“— e há os terapeutas natos, como Barry Stevens." “Como pessoa, não é fácil classificá-la (...) Tem um pensamento e uma vida independentes, numa luta contínua para romper os laços que tendem a prender todos nós. (...) De alguma forma atingiu uma sabedoria de vida excessivamente rara nestes dias em que o conhecimento assumiu tamanha importância.” Carl Rogers Este livro é um relato, na primeira pessoa, a respeito do uso que a autora faz da Gestalt- terapia e dos caminhos do Zen, Krishnamurti e índios americanos para aprofundar e expandir a experiência pessoal e o trabalho através das dificuldades. “Temos que nos colocar de cabeça para baixo e inverter nossa maneira de abordar a vida”. Este episódio autobiográfico mostra a autora neste processo, em 1969, durante um período de três meses em contato com Fritz Perls, no Instituto Gestalt do Canadá.

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Stevens, Barry, 1902- S867n Não apresse o rio : ele corre sozinho / Barry Stevens : [tradução de George Schlesinger ; supervisão da edição de Paulo Eliezer Ferri de BarrosJ. — São Paulo : Summus. 1978. (Novas buscas em psicoterapia ; v. 6) 1. Auto-realização 2. Consciência 3. Felicidade 4. Gestalt (Psicologia) I. Título. CDD—131.3 78.0539 —150.1982 índices para catálogo sistemático: 1. Arte de viver : Psicologia popular 131.3 2. Consciência de si: Psicologia popular 131.3 3. Crescimento pessoal: Psicologia popular 131.3 4. Felicidade : Psicologia popular 131.3 5. Gestalt: Psicologia 150.1982

Do original em língua inglesa DON’T PUSH THE RIVER (it flows by itself) Copyright © 1970 by Real People Press Tradução de George Schlesinger Revisão científica da edição e direção da coleção: Paulo Eliezer Ferri de Barros Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio e sistema, sem o prévio consentimento da Editora. Direitos para a língua portuguesa adquiridos por SUMMUS EDITORIAL LTDA. que se reserva a propriedade desta tradução. Rua Cardoso de Almeida,* 1287 05013-001 - São Paulo, SP Telefone (011) 3872-3322 Caixa Postal 62.505 - CEP 01214-970 http://www.summus.com.br e-mail: [email protected] Impresso no Brasil Este e-book Digitalização, ocerização, revisão inicial: The Flash

NOVAS BUSCAS EM PSICOTERAPIA Esta coleção tem como intuito colocar ao alcance do público interessado as novas formas de psicoterapia que vêm se desenvolvendo mais recentemente em outros continentes. Tais desenvolvimentos têm suas origens, por um lado, na grande fertilidade que caracteriza o trabalho no campo da psicoterapia nas últimas décadas, e por outro, na ampliação das solicitações a que está sujeito o psicólogo, por parte dos clientes que o procuram. É cada vez maior o número de pessoas interessadas em ampliar suas possibilidades de experiência, em desenvolver novos sentidos para suas vidas, em aumentar suas capacidades de contato consigo mesmas, com os outros e com os acontecimentos. Estas novas solicitações, ao lado das frustrações impostas pelas limitações do trabalho científico tradicional, inspiram a busca de novas formas de atuar junto ao cliente. Embora seja dedicada às novas gerações de psicólogos e psiquiatras em formação, e represente enriquecimento e atualização para os profissionais filiados a outras orientações em psicoterapia, esta coleção vem suprir o interesse crescente do público em geral pelas contribuições que este ramo da Psicologia tem a oferecer à vida do homem atual.

Índice LAGO FOLHA MIRAGEM NEVOEIRO Janela para o Turbilhão Aqui e Ali Considere as Margaridas do Campo Três Perguntas O Ouvinte O Primeiro Princípio PEDRA UM PAPO COM BARRY

LAGO Lake Cowichan, B. C. Três meses antes de 1970. Manchas de céu azul e algumas nuvens claras. Muitas nuvens carregadas, prestes a desabar sobre o lago frio e encrespado. Na relva, o farfalhar das folhas secas das árvores de bordo. Campinas enfeitadas de trigo que balança. Na outra margem do lago, todas as árvores parecem quietas. Algo estranho se passa dentro de mim. Não sei o que quero. No momento em que escrevi isso, fiquei sabendo. Em outubro de 1967 meu filho me enviou um formulário de inscrição, dizendo: “Preencha! Você não se arrependerá!”. Eu preenchi, e assim inscrevi-me para participar de um grupo que se reuniría durante uma semana, das nove ao meio-dia, com um homem chamado Fritz Perls, no Instituto Gestalt de São Francisco. Eu não tinha idéia do que me esperava. . Numa manhã de segunda-feira, éramos quinze pessoas reunidas com o Fritz, numa grande sala vazia da Oficina de Dança. Outro grupo estava ocupando a sala do Instituto, que era o sótão da casa de Janie Rhyne. Na Oficina de Dança, um pouco de luz penetrava por uma porta situada num canto; a porta dava para outra sala, que tinha janelas. Havia uma cadeira grande, bastante confortável, para o Fritz. Nós estávamos sentados em cadeiras dobráveis. Fritz disse: “Acho difícil a gente se sentir íntimo nesta sala”. Formávamos um pequeno círculo de gente no meio de um grande espaço vazio. Meus pés estavam frios. Desejei estar usando meias de lã, em vez de sandálias sem meias. Fritz pediu que cada um de nós dissesse como estava se sentindo em relação à sala. Todo mundo a sentia fria, de uma forma ou de outra. Uma mulher quis que fôssemos todos para o apartamento dela. Fritz perguntou o que sentíamos em relação a isso. Não quisemos ir. Neste momento, isto é tudo que quero escrever sobre aquela ocasião. Dois anos depois, ela parece tão longe, tão longe, e agora estou no Instituto Gestalt do Canadá, em Lake Cowichan, B.C. Ao ver o trabalho que o Fritz fazia com as pessoas em São Francisco, fui ficando cada vez mais mistificado. Era óbvio que ele sabia o que fazia, era óbvio que freqüentemente obtinha bons resultados. Mas, com os diabos, como é que ele fazia? Agora já sei como, e sinto falta da mistificação. As vezes, consigo recuperar um pouco daquela sensação, fazendo coisas que ele fazia, embora saiam diferente, pois sou eu que estou fazendo. Quando isso ocorre, sinto-me muito, muito bem. Certa vez eu disse ao Fritz que não queria fazer uma coisa que ele estava mandando. Então pensei: Bem, talvez isso tenha algum valor que eu não consigo enxergar. Aí perguntei a ele: “Mesmo assim você quer que eu faça?”. Ele não disse nada. Como um índio, não disse absolutamente nada. Não havia nenhuma parte dele que estivesse dizendo algo. Eu é que devia decidir. De outra feita, quando eu estava prestes a ocupar o lugar quente (hot seaf), notei que sobre a cadeira havia uma pasta contendo parte do manuscrito dele. Perguntei: “Devo sentar em cima ou tirar?”. Ele disse: “Você está me perguntando”. Nas duas ocasiões tive de decidir sozinha. Agora já não pergunto tanto. Não perguntar me restitui parte do meu poder. Uma amiga minha, professora numa escola situada no deserto da Califórnia, fez seus alunos transformarem a pergunta: “Posso pegar a minha folha na sua mesa?” em “Vou até a sua mesa pegar a minha folha”. Toda a classe ganhou mais vida. Quando eu era pequena, costumava ter uma visão: um mundo onde as pessoas saíam de todas as partes, como cabelos em pé numa cabeça, e cada uma curvava-se diante de alguma outra. Todas se curvavam. Ninguém fazia o que queria. Num mundo como esse, ninguém tinha vez. Esse mundo não servia para mim. Uma escuridão cheia de fogo e faíscas dolorosas tomava conta da minha cabeça. Eu não queria viver num mundo desses, e era obrigada a viver nele. Quando digo “Por favor, posso?”, posso pensar que estou sendo educada e superior. Ao mesmo tempo, sinto-me inferior, fraca, pedinte, à mercê da outra pessoa. O outro tem a minha vida nas suas mãos. Eu perco meu senso de Eu, curvando-me diante de você. Quando simplesmente faço (sem ser rude), sinto-me forte. Meu poder está em mim. Em que outro lugar deveria estar o meu poder? E claro que posso ser expulsa. Fritz estava dando uma demonstração num auditório de uma escola secundária. Um sujeito se levantou e deu o aviso costumeiro de não fumar, regulamentos de incêndio, e assim por diante. Após a demonstração, uma jovem perguntou ao Fritz, que tinha fumado o tempo todo, como sempre: “Que direito tem você de continuar fumando, quando alguns de nós estavam mortos de vontade de um cigarro?”. Fritz respondeu: “Não tenho o direito de fumar, e não tenho o direito de não fumar — apenas fumo”. Mulher: “Mas suponha que você seja expulso”. Fritz: “Então serei expulso”. Que horror! Toda essa gente olhando para mim como uma pessoa expulsa. Nunca entendi completamente introjeção e projeção; posso estar enganada, mas me parece que eu introjetei a noção de que é ruim ser expulso, e então projeto-a sobre os outros. Pois é claro que não sei quantas daquelas pessoas teriam me olhado dessa forma, e quantas teriam me invejado por fazer o que eu queria — mais outras noções sobre as quais não pensei. Quando estou centrada em mim mesma, nenhuma delas tem importância. Quando eu era jovem, sabia disso. A minha tia Alice tinha uma casa na praia. Aquela praia era um lugar mágico para mim, o vento soprava, o sol brilhava, as nuvens voavam, as ondas estouravam no seu próprio ritmo, independentemente de tudo. Conchas muito brancas. Conchas douradas e brilhantes. Quilômetros de praia branca. Dunas de areia que se deslocavam o tempo todo. Grama. Pássaros pretos com asas vermelhas. Pequenos lagartos. Às vezes uma garça azul planando sobre um arbusto mais antigo. Ali tudo cantava. Ali eu cantava, mesmo quando não fazia som. Agito, ergo sum. Certo verão, eu tinha catorze anos, a tia Alice viajou e me deixou com um rapaz de 26. Eu não gostava dele. Era um dos aduladores da minha tia. E era uma víbora. Ele disse que a “Sra. B.” tinha mandado eu cozinhar para ele. Eu achava bastante provável ela ter dito isso. Mas não ia cozinhar. Disse-lhe que não. Se eu cozinhasse, toda a minha alegria iria desaparecer. Ele podia cozinhar sozinho. Ficou me chateando. Mas eu não ia cozinhar. Talvez a tia Alice me expulsasse ao voltar — me mandasse de volta para casa; mas se eu cozinhasse para o Ruddy, detestando-o e detestando cozinhar para ele, ficaria tomada de ódio e não aproveitaria a praia agora. Aproveitei a praia agora, e esse prazer não me podia ser tirado. Agora estou com um pouquinho daquela sensação. Se eu amar Lake Cowichan, e não puder ficar a meu modo, não estarei amando, e não me importa ser expulsa. Voltei a me sentir estranha. Não sei qual é o meu modo. Na semana passada, na Califórnia, escrevi algo que estou com vontade de botar aqui: Hoje de manhã, antes de me sentar à máquina de escrever, tanta coisa se passava na minha cabeça. Agora estou aqui sentada, e nada vem. Estou sentada numa varanda, diante de uma janela que dá para o interior da casa, e o jardim atrás de mim está refletido nela. Nas partes em que meu corpo interrompe o reflexo, vejo uma mesa — metade de uma mesa. Ela termina onde acaba o meu próprio reflexo, e se transforma em árvores, plantas e arbustos, aqui e ali uma perna de mesa, um painel ou uma parede. Gosto dessa mistura. Nada sólido. Nenhuma separação entre “dentro” e “fora”. “Eu fico tão frustrado ao tentar transmitir que Gestalt não são regras”, disse Fritz certa manhã num grupo em Lake Cowichan. “Ele é novo no trabalho, mas está se saindo bem”. Leia e note o que você consegue tirar daí. Troque “mas” por “e”. Ele é novo no trabalho e está se saindo bem. Leia, entenda; não é nada. Faça-o algumas vezes, e então torna-se parte de si. Faça-o o tempo todo, como uma regra, e volta a ser nada. Use o que está à mão. Um jovem tinha ocupado o lugar quente e trabalhado o problema da sua importância com tanta liberdade como se não estivéssemos ali. Dois dias depois, ocupou de novo o lugar quente, olhou em tomo de si e disse: “Estou com vergonha. Toda essa gente olhando para mim”. Fritz levantou-se e foi até um armário. Voltou com uma pilha de folhetos e entregou-os à pessoa mais próxima de si. Cada pessoa pegava um, e passava o resto adiante. Cada pessoa começou a ler o folheto, que era uma cópia de um artigo do Fritz. O jovem disse: “Agora estou louco da vida com toda essa gente lendo o folheto em vez de olhar para mim!”. Ele riu. “Muito engraçada essa vergonha!” Ele tomou presente algo de que não tinha consciência antes. “Aprender é descobrir.” “Mesmo que eu esteja certa na minha interpretação, se eu contá-la a ele, roubo-lhe a oportunidade de descobrir por si só.” No Canadá, um funcionário da Agência de Assuntos Indígenas estava numa balsa com Wilfred Pelletier, índio. O funcionário do governo saiu para o convés, e quando passava pela porta seu chapéu quase foi arrastado pelo vento. Ele sabia que Wilfred o seguia, esteve prestes a avisá-lo, e não o fez. Wilfred saiu e seu chapéu foi levado. “Por que você não me avisou?” O homem do governo respondeu: “Eu ia avisar, mas depois lembrei que os índios não avisam as pessoas. Eles deixam que elas descubram sozinhas”. Wilfred dobrou-se de tanto rir. “Você ainda vai virar índio!” Wilfred não foi índio ao deixar o seu chapéu ser levado. Ele não notou. Não teve autoconfiança. Não estava consciente. Um pássaro: “ch-ch-ch-ch-ch”. Outro assobiando suavemente. Cada um deles é ele próprio. Nenhum deles está tentando ser o outro. O tordo-dos-remédios pega os cantos e sons de muitos pássaros e os toma seus, e isto é próprio dele. Paro. Noto dor no meu peito; leve, suave e dolorida. O que faço com ela? Deixe acontecer o que acontece. Minha respiração se toma mais profunda, mais forte. E então, mais leve outra vez. Agua nos meus olhos, começo a compreender de uma maneira não transmissível aos outros. E o meu próprio saber. ... Agora entrei no autismo: pensamentos, imagens, cenas e planos do que farei quando — não será o que farei. Não tomar consciência. Não notar. Nada de pássaros, nada de ventos, nada de interiores/exteriores misturados — não notar nada a não ser o que está se passando na minha cabeça, nenhuma ligação com a realidade. Nem mesmo notar a dor no lugar onde as bordas da cadeira e as minhas coxas se juntam. Não tomar consciência da dor no peito e em outros lugares. Este “agora” é como todos os agoras, já se foi quando eu começo a notá-lo. Já se transformou em alguma outra coisa. Alguém conhece a história do Epaminondas? Era um menino que tentava ser bonzinho e sempre fazia as coisas erradas. Quando ele trouxe a manteiga para casa, ela estava toda melada e inútil. Sua avó lhe disse que ele deveria ter posto folhas frescas no chapéu, botado água fresca e trazido a manteiga dentro. Na vez seguinte, teve de trazer um cachorrinho. Recordou-se das instruções da avó. O cachorrinho se afogou. A avó lhe ensinou como deveria ter trazido o cachorrinho, e na vez seguinte ele o fez, mas não era um cachorrinho e a coisa também não deu certo. E assim por diante. Me lembrei do que aprendi com essa história durante sessenta anos. Pensei nela quando uma jovem me levou para o aeroporto e insistiu em ficar até estar certa de eu ter partido em ordem. Ela conta que levara duas pessoas com quatro filhos para o aeroporto, e tinha ido embora, “e eles tiveram de esperar doze horas!” E eu, o que é que tinha a ver com isso? Eu estava sozinha, e às vezes quando tudo sai errado, acontecem coisas maravilhosas e eu aproveito coisas que teria perdido se tudo tivesse dado certo. Se não, sempre posso dormir. Não gosto de ser tratada como se fosse outra pessoa. Sinto-me como se não estivesse ali. Nesta tarde ensolarada de setembro, conversando com uma jovem na relva, o Natal entrou na conversa. Ela disse que não gostava do Natal, mas que concordava com ele porque gostava de algumas coisas, como fazer biscoitos e dá-los aos vizinhos. ‘ Por que deixar isso para o Natal?” “Você quer dizer, fazer em qualquer época do ano?” Ela parecia excitada. (“Não são as correntes que atam os corpos dos homens, mas as correntes que atam as mentes dos homens”) Certo ano, mandei cartões de Natal em junho. Uma porção de gente adorou receber cartões de Natal em junho. Muito mais do que as que gostam de recebê-los no Natal. Quando eu estava doente, alguém me mandou um pacote contendo uma porção de coisas diferentes. Havia uma caixa cheia de cartões de aniversário. Eu não me lembro de quando as pessoas fazem anos, e geral mente esqueço o meu próprio aniversário. Eu “nunca” mando cartões de aniversário. Mas eu os tinha, e então, sempre que pensava em alguém de quem gostava e não recebia notícias há algum tempo, mandava um cartão de aniversário. Algumas pessoas me escreviam contando o prazer que haviam tido. Três pessoas se lembram do meu aniversário e me mandam cartões todo ano. Eu me aborreço. Acabou de voar um pássaro de um galho atrás de mim. Agora ele está na relva e eu vejo que é um tordo. Que importância tem saber que tipo de pássaro ele é? Eu gosto de vê-lo no reflexo, ver algo atrás de mim em vez de ver sempre algo na minha frente. Existe um experimento de treinamento visual, feito por Bates-Huxley, no qual a gente fecha os olhos e olha para um local na base da nuca, onde ela se torna pescoço. E muito aliviante. Quando eu o faço, percebo como os meus olhos têm sido puxados para a frente, para a frente. As inversões são parte da Gestalt. Romper algumas das correntes. As ferramentas conceituais da Gestalt certamente são úteis. Me incomoda quando as ferramentas são usadas sem compreensão da Gestalt, ou com compreensão parcial. Não faça afirmações impessoais. Elas colocam tudo em algum ponto lá longe, como se não fosse parte de mim. Eu me incomodo quando as ferramentas são usadas etc. “Quando o homem errado usa os meios certos, os meios certos funcionam de forma errada.” Com muita frequência, acontecem coisas boas quando as ferramentas são usadas por gente de boa vontade que não as compreende ou não as compreende totalmente. As vezes, alguém é apunhalado ou surrado de maneira inadequada, e isto é prejudicial. Quando uma pessoa sem essa boa vontade — alguém que não tem em mente seus próprios fins — usa essas ferramentas, freqüentemente são prejudiciais. E então, as ferramentas são boas? Devem ser acessíveis? Ou devemos jogar fora a linha, a agulha, e assim por diante? Ou restringir o seu uso? A resposta está na pessoa que responde. Gosto desse “está”. Ela está errada se pensa que está certa. Ela está só com a sua própria resposta.*(*The answer lies in the person who answers. / like that “lies”. It is a lie if anyone thinks he has the right answer. He has only his own answer. A tradução é livre devido à impossibilidade de se traduzir o trocadilho. O verbo to lie significa “estar em”, “residir em”, e também “mentir”; o substantivo lie significa “mentira”. A autora diz gostar da colocação do verbo “estar em” ou “mentir” (the answer lies...) porque é mentira (it is a lie...) se alguém pensa que tem a resposta certa. A primeira frase passa a ter então duplo sentido, podendo ser entendida como: A resposta (julgada certa) mente na pessoa que responde. – N. do T.) A minha própria resposta, que é como se explodisse de dentro de mim... A resposta é eu, e o que explode de mim é eu. Então o que estou dizendo? Há a parte protetora de mim que deseja tomar tudo seguro. Existe a parte de mim que corre riscos e sabe que cabe a mim descobrir o meu próprio caminho, fazer as minhas próprias escolhas, e se eu fizer muitas escolhas erradas, é isso mesmo. Eu me iludo quando deixo as outras pessoas escolherem por mim. “Respeite a autoridade” é um dos logros mais bem-sucedidos — respeitar a autoridade quando ela não está de acordo comigo, com a minha autor-idade. Não estou notando, entendendo, e agindo por mim mesma. Eu penso. Eu penso que esse sujeito deve estar certo por causa da posição dele, do seu treinamento, da sua idade etc. Eu “digo a mim mesma” que ele deve estar certo. O que quer que eu diga a mim mesma é mentira para mim, e eu sou a pessoa a quem estou mentindo. Jantei com uma mulher que conheci quando jovem, quando ela possuía um espírito bastante rebelde, e também um bocado de insegurança. No jantar, ficou claro que ela havia abandonado o espírito rebelde e adquirido aquela espécie de segurança que inclui uma bela casa, renda fixa, marido fixo, e assim por diante. Não se devia falar sobre assuntos perturbadores. Tudo estava muito bem e eu me senti triste. Disse a mim mesma que estava certo, que ela havia escolhido esse caminho, e o caminho era realmente muito bom, confortável e agradável. Eu me senti “boazinha” a noite inteira (acho). “Não perturbe nada”, estava tão claro no ar. Eu o respirei como éter e adormecí. Ela me levou para casa. Quando ela se foi, notei que estava cantarolando algo que não consegui identificar. Continuei cantarolando até o fim, antes de saber o que o meu eu organísmico estava fazendo. Bem no final, vieram as palavras: “Pobre Borboleta”. Eu conhecia a minha tristeza, que era real. Ninguém mais me confunde. Eu mesma o faço. Fritz chama isso de “zona intermediária”, este lugar no qual eu confundo a mim mesma. Krishnamurti o chama de “mente superficial”, que não consegue chegar ao fundo pela sua própria natureza. Não importa quanto ela pense, ela ainda está pensando — pensando em toda espécie de coisas que não provêm de mim; e ainda assim, penso nelas como sendo eu. Em seu livro Freedom from the Known — (Libertar-se do conhecido) — z Krishnamurti conta um fato que se passou quando viajava de carro pela índia, com mais dois homens e um motorista. Os dois homens estavam discutindo sobre tomada de consciência, e fazendo perguntas a Krishnamurti. O motorista não notou uma cabra e atropelou-a. Os dois homens não notaram. “E com a maioria de nós se dá o mesmo. Não tomamos consciência das coisas de fora e das coisas de dentro.” Fritz nos orientou para oscilarmos entre coisas de fora (“a zona externa”) e coisas de dentro (“a zona interna”), chegando a uma tomada de consciência. Neste instante tenho vontade de voltar às “ferramentas conceituais”, à eu protetora e à eu que se arrisca... A minha mente está vazia outra vez. O que ali estava antes não está presente agora. Noto que tenho vontade de fazer uma xícara de chá. Isso não é evitarl.Se esta máquina de escrever tivesse um grito, meu grito estaria no papel. E claro que eu evito. Evito uma porção de vezes. Existe o evitar bom e o evitar ruim, e às vezes ficar com a mente vazia não é evitar. Meu grito ocorre porque o Fritz enfatiza o evitar, e não deixa as pessoas evitarem o que não deve ser evitado (tomada de consciência). Muita gente acha que “evitar é ruim”, e aplica isso a tudo que eles consideram evitar. As vezes prefiro o Zen, mesmo que demore vinte anos. Não tenho certeza de que a Gestalt não leva vinte anos para atingir o mesmo lugar. Não conheço nenhum jeito de evitar que as pessoas usem mal qualquer coisa, inclusive o Zen. E então — entrei no problema do mau uso. Estou evitando a xícara de chá que não fiz? Ou meu organismo — o eu não-pensante — usa o que tem à mão, e me levou ao que eu queria por outro caminho? Agora sei o que não estava comigo há pouco. A parte protetora de mim quer deixar tudo seguro para todo mundo — nada de mentirosos, de homens ruins, de falsos guias, de distorcedores da mente, de exploradores, de charlatães... O que vem a seguir eu não quero dizer porque é tão idiota — nada de terapia imperfeita ou terapeutas imperfeitos. Ao mesmo tempo, a minha experiência — a minha própria observação — diz que tentar deixar tudo seguro — como os Estados Unidos vêm tentando fazer há tanto tempo — leva à loucura, como a guerra no Vietnã; e em todo caso, se tivéssemos um mundo à prova de tolos, apenas tolos viveríam nele. Esse não é o mundo que eu quero. Eu me rebelo contra o protecionismo da minha própria sociedade. O método indígena de confiar nos próprios sentidos tem sentido para mim. Aqui entra uma parte da Gestalt da qual eu gosto. Uma parte? Isso é tudo: “Perca a cabeça e chegue aos sentidos.’’ Isso também pode ser mal-entendido e mal empregado. Quando voltei a Lake Cowichan quatro dias antes, estava confusa, não responsiva, não aqui. Eu não sabia o que estava errado comigo. Tentei descobrir. Eu achava uma resposta, mas ela não me adiantava nada, e novas respostas continuavam vindo, sem fim. A minha infelicidade parecia estar relacionada com este lugar. No dia l2 de junho, Fritz mudou-se para cá com vinte de nós. Ele não nos conhecia a todos. Muitos de nós conheciam apenas um dos outros. Não tínhamos vivido juntos anteriormente. Mudamo-nos, arrumamos, modificamos o lugar, e o primeiro workshop começou às oito da manhã no dia seguinte. Às dez horas começamos a elaborar coisas, tais como a alimentação da comunidade. Era maravilhoso observar e tomar parte no que estava acontecendo. Fritz nos disse que havería seminários das oito às dez da manhã, seguidos de duas horas de trabalho na comunidade. Das duas às quatro da tarde havería tempo livre para quem quisesse ensinar massagem, dança, arte ou qualquer outra coisa. Das quatro às seis, um período de trabalho. Das oito às dez da noite, novamente seminários e depois, reunião da comunidade. Algumas coisas se inverteram e foram tentadas de outra maneira — e às vezes voltavam à maneira inicial — acontecendo à medida que íamos adiante. As coisas continuaram seguindo esse caminho, até 24 de agosto, quando Fritz saiu por um mês. Eu saí por três semanas e muitos outros também saíram. Teddy e Don mantiveram um workshop durante esse período. Quando voltei, quatro dias atrás, tudo estava ORGANIZADO. Quem mora onde, o que fazer, quando. Diagramas para o grupo, tais como troca de guarda — a organização não- organísmica da qual tanto não gosto, que não é comunidade para mim. Não pude ver meio de mudar isso. (Não importam os porquês, nem se eu podia ou não mudar.) Eu não queria ser parte disso. Eu queria ficar aqui. (Também não importam os porquês disso.) Tentei decidir o que faria. Vi algumas coisas que queria e podia fazer, e mesmo estas não chegaram a me atrair. Eu estava sentindo uma espécie de náusea. Desviei-me de tentar rir dela (esquecendo que “tentar é mentir” — trying is lying) para tentar (este é um tentar diferente) me soltar com a náusea e voltar. Decidi simplesmente não mostrar o jogo até o Fritz voltar, no fim da semana. Riso de mofa. Não gostei da decisão. Eu decidi. Decidi. Decidi. Nenhuma delas grudava. E óbvio. Eu me sentia estranha. Na terceira noite não consegui dormir, o que não é muito comum. O aquecedor fazia barulho. Eu o desliguei. Estava frio. Levantei-me e enchi uma bolsa de água quente. Não me recordo das coisas que se passavam dentro de mim, mas desliguei-as ou as aqueci também, e entrei numa outra espécie de confusão. Por volta das quatro e meia, adormeci. Quando acordei, preparei uma sopa de tomates porque me parecia preferível a bolinhos de galinha. (Ainda não reabasteci a minha cozinha.) Enquanto cozinhava, notei uma canção em surdina na minha cabeça. Escutei para descobrir qual era, e ouvi: “A velha égua cinzenta, ela já não é mais o que era, não é mais o que era...”. Quanto prazer na minha risada! A eu organísmica -— meu organismo — saindo, bem de dentro de mim. Como um pequeno raio de sol, meus sentidos voltando, dissipando o nevoeiro insensível no qual eu estivera imersa. Então, os acontecimentos começaram a acontecer, o que era impossível antes, quando eu estava insensível e não reagia. Eu e mim somos uma só. (Z and me are one.) Isso aconteceu ontem. Hoje é um dia lindo. Céu cheio de nuvens, chovendo. Vesti um poncho sobre o pijama, para subir o morro e atender a um telefonema interurbano. Era Neville, telefonando de Nova York para saber a data dos workshops de outubro e novembro. Era uma coisa de nada, e no entanto eu estava tão feliz falando com ele. Ainda estou feliz, como se nada no mundo pudesse mudar isso. E claro que não é verdade — mas ao mesmo tempo é verdade. Nada no mundo pode transformar a minha felicidade agora. O que farei aqui se perdeu. Eu estou fazendo. Saí do futuro onde não posso fazer nada exceto em fantasia, e entrei no presente, onde tudo acontece. Aprendi algo. Recuperei algo, ou des-cobri e re-des-cobri (Ihave recovered something, or uncovered it and re-discovered it\ assim como Fritz é um re-descobridor da Gestalt. *** 1948. Junho. Fui despedida da Escola de Vale Verde, que naquela época estava em construção. Na diretoria sem móveis, Ham me despedia e continuava dizendo: “Detesto fazer isso. Você é muito eficiente”, e continuava a se reassegurar de que estava certo. Eu não gosto de ver gente sofrer, mesmo com as suas próprias confusões. É só depois que fico achando ridículo. Willie, o cozinheiro, me perguntou: “Como você está de dinheiro, menina?”. Alguns dos funcionários Hopi me convidaram para ir, junto com meu filho (treze anos), viver com eles em sua aldeia, na reserva indígena. Blackie, o diretor de Sedona Lodge, veio a mim com uma das mãos para trás. Em poucos minutos a sua mão apareceu, e ele me ofereceu uma galinha assada. Lisbeth Eubank nos convidou para ficarmos com ela em Monte Navajo, ao norte da fronteira Arizona/Utah. Fui de carro com uma enfermeira pública. Josephine Scheckner, e sua secretária, Grace Watanabe. Na nossa frente a caminhonete, muito alta, levando o equipamento de raio-x. Com amortecedores extra-altos para proteger o equipamento dos choques, o corpo da caminhonete balançava sobre as molas, e parecia que ia capotar. Meu filho estava com o motorista. Nós os perdemos no Lago Vermelho. A caminhonete desapareceu. Faço uma pausa... Na verdade não quero escrever sobre isso. Foi um período muito inseguro das nossas sempre inseguras vidas, e eu estava preocupada em cuidar de nós. Não me esqueci dessa parte. E ainda assim, havia tanta coisa viva e vital e quente, numa região de gloriosas rochas vermelhas, o céu tão azul, o sol tão quente... Estávamos bem próximas do Monte Navajo quando atolamos na areia. Descemos e cavamos, e pusemos tábuas na frente das rodas. Um índio navajo apareceu. Ele não estava lá — e de repente estava. Era muito magro, e vestia uma calça de pijama em farrapos e um casaco preto em farrapos. Na época, os navajos eram desesperadamente pobres. Ele sorriu, gesticulou, disse algumas palavras, e nós não tínhamos idéia do que ele estava falando... Ele apontou para o céu e moveu a mão como um avião voando em círculos. Então perguntou: “Médica?”, e nós pensamos que ele estava se referindo a Josephine, a enfermeira, embora o avião não parecesse ter muito a ver com atolar na areia. Então, fez com a mão como se estivesse fumando e pediu: “Cigarro?”. Nós lhe demos alguns cigarros. Josephine sentou no lugar do motorista. Grace e eu ficamos atrás dos pára-lamas traseiros, mãos no carro, prontas para empurrar. Fizemos um sinal para o navajo vir e se colocar entre nós, para nos ajudar. Ele colocou as mãos no carro da mesma maneira que nós. Josephine engatou a marcha, e quando o carro se moveu um pouco, Grace e eu nos curvamos com toda a nossa força, para tirar o cano da areia. Ele avançou lentamente, depois mais depressa — e se afastou de nós. Nós nos endireitamos e olhamos para trás — e ali estava o navajo parado, exatamente na mesma posição que lhe tínhamos indicado, como se o carro ainda estivesse ali encostado em suas mãos. Ele não tinha empurrado nada! Ele riu com a alegria de uma criança. Quando chegamos à montanha e contamos a Lisbeth o que tinha se passado com o navajo, ela disse: “Ahhh. esse Hosteen Yazzie!”. Mais tarde, quando Josephine e Grace já tinham ido embora, fui com Lisbeth a uma “cantoria”, numa cabana que ficava a cerca de quinze quilômetros. Lá chegando reconhecí o nosso comediante. Quando me viu, cobriu o rosto com as mãos, como se tivesse corado — e tremeu de rir. Tenho certeza de que ele tinha gostado de ver as expFessões das três mulheres brancas tentando seriamente dar algum sentido ao seu absurdo. Então parei de escrever, dei um passeio na neblina. Eu queria estar de novo ali. Tanta tristeza em mim, recordando. Toda eu tão triste que eu era a tristeza. À noite, após o jantar, meu filho e Robert Tallsalt cavavam em busca de artefatos, Esses artefatos eram dos índios anasazi — não dos navajos, e sim de gente que os precedeu em quinhentos anos, e Robert não tinha receio de desenterrá-los. Certa noite meu filho disse a Robert, o cavador: “Há uma cascavel perto do seu pé”. Robert respondeu: “Ela não está me fazendo mal nenhum”, e continuou a cavar. Nem todos os navajos se comportavam desse jeito frente a cascavéis. Um mês atrás, um curandeiro de índios canadenses me disse: “O que eu sei é apenas um pingo daquilo que os meus ancestrais sabiam”. Ele mostrou no espaço com o dedo indicador quanto era um pingo. Nós pensamos o quanto sabemos mais do que os nossos ancestrais... Penso agora nos meus pais que não foram à escola depois dos doze anos. Eu sei tanta coisa mais do que eles — de um lado. De outro, não tenho certeza... Eles confiavam muito mais na sua própria observação, na sua própria experiência, no seu próprio conhecimento — muito menos em profissionais e autoridades. A minha vida é por causa disso. Eu fui um bebê de incubadeira. Os médicos de Manhattan me devolveram ao meu pai porque de qualquer forma eu estava morrendo. (Minha mãe ficou muito tempo no hospital, muito doente.) Meu pai não estudou os livros. Ele estudou a mim, e descobriu algo. E aqui estou eu. (A descoberta dele foi posteriormente validada pela profissão médica, quando eles mudaram de opinião a respeito de como tratar bebês prematuros.) Tomar presente. Notar. Isso é Gestalt. Também é Gestalt. E indígena — da antiga, da qual apenas parte sobrevive. Ao escrever isto, sinto-me bem, forte e feliz. A tristeza se foi. Volto a 1948. E claro que não é uma volta, eu recordo, entro em contato com experiências do meu passado que estão incorporadas em mim. Este é o único lugar em que essas experiências existem. Onde está “o passado”? Já se foi. A memória me dá a ilusão de que existe um passado. Em 1948, na reserva dos navajos, as pessoas eram desesperadamente (aos nossos olhos) pobres, famintas, enfermas; e viviam tanto, gozavam tanto. Eu sofria uma agonia de conflito. Não podia desejar que ninguém fosse tão pobre, faminto e enfermo — e no entanto eles pareciam mais felizes — gozando os acontecimentos mais do que qualquer outra gente que eu conhecia. Eu não sabia o que fazer com isso. Em 1966, na reserva navajo, conversei com um mercador que adorava Ayn Rand e detestava o “coletivismo”. Ele estendeu ambos os braços num gesto que incluía os pobres navajos (nessa época, nem todos os navajos eram pobres, talvez nem mesmo a maioria) sentados no chão do lado de fora do seu posto de mercadorias e disse: “Veja só o que o coletivismo faz!”. Certo dia, ele me disse que tinha uma casa em Farmington, Novo México, “mas não consigo mais viver ali. Eu fico louco quando estou fora da reserva”. Perguntei-lhe qual era a diferença e ele respondeu: “E difícil dizer”. Fiz algumas outras perguntas, e ele não soube respondê-las — realmente não soube. Então eu disse: “O que você gosta nos navajos?”, e ele respondeu imediatamente, sem vacilar: “A felicidade deles em viver!”. Estranho. Naquela época eu parecia ter esquecido dos polinésios e da felicidade deles. Eles não eram tão desesperadamente pobres, famintos e enfermos. A maioria deles, na época em que vivi no Havaí (1934-1945) não era nada disso. Não me lembro de ter-me recordado disso na reserva navajo em 1948. Em 1966, uma mulher navajo me falou da vida dela em 1949: “Todo mundo era tão feliz, e era meio triste, sabe, pensar ‘O que vamos comer amanhã?’ Mesmo assim, tínhamos uma sensação tão boa. Acho que é o estar e trabalhar juntos que fazia tudo isso, que nos mantinha felizes. E quando chega a primavera, todo mundo sai para o campo e planta milho, ou qualquer outra coisa que possa ser cultivada, e no outono a gente come ou guarda para o inverno... (suspiro) Às vezes eu me pergunto onde foi que erramos”. Quando me tomei tristeza, escrevendo sobre aquele verão, comparei este lugar com aquele. Agora, não estou comparando. Estou apreciando novamente a Ilha de Vancouver. Eu me sinto bem aqui. As nuvens são lindas, cobrindo o topo das montanhas. O que não está aqui não existe, nem mesmo o calor, o sol e os banhos de três meses atrás, em junho. Para mim é difícil lembrar qualquer momento antes deste momento, e qualquer momento depois dele se recusa a ser fantasiado na minha cabeça. Uma hora atrás eu estava me perguntando quando chegaria o correio. O correio parecia importante. Eu estava faminta para que chegasse algo. Agora já não importa se vem ou não. Eu gostaria de ficar deste jeito. Não há meio de eu me fazer ficar assim. Se existe algum, é tendo que me ítes-fazer. Não tenho idéia de como cheguei aguí desta vez — nem consigo me lembrar do que escrevi ou do que se tem passado dentro de mim. Apenas me lembro vagamente de que estava triste. Agora não estou o que chamo de “feliz”. Apenas me sinto bem, e tudo está bem. Faço uma pequena ligação disso com a anestesia, e em seguida me lembro de quando estava metida em tanta confusão com meu marido e comigo mesma, e fiquei com mononucleose. O médico me deu alguns remédios e fiquei semicomatosa. Ele disse: “Sinto muito. Sinto muito mesmo. A culpa foi minha”, e eu disse: “Não se lamente, doutor. É maravilhoso.” Meus lábios estavam gozados, a minha voz estava grossa e mole, e eu não conseguia fazer nada. Agora, posso falar direito — tentei neste instante. Posso datilografar. Posso parar de datilografar e fazer outra coisa. Tenho o domínio das minhas capacidades. Não posso me fazer sorrir. O meu rosto se sente muito estranho quando eu tento. Eu precisaria ter vontade de sorrir para que o sorriso ocorresse. Como um índio? Você já tentou fazer um índio sorrir? Quando os índios hopi que trabalhavam na construção da escola de Vale Verde não tinham vontade de sorrir, Ham tentava “animá-los”. Ele cantava “Venham e dancem!” Ele fazia “graça”. Eles pareciam mal-humorados — para nós. Eu invejava o fato de eles sustentarem a situação contra o Ham. Eu não me sinto mal-humorada agora. Simplesmente não me sinto engraçada e nem com vontade de rir, e acho que iria parecer mal-humorada para a gente branca daqui, e se eles tentassem me alegrar, eu iria parecer ainda mais mal-humorada porque ficaria como estou. O esforço deles não seria recompensado. Fracasso. Resistência. Derrotá-los. Sorri um pouco quando escrevi isso. E tudo tão bobo. Sorrir para você para manipular você para você sorrir para mim para que eu me sinta bem. “Eles chamam isso de vida!”, foi o que me veio à cabeça, exatamente no mesmo tom empregado por um hopi alguns verões atrás. Eu tinha subido à Segunda Mesa com Bárbara Bater, à procura de alguns amigos hopis. Havia uma dança, uma dança hopi. Após a dança cerimonial, houve a hora da comédia — fazer graça dos brancos. Um dos hopis pegou uma mulher da audiência e dançou com ela no nosso estilo de bailes, ao mesmo tempo fazendo graça pela forma que dançava. A mensagem era clara. Não creio que ela não pudesse ser entendida, mas o hopi não deixou dúvidas quando virou a cabeça e gritou por cima do ombro: “Eles chamam isso de dança!”. Nem todos os costumes indígenas são para mim. Nem toda a Gestalt é para mim. Os pontos onde os dois se juntam são aquilo que eu quero. Acabei de me levantar para ir ao banheiro — cantando. Meu cantar aconteceu e eu gostei dele — do som, das vibrações no meu peito, no meu pescoço e especialmente na cabeça, embora também estivessem um pouco nos meus dedos dos pés. Agito, ergo sum. Agora os meus ombros estão fazendo um movimento ondulatório... meu tronco está entrando nele — voltas cada vez maiores — agora um movimento de rolar, como o daquelas bonequinhas de plástico com botõezinhos vermelhos. Agora, estou sentada de maneira totalmente diferente — solta, livre, à vontade. Sinto minha coluna crescer, como acontece freqüentemente após ter “trabalhado” com o Fritz. (Ambos gostaríamos de ter uma palavra melhor que “trabalhado”.) Eu tenho 77 anos, lembre-se, e nem mesmo estou em boa forma para essa quilometragem. Onde está a minha rigidez, as minhas dores reumáticas (elas são poucas, mas agudas), em toda chuva e neblina, com gotas de água escorrendo dos fios elétricos. Eu me sinto tão aquecida — como se pudesse aquecer tudo em volta de mim. (Não me sinto tão segura no que se refere a pessoas!) Eu me apeguei a algo através da Gestalt, uma nova experiência. No passado, às vezes, com algumas pessoas, tenho estado sem ego — quando elas também estavam... Levantei-me para fazer uma xícara de chá e me apeguei a outra coisa, algo como, ufa! depois de todos esses anos eu entendo alguma coisa de mim. Agora não sei o que escrever primeiro, então vou preparar o chá e ver o que acontece. A chuva escorre das bordas do telhado. A chaminé do fogão faz tin... tin... Gosto das pausas, e dos tins. A cortina está balançando um pouco, por causa da janela aberta. A fumaça sai de um cigarro no cinzeiro, e passa pela máquina de escrever. A escada ao lado do ancoradouro parece estar ali colocada para que alguém/algo suba da água. Quem? O quê? Deixe cada pessoa imaginar o que quiser. A minha imagem é amigável. Transforma-se em inimigo. Eu a faço voltar ao que era. Falsidade. Ele não é, nem quem, nem o quê — é mais um qual. Um pequeno rebocador, casco preto, estrutura superior branca, formando pequenas ondas atrás de si e espirrando água branca ao longo do cabo que o liga à balsa cheia de madeira que está rebocando lago abaixo. Suponha que a balsa começasse a puxar o rebocador para trás, no sentido contrário do seu movimento. É a maneira como a maioria de nós vive, me parece. E a maneira como eu tanto vivi. Projeção? Introjeção? Retroflexão? Importa? Às vezes me parece que eu introjeto, projeto a introjeção, e retroflito a introjeção e a projeção. Não me importa se isso faz sentido. Gosto de como soa. Em todo caso, nenhuma delas é real. É simplesmente uma forma de encarar algo, e esses conceitos não têm utilidade porque não gosto deles. Algumas outras pessoas fazem coisas muito boas com eles, porque gostam deles; e ainda outras contribuem com o absurdo do mundo humano não sabendo o que fazem com eles, e fazendo da mesma forma. Num dos seminários de Harry Rand, uma assistente social falou longamente (à guisa de pergunta) sobre relações-objeto e uma porção de outras coisas que eu não entendo. Para mim, era simplesmente um amontoado de palavras. Quando ela terminou, Harry tirou o cigarro da boca e disse: “Para mim, não passam de palavras. Diga-me o que você quer dizer”. Ela não foi capaz. Harry é (era?) um psiquiatra de Boston, um psicanalista, mas tinha muito sentido, e às vezes era muito Fritz. Um estudante, ao relatar o caso de um paciente que estava atendendo no hospital, empregou uma torrente de jargão. Harry escutou até o fim (não como Fritz) e no final disse: “Você quer dizer que o sujeito está apavorado”. Harry teve um paciente que vinha e não dizia nada, e Harry não conseguia fazê-lo dizer nada. De repente, Harry teve uma imagem de si mesmo quando menino, ao ser mandado para o diretor, e o diretor parecia ter três metros de altura e Harry não conseguia dizer nada. (Isso é um pouco parecido com Fritz.) Harry falou do que estava acontecendo dentro de si (isso é semelhante ao Fritz, embora ainda não Fritz) — como ele via o paciente a vê-lo (Harry) tendo três metros de altura — e o homem começou a falar. *** Não me lembro do que estava dizendo antes. Não force: vai emergir. Emerge. Certa noite, aqui, o Fritz pediu a dois dos homens que atuassem como co-terapeutas. Na verdade ele não pediu, e nem mandou. É uma espécie de mistura dos dois, ou algo no meio. Ele disse (isto explica bem) que escolhessem um de nós como paciente. Eles estavam em cantos adjacentes da sala e eu estava sentada no meio da parede oposta a eles. Vi os olhos deles movendo-se ao notar uma pessoa passar adiante, notar outra, e assim por diante. Ambos chegaram a mim no mesmo momento, e cada um deles teve um brilho nos olhos. Eu me dispus, sentindo-me como se uma dupla de monstros dos quais eu não tinha medo tivesse avançado sobre mim, e fui até o lugar quente. Don e David vieram e sentaram-se num sofá perto de mim, a pequena distância um do outro. Naquela época, eles não eram realmente amigos. Estou resistindo prosseguir. Não quero prosseguir. A razão é que eu estou pensando nisso, tentando relembrar, recordar o que veio antes do quê, escolher o que é importante e o que pode ser deixado de lado. Desta maneira, eu me coloco em apuros (dentro de mim e também com as outras pessoas, e às vezes com um vaso ou uma panela; ou deixo as coisas cair, ou queimo os dedos, ou alguma outra coisa, ou acontece algo impossível como jogar fora uma carta que eu queria muito guardar, ou rasgar algumas páginas de manuscrito quando nem sequer cheguei a lê- las e não sei o que dizem). Então, vou dar uma volta na chuva, esquecer, e ver o que surge. A ordem não importa! Esta introdução ao que aconteceu é só um esquema, em que qualquer uma das partes serve. (Nem cheguei até a porta, quando isto surgiu.) Eu pensava, antes, que devia dar explicações, para que as pessoas não dissessem: “Então é isso que está se passando no Instituto Gestalt do Canadá. Então isso é Gestalt-terapia”. Desta vez, a coisa aconteceu deste jeito, com estos três pessoas, mais o Fritz. Don e David conversavam entre si a meu respeito. Fritz jogava algumas palavras aqui e ali — ou talvez apenas ali. A Gestalt enfatiza o falar com as pessoas, em vez de falar sobre elas. Censurei Don e David por fofocarem. Eu estava gostando. Então percebi que estava tremendo mais do que o normal. Eu tremo (tenho tremores, em linguagem médica), mas estava tremendo mais do que o normal. E então eu disse: “Não estou com medo”. Eu não estava sentindo medo. Comecei a perceber como as ordens e contra-ordens (dentro de mim) pareciam se encontrar, colidir e produzir os tremores. Olhei para dentro de mim, e notei que o meu corpo queria se levantar da cadeira, e eu o estava mantendo sentado. Levantei-me, dei alguns passos, e me virei. David disse: “Estou experienciando você se afastar de mim”, como se esta fosse a razão do meu movimento. Notei o meu corpo, e percebi a hesitação de me mover na direção de David, embora não fosse nada que não pudesse ser facilmente superado. Eu superei, com facilidade. Então tomei consciência da hesitação — me tornei apenas hesitação. Não “eu estou hesitando”, e sim “Eu sou hesitação”. Mesmo o “eu sou” não estava ali. Então notei Don, pernas dobradas à sua frente, sentado contra a parede, como se estivesse com medo de mim. Eu disse a Don algo semelhante a isso. Fritz disse: “É. Como um macaco na abertura da sua caverna”. Don disse: “Alguns momentos atrás eu tive um relance (uma expressão comum dele) de que queria dar um passeio com você”. Eu: “Você daria um passeio comigo agora?”. Don disse que sim, e levantou-se do sofá. Lado a lado caminhamos pelo quarto, um com o braço sobre o outro. Não sei em que altura o ego me abandonou. Havia apenas um estar presente. Depois de darmos a volta pela sala, Don disse que se sentira puxado por mim. Eu disse: “Depois dos três primeiros passos”. Don concordou. “Nós começamos a andar juntos”. Ele disse alguma outra coisa que eu não lembro. Eu disse: “Explicação.” Ele disse: “Você quer uma explicação de mim?”. Eu: “Não. Você me deu uma explicação. Você disse a mesma coisa ali” (apontando para o outro canto da sala). Estávamos um de frente para o outro. A mão direita dele e a minha mão esquerda estavam unidas. Estendi a minha mão direita e disse: “Você se importa de segurar esta mão também?”. Ele colocou a mão esquerda na minha direita. Durante todo esse tempo, na minha cabeça não houve pensar — nada de fantasias, instruções, nada. Eu estava pura e simplesmente ali. O que quer que eu notasse, simplesmente notava, sem nenhum tipo de objetivo ou ordem, e sem opinião. A esta altura, notei o meu corpo e o expressei. “Eu cheguei até aqui. Não vou adiante”. Nenhum pensamento, apenas a expressão daquilo que tinha se tomado presente no meu corpo. Percebi a mim mesma ali parada, como se tivesse raízes, do jeito que eu estava. Don disse: “É assim que eu quero que seja.” Como a Gestalt, não há meio de dizer. Há somente muitos meios. O que me veio à cabeça quando me sentei foi a série de figuras do boi e do homem num dos livros Zen de Suzuki. A última delas é um círculo sem nada dentro, e a legenda: “O boi e o homem se foram.” Paciente e terapeuta se foram. Nenhum dos dois estava lá. Homem e mulher se foram. Eu sentia a presença de Don e a minha própria — de maneira muito mais aguda — e ao mesmo tempo, Don e eu também nos tínhamos ido”. Eu e mim (Z and me) também nos fomos. Havia apenas fatos, eventos, cada fato como cada momento simplesmente estava lá — e já não estava mais. Não estava em nenhum lugar. Só o momento agora. E ainda assim, tudo foi registrado e é acessível a mim. Total naturalidade, e sem erros. Isto é perfeição. “Buscar a perfeição” não faz sentido para mim, a menos que signifique buscar tanto e dar tantos nós que acaba havendo uma explosão. Eu (eu-ego) tinha explodido em pedaços, e o organismo, que é mim, assumiu o controle. Este é um caminho bastante árduo para se chegar a isso. Eu estive cozinhando uma sopa enquanto escrevia. Batata-doce no forno, e vagem numa panela. Dentro em pouco, um bife na frigideira, e então vou ficar com tudo isso, deixando tudo isso acontecer. Oscilar facilmente para a frente e para trás, sem esquecer do que estou “fazendo” — e também sem me lembrar. Quando Kay partiu, e ninguém se ofereceu para preparar desjejum para o Fritz, ele disse: “Vou aprender a preparar o meu próprio desjejum”. Certo dia ele me contou feliz — com humildade e um toque de espanto — que naquela manhã tinha cozinhado seus ovos perfeitamente, e sem relógio. Eu me recordo de quando era jovem e sempre cozinhava sem relógio. Mesmo que estivesse absorvida num livro, eu notava cheiros e quando era “hora” de fazer alguma coisa... De repente a minha cabeça ficou cheia de relógios e marcadores de tempo e outros artifícios de que não necessitamos. Que loucura! Todo o trabalho das pessoas que os fazem, todo o trabalho das pessoas que ganham dinheiro para comprá-los. Todo o desperdício de recursos naturais. Toda a dependência. Manter a economia em andamento, as pessoas em andamento, manter a economia em andamento, manter as pessoas em andamento... Quando Alan Watts falou em renda garantida para todo mundo (e nada dessa baboseira de imposto de renda negativo, quando se precisa declarar + ou -) ele disse que as pessoas querem saber de onde virá o dinheiro. “Não vem de nenhum lugar. Nunca veio”. Ele explicou que o dinheiro não passa de uma medida, como os centímetros. Na Depressão de 1929, de repente uma porção de gente ficou sem trabalho. Todos os cérebros, aptidões, materiais estavam presentes, mas não havia dinheiro. Ele disse que isto é o mesmo que um homem ir como sempre ao trabalho, e o patrão virar-se para ele dizendo: “Sinto muito. Não há trabalho. Esgotaram-se os nossos centímetros”. Todos os cérebros, aptidões, materiais ainda presentes, mas não há centímetros. É isso que eu sinto em relação à nossa “economia”. Para não mencionar que é uma “economia” baseada em excessos. Eu gosto de escassez — não privação, mas escassez é bom. A iluminação que eu tive algumas páginas atrás foi a seguinte: Durante toda a minha vida as pessoas me disseram que eu podia (eu portanto devia) pegar empregos melhores do que os que peguei. Eu não queria. Eu gostava de pegar um trabalho de segundo plano, onde não precisasse ser tão falsa. Certa vez peguei um trabalho desses que em três anos se transformou num trabalho importante, com cortinas na janela e um jardinzinho rebaixado do lado de fora. Eu estava atolada ali e poderia muito bem seguir adiante; então trouxe uma bela e apropriada lâmpada de mineração e uma prensa de madeira. Mas havia aquelas vezes em que o presidente da firma entrava e ficava olhando os sapatos, porque eu estava vestindo um avental empoeirado e o cabelo todo despenteado, escavando alguma coisa. Mas havia algo que eu não entendia no fato de não querer aceitar trabalhos maiores. Eu só sabia que não queria. Eu não queria ser uma chefe. Agora isto está claro para mim. Wilfred Pelletier chama isso de “organização vertical” — o sistema do homem branco, e eu também não gosto disso. Ele escreve sobre isso num artigo “Algumas Reflexões sobre Organização e Liderança” (“Some Thoughts about Organization and Leadership”), uma palestra dada à Irmandade de índios Manitoba, em 1969. Cerca de um mês atrás, passei uma semana participando de uma conferência intercultural realizada em Saskatchewan, “dirigida” por Wilfred, que deixou a coisa dirigir-se sozinha, tomando parte nela. Não havia programas, horários e só um homem deu uma palestra. Não estou certa de que devia fazê-lo, mas ele falava e falava e falava. Eu saí, comprei algumas frutas, voltei e passei os saquinhos. Como sempre, eu não entendia como os índios podem ficar sentados aparentemente tão amigáveis quando amolados por um homem branco. Depois vim a descobrir: eles vão pescar e caçar em suas cabeças. Wilfred me contou como “o urso SPLASH! caiu na água, e espirrou água por todos os lados”. Ele estendia os braços para cima e para o alto. Puxa, como ele gostou. Fritz diz que “Quando você se chateia, retire-se para algum lugar onde se sinta mais confortável.” Eu fiz isso num workshop de fim de semana com Jim Simkin. Não sei se estava chateada, mas fiquei com dor de cabeça (coisa rara), e uma dor tão forte na nuca que não conseguia me interessar por nada a não ser isso. Eu disse a mim mesma (Barry mentindo para Barry, como freqüentemente ela faz) que era porque eu não tinha dormido o suficiente na noite anterior. Eu podia ter me estendido no chão e dormido. Em vez disso, saí. Primeiro fui a Salmon Creek e senti o vento e a areia sob os meus pés, e ouvi o barulho das ondas e senti o cheiro do ar salgado, e vi as cores do céu, do mar, da areia, e das dunas cobertas de grama, e senti a elasticidade dos meus passos enquanto caminhava. Então voltei para a sala cheia de gente — então voltei a Salmon Creek. Depois disso, fui até uma ponta longínqua do Lago Mead, na hora do pôr-do-sol, onde os rochedos dourados na outra margem estavam refletidos na água, e peixes pulavam fora da água e mergulhavam outra vez. Os arbustos ao longo da margem farfalhavam, os pássaros assobiavam, e as minhas mãos sentiam as pedras lisas da praia. (Quando contei isso a uma amiga, ela disse que provavelmente se alguém que me conhecesse estivesse na praia, diria: “Eu podia jurar que vi a Barry, e de repente ela não estava aí”.) Duvido que a coisa toda tenha levado mais do que cinco minutos. Esse tipo de viagem é maravilhosamente rápido. E lá se foi a dor de cabeça — naquele momento, ou mais tarde. A conferência intercultural foi dirigida (sem ser dirigida),de uma maneira que Wilfred chama de “horizontal”. “Me parece, ao observá-la. que a organização vertical provém de um esgotamento ou ausência de comunicação. Se não se consegue, de uma maneira ou de outra, ter um movimento comunitário que seja uma necessidade espontânea que resulte em algo, então a única alternativa é construir um tipo de pirâmide e colocar o sujeito mais forte no topo; ou talvez ele não seja colocado, simplesmente chega até lá. E uma organização na qual não há comunicação, há simplesmente ordens dadas pelo topo e passadas abaixo para os diferentes níveis; isto não é mais uma sociedade — é uma máquina.” Organização horizontal, conforme eu a experimentei com os havaianos (faz tempo — agora já não sei como é), é como Wilfred descreve a maneira indígena. Uma pessoa surge como líder para uma coisa particular numa época particular — e volta quando a época termina. A comunicação se faz presente. Também experimentei isso entre os brancos, em lugares ocasionais. Também a confiança se faz presente. Aqui em Lake Cowichan nós estávamos trabalhando no sentido de uma organização horizontal. Assim que alguma coisa saía um pouco dos eixos, as pessoas forçavam uma forma vertical. Mas nós a fazíamos voltar à horizontal. Agora, na ausência do Fritz, ela se tornou vertical. Organização. Organização intelectual em vez de organização organísmica. O homem branco não percebe que é ele mesmo quem coloca o seu fardo sobre as próprias costas. Então ele educa a todos, e o coloca também sobre as costas dos outros. “Isto é uma máquina.” Eu vejo a grande máquina triturando todas as pessoas que a erigiram, e colocando-as sobre as costas delas mesmas. Na conferência intercultural, o homem que falava parou (por alguns minutos) quando uma menina índia que estava sentada no chão de repente se deitou, contorcendo-se com murmúrios e grunhidos. O homem perguntou a um índio: “O que é que ela tem?”. O índio disse simplesmente, casualmente: “O avô dela morreu na noite passada”. “Ah é?”, disse o conferencista. “E ela também tem alguma doença?” “Não creio”, respondeu o índio. Nem todos os homens brancos passaram pela Gestalt (ou algo parecido) e não sabem o valor de se liberar a tensão organismicamente — pelo corpo inteiro. Mas este homem, o conferencista, era chefe de um centro indígena nos Estados Unidos, e não sabia nada sobre índios! Mão única. Nós induzimos vocês à nossa sociedade. Nós não nos damos ao trabalho de aprender sobre a sociedade de vocês. Uma mulher que trabalhou em Bem-Estar Social, na Agência de Assuntos Indígenas, trabalhara com toda a fé, subindo montanhas, entrando em canions, encontrando gente para ajudar. Quando estava prestes a se aposentar, sentou-se numa mesa de cozinha, pôs a cabeça entre as mãos e disse, com tristeza, desânimo e dúvida: “E depois de tudo, eu ainda não os entendo”. Na minha linguagem, pela minha observação, suas palavras significavam: “Não importa quanto eu me esforce, eles não vão fazer o que eu lhes digo. Não descobri jeito de tomá-los iguais a mim." Alguns meses antes, eu a ouvi manifestar indignação a respeito da moça navajo que trabalhava em seu escritório. Ela disse que não gostava de como nós estávamos fazendo as coisas. Eu disse a ela: “Isso NÃO é da sua conta”. Ela respondeu: “Mas esta é a minha gente.” Eu disse: “Isso não tem NADA a ver com o assunto”. A organização vertical é uma máquina, e as pessoas que ficam nela tornam-se pequenas máquinas dentro de uma máquina grande, e não entendem as pessoas que se recusam a tomar-se máquinas. Eu sei. A mulher do bem-estar social também não me entendia. E tampouco o professor dos hopis, que passava bons momentos — ambos passavam bons momentos queixando-se um ao outro, o professor e a assistente social. Eu lavava pratos, procurando manter a conversa mais longe possível dos meus ouvidos. “Os índios são tão estúpidos.” (Como se pode ajudar gente que nós achamos estúpida?) “Os índios são tão ingratos.” Mais e mais. Quando chegou a: “Eles são tão grosseiros!” “Eu sei. Eles não dizem obrigado!”, eu não agüentei mais. Então perguntei (sabendo perfeitamente bem a resposta, e que as pessoas da Agência acham que só as pessoas da Agência podem saber algo sobre os índios, e portanto me coloquei de forma inquiridora): “Não é verdade que eles não dizem ‘obrigado’ uns aos outros?” (eu adoro esse não dizer “obrigado”, e gostaria que nós não disséssemos). O professor dos hopis virou-se para mim e disse: “Não, não dizem! Eles são muito grosseiros.” (“E depois de tudo, eu ainda não os entendo.”) Depois disso, sequei. Sinto agora que não há mais água no poço — não há mais nada a ser escrito. Eu poderia voltar e reler o que foi escrito e retomar alguns fios. Não tenho vontade de fazer isso, e também não me preocupo. Estou curiosa para ver com que vou despertar amanhã de manhã. Neste instante sinto que amanhã não vai produzir nada porque não há nada a ser produzido. Eu posso sempre entrar num vaivém para ver o que acontece. Sempre acontece algo. Os prismas na minha janela ainda estão vivos e cheios de cores que se refletem na cortina. De onde foi que eles vieram? Uma pequena cidade de luzes, reflexos, cores. Que mundo para viver! Eu acho que me cansaria dele muito depressa. *** Manhã seguinte: Na noite passada sonhei que recebi uma carta de Bertrand Russell. Ele dizia que tinha lido as seis primeiras páginas de Person to Person*(De pessoa para pessoa, * Livro de Barry Stevens em conjunto com Carl Rogers. Publicado no Brasil com o título De pessoa para pessoa, pela Editora Pioneira. (N.do T.) e queria muito me conhecer. Eu me senti magoada por ele não se lembrar que durante três anos estivemos muito próximos. Ele dizia que viria aos Estados Unidos pela primeira vez. Então, não me senti tão magoada, porque ele também não se lembrava de já ter estado nos Estados Unidos. Mas ainda me sentia um pouco magoada, porque as nossas vidas em conjunto, na época, pareciam mais memoráveis do que os Estados Unidos. Ele dizia que tinha um pouco de medo de vir, que era um tanto assustador. Ele sempre tinha um pouco de medo dos Estados Unidos. Naquela época, eu não tinha. Estou adorando a chuva. Tenho estado aqui sentada adorando-a, sem notar que era isso que estava acontecendo. Hoje a primeira fila de morros do outro lado do lago esta visível, com seus tordos e pinheiros. As montanhas de trás não estão. É claro que eu sei que elas estão ali, mas agora para mim não estão. O cenário mudou. Estou vivendo num mundo menor. Me sinto aconchegada dentro dele. Penso que não posso trabalhar com esse fragmento de sonho à maneira da Gestalt. O que eu “penso” geralmente é mentira. Então digo a mim mesma (outra mentira) que não vejo como eu possa fazê-lo, e então terei de esperar até o Fritz voltar e verei o que ele pode fazer comigo e com o fragmento. E, talvez, provar que ele está errado (um pouco) a respeito da Gestalt? Esse despeito em mim, querendo provar que o Fritz está errado, é pequeno, ocasional, e não muito forte, porque sei que o Fritz também não gosta.de arrogância, e junto com isso, ele tem uma humildade tão maravilhosa. E essa “humildade” da qual Jesus falou, da qual tantos de nós se ressentem, porque até mesmo no dicionário ela significa ser piamente dócil e submisso, submeter-se a injúrias, e assim por diante. Nós nos ressentimos do nosso significado da palavra, e com razão. Mas volte e aproxime-se de Jesus, e da tradução da Bíblia para o inglês, e a palavra significa simplesmente “gentil e suave”. Aqui cada um cuida do seu próprio desjejum, cada um por si. A exceção, no início, era o Fritz. Kay, que era paga para isso e outras coisas — embora Fritz quisesse que isto fosse uma comunidade na qual ninguém fosse contratado para fazer nada — preparava o desjejum para ele. Quando ela foi embora, eu o fiz, por duas manhãs, quando tive vontade. Na manhã seguinte, não fiz mais. Eu lhe disse que nas manhãs anteriores tinha sido para nós dois. Se eu tivesse feito na terceira manhã, teria sido para ele. Ele expressou sua compreensão e aceitação, sem usar uma única palavra. (Se eu não estivesse cinco horas por dia participando de grupos, mais outras coisas, gostaria muito de preparar o desjejum para nós dois — com muito prazer.) Fritz dizia ocasionalmente que não entendia nada de cozinha, que nunca tinha aprendido a cozinhar. Mais tarde, naquele dia em que não preparei o seu desjejum, ele disse com suavidade e gentileza: “Vou aprender a preparar o meu próprio desjejum”. Suave, gentil e neutro. Sem bancar o mártir, sem apelo, sem orgulho. Eu lhe arranjei uma máquina de fazer café elétrica, que se desligava sozinha, e enchi a geladeira dele com comida que ele gosta pela manhã, mais algumas outras coisas. Daí em diante ele sempre cuidou do seu próprio desjejum. Este lugar é dele. Ele o comprou. Ele assumiu o risco. O que todos nós recebemos pelo fato de estar aqui — cerca de noventa pessoas, até agora tomou-se possível graças a ele. Ele é o descobridor da Gestalt-terapia. Sem a propaganda habitual — apenas uma pequena brochura, e informação oral — o seu novo livro Verbatim*(*Editado no Brasil por esta mesma editora, com o título Gestalt-terapia explicada. (N. do T.) vendeu 20 mil cópias em seis meses. Ele foi homenageado pela Associação Psicológica Americana (da qual não é membro) na convenção deste ano. Ele tem 76 anos. E conhecido por sua arrogância. Ele prepara o seu próprio desjejum e fica feliz por conseguir cozinhar direito os seus ovos, sem relógio. *** Como posso “gestaltizar” um fragmento de sonho no qual uma carta de Bertrand Russell aparece nebulosa — como num nevoeiro (eu não a vejo realmente) — e a caligrafia dele, que eu conheço tão bem, não está ali embora parte da mensagem apareça claramente? Isso me parece impossível. É mentira. Eu penso (mentirosa) que é impossível. Eu sei que é possível. Se não houvesse nada ali, Fritz diria: “Seja esse nada.” Eu já trabalhei com este sonho à minha própria maneira, um pouquinho. Olhei para as seis primeiras páginas de Person to Person que Bertie disse que leu, e que o levaram a querer me conhecer. Essas páginas continham o Prefácio de Carl Rogers e a minha Introdução. Pfuuu! O que é que se podia tirar disso? Não era a essência do livro — nem de mim. Se ele tivesse lido Curtain Raiser (Erguedor de cortinas), teria sido diferente. Eu estava prestes a deixar o livro de lado — deixar o meu pensamento de lado — mas confio nos meus sonhos. Li aquelas seis páginas e descobri algumas coisas que tinha esquecido, com as quais preciso estar em contato agora. Leio rapidamente, mas voltarei a ler essas passagens. Elas são profundamente relevantes para a minha vida, aqui, neste momento. Quero prosseguir com isto... Tenho medo de que o meu ego julgue isto fascinante, pois o meu sentimento organísmico diz que estou com fome, e “prosseguir agora” vai contra ele. Intelecto/ego/eu não é suficientemente forte para resistir a mim. Deixo a máquina de escrever e vou até a geladeira e o fogão. A minha fome deve ter sido ignorada por algum tempo. Estive ocupada preparando coisas simples, torradas com ovos. Uma sensação de pressa quando não havia pressa alguma. Eu me sentia fraca. Não tinha parado a tempo. Se tivesse surgido uma emergência, eu me teria enganado. Felizmente, ela não surgiu — e é claro que geralmente não surge —, mas viver pronto para uma emergência (sem antecipação) é viver. Ontem à noite foi muito bom o jantar. Hoje de manhã os ovos fritaram um pouco demais. Como eu gosto de suco de laranja! Saboreá-lo nos meus lábios e na boca, senti-lo descer pelo tubo que conduz a comida, até o meu estômago. Ali perco contato com ele. Eu prefiro ter suco de laranja fresca uma vez por mês, do que essa coisa reconstituída e congelada todos os dias. A única coisa a ser feita com a maior parte da nossa comida de hoje é engoli-la e esquecê- la, que é o que a maioria de nós faz. O Canadá não é tão ruim como os Estados Unidos, mas está indo pelo mesmo caminho. Não sei o que apareceu primeiro, o engolir e esquecer, ou a comida ruim, mas precisamos interromper a espiral e tomar outro rumo. Não creio que leis e programas e planejamentos possam conseguir isto. Cada homem precisa fazê-lo por si só. Então, a coisa acontece. Eu não preciso obrigar ninguém a fazê-lo — só a mim mesma. Então terei feito a minha parte, e a minha parte é tudo que eu tenho de fazer. Fazer mais do que isso é fantasia, e conduz à exaustão. *** Bertie não gostava muito da “América”.Certa vez ele disse que gostava mais agora do que no passado. Toda vez que ele chegava, entrava numa espécie de turbilhão durante alguns dias, uma espécie de confusão geral.

