MATHEUS OSTEMBERG BENITES DA SILVA

A SENTINELA DA LIBERDADE: O CAPITÃO AMÉRICA E O COMBATE AOS INIMIGOS DA DEMOCRACIA

Dourados – MS 2020

MATHEUS OSTEMBERG BENITES DA SILVA

A SENTINELA DA LIBERDADE: O CAPITÃO AMÉRICA E O COMBATE AOS INIMIGOS DA DEMOCRACIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em História.

Área de concentração: Sociedade, Política e Representações.

Orientadora: Prof. Dr. Fabiano Coelho

Dourados – MS 2020

MATHEUS OSTEMBERG BENITES DA SILVA

A SENTINELA DA LIBERDADE: O CAPITÃO AMÉRICA E O COMBATE AOS INIMIGOS DA DEMOCRACIA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em ___ de ______de 2020

BANCA EXAMINADORA

Presidente e orientador: Fabiano Coelho (Dr., UFGD) ______

2º Examinador Rozinaldo Antonio Miani (Dr., UEL) ______

3º Examinador Fernando Perli (Dr., UFGD) ______

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pelo dom da vida e sustento em todos os momentos. Sou muito grato à minha família: meus pais Alberto e Elisângela pelo amor e por sempre me incentivarem a estudar, aos meus irmãos, Maria Mariana e João Pedro, pelo carinho e companheirismo, e à minha namorada, Juliana, por me amar e suportar, em todos os sentidos que a palavra ―suportar‖ possa ter. Agradeço imensamente ao Prof. Dr. Fabiano Coelho pela paciência e disposição em me orientar e ao cuidado que dispensou à minha formação e desenvolvimento desta dissertação. Aos professores Dr. Rozinaldo Antonio Miani e ao Prof. Dr. Fernando Perli por aceitarem compor minha banca de qualificação e defesa e darem contribuições preciosas para o desenvolvimento da dissertação. Agradeço também aos professores do PPGH/UFGD pelas disciplinas ministradas e contribuições nas discussões em sala e ao técnico Wallace por estar sempre pronto a auxiliar no que foi preciso. Sou grato ainda aos meus professores da graduação em História da UFMS campus de Campo Grande, em especial à Prof. Dr. Dilza Porto, a primeira pessoa que incentivou minha pesquisa. Por último, gostaria de agradecer especialmente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível – CAPES, pela oportunidade de ser bolsista durante grande parte da realização da pesquisa, bem como agradecer a todos que lutaram e lutam pela educação em nosso país, pela pesquisa e pela ampliação do acesso a estas no Brasil.

ÍNDICE DE IMAGENS

IMAGEM 1 - ―OUR BOYS NEED SOX, KNIT YOUR BIT‖ ...... 35

IMAGEM 2 - ―PARE O QUINTA-COLUNA!‖ ...... 38

IMAGEM 3 - ―SILÊNCIO SIGNIFICA SEGURANÇA‖ ...... 39

IMAGEM 4 - HISTOIRE DE MR. VIEUX BOIS (1827), DE RUDOLPHE TÖPFFER ...... 44

IMAGEM 5 - THE YELLOW KID (1896), DE RICHARD FELTON OUTCALT ...... 46

IMAGEM 6 - AS AVENTURAS DE ZÉ CAIPORA, DE ANGELO AGOSTINI ...... 48

IMAGEM 7 - NÚMERO 1 ...... 53

IMAGEM 8 - COMO O ACABARIA COM A GUERRA ...... 57

IMAGEM 9 - CAPA DE SUPERMAN NÚMERO 12 ...... 59

IMAGEM 10 - CAPA DE MARVEL MYSTERY COMICS ...... 60

IMAGEM 11 - CAPA DE NATIONAL COMICS NÚMERO 1 ...... 63

IMAGEM 12 - MINUTE-MAN – ―THE ONE MAN ARMY‖ ...... 65

IMAGEM 13 - CAPA DE PEP COMICS NÚMERO 1 ...... 66

IMAGEM 14 - CAPA DE NÚMERO 1 ...... 72

IMAGEM 15 - ―MEET CAPTAIN AMERICA‖ ...... 76

IMAGEM 16 - ―WE SHALL CALL YOU CAPTAIN AMERICA, SON!‖ ...... 79

IMAGEM 17 - O CAPITÃO AMÉRICA VAI À EUROPA ...... 83

IMAGEM 18 - CAPITÃO AMÉRICA X ESPIÃO ...... 85

IMAGEM 19 - BUCKY EM AÇÃO ...... 89

IMAGEM 20 - TORNE-SE UM MEMBRO DAS SENTINELAS DA LIBERDADE ...... 90

IMAGEM 21 - CAPA DE CAPTAIN AMERICA NÚMERO 3 ...... 92

IMAGEM 22 - CAPA DE THE JOKER NÚMERO 1 ...... 97

IMAGEM 23 - REUNIÃO DA GERMAN-AMERICAN BUND NO MADISON SQUARE GARDEN ...... 107

IMAGEM 24 - QUINTA-COLUNA EXPLODINDO FÁBRICA DE MUNIÇÕES ...... 112

IMAGEM 25 - SANDO E OMAR ...... 113

IMAGEM 26 - CAPITÃO AMÉRICA CONTRA OS ―GIGANTES ORIENTAIS‖ ...... 115

IMAGEM 27 - CAPITÃO AMÉRICA X FANG ...... 117

IMAGEM 28: CAPITÃO OKADA E SEUS CAPANGAS ...... 119

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DAI – Deutsches Ausland-Instistut EUA – EUA da América FBI – Federal Bureau of Investigion GAU-USA – Gauleitung-USA HUAC – House Committee on Un-American Activities IBM – International Bussiness Machine NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei OWI – Office of War Information URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

