou roupas. Essa tradição permanece até hoje, encantando os finais das missas com os belos anjinhos. O filho do senhor encarregado de comprar os presentes, escolhia o que queria e isso era o prêmio de mais valor. As crianças mais pobres O Concílio, realizado entre 1961 e 1965, teve por objetivo moderni- vendiam os cartões para ele, e quando chegava o Natal, se uma crian- zar a Igreja Católica. E as mudanças foram amplas e importantes: das ça tivesse 20, ele tinha 50 cartões, por exemplo. Assim que o padre missas em latim e de costas para o povo às missas no idioma local e chamava a primeira criança que possuía a maior quantidade de car- de frente para a comunidade, da comunhão ministrada só pelo padre tões, era ele que logo levantava e ia receber. à comunhão dada aos fiéis por leigos ministros da eucaristia, entre outras. Aqueles que não tinham condição por vender, ficavam com menor quantidade de cartões, mas mesmo assim não perdiam o interesse. A intenção era simplificar e tornar as celebrações mais compreen- Toda criança adora brinquedo e devia ser uma grande emoção para sivas e participativas tanto à assembleia dos fiéis quanto à sociedade aqueles que pouco tinham, mesmo com essa alegria cortada pelos em geral. Além de corrigir situações como, por exemplo, a que cos- pais, quando eram obrigados a pegar roupas e panos em vez de brin- tumava ocorrer durante a homilia: as mulheres ficavam sentadas ou- quedos. “A Dita ia comigo, porque eu queria pegar boneca. Nunca tive vindo o sermão e os homens, em bom número, saíam para pitar. Ou a boneca, mas que boneca o que, tinha que pegar roupa. Que ‘réiva’ Singeleza e fé no meio rural que envolvia os batizados, realizados sem dia nem hora - era pratica- que dáva”, lembra dona Maria Zélia, moradora do bairro do Quilombo. mente chegar à igreja e chamar o padre. Conta-se que certo dia um homem foi batizar uma criança e o padre lhe perguntou o nome e ele respondeu “Joãozinho”. O padre perguntou novamente e teve a mes- Tradições Fontes escritas ma resposta. Então disse: “Vou batizar de João, o Zinho você coloca em casa”. A Semana Santa é uma linda e emocionante tradição da Igreja Católica, que relembra a paixão de Cristo. A procissão do encontro, a missa dos lava pés, o cântico da paixão que faz as pessoas se emo- Pesquisas publicadas e inéditas de Isaura Aparecida da Lima Silva Lembranças de um povo antigo cionarem, o sábado de aleluia, o domingo de páscoa e – aqui em São Bento -, a tradição da festa de São Benedito na segunda-feira. Boletim Parochial – São Bento do Sapucahy. E. de S. Paulo – 29 de Diz uma lenda contada pelo sr. Expedito Antônio da Silva (Expedito Julho de 1934 Folheiro), que a ouviu quando criança: “Certa vez deu uma tempes- As formas de celebrar essas cerimônias não são as mesmas de tade que fez cair o cruzeiro. O padre logo foi atrás de um fazendeiro, outros tempos. Para uns melhoraram, para outros perderam um pou- “Largo da Matriz”, Ribeiro Couto. chamado Nico Costa, que possuía muitas árvores altas. Ao ouvir o co da beleza que tinham. Eram mais demoradas, solenes, coloridas, pedido do padre que queria madeira para construir um novo cruzeiro, enfeitadas, dramatizadas. “Vinham até padres de fora para ajudar nes- respondeu: ‘Ah não! Eu vou mandar serrar para fazer casa de colono, sas celebrações”, lembra José Silveira da Silva, sacristão da Igreja por isso não posso dar’. O padre voltou com a mão abanando, mas Matriz por vários anos. não tinha o que fazer. Na mesma noite, teve outra tempestade e caiu Fontes orais um raio que partiu ao meio a madeira que o padre queria. No outro dia, As práticas mudam, as tradições permanecem. Ao menos nas o fazendeiro montou no seu cavalo e foi logo para cidade conversar memórias dos mais velhos, legadas aos mais jovens. Não se pode com o padre. Disse- lhe: ‘Eu resolvi dar o cruzeiro para o Senhor, po- perdê-las. São parte importante da história e identidade de um povo. rém aquela madeira que queria não tem mais, o raio a destruiu. Mas José Silveira da Silva tem outras melhores que aquela, pode ir buscar’. Buscaram a árvore e fizeram o cruzeiro no pátio da Igreja Matriz. Juntaram muitas pessoas Expedito Antônio da Silva pra ajudar a levar o cruzeiro lá no alto do morro, mas era muito grande e pesado, então, só depois de o padre rezar um Pai Nosso e com a Maria do Carmo Natalina da Rosa graça de Deus, que conseguiram levar o santo cruzeiro.” Não se sabe se aconteceu de verdade ou se é apenas lenda, mas é bom pensar Maria Zélia Ribeiro muito bem antes de negar algo para um padre.

sumário 63 virtuoso que por aqui passou.