(Na América eu sou uma personalidade, e isto eu detesto. Mas, mesmo assim, gostei mais da América desta vez do que em ocasiões anteriores. E um país singular.) Ele amava acima de tudo a costa irlandesa em Connemara, onde experienciou aquela coisa para a qual temos tantos nomes e todos eles soam tolos, de modo que não irei rotulá-la. Na verdade, essa coisa está além dos rótulos. Em todo caso, nessa costa áspera e tempestuosa (conforme ele a descreveu — eu nunca estive lá) ele entrava de tal maneira em contato com o universo, que todas as outras coisas que fazia na vida pareciam bobas — que não valia a pena fazê-las. Como arrancar uma formiga de um planeta. Ou como eu, na época em que era editora na Gráfica da Universidade do Novo México. Os professores-escritores (que levavam anos para escrever um manuscrito de cem páginas) começavam a me cutucar logo que o manuscrito era aceito. Se eu já tinha trabalhado com ele. Se eu já o tinha mandado para o prelo. Quando ia sair. Cutucões, cutucões, cutucões. Durante um bom tempo eu resistia — embora geralmente não o suficiente. Mas às vezes perdia terreno, e passava a me cutucar ainda mais do que eles me cutucavam. E de repente, explosão. Eu estava ao mesmo tempo dentro de mim e fora de mim. Ali, sentada na escrivaninha, estava a eu- formiguinha, sem ligar para nada a não ser o manuscrito que estava editando, e levando totalmente a sério. E aqui estava a eu grande, apreciando o maldito glorioso planeta no qual nasci. O absurdo da eu-formiguinha! Eu ria. Eu continuava rindo. Eu não era tão ridícula, ali sentada levando a sério a vaidade (ou ego) de homens para os quais havia se tomado tão importante a publicação. Eu queria sacudir todo mundo e gritar: “ACORDE!”. Se eu pudesse BERRAR isso de cima de uma montanha, seria melhor ainda. Em que fantasias escabrosas eu tinha investido a minha vida, julgando-as reais. O universo era eu — e eu, o universo. (Por que em inglês escrevemos eu (7) com maiuscula, e mim (me) com minúscula? Esta não é uma pergunta para ser respondida, mas é gostoso perguntar, como abrir alguma coisa que foi fechada antes — sem professor para me dizer: “E assim e pronto, aprenda, e pare de perturbar a aula”.) *** A luz da minha lâmpada de mesa brilha sobre a máquina de escrever, um brilho azulado, sumindo no escuro quando se afasta da lâmpada. A sombra do carro da máquina move-se para esse escuro, e depois foge. A luzinha quadrada que mostra que o motor está funcionando (como se eu não pudesse ouvi-lo — e mesmo que não tivesse ouvidos, posso sentir as vibrações) é cor de laranja forte, mais berrante do que a própria máquina. Mãos tocando teclas. Quando noto esse tocar, as minhas mãos ficam mais suaves do que estavam, mais gentis, usando apenas a pressão necessária para acionar as teclas, e não mais, e assim não há reação contra mim mesma. Parece mais uma música. Eu me sinto em harmonia. Até mesmo as batidas das teclas contra o rolo parecem mais macias quando eu amoleço, menos resistentes. A ondulação que passa pelo meu corpo e pelo meu rosto é algo que se faz sentir como riso — não riso forte — um riso suave, como uma pluma. Eu sou o meu próprio fazer. *** Quando caminhávamos pelas charnecas de Cornwall, toda vez que chegávamos a um portão, Bertie o abria e enquanto isso eu pulava a cerca. Na quarta vez, ele falou: “Você não acha que estou abrindo os portões para mim mesmo, acha?”. Eu me senti vexada. Mas se ele não estava abrindo os portões para si mesmo, por que não me acompanhava e pulava a cerca? Na época ele já era velho. Cinqüenta e cinco anos. Agora ele é um velho de noventa e eu já não sei nada do que ele sente. Na época me parecia tão importante saber com qual dos dois homens que eu amava eu deveria me casar. Trinta anos depois parecia que não faria diferença alguma. Não posso explicar isso. Ainda parece... Tendo escrito que não podia explicar, comecei a pensar numa explicação, tentando chegar a uma explicação: Que diferença faria se eu conseguisse uma resposta? Mesmo que fosse uma resposta verdadeira. O que eu podería fazer com ela? O ego ficaria um pouco inchado pela sua esperteza, isso é tudo... Gozado. Na época me parecia assim. Levei tanto tempo decidindo, e pensava que devia ser capaz de escolher. Então escolhí, e elaborei razões para minha escolha. Meu primeiro marido foi diferente. Ele foi um erro do qual caí fora. A melhor decisão que já tomei. Não quero dizer que ele era “ruim”. Simplesmente não era para mim. *** Meu sonho. Humm. Ainda estou resistindo a trabalhar com ele à maneira Gestalt. Não sei o que é essa resistência. Não me sinto ameaçada. Sinto sim: “Ah, complicações demais”. “Para quê?” Noto que agora está chovendo mais forte. Meus olhos estão se fechando, como se eu estivesse com sono. Bocejo — um belo e grande bocejo, agora que eu sei que é gostoso e não o reprimo mais por ser “feio”. Não é mais fácil datilografar do que trabalhar com o sonho. O que é mais fácil, quando estou com sono ou cansada, é continuar o que estou fazendo em vez de interromper e passar para outra coisa. Estas palavras saíram de um semi-sono, mais sono, mais sono. Estou me hipnotizando? Ou estou simplesmente com sono, e o som da chuva contribui? Quando me entrego a ele, é gostoso e eu não me incomodo. As perguntas estão desaparecendo. Eu bocejo, e um som vem junto: “Ahhhhhhhhh”, e isso também é gostoso. As vezes me parece que sentimentos sempre são bons, e que são apenas os pensamentos a respeito dos sentimentos que me dão problemas. Quando os pensamentos param, os sentimentos ficam bem — mesmo os sentimentos dolorosos. Quando eu entro neles, em vez de afastá-los. Agora os meus olhos estão lacrimejando junto com o meu bocejar — os meus bocejos estão cada vez maiores e mais fortes, e as minhas pálpebras caem. Meu corpo se debruça sobre a máquina e volta. É gostoso deixar as coisas acontecerem. O meu último bocejo parecia um som de jardim zoológico. Meus pés estavam debaixo da cadeira. Agora estão debaixo da mesa, pernas esticadas, a planta dos pés no chão, em vez de só os artelhos. Agora estão indo para a frente e para trás. Eu estou me movendo toda para a frente/para trás, para a frente/para trás, mesmo enquanto escrevo. Sinto-me como num velho jogo: “A minha avó foi para Londres...”. Que jogo divertido. Estou com vontade de brincar aqui. Parece um bom jogo Gestalt. Receio que não iria me entusiasmar com ele — ou mesmo aceitá-lo — a menos que fosse feito em grupo e chamado Gestalt-terapia. *** Ainda estou balançando. *** Agora já não consigo balançar e escrever ao mesmo tempo, porque os meus braços estão se esticando e se encolhendo. O ritmo é como um autômato. A cadeira estala. Meus pés batem no chão. Agora o meu pescoço se joga para trás. Agora toda eu estou envolvida. Abruptamente o autômato pára. Eu afundo na cadeira, braços pendentes para os lados, sentindo o descanso após um bom exercício. Expiro profundamente. Fora/dentro-fora/dentro. Acontecendo sozinho. Eu me sinto toda exercitada, e não estou mais com sono. Muito bem. O sonho. Eu sou o nevoeiro. Eu me coloco entre mim e tudo mais. Ao mesmo tempo, eu deixo tudo mais macio, e isso é bom. (Volto a ser o nevoeiro. Solta e descansada como estou, é muito mais fácil.) Sou um nevoeiro engraçado — quente. Flutuante. Vagueando. Aquelas palavras da carta teriam aparecido de forma muito mais definida se não tivessem vindo através de mim. Eu as dilui. Eu não as apaguei. Você as leu direito através de mim — bem, você não pode ver as palavras, mas você as ouviu através de mim. Sendo nevoeiro, eu turvo seus olhos, mas não os seus ouvidos. “O quê? Que sentido isso faz?” Não importa o sentido, continue sentindo. Eu sou o nevoeiro entre a carta e a Barry. Entre a mensagem e a Barry. Eu sou macio. Gosto da minha maciez. Gosto de mim. A carta é definida de um lado de mim. Barry é macia do outro lado de mim. A dor da carta não dói tanto quando passa por mim. Barry: Dor? Que dor? É claro, alguma dor, mas tanta que você precise amaciar? Não tome as coisas fáceis para mim! Vá embora! ...Assim é melhor. Agora a carta está mais perto de mim, e estamos juntas. Como Carta, não consegui mais escrever. Para ser/sentir-me Carta tive de passar para outra cadeira. Eu não soube por quê. Agora me parece que a Maciez estava sentada aqui. Quando mudei de cadeira e me tomei Carta, fiquei muito mais forte e firme. As minhas mãos desceram até as minhas coxas e os meus joelhos, subiram outra vez, desceram de novo, e ficaram repetindo o movimento. Minha expiração/inspiração ficou muito mais pronunciada — como se passasse por um tubo em vez de passar por todo o espaço aberto da minha boca. Oito vezes, dez vezes? Mais ou menos isso. Então tudo parou. Como estou agora? Estou certa de que não me sinto mais com 77 anos. Eu me sinto gorda, mas não me sinto uma velha. Como Carta outra vez (um pouco áspera) eu lhe disse: Eu li aquelas seis páginas e quero conhecer você. Barry (também áspera): Você me conheceu! Você me conhece! Você esqueceu aqueles anos. Carta: Você esqueceu. Barry: Não esqueci! Eu me lembro — você não. Você fala em querer me conhecer, como se não me conhecesse. Carta (em voz baixa): Toda vez é a primeira vez. (Mais alto) Eu disse conhecer. Nós na verdade não nos conhecemos antes. (A minha coluna está voltando a ganhar vida.) (Meus olhos ficaram um pouco turvos. Comecei a negar o “Nós não nos conhecemos antes” e meus olhos molhados são a negação da minha negação.) Barry (com humildade): Você está certa. Nós realmente não nos conhecemos antes. Nós pensamos que sim (Um pouco zangada). Será que já conhecí alguém? Carta: Passado. Olhar para o passado é como olhar para o futuro. Barry: Você quer dizer que o passado é como uma bola de cristal? Pode-se ver tudo nela. Todas as ilusões. A Carta fica calada, e o silêncio é assentimento. Barry: Mas aquilo das cercas aconteceu com o Bertie. E também aconteceu aquela vez que ele veio almoçar no meu apartamento em Nova York, e pediu clipes para papel, e eu levantei o colchão e tirei alguns do estrado, e ele perguntou: “Você sempre guarda clipes para papel aí?”, Carta: E daí, para que serve isso? Barry (após uma pausa): Serve para eu saber que uma vez já/zzz viva. A Carta fica calada. Barry: Fui! Fui1 FUI! A Carta fica calada. O “fui” fica ressoando nos meus ouvidos. Fui. Três letrinhas — fui — englobando todo o meu passado. Puxa! Todas as outras coisas que fui também estão dentro. Eu me sinto bem com isso! Todas aquelas coisas horríveis também são coisas insignificantes. Tudo amontoado num pequenino fui. Eu as seguro na minha mão fechada, sacudo e as JOGO fora. A coisa toda é que isto funciona. E tudo saiu de mim. A mensagem existencial que eu tiro desse sonho não é nova, e nem mesmo é nova para mim. Mas a minha forma de sabê-la mudou. Neste instante, eu sinto que cada célula de mim tem consciência disso e que a minha presença estará um pouco mais presente de agora em diante. Agora estou pronta para o próximo passo — o medo “de Bertie” de vir para os Estados Unidos. Toda coisa e toda não-coisa no meu sonho sou eu. O sonho é meu, de mais ninguém. A minha experiência e o meu experienciar são partes de mim... Agora há luz em algumas das nuvens. As montanhas atrás dos morros estão visíveis, e as nuvens são como montanhas atrás das montanhas, formidáveis e gloriosas. Poderosas. Quanto poder em tudo aquilo eu poderia pôr na minha mão, se estivesse lá! Eu sinto esse poder em mim e ele está em mim. Agora não tenho medo dele. Se você tentar copiar a minha viagem, você não a estará acompanhando, porque não foi aí que a minha viagem começou. Prossiga na sua viagem, aonde quer que ela o conduza. Agora vou comer. O meu comer não irá encher a sua barriga. O lago brilha levemente. Ainda me sinto bem por ter jogado fora aquele saquinho de passado. Espero que fique onde caiu. *** Estou vazia outra vez. O que haverá amanhã para escrever? Nenhuma resposta. Saberei quando amanhã chegar. *** Detesto exercícios. Experimentar, explorar, experienciar — alegria. Eu nunca sei o que está por vir. Às vezes no passado, experimentar a mim mesma me causou complicações. Eu sabia o que acontecia. Eu tinha uma meta. Eu forçava. Experimentar sem meta, e sem tentar me prender a algo a que chegar, isso nunca me causou complicações. E mesmo que no futuro isso venha a acontecer, os votos a favor ainda ganham. Quando um terapeuta tem uma meta para o seu paciente, acho que o paciente está em apuros. É claro que o terapeuta também está em apuros, mas este é um desses apuros “normais” que temos como “certos”. O tipo de problema que um paciente tem quando um terapeuta tem uma meta para ele é um agravante do problema inicial, que o levou a procurar o terapeuta. “Eu tento ao máximo não pensar.” — Fritz, referindo-se a si mesmo como terapeuta. Quando estou na minha melhor forma, não há terapeuta. Não sei nada e não sei o que estou fazendo. Nessas horas, estou surpreendendo os outros, “tenho meu próprio estilo” e fico deliciado com aquilo que acontece. “Atribuir uma norma fixa a uma espécie em mutação é como atirar às cegas num pássaro voando.” Esta manhã cometi uma porção de erros datilográficos, fiquei atolada, não gostei do que estou fazendo. Qual é a minha meta? Eu quero este livro pronto. O que veio antes, não sei. Quanto menos gosto de fazê-lo, mais quero tê-lo pronto. Quanto mais quero tê-lo pronto, menos gosto de fazê-lo. O que se passa no meu corpo? Agora fiz essa separação deliberadamente. Ou simplesmente noto o que é? Em todo caso, quando eu noto o meu corpo, é claro que não estou inteira. Mas já dei um passo no caminho de sair da divisão na qual considero meu corpo como uma coisa que me pertence. Eu faço com que ele faça coisa, exatamente como tantas pessoas montam a cavalo ou guiam um carro, ou varrem com uma vassoura. Quando ontem notei o meu corpo e deixei que “ele” fizesse o que quisesse, deixei que “ele” assumisse o comando (contra todas as proibições da minha sociedade), e deixei que “eu mesma” (eu falso) me submetesse a “ele”, tomei-me eu. Esta manhã, estou novamente dividida. Eu sei que há dores nos meus ombros, mas não as tenho presentes, não reajo a elas. Da mesma forma que posso saber que há outra pessoa comigo e não responder a ela. Quando sei que alguém está comigo e deixo a pessoa de fora, não a tenho presente. Quando a deixo entrar, ela se toma presente em mim. Não estou querendo dizer que deixar de fora seja “ruim”. Deixar de fora o meu corpo é outra coisa. “Aceitar o meu corpo” no sentido de nudez ou sexo não é aceitar meu corpo. É aceitar uma idéia, uma abstração. O arquiamigo no seu universo pode ser resumido na palavra abstração, significando qualquer idéia à qual o homem adere como se ela fosse mais viva do que ele próprio — deixando um não-ele perfeitamente distinto; um fantasma de tique-taques, meramente concebido pelo cérebro do prodigioso tempo: um espectro que anda e pára) e. e. cummings Num mundo onde tudo precisa ser “instantâneo”, rápido, sem esforço, sem observação, sem investimento de mim mesma no que faço, e sem dor, as pessoas escavam (ou abstraem) alguns pedaços da teoria de alguém, algumas ferramentas conceituais, e as passam aos outros como “salvação”. Isso é charlatanice. *** Levamos bastante tempo para desmascarar todo o logro freudiano, e agora estamos entrando numa fase nova e perigosa. Estamos entrando na fase das terapias estimulantes: ligando-nos em cura instantânea, em alegria instantânea, em consciência sensorial instantânea. Estamos entrando na fase dos homens charlatães e de pouca confiança, que pensam que se vocês obtiverem alguma quebra de resistência, estarão curados — sem considerar qualquer necessidade de crescimento, sem considerar o potencial real, o gênio inato em todos vocês. Fritz, em Gestalt-terapia explicada Nossa visão do terapeuta é que ele é semelhante àquilo que o químico chama de catalisador, um ingrediente que precipita uma reação, que de outra maneira poderia não ocorrer. Ele não determina a forma da reação, que depende das propriedades reativas intrínsecas das substâncias presentes, e tampouco participa de qualquer composto que venha a ser formado com sua ajuda. O que ele faz é simplesmente dar início a um processo, e há alguns processos que, uma vez iniciados, são automantenedores e autocatalíticos. Admitimos ser este o caso da terapia. O que o médico põe a funcionar, o paciente continua sozinho. O “caso bem-sucedido”, não é uma “cura” no sentido de um produto acabado, mas uma pessoa que sabe que possui ferramentas e equipamento para lidar com os problemas à medida que estes surjam. Ele ganhou espaço para trabalhar, sem ser estorvado pelas bugigangas acumuladas de transações iniciadas mas não acabadas. Em casos tratados sob essa formulação, o critério do progresso terapêutico cessa de ser uma questão de debate. Não é uma questão de “aceitação social” aumentada ou melhores “relações interpessoais”, vistos pelos olhos de uma autoridade estranha e autoconstituída, porém a própria tomada de consciência por parte do paciente de sua vitalidade elevada e modo de funcionar mais efetivo. Embora os outros possam também notar a mudança, a opinião favorável deles a respeito do que aconteceu não é o teste para a terapia. (“Estar livre da opinião deles ” Quando eu estava aprendendo a pintar, alguns anos atrás, meu filho caçoava das minhas pinturas. Eu continuei pintando. Quando uma artista quis emoldurar várias das pinturas, eu disse a ela: “Eu sei que elas iriam parecer melhores, mas os defeitos que eu vejo ainda estariam aí”. Continuei pintando, sem me desviar do meu rumo, do meu próprio desenvolvimento, da minha observação, seja por meio de troca ou de elogios. Eu não sou assim com tudo, mas estou ficando mais forte.) Tal terapia é flexível e é por si só uma aventura de vida. O trabalho não se alinha com o conceito errôneo tão difundido de o médico “descobrir” o que há de errado com o paciente e “lhe dizer”. As pessoas têm estado a “lhe dizer” a vida inteira e, na medida em que ele aceitou o que dizem, ele também tem estado a se “dizer”. Mais ainda, mesmo que haja a autoridade do médico, isso não vai mudar nada. O que é essencial não é que o terapeuta aprenda algo sobre o paciente e então lhe ensine, mas que o terapeuta ensine o paciente como aprender sobre si mesmo. Isso envolve o fato de ele tomar diretamente consciência de como, sendo um organismo vivo, ele funciona na verdade. Isto se consegue com base em experiências que são não-verbais. Fritz, em Gestalt-terapia Uma Xícara de Chá*(*De Zen Flesh, Zen Bones. Paul Reps. Charles E. Tuttle Co., Inc. Tóquio. (N. do E.) Nan-in, um mestre japonês, recebeu um professor de universidade que veio indagar a respeito do Zen. Nan-in serviu chá. Encheu a xícara do visitante, e continuou derramando. O professor observou a enchente até que não pôde mais se conter. “Ela já está cheia. Não cabe mais nada!” “Como esta xícara”, disse Nan-in, “você está cheio — de opiniões e especulações. Como posso lhe mostrar o Zen a menos que você antes esvazie a sua xícara?” *** Eu sou e faço o melhor que posso — tanto nas coisas práticas quanto em relações com pessoas — quando não penso sobre. Rompa com a memória psicológica, diz Krishnamurti. Livre-se de convicções e interpretações — é tudo auto-hipnose. Eu me debato com a gramática, tentando encontrar algum meio de exprimir o que acontece quando faço isso. Desisto da luta impossível. É claro. Você sabe o que é claro? Eu não. Eu só lembro, agora. *** Fritz: Se você quer ajudar, você é enganado. “Você está tentando ajudar”, é uma das críticas mais sérias de Fritz, a nós, como terapeutas. Quando uma pessoa no lugar quente diz para o Fritz: “Eu sei que você quer me ajudar”, Fritz diz: “Não”. As vezes ele acrescenta algo ou diz o que se passa dentro dele, que não tem nada a ver com ajudar. Quando tento ajudar, tenho a idéia de ajudar. Começo com um conceito, tenho uma opinião, uma convicção, alguma noção do que é “ajudar”, e tenho uma meta. Tudo isto está no meu “pensar”. O processo de fluir-livre que sou eu não tem metas, e não pode funcionar quando eu as tenho — ou quando estou pensando. As vezes, Krishnamurti é bem rude com pessoas que ficam ajudando os outros. Um interlocutor perguntou: “E você?”. Krishnamurti: Mas eu não faço de propósito, você percebe? Essa é a diferença. Krishnamurti: Um homem religioso é um homem que está só — não um homem que é sozinho — sem dogmas, sem opinião, sem passado — livre de condicionamentos e só, e apreciando o fato. “Observação/compreensão/açãol”, disse ele em Berkeley no ano passado, sem deixar lugar para pensamentos entre as palavras. Nos últimos cinco anos eu o ouvi várias vezes dizer que o gradualismo não é bom, que nós (eu) devemos fazer uma mudança radical, e que esta mudança radical precisa ser feita agora — agora mesmo. Eu sempre pensava: “Ótimo. Genial. Estou disposta. Eu quero. Mas como posso fazê-la agora?”. Parecia-me algo totalmente impossível. Agora sei que agora é a única hora em que posso fazê-la. Então, vem o sossego. Completamente sossegada. E ao mesmo tempo, tudo está dançando. Sem o sossego, com nenhum centro, a dança é minha, e é fictícia. *** As vezes me aborreci com algo que o Fritz disse ou escreveu, sem ter muito claro o motivo do meu aborrecimento. Certa vez tentei falar com ele sobre algumas dessas coisas que estavam na sua autobiografia In and Out the Garbage Pail (Dentro e fora da lata de lixo), que na época ainda estava em manuscrito. Não cheguei a nada. Eu me senti bloqueada por ele. Mas então percebi que não estava sendo clara para ele. Eu não conseguia me fazer clara. Ele disse que eu estava tentando estar na cabeça dele. Eu? Porque eu sabia mais do que ele sobre esses trechos. Era por isso que eu queria que ele os mudasse. Ele devia estar na minha cabeça! Então percebi que eu queria usá-lo para chegar à clareza em mim mesma, e ele estava se recusando a ser usado desta maneira. Bem, eu deixo os outros me usarem apenas da maneira que quero ser usada. Agora tenho claro (a meu ver) que Fritz não cometeu o erro de considerar o Zen uma salvação rápida: ele cometeu o erro de desconsiderar o Zendo, sem ter se envolvido com ele. Eu penso que o Zen sobreviverá. Durante três meses aqui, pensei que simplesmente não estava captando alguns aspectos da Gestalt-Terapia — uma certa falta de visão em mim. Não me incomodei com isso: simplesmente julgava que era assim. Os aspectos da Gestalt que me atraíam eu aprendia, e me ocupava com isso. O resto podia vir depois. Afastei-me durante três semanas, e pensei que ao voltar captaria o resto. Na volta, percebi que esses aspectos não me atraem. Eu não quero aprendê-los, então não vou aprendê-los — assim como nunca aprendi nada sobre adjetivos, advérbios e predicativos nominais. Eles não me atraíam. Mas eu posso usá-los. *** Foi muito engraçado chegar a este centro de treinamento, porque era a primeira vez na vida que eu seria treinada para alguma coisa. Vim para o Canadá em busca de um sítio ou de uma fazenda, de uma comunidade, um kibutz. Isso não morre dentro de mim, mesmo que o custo da terra e a escassez de lugares apropriados tenham até agora tornado a idéia impossível. Eu vim para Vancouver sem planejar nada a não ser uma reserva de avião e a viagem. Eu queria descobrir se ainda era capaz de chegar sozinha a uma cidade estranha e me virar. Havia duas pessoas para as quais eu podia telefonar, sendo que uma delas era o Fritz, mas eu não iria telefonar enquanto não me assegurasse de que poderia me arranjar sem elas. Até agora não tinha pensado que esta é uma maneira de lidar com as coisas por meio da tomada de consciência. Percebi que estaria conhecendo o Canadá e os canadenses de uma maneira diferente do que se fosse apresentada, escoltada, dirigida, recomendada para os lugares mais agradáveis, apoiada por amigos. Não telefonei para o Fritz enquanto não cheguei a um ponto de desespero, me meti numa embrulhada sem ver saída, entrei em pânico, saí do pânico e da embrulhada. Então fiquei sabendo que eu ainda era capaz de me virar, e telefonei para o Fritz. Certo dia no seu apartamento em Vancouver conheci algumas das pessoas que iriam passar algumas semanas aqui. Eu queria ver este lugar, e descobrir o que era. Por outro lado, não conseguia me enxergar como sendo parte dele. Após ficar procurando uma fazenda, voltei para Vancouver duas noites antes de todos virem para cá. Eu estava me sentindo sem saída em relação à fazenda no Canadá, e pensei em vir com eles, ver o lugar e voltar para a Califórnia via Victoria ou Seattle. Fui até o bar para jantar, com sensação de poucos amigos. Também me sentia desajeitada. O único lugar que havia para sentar eram bancos no balcão. Sentei. Ao meu lado havia um banco vazio e desejei que houvesse outro do outro lado. Então, veio um homem e sentou no banco vazio. Ele não podia ter ido sentar em outro lugar? Eu também estava um tanto paranóide. Gordon tinha trazido a minha mala para o hotel — cabelo comprido, mangas arregaçadas acima dos cotovelos. Não era o meu tipo de hotel. Eu pensava que eles não me queriam. Eu tinha também um saquinho plástico com escova de dentes, pasta de dentes, escova e pente, e o coloquei sobre a mesa enquanto me registrava. Também não era o meu tipo de hotel. Quando me afastei da mesa para ir ao quarto com o elegante homenzinho que carregava a minha mala, ele disse: “Oh!” e voltou para pegar o saquinho plástico que eu tinha esquecido. No elevador havia meia dúzia de pessoas, todas muito empertigadas e distintas, vestindo o que pessoas bem vestidas vestem. O elegante homenzinho segurava o saquinho como se fosse uma caixa de jóias. Ele o transformou numa caixa de jóias. Por um momento, eu mesma o enxerguei dessa forma. Fiquei impressionada. Gente esperta, os chineses. O homem que veio sentar no banco ao lado do meu, e que eu ignorei, comentou algo a respeito da minha beleza. Isso ocorre com bastante freqüência, e eu fico intrigada quando descubro que é sincero. Eu não achava que esse aí estava sendo. Fiz algum agradecimento, esperando que fosse frio, mas achei que parecia a minha mãe quando se zangava com o gato e batia nele. As palmadas eram tão suaves que o gato ronronava. O homem começou a jantar comendo metade de um grape-fruit. Sempre que ele enfiava a colher, espirrava um pouco de suco na minha testa ou nas minhas bochechas. Notei que ele esperou acabar antes de me perguntar: “Espirrei em você?”. Então olhei para ele, e ele tinha a pele tão clara que parecia polida, o cabelo grisalho tão no lugar, uma camisa tão branca e um paletó preto, impecável, intocado por mãos humanas, como se tivessem acabado de tirá-lo do plástico; fiquei ainda mais paranóide. Ele conhecia todas as garçonetes. Será que a direção do hotel estava me observando por intermédio dele? Eu tinha apenas passado um. pano molhado no rosto, penteado meu cabelo para trás sem refazê-lo, e trocado de vestido antes de descer para jantar. Estava com fome. Na Viagem de um dia, vindo de Lago Kooteney, tínhamos parado só uma vez, em Keremeos, onde comi um sanduíche e tomei uma xícara de chá num lugarzinho gostoso. Em Keremeos, conheci um corretor de imóveis cego. Quando entrei no escritório dele, ele se levantou, estendeu a mão e disse, muito à vontade: “Você vai ter de vir a mim. Sou cego”. Ele descreveu as terras melhor do que qualquer outro corretor. Disse: “Agora os preços não fazem sentido!”. Em breve ficou claro para ambos que ele não tinha um lugar como eu queria, mas não tentou me vender outra coisa. O cavalheiro polido ao meu lado perguntou-me o que eu fazia ali, e não tive vontade de lhe contar. Ele continuou sendo cavalheiresco. Eu disse algumas coisas, não me recordo o quê. A Gestalt-Terapia entrou na história, e ele me perguntou o que era. Respondi: “Ela toma as pessoas responsáveis por si mesmas”. Ele fez um meneio. “Livre empresa”, disse. Ele comia muito mais depressa do que eu — praticamente todo mundo come mais depressa do que eu —, acabou o bife, estendeu o rosto na minha direção e disse: “Beije-me”. Eu estava comendo um sanduíche de rosbife quente, e tinha muita consciência da gordura nos meus lábios. Colocar essa gordura naquelas bochechas polidas? Perguntei: “Com os lábios engordurados?”. “Com os lábios engordurados”, disse ele, o rosto ainda estendido. Beijei a bochecha dele. Ele foi embora. *** Talvez aquilo tivesse algo a ver com isto. Sempre tudo tem algo a ver. Quando subi para o quarto não demorou muito para eu me comprometer a vir para cá. Inscrevi-me no dia seguinte, e vim um dia depois. Sozinha. Eu não ia ser terapeuta. Quando fui entrevistada pela senhora do jornal local, a entrevista saiu assim: Nós pedimos a ela que fizesse alguns comentários pessoais sobre os workshops de Gestalt dirigidos pelo Dr. F. Perls, psiquiatra. Ei-los: Eu gostaria de chamar Fritz Perls de gênio, mas ele diz que as pessoas o chamaram de gênio a vida inteira, e durante alguns meses ele acreditou e então descobriu que simplesmente não conseguia corresponder a isso. Então direi apenas que em workshops com ele, eu experienciei mais caminhos de abordar e trabalhar com o problema do ser humano do que julgava possível. É com a minha própria humanidade que eu me preocupo. Sinto-me bem dizendo isso, depois de tantos anos em que me foi dito que devo “pensar nos outros”. A alternativa parecia ser “pensar em mim mesma”, e eu não gostava disso. Foi um momento maravilhoso quando descobri que é quando eu não penso — é então que sou mais disponível aos outros, que tenho a maior consciência do que se passa à minha volta, que funciono melho-. Pode parecer idiotice. Mas creio que cada um de nós deve ter tido a experiência de fazer algo realmente bem, sem pensar no que fazia — e a experiência de perder o equilíbrio e a habilidade, ao começar a pensar. Há também as vezes em que nos enganamos ou cometemos erros, e dizemos: “Eu estava pensando em outra coisa”. Já ouvi Fritz Perls dizer de si mesmo como terapeuta: “Tento ao máximo não pensar”. Trabalhando comigo mesma para me livrar daquilo que me impede de ser humana, deixo muito mais humanidade entrar no mundo, onde certamente precisamos dela. Nos dizem que cometer erros é “ruim”. Mas isto é parte da aprendizagem — cometer erros e notá-los. Então — se não os combatermos. — eles se corrigem. Como é que um bebê aprende a andar? *** Agora entendo um pouco melhor o “gênio”. Eu sou um gênio quando o meu gênio está presente, da mesma forma que sou uma cozinheira quando estou cozinhando, uma escritora quando estou escrevendo. Outras vezes, não sou. Na quarta semana aqui, Fritz nos disse para formarmos pares paciente/ terapeuta. Se eu tivesse deixado sair o riso que surgiu dentro de mim, todo mundo teria gostado. Eu o mantive lá dentro, e só eu o apreciei. No fim da semana, quando veio a notícia daqueles que tinham sido aceitos para prosseguir o treinamento, o meu nome estava lá. Senti-me satisfeita pela aceitação e aborrecida com o meu futuro. Se eu continuasse, teria de levar o treinamento a sério, teria de me tomar uma terapeuta. *** As minhas dores se foram há muito tempo. Notei quando elas sumiram. Tenho estado apreciando, sem pensar em “livro” ou “fazer”. Quando aprecio o que estou fazendo, é tolice receber dinheiro em troca agora ou depois. Quando não aprecio o que estou fazendo, o pagamento nunca é suficiente. A única forma de ele ser suficiente é quando o dinheiro é tanto que posso deixar o trabalho. *** Estou com fome. Não com muita fome, mas o bastante. Parei de fazer o que estava fazendo, e surge o pensamento (ou tomada de consciência — que se transforma em palavras quando as expresso por meio da máquina de escrever) de ir hoje até Lake Cowichan comprar algumas coisas para poder fazer o bolo de chocolate que prometi a Deke em junho, e ao mesmo tempo alguma comida para a cabana do Fritz, de modo que ele possa preparar o desjejum quando voltar, depois de amanhã, que é domingo, e as lojas estarão fechadas. Elas também fecham às segundas-feiras. Quando me afastei da máquina de escrever, notei que teria de trocar de roupa. Não “posso” ir para a cidade vestindo uma camisola de flanela. Digo a mim mesma (olha a mentirosa aparecendo) que não posso ir até Lake Cowichan vestindo apenas uma camisola de flanela porque (e quão freqüentemente estaé a palavra-mentira) esta atitude seria prejudicial ao Instituto. Mas se o Instituto não estivesse aqui, será que eu o faria? Eu não sou idiota para fazer isso. “Porque” é palavrão em Gestalt. Fazendo experimentos (não é uma regra) notei como “por que” me afasta mais e mais de mim e do que quer que tenha feito (bom ou mau); e como, sem seguir o “porquê”, simplesmente digo o que fiz. A minha força volta. (Em nossa sociedade “Por que você fez isso!” chega a nós tão cedo, e com tanta freqüência — uma acusação, não um pedido de informação.) Sem “por que” eu me tomo mais índia, vivendo com os fatos, sem culpa ou orgulho — essa gangorra da nossa existência que nos tira do nosso centro, o ponto de equilíbrio. No Garbage Pail, Fritz fala em certa vez ter se tornado um idiota por algum tempo, espontaneamente. Não me admiro que naquela ocasião ele tenha tido uma experiência incomum. Nos grupos, às vezes, ele faz alguém representar o papel do idiota como parte da terapia. Até agora, ninguém representou o meu idiota. *** Então, troquei de roupa, e enquanto tirava uma e vestia outra, lembrei-me de quando era jovem e os dias de chuva continham tanta felicidade. Não era só brincar na lama que era gostoso, e fazer riachos, mas podíamos vestir roupas mais velhas para ir à escola. Nós vestíamos roupas velhas sempre — surradas, às vezes remendadas — exceto em ocasiões escolares especiais, quando vestíamos nossas roupas de domingo. As pessoas usavam roupas velhas para trabalhar em dias de chuva — mesmo as pessoas que trabalhavam nos escritórios de Wall Street. Era “prático”, nos dias antes da abundância, varais e calçadas por todos os lados. A minha tia Alice (que para mim às vezes era tão agradável quanto, outras vezes, imbecil) adorava ir ao trabalho em dias de chuva, espirrando água a caminho da parada do bonde; e além disso, em dias de chuva ela não se importava em ir trabalhar, Uma das alegrias de uma verdadeira emergência é jogar-se nela. Outra é que as coisas não essenciais são deixadas atrás. Quanto é essencial? Reahnente essencial. Nossas necessidades biológicas são poucas. *** Márcia pediu para esconder-se aqui. Eu estava guardando a comida que comprei e lavando pratos. Eu disse que estava bem. Naquela hora não sabia que queria voltar a escrever. Quando retomei de Cowichan e vi a máquina, não senti atração nenhuma. Depois de guardar a comida, senti. Agora, descubro que estou lenta, dispersa, que paro com freqüência — não há sensação de que a coisa está indo bem. Sinto Márcia por cima dos meus ombros, embora ela esteja deitada no sofá. Ela não está me incomodando. Ela nem mesmo disse nada. Eu estou me incomodando. Quero trabalhar e superar isso... Bem, terminou. Márcia acabou de sair. Duas vezes, antes, ela se levantou, fez uma coisa ou outra, foi até o banheiro, abriu a porta da geladeira, e eu me senti molestada. O que é que ela estava fazendo? O que é que ela queria? O idiota da aldeia iria se preocupar? “Eu não conheço a Márcia muito bem.” Isto é um porquê, uma mentira. Eu não estou gostando muito de mim. Eu me sinto mal-humorada, irritada, cansada, e não adianta pensar nisso. Se eu mudar para “pensamentos bons”, poderei me sentir melhor, ou pensar que me sinto melhor, mas ainda estou no mesmo dilema — a separação entre eu e mim. Entre num vaivém. Veja o que acontece. Uma pequena balsa navegando pelo lago, sem madeira. Um pequeno barco a motor espirra água, no sentido contrário. O lago está todo encrespado, como um tecido enrugado. Na laguna a água está mais quieta, quase parada. Gotas de chuva sobre o lago. A minha cabeça está balançando. Não, Não, Não. Deixe-me fechar os olhos e ter a sensação, enquanto continuo a balançar a cabeça. Não não não não não. Ah não. Ahh não. Digo isso em voz alta. Minha voz está profunda, firme e segura, e ao mesmo tempo suave. Ela se faz sentir congruente com o movimento da minha cabeça, no ritmo, no tom. Abro os olhos e à primeira vista o lago parece estar de cabeça para baixo, como um céu carregado. Eu me interesso. Minha cabeça pára de dizer não. Na metade do lago há uma clara divisão. A parte do meu lado parece negra — a parte mais distante é como um gelo pesado. Na laguna, perto de mim, as colinas do outro lado refletem-se na água. Desligo a máquina de escrever e de repente — sossego... Vejo os meus dedos que batem refletidos no vidro da janela. Atrás da janela, as ondas estão ficando mais fortes. Balançando, transformando-se de novo em céu. Eu me sinto balançar com as mesmas oscilações, como uma respiração. A parte negra agora tem tons de preto e prateado, linhas pretas e prateadas — linhas finas — que balançam, se mexem. A mudança não tem fim. Meu Não parece ser um Não para o atoleiro, estar atolada no passado de x-minutos atrás, onde nada mais pode acontecer. Tudo fantasia. Tudo ilusão. Acorde! Acorde! *** O Criador fez o mundo. Venha vê-lo.” Oração dos índios pima. *** Consigo! Agora funciono. Escrevo muito melhor — e não é trabalho, não parece ser. Em todo caso, o que é “trabalho”? Somos tão confusos em relação a ele, que eu abandono a pergunta. Certa manhã, na reserva dos navajos, Beulah, a cozinheira, deu às crianças ovos fritos colocando-os nas mãos delas. Elas levaram os ovos até o refeitório, sentaram-se à mesa e comeram com as mãos. QUE HORROR! Isso foi comentado a mais de quinhentas milhas da reserva durante duas semanas — pelos brancos. *** Quando fui trabalhar na Escola de Vale Verde, vivíamos em tendas. A escola estava sendo construída. Cerca de uma dúzia de índios hopis lá trabalhavam, e eu não tinha idéia do que eles pensavam de mim. Eles eram arredios. A cozínha/refeitório era uma pequena casa de pedra com uma sala apenas, que já estava no lugar quando a terra foi comprada. Foi colocado um piso novo, e uma mesa de madeira — sem acabamento. Certa noite, depois de o chão e a mesa terem sido muito esfregados e estarem real mente limpos, um pequeno menino hopi derramou seu copo de leite. (Entrei demais no escrever. A minha tomada de consciência falhou. Agora mesmo notei fumaça e desliguei o que não devia estar ligado. Eu deveria ter notado o cheiro antes de haver fumaça. Não entrei no vaivém espontâneo que é o fluxo de consciência.) O leite derramado estava se esparramando rapidamente na direção das bordas da mesa e cairia no chão. Empurrei a cabeça do menininho para perto do leite, dizendo: “Depressa! Lamba!”. Ele lambeu feliz, virando um pouco a cabeça de modo que um olho ficava olhando para mim. A sua mãe, Mona Lee, ficou confortavelmente sentada na cadeira e disse: “Você não é como as outras mulheres brancas. Elas dizem para pegar o pano. Quando a gente vem com o pano, o leite já está no chão.” Mais tarde, na mesma noite, fui até a cozinha. Mona Lee estava sentada de costas para mim, conversando com um hopi recém-chegado. Quando cheguei perto da porta, ele parou de falar. Mona Lee virou a cabeça na minha direção e disse: “Com ela, tudo bem”. Eles continuaram falando. Dentro da minha própria sociedade — A minha vida ali era sentida de forma tão mais vital, tão mais espontânea e viva. Estamos matando os índios. A América precisa dos índios. Nós estamos matando a nós mesmos. Os índios também pensam que precisamos deles. *** “índio” não é uma cor de pele. E uma maneira de viver que não conduz ao Vietnã. “índio” é uma mulher navajo que me contou que quando estava na escola, a professora de educação física lhe ensinou a trapacear, a esbarrar de modo a provocar a saída de outro jogador parecendo acidente, a ganhar. “E agora”, disse ela, “preciso trabalhar tanto para tirar isso de mim.” Alguns de nós também estamos trabalhando duro nisso. Outros recém-começam a descobrir os jogos que fazemos, e que estamos aqui é para ganhar. Até mesmo maridos, esposas, pais e filhos, e filhos e pais, e filhos e filhos. Na conferência intercultural em Saskatchewan, um homem branco sugeriu que um dos modos de ajudar os índios seria educá-los a respeito do nosso sistema e procedimentos legais. Os índios, todos concordaram, levam desvantagem na nossa política e nas nossas cortes, porque dizem a verdade. Quem deve mudar, os índios ou nós? Em que mundo você prefere viver? *** Hoje comprei um conjunto de colherinhas de medidas. Eu só queria um desses conjuntos simples, de cabo curto. Tive de comprar umas colheres de forma quadrada, com cabos, e uma alça para pendurar, e ganchos que são fixos na parede. Recordei-me da história do sucesso de Donald Stwart, e como ele chegou lá em cima. “Quando alguém queria um selo de dois centavos, eu vendia um selo de drz centavos. Quando um homem queria ir até o sexto andar eu o levava até o décimo segundo!” O estojo não é simples e os cabos são tão compridos que eu decidi ser melhor pendurá- los perto de um canto da parede. Não consegui deixar reta a barra com os ganchos. Por um momento pensei: “Isso é ruim.” Então notei que de qualquer forma as colheres não ficam alinhadas embaixo, porque são graduadas pelo tamanho dos cabos, bem como da cavidade. Era gostoso olhar a barra inclinando-se para baixo, para a esquerda, e as colheres subindo também para a esquerda. E, nesse momento, vi algo a meu respeito que incomodava o meu marido e que nunca entendi antes. Ele ficava por conta quando as coisas não estavam retas e arrumadas como deveríam estar. Agora compreendo por que eu mesma fiquei tanto desse jeito — não o suficiente para satisfazer o meu marido, mas o bastante para me desgastar. Eu me aborreço quando sou incomodada — quando uso a minha vida incomodando-me porque as coisas não estão como deveriam estar. Era por isso que eu tinha mais vida nos tempos dos clipes-debaixo-do-colchão. Também tinha mais vida, vinte anos depois, quando estive em Deep Springs. Eu estava vestindo um conjunto de lã inglesa que tinha comprado no Canadá. Era uma lã maravilhosa e um conjunto maravilhoso. Eu não esperava nunca mais ter outro conjunto daqueles. Na cozinha sentei-me num banco alto. O enorme marido da cozinheira, adepto da Igreja de Cristo, disse com voz lamurienta: “Esse banco está molhado”. Eu tinha notado depois de me sentar. O homem continuou com suas lamúrias: “Nada parece incomodar você...”. Eu era feliz demais para me sentir incomodada. Crueldade, repressão — coisas como essas me incomodavam muito, mas não muita coisa além disso. Agora já não sou tão feliz, já não sou tão viva. Meus óculos caem muito do nariz. Já não tenho mais aquele ambiente próprio para mim. Por meio da Gestalt, estou trabalhando no sentido de chegar à felicidade onde eu estiver. Não fingir. Não procurar moedas de prata. Estar em contato, com a mesma facilidade que fico quando estou num ambiente que me libera. Estou trabalhando no sentido de me liberar. Aqui é um lugar bom para fazer isso. A maioria das pessoas jião é muito espontânea, e tampouco eu. Ao mesmo tempo, Gestalt e Fritz trabalham para liberar a minha espontaneidade. Eu sinto que nesta comunidade estou vivendo nas pressões sociais concentradas, e ao mesmo tempo o lugar está trabalhando no sentido de me libertar. Eu ainda não consegui, mas sinto a espontaneidade mais próxima da superfície do que estava antes. Isso é excitante. *** Hoje havia couves-flores no armazém. Algumas eram suficientemente pequenas para eu comê-las em dois dias. Outras eram imensas. Olhei o preço e cada uma custava 39 centavos. Todas do mesmo preço. Ridículo! Foi o que pensei. Então notei que as pequenas eram novas, e muito brancas e macias, e que as folhas pareciam ser daquelas que têm um sabor delicioso. E então me lembrei do Havaí, como era difícil tentar convencer os japoneses a colher para mim feijões e vagens novas, mesmo assegurando-lhes que pagaria o mesmo preço das grandes, e eles não perderíam nada. Comprei uma couve-flor pequena. Há tempo que não como couve-flor com gosto de couve-flor; já me esqueci do sabor dela. Eu achava que não gostava mais de couve-flor. E também meu estômago se sentiu bem com ela — nada de indigestão. Preciso comer tão menos quando o gosto é bom. Eu me sinto satisfeita, como se tivesse comido sobremesa. Algumas pessoas estavam tomando sorvete na casa lá de cima, enquanto assistiam televisão. (E sexta de noite, e não há grupos até domingo à noite.) Eu gosto muito de sorvete. Mas não quis. Tanta coisa se passou dentro de mim ontem à noite enquanto eu dormia. Isso tem acontecido muito, desde agosto. Como se a linguagem dos sonhos não fosse mais necessária, e as coisas me são ditas diretamente. Não. É como terapia tendo lugar dentro de mim, o tempo todo que durmo. Fritz disse que esse é o fim da terapia — o organismo assumindo o comando. Estou em dificuldade. Este livro era para dizer muita coisa sobre Gestalt. Quanto mais sei sobre Gestalt, menos posso dizer. Quando fui para o Havaí, fiquei encantada e quis escrever um livro. Três anos depois, ainda queria escrever o livro, e percebi que seria um livro muito diferente, tendo experienciado o Havaí mais profundamente. Isso continuou acontecendo, e depois de dez anos percebi que não podia mais escrever um livro sobre o Havaí. *** “Você gostaria que eu carregasse a sua mala?” A mudança Gestalt é: “Eu gostaria de carregar a sua mala”. O passo seguinte não tem palavras. O ex-poeta * Malcolm Lowry Madeira flutua na água. As árvores Se arqueiam, ali está verde, a sombra Uma criança passeia nos prados Uma serraria, vê-se pela janela. Conhecí um poeta que chegou a isso: O amor não se foi, apenas as palavras de amor, Disse ele. As palavras se foram E teriam pintado aquele navio Cores vermelhas jamais tiradas Em crepúsculos lívidos no Cabo. Eu disse que também era bom. Ele sorriu e disse: Algum dia Deixarei este lugar como as palavras me [deixaram. Copyright, 1962, Saturday Review, Inc. (N. do E.)