RESUMO

A presente dissertação, intitulada A Sentinela da Liberdade: o Capitão América e o combate aos inimigos da democracia, tem como objetivo analisar as representações e as ideologias que permearam a criação do Capitão América e dos inimigos estadunidenses nas primeiras histórias do personagem. Assim, foi realizada a análise das 10 primeiras edições da revista Captain America publicadas, de acordo com a data de capa, entre março de 1941 e janeiro de 1942. As histórias são influenciadas pelo contexto político, cultural, social e econômico gerado pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e o personagem Capitão América, um super-herói declaradamente estadunidense, era parte do esforço de guerra mesmo surgindo antes da declaração de Guerra dos EUA ao Japão, em 8 de dezembro de 1941. A análise das representações contribui para que se conheça qual era a ―função‖ do personagem no conflito e, consequentemente, a posição de e , criadores do personagem, em relação à guerra. A escolha dessas edições se deu devido ao fato de serem as edições originalmente escritas por Simon e Kirby, sendo possível verificar através delas como os criadores do herói pensaram a personalidade do Capitão América, quais representações permearam sua construção, e como o contexto em que as histórias foram publicadas influenciou nas aventuras do super-herói. As histórias em quadrinhos são fontes e objetos para a historiografia; neste sentido, apropriou-se das contribuições metodológicas de Ciro Flamarion Cardoso (2004), e foi realizada uma leitura isotópica das histórias analisadas, destacando as redes temáticas que mais se repetem e a estrutura dos personagens intervenientes, além da relação dos enredos apresentados com contexto do período em que são produzidos. A pesquisa tem base nos pressupostos teóricos da História Cultural, sendo norteada pelas noções representação e ideologia. Foi possível compreender que, nas histórias iniciais do Capitão América, a Segunda Guerra Mundial já havia envolvido os EUA, inclusive chegando às fronteiras do país, principalmente por meio dos vilões ―quintas-colunas‖. Diante disso, Joe Simon e Jack Kirby, expondo suas representações a respeito do conflito, delinearam qual seria a função do Capitão América no esforço de guerra: proteger o território estadunidense desmascarando espiões e combatendo com violência tanto os inimigos existentes dentro do país, quanto os vilões no exterior. A dissertação contribui com a historiografia sobre a Segunda Guerra Mundial, e em especial aos estudos que trabalham histórias em quadrinhos como fonte e objeto de pesquisa.

Palavras-chave: Capitão América; História em Quadrinhos; Segunda Guerra Mundial.

ABSTRACT

The following dissertation, titled ―The Sentinel of Liberty: Captain America and the fight against the enemies of democracy‖, analyses the representations and ideologies which permeated the creation of Captain America and of the enemies of the United States of America present in the first stories that feature the character. For such purpose, the first 10 editions of the magazine Captain America, published, according to the cover date, between March 1941 and January 1942. The stories were influenced by the social, political and economical context of the Second World War (1939-1945), and the character Captain America, an openly U.S. born , was part of the war effort — even though he was created before the United States of America declared war on Japan, on December 8th, 1941. The analysis of said representations contributes to understanding of what was the ―function‖ of the character in the conflict and, consequently, the position of its creators, Joe Simon and Jack Kirby, concerning the war. The choice for these first 10 editions was due to the fact that these are the editions originally written by Simon and Kirby, making it possible to ascertain how the hero‘s creators imagined Captain America‘s personality, which representations permeated his creation and how the context in which the stories were published influenced the super-hero‘s adventures. Comic books are both sources and object to historiography; in that sense the methodological contributions of Ciro Flamarion Cardoso (2004) were used and an isotopical reading of the stories was conducted, emphasising the thematic webs that are repeated the most as well as the connection between the plots shown with the context of the period in which they were written. The research was based in the theoretical presupposition of Cultural History, and guided by the notions of representation and ideology. It was possible to comprehend that in the initial Captain America stories the Second World War had already involved the United States of America, having in fact reached the countries‘ shores especially through the antagonists ―fifth-columns‖. Facing that, Joe Simon and Jack Kirby, exposing their representations on the conflict, outlined Captain America‘s role in the war effort: to protect the territory of the USA, unmask spies and oppose with violence both the enemies existing in the country and outside its borders. This dissertation contributes to the historiography about the Second World War and especially to the studies which look at comic books as source and object of research.

Key-words: Capitain America; Comic Books; Second World War.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

CAPÍTULO 1

OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: ISOLACIONISMO, PARTICIPAÇÃO E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ESFORÇO DE GUERRA ...... 24

1.1 ―O arsenal da democracia‖: o posicionamento inicial estadunidense diante do conflito ...... 24 1.2 A caminho do conflito: a campanha de convencimento estadunidense em prol da guerra ...... 33 1.3 Histórias em quadrinhos: breves considerações e as mudanças no contexto de guerra ...... 42 CAPÍTULO 2

A CONSTRUÇÃO DO CAPITÃO AMÉRICA ...... 62

2.1 Heróis patrióticos e o surgimento do Capitão América ...... 62 2.2 ―Sentinel of our shores‖: o Capitão América como defensor do território estadunidense ...... 72 2.3 Bucky: sidekicks e a inclusão do leitor no esforço de guerra ...... 87 CAPÍTULO 3

“INIMIGOS DA DEMOCRACIA”: OS VILÕES NAS HISTÓRIAS DO CAPITÃO AMÉRICA ...... 94

3.1 O vilão nas histórias em quadrinhos ...... 94 3.2 A ameaça dos ―quintas-colunas‖ ...... 98 3.3 Representações dos inimigos de guerra nas histórias do Capitão América ...... 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 121

FONTES UTILIZADAS ...... 124

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 125

INTRODUÇÃO

As histórias em quadrinhos são produtos culturais de longeva e crescente popularidade, excedendo, inclusive, as páginas das revistas e se reproduzindo em meios como brinquedos, jogos de videogame, conferências de fãs, livros, séries de TV e cinema. Dentro os diversos gêneros compreendidos pelas histórias em quadrinhos (romance, policial, reportagem, terror, etc.), as histórias de super-heróis são as que mais popularizaram e se tornaram referência. Por isso as histórias em quadrinhos são comumente associadas a personagens como Superman, e Homem-Aranha1.

Apesar dos superpoderes, dos enredos de ficção científica e de vilões caricatos, característicos das histórias em quadrinhos, os contextos social, político, econômico e cultural em que as histórias são produzidas influenciam em seu desenvolvimento. Um exemplo é o personagem Capitão América, criado na Segunda Guerra Mundial. Com um uniforme que remete à bandeira dos Estados Unidos da América (EUA) e um nítido discurso patriótico, o herói deixa bem clara qual era sua posição política (ou melhor, de seus criadores) no conflito. Entretanto chama atenção a data de criação do herói: a primeira edição da revista Captain America, em que o herói combatia nazistas e saía em defesa dos EUA, foi às bancas em dezembro de 1940, um ano antes da entrada oficial dos país no conflito, que só ocorreu após o ataque japonês à base militar de Pearl Harbor. Ou seja, o Capitão América estava participando da guerra mesmo antes dos EUA participarem do conflito. Por que isso aconteceu?