Devido às constantes enchentes, em 1969 deu-se início a cons- Festas religiosas, procissões trução da atual Igreja dos Remédios. Tendo à frente o Padre Teófilo Crestani e a comunidade católica, sempre solícita e prestativa, pôde- e andores. se concluir a obra. As pedras brancas que ornamentavam o Altar Mor Gilberto Donizeti de Souza foram doadas pela Pia União das Filhas de Maria. Da. Etelvina Pereira da Rosa doou a coroa de Nossa Senhora, a sr.ª Maria Natália Campos doou a coroa do Menino Jesus. O manto da imagem de Nossa Senhora foi doado pela sr.ª Wilma Camargo, falecida em 2014, prodigiosa ar- tista que por anos confeccionou belíssimos andores para as festas. “De outro lado, as donas Maria Maia, Maria do Vô, Além de Nossa Senhora dos Remédios, a Igreja recebeu também as Maria do Neco e Jorgina (falecida em 2014), deixavam imagens de São Celestino, São Generoso e São Félix. as festividades mais doces com deliciosos biscoitos e roscas, doces de leite, abóbora, amendoim e batata- doce que recheavam os tradicionais cartuchos de papel São Bento de seda coloridos e carinhosamente feitos a mão”. Gilberto Donizeti de Souza, 2015 A festa do Padroeiro São Bento acontece no dia 11 de Julho, com solene missa e participação de todas as comunidades rurais do muni- cípio. Movidos pela fé, os sambentistas participam em grande número da novena preparatória ao grande dia da festa, assim como da procis- são em louvor ao santo, que tem o lema “Ora e Trabalha”.

Santo Antônio Em 3 de maio comemora-se a Festa de Santa Cruz. Comemoração tradicional em São Bento do Sapucaí, como tantas outras festas que As festividades em louvor a Santo Antônio ocorrem no mês de Junho conservam e mostram a forte religiosidade do nosso povo. Após as e, especificamente no dia 13, dedicado ao Santo. Embora conhecido rezas e cânticos são servidos doces, roscas, cafés e outros quitutes, como o santo casamenteiro, Santo Antônio dedicou-se aos pobres preparados com carinho pelos festeiros que organizam a festa. e aos mais necessitados, tendo vivido de maneira simples e sem lu- xos. Figura muito participativa que cuidou por anos da Capela é a sr.ª A devoção é antiga, remonta a mais de cem anos. Como antiga é Toninha do Piscuta, que com total dedicação era responsável pela também a Igreja de São Benedito, onde a festa se realiza. Foi constru- limpeza, organização, barraca de doces e integrante da Irmandade ída tendo dois titulares principais: Santa Cruz (símbolo de redenção) e de Santo Antônio. No dia dedicado ao Santo, há farta distribuição de São Benedito. pães, que após receberem a benção, são distribuídos aos fiéis para que nunca falte alimento em suas casas.

São Benedito Santo Expedito Entre todas, a festividade religiosa mais popular da cidade é sem dúvida a Festa de São Benedito. Comemorada na segunda-feira após Igreja de São Benedito / Foto Geraldo F. da Silva, 2011 Foi a partir de 1996 que tiveram início em São Bento as comemo- o domingo de Páscoa, reúne milhares de devotos num dia de muita rações em louvor a Santo Expedito, considerado protetor dos aflitos, alegria. A congada do bairro do Quilombo, organizada pela da. Luzia, N. S. dos Remédios que necessitam da solução de casos urgentes. Essa festa teve como apresenta suas danças, assim como toda Irmandade de São Benedito organizador o sr. Aníbal Magalhães e familiares, e conta com a partici- participa dos festejos e da procissão em louvor ao Santo Padroeiro Outra festa tradicional é a dedicada a Nossa Senhora dos Remédios. pação dos Policiais Militares, que tem no Santo o seu protetor, como dos pobres. Celebrada no dia 15 de Agosto, recebe fiéis de toda região que vêm soldado de Cristo. agradecer e pedir a intercessão para diversas necessidades. Em 1976 comemorou-se o centenário da Festa dedicada à Mãe de Deus. A pri- meira igreja fora construída por Frei Caetano de Messina, missionário

sumário 64 O Divino

Outra comemoração que aconteceu por longos anos e que hoje não acontece mais, com exceção da celebração no dia de Pentecostes, era a Festa do Divino. “Seu” Mendes, o sr. José de Mello Mendes, e sua família, por mais de 40 anos promoveram a Festa do Divino Espírito Santo em nossa cidade. Seu esforço, somado ao de uns bons amigos, faziam da festa de Pentecostes uma tradição de muitos anos e conhecida em toda região.