FOLHA “Dois” me veio à cabeça, convencional mente, para identificar este capítulo. Notei o convencionalismo. Só isso. Depois veio “Folha”. Fica “Folha”. Não será substituído por nada. Não entendo o que está se passando dentro de mim. Algum tipo de alteração. Estou tomada de dor e fraqueza, esmagada. Não há nenhuma parte de mim que não esteja assim. E então há sossego e força. A duração nunca é a mesma... Neste instante, sinto a dor, como se não tivesse força alguma... *** Não tenho estado em busca de nenhuma idéia. Surge o problema da responsabilidade. Eu o vejo simultaneamente de duas maneiras e estou confusa. Solto-me... A dor está tomando conta outra vez. Tanta coisa me faz recordar a época em que estive doente. Neste instante, era o médico me perguntando, no hospital: “Bem, onde você se sente normal?”. Neste instante, não me sinto normal em lugar nenhum. Eu nem mesmo sei o que é normal. Não fiz a pergunta, mas apareceu uma resposta: “Normal é como o tempo; chove ou faz sol, está ventando ou não, e como o dia que é seguido da noite que é seguida do dia, é o crescer e morrer”. Esta manhã Fritz disse: “Você não esteve aqui para o workshop de três semanas”. Uma constatação. Respondí: “Não, não estive”. Isso tudo saiu por si só. Não foi um programa. Não “me obriguei” a ficar falando. Não houve toda a baboseira de “explicações”. Os pais pedem explicações. Os professores pedem explicações. Pais e professores fazem tanta parte da minha vida quando sou pequena. E depois, “amigos”, patrões, esposos... Ontem à noite, Fritz falou sobre si mesmo no grupo de Esalen, de onde tinha acabado de voltar: “Pela primeira vez na vida fui perfeito”. Ele disse que tinha visto claramente maya, a ilusão. Eu vi essa ilusão claramente por um instante. O que importa, o que acontece comigo ou com os outros quando é tudo ilusão, como o homem que cai morto no meio de uma peça de teatro? Então a coisa fugiu. Entrou a “responsabilidade”, rasgando e sacudindo tudo. Algumas coisas são ruins, e os terapeutas não “deveríam”. Fritz deixa acontecer algumas coisas que ele não “deveria”. E não faz nada com elas. Fritz também me deixa continuar de formas que eu não “deveria”. E não faz nada com elas. É tudo parte do mesmo jogo. Eu começo a querer entender isso, e não consigo. A minha mente não está vazia. O que “eu” queria entender, ou penso que “deveria” não está lá. E nada mais está. E, mesmo assim, não estou “vazia”. *** Não escrevi nada durante dois dias, até hoje de manhã. (A perfeição de estar aqui desta vez me esmaga.) Todas as partes precisam ser vistas para conhecer a perfeição. Não posso descrevê-la. Por favor, você pode descrever o mundo? Fiz um bolo de chocolate, aquele que eu tinha prometido a Deke em junho. Faz mais de dez anos que eu não faço um bolo, mesmo antes de ter os tremores. Medir as quantidades, especialmente as pequenas, foi tão difícil que se tomou absurdo. Cometi tantos erros, e na medida do possível, os corrigí. O bolo estava no forno quando notei que tinha esquecido a baunilha. Esparramei um pouco em cima de cada camada e misturei com um garfo. Fiquei um pouco triste. Não era o bolo que eu tinha prometido a Deke. Todo mundo que gosta de bolo de chocolate, inclusive Deke, achou que estava bom. Eles não estavam esperando outra coisa. Quando o bolo ficou pronto, me senti com sono/cansada e fui para a cama. Deitei-me. Não dormi. O tempo passou. Deve ter passado. Ele sempre passa. Então notei que estava apreciando — realmente deleitada — o movimento das folhas do lado de fora, os troncos castanhos, as muitas formas diferentes de folhas, as sutis diferenças de cor. Eu não estava pensando nelas. Nada de palavras. Nada de análise. Nada de opinião. Simplesmente apreciando. Continuei a apreciar, sabendo que isto era algo que costumava fazer com freqüência. Quando eu era pequena, um adulto ou minha irmã intrometia-se com alguma pergunta ou exigência estúpida, e quando eu ficava brava por ter sido interrompida, me diziam: “Mas você não estava fazendo nada”. *** Na conferência intercultural, tanta coisa se passou entre nós. Veio um homem da Agência de Assuntos Indígenas. Gostei dele, e ele parecia uma tempestade, soprando e destruindo tudo que estivera acontecendo. Formulou suas perguntas que eram baseadas em suas respostas. A maioria de nós se sentiu muito infeliz. Talvez todos nós, mas não sei o que alguns sentiram. No dia seguinte, quando o homem se foi, um padre branco perguntou a um índio: “É assim que é quando nós (brancos) entramos numa comunidade (indígena)?”, Um índio respondeu, com uma explosão de alegria: “Se você aprendeu isso, toda a conferência valeu a pena!”. *** Náusea. Eu a senti. Fui para a cama e comecei a tremer. Arrepios. Soluços. Olhos levemente turvos. Pouco som. Soluços imensos, sentidos por todo o corpo, até mesmo um pouco de soluços nos pés. Ondulações, como se fosse vomitar, então “pára” e começa outra vez. Mais tarde, um pequeno suspiro. Então suspiros maiores, rápidos, fortes, profundos. Agora me sinto mais mole do que trêmula, com alguma força na moleza. Eu me solto. Durante quantas décadas insisti em me prender? Aquela percepção das folhas. Tão plena. Completa. Nada a ser acrescentado, nada a ser tirado. Nenhum desejo de mudar nada. Prazer. Alegria. Não ficar para sempre deitada na cama, uma vida inteira desse jeito, mas mergulhar nisso outra vez é bom. Um dos furos no meu experienciar já não é mais um vazio. Ontem à noite fui até o grupo do David. Tudo parecia tão claro. As cores me deleitaram. Cada pessoa era tão completa e unicamente ela mesma. Havia clareza “lá fora” e no meu ser. “Pela primeira vez na vida fui perfeita.” Me parece que sabemos dessa possibilidade de perfeição, e lutamos por ela de todas as formas que não nos conduzem até lá, que nos afastam dela, como correr para a frente querendo chegar a um lugar que está atrás de nós. Após os meus soluços, “vi” algo que se transformou nas palavras: “O problema do bem e do mal é que nós estabelecemos o bem e o mal, e isso cria o problema”. *** Recordo-me de ter visto vagamente que levantamos todos os tipos de dificuldades, como uma barricada, pulamos por cima delas e depois nos damos palmadinhas nas costas, cumprimentando-nos pela nossa conquista. Vi isto ao notar o que eu mesma e os outros faziam. “Pensar é ensaiar.” Isso é óbvio. Posso perceber o meu próprio pensar a qualquer hora, e ali está ele. Enquanto não noto, não é óbvio. Um dos experimentos Gestalt consiste em se formarem pares, e cada pessoa dizer: “Para mim é óbvio que...”, tomando cuidado de não interpretar. Não parece nada iluminador o ouvir as pessoas dizer: “Para mim é óbvio que você está sorrindo”. “Para mim é óbvio que você está com a mão no joelho”, e assim por diante. Porém, quando “Para mim é óbvio que você está sorrindo” e “Para mim é óbvio que a sua voz está tremendo” se juntam, às vezes alguma outra coisa se toma óbvia. Ater-me ao óbvio elimina o dúbio, e eu me tomo menos dúbia, entro em contato mais direto. Após notar o óbvio em outra pessoa, quando me volto para mim, “Para mim é óbvio que eu estou...”, noto todo tipo de coisas em mim mesma que não tinha antes, e torno muito mais presente a mim mesma o que estou fazendo. Decididamente, isto não é. alegria instantânea... É preciso antes todo um trabalho. *** É realmente loucura chamarmos a ilusão de “realidade” e a realidade de “ilusão”. *** Fritz disse: “Você não esteve aqui durante o workshop de três semanas”. Eu disse: “Não, não estive”. Ambos fomos índios. *** “Fantasia!”, diz o homem que lê Fatos ao homem que lê Ficção, desconhecendo que os fatos são fantasia, e mesmo que não o fossem na hora em que são escritos, o são na hora em que são lidos. Este lugar é gostoso. Com toda a chuva, não havia nada para o grupo de jardinagem fazer. A maioria deles passou agora para um grupo de bolos e doces, que não existia antes. Agora, pela primeira vez a cozinha parece estar funcionando com organização horizontal. Na organização vertical, todo mundo que não trabalhava na cozinha tinha de ficar fora. Na organização horizontal, podemos entrar, tomar chá ou café, e nos divertir e conhecer melhor. *** Estou experimentando assar bolos, doces e pães na minha cabana. Primeiro, o bolo de chocolate com todos os seus defeitos e correções. No fim saiu bom. Deve existir algo a ser feito com farinha de painço, mas ainda não descobri o que. Comprei um “pão de painço” em Victoria. Deke e eu o comemos na volta, dividindo-o com algumas pessoas que encontramos. Lamentei ter comprado um só. Na venda vi farinha de painço e comprei um saco. Havia uma receita para fazer mingau. Tentei, e o gosto saiu muito estranho. Mesmo com creme e açúcar, continuou estranho. Então pensei em tentar assar algum bolo. Eu me de lembrei de que aquele pão de painço tinha gosto de bolo, então fiz um bolo, substituindo a farinha de trigo por farinha de painço, e açúcar branco por açúcar mascaro. A massa tinha um gosto horrível. Ainda estou pensando em algo que me tire esse gosto da boca. Talvez se eu comesse outra coisa com sabor igualmente ruim, ficaria neutralizado... Acabei de espiar o forno. A coisa não está crescendo muito. Até agora só aprendi como não cozinhar farinha de painço. Meu Deus, saíram lindos. Eu os coloquei em forminhas. A aparência saiu perfeita. Leves, finos e dourados, uma cor que eu não sei o nome... O gosto também ficou bom. Um pouco granulado, acho que é por causa da farinha. Vou deixar o gosto assentar para ver como é que fica, antes de oferecer a alguém. ...O que não contei é que primeiro li receitas em dois livros, como que experimentando, antes de decidir qual usaria... Agora estou de novo com aquele gosto na boca, apesar do açúcar mascavo e da baunilha. *** Hoje andei entrando em “projeção”. Acho que começou ontem. Em vez de simplesmente fazer o que quero fazer aqui, andei pensando (sic) que as outras pessoas pensam que eu deveria fazer mais. Não tive um indício sequer de que isso possa ser verdade, de modo que, mesmo sendo verdade, é projeção. A verdade parece ser que eu quero fazer mais, ou estar em mais coisas. Então é a velha confusão quero/tenho de, com a qual trabalhei tanto um ano atrás. Me parece que é hora de limpar a casa outra vez. Quando olho para os “tenho de'\ descubro tantos que não tenho de. Então os outros se revelam “queros”. Quando assumo muitos “deveria”, sinto- me tão carregada, tão biliosa, que nem mesmo quero fazer o que gostaria de fazer, e todos eles parecem ser “tenho de”. Eu “não passo” de uma escrava, forçada e oprimida, e a vida não vale a pena ser vivida. E essa “não-vida” que não vale a pena ser vivida. Fritz sugeriu uma indústria para a comunidade — botar para fora todos os doces de znfelicidades, tais como: “Todas as suas expectativas catastróficas vão se realizar”. *** Quando saí do sono esta manhã, ouvi a chuva... Estou atolada. Numa armadilha construída pela linguagem. Estava prestes a escrever: “Abri os olhos”, e isso pareceu ridículo. Como foi que fiz isso comigo mesma? Com os meus dedos? Mudei para “Meus olhos se abriram” e isso também pareceu bobo. Meus olhos. Eles me pertencem? Estou vendo algo no haiku que não percebia antes. Gosto da sensação de frescor que obtenho do haiku, a forma direta e desimpedida. Notei que muitas tentativas americanas de haiku eram sentimentais, e não haiku. Eu não percebia o que percebo agora na memória. Será que a minha memória está certa? Não sei. Não importa. Estou a caminho de algo. Suponha que eu... Lá vou eu de novo. Palavras desnecessárias. Ouvidos se abrem Chuva Olhos se abrem Sol. Esta foi minha experiência de hoje de manhã. Na tarde em que cheguei à conferência intercultural em Regina, ao entrar na salaWilfred dizia que os índios dizem simplesmente “chuva”. Eles não entendem a nossa linguagem. Wilfred: “Está chovendo. Quem está chovendo?”. Dois anos atrás recebi uma carta de um professor da Universidade de Chicago. Guardo poucas cartas. Esta eu guardei para me recordar de algumas coisas que sei. Por muito tempo você parecia estar dizendo exatamente o que me descobri dizendo nos últimos anos — não que o fato de dizer signifique que eu não precise aprendçr. Acho que mais preciso ser lembrado das coisas que já sei do que ouvir coisas que não sei. Numa autobiografia honesta, a frase mais comum seria: “Fiquei confuso”. Eu digo isso e sei que é verdade para mim, mas os cumprimentos que recebo pelas minhas aulas, escritos e palestras sempre empregam palavras como “lúcido”, ou frases como “Você deixa as coisas tão claras”. Fico satisfeito, mas não tenho certeza de entender. Qualquer que seja a clareza por mim conseguida, eu a refino de tanta confusão, que muitas vezes tenho mais presente a desordem do que qualquer outra coisa. Não estou seguro de para onde me dirijo. Cada vez mais quero interromper os estudantes e colegas dizendo: “Estas são as perguntas erradas, as palavras erradas, as categorias erradas, as premissas erradas. Não se pode nem pensar nesse vocabulário. Eu posso apenas conduzi-los cada vez mais fundo na confusão e irrelevância”. E às vezes é o que faço. Mas não quero realmente interrompê-los, porque então simplesmente sou sugado para uma discussão que emprega o mesmo maldito vocabulário. E eu quero me afastar dele e entrar numa linguagem na qual possa pensar. Se as reações dos alunos significam alguma coisa, eu pareço ser um bom professor. Mas comecei a me entediar. Estou cansado de repetir coisas que para mim parecem ser truísmos auto- evidentes. E quando descubro que se tratam de percepções novas e radicais para os alunos, não sei se fico satisfeito ou deprimido. Exemplo: Mostro a uma estudante muito perspicaz que na sua tese ela fugiu do problema óbvio. Ela concorda e disse de teve de fugir porque não tinha resposta para ele. Eu digo que ela não precisa ter resposta porque não existe, e que os problemas que ela não consegue responder são exatamente os problemas que deveria explorar, que se ela puder esclarecer uma ou duas questões, terá desempenhado uma função utilíssima e relativamente rara. Uma semana depois ela volta e me conta que aquilo que eu lhe disse foi uma revelação esmagadora para ela, que foi a primeira vez que ela percebeu que não é preciso ter respostas. E continua: “Como foi que cheguei até aqui sem perceber isto?”. Bem, todos nós sabemos a resposta a essa pergunta. Acho que para mim é útil continuar dizendo essas coisas, mas estou cansado. Quero ir adiante, entrar naquilo que não sei. Em Deep Springs descobri que eu realmente era o que estava fingindo ser, e ainda estou tentando integrar as implicações disso. Meu livro (ex-dissertação) estará pronto dentro de um ou dois meses, e vou lhe mandar um exemplar. Em parte por causa do tema, o tom é na sua maior parte pessimista e satírico, mas creio que ele toca em algumas coisas que você poderá julgar relevantes. Estou cansado desse livro, também. Essas malditas coisas passam por tantas provas que seria preciso ser exageradamente narcisista para não se cansar delas. Quero passar para alguma outra coisa. Na verdade não sou tão melancólico como pareço. Mas tenho todo esse entulho acumulado, partes e pedaços de eus gastos, e frequentemente parece que o mundo está querendo remendar tudo em vez de me incentivar a jogá-los fora. E sendo professor, estou exposto a uma cota dessas, maior do que o usual. Prossigo com aquilo que chamamos de “inglês”. Esta manhã acordei “louca” da vida. O que quer dizer essa “louca”? Todos nós sabemos, e ninguém sabe. Mudo para “irritada”. Eu me sentia irritada. Me sentia nhianhianhianhianhiá. Fiz de novo o que não ia fazer. (Então devo ter tomado uma resolução, a qual não tinha tomado presente até agora.) Ontem à noite falei demais, alto demais — um papo realmente estúpido. Sinto como se tivesse vomitado durante horas e horas. Isso não pode ser verdade. Saí da minha cabana às quinze para as onze e voltei às onze e meia, e não falei o tempo todo. Mesmo assim, parecem ter sido horas, a noite inteira, como se eu tivesse estado envolta numa nuvem de tagarelice maior do que a noite. Eu não quero isso. É um dos meus problemas na minha própria sociedade. A minha própria sociedade está aqui, e eu estou buscando um jeito de viver dentro dela, aqui, onde também recebo um apoio que não encontro na maioria dos outros lugares. Não foi tudo lixo. Só 95%. Respondí perguntas, perguntas totalmente sem sentido tais como o que o meu filho faz, o que a minha filha faz. A mulher com quem conversei sabe que não quero fazer isso. Eu não sou responsável por ela. Eu fui inútil para nós duas não sendo responsiva a mim mesma. Uma vez notei o que estava fazendo — e deixei. De maneira geral, gosto do rosto dessa mulher — uma mistura de carrancas e sorrisos se mexendo, como cores mutáveis que se sobrepõem. Isso é algo que aprendi a fazer quando estava entediada e não sabia o que fazer. Esse não-saber que o tempo passou. Ainda continuo a fazer isso. Um padrão de comportamento obsoleto. Um instante atrás, pensei: “Bem, lá se vai outra teoria” — aquilo que percebo toma conta de si mesmo. Tenho percebido esta minha estupidez por muito tempo e ela ainda não se foi. Bem, mas esse perceber é depois, e eu tomo uma resolução de não fazer outra vez. Desse jeito, só posso perder. E, em primeiro lugar, ontem à noite eu fui até a Casa lá de cima porque pensei (sic) que “deveria”, não porque quisesse ir. Desse jeito só tenho a perder. Mais cedo, nessa mesma noite, quando ainda não estava cansada, estava muito melhor com aquela mulher, embora não estivesse perfeito. Gosto dela. Se eu não prestar mais atenção em mim, vou começar a desgostar dela, talvez chegue mesmo a detestá-/a e evitá-/a. Sentirei que estou me mantendo intacta, e estarei — inclusive evitando a mim mesma. Este evitar não é deliberado. Agora que sei mais a respeito do que sou, deste processo, quero estar “com ele” ainda mais. Qualquer outro “com ele” é ilusão. Tenho estado a escrever o que vem. Neste instante, saí disso. Escrevi um parágrafo três vezes antes de perceber que não estou com vontade de continuar agora, que estou tentando dizer alguma coisa. Então, torna-se “trabalho”. Tenho estado pensando sobre, que é como... Bem, como falar sobre. Nos grupos de Gestalt (aqui estou de novo interessada, alerta, curiosa para ver o que virá a seguir) a pessoa que ocupa o lugar quente às vezes recebe a exigência de não “fofocar”. Falar diretamente para a pessoa. É irrelevante se o que você tem a dizer é “bom” ou “ruim”, “negativo” ou “positivo”. Não diga a outra pessoa “Ele...”, mas volte-se para a pessoa de quem você está falando e diga “Você...”. Se a pessoa de quem você está falando não estiver presente, coloque-a (isto é, fantasie) no banquinho vazio em frente de você, e converse com ela. Essa exigência de não fofocar é feita dentro de uma situação concreta. A pessoa troca de lugar. Ao fazer isso, nota-se tanta coisa além do que pode ser possivelmente dito, e tudo isso toma-se parte dela com o experienciar. Eu, como membro do grupo, não tive a experiência dela, mas tive a minha experiência do que sucedeu, e posso fazer isso outras vezes sozinha, seja dentro do grupo ou fora dele: diretamente, com uma cadeira vazia ou seja lá o que for. Se eu fizer disso uma regra, o que não é Gestalt, estou em apuros. Na cozinha um homem expressou a sensação de estar sendo enganado por um terapeuta que não estava fazendo um bom trabalho. Uma moça (ela tem idade suficiente para ser mulher, mas não cresceu tanto assim) disse: “Bem, ele passou por maus bocados” e acrescentou umas poucas palavras sobre a vida pessoal do homem (o “porquê” que apaga o que está acontecendo). Então ela tremeu, olhou por cima do ombro. “Sinto que há alguém parado atrás de mim. Estou fofocando.” “Não fofoque” virou uma regra, uma proibição, outro saco nas costas, quando tantos outros sacos já dificultaram o crescimento dela. Isso não é gestalt e nem Gestalt. Supressão não é nenhum tipo de terapia. “Eu me sinto frustrado em explicar que Gestalt não são regras?' Essa é a maldição: procurar regras e encontrá-las. Se você encontra regras, não entendeu a Gestalt. E tampouco entendeu a terapia centrada no cliente. E nem Jesus, nem Buda, nem John Dewey, nem Maria Montessori ou A. S. Neil. Você pode aprender com o Mestre, mas depois você precisa jogá-lo fora e prosseguir sozinho. E como aquilo que Szent-Gyorgi escreveu a um jovem de Londres que tinha perguntado: “Como devo pesquisar?”. A resposta de Szent-Gyorgi foi: “Pesquise de acordo com a sua personalidade, se tiver”. Fritz: “Miquelângelo teria sido escultor mesmo que não tivesse cinzel”. “Eu só perguntei se você tem presente aquilo que está fazendo. Eu não disse para você não fazer.” *** Um livro é uma coisa curiosa. Entre esses dois parágrafos preparei um molho. A vida também é curiosa, mais ou menos da mesma forma. *** De manhã, Teddy, Don e David reúnem as pessoas em pequenos grupos, cerca de dez em cada um. De noite, Fritz se reúne conosco durante duas horas ou mais. Parece que ele pensa que deve dar algumas palestras. A primeira não demorou muito. A segunda foi ainda mais curta. Ele disse que estava tendo dificuldades com o que falar, que não gosta de se repetir e é claro que ele já disse tudo antes. Depois disso, algumas pessoas foram para o lugar quente, e ele “trabalhou” com elas. Ele está mais suave, mais gentil, mas igualmente firme e preciso. Não detectei nenhuma amargura ou rancor, e havia mais compaixão. Ele parece mais à vontade. “Deve haver algo para o meu método. Eu ainda estou aprendendo.” *** Não completei a parte referente ao “não fofocar”. Notando o não fofocar — o que acontece — notei também muitas outras coisas. Como é simples ficar com aquilo que eu sei, que é tudo que sei. Como fico desbloqueada quando elimino o que ouvi, o que não sei, coisas que apenas acredito ou não acredito. Muitas vezes um índio diz: “Não sei”, e os brancos estão seguros de que o índio está mentindo porque ele deve saber (o que aconteceu em Chilchinbito ontem à noite) — o irmão dele esteve lá. Wilfred Pelletier diz dos índios, incluindo a si mesmo: “Ele só responderá uma pergunta de cada vez”. Gosto disso. Quantas vezes me foram dadas tantas “respostas” que não eram respostas para a minha uma pergunta. “Você tem visto o Hal recentemente?” “Não”, seria uma resposta. Ou, “dois meses atrás”, seria uma resposta. Neste caso, eles não podem saber aquilo que eu quero saber sobre o Hal. Recebo toda a “informação” sobre onde e quando viram o Hal, e o que aconteceu antes e depois, e onde ele andou antes de o encontrarem onde ele estava. Isso pode ser fascinante para eles. Para mim não tem interesse. Não tem nada a ver com a minha pergunta. Será que eu faço isso? Estou certa que agora notarei quando fizer. Gostei tanto do Alex, um menininho que estava visitando o amigo na casa em que eu vivia. Uma mulher perguntou: “Você tem algum irmão ou irmã?’’. “Tenho”, respondeu Alex. *** Hoje Fritz veio e disse: “Sobre a carta do John...”. Eu não sabia nada sobre uma carta do John. Fritz mencionou “a introdução”, “brochura”. Tudo ficou claro à medida que prosseguíamos, e quando ele saiu, escrevi a carta que ele queria que eu escrevesse, embora não tivesse dito. Gosto disso. É lento, dar apenas a informação necessária, com espaços no meio para reunir as imagens e completar a figura. Quando o Fritz foi embora, a minha figura estava completa. Eu não tinha perguntas. *** Wilf Pelletier escreve: ”A língua indígena não pinta um retrato da mesma maneira que a língua inglesa. Ou seja, em inglês, a maioria das pessoas tende a falar de detalhes, e também sobre o óbvio. Em língua indígena, isto é, nos dialetos que conheço, não se fala do óbvio. Não se diz bom dia se é óbvio que é um bom dia, e nem se fala das condições da estrada se é óbvio para a outra pessoa que ela também sabe disso. Posso estar até certo ponto enfatizando isto em demasia, mas é só para deixar a coisa clara. Quando falo de uma linguagem pictórica, quero dizer que você forma suas próprias imagens daquilo que aconteceu, na medida em que os índios contam só o começo e o fim. Você então forma as suas próprias imagens do que aconteceu e como você se relaciona com o fato, e não como lhe seria dito em inglês, com todas as palavras inseridas... Essas importantes diferenças relacionam-se com a organização de muitas maneiras. Quando um grupo de pessoas indígenas se junta para formar uma organização, elas não falaram em se organizar ou formar uma organização. Em vez disso, falaram de como se relacionam com isso. Não houve necessidade de se falar sobre a organização, porque foi por isso que elas se reuniram inicialmente”.*(*“Two Articles”, por Wilfred Pelletier, brochura, possível de ser conseguida por U$ 1.00 por intermédio do Institute of Indian Studies, Rochdale College, 341 Bloor Street West, Toronto 181, Ontario, Canadá. – N. do E.) Isto é semelhante à minha experiência no Clube de Melhoramentos de Koolaupoko, em Oahu, que se formou sozinho porque muitos havaianos estavam interessados em manter melhoramentos indesejáveis fora de Koolaupoko. Eu me tornei membro da direção. Não recebi votos e nem fui indicada — simplesmente aconteceu quando o lugar foi bom para mim. Foi só mais tarde que percebi como era poderosa a nossa organização não-organizada, quando um membro das Cinco Grandes (as cinco empresas que controlavam as ilhas na época) veio para nos destruir, e teve de fazer um jogo sujo para conseguir — e não conseguiu. Eles só pareciam ter nos destruído. Foi preciso o ataque japonês a Pearl Harbor e as consequentes uniões, e Henry Kaiser para consegui-lo realmente. Esse trio acabou com todo estilo de vida do Havaí. O estilo indígena também desapareceu quase totalmente — não por inteiro, mas nós o eliminamos; e em que bagunça nós estamos agora —, não ouço ninguém negando, exceto oficial mente ou diplomaticamente. Quando terminei Person to Person, eu tinha aprendido tanto com o fato de fazer o livro, que não me importava se ele fosse publicado ou não. Agora, Kolman me diz que foi para Nova York antes de vir para cá e um amigo lhe deu o Person to Person. Ele manifesta a força que o livro lhe deu para prosseguir no seu próprio caminho — recentemente escolhido. Eu me sinto bem por meu filho ter assumido o risco de entrar no negócio de publicações — um novo empreendimento, sem experiência anterior no ramo e com todo o mundo dizendo que ele iria fracassar porque não conseguiría distribuição — para o livro chegar até as pessoas. Por esta razão, ele manteve o custo mais baixo possível, inclusive seu próprio lucro. Esta não é The American Way — A Maneira Americana. Eu gosto. Não é muita gente que aprecia o fato de a minha falta de dinheiro ser uma escolha minha — não que fizesse muita diferença para os que não apreciam. Eu seria louca, em vez de estúpida, só isso, de escolher esta maneira. Eu gosto de dinheiro como todo o mundo. Gostaria de ter montes de dinheiro. Só que não consigo colocar o dinheiro em primeiro lugar, exceto numa emergência. Há muito poucas emergências reais. Eu me sentia mal em relação a essas poucas emergências até que li no Panchatantra: “Não se entregue à escassez excessiva (um pouco ajuda, em tempos difíceis)”. Outras passagens são como: Ao seguir as profissões São feitas Fatigantes concessões Aos mestres O sentido é mais do que a ciência Portanto, busca a inteligência. Parece estranho que há 3 mil anos houvesse este mesmo problema com o qual estamos começando a lidar. Eu gostaria que todo o mundo que julga importante ser sofisticado, procurasse o significado da palavra no Oxford Concise Dictionary. Ali o sentido não foi adulterado. Ou, procure a derivação da palavra no Webster’s. Note quando você se sente sofisticado, e aí está a descoberta sem dicionário. No início, quando somos jovens, sabemos disso por nós mesmos. Nós “vestimos” essa roupa. Não percebemos que todo o mundo também o faz e, quando ficam mais velhos, é provável que tenham esquecido. Uma das minhas amigas tem uma filha que ficou cega poucos dias depois de nascer. Ela nasceu prematuramente e recebeu oxigênio demais. Seus olhos murcharam como frutas secas. Ela não é só cega. Ela não tem olhos. Na adolescência ela diz: “Ugh! Não gosto dele. Ele é horrível”. “Detesto a cor desse vestido!” São coisas que as irmãs dizem. Quantas coisas digo eu, das quais não tenho experiência, só “conhecimento”? *** Existe Walden, e existe Walden Twe. Aqui me parece ser Walden Five, potencialmente. Kolman está maravilhado porque na fazenda que ele achou para nós — embora ainda não saibamos se vamos ficar com ela — parte do cenário chama-se Skinner’s Bluf (O Blefe de Skinner), e por perto há Walden. Ontem à noite ele nos mostrou mapas e ressaltou que a fazenda está numa “área muito estratégica — terras indígenas de ambos os lados.” Os índios nos protegerão da invasão de outros homens brancos. *** A cada novo workshop penso a mesma coisa: “Parece que desta vez não temos judeus”. Então as pessoas começam a se referir ao seu judaísmo de uma forma ou de outra, ou dizem algo como: “Para mim a liana parece irlandesa”, e então alguém diz, depois de ficar assombrado: “Só posso dizer que isso é opinião de goy”*(*Goy — não-judeu, em iídische. (N. do T.) No fim das quatro semanas, sei que muitos de nós são judeus. E então aparece um novo monte de goys. Fritz... Eu ia escrever algo sobre o Fritz. Joguei a primeira palavra que me veio à cabeça, depois a seguinte, depois a seguinte. Todas elas foram usadas de forma tão extravagante que pareciam depreciativas. Começo de novo. *** Esta noite eu disse ao Fritz o que notei no seu trabalho desde que ele voltou. Ou melhor, eu disse que tinha notado e o meu prazer em notar. Ele respondeu — sem orgulho ou exibição, como um simples fato: “Finalmente sou perfeito. Cheguei. Não posso fazer melhor”. Tenho a mesma sensação em relação ao que ele faz agora — ou como ele é. Agora que ele é perfeito à sua maneira, por quanto tempo estará interessado em prosseguir? Fora dos grupos ele não tem estado a cortejar ou exigir aprovação. Deixou as pessoas dirigirem a comunidade cada vez mais, confiando nelas. E isso inclui os assuntos financeiros de Cowichan Lodge. Isso é confiança nas pessoas — pois estas mudam e o lugar continua. Perguntei ao Fritz a respeito de uma continuação da sua autobiografia, sentindo que Fritz-agora não está muito no Garbage Pail. Ele respondeu que não é mais ambicioso. No sentido da autobiografia, não há dúvida de que ele estava sendo sincero. Ele ainda está ansioso de ver o Garbage Pail em forma de livro. Para mim, isso é parte de ambição. A sua ansiedade não tem pressa como tinha antes, de modo que talvez ela também esteja desaparecendo. Sob este aspecto eu não tenho ambição. O que me interessa é o que eu tiro deste escrever. Se ninguém ler, não faz mal. Então qual é a minha ambição? As pessoas muitas vezes reclamaram que eu não a tinha. Van Dusen disse que não era verdade, que eu era espiritualmente ambiciosa — referindo-se à ambição de ter mais experiências místicas, creio eu. Não tenho isso, agora. Tenho sim o desejo de largar todo o lixo da minha cabeça. O lixo é muito menor do que era. Mas eu não quero lixo nenhum. Esta noite David sugeriu que nos dividíssemos em grupos menores, usando mais gente como terapeutas. Fritz parecia ter isso em mente. Ele fará a mudança no domingo à noite — anunciando os terapeutas que tem na cabeça. Quero fazer isso, por causa daquilo que eu ganho fazendo. De qualquer maneira, teria de fazer mais do que faço. Tenho medo de fazer — expectativas — porque estou (agora) me comparando com Fritz e David aqui, e com Bob Hall em Mill Valley, Larry Bloomberg em São Francisco, Frank Rubenfeld em Nova York. Isto é parte do lixo do qual eu gostaria de me livrar. Geralmente não me comparo com os outros. Nesta situação, certamente, estou me comparando e não gosto. A fantasia mostra o que espero, quando nem mesmo sei se Fritz irá me incluir... Aparece outra coisa. Eu ser líder de um grupo que inclui terapeutas? Estou no mesmo barco que o Kolman, um barco do qual pensei ter saído anos atrás — falta de confiança na minha capacidade por não ter tido anos de “treinamento” atrás de mim. Eu sei bem, e isso não me faz nem um pouco bem — uma típica situação neurótica. Quero trabalhar comigo mesma para me livrar disso, e ao mesmo tempo parece ser demais para mim, uma muralha de dificuldades — construída por mim mesma, para poder passar por ela — que eu sinto que é demais para mim. “Preciso de ajuda.” Não preciso de ajuda. Posso me virar sozinha. Posso sim. Não tenho um plano. Consegui. Incestuoso. Uma perfeita casa de loucos. Nesta manhã é isto que este lugar está sendo para mim. Esta sou eu? Comprimida. Sou eu. Eu me sinto assim. Ontem à noite saí da fantasia e entrei nisso, que eu sinto ser diferente. A minha cabeça está quase toda vazia. Entram alguns pensamentos. Não estou ensaiando. Não estou respondendo ao lago, ao pato selvagem no lago, ou a mim. Estou um pouco zangada. Não estou sendo responsiva. Estou ignorando. Em algum nível ainda discutindo comigo mesma. Neste instante, notei outra vez o pato e o reflexo do pato na água — agora ele mergulhou. Há somente círculos. Onde será que ele vai subir? Agora, subiu, com algo na boca — mergulhou outra vez. Ele não discute consigo mesmo. Ele sabe. Então, o que sei eu? Sei que quero tomar uma chuveirada. *** Vou embora daqui. Quando estava assoando o nariz pensei: “Para quanto vai diminuir o dinheiro que tenho no Canadá quando eu voltar para os Estados Unidos?”. Isso é ir embora. Uma decisão já tomada sem que eu tenha decidido. A hora de ir embora ainda não se fez total mente presente. Eu me sinto forte. Fui até o ancoradouro. Ali estava maravilhoso, com as casas coloridas refletidas na água, o ar tão fresco e puro. “Voltar para os Estados Unidos? O que vou fazer lá, com a mesma fragmentação de vida da qual não gosto aqui, e a nuvem de poluição...” Nenhuma resposta. Senti vontade de voltar para a minha cabana, fazer as malas, jogar coisas fora, livrar-me do excesso de bagagem. Na volta, ouvi os gritos vindos de um grupo, os berros, e fiquei sabendo que todo o mundo estava envolvido em algo semelhante nas duas outras salas que estão sendo usadas por grupos. Eu me senti como a governanta de uma casa de loucos enquanto caminhava pela grama. Comecei a discutir comigo mesma: “É claro que não é assim”. Se “é” ou “não é”, nada tem a ver comigo. Isso é o que eu sinto, e isso é o que tem a ver comigo — e com mais ninguém. O que ganhei aqui irá embora comigo, e me sinto bem com isso. *** Obrigada! Você era o que eu precisava. Amarei você para sempre! Tchau! *** O meu “amar para sempre” mudará se eu ficar, quando você não for mais o que preciso. Penso em fazer as malas e parece ridículo. Para que estou fazendo as malas? Não sei para onde vou. Talvez seja apenas uma fantasia, e daqui a pouco as malas estarão desfeitas outra vez. “Estúpida, para que a pressa?” Não há pressa. Não me sinto apressada. Só estou com vontade de fazer as malas, e isso me faz bem, mesmo que eu deteste fazer malas. Eu gosto de jogar fora. Ganhei tanta coisa estando aqui. Isso me faz sentir bem. Sei de algo que não sabia, corrijo um erro antes de cometê-lo, e isso me faz sentir bem. Pensei que estava bem ter um centro de treinamento num kibutz. Agora, sei que não quero esse centro no meu kibutz. Sinto que tenho tanta bagagem. Uggh. *** “Carta do meu filho.” (Do meu ex-filho. Agora ele é dele mesmo.) No último fim de semana tivemos o workshop com o grupo de Ralston. Eu me saí muito bem! No início, sexta-feira à noite, eu estava um pouco incerto (meu “menininho”), dei a fantasia do tronco-cabana-corrente-de-água para principiar. Uma moça entrou de verdade na cabana dela e começou a chorar, então trabalhei com isso. Naquela noite e no sábado de manhã eu não estava realmente ali, embora tivesse havido um bom trabalho. No sábado à tarde, depois do almoço, começaram os rojões. Uma pessoa deu o primeiro disparo e aconteceram umas coisas lindas. Eu estava todo lá e foi (fui) ótimo. Uma moça tinha um bebê de treze meses com coração ruim; eles decidiram fazer uma operação que não teve êxito. Ela tem estado a se culpar durante dezesseis anos, mas desta vez ela realmente ultrapassou. Ela trabalhou com isso alguns anos atrás. Só o pensar não adiantou. Mas quando ela representou o bebê e disse que ela (bebê) também queria a operação para ter uma chance de vida plena, então conseguiu se soltar e dizer adeus. Depois dela, uma mulher ficou realmente louca, e estou dizendo louca mesmo. Fazendo papel de louca, realmente. Tombando, contorcendo-se, gestos esquizos, fora de contato, chorando, berrando etc. Eu simplesmente notei a minha própria indiferença aos ataques dela, e depois de ela ter ignorado algumas instruções, apenas relaxei e esperei ela acabar. Então lhe perguntei para que toda a encenação. Ela ficou parada, e depois saiu por outra tangente. Finalmente, eu a fiz relaxar (entrar de novo em contato com o corpo e conosco) e ficamos por aí. Fiquei calmo o tempo todo, entorpecido e sem rejeitar apenas — vagamente interessado. A maioria das pessoas foi envolvida pelo espetáculo, e silenciosamente elas abriram a boca quando perguntei para que a encenação. Foi algo realmente novo para mim. Meu Deus! As pessoas certamente são diferentes — embora eu possa ver padrões fundamentais, a variedade é fantástica. E eu ainda tenho muito a aprender! Acho que ainda vou ter de aprender por uns dez-quinze anos e acumular um monte de experiência para saber a metade daquilo que pode acontecer. Divertido. As minhas aulas estão indo bem — real mente agitando. Na sexta-feira, uma moça de trinta anos saiu soluçando de uma viagem de fantasia. Hoje ela entrou parecendo um farol. Na sexta ela entrou em contato, trabalhou durante o fim de semana e ultrapassou alguma coisa. *** “Simplesmente notei a minha própria indiferença.” Isso é tudo. Que controvérsias eu tive para notar que quero ir embora daqui. Não uma decisão que eu-ego tomei. Tudo que eu tinha a fazer era notar. No final, foi o que eu fiz. Se orgulho ou vergonha, ou bom ou ruim, ou qualquer opinião estiver presente, não estou “toda aí”. *** Se a esta altura alguém pensa que eu levei o meu filho à Gestalt, volte para o início. E ele também não está me levando. Quando aos dezoito anos ele requereu o status de CO*(*CO — Conscientious Objector — Objetor Consciencioso. Nos EUA pode-se pedir isenção de serviço militar ou de participação em guerra, apresentando-se justificativas aceitáveis e conscienciosas. Essas justificativas são examinadas por uma comissão, e, uma vez aceitas, o requerente obtém o status de objetor consciencioso, e a isenção do serviço. (N. do T.), houve a usual investigação do FBI e o FBI lhe enviou um resumo. Não foram citadas pessoas. Lugares sim. Foi citado algo daquilo que as pessoas tinham dito. Cerca de metade delas dizia que eu o tinha sob controle. A outra metade dizia que quem me controlava era ele. As pessoas de cada lado viam um aspecto do que ocorria, que na verdade é um oscilar para a frente e para trás. Aos 23 anos, meu filho disse: “Vamos encarar os fatos. Você é uma terapeuta para mim e eu sou um terapeuta para você”. Foi ele quem me trouxe um artigo de Carl Rogers, que veio a criar Person to Person. Ele não acompanhou isso. Ele estava lendo e relendo o Metamorphosis de Schachtel, que eu só li uma vez e me chateei, exceto num capítulo. Nós nos víamos apenas cerca de duas semanas por ano na época em que me interessei por psicologia em Albuquerque, e ele se interessou por psicologia em Pasadena. O meu interesse surgiu das descobertas que fiz quando estive doente. O interesse dele surgiu quando esteve em Caltech onde “vi tanta gente que não está vivendo suas potencialidades.” Na época ele estudava química. Química nunca me interessou. Ele queria estudar vírus e genética. Antes disso, queria ir para uma escola agrícola e aprender agricultura de uma forma que não me interessa. As pessoas me disseram que eu o estava arruinando, permitindo que ele fizesse isso. “Ele tem uma cabeça tão boa” (como se uma cabeça boa não pudesse ser usada em qualquer coisa). Antes disso, eu o estava arruinando ao permitir que ele frequentasse escolas pobres, e deixando-o faltar muito às aulas. “Ele nunca será capaz de ir para uma universidade.” Gastei tanta energia rechaçando tudo isso — dele e de mim mesma. Então, quando ele se candidatou a Caltech e Berkeley, e foi aceito em ambos os lugares, as mesmas pessoas disseram: “Não se pode deixar uma cabeça boa ficar por baixo”. *** Aqui em Lake Cowichan, algumas pessoas que têm passado ou participado dos workshopsvae. falaram do seu entusiasmo pelo livro Person to Person. O verdadeiro entusiasmo é apreciação. O entusiasmo falso também recebo — é depreciação. Essa gente chegou até aqui. Eu cheguei até aqui. Acontece. *** Aqui sou muito menos espontânea do que em muitos outros lugares. Aqui muitos profissionais acham o lugar fantasticamente livre, o que é verdade, tratando-se de um instituto psicoterapêutico. Estou descobrindo meios de liberar as pessoas para a (verdadeira) espontaneidade. Quando eu for embora, levarei isso comigo. Eu também sou gente. Após três noites de funcionamento perfeito como gestalt-terapeuta, ontem à noite Fritz não esteve tão bem. “Três passos para a frente e dois para trás?”, diz o Fritz às vezes, referindo- se a como as pessoas se movem em terapia. Sempre me pareceu que é dessa maneira que as crianças crescem. As vezes, por algum tempo, parecem ser cinco passos para trás, e então são seis passos para a frente. Em todo caso, ontem à noite ele começou seguindo uma pista falsa. Seguiu um sistema em vez de notar a si mesmo. Ele fez isso durante um bom tempo, quando estava claro que a coisa não estava levando a nada, e então se desmascarou dizendo: “Volte aqui. Estamos num beco sem saída”. Deu um diagnóstico a um, uma receita a outro. No fim das duas horas, disse: “Esta noite estou lerdo”. No Garbage Pail, ele diz que a maior parte da sua vida foi passada em confusão, mas finalmente ele aprendeu a deixar a confusão ser. E isso que eu final mente aprendi, quando estive doente, a respeito do caos. Quando tentava sair dele, juntar os pedaços, eu ficava exausta e não chegava a nada. Quando aprendi a deixar a coisa ser, saí do caos. *** Pensei (sic) que continuaria acabando negócios inacabados, que é parte de um arrumar de malas sem pressa. Esta manhã nem pensei nisso quando comecei a escrever. Agora, isso emerge, e continuo. Não é importante, apenas conveniente. Ontem à noite refiz a gola de um vestido novo que estava se desmanchando porque não tinha sido bem feita. Agora, posso usar o vestido, em vez de ficar carregando. Quando ultrapasso este tipo de situação inacabada (às vezes livrando-me dela, jogando-a fora) muita coisa fica clara na minha cabeça. Fritz diz que precisamos aprender a “limpar a nossa própria bunda”. Para mim, é parte disso. Agora não me sinto carregada, e ninguém ficará carregado se eu morrer. Não faço isso diariamente ou com alguma programação. E como poeira acumulada até se tomar demais. As vezes sinto falta desse tipo de programação — como quando transcrevi durante meses as fitas para o Verbatim e esqueci toda a correspondência — mas em geral não se acumula tanto. A cabana do Fritz está cheia de negócios inacabados. Quando eu tinha casa e família, dava uma busca na casa duas vezes por ano, e tudo que não tivesse sido usado ou apreciado por seis meses não valia a pena ser mantido. Nós temos tanto medo de podermos precisar de algo no futuro. Glenn, que trabalhou com grandes empresas, diz que montes de coisas são jogados fora, inclusive papéis importantes, e simplesmente se diz: “Não está aqui”. O mundo não se acaba... Lembre-me do horror do meu marido quando joguei fora a minha certidão de casamento logo depois que nos casamos. Ele disse que algum dia eu poderia precisar dela. Nós atulhamos as nossas vidas e neuroticamente nos lamentamos dos nossos fardos. Como o fardo do homem branco querendo estragar o mundo em vez de deixá-lo ser como é. Agora estamos amontoando coisas na estratosfera e na Lua. E não me venha com “Não se pode impedir o progresso”. O que temos a fazer é simplesmente parar de chamar isso de progresso. Agora estou novamente vazia, e os outros negócios inacabados voltam a aparecer. Deixo a máquina de escrever, com um leve interesse naquilo que irá aparecer e preencher o resto desta página quando eu voltar... Neste instante, pensei em outra coisa. Não importa. Ou ela volta depois, ou aparece alguma outra coisa. Com os milhões de coisas para dizer e os milhões de modos de dizê-las, que importa qual delas aparece ou qual vai ser a próxima? Alguns irão gostar mais de uma do que de outra, outros gostarão mais da outra do que da uma. Algum tipo de ordem interna se faz por si só, no tempo certo. *** Simplifique. A quem você está tentando impressionar? *** Tomei uma chuveirada, me vesti, comi, lavei os pratos e algumas roupas. Agora, estou sendo fortemente atraída para a máquina, a fim de escrever o que descobri. Algumas semanas atrás cheguei aqui vinda de Vancouver (e antes de saber que vinha para cá, disse ao Fritz que queria dar início a um sítio ou fazenda com um núcleo de pessoas, e quando tivéssemos arranjado as coisas, outras poderiam vir. Ele disse: “Ah!”, e achei que estivesse concordando comigo — que estivéssemos vendo a mesma coisa. Viemos para cá, e logo me pareceu que ele estava deixando a idéia de um núcleo trazendo tanta gente, quaisquer que fossem as razões — ganhar mais dinheiro, difundir a Gestalt, foram duas que me ocorreram. Mas pode ser que ele visse um “núcleo” de forma diferente da que eu vejo... O meu modo de ver, expandido com a experiência que tive aqui, é o seguinte: Alguns de nós, que vivemos mais à maneira Gestalt, dariam início ao lugar, como quando nos mudamos para cá — pessoas dispostas a assumir um risco, que não precisam ter “toda” a informação de antemão (que, em todo caso, não é possível). Eu era uma dessas que esperava dormir no chão porque embora a casa de dois quartos estivesse vazia no dia que chegamos, os proprietários relutavam em abandonar as cabanas. Comprei um saco de dormir que podia ser aberto, como um acolchoado, e uma manta que também podia ser usada como poncho. Não precisei dormir no chão. Usei o acolchoado, e o poncho quando chovia. Ainda não dormi no chão, mas não sabia disso. Ontem um psiquiatra que é coronel da Força Aérea chegou com a esposa e seis filhos. Eles conheceram o Fritz em Esalen no último fim de semana. (Hoje é sexta-feira.) Nesse meio tempo, decidiram vir para cá, vieram com as seis crianças, alugaram uma casa em Lake Cowichan antes de chegarem a este lugar. Eles cuidaram de si mesmos. Queriam vir. Vieram. Não se preocuparam em conseguir “todos os detalhes”. Patos selvagens voando, às vezes descendo até o lago. Fritz entrou e perguntou se eu queria ser líder por uma semana — quando em fantasia estou me mudando para Okanagan. (Decidi voltar para lá e procurar um sítio novamente — fiquei realmente interessada em ir.) Não gostei de “desistir” disso. Agora, sei que estou com medo de liderar um grupo novamente, então é melhor fazê-lo ou ficarei carregando o medo comigo para sempre, até fazer. Ficarei com medo até de explorar Okanagan. Gostaria que o grupo começasse já, e não na semana que vem. Não quero mergulhar no escrever e “esquecer”. Quanto mais vivo agora, em contato comigo agora e com todo o resto agora, notando os ensaios que começam, melhor o farei. Neste instante o meu agora é que estou com medo, e o meu peito dói e quero chorar um pouco. Gostaria também de berrar, e não quero fazer isso em grupo. Então, que aconteça. *** Deixando a dor/medo tomar conta de mim — expressar-se em som e movimento — agora já não estou tomada de dor e medo. E ah! o mundo parece tão claro e brilhante! *** Fritz mencionou que um dos psiquiatras que está aqui em treinamento toma conta de sessenta pessoas num hospital, e vai mudar as coisas ali, e convidou o Fritz a ir fazer algo. Fritz não se incomoda com os detalhes, e eu não quero ser incomodada por eles. Conversa de índios. Você forma a sua própria figura, e quando isso é feito dessa maneira você (eu) vive à vontade com ela e não se desgasta da maneira que acontece quando você (eu) (as pessoas) recebe toda a informação, e tem certeza (espera) que é assim que eles pensam que é, e então não é. Esse psiquiatra me disse: “Você não quer um emprego, quer?”. Claro que não quero. Durante oito anos, por insistência do meu marido e por eu desejar mantê-lo feliz (sem saber que só ele podia fazer isso, e de qualquer maneira era uma idéia tola) fui (com ele) assistir a todos os filmes documentários sobre o Havaí. Achei um distribuidor que me mantinha informada e íamos ao Brooklyn, Queens, subúrbios, centro, a qualquer lugar para assisti-los. Li sobre o Havaí. Aprendi tanto que certa noite num jantar, sentada ao lado de um jovem que tinha estado lá, falei com tanta facilidade sobre as ilhas, como se eu tivesse estado (“Você conhece aquela prainha, Lumahai, logo atrás de Hanalei”, e assim por diante), que ele finalmente disse: “Não conheço. Só estive lá por seis meses”. As palavras eram ótimas, mas quando cheguei lá, o que eu tinha pa cabeça não tinha nada, ou muito pouco, a ver com o Havaí. Fritz disse: “Tenho estado tão feliz aqui desde que voltei”. Acredito nele. Sentir-se “indolente” não precisa necessariamente ser infeliz. E só quando eu penso que “deveria” ser outra coisa é que fico infeliz, e tento mudar. A indolência é. A dor é. A tristeza é. Felicidade é deixar todos os acontecimentos acontecerem.*(* Hapiness is letting all the happenings happen. (N. do T.) E vejo também (com tão poucas palavras por parte dele) que o núcleo dele está certo pára ele. O meu está certo para mim. Então, continuo com o meu. Este núcleo de gente chegará a um bom funcionamento à maneira da Gestalt — não um funcionamento perfeito. Isso seria realmente fantasia. Mas as pessoas irão pegar o jeito. E outra gente ouvirá falar do lugar... Até aí, tudo bem. Isso acontecerá com certeza. Se eu for adiante, como estava prestes a ir, estragarei tudo. Os intelectos irão se apegar àquilo que eu digo, e isso vai estragar tudo. Então, é este aqui o fim das páginas que eu “ia” escrever. Ainda estou contente de ter começado a “arrumar as malas”, de ter começado a me mexer nessa direção. Sinto que está certo. É claro que aprendi muita coisa aqui, foi o que eu disse esta manhã ao Fritz. É claro que sim. Algumas vezes pensei “não quero este lugar”. E aí que entra o futuro. Fiquei aqui. Saí e voltei. Enquanto estou aqui, é porque quero. Mesmo pensando (faz tempo que não penso assim, mas há muitos anos eu pensava) que estou aqui porque não há outro lugar para ir, não é por causa disso. Sempre há outro lugar para ir. Escolhi este lugar porque o preferi em vez de outras alternativas. A minha escolha pode ter sido boa ou má, mas continua sendo a minha escolha, e não tem sentido dizer que fui “forçada” a isso. “Eu não podia fazer outra coisa.” O mundo está cheio de outras coisas. Não tenho outra coisa a não ser outras coisas. Quando o “eu não podia fazer outra coisa” é organísmico, sempre dá certo. Quando Mimi me disse que afinal não estava grávida, que ficara menstruada, e não ia comigo e com o marido para a cidade — noventa milhas em estrada de terra — eu não tinha nenhuma “informação” a não ser essa. Eu não gostava da Mimi e achava que era melhor ela não ter um filho. De alguma maneira, a eu organísmica sintetizou as coisas, independentemente do meu “pensar”, e disse a Mimi que era melhor ela ir a um médico. Nada de explicações, nada de montes de palavras desnecessárias. As palavras que eu disse saíram de forma clara e firme, definidas sem forçar. Mimi foi — e ficou dois meses na cidade por ordem do médico. Ela estava grávida, e se não ficasse sob cuidados médicos, teria perdido o filho. Eu me senti bem. Se eu tivesse ignorado o meu conhecimento organísmico, teria me sentido mal. E teria estado mal. Para mim este é o único “mal” — um erro, a escolha do errado. Se eu o lamento, eu me apego a ele: o erro ainda está comigo. É melhor encontrar algum jeito de soltá-lo. De outra forma, ainda estou cometendo o velho erro. O que sucedeu comigo/Mimi foi estar presente: eu estava presente. Então, não sei como tive a resposta. Deparei com uma página do What is Life (O que é a vida) de lrwin Schroedinger, que tenho estado carregando durante anos. Deve fazer uns quinze anos desde que li o livro. Um gaio azul está andando na relva. Que belo elmo negro ele veste, da crista até o peito. Schroedinger cita Theodore Gomperz (seja ele quem for): Quase toda a nossa educação intelectual origina-se dos gregos../ Você não precisa conhecer as doutrinas e obras dos grandes mestres da Antiguidade, de Platão e Aristóteles, você pode nunca ter ouvido falar nesses nomes, e mesmo assim está sob a magia da autoridade deles. Não só a sua influência nos foi passada por aqueles que lhes deram continuidade em tempos antigos e modernos, mas também o nosso pensamento criativo, as categorias lógicas nas quais ele se movimenta, os padrões que emprega (sendo portanto dominado por eles) — tudo isso é em grande parte um artefato, produto dos pensadores da Antiguidade. Devemos investigar com todo cuidado o processo do vir-a-ser, a menos que cometamos o erro de tomar por primitivo o que é resultado de evolução e crescimento, e por natural o que na verdade é artificial. *** O que é “terapia”? Não psicoterapia ou fisioterapia. Terapia. Para mim não faz diferença se entro na banheira ou no grupo. Certa vez entrei numa aguda frustração, quando estava doente tentando (sic) escrever um parágrafo. Acabaram saindo três páginas. Finalmente, deixei de lado a loucura e entrei numa banheira de água quente. Zing! Voltei à época em que tinha doze anos, revivi três cenas correlacionadas (em diferentes lugares) e compreendí totalmente (não intelectualmente) algo que tinha me intrigado durante quarenta anos, e aprendi algo sobre como “mim” funciona. A maior parte disso não é particularmente relevante, mas uma das cenas era eu caminhando pelos passeios de terra na aldeia em que vivia (eu tinha me esquecido desses passeios de terra), repetindo o tempo todo: “Não me importa. Não me importa. Não me importa. Não me importa”, até que não me doesse mais. Eu tinha tomado a minha própria decisão. Não fui forçada a tornar. Tudo que minha mãe disse foi: “Ohh”, e o que ouvi na voz dela me fez, pelo amor que eu lhe tinha (responsabilidade: habilidade de responder), desistir de uma possibilidade que eu muito queria, e muito me doeu — primeiro por eu querer, depois por desistir. A minha decisão foi acertada. Aos doze anos, eu já tinha me tomado adulta demais para ir à floresta descarregar em pedras e paus, “descontando” no mundo de fora, e isso estava errado — não estava certo. Agora, temos grupos para fazer isso. Pelo menos estamos começando a fazer sentido, embora uma porção de falta-de-sentido esteja junto numa série de lugares, onde a idéia é aceita sem compreensão. Então, há alívio sem liberação para o crescimento: Fico suficientemente aliviado para continuar vivendo do jeito que vivia: Posso sempre voltar para outra dose. Talvez tentando um outro grupo. Dessa maneira posso conhecer mais gente nova. “Nós, as pessoas do grupo, sabemos das coisas.” O turbilhão social passado para outro turbilhão ainda é turbilhão. Curta, cara, curta, não é incrível? “Eles chamam isso de dança.” *** Fritz está feliz com o “belo exemplo de formação Gestalt” que descobriu. O retrato em branco e preto de uma mulher com o cabelo penteado para cima, num peignoir, sentada à penteadeira, olhando para o grande espelho redondo onde sua imagem está refletida. Olhando-se a certa distância, é uma caveira. O cabelo preto e o reflexo são os buracos dos olhos. Estou esquecida dos outros detalhes. Qual dos dois é “o retrato”? *** Teddy está limpando a cabana do Fritz. Em tomo disso podem vir todos os tipos de pensamentos — pensamentos bons — pensamentos mesquinhos. Posso pensar (sentir) bem disso. Posso pensar (sentir) mal disso. Os sentimentos acompanham os meus pensamentos. Posso deixá-los se misturar e ficar muito confusa. Então “pense pensamentos bons”. Não é bom. Ilusão. Diga todos eles, e eles podem se anular. Nada de pensamentos. Teddy está limpando a cabana do Fritz. Isso é real. Todo o resto é fantasia. Estou escrevendo. Como vai indo? Vai indo. Como não sei. Não penso a respeito. Estou escrevendo. Sou escritora? Não. A minha insistência em nunca me tomar alguma coisa (carreira) agora faz sentido para mim. Às vezes me parecia uma idiotice. Se eu me tomasse algo, pensaria em mim mesma como sendo aquilo, me moldaria àquilo, e seria aquilo, que é uma ilusão. Neste instante fui ao banheiro. Pensei: “Preciso dizer ao Fritz que a minha resposta é Sim.” Não veio nenhum medo. Nada de imagens ou pensamentos “do que farei”. Simplesmente Sim. Todos os meus “porquês” para não querer liderar um grupo aqui agora eram perfeitamente bons. O único problema é que eram fantasias. Até chegar o momento, eu não podia saber o que sentia. Podia apenas imaginar o que seria. Quando o Fritz me perguntou, não me senti como pensei que me sentiria; me senti como me senti. Tive de voltar da fantasia de Okanagan para sentir. Se tudo isso parece muito complicado, seguramente é. E melhor não pensar. Coloquei as minhas próprias tolices à medida que elas vinham para você poder ver o processo. Emerson disse que era um arquiteto que construiu uma casa e esqueceu de pôr as escadas. Eu lhe mostro algumas das minhas escadas. Seja honesta, merda!, é o grito dentro da minha cabeça. Ao escrever ele se torna mais claro e inescapável. Ao mesmo tempo ele se toma acessível a você, é o que simplesmente acontece. E se acontece, isso se deve a outra pessoa, não a mim. Este manuscrito não irá chegar a muita gente se outra pessoa não der uma mão. Monte Navajo. A cozinha é um lugar acolhedor, com grossas paredes de pedra. Lá fora está nevando. Ken, que é meio cherokee, Kee, que é navajo, e eu estamos nos divertindo, liberando a nossa infelicidade acumulada com a falta de humanidade no serviço indígena. Ken diz: “Em todo caso, tenho o meu sítio e posso voltar para lá, de modo que não fico com úlceras”. Digo: “Eu não tenho um sítio, mas posso sempre ir para a estrada”. Kee diz: “Eu também!” Cada um de nós tem a sua fantasia, um lugar para ir, para escapar. Cada um de nós sabe que isso é ilusão. Nós expressamos nossa alegria em toda sua liberdade e nos sentimos bem — ótimos. Como rimos e nos divertimos! A situação é diferente da mesma cena representada em muitos outros lugares — casas, bares, em qualquer outra parte. O que vem a segurr também é diferente. Um jovem navajo, pobremente vestido, entra pela porta e fica parado quieto, e então diz que quer uma carona até o Escritório Central. Ken diz: “Não vamos voltar por lá”. O navajo fica parado. Kee fica sentado. Às vezes um deles diz algo, e então o outro. Então ninguém fala. Me pergunto se estou escutando algo que pode ser uma conversa particular, se devo continuar conversando com o Ken ou deixar Kee e o jovem sozinhos. Não tenho nada com que contribuir. Kee e Ken conhecem todo o país e o povo de uma forma que eu não conheço. Olho para Ken para ver se há alguma pista. Ele cruzou as pernas e está olhando para o teto. Ele não só não está falando, como parece ter se ausentado. Por que ele não diz logo ao jovem, pelo menos tentando ser útil, em vez de praticamente voltar as costas para ele? Percebo a pista. Eu mesma fico calada. Todo o meu pensar se dissolve. A minha cabeça está vazia. Não estou fazendo nada. Isso continua por mais algum tempo. Então chega um pedaço de informação, e eu digo: “O correio não veio hoje (dia regular). Virá amanhã”. Kee e o jovem trocam algumas palavras em navajo. O jovem sai. Ele irá buscar o correio amanhã no Escritório Central. Kee, Ken e eu nos juntamos amigavelmente para olhar algumas pinturas de Franz Marc. Nosso estado de espírito mudou. Onde, na nossa sociedade, alguém pára quando um estranho entra pedindo uma carona? Tomar consciência. Sem isso, eu não teria percebido que não tenho com que contribuir. Teria continuado a pensar, e o meu pensar teria continuado como começou — “Seguramente Kee sabe disso. Eu sou a mulher branca me intrometendo”. Não houve “intromissão” quando a minha informação saiu de dentro do meu silêncio. Este silêncio está no lugar de onde veio a minha melhor forma de funcionar quando era terapeuta. “O boi e o homem se foram.”*(* Referência à décima prancha zen. (N. do T.) Este silêncio é o que tenho medo de não ter quando liderar um grupo na próxima semana. Se eu soubesse que iria ter apenas isso, não precisaria de mais nada. Notar e responder, sem nenhum pensar se colocando no caminho. E então, tudo acontece, e acontece algo que produz a mudança. A análise é impossível, mesmo após o fato. “Você notou o que havia nos hambúrgueres esta noite?”, perguntou Kolmam. Foi ele quem os fez. Com todo esse barulho, respondí, não consigo sentir direito o gosto de nada. Pensei que estava inventando uma desculpa por não ter notado. E então, ainda comendo o hambúrguer, notei que era verdade. Com vinte pessoas fazendo barulho como num almoço de domingo, não conseguia mesmo sentir o gosto de nada, a não ser que fosse forte como alho ou pão. Eu devia ter sabido que o que disse era verdade. Algo tão ridículo como o barulho impedindo o paladar era impossível de se “inventar”, e quando eu disse, fiquei surpresa e julguei que não fazia sentido. Quando o meu sentidor diz “Sim” e o meu pensador diz “Não”, eis aí a confusão. O que eu sinto traz sentimentos que contribuem para a confusão. E, além de tudo, o meu sentidor diz coisas como “Com todo esse barulho, não consigo sentir direito o gosto de nada”, que parece ser pensado. *** O absurdo de ensaiar! Tenho estado notando as minhas fantasias sobre liderar um grupo na próxima semana — não só notando que eu as tenho: notando o que está nelas. Esta manhã, havia na minha cabeça um grupo de seis pessoas, três delas indistintas. As outras três eram Peter, Márcia e Charlotte. Eles se mexiam e falavam, e eu falava com eles. Não falava com o Peter. Imitava alguns dos movimentos de Márcia e Charlotte. Além do fato de não saber o que eles farão, há trinta pessoas em treinamento, talvez até mais a esta altura, que serão divididas em grupos, não sei de quantas pessoas cada um — talvez seis, talvez dez — e não tenho jeito de saber quais as pessoas que estarão no meu grupo na segunda-feira, ou nem mesmo se esses três estarão no mesmo grupo. Essas três pessoas, como todas as outras, são reais no meu mundo quando estão fisicamente no meu mundo. Quando estão na minha cabeça não são reais. Nem sequer têm vida própria. Elas se mexem, falam e fazem aquilo que eu imagino, e nada mais. *** O lago agora é luz, e linhas escuras se movem rapidamente da direita para a esquerda. À minha direita. A minha esquerda. Agora as linhas sumiram. Círculos escuros com centros luminosos estão... já não estão mais. Dentro de mim, também estão acontecendo todas essas mudanças. “Como está você?” Não sei. Quando noto, já me fui. Agora o lago está cheio de ondinhas prateadas, movendo-se da esquerda para a direita. *** Como pode a Gestalt-Terapia usar fantasias para negar uma experiência traumática? A Gestalt não faz isso. Ela usa a fantasia para negar uma fantasia. Passei um mês no hospital em 1953. Quando fui para lá, eu tinha expectativas. Uma delas era: Entrei em algo que não entendo. Às vezes ao anoitecer, subitamente ficava muito fria. Meu filho preparava uma bolsa de água quente e acendia a lareira, e eu entrava debaixo do maior número possível de cobertores. Ficava ali deitada, sentindo-me sugada através de um túnel, com toda espécie de coisas estranhas acontecendo. Tentava notá-las e recordá-las, para poder contar ao médico. Jamais me recordei de qualquer uma delas — de nenhuma sequer. Fiquei preocupada com isso. Não entendia o que estava acontecendo, e tinha medo que pudesse piorar. Onde é que eu estava entrando? Quando fui para o hospital, alguns dias depois, o médico disse que se isso acontecesse enquanto eu estivesse lá, que eu o chamasse e ele viria imediatamente. A clínica onde ele trabalhava ficava ao lado. Nesta fase, eu estava imersa na opinião médica, e achei que ele poderia examinar o meu corpo e descobrir algo. Se ele estivesse presente, talvez eu pudesse contar algo do que se passava enquanto a coisa acontecia, e isso daria alguma pista. Quando deitei numa cama de hospital, este foi um dos meus confortos. Toda vez que sentia essa estranheza chegando, telefonava. Não conseguia o médico. Deixava recado. Ele não vinha. Toda vez, na visita seguinte, ele se desculpava e me contava o que tinha acontecido. Eu sabia como era a vida dele. Acreditava nele. Não queria torturá-lo; eu torturava a mim mesma. Isso começava quando ele não vinha: primeiro esperança, e um sentimento de alívio geral. E então, dor e desespero quando ele não vinha, e eu passava por aquela estranheza mais uma vez sozinha, com medo. Eu ficava zangada que ele não vinha. Não ficava zangada com ele. Ficava zangada. Nada disso era expressado — a dor, o desespero, a raiva. Eu nem mesmo pensava em fazê-lo, e um hospital não é o lugar mais encorajador. (“E ela, também está doente?”) Eu segurava tudo dentro de mim, continha tudo com os meus nervos e músculos (e ficava admirada porque não melhorava no hospital, agora que estava “descansando”). Após dois anos passados quase inteiramente na cama, cheguei a saber que tinha de me deixar ficar tão doente quanto estava, não tentar melhorar, não tentar fingir estar melhor do que estava. “A Gestalt tenta estar em harmonia com o que é.” “Não podemos deliberadamente provocar mudanças em nós mesmos e nos outros.” “O organismo não toma decisões. Decisão é uma instituição artificial. O organismo funciona sempre com base na preferência.” *** Naquele instante eu estava tentando lembrar (e é claro que não consegui), e depois procurei em algumas anotações que fiz para outra coisa, uma frase do Fritz que queria usar aqui. Neste caso, eu queria usar as palavras dele, não as minhas. Fritz entrou enquanto eu estava procurando. Que louca que sou. Foi só quando ele estava prestes a sair, e pensei em pegar novamente as minhas anotações (que eu já tinha explorado sem achar o que queria) que pensei: “O cara está na sua frente!” (A velha água cinzenta, já não é mais o que era...). Perguntei-lhe as suas palavras. Ele respondeu: “Qualquer tentativa de mudar está sujeita ao fracasso”. Comecei a escrever: “Qualquer tentativa de fracassar...” Fritz completou “ ... está sujeita ao sucesso”. (No grupo de treinamento avançado, Fritz certa vez nos disse para tentarmos ser os piores terapeutas do mundo.) “Qualquer tentativa de mudar está sujeita ao fracasso. Cria-se uma força de oposição. Como quando você olha para o vermelho e então fecha os olhos, e vê o verde que vem depois ” *** Louca. Doida. Doida, doida, doida. Aquilo que estou procurando vem na minha direção e eu não vejo. Onde estou? *** No Arizona, quando o meu filho estava com doze anos, certo domingo ele quis sair para caçar coelhos. Naquele sítio as crianças não tinham permissão de caçar sozinhas. Eu fui com ele. Nós caminhamos e caminhamos por toda a floresta. Nada de coelhos. Ele quis ir até o laguinho onde (ele tinha certeza) havería montes e montes de coelhos. Eu disse não, que precisávamos voltar para o jantar. (Não importa “por que”. Uma porção de explicações. Um monte de mentiras.) Ele continuou falando dos coelhos no laguinho. Provavelmente ele os imaginava ali, montes e montes de coelhos. Um coelho pulou para fora dos arbustos a cerca de cinco metros de onde estávamos, e parou. Ficou ali sentado. Andamos mais dois metros antes de o meu filho vê-lo, olhos atraídos pelo movimento do coelho saltando e sumindo. Tarde demais. *** Dois anos após ter estado no hospital, algo que comecei a notar de forma diferente foi a minha exaustão. Comecei notando o que me deixava exausta, como acontecia, e livrando-me disso, de uma maneira ou de outra. Então percebí que o que acontecera no hospital ainda estava me cansando. Na época não vi o fato como o descrevo (vejo) hoje, mas mesmo assim, eu vi. Como poderia eu livrar-me de algo que ocorrera dois anos antes? Fazendo a pergunta, obtive a resposta. (“A forma de desenvolver a sua própria inteligência é transformar cada pergunta numa afirmação. Se você transformar a sua pergunta numa afirmação, o fundo do qual a pergunta surgiu se abre, e as possibilidades são descobertas pela própria pessoa que faz a pergunta.”) Eu ainda queria o que não tinha conseguido. Eu mesma dei um jeito de conseguir. Meti- me de novo na cama do hospital, e chamei o médico. Ele veio correndo da clínica vizinha. Gostei. Mandei-o de volta para a clínica e fiz com que ele corresse mais depressa para a minha cabeceira. Senti-me melhor. Mandei-o de volta e fi-lo correr ainda mais depressa para a minha cama. Gostei disso, e mandei-o embora outra vez. Como eu estava gostando de controlar a ele e não a mim! Mas mesmo assim, faltava algo. O médico sabia muita coisa a respeito do meu corpo que eu não sabia, mas certamente não sabia mais do que eu a respeito daquela loucura que eu tinha na cabeça. Quem poderia ajudar-me nisso? Aldous Huxley. Então eu o fiz entrar, colocando-o do outro lado da cama. Não precisei fazê-lo correr — ele não tinha-me torturado. Então, simplesmente o coloquei ali. Então notei outra coisa da qual não gostava — o quarto de hospital. Não era acolhedor. Então levei todos para um quarto na casa de Huxley na Califórnia. Do lado esquerdo da cama estava o médico, que sabia mais do que eu sobre o meu corpo. Do lado direito da cama estava Huxley, que sabia mais do que eu sobre a minha mente. Eu não precisava fazer nada — só deixar as coisas nas mãos deles. Soltei-me — e comecei a gemer e me contorcer e tremer e sacudir (quadris e ombros). Tudo isso aconteceu, com “mim” confortavelmente dentro, despreocupada. Alguma outra coisa começou a acontecer depois disso. Não me lembro o que foi. Repeti esta fantasia diversas vezes, em dias diferentes, cada vez parando num lugar diferente. Vi- me tentada a prosseguir. Parei. Quando contei ao médico a respeito disso (na época eu estava mistificada, hoje não) ele disse: “Parece ser bom, mas tome cuidado”. Ele tampouco sabia o que estava sucedendo. Escreví para Huxley e ele respondeu. Estou me defrontando com prazos finais por todos os lados e tenho estado, e estou, indecentemente ocupado. Daí a demora em responder às suas interessantes cartas e a impropriedade desta nota a todos, exceto seus comentários sobre o pseudo-soluçar, tremer e sacudir, resultando numa sensação de liberação e abertura para a cura. Este é um fenômeno que observei em outros e experienciei em mim mesmo, e parece ser uma das maneiras pelas quais a enteléquia, ou inteligência fisiológica, ou .ve//profundo, se livra dos empecilhos que o ego superficial consciente coloca no seu caminho. As vezes há uma recordação de material enterrado, com ab-reacões. Mas nem sempre. E quando não há esta recordação, muitos dos resultados benéficos podem ser obtidos quando o se //profundo estabelece essa perturbação no organismo — uma perturbação que evidentemente solta muitos dos nós viscerais e que são resultados e companheiros dos nós psicológicos. Perturbações desse tipo eram comuns entre os antigos Amigos, o que os levou a serem chamados de Quakers. Quaking (estremecer) evidentemente é uma espécie de equivalente somático da confissão e absolvição, uma recordação de memórias enterradas e ab-reação a elas, com dissipação do seu poder de continuar causando danos. Devemos ser gratos às dádivas menores e mais singulares — e estremecer evidentemente é uma delas; e de maneira nenhuma, a menor. Perguntei ao médico o que eram ab-reações. O dicionário não dizia muita coisa. O médico tremeu ao se recordar, e me contou ter estado com um homem que reviveu uma explosão numa mina pela qual tinha passado, “passando por toda a situação tal como a tinha experienciado antes”. O médico me falou do terror na face do homem, e os berros dele, e sua explosão com os barcos se agitando. Soava como algo terrível — algo pelo qual eu não queria passar. Não comparei com a minha própria experiência — não associei isso com meus próprios tremores e contorções. E tampouco o médico o fez. Nem mesmo suspeitei que a experiência do homem era diferente de como o médico experienciava o homem. Fiquei apavorada e parei de explorar nessa direção. Que horrores poderíam surgir do meu passado e me afligir? Quem sabe o mal que se encontra oculto nos corações dos homens? *** Em primeiro lugar, fui para o hospital com expectativas, e isso é fantasia. Quando a minha fantasia não se realizou, eu me controlei, e isso é fingimento, que também não é real. Quando trabalhei deliberadamente com a fantasia, eu ainda estava me controlando, dois anos após o fato, e isso não é real. O que fiz, embora não o soubesse na época, foi desfazer uma fantasia com outra. Então ambas se sobrepuseram, e eu fiquei sendo — nesta área — real, liberada do passado e disponível no presente. Ploiiinnng! O passado se foi, exceto como recordação fatual. Esse tipo de recordação não me incomoda. Não é nem bom nem mau, simplesmente é o que é, como o escuro do lado de fora da minha janela. Depois daquilo, quando pensava na minha época no hospital, ela já não me cansava mais. Eu a tinha abandonado. Notei outra maneira pela qual eu me deixava exausta. Sempre que pensava em ir ao médico, sentia-me cansada. Eu não entendia isso. Eu gostava de ir a esse médico. Ele era a única pessoa com quem eu mantinha comunicação real — conforme descreví em Person to Person. Então notei que quando pensava em estar de novo com ele, eu me imaginava sentada na cadeira do outro lado da sua escrivaninha — num lugar onde me sentia tão fraca e cansada “que mal me podia agüentar de pé”. Era dessa forma que as coisas corriam toda vez que eu ia vê-lo. Quando eu fantasiava uma conversa com ele, estando deitada no chão, não me cansava. A primeira vez que fui a esse médico, já doente, me pareceu que se eu pudesse simplesmente ficar deitada no chão, o que eu lhe dizia teria mais sentido. Talvez ambos tivéssemos conseguido chegar a uma conclusão mais cedo. Ir ao médico e deitar-se no chão? Tchktchk. No mesmo instante ele fica sabendo que você é neurótica, louca, exibicionista, ou maníaca sexual (segundo as fantasias dele). Quando tinha dezenove anos aprendi algo acerca dos médicos. Um deles me disse para eu me “despir”. Levantei o vestido, tirei-o pela cabeça, e fiquei nua. Ele pareceu horrorizado. Eu me senti mal. Ao mesmo tempo, dentro de mim algo dizia: “Eu não sou má! Eu só fiz o que você mandou! Pensei que os médicos estivessem acostumados a corpos”. Continuei me sentindo mal, envergonhada. Quando contei este incidente aos amigos, deixei de fora a última parte e fiz uma história engraçada, e isso foi falso. Depois disso, passei a ser mais meticulosa com os médicos. Eu lhes perguntava o que eles queriam exatamente dizer. Então eu mesma me tornei um pouco mais meticulosa. Toda a maldita seqüência jamais teria acontecido se eu tivesse dito ao médico o que se passava dentro de mim. Agora acabou. *** Aos trinta anos eu já tinha eliminado um monte de categorias, conhecendo gente de muitas delas. O “zelador” era uma que eu não tinha conhecido, exceto em situações muito oficiais, quando eles estavam totalmente imersos no papel. Eu tinha ficado tão confusa, tão atada, no final de umas férias de dois meses, que fui ao meu chefe e lhe disse que lamentava ter empregado mal as minhas férias, e que se eu voltasse ao trabalho, eu também o atrapalharia. Eu tinha estado com a minha família durante as férias. Ele disse que me daria mais duas semanas se dessa vez eu fosse sozinha. Fui sozinha para Bermuda, e não levei ninguém comigo, nem mesmo na minha cabeça. Notei como isso era bom. No hotel ninguém se incomodava se eu estava lá ou não, ninguém se incomodava se eu comia ou não vinha a uma ou duas refeições. Aluguei uma bicicleta. Começava a ir para um lugar, mudava de rumo e ia para outro, e não precisava dar satisfações a ninguém. Não precisava pensar em ninguém, ou me perguntar se eles ficariam bravos ou preocupados quando eu voltasse. Senti-me ótima — alerta, interessada, aproveitando. (“Assuma responsabilidade por cada emoção, cada movimento que você faz, cada pensamento que você tem — e não jogue a responsabilidade sobre mais ninguém!') (Que bem — ou mal — faria manter alguém na minha cabeça?) Tantas vezes funcionei maravilhosamente, sem pensar. Apenas as coisas simples. O que mais é a vida? Fui até o homem das bicicletas, disse a ele que não andava de bicicleta há quinze anos, se eu podia alugar uma por um dia inteiro; descobri que ainda sabia andar, mudei para um aluguel semanal, que era mais barato. Eu ainda sabia andar de bicicleta. Fui de bicicleta até o aquário, que ficava em outra cidade — não que em Bermuda um lugar fique muito longe do outro. Observei os peixes num grande tanque que começava no nível do chão e era mais alto do que eu. Estava realmente apreciando os peixes. (Havia outras vezes em que me sentia só, mas não nesse momento.) Uma voz disse: “Bom-dia”. Eu sabia que não havia ninguém mais na sala comigo. Olhei para cima, na direção da voz, e ali estava uma cabeça descansando na borda superior do tanque. Gostei daquela cabeça. A cabeça disse que era o zelador do museu. Nós batemos papo, e a cabeça me convidou para jantar, e me perguntou se eu gostaria de ir pegar peixes. Fantasiei montes de maravilhosos peixes que nunca tinha visto antes, todas as cores, e a água espirrando por todos os lados. A esta fantasia, eu disse sim. No dia seguinte, quando fui até o barco, fiquei surpresa em encontrar apenas o zelador e um menino negro. Eu tinha esperado (fantasiado) mais pessoas. Assim que saímos do Ancoradouro Hamilton, o zelador começou a bater no menino com uma corda. O menino esquivava-se a cada golpe. Toda vez o zelador olhava para mim. Eu estava assombrada. Não sabia o que fazer. Fiquei quieta. Eu não sabia se isso era certo ou errado, mas me pareceu a única coisa a fazer. O zelador batia com a corda, o menino se esquivava, o zelador olhava para mim, e a água espumante passava ao lado do barco. Navegamos pela costa até outro ancoradouro, creio que era o Ancoradouro Castle. Não havia nenhum outro barco por perto. Passamos perto de uma ilha rochosa, que poderia muito bem ser em rocha maciça, e ancoramos. O zelador entrou na água. Estendeu-me a mão. Pulei para dentro, sentindo apenas o alívio de o menino ser deixado em paz (e eu também). Escalamos a rocha. Gostei da subida, da rocha, do sol, do ar e fiquei rindo com o zelador que também parecia feliz. Quando chegamos ao topo, em pouco tempo ele me agarrou. Eu me senti perdida, impotente, sem esperança. Ele estava me empurrando para o chão. O menino não podia me ajudar mais do que eu tinha podido ajudá-lo. Não havia mais ninguém para se chamar. Por cima do ombro direito do zelador, notei uma nuvem diferente de qualquer outra nuvem que já tinha visto. Exceto pelo fato de ser uma nuvem, nada era igual. Joguei a minha mão esquerda por cima do ombro dele. (Agora assumo responsabilidade por algo que na época pareceu ter sido feito por alguma não-eu. “Acontece”, como costumam dizer... Agora estou vendo o assumir responsabilidade por toda ação...) Fiz um sanduíche e levei para fora até o portão. Meus pés pendurados, dentro da água. O movimento da água movia os meus pés para cima e para baixo. Disse ao Peter: “Parece que ela está brincando comigo”. Eu não achava que a água estivesse sentindo isso, mas mesmo assim, quando mudei para “Eu sinto que a água está brincando com os meus pés”, algo sucedeu. Algo muito pequeno, mas como se um pouquinho mais de mim tivesse sido acrescentado a mim mesma. “Assuma responsabilidade por toda ação.” Quando não assumi responsabilidade por aquela ação, estava sendo muito menos eu. Por outro lado, se mato alguém e digo “Deus me mandou”, também não adianta. Eu o fiz. *** As primeiras vezes que eu disse “Olhe!” não houve mudança no zelador. Eu tinha consciência disso, mas a minha atenção voltada para a nuvem era mais forte do que qualquer outra coisa no meu mundo. O zelador virou a cabeça e olhou para a nuvem. Pegou um dos meus pulsos e me arrastou pelas rochas íngremes tão depressa que tive uma imagem de mim mesma curvada como um arco, e as minhas canelas batendo nas rochas. Entramos na água, chegamos ao barco e saímos do ancoradouro. Não havia nenhum absurdo — tudo fazia sentido. Ele disse que era uma nuvem de furacão. Quando chegamos ao Ancoradouro Hamilton, os sinais do furacão já estavam presentes. Eu não gostava de falar muito sobre esses salvamentos que aconteciam a toda hora. Às vezes, eu tentava explicar. Eles aconteciam. Com freqüência a minha vida parecia um milagre. Eu não podia acreditar que tivesse sido escolhida por Deus para receber alguma atenção especial. De todas as dificuldades em que me metia, eu sempre saía com tanta rapidez e facilidade. Acreditar que eu o fizesse também parecia me colocar numa categoria especial, e eu não gostava disso — especialmente quando me parecia (depois) ter sido “tomada” nessas ocasiões. Obtive o primeiro relance do que me pareceu ser a verdade, cerca de dez anos depois. Meu filho de nove anos e eu estávamos numa praia, no Havaí, uma praia que conhecíamos muito bem — na verdade, desde que ele nascera. Ele estava na água, nadando. Eu estava na praia. Ele me chamou dizendo: “Não consigo voltar!”. Nadei até lá para ajudá-lo. Então, também eu estava ali, impossibilitada de voltar da margem. Não havia mais ninguém que pudéssemos chamar. Ele estava de costas, com o meu braço direito enganchado no dele. Eu nadava, nadava, nadava e não chegava a lugar nenhum. Ele entrou em pânico, virou-se e ficou em cima de mim — quarenta quilos. Também comecei a entrar em pânico, mas me controlei. Duas pessoas saíram da mata ao longo da praia. Esperança! Virei-me para eles. “Socorro! Socorro!” Eles viraram as cabeças e olharam para nós, então se voltaram para o outro lado e continuaram andando. Jamais me senti mais desamparada, abandonada pela raça humana. Eles perdiam tempo, e a praia era comprida. Estavam quase fora de vista quando cheguei aos meus sentidos. Notei alguns bloquinhos e pedaços de madeira flutuando em direção ao mar aberto. Ao mar aberto. Eles deveríam estar indo para a praia. A minha esquerda, notei um lugar onde aquilo não acontecia. O movimento das ondas era em direção à praia. Nadei paralelamente à praia até chegarmos às águas que se movimentavam na direção dela. Então, a água e eu juntas nos levamos para lá. Estávamos quase chegando quando me senti exausta, como se não fosse mais agüentar. Empurrei meu filho com toda a força, pensando: “Bem, pelo menos ele vai conseguir”, e eu afundei, afundei, afundei. A minha cabeça estava na água, com todo o resto do meu corpo. Então meus pés tocaram a areia. Empurrei a areia com toda a força (desta vez eu sabia que era eu) e parece que me fortaleci ao empurrar. Quando cheguei à superfície, comecei a nadar com as ondas, até a praia. “Heroísmo”, fiúúú! Eu podia ter notado aqueles pedaços de madeira logo no início — isso eu digo agora. Naquela tarde, um jovem veio nos visitar e dar uma nadada. Não lhe disse nada. Em vez disso, disse a mim mesma. Disse a mim mesma que ele era jovem e forte, e um excelente nadador, e que me meti em apuros porque era uma mulher fraca, e se eu dissesse algo, ele daria risada por eu fazer tempestade num copo d’água. Talvez ele tivesse mesmo dado risada. (Como eu diría naquela época, seria diferente de como eu diria hoje.) Eu me senti péssima quando ele voltou e disse: “Ufa! Quase não consegui voltar”. Ele era forte o bastante para nadar de volta contra a correnteza. E se ele não tivesse conseguido? Eu me senti culpada, e a minha culpa não era ressentimento. Tomar consciência. Se ambos tivéssemos tomado consciência, a história inteira poderia ter sido contada: “Notei a correnteza, nadei para onde não havia, e voltei”. Quando meu filho e eu chegamos à praia, ficamos ali parados, com as cabeças abaixadas, entre os joelhos. Não sei por que fizemos isso. Depois ele disse: “Agora vamos entrar de novo na água”. Como eu não quis! Quase decididamente eu não queria. Eu me senti afogando. O mar era um monstro negro, um horror. Eu era tão pequena e indefesa. Aááách. Sinto vontade de vomitar. Freqüentemente o meu filho fazia mais sentido do que eu. Voltamos a entrar. O mesmo se dá com o meu medo de liderar um grupo. Se eu fugisse, ainda teria medo de fazê-lo. Deste jeito, tenho um pouco de medo da próxima vez, mas não como antes. Eu não fui boa nem horrível — apenas medíocre. Sem suficiente consciência — deles, de mim. O melhor, não é preciso dizer, mas eu direi de qualquer forma, foi quando Fritz entrou e Roy estava no lugar quente. Fritz — onde estão as palavras. Ele estava todo ali com o Roy — não falsamente ali. Real. O Roy ir-real ficou um pouquinho mais real. Que batalha é essa! Quanto tempo leva, apenas para se conseguir um pouquinho. Ainda assim, é o começo que precisa vir primeiro — como eu liderando o grupo esta manhã, no começo. *** Valerie, Fritz e eu conversamos um pouco, depois que os outros se foram. Valerie falou de uma mulher que está aqui e que fez quatro anos de terapia reichiana em Nova York. Ela não sentiu que adiantou. Fritz: “Nada que é único é suficiente. O corpo não é suficiente. A mente não é suficiente. A alma não é suficiente”. Amém. Fritz ficou para tomar uma xícara de chá com rum. “Estou me movendo mais e mais na direção de encontrar a pessoa.” Foi isso que ele fez com o Roy. Ele disse ao Roy: “Desde que você está aqui, eu o tenho ouvido grasnar. Você não tem voz”. Ele disse: “Você é um artefato”. A sua voz estava neutra e macia, sem expectativa. *** Férias. Ficar livre. Ficar vazio de. Quando eu estava doente e sem dinheiro, tentando melhorar de ambas as coisas, trabalhava o tempo todo. Toda sexta-feira, ao anoitecer, as pessoas do lado de casa e do outro lado da rua jogavam as coisas no carro e iam embora. Eu tinha muita pena de mim mesma. Eu precisava de umas férias mais do que ninguém, mas não podia sair. Eu tinha de tentar melhorar e achar algum jeito de ganhar dinheiro. Eu não suporto ter pena de mim mesma. Após alguns fins de semana, fechei a loja na sexta-feira à tarde e não pensei em ganhar dinheiro até segunda de manhã. Tive umas férias maravilhosas — toda cheia de bons sentimentos. Quando estava trabalhando em Person to Person, certa manhã notei que acordei, me levantei e fui direto para a máquina de escrever — como um autômato. Eu estivera chegando perto disso há algumas semanas, sem notar. Quando notei, parei de escrever e percebí o que queria fazer, e fiz. Estiquei-me toda, pendurando-me no batente da porta. Depois, coloquei uma das mãos no fogão, a outra na mesa da cozinha e fiquei girando as pernas. Tive fome e abri a porta da geladeira. Então assei inhame no forno. Fui até a sala de estar. E assim por diante. Quando senti vontade de ir à cidade para comprar tinta nanquim e pincel, não disse nada a mim mesma: fui a pé até a cidade e comprei. Note-faça; note-faça. Nada mais, durante dois dias. Na noite do segundo dia, fui ao banheiro, sentei-me na privada, e enquanto estava sentada, pensei com uma estranha alegria: “Puxa! Mas que férias maravilhosas!”. Essa foi a primeira vez que pensei nisso como sendo férias. A forma como eu me sentia foi o que provocou isso. E então meu interesse em fazer o livro voltou, e eu já não era mais um autômato.