Inicialmente essa foi a pergunta norteadora do presente trabalho. Entretanto, na medida em que a pesquisa se desenvolveu, algo que ficou cada vez mais notório é que os EUA estavam na guerra muito antes da declaração de guerra ao Japão, em 8 de dezembro de 1941. Como se verá no decorrer da pesquisa, o país colaborava com os países que se opunham às potências do Eixo antes mesmo de enviar suas tropas para o front; oficializando, assim,

1 Sobre os nomes dos personagens, utilizei os nomes pelos quais os heróis são conhecidos no Brasil. No caso do Capitão América, quando me refiro ao personagem utilizo o nome na língua portuguesa; entretanto, quando me refiro a revista em que suas histórias são publicadas utilizo o nome original da publicação, Captain America. Para os personagens não publicados no Brasil, mantive seus nomes na linguagem original. 11

essa participação2. Diante disso coube saber qual seria o papel atribuído pelos criadores, Joe Simon e Jack Kirby, ao personagem Capitão América no esforço de guerra estadunidense.

O objetivo geral da dissertação é analisar as representações e as ideologias que permearam a criação do Capitão América e dos inimigos estadunidenses nas primeiras histórias do personagem. A análise das representações contribui para que se conheça qual era a função do personagem no conflito e, consequentemente, a posição de Joe Simon e Jack Kirby em relação à guerra.

Para tal fim, esta dissertação se propõe a analisar as 10 primeiras edições da revista Captain America, publicadas, de acordo com a data de capa, entre março de 1941 e janeiro de 1942. Essas datas de capa, no entanto, não correspondiam às datas em que tais revistas chegavam à banca. As revistas eram publicadas cerca de dois ou três meses antes do informado na capa, que na verdade fazia referência à data até quando a revista ficaria em circulação. Assim, por exemplo, Captain America número 1, com capa datada de março de 1941, já estava disponível para venda em dezembro de 19403.

A escolha dessas edições se deu devido ao fato de serem as edições originalmente escritas pela dupla de criadores do personagem, o argumentista Joe Simon e o desenhista Jack Kirby. Após a edição número 10, a revista seria escrita por uma nova equipe criativa. Nessas edições é possível verificar como os criadores do herói pensaram a personalidade do Capitão América, quais representações permearam a construção do personagem, e como o contexto em que as histórias foram publicadas influenciou nesse processo.

As edições analisadas estão em formato eletrônico e no idioma original, o inglês, e passaram por tradução livre no processo de sua análise. Além das histórias em quadrinhos, foram utilizados como fontes discursos presidenciais de Franklin D. Roosevelt, que auxiliaram na compreensão do contexto político e social em que as histórias do Capitão América foram produzidas. É importante ressaltar que cada edição possui, em média, cinco histórias, e nem todas as histórias encontradas na revista Captain America apresentam temas ligados à Segunda Guerra Mundial. Há histórias em que o herói enfrenta ladrões de joias, bandidos fantasiados de monstros visando cometer algum crime, dentre outros enredos que se

2 Para referenciar o período anterior a 8 de dezembro de 1941, considero-o como uma participação indireta dos EUA na Segunda Guerra Mundial, uma vez que o país já estava envolvido com o conflito através do fornecimento de armas, mas sem ainda enviar soldados aos fronts ou oficialmente declarar guerra à algum país. Para o período posterior à declaração de guerra ao Japão, utilizo a expressão ―participação direta‖. 3 Segundo o The Grand Comics Database, a revista estava disponível para venda a partir de 20 de dezembro de 1940. Disponível em < https://www.comics.org/issue/1313/>. Acesso em 24 jun, 2019, às 15h43min. 12

assemelhavam às histórias anteriores à guerra. Há também histórias de outros personagens, como Tuk, The Cave Boy, uma espécie de Tarzan, criado também por Joe Simon e Jack Kirby.

Pode-se dizer que a utilização das histórias em quadrinhos como fonte e objeto em trabalhos historiográficos é algo recente, mas com uma produção acadêmica cada vez mais numerosa. Diante disso creio ser importante explanar as escolhas teórico-metodológicas utilizadas nesta pesquisa, fazendo, inclusive, uma consideração a respeito da noção de fonte e como ela se liga às histórias em quadrinhos. Para chegar à noção de fonte, acredito também ser necessário refletir sobre o campo de atuação da História.

Marc Bloch, ao refletir sobre o ofício do historiador, coloca a disciplina como a ciência que estuda os homens no tempo (BLOCH, 2001, p. 55), e não simplesmente como um estudo do passado, ideia a qual o autor considera ―absurda‖. Para que o passado sofra a ―intervenção‖ da História, um elemento essencial deve estar presente: a ação humana. Refletindo sobre o ofício do historiador, pode-se dizer que onde este ―fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.‖ (BLOCH, 2001, p. 54).

Entretanto, como destaca John Lewis Gaddis (2003, p. 17), o passado, tal como aconteceu, é inacessível e não pode, dessa forma, ser revivido ou recuperado. De acordo com Bloch, ―o historiador, por definição está na impossibilidade de ele próprio constatar os fatos que estuda‖ (BLOCH, 2001, p. 69). Esse passado, inacessível e irrecuperável, só pode ser representando pelo historiador.

Quando pensamos o passado como uma paisagem, a história é o modo pelo qual a representamos, e é este ato de representação que nos diferencia do familiar, deixando-nos vivenciar através de outrem o que não podemos experimentar diretamente: uma visão mais ampla (GADDIS, 2003, p. 19).

A narrativa histórica é construída a partir dos vestígios e testemunhos do passado, que convencionamos a chamar de fontes históricas. Tais vestígios podem ser voluntários ou involuntários, escritos ou não escritos e, inclusive, verdadeiros ou falsos. Como ressaltado por Bloch ―não basta constatar o embuste. É preciso também descobrir seus motivos. [...] Acima de tudo, uma mentira enquanto tal é, a seu modo, um testemunho‖ (BLOCH, 2001, p. 98). Destaca-se ainda a variedade e infinidade dos testemunhos: tudo que o homem toca, altera, fabrica, lê, escreve, informa sobre ele.

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As fontes não se comunicam sozinhas, mas são interrogadas pelo pesquisador, que as questiona de acordo com seus objetivos de pesquisa. Todavia, tais perguntas feitas à fonte devem ser flexíveis, e a pesquisa deve estar aberta a novas problemáticas que possam surgir por meio dos questionamentos realizados.