De acordo com o sr. Luiz Fernando Ferreira, genro do sr. Mendes, as preparações para a festa eram nove dias de orações. Casais, ami- gos e parentes convidados levavam, a cada dia da novena, a bandeira e a coroa do Divino da residência do festeiro permanente até a Igreja Matriz, sempre acompanhados pela banda de música e por muitos devotos que entoavam cânticos e também os foguetes de vara acio- nados pelo Chico Fogueteiro. Nos três dias que antecediam a festa, a bandeira e a coroa visitavam as casas e os moradores com muita devoção e levava os símbolos por todos os cômodos como sinal de benção. Outra parte dos festejos era o abate de uma ou mais cabeças de gado bovino que, uma vez retalhados, a carne recebia a benção ministrada pelo Padre Pedro e Padre Teófilo. Cartões com direito a um pedaço de carne eram distribuídos aos moradores e estes, no dia da festa, compareciam para receber a carne benta. Um saboroso almoço também era servido aos moradores que desejassem, principalmente aos que vinham da zona rural para a festa. O leilão de gado nunca fal- tou e os bezerros eram ofertados espontaneamente pelos produtores.

Também era realizado, após a missa das 10 horas – Missa da Festa –-, o leilão de assados, cartuchos com doces e prendas. Nas pro- cissões eram ostentados lindos andores, ornados pelas senhoras Adelaidinha, Benedita do Elias e da. Maria Cândida. A banda de mú- sica sempre estava presente. Além da família do sr. Mendes, algumas pessoas dedicadas trabalhavam nas festas como o sr. João Coelho, da. Maria Maia, da. Maria Rita – conhecida como “nhá Rita” e da. Maria do Vô. Elaborado o balancete, sempre com o mínimo de des- pesa, o saldo era entregue aos padres para custear as despesas da Paróquia. Com o falecimento do sr. José de Mello Mendes, não houve mais celebração dessa festa. “Fé”; tela de Feh Prado inspirada na festividade do Divino Espírito Santo / Foto de Geraldo F. da Silva, 2015 também contava com grande número de fiéis.

Semana Santa pel utilizadas na decoração, por muitos anos feitos pela sr.ª Geralda, Procissões deram lugar às flores naturais, mais fáceis de encontrar. Da. Wilma A Semana Santa em São Bento também é revestida de grande Camargo, mais uma vez, auxiliada por amigos, dedicou grande parte respeito e participação dos fiéis que lotam as missas e procissões. Com raríssimas exceções, as festividades têm como ápice a pro- de sua vida à confecção dos andores, abrilhantando ainda mais as Destaque para as matracas (instrumento musical) que eram utilizadas, cissão. Centenas de fiéis caminham pelas ruas da cidade rezando e festividades. com seu som característico, nas procissões, dando lugar aos sinos da cantando, em sinal de penitência. Os Santos homenageados são con- Igreja. A Via Sacra, realizada de madrugada na subida para o Cruzeiro, duzidos em andores cuidadosamente ornamentados. As flores de pa- Não se pode também deixar de mencionar os “assadores” que fi-

sumário 65 cavam horas na boca da fornalha, com destaque ao sr. João Coelho e Púpio, pastor da Igreja Batista instalada em São Bento há poucos anos, João Dias, este, falecido em Junho de 2000, dia seguinte ao término as vê com um olhar missionário. Cita o evangelista Mateus, 9.37-38: da Festa de Santo Antônio. De seu lado, as donas Maria Maia, Maria A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Peçam, pois, Fontes escritas do Vô, Maria do Neco e Jorgina (falecida em 2014), deixavam as festi- ao Senhor da colheita que envie trabalhadores para sua colheita. E vidades mais doces, com deliciosos biscoitos e roscas, doces de lei- arremata: “Por esta razão estamos aqui e, mesmo sendo esta uma so- Livro do Tombo da Paróquia de São Bento do Sapucaí te, abóbora, amendoim e batata-doce que recheavam os tradicionais ciedade de forte tradição e afirmação católica, a seara continua sendo cartuchos de papel de seda coloridos e carinhosamente feitos à mão. muito grande”. Fontes orais

Corpus Christi Luiz Fernando Ferreira

Destacando-se entre todas por sua imponência, a procissão da ce- Maria Magdalena da Silva lebração deCorpus Christi percorria,e ainda percorre, as ruas da ci- dade que carinhosamente eram enfeitadas pelas pessoas para a pas- sagem do cortejo. As janelas das casas eram ornadas com flores e toalhas que com o passar do tempo foi dando lugar a confecção de extensos tapetes com utilização de serragem colorida, flores, cascas de ovos, pó de café usado, tampinhas de garrafas, tudo formando de- senhos e figuras que lembram o corpo e sangue de Cristo, celebrados na Eucaristia. Até hoje, muitos turistas visitam a cidade para apreciar a beleza dos tapetes e também para auxiliar em sua confecção.

Diversidade

Não há como negar a forte tradição católica de São Bento do Sapucaí. Tradição que vem das origens da cidade e que permane- ce viva nos costumes familiares, nas festividades religiosas, nas mis- sas dos domingos, nos rituais dos batizados, casamentos e funerais. Tradição que, nas referências históricas e nas crenças e valores, aca- bou por tornar-se elemento fundamental da coesão social e identida- de cultural sambentista.

Essa religiosidade mais antiga e entranhada, porém, não é única. Há uma diversidade a considerar.