MIRAGEM Nem tudo eu esqueci no grupo desta manhã. Sinto-me bem em relação àquilo que esqueci. Esqueci que algumas pessoas eram psiquiatras ou psicólogos, embora saiba que uma delas é psiquiatra e uma outra é psicoterapeuta, e acho que mais duas fazem algo do tipo. Me esqueci quase totalmente do Fritz quando ele entrou, enquanto eu trabalhava com o Roy. Talvez amanhã eu esqueça ainda mais. Vazia. Estar vazia de. *** “— e não jogar a responsabilidade sobre mais ninguém". No sítio (aproximadamente 140 quilômetros quadrados) e escola (uma sala) onde trabalhei durante alguns anos, certo dia cinco das crianças exigiram que eu lhes desse permissão para fazer algo — estou esquecida do que era. Nesse sítio, as crianças faziam coisas de arrepiar os cabelos dos visitantes. Elas me pediam permissão para fazer algo tão ousado que eu não podia dizer sim. Elas pulavam, pediam, insistiam. Desesperada, eu disse: “Muito bem, vão em frente — mas lembrem-se! se vocês fizerem isso, a responsabilidade é de vocês, não minha”. Elas pararam de pular e berrar, e, silenciosamente, pensativamente, saíram e fizeram alguma outra coisa. Neste instante, estou cansada de palavras. Pensei em continuar, mesmo sabendo que dentro em breve estaria com vontade de jogar tudo fora. Pobre Aldous Huxley e seus prazos, completando um artigo enquanto morria devagar — fraco, doente, quase incapaz de falar. E Laura julgando-o nobre. Maya. Ilusão. “Mundo: a coisa em que vivemos.” — Tirado de um Dicionário de Cinco Palavras composto por uma criança de sete anos. *** E tampouco fiquei deitada sem conseguir dormir, ensaiando para o grupo de hoje. Me esqueci, e adormecí. *** Quando Adrian van Kaam veio da Holanda para cá, ficou pasmado com a noção americana de que um professor deve estar disponível a todos. Na sua salinha em Brandeis, nós estávamos fazendo algo juntos, resolvendo algo de maneira semi-, mas não totalmente intelectual. Eu sentia algo acontecendo dentro de mim notando algo acontecer dentro dele. Knock knock! A pessoa foi embora. Antes de nos aproximarmos novamente da forma como estávamos, knock knock! Interrupção. Cada pessoa entrava com um pedido. Parece que na Europa a sociedade oferece mais proteção, pelo menos para os professores. Na minha própria sociedade, tenho de providenciar a minha própria proteção — e isso está certo, contanto que eu o faça. Em Saskatchewan, no workshop intercultural, certa noite Wilfred (índio) disse: “Estou me sentindo estranho”. Pediu à sua irmã, Gracia, e eu que fôssemos ao seu quarto. No quarto, Wilfred estava explorando sua “estranheza”, chegando a algo. Houve uma batida na porta. Gracia disse enquanto descia da cama: “E batida de homem branco!”. Uns sujeitos brancos fizeram a besteira de entrar “alegremente”, um deles pulando e rolando sobre a cama. Na noite seguinte também cometi uma besteira, mais silenciosa, mas ainda era a mesma coisa. Eu me surpreendí no ato, e me senti triste. Deixei a não-consciência de um homem branco me absorver. Eu fiz isso. Sinto vontade de ficar louca. A palavra é “piração”. Fico encalhada quando não consigo ficar mais louca do que isso. Na verdade, parece ter sentido. Talvez se eu ficasse mais louca, teria mais sentido. Tentar “acompanhar” o Fritz é loucura. Quando você consegue, ele não está mais ali. *** Aos vinte anos, eu ria das fantasias de infância quando me lembrava delas. As calçadas e ruas da nossa aldeia eram todas de terra. Um menino que me atraía morava numa rua que estava sendo aberta por uma razão qualquer. Para chegar à sua casa, era preciso caminhar um quarteirão por entre montes e montes de terra. Na minha fantasia, eu andava por entre esses montes para ir vê-lo — com meu cabelo penteado para cima, como uma dama, e vestindo um vestido de baile brilhante, seguida de um cortejo. Era como um sonho, e não me parecia ridículo. Eu também tinha seios grandes. Viajando na minha fantasia, eu sabia que ele tinha de me notar, e quão magnífica eu era. Aos vinte, eu tinha outras fantasias. Eu não achava que estas eram ridículas. Note as suas antes de rir das minhas. Então podemos todos rir juntos. Às vezes as fantasias são úteis — enquanto não me confundo e penso que são realidade. Quando estava em dificuldades com o meu marido, com medo de estar maluca (e eu estava mesmo, só que não do jeito que achei que estava) desenvolvi erupções intestinais e mononucleose, que natural mente me fizeram afundar ainda mais. Eu fantasiava que o médico era um santo radiante que me amava, e fiquei nessa fantasia quando precisei de repouso, sem nunca perder a idéia de que ele era simplesmente um cara legal, um bom médico, e eu gostava dele. As fantasias espontâneas são diferentes. Uma repetida fantasia minha, que não tenho tido nos últimos tempos, é ver-me numa cabana num país maravilhoso. Estou deitada na cama, e qualquer coisa que eu precise, me é trazida, embora não haja pessoas em volta. Aprecio o repouso, e ao mesmo tempo sei, ao ter essa fantasia, que repouso é o que eu preciso. Recebo a mensagem e ajo. Deixo de lado algumas das coisas que andei fazendo, e a fantasia desaparece. O primeiro passo é notar. Tomar consciência do que está se passando em mim. Agora estou com vontade de fazer um rabisco. *** O grupo desta manhã acabou. Amanhã? Amanhã, recebo as pessoas que Don pegou para o grupo dele, e não sei quem são. Poderia facilmente descobrir. De que adiantaria saber? Estou me sentindo bem em relação a algo que me fazia sentir mal — não me interessar em saber. Durante a Primeira Guerra Mundial, eu me correspondi com uma porção de jovens que estavam servindo — americanos, britânicos, franceses, e da Nova Caledonia, que são uma espécie de franceses de outro lugar. Um jovem escocês que não estava servindo me escrevia. Ele tinha recebido o meu nome e endereço por meio de um amigo que o tirou do pacote de outra pessoa e nunca o usou. O escocês usou. Tivemos grandes momentos, por correspondência. Minha, irmã perguntou: “O que ele faz?”. Eu não sabia o que ele fazia e não me importava, e me senti mal (algo de errado em mim) porque era importante para a minha irmã. “Como você pode escrever para ele se não sabe o que ele fazV\ disse ela, sem o mínimo tom de pergunta na voz. Ela não queria saber. Ela estava me dizendo algo que eu não sabia o que era. Eu senti um buraco em mim, algo que eu devia tampar. A minha irmã era mais velha do que eu, e sabia tanta coisa. Eu ainda estava na mesma dificuldade que tinha quando era criança, quando meu pai me carregava toda vez que tínhamos de caminhar alguma distância. As vezes, aos domingos, saíamos de casa e íamos até o bonde. Pegávamos o bonde até a balsa. íamos de balsa para Nova York— casas, casas e casas, às vezes fileiras delas, todas parecidas. Quando saíamos da balsa, pegavamos outro bonde. Então descíamos, e pegávamos outro bonde. Então descíamos deste bonde e caminhávamos alguns quarteirões, virávamos, e mais alguns quarteirões. Subíamos umas escadas. Minha mãe ou meu pai batiam à porta ou tocavam a campainha. A porta se abria — e ali havia gente que conhecíamos. Como é que meus pais encontravam? Que gente inteligente. Eu não conseguia fazer isso. E então, quando eu soube a verdade a meu respeito, e um deles me disse que não era verdade, o meu saber oscilou, ficou diminuído por eu conhecer a inteligência deles. Eles devem estar certos. Não, eu estava certa. Eles devem estar certos. Não, eu estava certa! Eles devem estar certos. Não, eu estava certa. Eles devem estar certos. Não, eu estava certa. Eles estavam certos, e eu errada. Cometi este mesmo erro com o meu marido, por longo tempo. Ele sabia tanta coisa. Tinha passado onze anos na universidade, inclusive três em Oxford e quatro na faculdade de medicina. Tinha vivido no exterior. Conhecia a França (e sabia francês) e a Alemanha (e alemão) e geologia e arquitetura e medicina e poesia em latim e gente famosa (Julian Huxley, Henry Luce, Archibald MacLeish, Max Beerbohm e alguns dos Mitsuis) e a índia (e birmanês) e história e literatura inglesa. Quando ele falava da vida e das pessoas, eu achava que ele devia conhecer a vida e as pessoas melhor do que eu. Também me parecia que não, mas eu continuava achando que isso não podia ser, por causa de tudo que ele sabia. Quando fomos para o Havaí, ele não conseguiu aprender o dialeto local. Ele dava instruções a Sato-san, o jardineiro que trabalhava para nós duas vezes por semana, e quando meu marido saía para Honolulu, Sato-san vinha e me perguntava: “O que patrão diz?”. O dialeto era facílimo para mim, e delicioso de falar. Com todas as línguas, meu marido não tinha conseguido nem falar nem aprender o dialeto. Por quê? Por que ele não conseguia enxergar que fazia inimigos de gente que não era inimiga? Havia apenas cinco pessoas em quem ele confiava — quatro homens e eu. Assisti três dos homens se tomarem “indignos de confiança” e senti que isso estava se aproximando de mim. Quando deixei o Havaí (aos 43 anos) eu “nunca ia conseguir aprender nada”. De que adiantava saber tanto se a gente ficava tão infeliz com isso? Também havia Bertie Russel, e toda a infelicidade dele, e não fazia sentido. Foi então que levei o nosso filho, aos nove anos, para um rancho no Arizona. De todos os lados me disseram que isto estava errado. Uma mulher japonesa que trabalhava como doméstica me disse que no Japão, anos atrás, a nobreza sempre enviava os filhos para viverem com os camponeses — como camponeses —“para não perderem contato com sua origem”. Isso fazia sentido para mim. Ima, que me contou isso, também me contou outras coisas. Durante a guerra, ela estava num ônibus para Honolulu. Um marinheiro cuspiu nela. Ela ficou furiosa. Então se lembrou de um trem no Japão, e de um japonês que foi muito rude com um americano. “E a mesma coisa.” Esta foi a maneira dela de pôr fim à situação, de clarear a mente. Cancelar. Ela lidava de outra maneira com a Sra. B., uma cadela de mulher. Com ela, explicava Ima, “de vez em quando a gente faz Uuff! Então tudo fica bem por algum tempo”. *** Esta manhã começou com Fritz entrando assim que Natalie tomou o lugar quente. Eles trabalharam juntos, maravilhosamente. Eu me intrometí uma vez, por causa da minha estupidez. As vezes fico satisfeita de as minhas intromissões serem tão suaves que podem passar despercebidas. (Não reconhecí que era uma intromissão antes de fazer. Eu tinha estado a falar comigo mesma, e ouvindo o que aquela mentirosa dizia.) Depois disso, dois homens ocuparam o lugar quente. Peter quer ajuda e está muito determinado a fazer tudo sozinho. Quase no final ele falou da sua frustração. Mencionei o que Fritz tinha dito: “Quando tento galgar esta parede, sinto-me impotente”. Peter tentou, então, galgar a parede. Realmente trabalhou com ela. Então tentou vencê-la a golpes. E então tentou miná-la. Finalmente disse: “Posso passar pela porta”, e abriu a porta e saiu. Veio a imagem, a história Zen do homem agarrando as barras da janela, enquanto a porta está aberta atrás dele. Esta manhã saí bastante, dei a mim mesma uma instrução a ser lembrada, guardada, para não ser esquecida. Desliguei-me da instrução, sabendo que ela está gravada em mim. Meu trabalho é tomar-me acessível a esse armazém, de modo que ele seja acessível a mim de maneira apropriada, à medida que as coisas acontecem. Hoje isso aconteceu um pouquinho mais do que ontem. Quando eu tento, o armazém não é acessível, mesmo que o meu tentar seja apenas tentar prestar atenção ao que está acontecendo. Então, a única coisa que me vem à cabeça são regras, e isso não é nem Gestalt nem gestalt. Esse tentar é como tentar aprender uma língua em vez de deixá-la penetrar, sair, incomodamente e prosseguir. É como a diferença entre ler um livro e parar a cada palavra que não sei (que ainda não aprendi) e ler o livro adivinhando as palavras que não sei. Se eu estiver certa, isso ficará provado quando a palavra aparecer outra vez. Se estiver errada, isso será mostrado numa outra vez — se é que eu não me preocupo em estar certa. As intromissões desta manhã foram notadas no momento. (Não depois.) Elas foram cuidadas. Eu não “tenho de” guardá-las, trabalhar com elas, chorar por causa delas enquanto bato no meu peito, tentar corrigi-las. Algumas delas acontecerão novamente. Se eu focalizá-las, e ficar me censurando, não terei notado “tudo” — que outras não aconteceram novamente. Se eu me apego a elas, estou propensa a cometer o mesmo erro. Quanto mais tento, mais fracasso, porque o erro está no tentar. Estou aprendendo. Com tão menos dor, menos porradas, agora que estou disposta, agora que há menos torturas de mim por mim. Menos divisão. Um movimento na direção de ser inteira, de deixar o que chamo de mim tomar conta. Então, tanto eu quanto mim teremos partido. Fritz começou a tocar música em sua cabana aqui do lado. Ouço tristeza na música. A minha própria tristeza começou a surgir e se espalhar. Sinto-a toda em mim. Sou tristeza, e não há nada de errado com a tristeza. A tristeza é. Provavelmente nada pode ser explicado. George, trabalhando com um sonho, era George batendo os braços como asas, tentando voar, e afundando mais e mais em alguma coisa. Então ele foi o menino do seu sonho, com um besouro andando sobre o peito. Como George, ele detestava o besouro. Como menino, quando o besouro tinha andado por todo seu braço até o pulso, subitamente o chão se firmou sob seus pés. George não captou a mensagem mas sentiu algo. Talvez ele chegue lá mais tarde. Quem mais pode conseguir isso a não ser o George? Ninguém. É a mensagem dele. Esta manhã, Fritz perguntou a Matalei depois de ela ter desenvolvido um sonho e chegado a algo: “Você captou a mensagem?”. Ela disse: “Sim”. Fritz: “Eu não sei o que é”. Ele não precisa saber. Ele não perguntou a ela, como na escola. “O que é?” Ele a deixou com o seu próprio saber, que não precisa coincidir com o dele, e, em todo caso, é dela. (“Bem, se você não pode me dizer, é porque não sabe.” Não sei de onde vem isso. Eu ouço a frase sendo dita para mim, algumas vezes no passado, com um ponto de exclamação no final que dizia: “Você está errada!” — como “você está mentindo”.) “Muita água passou sob a ponte desde que nos encontramos pela última vez”, disse Liz. “Água boa ” O lago está correndo como um rio. Espuma nas ondas. Tanta coisa fluiu desde ontem. Não consigo me recordar de ontem. Quando desisto de tentar, aparece a primeira ida a Duncan. E então estou sentada com Fritz, Barbara e Márcia na cozinha, ontem, tarde da noite. Então o grupo da noite, todos nós com o Fritz. Então o almoço, e o grupo da manhã — sem detalhes. Tento me lembrar, e fico no vazio. Esta manhã choveu novamente, e havia nuvens cinzentas e baixas. Agora, o sol está refletido na água, prateado em alguns lugares, brilhante em outros. A luz do sol entra pela janela, aquecendo a máquina de escrever e as minhas mãos. Ainda não me lembro do grupo de ontem pela manhã, só o fato de saber que aconteceu, e aconteceu aqui. Não sei quem estava nele ou o que fizeram ou o quê — Pat. Lembro-me de que ontem Pat estava aqui. Peter... Bruce... Natalie... agora as pessoas estão voltando. Não há sequência para me lembrar. Agora me recordo de estar na cozinha por volta das três e meia com Glenn eTom. Tudo está à minha disposição, tudo pode voltar. Todo o passado. O que havería eu de fazer com ele? E melhor deixá-lo ir — todo ele. Esta manhã, antes de o grupo chegar, senti que se todos decidissem ir embora, seria ótimo. Eles estariam fazendo o que eu queria que fizessem. Agora, eu não teria sentido falta desta manhã. Eu estava muito mais em contato com a minha imaginação espontânea, e tinha mais confiança nela. No começo deixei sair muitas dessas imagens, e poderia ter havido um atalho se isso não tivesse acontecido. E, mais uma vez, talvez não houvesse atalho. Nunca é possível voltar e começar de novo. Tanta coisa mudou. “Nunca pisamos duas vezes no mesmo rio.’’ Agora estou com uma sensação boa com respeito a amanhã. Não quero mudar o dia de hoje. Amanhã é outro rio. Sinto-me bem com o meu não-saber. Interesse. Nada de apreensão. Nada de fantasias. Um exemplo da imaginação. Pat estava sendo o seu eu frouxo e mole deitado no chão, e o seu eu durão sentado num banco, oscilando entre um e outro. Notei que o seu durão estava perdendo força, embora ainda fosse forte. O eu frouxo não estava tão frouxo. Eu estava gostando disso. Então tive a imagem de Pat em pé, entre o eu do banco e o eu do chão, e pedi-lhe que fizesse isso. O que aconteceu então foi bom, e encerrou o trabalho dela por hoje. Ultimamente tenho estado a descobrir um erro meu, pouco a pouco, descobrindo uma forma de... Bem, esqueça. Vou ficar toda confusa entre “eu” e “mim” e... Esqueça isso também... Quando cheguei aqui pela primeira vez, notei a minha grande dificuldade em lembrar os sonhos das pessoas quando elas os contavam. Não via como Fritz podia trabalhar com a pessoa numa parte do sonho, e então voltar a outra parte num instante e pronto! Eu pensava que ele devia se lembrar do sonho todo conforme tinha sido contado. Nunca pude fazer isso. Eu seria uma péssima terapeuta nessa área da Gestalt. Recentemente tenho notado que quando deixo as palavras passarem e faço a imagem do sonho enquanto ele está sendo narrado, então às vezes algumas partes dele voltam, e posso ter confiança de voltar para qualquer parte que surja, fazendo a outra pessoa recordar-se dela. A outra pessoa caminha com isso, e eu caminho com ela. Quando não faço isso, fico muito confusa com o sonho e não consigo me apegar a nada, ou se consigo, é de uma maneira tão vaga e nebulosa que a outra pessoa não consegue se relacionar com ele. Às vezes ocorre a|go estranho com essa formação de imagens. Uma moça contou seu sonho (na primeira pessoa, conforme a Gestalt) que começava no campo. Então ela caminhou, e chegou a uma ponte. Esse era o fim do sonho. Ela não cruzou a ponte. Isso é fácil de notar e recordar. Ela quis começar com o campo, e me pareceu certo. Depois, quis ir para algum outro lugar do sonho. Pedi-lhe que fosse até a ponte, cuja imagem me veio naquele momento. Ela foi, e disse que era uma ponte de arcos. No começo eu tinha imaginado só uma ponte de arcos. Eu devia ter perguntado qual era a cor da ponte — para não me admirar. A minha era vermelha. Não é estranho que a ponte a tenha levado para uma viagem da qual ela recebeu uma mensagem existencial. Em grupos tenho tentado ouvir, me lembrar e tenho me cansado — e então “saio”, na cabeça, para descansar. Isso estava certo quando era só isso que eu podia fazer, assim como o passado está certo, quando o que fiz era tudo que eu podia fazer. Eu não podia fazer mais nada. Agora me parece que as minhas imagens do sonho, à medida que ele está sendo contado — ou notar a imagem que aparece, que pode ser a verdade — podem estar me abrindo para as imagens que ocorrem quando o trabalho está em andamento. Abertura para imagens. Quando Runi acabou de trabalhar com Fritz, e saiu, Runi disse: “Sou uma covarde”. Estávamos no intervalo. Eu estava pondo algo de lado, abrindo espaço para as pessoas fazerem café. A minha imagem foi “amedrontada”. Perguntei a ela: “A palavra é ‘amedrontada’?”. Em um momento ela concordou. “Covarde” é um julgamento, uma fantasia. As pessoas podem dizer “Não, você não é” e “Sim, você é”, e eu posso ficar confusa e lutar contra a confusão e continuar fantasiando. “Amedrontada” é uma realidade. Posso sentir, e sei que está aí. Estou com vontade de botar um poema aqui. Iniciador*(*O título do poema em inglês é Pusher, que significa alguém que “empurra”, “leva” ou “inicia” outros em alguma coisa. A palavra é usada em gíria para designar o vendedor de drogas que procura convencer alguém a provar— comprar a droga, ou seja “iniciar” a pessoa. Acreditamos que o autor do poema faz aqui um paralelo entre o vendedor de drogas e os mestres que trazem soluções prontas para as pessoas. – N. do T.) Cautela com quem busca discípulos o missionário o iniciador todos os proselitistas todos que clamam ter descoberto o caminho do céu. Pois o som de suas palavras é o silêncio da sua dúvida. A alegoria da conversão sustenta-os através da sua incerteza. Persuadindo você, eles lutam para persuadirem a si mesmos. Eles precisam de você tanto quanto dizem que você precisa deles: há uma simetria que não mencionam no seu sermão ou no encontro perto da porta secreta. E suspeitando de cada um deles cuide-se também destas palavras, pois eu, dissuadindo você, obtenho nova evidência de que não há atalho, não existe caminho, nem destino. Peter Goblen *** Primeiro de outubro. Estou aquecida pelo sol. Troco de roupa, e ponho um vestido fresco. Antes, eu estava me sentindo bem com o vestido quente, então tudo estava bem. Como é absurdo pensar que preciso ser sempre quente com as pessoas, ou fria, como é absurdo pensar qualquer coisa. Eu me sinto aquecida. Eu me sinto fria. Estou aquecida. Estou fria. Amo você desta vez. Não amo você desta vez. Não exija de mim o que eu não tenho. Quem faz essa exigência? Eu mesma. Faço essa exigência de mim, não há nós em mim. Entregue-se, e há um pseudo-nós. Eu não estou lá — só o meu pseudo-eu. Quando não exijo nada de mim, onde está a exigência? Não a sinto. Posso saber que a exigência existe em outra pessoa, mas não posso sentir a exigência dela. Só ela pode sentir. “Posso ver o seu arranhão. Não posso sentir a sua dor.” Olhei para cima e vi uma cachoeira na montanha mais distante. Não é uma cachoeira. Apenas pareceu uma cachoeira à primeira vista. Eu estava “errada”? Gostei da cachoeira. Um átomo de deleite me invadiu. Tomei algo por outra coisa (mis-take). Mas dificilmente foi um engano (mistake). *** Hoje, intervalo, uma mulher que tinha estado a exigir uma resposta de um homem — um tipo particular de resposta, que ela não conseguiu — veio a mim e ficou exigindo de mim. — Eu disse algo. Ela continuou tal como antes. Eu disse algo. Ela continuou tal como antes. Botei as mãos nos ouvidos dela e disse: “Você não está ‘escutando’.” Ela respondeu: “Bem, como é que eu posso escutar com as suas mãos nos meus ouvidos?”. Hoje no grupo, Fritz me pediu para deixar os outros participarem “da maneira que está acontecendo nos outros grupos”. Isso estava acontecendo ontem, então não precisei fazer mudança nenhuma. Então ele acrescentou a escolha de um co-terapeuta, e também de uma supervisão. Mal eu tinha conseguido equilíbrio numa posição, ele me muda para outra, eu oscilo e perco o equilíbrio. Quero estar de novo neste grupo, e me sair melhor amanhã — mas é bom que a mudança venha agora. Eu poderia me esquecer de que não estou pisando no mesmo rio. Com gente nova saberei disso. Terei de notar. Trabalhar com um co-terapeuta, deixar os outros entrar também, e “supervisionar” tudo isso? O que significa “supervisão?”... Super-visão. Pior ainda. Eu não tenho. E ridículo. Procurei no Oxford Dictionary e não há a palavra. Será que estou soletrando errado? superstição de supinar. (“Virar a palma [da mão] para cima”)... Eu a encontro no Webster’s School and Office Dictionary, mas esse aí não é muito mais do que uma cartilha. Lá diz “oversee”*(* “Oversee” tem exatamente o mesmo significado que “supervision”. O inglês oferece essa possibilidade devido ao fato de uma das palavras ser de origem anglo-saxônica e a outra de origem latina. Ambas são traduzidas por “supervisão”.(N. do T.) Então estou de volta a mim mesma. Nenhuma autoridade externa. Tenho de fazer sozinha, seja o que for. Eu sei o que é. Ressinto-me dos puxões e apertos no meu peito outra vez. Seguramente lembro-me dessa sensação. Exatamente quando tinha conseguido arranjar a “vida direito”, de modo a estar confortável nela, pum! Veio outra coisa e quebrou tudo. Onde foi o “Pum!”? O que me “atingiu” agora? Será que sou eu que estou me atingindo? Enquanto penso “Agora tenho de me recompor e começar tudo outra vez”. Desta vez o fardo não parece tão pesado. Apenas me ressinto de ter de fazer de novo. *** Encontrei “supervisão” na página anterior, em super-”. Não gosto dessa forma, mas suponho que isso toma esta edição do Oxford Dictionary mais concisa. A palavra significa o que eu pensava. Eu esperava talvez encontrar uma saída. Agora não preciso de saída, e não sinto fardo nas minhas costas. Ontem à noite na Casa, onde o Fritz come, o molho curry era quase todo caril.*(*Caril — (curry): Condimento usado como base no preparo do molho curry. N. do T.) Ele comeu pão e tomou leite, e gostou, mas ressentiu-se do caril. Ele disse isso na reunião da comunidade. Parecia o meu ressentimento em relação a uma porção de comidas neste continente: não só não é boa para mim, mas também é tão não-sensível (unsense-ible). Eu gosto do sabor do arroz, feijão, ervilhas, vagens, carneiro, bife, e assim por diante. A maioria das pessoas que conheço tempera tudo, tanto, que consigo apenas sentir o sabor do tempero. Outra birra que tenho é com “cozido”, onde tudo é tão misturado que não sinto o gosto de nada, e o gosto que sinto é só do disfarce; ou então algo de que gosto para o almoço, mas não para o jantar, como atum na panela. Pratos misturados são bons para serem comidos como sobras, mas às vezes eu gosto de comer a comida da qual as sobras sobram. Convidei o Fritz para jantar comigo, um jantar leve, não uma ceia. “Ceia” vem das pessoas finas que “ceavam” (dined), enquanto nós jantamos. Só no domingo houve ceia, por volta de uma ou duas horas. Nós comemos o jantar, não ceamos. Foi o melhor jantar que tive nos últimos tempos, com um companheiro e ainda assim com tanto silêncio; e nenhum de nós representou papéis ou fingiu. Pelo menos, se o Fritz estava com um papel, eu não o notei; e eu não estava. Ele devia chegar às cinco e meia ou seis horas. Às seis e meia ele ainda não tinha chegado, então fui até a cabana dele e ele não estava lá, então fui até a Casa e ele estava sentado na sala lendo jornal. “Oh! Eu sabia que havia alguma coisa...” Agora é o dia seguinte, após o grupo. Consegui. Sinto-me bem por ter conseguido sem tentar fazer nada, o que parece ser não fazer nada. Notar e acontecer. O resultado é que agora estou muito mais presente... Lembro-me de algumas vezes ter me sentido assim após o sexo, a maravilhosa felicidade de tudo acontecendo, inclusive eu. Antes de o sexo tornar-se parte da minha vida, havia tanto desse acontecer. Certa vez ouvi o tique-taque de um relógio numa vitrina pela qual estava passando — como se ouvisse cada um. A loja estava fechada — eu os ouvi claramente através da vitrina. Sons de um barco a vapor a certa distância. Pessoas sentadas no ancoradouro e refletidas na água. Homem deitado sobre a plataforma de saltos. Na água, a plataforma está deitada sobre o homem. Pessoas se levantam e vão embora. Onde estão as pessoas? Não importa. Não no meu mundo. Tut! um assobio em algum lugar à minha esquerda. A direção é clara. Colinas ondulando na água, colinas escuras, água clara. Noto a luz e ela se torna uma superfície, como que ligada ao escuro de baixo. Como olhar as bordas das nuvens... Então tentei forçar uma imagem. Grrrrrrrrinnnnddd. Grrrrrrr. Eu a abandono. Isso não é notar. E fazer. Não, tentar fazer. Esta manhã quando não tentei no nosso sentido, voltei ao sentido original de “tentar”. Se eu explicar isso, alguém vai tentar, tentar dessa maneira. O sentido se perdería, tal como foi perdido. As pessoas ainda riem daquela velha história do homem que estava separando batatas murmurando: “Decisões, decisões, decisões!”. Do que elas (individualmente) riem, eu não sei. Se eie estivesse separando as batatas com seu eu organísmico, não estaria “tomando decisões”. Então estou sorrindo com o canto da boca voltado para baixo. Esta manhã não tomei decisões. Eu não tinha um programa, nem para mim nem para mais ninguém. Foi mais fácil porque ontem à noite fui mais cedo para a cama. Isso deve ser tudo. FOI MAIS FÁCIL PORQUE ONTEM À NOITE FUI MAIS CEDO PARA A CAMA. As vezes tenho-me tomado frouxa por causa da exaustão, do desespero ou da incapacidade de me segurar. Eu me sinto tão bem que agora tudo sai mais fácil. Nunca gostei daqueles heróis cristãos pintados por artistas frenéticos que julgavam estar criando algo maravilhoso. Agora temos os artistas que relaxam jogando tinta do balde. Pode ser interessante. Ainda assim é tinta jogada de um balde. Como tal, não discuto com ela. O que aprendi esta manhã com o grupo foi tanto que eu seria estúpida se tentasse escrever. Não teria tempo para mais nada. E então, mesmo assim você não entenderia. Além disso, a coisa está em cada átomo meu. Sinto que os meus dedos dos pés sabem, as minhas mãos, os meus ombros, a minha barriga, e a minha cabeça apenas sabem também. Se você cortasse a minha cabeça, a minha mão continuaria sabendo. (Eu sinto.) E aí que está o meu saber. Se ele não estiver em todo lugar, não é saber. As enciclopédias estão cheias de “conhecimentos”. Mas elas sabem? Nenhuma compreensão. No jantar de ontem com o Fritz, às vezes dizíamos alguma coisa. Não. As vezes ele dizia alguma coisa. As vezes eu dizia alguma coisa. Tão poucas palavras. Tanta compreensão. Comíamos devagar, saboreando a comida levemente temperada. Ele disse: “As pessoas usam condimentos em vez de saliva”. Ele disse que às vezes me inveja, que tem pesadelos sobre expansão. Perguntei-lhe se ele estava se referindo a encontrar mais habitações e assim por diante. “Pesadelos reais. Eu sei que é a minha ambição.” Ver as coisas como são. Não me forçar a forçar as ambições dele. Não me dizer que eu preciso ser mais ambiciosa. Não me criticar pelo que eu sou. Ele me deixa ser. Eu o deixo ser. Não intelectualmente: totalmente. As minhas unhas o sabem, as minhas pálpebras também. Nenhuma parte de mim se contém. Não estou “sendo razoável”. Separação e confluência ao mesmo tempo. E nem irrazoável. Simplesmente não-razoável. Sem raciocinar. Além da razão. Além do entendimento e do desentendimento. Aqui há paz, há amor, há tudo que quero e não estou querendo. *** Ontem à tarde George me procurou. (Ele está agitado.) “A Pat esteve no seu grupo esta manhã?” “Sim.” “Ela está ali (aponta para as árvores) há tempo, chorando. Eu não sabia o que fazer.” Não digo nada. “Achei melhor lhe contar.” Por um momento, eu fiquei agitada. “Então ele joga as coisas por cima de mim!" Mas então eu soube (acentuadamente no meu peito, mas o saber estava em toda parte.) “Deixe estar.” Nessa noite, no grupo do Fritz, Pat tomou o lugar quente. Ela disse: “Pensei que não tinha orgulho nenhum. Hoje à tarde descobri que não é verdade”. “Ajudar” é roubar. *** Esta manhã, Forrest estava respirando muito leve. Ele disse que se sentia confortável. Quando uso mal uma parte de mim por muito tempo, eu me sinto confortável. Estou acostumada. Sinto dor quando tento mudar. Nós trabalhamos com a respiração dele (aqui o “nós” está certo) e ele fez algumas descobertas, não só sobre o seu respirar, mas também sobre a sua vida. (Nenhuma das coisas que lhe pedimos para fazer foi exercício de respiração.) Minha forma de vida (ou de pseudovida) não esta lá fora: está aqui dentro de mim, e o que eu faço com meu corpo fazer é parte disso. *** Ontem à noite, no grupo grande, Fritz discorreu um pouco sobre “a pergunta é o anzol de uma exigência”, e sobre o ato de mastigar. Forrest perguntou ao Fritz se ele podia dar alguns exemplos de transformar uma pergunta numa afirmação. Houve um breve diálogo entre ambos. O diálogo terminou quando Forrest percebeu que ao fazer a pergunta ele estava sendo (intenção) “o bom aluno”. Ser algo, em vez de um processo. Um artefato. Somente agora estou compreendendo totalmente o que Fritz quer dizer quando se refere a “artefato”. Alguma coisa feita pelo homem. Agora estou com vontade de escrever cartas. *** Esta manhã, “lá fora” parece não ter linha nenhuma. Nada de montanhas. Lago e céu parecem ser o mesmo nevoeiro. As linhas são estacas de madeira, mastros de ancoradouros, ancoradouros. O mundo (meu mundo) termina a quinze metros daqui. “Nenhuma interpretação.” Nenhum pensar. Ontem, George estava trabalhando com seu conflito dominador-dominado. Ele já o fez bastante, desde o início em junho. Tanto seu dominador quanto seu dominado pareciam cansados, fracos, sem muita vontade de brigar. As pessoas do grupo estavam expressando tédio. Pensei (sic)... Pensei (uggh!) “Provavelmente eles já passaram por isso com o George muitas e muitas vezes.” Pensei (uggh!). “Provavelmente o George esteja tão cansado disso quanto nós.” A certa altura, quando o George estava sendo um deles falando com o outro, disse: “Estou entre vocês”. Meus olhos se dirigiram para o chão, entre o lugar quente e a cadeira vazia, com uma imagem quase não-pictórica do George ali parado. Eu não lhe disse para fazer isso. O Larry estava como terapeuta. “Deixe-o continuar com aquilo que ele está fazendo” (uggh! que pensamento!). Eu me “esqueci” de que deveria supervisionar. Apaguei isso. Depois do George, trabalhamos com outra pessoa, e depois com outra. Quando o grupo acabou, George disse ao sair — Um enorme grou acabou de pousar desajeitadamente sobre o ancoradouro. Ele bate as asas — está sobre um barco. Bate as asas, está sobre o ancoradouro. Na borda do ancoradouro, seu bico mergulha na água. Agora está um pouco encolhido, olhando para a água como um gato. George disse, feliz: “Tenho pensado (uggh!) no meu dominador como sendo organísmico. Eu estou no meio!”. Percebi que tanto seu dominador quanto seu dominado tinham enfraquecido — era por isso que estavam fracos e cansados. Se eu tivesse deixado a minha sensação (não-uggh!) se manifestar enquanto ele estava trabalhando, George poderia ter chegado ainda mais longe, e mais depressa. E aí que está o gênio do Fritz. O estilo de vida se mostra no corpo. É claro. De que outra forma poderia ser? Eu sou meu corpo, meu corpo é eu. De que outra forma posso me expressar? Se eu fico encolhida e não digo nada, estou me expressando. Quando torço meus dedos dos pés, estou me expressando. Quando enrijeço os ombros, estou me expressando. Quando “não ouço”, estou me expressando. Quando entro num padrão habitual, estou me expressando como artefato, uma espécie de estátua que se move e respira de forma artificial. Eu fiz a mim. Esse grou não se fez. Ele não é pervertido (perverter: desviar-se do seu uso pretendido). Todos nós pervertidos, que nos pervertemos de uma maneira ou de outra, ficamos tão zangados com aqueles que se perverteram de maneira diferente, e queremos ainda mais eliminar aqueles que não se perverteram tanto. Todos esses artefatos estão brigando. O mundo da ilusão. E o meu mím-artefato? Eu apago isso. Não quero entrar nisso. Sou apenas uma velha senhora bacana... Quero riscar esse “bacana”! Sei que também sou não-bacana. “Bacana” é relativo a onde eu costumava estar: ver mais, aceitar mais, agora, isso é bacana para mim. Procuro a palavra no dicionário, para ver o que ela significa ali. Meu Deus, quantos significados essa palavra tem — e em inglês (nice) ela deriva do latim que significa “ignorante”! Procuro “inocente” e escolho o significado que me serve aqui, “ignorante do mal (sem implicação de virtude)”. Estou fazendo progressos nessa direção. Não me zango tanto. Procuro “zanga”. Em inglês (anger) vem de uma palavra que significa “atrapalhado” (troubled). Eu estou muito menos atrapalhada. “Troubled” vem de uma palavra que significa “turbulento”. Não estou contendo a minha turbulência; não estou sendo tão turbulenta. Bertie Russel dizia de si mesmo e do ciúme. “Consigo me comportar muito bem, mas estou furioso por dentro.” Isso é turbulência. Contida, se acumulando por dentro. Rompa um pouquinho só a barragem, e parte do acúmulo se transforma num riacho. Uma verdadeira ruptura libera uma torrente. Se a torrente não for interrompida — O nevoeiro está descendo sobre o lago. Porque a “esquerda” está embaixo, comigo e com o lago, e a “direita” em cima? Colinas cheias de bordos, com uma fila de pinheiros pontudos no alto, emergem rapidamente. Céu azul. A neblina se move bem acima da superfície da água. A segunda fila de montanhas, mais altas, emerge. Verdes e azuis, escuros e claros em cima e refletidas na água. Se a torrente não for interrompida, depois há paz e alegria e um estar de novo no mundo. Já vi isso acontecer. Às vezes a torrente chora, às vezes é uma tempestade de raiva. Geralmente depois o hábito da perversão toma conta de novo, mas ainda assim a experiência de algo mais ali está, e teve início o trabalho de romper os velhos hábitos. “Três passos para a frente, dois passos para trás”, como diz o Fritz. Como o crescimento das crianças. Acho que elas desenvolvem uma estupidez que tortura a elas e a mim — então desaparece — então aparece de novo e a criança precisa lidar com ela. Como os pontos de costura chamados de “combinação”, onde a gente dá três pontos para a frente e um para trás. Esse ponto para trás fortalece o que de outra maneira seria fraco. Person to Person termina com uma descrição de mim mesma cuidando de uma mulher navajo que havia dado à luz uma criança. Quando a mulher olhou para mim com confiança, sem opinião, e eu abandonei meus pensamentos sobre ela e mim mesma, então houve apenas um processo — tudo procedendo. As fronteiras sumiram. Eu não mais me definia — ou a ela — e não limitava nenhuma de nós por meio de uma definição. A eu espontânea não tem pensamentos sobre. Ela simplesmente faz, às vezes com palavras que entram... ou saem... Não há dentro e não há fora. Palavras, então, são uma expressão de mim agora, sem eu pensá-las, da mesma forma que o meu sorrir ou não sorrir é simplesmente uma expressão de mim. Não um hábito. Não uma intenção. Não um propósito. Hmmmm... Quantas vezes tenho presente a minha intenção quando falo, quantas vezes tenho presente o que estou fazendo? Ter presente, não só saber. Eu posso saber, “estou tentando arrastá-lo”, e deixar a coisa sair pelo meu ombro enquanto passo para outra coisa, ou prosseguir com meu arrastão de palavras. Ter presente é estar em contato, deixar meu saber fazer-se sentir em mim inteira, antes de passar para outra coisa. Essa é a diferença entre saber que estou andando na rua, e ter presente o fato de estar andando na rua — sentindo o movimento do meu corpo, o pé c a rua se juntando, se tocando. Quando Fritz trabalha com o tornar presente, a lentidão em dizer: “Agora tenho presente...” “Agora tenho presente...” e assim por diante, é um auxilio para se entrar em contato, posso dizer rapidamente o que vejo, sinto, penso, cheiro, e chegar a uma grande quantidade, sem estar em contato com nada, que é, na verdade, a forma como a maioria de nós vive a maior parte do tempo. Posso ver num instante que você está com a mão no joelho, mas “Para mim é óbvio que você está com a mão no joelho” propicia uma pausa na qual posso entrar em contato. Principio a ver a diferença entre o que geralmente faço, e o ter presente. Essa lentidão é apenas no início, como diminuir a velocidade para pegar outra estrada. Quando faço coisas/ora de mim — um escritório, um jantar, um vestido ou um jardim — tendo presente o que estou fazendo, não há separação, não há distância entre mim e o que estou fazendo, não há apatia. Há inter-ação. Eu estou envolvida. Não tenho um plano a cumprir, passo a passo. Eu me movo passo a passo e o modelo toma forma, sem imagem da forma final. A forma de cozinhar as batatas pode mudar enquanto eu as descasco e descubro mais sobre estas batatas e seu potencial. Ou a forma de cozinhar pode mudar por causa de alguma outra mudança — o forno não está funcionando, ou alguém chega para jantar e precisa sair logo depois. Isso não é difícil quando estou livre, movendo-me, tendo tudo isso presente. Não fico perdida” com as mudanças. Elas são incorporadas. Co-operação. Gosto das mudanças, sem fazer delas e de mim uma coisa, e a “rotina chata” é impossível. Esta também é a maneira de co-operar com as pessoas — e a maneira pela qual pode vir a existir a viva e calorosa sociedade co- operativa, que tantos (de nós) desejam. Um vestido começado de um jeito pode adquirir outra forma, parecendo fazer isso sozinho, embora na verdade a minha tomada de consciência esteja se movimentando junto com o material, e o material e eu estamos interligados. Aquilo que estou fazendo, com madeira ou pedra, muda de forma, ou de contorno, ou de modelo à medida que entro em contato com as qualidades da madeira ou da pedra. Se quero uma parede, a pedra e eu faremos uma parede, mas muitas coisas nessa parede não serão conhecidas enquanto ela não estiver completa. Sem forçar. Deixar acontecer. Quando estou pintando, às vezes penso que sei qual a cor que desejo usar a seguir. O pensar surge do meu condicionamento, surge do passado. Não presente. Às vezes, começo a mover o pincel em direção à cor que penso desejar, mas a minha mão move o pincel para outra cor — quase como se o pincel movesse a minha mão. Acabo de me lembrar do Fritz dizendo a um pintor em Esalen: “Enquanto o pincel não se mexer sozinho, você não estará pintando”. Fazer dessa maneira as coisas fora de mim — de modo que as coisas participem... Vocabulário, gramática e conceitos estão contra mim quando tento descrever esse fluxo intercombinado. Eu poderia fazê-lo melhor com as mãos e os braços... tenho a imagem de uma máquina de puxa-puxa. Sim, algo assim — os braços de metal e o puxa-puxa em constante movimento, parecendo ser um todo. Não se pode realmente acompanhar o que está acontecendo. Não sou “intelectual” quando faço as coisas dessa maneira. Intelecto e o resto do organismo que é mim estão funcionando juntos, com o intelecto desempenhando um papel menor — essencial e menor. Então, “aceitar” a mim mesma e a vida é impossível. Eu sou eu mesma e sou vida — e estas são afirmações tolas e imprecisas com respeito àquilo que é. Não há eu, não há mim — não há “eu mesma”, não há “vida”. Quando “entendo o sentido” no nosso mundo fictício, isso geralmente significa que aceitei os valores daqueles que me cercam, que eu penso da mesma forma que eles. Como foi que o significado de sentidos foi transformado em pensar, chegando a julgamento e opinião? Sentido é algo pré-verbal. Como criança, eu sentia a minha fome, sentia a aspereza do temo de sarja grosseira do meu pai, e a suavidade do rosto da minha mãe, antes de conhecer as palavras que rotulam tudo isso. Eu sentia. Agora, quase só uso palavras e não sinto nada. Quando digo que estou surpresa, ou que fiquei surpresa, ou que ficarei surpresa se — não estou sentindo nada, e muito menos “surpresa”. “Vazios, vazios, vazios — nada!”, dizia uma mulher alemã usando o guarda-chuva para golpear os livros nas prateleiras das bibliotecas. As palavras que escrevo não são as palavras que você lê. Seguramente temos de nos colocar de cabeça para baixo e inverter nosso modo de ver a vida. As luzes do prisma estão estranhas hoje. Na minha janela ainda há vermelho, laranja, amarelo, verde, e em outro lugar, também começando da direita, azul, branco, amarelo e laranja. Na minha escrivaninha, uma larga faixa de amarelo fundindo-se num largo vermelho — e a um centímetro daí uma faixa longa e estreita de vermelho-claro, amarelo forte e verde com uma aura violeta ao longo da borda. Há também uma forma de bala na base da janela, com vermelho na ponta, uma pequena faixa amarela, um pedaço verde, azul e um final violeta. Um pouco adiante, um pequeno quadrado vermelho. Uma faixa de vermelho-vivo, brilhando como o lago ao sol, começa dentro de um prisma e chega até uma bolacha que está no peitoril. Cruzando essa cor, há uma profusão de cores fortes, com um verde mais largo no meio. No começo, onde ele começa, há uma mancha amarela, e faixas em ângulos retos... Enquanto descrevo, tudo se transforma. O pequeno quadrado ficou amarelo de um lado. O violeta é — era... Antes de conseguir colocar no papel, transformou-se de amarelo em rosa. Agora, a mancha vermelha está laranja de um lado, e o verde está entrando no quadradinho. Sobre a mesa, as faixas largas desapareceram. A “vara” ainda está aí. Enquanto escrevi a outra mancha desapareceu — e depois reapareceu. Não consigo acompanhá-las. Fiquei tentando e fiquei com dor uc uabeça. Vou descansar e apreciar. Faço isso... O momento de fazer e o momento de escrever não são o mesmo. Nunca podem ser. Este é um verdadeiro “impossível”. Uma lei do meu ser da qual não posso fugir, assim como não posso fugir à necessidade de ar. Alguns minutos atrás, levantei-me e escovei os cabelos, prendi-os com fivelas de prata. Notei, então, que estava vestindo um pijama de flanela e botas. Com o pijama eu dormi e acordei. As botas foram acrescentadas quando os meus pés esfriaram. Quando fiz isso, fui inocente. Meus pés estavam frios. Calcei as botas. Quando notei, enquanto escovava os cabelos, não fui inocente. Tive pensamentos sobre, como se aqui houvesse mais alguém. Fantasia. Ninguém está aqui. Meus pensamentos não têm nada a ver com agora, mas com um possível futuro — como sentir vergonha por não “fazer direito” alguma coisa, ou tomar isso uma virtude, rindo, fazendo “graça”, se alguém viesse. Alguém veio, na minha fantasia. Ninguém está aqui. Exceto eu. Não, não há exceção. Eu também não estava aqui. Não estava aqui da mesma forma que antes. “O constrangimento é a forma mais branda de paranóia.” Eu fui paranóide. Ainda sou, um pouco. Não voltei à inocência de antes. Sinto tristeza. Essa inocência, de ser e fazer (funcionar) de maneira apropriada para mim, se foi. Eu me sinto como se. Como se eu devesse. Como se eu devesse me trocar. Como se eu devesse me trocar agora. Junto com essa inocência perdida, sinto um pouco de orgulho pelas últimas sentenças, em vez de simplesmente apreciar — o que de fato eu faço. O orgulho é um artefato. Eu fiz alguma coisa. Divisão, não um todo. Notei que em muitas famílias hippies, ou tribos, as crianças são “deixadas à solta”. Em parte, isso é bom. As crianças vestem roupas ou não, como bem entendem. Também pulam no colo de uma mulher, ela querendo ou não, a criança ali fica até que tenha vontade de sair. Tive uma sensação de mal-estar (em mim) em relação a isso, sem ter a coisa muito clara. Ela “quer” a criança ali na cabeça dela (a mulher). É uma regra. Ela continua pseudo-vivendo em sua cabeça, enquanto fica contando que está muito cansada. Ela se faz de aceitadora do homem que a deixou (“para ir transar as coisas dele”), por meio de suas palavras, enquanto a voz está negando. Qualquer que seja a sua experiência em drogas, depois ela a intelectualiza. Como a minha amiga drogada me contando que tinha visto, e depois dizendo: “Então o que todos nós temos de fazer é...”. Às vezes uma pessoa que experiencia a liberdade após trabalhar no “lugar quente”, e pouco depois diz: “Então o que eu tenho de fazer é...”. O que eu “tenho de” fazer? O que eu tenho de fazer?” Nada. Apenas estar presente. O fazer (sem pensamento prévio) se faz por si só. Ponho a minha mão esquerda no meu pulso direito. Minha mão esquerda é o sujeito, meu pulso direito é o objeto. Ainda segurando o pulso direito com a mão esquerda, pego um pedaço de papel com a mão direita. Minha mão direita se tomou o sujeito, o papel, o objeto. Junto as palmas das mãos — não há sujeito, não há objeto. Não há divisão. Agora, já escrevi bastante. Não quero fazer mais nada sentada nesta cadeira. Quero sair daqui. Quando o fizer, saberei o que quero fazer em seguida. A primeira coisa que fiz foi tirar as botas. Elas estavam pesando. Já revelei coisas demais sobre a Gestalt. Agora (por exemplo) todo mundo que ler isto saberá que o dominador e o dominado de George não eram ele mesmo. Isso pode ser mal empregado. Mas, diabos, tudo pode ser mal empregado. Se pusermos “cuidado, pode ser prejudicial se mal empregado”, na areia, na água, nas folhas, mesas, pessoas, pias, papel, escada, carne, peixe, café, pessoas — sem exceção — seria uma chatice, mas estaria correto. Como as palavras me dão medo. Quando fui indicada como uma das que continuariam o treinamento, pensei em “terapeuta” e fiquei com medo. Quando o Fritz disse “líder”, fiquei com medo. Quando o Fritz disse “supervisora”, fiquei com medo. Não as palavras, os meus conceitos do que elas representam. Fantasias. Duas e meia. Comecei o dia de forma errada, não corrigi, e hoje saiu todo errado, mesmo que tudo tenha dado certo. *** Dia seguinte, dormi muito tempo, fiz algo por pouco tempo, dormi muito tempo, fiz algo por pouco tempo. Os períodos de sono tomaram-se mais curtos e os períodos de fazer tomaram- se mais longos, sem eu forçar. À noite, me senti bem — desperta e firme/leve e presente. Tenho vontade de escrever sobre outra coisa. Estou me chateando. Fritz: Se você estiver se chateando, faça-o também — na sua cabeça ou no mundo de fora — e volte refrescada. “O que irá abrir a porta é consciência e atenção diárias — consciência de como falamos, do que dizemos, de como andamos, do que pensamos” — Krishnamurti. “O continuam de tomada de consciência é fundamental.” Fritz, que na primeira semana passava duas horas por dia trabalhando conosco nisso — e era apenas uma introdução. Quase jpmpre, quando Fritz diz a alguém: “Você tem presente” (seja o que for que a pessoa esteja fazendo com as mãos, com a voz, com a boca ou qualquer outra coisa) a pessoa pára de fazer. Então Fritz diz, com paciência e compreensão: “Eu só perguntei se você tinha isso presente. Não lhe disse para não fazer”. Estou com vontade de botar aqui algo que não é daqui, e se estou com vontade, a coisa tem seu lugar. Eu a escrevi no ano passado. John Warketin gostou. Seu corpo de editores não gostou. Vou procurar: *** Recordo-me de quando, nos meus tempos de criança, acabava de tomar todo o leite e me sentia maravilhosamente feliz cuspindo saliva no copo e bebendo-a novamente. Eu ficava fazendo isso até que alguma outra coisa me atraísse, e na vez seguinte que tomava leite, fazia novamente. Isso aconteceu até eu ter tirado disso tudo que pude, e não senti mais atração. Quando meu filho tinha cerca de um ano, certa tarde ele tirou sua soneca de costume, mas não ouvi seus ruídos de despertar na hora de sempre. Pouco depois, fui verificar. Estava em pé no berço, mexendo nas fraldas à procura de alguma coisa marrom-dourada que tinha saído dele; em seguida, cobriu uma das barras do berço com o material, total mente absorvido, como um mestre escultor. Ficou entretido por algum tempo. Algumas das barras tinham sido completadas. Seu interesse e sua felicidade davam gosto de ver. Na sua total concentração, ele não tinha notado o som da porta se abrindo e não notou que eu estava ali. Quando falei com ele, ele olhou para mim e soltou um leve som de satisfação, que não tinha nada a ver comigo, exceto o fato de ele estar expressando-o para mim. Mais recentemente, estive com uma família de seis crianças inglesas, sendo que a mais nova tinha três anos. O menino vivia com o nariz escorrendo. O muco ficava pingando sobre o lábio superior. Ele estava cheio de riso contando-nos algo que tinha notado, e lambia o muco do lábio a cada três ou quatro palavras, sendo que um dos grupos de palavras foi: “Me parece muito estranho...”. Me parece muito estranho que as nossas importâncias estejam tão fora de lugar, que geralmente não gostamos muito de ter o nariz escorrendo, e limpá-lo vem em primeiro lugar, antes de qualquer outra coisa. Mãis ou menos na mesma época eu queimava uma porção de lixo num barril de metal no fundo do quintal. Era um dia úmido de primavera, um tanto frio. O fogo estava glorioso. Eu estava muito feliz com todos os aromas e cheiros e sons e cores da primavera, e com o fogo ardendo. Meu nariz começou a escorrer. Revirei os bolsos. Não havia nada neles. Pensei: “Preciso ir até em casa buscar um lenço de papel”. Então pensei: “Por que preciso? Eu não ia quando era criança. Eu evitava ir para casa de todas as formas possíveis”. Limpei o nariz no braço. A sensação foi boa — o nariz apertando-se contra o braço (eu me tocando), o frescor, a umidade, apreciados dentro de tudo que eu estava apreciando. Contei isso a uma das minhas amigas “livres”. Ela fez força para não parecer revoltada. Quando era criança, como eu gostava de fazer cocô no bosque que havia do outro lado da rua! Eu não devia fazer isso: eu devia voltar para casa e usar o banheiro. Mas, enquanto o banheiro tinha sido interessante no começo, agora já não havia nada de novo nele, e ele não tinha os odores de folhas vivas e folhas podres, a fragrância de muitas coisas crescendo. Eu nunca me cansava disso. Levantar a saia e evacuar. Eu abaixava a cabeça para ver o que vinha saindo de mim, encantada pelo jeito que a coisa vinha, pelo plop! chegando ao chão, pelo odor que saía. Quando não saía mais nada, eu ficava de lado e limpava o traseiro com algumas folhas. Nos dias seguintes, às vezes, eu voltava para ver aquela parte de mim que tinha deixado lá, notando as mudanças. Às vezes eu chegava ao local por acaso e pensava: “Sim, estive aqui’’, e seguia meu caminho. A urina também era fascinante. Não me lembro de tê-la bebido, mas certamente brinquei com ela e às vezes lambia os dedos. Os adultos diziam que essas coisas eram “ruins”. Mas eu ainda era suficientemente jovem para conhecer o meu próprio prazer, embora não pudesse afirmá-lo contra os meus pais da mesma maneira que o filho da minha irmã fez. Ele tinha uma mãe diferente. Quando o menininho estava com três anos (1920), os pediatras diziam que as bananas faziam mal para as crianças: as crianças não deveríam comê-las. Minha irmã e eu entramos num quarto e vimos a criança comendo uma banana. Minha irmã, seguindo os pediatras, e não a si mesma, disse: “Ugh! Ruim!” e estendeu a mão para pegar a banana. A criança sacudiu a cabeça fazendo “Não” para a mãe, ao mesmo tempo que sorria e esfregava o estômago. “Nhum — nhum!”, dizia ela, pondo a mãe em seu devido lugar. Em Samoa, alguns meses atrás, um policial nativo disse: “As crianças simplesmente não olham para as coisas como nós olhamos”. Certamente que não. Quando a minha filha ainda não andava, certa vez no verão ela se arrastou nua pela areia e pela relva, ocupando-se durante quatro horas. Aconteceu de eu olhar pela janela e vê-la pegar algo que não pude ver o que era, botar na boca, e mastigar, com evidente satisfação. Ela voltou a fazê-lo mais algumas vezes. Achei melhor ir ver o que era. Quando cheguei, ela colocou outra coisa na boca. Apertei o queixo dela, e um sapinho cinzento pulou fora. Havia montes deles em volta. Estava claro que ela já tinha comido alguns e gostado. Não a culpei, mas eu me senti infeliz em relação a esses sapinhos sendo comidos vivos, e encorajei-a a explorar em outras direções. As crianças são exploradores, testadores, descobridores. De que outra maneira eu posso descobrir a mim? Um menino de cinco anos me disse: “Sou mais esperto do que as pessoas pensam!”. Perguntei: “De que maneira?”. Sua resposta foi uma canção, um verso solto no ar: “Faço coisas perigosas e não me machuco!”. Não lhe disse que não deveria fazer isso, nem que deveria. De que outra forma pode haver liberdade? De que outra forma pode haver alegria? *** Esta manhã houve novamente nm grupo de três horas. Depois, saí. Foi importante sair da cabana. Notei que eu estava querendo não ter o grupo na minha cabana, revirando-a, estragando o silêncio e o meu estar só. Quando voltei, escrevi uma carta, e enquanto escrevia percebí que as pessoas ainda estavam aqui. Eu sabia que elas não estavam na cabana, mas sentia como se elas estivessem. Na minha cabeça, eu as imaginava “lá fora” — nos lugares em que tinham estado. Fantasias. Eu poderia chamar um feiticeiro ou espalhar algum pó mágico para livrar-me delas, e acreditaria que com isso elas teriam ido embora. Agora elas ainda estão aí. Vamos ver o que posso fazer. Não basta dizer: “Na minha cabeça não há ninguém exceto eu”. Se eu o dissesse com bastante freqüência talvez viesse a crer, mas seriam também apenas uma crença, e eu não gosto de crenças. Eu não estou aqui. Aqui está apenas mim. Estou sentada sobre almofadas numa cadeira giratória. Uma cadeira giratória feita de carvalho velho e forte. Que orgulho é esse que faz com que eu queira que vocês saibam que não se trata de uma moderna cadeira de escritório? Estou datilografando. Vejo a máquina, e os meus dedos saltando sobre as teclas. Quando noto que os vejo, começo a senti-los, enquanto antes não os sentia. Agora a dança deles está mais viva, e eu gosto disso — me sinto mais leve ao fazê-lo. Meu ombro esquerdo está doendo, se faz sentir pesado e machucado. Parei de escrever e entrei nisso. Então notei a máquina com seu barulhinho, e voltei a escrever. Desta vez vou desligar... É surpreendente como aquela dor primeiro se deslocou e depois se dissolveu; tudo que fiz foi prestar atenção a ela. Agora ela não me aborrece mais. Está vindo para o meu pescoço... Quando prestei atenção — mais nada — nenhuma tentativa de fazer nada — ela tomou o meu pescoço, passou para a minha cabeça. Continuei. Simplesmente fiquei com ela. Ela desapareceu no meu ouvido, do lado oposto ao que principiara. Charlotte está sentada no ancoradouro, lendo. Agora, não está lendo mais. Gosto da Charlotte. Gostaria de estar com ela. Mas ela falaria. Eu não lhe disse isso. Os dois ainda não se juntaram até agora — meu gostar e não-gostar, o “mas” apagou o gostar. Não pensei “Gosto da Charlotte e ela falará”. Eu me afastei do meu gostar por causa do falar dela, e me afastei do falar dela por causa do meu falar; não tenho encontrado Charlotte. As pessoas ainda estão aqui na minha cabana, porém mais tênues, agora, e estão muito quietas — sem se mover, sem falar. O lago é todo círculos. Pequenos na laguna, maiores na parte maior. Dentro da laguna, há círculos de peixes. O peixe toca a superfície e começa uma série de círculos, expandindo-se a partir do pontinho até chegar a um tamanho fabuloso. Os círculos giram enquanto se expandem. Três deles girando — lá se foram, três novos, se foram, agora cinco — sete — acabei de olhar para a direita e ali há oito círculos — onze — girando, morrendo, novos começando. Não posso contá-los. Posso apenas estimar — e então isso muda. Do outro lado do lago, onde há uma casinha, os bordos se tomaram quase todos dourados e cor-de-laranja. Coloco-me naquela casa e ando dentro dela, sabendo que ela não é assim, mas gostando de estar ali sozinha. Ainda não estou sozinha, aqui — só sei que estou, não sinto que estou, embora as pessoas de hoje de manhã quase já se tenham ido. Não posso mais vê-las, mas elas ainda estão presentes numa espécie de presença que não é a minha própria. Recosto-me e olho pela porta. Tanta quietude. É o que noto em primeiro lugar. Os ancoradouros estão quietos. A casa de barcos também. Gosto dessa quietude. Sinto um descanso. Então noto fumaça subindo na margem oposta — e o movimento da água — um movimento tênue, mas movimento. Tremeluzindo, em alguns lugares. Neste instante não gosto desse movimento. Gosto da quietude. Sorvê-la, absorvê-la... E agora a minha cabana está quieta. Sinto a quietude. Cadeiras, paredes, piso, janelas — todos quietos. E eu vivo dentro disso. Meu rosto sorri. Eu sorrio. Eu me sinto toda sorrindo. Agora não há ninguém aqui, fora eu. Não preciso mudar o grupo para outro lugar. Basta deixá-los sair completamente quando eles se vão, e ficar aqui sem eles. A minha respiração fica mais profunda por si só. Sinto-me bem. Não um bem de julgamento ou moral. Simplesmente bem. Pronta para o que vier e se não vier, tudo bem. *** O que é Gestalt? Quando eu não sabia, não podia dizer, e agora que sei, não posso dizer. Sinto que já faz muito tempo que não percebo nada dentro ou fora de mim, e é hora de despertar. Estou fora de contato até mesmo com as pessoas que tive recentemente. Isso costumava me incomodar. Então notei que é como um carrossel. Ele dá voltas e voltas e voltas, e um desses dias vou conseguir ficar em cima. Sem tentar. Neste instante, sinto que estou meio dormindo e gostaria de acordar. *** Depois do grupo. Sinto-me tão maior — não, mais alta. Tão mais alta do que costumo me sentir em relação à máquina de escrever. Já senti esse “mais alta” em outras ocasiões, e mesmo assim sinto-me nova. Mais jovem. Mais força através de mim, mesmo na minha cabeça que tantas vezes é deixada de fora. Movimento. Muitos carrosséis voltaram esta manhã. Agora, já se foram. Não importa. Olhei-os de novo, e eles voltarão — contanto que eu não os persiga, nem a outra coisa qualquer. Não é de admirar que os meus lados esquerdo e direito não combinem. Estou torta. Aqui há um homem que parece criança e é muito infantil Eu fluo com (aprecio) sua semelhança com crianças, e ignoro a sua infantilidade. Eu não o confronto com isso. Fritz o fez, esta manhã, e três horas depois o homem estava se sentindo bem e dizia: “Eu sobreviví!”. Allen trabalhou com um fragmento de sonho. Quando ele ocupou o lugar quente, expressou sua frustração em tentar se dar bem com o pai. “Não há nada a fazer a não ser ficar afastado dele. Fiquei duas horas escutando-o pacientemente...” e assim por diante. Então ele trabalhou com um fragmento de sonho e em meia hora, talvez, percebeu que seu pai tinha mudado, que ele (Allen) não deixava seu pai mudar, tinha a velha imagem dele, e usava essa velha imagem do pai como desculpa para as coisas grandes que ele (Allen) queria fazer e não fazia. Lendo tudo isso cozinhado como eu escreví, parece que não há vida. A coisa toda parecia uma aurora boreal brilhando e reluzindo no horizonte e no céu. Da raiva e frustração, ele passou para amor e suavidade. A maior parte do tempo eu fui real, indo pela intuição, pelo movimento espontâneo de mim mesma, respondendo no momento ao momento. Isso não dá trabalho, e “trabalhar” com a pessoa é absurdo. “Brincar” também é uma palavra errada. Nossa linguagem dividida não tem uma palavra para o que sucede realmente. “Obrigado.” “De nada.” Papéis atribuídos pela língua. “Obrigado” — beneficiário. “De nada” — benfeitor. Um por cima, outro por baixo. Em língua havaiana: “Mahalo.” “Mahalo” Não há distinção entre doador e receptor, apenas a consciência de um fluxo intermediário. Não há por cima. Não há por baixo. Não há papéis atribuídos pela língua. A felicidade é, sem pensamentos a respeito. No final, quando Allen estava amoroso e suave, fiquei comovida. Não deixei que essa comoção se revelasse. Pensei (sic): “Não o traga para dentro”. Então, não saí e não o deixei entrar. Por que fiz isso é irrelevante. Poderia buscar o porquê infinitamente, ou chegar a uma resposta, e ainda seria irrelevante. Quando começo com “por quê?” afasto-me mais e mais daqui. “Porque” vai e vai, com um porquê atrás do outro, e faz tanto sentido quanto se eu dissesse queew sou porque Bismarck ficou louco da vida com o Kaiser e introduziu o serviço militar obrigatório. Isso fez com que meu avô saísse da Alemanha, na época, sem o que é improvável que ele tivesse conhecido e se casado com minha avó, que na época tinha vindo da Irlanda para Londres. Algum outro rapaz a teria levado primeiro. Isso é verdade. Mas, e todos os outros acontecimentos e porquês e antecedentes nas vidas dos meus avós e pais, e no mundo em que (cada um) (todos) viviam? E no final, eu não teria sido se meus pais não se tivessem juntado e me produzido na época em que o fizeram. Eu não sou a minha irmã, que teve os mesmos avós, e nem sou nenhuma das outras possíveis crianças que poderíam ter sido. Eu não saí, e não o deixei entrar. Foi o que fiz. Sinto-me triste. Noto que estou contendo a minha tristeza. (“Não seja emotiva! “) Agora estou triste por não conseguir sentir tristeza. Então, que seja esta tristeza. Esta tristeza está aqui... Olhos turvos. Dor no peito. Minhas pernas estão tristes. Exploro, e descubro tristeza em mim inteira. A minha cabeça começa a se mover da esquerda para a direita, desenhando um sinal de menos. Então, para cima e para baixo. Esse movimento desenha uma linha que corta o menos e o transforma em mais. Mais. Além de onde eu estava. Agora a tristeza está mudando — está indo embora. O que aparece em mim é mais vitalidade, mais vida. Agora aparece o riso que é uma espécie de sorriso para o mundo. “Deus vê tudo e sorri.” Nada importa. O passado se foi. O futuro não é, assim como o passado não é. Eu estou aqui e Eu estou livre. No momento nada importa e não faço nada errado. Ou certo. *** Não vivo muito com imagens de mim mesma. Faço isso quando me vejo como uma velha senhora trêmula. Ainda tenho regras. Elas tendem a ser erradas. As regras são para os jogos. A vida não é um jogo. A vida não é séria, tampouco. A vida não é algo que se pode falar sobre. A vida é. “Gestalt não é regra.” “Tomar-se presente é o ABC da Gestalt” — Fritz. “Tomar-se presente é o ABC e também o XYZ. Todo o resto — tudo provém disso.” Harry Bone, psicólogo e psicoterapeuta, o único membro não-psicanalítico do Instituto de Psicanálise Alanson White. Tomar-se presente é sem qualquer intenção. Nem boa. Nem má. Até aí fluiu facilmente. Não apresse o rio. Isso sempre me faz recordar. Eu estava começando a apressar, a dizer mais. Por que tento expressar o que não posso? Estou esperando tomar a minha descoberta acessível a outros. Querendo “ajudar”. Tentando. Quando tento, tenho uma meta. “Caramba!”, disse eu em voz alta, com um tom de descoberta e alívio. Quando uma árvore cai na minha direção, eu como. Não estou tentando. Não estou me ajudando. Eu simplesmente o faço. Se eu penso, enquanto penso não faço nada. Então, pode ser que seja tarde demais. "Observação, compreensão, ação.” — Krishnamurti. Qualquer regra é um engodo. “Deixe as pessoas serem ” Com a regra na minha cabeça, deixo outras pessoas serem. Não me deixo ser. Eu faço algo para mim — deixar os outros serem. Deixe-we ser. Com essa regra na minha cabeça, a minha auto-imagem se realiza, e eu massacro a mim mesma e ao mundo — mesmo que seja suavemente — com boas intenções. *** Lembro-me que duas vezes em cinco anos escrevi para o Carl: “Lembre se, você também é gente”, quando para mim estava claro que ele estava se excluindo — xxxxxxxxando-se. Estando presente Deixe estar esses x, para me lembrar que eu estava principiando a explicar. Juntar as coisas com ganchos. Em vez de deixar as coisas se juntarem da forma que bem quisessem, em mim, em você. “Em você.” Dou um sorriso zombeteiro. Quem é esse você? Eu não sei quem é você, se é que há alguém em mim. Este lugar é uma casa de loucos — uma casa onde a loucura pode vir à luz e começar a clarear. *** A imagem da “velha senhora” realmente aparece. Não tanto em termos do que eu “deveria ser”, mas em termos do que “não deveria fazer”. Como, eu não deveria ser boba. “Deveria ser” mais séria. A seriedade é algo diferente. No domingo, enquanto fazíamos uma graaaaande torta de maçã, falei ao Glenn dessa minha seriedade que parece errada — não a quero. Sei como ela entrou na minha vida. Isso não adiantou para afastá-la. Como poderia ser possível? Agora estou me apegando a ela. Fumaça sagrada, vejo como não me deixo ser. *** Em algum lugar, mais ou menos uma página atrás, vi algo a meu respeito que não quis expor a ninguém mais. Sou capaz de trabalhar com isso. Pensei (nhanhanhanhá). “Não quero escrever isso para ninguém. Posso cuidar disso depois, sozinha.” Cortei isso de você — e de mim também. Agora não sei o que é. Se eu buscar, a coisa se afastará mais e mais. Uma vez ela já veio à tona. Como um peixe, ela virá novamente, e quando isso acontecer, reconhecerei. *** “índios”, foi o que passou de relance pela minha cabeça enquanto olhava, com consciência de ver, as últimas quatro ou cinco linhas do último parágrafo. Não tenho idéia do que quer dizer. Em seguida veio “Hora de comédia”. “Eu quero.” Alívio da minha própria seriedade. Sinto-me rindo por dentro. Pingos de chuva que gotejavam na água agora dançam sobre ela. Sorrio. Sinto-me rindo. O que se move, como os galhos dos arbustos, ri comigo. As ervas ao vento riem comigo. Os barcos virados no ancoradouro, e o próprio ancoradouro, não estão rindo. Bobos! Coisas bobas. Não sabem rir. As folhas dos bordos balançando estão rindo. “Hora de comédia” proporcionada por mim. Não preciso de mais nada. Meus olhos estão dançando. Então, em seguida, tento ligar isso a “índios”, e pelo fato de ter tentado, desconfio. Uma voz interior fala alto e forte: “Certo, porra!”. Um verdadeiro amigo. Neste agora, quando não estou mais louca, o lugar não é mais uma casa de loucos. *** Estou com vontade de dissertar. “A todos vocês jovens que estão aí”. *** Sempre julguei as novelas algo tolo. Todas as coisas estúpidas feitas pelas pessoas que participam delas, sem as quais não haveria livro. Sempre? Por seis meses li novelas, sempre daquelas com mordomos e confusão. As heroínas pediam tudo que queriam, e telefonavam para quem queriam e a pessoa sempre vinha. (Se alguém não viesse, eu pulava essa parte.) Eu era essas heroínas (sem as emoções delas) e tinha um descanso maravilhoso enquanto lia. *** Quando eu tinha dezenove anos e a minha irmã 25, envolvemo-nos num triângulo com o marido dela. Certa noite na cozinha, minha irmã e eu pusemos tudo em ordem. Estou começando a achar que essa expressão caseira é muito apropriada. Não me lembro muito dos detalhes. Lembro-me sim que a minha irmã e eu nos jogamos nos braços uma da outra, e gritamos. Então, simultaneamente, nos vimos como personagens desses melodramas dos quais costumávamos rir, e explodimos em gargalhadas, juntas. Então notamos o marido dela ali parado, e captamos tudo que ele expressava sem palavras — sentindo-se por fora, pasmado com o fato de estarmos juntas, intrigado com o que estava se passando. Tudo isso parecia estampado nele e podia ser resumido num “Isso não deveria ser desse jeito! Esse era o jeito de viver. Entrar rapidamente, sair rapidamente, e não acumular as coisas para fazer delas um livro. Como ríamos das situações exageradamente dramáticas — inclusive as nossas. Por que ambas nos casamos com românticos? Não posso falar pela minha irmã, que se casou jovem. Eu sei que desisti de procurar o homem que queria, e me contentei com um que tinha mais coisas de que eu gostava e menos coisas que eu não gostava, e as-coisas-de-que-eu-não-gostava pareciam mais fáceis de levar do que com outros. *** Muito mais tarde. Ray começou a trabalhar com seu fragmento de sonho num estado de raiva e confusão. Ele esteve com raiva e confuso durante boa parte do tempo de trabalho. Acabou saindo com um reconhecimento claro de que tinha continuado com um padrão infantil em relação ao pai depois de seu pai ter mudado, e que ele se apegava à tristeza em relação ao pai e usava-o como desculpa para não realizar o seu próprio potencial. No final, estava completamente esclarecido e amoroso, acariciando a almofada que tinha anteriormente estrangulado (tal como tinha estrangulado o pai no sonho), enterrando o queixo nela: “Não quero soltá-la”. O que pode ser dito é dito com tanta facilidade, agora. Antes, não esperei a hora de dizer. Tenho estado à procura de um livro de bolso. Queria mandar para o meu filho algumas histórias desse livro. Emprestei alguns livros para diversas pessoas daqui. Quando não consegui encontrar esse livro, pensei que poderia estar com outra pessoa. Esta tarde, quando despertei de uma soneca, “vi” um envelope, e as minhas mãos colocando páginas do livro no envelope. Não procuro mais o livro. Tudo que notei está aqui em mim. Quando não estou em contato com isso, estou fazendo alguma coisa errada. Depois disso, notei o gosto ruim na minha boca do qual não tenho gostado, e me perguntei o que poderia fazer. Imaginei uma maçã. (Ou uma maçã se imaginou, conforme me identifico com meu eu organísmico ou meu Eu intelectual.) Ao descascar a maçã, pensei em “inverter” uma das ferramentas da Gestalt. A maçã começou a me descascar. Uuuugh. Não gostei. Continuei descascando a maçã, com muito mais consciência e cuidado do que antes. Se isso fez alguma diferença para a maçã, não sei. Gostei da mudança em mim. *** Ontem à noite, Bill ocupou o lugar quente com um sonho que o deixou ansioso. Não há verbo para isso em inglês.*(* Em português existe o verbo “ansiar”, embora seu significado não seja exatamente o mesmo de “estar ansioso”, conforme se entende em jargão psicológico. Ansiar = ter anseios. Estar ansioso abrange o ter anseios, porém é mais amplo; e ter ou estar com ansiedade. N. do T.) Estranho. Procurei no dicionário. Deriva de angere — estrangular, sufocar. Bill falou monotonamente, como sempre. Tenho dificuldade em escutar o que Bill diz. Fritz disse: “Estou sendo bloqueado pela sua voz. Acho que temos de entrar nisso antes de conseguir qualquer outra coisa”. Bill tomou-se a sua voz, experienciou como se sufocava, e assim por diante. Fritz disse: “Agora sufoque o meu pulso — não confio a você o meu pescoço — e fale enquanto faz isso”. Bill fez, e a sua voz saiu grave, cheia e ressonante. Ele pôde ouvir a ressonância, sentir as vibrações. Nós também. Subitamente pareceu um Bill muito diferente, não só mais forte — mais interessado — como querendo ouvir mais. Um pequeno barco a motor está se movendo rapidamente pela água, como se a estivesse cortando, com uma onda forte atrás de si. Um homem se levantou e se curvou sobre a popa, parecendo estar fazendo algo com a onda. Depois de trabalhar cerca de meia hora com sua voz, Bill trabalhou com seu sonho de estar roubando um banco. Fritz pediu-lhe que fosse o banco. Bill descreveu a si mesmo como banco — estrutural e funcionalmente. Esse banco me causou tédio. Fritz disse: “Não há gente nele. Não creio que esse seja o banco que você roubou”. Notar o que não está aí. Quando estou numa cidade poluída, tenho consciência de que a poluição está e que o ar puro não está. Mas em Torrrance, quando eu me aborrecia com o que estava lá e com muitas coisas que não estavam, houve um não-está que me entristecia e que eu não sabia o que era. Finalmente, percebi. “Não há negros e não há judeus”, foi o que me veio à cabeça. Era fácil verificar a ausência de negros. Vi apenas um, varrendo o supermercado. Judeus — como é que eu podia verificar? Pensei em meia dúzia de nomes judeus comuns, e procurei na lista telefônica. Pensei em outros seis ou sete, e procurei. Nenhum deles estava lá. Procurei na lista dos distritos vizinhos, como Hermosa Beach, e encontrei em todos eles cada um dos nomes muitas e muitas vezes. Torrance era uma cidade realmente estranha. Um ano morando lá, e o único acontecimento de que ouvi falar foi uma reunião do WCTU*(* WCTU — Womar’s Christian Temperance Union: União Feminina Cristã de Sobriedade. Grupo que se formou nos EUA por volta de 1879, que acreditava que o ensino da sobriedade e moderação em bebidas alcoólicas ajudaria a reduzir os efeitos negativos do álcool. – N. do T.). Nunca vi tanta cortesia junta, e senti que estava vivendo num cemitério de fantasmas corteses. Eles nunca me notaram. Fluindo suavemente eles passavam por mim, dizendo “Com licença”, como se eu fosse um arbusto ou uma árvore. Todos se vestiam com roupas de cores leves. As vozes eram todas macias. Tudo igual. Tudo igual. Tudo igual. Certo dia, quando estava trabalhando com o Zen — Torrance realmente me atraiu para isso — fui a pé para a cidade e cada pessoa era única, viva, original, brilhantemente vestida. Reluzindo. Posso vê-las agora, ali, da mesma maneira que as vi, mas falta algo. Não sei se elas estavam se encontrando ou se cada uma estava completamente imersa em seu próprio mundo, fora de contato com os outros. Naquela hora eu sabia o que estava ou não estava se passando. *** Deke costumava mostrar os filmes do Fritz com bastante freqüência — manusear o projetor. Ele está cansado disso e não quer mais fazer. Agora duas outras pessoas estão fazendo o serviço. A coisa é nova para elas — usar a máquina, e os filmes também são novos. Elas querem vê-los. Contadores mudam. Secretárias mudam. Cozinheiros mudam. As vezes há confusão. Nada fatal. E não há muita possibilidade de uma ordem muito estabelecida. *** Fritz fala em “preencher os buracos” na personalidade de uma pessoa. Não gosto de como isso soa — como se fossem preenchidos de fora, com algo estranho. Não é isso que ele/az. Para mim, parece mais entrar num fluxo — liberar o fluxo que tinha bloqueado. *** Esta manhã, ao entrar, Clara estava irritada. Nas palavras dela: “Emputecida”. Mais tarde, ela chorou dizendo que estava sempre “acalentando” as pessoas, e que não recebia nada de volta. Depois de trabalhar, ela se sentiu aquecida e acalentada e acalentando. Naquela noite na cozinha, Fritz perguntou: “Hoje é seu aniversário?”. Quando respondi que não, ele disse: “Você está com cara de aniversário”. Não me sentia no meu aniversário, e não sabia o que ele queria dizer. Pouco depois, eu disse que me sentia ridícula por aceitar dinheiro fazendo algo de que gostava; isso foi quando o homem da Universidade de British Columbia disse que me mandaria um cheque pelas três horas que tinha passado com Irwin, num encontro de grupo; não me pareceu certo. Eu não tinha trabalhado. Não senti que era trabalho e fui paga pelo que recebi do encontro. Fritz disse, meio em tom de gozação, que uma das regras da Gestalt é uma coisa qualquer (me esqueci o que era), e a outra, cobrar o mais caro possível. Escutei algumas das outras pessoas presentes, então fiquei divagando na minha cabeça. A mesma voz profunda, parecendo vir do peito, da qual tinha gostado antes, interrompeu dizendo: “Eu fui paga”. Uma segurança tão completa e um sentimento tão amigável nela. Não havia dúvida a respeito disso. Eu sentia um amigo dentro de mim, e não precisava de amigos em nenhum outro lugar. Aconchegada. Fui para a cama com essa sensação. O grupo desta manhã começou com uma mulher com quem eu não queria trabalhar. Pensei: “Não, de novo!”. Duas coisas que consegui trabalhando com ela foram: perceber que eu não tinha medo da raiva e dos gritos dela, e ela conseguia ter alguma percepção no final. Uma mulher do grupo fazia-lhe recordar a sua madrasta. Na verdade ela não via a mulher presente, quase não via, e a odiava. Depois de uma hora, ela viu essa mulher. Estendeu o braço para tocá- la e disse: “Sinto você diferente”. Acariciou a cabeça da mulher, em contato com seu toque e então abarcou-a. Após algum tempo, riu: “Nunca pensei que iria fazer isso!”. Esse não é o fim, para ela, porém é mais um passo. Não notei muitos erros. Senti-me bem em ser mais forte quando isso se fez necessário. Então, Ray, que ontem trabalhou tão bem, pulou para o lugar quente. Eu queria uma pausa maior. Não cheguei a dizer. Diversas vezes, notei algo — e duvidei da minha observação. Uma vez notei algo, e não dei prosseguimento. A minha observação foi clara — eu simplesmente a abandonei. Todos nós perdidos em confusão. Deixei outra pessoa sugerir algo que não fez sentido para mim, e eu mesma cheguei a concordar. Então Fritz entrou. Ele captou a confusão de Ray — fê-lo descrever o que era, e então dançar a confusão — e então inverteu a dança. Ping! Ray captou a mensagem da sua dança, e para mim ficou claro que era a mensagem do sonho. Então, a partir da sugestão errada que a mulher deu e que eu aceitei, Kolman ficou aceso e pronto para trabalhar. Trabalhou maravilhosamente com o Fritz. No final, todos os certos e errados pareceram estar bem. Eu tinha notado muitos erros que cometera, e Fritz apontou um deles quando disse para sempre pegar o “fenômeno” (A confusão de Ray). Eu não me torturei com os erros e nem ri deles, nem planejei não contê-los da próxima vez. Não fiz nada, e tudo estava bem. Eles tinham sido notados —junto com o bem que veio do erro maior. Nenhum esforço. Nenhuma amolação. Nenhuma troca. Simplesmente a presença deles. Quando as pessoas saíram, elas tinham ido, e eu fique i só. Não sinto que é um aniversário, um dia de nascimento. Sinto-me mais como um feto crescendo rapidamente. Hoje, por alguns instantes, senti que estavam crescendo as minhas orelhas — senti isso fisicamente, como se as orelhas estivessem crescendo mesmo, e que até mesmo estavam sendo abertos canais nelas, ou melhor, os canais estavam se abrindo sozinhos. Por alguns instantes, senti-me como se estivesse sendo toda “tomada”, por algo em constante mutação. Até mesmo o meu pescoço e a minha cabeça estiveram envolvidos — como se houvesse mais sentimentos e sensações em ambos. Eu quis ser inteiramente tomada, nesse instante, sentir tudo — e renascer. Isso não aconteceu. Entrei e saí de agonias suaves durante o dia inteiro — deixando-as vir e ir embora. Estou farta dessas agonias suaves, que tanto tenho tido ultimamente. Mas não quero livrar-me delas fazendo algo para me distrair, nem tomando nada. Não quero isso, porque então perderia o resto. E tão difícil estar simplesmente aberta para o meu “amigo”. Frequentemente peço, rogo ou suplico: “Venha, porraY'. Quando estamos em contato, quero segurar esse contato. Tentando dirigir o que não pode ser dirigido. Não deixando ser. Ontem à noite, entretanto, senti que entrei em contato até o ponto de saber que estava sendo entendida, que o “meu amigo” soube que o que eu realmente quero é parar com esse absurdo, e agora estou trabalhando com isso... Acabo de me lembrar que hoje, por algumas horas, senti que não estava trabalhando, não estava fazendo nada — enquanto estava sendo tomada por mim. Agora voltei ao olho intelectual — uuupa! Pensei que estava escrevendo eu *(*Jogo de palavras possível pelo fato de “eye” (“olho”) e “I (“eu”) serem homófonas. Ambas se pronunciam “ái” A autora teve intenção de escrever: “Agora voltei ao eu (I) intelectual” — e escreveu “Agora voltei ao olho, (eye) intelectual”.(N. do T.) Agora, estou me sentindo mais olho do que eu, e o que parecia absurdo voltou a ter sentido — ao sentir. Olho-eu vê. Então, meu jantar ficou pronto. Levantei-me e pus um pedaço de frango no prato, uma batata e algumas beterrabas. Enquanto fazia isso, o olho se sentiu amigável — como a voz que disse “Certo, porra!” ontem à tarde, e “Eu fui paga”, ontem à noite. Suponha que tudo isso seja absurdo! (Olho parece piscar.) Suponha que sim. Eu gosto mais do absurdo de dizer quem disse o quê (sejam filósofos, ou amigos ou inimigos), ler jornais, ou falar sobre, como se eu soubesse alguma coisa, ou adorar, ou deplorar, ou lamentar, ou repreender, ou elogiar, culpar, superior, inferior, celebrar o que não é digno celebrar — como mais um ano vivido ou vivido junto com alguém, esperando-se a celebração — ou comprar coisas para mostrar, ou fisgar amigos, ou ficar zangado, dócil, emputecido, simpático, tomar pílulas para solidão e dor, ser quente ou frio, tirar dez ou zero na escola, fazer-se de sábio ou fazer-se de tolo quando tudo o que se quer é... ***