A narrativa histórica é uma reorganização das experiências históricas de acordo com os objetivos do historiador, o que não implica em atribuir a essa narrativa um status irreal. Como ressalta Gaddis (2003, p. 37), os historiadores têm a capacidade de selecionar os eventos que consideram importantes, fazer análises em nível macro e microscópicos. De acordo com Paul Veyne (2008, p. 42), o historiador escolherá uma intriga a seguir, sendo essa intriga uma mistura de ―causas materiais, fins e acasos; numa palavra, uma fatia de vida que o historiador recorta a seu bel-prazer e onde os fatos têm as suas ligações objetivas e a sua importância relativa [...]‖ (VEYNE, 2008, p. 42).

Pela liberdade de escolha dos eventos a serem estudados, das intrigas a serem seguidas e por seu distanciamento em relação ao passado e consequente impossibilidade de reprodução exata dos acontecimentos, os historiadores acabam também por se utilizar de um fator de imaginação para construir sua escrita (GADDIS, 2003, p. 59). Entretanto a imaginação é limitada pelas fontes. Uma pesquisa em História começa a partir das fontes disponíveis e, a partir do levantamento dessas fontes, poderá ser feita a sua interpretação e o uso, inclusive, da imaginação, construção de uma narrativa e os demais passos previstos pelo método histórico.

Durante a década de 1980, a História se abriu a novas possibilidades metodológicas com o advento da chamada Nova História Cultural4. Com isso passou ―a tecer diálogos férteis com disciplinas e temas que outrora se colocavam em polos distantes e, por vezes, conflitantes.‖ (VAZQUEZ; PIRES, 2017, p. 150). Consequentemente, novas questões, objetos, temas e fontes começaram a ser observados pelo campo da História, que passou a não se limitar apenas a fontes ―oficiais‖, documentos escritos, ou a abordar histórias dos ―grandes homens‖, reis, políticos e assim por diante. Um dos campos dos quais a História se aproximou foi a Literatura.

4 Abordagem historiográfica surgida a partir da década de 1980, influenciada pela corrente marxista da história social, com foco na história ―vinda de baixo‖, bem como pela Escola dos Annales, apresentando ainda aproximações com disciplinas como a Antropologia e a Teoria Literária. Tendo como base o estudo das práticas e produções culturais, pode se dizer que a Nova História Cultural volta sua atenção para a decifração de significados, para o modo como os indivíduos atribuem sentido ao mundo social, de modo geral, para a questão das representações e quais práticas decorrem de tais representações. Ver: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 14

Com as transformações metodológicas e a inserção de novas temáticas de pesquisa, apresenta-se a possibilidade do uso das histórias em quadrinhos pela História, que compartilha algumas características com a Literatura, sendo, no entanto, uma linguagem própria, que dialoga também com outras expressões culturais (RAMOS, 2018, p. 18). Os quadrinhos possuem ―linguagem e características próprias, que, consideradas em conjunto com as formas de produção, veiculação e usufruto, auxiliam na compreensão das realidades paralelas que produzem.‖ (VAZQUEZ; PIRES, 2017, p. 150).

Considerando novamente a fala de Bloch (2001, p. 54), que atribui ao historiador o desafio de ―farejar‖ e ―caçar‖ carne humana, sendo tudo que o ser humano toca, produz e altera fonte para o historiador, as histórias em quadrinhos, por serem também uma produção humana, se incluem no amplo ―grupo‖ de fontes históricas. As histórias em quadrinhos são produzidas por autores (no caso dos quadrinhos, em especial, ainda há por vezes grupos de argumentistas, desenhistas, arte-finalistas, etc.), sofrem mediação editorial e, tanto esses autores quanto os componentes editoriais, se encontram inseridos e influenciados por um contexto histórico e social que deixam suas ―marcas‖ nas obras produzidas.

O personagem Capitão América, por exemplo, em suas primeiras histórias, reflete o contexto vivido pelos EUA no momento de sua criação: a tensão da Segunda Guerra Mundial e o papel país no conflito (ou, pelo menos, o papel atribuído pelos autores). O herói, aliás, é uma criação que provavelmente não existiria sem seu contexto, uma vez que é um personagem patriótico (seu uniforme é baseado na bandeira estadunidense), cujo desejo principal era se alistar no exército dos EUA (acaba rejeitado por seu porte físico, o que o leva a se submeter aos testes com soro do ―supersoldado‖), e tem como função específica atuar como defensor das fronteiras estadunidenses durante a Guerra.

Laura Vazquez e Conceição Pires (2017) propõem duas direções a serem tomadas na análise dos quadrinhos. A primeira direção aponta para as histórias em quadrinhos como reflexo do contexto histórico e social em que estão inseridos, sendo assim importantes fontes para a escrita da história. O segundo direcionamento de análise sugerido consiste em considerar os quadrinhos como perpetuadores de representações e ideologias, com um papel na configuração dos imaginários coletivos e por isso se atentar ao seu caráter dialógico e propositivo. São os conceitos representação e ideologia que norteiam esta pesquisa.

De acordo com Roger Chartier (1991), consideram-se as representações como as leituras, classificações e recortes que os diferentes grupos que compõem a sociedade fazem do 15

mundo social em que estão envoltos e como conferem sentido a tal mundo, bem como as práticas que fazem com que essas leituras sejam reconhecidas e perpetuadas na sociedade, de modo a singularizar e reconhecer um grupo, uma classe ou comunidade. Para Chartier (1988, p. 19), as representações traduzem as posições e interesses dos atores sociais em relação ao mundo social, e ―descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse‖. O autor ressalta ainda que as representações constroem e mantém relações de dominação, apontando a importância da prática dos historiadores em perceber e analisar essas relações (CHARTIER, 2011, p. 23).

Sandra Jatahy Pesavento (2004, p. 40), ressalta que a representação é um reflexo do real, uma construção feita a partir dele, envolvendo processos de percepção, identificação, classificação, legitimação e exclusão. Para Stuart Hall (2016, p. 31), a representação é um processo de produção de significados e compartilhamento de tais significados. Tendo como base essas definições do conceito, conclui-se que as histórias em quadrinhos podem ser consideradas como produtoras, portadoras e reprodutoras de representações. Tomemos como exemplo o personagem central da pesquisa, o Capitão América.