Desde meados do século passado outras confissões e igrejas vie- ram integrar-se à vida da cidade. Entre as pioneiras e instaladas no centro urbano, estão a Assembleia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil. Instalada fora da cidade, no bairro rural da Bocaina, encon- tra-se a comunidade da Igreja Presbiteriana do Brasil. Essas igrejas “evangélicas” guardam em comum as origens cristãs e a busca de uma vivência religiosa orientada e estimulada pelo conhecimento e reflexão dos textos bíblicos, como ressalta o sr. Menzack Cândido de Lima, da direção dos presbiterianos da Bocaina.

Quanto às expectativas de inserção social e atuação religiosa dos evangélicos numa sociedade em que, segundo o IBGE (Censo de 2010), quase 90% da população se declara católica, João Carlos Igreja Presbiteriana, bairro da Bocaina / Foto Geraldo F. da Silvade Geraldo F. da Silva, 2015

sumário 66 Modernização

Planta do trevo original da SP 42 na entrada da cidade; acervo Construtora Pinheiro

sumário 67 interesses: ferrovias e escolas. Estendeu a malha ferroviária paulista, do modesto povoado, uma comunidade voltada mais para dentro que estratégica para a expansão cafeeira. Continuou e ampliou o progra- para fora. ma de escolas públicas, estratégico para a instrução da população, A estrada para mais de duas dezenas de municípios. As dificuldades da vida por aqui não eram poucas, nem peque- Francisco Maria Pires Teixeira nas nesses tempos. Começando pelos acessos ao entorno próximo, a São Bento do Sapucaí foi um desses beneficiários. Ao apro- Campos do Jordão e às cidades em crescimento do Vale do Paraíba: var, em 1910, a ligação ferroviária de Pindamonhangaba ao distrito caminhos de terra e poeira na seca, e lama nas chuvas, de várze- de Campos do Jordão, o governador fez constar do ato publicado as alagadiças, onde até os carroções e carros-de-boi atolavam, de no Diário Oficial que ela deveria passar pela sede do município, São descidas temerárias na serra, feitas a pé, em alguns trechos, pelos Negociar, viajar, tratar da saúde, estudar e formar-se Bento do Sapucaí. E em 1911 abriu concorrência para a construção viajantes. eram possibilidades para poucos moradores. Nesse do nosso Grupo Escolar. A escola veio logo e, inaugurada em 1915, longo período, travada por tantas limitações, São Bento segue em atividade 100 anos depois. O trem, esse nunca chegou. Da Subir para Campos do Jordão ou descer para Pinda, Taubaté e hibernou. Manteve seu jeito rústico e modesto de ser e espera frustrada restaram fragmentos de memória, como o sugestivo São José não eram passeios. Eram aventuras, fossem elas com tro- de viver. Um jeito acanhado, mais rural que urbano... apelido do trecho da antiga estrada no bairro do Campo Monteiro, na pas de burros para levar milho, feijão, mandioca e carne de porco e Francisco Maria Pires Teixeira, 2014. saída da cidade: “rua da estaçãozinha”. trazer sal, açúcar, farinha de trigo, panos, roupas, botinas e ferramen- tas, fossem com os primeiros caminhões e jardineiras para levar leite, café e fumo, levar doentes para atendimento nos hospitais do Vale ou Décadas de isolamento levar as famílias nas visitas ao santuário de Aparecida. O governador Joaquim Manuel de Albuquerque Lins, pode-se dizer, foi um homem de seu tempo – de um tempo de crença na “ciência e Por mais de meio século, São Bento permaneceria praticamente Negociar, viajar, tratar da saúde, estudar e formar-se eram pos- trabalho” como bases do “progresso” da nação. Governou o estado desligada dos circuitos regionais de comunicação e intercâmbio so- sibilidades para poucos moradores. Nesse longo período, travada por de São Paulo de 1908 a 1912 com vigor e empenho, movido por dois cial e cultural. Décadas de isolamento geográfico e econômico fariam tantas limitações, São Bento hibernou. Manteve seu jeito rústico e modesto de ser e de viver. Um jeito acanhado, mais rural que urba-

Estrada / Foto Geraldo F. da Silva

sumário 68 no, fixado na imagem de lugar remoto e atrasado, atribuída pelo Prof. A inauguração, em maio de 1976, foi festiva, com a presença dos Miguel Reale, nas suas Memórias, à canção de Lamartine Babo, que governadores Paulo Egydio Martins e Aureliano Chaves, de autorida- Fontes escritas aqui esteve nos anos de 1920: des e da população local. Festiva e merecida, afinal comemorava- se um evento de há muito desejado e esperado. Tudo perfeito, não Diário Oficial do Estado, governo de Albuquerque Lins (1908-1912). “No rancho fundo fora por um percalço: a estrada ainda estava sem a ponte sobre o Sapucaí. Dificuldades da empresa responsável tinham comprometido Miguel Reale, Memórias 1, São Paulo: Saraiva, 1986. bem pra lá do fim do mundo essa obra. Ficou pronta meses depois.