NEVOEIRO Esta manhã não quis me reunir com o grupo. Não quero ter dois grupos de duas horas na semana que vem, em vez de um grupo de três horas. Dois grupos por dia. Isso não é vida. Não é a minha vida. Vou dizer para o Fritz. Quando pensei nas pessoas que estariam neste grupo, quis ainda menos reunir-me hoje com eles. Guy tinha acabado de começar a trabalhar quando Fritz entrou. Ele fez um trabalho muito bonito com o Fritz. Foi incrível ouvir uma voz envelhecida, (Guy é jovem) cantar seus pensamentos — uma voz linda. Eu não sabia que ele tinha essa voz. Então Natalie foi para o lugar quente. Eu estava ansiosa para trabalhar com Natalie. O trabalho com ela é tão lindo, e eu gosto tanto dela. Pete entrou e assumiu a direção. Tudo bem — ela possuía liberdade para isso, se e quando quisesse, e eu também tinha. As vezes eu o fiz. não com muita freqüência. Notei Pete atuando com seu eu de psiquiatra, misturado com o que tinha aprendido de Gestalt. Pensei em apontar o não-Gestalt. Não o fiz. Pensei em dizer para o Fritz: “Eu não estou interessada em treinar gente. Eu não estou interessada em trabalhar com psiquiatras. Não quero. Não vou’’. Sem brigas ou violências. Simples afirmativas bastam, de mim para ele, dele para mim. Quando as pessoas se foram, pensei nisso outra vez. Então me lembrei da minha fantasia desta manhã, de como tinha imaginado o grupo e como seria (não uma fantasia detalhada, mais como uma imagem), e não foi. Não sei de nada sobre amanhã. Não sei como serão dois grupos de duas horas. Quanto à parte de treinamento, o que me deixou aborrecida foi pensar o que eu deveria fazer, como ficar sentada com ar inteligente, e notar, e estar pronta para captar e indicar. Não gosto disso. De repente, percebi que não precisa ser assim. Notar, e deixar-me crescer, evoluir. Isso é tudo. Agora, estou fascinada para ver como isso funciona — o que vai acontecer. Deixar-me acontecer. Não tentar me dirigir. Os foras de hoje não importam. Eles estavam em mim esta manhã, antes de eu fazer e notar o meu fazer. Não podia ser diferente do que foi. Tudo está bem. Eu me sinto bem, com felicidade e antecipação misturadas, não forte, mas viva. Quando tento manter as coisas na cabeça (como lembrar-me de notar, lembrar-me de apontar os erros de Gestalt) fico com dor de cabeca. Essa razão é suficiente para não fazê-lo — além desse palavrão imundo e nojento, trapaceiro e vigarista, “tentar”. Sinto-me bem em estar tão livre dele quanto estou. Notar. Notar. Notar. Estar presente. Toda vez que o Fritz entra e trabalha com alguém, quando ele sai, penso: “Que ato bom de ser acompanhado!”. Sinto que ele seria capaz de notar se uma das minhas pálpebras não se movesse com a outra quando pisco; e se as duas se movessem juntas, ele também notaria. “Tento ao máximo não pensar.” Seguramente isso deixa lugar de sobra para notar. Assim que o Fritz deixou o grupo, ele se tinha ido. Não tento ser como ele, não fico aliviada por ele ter ido embora, não me entristeço por não ser Fritz. Quando ele sai, não fica na minha cabeça, e eu fico com as pessoas que estão aqui. Isso em mim está bem... Acabei de notar também que não me pergunto o que as pessoas irão pensar de mim, depois de terem visto o Fritz trabalhar. Eu sou eu. Ele é ele. Eu o abandono. Se não o fizesse, eu seria invadida. Se não tenho uma meta, como posso cometer um erro? *** Fritz, querido. O sentimento desta manhã de que ele nota tudo — como se ele tivesse feito ou fizesse isso o tempo todo. Neste instante, ele entrou por um momento e uma das coisas que disse foi: “Isso é novo em mim, a coisa da voz. Você notou esta manhã com o Guy? Estou deixando crescer orelhas”. Crescer, crescer, crescer. TORNAR-SE PRESENTE. “Agora estou num período letárgico. Tudo que consigo fazer são os grupos — nada mais.” Contei-lhe a respeito do fato de eu notar meus erros e não me incomodar, e ver o que freqüentemente surge dos erros. Fritz, encolhendo os ombros: “É claro. Os erros não importam”. Vi isso completamente, totalmente, vi tudo e sorri. Dez minutos depois: “O que você (eu) quer dizer com erros não importam!”, e pela minha cabeça passavam todos os tipos de erros que importam sim, é claro que importam. Então vi que não importam. Então que importam. Então que não importam. Então que importam. E agora, subitamente estou totalmente aqui, com o riso dentro de mim, que estava me fazendo falta. Meu marido: Alguma coisa importa? Eu: (alterando a mim mesma, para o choque não ser grande demais): Bem, não muito. Eu não tinha isso o tempo todo. Tinha isso com freqüência. Agora, “vejo” uma pequena estátua da coleção Brundage — Maya dando à luz Krishna. Ela está dançando. Agora estou tão flexível... Me senti assim, levantei-me para ver se era verdade. A parte inferior das minhas costas ainda está rija — pude sentir, e consegui apenas encostar os dedos no chão, não as mãos. Fora isso estou — sinto-me fluida e me movo com facilidade. E tão viva. Não me sinto sem peso sobre a cadeira. Mas quase, como se os meus ombros estivessem segurando o meu tronco, meu pescoço segurando os meus ombros, minha cabeça segurando o pescoço, e o que está segurando a minha cabeça, não sei, mas a sensação é ótima. Viro a cabeça de um lado para outro — nenhum incômodo. Menos de um ano atrás, algumas pessoas pensavam que eu era “nariz empinado”, quando tudo que eu tinha era um pescoço rijo. Èu me afastava dos ombros. Tenho certeza de que não o perdi. Aquela foi a última vez que alguém comentou. Folhas de bordos caindo das árvores e flutuando na brisa, às vezes subindo, mas no final pousando levemente sobre a água da lagoa, onde continuam flutuando, como margaridas. Em junho, aqui, trabalhei concretamente com meu peito, pescoço e cabeça. Onde estão eles agora? A minha voz! Só agora a deixo vir. As cordas esticadas irrompem — e a música corre As cordas frouxas são mudas — e a música morre Afinem o sitar.*(* Sitar = Instrumento de cordas, indiano. – N. do T.) nem muito alto nem baixo Minha voz é o meu sitar. *** Quanta coisa fizeram por mim essas duas semanas em que “fui líder” — coisa que eu tinha medo. Tudo se acerta. E por isso que não importa se faço algo errado. Percebi a isto enquanto cortava beterrabas. E a tentativa de não cometer erros e a tentativa de corrigi-los que estraga tudo. Tentar, tentar, tentar, quando sou feita desta maneira — como as aves voando. *** Ainda estou incomodada pelo “nada importa”. Não, não estou. Estava. Agora, enquanto ainda estou em contato com isso, vou escrever. Quando estou no lugar dentro de mim que sabe que nada importa, sou também cuidadosa, amorosa, sem pegar mais do que preciso, sem ambição, não-competitiva. Se há somente pão e manteiga, contento-me com pão e manteiga. O peito de frango frio, as beterrabas, e meia batata na manteiga tinham sabor de um prato dos mais sofisticados. Funciono bem. Sem tudo isso, seria errado o “nada importa.” No “nada importa” errado, subitamente tudo muda se a minha vida estiver ameaçada — ou mesmo que só pareça estar. É divisão entre “nada importa”, “contanto que” ou “amanhã talvez eu me arrependa pelo que deixei hoje”. A perfeição (tudo é bom) do “nada importa”, certo, não pode ser perturbada. Talvez amanhã eu não fizesse por você o que fiz hoje; mas ontem, quando fiz ou dei isso para você, ainda está bem. Não vou liderar nenhum grupo na semana que vem quando o Fritz estiver fora, e posso ir amanhã para Vancouver, passar o Dia de Ação de Graças (canadense — no começo de outubro) e ficar ali três ou quatro dias, ou uma semana se eu quiser. Enquanto eu não chegar lá, não saberei se quero. *** Sei que o estado que estou gozando agora (nem alto — nem baixo) pode não durar. Pode “ir embora” a qualquer momento — ou amanhã. Mas agora, acabei de lavar os pratos. Não os lavei. Eles se lavaram comigo, e eu apreciei a água, e espuma, os pratos e panelas; limpar os pedacinhos de beterraba do fogão foi como um milagre: eles estão aí — e não estão mais. Movimento do corpo. Todos os sentidos sentindo. Antes, quando preparei o molho, notei como foi fácil ler a receita, e as medidas não deram nenhum problema. Minhas mãos tremeram só um pouco, não o suficiente para ser um problema. Não havia incerteza no que eu estava fazendo. Após a reunião desta noite, eu estava indo para o bar de Lake Cowichan com o Guy. Os outros já tinham ido. O carro do Guy estava mais longe do que a distância que costumo caminhar com facilidade, mas não longe demais. Além disso, havia uma subidinha no começo, mas no final uma ladeira comprida para descer. Consegui. Enquanto andava, notei que caminhava com facilidade. A parte inferior das costas ainda estava rija, mas não houve dificuldade. O resto de mim estava livre. Quando chegamos ao carro do Guy, a batería tinha-se descarregado, e voltamos. Eu estava quase no fim da subida forte quando percebi que caminhava facilmente, respirava facilmente — falando enquanto andava... Que se danem aqueles médicos que há catorze anos me disseram para aceitar a minha condição tal como ela era, porque eu jamais iria melhorar. Escrevo isso e percebo que o meu “Que se danem” é leve e fácil, uma espécie de gozação. Não estou mais zangada. Costumava ficar zangada porque eles estavam me derrotando. Toda vez que eu dizia que ia melhorar — sabendo que estava fazendo progressos mesmo que os médicos não soubessem — quando o médico olhava para mim com compaixão (que eu apreciava — havia pelo menos uma dose de respeito) ou com desgosto por uma velha não aceitar o que era, eu me sentia como se colocassem um muro de quatro metros de grossura entre mim e a melhora. Agora, já não me zango com o médico que disse ter visto “centenas de casos” como o meu. Viu nada (sorriso irônico). Eles estão todos no passado do qual estou saindo. Sei que amanhã ainda posso escorregar e cair de volta, e os ganhos parecerão perdidos, mas a minha experiência de hoje à noite se faz sentir sólida. Se eu perdê-la, posso abandoná-la. Ela voltará. Meus olhos estão turvos. Não muito turvos. Apenas turvos como se fosse assim que devessem estar, e ficaram muito tempo secos, sem serem lavados adequadamente. Sei que se eu conseguisse soltar-me em mim (“repouso total”) meus tremores poderíam diminuir. Certamente, levei muito tempo para aprender a fazer isso. Nunca acreditei no diagnóstico de “lesão permanente no sistema nervoso central”. Lesão, sim. Permanente, não. Isto é, poderia ser permanente se eu não encontrasse saída, e se eu não desse suficiente atenção, mas não é necessariamente assim. Meus tremores têm estado muito brandos esta noite — não estão incomodando... Acabo de me lembrar do meu amigo da Califórnia, com quem falei por telefone há pouco mais de um mês. Não me recordo o que disse dos meus tremores, mas ele disse (querendo ajudar?) “Sei que eles incomodam você, não sei por quê.” Quando estão real mente ruins, cies me incomodam — como quando não consigo assinar cheques de viagem. O resto do tempo, sei que posso me livrar deles e quero. E bobagem tremer assim quando não se precisa. Geralmente não noto o inchaço do gânglio no meu pé, a menos que pense primeiro, depois noto. Não dói. Esta noite, estou notando o tempo todo, porque o sinto latejando. Não sei o que está havendo, mas a sensação é boa — como um ponto morto ganhando vida. Em julho notei um pequeno inchaço no meu pé esquerdo, que não havia antes. Em agosto, ele estava bastante grande. Perguntei o que era a um médico que veio para cá — não, meu filho perguntou. Ele tinha medo que pudesse ser câncer. Eu tinha certeza de que não era. Em todo caso, o médico disse que era um gânglio, e que podia ser tirado com pequenas palmadas, ou inserindo uma seringa para puxar o material para fora. Quando estava na Califórnia, Person to Person me levou a conhecer um cirurgião ortopedista que não gosta de operar, e prefere trabalhar de outras maneiras com seus pacientes. Ele disse a mesma coisa do tratamento quando lhe perguntei o que poderia fazer. Não era o que eu queria. Expliquei que queria saber o que eu poderia fazer. Ele me perguntou se eu já tinha entrado em contato comigo mesma a nível celular. Eu ainda não tinha. Ele me mostrou com os dedos a espécie de balão que se tinha formado, com um pequeno tubo entrando por baixo. Ele disse que o líquido entrava pelo tubo e se desidratava, e não podia voltar pelo tubo. Ele disse que se eu conseguisse deixar entrar algum líquido (líquido do corpo) no balão, então o material desidratado poderia se dissolver e voltar através do tubo. Trabalhei nisso aquela noite, imaginando o que ele tinha descrito e ao mesmo tempo estando diretamente em contato com a região inchada — da mesma forma como se tem contato com o dedão do pé. Apareceu um pensamento espontâneo: Não pode ser tudo da mesma espessura — deve haver alguns pontos mais fracos. Em seguida apareceram vários desses pontos na imagem, um deles maior do que os outros, em cima. Retive este ponto na cabeça — simplesmente retive. Fiquei surpresa quando uma pequenina gota de água apareceu ali, brilhando como um minúsculo laguinho. Então, através do ponto mais fraco, um leve brilho surgiu dentro do calombo. Enquanto escrevia isto, subitamente me lembrei da minha mãe, quando meu pai e eu saímos num Ford Modelo T, em 1919, para viajar de Nova York para a Califórnia. Meu pai nunca tinha guiado uma distância maior do que trinta milhas de casa. Meu pai e eu nunca tínhamos passado de Tarrytown, a minha mãe uma vez tinha ido para Ohio de trem. Naquela época, não havia muita gente atravessando o continente de carro. Não tínhamos coragem de dizer, às pessoas que encontravamos pelo caminho, aonde estávamos indo. Primeiro, dizíamos: “Quedas de Niágara”. Quando lá chegamos, passamos a dizer “Cleveland”. Quando chegamos a Cleveland, tivemos coragem e dissemos que íamos para Kansas City. Ao chegar lá, fomos ainda mais corajosos (ou audaciosos) e contamos às pessoas que estávamos indo para a Califórnia. Quando escrevo a respeito do que está acontecendo com o meu corpo, e chego ao calombo com o qual nem tenho estado trabalhando, sinto-me como nos sentimos quando passamos a dizer que estávamos indo para a Califórnia. Ainda não acreditavamos que chegaríamos lá, e certamente não sabíamos se iríamos conseguir. Não tenho trabalhado com o gânglio desde que voltei para cá. Há tanta coisa com que trabalhar que eu teria de ser dezenas de pessoas — talvez centenas — para dar conta de tudo. Felizmente, quando algumas coisas se resolvem, outras se esclarecem junto, ou pelo menos começam a se esclarecer. Felizmente, sou um corpo interligado. Acabei de pensar: “Se todo o resto de mim se esclarecesse ou estivesse a caminho de se esclarecer por si só, talvez eu pudesse começar a ver se consigo fazer nascer dentes”. Isso parece algo extremado, mesmo para mim, mas eu não diria que é impossível para mim — o mim que não é mim, que real mente é mim, ou realmente é. Onde está o “meu amigo”? Ele não falou comigo hoje, mas neste instante estou com um sentimento amigável que me toma inteira. Ainda sinto falta dele. Gostei da voz dele. Não penso que “ele” seja masculino, mas possivelmente o componente masculino em mim, misturado (mas não confundido) com o feminino. Relativamente à minha voz em outras ocasiões, esta voz é masculina — mas não masculino em si. Na nossa língua, tem de ser ele ou ela, e nenhum dos dois serve para mim. Notei que os índios não têm aparecido muito ultimamente. Acho que os deixei atrás. Então, de repente, eles voltam. Quando eu voltar de Vancouver, qualquer coisa poderá entrar aqui, e certamente não sei o que será. Só sei que se eu tiver escorregado para trás, não será para sempre. O que é para sempre? Voltei ontem à noite — cinco dias e meio fora. Esperei duas horas e meia em Nanaimo. Na estação de ônibus, uma doce velhinha, vestida com um casaco verde, chapéu cor-de-rosa e suéter, não queria partilhar sua rosquinha com uma vespa. A vespa persistiu. Ela derramou meia xícara de café nos sapatos tentando esquivar-se da vespa, e acabou desistindo. A vespa pegou o que queria, que era muito pouco, e foi embora. Ela podia ter comido o resto da rosquinha. Não comeu. Em Duncan, esperei duas horas. Um jovem indiano de turbante rosa-claro me convidou para tomar uma cerveja. Eu estava cansada e me senti bem ao voltar. Hoje, perdi terreno. Em Vancouver, a minha flexibilidade continuou. Marion notou a diferença no meu andar. Notei que pequena parte das minhas costas ainda estava rija, e trabalhei nisso, com êxito. Hoje, não consigo trabalhar em nada, então fiquei respondendo cartas. Quando senti sono, fui para a cama, e acordei péssima. A minha urina queima. Isso não tem acontecido. Hoje me sinto estragada. Enquanto respondia as cartas, mais e mais tinha vontade de escrever isto — e agora que estou escrevendo, nada acontece. Tenho pensado zombeteiramente — às vezes, quando lembro deste escrever —“Parece cada vez mais um diário”. Então, o que é que tenho contra diários! Na minha infância, todo Natal eu costumava ganhar um diário com capa de couro. Eu não escrevia nada, mas gostava de senti- lo, e de olhar para ele. Isso foi tudo que aconteceu entre mim e os diários até que meu marido insistiu para eu manter um, o que fiz por algum tempo, até que me enchi. Ele continuou mantendo, ano após ano, porém o chamava de “livro de lugares-comuns”, o que o elevava a nível de literatura. Ainda assim era um diário. Ano após ano. Perguntei a Marion, que é meio índia (uma avó), qual é a diferença mais importante entre índios e brancos. Ela respondeu: “Trabalho. O índio trabalha e descansa — goza. O branco diz ‘continue trabalhando.’ Ele se zanga quando o índio não faz isso”. Cansada. Doída. Mole. Mole. Gasta. Fatigada demais para subir até a Casa, fraca demais. *** Loucura. Loucura. A esta altura, desisti e me deitei sobre o sofá. Por algum tempo, notei as minhas dores, e tensões, e não parecia levar a nada. Não estou habituada a isso. Prossegui — apenas notando — e finalmente comecei a suspirar — um pequeno alívio. Daí por diante, o alívio foi maravilhoso. Levantei, fui até a Casa sem esforço, gostei de estar lá, me senti bem, e apreciei o jantar Eu podia ter feito isso de manhã. Eu podia ter feito isso ontem à noite. Não é de admirar que hoje eu tenha me sentido estragada. Eu estraguei — me estraguei. Não estou me lamentando. Apenas. É isso aí. Neste instante, estou me sentindo bem com o mundo girando e girando e girando, e tenho outra chance de pegar o carrossel. *** Tenho sentido que a Gestalt está sendo cada vez mais estragada aqui. Não estava vendo de maneira suficientemente clara para fazer algo. Ontem vi. Hoje, fiz. Estávamos tendo uma reunião de grupo grande, que para mim estava — bem, durante quatro ou cinco dias tenho sentido que a coisa está uma várzea. Esta noite senti a mesma coisa. “Escolha a pessoa que você sente que lhe pode dar maior apoio.” O que quer dizer “apoio”? Que tipo de apoio? Para que eu quero apoio? Então os pares se juntam com outro par, e contam suas “forças” e “fraquezas”. Eu me confundo toda com isso. O que é “força”? O que é “fraqueza”? Todo mundo se “diverte” muito e talvez aprenda alguma coisa, um pouquinho. Fritz chegou tarde de São Francisco. Parecia feliz, mostrando brochuras do Garbage Pail, junto com as provas das ilustrações de Russ Youngreen. Gostei dele. Um pouco disso, e a coisa continuou, dividindo-se os grupos para amanhã de manhã. Fritz disse que cada pessoa devia escolher o terapeuta com quem menos gostaria de trabalhar. Dei risada. Fritz ouviu a minha risada e não ouviu meu riso. “Não é piada”, disse ele. Não era — e era — para mim. Levei-o a sério, o que ele queria dizer, e o que se passou dentro de mim é mais do que posso colocar em palavras. Em parte, a minha risada foi surpresa — o inesperado. Em parte, me senti bem com o desafio e fiquei surpresa por ter me sentido bem. Quando as manias dele acabaram, eu disse que gostaria de ter algo como a semana de “continuam de tomada de consciência”, que ele deu em junho. Não esperava que ele captasse logo. Ele captou. Ele disse que era o ABC da Gestalt, e que sem isso “a gente não passa de classe média”. Ele pediu que qualquer uma das pessoas novas, que ainda não tinham trabalhado com ele, que viesse e ocupasse o lugar quente. “Você sempre tem alguma coisa presente — preste atenção ao que é.” De certa forma, para mim não há nada de novo nisso: “Agora tenho presente...” ou “Agora estou com dor no pescoço” ou “Vejo o rosto do Jack” ou seja lá o que for, e talvez acrescentar depois se a consciência é agradável ou desagradável. Ficou tão claro como as pessoas que ocuparam o lugar quente começavam a evitar logo que tomavam consciência de algo desagradável. Preciso verificar isto em mim — e por que fiquei cheia do “diário”. O que eu evito quando estou com outras pessoas. Sinto-me bem, forte e excitada para entrar nisso. É melhor eu ter consciência de mim mesma amanhã, quando as pessoas que não me querem como terapeuta vierem, amanhã de manhã, com instruções (do Fritz) para trazerem à luz os seus ressentimentos. Quantos serão honestos e o farão? Quantos farão trapaça, e irão para quem querem? Não tenho idéia... Neste instante, tive a fantasia de todas as pessoas vindo a mim. A fantasia é gozada, e seria gozada se fosse real. O meu riso é. Eu não o fiz. Ele aconteceu. Na minha fantasia de todas as pessoas vindo para cá, todas tinham expressões diferentes, desde sorriso até alegria. Vi a postura dos corpos. Posturas individuais... Neste instante, pensei: “Suponha que todas elas não me queiram, e venham direitinho, e acabem não concordando com o que há de errado em mim”. Tudo fantasia. Não tenho idéia do que acontecerá amanhã. Ontem e hoje, senti vontade de ir embora. Eu sabia que não iria durar, mas seguramente senti o tal do “Ugh!”. Tanta diversão gostosa. Isso eu posso ter em qualquer lugar. Agora estou feliz com algo que é uma violação ao meu amor de “voluntária”. Tanto pelo meu amor. Pffft! Dou nele um beijo de adeus. Algumas pessoas não tiraram nada do “ABC da Gestalt” do Fritz. Ficaram entediadas. Algumas pessoas tiraram muita coisa, e se interessaram muito. E assim que as coisas são. Aqueies que tiraram algo gostam de mim por ter sugerido. Os que não tiraram nada, provavelmente gostariam que eu não tivesse sugerido, e podem aumentar suas queixas contra mim. Uma mulher não tirou nada e disse que não adianta nada para a terapia dela (ela é terapeuta), porque ela quer fazer as coisas acontecerem — e ao mesmo tempo tem fé suficiente no Fritz e em mnim para prosseguir. Um homem que ocupou o lugar quente e se perdeu no meio disse não estar sentindo falta de nada, mas parecia determinado a encontrar aquilo de que não sente falta. As coisas estão mais vivas, de um modo diferente. Sinto-me bem por ter seguido a verdade em mim. Muita gente usa os grupos para dizer coisas que de outra forma não diria, e eu gosto de dizer diretamente para a pessoa, sem o apoio do grupo. Eu poderia facilmente dizer ao Fritz o que queria, fora do grupo. Mais facilmente do que dentro do grupo. Então, disse-lhe no grupo. Não foi difícil, mas eu esperava algufna dificuldade — que não esperaria se falasse só com ele. Em todo caso, isso eu não evitei. Enquanto as pessoas estavam no lugar quente (uma de cada vez) aprendí muita coisa observando-as — e observando o Fritz com elas — e ao mesmo tempo, estava apreciando a diferença entre eu em junho neste exercício de tomada de consciência, e eu agora (mais consciente), sentindo outra vez aquele florescer e crescer, no ponto onde tinha me sentido encalhada. Não total mente encalhada, mas sentindo estar crescendo em algumas direções e não em outras. Também me sinto bem por ter me chateado com as palavras do Fritz, dadas para o pessoal novo (acho que ele também se chateou — ele desistiu) e esta noite, ele fez o exercício de tomada de consciência em lugar das palestras. Sinto-me um pouco triste por ser hora de ir para a cama. Agora não estou com muito sono, mas se eu não for dormir a uma da manhã, e já é quase uma da manhã, não estarei em boa forma para tomar consciência às oito, quando as pessoas chegarem. Kolmam não estará aqui — este é o único que sei. Ele disse que lamentava não ficar no meu grupo a semana inteira. Respondí: “Nenhum ressentimento?” e me pareceu, pela sua resposta, que ele se ressentia mais em relação a outro terapeuta, embora suas palavras apenas tenham dito que ele precisa esclarecer um enorme ressentimento com X, e que iria fazê-lo. Deverá ser uma manhã interessante. Pessoas que não gostam de mim (pelo menos como terapeuta — isso não quer necessariamente dizer que não gostem absolutamente de mim), das 8 às 10, e das 10 às 11 teremos o grupo de treinamento adiantado com o Fritz, que ele deixou de lado no final de agosto, e no qual sempre aprendi muita coisa. Dia seguinte. Gostei (da perspectiva) do risco. Esta manhã, antes das oito horas, entrei numa espécie de loucura. Todo esse negócio de “ressentimento” pareceu absurdo — como crianças brigando por causa de algo que nunca aconteceu em lugar nenhum exceto em suas (respectivas) cabeças. Tive vontade de rir e sair para passear na chuva. Com as pessoas. Mas isso não seria justo com elas, pensei. Você precisa levá-las a sério. Então fiquei séria, e foi uma atuação, uma encenação. Então vá em frente e ria... Não estava mais com vontade de rir, então isso passou a ser encenação. Qualquer coisa que eu pensasse virava encenação. E claro. Presa na armadilha. Não quero atuar e não consigo ver nada para fazer a não ser atuar. Uma atuação ou outra. Não quero nenhuma delas, e em cinco ou dez minutos terei de... Final mente, sentei-me e juntei meus pedaços — com o que se passava dentro de mim — entrei novamente em contato comigo mesma e com o mundo — a luz se fez no céu, e em mim. Às oito e dez, pensei: “Será que esta manhã todo mundo está ‘sendo ruim’ — chegando tarde por estarem ressentidos pelo fato do Fritz ter voltado a hora de começar para as oito, em vez das nove?” Comecei a ler uma fantasia de ficção científica que escrevi há nove anos. Ontem à noite Deke mencionou que havia muita Gestalt nela. Eu não sabia sobre Gestalt quando esta história se escreveu. Eu me agarrara à Gestalt — depois de anos de trabalho para descobrir como tinha perdido o meu antigo talento de escrever ficção. Quando consegui toda essa informação, fiquei sabendo o que não fazer com os outros e seus escritos. Eu ainda não conseguia escrever ficção. Então, busquei conseguir. Finalmente, “eu” escrevi esta história e enquanto acontecia, lembrei- me de como escrevia dessa maneira quando era jovem, quando costumava ficar deitada no chão e escrever histórias, às vezes contando aos meus pais e à minha irmã o que acontecia na história enquanto ela se escrevia por si só. Eles gostavam, e não me diziam que eu devia escrever outras coisas. Ao ler a história agora, fiquei muito interessada, e já eram oito e vinte quando notei que ninguém vinha vindo, e pensei: “Talvez não venha ninguém”. Senti-me desapontada. As pessoas novas não estiveram em grupo comigo, mas há toda aquela gente “antiga” que esteve. Nenhum ressentimento? Eu não podia acreditar... Acabei de notar que eu esperava que eles estivessem ressentidos com a falta de excitamento, com a lentidão — o tipo de coisa que ocorreu ontem à noite com o Fritz quando ele estava demonstrando o ABC da Gestalt. Se para alguém fosse isso, eles poderiam ficar abalados por se ressentirem disso contra mim. Especulação. Qualquer coisa que eu pense é especulação. Especulação minha. Eu não sei de coisa alguma. Quantos outros sentimentos tive esta manhã quando não veio ninguém? Continuei lendo a história e me senti bem ali sentada, gostando. Deixei-me sentir toda sonolenta, e então não me senti mais sonolenta. Então me senti sonolenta outra, vez, e fiquei chateada por ninguém ter vindo e por ter acordado, quando poderia ter continuado a dormir. Então percebi o que tinha aprendido da expectativa da vinda deles — o logro da encenação; ficou claro, e mais uma vez eu soube que podia apenas seguir a minha tomada de consciência esteja se movimentando, e não teria sentido falta dela como senti. *** Estou com vontade de botar aqui a história “Janela para oTurbilhão” (Window to the Whirled). Eu sabia que tudo que eu estava trabalhando antes tem relação com o que faço agora, mas não pensei na história como Gestalt antes de Deke mencionar o fato. Gestalt, sim, é claro — até na forma como foi escrita.

Janela para o Turbilhão* (* “Window to the Whirld”, reimpresso da revista Fantasy and Science Fiction, fevereiro, 1962. (N.do E.) Anne era jovem e encantadora — cabelos louros e lisos, olhos verdes cor do mar, pele de marfim, e um corpo que não precisava ser modificado em nenhuma parte. Uma moça como essa, e as duas coisas que ela queria eram uma máquina de costura com pedal e a sua avó. Por que, se ela podia ser atriz de TV ou qualquer outra coisa que a maioria das moças teria vendido a alma para ser. Anne dizia que iria se chatear. O que podia ser mais chato, perguntavam-lhe, do que uma máquina de costura e uma avó? Essa não era a opinião dela. Sua avó tinha tido uma máquina de costura com pedal e às vezes deixara Anne usá-la. Quando os pés de Anne estavam sobre o pedal, um na frente, outro atrás, pedalando, ela sentia que estava indo para algum lugar. A avó sempre tivera a mesma sensação. Não comprava uma máquina elétrica porque, dizia ela, não agüentaria ficar parada no mesmo lugar. Anne nunca se chateava quando Vovó estava por perto. Elas sempre iam juntas a algum lugar, mesmo quando estavam sentadas na sala com todo mundo. Então, um dia Vovó desapareceu, e Anne chorou. Mas então enxugou as lágrimas e saiu à procura da Vovó. Quando chegou à Nova Inglaterra em busca dela, sentiu-se muito desanimada e foi quando viu um leilão na frente de um galpão, e parou para se distrair, incapaz de conter seu desespero. Ninguém sabia qual seria a próxima coisa a ser trazida do galpão e colocada diante de todos para que fizessem seus lances... E de repente apareceu uma velha máquina de costura com pedal. Anne começou seus lances com vinte e cinco centavos. Ninguém mais participou, e ela ganhou a máquina. E de repente, sentiu que os seus pulmões tinham parado de respirar. Uma máquina de pedal! Talvez este fosse o jeito de achar a Vovó. Quando os homens a trouxeram, ela imediatamente começou a trabalhar; procurou nas gavetinhas, uma de cada lado, e... seguramente! Numa delas havia um livreto de instruções, todo rasgado, mostrando como lidar com a máquina. Na outra gaveta havia uma pequenina prateleira de madeira com buracos para os carretéis, e havia um carretel em cada buraco, todos com linha — azul, verde, branco, vermelho, amarelo. As linhas coloridas brilhavam de maneira estranha. Ela nunca seria capaz de colocá-las na agulha, mas não podia desperdiçá-las, então usou o carretel de linha branca. Havia também uma grande bobina de linha branca e ela a usou para a parte de cima. Então, tirou um lenço do bolso, dobrou-o e juntou as duas bordas. A luz do sol era filtrada por um grande olmeiro, salpicando Anne e a máquina de luz e sombra. Ela usou o lenço como pano de limpeza. Havia uma latinha de óleo numa das gavetas, e ainda havia óleo dentro. O cheiro era bom demais para ser óleo — parecia perfume; na verdade, parecia flores. Por que a Vovó não tinha levado Anne consigo? Isso doeu quando Anne pensou, e a dor a incomodou tanto que não conseguiu fazer nada. Então, ela pensou nisso de maneira diferente, sem ênfase, indagando: “Por que a Vovó não me levou com ela?”. E desse jeito, a pergunta tinha resposta, mesmo que ela ainda não tivesse descoberto qual era. Começou a perceber que estava sendo lógica demais. Vovó não era. E que estava tentando demais, coisa que a Vovó sempre tinha dito que era ruim. “Simplesmente faça as coisas”, explicava ela, “e elas saem do jeito que você quer — embora você não soubesse que era, assim que queria.” Era o que tinha acabado de acontecer. Se ela não tivesse parado de procurar a Vovó, não teria notado o leilão e não teria achado a máquina e começado a pensar do jeito certo... Se ela pudesse ter escutado apenas a Vovó, pensou Anne. Mas havia todas as outras pessoas dizendo a Anne que a Vovó não era muito boa da cabeça. Agora a máquina de costura estava brilhando como os trilhos de uma ferrovia, levando-a a... Quando ela pensou nesse “a” e aonde ele podia levar, balançou a cabeça, tirou o cabelo da testa, e continuou a costurar. A Vovó dizia que qualquer coisa sobre a qual se pudesse pensar era insignificante em comparação com o que podia acontecer se a gente deixasse; e que, pensando na coisa desejada a gente estreitava os caminhos, de modo que só podiam acontecer coisas pequenas e comuns. Então as pessoas diziam: “É claro. Vida é isso. O que você esperava? Tapetes voadores?”. Quando Anne estava dentro de si mesma e da Vovó, ela esperava; mas quando estava dentro de outras pessoas ela decidia ser razoável e não esperar demais. Agora estava se sentindo cada vez menos razoável — ou mais razoável de uma outra maneira. Quando a máquina de costura ficou ajustada para cantarolar em vez de estalar, Anne pediu aos homens que a pusessem no seu carro, e foi embora. Quando chegou a uma encruzilhada no caminho, pegou a direção que mais lhe agradou. Ao passar por uma cidade notou uma loja e entrou para comprar uma cama de desarmar e uma caixa de gelo, sem perceber que tinha mudado de rumo desde os meses que passara dormindo em motéis e comendo em restaurantes como todo mundo. Ela só sabia que estava estranhamente feliz e que queria voltar para o oeste. Mas não tinha pressa. Parava quando tinha vontade, e usava a máquina de costura. As coisas que ela fazia eram cada vez mais lindas. As pessoas queriam comprá-las, mas ela as dava de presente, dizendo que eram preciosas demais para serem vendidas por causa do que havia ali costurado. Ela própria não sabia o que dizia, mas sabia que estava certa. As pessoas queriam que ela ficasse, e lhe ofereciam um bom local de trabalho, mas ela sempre colocava a máquina no carro e ia para outra cidade. E mais outra. E outra. Até que às vezes se perguntava se teria algum sentido, ou se simplesmente estava revivendo um conto de fadas absorvido na infância. As vezes lhe parecia que o conto de fadas estava ensinando as pessoas a viver, mas outras vezes ela possuía dúvidas a respeito disso. Então se lembrava: “Não pense!” e parava, e apreciava tudo em volta de si. Por acaso chegou à Califórnia onde o tempo geral mente era bom, e começou a levar a máquina de costura em seus passeios para as montanhas, desertos ou lagos, e ali ficava, sentada ao sol pedalando, o que não teria sido possível com uma máquina elétrica que a gente liga na tomada. Ela deixava a máquina para dar uma nadada, ou escalar uma montanha, e estava se tomando cada vez mais forte e flexível. Também estava se tomando mais linda — talvez radiante seja a palavra — mas não notava isso: estava fascinada demais pelo fato de estar aprendendo. As coisas continuavam vindo à sua cabeça. Ela começou a entender matemática e física e muitas outras coisas que não se tinha dado ao trabalho de saber porque as julgava tolices. Pensou em se mudar para um lugar onde houvesse uma universidade, para poder estudar, mas quando conversou sobre isso com um homem que estava visitando a cidade, um professor de Berkeley chamado Stan Blanton, ele disse: “Por Deus, não faça isso! Você perderia o que tem, e levaria cinqüenta anos para aprender o que não tem”. Era como a Vovó falava, e Anne se sentiu bem com ele. Ele era uma pessoa bacana, mas um tanto triste. Tinha cinqüenta anos de idade e não fizera metade das coisas que queria fazer, por causa das coisas que “tivera de” fazer, e não tinha certeza de que as coisas que tinha feito tivessem valido a pena. Por isso era difícil continuar a fazê-las, ele estava o tempo todo cansado, e pensava que era porque ele era muito cônscio de sua idade; então, apesar de há anos não se sentir tão jovem quanto ao lado de Anne, e ela ser a melhor coisa que já lhe tinha acontecido, ele foi embora. Anne ficou então um pouco triste, pois ela parecia ter possibilidades que outras pessoas não tinham. Sentiu-se separada de algo. Porém, sempre podia juntar as coisas dentro de si resolvendo-as na máquina de costura. Podia usar uns acessórios que ainda não tinha experimentado, pensou. Adaptou um deles à máquina, e pegou uma longa tira de pano para ver o que dava. Mas por mais cuidadosa que fosse ao costurar em linha reta, mantendo separadas as duas pontas da tira, ela sempre acabava com as pontas juntas, como um anel torcido, de modo que o lado de fora entrava para dentro e o lado de dentro saía para fora, até não se poder mais dizer o que era fora e o que era dentro. Anne pensou em brincar com as linhas que estivera economizando, então pegou o carretei de linha amarela e colocou-o no lugar dos carretéis, pegou o verde e o colocou na parte superior, de modo que as linhas amarela e verde se mesclassem como botões de ouro no campo. Mas quando começou a pedalar, o pano escapou — e as linhas verde e amarela continuaram se costurando entre si. A coisa parecia não ter fim. Os dois carretéis estavam sempre cheios. E em vez de linhas, estava aparecendo agora um pedaço de pano. “Oh, eu adoraria ter uma capinha feita deste pano!”, pensou ela, e continuou a pedalar. E o pedaço cresceu e ganhou uma forma muito especial, e ela começou a ver o contorno da sua capa, embora ainda fosse um pouco confuso ver o dentro e o fora se misturando. Então pareceu que ela havia acabado a capa, ou que a máquina tinha acabado, ou ambas, pois ela não tinha certeza de quanto tinha saído dela e quanto da máquina, e às vezes sentia que ela e a máquina não eram duas coisas separadas. As máquinas não são como a natureza, pensava ela. Na natureza a gente se sente entrando, e sabe o que é ser árvore, rocha ou lago. Mas máquinas! Até mesmo as máquinas de pedal não eram algo em que a gente pudesse entrar. Elas não são naturais. Mas agora já não tinha tanta certeza. Um ninho de passarinhos é natural. E feito pelo passarinho. Um dique de castor é natural. E feito pelo castor. E as máquinas são feitas pelos homens, mesmo quando são feitas por máquinas porque os homens fizeram as... Quando a capa ficou pronta, ela cortou os fios que a ligavam à máquina, sentindo que estava cortando um cordão umbilical. Então levantou-se, jogou a capa sobre os ombros para descobrir como entrar nela, e se envolveu com ela. Alguém bateu à sua porta, e ela disse: “Entre!”. E era Stan Blanton. “Que bela capa!”, disse ele; e não era para dizer isso que ele tinha viajado mais de duzentas milhas. “Não é mesmo bonita?”, disse Anne. “Mas não consigo decidir qual é o lado de dentro e qual é o de fora, e qual estou vestindo!” Ela deu um pequeno safanão na capa enquanto falava, e o lado de dentro e o de fora pareceram se misturar num rápido movimento, e então a capa desapareceu. E Anne também. Stan não foi capaz de dizer o que sentiu primeiro, ou se sentiu tudo junto, misturado, como as cores de um delfim morrendo. Ficou atônito, desapontado, intrigado, deliciado e muitas outras coisas que não se deu ao trabalho de enumerar. Mas quando essa mistura toda acabou, estava desolado. Tinha feito um tremendo esforço para romper as forças das convenções que diziam que ele devia manter-se afastado de Anne, um tremendo esforço para soltar-se e vir procurá-la. E agora ela desaparecia! Sentou-se numa cadeira com a cabeça entre as mãos e os cotovelos apoiados sobre a máquina de costura, e tentou compreender o que se passara. A resposta parecia torturantemente próxima. Mas subitamente ele começou a pensar em outras coisas. Anne tinha desaparecido. Jovens desaparecidas e homens mais velhos são matéria para um escândalo. Era melhor voltar a Berkeley rapidinho. Depressa desceu as escadas, pegou o carro e voltou para casa. Maybelle não estava lá. Ele se sentou na sala de estar, pensando no que dizer a ela quando ela voltasse e perguntasse aonde ele tinha ido. Sua cabeça doía. O que poderia dizer? Quando Maybelle entrou, ele olhou para cima e disse: “Oi, bem”, como sempre. Ela disse: “Oi, bem” também como sempre, e subiu as escadas como sempre. Isso o deixou maluco. “Depois de tudo que passei!”, pensou. Então ficou ainda mais maluco ao perceber que não tinha passado por nada a não ser um monte de absurdos que não tinham acontecido em outro lugar além da sua cabeça. Saiu correndo da casa, e foi para a rua, sentindo-se um tolo, depois de ter ficado todos esses anos sentado numa cadeira resolvendo seus problemas de forma madura e chegando a conclusões sadias. Agora, de repente via todos esses anos como submissão a algo que realmente não o importava, e o que havia de maduro nisso? Sentira que estava tomando as coisas em suas próprias mãos quando deixou repentinamente a casa de Anne, mas tinha sido um boneco, arrastado por todas aquelas coisas que não tinham valor para ele. Devia ter ficado, e tentado encontrar Anne. Na realidade, Anne voltou ao quarto logo depois que ele saiu — isto é, se entendermos “na realidade” conforme a nossa realidade. Ela havia estado fora semanas, e achou isso muito refrescante. Depois dessa vez, ela começou a passar mais e mais tempo visitando outros lugares, e suas ausências começaram a ser notadas pelos vizinhos. Na vez seguinte em que ela sumiu, alguém chamou a polícia e disse que ela havia desaparecido, e suspeitou-se de um crime. Ninguém pensou realmente nisso, mas queriam saber da vida dela, e um “crime” era o sinal usado para fazer a polícia se meter na vida dos outros. Stan era o único “homem no caso”, então o detiveram em Berkeley. Maybelle o abandonou, e isso foi satisfatório e conveniente. O retrato de Anne apareceu nos jornais, junto com o de Stan; não que houvesse evidências de que ele tivesse algo a ver com o desaparecimento dela, mas a história era boa. Stan, desgostoso, berrava: “É mentira! É tudo mentira!”, e é claro que as pessoas não queriam acreditar, então ele “contou tudo”, só para mostrar a elas. Depois disso, obteve permissão de ficar em casa, porém foi examinado por psiquiatras. Certa noite estava deitado na cama, longe de conseguir dormir, quando... Anne subitamente surgiu ao lado de sua cama e disse: “O que você está querendo, falando de mim desse jeito, como se eu fosse uma curiosidade!?”. Stan não perdeu tempo com palavras, que poderíam vir depois, e preferiu agir primeiro. Estendeu a mão, agarrou a capa, e bateu com ela na cabeça de Anne, dizendo: “Fique aqui por algum tempo”. Anne riu. “Estive em muitos lugares e aprendi muitas coisas”, disse ela — e desapareceu. Tristemente, ele jogou a capa sobre a cama e recostou-se nos travesseiros. Diante dos seus olhos, a capa se ergueu da cama e enrolou-se em tomo de Anne, que de repente estava ali de novo, rindo para ele. “Sem ela eu só posso desaparecer”, disse, “não posso ir a nenhum lugar.” Agora que estava com a capa, ela podia. Stan estava ganhando os sentidos, agora que não tentava fazer, ser ou viver algo em particular. Vestiu-se, foi para o lugar onde Anne tinha vivido, e levou sua máquina de costura. No motel mais próximo, começou a estudar como usá-la. Tendo chegado à faixa de Moebius,* [*Faixa de Moebius — É a figura geométrica formada por uma faixa plana que sofre uma torção e tem posteriormente suas extremidades ligadas. Partindo-se de um ponto qualquer na superfície externa da faixa, e percorrendo-a, na volta seguinte se estará sobre este mesmo ponto do lado interno; prosseguindo-se, após mais uma volta se está novamente na superfície externa. (Obs.: E a figura que Anne costura com a máquina empregando um dos acessórios que ainda não tinha usado)].– N. do T.) o resto seria fácil. Então foi até o quarto de Anne “procurar algo”. Seria facílimo achar Anne. Tudo que precisava fazer era começar onde ela havia estado, e seguir a faixa até onde ela estava. Vestiu sua capa, e deu-lhe um safanão, como Anne tinha feito. Era maravilhoso estar em lugar nenhum, o lugar entre tudo. Ele não sabia que seria tão glorioso como ser o único navio no oceano, ou o único esquiador num lago gelado. Ele tinha sonhado com isso, mas julgara os sonhos simples desejos impensados,. Mergulhava, desviava, virava, tudo isso em cima de nada, de modo que não havia possibilidade de cair. Ele começou a sentir deliciosa ansiedade, uma curiosidade de saber onde se encontraria quando a faixa acabasse e ele achasse Anne. Como ela ficaria surpresa! Zing! Ele estava em seu próprio quarto, exatamente no lugar onde Anne estivera. Mas Anne não estava lá. Que tolice! Jogou a capa sobre a cama e sentou-se, puxando os cabelos. E também ficou tão oprimido pelo fracasso que não lhe ocorreu que tudo que precisava fazer era partir novamente. Aonde teria ela ido? Passado o presente, futuro também, e ele podia estar em qualquer parte em qualquer tempo. Ele tinha tido tanta certeza de ter resolvido o problema, e só conseguira voltar para casa. Teve de repente um pensamento angustiante, que isso era tudo que podia fazer. Levantou-se da cama e caminhou pelo quarto, desceu, não que tivesse algum sentido, mas ele precisava fazer alguma coisa para não ter tanta certeza de não estar fazendo nada. Sentou-se numa cadeira e esfregou as pálpebras com as mãos — esfregou forte. Desta vez, não iria começar com nenhuma idéia preconcebida. À medida que as idéias vinham, ele as apagava, uma a uma, até que não sobrou nada. Mas de que adiantava o vazio? Balançou a cabeça, zangado, e pensou: “Ela que se dane. Vou fazer algo que eu quero fazer”. Subiu correndo, jogou a capa sobre os ombros, e continuou deslizando pela faixa por entre as nuvens do lugar nenhum, em direção a um lugar sobre o qual sempre. se tinha perguntado. Era de manhã quando chegou. Uma manhã linda e clara, firme como o outono e com um leve calor de verão no ar. Prédios altos, isolados. Em tomo de cada um deles havia áreas de edifícios menores, com relva e árvores. As pessoas andavam pelas ruas com roupas macias e brilhantes com flores, fazendo com que a roupa dele parecesse extremamente boba. Voltou depressa para a faixa e retomou ao motel onde tinha deixado a máquina de costura, e deixou que ela lhe costurasse roupas novas. Vestiu-as, recolocou a capa sobre os ombros e deslizou para a frente, para onde tinha estado. Mesmo com as roupas novas, teve uma sensação de solidão. Em certos momentos, ao passar perto de alguém, essa solidão se desfazia, mas depois voltava. Ele queria se juntar a outras pessoas, e já que algumas delas estavam indo para um dos prédios, também foi. Parecia ser uma espécie de salão ou teatro. Não havia tabuletas ou cartazes, então aproximou-se de um homem e perguntou: “O que estão passando hoje?”. O homem parou e um sorriso começou a se formar em seu rosto. Então, disse depressa: “Sinto muito, pensei que você fosse um dos nossos. Não sei bem que palavras uso para lhe explicar. Isto é uma espécie de sala de diversões, acho. Será que é certo dizer isso?”. Stan parecia pasmado, então o nativo tentou outra vez. “Nós entramos quando queremos, escutamos ou tomamos parte na peça, como quisermos. Não há nada escrito. Nós apenas... Realmente não sei como dizer porque nunca tive de explicar. Nós tomamos parte quando queremos e saímos quando queremos. É muito divertido.” “Divertido!”, disse Stan. “É confuso! Como você sabe quando a peça começa ou acaba?” “Que ponto de vista estranho”, ponderou o nativo, “existe alguma coisa que começa ou acaba?... Apesar disso suponho que seja possível enxergar as coisas desse jeito, de um ponto de vista muito limitado. Mas é muito irreal.” “Irreal!”, disse Stan, com grande confiança de saber o que era realismo. “Veja, você está se perdendo!” Mas a sua própria vida dos últimos tempos lhe veio à cabeça, e ele já não tinha tanta certeza. Ainda assim, podia fazer uma concessão, então disse magnanimamente: “Isso é só nas peças de vocês, é claro”. “Bem, não é assim. Na verdade, nossa encenação serve em parte para nos manter em contato com a realidade. Não estou querendo dizer que é por isso que a fazemos. Nós gostamos dela, e essa razão é suficiente. Mas também levamos um pouco de espírito de realidade para o trabalho, e isso nos impede de nos tomarmos sérios demais com coisas que são, afinal, muito passageiras e limitadas.” Stan revirou isso na cabeça. Precisou revirar bastante. “Todas as peças de vocês são assim?”, perguntou. “Não há artistas que trabalhem duro dando a vida pela profissão?” Desta vez o nativo pareceu confuso. “Por que”, perguntou finalmente, “deveria alguém dar a vida pela profissão!” “Para melhorar as coisas”, respondeu Stan. “E adianta? Acho que você deve ser daquela época”, disse o nativo. “Uma era muito trágica toda —cheia de incompreensão.” “O que havia de incompreensão?”, perguntou Stan ansiosamente. O nativo não respondeu. “Não me diga que ‘Se você precisa perguntar, você jamais saberá’”, gritou Stan. “Não”, disse o nativo, “eu poderia, mas não vou fazer isso. Mas diga-me, como foi que você chegou aqui?”, e afastou-se sem esperar resposta. Olhou para trás em direção a Stan, como se estivesse convidando-o a segui-lo, porém Stan não notou. A sua cabeça era uma maciça dor de idéias que estavam invertidas. Então elas começaram a se mexer tão depressa que ele não era capaz de dizer o que estava de cabeça para cima e o que estava de cabeça para baixo. Naquele caos, de repente Anne era a sua única âncora possível. Começou a caminhar rapidamente pela rua. Se ele conseguisse encontrá-la! Então andou mais devagar. Era isso que ele tinha de tirar da cabeça — encontrar Anne. Sentiu uma pontada quando pensou que ela poderia ter passado ao seu lado e o reconhecido, sabendo onde ele estava — ou não estava — e ter ido embora sem falar com ele. Conteve-se para não se virar e olhar se ela estava atrás dele, e recolheu-se ao agora de seus sentidos de modo a notar tudo no instante em que vivia. Então notou que estava com fome. O que poderia fazer, se seu dinheiro não podia ser usado neste lugar? E os numismatas? Havia cabinas de telefone por perto e ele foi até uma delas. A lista parecia incrivelmente pequena. Procurou as instruções na capa, e feliz descobriu que bastava discar Numismatas para obter a informação que queria. Apareceu uma tela luminosa na parede, e lá estava a lista de todos os numismatas. Continuando a seguir as instruções, pegou um pedaço de papel de um bloco especial ao lado do telefone, e segurou-o diante da tela. Num instante, a informação foi transferida, e ele deixou a cabina com o papel nas mãos. Ocorreu-lhe um pensamento, ele voltou ao telefone e discou: “negociantes de moedas”. A mesma lista apareceu na tela. Isso era algo inteligente. Todos os negociantes ficavam na mesma rua, então bastava ele encontrar a rua. O primeiro homem a quem perguntou, respondeu delicadamente, apontando com a mão: “Ande duas quadras para lá, e pergunte de novo”. Quando perguntou de novo, o homem apontou em outra direção e disse: “Uma quadra para lá, e pergunte outra vez”. Na próxima parada, ao perguntar, o homem apontou para uma rua e disse: “Do lado direito, na metade do quarteirão”. Tão simples! Ele entrou na primeira loja que o atraiu, já que não sabia nada a respeito de nenhum deles. O homem atrás da registradora olhou o dinheiro que Stan lhe estendeu, e o devolveu dizendo: “Terceira loja à direita. Ele vai lhe oferecer um preço melhor do que o meu”. Stan olhou para ele pasmado. “Por quê?” “Ele tem um freguês que paga mais.” “Mas você não quer o negócio para você?” “Certamente”, disse o homem, “mas isso não é razão para você deixar de consepnir n máximo nnp nade ” *** Stan saiu da loja um pouco incrédulo. Na loja seguinte havia uma mulher na sua frente, e ele notou que ela estava oferecendo o mesmo tipo de dinheiro que ele tinha. Agora, provavelmente conseguiría menos pelo seu, se é que iria conseguir alguma coisa. Não parecia haver pechinchas. A mulher e o recepcionista estavam ambos admirando o dinheiro, então ele colocou o dinheiro dela numa caixa sob a registradora, abriu outra caixa e deu outro dinheiro para a mulher. Ela pegou e saiu. Quando passou por Stan, ele notou seus olhos. Lembravam-lhe um pouco alguém, não muito. Talvez os olhos fossem os mesmos e o cabelo diferente, o que fazia os olhos parecerem diferentes. Em todo caso, ele não conhecia ninguém neste lugar. Aproximou-se do recepcionista e este pegou o dinheiro e disse alegremente: “Dois no mesmo dia! As vezes tenho de esperar anos! Posso dar um pouco mais pelo seu do que dei à Sra. Chumley porque o Sr. Sringo ficará muito feliz em não precisar mais adiar sua viagem. Agora ele tem o suficiente para viajar”. “Mas onde ele pode usar este dinheiro?”, perguntou Stan. “No século XX, é claro. Vocês, pessoas que vêm do passado, estão certas porque o dinheiro velho é real, mas quando nós vamos para o passado, o nosso dinheiro é falso.” Stan pegou o dinheiro novo que o homem lhe estendeu, e caminhou em direção à porta. Quando passava pelo lugar onde tinha notado os olhos da mulher, várias coisas se juntaram de uma vez: “Anne!”, pensou. Mas não, não tinha certeza; essa mulher era muito mais velha do que Anne. Ele estava somando dois e dois, dizendo que era 22. Ainda assim, havia uma coceirinha na sua nuca, insistindo que ele estava pelo menos um pouco certo. Voltou ao homem. “O senhor tem o endereço da Sra. Chumley?” “Não, assim como não tenho o seu.” Stan foi de novo até a porta, e o recepcionista o chamou. “Certa vez ela falou algo sobre ‘as crianças’, que me fez pensar que poderia ser professora.” Não havia sinais conspícuos de restaurantes pelas ruas, mas aqui e ali em casas particulares havia uma discreta placa dizendo: “Comensais bem-vindos”. Ele entrou numa delas e viu-se num pequeno saguão, de onde podia ver uma sala com uma grande mesa redonda, onde estavam sentadas várias pessoas. A comida tinha aparência e cheiro maravilhosos, e ele quis caminhar imediatamente para uma cadeira vazia: mas as pessoas estavam conversando como velhos amigos. Isso fez com que ele tivesse vontade de juntar-se a elas, mas por outro lado... Hesitou, parado no saguão, mas a plaqueta dizia: “Bem-vindos...”, e não lhe restou o que fazer a não ser ir sentar-se. “Olá!”, disse um dos homens, em tom amigável. “Estávamos conversando sobre...”, colocando-o a par da conversa. Passaram-lhe a comida. O papo girava em torno de assuntos que lhe eram estranhos, mas à medida que o tempo passava, ele começou a se sentir à vontade. Quando as pessoas iam terminando de comer, saíam, deixando algum dinheiro no prato. Uma doméstica entrava, pegava os pratos e o dinheiro, olhava para a mesa para ver o que precisava ser trazido. Outras pessoas entravam e se sentavam, e a conversa prosseguia, cobrindo todos os terrenos. E quando Stan tomou coragem, passou a dizer algo de vez em quando, pois às vezes era possível apontar uma falácia, mesmo que não soubesse de que se tratava. Ele tinha notado isso quando criança, mas naquela época ninguém lhe prestaria atenção. Aqui, prestavam, e riam quando ele demonstrava um erro. Tendo corrigido o erro, seguiam adiante. Havia também pausas, quando ninguém falava; pareciam ser os momentos em que todo mundo estava escutando. Ele aprendeu algo com as pausas. Era como se a mente clareasse e a informação entrasse de maneira desimpedida. Quando Stan voltou para a rua, sentia-se refrescado, livre, vivendo num mundo maior do que tinha conhecido antes. A Sra. Chumley saiu da loja onde tinha trocado seu dinheiro e voltou para a escola, cantarolando. Ela havia conseguido outra vez. Devia existir um tempo no passado em que a sua sorte acabaria, mas isso ainda não tinha ocorrido, e ela estava aproveitando. As crianças a receberam alegremente. Eram crianças especiais, mas ninguém sabia disso fora elas mesmas e a Sra. Chumley. Estavam registradas no Departamento de Educação como crianças excepcionais, um termo trazido da metade do século XX quando a palavra “excepcional” fora inicialmente usada para crianças que não eram. Ela tirou o dinheiro e colocou-o sobre a mesa, as crianças se levantaram e cada uma delas pegou um pouco e pôs no bolso. Então saíram e se espalharam, cada uma numa direção; cada uma delas comprou algo insignificante — coisinhas comuns que qualquer pai mandaria seu filho comprar, para consertar um carro, um ar-condicionado ou um avião. Quando retomaram à escola, todos se juntaram numa sala que já tinha partes construídas, e puseram-se a trabalhar, acrescentando partes novas em lugares que deixariam pasmados os conhecedores de carros, condicionadores de ar ou aviões. A Sra. Chumley observava. Ela apreciava as crianças trabalhando, atenta ao que faziam. Quando inicialmente começou a trabalhar com elas, fingia estar frustrada. Era bom para eles. Depois, já há algum tempo, ela não precisou mais fingir. Quando a campainha tocou, a Sra. Chumley perguntou a si mesma quem poderia ser. Levantou-se e foi até a porta, enquanto as crianças deixavam o trabalho e se espalhavam pela sala, pegando livros e começando a ler. Estavam divididas em pequenos grupos, com as mais velhas ensinando as mais novas, como ocorre em toda boa escola. Havia A Máquina, é claro, mas a Sra. Chumley tinha começado com máquinas comuns, explicando que as usava para ensinar as crianças, e quando se tomaram mais complicadas seria preciso um perito ou um simplório para notar que eram diferentes. .“Sra. Chumley!”, disse Stan. “Estou tão feliz em encontrá-la!” E ele parecia tão feliz que a Sra. Chumley ficou feliz também. Além disso, a situação parecia ser um pouco diferente, e havia apenas uma coisa que a Sra. Chumley podia dizer numa situação diferente: “Entre!”. Enquanto o conduzia para a sala de aula, disse: “Eu preferia que outra pessoa me tivesse achado, a minha neta, mas acho que ela não é tão esperta quanto pensei que fosse. Às vezes penso que deveria tê-la trazido comigo, mas desse jeito ela nunca descobriría por si só”. Suspirou. “Acho que mesmo assim não descobriu.” Stan olhou para a Sra. Chumley mais intensamente, particularmente para os seus olhos. “Anne?”, perguntou: “Sim”, respondeu a Sra. Chumley, “é o meu nome. Ohhhh! Você está se referindo a Anne\” “Acho que sim”, disse Stan. “Se não fosse ela eu não estaria aqui.” “Estou tão contente!”, disse a Sra. Chumley, afundando numa cadeira. “Eu pensava que tinha dado a ela o suficiente para prosseguir, mas ali é difícil se manter de pé, então às vezes me perguntava se não tinha me enganado. Mas uma vez que ela começou, tudo bem, mesmo que ainda não tenha chegado. Afinal, quem foi que chegou? Conte-me.” E Stan contou. Isto é, começou a contar, mas então tomou consciência das crianças que escutavam. A Sra. Chumley lhe fez um aceno para continuar. “Não temos segredos”, disse ela. “Isto é, eu não tenho segredos para eles.” Quando Stan acabou, a Sra. Chumley deu as explicações sobre as crianças e si própria. “Pensei que este era um mundo iluminado!”, exclamou Stan. “É sim”, disse a Sra. Chumley. “só que eles já se habituaram tanto que se esqueceram de que poderia ser mais iluminado.” “E a senhora está desencalhando as coisas, suponho.” “Bem, acho que sim”, disse a Sra. Chumley, “mas não é por isso que estou fazendo.” Stan foi até a máquina, e as crianças se juntaram em tomo dele, com expressões nas faces enquanto ele procurava entender. Ele quis parecer inteligente e perguntou: “E para que serve isso?”. “Servia”, disse um dos meninos mais velhos. Olhou em volta para as outras crianças. “Todo mundo entendeu?” Todos fizeram que sim, e ele verificou um por um para ver se ninguém tinha ficado de fora. E então: “Muito bem!”, disse ele, e as crianças começaram a desmontar a máquina, arrumando as peças em fileiras pelo chão. A Sra. Chumley observava, deliciada. “Eles já entenderam!”, disse ela. “O quê?”, perguntou Stan. “Na verdade não sei”, respondeu a Sra. Chumley, “mas até agora não tentaram nada em matéria de viagens interestelares, então deve ser isso.” “A senhora disse que eles entenderam”, protestou Stan, “então seguramente deve saber o que é.” “Eles entenderam a idéia básica”, disse a Sra. Chumley. “É mais ou menos como resolver problemas de aritmética no papel antes de saber fazer de cabeça. Depois, não é mais preciso papel. As vezes eu pensava que eles nunca iriam conseguir.” “Por que a senhora não lhes explicou?” “Porque então eles apenas seriam capazes de fazer uso disso de maneira limitada. Jamais iriam além se não descobrissem sozinhos.” Stan parecia assombrado. A Sra. Chumley parecia triste. “Você poderia entender”, disse ela; “bastaria deixar de lado aquilo que julga saber. Tudo que se pode fazer fora, pode-se fazer dentro — é daí que vem a coisa. A maioria das pessoas pára do lado de fora. E por isso que em 1970 ainda há fios de telefone e coisas dó tipo. “Me parece”, disse Stan, “uma faixa de Moebius mental.” “Você entendeu!” “Oh, não entendi não”, corrigiu ele. “Entendeu sim — você não poderia ter dito para fora se não tivesse entendido por dentro, e agora só falta voltar para dentro.” Ela virou-se para as crianças. “Agora vou para casa. Presumo que vocês não vão. Contem-me quando voltarem.” “Eles nunca lhe agradecem por tudo que a senhora faz por eles?”, perguntou Stan. “Por que haveríam de agradecer?”, perguntou a Sra. Chumley. “Sabe que neste instante não tenho a menor idéia do que farei a seguir?” Stan estava começando a ter essa sensação enquanto abria a porta para ela e caminhava ao seu lado para a rua. Que bom que ele tinha chegado justo na hora que ela ia começar algo novo! Que gostoso ir junto! Mas na próxima esquina ela o deixou dizendo “Tchau”, com toda a naturalidade, como se fosse vê-lo no dia seguinte. “Mas, e Anne?!” Ele correu atrás dela, tentando segurá-la. “Tenho certeza de que ela está a caminho!” “Estou tão contente!” A voz da Sra. Chumley fez-se ouvir por cima do seu ombro. “Mas onde ela poderá encontrá-la?” “Como vou saber, se eu mesma não sei onde me encontrar enquanto não estou aqui?” E se foi. Toda a aventura se desvaneceu outra vez. Ele voltou correndo para a escola para perguntar às crianças. “Onde mora a Sra. Chumley?” “Onde tem vontade”, responderam. “Preciso encontrá-la.” As crianças olharam para ele com curiosidade, como se ele fosse uma pessoa que tivesse perdido a forma. Então um sinal de compaixão apareceu no rosto de uma das meninas, e ela disse delicamente: “Como foi que você a encontrou da primeira vez?”. Na loja! ... Mas pode ser que ela nunca volte para lá. Ele estava sentindo falta de alguma pessoa que estava ali, mas que ele não via. “Não pense nisso”, disse a menina, “e ela virá.” E, então, a peça que faltava veio à sua cabeça: quando ele cruzou com a Sra. Chumley, estava cuidando da sua necessidade do momento.Mas poderia passar tanto tempo até que seus caminhos se cruzassem outra vez. “Quando não há outro jeito”, disse a menina, “esse é o único jeito que há ” Stan sentiu-se humilde diante daquela criança. Ela possuía tanta certeza, certeza tão completa, de coisas que ele só tinha vislumbrado e perdido outra vez. “Obrigado” , disse ele, e saiu. Tinha muito que pensar, e gostaria de saber o quê. Veio-lhe à cabeça a idéia de que ele estava simplesmente acompanhando ambas as Anne, como um velho tentando recuperar a juventude por meio da juventude de outra pessoa. Quando elas iam embora, ele sentia-se velho de novo. Mas por alguns instantes ele a tinha recuperado por si só. Como conseguira? Vagou pelas ruas, sem saber aonde ia ou o que estava à sua volta, até que chegou a uma praça, com bancos ao sol, todos do mesmo material, que captava o calor e o retinha. Sentou-se num dos bancos, depois deitou-se, deixando penetrar o calor de cima e de baixo, até que seus músculos relaxaram; e ao soltar o corpo, ele aliviou também a sua cabeça. Por que para ele era tão difícil estar sozinho? Para Anne e a avó parecia tão fácil, e quando estava com elas, ele... Não, quando estava com elas, ele as acompanhava, mas não era tão livre quanto elas. Alguém veio e sentou-se quieto na ponta de um banco comprido. Ele não abriu os olhos. Mas por um instante abandonou os pensamentos, e escutou. Ouviu pequenos estalos, rangidos, e depois as asas dos pássaros, e os bicos bicando, os pequenos saltos quando davam encontrões e recuavam, apenas para voltarem a se encontrar. “Eles fazem tudo com tanta facilidade”, pensou. “Por que isso não acontece com a gente?” As pessoas tinham de trabalhar para ganhar a vida e criar filhos, é claro, mas por que isso era tão difícil9 Não deveria ser tão fácil para os humanos à sua maneira quanto para os pássaros à maneira deles? Por que as pessoas são tão estúpidas?, perguntou, e deixou entrar na sua cabeça todas as coisas que estivera mantendo de fora. A faculdade, percebeu de repente, provavelmente não era o grupo especial e isolado que ele julgara ser. Provavelmente em todo lugar havia a mesma coisa, com seus incompetentes sentados em tronos, como ele tinha estado. Ah, ele tinha reconhecido os outros. Quem ele não tinha conseguido reconhecer era a si próprio. Ele não era assim. Nunca seria como seus professores. Grunhiu quando se lembrou de um estudante, inteligente mas rebelde (Stan estremeceu com esse “mas”), que tinha desenhado e usado um carimbo que retratava um livro aberto e uma vela acesa, com os dizeres: Ajude a Acabar com a Faculdade. Stan tinha conversado com o estudante, e falado sobre “dignidade profissional”. O estudante dissera: “Não gosto da palavra ‘dignidade’”. Stan percebia agora que a “dignidade” que ele recomendara não passava de presunção. O estudante lhe dissera, mas ele não tinha ouvido. Não naquele momento. O estudante dissera: “Você está apenas sendo bom e educado. Você não consegue ser humano1?”. E Stan respondera, de forma tão razoável (agora lhe parecia tão imbecil): “Mais tarde você enxergará as coisas de forma diferente”. “Espero que não!”, tinha dito o estudante, distintamente do que os outros faziam. “O que não entendo”, prosseguiu, “é por que você não deixa a gente pensar. Quando alguém pensa, você corta suas asas, e julga que o domou — se ele fica. Mas o que você fez foi tirar dele a capacidade de voar.” “As exigências da pesquisa — ” “Eu não quero fazer pesquisa, ficar rebuscando”, o estudante o tinha interrompido. “Quero buscar. Mas é submeter-se ou cair fora, e eu vou cair fora.” Mais uma vez Stan estremeceu ao sol. O que era o homem? Quando jovem, ele tinha tentado descobrir. Então aceitou um papel, tomou-se um ator no palco com papel definido. Definido por quem9 Quando jovem, tinha enxergado outro destino para si. E agora, enquanto se juntava com sua nova juventude deixando-a penetrar dentro de si, sentia dores de um tipo novo e diferente. Sentou-se e assoou o nariz, porque senão ficaria com lágrimas nos olhos, e homem não chora. Após colocar o lenço no lugar, sentou-se curvado, com as mãos entre os joelhos, recordando-se de coisas que não queria recordar. Pois ele tinha pensado que era corajoso, mas tinha vivido curvando-se diante “das regras”. Certa vez ouvira um estudante dizer a outro: “E mais um ídolo de pedra se perde na selva ardente”, e ambos se foram. Como tinha entrado nessa confusão? Primeiro submetera-se às regras para passar pela faculdade, para ter um diploma de modo que as pessoas ouvissem o que tinha a dizer. Mas quando tirou o Ph.D., viu que tinha de subir ainda mais: aí as pessoas o escutariam. Mas quando conseguiu ter um nome, sacrificando a maior parte de si mesmo durante vinte anos, as pessoas o escutavam apenas quando ele dizia o que elas esperavam que ele dissesse. Qualquer desvio era justificado como sendo causado pela idade ou excesso de trabalho. Os feriados que se encontrava com Anne eram os únicos momentos em que se lembrava de ter falado verdadeiramente o que achava — o que ele próprio sabia. Stan soluçava. Que pensassem o que quisessem. O que importava era o que sabia dentro de si. Quanto mais soluçava, mais claro ia ficando, como uma criança que chorando consegue fugir da confusão e chegar de novo à luz do sol. Ele começou a tomar consciência das coisas em torno de si, aos pés que passavam, dos pombos que ainda estavam por perto. Um pombo pousou no seu ombro, ele virou a cabeça lentamente, sem sentir diferença entre si mesmo e o pombo. Então, “Sra. Chumley!”, exclamou para a mulher sentada na ponta do banco. “Não é milagre”, disse ela. “Voltei à escola para procurar um livro, e as crianças disseram que você estava com jeito de que ia parar na primeira praça.” “A senhora fugiu de mim, antes.” “E isso também não foi bom?” Ele explodiu numa gargalhada, com a glória de uma criança, um riso cósmico que abarcava muito mais do que as paiavras podiam uizer, e nem ieiiíou dizer nada. “Sinto-me tão pequeno e tão grande”, disse um pouco depois. “Quando a gente se sente pequeno e grande nos lugares certos”, disse a Sra. Chumley”, a gente está no lugar da gente. Estou com fome”. No jantar, as pessoas faziam sentido e eram divertidas, até que alguém mencionou as crianças que contaram ter estado nas estrelas quando só tinham saído um pouco entre a hora da escola e a hora do jantar. A Sra. Chumley colocou firmemente a mão sobre a coxa de Stan. “Não se aborreça”, disse ela, “As crianças sabiam o que esperar. Provavelmente disseram a verdade para ver se eu sabia o que estava falando. Agora acreditam em tudo que lhes digo. Espero ter sido cuidadosa.” “Pensei que aqui fosse melhorl”, disse Stan em voz baixa. “E é. Não vai demorar muito para descobrirem o erro, e em seguida darão risada e farão troça.” Anne tinha chegado à cidade, e fora fácil adivinhar quem era a “professora” que as crianças disseram que lhes mostrara o caminho das estrelas. Ela foi até a escola e sentiu a Vovó; ficou caminhando até que a percebeu por uma janela aberta. Isto é, ouviu a voz da Vovó. Ao entrar, juntou-se a Stan e à Vovó dizendo: “E como vai você, Sra. Chumley? Aliás, de onde foi que você tirou esse nome?”. “De um inglês”, disse a Vovó. “Ele disse que teria orgulho em me dar o seu nome, então aceitei. Sente-se e coma. Há algo que quero conversar com o Stan.” E voltando-se para ele: “Você vai voltar?”. “É claro”, respondeu ele. “Tenho de limpar uma sujeira que fiz. Acho que vou começar reunindo todos os alunos que não me escutavam.” A Sra. Chumley balançou a cabeça. “Todos acabaram caindo na mesma coisa, em algum outro lugar que parecia um pouco diferente. Agora você não vai passar de um velho ruim da cabeça. Quando você se vende ao rio, tem de gostar do rio. Como ter de gostar de espinafre, mesmo que deteste. Vai surgir uma nova escola, e todo mundo está cheio de ‘novas escolas’; e você é capaz de ter nostalgia de Emerson, então irá chamá-la de Escola Heisenberg — é como atualizar Emerson. Dará muito dinheiro. Há um homem razoavelmente jovem — que nunca conseguiu o mestrado — que agora é presidente de uma das grandes fundações.” “O que você sabe a respeito de agora?”, perguntou Anne. “Quero dizer, agora naquela época?” “Não fiquei aqui o tempo todo”, disse a Vovó, “e mesmo que tivesse ficado, sabería mais sobre o agora daquela época do que lá se sabe agora. Há muita coisa absurda nos livros de história, mas algumas coisas se revelam depois, coisas que não eram vistas na época. Você pode ver a mesma coisa na sua vida, se olhar direito”; ela estava censurando Anne. Eu voltei diversas vezes. “Trabalhei para a Schraffts, e suas campanhas para as grandes fundações — almoços e coisas assim. Estive num monte de reuniões, e tive dificuldade em conter a minha língua.” “Esse homem é mais aberto do que os outros”, disse ela a Stan. “Vou lhe dar uma lista de pessoas que têm estado a escrever — todas dizem a mesma coisa, mas de tantas formas diferentes que as pessoas ainda não as conseguem juntar. Junte-as, misture o creme daquilo que elas têm a dizer, e apresente-o para esse homem”. ‘Vovó!”, protestou Anne. “Você está adulterando o passado!” “Adulterando!”, resmungou a Vovó. “Essa é a palavra que as pessoas usam quando, querem dizer: ‘Não engraxe essas rodas, a gente poderia chegar a algum lugar!? Além disso, se já aconteceu, como posso estar adulterando?” Voltou-se para Stan, e começou a rabiscar nomes num pedaço de papel. Stan olhou os nomes e demonstrou um leve choque. “Esses homens!”, protestou. “Eles não acreditam nos homens que lhes dão a base!” Anne, com um garfo cheio de salada a caminho da boca, parou com a mão no ar. “Você está querendo dizer, os homens que seguram os guarda-chuvas dos quais eles saíram debaixo?” “Sinto muito. Quanto tempo leva para a gente deixar de ser professor?” “Você mudou!”, disse Anne com prazer. “Oh, Stan!” “Vocês podem conversar mais tarde”, disse a Vovó. “Agora, Stan, o que você tem a fazer é... não estou lhe contando segredos nem forçando-o a nada, porque você poderia ler isso sozinho se fosse à biblioteca. Ainda há muita coisa que você precisa resolver sozinho porque a história também está cheia de coisas que não aconteceram dessa maneira.” Ela continuou rabiscando nomes, e ele ficou surpreso com a quantidade que havia. Ele conhecia o trabalho de todos, mas os tinha desmistificado, por uma ou outra “razão”, como não citar fontes, contestar a autoridade estabelecida, místico demais, em alguns casos nem mesmo tinham doutorado. Agora, o trabalho deles estava se reorganizando em sua cabeça, e ele pôde ver o que os fundadores de religiões tinham tentado, de outra forma, muito mais compreensível para o século XX. E isso estava acontecendo em tantos lugares diferentes! Olhou novamente para a Vovó que continuava a escrever, e estendeu a mão para fazer com que ela parasse. “Essa gente escreve ficção científica!”, disse ele. “São escapistas!” A Vovó reclinou-se e riu. Anne tirou um cigarro, fez um passe com a mão, e a ponta do cigarro se acendeu. “É um truque”, disse, “que aprendi no futuro.” O riso de Stan foi mais forte do que o delas. “Muito bem, Vovó, prossiga.” “E só isso. O resto você vai ter de descobrir sozinho.” Então virou-se para Anne: “Você já começou a trabalhar no hospital psiquiátrico?”. “Essa era para ser a minha surpresa!” “Isso vai surpreender Stan”, disse a Vovó, “e eu também estou interessada, porque ninguém parece saber como começou.” “Trabalhei em muitos deles antes de descobrir o lugar certo para fazer as coisas continuarem acontecendo”, disse Anne, “mas agora tudo vai indo bem. Alguns pacientes pediram para serem transferidos para outros hospitais e estão começando a ajeitar as coisas por lá. Na verdade foi muito simples. Sempre é simples, quando se acha o lugar por onde começar. Simplesmente expandimos tudo um pouco mais, e ninguém nota, ninguém presta atenção à direção da expansão. De qualquer maneira, os chefes estão muito ocupados escrevendo. Quando eles notarem o que aconteceu, pensarão que eles mesmos o fizeram. Provavelmente nem notarão que é uma escola — sem diplomas, sem créditos, sem professores, todo mundo aprendendo de todo mundo e de tudo, e somente para quem está envolvido. “Os ‘pacientes’ vêm de todos os tipos de trabalho, então quando voltarem a trabalhar, tudo mudará um pouco. Estarão mudando o trabalho... Quero dizer... Oh”, disse ela aborrecida, “o que importa o que está mudando o quê? O que importa é que está mudando.” “Mas como as pessoas dos seus hospitais conseguem trabalhar em lugares repletos de velhas idéias?”, perguntou Stan. “Acho que elas acabariam se quebrando.” “Algumas se quebram”, respondeu Anne, “mas são mandadas de volta para nós e numa sociedade sadia vivem bem, e logo que estão fortes saem de novo. Às vezes, é fácil. Elas trein — Será que nunca vamos parar de usar palavras erradas?”, perguntou ela meio brava. “Eles têm oportunidade de se tornar eles mesmos, e isso é o que muita gente quer. Uma mulher foi trabalhar num lugar um pouco antes do Natal, e descobriu que durante trinta anos todo mundo tinha dado presentes de Natal a todo mundo do lugar. Ela pensou que ficaria louca se entrasse nisso, então ficou dizendo a todos: ‘Não vou lhe dar nada de presente no Natal, então não me dê nada ou ficarei sem jeito’. Ela não estava querendo mudar tudo. Estava simplesmente falando de si mesma. E em pouco tempo todo mundo estava dizendo a todo mundo: ‘Não vou lhe dar nada, então não me dê...’. Eles disseram que foi o melhor Natal que já tiveram. Ficaram felizes durante todo o mês de janeiro.” “Todo mundo?” “Bem, não. Havia uma velha que empregava e despedia muita gente, e era ela quem contava aos novos empregados a respeito do velho costume, então eles achavam que tinham de segui-lo. Ela ainda está aborrecida — há outras coisas que não estão do jeito que ela quer — e ouvi dizer que ela está com câncer. Quero dizer, está mesmo, e provavelmente não vai viver muito tempo, mas isso é melhor do que todo mundo ficar com câncer.” “Vai ser divertido voltar”, disse Stan. “Não é sempre que você vai achar isso”, disse a Vovó. “Às vezes você pensará que nada disso está acontecendo, que você inventou tudo para tornar a vida suportável, que tudo não passa de imaginação. Você duvidará de si mesmo e da sua própria sanidade. Talvez seja melhor você levar alguns desses cigarros que a Anne encontrou, e então poderá fazer um passe com a mão e saberá que são reais.” “Será que não posso usar a senhora em vez disso?”, perguntou Stan. “A senhora é a coisa mais segura que conheço.” A Vovó não respondeu. Anne disse, meio infeliz, meio encantada: “Você não vai voltar conosco?”. “Nos livros de história não há nada a meu respeito”, disse a Vovó. “Sou completamente livre.” “E... ?” Stan estava tentando adivinhar, mas tinha certeza de que não conseguiria. “Há um espaço em branco um pouco adiante. Eu já passei disso, então sei. Ninguém sabe o que aconteceu.” “Então a senhora vai para lá para descobrir. Não é arriscado?” “Assim espero”, disse a Vovó. *** Gostei de ter colocado essa história. Talvez coloque outra, mais adiante... Noto meu prazer em “histórias.” Repetidas vezes tenho vontade de voltar a escrever ficção, e não faço nada em relação a isso. Talvez a vontade ainda não seja forte o suficiente para levar-me a deixar de fazer o que estou fazendo. Segunda-feira à noite Fritz revitalizou o lugar, e o efeito varzeano já quase desapareceu. Ele pôs fim ao oba-oba e exigiu mais seriedade. “E claro que a terapia pode ser divertida, mas não no início.” Gostaria que ele fizesse isso com mais freqüência. Tenho liderado um grupo, com Hal no papel de co-líder, de manhã e à noite das oito às dez. Quatro sessões, e estou me equilibrando outra vez. Eu não sabia o que tinha perdido nos dez dias que não liderei e não participei de grupos, mas sabia que tinha perdido algo. A sessão desta manhã devolveu-me uma visão equilibrada. Trabalhei com Neville e não consegui fazê-lo passar do ponto onde está encalhada. Senti que nada aconteceu. Então Janet Lederman entrou, e ouvi seus elogios como se fossem louvores cantados ao salvador. Gosto dela. Quando ela prosseguiu com o Neville a partir de onde eu tinha parado, mexendo-se com confiança, pensei: “Ela conseguiu. Bem, de qualquer maneira não quero ser terapeuta” — e não quero mesmo. Bem aqui dentro não acho graça nisso — que estou aprendendo tanto com esses grupos e não quero ser terapeuta. E isso aí, e tudo bem. Se eu tivesse de me decidir, estaria numa enrascada, mas não tenho. Nunca tenho que decidir, até que a certa altura decido, e aí não há problema. Janet também não produziu um milagre. Gostei de observá-la trabalhando. Com ela, Neville passou para uma área um pouquinho diferente daquela em que estava antes. Harriet disse que queria trabalhar, e não trabalhava. Deixei-a sozinha. Ela disse que queria trabalhar com tomada de consciência. Ela pingava um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Mostrei-lhe isso. Fritz entrou e trabalhou com ela, e ela apresentou um espetáculo atraente, como uma manipuladora de fantoches. Acabou chorando mais do que se permitia ontem, mas não chorou tudo. Levantou um pouco a máscara, mas não a tirou. Progresso. Nada de terrível. Então tivemos a hora de treinamento adiantado com o Fritz — cerca de quinze de nós que são líderes e co-líderes. Fritz perguntou quem estava em dificuldades. Ruth estava. Ela disse que não estava toda ali, que havia muita coisa se passando dentro dela. Fritz pediu-lhe que escolhesse alguém do grupo com quem tivesse muita dificuldade, e trabalhasse com a pessoa. Ela escolheu o Hal! O seguinte foi Bill, e ele escolheu Greta. No trabalho de Greta, que Fritz assumiu, pediu a ela que dissesse a cada um de nós “Tenho um segredo”, e contasse algo. Para mim, ela disse: “Guardo um segredo de você — não gosto nada de você”. Ela disse isso com desgosto, e em tom bem duro. Arrepios quentes percorreram os meus ombros e braços, e talvez também outros lugares — depressa demais para poder fixá-los, como uma luz de néon que pisca e desaparece. Bem embaixo da pele — não mais fundo. Nunca tinha experienciado arrepios quentes antes, e gostei. Era um “segredo” tão engraçado. Eu sabia disso há meses. No final da sessão, Neville veio e colocou os braços em tomo de mim; muito caloroso — e ele não costumava ser — um calor suave; ele disse que a sessão desta manhã tinha sido boa, como se só tivesse percebido depois. E claro que foi boa. Ele disse isso para mim. Talvez também tenha dito para a Janet, e tirado algo do trabalho com ela. Mesmo que ele não tenha dito a ela, sem saber da verdade, ela pode ter participado. Contei isso de forma bastante ordenada para deixar clara a sucessão dos acontecimentos. Em suma, digo: é como a vida. Não se pode analisá-la, e se você o fizer, o máximo que conseguirá é juntar alguns pedaços que lhe tenham agradado. Mesmo que você os junte de forma desagradável, como uma tragédia ou martírio, essa forma estará lhe agradando, ou você não o faria — e você não fará nada em relação ao fato, a menos que/até que em algum ponto o prazer se torne des-prazer: aí ele não suporta mais você. Gozadas, todas essas palhaçadas que fazemos. O padre Liebler, episcopal, contou-me que detestava ter de admitir, mas usara um crucifixo pendurado na corrente do cinto quando fora conversar pela primeira vez com os navajos, décadas atrás. Os navajos lhe perguntaram o que era o crucifixo, e ele lhes contou. Eles não se impressionaram. Disseram: “Esse homem é louco. Eu não faria isso!”. O padre Liebler me contou que os navajos não têm conceito de auto-sacrifício. Certa vez fui de Boston a Washington com várias pessoas, sendo que uma delas era um jovem da índia, muito vivaz, que estava estudando física. Conversamos sobre as nossas crenças. Mencionei o pecado original. Ele quis saber o que era. Contei-lhe. Ele riu da absurda crença dos nativos e disse: “Eu, eu não me sinto culpado!”. Quando eu vivia em Novo México, um jovem morreu. Duas famílias estavam igualmente envolvidas em sua morte, e o tinham amado igualmente. Uma delas era escocesa protestante. A outra família era mexicana católica. Quase tudo que uma família dizia ou fazia, ou sugeria a respeito do funeral, horrorizava a outra. Era medonho. E também muito engraçado. Palhaçadas. Condicionamento contra condicionamento. Tortura. Tortura sentida por gente. Quando tudo não passa de condicionamento — não gente. *** Na cozinha, após a sessão, Greta disse num tom amistoso, não muito à vontade — um pouco forcado: “Barry, me arranja um cigarro?”. Ela estava atrás de mim. Virei-me, dei-lhe o meu maço de cigarros e o isqueiro, e quando ela os devolveu, olhei em seus olhos, pronta e disposta a estar com ela. Os olhos dela pareciam uma casa à noite, sem luzes acesas e com as portas fechadas. Não sei o que há dentro da Greta, mas agora que ela chegou ao ponto de declarar o seu desgosto por mim, em vez de apenas demonstrá-lo, e com esse grupo adiantado no qual ela terá de trabalhar comigo, talvez nos juntemos. Se eu estivesse tentando agradá-la, ficaria doida, porque geralmente tudo que faço é errado. Não me senti assim com ela no dia em que estávamos num pomar de maçãs, e foi gostoso nada de desgosto, apenas Greta. Por alguns momentos. Ontem, no grupo adiantado, trabalhei com o Fritz. Ofereci-me como paciente, e escolhi Ray e Hal como meus co-terapeutas... Naquele momento senti sono e fui dormir. Agora me sinto lerda. E faminta. Tão faminta. Não deveria estar com fome. (Ainda não é hora do jantar.) Sinto fome... Agora noto que a minha “fome” é de indigestão — pimentão verde na galinha do almoço — e esta manhã eu estava com diarréia. Isso foi surpresa. Dei ao meu estômago mingau de farinha de milho e manteiga. Ainda não quero escrever sobre o trabalho com o Fritz, então vou escrever sobre outra coisa e ver como me sinto. Ontem à noite na reunião da comunidade, eu disse que gostaria de passar duas horas neste local, sem falar. Fritz: “Com todos esses principiantes!? Eles ficariam fantasiando o tempo todo!”. Não sei se ele pensou que me referia a ficarmos sentados em silêncio. Não me referi a isso. Me referi a fazer os serviços do local — a rotina usual, mas não verbal mente. Ele sugeriu que esta noite, na hora do jantar, não falássemos, “e talvez todo mundo preste mais atenção ao ato de comer”. (Mastigar, saborear, perceber o que está acontecendo na boca, e assim por diante.) Esta manhã — não, só parece que foi hoje. Foi ontem de manhã... quando penso nesta manhã é mais fácil entrar — e qual é essa de precisão-sobre-o-que-não-importa? Eu estava tremendo um pouco, e deixei acontecer. Se eu me faço tremer, ou é da mesma forma ou eu mudo. Quando o tremor é organísmico, nunca é duas vezes igual — o movimento, a evolução, a mudança, até mesmo o acalmar-se é diferente. Primeiro tomo consciência da sala e das pessoas em tomo de mim, do meu corpo na cadeira, e assim por diante — pelo menos de maneira difusa — mesmo quando fecho os olhos. Então me tomo a tremedeira. Não existe nada a não ser a tremedeira e eu sou tremedeira. Hoje isso aconteceu também com a respiração — depois que a tremedeira tinha-se acalmado. Ray me perguntou: “O que está havendo?”; respondi: “Respiração”. No verão passado, eu estava na Casa com o Fritz. Ao voltar para a minha cabana percebi que estava com raiva dele. Eu sabia que não precisava enlaçá-lo com a minha raiva para me acalmar, embora não tivesse idéia do que fazer. Na cabana, deixei-me sentir a raiva, senti-la totalmente. Tomei-me raiva. Quieta, parada, sem gestos, sem voz, eu era a raiva. Não existia nada além de raiva. Então, quando tentei me apegar a quem ou a que me provocara raiva, não consegui. Era como caminhar por um nevoeiro para alcançar algo que não está ali. Pareceu-me irrelevante “de quem” ou “de que” eu tinha raiva. Tolice. (Como algum conceito tolo dos nativos.) Raiva. Nada a não ser raiva. Eu me senti bem. Isso passou. Não estava mais com raiva. Tudo foi lavado. Não consegui fazer voltar a raiva do Fritz mesmo tentando. Era como algo que eu desejara anos atrás e não desejo mais, e nem sequer consigo voltar à lembrança de ter desejado. Eu tinha ocupado o lugar quente (inesperadamente) com “medo” e “escuro” na cabeça. Conheço os meus medos no escuro, e não fazem sentido para mim. Nunca fizeram sentido. Tudo que posso dizer sobre eles tem suas exceções. A única afirmação precisa é “medo” e “escuro”. “Amo o escuro e tenho medo do escuro” é basicamente verdade, mas com exceções. Fritz disse que gostaria de tentar um atalho. Pediu-me que ficasse no útero da minha mãe. Para isso, tive de cobrir os olhos com as mãos, para que ficasse escuro. (Isso se sugeriu a mim insistentemente — não foi algo que decidi.) Consegui entrar só em parte. O que aconteceu me interessou — minha cabeça caiu e as minhas costas se enrolaram. Será que eu estava me forçando a fazer isso, com base em fotos que vi? Não senti isso. Ao mesmo tempo estava cética. Então os meus pés, que estavam um pouco esticados para a frente, apoiados no chão, começaram a se mover para trás. Também fui cética em relação a isso, e fiquei achando que deveria mantê- los onde estavam. Minhas pernas se tomaram insuportavelmente desconfortáveis, e isso se aliviou quando as deixei moverem-se sozinhas, dobrando os joelhos. Gostei do escuro, mas sons agudos como uma tosse forte, pernas de cadeira arranhando o solo, eram muito dolorosos para mim — como se rompessem os meus tímpanos. Os sons leves eram bons — como a tosse leve do Fritz que mais parecia água escorrendo sobre mim. Quando tirei a mão dos olhos fechados, querendo usá-la para mostrar os ângulos dos sons agudos que chegavam a mim, a luz ficou insuportavelmente forte — intensa. Fechei o olho o mais depressa que pude. *** Esta noite tivemos um jantar-e-depois em silêncio. Gostei tanto da comida, e ao mesmo tempo — era como nadar no oceano. Tanta sensação e consciência, tanto espaço. Gostei dos sons que ouvi — gostei de ouvir, em vez de ser torturada pelo ouvir. Eu não sabia dos outros. Fiquei muito feliz quando muitos pediram mais, durante a reunião da comunidade; Fritz sugeriu que todo jantar fosse sem falar. Algumas pessoas tinham perturbado (não na sala onde eu estava), fazendo gesto de ordenhar vaca para pedir leite, dando risada. A viagem do ego. Pensar, não sentir. Uma moça tinha dito “uma palavra” e duas pessoas pularam em cima dela (silenciosamente). Não mencionou que a palavra fora “Bosta!”, e que ela a dissera rosnando. Mas é claro que ela estava com dificuldade. Fritz sugeriu uma modificação no não falar, de modo que as palavras essenciais pudessem ser ditas. A maioria das pessoas gostou, e algumas guardaram a esperança de que as “poucas palavras” sejam ditas em voz baixa. Glenn disse que era como estar noutro mundo. Era mesmo. É tão mais do que eu esperava; eu queria só duas horas sem falar. Jantares sem falar! Cada pessoa disse algo diferente. Tom disse que geralmente fica calado durante o jantar, e que fica se martelando a cabeça o tempo todo para dizer algo. Agora ele pode não falar sem se martelar na cabeça. Eu comi na sala de estar, e havia apenas uma outra pessoa lá. Duas vezes tive o pensamento (sic) “Eu devia dizer algo”, e punha uma porção na boca para me livrar dele, para tirá-lo da minha garganta. Todo o resto foi divino, e a lavagem de pratos também foi em silêncio, de modo que fiquei apreciando os sons. Quando voltei a minha cabana, notei a quietude em mim, e lavei lenta e silenciosamente os pratos do dia anterior que estavam na pia. Varri o chão da mesma maneira. Coisas que não tinham sido feitas foram feitas, com felicidade. Uma mulher disse que após ter saído da Casa e ido para sua cabana, estava sem fantasias. Algumas pessoas disseram que mastigaram mais a comida — e comeram menos. Estou admirada. Na sessão em que voltei ao ventre da minha mãe, mencionei ao Fritz que tenho fantasias com os sons no escuro quando estou só, e não faço isso quando há luz. Fritz recomendou que eu tentasse escutar os sons e enxergá-los como vozes (ou algo assim). Para mim isso faz algum sentido — mais do que um escuro de amor-medo. De certa forma, a coisa parece correta, como se a minha coluna dissesse "sim", embora eu não saiba quais vozes ou palestras serei capaz de ouvir. Quis trabalhar com isso na noite passada, e quero trabalhar com isso agora, mas terei de estar em algum lugar mais isolado para fazê-lo. Ou talvez eu possa fantasiar que não há ninguém no quarto ao lado, e soltar-me no medo, e escutar os sons e deixar que se tornem vozes. Quando estive doente, uma das coisas que fiz foi pegar as palavras “não gosto de cor-de- rosa” (que muitas vezes dissera) e deixá-las escolher algo do passado e ver de onde vinham, porque certamente elas não me serviam. O que eu tinha em mente foi muito diferente do que ocorreu. {Agora, eu ficaria muito cética se qualquer coisa saísse do jeito esperado. Eu recebo a resposta, mas a forma de receber e o conteúdo da resposta são tão diferentes do que espero que sejam.) Ouvi “uma voz” nos meus ouvidos, dizendo: Nãogostodecorderosanãogostodecorderosa bem depressa. Escutei. Só isso, escutei. “A voz” se transformou em três vozes, então as três se tomaram claramente vozes femininas, e então viraram as vozes da minha mãe, da minha irmã e da minha tia Alice. Não importa aqui o que aprendí com isso. Vi toda uma configuração e “não gosto de cor-de-rosa” ficou totalmente claro para mim. Alguma outra pessoa não gosta de cor- de-rosa. Estou um pouco triste por não poder trabalhar um pouco mais com amor/ medo/escuro agora. Antes, quando estava escrevendo, algumas das sensações voltaram, e pensei que poderiam evoluir. Então veio um telefonema interurbano. Então. Então. Então. Talvez neste fim de semana. Quando acabei com a parte do ventre da minha mãe, e voltei a estar com as pessoas, Fritz me disse para fechar os olhos outra vez. (Eu não estava totalmente com as pessoas.) Ele falou algo sobre “despersonalização”. Não sei o que isso quer dizer. Eu não me sentia despersonalizada. Eu era eu e cada outra pessoa era ela própria. Eu me sentia eu. Era sim. Enxerguei lábios virados de cabeça para baixo. Então eles se puseram na posição certa e se moveram em direção à minha boca, e desapareceram na minha boca. Eu estava com dois prendedores nos ombros — um em cada ombro — parecidos com os prendedores que os homens costumavam usar nas calças quando andavam de bicicleta, para que as calças não ficassem presas na roda. Os prendedores eram brancos. Assim que disse que eram parecidos com-prendedores de bicicleta, eles se tornaram escuros, quase pretos. Então o prendedor do ombro esquerdo ficou branco, e quase desapareceu até só ficar uma coisinha parecida com uma falange. Eu gostaria de saber o que é isso, mas não adianta buscar a resposta. Se eu buscasse e encontrasse, seria uma resposta inventada por mim. Ou a resposta vem ou não vem. Sinto falta do “meu amigo”, que sou eu. Mas estou aprendendo mais a me deixar só. No grupo pequeno desta noite. Hal disse que estava com sono, e sentia-se incomodado pela sua responsabilidade de terapeuta quando não conseguia responder. Alguém quis um pouco de trabalho de tomada de consciência. Hal foi primeiro. “Agora tenho presente” — dentro e fora da pele. Quando acabou, perguntei: “Você está com sono?” Hal: “Não”. Eu, agora: Sim, e estou excitada (não superexcitada) com aquilo que acontecerá quando eu me deitar e fechar os olhos. Quando às dez da noite entrei no grupo grande, era como um teatro, com tanta gente, todo mundo diferente, cores tão lindas, e uma espécie de fluxo entre as pessoas, e eu era simultaneamente observadora e participante de tudo isso. Quando fui para a cama, apressei o rio em vez de deixá-lo correr sozinho. No começo não. Mas então gostei do que estava acontecendo, e em vez de fluir com a corrente, fiquei ávida e apressei — e perdi o acontecer-por-si-só. Tentando mudar aquilo que amo, eu mato. Tentar fazer mais funciona da mesma maneira que tentar fazer menos. Não devo ter feito muito isso ontem à noite, porque esta manhã havia apenas um punhadinho de tristeza, e o meu corpo está mais livre — muito mais livre. A minha coluna parece fluir. Os meus ombros se mexem com facilidade. A miserável rigidez que eu tinha “por causa do tempo chuvoso”, “por causa do colchão vagabundo em que tenho dormido” (às vezes eu mesma pensava isso), simplesmente não se faz presente. O ar ainda está turvo. O colchão ainda é vagabundo. Eu mudei. Fritz tem razão a respeito dos músculos da minha barriga: a maioria deles está morta. Esta manhã. Esta manhã. Que diabo aconteceu esta manhã. Ali! No grupo de treinamento adiantado, Fritz disse: “Tenho certeza quanto ao fenômeno. Não tenho certeza quanto às projeções. Fiquem com o fenômeno e lidem com as projeções da maneira que lhes ocorrer”. Bravo! E o que eu sinto. Nunca aprendi esse negócio de projeção — como lidar com projeções. Eu não me sentia segura em relação a isso. Como líder de grupo, e até certo ponto como treinadora de Gestalt, eu sentia que devia saber tudo isso. Não sentia na minha própria maneira de trabalhar com as pessoas; mas sim no caso de passar a Gestalt para os outros. Quando Hal e eu começamos a trabalhar juntos, disse-lhe que esperava que ele fosse forte naquilo que eu era fraca. Esta manhã disse-lhe que o que eu tinha em mente eram basicamente as projeções. No grupo adiantado, quando Fritz nos pediu para expormos as nossas dificuldades como líderes, Hal falou da sua incapacidade com projeções, ou algo assim, e Fritz disse o que mencionei acima. Liberdade! Que eu tive o tempo todo e não usei. Não. Usei, mas ao mesmo tempo achei que estava sendo inconveniente em usar — como se faltasse algo. E é claro que/a/tava algo. Essa espécie de embrulhada é muito confusa. Faltava algo, eu sabia que estava “sentindo falta” do negócio de projeção. A minha percepção de “faltar” focalizou-se no negócio de projeção. Na verdade, qualquer pensamento sobre o que não estou fazendo (ou fazendo) afasta a minha tomada de consciência do fenômeno, e eu sinto falta da minha consciência do que está se passando em mim ou em outra pessoa. E como ser convencida, pelo meu marido, de que estava louca — e eu estava louca, mas não do jeito que pensei que estivesse. A minha forma de estar louca não podia se revelar enquanto eu focalizasse que pensava ser, tentando decidir se era ou não. O organismo não toma decisões. A decisão é uma instituição artificial. O organismo funciona sempre com base na preferência. — Fritz. *** Estou me deixando acontecer mais do que deixava. Não muito, só um pouquinho. Esta manhã deixei acontecer (com alguns minutos de atraso) o meu aborrecimento com a Harriet por ela manipular o Hal, e com o Hal por ele concordar com a manipulação. Isso precipitou um acerto de contas entre Harriet e Hal. Eles tinham trabalhado algum tempo, e estavam entrando numa calmaria (em que já tinham estado antes, mas tinham saído), quando o Fritz entrou. Harriet parou. Eu queria que o Hal dissesse ou fizesse algo para manter o movimento, porque (palavra suja) ele estava sendo o terapeuta, (aspas) Ele não fez nada, então eu fiz. Harriet e Hal puseram- se de novo em movimento. Após alguns instantes, Fritz se meteu. De maneira geral, foi uma sessão boa para Harriet, por ela ter entrado em contato com algo. Depois do almoço, Harriet me procurou e me agradeceu por trazê-la de volta, quando ela não conseguiu se movimentar mais (a entrada do Fritz deixou-a ainda menos inclinada a continuar). No grupo adiantado, Fritz quis um fósforo. Ele quase não está fumando tanto quanto fumava. Quase joguei um monte de fósforo em cima dele, mas pensei: “Nunca vou conseguir acertar — vai passar longe” — e joguei a caixa de qualquer jeito, depressa, num único impulso da minha mão a partir de onde ela estava (mão direita próxima à coxa esquerda) — sem me colocar em posição e jogar como “deveria”. A caixa não foi para onde eu queria, mas passou ao alcance do Fritz, ele se mexeu e agarrou-a facilmente — maravilhosamente. Que funcionamento! Estou muito menos inclinada a escolher alguém para trabalhar, seja como “paciente”, seja como “co-terapeuta”, ou mesmo para estar em companhia. Mais disposta a pegar quem aparece e trabalhar a partir daí. Estou novamente vacilando com Hal como co-terapeuta (fator novo), mas estou começando a me equilibrar outra vez. *** Fritz reduziu muito seu fumar. Agora, freqüentemente quando olho para ele, não está fumando. Costumava ser o contrário. Após trabalhar com ele em agosto a respeito do meu fumar (e outras coisas) me liberei tanto — chorando, contorcendo-me, soluçando por mais de uma hora — e depois disso, quando fumei um cigarro, o gosto realmente foi muito estranho. Durante um dia e meio, notei que isso iria acontecer, e fumava um cigarro. Quando o gosto não ia ser bom, não fumava — ou começava, e largava. Diminuí os cigarros. Então entrei numa de “fazer as coisas” antes de ir embora daqui, para uma viagem com a Helen, muito tensa, e seu bebê brigão — Helen muito negativa, realmente; expressando tanto desgosto — e eu não podia fumar (no carro) quando queria, e quando parávamos eu descia e fumava, e tudo se estragou. Fritz agora é quase sempre um velho muito caloroso e gentil. Passa mais tempo conversando com as pessoas do que costumava passar. Tem muito mais paciência. Eu estou querendo muito ficar mais com o resto da natureza, e fazer outras coisas, além de grupos — pintar, cozinhar, outros jeitos átfazer coisas. Mas agora não quero ir embora daqui. Prefiro passar duas horas por dia com grupos, em vez de quatro. Mas as coisas são assim — e talvez duas horas também não sejam o que eu quero. Aprendo muito com as quatro horas, e esta é uma maneira de deixar sair mais de mim. Quero mais tempo para outras maneiras. Mas não sei se esta maneira, e a pressão, ajudarão as outras; ou se serão empecilhos. Quando sei não sei, é muito mais fácil aceitar o que é do que pensar que outra coisa seria (certamente) melhor. Examinei com Neville e Hal o que Fritz disse esta noite. Em suma: Projeções são teoria. Fenômenos são realidade. Hoje o Fritz parecia cansado. Na reunião da comunidade ele disse que os grupos estavam muito parecidos com grupos de encontro. Eu também acho. Algumas semanas atrás, eu estava liderando um grupo à maneira da Gestalt. Então ele disse para deixar outras pessoas entrar; não só o co-terapeuta, “como está acontecendo nos outros grupos”. Me pareceu que foi isso que nos fez cair nesse negócio de encontro. Pelo que ouvi, não creio que no meu grupo isso tenha sido tão ruim quanto em outros. Sei que é pior do que eu gostaria que fosse, e que eu também entro. Quando o Neville participa, ele é ótimo. Algumas outras pessoas não estão dispostas a aprender antes de falar. Deixe-me voltar a eu, e ver como me saio. Aborreço-me com algumas das interrupções. Eu acho que “devo” deixá-los falar — eles foram reprimidos e devem ter permissão de falar. Eu fico ressentida porque “devo” (o “devo” é meu) soltar os bebês e deixá-los crescer. Eu fico confusa com aquilo que eles dizem. Eu entro no mesmo modo de pensar/falar. Eu os deixo continuar quando acho que não estão chegando a lugar nenhum. Soltar os bebês é bom em algumas circunstâncias. Aqui, para mim — Que se dane. Eu gosto de aprender escutando e depois entrar, e eu quero que os outros façam a mesma coisa. Tudo isso também é absurdo. Jogue tudo fora e comece de novo. Fique no seu lugar, garota. Basta isso. Culpar os outros é choramingar. Isso não é só uma afirmação. Tenho muita consciência de tudo que ela envolve. Upa! Tudo isso saiu num círculo maior, junto com outras coisas. Agora eu gostaria que nos reuníssemos amanhã, para poder fazer algo, em vez de ter de esperar até segunda-feira. A única “preparação” que posso fazer é estar mais no lugar, em tudo — mais consciente, inclusive consciência do que está se passando dentro de mim, e dizer, especialmente nos grupos. Se eu não fizer isso, estarei fugindo. Acabei de ver outro círculo, que inclui mais coisas. Tudo nesse círculo sou eu — minha própria falta de sentido, meu próprio não-sentir. Seguindo aquilo que eu pensava (ugh!) serem regras. Nem mesmo sei se as regras existiam fora da minha cabeça. (Minha interpretação do que o Fritz disse.) Em todo caso, seguir regras que não funcionam é o maior absurdo; e deixar o Fritz ser a autoridade em vez de seguir a minha própria autoridade, este é o maior absurdo de todos. Acho que ele concordaria com isso. Seria até capaz de dizer: “Já estava na hora!”. Hora de eu enxergar isso. Ficar com o fenômeno. Com isso eu realmente concordo. O fenômeno da outra pessoa e o meu próprio. Sempre mudando. Movendo-se com as mudanças. Acabei de ver um novo círculo, que inclui um território ainda maior. Meu Deus, como sou boba! Reconheço isso. Um grande holofote ilumina o que acontece. Agora, nada de choramingar. Estou de volta ao “Tudo está bem.” Está bem que amanhã seja amanhã, e que segunda- feira seja segunda-feira, e que sábado e domingo estejam no meio. Não tenho idéia do que acontece em cada um deles, e isso também está bem. Não preciso fazer nada acontecer. Só deixar-me acontecer junto com aquilo que acontece. Sem sacos nas costas. Sem análises. Sem generalizações. Sem pensar sobre. Uma rosa é uma rosa, é uma rosa. Estou com vontade de botar uma história aqui, então ai vai outra história, que escrevi há vários anos. E mais lenta do que “Janela para o Turbilhão”, e também tem outras diferenças. Quando a leio depressa, acho que é uma história ordinária. Quando leio mais devagar, no ritmo dela, gosto, e sinto-me bem com o que ela diz.