Nas primeiras edições da revista Captain America, o herói patriótico é ressaltado constantemente como um defensor de pretensos valores ―inerentes‖ aos EUA atribuídos pelos autores, como a democracia e a liberdade. O próprio personagem é apelidado de ―Sentinela da Liberdade‖. Há uma clara intenção de representar o país como portador máximo de tais valores, representações essas que não foram criadas com as histórias em quadrinhos do Capitão América, mas que são reproduzidas por elas. Em oposição, os inimigos de guerra dos estadunidenses são apresentados como inimigos da democracia, dignos de finais trágicos e com características visuais próximas a criaturas monstruosas e desumanizadas. Cria-se, dessa forma, uma diferenciação entre os personagens estadunidenses, paladinos dos ―bons costumes‖ e os monstruosos inimigos alemães e japoneses (principais representados nas histórias), que por serem descritos como distantes tanto ideologicamente quanto fisicamente da concepção de humanidade atribuída pelos autores, devem ser combatidos.

Mesmo que as histórias reflitam um contexto histórico, o fato de ―super-seres‖ como características sobre-humanas estarem presentes, faz com que sejam consideradas ficção, no sentido de não estarem comprometidas necessariamente com a representação do real. Entretanto Chartier (2009, p. 25) aponta para a força das representações do passado existentes na literatura, que moldam as representações coletivas do passado e alcançam um grande

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número de pessoas. Ainda que as histórias iniciais do Capitão América não estivessem representando um passado, e sim um contexto social do presente em relação ao seu período de publicação (início da década de 1940), persiste a questão da força das representações perpetuadas nos quadrinhos, assim como na literatura, que, devido ao seu ―poder‖ de intervir nas representações coletivas, acabam por ser também parte do real.

Ainda sobre representações, os quadrinhos podem ser vetores de discursos ideológicos. Segundo José D‘Assunção Barros (2011), pode-se considerar a ideologia como um conjunto de representações socialmente motivadas, ideias, crenças e valores que acabam por reger atitudes dos homens em seus relacionamentos sociais e políticos.

Poderíamos acrescentar que a ideologia corresponde a uma determinada forma de construir representações ou de organizar representações já existentes para atingir determinados objetivos ou reforçar determinados interesses [...]. Na acepção mais restrita que empregamos acima, a ideologia está sempre associada a um determinado sistema de valores. A ideologia, de acordo com este uso, tem a ver com ―poder‖, com ―controle social‖ exercido sobre os membros de uma sociedade, geralmente sem que tenham consciência disso e muitas vezes sem que os próprios agentes implicados na produção e difusão de imagens que alimentam o âmbito ideológico tenham eles mesmos uma consciência mais clara dos modos como o poder está sendo exercido (BARROS, 2011, p. 54-55).

As ideologias voltam-se a um objetivo, não sendo meramente imagens distorcidas do mundo, ―mas parte do mundo das palavras e da ação‖ (VINCENT, 1995, p. 27). Pode-se dizer, então, que as ideologias almejam orientar e influenciar ações, movimentos, atitudes, planejando determinados alvos e objetivos a serem atingidos, buscando organizar determinadas práticas dos sujeitos. Nesse sentido, tomemos mais uma vez os quadrinhos do Capitão América como exemplo. Na primeira história do herói, denominada ―Case Nº1 – Meet Captain America5‖, destaca-se logo na primeira página o alistamento dos jovens que se preparam para a defesa da ―pacífica América‖ contra os ―cruéis belicistas europeus‖. Há, dessa forma, um apoio e incentivo claro à participação na guerra, através dos alistamentos militares, uma das principais temáticas de propaganda do período. Vê-se então o incentivo à tomada de uma ação; nesse caso, o alistamento. Há também o aspecto político envolvido, tal ação não é simples e corriqueira, como comer ou escovar os dentes, por exemplo, mas é uma ação política, ligada a motivos políticos, e, para Terry Eagleton (1997, p. 18), uma das principais características da ideologia é a referência a questões de poder.

5 Tradução livre de Caso N° 1 – Conheça o Capitão América 17

É importante considerar também que, como ressaltado por Chartier (2009, p. 40), o processo de publicação literária é sempre coletivo, refletindo diversas intervenções, e tal premissa pode ser transposta também para a produção das histórias em quadrinhos. A produção de uma história em quadrinhos envolve a participação de vários elementos, como argumentistas, desenhistas, arte-finalistas, letristas, diagramadores, editora, distribuidora, entre outros. Em alguns casos, como demonstrado recentemente pela compra da Marvel Entertainment, Inc pela Walt Disney Company, há, ainda, a intervenção de grandes conglomerados empresariais, com seus próprios interesses econômicos e mercadológicos. Todos esses elementos descritos se encontram presentes em determinados lugares sociais, são influenciados por diversos fatores, possuem suas próprias sensibilidades e intencionalidades, objetivos e metas. Nesta dissertação, são utilizadas como base metodológica as propostas colocadas no artigo Um conto e suas transformações: ficção científica e História, de Ciro Flamarion Cardoso (2004), no qual o autor analisa o conto ―Um ruído de trovão‖ de Ray Bradbury (1952) em suas diversas transcodificações (histórias em quadrinhos, episódio de série de TV), compreendendo o que ele chama de universo diegético (soma do enredo com o contexto imaginário) e fazendo uma leitura isotópica do conto, em que destaca as redes temáticas que mais se repetem nele, além de realizar uma ―atorialização‖, em que descreve a estrutura dos atores intervenientes na história. Tudo isso é conectado ao contexto social e político do período em que são produzidas essas adaptações. Para a compreensão do contexto se faz necessária a consulta à bibliografia especializada sobre o período em questão, ou seja, sobre o envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial, sobretudo abordando o período anterior à entrada oficial do país no conflito, após o ataque a Pearl Harbor, momento esse em que são produzidas as 10 primeiras edições da revista Captain America, foco da pesquisa. Logo, é indissociável, ao analisar as histórias em quadrinhos sob a ótica da História, a união com a produção historiográfica referente tanto ao período representado no enredo quanto ao período em que é produzida a história em quadrinhos trabalhada. Outro aspecto importante ao se trabalhar com histórias em quadrinhos e que foi inserido nesta pesquisa é a análise das cores utilizadas, bem como dos traços do desenho. Autores como Rafael G. Lenzi (2015) e Paulo Ramos (2018) destacam a importância das cores nos quadrinhos, ressaltando o valor que elas podem exercer na construção de sentido dentro do texto, transmitindo informações, simbologias e gerando significações que muitas vezes não estão presentes no texto verbal. Os traços em que os personagens são retratados

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também devem reter a atenção do pesquisador, uma vez que, como dito por Ramos (2018, p.114), o ―corpo fala‖, e a maneira de representar esse corpo é através dos traços do desenhista. Will Eisner (2005) evidencia que os estereótipos fazem parte da composição de um personagem, logo a forma como é representado um ―mocinho‖ difere da forma como é representado um ―bandido‖. Os vilões são, na maioria das vezes, compostos com traços que fazem o leitor lembrar de que ali está representada uma pessoa ruim, digna de repulsa. Esse fator é utilizado nas histórias do Capitão América, nas quais o herói é desenhado com traços mais finos e com aparência esbelta e forte, em detrimento de vilões, que, como já citado, por vezes assumem feições monstruosas, de maneira a torná-los mais ―odiáveis‖ para o leitor.