onde o amor e a saudade Fontes orais Outros caminhos contam coisas da cidade.” Ruy Benedito de Oliveira Na prestação de contas, ao encerrar sua administração em 1976, o prefeito Ruy Benedito de Oliveira destacou especialmente a con- Valdir Paulo Damázio A estrada clusão da moderna estrada e as perspectivas de curto e longo prazo que se abriam para o município nos setores de transportes, comércio, Carlos Asmar Essa imagem começaria a mudar entre os anos de 1960 e1970. Com turismo, educação, saúde e segurança. iniciativas e articulações políticas bem conduzidas, sucessivas admi- nistrações municipais – Sebastião de Melo Mendes, José Bourabeby, De fato, o quadro que se desenhava era promissor, como logo se Ruy de Oliveira, Bento Nunes Duarte – conseguiram atrair investimen- confirmou. Cresceu a circulação de ônibus intermunicipais e interes- tos estaduais para educação, saneamento, água tratada, iluminação taduais. Cresceram as viagens de todo tipo e finalidade para o Vale pública, calçamento, retificação do rio, serviços bancários, transpor- do Paraíba. Cresceu a mobilidade social, com a migração intensiva de tes e turismo. jovens locais para os empregos industriais em São José dos Campos e Taubaté. Cresceu o fluxo de visitantes, dando sentido e estímulo à No ciclo de mudança e prosperidade que se abria, a construção da recém-criada Estância Climática de São Bento do Sapucaí. nova estrada foi elemento fundamental. Projeto modesto: uma via as- faltada de apenas 35 km, da SP 50 a Paraisópolis. Empreendimento Impulso que também se refletiu na multiplicação e dinamização paulista e mineiro de interesse mútuo: interligar o Sul de Minas e o Vale de pequenos empreendimentos e negócios. Para vender, comprar e do Paraíba, áreas em crescimento industrial acelerado. No meio do transportar mercadorias e passageiros, quem tinha um caminhão ve- caminho, São Bento iria lucrar, e muito, com essa ligação. lho, comprou um novo, quem não tinha, comprou uma caminhonete. Foi o caso, entre tantos, de José Cândido da Rosa ( Lourenço), A obra se estendeu de 1973 a 1976. Vencedora da concorrência, a morador e produtor rural do Paiol Grande. Com a venda de um lote Construtora Pinheiro, do Rio Grande do Sul, trouxe para cá cerca de do seu sítio comprou a kombi que lhe permitiu levar produtos seus e noventa famílias e uns oitenta solteiros. Com os recrutados na região, de outros, semanalmente, ao mercado de São José dos Campos. Em mais de duzentos trabalhadores envolveram-se no projeto. boa hora, a vida começou a melhorar para ele e sua família de quator- ze filhos. Foram três anos de trabalho na estrada e de convivência dos “gaú- chos” com a cidade. “Convivência muito amistosa” lembra Valdir Na verdade, começava a melhorar para a população local. Em ter- Damázio, jovem de 17 anos vindo com o pai, referindo-se à pron- mos de locomoção, o que às vezes se fazia em dias, passou a ser feito ta acomodação do pessoal em pensões e casas alugadas – além de em horas, o que era difícil, ficou mais fácil e aberto a muito mais gente abrigo oferecido por instituições como a Santa Casa – e à boa acolhi- – de dentro e de fora, moradores e visitantes. da nas vendas, armazéns, bares e lojas. Lembra ainda que não pou- cos se encantaram com o lugar, as paisagens da serra, o sossego, A nova estrada abria de vez os caminhos da modernização. A ima- as águas limpas e, mais ainda, “com as festas, os bailes do Centro gem lamartiniana do “rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo” ia se Operário e o carnaval do Zé Pereira”. Alguns por aqui se demoraram apagando. São Bento entrevia outros horizontes, para além das belas e foram ficando, como ele próprio, que aqui se casou e criou família. encostas da Mantiqueira. Um legítimo sambentista – sem abandonar “a cuia e o chimarrão”, faz questão de dizer.

sumário 69 de cerca de 30.000m² ao poder público municipal, desde que este, buscasse recursos junto ao governo do Estado para a construção de E os turistas chegaram um hotel de qualidade, para hospedar os visitantes que começavam Márcia Azeredo a frequentar o município atraídos por seu potencial turístico. Surgiu aí o Hotel Fazenda Estância – equipamento considerado 5 estrelas por aqueles que o visitavam. Sua estrutura de lazer oferecia piscina, quadras, salão de jogos, cavalos para aluguel etc. A frequência de vi- sitantes era regular. Muitas pessoas que hoje possuem propriedades E se o turismo cria condições para o desfrute dos e investimentos no município, o conheceram a partir de estadia no visitantes, ele igualmente estimula as atividades internas Estância. do município. Das artes plásticas e artesanato em madeira, palha de milho, fibra de bananeira, mosaico e A gestão deste empreendimento passou a ser feita por terceiros bordado às manifestações do carnaval, catira, congada, através de locação, até que em meados de 2000, sua propriedade festival de Inverno, festas juninas e festas religiosas... passou para a Prefeitura que, na gestão 2005-2008, o desativou e fez Márcia Azeredo, 2014 dele sede do Paço Municipal. Nesta época, a implantação de novos equipamentos de hospedagem, já em expansão, foi ainda mais am- pliada por investidores locais e externos.