Aqui e Ali Quando me disseram que tinha sido escolhida, fiquei toda contente e por dentro tive medo, mas o contentamento foi maior do que o medo, e isso me fez agüentar firme. Quando apertei o botão, o contentamento e o medo eram quase iguais, então eu ainda estava bem. Quando lá cheguei, a coisa já era outra: o medo era total, medo de não poder voltar. Eu devia ter sabido. A minha mãe frequentemente me dizia: “Veja bem o que decide com seu coração, pois um dia eie será seu”. E isso também tinha um jeito certo de acontecer. Mas mesmo assim, logo que cheguei, me parecia que a coisa mais importante do mundo era voltar. Eu havia sido instruída de todas as maneiras possíveis — preparada para toda e qualquer coisa que pudesse encontrar ao chegar no futuro. Estava prevenida contra que eu não sabia. E então, no momento que cheguei, não havia nada — apenas eu e a noite semitropical. Talvez isso pareça fácil, mas não foi. Eu não podia crer. Não ousava me largar. E como querer alguma coisa por muito tempo, por tanto tempo que quando a coisa chega, está vazia. Tínhamos escolhido o Havaí por uma série de razões. O clima era brando. Quaisquer que fossem as minhas roupas, provavelmente eu poderia trocá-las por algo apropriado. Abrigo não seria problema imediato, comida tampouco, e eu poderia lavar-me no mar. O povo do Havaí era tão misturado racialmente que se a minha aparência fosse estranha para 2164, provavelmente não seria realmente notada. Com tantas línguas e acentos diferentes, o meu passaria despercebido, mesmo que os anos o tivessem piorado muito. As ilhas eram pequenas e seria fácil orientar-me nelas. Ao mesmo tempo, estão em contato com o resto do mundo, e eu poderia saber de notícias úteis para mim. E assim por diante. O computador havia recebido montes de dados. Sabíamos que as coisas poderiam sair diferentes do que imagináramos, mas precisávamos seguir o nosso próprio pensamento e arriscar o resto, exatamente como se deve viver a vida. Exceto que geral mente a gente vive um ano após o outro, sem pular 194 anos. Eu escolhera uma época que ficava à mesma distância de nós que a Declaração da Independência. Essas eram as mudanças que eu julgava poder absorver de um só golpe. Meu aparecimento em 2164 se deu em Kaneohe, na parte de Oahu voltada para os ventos. Isto é, eu estava só numa metade do lugar, pois algo havia acontecido com a outra metade, e não pude descobrir o que. Simplesmente parecia que ela não estava lá. Era de noite, mas a lua estava clara. O trevo da estrada ao pé do Pali tinha desaparecido. Eu podia ver alguns sinais do lugar onde ele existiu, mesmo à luz do luar, por causa de uma diferença na vegetação — uma espécie de contorno; porém, o crescimento da selva havia apagado bem os traços. Parecia que as coisas tinham ido para trás. O mesmo acontecia com o pequeno caminho de terra que levava para o topo do Pali. Pensei ver um carro se movendo, próximo ao cume; mas se fosse mesmo, ele não tinha faróis, e por isso talvez eu estivesse enganada. Cem toda certeza, o silêncio era total. Eu tinha me esquecido que tanto silêncio era possível. A noite parecia boa para subir o caminho do Pali até o outro lado da montanha, e descerem Honolulu ao amanhecer. Eu não temia nenhuma agressão, porque não parecia haver agressão no ar; porém agressão não é a única coisa que pode nos ferir. Eu não deveria me anunciar enquanto não tivesse aclarado as coisas. Seria fácil anunciar-me simplesmente fazendo ou dizendo coisas “erradas”. Dirigi-me ao Pali, com flores noturnas abertas em profusão. Esperei que isto fosse um bom sinal. Realmente fica-se no vazio quando não se pode contar com nada. Talvez tudo esteja bem, mas — Tropecei em algo e quando consegui me levantar, estava voltada para uma direção levemente diferente; bem na minha frente havia uma casinha que eu não tinha notado, sob a sombra de uma sapucaia. Não tinha muito jeito de casa. Fiquei com vontade de xeretar, e espiei por trás de um arbusto para dentro de uma janela aberta. Não havia quase nada na casa, mas na parede estava o mais belo televisor em cores que eu já tinha visto — ocupava a parede inteira. Então ri comigo mesma. As coisas exatamente iguais: gente vivendo em casebres com televisão em cores. Eu estava acostumada com esse tipo de absurdo. Mas então uma criança chorou dentro da casa, e a mulher que aparecia na tela do aparelho saiu e passou para o quarto, saindo do meu campo de visão. Por alguns instantes ouvi palavras confortadoras. A criança parou de chorar. A mulher voltou e entrou na tela, e continuou o que estava fazendo! Então notei que não havia ninguém assistindo a televisão. Isso me abalou. Tive de lembrar-me de como George Washington se sentiría se se levantasse em 1969 e espiasse pela janela de uma casa, até mesmo janela da Casa Branca. Eu ficaria maluca se continuasse ali parada, sozinha ao luar, tentando resolver o problema. Precisava obter mais fatos. Foi difícil subir o caminho do Pali; ventava, a montanha se erguia íngreme à esquerda e caía em precipício à direita. Mas meus pés sentiam o caminho de terra, e descobri que estava gostando. Era mais fácil caminhar por ele do que na época em que fora asfaltado, embora de carro devesse ser bastante desagradável, se é que alguém subia de carro. Mas é claro que subiam! Havia marcas de pneus. Bem, se viesse um carro eu o ouviría, mesmo que ele não tivesse faróis para me prevenir. Mas não ouvi. Não houve perigo porque ele se movia tão devagar que não ouvi nada do carro, a não ser um ruído de algo se movendo sobre a terra. Fiquei de lado para deixá-lo passar, mas a velocidade diminuiu ainda mais, e uma voz de homem gritou: “Você tem carne de porco?”. Se eu dissesse Sim, poderia meter-me em apuros porque não tinha como provar; então disse Não, e esperei o que aconteceria em seguida. “Pegue!”, disse o homem, debruçando-se um pouco na minha direção; mas não consegui ver direito o seu rosto. Algo me foi jogado, e eu não sabia se devia agarrar ou deixar cair. Mas a voz parecia amigável — e talvez tenha sido por isso que agarrei, e de repente me vi ali parada com um pedaço de carne de porco crua nas mãos, enquanto o carro se afastava, silenciosamente. Vi-o fazer outra curva e desaparecer, então aparecer francamente na curva seguinte. Um braço surgiu por alguns instantes ao luar, e pareceu lançar qualquer coisa sobre o rochedo. Clique! Ali era o lugar onde, segundo a crença dos antigos havaianos, o cão da deusa Pele ficava à espreita, numa caverna sob a estrada, e quem passasse à noite por aquele lugar devia jogar um pedaço de carne de porco para o cão, ou ele sairia e morderia a pessoa — não! Não era isso. Era se a pessoa tivesse carne de porco no carro, tinha de dividi-la para sua própria proteção. A mitologia deve ter-se misturado toda. Bem, isso já havia acontecido antes. Em todo caso, eu não acreditava mesmo. Tirei um pequeno saco plástico do bolso e pus a carne de porco dentro. Poderia assá-la e comê-la antes de ir para a cidade. Que mundo! Aparelhos de televisão além da minha compreensão, carros silenciosos, e gente que acreditava na mordida do inexistente cão de uma deusa inexistente. Acho que não é mais doido do que chegarmos até a lua e ainda termos faculdades de quatro anos porque a Inglaterra as tinha no século XVII, quando começaram, e a Inglaterra as tinha porque no século XII as pessoas ricas enviavam seus filhos para o continente a fim de ampliarem sua educação, e decidiram que quatro anos era o suficiente para os filhos ficarem longe de casa. Quando cheguei ao cume do Pali, fiquei ali sentada, observando a parte de Kaneohe que dali se via. Pude ver que não havia luzes em Mokapu, onde costumava ficar a Base Aérea e Naval. Parecia o blackout durante a guerra. Involuntariamente estremecí. Outra vez, não! Eu precisava ter mais fatos. Então me pus de pé e principiei a descer através do Vale Nuuanu em direção a Honolulu. Se Honolulu ainda estivesse lá. O vale tinha mudado. Sempre tinha havido um monte de coisas crescendo no lugar, silvestres e cultivadas. A parte cultivada tinha sumido. Nenhuma fazenda. Apenas a selva. A estrada de terra estava toda cheia de lama, e mesmo assim eu gostava dela. Há anos eu não saía de estradas pavimentadas. Continuei procurando placas indicativas que não existiam. A caminhada parecia não ter fim. Até mesmo o grande cemitério de Nuuanu, que costumava ficar dos dois lados da estrada, tinha sumido. Só havia a selva. Ela real mente tinha tomado conta de tudo. Não fosse pelo casebre e pelo carro com o homem da carne de porco, eu teria pensado que talvez fosse a única pessoa na ilha. Após a caminhada, estava cansada. Atirei-me no chão e dormi. Quando acordei, o sol já ia alto. Ele me salpicava com seus raios passando pelas folhas dos mais belos jacarandás que já vi. As cores eram as mesmas, mas não dá para imaginar a diferença. O brilho era mais intenso, reluzindo, e as partes sombrias eram mais profundas. Era possível mergulhar em cada uma delas. Foi o que fiz. Fiquei ali deitada, olhando as folhas rendadas movendo-se contra o fundo azul do céu, com um sentimento de toda a eternidade, e de mim mesma unida com a terra, com as pedras, com a grama, com as coisas que crescem e com as que não. crescem, como se todos nós fôssemos ilimitadamente vivos. Talvez seja por isso que não ouvi as pessoas enquanto elas não estavam quase pisando em cima de mim. Ouvi suas vozes, e desejei poder lê-las num livro. Era inglês, certamente, mas o sotaque tinha mudado, e a palavra escrita não muda tão depressa quanto a falada. Debati-me para entender o que diziam. As vozes eram agradáveis — macias, cadenciadas, subindo, descendo —, uma variedade maravilhosa, parecia uma canção. Quando me viram, vieram e sentaram-se ao meu lado na sombra. Nada de cumprimentos. E, depois disso, de certa forma me incluíram e me ignoraram, ao mesmo tempo. Eu não sabia se estava “dentro” ou “fora”. Vestiam roupas simples e as cores eram bonitas. Pense nas suas cores favoritas. Eram essas. Não havia muita diferença entre as roupas dos homens e as das mulheres. Toda vez que eu notava algo de diferente numa roupa de homem, acabava notando a mesma coisa numa de mulher — mas não em todas as mulheres. Desisti. Após algum tempo, trocamos algumas palavras e então ficou claro que era como em todos os lugares sem pressa, onde a gente tem tempo de pensar antes de responder, mesmo que seja para dizer Sim. Era uma espécie de papo vazio, mais pela música e pela amistosidade do que pelo que se dizia. Então um deles me perguntou aonde eu ia. “Pagar meus impostos”, respondí, pensando que este seria um chute seguro, em qualquer lugar, em qualquer tempo. Eles explodiram de rir! Então levantaram-se, como se tivessem estado a me incomodar, e eu tivesse acabado de deixar isto claro, e continuaram andando. Não sabia o que havia acontecido. Para uma pergunta estúpida, uma resposta estúpida? De qualquer maneira, eles não se ofenderam. Neste curto espaço de tempo que passara com eles, eu já me perguntava se alguma coisa poderia ofendê-los. Eu estava faminta. Preparei um pedaço de carne e o comi junto com algumas framboesas da Jamaica que cresciam em volta. Então notei as roupas que eu vestia, às quais eles nem tinham prestado atenção. Eles t/everiam ter prestado. Fui tola em não trocá-las por algo menos chamativo, mas uma vez que não o tinha feito, eles deveríam ter estado surpresos, curiosos ou sem jeito. Então percebi que da mesma forma que sua fala me era estranha, a minha deve ter sido estranha para eles, e nisso tampouco prestaram atenção. Será que eu era invisível ou algo assim? Não. Não me senti assim enquanto estavam comigo. Me senti muito eu o tempo todo — eu, de uma forma que raramente me sinto. Bem, em todo caso, agora sabia um pouco mais sobre as pessoas, roupas e coisas assim, e era melhor não mencionar impostos, a menos que quisesse me fazer de palhaça. Talvez este fosse um bom papel a desempenhar. Ele encobre uma porção de asneiras. Pare de pensar! É uma cilada. Suponha que esta gente não goste de palhaços. Era difícil dar uma boa olhada nas casas sem ser xereta, então fiquei vagando por caminhozinhos e ruazinhas. Algumas delas eram tão estreitas que até mesmo carros pequenos só podiam passar um de cada vez, numa só direção. Vi algumas pessoas trabalhando nos jardins e outras cantando, ou tocando um instrumento que era mistura de violão com violoncelo. Havia uma sensação boa em toda parte. De repente comecei a rir, pensando em toda a preparação e cuidados, quando nada disso se fazia necessário. Tudo que eu precisava fazer era dirigir-me a essa gente e conversar com ela, talvez até mesmo pedir um desjejum. Então fui até uma casa, e uma mulher loira de cabelos compridos e olhos verde- cinzentos, parecida com a deusa Norse, atendeu a porta e perguntou: “Quer tomar um chuveiro?”. Ufff 1 Aqui estava eu, entrando nas coisas, pensei, e essa mulher — bem, era como saltar do hoje para o amanhã, e de repente descobrir que alguém já está no depois de amanhã. E ao mesmo tempo — o que eu queria acima de tudo era um bom banho, que foi oferecido antes mesmo de eu própria notar. Acho que a palavra para o meu sentimento é surpresa; mas nós a temos usado tanto para não dizer nada, que para mim ela já não diz nada. A casa era feita de tábuas lisas do lado de fora, trabalhadas de tal forma que se misturavam com o restante do cenário; o interior era muito simples, mas o chuveiro era imenso. Entrei nele, tirei a roupa e joguei-a num canto, virei a torneira — e a água caiu de todo o teto, feito chuva. Fiquei correndo debaixo da água como uma criança nua numa tempestade. Nunca me tinha ocorrido que os nossos cubículos de chuveiro me oprimiam, que a gente não pode se divertir muiio neles, c CÜ estava gostando desta liberdade. Então soltei um grito, porque deixara as roupas no chão, num canto que tinha julgado seguro, e agora estavam ensopadas. Desliguei o chuveiro, e estava começando a pensar o que fazer quando a porta se abriu com um rangido e um menino pequeno de olhos azuis e rosto tranqüilo — um Buda em miniatura, se é que já vi algum — enfiou a cabeça e a mão, estendo alguma coisa dobrada, e dizendo: “Você quer?”. Era um roupão, uma espécie de quimono modificado. Joguei para trás os meus cabelos molhados, com as mãos, vesti o quimono, e saí do chuveiro. Havia um pequeno saguão, e mais adiante uma sala com janelas quase até o chão, que davam para o jardim. Um aroma de gengibre entrava pela sala — quase vazia — apenas colchões no chão e pilhas de almofadas. Andei na direção delas para arrumar algumas; sentei-me no chão, apoiada na parede. Era como um sonho no qual a gente sabe o que tem de fazer, embora nunca o tenha feito antes. Uma menininha preta, com cabelo africano, entrou carregando uma bandeja de comida. Ela parecia azeviche polido, reluzia toda. Não tinha mais de quatro anos, e brilhava de satisfação com a façanha de me trazer a bandeja. Peguei-a de suas mãos e ela sentou-se ao meu lado. Olhou para mim seriamente por um tempo que me pareceu muito longo e então disse: “Você é diferente”. “Sou?”, disse eu. Eu poderia ficar sabendo de algo. “Em quê?” Ainda com seriedade, ela respondeu: “Diferente”. “Diferente de você?”, perguntei. Ela balançou a cabeça. “Diferente da sua família e amigos?” Ela balançou a cabeça. Eu mesma me sentia assim, e estava gostando, mas de quem ou de que eu era diferente? Então ela se levantou, virou uma cambalhota, olhou por cima do ombro na minha direção, e saiu correndo. Então voltou com um grande copo de suco de frutas gelado, uma mistura que eu nunca vira. Então saiu correndo e eu a vi brincando lá fora. Quando uma mulher que trabalhava no jardim se aproximou dela, a menininha disse: “Ela é diferente”. Contive a respiração, aguardando a resposta, mas tudo que a mulher disse foi “Ali!” e continuou a trabalhar na terra. Após o desjejum, olhei admirada para a bandeja vazia. Eu tinha apreciado o sabor, a textura e a cor de cada comida em separado, e a combinação de todas elas, sem pensar uma vez sequer no que estava comendo. Agora que tinha acabado, não conseguia adivinhar. Restou apenas um sentimento de conforto e prazer. Peguei os pratos e talheres e procurei uma cozinha, onde os lavei e coloquei num escorredor para secar. Não havia toalhas. Assim que os coloquei no escorredor, apareceu um insuflador que os secou. Na época da qual eu vinha, esse aparelho era usado apenas para secar as mãos em banheiros públicos, e ali eu não gostava tanto dele. Para os pratos, era ótimo. Voltei para sentar-me, mas lembrei-me das roupas molhadas no chuveiro, e comecei a voltar para procurá-las — só que as vi penduradas num varal ao sol, limpas e brilhantes. Mas não gostei delas. Elas me pareceram grotescas, com uma forma absurda, como algo usado por um espantalho. Meu corpo não as queria mais. Sentei-me no degrau, com o vento soprando entre os arbustos e alisando a minha face, e senti que podia ficar ali sentada para sempre. Era melhor eu não ficar muito tempo por aqui, pois — na verdade, o que importava? No lugar onde me encontrava agora, a maior parte das atividades que antes me pareceram tão importantes lá, eram como ratos correndo em confusão. Olhei para como eu era, um desses ratos. A única coisa que podia ser dita a favor daquilo, era que tinha me ajudado a chegar aonde eu estava agora. Ninguém prestava atenção em mim, e isso era bom. O trabalho prosseguia à minha volta. Supus que fosse trabalho. Parecia aquilo que chamamos de trabalho. Mas era uma espécie de brincadeira. Era como se todo mundo estivesse fazendo algo que precisasse ser feito, mas sem levar a sério. Quase se podia pensar que era um jogo, exceto o que se fazia. Uma criança chamou a outra: “Devagar até a próxima árvore!”, e as duas se puseram lado a lado, e começaram a se mover tão devagar que mal se podia ter certeza de que não estavam paradas; mas quando se observavam seus pés descalços, um dos dois se arrastava lentamente pela grama, parando um pouquinho à frente do outro pé. E então este começava a se mover. “Que coisa estranha!”, como se o tempo não existisse mais. “Você parou!”, disse uma delas. “Temos de começar de novo”, e as duas correram para começar outra vez. Uma moça que parecia havaiana, aproximadamente com vinte anos, aproximou-se da escada carregando uma cesta cheia de verduras. Olhei para ela e perguntei: “Em que sou diferente de você?”. Ela respondeu, num tom de óbvio: “Diferente de você mesma”, e entrou na casa. O aroma das verduras me envolveu enquanto ela passava, e era tão bom que mesmo que fossem nabos, eu queria comê-los. Não nesse instante. Eu ainda estava gozando o desjejum. Mas não queria perdê-los para o almoço. De repente me lembrei do secador de pratos. Pensei nele porque acabara de notar que não havia fios perto da casa, e tampouco tinha ouvido o ruído de motor elétrico. A moça saiu da casa e sentou-se ao meu lado, com tanta naturalidade como se fosse minha irmã. “De onde vem a energia elétrica?”, perguntei, com meu pensamento transformando-se em palavras com a mesma rapidez que saíra antes, sem preâmbulos sociais, sem eu tencionar que assim fosse. Primeiro quis me apresentar. Mas, de alguma maneira, não consegui fazer isso. Me pareceu um desperdício de vida. “De onde vem a eletricidade?”, perguntou ela. E eu fiquei ali sentada. Vem dos geradores, pensei, mas ela está pensando em outra coisa e o que é? Mas um porquinho subiu as escadas, farejando, e a moça se debruçou e esfregou suas orelhas, e eu esqueci a minha pergunta. Ouando a pergunta se foi. pela minha mente passou “terra de lótus”, e então isso também sumiu. Eu estava simplesmente vivendo — vivendo em cada célula do meu corpo, como nunca tinha vivido antes. Tudo em volta de mim estava acontecendo e eu — também estava acontecendo. O resto do dia foi como um sonho — o tipo de sonho no qual tudo se faz sem esforço. Cortei bananas e ajudei a carregá-las para um dos veículos silenciosos. Cavei uma vala para desviar água. O que quer que os outros estivessem fazendo, eu também queria fazer. Como uma criança, pensei, só que agora eu tinha a capacidade de ser útil. Quando todos nos sentamos no chão para jantar, eu não estava cansada. E tampouco estava tomada por aquela inquietação irritante, a necessidade de ir para algum lugar ou de fazer alguma coisa. Ontem sonhei que era uma borboleta, e agora não sei se sou um homem que sonhou que era borboleta, ou uma borboleta que agora está sonhando que é homem. Foi uma luta conseguir fazer a minha mente voltar ao motivo da minha estada ali. Eu devia estar recolhendo informações, tentando entender o que se passava. Mas por mais que tentasse, não conseguia encontrar nenhuma forma ou ordem para como as coisas se passavam. Nenhum padrão, rotina ou regras. E mesmo assim, tudo andava de maneira tão suave e refrescante, como se nunca antes tivesse sido exatamente assim. Uma colisão ou acidente ocasional era motivo de riso espontâneo, nada mais, e também isso jamais acontecia duas vezes da mesma maneira. Ninguém tentava se apegar a nada, fazer de algo mais do que era. Como um pássaro voando por cima do meu ombro — veio, e se foi. Esses “enganos” pareciam ser parte do todo, que estaria incompleto sem eles. Depois do jantar, de algumas canções e brincadeiras que tiveram seu momento espontaneamente, e por esta razão, nunca podem ser repetidas, uma velha mãe disse: “O Governador estará aqui”. E logo em seguida tive arrepios. Apesar da amistosidade, comecei a suspeitar que afinal tudo não era como parecia ser. Por que o Governador haveria de vir? Censurei-me por ter-me esquecido do por que de estar ali, e da necessidade de ser cuidadosa. Eu fora tão bem treinada, e jogara tudo fora em questão de horas. Como uma criança que abandona o trabalho e vai nadar. Eu não conseguia entender a mim mesma. O meu cuidado fora um dos fatos que contribuíram para a minha escolha. Eu o tinha deixado de lado, como um casaco quando o tempo esquenta. Eu fora treinada para nunca ser apanhada desprevenida, para estar sempre um passo à frente do outro — e tinha sérias suspeitas de que essa gente estava dois passos à minha frente. “Por que ele vem para cá?”, exclamei nervosa, não por causa de qualquer coisa presente, mas por causa do mundo de suspeitas do qual eu vinha, e que eu trouxera comigo — dentro de mim mesma. “Porque vem”, disse a mulher delicadamente. A moça das verduras inclinou-se e deu um tapinha no meu braço. Senti que ela o fez como se faz com uma criança ou cachorrinho que está com medo sem razão. Mas não seria isto para apaziguar meus temores — ou as minhas suspeitas? A menininha que me trouxera o desjejum brincava perto de mim. Continuando a brincar, ela disse: “Diferente”. Um veículo silencioso veio se arrastando, e um homem magro e alto saiu dele, primeiro as pernas compridas, em seguida o resto. Enquanto caminhava na nossa direção, um aroma agradável veio com ele. De repente percebi que cada pessoa possuía um leve cheiro de algo em tomo de si — não um perfume, seu próprio cheiro — e que o cheiro próprio da moça das verduras — leve, elusivo — era de nogueiras. Eu tinha pensado que todos esses odores vinham apenas dos jardins — os odores de plantas, animais e pássaros — mas pertenciam também às pessoas. E eu? Eles devem ter-me identificado instantaneamente. E mandado chamar o Governador? Quando aparecem estranhos? O Governador veio na nossa direção e sentou-se na grama, falando sobre o arco-íris daquela manhã. Parecia ter sido excepcionalmente bom, e ele era particularmente apaixonado por arco-íris. Sorriu na minha direção e disse: “Eles não podem ser colhidos, sabe”. Então houve uma pausa, uma espécie de comunhão que me arrastou junto. Todo mundo ficou quieto. Eu queria romper o silêncio com todas as perguntas que estavam agora na minha cabeça, mas embora a minha boca se abrisse, a minha língua não se mexia. Ondas começaram a lavar minha mente, apagando todos os temores, perguntas, até não haver absolutamente nada, e de certa forma este vazio continha tudo dentro de si. Foi o Governador quem quebrou o silêncio, e me surpreendeu: “Você veio de um tempo muito distante?”. Isso não soa nada terrível, mas você pode imaginar o que é ter o seu segredo mais profundo, conhecido apenas por você mesmo, subitamente, anunciado em público? Procurei ser evasiva, mas apesar de mim mesma, e contrariando todas as instruções e programas, respondi: “Sim”. Ele fez um meneio. “Você deve ser a primeira.” Se eu era a primeira, como poderia ele...? Então entendi: “Acho que sim”, disse eu. “Há outros aqui, de outras épocas?” “Não...” “Mas então —” “Eles voltaram ” “Daqui?”, exclamei incrédula. “De agora", corrigiu ele. “As pessoas do passado parecem não ter aptidão para viver agora.” Eu ainda estava intrigada com isso, quando o Governador se encostou numa palmeira e fechou os olhos. “As ilhas eram diferentes quando você vivia aqui”, disse ele, surpreendendo-me outra vez. Ele respondeu à minha agitação como se tivesse ouvido e entendido o meu pensamento. “Todos que vieram para cá em alguma época viveram no Havaí. Ouvi dizer que os árabes vão para a Arábia e os nova-iorquinos para Nova York.” Ocorreu-me que todas as nossas razões elaboradas, toda a nossa computação, haviam-se originado do seguinte: eu tinha sugerido o Havaí por ser um lugar onde me sentia em casa. Tudo pareceu absurdo. Todo o trabalho, toda a discussão e planejamento que haviam parecido tão necessários na época, ao decidirmos sobre o Havaí! Tudo viera de mim, do meu próprio interesse. Era o que eu queria. Como nos tínhamos iludido, com todas as verificações! Só poderia ter sido diferente se outra pessoa quisesse ter ido para outro lugar. Então as informações teriam sido outras, e a resposta diferente, de acordo com aquilo que ela quisesse. Por um momento tive um relance da simplicidade desta gente à minha volta, e compreendí a sua sabedoria. Então a coisa sumiu. Eu gostaria que as coisas certas não sumissem sempre com tanta facilidade, e que as erradas deixassem de entrar com tanta facilidade — e então fiquei de novo com dor de cabeça, quando elas se misturaram e eu não soube mais dizer qual era qual. “Todos os lugares são como este, agora?”, perguntei. “Todos os lugares?” Ele abriu os olhos para captar o significado disso, observando-me. “Não. Há alguns outros como o nosso — pequenos lugares que por diversas razões deixaram de ser importantes — embora também eles sejam diferentes, é claro.” “Como é possível ser deste jeito?” “Nós gostamos de variedades”, disse o Governador. “Variedade!”, exclamei, baseando-me na minha sensação de algo maravilhosamente igual em toda parte. Mas o que era igual era a sensação de bem-estar, um fundo comum. O que era diferente era — bem, havia todas as coisas que simplesmente não se juntavam. “Vocês parecem tão rurais”, disse eu, “com aperfeiçoamentos modernos, é claro. Vi uma tela de televisão — uma mulher saiu dela, e —” de repente me senti boba. Provavelmente tinha entendido tudo erroneamente. O Governador sorriu. “Interessante, não? Algumas pessoas gostam.” “Mas quem as constrói?” “As pessoas que gostam de construí-las.” “Mas suponha que não haja gente suficiente que queira construí-las — quero dizer, suponha que haja mais gente desejando-as do que gente disposta a construir.” O Governador olhou para mim com compaixão. Deve ter sido isso, pois não me senti estúpida ou ignorante, mas entendida de uma maneira que eu mesma não me entendia. Era reanimador — gostoso — ser entendida desta maneira. Pareceu possível que um dia eu viesse a me entender. Mas não respondia a minha pergunta, e perguntei de novo com os olhos. “Ninguém quer ficar fazendo a mesma coisa o tempo todo”, disse ele. “Não da mesma forma. Algumas vezes, sim.” “Mas, e se há muita gente querendo?” “Não há. Se as pessoas possuíssem tudo que gostam, teriam coisas demais. E se todas as pessoas — ou a maioria — tivessem as mesmas coisas, não haveria variedade quando se fosse de uma casa para outra; e também não havería o compartilhar — pois como se pode compartilhar algo que todo mundo também tem?” Por um momento pareceu-me entender, mas novamente a compreensão fugiu. Senti algo muito errado em relação a este lugar que tinha me parecido tão certo. Era bom todo mundo ter tudo, como nós, e a única coisa errada é que algumas pessoas ainda não têm. Então a voz da menininha ecoou na minha cabeça: “Você é diferente”, e ouvi a moça dizendo: “Diferente de você mesma”. Captei de relance um aspecto da divisão dentro de mim — confusamente — pois queria fugir da retidão deste lugar que estava me parecendo tão errada, e queria fugir do erro do lugar, de onde eu vinha agora estava parecendo tão certo. E eu estava sabendo do meu profundo amor pelas coisas como eram aqui, e julgando-as erradas —como se fossem uma ameaça — como se fossem algo que eu devia resistir, como sempre resistira aos pensamentos obstinados que me faziam querer sair de tudo que vivia, e começar de novo, sem nada, só com um limoeiro. Querer fazer isso era ruim, irresponsável, era não assumir seu lugar na vida e construir o país e trabalhar por um mundo melhor para todos. Então eliminei a dor e a alegria do meu saber, do meu próprio saber, e fiquei claudicando na meia vida daquilo que os outros dizem. No mundo do qual eu vinha, todo mundo era diferente de si mesmo. Tinha de ser. Ou pensava ser, o que acaba dando no mesmo. Aqui, eu tinha a possibilidade de juntar-me a mim. Minha mente clareou, e enxerguei — de maneira forte e firme. E vivi quando compreendí, como se tirasse dos ombros um peso de dez anos. Jamais voltarei, pensei então. O pensamento estivera comigo antes, mas não de forma tão clara como agora. Eles podiam levar de volta a minha máquina, mas não tinham como obrigar- me a entrar nela. Aquele mundo seco e sujo podia viver sem mim. Disse isso ao Governador. “Você não sente a necessidade de nos modificar?”, perguntou ele. “Não pensa que somos ociosos, que perdemos o nosso tempo? Não pensa que você poderia aperfeiçoar os nossos veículos desmontando-os e descobrindo por que são tão silenciosos, e acrescentando isto ao seu conhecimento de como fazê-los andar mais depressa?” “Não”, respondi. Então algo me fez novamente ser honesta. “Tive algumas idéias a esse respeito”, disse eu. “Posso vir a tê-las de novo em outras ocasiões. Mas elas se apagarão. Não sei o que está ocorrendo, mas elas continuam parecendo cada vez mais bobas — em pouco tempo. Não só bobas — estranhas. Não pertencem a mim. Pode levar algum tempo até eu me libertar completamente delas, mas não atrapalharão vocês. Não vou deixar que atrapalhem.” Fiquei admirada de ver lágrimas nos olhos do Governador. Talvez fosse apenas um truque da estranha luz que parecia vir dos céus. “Ei!”, gritei de repente, pois tinha visto algumas luzes movendo-se no céu, tão devagar que inicialmente não tinha reparado que não eram estrelas. “Planadores”, disse o Governador. “Aviões? Mas como podem se mover tão devagar? Como são?” “Pássaros, suponho que se pode dizer — ou talvez como folhas flutuando na água.” Pedi-lhe que me contasse detalhadamente a esse respeito, mas ele fez que não. “Não é má-vontade, mas o que posso dizer?” “O que faz com que se movimentem?”, quis saber, e ele respondeu: “Você poderia explicar um avião a jato a Benjamin Franklin?”. “Mas eu venho da era atômica!”, exclamei. “Agora sabemos tanta coisa mais — quero dizer naquela época.” “O suficiente para entender tudo?” “É claro que sim. Não quero dizer que já saibamos de tudo, mas sabemos o suficiente para interpretar e ultrapassar, não importa quão complexo...” “Isso é parte da dificuldade”, disse ele; levantou-se e caminhou até seu veículo. O que eu tinha captado sobre a simplicidade? Antes de poder começar a pensar, um raio de luz vindo do veículo iluminou o céu; apenas uma vez, e se apagou. Quase instantaneamente o céu se encheu de brotos de plantas gigantes — hibiscos, tuberosas, jasmins —, florindo, morrendo e soltando novos brotos. As estrelas assumiram um tamanho monstruoso, explodiram, espalhando milhões de estrelinhas pelas montanhas e vales. As estrelinhas nos banhavam, e não queimavam. Quando estendi as mãos para pegá-las, elas piscaram e desapareceram. E sobre o Pacífico, foguetes gritavam enquanto se erguiam para os céus, depois explodiam com um barulho que parecia abalar as rochas em tomo de nós. Eu vibrava toda, me sacudia, e o excitamento foi tanto, tão glorioso, que pensei que não iria aguentar. O céu clareou num instante. Uma flor-da-noite surgiu — crescendo, crescendo, até as pétalas brancas parecerem imensas canoas, com o centro dourado brilhando. Eu estava atordoada, envolvida, perdida, invadida. Então subitamente se fez um silêncio, logo após o barulho e a agitação. A flor-da-noite desapareceu, e enquanto desaparecia suas pétalas começaram a parecer um reflexo da ilha de Oahu — ou era o contrário? A medida que a ilha do céu se tomava mais real, a ilha onde eu estava se tomava menos. Qual era ilusão? Então uma música cortou o silêncio, não como barulho, mais como um zéfiro brincando com a brisa, tão suave que eu não podia ter certeza de que era música o que ouvia. Deitei-me na grama, rolei, apoiando a cabeça sobre os braços e perdi a — eu estava prestes a dizer consciência, mas se foi consciência o que perdi, o que ganhei? Quando presentifiquei novamente as pessoas e as coisas ao redor de mim, parecia que eu estava numa nuvem. As figuras estavam em penumbra, as vozes eram murmúrios que mal se ouviam. Então uma leve fragrância de nogueira, e fiquei sabendo que a moça das verduras estava ao meu lado. Eu parecia estar deitada sobre algo familiar que me entristeceu. “Sentimos muito”, disse ela, e eu pude ouvir sua tristeza. “Mas sem você lá, nós não poderiamos existir. Você é parte do nosso vir a ser.” Enxerguei a minha vida de uma maneira que nunca tinha me ocorrido antes. Ela enxugou uma lágrima do meu rosto, e eu não sabia se a lágrima era dela ou minha — então, fiquei sabendo que era nossa. Ela tomou minha mão e colocou-a no lugar onde meus dedos reconheceram o botão de partida. Juntas, apertamos. Esta manhã, Fritz reuniu-se com todo o grupo. Primeiro falou sobre sonhos. O que disse era muito claro para mim e eu ia tentar lembrar. Não lembrei. Não me lembro de nada que ele disse. Mas realmente notei o que ele disse, então provavelmente estou certa. O que ele disse, que aceitei, foi para o computador interno, e ficará à minha disposição — quando eu necessitar. Não posso dizer a mais ninguém o que ele disse. Eu tiraria zero num exame. Mas sei o que é, e sei usar quando se trata de exames. A Sra. Chumley acabou de voltar. Eis aqui outra história que ela escreveu a meu respeito. Considere as Margaridas do Campo — ou como jogar um bom jogo de cartas O título desta história, se é que é uma história, poderia muito bem ser O Caminho do Zen, mas não é preciso dar a volta pelo Oriente para chegar ao Ocidente. Em todo caso, ela trata da Sra. Chumley — que voltou ao século XX, anos 70, para visitar sua neta Anne. Alguns dos amigos de Anne perguntaram à Sra. Chumley como ela havia aprendido aquilo que sabia sobre a vida. Havia tantas respostas, que a Sra. Chumley teve de sentir qual seria a mais aceitável aos seus atuais inquiridores. Isso não quer dizer que fosse inverdade, mas que era muita verdade. Se você acha que existe apenas um caminho para Roma, você não conhece Roma muito bem. Com os amigos de Anne, a Sra. Chumley decidiu usar um jogo de cartas para explicar. Vocês podem tirar informações de como viver a partir de qualquer jogo, disse ela, mas eu vou usar paciência, para que vocês possam tentar sozinhos, sem precisarem recorrer a outra pessoa. Afinal, é preciso viver sozinho. É só então que a gente real mente chega perto de outra pessoa. Outra vantagem da paciência é que não se pode culpar ninguém pelo fato de coisas terem ou não terem dado certo, e tampouco dar crédito a ninguém. E tudo entre você e as suas cartas. Ela embaralhou as cartas, primeiro do jeito conhecido como “científico”, e depois outra vez, do jeito amador. Essa lhe parecia a melhor maneira de misturá-las totalmente, embora às vezes se perguntasse se não poderia fazer com que voltassem à disposição inicial. Entretanto, isso nunca pareceu suceder, então não tinha que se preocupar muito — só o suficiente para saber que não estava excluindo nada. Então começou a colocar as cartas na mesa, a partir de uma fila de oito cartas abertas. Depois colocou outra fila parcialmente em cima, sem ocultar as cartas da primeira fila, e prosseguiu dessa maneira até qu.e as 52 cartas estivessem abertas — pelo menos em parte — sobre a mesa. Havia apenas quatro cartas na última fila, é claro. Essa era uma das regras explicadas pela Sra. Chumley — a maneira de distribuir as cartas. Se ela não for seguida, não se estará jogando este jogo, e sim outro jogo qualquer. Não há muitas regras para um jogo. Neste, os ases, — quando se consegue alcançá-los — são colocados na parte superior, como na maioria dos jogos de paciência, e a partir deles vai-se colocando a sequência conforme o naipe, como ocorre normalmente. Na parte inferior, imaginam-se quatro locais de passagem para as cartas. Qualquer uma das cartas, exposta, pode ocupar temporariamente um desses locais para desimpedir o caminho, até poder ser colocada em outro lugar. O nariz da Sra. Chumley começou a ficar úmido, como às vezes acontecia quando ela e os germes antiquados do século XX se juntavam. Seu lenço pulou fora da sua bolsa aberta, que estava do outro lado da sala, indo diretamente para sua mão. Ela o mandou imediatamente de volta, dizendo à neta: “Anne, você pode trazer o meu lenço? Me esqueci de quando estou”. A mesa aberta, prosseguiu ela, é o caos. 0 objetivo é pôr ordem no caos juntando as cartas em quatro montes na parte superior. Só se pode mover uma carta de cada vez, a menos que haja sequência: então é preciso mover toda a seqüência, ou nenhuma das cartas — a não ser que se queira deixar as cartas nos locais de passagem por algum tempo, o que deve ser feito de uma em uma. Vejam, não há realmente muitas regras, e estas são necessárias, porque sem regra nenhuma não há como sair do caos. Sem regra nenhuma — e essas regras são apenas limitações — não se poderia sequer reconhecer o caos. Se elas não existem, é preciso inventá-las. Elas não restringem — e sim, tornam o jogo possível. Convenções são outra coisa. Pessoas que esperam descobrir o Caminho estabelecem convenções para tomarem possível jogar sem pensar, usando ainda outra série de regras. Aí a coisa toma-se trabalho, e não jogo. Este é o tipo errado de não-pensar, e chegarei ao tipo certo mais tarde. Convenções são probabilidades, e quando a gente se limita a elas, perde as possibilidades. É monótono. Além disso, num jogo com mais de um jogador, as convenções só funcionam se todo mundo se sujeita a elas. Quando até mesmo duas pessoas com convenções diferentes se juntam, pode haver literal mente um assassinato, embora uma regra possa ser a morte lenta. Isso não melhora as coisas em nada. Quando um dos lados segue as convenções e outro não, o lado convencional perde. Certa vez, uma criança de seis anos me venceu num jogo de xadrez porque conhecia as regras do jogo mas não as convenções. Ela moveu a rainha como se fosse um peão, o que me pegou desprevenida, porque estava acostumada a jogar com gente convencional. Perdi. Não pude me aborrecer com a criança, embora por um momento isso tenha ocorrido, porque naquela época eu estava jogando com os cavalos e sacrificaria qualquer coisa para salvá-los. Meus adversários ficavam furiosos comigo quando eles perdiam, porque para eles as convenções tinham se tomado regras, e ficavam num beco sem saída quando eu quebrava o que parecia ser uma regra, e mesmo assim não podiam me acusar, porque não era regra. Sabe — como um guarda que não pode levar você para a cadeia por algo que julgava poder, porque você não violou a lei conforme ele pensava. Você apenas violou uma convenção. É claro que se você “pensa” como os guardas (foi possível ouvir a Sra. Chumley colocar a palavra entre aspas) você acaba se submetendo, vai para a cadeia, cumpre sua pena por algo que nunca fez, para expiar uma culpa que não passa de fantasia. Depois de ter jogado com os cavalos até me encher porque já não havia mais nada a aprender com eles, passei para os bispos, depois para as torres, e assim por diante. Cheguei ao ponto de realmente conseguir fazer a maior balbúrdia com os peões. Após ter jogado com todos eles, qualquer peça que fosse necessária passou a ser usada da forma mais apropriada. E por isso que já não jogo mais muito xadrez. Meus adversários me abandonam porque ficam loucos da vida, o que é bobagem. Vejam, eles continuam tentando me vencer de uma forma que julgam ser a deles, que é a forma de todo mundo, em vez de reagir à minha forma conforme a sua própria forma — e quando as pessoas fazem isso, o xadrez se toma muito interessante e excitante. O mesmo se dá com bridge ou tênis. A pessoa que me ensinou este jogo de paciência ensinou-me algumas convenções como se fossem regras. A pessoa que ensinou a ela as regras, ensinou as convenções ao mesmo tempo, e nenhuma delas fazia distinção entre as duas coisas. “Distribua as cartas em oito filas” e “Jamais preencha os quatro locais de passagem” foram ensinadas ao mesmo tempo, e colocadas na mesma categoria. Mas, enquanto a primeira é uma certeza, a última é apenas uma probabilidade. As vezes as probabilidades não conseguem tirar você da enrascada em que se encontra, e então é preciso procurar as possibilidades — o que naturalmente você não poderá fazer se julgar que são impossíveis. Então você fica atolado. E julga que o mundo está contra você, o que de certa maneira é verdade, porém é apenas o mundo fictício das convenções que está contra você. Quando você tenta sair dele, as pessoas berram: “Você não pode fazer isso!”, e você tem tanta certeza de que não pode, que provavelmente ficará com medo. Então você fica dentro. E isso prova a todo mundo que não há saída, porque ninguém tentou sair. Quando alguém quebra uma convenção e se sai bem, as pessoas dizem que teve sorte. Mas ele estava sendo preciso — agindo de acordo com a realidade do momento. Agir em base a qualquer outra coisa é ilusão. Como posso jogar este jogo com base na disposição das cartas na última vez que joguei, ou como poderão estar no futuro? Passado e futuro não têm existência real porque o único tempo em que se pode agir é agora. Pode-se pensar no passado ou no futuro, mas isso não é viver porque se estará pensando sobre eles — não se pode fazer nada em nenhum dos dois. A Sra. Chumley subitamente percebeu suas andanças no tempo e acrescentou: A menos que se esteja lá — mas então, é claro, se está aqui, o espaço equivalente ao tempo agora. E aqui, disse ela olhando para as cartas na mesa, está o jogo. E o único que podemos jogar desta vez. Distintamente da maioria dos jogos de cartas, pode-se ver onde cada carta está. Isso é mais parecido com a vida. A gente sempre possui todas as informações relevantes para agir aqui-agora. Quando nos confundimos com futuro e passado e outros lugares, é que passamos a não saber o que fazer. Mas não precisamos nos preocupar com todos os outros tempos e lugares. E, de qualquer maneira, o passado passou, e o futuro sai do presente; então, se fizermos agora a jogada correta, o futuro também sai direito. A Sra. Chumley olhou novamente para as cartas e explicou: Se houver algum ás exposto, ele é colocado em cima, e a partir daí quaisquer cartas que possam ser colocadas sobre o ás, e assim por diante. Não é necessário fazer isto imediatamente, mas é como lavar os pratos: não há mal nenhum em fazer. Algumas cartas são tiradas do caminho, e o jogo fica limpo para o restante. A seguir, se você vir alguma carta que possa ser colocada sobre outra, deixe para depois. Você ainda não examinou o campo todo. Isso é tentar resolver um problema sem incluir toda a informação relevante que temos à disposição. Provoca-se uma confusão. Aliás, como este jogo em particular está lhes parecendo?, perguntou ela a meia dúzia de pessoas que estavam ao seu redor. “Sem esperanças”, disse um. “Impossível”, disse outro. Um terceiro foi mais cuidadoso: “Não me parece muito possível”. A mim também não parece, disse a Sra. Chumley. Não é daqueles que parecem fáceis — não que todos que parecem fáceis realmente sejam. Mas se eu pensasse sobre, certamente recolhería as cartas e começaria outro jogo. Então, vou parar de pensar. Um dos jovens afastou-se da mesa bufando. Um homem mais idoso fez o mesmo, sem bufar porque gostava da Sra. Chumley. Uma moça também se afastou bufando, porque gostava do jovem. Quando paro de pensar, prosseguiu a Sra. Chumley, não tenho qualquer opinião. Isso toma possível um monte de coisas. Quando não tenho opinião, não sinto a necessidade de fazer nada — nem de acabar com o jogo, nem de me debater nele. Simplesmente fico interessada em examiná-lo — sabem, como uma criança pequena que vê a gente pela primeira vez. Ela examina a gente, antes de decidir o que vai fazer. Outra palavra para isso é perscrutar. Começo ao acaso, notando uma carta, por exemplo, este sete de espadas. Ele precisa cobrir um oito de espadas ou ser coberto por um seis de espadas. Então procuro e localizo o oito e o seis. Localizo — isso é tudo. Não procurem prender-se a eles, porque irão fazer o mesmo com todas as outras cartas, e a parte da mente que você usa para isso não é capaz de guardá-las todas. Então apenas localizo, e fica registrado em algum lugar no fundo da minha cabeça. Quando todas estiverem lá, esse lugar me dirá o que fazer. “Ei”, disse o jovem que se tinha afastado, aproximando-se novamente da mesa, “ela está se programando!” A moça voltou e ficou ao lado dele. Ele pensou na maravilha que ela era, sempre movendo-se de acordo com ele. O homem idoso ficou onde estava, com as costas voltadas para os outros; mas estava escutando. A Sra. Chumley continuou localizando as cartas até ter coberto quase todo o baralho, e as poucas que não tinha localizado diretamente apareceram de maneira indireta. Agora, disse ela, tenho a mesa toda na minha cabeça mesmo que não saiba onde cada carta está, e então sei o que fazer embora não saiba nada a respeito. Nem sempre me fez sentido determinado movimento de cartas. Às vezes me sinto uma boba, e às vezes me sinto muito precipitada e caminhando para um desastre. Mas o impulso vem de maneira tão segura do computador interno que tenho de fazer. Apesar disso, sem ter a disciplina em primeiro lugar, o impulso vem de outra parte. Então, tudo pode parecer maravilhoso, e termina em confusão. As cartas moviam-se tão depressa em suas mãos que ninguém conseguia acompanhar as jogadas; mas nenhum dos presentes, que observavam atentamente, pôde surpreendê-la num erro. E subitamente toda a mesa estava obviamente clara e pronta para ser distribuída pelos quatro montes da parte superior. “Mesmo que ela tivesse trapaceado, não poderia conseguir!”, disse o jovem interessado em programação. “A senhora faria de novo?” A Sra. Chumley embaralhou as cartas e distribuiu-as novamente. Esta parte inicial é um pouco cansativa, disse ela, quando as cartas já estavam sobre a mesa. Quero dizer, até que a gente se acostume e seja capaz de fazê-la instantaneamente. Você quer fazer algo. Você está tão habituado a fazer algo que se sente culpado quando não está fazendo nada. Alguma coisa está errada. Você sente que precisa se mexer. Mas se você estiver real mente em contato consigo mesmo, saberá que não é verdade, o que você realmente teme é que se não se mexer, outra pessoa o fará. A maioria de nós receia o homem que não é cutucado e não faz nada. Isso pode provir das explicações mecanísticas da ciência — uma máquina não é algo auto-regulador e autoperpetuador: tem de ser estimulada por forças externas, ou então cessará de funcionar. E quando as criaturas vivas são concebidas em padrões mecanísticos, então nos sentimos obrigados a mantê-las em funcionamento, e elevar ao máximo a pressão para que funcionem, ou ligá-las novamente no caso de terem parado. Não é preciso ter medo de parar. Os corações continuam batendo e os pulmões respirando. Ainda assim, quando vocês fazem aquilo que julgam ser uma parada, é tão diferente do que vocês faziam e que sentiam errado — como a menininha que havia sido comprimida por tanto tempo, que quando o médico a esticou ela se queixou: “Você me deixou torta!”. É claro que existe um fazer-nada errado, assim como existe um pensar-nada errado. É isso que toma as coisas tão confusas. Você pode obrigar-se a não fazer nada, pressionando a si mesmo, e isso é errado. Do jeito certo, você se retira de todas as pressões, inclusive de suas próprias. Parece ser um recuo, mas na verdade é só uma redução de velocidade. Se você andar devagar numa rua em que os outros estão correndo, parecerá que está andando para trás — se estiver acostumado a correr. Enquanto falava, a Sra. Chumley começara a pôr o dedo numa e noutra carta, indicando que as estava localizando com os olhos. Então começou a movê-las, às vezes de uma maneira que fazia sentido aos que observavam, outras vezes não. Então as cartas ficaram todas em ordem, seja nas quatro pilhas no topo, sobre os ases, ou em colunas sobre a mesa, prontas a serem colocadas sobre os ases. “Nunca falha?”, perguntou uma mulher que não havia dito nada até o momento. “Sim, falha”, admitiu a Sra. Chumley, que não tinha dificuldade em admitir nada. Então, nunca tenho certeza se o jogo era impossível ou se me enganei — ou se me enganei para perder alguns jogos porque estava cansada de ganhar. “Cansada de ganhar!”, murmurou uma sombra de voz. “O jeito mais fácil de ganhar é não se preocupar”, disse a Sra. Chumley. Cada um de vocês deve ter notado isso por experiência própria, uma ou outra vez. Você não se preocupa, diz o que pensa e as coisas saem do jeito que você não pensava que sairiam se dissesse o que pensa. Quando você diz o que pensa e se preocupa, isso pode ser bom, ou pelo menos melhor do que não dizer, mas não é a mesma coisa, ou então leva mais tempo para chegar ao mesmo lugar. O mesmo se dá com o fazer. Existe também a sorte do principiante. Quando você sabe que não sabe nada, quando não tem uma reputação a manter, quando não está tentando impressionar ninguém, nem a si mesmo — você simplesmente joga, e pronto! Você consegue. Então você tenta repetir, e o tentar já toma as coisas diferentes. Da primeira vez, você não tinha na cabeça quadro nenhum do que iria acontecer. Simplesmente agia inteiro, e a coisa aconteceu e o surpreendeu. Da segunda vez, você tenta produzir o que aconteceu da primeira vez, tentando fazer o corpo agir da mesma maneira. Tudo isso se passa numa parte da sua cabeça que não é muito boa para isso. Se você trabalhar o suficiente, poderá ter êxito, mas se desgastará, porque estará usando uma parte sua para forçar outra parte sua, em vez de deixar tudo acontecer através de você inteiro. Quando você faz algo por simples atração, não se trata real mente de tentar. Você se mexe todo, inteiro, segundo seu próprio plano. Você não interfere consigo mesmo. Quando você tenta, está imaginando as coisas na sua cabeça, ou “fazendo força” para conseguir. Quando você é bem-sucedido agindo desta maneira, o êxito foi obtido apesar disso, e não por causa disso, e você se desgastou no processo. E como fazer funcionar uma máquina sem óleo. Você fica rijo e duro. “Acho que isso tem algo a ver com os nossos dois sistemas nervosus”, disse ela. Ela não podia dizer que sabia, porque então teria de explicar o que sabia, e as palavras e conceitos que podiam ser usados para uma explicação adequada ainda estavam no futuro, aqui. Então teve de falar vagamente, sem precisão. “Os nossos dois sistemas nervosos na verdade são um só”, disse ela, “porque trabalham juntos. Tentar separá-los é como separar carne e sangue. Um deles faz o nosso coração bater e os nossos pulmões respirar, quer desejemos ou não. Ele age por si só, como o computador interno. Fritz usa “computador” para se referir à mente planejadora ou planificadora, da qual posso facilmente tomar consciência; é aquela mente do “pensar”, do eu-computador, aquela que eu posso usar. Esta é a outra, é aquela que age basicamente de acordo com as nossas intenções. Algumas pessoas a usam para pintar ou assar bolos ao acaso. Não percebem o absurdo de ser intencionalmente “espontâneo”. Absurdo? Isso é impossível. Da mesma forma como dizer “estou sendo espontâneo.” Quando esta mente age demais ela interfere com a outra, em vez de as duas funcionarem adequadamente de uma maneira que sabem e não sabem. Quando eu “me afasto disso” ou “não tenho desejos”, não o faço inteiramente. Ainda estou interessada. Mas não superinteressada. E eu inteira funciono da maneira que fui feita para funcionar. Então, um sistema me mantém em contato com o tempo e o consciente, e o outro com a ausência de tempo e o inconsciente, e eu estou no meu lugar — tudo de uma vez. Harmonia e precisão juntas. “Fazer distinção entre negócios e arte é tolice disse ela. Tudo depende de como se faz. E então suspirou, o que não costuma fazer com freqüência, mas aqueles dois jovens ao seu lado pensavam que sabiam o que é o amor, e estavam afundando nele, esquecendo-se do mundo e de tudo. “ESCUTEM!”, disse ela, tão bruscamente que assustou a todos, exceto Anne, que entendeu. Cada um, exceto Anne, trocou os sons que ouvia por algo que deveria ouvir, perdendo a sinfonia de som, de cantos de pássaros, motores, respiração, farfalhar, arranhar, murmurar, um ronco ou golpe ocasional — perdendo também o silêncio atrás de tudo isso. Mas o silêncio de Anne e da Sra. Chumley continuou, primeiro cercando os outros, então invandindo-os até que eles se tornaram o próprio silêncio, ao mesmo tempo que continuavam sendo eles próprios. Eles eram e sabiam que eram simultaneamente os átomos giratórios com vasto espaço no meio, e pessoas que podiam ser tocadas, sentidas e percebidas. E então, a sinfonia se ouviu. Houve amor na sala, amor sem fronteiras ou dimensões ou limitações, cada pessoa inesperadamente e maravilhosamente ela mesma. Os olhos do jovem estavam um pouco turvos ao dizer para a moça: “Eu pensei que sabia.... E ela respondeu: “Eu sei... Eu também pensei que sabia”. O homem idoso disse suavemente: “E um relógio parou... e soube o significado do tempo”. *** Agora quero colocar outras histórias, escritas por outras pessoas. Não!, diz o censor. As suas histórias estão cada vez mais próximas umas das outras. Deveríam estar mais espalhadas. Quem foi que disse? Quem é esse ditador cheio de ordens, que ordena com o bastão na mão para mostrar que é ele o mandão? Sou eul Sou eu o mandão. Eu sou as regras e eu tenho o bastão. Uhn-uh. Você não passa de um punhado de palavras que julgam ser pensamentos. Mentira. EU SOU PODEROSA. Uhn — uh. Seu poder está em mim. Você o tem enquanto eu a deixo ter. Estou com vontade de botar outra história, e aqui está ela. Os direitos autorais de Tolstoi já devem ter-se esgotado, então vou simplesmente colocá-la. Me pergunto se alguém já fez isso antes. Eu não fiz, e gosto da minha surpresa ao fazer.