É importante frisar, por mais óbvio que pareça, que ao analisar uma história em quadrinhos é necessário observar todos os elementos que compõem o objeto analisado, texto verbal, traços, cores, composição dos quadros e demais elementos que se apresentarem, visto que a união deles compõe a história em quadrinhos e constrói o sentido do enredo. Há também a importância do contexto em que é produzida a obra, sobretudo quando se trata em uma pesquisa no âmbito da História.

Apesar de recente, a produção historiográfica brasileira que utiliza as histórias em quadrinhos como objeto de pesquisa, tem sido cada vez mais numerosa. Ivan Lima Gomes (2010), em sua dissertação de mestrado, denominada O Brasil imaginado em quadrinhos na revista Pererê (1960-1964), se propõe a analisar como o Brasil é representado na revista em quadrinhos Pererê, de Ziraldo, destacando a forma como o autor concilia em sua obra autoral as necessidades do mercado com representações sobre cultura popular, nacionalismo, folclore e infância através de suas histórias.

Em Superman e a guerra: dos magnatas das munições ao arsenal da democracia, Ricardo Bruno Flor (2014) busca compreender como o criador do personagem Superman, Jerry Siegel, retrata a guerra em dois períodos distintos de publicação: antes da entrada oficial dos EUA na Segunda Guerra Mundial (1938-1939) e durante o conflito (1942). A partir disso, analisa que o teor das histórias em relação à guerra muda de acordo com os posicionamentos do governo dos EUA no conflito, demonstrando como o contexto político influenciou na criação das histórias do herói.

A relação entre histórias em quadrinhos e a Guerra Fria é ressaltada no estudo de Carlos André Krakhecke (2009), Representações da Guerra Fria nas histórias em quadrinhos Batman – O Cavaleiro das Trevas e (1979-1987), em que o autor analisa as 19

representações a respeito do conflito perpetuadas por duas histórias em quadrinhos seminais para o meio, lançadas na década de 1980, período final do conflito. Essas histórias, segundo o pesquisador, se situaram de maneira crítica em relação à política estadunidense encabeçada pelo então presidente, Ronald Reagan.

O impacto de conflitos contemporâneos vividos pelos EUA nas histórias em quadrinhos também é trabalhado por Victor Callari (2016) na dissertação Política e terrorismo na série Guerra Civil da , cujo objetivo é identificar o discurso da Marvel Comics acerca dos atentados de 11 de setembro, a partir da saga Guerra Civil, saga essa que se espalhou por diversos títulos da editora entre 2005 e 2007. Para Callari (2016, p. 195), a leitura da maior totalidade desses títulos se faz importante para a compreensão mais acurada do posicionamento da editora em relação aos atentados.

Fabio Vieira Guerra, em sua dissertação de mestrado (2011), Super-heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos EUA (1961-1981), e tese de doutorado (2016), A crônica dos quadrinhos: Marvel Comics e a história recente dos EUA (1980-2015), buscou compreender como a política externa estadunidense nesses períodos foi representada nos quadrinhos da editora, que acabaram por ter uma participação na construção da memória na sociedade contemporânea dos EUA.

A participação feminina nas histórias em quadrinhos é estudada por Natania Aparecida da Silva Nogueira (2015) na dissertação As representações femininas nas Histórias em Quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua Miss (1941-1952), em que a autora tem por objetivo identificar as representações femininas nos quadrinhos estadunidenses nas décadas de 1940 e 1950, tendo como objeto de pesquisa os quadrinhos da personagem Miss Fury, criada pela cartunista June Tarpé Mills. Nogueira analisa também a trajetória da cartunista e de outras autoras, contribuindo para a produção de uma história das mulheres nos quadrinhos.

O personagem Capitão América, com sua indumentária visivelmente nacionalista, também vem suscitando o interesse de outros historiadores que se propuseram a trabalhar com as histórias em quadrinhos. Na dissertação O escudo da América: o discurso patriótico na revista Captain America Comics (1941-1954), a autora Priscilla Ferreira Cerencio (2011) se propõe a analisar os aspectos centrais do discurso patriótico presente na revista Captain America, abrangendo um período de publicação que vai de 1941 a 1954, primeiros anos de publicação ininterrupta do herói. É importante ressaltar que a autora traz em sua pesquisa 20

contribuições teóricas e metodológicas importantes para o trabalho dos historiadores com as histórias em quadrinhos, sendo fundamental para os que desejam se ―enveredar‖ pelo campo.

Shesmman Fernandes Barros de Melo (2012), em sua dissertação A história em quadrinhos enquanto representação política: Capitão América e Caveira Vermelha (1941/1999), faz uma análise das representações políticas e sociais contidas em seis décadas de publicação do personagem Capitão América, tendo como foco a relação do herói com o vilão Caveira Vermelha e como os dois, no decorrer das publicações, representam e reproduzem ideologias antagônicas entre si, que correspondem aos respectivos períodos em que as histórias são publicados. A perspectiva de analisar a representação ―heroica‖ atribuída ao Capitão América por diferentes autores, juntamente com a construção ―vilanesca‖ do Caveira, teve grande influência sobre o presente trabalho, que buscou fazer uma análise conjunta das representações inseridas através do herói e de seus vilões nas primeiras históricas produzidas por Joe Simon e Jack Kirby.

Tomando como ponto de análise um recorte mais recente de publicações do herói, Rodrigo Aparecido de Araujo Pedroso (2014), na dissertação Vestindo ainda mais a bandeira dos EUA: o Capitão América pós-atentados de 11 de setembro, analisa como os atentados do 11 de setembro foram retratados nas edições da revista Captain America escritas por John Ney Rieber e desenhadas por John Cassaday, publicadas entre junho e dezembro de 2002. De acordo com Pedroso (2014, p. 127), essas histórias trazem sentimentos vigentes na sociedade estadunidense após o atentado e a maneira como, na visão dos autores, a população deveria lidar com esses sentimentos.