Quem já conhece, sabe e quem vem a conhecer, confirma: São Essa aceleração induziu outra iniciativa do poder público para a pro- Bento do Sapucaí destaca-se pela belíssima paisagem verde e mon- moção do turismo: a construção de barragem com lago em uma ampla tanhosa que encanta os olhos e a alma, pela tranquilidade, hospitali- várzea junto à cidade, onde seriam instalados pedalinhos, pesqueiro e dade e clima agradável, característico dos municípios de origem rural outros equipamentos de lazer. O projeto, porém, não se desenvolveu. da Serra da Mantiqueira. É rica em trilhas que permitem a prática de trekking, hiking, cavalgada e biking; cachoeiras com quedas que che- Um fato de grande relevância para o avanço do turismo local foi gam a atingir mais de 100m; rampa de voo livre, falésias, picos e pa- a vinda, diretamente de São Paulo para o município, do sr. Laércio redes rochosas de escalada para os mais aventureiros. Cardoso de Carvalho nos anos 70. Segundo lembra o escultor Ditinho Joana, este senhor instalou-se em São Bento e passou a garimpar Uma das maiores referências do turismo no município é o complexo o trabalho dos artesãos locais, promovendo exposições no Mercado Pedra do Baú, hoje Monumento Natural Estadual pelo decreto 56.613 Municipal. Este esforço teve o apoio da Administração Municipal da de 28/12/2010. É uma formação rochosa de três pedras (Bauzinho, época (Prefeito: Ruy Benedito de Oliveira e Primeira Dama Petronilha Pedra do Baú e Ana Chata) avistada de muitos pontos da Mantiqueira, Ambrogi de Oliveira) através da criação da FAASAM “Feira de Arte que atrai a atenção e a curiosidade de visitantes e escaladores do e Artesanato Sambentista”, realizada por muitos anos no espaço do Brasil e do exterior por sua beleza majestosa. CEPROCOM – Centro Promocional Comunitário. Também o Hotel Central, tradicional do município, foi arrendado por este senhor, que E se o turismo cria condições para o desfrute dos visitantes, ele abriu suas portas para exposições dos artesãos e apresentações dos igualmente estimula as atividades internas do município. Das artes Ciclista / Foto Eliseu músicos locais. plásticas e artesanato em madeira, palha de milho, fibra e palha de bananeira, mosaico e bordado às manifestações do carnaval, cati- Nas atividades da FAASAM, porém, praticamente só Ditinho Joana ra, congada, festival de Inverno, festas juninas e festas religiosas, a n 9.700 de 26/01/1967). As estâncias são “municípios privilegiados mantinha-se presente. A sra. Yeda Dias Cabo – dona do primeiro res- produção associada ao turismo tem contribuído para divulgar o patri- que, além de recursos naturais específicos, clima benéfico e paisa- taurante do município – resolveu levá-lo, então, para o seu espaço, mônio cultural de São Bento e fazer crescer a atratividade desta terra gens notáveis, oferecem atrativos de caráter permanente, com valor dando mais visibilidade aos seus trabalhos. como destino turístico consolidado. histórico, artístico ou religioso”. (Aulicino, Madalena Pedroso, Turismo e Estâncias: impactos e benefícios para os municípios, São Paulo: Com isso, um grupo de artesãos referência da comunidade, junta- Futura, 2001) mente com Ditinho Joana, trabalhando em prol do artesanato com o O turismo na história de São Bento do Sapucaí Também na década de 1960, um sambentista de família tradicional apoio do poder público, organizou-se e iniciou uma peregrinação aos e ex-prefeito do município – sr. Sebastião de Mello Mendes –, com bairros, com o intuito de trazer os demais artesãos a participar das ex- A atividade turística entra oficialmente na história de São Bento do visão aguçada para o futuro do município, visualizou o turismo co- posições, tanto locais quanto externas, como o Revelando São Paulo, Sapucaí nos anos de 1960, quando o município foi elevado à condi- mo um segmento capaz de promover o desenvolvimento econômi- que vinham acontecendo. A partir deste trabalho de força e empe- ção de Estância Climática pelo Governo do Estado de São Paulo (Lei co local. Proprietário de terras, decidiu fazer a doação de uma área nho, o artesanato conseguiu firmar-se. Novos grupos foram surgindo

sumário 70 e, o mais importante, foram entendendo que o crescente fluxo turísti- co, além de estímulo ao seu trabalho, criava novas oportunidades de investimento.

Na Administração seguinte, sob o comando do sr. Bento Nunes Duarte e sra. Selma Oliveira Duarte, o reforço ao trabalho artesanal se deu através da criação da Casa do Artesão e da ARTEBEN – Associação responsável por agregar estes profissionais e por promover a Praça da Cultura. Por um período, o município chegou a ter o maior número de cadastros na SUTACO – Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades, do Governo do Estado.

Neste sentido de desenvolvimento, papel especial coube também ao Acampamento Paiol Grande. Entidade de cunho educacional im- plantada na década de 40, o Acampamento contribuiu e ainda con- tribui significativamente para a promoção do município como desti- no turístico. Não são poucos os ex-paioleiros que retornam e visitam o município, utilizando-se os equipamentos e programas turísticos existentes.