Três Perguntas – Leon Tolstoi Certa vez ocorreu a um rei que se ele sempre soubesse a hora certa de começar tudo; se sempre soubesse quais as pessoas certas a escutar e a quem evitar; e acima de tudo, se sempre soubesse qual a coisa mais importante a se fazer, jamais falharia em nada que se dispusesse a levar a cabo. E tendo-lhe ocorrido este pensamento, ele proclamou pelo seu reino afora que daria uma grande recompensa a qualquer pessoa que lhe ensinasse a hora certa para cada ação, e quem eram as pessoas mais necessárias, e como poderia saber qual a coisa mais importante a ser feita. E homens estudados vieram ao Rei, mas todos responderam suas perguntas de maneira diferente. À primeira pergunta, alguns responderam dizendo que para saber a hora certa para cada ação é preciso elaborar com antecedência uma tabela de dias, meses e anos, e viver estritamente de acordo com ela. Só assim, diziam eles, tudo poderia ser feito no momento apropriado. Outros declararam que era impossível saber de antemão a hora certa para toda ação; mas que, não se deixando absorver por passatempos ociosos, é preciso estar atento a tudo que se passa e então fazer o que for mais necessário. Ainda outros disseram que por mais atento que fosse o Rei, era impossível apenas um homem decidir corretamente a hora certa para toda ação, mas que ele deveria ter um conselho de sábios que o ajudaria a determinar o momento adequado para tudo. E ainda outros disseram que havia certas coisas que não podiam esperar para serem expostas diante de um conselho, mas que exigiam uma decisão imediata. Mas para que esta decisão fosse tomada, era preciso saber de antemão o que aconteceria. E só os mágicos sabem isso; e, portanto, para saber a hora certa para toda ação, é preciso consultar os mágicos. Igualmente variadas foram as respostas para a segunda pergunta. Alguns disseram que as pessoas de que o Rei mais precisava eram seus conselheiros; outros, os padres; outros, os médicos; alguns disseram que os mais necessários eram os guerreiros. Para a terceira pergunta, sobre qual era a ocupação mais importante: alguns disseram que a coisa mais importante do mundo era a ciência. Outros disseram que era a prática da guerra; e outros, ainda, disseram que era o culto religioso. Sendo todas as respostas diferentes, o Rei não concordou com nenhuma delas, e não recompensou ninguém. Mas ainda disposto a encontrar as respostas certas para suas perguntas, decidiu consultar um eremita conhecido em toda parte pela sua sabedoria. O eremita vivia num bosque de onde jamais saía, e não recebia ninguém a não ser gente do povo. Então o Rei vestiu roupas comuns, e antes de alcançar o abrigo do eremita, desmontou do seu cavalo, e deixando atrás a sua guarda, caminhou sozinho. Quando o Rei se aproximou, o eremita estava cavando o solo diante da sua choupana. Ao ver o Rei, ele o cumprimentou e continuou a cavar. O eremita era frágil e fraco, e toda vez que enfiava a pá no chão e revirava um pouco de terra, ouvia-se a sua respiração pesada. O Rei aproximou-se dele e disse: “Vim procurá-lo, sábio eremita, para pedir-lhe que responda três perguntas: Como posso aprender a fazer a coisa certa na hora certa? Quem são as pessoas de que mais necessito, e às quais devo, portanto, prestar mais atenção do que ao resto? E quais são os assuntos mais importantes, e exigem primeiramente a minha atenção?”. O eremita escutou o Rei, mas nada disse. Apenas cuspiu na mão e recomeçou a cavar. “Você está cansado”, disse o Rei, “deixe-me pegar a pá e trabalhar um pouco no seu lugar.” “Obrigado!”, disse o eremita, e tendo dado a pá ao Rei, sentou-se no chão. Após ter cavado dois canteiros, o Rei parou e repetiu suas perguntas. Novamente o eremita não deu resposta, porém levantou-se, esticou o braço para pegar a pá, e disse: “Agora descanse — e deixe-me trabalhar um pouco.” Mas o Rei não lhe deu a pá, e continuou a cavar. Passou-se uma hora, e mais outra. O sol começou a descer atrás das árvores, e o Rei finalmente enfiou a pá no chão e disse: “Eu vim à sua procura, sábio homem, em busca de respostas para as minhas perguntas. Se você não pode dá-las, diga-me, e voltarei para casa.” “Aí vem alguém correndo”, disse o eremita; “vejamos quem é.” O Rei virou-se e viu um homem de barba correndo para fora do bosque. O homem segurava suas mãos contra o estômago, e sob as mãos havia sangue. Quando chegou ao Rei, caiu desmaiado, gemendo debilmente. O Rei e o eremita abriram as roupas do homem. Havia um grande ferimento em seu estômago. O Rei Íavou-o da melhor torma possível, e improvisou uma bandagem com seu lenço e uma toalha do eremita. Mas o sangue não parava de correr, e o Rei não parava de retirar a bandagem ensopada de sangue quente, lavando-a e atando-a novamente. Quando finalmente o sangue parou de correr, o homem se reanimou e pediu algo para beber. O Rei trouxe-lhe água fresca. Entrementes, o sol já se tinha posto, e o tempo esfriara. Então o Rei, com auxílio do eremita, carregou o ferido para a choupana e deitou-o sobre a cama. Deitado, o homem fechou os olhos e ficou quieto; mas o Rei estava tão cansado pela caminhada e pelo trabalho que fizera, que agachou-se na soleira, e também adormeceu — tão profundamente que dormiu a noite toda, uma curta noite de verão. Quando despertou pela manhã, demorou até conseguir se recordar onde estava ou quem era o estranho homem de barba deitado na cama, fitando-o intensamente com os olhos brilhantes. “Perdoe-me!”, disse o homem de barba com voz fraca, quando viu que o Rei estava desperto, olhando para ele. “Eu não o conheço, não tenho nada a perdoar”, disse o Rei. “Você não me conhece, mas eu o conheço. Sou aquele inimigo seu que jurou se vingar por você ter executado o irmão e se apossado de suas propriedades. Eu sabia que você tinha vindo sozinho ver o eremita, e resolvi matá- Io na volta. Mas o dia passou, e você não voltava. Então saí do esconderijo para encontrá-lo, e aproximei-me da sua guarda, eles me reconheceram e me feriram. Fugi de lá, mas teria sangrado até morrer se você não tivesse cuidado do ferimento. Eu queria matá-lo, e você salvou a minha vida. Agora, se eu viver, irei servi-lo como o escravo mais fiel e meus filhos farão o mesmo. Perdoe-me!” O Rei ficou muito contente em fazer as pazes com seu inimigo com tanta facilidade, tendo-o ganho como amigo; não só o perdoou, como disse que enviaria seus servos e seu próprio médico para atendê-lo, e prometeu devolver suas propriedades. Deixando o ferido, o Rei saiu para a varanda e procurou o eremita. Antes de partir, ele queria pedir mais uma vez uma resposta para as perguntas que tinha formulado. O eremita estava do lado de fora, de joelhos, espalhando sementes nos canteiros que haviam sido cavados no dia anterior. O Rei aproximou-se dele e disse: “Pela última vez, eu lhe rogo que responda as minhas perguntas, sábio homem”. “Você já obteve as respostas!”, disse o eremita, ainda ajoelhado, olhando para o Rei parado à sua frente. “Como? O que você quer dizer?”, perguntou o Rei. “Você não vê”, replicou o eremita. “Se ontem você não tivesse se apiedado da minha fraqueza e não tivesse cavado estes canteiros para mim, e tivesse voltado, aquele homem o teria atacado e você teria se arrependido de não ter ficado comigo. Então a hora mais importante foi a hora em que você estava cavando os canteiros; e eu fui o homem mais importante; e fazer o bem para mim foi o seu assunto mais importante. Depois, quando o homem correu na nossa direção, a hora mais importante foi a hora em que você o estava atendendo, pois se você não tivesse cuidado dos ferimentos dele, ele teria morrido sem fazer as pazes com você. Então, ele foi o homem mais importante, e o assunto mais importante foi aquilo que você fez por ele. Então lembre-se: existe apenas uma hora que é importante —Agoral É a hora mais importante porque é a única hora em que possuímos algum poder.” *** Os olhos do Dick saltam e oscilam. O que ele vê salta e oscila. A esta altura, ele tem tantos problemas com os óculos (que usa desde os sete anos de idade) quanto sem eles. Ele quer fazer uma consulta para novos óculos, e quer continuar sem óculos. Ele me pediu alguns exercícios Bates-Huxley. Um deles é: Imagine uma bola macia sendo segurada entre o polegar e o médio. Com os olhos fechados, mova seus dedos em conjunto, como se estivesse apertando a bola, e imagine a bola mudando de forma enquanto você a espreme, passando de redonda para oval. Então solte-a novamente, devagar. Quando Dick fez isso seus dedos ficaram curvos e rijos. Dick sempre parece estar pendurado.) Ele notou isso, e o seu tensionamento. “Pela primeira vez estou relacionando eu forço (1-strain) com esforço ocular (eyestrain)! Fritz tinha dito a ele que há uma relação entre as bolas e os globos oculares. Dick estava disposto a admitir isso como possibilidade, mas não sentia. Agora foi capaz de relacionar o esforço das mãos e dos olhos — estou admirada. Fritz fala um bocado em confluência como sendo algo “ruim”; é claro que é ruim se você ficar lá o tempo todo; e também o terapeuta será um terapeuta vagabundo se entrar em confluência com seu cliente, paciente — a pessoa que procura. Se você não se perde nela, a confluência é bacana — especialmente se for com a natureza em vez de ser com outra pessoa, que pode levar a complicações. Gosto desta descrição de Kenneth L. Patton: Palavras, nossas ou dos outros, nunca podem ser mais do que um comentário sobre a experiência vivida. Ler nunca pode substituir o viver. O que entendo de uma árvore? Subi nos galhos e senti o tronco balançar ao vento, e me ocultei entre as folhas, como uma maçã. Deitei- me entre os galhos, e cavalguei neles, e rasguei a pele das mãos e o pano das minhas calças subindo e descendo pela áspera casca. Descasquei o salgueiro e afaguei a madeira branca e doce, e meu machado mordeu as fibras puras, e a serra deixou descobertos os velhos anéis e o cerne da madeira. Por meio do microscópio copiei os traços das células, e sacudi as raízes como cabelos nas minhas mãos; e masquei a goma e enrolei a língua em tomo da seiva, e senti as fibras da madeira entre os meus dentes. Deitei-me entre as folhas de outono, e minhas narinas beberam o fumo de seu sacrifício . Aplainei o tronco amarelo e bati pregos, e poli a madeira macia com a minha mão. Agora dentro de mim existem grãos e folhas, uma confluência de raízes e galhos, florestas próximas e distantes, e um solo macio feito de milhares de anos de plantas caídas, e este sussurro, esta lembrança de dedos e narinas, o frágil brotar das folhas reluzindo dentro dos meus olhos. Qual é a minha compreensão das árvores se não esta realidade que está além de pobres nomes? Assim os lábios, a língua, ouvidos e olhos e dedos juntam suas vozes e falam para dentro, para a compreensão. Se eu sou sábio, não tento conduzir o outro para esse lugar estranho, sem lugar, que são os meus pensamentos; mas eu o levo para a floresta e solto-o entre as árvores, até que ele descubra as árvores dentro de si mesmo, e descubra-se dentro das árvores. Como podemos ser livres para olhar e aprender quando nossas mentes, desde o instante em que nascemos até o instante em que morremos, são moldadas por uma cultura particular, dentro dos padrões estreitos do “eu”. Durante séculos temos sido condicionados pela nacionalidade, casta, classe, tradição, religião, língua, educação, literatura, arte, costumes, convenções, propaganda de todos os tipos, pressões econômicas, comida que comemos, clima em que vivemos, família, amigos, nossas experiências — toda influência que se possa imaginar — e portanto nossas respostas a cada problema estão condicionadas. *** Você tem consciência de estar condicionado? Esta é a primeira coisa que você deve perguntar a si mesmo, e não como se libertar do condicionamento. Pode ser que você nunca se liberte, e se você disser: “Preciso me libertar”, poderá cair em outra armadilha de outra forma de condicionamento. Então, você tem consciência de estar condicionado? Você sabe que mesmo quando olha para uma árvore e diz: “Isto é um carvalho”, ou “Isto é uma figueira-brava”, o nome da árvore, que é conhecimento de botânica, já condicionou tanto a sua mente que a palavra o impede de realmente ver a árvore. Para entrar em contato com a árvore você precisa colocar a mão nela, e a palavra não o ajudará em nada.*(* De Freedomfrom tbe Known, por Krishnamurti, Harper & Row, Nova York, 1969, p. 25. Reimpresso com permissão da Krishnamurti Foundation. (N. do E.) Estou limpando bem a casa, colocando todas essas coisas que tenho carregado comigo. É como botar todas dentro de uma única malinha conveniente. Mas não foi por isso que as coloquei. A conveniência é secundária. A razão primeira foi eu querer que estivessem aqui, conforme emergiram em meu mundo — saíram do arquivo onde não estavam sequer sendo lembradas há muito tempo — e entraram no livro. Quando a primeira delas emergiu, eu não sabia que outras se segui riam. Agora estou com vontade de olhar o arquivo para ver o que mais encontro ali. Isso é primário. O que sucede depois é secundário.

O Ouvinte (The Listener), de John Berry, veio sem eu ter precisado ir procurar no arquivo. Agora, estou procurando. Encontrei. Vejo o crepúsculo, com nuvens que na maioria parece terem sido transformadas em riscos e sombras, e um pequeno pedaço de céu coberto de nuvens cinzentas, as árvores nas montanhas ainda parecendo uma pintura, a água do lago formando círculos em alguns pontos, ondulada em outros, movendo-se como uma corrente em outros, as folhas secas atapetando a margem, e eu digo: “Sim. Isso é verdade”. O Ouvinte*(*Reimpresso com permissão do autor. Publicado pela primeira vez no New York Wriling (1960). (N. do E.) John Berry Era uma vez um pequeno violinista checo chamado Rudolf, que vivia na Suécia. Alguns dos seus amigos achavam que ele não era o melhor dos músicos porque era irrequieto; outros achavam que era irrequieto por não ser o melhor dos músicos. Em todo caso, ele conseguiu um meio de ganhar a vida, sem competidores. Por escolha ou por necessidade, costumava navegar pela Escandinávia em seu pequeno barco, total mente só, dando concertos em pequenas vilas portuárias. Se encontrasse acompanhantes, muito bem; se não, tocava peças de solo para violino; e uma ou duas vezes aconteceu de ele querer tanto um piano que imaginou um, e então tocou sonatas inteiras para violino e piano, sem qualquer piano à vista. Certo ano, Rudolf navegou até a Islândia e começou a trabalhar à sua maneira na costa rochosa daquele país. Era uma terra difícil e obstinada; mas as pessoas desses lugares difíceis não esquecem a lei da hospitalidade para com o estrangeiro — pois seu Deus pode fazer com que eles se tornem estrangeiros sobre a face da terra. As audiências eram muito pequenas, e mesmo que Rudolf tocasse como um violinista de primeira, nunca havia grandes demonstrações. Desde tempos antigos a energia do povo era dirigida antes de tudo para o trabalho duro. As vezes o professor da escola os reunia, e lembrava-lhes suas obrigações com os nomes de Beethoven, Bach, Mozart e mais um ou dois cuja música provavelmente não era muito ouvida naquelas terras. Frequentemente as pessoas ficavam sentadas impassíveis assistindo àquele rabequistazinho barulhento, e voltavam para casa sentindo-se cultas. Mas pagavam. Certa vez, quando Rudolf viajava entre duas cidades numa parte da costa esparsamente habitada, o Nordeste se tornou negro e ameaçador. Uma tormenta estava por desabar sobre a Islândia. Rudolf estava circundando um cabo deserto e perigoso, e seu mapa lhe dizia que o ancoradouro mais próximo ficava a meio dia de viagem. Estava começando a se preocupar quando viu, a menos de uma milha da margem, um farol sobre uma ilhota rochosa. Na base do farol havia uma gruta profunda e estreita, protegida por rochedos. Com alguma dificuldade, por causa das ondas que se levantavam, conduziu o barco para lá e prendeu-o firmemente a um anel de ferro pendurado no rochedo. Um lance de degraus escavados na rocha conduzia para o farol. No topo do rochedo, contra as nuvens que corriam, via-se a silhueta de um homem. “Seja bem-vindo!”, ecoou a voz acima do som das ondas que já começavam a se quebrar sobre a ilha. A escuridão desceu rapidamente. O guarda do farol conduziu seu hóspede por uma escada em espiral, até chegar à sala do terceiro andar; em seguida ocupou-se dos preparativos para a tempestade. Acima de tudo, tinha que prestar muita atenção à grande lâmpada da torre, que dominava toda a região. Era uma luz contínua, intensificada por refletores, e tampada por postigos em intervalos regulares. A duração da luz era igual à duração do escuro. O guarda do farol era um velho imenso, com uma barba grisalha que chegava até o peito. Lento, deliberado, parecendo um urso, ele se movia sem desperdiçar movimentos dentro do limitado mundo no qual era senhor. Falava pouco, como se as palavras não tivessem muita importância comparadas com as outras forças que envolviam sua vida. No entanto era afável, diferente dos outros elementos. Após a refeição de pão preto e batatas cozidas, arengues, queijo e chá quente, que foi comida na cozinha, em cima da sala de estar, os dois homens ficaram sentados e cada um contemplou a presença do outro. Acima deles ficava a sala de manutenção, e acima desta a grande lâmpada emitia mensagens de luz majestosas e silenciosas para os navios no mar. A tempestade batia como um aríete nas paredes do farol. Rudolf ofereceu tabaco, e subitamente sentiu-se imaturo ao fazê-lo. O velho sorriu um pouco enquanto recusava com um leve movimento de cabeça; era como se soubesse bem os usos do tabaco e a necessidade de oferecê- lo, afirmando tudo isso; e ainda assim — aqui também ele foi um pouco apologético — como se fosse autocontido e sem a necessidade de nada que não estivesse dentro do seu poder ou a que não confiasse o seu poder. E ali ficou sentado, gentil e reflexivo, com suas grandes mãos de trabalhador repousando sobre as gigantescas coxas. A Rudolf pareceu que o guarda do farol tinha inteira consciência de todos os sons da tempestade e do seu violento impacto sobre o farol, mas conhecia-os tão bem que não precisava pensar neles; eles eram como os movimentos involuntários do seu próprio coração e do seu sangue. Da mesma maneira, sob a cortesia simples que o fazia falar com seu hóspede, e escutá- lo, esta já era calma e misteriosamente parte dele, com a mesma segurança que o continente ligado à ilhota, e todas as ilhotas entre si, sob o oceano. Gradualmente Rudolf juntou dados esparsos da vida do velho: ele tinha nascido neste farol, 83 anos antes, quando seu pai era o guarda. Sua mãe, a única mulher que conhecera, o ensinara a ler a Bíblia, e ele a lia diariamente. Não tinha outros livros. Sendo músico, Rudolf também não tinha tido tempo de ler muito — porém, tinha vivido em cidades. Pegou sua valise e dela tirou o seu querido violino. “O que o senhor faz com isso?”, perguntou o velho. Por um segundo Rudolf pensou que seu anfitrião estivesse brincando; mas a serenidade da expressão do outro fê-lo sentir-se seguro. Não havia nem sequer curiosidade a respeito do instrumento, e sim todo um interesse nele, a pessoa, que incluía o seu “trabalho”. Na maioria das circunstâncias, Rudolf teria julgado difícil acreditar que pudesse existir alguém que não soubesse o que era um violino; no entanto, agora não se sentia inclinado a rir. Sentiu-se pequeno e inadequado. “Eu faço música com isso”, gaguejou em voz baixa. “Música”, disse o velho pensativamente. “Ouvi falar nisso. Mas nunca vi música”. “Música não se vê. Se ouve.” “Ah, sim”, concordou o guarda do farol, quase com humildade. Isso também estava na natureza das coisas dentro da qual todos os trabalhos eram maravilhas, e todas as coisas eram sabidas etemamente, e entemecedoras em sua transitoriedade. Seus grandes olhos cinzentos repousaram sobre o pequeno violino e lhe conferiram toda a importância da qual um indivíduo é capaz. Então algo na tormenta, no farol e no homem exaltou Rudolf, encheu-o de compaixão e amor, e de uma especialidade infinitamente maior do que a de si mesmo. Ele queria uma obra de fogo e estrelas para o velho. E, com a tempestade como acompanhante, ficou de pé e começou a tocar — a Sonata Kreutzer de Beethoven. Os momentos se passaram, momentos que foram dias na criação daquele mundo de fogo e estrelas; abismos e alturas de luta apaixonada, a idéia de ordem, e a resolução de tudo isso na grandeza do espírito humano. Nunca antes Rudolf tocara com tanta maestria — e nem com tal acompanhante. Ondas e vento golpeavam a torre com suas mãos gigantes. Firme acima deles, o farol lançava seus círculos seguros de escuridão e luz. A última nota cessou e Rudolf deixou a cabeça cair sobre o peito, respirando forte. O oceano encharcava a ilha com um rugir de muitas vozes. O velho tinha ficado sentado imóvel durante toda a obra, suas grandes mãos apoiadas nas coxas, cabeça baixa, escutando atentamente. Por algum tempo continuou sentado em silêncio. Então ergueu os olhos, levantou as mãos calmamente, e fez um meneio com a cabeça. “Sim”, disse ele. “Isso é verdade.” *** Fritz querido. Convidei-o a tomar chocolate quente comigo esta noite. Logo depois de entrar, ele disse: “Estou pensando que vou”. Setenta e seis anos de idade.” Pela primeira vez na vida, estou em paz. Sem lutar contra o mundo”, disse ele. Quando penso no que isso quer dizer... Eu já estive confusa, me metí em encrenca, e houve tempos em que estive em guerra com o mundo, mas não é assim que eu descrevería a minha vida... De certa forma, estive em guerra com o mundo a vida inteira, mas o grau foi diferente. Por longos períodos foi mais como uma corrente submarina, não suficientemente forte para arrastar; e também nadei muito na superfície com a luz do sol reluzindo na água e eu própria reluzindo ao sol. E maravilhoso estar com o Fritz que chegou à paz. “Não é lindo que na nossa idade possamos...” Seguramente é... *** Lasha é tão querida — e também tão inteligente. É também tão intelectual, tão razoável, tão sem contato com o sentir, e tão confusa. Esta noite Fritz contou que a ensinou a beijar, que ela corou e então disse algo como: “Por que não havería eu de sentir isso?”. Por mais detestável que o velho tenha sido (não sei quanto disso é lenda, e quanto é fanfarronice), com Lasha ele não foi. Eu posso facilmente me imaginar fazendo o mesmo. Fritz segurou a minha mão quando saiu. Eu me senti beijada. Ontem à noite, tendo chegado por mim mesma à minha própria forma de ser líder de grupo e em certo grau, professora — segundo a relação professor/ aluno, quando Fritz disse: “Preciso descobrir um jeito de ensinar” (Gestalt), eu me senti livre oara exolorar sozinha. Gestalt. ei.i sei Gestalt é um meio de ajudar as pessoas a chegar a alguma experiência de gestalt, e como continuar a trabalhar sozinho. Esta é a minha definição de “terapia”, que no começo do livro eu queria redefinir e não sabia como. A melhor maneira de aprender “como ensinar” é trabalhando comigo mesma e ao mesmo tempo trabalhando com outros e vendo o que acontece. O problema é o mesmo de sempre — o de Jesus, Buda (santificados há séculos) —, o problema que o Zen lutou para superar não dizendo nada que pudesse ser percebido intelectualmente. O problema da “árvore da sabedoria”. *** O problema dos nove pontos consiste em ligar os nove pontos com quatro linhas que podem se cruzar, mas nunca podem se sobrepor, sem levantar o lápis do papel. E preciso sair dos pontos (que parecem ser os limites) para conseguir. Com os nove pontos como intelecto, é preciso ultrapassá-lo, quando o intelecto parece ser o único meio de resolver o problema. Então você dá voltas e voltas e voltas, e não sai aqui. Agora estou procurando algo que pede para entrar aqui — uma página do In and Out the Garbage Pail, escrito em letras góticas. Não consigo encontrar o livro. Pergunto-me se o devolvi ao Fritz. Lembro-me de tê-lo guardado com cuidado. Nesse caso, é melhor esquecer. Em todo caso, achei algo que escrevi no ano passado que pode ser jogado fora. Meu Deus! Como eu gosto de jogar coisas fora! Achei o texto Jlf tí nbitinnf fitai an aegleíT pofenfial fotll arnafee tf íelf tnroamtng ttje íky, bünng bofon nn ímaller amimalf fnffoob, anb m butlbing neftf. (31 if nbiiinnf tljaf an elepbanff pntential fotll arfnalize tffelf in fixe, pnfoer, anb rlumfinelL $n eagle fotll foanf fu be an elepljant, nn elephanf to be an eagle. f Iteg areept tljem felltef, tljey bonf eiien arrepf tljentfelúef, fnr flfif fonulb Ijalte tbe backgrnnnb nf puffibl^ rejerfinn. ®l;ey fake íbemfelhef fnr granfeb. tljey bonf eiten fake fljemfehieí fnr granfeb, fnr ttjif fonnlb tmply a poffibiltfy nf nf^erneíT. ®hey jnff are. ®ljey are foljaf tljey are foljat tljey are. Mofo abínrb if fonnlb be tf fljey, Itke Ijumanf, hab fantafief, biffafiffarftonf anb felf- berpftnnP Mofo abfnrb fonlb tf be tf tlje elepljant, ftreb nf foalking flje earth, foanteb to fly, eaf rabbtff anb lay eggf. ,Aith fbr eagle foanteb tn halie Itrugíl; anb thirk íbtn nf flje beaft Ileaúe ttpf tn flje hiiman: fn be fnntefhing tljey are nnf: to Ijaite tbealffljaf ran nof be rearbeú, fn be rnrfeb fotfl; preferfiontfm ío af tn be fafe frota rriftrifm anb to open tlje roab to nnenbtng mental forfnre É óbvio que o potencial de uma águia será atualizado no vagar pelo céu, ao mergulhar para pegar pequenos animais para comer, e na construção de ninhos. É óbvio que o potencial de um elefante será atualizado através do tamanho, força e desajeitamento. Nenhuma águia quer ser elefante e nenhum elefante quer ser águia. Eles se aceitam, aceitam seu ser (themselves). Não, eles nem mesmo se aceitam, pois isto significaria uma possível rejeição. Eles se assumem por princípio. Não, não se assumem por princípio pois isto implicaria a possibilidade de ser diferente. Eles apenas são. Eles são o que são, o que são. Quão absurdo seria se eles, como os humanos, tivessem fantasias, insatisfações e decepções. Como seria absurdo se o elefante, cansado de andar na terra, quisesse voar, comer coelhos e botar ovos. E que a águia quisesse ter a força e a pele grossa do elefante. Que isto fique para o homem — tentar ser algo que não é — ter ideais que não são atingíveis — ter a praga do perfeccionismo, de forma a estar livre de críticas, e abrir a senda infinita da tortura mental. Achei um desenho. É copiado. Sei quem me deu. Não sei quem desenhou. Quero dá-lo para o Fritz, quero colocá-lo no quadro de avisos, e quero mandá-lo para Russ Youngreen fazer um melhor, em tinta preta, para ser usado aqui no livro. Prefiro a última alternativa. Vou fazer isso iogo que esta folha sair da máquina de escrever.

Agora a minha cama emerge, quente e acolhedora. Tentadora. Atraindo-me para longe do piso frio. Apego-me ao meu sono, do qual veio a imagem da cama. ***

Esta manhã meu humor está diferente. Não sei o que é. O lago está meio místico-bobo agora. Será que eu estou mística-boba esta manhã? Uma gaivota passa voando — com um grasnido. É mais importante (para mim) (agora) trazer alguém para a vida do que ser moral. Agora estou em confusão. Dois patos passam voando. Ou serão gansos? Mas é claro que uma pessoa precisa saber o que faz. A pessoa não deve procurar a sua própria vida por meio de outro, e pensar que está fazendo isso pelo outro. Então, quem sabe o que está fazendo, e quantas vezes eu só fico sabendo depois de ter feito? Reconheça. Reconheça: “Estou fazendo isso por mim”. Cuide-se!, é o que todo mundo diz, especial mente os pais para os filhos. Cuide-se! Não cometa erros ou lhe acontecerá algo terrível. A sua vida estará arruinada. Você nunca será aceito pela sociedade. Você nunca vai conseguir chegar a nada. Você não será aceito. Você não chegará a nada. Cuide-se! (beware). Originalmente significa perceba-se, esteja consciente (be-aware). Esteja consciente — realmente consciente — e você não precisa se preocupar com nada. Sem medo. É aí que está a ausência de medo. Não cuide-se! (Não seja cuidadoso.) Apenas perceba-se, esteja consciente. ***

Deke disse que o pessoal daqui levaria duas semanas para acabar com as tolices que estavam acontecendo, às quais o Fritz pôs fim — ou modificou muito (a ponto de outras coisas estarem sucedendo), dizendo algumas coisas e fazendo algumas modificações, em alguns minutos. O que é “melhor”? Alguém sabe. Alguém pode saber? Num workshop de quatro semanas, já com uma semana de confusão, duas semanas para descobrir e mudar é tempo demais. Demais. Demais para mim. Nunca posso saber como as coisas teriam se passado se eu as tivesse feito de outra maneira. Nunca posso voltar para provar. Descobri isso quando estive doente, quando tanto eu quanto o médico quisemos começar outra vez para ver o que teria acontecido se tivéssemos feito outra coisa. Não foi possível. Tudo que aconteceu a partir do que fizemos provocou mudanças. Não podíamos voltar para onde estivéramos. Só podíamos prosseguir a partir dali. “Nunca se pisa duas vezes no mesmo rio.” A asneira da “prova”. De provar algo fazendo de novo. A asneira de palavras como “fazer de novo”. Eu nunca posso “fazer de novo”. Alguma coisa mudou. Esta manhã estou gostando muito deste dicionariozinho gordinho. As minhas mãos realmente o sentem. Meus olhos realmente o vêem. Sinto afeto quando olho para ele, quando o pego, quando o coloco sobre a mesa. “Provar” vem de uma palavra que significa “teste”. Procuro “teste”. Surpresa! Vem de uma palavra que significa “artefato de terra”, como “telha, moringa, concha” etc. Esse tipo de teste. Como juntar iodo e amido. Não posso colocar hoje o meu dedo num jarro e descobrir como ele estava ontem — ou alguns minutos atrás. Só posso saber como está agora. Não posso saber como eu estava ontem. Só posso abstrair algo de mim-ontem. Quando abstraio do meu ontem e você abstrai do seu ontem, e eu abstraio da minha experiência de ontem de você, e você abstrai da sua experiência de ontem de mim, e tudo isso entra em conflito... Uma jovem estava zangada, agredindo com palavras: “Você queria partir logo e eu me esforcei (e trabalhei duro) para aprontar tudo para irmos, e agora você só quer ir daqui a uns dias” “FÍ7 tudo isso por você”; era o que havia cm tudo que ela dizia. Seu marido começou a dizer: “Quem queria partir logo?” (quando as férias começaram), e então levantou a mão e disse: “Esqueça”. Num tom neutro perguntou: “O que você quer agora?”. Ela não disse nada. Não era necessário. Seu rosto revelava que ela queria partir logo, que sempre quisera, e que tinha estado a forçar a si mesma e ao marido para conseguir o que queria. Ontem à noite eu disse ao Fritz que gostaria de preparar o desjejum dele para hoje. Manifestação de disposição. Hoje não houve grupos. Nada de levantar cedo. Ele disse algumas palavras que não lembro. Elas não formavam uma sentença, mas formavam sentido. Ele está gostando de preparar seu próprio desjejum. Nuvens nas montanhas. Uma gaivota está sentada sobre uma das grandes vigas suspensas que seguram o ancoradouro no lugar. Outro pássaro está voando. Quantos pássaros estarão voando, no mundo inteiro? Tristeza. Olhos molhados. Mãos leves e macias sobre a máquina de escrever. A minha natureza ainda é, apesar de todas as tentativas de destruí-la. Macias, macias palavras. Suavidade. Sinto-me dissolver nos ombros. Dissolver. Dissolver a couraça. Sentimento agudo, quase dolorido, muito bom, esquisito, delicioso, como antes do orgasmo. Meus órgãos genitais estão saltando. Pulsando. Dissolver. Dissolver. Meus pés descalços estão frios e duros sobre o piso. Dissolvê-los. Fazer isso (mentira) até que a dissolução — aconteça por si só. Então deixo-a só. Sem tocá-la. Nem um pouco, sequer com a cabeça. Meus pés estão ficando vivos, como que passando do torpor para o comichão, b b b b vejo a letra com os olhos fechados. Algo quer se aproximar, outra letra que continua misturada com o b e não posso ver muito bem. Aconteceu por si só. Eu a movo para fazer a separação. É um e. E be, não b e. Meus olhos ainda estão fechados. Note que não dei espaço (o sininho faz ting e eu volto o carro da máquina (não tenho certeza destes parênteses, se vou acertar a tecla, b e . O intelecto entra e diz sim! be (ser). A palavra em moda nestes tempos. Deixe-me ver se aparece alguma outra coisa, se alguma outra coisa se forma. Agora por cima de outra coisa que veio. Não consigo ler através dos x’s. Saltou à vista. Como que escrito em fita nova. Agora, nada de palavras. Uma luz luminosa, tingida de rosa (olhos abertos). Por algum tempo fiquei olhando e nada se formou. Só uma luz linda, tingida de rosa. ***

Neste instante notei que aqueles fogos de artifício pré-orgásticos sensacionais cessaram. Não sei quando. Agora, é como se estivessem difusos através de mim, como carne de vida/alegria, que antes não parecia morta, mas agora, olhando para trás, fede. Como se nem sequer sangrasse. Onde estou agora ainda não é o final... Mais alguns saltos genitais, agora, como que dizendo “sim” — e sinto a minha testa ganhar vida, as minhas costas, meus ombros e seios. Forçar seria insanidade. Deixar ir e vir. Deixar o organísmico, que sabe tanto mais que eu... Meus ombros. O que está acontecendo nos meus ombros. Como se houvesse mãos fortes colocadas sobre eles, mexendo-os daqui para lá. Como uma massagem. É isso que está parecendo. Mas que massagem! Com mãos de gigante trabalhando com os meus ombros — fortes, gentis e imensas — imensas em relação a mãos humanas, exatas para servirem aos meus ombros. Agora essas mãos, sem deixar os ombros, estão trabalhando o meu peito. Eu penso “Mas, e os meus músculos da barriga? São eles que mais precisam”. Contento-me em deixar meu organismo — mim, mover-me como quer. Mim não preciso de instruções, muito menos de eu... Minhas pálpebras inferiores se enchem de água, não o suficiente para escorrer. Com o meu piscar os olhos se sentem banhados. Agora essas mãos parecem estar simplesmente segurando meus ombros no lugar — com força. Ninguém mais está fazendo isso. Meus ombros é que fazem. Como me sinto forte! Como sou forte! A minha cabeça e o meu pescoço estão ficando mais fortes. A força também está entrando no peito — nos quadris, nas coxas, canelas, pés. Levanto-me e estico-me. A minha mão e o meu braço direito estão balançando loucamente. Deixo que entrem em fortes tremores. Paro de datilografar, deixo que aconteça de novo com todo meu lado direito se envolvendo. Noto que o meu lado esquerdo, até a sola dos pés, se sentia forte — fraqueza do lado direito. Ainda não entendo, mas do lado direito está ocorrendo algo que não me lembro de ter acontecido antes, Movimento, Movimento interno, Algo se passando. Por enquanto chega. Não apresse o rio, ele corre sozinho. A esta altura, se eu quisesse mais estaria apressando. Eu me retiro, e deixo a receita para mim. Voltei à máquina de escrever. Quando a larguei, comecei a andar para o banheiro; mim parei, e comecei a oscilar de um lado para outro, com pequenos suspiros, esticando um pouco os braços com um movimento para cima — para baixo, no ritmo da oscilação. Sinto meu pescoço ótimo! Sinto o meu pescoço. Larguei de novo a máquina, e tendo dado os mesmos poucos passos, minha barriga começou a apertar, indo para a frente, e os quadris para trás. Meus pés ficaram no lugar enquanto eu me dobrava, para a frente e para trás, braços soltos indo na direção que quisessem. Nunca duas vezes a mesma coisa. Se eu começasse a fazer a mesma coisa, sabería que eu estou fazendo. O organísmico mim é a variedade infinita, movendo-se com as mudanças, nunca o mesmo rio, sempre trazendo surpresas. ***

Há dois dias não quero ser gestalt-terapeuta e não tenho sido gestalt-terapeuta. Esta manhã Fritz trabalhou com Lasha, e depois com o Tom. Lasha — por mais de três meses tão rígida consigo mesma, sem se soltar, sem se permitir ser mulner — soitou-se, chorou, amou e toi lindo. Eu amei Lasha desde o dia em que ela chegou. Toda resposta honesta e imediata que eu lhe dava, era rejeitada — pela rigidez quando eu punha a mão no seu ombro, pelas palavras quando eu dizia: “Sinto-me tão bem em ver você outra vez”. (“Você está sendo sarcástica?”) (Eu: “Se você ouviu sarcasmo, seus ouvidos devem estar loucos”.). Quando esta manhã a sua concha se rompeu e ela foi tão doce, tive medo (pensando) de chegar a ela como eu queria. E se a minha ida a cortasse, fazendo com que ela se fechasse de novo. Eu podia suportar ser deixada de fora, como já fui; eu não podia suportar ver Lasha deixar a si mesma de fora outra vez. Eu me debati um bocado (que pareceu mais longo do que foi, tenho certeza), então me soltei, deixei o meu amor sair e fui até ela. Ela hesitou um momento — a hesitação estava em seus olhos — e então me deixou entrar. Coloquei os meus braços em tomo dela e, abençoada Lasha, os braços dela em tomo de mim seguravam a minha cabeça como num berço, como um carinho, como se ela estivesse segurando um bebê. A Lasha real. Agora sinto lágrimas nos olhos, e a luz do sol parece dançar nelas, e agora uma delas está escorrendo pelo meu nariz, enquanto outras descem por dentro dele. E agora, estou chorando. Não são lágrimas sentimentais. Não há pensamento. Só o choro, e chorar também é bom. Uma gaivota andando sobre um dos marcos de madeira. Refletida na água, ela está andando de cabeça para baixo. Saltou de um marco para outro cerca de vinte a 25 centímetros — de cabeça para baixo e para cima ao mesmo tempo... Mais uma vez. Ela fez de novo. Desta vez, ela era uma ave em cima e uma sombra na água. Agora está chovendo e a água mudou — não reflete muito e está toda salpicada de gotas de chuva. Aqui é um lugar tão incrível para se viver com as mudanças, para se viver mais agora. As pessoas também estão mudando. Um homem que num dia diz que está aqui apenas para aprender o que pode usar quando voltar aos seus pacientes, qualquer dia pode descobrir que também está aqui em função de si mesmo. Talvez já tenha descoberto. Continuar conhecendo as pessoas onde elas estavam é perder onde estão agora. Preciso conhecer as pessoas agora ou não as conhecerei em lugar nenhum. Se eu conhecê-las de memória, não as conheço, e não estou conhecendo. Memória não é conhecer, e memória não sou eu, agora. ***

Sinto que hoje estou lerda e penso que o que estou escrevendo deve ser bobagem. Mas neste instante preciso ser lerda, e isso está bom e a bobagem também... Realmente senti o que disse, e bobagem criou faíscas por todos os lados! O que aconteceu com a bobagem? Agora o lago está refletindo tudo — colorido. ***

Glen: Para agradar o Fritz, você tem de fazer o que não pode. Shawn: Para agradar o Fritz, você tem de fazer o que pensa que não pode. E não precisa dar a mínima se está ou não agradando o Fritz. Eu sei o que tenho de fazer para agradar o Fritz. Isto é, que vai agradá-lo quando eu fizer. De outras maneiras, o agrado já está presente. Mas eu tenho de fazer isso para agradar a mim, e não o Fritz, a partir do meu próprio sentir, do meu próprio querer. Enquanto eu não fizer, não passa de fantasia. E agora, é melhor não pensar mais nisso, ou não farei. O pensar pode durar para sempre, cada vez com mais detalhes de algo que nunca aconteceu, de algo que não pode acontecer enquanto eu estiver pensando nisso. O Primeiro Princípio* (* Tirado de Zen Flesb, Zen Bones, de Paul Reps. Charles E. Tuttle Co., Inc„ Tóquio. (N. do E.) Quando se vai ao templo Obaku em Kioto, vêem-se inscritas sobre o portão as palavras: “O Primeiro Princípio”. As letras são descomunal mente grandes, e os que apreciam a caligrafia sempre as admiram como uma obra-prima. Foram desenhadas por Kosen, duzentos anos atrás. Quando o mestre as desenhou, ele o fez em papel, e dali os trabalhadores as ampliaram, escavando-as na madeira. Enquanto Kosen esquematizava as letras, estava com ele um discípulo que lhe tinha preparado vários galões de tinta para a escrita; esse discípulo nunca deixava de criticar a obra do mestre. “Essa não está boa”, disse ele a Kosen após a primeira tentativa. “E essa?” “Pobre. Pior que a primeira”, sentenciou o discípulo. Kosen escreveu pacientemente uma folha após outra até juntar 84 primeiros princípios, ainda sem a aprovação do discípulo. Então, quando o jovem saiu por alguns momentos, Kosen pensou: “Esta é a minha chance de escapar ao olho aguçado dele”, e escreveu apressadamente, com a mente livre de distrações: “O Primeiro Princípio”. “Uma obra-prima”, afirmou o discípulo. ***

Lama, lama, lama. Me sinto enterrada. Andando pela rua com um fardo pesado nas costas. Perdi contato, não sei se estou caminhando ou se estou construindo as escadas. E fácil passar para a outra história e me sinto bem nela, mas ainda preciso voltar e construir as escadas. Sem — Estou pensando sobre! Estou pensando. Inventando meu próprio trabalho. Lama, fardo. FORA! Que surja o que for. Gosto do Van. Na primavera passada telefonei para ele e disse: “Estou telefonando pelo George, que não sabe o que fazer com a mãe dele”. “Mate-a”, disse ele amigavelmente — sem conhecer o George ou a mãe. Onde começou o trabalho de Lasha esta manhã? Atribuir um princípio é voltar ao princípio do tempo — que, suponho, é quando o primeiro organismo — ou seja lá o que for — tomou consciência do tempo. Arbitrariamente, escolho o momento em que Fritz fez um som de zzzz imitando a voz dela, e pediu-lhe que fizesse isso com algumas pessoas. Ela fez, e então começou a afastar os mosquitos de si — foi como ela experienciou o som. Então teve de ser um mosquito para diversas pessoas, antes de chegar ao Deke. A partir do que aconteceu então, Fritz pediu-lhe que fosse terapeuta do Deke. Então pediu-lhe que voltasse ao lugar quente e ao terapeuta que escolhera no início. Recordo-me de ela ter dito: “Você é sempre tão bacana. Quando é que você vai começar a exigir?”. Não me lembro das palavras que vieram depois — apenas que foram baixas e macias, e acabaram com Lasha tornando-se real. Quando vejo algo assim, penso: “Vá embora agora. Você não tem idade suficiente para aprender”. Mas eu sei que não são apenas anos como terapeuta: é onde estou, em mim. Trabalhar comigo mesma, e o resto acontece por si. Enquanto eu continuar bloqueando, a tomada de consciência continuará interrompida. Cem anos como terapeuta não me farão tão bem quanto desbloquear-me agora. A variedade do trabalho do Fritz como terapeuta provém da sua tomada de consciência. Aquilo que ele sabe, por causa de toda uma vida como terapeuta, provavelmente o atrapalha tanto quanto ajuda. Um cancela o outro. Fritz diz que procura ao máximo não pensar. Durante a terapia, ele é como Carl Rogers — a mesma conclusão: Carl diz que durante a terapia, qualquer teoria só atrapalha o terapeuta. Quando me fecho, começo a pensar. Me parece que é aí que a encrenca começa — quando somos crianças. Esta manhã, parei de pensar após ter me fechado, por meio de uma entrada no meu corpo, deixando as coisas acontecerem nele. Depois disso, me senti muito mais forte, e eu estava aqui sem pensar — apreciando o trabalho que o Hal fez com Bob. Eu estava muito presente. Mas ainda não sinto inteiramente que tenho uma boca. ***

P: Você se orgulha de si mesmo? Fritz: Não, não me orgulho de mim, mas não mais me desprezo. ***

Pat: Fritz, tenho medo de você. Não posso contar com você. Fritz: Você pode contar com o meu amor. Você não pode contar com o meu apoio. ***

Esta manhã, mais uma vez caí de cara no chão, no grupo de treinamento adiantado. Karl ocupou o lugar quente e pediu a Romily e eu que fôssemos suas co-terapeutas. Ele começou a contar no passado. Em vez de lhe dizer que eu estava impaciente com ele por não entender, tentei ser paciente e mostrei-lhe o que estava fazendo. Estremeci toda — e aconteceu o mesmo quando ele começou a contar no presente, mas ainda sendo uma história, não um sonho. Estremecí outra vez. Daí por diante, duvidei de tudo que notava. Romily estava maravilhosamente mudada. Notei isso e me senti bem. Notei como Karl se saiu maravilhosamente quando Fritz assumiu o comando, e me senti bem. Mas eu ainda estava me prendendo ao meu erro — e cometi outro. Quando Karl acabou, disse-lhe que no começo eu fora falsa. O passado é falar sobre. Sei disso. Deixei tudo con — não, isso são palavras. Não me senti confusa... Me senti esclarecida, e ao mesmo tempo sem conseguir enxergar alguma coisa. Como se eu estivesse olhando para o lago e alguém visse um hidroavião que não estou vendo... Fritz me disse que eu estava falando sobre. Reconhecí o fato, e não soube o que fazer com ele. Ele me deu uma pista dizendo: “Eu sou — eu fui”. Ficar no agora. Eu estava procurando uma forma de dizer o passado (que já não estava mais presente) no tempo presente. Não descobri como. Eu ainda estava me prendendo ao passado que não estava presente em mim. Qualquer coisa que eu fizesse agora era estragada pelo fato de eu me prender ao passado (memória), que não estava presente em mim exceto por eu conservá-lo. Fantasia. Não lembro o que o Fritz me mandou dizer a cada pessoa. Algo como “Eu perco o momento quando” — e eu acrescentava: Eu perco o momento quando tento ser algo que não sou. Eu perco o momento quando me contenho. Eu perco o momento quando penso sobre, e algumas outras frases. Quando cheguei ao Glenn, não disse com força, porque com ele estou mais no momento. Era “oportunidade” — talvez “Eu perco a oportunidade.” A única coisa que tenho a dizer a meu favor é que fiquei com o fato — sem tentar qualificá-lo, modificá-lo, e assim por diante. Fiquei realmente com ele. Só depois percebi que não tinha dito “Eu não faço isso com —” ou “Eu não faço isso o tempo todo”; não disse: “Fritz, você sabe que ontem à noite, quando você disse que eu não me sentia à vontade com a minha fisiologia, referindo-se a ‘ir ao banheiro’, eu falei em voz alta e clara: EU GOSTO DE IR AO BANHEIRO”. Eu estava com o agora suficientemente próximo para não pensar em nada disso naquele momento. Eu ainda estava me contendo, deixando para dizer depois o que me vinha à cabeça. A mesma coisa que fiz quando o Ray perguntou o que os meus braços estavam fazendo nas braçadeiras da cadeira: Eu notei, e contive o meu notar (para me assegurar dele), antes de me expressar — meu experienciar. A mesma coisa que fiz tantas vezes durante a semana de tomada de consciência em junho: preciso deixar sair a minha voz, deixar cantar o meu sentimento: levou apenas um momento para eu notar o sentimento — momentos (pareceram cinco minutos embora eu não creia que tenham sido) para deixar o sentimento sair em voz. (E também não disse hoje de manhã, quando dava a volta pelo grupo, o que acabei de lembrar: “Eu estava me saindo bem e feliz com isso, até que o Haí ficou sendo o meu co-terapeuta”. Foi bom não ter dito! Ou ruim. Pois é claro que isso é algo que tenho de trabalhar com o Hal. O problema de fazê-lo já está me encucando há algum tempo. Faço um programa para dizer algo. Pelo menos (umas palmadinhas nas costas) não perco muito tempo com isso. E então, na sessão seguinte, estou pronta — e todo mundo entra aborrecido com a partida de Don e a forma como ele resolveu ir, e eu entro nisso — nem mesmo‘percebo o que me incomoda na voz do Hal quando ele se junta ao falatório. Estou na minha zona de tagarelice. Eu me afastei de mim mim mim mim mim MIM MIM MIM MIIIIIIIIIIIIM. Escrevi três plaquetas. NÃO PENSE SEJA IR-RAZOÁVEL. DEIXE OS ERROS PARA TRÁS — EM PRIMEIRO LUGAR, ELES NÃO VALIAM NADA. Fritz disse que são programas. Pareceu gostar do último, embora também seja um programa. Perdi contato com meu conhecimento de que os erros não importam. Se eu não tivesse cometido o primeiro, não teria cometido o segundo. Se não tivesse cometido o segundo, o que se seguiu não teria acontecido, e eu não estaria (agora) atada por nós e com dor de cabeça, e ao mesmo tempo — estou postergando o trabalho com a dor de cabeça. Adiando. Deixando para depois. Mas a dor de cabeça é o que emerge. Prestei atenção à dor de cabeça. O que emergiu então é aquilo que não consegui recordar antes: Fritz me mandando dizer — escapou de novo, exceto a expressão tanto quanto — como fiz ontem à noite com a Pat, quando lhe disse: “Quero fazer uma pergunta, e a estou deixando de lado porque não quero que você responda, só quero perguntar —”, e disse a pergunta. Agora a dor de cabeça está emergindo outra vez... Expressar tanto aquilo que quero dizer quanto o que estou fazendo com isso. Libere. Não delibere. Quando estávamos terminando, e o Fritz já se tinha virado para sair, eu disse: “Ei!”. Isso saiu de repente. Então parei enquanto as palavras ficavam presas na garganta — retendo (algo como): “Não gostei de você ter mencionado aquela história do banheiro (ele mencionou outra vez) quando o que provocou isso aconteceu depois”. Ele se virou e disse: “Obrigado”, como se não estivesse sentindo, mas talvez tenha sentido, mais tarde. Imagem: Fritz achando as moedas de prata! Essas palavras soaram engraçadas. Inferno. Eusej. Eu sei que viver com o que sei é importante. Autêntico. Real. E sei que é só o ego que se maltrata, que se “machuca”. Ele realmente quer dizer “obrigado”, mesmo que esteja machucado no momento. Tive essa sensação em relação a Jesus e a cruz. Meu próprio saber — só agora estou começando a ter contato com ele. Ego-eu acabando comigo, me dando dor de cabeça, e eu quero que ego morra — levantei-me e bati numa almofada. Ao bater, "ego” pareceu tão bobo quanto aquela ponta de almofada nas minhas mãos. Enchimento com pano em volta. Pano com enchimento dentro. Enchimento com pano em volta com enchimento dentro. Tsss! um silvo passa pelos meus dentes. Só ego. Do que eu quero me livrar. A única “pessoa” que eu quero que morra, que eu quero espancar e matar é o ego, não quero que o ego bata em mim. A única maneira de fazer isso... brigar com o ego mantém o ego vivo, porque brigar consigo mesmo é ego — é ser submisso... O que pensei que ia aparecer, não apareceu. Em vez disso, quando fiquei submissa — aos golpes do ego — tanto o ego quanto os golpes desapareceram. Não àquilo que o ego diz, mas ao que o ego faz. Quando me submeto àquilo que o ego diz, ainda sou ego. Quando me submeto àquilo que o ego/az — dor —, a dor vai embora, e o ego também. Então obrigado, Fritz, pela dor. Obrigado, Barry, pela dor. Mesmo quando doía, eu lhe agradeço, Fritz. Que seguramente soa como a religião cristã — a parte que eu destesto. ei. Não estou detestando agora que entendo. Ainda acho melhor jogar a Bíblia fora e começar de novo. Jogar tudo fora e começar de novo. Isso é bom, mas ainda estou doendo, alguma — ainda não estou aceitando a dor... Fico com ela — não a seguro — simplesmente a sinto, não faço nada e ela desaparece. Enquanto estou com ela, não penso nela. Instituto Gestalt do Canadá — uma escola cristã judaica budista hindu. Noto que me coloquei primeiro. (Sou cristã da mesma maneira que Fritz é judeu. Somos classificados dessa forma. Crescemos com ela no nosso ambiente. Nós não vamos à igreja ou templo, e v&o acreditamos.) Bem, bom. A minha voz-amigo não está tão forte como antes, mas há uma espécie de sussurro. “E hora.” Talvez elo esteja se sentindo um pouco estrangulado neste instante — ou não mais estrangulado e ainda em recuperação, sem muita voz. Tenho sentido falta dele. Na semana passada e nesta semana, no “meu” grupo (isso significa que quando o Fritz pede aos líderes de grupo que se levantem, eu me levanto), tenho ansiado mais para que este workshop termine do que continue. Agora, estou contente com a continuação. Todo esse tempo, me senti como se estivesse enterrada alguns palmos embaixo da terra — cavando a minha saída aos pouquinhos, muito devagar. Agora, estou mais perto da superfície — começando a ver a luz. Fritz! Você não sabe como me saí. Você nãosa&e o que descobri ontem, e que funcionou direito. Você não sabe o progresso que fiz. (Estou me dando dor de cabeça outra vez.) Fritz (meu Fritz): E então? Você quer parar aqui? Fico aqui sentada, sabendo a resposta e sem dizer. Não! Enquanto não tiver parado de de-liberar, quero prosseguir. Fritz, você ultimamente tem escorregado de volta. Pensando. Analisando. Você perdeu sua paz. Ontem à noite você mencionou um deveria. Seus deverias são ridículos para mim. Só o ego podería ter um deveria destes. Fritz (meu Fritz): Então você foi concebida sem pecado?

Fritz está esperando o Garbage Pail sair. Seus amigos gostaram. Ele está impaciente para saber o que os seus inimigos dirão sobre o livro — quer dizer, sobre ele. Não sei quanto tempo ele passa pensando nisso — só quando a coisa emerge para mim — como acabou de acontecer agora, encontrei-me com ele indo para a Casa. “Chegou alguma carta?”, querendo dizer “Alguma coisa do” (aqui fico em dificuldade, paro e penso, e continuo —) “Alguma coisa sobre o Garbage PaiP”. Tudo que sei é que se trata de pensar sobre — a zona intermediária (Fritz), a zona de tagarelice (eu) e eu não posso estar nessa zona de tagarelice só com uma asneira. Quando estou lá, estou lá, e qualquer outro lixo pode vir comigo, também. Geralmente, quando o Fritz vem a mim, mesmo que eu queira tocá-lo, espero que ele faça o primeiro gesto. Desta vez, movi-me em direção a ele, pus minhas mãos sobre os seus ombros, e nos beijamos. Quando ele parece feliz, ele parece feliz. Cheio de beleza. Não me sinto muito mais forte, só um pouquinho. *** Seguramente não foi erro ter cometido um erro. ***

Esta manhã, quando fui para o grupo adiantado... Não gosto do “adiantado.” O grupo das dez horas. O grupo das dez... levei comigo uma venda para os olhos. Se eu tivesse feito isso — vendado os olhos — tudo teria saído diferente. Diferente em que, não sei. As possibilidades são todas as possibilidades desta situação. Elas não incluem a Rússia, o México e o Lago Cowichan. Dentro daquela sala — todas as possibilidades — com dezesseis ou dezessete pessoas — estão além da minha capacidade de imaginar. Vendar os olhos, dentro dessas limitações, poderia ter produzido qualquer coisa. Não vendei. Eu queria vendar, e não vendei. Estava esperando. Esperando a “hora certa.” Suspeito que neste caso isso quer dizer: “Quando ninguém estivesse prestando atenção em mim”. Em todo caso, foi um ótimo exemplo de esperar a hora certa que nunca chega. Maluca, maluca. Eu estava toda preparada para acertar o Hal de primeira. Não houve. Eu não estava refreando nada. Estava me sentindo à vontade. ***

Jerry Rothstein veio hoje de São Francisco, quase dançando de excitamento por chegar, por estar aqui. Ele vai ter um grupo de trabalho com miopia, às sextas-feiras. Glenn disse que Karl não iria participar que não acreditava que os olhos pudessem ser mudados. Eu disse ao Glenn que isso foi ontem. Ele respondeu: “Ah, não, foi hoje de manhã”. Eu disse que agora ele está com o livro de Bates (ontem à noite dei-o a ele) e vai arranjar The Art of Seeing (A arte de ver), de Huxley. Glenn: “Mas ainda hoje de manhã... ah, não, foi ontem de manhã. Hoje de manhã ele estava falando sobre alongamento dos globos oculares” (de Bates). Essa é uma das coisas incríveis deste lugar: não se sabe onde alguém está a menos que se esteja com a pessoa. Fora isso, é provável que seja estava; isso é sempre verdade, só que aqui fica tão claro que se toma inescapável. Isso seguramente toma absurdo o falatório, quando se sabe que ao falar, a coisa talvez já não seja mais verdade. Fritz lutou contra Melissa, ontem, no grupo das dez, e outra vez esta manhã no grupo da minha cabana; lutou contra as formas de ela tentar controlá-lo, seus jogos de palavras que reduziam a zero tudo que ele dizia. Às vezes ela chorava. As vezes brigava. Quando passava de um para outro, ele dizia: “Esta é a sua outra forma”. Ele não aceitou nem um pingo das manipulações dela. Esta noite ele perguntou a ela (inquisidoramente, não solícito) como ela está, e ela disse: “Diferente”. Ela parecia diferente, também. Com base na minha própria vida, sei que quando as minhas velhas formas não funcionam, tenho de mudar. Acho que nunca vou poder lutar com alguém da maneira que ele às vezes luta, e não acho isso errado, para ele. Além disso, as pessoas que o procuram escolhem a ele — ele — e são responsáveis pelas suas próprias escolhas, assim como eu. Quando Melissa veio para cá ela sabia que queria cair fora do seu script*(* Script de vida: (também: argumento, roteiro de vida). Termo empregado em análise transacional para se referir a um plano de vida que a pessoa costuma seguir, e cujo desenlace. geralmente insatisfatório, pode ser previsto. (N. do T.) de vida pré-planejado, e escolheu o Fritz. Estou segura de que ela não queria aquilo que recebeu ontem e hoje. A partir disso, hoje pela primeira vez ela está tendo algo do que queria. Bob D. é tão simpático, tão simpático. E tão queixoso. Não tenho idéia do que fazer com isso e não adiantaria nada eu fazer... Estou começando a ver os usos da frustração, botar as pessoas em dilemas em que não podem se queixar. Gosto do jeito que Carl Rogers tem de frustrar — não dando respostas, junto com outra coisa... Também vejo onde Bob D. não é queixoso, o que não percebí logo. Estou me sentindo um pouco mais aguçada do que era. Fritz mencionou meus predicados: espontaneidade versus deliberação. Não há nenhuma questão que eu queira na qual eu confie. Vou para a cama sem deliberação. ***

Ontem, em certo momento eu realmente quis continuar com os grupos. Em alguns momentos, talvez. Em outros, eu nem mesmo queria continuar aqui. Hoje de manhã, quando o lago e as colinas estão aqui dentro — e estão aqui dentro — quantas palavras. Olhe aqui. São sete horas da manhã, hora padrão do Pacífico, e bastante perto do norte para... Tente outra vez. Aqui há alguma luz no céu, não muita. Neste instante sinto-me bem em estar aqui agora, e não estou, e quando penso na hora que virá daqui a uma hora começo a discordar de mim. Está acontecendo algo nos meus ombros e pés. Algo que não é dor e não sei o que é, e estou gostando. Meu rosto parece que está queimando, como se estivesse queimado de sol. Isso continua acontecendo, há mais de dez dias. O que está ocorrendo nos meus ombros e pés, que não é dor, é movimento. Movimento bastante forte. Como forçar areia molhada com a mão. Este lugar é uma loucura, sabe? Dez mil metros quadrados, com pequenas construções e gente quase o tempo todo dentro das casas, e 34 pessoas indo para cima/para baixo para cá/para lá e nunca se sabe onde ninguém está, dentro ou fora, se está falando sobre o fora ou sobre o dentro, exceto o Fritz, que nota tanta coisa mais do que o resto de nós e passa algum tempo depois da reunião de comunidade jogando xadrez ou cuidando da coleção de selos. Será? Só sei que às vezes eu o vejo pela janela, sentado à sua mesa, onde estão alguns enormes álbuns de selos e não tenho idéia do que se passa dentro dele, não mais do que os outros tinham a meu respeito quando eu jogava paciência. Por que precisamos saber? Por que temos de fingir que pensamos que sabemos? Por que temos que julgar se o que está se passando é bom ou ruim? O que posso dizer sobre um lugar onde a visão/experiência de cada pessoa é diferente e continua mudando, e bom toma-se ruim e ruim toma-se bom, e não gosto toma-se gosto, e gosto toma-se não gosto, e agora mesmo agora mesmo, agora mesmo já se foi antes que eu pudesse dizer. A Sra. McGillicuddy foi para Alberta visitar sua irmã. O presidente saiu para jogar golfe. A Sra. McGillicuddy está falando com a irmã. O presidente está conversando com quem está jogando golfe. A minha avó foi para Londres. Foi é, o que comprou. O presidente estava de temo azul. A Sra. Mac estava de vestido florido. Um Zendo é mais ou menos eficaz do que um Instituto Gestalt? E por que ninguém sabe nem pode saber. Não há como descobrir. Em primeiro lugar as pessoas que vão são diferentes, e em segundo lugar as pessoas que vão para um e para outro a fim de provar algo, já não são as mesmas que eram no primeiro lugar, Isso é algo que estou vendo, não algo em que estou pensando. Esta escola é melhor, aquela escola é melhor, e se esta escola é pior, talvez acabe sendo melhor. Nada importa exceto... Nada importa. Na verdade não. Ao mesmo tempo importa. Não me peça para lhe dizer, descubra sozinho, seu vagabundo. Eu sou a fonte da sabedoria. O homem não é fonte de informação. É um depósito. Que informações tenho realmente? Há um pouco mais de uma milha daqui até Lake Cowichan. Eu gosto de grupos? V As vezes. Eu não gosto de grupos? Às vezes. Faz tempo que estou aqui? Uma milha e meia até Lake Cowichan. Caro: Larry. Caro Senhor: Caro Sr. presidente, eu gostaria que o senhor não levasse o mundo tão a sério a ponto de ter de fazer algo com ele. Cara Barry, eu gostaria que você não levasse o mundo tão a sério a ponto de ter de fazer algo. Eu gostaria que você não se levasse tão a sério a ponto de ter que fazer algo. Isso soa como o meu amigo, a voz. A voz penetrou nas palavras enquanto elas se escreviam. Você não pode ouvir a voz com a qual as palavras foram escritas Quando você as ler, estará lendo as minhas palavras com a sua voz, e me dirá o que eu disse. A voz é a sua própria, então escute, não diga para mim. Toda vez que me apego a algo e me sinto brilhante, tudo que escreví antes parece banalidade. Não tenho vontade de jogar tudo fora por causa disso. Eu estou começando agora, a partir de onde estou. Sem tudo que precedeu isto, como poderia estar onde estou? Esta manhã o Fritz nos mandou escrever um ensaio sobre o “deveriaísmo.” Tenho certeza de que ele não disse “ensaio.” Fui eu quem disse. Agora estou com dois significados de “ensaio” na minha cabeça; gosto de um, e não gosto do outro: um é aquele tipo de tentativa sem esforço, deixando as coisas fluírem para que eu descubra o que são; o outro é uma composição literária, arranjada de certa forma e redigida em certo estilo. Vou tentar o primeiro: O deveria vem do poderia. Poderia ter sido diferente. Eu poderia ter sido diferente. Você poderia ter feito outra coisa. O tempo poderia ter estado bom. Eu poderia ter nascido com outros pais. Meu filho poderia ter feito carreira, ficado famoso e ganhado rios de dinheiro para si mesmo (e para mim). Você poderia ter chegado na hora. Eu poderia não ter cometido esse erro. (Como poderia, se até fazê-lo, não parecia ser erro?) “Você poderia ter, eu poderia ter” leva diretamente para “Você deveria ter” e “Eu deveria ter”. Um estudioso de semântica, chamado Harrington, cujo primeiro nome esqueci, afirmou que conhecia um índio que falava fluentemente sua língua tribal e a nossa. Harrington perguntou ao índio se na língua indígena havia palavras (significados) tais como “poderia” e “deveria.” O índio permaneceu calado por algum tempo. “Não”, respondeu. “As coisas simplesmente são.” Acho que essa ausência deve existir também em outras línguas indígenas, porque estou segura de ter visto índios desconcertados quando brancos lhes diziam que as coisas poderíam ter sido diferentes, que eles poderíam ter se comportado de outra forma, ou que deveríam ter feito outra coisa. Vi também o desconcerto dos brancos quando os índios continuavam fazendo a mesma coisa depois de se lhes dizer que não deveríam, e o desconcerto dos índios quando os brancos ficavam desconcertados com o desconcerto dos índios. Fritz disse que se alguém tivesse uma saída para o deveria-ísmo... Duvido que haja uma saída, mas um dos meios a serem tentados é notar nossos “poderías” — não só nossos deverías. Não gosto deles. Eu prefiro jogar poderia e deveria fora da nossa língua, e ver o que acontece. Não que seja “ruim ” Só que “não quero mais usar essas palavras”. Acho que todo mundo iria concordar com isso em termos de o outro jogá-las fora, e a maior parte das pessoas acharia muito difícil jogar fora as suas próprias. Mas se fizéssemos isso, talvez começássemos a perder os conceitos; e se uma pessoa conseguisse, certamente não iria aceitar os poderías e deverías dos outros. Palavras a serem jogadas fora, geralmente não de forma deliberada; mas se as pessoas achassem que isso libera, muitas delas (de nós) o fariam. Estou cheia de falar sobre. Necessitamos de uma mudança na linguagem (conceitos), se quisermos ir adiante. Lá vou eu de novo. Esta manhã, no grupo grande, uma coisa levou a outra, e eu acabei com o Bart, que expressou seu desgosto pela minha suavidade. Alguns momentos depois, senti-me forte e meu corpo ficou ereto — só isso. Bart deu um salto para trás — seus ombros se afastaram bastante. Ele disse que era “a transição súbita.” Eu disse: “Muito bem. Estou aqui parada. Vou ficar parada ereta”. Fiquei ereta. Bart: E difícil alcançar você. Eu não tinha um motivo quando disse, fiz isso. O pensamento me veio e eu estava interessada em ver o que aconteceria. Fiquei muito surpresa. Quanta coisa nós dois aprendemos em poucos momentos, simplesmente fazendo algo em vez de falar sobre. Fazer algo de outra forma. O que aconteceu com o Bart me surpreendeu. O que aconteceu comigo me surpreendeu. Bart teve a surpresa dele. Eu me sinto diferente, como se algo tivesse despertado em mim. Nós tínhamos de escolher alguém que nos desagradasse para o que quer que fosse feito. Ninguém me desagrada totalmente. Fiquei procurando alguém ao acaso, e vi o Bart parado sozinho, e fui até ele. Não sei se o Bart pensou que o escolhi porque ele me desagrada muito. Em todo caso, o que aconteceu foi isso, e me parece que se em vez de eu escolher a pessoa do grupo que mais me desagrada (ou seja lá o que for preciso fazer), eu fecho os olhos, me movo e agarro alguém, algo terá de acontecer, também assim. ***