Pesquisas historiográficas sobre o personagem Capitão América têm sido numerosas não apenas em dissertações e teses de pós graduação, mas também em artigos acadêmicos e trabalhos de conclusão de curso. Esses trabalhos são importantes para a análise desse personagem, marcado pela ligação com os EUA, e muitos deles foram importantes para o desenvolvimento desta dissertação. Esta pesquisa possui, entretanto, algumas particularidades como o recorte temporal, focado apenas nas histórias produzidas por Joe Simon e Jack Kirby, o que torna possível conhecer como a dupla criadora do personagem pensou originalmente sua criação, assim como a ligação do personagem com o país e a Segunda Guerra Mundial. O Capitão América foi reinterpretado por outros argumentistas e desenhistas ao longo de sua vida editorial, e as bases lançadas por Simon e Kirby deram o tom a ser seguido pelos que viriam depois, ainda que cada autor imprima sua particularidade no herói. O recorte temporal

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é compreendido entre dezembro de 1940 e novembro de 1941, período em que as dez edições são produzidas, e que, por não ser muito extenso, permitiu uma análise mais criteriosa do contexto histórico.

A dissertação está estruturada em três capítulos. No primeiro capítulo, Os EUA da América e a Segunda Guerra Mundial: isolacionismo, participação e as histórias em quadrinhos no esforço de guerra, contextualiza-se o envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial, compreendendo a posição supostamente isolacionista do país e participação indireta no conflito, até o processo de mudança nessa política para a entrada direta, de fato, das tropas estadunidenses na guerra. Para isso, faz-se importante compreender as razões que levaram a essa mudança de posicionamento, bem como o processo de convencimento da população em prol da entrada no conflito. É nesse aspecto que se faz a conexão com as histórias em quadrinhos, que após sua criação e popularização como meio de entretenimento no país, sofrem uma mudança de teor em seus enredos com a iminência do conflito, se tornando parte do esforço de guerra estadunidense. O capítulo é finalizado com um breve histórico das histórias em quadrinhos, com foco maior nas histórias protagonizadas por super- heróis, e como tais histórias são afetadas pelo contexto da Segunda Guerra Mundial.

No segundo capítulo, denominado A construção do Capitão América, o objetivo é compreender o processo de criação da personagem Capitão América, entendendo tal processo inserido no contexto de modificações de teor e enredo pelas quais as histórias em quadrinhos de super-heróis vinham passando em consequência do envolvimento estadunidense na Segunda Guerra Mundial. Qual foi a personalidade construída por Joe Simon e Jack Kirby para seu personagem? Quais representações permearam sua criação? Como os criadores pensaram a função do Capitão América no conflito da Segunda Guerra Mundial? O capítulo procura respostas para tais questões; faz também uma breve análise sobre o ajudante do herói, Bucky Barnes, que também contribui para o entendimento das opiniões da dupla de autores em relação ao conflito.

O terceiro e último capítulo, ―Os inimigos da democracia‖ nas histórias do Capitão América, tem o objetivo de analisar como são representados os inimigos de guerra estadunidenses nas histórias em quadrinhos do Capitão América, nelas transformados em ―vilões‖. Busca-se inicialmente compreender a função desse tipo de personagem nas histórias em quadrinhos, sobretudo nas de super-heróis, analisando a oposição e complementaridade entre vilão e herói, seguindo de uma análise mais detalhada dos vilões especificamente

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apresentados nas primeiras edições da revista Captain America. Quais foram as influências para a criação desses vilões? De que forma eles são representados, verbalmente e graficamente, por Simon e Kirby? Essas perguntas direcionam as reflexões no capítulo.

A presente dissertação apresenta influências metodológicas de alguns dos trabalhos anteriormente citados e agrega a eles, no sentido de reconhecer as histórias em quadrinhos como um produto cultural formador e transmissor de representações e ideologias, refletindo o contexto histórico em que foram produzidas. A dissertação pode oferecer contribuições também ao ensino de História no âmbito escolar, uma vez que as histórias em quadrinhos e seus produtos derivados, como as adaptações para o cinema, fazem parte da realidade de muitos alunos. Quanto mais pesquisas acadêmicas na área, maior será o reconhecimento das histórias em quadrinhos como uma ferramenta no processo de ensino-aprendizagem do ensino básico. Além disso, sob a ótica das histórias em quadrinhos, a pesquisa também apresenta um olhar sobre a Segunda Guerra Mundial, sobretudo sobre a participação estadunidense no conflito e os efeitos na vida cultural, social e política do país.

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CAPÍTULO 1

OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: ISOLACIONISMO, PARTICIPAÇÃO E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ESFORÇO DE GUERRA

1.1 “O arsenal da democracia”: o posicionamento inicial estadunidense diante do conflito

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito sem precedentes na história da humanidade, com perdas incalculáveis, sendo as mortes causadas estipuladas entre três ou quatro vezes o número da Primeira Guerra Mundial, conforme Eric Hobsbawm (1995, p. 50)6. Pode-se dizer também que é um dos marcos históricos mais reproduzidos pela cultura de massas7, representado em filmes, séries, documentários, literatura, jogos de videogame, histórias em quadrinhos, dentre outros meios. A ocorrência da guerra concomitante à presença da imprensa e da propaganda cada vez mais globalizadas contribuíram para esse processo.

De acordo com Martin Kitchen (2009, p. 34), o contexto que levou ao novo conflito de proporções mundiais era calcado no descrédito ao capitalismo baseado no liberalismo econômico, doutrina norteada pela livre iniciativa e concorrência como princípios básicos, em que a única intervenção econômica do Estado seria garantir a livre concorrência entre as empresas e assegurar o direito à propriedade privada (SANDRONI, 1999, p. 347). Tal doutrina era vista por alguns intelectuais como excessivamente permissiva e uma sustentação para atividades imperialistas.