Perspectivas e possibilidades

Ao longo do tempo o potencial do município foi sendo reconhecido tanto por investidores de dentro e de fora de São Bento, que passaram a investir em pousadas, restaurantes, agências de viagens e turismo e espaços de artesanato. Todos com o intuito de atender a demanda que estava aumentando consideravelmente, notadamente por conta do complexo Pedra do Baú – maior atrativo natural local e regional.

Atualmente, a maioria de empreendedores do trade turístico é de sambentistas, pessoas que acreditaram no potencial turístico local e investiram seus esforços, suas economias e todos os seus sonhos A congada criada, mantida e dirigida por da. Luzia, referência de vida cultural da cidade e, especialmente, do bairro do quilombo num negócio que depende de muito trabalho, garra e espírito coletivo. Foto Geraldo Francisco da silva, 2012 Mas contamos também com empreendedores externos. Eles adota- ram e foram adotados por nosso município e tem feito investimentos, até mesmo de risco, sem perder o foco no desenvolvimento do turis- mo como um negócio. Fontes escritas Fontes orais

Nos anos recentes, a condução do turismo no município vem sen- Registros da Secretaria Municipal de Turismo e Eventos e da Diretoria Petronilha Ambrogi de Oliveira do feita a partir do COMTUR - Conselho Municipal de Turismo -e do de Cultura e Eventos Órgão Municipal de Turismo. Em conjunto, eles reúnem e promovem Benedito da Silva Santos programas focados na sustentabilidade e no desenvolvimento econô- mico da comunidade sambentista. Ildefonso Mendes Neto

É uma nova realidade. Começou com pequenas ações de grandes pessoas, que acreditaram na vocação turística do município. Hoje, os atores atuais colhem os frutos positivos de se ter conseguido fazer desta acolhedora e encantadora Estância um destino atrativo e con- solidado no mercado. sumário 71 que leva à Igreja Matriz. O movimento maior da cidade, com comér- O passado cios e circulação de pessoas, fica mais abaixo, na avenida Conselheiro Rodrigues Alves e praça Monsenhor Pedro. Por muito tempo a agricultura foi determinante para a construção Entre o passado e o futuro do município e sua cultura. Produtos como arroz, fumo, trigo, man- Marília Ribeiro Souza Surpreso, João agradeceu as informações e seguiu na caminhada. dioquinha e banana fizeram com que São Bento fosse conhecido e se Desapontado, acabara de saber que a sua saudosa rua de cima ficara destacasse como importante produtor. no passado. Havia se transformado na rua Alferes Pedrosa. O cultivo da azeitona também teve seu lugar nos anos de 1950/1960, mas a experiência não teve o êxito esperado e foi des- continuada. Na década de 90 foi a vez da mandioquinha. O plantio foi significativo, colocando São Bento como o maior produtor da re- Tudo era mato! Muita lavoura de arroz. Melhor arroz da gião, sendo objeto de estudos da Embrapa. Atualmente possui pou- região. Hoje o arroz está barato, somente os grandes cos produtores, devido à incidência de doenças e pragas na cultura. produtores dominam tudo. Aqui a cultura era manual e José Dimas de Barros é produtor rural no bairro do Pinheiro e um dos a terra era preparada com a ajuda dos carros de boi. O precursores dessa cultura. Hoje ele planta, além da mandioquinha, arroz era colhido à mão e seco no quintal. Tudo de forma morango, banana e milho. Dimas explica que continua vendo a man- caseira! Antônio de Barros Dias (Tio Maceto), 2015. dioquinha como uma boa opção para ser cultivada: “Novas técnicas e qualidades de muda chegaram a São Bento na década passada, trazidas pela Fazenda do Estado e pela engenheira agrônoma Silvana Bueno. Para continuar cultivando é preciso ter persistência e aprovei- tar as oportunidades. Hoje eu também produzo mudas e vendo para o Brasil todo’’.

Essa economia rural meio comercial e meio de subsistência mar- Os comércios levantavam as portas, pessoas caminhavam rumo ao cou o passado. Era comum fazer a lavoura, colher e depois vender ou trabalho, carros subiam e desciam. Acompanhando esse movimen- barganhar os produtos. Plantava-se quase tudo o que se precisava. to, João lembrava-se do vai e vem e de tudo que havia vivido, muito Transformava-se a cana em rapadura, o milho em farinha, a mandioca tempo atrás, naquela rua. Mas, vendo as diferenças, se perguntava se em polvilho, o leite em queijo fresco. Matava-se o porco e guarda- aquela era realmente a sua rua de cima. João nascera e morara em va-se a carne nas latas de gordura. O feijão, o arroz e o milho, plan- São Bento até a adolescência, quando se mudou para outra cidade. tados em maior escala, eram levados a beneficiar nas máquinas do Agora, aos 65 anos, estava de volta a São Bento para um final de se- Luiz Leopoldo, do Zeca do Estêvão, do Roberto Rennó e de outros. mana e rever antigos conhecidos. Comprava-se nas vendas e armazéns o que não se conseguia produ- zir ou trocar, como sal, querosene, botinas, panos e ferragens. Resolve entrar numa loja de roupas, dirige-se à jovem vendedora e indaga: Esse viver predominantemente rural – entremeado, é verdade, por formas e lugares do viver urbano como os da rua de cima -, o difícil _ Bom dia! Por favor, qual o nome desta rua? acesso a grandes centros e a grande extensão de território municipal ficaram para trás. Deram lugar, hoje, a novas oportunidades, desafios, _Bom dia! Aqui é a ua Alferes Pedrosa – responde a moça. O senhor conquistas e lembranças. está procurando algum lugar ou alguém?