Doze horas de sono chegaram ao fim. Sol forte, reflexos da água brilhando. Ombros tensos. Tensos? A carne em tomo dos meus ombros e nas costas me dá a sensação de eu estar me amassando. Pelo menos me livrei do “eu tenho de”. Como me livrei do “tenho de”. Notando toda vez que pensava “eu tenho de”, e reconhecendo que não tinha de, só pensava que tinha — e quando joguei fora (não de propósito) os tenho de, o que sobrou foram os queros. Claramente os queros — não mais misturados com os tenho de. Esta manhã estou confusa. Na quinta-feira, num grupo com o Fritz, eu me expressei na mesma voz (alta e clara)... ao diabo com isso. Fico em apuros assim que começo a escrever. Confusão. Nada claro. Tudo leve e turvo e se dissolvendo no nada. Não sinto que deveria trazer de volta. Fritz, você não está notando os passos que dei, esses passos arriscados, que não são arriscados, mas que eu sinto arriscados, e então são. Eu sinto que você está me forçando a andar mais. Não apresse-o rio, ele corre sozinho. Não quero que você me diga que estou me saindo bem. Só quero que você me deixe em paz. Já comecei. Deixe que eu me mova no meu próprio ritmo. Note que estou me movendo agora, de uma maneira nova, timidamente, mas estou, e antes não estava. Deixe-me dar os meus passos tímidos, notando como eles são bons e ganhando confiança por meio do meu próprio experienciar. Não solte um grunhido fantasmagórico quando digo que estou trabalhando com o problema dos grupos muito pequenos — meu problema nos grupos muito pequenos, deixe os outros terem os problemas deles. Real mente não ligo a mínima para eles, exceto quando reforçam a minha dificuldade. Os outros problemas estão em outro lugar, não aqui, não em mim. E a minha impaciência com o mesmo tipo de passos tímidos dados pelos outros? Não sou impaciente. Eu noto esses passos, e gosto deles. Os dois Bobs deram passos tímidos e eu gostei, como pequenos botões florindo. Não quero forçá-los. Penso que deveria. Não que tenha de fazê-lo, mas que deveria. Neste Instituto Gestalt com Fritz no comando. Ele quer que eu faça isso. Talvez ele queira. Talvez ele não queira. Não sei; eu penso isso. O que posso saber é só de mim. Eu não quero. Como meu peito incha quando digo isso. Estou admirada, não esperava me sentir tão bem e forte. Às vezes tenho me forçado (nos meus termos), querendo ou não, às vezes tenho me acompanhado. Como uma gagueira. Falso/real/falso/real. Sem dizer o que estou fazendo, nem mesmo para mim. Sem ser clara, dentro de mim ou com outra pessoa. Esta semana houve tanta morte com o Fred, que pensei que deveria assumir o comando e fazer algo, e às vezes fiz. Eu não queria fazer. Então mudo o meu “deveria” e o significado da palavra sai diferente. Na verdade, ele se apaga: já não está mais aqui. Eu “deveria” fazer o que quero fazer? Tolice! (Sensação de absurdo, não de um modo de encarar ou decisão razoável.” Eu quero . E só isso que eu “tenho de “ e “deveria”. Eu quero. Eu não quero. Notar. E nada de malditas explicações. (Eric Beme diz que só precisamos de três palavras — sim, não, agora.) Como a carta para o Jordan, que tentei três vezes escrever. A primeira parte — sete linhas — respondendo a três perguntas de duas cartas dele. A segunda parte tenta responder a uma pergunta. Ela tem umas 25 linhas, e não gosto do que escrevi e sei que não respondí à pergunta dele, e não jogo fora e tento outra vez. Eu não quero responder a essa pergunta, além de dizer: “Estou aqui e estou gostando”. Penso que deveria dar mais informações sobre este lugar, e sobre o meu entusiasmo; isto acontece. Não me obrigo a sentir. Flui. Esta carta para o Jordan, estou me obrigando a fazer, e sai uma porcaria. Continuando a me obrigar, a carta sairá cada vez pior, e eu ficarei cada vez mais frustrada. Espirro espirro espirro espirro espirro — não sei quantos. Uma série deles. O sol entra pela janela. Noto que estou quente e grudenta, com essa camisola de flanela. Na minha própria cabana, sozinha, e ninguém lá fora, e eu de camisola. Tiro-a e me sinto bem. “Eu quero” é tão fácil. Eu não “deveria” escrever para o Jordan sobre este lugar... não só que não “deveria”, mas quando não estou envolvida, não estou envolvida, e tudo que escrevo sai como um anúncio de publicidade, e não o entusiasmo espontâneo que sinto quando sinto. Um “deveria” fora do caminho. Agora a carta ao Jordan vai sair fácil, em oito linhas; e será mandada em vez de ficar na minha mesa, encalhada. Não posso saber se o Fritz está ou não me forçando, mesmo que ele me diga. Depende de eu acreditar nele ou não — quando estou onde estou agora. As vezes é uma sensação: então sei. Sem interferência do meu pensar. E irrelevante se o Fritz tem estado ou não a me forçar. Eu tenho me forçado. Quando eu me livro do meu próprio forçar, o que os outros fazem não me força — e eu não me sinto forçada. Não estou sendo “resistente”. Apenas sou. Como os navajos quando não deixam que nós os forcemos e não forçam a si mesmos. Sinto o meu corpo — “de dentro”, para distinguir da sensação que tenho quando coloco minhas mãos nele. Mas parece bobagem dizer “de dentro”. Eu sou o meu corpo, o meu corpo (eu)... eu estou viva. Agito ergo sum. Que gramática imbecil nós temos, para expressar o real, para expressar o que é. Ao me expressar, caio na cilada da linguagem. O lago não está “lá fora”. Sinto-o fluir em*mim. As árvores e montanhas não estão “lá fora”. Sinto o sossego delas em mim. O céu não está “lá fora”. Sinto a mesma leveza e vastidão em mim. O chão não está “lá fora”. Estou em contato com o chão. A cadeira em que estou sentada — hmmm... Quando chega a vez da cadeira, sinto que caí na cilada da linguagem outra vez, ou ainda. Esta cadeira e eu. Sinto o fluir entre nós e o contato (toque). Ou isso/ou aquilo — a separação intelectual que formou a nossa linguagem, ou a partir da qual a nossa linguagem se formou. Posso usá-la para dizer “A máquina de escrever está sobre a mesa” e “Eu estou sentada sobre a cadeira” e “Eu estou datilografando”, mas não para expressar o que se passa dentro de mim entre nós. Hmmmmm. A minha experiência não é a sua, e a não ser pela cilada da linguagem, não há razão de eu expressar a minha. Na verdade, eu a expresso sim, através do meu corpo que sou eu. Olhos, cor da pele, postura... todas essas expressões e suas mudanças são óbvias. Não preciso dizer uma palavra. Mas, vivendo tão presa na cilada da linguagem, eu estou fora de contato com o que experiencio. Tentando descrever o que é, estou explorando a cilada. O que a nossa linguagem áfc que está “se passando”, distorce a realidade, e quando uso as palavras e a gramática, eu me distorço. Na minha luta, torno-me mais consciente da distorção, da inadequação entre as minhas palavras e eu. Márcia acabou de entrar. Vi quando ela estava chegando, e tive um pequeno pensamento/movimento de levantar da cadeira e pegar um quimono. Abandonei-o. O sol está quente. Eu estou quente. Eu estou aquecida pelo sol. O sol está me aquecendo. No primeiro dia de novembro no Canadá, onde nunca passei antes um primeiro de novembro, estou aquecida, ficando muito quente. Tenho um pensamento — acho que deixei de lado as minhas situações inacabadas neste livro. Não me importa. Onde comecei o parágrafo anterior não foi onde terminei. As situações inacabadas estão em toda parte, no mundo inteiro. Só aquelas às quais me prendo precisam ser “terminadas”, para eu me soltar delas, deixar que sejam “passado”. Onde comecei o parágrafo: O sol está quente, Eu estou quente. Eu estou aquecida pelo sol. O sol está me aquecendo... eu ia continuar com a gramática e então emergiu outra coisa. Sol. Eu quente. Isso diz tudo, e deixa muito mais tempo para gozar “eu quente. Sol”. Quando Rick não estava disposto a trocar Shakespeare por ser, achei que ele era um tonto. Descubro a minha própria relutância em trocar o fluxo de palavras por inglês mestiço. Cuidado. Quando interrompo o fluxo de palavras — naquele momento, interrompí — tenho muito mais consciência. Meu sentir se toma tão elevado, tão acima do normal que eu sinto uma espécie de prazer doloroso — e agora reluto em voltar às palavras. “Mas elas podem ser úteis para outras pessoas.” Que as outras descubram seu próprio caminho. “Mas você usou livros...” Em fantasia, algum outro argumento me passa pela cabeça. Não me prendo a ele. Ele já não está aí. Crianças brincando com água. Crianças e água brincando. Preencha o resto com o que você quiser. De qualquer maneira sempre se faz isso. Quem tira de Person to Person algo que não quer? Crianças e água brincando. Isso é real. O resto é fantasia. Continue sozinho. O que o meu real de “crianças e água brincando” faz por você? Certo dia, na biblioteca pública de EEonolulu, vi uma mulher robusta com um guarda- chuva no braço —

PEDRA Pensei realmente ter acabado o livro na página anterior. Mas não foi um ponto final. Uma coisa continua a mesma: todo domingo eu gostaria que houvesse mais um dia de fim de semana. Ontem Jerry disse que gostaria de voltar o mais cedo possível (ele já se foi) porque quer estar comigo e com o Fritz, e ambos vamos embora. Eu disse que talvez não acabasse de escrever, então ficaria mais tempo. Ele disse que isso o deixava em situação difícil, porque queria que eu ficasse e queria que eu terminasse o livro. Acabei de passar pela mesma coisa com o meu filho, e é como quando eu costumava dizer: “Gostaria que parasse de chover”, e as pessoas diziam: “OH! não diga isso! Nós precisamos das chuvas para as colheitas”. Que diferença fazia — a chuva vinha e ia, independentemente. Se as pessoas podem fazer chuva, essa capacidade não provém do mesmo lugar que os meus desejos. Eu sei porque esse livro muitas vezes me parece um lamaçal. Porque é um lamaçal. Quando terminei Person to Person, disse: “Agora preciso sair e viver, o mais que puder”. Isso não é fácil. No final de Person to Person vi a árvore de Natal. Agora estou lutando para chegar a ela. Não posso me fazer chegar à experiência mística. Não há dúvida de que as drogas podem fazer isso. Não provei drogas. A experiência mística não é a minha meta. Já desisti disso. De verdade. Não estou reprimindo um desejo. O desejo não está presente. Não tenho uma meta — só às vezes uma meta bem imediata. Neste sentido, estou correndo com o rio, sem tentar apressá- lo. Sob outros aspectos, ainda estou aprendendo a me deixar acontecer, e isso é algo delicado. Essa delicadeza se mostra agora principalmente em relação àqueles saltos genitais que mencionei. Durante o dia, eles não costumam acontecer. Quando me deito, à noite, eles ocorrem com frequência. Quando não aparecem, noto que estou ensaiando, e isso quero abandonar. Geralmente esses ensaios não são fortes: desaparecem quando olho para dentro do meu corpo. Numa dessas últimas noites, não consegui parar de ensaiar. Continuei fazendo isso, ficando mais e mais cansada. Imagem espontânea: uma figura preta, alongada, com um formato parecido com os apagadores de lousa das escolas, mexia-se para a frente e para trás através da minha testa. Parecia um sonho, pois a minha testa não estava realmente ali. O apagador apagava os meus pensamentos. Eu me senti bem. Então os pensamentos voltaram. Neste instante, me parece que eu poderia tentar (experimentar) ser a observadora desses ensaios. Quando estava doente, uma das coisas que acontecia era o mundo todo — inteirinho — estar cheio de gente amiga, e eu me sentia bem e feliz com isso. Então flic! como o clique de uma máquina fotográfica, o mundo inteiro ficava habitado por gente que fazia mal aos outros, eu tinha medo, ficava revoltada, e já não podia viver nesse mundo. Todas essas palavras ocupam tempo e não servem para a experiência flic/clic/flic/clic/flic/clic/flic/clic/flic/ clic/, tão rápida, tantas vezes. Eu me sentia presa por nós, pulava fora e entrava na felicidade, então caía fora dela e voltava aos nós. Alegria/desespero/ alegria/desespero, e assim por diante. Emoções poderosas, ambas, e um choque toda vez que passava de uma para outra. Eu tinha de fazer algo. Transformei-me na observadora do que estava acontecendo, observei o que se passava, como se estivesse ocorrendo “lá fora”. ***

A máquina de escrever parou. As luzes se apagaram. Tomei um chuveiro e dali a pouco a água acabou. Então fiz o que pude, algo que não exigisse água ou eletricidade, interessei-me pelo que fiz, e perdi interesse em escrever. Agora estou de novo com vontade de escrever. Sinto também que estou decolando paia aigv llVJW ôvm ôauvi v/ V/ici UUIVÓ, tiviil Um jovem japonês que não queria ir para o lugar quente, e falava muito pouco, foi para o chão (de costas) e trabalhou uma porção de problemas a partir do seu corpo, deixando acontecer o que queria acontecer. Sempre me impressiono com os resultados dos experimentos do Gestalt Therapy *(* Gestalt Therapy — Livro de Frederíck Perls, publicado em 1951. (N. do T.) Não fiz todos. Fazê-los conforme estão no livro é como tirar um monte de peças da água e tentar grudá- las enquanto ainda estão molhadas. Tenho vontade de reescrevê-los. Acho que é algo como tentar escrever um livro de receitas provadas. Mas não estou tentando provar todas — só deixá- las legíveis. *** Não estou com vontade de continuar nisso. Quem eu penso que sou, ajudando a colocar os experimentos de Gestalt em inglês simples? “No momento em que você pensa que está ajudando, está desfazendo tudo”. (Swami Vivekananda). Porcaria de sessão matinal. Ontem à noite também foi porcaria, mas diferente. No final, eu não me lembrava de nada, mas estava com uma forte sensação de que tudo era loucura, maluquice. Aprendi muita coisa e não sei o que. Não importa. É parte da minha experiência, e é daí que eu aprendo. Esta manhã “ninguém queria fazer nada”, na linguagem dos grupos. Sugeri algo, Stella vetou, ninguém mais disse nada. Fritz entrou. David começou algo por sugestão do Fritz e não foi muito longe. Não acho que seja possível não acontecer nada. Sei que algo sempre acontece. “Nada aconteceu” significa que não aconteceu nada de espetacular, ou que não notei o que estava acontecendo. Algumas pessoas do grupo começaram um papo de coquetel. Eu disse que estava chateada. Quando falei, ouvi na minha voz que estava irritada. Isso é chateação — é o que a chateação é. Tentei inverter as coisas — qualquer coisa — e tudo ficou encalhado. Eu estava encalhada. Disse isso. Neville pegou um dos meus prismas para virar as coisas de cabeça para baixo para mim. Fiquei fascinada, como se estivesse olhando para outro mundo. Quando vi as pessoas através do prisma, elas eram interessantes, no puro sentido da palavra — sem qualquer tipo de opinião, julgamento, avaliação ou exigência. Simplesmente as apreciei. Percebi uma coisa que eu mesma podia fazer: eu estava sentada (“o que as pessoas fazem” em grupos). Levantei-me e caminhei, ida e volta. Este simples movimento me deu uma sensação boa. Comecei a perambular pela sala, fazendo coisas — esvaziei algumas xícaras de café na pia, juntei algumas cartas a serem respondidas. Fui até o banheiro, e na volta notei um colar de índios de Cowichan, e pensei: “Natalie iria gostar disso”, e o dei a ela. Joguei fora algumas coisas e dei mais algumas de presente. Eu tinha consciência do que os outros estavam fazendo de uma maneira periférica. Não estava interessada. Nem chateada. Interessada — não intencionalmente — pelo que eu fazia. Aconteceu dentro de mim uma porção de outras coisas que não me recordo agora. Era como abrir uma janela pequena e ver uma janela maior, abrir esta janela maior e ver uma maior ainda, e abrir esta janela. E de repente — LUZ. Não uma coisa depois da outra, mas tudo ao mesmo tempo. Nenhuma “seqüência de fatos”. Eu preciso colocá-los em ordem porque não há outra maneira, mas quando você os recebe assim, essa não é a minha experiência, então misture tudo de qualquer jeito — não importa como — e é isso aí: Não me senti mais “presa” pelo grupo, tendo de me comportar de uma maneira determinada. Fiz as coisas que tive vontade de fazer na minha cabana. Tudo na minha cabana estava à disposição dos outros. Eles podiam fazer o que quisessem. Pincéis, tintas, papel, canetas, uma cama para dormir ou só se deitar, e observar as folhas do lado de fora, alguns pratos na pia para serem lavados, livros para ler ou folhear — e também tinham a liberdade de sair. Eu não podia dizer a eles para estarem livres. Então não estariam: estariam “livres” com a minha permissão. Escola. Tenho-me ressentido da escola. De várias maneiras. Então o que se faz quando se está chateado com a escola? Elimino. Não fui ao seminário de supervisão e nem ao treinamento adiantado. A extensão do meu fim de semana que eu tanto queria! Leio as palavras, e elas não dizem nada. E tudo pensar, sem qualquer expressão do meu sentir. Então misture tudo com luz e ar e sol e brisa e sentir tudo isso e ver e rir e — Iúúúúúúú! Liberdade. Bem aqui/agora neste centro de treinamento chamado Instituto Gestalt do Canadá. Não tenho pego a minha liberdade, que é a única forma de poder dá-la a outra pessoa. Então culpo o lugar por me prender. Meu conceito do lugar — não a realidade. Meu conceito do lugar. Meu conceito do papel. Meu conceito dos “grupos” e do que “deveria” acontecer neles. O que eu “deveria” “fazer pelos outros”. O que eu “deveria” fazer acontecer. Ainda ontem eu disse ao Tom: “Como posso ser espontânea indo aos grupos de 8 às 11 da manhã, e das 8 às 10 da noite?” Eééé. Eu não tinha de ir... Eu devia ter enxergado isto. Pensei em outras pessoas; “Bem, vocês não tinham de vir.” Mas eu “tinha de ” estar aqui, e me comportar de determinada maneira. Pensei nos lugares onde era mais espontânea do que estou sendo aqui, kJ^AAlA W L4 M .4 V. sabendo que queria resolver isto aqui. Mas de que jeito? Ééééééééé. De certa forma, esta manhã, enquanto eu fazia o que queria, dentro das possibilidades desta cabana acessíveis também aos outros — e quanta coisa para se fazer aqui se alguém tem vontade —, não o suficiente para dias e dias, para todos nós — agora estou certa disso — mas sim para sete pessoas durante duas horas, disso estou certa. De alguma forma, enquanto eu fazia e dizia, e enquanto aconteciam coisas dentro do Deke, ele percebeu (expressou, como se fosse novo para ele) o que seria uma “escola” (no sentido de “educacão”) se se tratasse realmente de educação, e o que ele disse é a mesma coisa que o Fritz diz sobre o “colégio” que ele gostaria de ter. Agora, estou vendo quase tudo de outra maneira. E agora estou com sono. ***

Dormi e tive um sonho. Agora estou sabendo que este lugar é bom para mim e ruim para mim — o que sempre soube. Em julho, não passei por dilemas quanto a eliminar as aulas, ou conseguir eliminar as aulas. Simplesmente eliminei. Notei que estava aceitando alguns dos conceitos do Fritz que não estão de acordo comigo — eles estavam se tomando parte de mim, e não eram o meu ponto de vista... Toda essa história sobre quem a gente introjeta, e por que introjeta. Por que alguns psicólogos não notam o que eles estão fazendo, e descobrem? Uma linha do sonho: Fritz, com maldade e intenso desgosto: “Carl Rogers é um mentiroso". Talvez tenha sido “Odeio Carl Rogers porque ele é um mentiroso". No sonho, “eu” pensei “Não é de admirar que Carl não queira se reunir com o Fritz”. Tentei trabalhar com o lugar quente. Não adiantou. Vou tentar alguma outra coisa da Gestalt. Vou perguntar ao “meu Fritz”. Eu: Pensei que esses dois homens pudessem se juntar. Agora vejo que não podem. (Deixo de lado o meu Fritz, obtendo a resposta sem ele.) Eles não se juntam fora de mim. Nenhum dos dois quer. Dentro de mim — Não o “meu Fritz” — a “minha Barry”. O que farei com isso? Estou com dor de cabeça. Sei como posso dissolver essa dor de cabeça, e isso aprendi com o Fritz. Se eu a dissolver, não saberei o que o sonho está me dizendo. Minha Barry: Diga isso para o sonho. Eu: Sonho, você me atrapalha. Eu não me sinto assim mesquinha e cheia de ódio, não tenho ódio do Carl, e nem me sinto mesquinha em relação a ele. Sonho: Eu lhe disse isso? Eu: Não, o Fritz disse, como se fosse sempre assim em sonhos. “Tudo no sonho é um aspecto de você mesmo.” Sonho: (silêncio). Eu: Então, você me deixa sozinha, para eu descobrir a minha própria resposta. E você me deu a pista, não foi? No sonho também havia “submissa”. Eu era submissa a dois sujeitos, e não gostava muito de nenhum deles. Eram dois, mas na verdade um só. Ficavam juntos como se fossem um só. Diziam-me o que fazer, e eu fazia, para agradá-los. “Para agradá-los.” É. Não me des- agradava fazer: só que não me agradava especialmente, e não teria feito se eles não quisessem. Ainda fazendo — o que sempre fiz. Se eu realmente não gostasse de fazer algo — não gostasse com força — não faria. Seria: “eles querem que eu faça e o que me importa?” Não era por amor aos caras. Eu não gostava deles, exceto pelo fato de serem gente e eu gosto de gente. Hmmmm. Eu também fazia para “mostrar” que era “livre”: capaz de fazer. Como ontem à noite. Tudo é ontem à noite. Eu fiz o que não estava com vontade de fazer — embora não estivesse especialmente contra — para agradar os outros. Mas não queria. Fui submissa Submissa ao grupo. De uma parte, gostei. Lutei contra o que não gostei. Des-gostei na medida em que fazia algo para manter o que não gostava fora de mim, jogando de volta para o lugar de onde tinha vindo, não aceitando. Me senti bem com isso, e ao mesmo tempo não me senti bem porque... Não vi o porquê. Agora vejo. Não teria chegado a isso se em primeiro lugar não tivesse sido submissa aos outros. Hmmmm. Coloco-me no “lugar quente” — ontem à noite o Fritz disse que tinha notado que ainda não estamos prontos para a língua inglesa. A língua inglesa ainda não está pronta para mim. Obviamente, eu me coloco no “lugar quente”, mas isso não abrange tudo que está envolvido nesta ação. Eu o fiz com a vontade errada. A vontade certa é mim. A vontade certa — a única a que eu devo me submeter — não me tirou do lugar onde eu estava sentada. C ) ***

Fui a Lake Cowichan com o Deke. Falamos sobre as coisas a que chegamos aqui e como continuamos chegando à mesma coisa — perdendo-a, reencontrando-a. Depois de voltarmos, sentada na cozinha e achando difícil prender-me àquilo que sei, percebi que continuamos a perder porque a sociedade em que vivemos é contra. A linguagem está contra nós. A etiqueta está contra nós. O hábito está contra nós. As convenções estão contra nós. Precisamos de outro tipo de comunidade, na qual nos tornemos mais fortes — com mais disposição para a mudança — com maior compreensão da mudança básica (ou “mudança radical”, na linguagem de Krishnamurti) a ser feita, e com vontade de fazê-la. Não um deveria. Eu quero. Quando Deke disse que ia até Lake Cowichan, eu sabia que queria ir. Então pensei: “Talvez ele queira ir sozinho”. Apaguei isso e perguntei: “Você se importa de ter companhia?”. Ainda a abordagem tímida, cheia de rodeios. Em estilo indígena, eu poderia ter dito: “Eu quero ir a Lake Cowichan” e deixar o Deke lidar com a coisa a partir daí, e aceitar o que ele dissesse sobre si mesmo. A caminho de Lake Cowichan contei-lhe isso, e praticamos um pouco a outra maneira. Foi bom, com um véu tirado da frente dos meus olhos. É isso que eu quero — um lugar para praticar, e gente com quem praticar. Estávamos fazendo mais disso em junho e julho. Em agosto, quando chegou tanta gente nova, isso foi deixado para trás. No começo de setembro, pensei: “A Gestalt ficou tão estragada”. No grupo desta manhã, algumas pessoas estavam brincando com “Que tipo de liberação você conseguiu?”. “Eu tive uma liberação freudiana”, “eu tive uma liberação reichiana”, e assim por diante. Eu disse: “Tive uma liberação tipo Barry”. Natalie quis saber o que era, e eu não fui capaz de dizer. Consegui apenas dizer algumas coisas que são parte dela. A partir dessa expressão, alguns minutos depois descobri o que era uma “liberação tipo Barry”, e retive a resposta porque “não seria compreendida”. Contei ao grupo o que estava se passando dentro de mim, apaguei minha censura e disse: “Usei a Gestalt (trabalhando com o meu sonho), quebrei as regras da Gestalt, e isso é Gestalt”. Ninguém demonstrou qualquer sinal de compreensão e não me chateei. Esse é o meu diploma. Ainda não abandonei o campus, mas estou a caminho — uma semana na Ilha Homby, ficando lá e olhando o lugar para onde o Fritz pensa em se mudar e expandir. Parece uma possibilidade para o que Fritz tem em mente — um sistema “satélite” com um centro no centro, e em volta, como pétalas, “movimento”, “terapia”, “arte”, e assim por diante. Não é o que eu quero. Eu quero um lugar — o meu é muito mais difícil de explicar. O dele é fácil de entender. Isso faz o meu parecer confuso, mas não é. Sem formação, sim. Que todas essas atividades surjam de nós, à sua própria maneira, seja o que for, com a Gestalt contribuindo para a libertação. Todas essas coisas cresceram a partir de nós — foi assim que começaram. Eu quero um novo começo. ***

Califórnia, 1970. A vida não se movimenta conforme dizemos ou escrevemos — nem conforme pensámos que deveria se movimentar — nem conforme tentamos fazer que se movimente. Ela é mais ou menos assim: Fritz estava preocupado com o fato de a maioria dos treinandos não terem assimilado a Gestalt. Eles usavam as técnicas, sem compreender. Podem acontecer coisas boas ao se fazer isso, mas não se trata de Gestalt. Pode virar anti-Gestalt. Certa noite de novembro, na minha cabana Fritz me disse: “Eles estão brincando de Gestalt”. Ele estava tomando chocolate quente, com creme doce batido. “Tenho de descobrir um jeito de ensinar”, disse ele, querendo dizer, um jeito no qual essas coisas não acontecessem. Eu também estava incomodada com aquilo que chamava de “Gestalt estragada”, que parecia se afastar mais e mais da Gestalt. Eu sabia que na minha comunidade gestalt isso não aconteceria. As pessoas que para lá fossem iriam se comprometer a realmente se ligar a ela — para si mesmas. Em Vancouver, algumas semanas antes de mudar para Cowichan, Fritz me levou à casa de Stan Fox para ver trechos de alguns filmes sobre Fritz e Gestalt — filmes educacionais. Depois, conversamos sobre um kibutz, que era o que ele queria. Ele comprou Cowichan porque adorava o lugar perto do lago, o pagamento à vista era de apenas $ 12.000 e ele podia fazer algo lá até ter o que queria. Havia semelhanças entre o que nós dois queríamos, e também diferenças. “Você é psicoterapeuta e quer um centro de treinamento”, disse-lhe eu. “Eu não sou terapeuta, não quero ser terapeuta, e quero uma comunidade gestalt.” Eu disse que se encontrasse uma propriedade bastante grande, ele poderia ter o seu centro de treinamento nela. Eu visualizava o centro bem longe da comunidade, com muito espaço entre os dois. Em Cowichan percebi que um centro de treinamento na mesma propriedade acabaria com a comunidade. Os dois eram incompatíveis. Não compreendí isto: simplesmente soube — da mesma maneira que soube que algumas coisas em Cowichan estavam me fazendo evoluir, e outras me atrapalhando. Agora, entendo isso, também. No último inverno, às vezes me vinha à cabeça o problema que o Fritz tinha em relação ao treinamento de Gestalt. Escrevi para ele, em Berlim: “Você quer descobrir um jeito de ensinar. Como é que nós aprendemos?”. Essa parecia ser uma boa pergunta — uma pergunta que levaria a “como ensinar”. Ontem, uma mulher do Oregon, com 76 anos de idade, me procurou. Ela havia ouvido falar de mim — e Gestalt — por intermédio de uma amiga da Austrália, que eu tinha conhecido em março. Ela leu o Verbatim (Gestalt-terapia explicada) e queria que eu trabalhasse com ela num sonho que a incomodava. Ela já fora paciente de um psicanalista, e teve muita dificuldade em ficar com o sonho. Começou a reviver o sonho e quase imediatamente caiu em “associações livres” e históricos de caso — explicações, interpretações. O jovem e a floresta do sonho fizeram-na recordar uma experiência em Bali, e ela começou a me contar a respeito disso. Teve muita dificuldade em interromper isso e voltar ao sonho. O jovem era um pouco parecido com Jesus, e ela começou a me contar o que achava de Jesus, qual era sua experiência religiosa passada, e assim por diante. A mulher que caminhava na sua direção, no sonho, a fez recordar uma grafologista que não conhecera, de quem estivera lendo algo. Ela me trouxera a análise para ler. Ela compreendeu seu hábito, sabendo que queria romper com ele, e tendo a maior dificuldade em conseguir. Passamos mais tempo voltando ao sonho do que com o sonho propriamente dito. Ela tirou algo das duas coisas, e saiu com confiança de agora poder trabalhar sozinha com seus sonhos. Ela o fará. Ela não estava pronta para aceitar a mensagem recebida do sonho, que era: Pare de lutar! Quantas horas poderiamos ter passado na floresta de Bali, com seu passado e crenças religiosas, e com a grafologista, sem conseguir chegar a esta mensagem simples e direta vinda do sonho — esta mensagem dela para si mesma? E a partir desse tempo que passei com ela, de alguma maneira que não entendo, subitamente percebi que se qualquer uma das pessoas que vivessem na minha comunidade gestalt —realmente vivessem lá—quisesse se tomar terapeuta, seria um gestalt-terapeuta de primeira, usando instrumentos que entende. Eu não quero treinar terapeutas, e não estaria treinando terapeutas, e a partir daí sairíam terapeutas realmente bons — e destes, há muito poucos por aí. “Como ensinar” é não ensinar. Como a vida é simples. Viver tomando consciência, não seguindo regras ou condicionamentos ou pensamentos ou deverías e não deverías. Como é difícil ver todas as regras e condicionamentos e pensamentos e deverías e não deverías que se interpõem entre Eu e Tu, e entre eu e mim. Claro que não se trata de toda a humanidade, pois as coisas variam de lugar para lugar, de tempo para tempo, de cultura para cultura, de subcultura para subcultura. E quando tentamos romper com isso, estamos sujeitos a cair em outra cilada. Reagir à convenção ainda é estar ligado à convenção. Passando de uma opinião para outra, ainda estou no emaranhado. Consciência de ter uma opinião é consciência. Se eu tenho uma opinião a respeito disso, estou de novo presa, sem consciência. ’A música está alia e está me cansando” não é opinião. É observação. E estranho que viver com os fatos seja algo vivido — sempre mutável — e viver com ilusões se tome algo monótono, repetitivo e tolo. Vivemos com ilusões na esperança ou expectativa de que em algum ponto do futuro algo nos tire do nosso tédio. Consciência. Acontecer. Felicidade. Meu novo começo já começou. Ainda quero um sítio ou fazenda onde, com outras pessoas, possa fortalecer o meu começo, e onde aquilo que ocorre fora de todos nós seja desconhecido. Pergunta: Como posso ter certeza de que estou vendo o que fazer? Krishnamurti: Você não pode ver o que fazer, pode apenas ver o que não fazer. A negação total desse caminho é o novo início, o outro caminho. Este outro caminho não está no mapa, e não pode ser colocado em mapa nenhum. Todo mapa é um mapa de caminho errado, caminho antigo. *** Se o episódio humano agora tão auto-ameaçador Continuar negando a expor-se diante da natureza pura Morrerá de podridão. E a natureza pura não se incomodará. — Galeria Puma São Francisco

UM PAPO COM BARRY (Entrevista com Barry Stevens, realizada por Paulo Barros em junho de 1977) P: Barry, conte-me algo sobre o título do seu livro, Don ’t Push the River (Não Apresse o Rio)’, eu estou procurando uma boa expressão brasileira para a tradução. O que isso significa para você? B: É uma citação Zen, “Não Apresse o Rio, ele corre sozinho”. Para mim, significa deixar-se ir junto com a vida, sem tentar fazê-la ir para algum lugar, sem tentar fazer com que algo aconteça, mas simplesmente ir, como o rio; e, sabe, o rio, quando chega nas pedras, simplesmente se desvia, dá a volta; quando chega a um lugar plano, ele se espalha e fica tranqüilo, simplesmente vai se movendo junto com a situação em tomo, qualquer que seja ela. Ficou claro para você o que isso significa para mim? (P: Sim.) E eu acho interessante que há muitas viagens por rio aqui nas redondezas — não sei se você sabe — há o Rio Colorado e o Rio Verde, e o Dolores, e há muita gente que ganha a vida e passa a maior parte dela no rio, e para essa gente o título tem muito significado, porque precisam acompanhar o rio, ou então se metem em apuros. Se o rio os leva desta maneira em águas agitadas, não adianta tentar escapar daquela maneira — eles precisam ir junto, e por isso o título significa tanto. P: No seu livro, você conta muita coisa boa sobre o povo do Havaí e a sua forma de vida, e também sobre a comunidade de Cowichan. O que você faria para começar uma comunidade gestalt? Ou, o que você diría para pessoas que gostariam de começar uma comunidade gestalt? B: Veja, esta é uma coisa que eu gostaria de ter, uma comunidade gestalt, mas não tenho. Se realmente as pessoas têm algum propósito de se clarificar, de abandonar parte do seu ego pessoal (coisas que neste país são extremamente fortes, não sei como são em outros lugares); coloca-se tanta ênfase sobre aquilo que eu quero, eu preciso conseguir isto, eu preciso ter isto, para mim é importante ter este tipo de trabalho, eu preciso fazer aquilo e você não deve me atrapalhar; e, a menos que as pessoas estejam dispostas a ceder, não vejo qualquer possibilidade de existir uma comunidade. (P: Você não vê... ?) Digo, a menos que as pessoas estejam dispostas. Se elas tiverem algum interesse real e disposição para entender e abandonar parte de seus laços com o ego, e real mente trabalhar para se clarificar, então vejo possibilidade. P: Tenho pensado nisso — em formar algum tipo de comunidade, e me pergunto se seria necessário ter alguém com experiência neste tipo de vida, por exemplo, com um pouco mais de experiência, que já tenha vivido desta maneira, ou um grupo de caras mais jovens que pudessem fazer isso. B. Para mim, gente jovem pode fazê-lo, se tiver se firmado no propósito e possuir dentro de si o que for necessário. O que tem acontecido — tivemos muitas comunidades neste país — eram chamadas de comunas — e baseavam-se em idéias, e a maioria delas fracassou porque tinha um ideal e tentaram viver o ideal, e não deu certo. Os ideais nunca dão certo porque deixam tanta coisa de fora — a realidade é diferente. Existem algumas que sobreviveram — há uma no Sul que sobreviveu. Nesse caso, o homem encarregado dela é jovem, mas ele tem muita coisa firme dentro de si. Eu diria que seria mais fácil para os chilenos do que para os americanos, e não sei como seria para os brasileiros. P: Temos algumas coisas em comum com os chilenos, que de certa forma são diferentes de vocês aqui. B: Veja, enquanto eu estiver olhando para os meus próprios interesses e outra pessoa estiver olhando para os seus próprios interesses, e estes nunca se encontrarem, então haverá conflito; porém, se eu enxergar a cena maior... bem, por exemplo, quando recentemente voltei da Califórnia — eu estava vivendo na casa da Varanda, e ia sair de lá para que outras pessoas pudessem ocupá-la. Eu ia ficar aqui (na casa de Susan) parte do tempo, e Susan tinha-me dito que dormiría fora e que eu poderia usar o dormitório dela e ter toda a liberdade na casa, pegar coisas para comer e ir de um lugar a outro, e eu preciso disso. Mas quando voltei, o que sucedeu foi que todas as crianças ficavam lá a maior parte do tempo e aquele é um lugar natural para as crianças, porque a casa tem crianças dentro dela. Bem, se eu insistisse naquele quarto, como me tinha sido prometido, havería conflito. Do jeito que as coisas são, quando vejo que a ordem natural é as crianças ficarem lá, então eu me reorganizo e vejo como posso conseguir o mesmo tipo de coisa para mim mesma, de modo que não fique fisicamente abatida, como no ano passado, e arranjo algum outro jeito para mim. Mas se eu insisto no que foi combinado, a coisa fica toda bloqueada. Alguém tem de ser capaz de enxergar qual é a organização natural, e deixá- la acontecer, e ajeitar sua própria situação em termos de suas necessidades. Mas se eu brigo com alguém para conseguir o que necessito, tudo cai por terra. Uma das coisas que aconteceram nas comunas foi que as pessoas tinham o ideal de deixar vir todo mundo que quisesse, e havia um enorme número de pessoas que vinham e não trabalhavam, só comiam, e isso, é claro, não deu certo, e foi um dos grandes problemas. Outro grande problema nas comunas foi o sexo. As pessoas que vinham ainda estavam sob seu próprio condicionamento em termos de sexo, e assim, apareciam todos os ciúmes e essas coisas podres. Para mim, é importante começar com pouca gente, pessoas que estejam realmente juntas e trabalhando neste sentido, e não deixar entrar muitas pessoas de uma só vez. Em Cowichan havia gente nova todo mês, e algumas pessoas mais antigas ficavam e toda vez que entrava gente nova, era claro que traziam consigo tudo que estavam fazendo e como se comportavam no mundo exterior; quando entra muita gente, a situação no lugar muda. Eu vi isto acontecer algumas vezes no Havaí, onde havia uma vida extraordinariamente pacífica — era muito lindo e existia muita felicidade. Naquela época era difícil chegar até as ilhas — não havia aviões, era preciso passar muito tempo num navio, e não havia muita gente chegando; e aqueles que chegavam, ou gostavam do modo de vida e se modificavam segundo ele, ou não agüentavam e iam embora. Assim, nas ilhas havia uma sensação de homogeneidade, era lindo, quase todo mundo apreciando as mesmas coisas e vivendo muito bem em conjunto. Mas então, no ano anterior a Pearl Harbour, o exército trouxe 52 mil funcionários da defesa, e eles chegaram do continente com seu ímpeto usual e assim por diante, e aí ocorreu a transformação das ilhas. Eu vi havaianos e orientais empurrando-se para entrar nos ônibus, pois esta era a única maneira de poder continuar. Antes, todo mundo simplesmente esperava sua vez. E isso começou a transformar o povo nas ilhas, percebe, quando vem muita gente assim — foi insuportável. P: Você diz que a comunidade... você não diria que ela tem que ser fechada — mas de certa forma tomar cuidado para não deixar gente demais... B‘. É isso mesmo. E se há um núcleo, percebe, como havia no Havaí, então este núcleo trabalha junto, e se você não deixa muita gente entrar de uma só vez, então me parece que a auto- seleção é que tem lugar. E não é o caso de excluir pessoas, mas elas podem vir e aquelas que se identificam, irão gostar, e as outras desejarão mudar. Porém, se o núcleo é forte o bastante em relação ao número de pessoas que entram, os outros não podem mudar o núcleo, e então, ou mudam com ele, ou caem fora. P: Você diria que um dos pontos pode ser algo diferente — que não é importante ter alguém com experiência neste tipo de comunidade, um líder, mas que o importante é construir um modo de vida, um núcleo suficientemente forte para criar e deixar as coisas acontecerem de maneira nova. B: Sim, e não ter um plano antes de começar. Juntar-se e viver com aquilo que é, pegar as coisas de fora e colocar tudo dentro, e ver o que dá mais certo na situação. Porque se eu tenho plano inicial, venho para a situação e tento impor o plano, e então muita coisa não combina com o plano, e então eu forço mais para fazer o plano funcionar, e você mencionou os índios e a ecologia, e isso porque eles viviam na consciência de seu meio ambiente — é por isso que podiam entender, percebe. Ninguém pode saber tudo a respeito do lugar onde vive. Apenas se pode aprender vivendo nele e então, se eu me movo com as coisas e observo o que acontece, a coisa dá certo: mas aqui tanta gente tem sua idéia própria, até mesmo de uma comunidade, tanto que quando estávamos aqui no primeiro verão, a casa da Varanda era chamada de “casa da comunidade”, porque todo mundo podia ir para lá, e muita gente veio com sua idéia própria de comunidade, sua própria fantasia, tentando nos impor, e certo dia eu me reuni com elas e disse: “Eu não vou mais usar a palavra ‘comunidade’ ”, e mudei o nome para casa da Varanda, porque ela tem uma varanda, percebe. Então, se as pessoas chegam com suas fantasias do que irão fazer e como as coisas vão funcionar, então existe conflito o tempo todo. Mas se você entra dentro para ver o que se consegue, com esta abordagem certamente é possível. Foi realmente engraçado, porque quando eu lhes disse que não iria mais usar a palavra “comunidade”, muita gente fez careta: “Bem, e o que é que você vai usar?”, eu respondí: “Nada”. P‘. Você de certa forma acabou com as fantasias deles. B: Certo. E da mesma forma, nos anúncios que temos enviado deste lugar, temos dado uma descrição — algumas coisas que possam ser diretamente entendidas, mas Steve botou “lindo” quando eu só escrevi “vale deserto e isolado”; eu disse: “Não, cada pessoa tem sua própria idéia do que é um vale lindo, e elas virão para cá e ficarão desapontadas porque não correspondemos às suas expectativas”; ele entendeu e concordou, e tirou a palavra “lindo”. E às vezes eu peço às pessoas que venham para cá sem expectativas, e se elas não conseguem, peço que olhem para as expectativas e vejam quão pouca informação existe nelas — o resto é tudo fantasia. Duas moças de Washington pensavam que tinham vindo para cá totalmente sem expectativas, e chegaram a Salt Lake City, e ficaram desapontadas porque esperavam acampar à beira do lago com árvores e relva verde, e não existe nada disso em torno do Grande Lago Salgado. Então, eu acho que é necessário, e as pessoas variam muito na compreensão disto, mas eu acho muito necessário abandonar as expectativas e simplesmente vir para cá — não estivemos aqui antes, não sabemos nada sobre este lugar, há muita coisa que não sabemos, e temos de descobrir enquanto avançamos. Isso eu acho que pode funcionar, mas é tão freqüente as pessoas terem suas próprias idéias e, então, natural mente, esperam que as coisas sucedam de uma maneira determinada, e acabam ficando muito aborrecidas quando isso não acontece. Mesmo que a expectativa não tivesse qualquer validade. E isso que acontece — é uma das dificuldades. De certa forma, é como os pioneiros — os pioneiros americanos —, eles não sabiam nada a respeito da terra em que estavam entrando, e entraram e descobriram. Mas se soubessem, teriam passado muito mal. P‘. Eu estava pensando em duas coisas — essas coisas que você disse sobre não ter expectativas e ter consciência... isso parece simplesmente estar disposto a descobrir algo novo que pode ocorrer uma vez que se está junto... (B: Sim.) porque o que eu estava pensando é, de certa forma, que muita gente gruda suas energias a expectativas — sempre procurando um ideal ou uma vida nova com expectativas, e eu estava me perguntando se não se pode ter esta mesma energia para tirar as pessoas de seus trilhos e tentar algo novo sem expectativas, sem algumas fantasias. B: Sim. Explorar outro caminho. Esta é a diferença. Quando exploro, não sei o que existe, e olho em volta para ver e descobrir, e se entro em alguma coisa com esta abordagem, isso é muito diferente do que quando sei o que vou encontrar, ou penso que sei e acabo não encontrando, me aborreço e todo mundo está fazendo tudo errado. E eu gosto de abordar tudo desta maneira. Quando fui ao Chile (cerca de cinco anos atrás), não quis aprender nada sobre o Chile, não quis que me contassem, mas quis ir para lá e ver com os meus próprios olhos e com meu próprio ser, sem expectativas. Não importa quais eram as minhas expectativas, elas não teriam sido reais. P: Eu lhe pergunto isto agora, porque estou seguro de estar começando a ver e aprender coisas aqui, estando aqui com vocês, mas outro dia e hoje de manhã a fantasia era que eu teria de passar mais tempo — não sei quanto — apenas para absorver realmente algumas coisas, e deixar que elas se tomem mais profundas e mais naturais, sabe, antes de ir para um lugar onde eu possa ter um núcleo para começar algo sem estar atado a vocês. E daí eu perguntar: Como é que uma comunidade gestalt seria diferente destas outras amarras que eu não quero? B: O difícil desta resposta é que com a Gestalt eu não sei o que irei estar fazendo — na minha própria vida e na comunidade — não sei o que a comunidade estará fazendo, e então é difícil dizer, percebe. Se você tem um plano, você pode dizer que acontecerá isto e aquilo. (P: Certo.) Mas estando aberta a tudo que me cerca, gente, lugar e tudo mais, e movendo-me junto, não sei onde irei parar, e não posso dizer nada sobre isso. P: Barry, estou ouvindo — e isso me fez recordar, sabe — estou escutando o que você tem em comum com a abordagem rogeriana... B: Oh, sim! Os rogerianos — e Fritz, me parece — partem do mesmo ponto, e uma vez eu pensei: “Oh, não seria maravilhoso reunir Fritz e Carl simplesmente para encontrar seus pontos de concordância”, porque esta é a verdadeira base da coisa, percebe, mas Carl declinou o convite, e eu nem perguntei ao Fritz porque eram precisos os dois. (P: O que aconteceu?) Carl declinou — ele não quis. Naquela época (não creio que seja verdade atualmente) acho que ele pensava que eu queria forçá-lo para a Gestalt, mas eu não queria. E simplesmente que os dois partem do princípio de que temos tudo dentro de nós, e podemos resolver nossos próprios problemas. E Carl enfatiza a aceitação, mas também sabia frustrar (você viu o filme Glória — Os três Terapeutas?) (P: Sim.) Quando vejo o filme, quase não consigo ficar sentada com a frustração de Glória, por Carl não lhe dizer o que fazer. E, estando com Carl, conheci essa frustração e conheço a frustração da esposa dele com isso — quando ele não diz a ela. Então havia muito de frustração, nessa ênfase sobre aceitação. Fritz enfatiza a frustração, e junto vinha um bocado de aceitação. P: Outro dia você estava me dizendo que o que o Fritz lhe acrescentou foi que você pôde ver mais claramente o que estava fazendo. B: Sim. Na época em que terminei o livro Person to Person (De pessoa para pessoa) pensei, ótimo — eu já sei, e como é que vivo isso? E com a percepção que tive através da maneira de Fritz abordar a coisa, no início trabalhei com ele, mas depois aprendi e fui capaz de fazer sozinha, de modo que pude ver mais, todo o tempo. E me clarificar mais todo o tempo. E ainda faço isso. E descubro coisas ridículas — que durante anos trabalhei para não ser a mãe de Steve — para deixá-lo livre — e não tenho nenhuma sensação de que ele é meu filho. Às vezes eu digo, ele é meu filho, mas é como mencionar que eu escrevo livros ou algo assim, não quer dizer nada, sabe. Mas o que fiz com isso — ele não é meu filho, é uma pessoa separada e eu estou com ele como com outra pessoa, mas tive dificuldades o tempo inteiro — oh, durante tanto tempo — cerca de quinze anos, por não me sentir especialmente atraída pelas mulheres que ele ama. As mulheres de quem ele gosta, com elas me sinto bem — estamos de acordo etc., mas as mulheres que ele ama, não tenho sido receptiva a elas, e descobri em algum ponto do caminho que eu estava me punindo por causa disso, por não ser receptiva às mulheres que ele ama (agora estou pensando em quatro delas). Só recentemente, pouco antes de ir à Califórnia, trabalhei com a fantasia da roseira e as minhas folhas tinham espinhos, espinhos pequenos, e as folhas estavam viradas de modo que os espinhos as estavam espetando; e quando trabalhei com isso, descobri que eu ainda estava me espetando por causa disso, e de onde é que isso vinha? Vinha do tempo em que ele ainda nem tinha se casado, quando eu fiz a mim mesma a promessa de gostar da mulher que ele escolhesse, qualquer que fosse, de modo que ainda estava levando comigo a sogra, mesmo tendo abandonado a mãe. E isto é tão absurdo. Então agora me sinto muito mais à vontade por ter descoberto. Era a promessa que fiz a mim mesma. Eu acho que é muito importante olhar para as promessas que fazemos a nós mesmos, porque elas são feitas com informações insuficientes, como qualquer coisa que diga respeito ao futuro. Eu nunca tenho inspiração bastante para o futuro eu — posso ter agora o suficiente. Mas o absurdo de me apegar à imagem de sogra e a minha promessa a mim mesma, quando já tinha deixado de ser a mãe do meu filho. Estar disposta a olhar para as raízes de algo que esteja me causando dificuldades. Para mim, todos os meus problemas, todos, estão dentro de mim, não estão lá fora com ninguém. Estão todos comigo, quando estou disposta a olhar para dentro de mim e descobrir a raiz da minha dificuldade, e numa comunidade, obviamente, isso é importante. P: Volto ao que você disse ter recebido da Gestalt, que é neste seu exemplo, “uma forma de resolver suas dificuldades sozinha’’, como na fantasia da roseira — você percebeu algo sobre sua relação com Steve e as mulheres que ele ama. Desenvolveu uma maneira de trabalhar consigo mesma. B: E há outras maneiras — a Gestalt oferece muitas maneiras, eu seleciono aquela que me parece certa no momento. As vezes mantenho um diálogo e, com a segunda mulher de Steve, eu constantemente entrava numa de estar sendo sugada por ela e sentir pena dela etc.; havia algo de errado nisso e eu não conseguia ver o que era — havia coisas que ela dizia, como que se explicando, “Bem, entende, eu nunca ouvi minha mãe dizer uma palavra áspera’’, e eu começava a pensar nisso, sabe, “Ah, sim, é difícil ouvir palavras ásperas se você nunca ouviu sua mãe dizer nenhuma”. E depois, eu pensava: “Eu nunca ouvia minha mãe dizer uma palavra áspera”. E aí está uma explicação que não gruda, entende. E havia mil coisas como essa acontecendo, até que um dia eu a coloquei na cadeira vazia e comecei a conversar com ela e, em pouco tempo, era a minha mãe que ali estava, e eu podia ouvi-la com tanta clareza (ela está morta há mais ou menos trinta anos), mas aii estava eia, tal como eu a tinha visto. A minha mãe sempre me enfraquecia dizendo que não agüentava essas coisas — que não era suficientemente — forte ela fazia isso com o meu pai quando eu o enfrentava, e lhe dizia: “Oh, eu não agüento isso, eu não agüento isso, vou desmaiar”, sabe, coisas assim, e eu fui sendo minada, e estava entrando numa coisa parecida. Então, quando a minha mãe apareceu e eu conversei com ela e tudo ficou esclarecido, que eu não sou mais criança, e ficou claro que aqui não há relação, e então não fui mais sugada por Danelle, e eu acho, é claro, que ela não gostou disso, mas aí o problema é dela — do meu eu cuidei, e não estava fazendo nada contra ela. Eu nunca fiz nada contra nenhuma das mulheres dele — nunca fiz nada contra elas, mas por causa da minha própria confusão, entende, eu estava sempre ordenando a mim mesma que deveria gostar delas. O gostar é ou não é — não se pode obrigar a si mesmo a gostar de alguém. Se eu me obrigo a gostar de alguém, isso é falso, porque ou é ou não é. Neste momento, é ou não é. Aí está outra coisa com relação às comunidades — tudo que sei é que elas se baseavam em que todo mundo devia amar todo mundo, e a vida não é assim, amar o tempo todo. Certa vez eu estava numa escola comunitária com um homem negro, e a escola era dirigida pelos pais dos alunos, e eles estavam tentando fazer com que todo mundo amasse todo mundo. Passei um dia com eles, e na manhã seguinte eles me disseram que o homem (o negro) não tinha entendido, e depois ele entrou e num intervalo eu conversei com ele. Ele me disse: “Eu não entendo essa gente — eles querem que todo mundo ame todo mundo o tempo todo, e as coisas não são assim”. Ele disse: “Você sabe como é — um dia um sujeito vem e lhe dá um grande abraço, e no dia seguinte ele passa reto. E é assim que as coisas são”. Mas, conversando comigo, ele pôde ver tudo mais claro dentro de si, e disse isso aos pais. Eles não entenderam nada. Tentar forçar algo, entende, forçar sempre é errado. E isso é forçar e pressionar — fazer com que todo mundo ame todo mundo, e que eu tenha de amar todo mundo o tempo todo. Ao passo que, quando vivo à vontade com... desta vez, estamos tendo momentos ótimos juntos, e da outra não estaremos. E quando há circulação e fluxo ... A família — a família americana é supostamente sagrada neste país. E este mito é gigantesco. E terrível — o que se passa nas famílias! P: As famílias brasileiras são ainda mais sagradas (ambos riem). Há muito mais pressões neste sentido. Eu estava tentando voltar a algo sobre Rogers e Perls. Certa vez, lendo um livro sobre Gestalt e refletindo sobre algo que se passou comigo, o que eu entendi foi que a Gestalt às vezes é mais centrada na pessoa, isto é, se ela está se falseando, se não está centrada no que está realmente acontecendo, dentro de si, em seu organismo, pede-se que ela exagere esta farsa ou entre em contato com algo mais organísmico. Desta maneira, tenta-se respeitar o que está se passando, o que a própria pessoa não faz, ao ser falsa. Como você colocaria isso, Barry ... uma ponte? B: Primeiro deixe-me dizer que não tenho estado com Carl Rogers há algum tempo, e ouvi dizer que ele está muito mais Gestalt do que costumava ser. Não tenho estado com ele, e não posso dizer por mim. Mas é sempre preciso lembrar que pessoas que dão início a coisas deste tipo, elas próprias estão se movendo e modificando, e realmente não posso dizer nada sobre o que Carl Rogers pensa atualmente em termos de terapia centrada no cliente. Eu não sei. E não sei onde o Fritz estaria se ainda estivesse vivo, porque ele também estaria se modificando. (P: Certo.) Mas me parece que Carl proporciona o clima, e conversando sobre o passado, ele proporciona um clima no qual a pessoa tem mais probabilidade de chegar ao real e descobrir como se falseia. E, com o Fritz, ele mostra neste instante — a ter consciência neste instante. E vai mais rápido — esta é uma das coisas boas da Gestalt para mim — ela parece ser decididamente mais rápida, simplesmente fazendo com que as pessoas presentifiquem este instante. Se alguém tem um momento de tristeza e começa a rir — sabe — mostrar o que ela fez e fazê-la entrar em contato com isso nesse instante — ela está sabendo que foi isso que ela fez. E isso vai muito mais rápido do que se, durante um período de tempo, a pessoa percebe “sim, é isso que eu faço”. P: Isso é algo que eu tenho estado meio... eu sei que Rogers também está, entre outras coisas, trabalhando muito mais na congruência do terapeuta do que na aceitação ou empatia total, e todas essas coisas. (B: Sim.) Mas o que eu vi foi — Rogers saiu de Freud; Freud foi para o passado, formulou toda a teoria; e então Carl disse: “Eu não vou colocar esta pessoa nesta teoria”. Então, não vou procurar a criança e o que está enterrado etc., e então passou a escutar — e as pessoas conversavam com ele, não sobre o passado, mas sobre a situação presente, e os dois ou três próximos anos. E então ele lida com a pessoa neste período. Ele começou a escutar coisas atuais porque não estava procurando outras coisas. (B: Sim.) E Fritz fica ressaltando o que é real, o que é presente agora. O que está acontecendo agora, e é aí que ele é radical. E se há algo do passado, vá para lá ou o que é a mesma coisa, traga para cá, agora! B: Sim, E Perls e Rogers têm... a psicanálise volta a tudo que aconteceu, vezes e vezes seguidas, e tudo, e se envolve nisso mais e mais. Ao passo que com Carl e Fritz nós passamos por muitas coisas traumáticas e as elaboramos dentro de nós, e outras, não. E entre essas que não elaboramos, algumas estão ativamente provocando dificuldades agora, e essas são as únicas que precisam ser lidadas. Eles também têm essa base. Reviver experiências passadas, o que acontece com muita freqüência na Gestalt, e tenho certeza que também acontece na terapia centrada no cliente — reviver algo do passado é sempre muito esclarecedor, porque a memória de algo que está distorcido é muito diferente do que real mente sucedeu, então quando eu revivo algo (eu sei que isso acontece treqüentemente em Gestaít)... Outra coisa que gosto na Gestalt é que Fritz pegou coisas (ele mesmo disse isso), ele pegou ofeedback de Carl, só que de maneira distinta, e pegou de Moreno, o psicodrama, sem ninguém mais tomar parte da coisa (contracenar) de modo que lá está toda a pessoa, e não sofre interferência de outros. E a couraça muscular de Reich, e há ainda outro que não estou me lembrando. Mas, em todo caso, ele pegou essas coisas e as modificou um pouco, e juntou tudo. Então a Gestalt tem muito mais facetas do que vi na terapia rogeriana. E eu também gosto disso. P; Caminhando nesta direção — antes de Rogers, no Brasil, havia quase que só psicanálises, ele representou um grande avanço — uma abertura para muitas coisas. (5: Sim.) E no Brasil as pessoas estão muito interessadas em Rogers, que é uma coisa, bem mais antiga, e ali a Gestalt está apenas no começo. Há muita gente interessada nela, lendo livros como Gestalt- terapia explicada e Tornar-se presente, e o livro da Fagan, e algumas vieram para cá para workshops em Gestalt e realmente experimentarem, e de certo modo tentam, Barry,... bem, de fato, temos um pequeno grupo que se reúne uma vez por semana, e chamamos alguns gestalt- terapeutas daqui para nos darem workshops intensivos, e estamos pensando, talvez, na fundação de um Instituto Gestalt. O que você podería dizer de útil para essas pessoas que estão tentando entrar na Gestalt lá, sem muitas oportunidades de ter experiências? B. Eu gostei muito da abordagem das poucas pessoas (não eram muitas) na Austrália que estavam interessadas em Gestalt. A maneira deles era muito interessante. Eu levei filmes para lá e conversei com eles, tive alguns grupos e, por exemplo (vi outros fazerem coisas deste tipo)... duas mulheres, uma era assistente social e outra era psiquiatra num hospital, e a Austrália é tão rígida e retrógrada, que essas duas mulheres, quando foram ao primeiro psicodrama, vestiam calças, mas em casa tinham de mantê-las escondidas, porque não podiam usar calças. O que elas fizeram foi — assistiram aos filmes, realmente ouviram o que se passava, obtiveram outras informações etc., e quando viam algo que podiam tentar, tentavam entre si para ver como funcionava, o que sucedia, e então começaram a usar com enfermeiras e quando se deparavam com uma coisa nova, tentavam; e esta é uma maneira bastante gestáltica de agir, entende. Não tentar agarrar tudo, e sim pegar uma coisa e usar consigo mesmo, e depois com as enfermeiras, entende. Havia uma mulher, outra assistente social, que me contou que tinha um filho de sete anos que não falava. Ela foi com ele a um terapeuta e a criança continuou sem falar, sem dizer nada, e então ela sugeriu à criança que falasse consigo mesma e a criança continuou sem fazer nada. Então a mulher reconheceu o conflito em si própria, e teve um diálogo com a cadeira vazia, com a criança presente — e aconteceu que ela realmente pensava que seria útil à criança fazer isso, mas não queria forçá-la. Então teve o diálogo consigo mesma, com a criança presente, e a criança começou a conversar com a cadeira vazia. Você percebe, descobrir algo que pode ser usado, estar consciente de si mesmo, e aprender à medida que avança. Isso faz sentido para mim. Mas neste país, o que geralmente acontece com Gestalt é que as pessoas escolhem algumas técnicas e as utilizam (elas não as utilizam consigo mesmas), elas as utilizam com os outros, não sabem do que se trata — às vezes acontecem coisas boas, às vezes não. Mas a coisa não se mexe, não cresce, só fica parada onde está. P: Isso quer dizer que uma das maneiras é começar fazendo conosco mesmo nesse pequeno grupo? B: Sim. E... P: E então, tomar consciência... (B‘. Certo.) Isso que você contou sobre a criança, é realmente incrível. B: Sim. Foi maravilhoso. Ela notou o que se passava dentro de si própria, e então o fez com a criança presente, e a criança começou a fazer. Você percebe, o que passou para a criança foi algo tão diferente de qualquer coisa que a mulher pudesse dizer — eu quero que você faça isso, porém ao mesmo tempo, isto, e assim por diante... Mas quando ela teve um diálogo consigo mesma, sobre o que se passava dentro dela, a criança pôde se relacionar com isso. Foi maravilhoso. P. Provavelmente ela foi muito mais clara — para si mesma, e para a criança. B: Certo. E por outro lado, quando as pessoas pegam os truques e fazem algo — essas são as pessoas que estudam, e estudam, e não estão dispostas a fazer nada enquanto não estiver perfeito. Sempre se esquivando, em vez de fazer o que eu sei e aprender com isso, e depois fixar- se em outra coisa, e mover-se. Da minha parte, eu não vejo conflito entre rogerianos e Gestalt — eu passo facilmente de um para outro. Carl nunca fez psicanálise e para ele isso foi uma bênção. Nunca fez. Ele fez outras coisas antes — ele foi seminarista. Deixou o seminário porque não podia acreditar naquelas coisas a vida inteira, quando suas crenças já tinham mudado tanto, e então saiu. Mas ele sabia qual era a situação, e que não seria respeitado por não fazer psicanálise, mas ele seguiu seu próprio caminho e foi muito xingado e, mesmo depois, foi chamado de místico e desprezado. Mas ele se manteve firme, e aí está, Fritz passou por toda a psicanálise, e às vezes parte dela interferia porque você sabe que quando se fica muito tempo numa coisa, às vezes ela volta, mesmo que você não a aprove. E assim, às vezes, o psicanalítico aparecia. Mas, tudo bem, eu posso reconhecer que é o resíduo psicanalítico dele, e não preciso trazê-lo para mim. P-. Isso me traz uma pergunta. Você, Barry, você usa os conceitos que o Fritz tirou da psicanálise? Por exemplo, ele fala de projeção, introjeção, retroflexão, dessensibilização (um ponto morto em alguma parte do corpo ou numa experiência). Como é que você utiliza estes conceitos, se é que os utiliza? B\ Fritz sempre falava dos buracos na personalidade. Essa não é uma coisa com que eu tenha facilidade, de modo que nunca cheguei a utilizar esse conceito. Para ele, ele contava o extremo prazer que sentia quando alguém descobria os buracos em sua própria personalidade. Mas, em termos de mim mesma, é muito mais — como é que eu me bloqueio? E como é que posso superar esse bloqueio? E é assim que eu penso. E não faço uso de conceitos elaborados. E tento me livrar ao máximo de conceitos. P: Estou novamente ouvindo Rogers. B: Ah, sim. E certa vez Susan comentou: “Você faz Gestalt à maneira rogeriana”. Essa é minha abordagem. E eu, de maneira nenhuma, sinto que todo mundo deva fazê-lo dessa forma, porque há muitos terapeutas bons que não o fazem, mas ela me atrai. E no começo Rogers me atraiu, entende. Na época eu não sabia nada sobre Gestalt. Quando escrevi Person to Person, eu ainda não tinha lido nada sobre Gestalt. E no entanto, há Gestalt nesse livro. E eu gosto muito disso — que a Gestalt, em si, não é uma invenção, mas qualquer um de nós pode tomar consciência dela a qualquer hora, e as coisas que temos inventado para nos ajudar a tomar contato são partes — apenas algumas ferramentas que podem ser usadas com bastante utilidade, ou podem ser mal empregadas como quaisquer outras ferramentas. Eu, por mim, não encontrei conflito nenhum entre Rogers e Gestalt. Sim, existem coisas como os resíduos psicanalíticos do Fritz, que não significam nada para mim, e eu os deixo de lado. Mas sou capaz de reconhecer que se penso que você está pensando algo, e esse pensamento é meu — não é seu — eu não estou em contato com o seu pensamento. Não sei o que está se passando dentro de você. E não preciso saber. Este é um fato simples que sou capaz de reconhecer. Sei reconhecer que se penso que alguém está se sentindo deprimido, posso verificar em mim mesma para ver se eu estou deprimida, e jogando a depressão sobre outra pessoa. Essas coisas eu sei verificar sozinha, e elas realmente não têm nada a ver com teorias. Talvez haja uma teoria que se aplique a elas, mas isso não importa. P: “Projeção” é apenas uma palavra? (B: Sim.) Ela não faz você ter contato. B-. Eu não emprego a palavra projeção. Mas, na realidade, eu a verifico em mim. Se estou projetando, posso perceber. Mas este é apenas um processo de tomada de consciência, e eu não uso o rótulo. Quando estive doente, uma das coisas que fiz... Entende, eu fiquei de cama quase o tempo inteiro, durante vários anos, vivendo sozinha, e não podia fazer nada. Não podia ler, não podia escrever, e assim por diante, e uma das coisas que fiz foi olhar para muitos fatos da minha vida e notar coisas que se passavam em mim. Como uma coisa que eu sabia era que por muitos anos não gostei de cor-de-rosa e observei isso, e achei muito ridículo porque gosto do rosa do céu, e na melancia, e mesmo assim, ficava o tempo todo dizendo que não gostava de cor- de-rosa. Então me deitei e fiquei com isso na cabeça, e então ouvi uma voz dizendo: “Não gosto de cor-de-rosa, não gosto de cor-de-rosa, não gosto de cor-de-rosa” e, no início, parecia uma pessoa falando, e depois a voz se dividiu na minha tia Alice, na minha mãe e na minha irmã Alice. Parece que a minha tia, que era uma pessoa dominadora, dizia que não gostava de cor-de- rosa, e a minha mãe e minha irmã pegaram isso dela. Agora a minha tia... muitas coisas dela não tinham nada a ver, como essa — era só deixá-las de fora, não deixar que entrassem. Mas com a minha mãe e minha irmã, era diferente, e deixei entrar, entende. E tudo isso simplesmente acontece, e fica claro que fiquei com toda essa informação dentro de mim, e quando me abri para ela... Descobri que gosto de muitas coisas cor-de-rosa e não gosto de outras tantas. Barry já passou dos setenta. E vive em sua cabana de madeira a uns cem metros das outras casas deste sítio, num vale do estado de Utah, perto de um rio com corredeiras e remansos. Tem seu isolamento quando quer. E conheci poucas, raríssimas pessoas com tanta disponibilidade para o contato. Tem um interesse ativo, alerta, e muito perceptivo pelas pessoas. Passamos três manhãs inteiras conversando, e nas três vezes me surpreendí quando percebi como o tempo passava rápido. E por várias vezes as suas gargalhadas desataram as minhas. Ao me aproximar de sua cabana, um pouco antes das oito, o martelar ativo de sua máquina de escrever passava célere pela porta entreaberta. Paulo Barros

NOVAS BUSCAS EM PSICOTERAPIA VOLUMES PUBLICADOS 1. Tornar-se Presente — Experimentos de crescimento em Gestalt-Terapia — John O. Stevens. 2. Gestalt-Terapia Explicada — Frederick S. Perls. 3. Isto é Gestalt — John O. Stevens (org.). 4. O Corpo em Terapia — A abordagem bioenergética — Alexander Lowen. 5. Consciência pelo Movimento — Moshe Feldenkrais. 6. Não Apresse o Rio (Ele corre sozinho) — Barry Stevens. 7. Escarafunchando Fritz — Dentro e Fora da Lata de Lixo — Frederick S. Perls. 8. Caso Nora — Consciência corporal como fator terapêutico — Moshe Feldenkrais. 9. Na Noite Passada Eu Sonhei... — Medard Boss. 10. Expansão e Recolhimento — A essência do Pai chi — Al Chung-liang Huang. 11. O Corpo Traído — Alexander Lowen. 12. Descobrindo Crianças — A abordagem gestáltica com crianças e adolescentes — . 13. O Labirinto Humano — Causas do bloqueio da energia sexual — Elsworth F. Baker. 14. O Psicodrama — Aplicações da técnica psicodramática — Dalmiro M. Bustos e colaboradores. 15. Bioenergética — Alexander Lowen. 16. Os Sonhos e o Desenvolvimento da Personalidade — Emest Lawrence Rossi. 17. Sapos em Príncipes — Programação neurolingüistica — Richard Bandler e John Grinder. 18. As Psicoterapias Hoje — Algumas abordagens — leda Porchat (org.) 19. O Corpo em Depressão — As bases biológicas da fé e da realidade — Alexander Lowen. 20. Fundamentos do Psicadrama — J.L. Moreno. 21. Atravessando — Passagens em psicoterapia — Richard Bandler e John Grinder. 22. Gestalt e Grupos — Uma perspectiva sistêmica — Therese A. Tellegen. 23. A Formação Profissional do Psicoterapeuta — Elenir Rosa Golin Cardoso. 24. Gestalt-Terapia: Refazendo um Caminho — Jorge Ponciano Ribeiro. 25. Jung — Elie J. Humbert. 26. Ser Terapeuta — Depoimentos — leda Porchat e Paulo Barros (orgs.) 27. Resignificando — Programação neurolingüística e a transformação do significado — Richard Bandler e John Grínder. 28. Ida Rolffala sobre Rolfing e a Realidade Física — Rosemary Feitis (org.) 29. Terapia Familiar Breve — Steve de Shazer. 30. Corpo Virtual — Reflexões sobre a clínica psicoterápica — Carlos R. Briganti. 31. Terapia Familiar e de Casal — Introdução às abordagens sistêmica e psicanalítica — Vera L. Lamanno Calil. 32. Usando sua Mente — As coisas que você não sabe que não sabe — Richard Bandler. 33. Wilhelm Reich e a Orgonomia — Ola Raknes. 34. Tocar — O Significado humano da pele — Ashley Montagu. 35. Vida e Movimento — Moshe Feldenkrais. 36. O Corpo Revela — Um guia para a leitura corporal — Ron Kurtz e Hector Prestera. 37. Corpo Sofrido e Mal-Amado — As experiências da mulher com o próprio corpo — Lucy Penna. 38. Sol da Terra — O uso do barro em psicoterapia — Álvaro de Pinheiro Gouvêa. 39. O Corpo Onírico — O papel do corpo no revelar do si-mesmo — Amold Mindell. 40. A terapia mais breve possível — Avanços em práticas psic analíticas — Sophia Rozzanna Caracushansky. 41. Trabalhando com o corpo onírico — Amold Mindell. 42. Terapia de vida passada — Li vi o Tulio Pincherle (org.). 43. O caminho do Rio — a ciência do processo do corpo onírico — Amold Mindell. 44. Terapia Não-Convencional — as técnicas psiquiátricas de Milton H. Erickson — Jay Haley. 45. O Fio das Palavras — um estudo de psicoterapia existencial — Luiz A.G. Cancello. 46. O Corpo Onírico nos Relacionamentos — Arnold Mindell. 47. Padrões de distresse — Agressões emocionais e forma humana — Stanley Keleman. 48. Imagens do Self — O processo terapêutico na caixa-de-areia — Estelle L. Weinrib. 49. Um e um são três — O casal se auto-revela — Philippe Caillé 50. Narciso, a bruxa, o terapeuta elefante e outras histórias psi — Paulo Barros 51. O Dilema da Psicologia — o olhar de um psicólogo sobre sua complicada profissão — Lawrence LeShan 52. Trabalho corporal intuitivo — Uma abordagem Reichiana — Loil Neidhoefer 53. Cem anos de psicoterapia... — e o mundo está cada vez pior — James Hillman e Michael Ventura. 54. Saúde e Plenitude: um caminho para o ser — Roberto Crema. 55. Arteterapia para famílias — abordagens integrativas — Shirley Riley e Cathy A. Malchiodi. 56. Luto — Estudos sobre a perda na vida adulta — Colin Murray Parkes. 57. O Despertar do Tigre — curando o trauma — Peter A. Levine com Ann Frederick.