_ Na verdade, queria confirmar se esta é a rua de cima. O futuro

_Como, rua de cima? Tivemos nas últimas três ou quatro décadas transformações que mudaram e ainda estão mudando a concepção e a cultura da vida _Sim! A rua de cima, onde todos se encontravam e tudo acontecia nas pequenas cidades interioranas. Entre elas, São Bento do Sapucaí, há alguns anos, ou melhor, há algumas décadas. que deixou de ser um pacato município, predominantemente rural, e Estudante em festa escolar / Foto Geraldo F. da Silvade Geraldo F. da Silva, começou a receber turistas vindos de grandes centros, principalmente _ Me desculpe! Acho que o senhor está no lugar errado. Aqui é a rua 2015 da capital do estado, São Paulo. Com os turistas, veio a oportunidade

sumário 72 de explorar de forma sustentável o turismo. Nesse segmento está a Entre o passado e o futuro Em meio a tantas mudanças, o certo é que o município ainda pre- base nova da economia sambentista, juntamente com as tradicionais serva a simplicidade de uma cidade, que já foi de base predominan- atividades agrícolas. Para a geração de hoje é bastante difícil imaginar como era a vida temente rural. As pousadas, restaurantes, bancos, lojas e outros ser- no século passado. As histórias contadas pelos mais velhos são ouvi- viços se instalaram, melhoraram e o município já está no caminho do Não há conflito nessa mudança. Ao contrário, pode-se perceber das com surpresa pelos jovens, que se perguntam como era possível desenvolvimento do seu potencial turístico. Caminho que promete um uma forte interação da agricultura com o turismo. As práticas sus- viver em meio a tantas dificuldades e restrições. futuro próspero, com a exploração de um turismo econômica e am- tentáveis são valorizadas, ganham espaço e atraem cada vez mais bientalmente sustentável, que valoriza e preserva as riquezas naturais, visitantes para a região. Por consequência, o homem do campo tem Mas a relação com o passado é diferente para o sr. Antônio de a cultura, o trabalho e a identidade de seu povo. a chance de permanecer no campo, vivendo com conforto e produ- Barros Dias, o conhecido Tio Maceto. Para ele “antes é que existia zindo de forma familiar. São Bento, assim, vem se transformando em liberdade. Antes a gente trabalhava, apurava o dinheiro e podia fazer polo de tecnologia e inovação agrícola, sendo exemplo para outros coisas. As pessoas acreditavam na gente. A palavra tinha valor, havia Fontes orais municípios. A diversidade da produção gera uma oferta de alimentos parcerias e dividíamos as coisas’’. Sr. Antônio diz ainda que “hoje há de qualidade, essencial para uma identidade gastronômica local e re- mais conforto, melhores condições de vida e de trabalho”, mas ele Antônio de Barros Dias gional. São Bento não se destaca apenas pela produção de banana, gostaria que no meio de tantas mudanças se mantivessem “a confian- mas também pela produção de frutas vermelhas, castanha portugue- ça e o companheirismo”. Rodrigo Veraldi Ismael sa, azeitona, atemoia, uvas viníficas e lúpulo. As mudanças sociais, econômicas, ambientais e culturais em pro- José Dimas de Barros Rodrigo Veraldi Ismael é engenheiro agrônomo e produtor rural, cesso no país são grandes, sem dúvida. Mas também é certo que a com plantações de frutas vermelhas, uva, azeitona e lúpulo no bairro cada dia as pessoas buscam mais tranquilidade, qualidade de vida e Silvana Catarina Sales Bueno Campo Serrano. Ele vê o agro-turismo como uma grande oportuni- contato com a natureza. dade para todos os produtores rurais. “São Bento é rural. O futuro é Ildefonso Mendes Neto isso! Na verdade já é o presente! Sou feliz por viver disso! A fórmula São Bento acompanhou as transformações, investindo em edu- do agro-turismo deu certo e veio para ficar, pois as pessoas estão em cação, com a abertura de uma escola de tempo Integral e de cur- Alessandra Goulart Carvalho busca de qualidade de vida e alimentos saudáveis. São Bento oferece sos técnicos, além de estar se preparando para vir a ser um polo da tudo isso!’’ Universidade de Taubaté, neste canto privilegiado da Mantiqueira, com a oferta de cursos superiores. Esse avanço na educação possibi- lita que a nova geração cresça mais capacitada cultural e profissional- mente, para a vida e para o mercado de trabalho.

Por do sol na serra /Foto Geraldo F. da Silva, 2012

sumário 73