O imperialismo, segundo Voltaire Schilling (1984, p. 13), é uma intensificação do colonialismo, iniciado sobretudo após a primeira Revolução Industrial8, onde os territórios

6 Segundo o United States Holocaust Memorial Museum, quase 10 milhões de soldados perderam a vida em campo de batalha durante a Primeira Guerra Mundial e mais de 20 milhões ficaram feridos. Apesar de imprecisão quanto a números exatos, estudiosos apontam que 13 milhões de não combatentes teriam morrido como resultado direto ou indireto das hostilidades. Disponível em . Acesso em: 27 fev. 2019, às 11h10min. 7 A partir da leitura de Morin (1997), considera-se cultura de massa aquela que é produzida de acordo com os padrões da fabricação industrial, sendo propagada por meios de distribuição massiva, destinados ao consumo de uma massa social composta de indivíduos compreendidos além das estruturas internas mais tradicionais da sociedade (classes, família, nação). A cultura de massas é geralmente vinculada ao cinema, televisão, rádio, história em quadrinhos, imprensa, dentre outras expressões culturais de alcance massivo e globalizado. 8 Conjunto de mudanças econômicas, tecnológicas e sociais ocorridas na Europa nos séculos XVIII e XVI, que resultaram na substituição do trabalho artesanal pelo assalariado, no uso de máquinas e surgimento do sistema fabril, difundindo o modo de produção capitalista. Ver: SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. São Paulo: Editora Best-Seller, 1999. 24

coloniais passam a ser vistos não só como fornecedores de matéria-prima, mas também como mercados consumidores, sendo necessário para isso o sufocamento da produção artesanal nativa, visando a imposição da produção industrial advinda das nações imperialistas. Como a doutrina econômica liberal limitava a atividade do Estado na economia, medidas protetivas aos mercados artesanais locais também eram limitadas. Além disso, a busca por novos mercados consumidores acirrou a disputa entre as metrópoles, sendo a ocorrência da Primeira Guerra Mundial uma consequência dessas disputas. Aumenta-se assim a aversão e a crítica ao liberalismo econômico e à ―tirania do capital‖.

É a partir desses fatores que se dá a oportunidade para o surgimento, em diversas regiões, de grupos políticos de caráter autoritário, incitando as massas com discursos nacionalistas e com teor revanchista, sobretudo no caso dos países que se viram derrotados após a Primeira Guerra Mundial. Diante das incertezas da modernidade e dos impasses do liberalismo burguês, esses grupos geravam líderes que Kitchen (2009, p. 26-27) denomina ―terribles simplificauters‖, pois procuravam responder aos complexos problemas econômicos, políticos e sociais do mundo pós-guerra com respostas simples, atraentes as massas e que evocassem a fé dessas em seus pretensos novos representantes.

A Alemanha se mostrou ―terra fértil‖ para o crescimento de tais grupos portadores de doutrinas radicais e autoritárias. O país acabou sendo considerado o grande culpado pela Primeira Guerra Mundial e suas consequências. O Tratado de Versalhes9, assinado em 1919, estipulou à Alemanha uma ―paz punitiva‖, retirando parte de seu território, reduzindo seu poderio militar e determinando o pagamento de indenizações pelos custos da guerra, o que mergulharia o país em diversos empréstimos que acabaram por enfraquecer economicamente ainda mais a nação. O tratado seria visto no país, quase em sua totalidade, como um ultraje, um Diktat (imposição). Como citado por Hobsbawm (1995, p. 43), tanto os partidos de direita quanto os de esquerda condenavam o tratado e criticavam os políticos que constituíam a República de Weimar10 por terem aceitado a assinatura. Esse fato acabou por enfraquecer a imagem da nova configuração política alemã, desacreditando a nova república politicamente e popularmente, proporcionando a oportunidade de ascensão a grupos rivais.

9 Tratado de Paz assinado pelas potências europeias participantes da Primeira Guerra Mundial, entre elas a Alemanha, em Paris, no dia 28 de junho de 1919, encerrando oficialmente a Primeira Guerra Mundial. Foi um desdobramento do armistício de novembro de 1918. Mais informações ver SONDAHUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Contexto, 2013. 10 República que se estabelece na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. 25

É nesse contexto que se populariza o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), conhecido pela sigla NSDAP, o Partido Nazista, liderado por Adolf Hitler. Hitler combinava em seus discursos a obsessão pelos conceitos de raça e espaço, colocando o interesse da ―comunidade racial‖ alemã como prioridade de seu plano de governo. Essa comunidade racial deveria se unir e se sobrepor às demais, entre as quais os judeus, vistos como estranhos e forasteiros, sem nação, em um contexto mundial cada vez mais nacionalista, além de representarem, aos olhos dos nacionalistas alemães, tudo que era considerado como negativo à Alemanha, como o liberalismo e o comunismo (KITCHEN, 2009, p. 52).

A busca pelo suposto ―espaço vital‖ foi um dos principais fatores que impulsionou a Alemanha de Hitler para além das fronteiras nacionais. Kitchen explica que teóricos como Paul de Lagarde defendiam que a Alemanha precisava se expandir, encontrar mais espaço territorial para resolver a questão do excedente populacional (2009, p. 43). Hitler era um adepto dessa concepção, defendendo que os judeus estavam no caminho da luta darwiniana pelo sonhado ―espaço vital‖ e por isso deveriam ser exterminados (2009, p. 52-53). Para Luiz Alberto Moniz Bandeira (2009, p. 100), o espaço vital objetivado por Hitler seria obtido à custa da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com a finalidade de garantir a autossuficiência alemã na agricultura.

Hitler ascendeu ao poder incialmente com a nomeação a chanceler e os desdobramentos do incêndio ao Reichstag em 193311, que deram amplos poderes ao líder nazista. Com a morte do então presidente da Alemanha Paul Von Hindenburg em 2 de agosto de 1934, Hitler reuniu em torno de si os cargos de chanceler e presidente, sendo oficialmente proclamado Führer (líder). A partir disso, deu-se reinício a uma militarização alemã. Hitler retirou o país da Liga das Nações12 e deu abertura ao processo de rearmamento da Alemanha, introduzindo o serviço militar obrigatório, aumentando o poderio militar do país (MONIZ BANDEIRA, 2009, p. 100) e tornando a busca pelo espaço vital mais palpável. A anexação da Áustria em 1938 sinalizou esse objetivo, e quando a Alemanha invadiu a Tchecoslováquia

11 O Reichstag era onde funcionava o parlamento alemão. O incêndio ocorreu na noite de 27 de fevereiro de 1933 e foi causado por um holandês chamado Marinus van der Lubbe. Listado como comunista, seu crime serviu de pretexto para perseguição dos nazistas aos partidos de esquerda alemães, que tiveram muitos de seus integrantes presos e atirados em campos de concentração. Além disso, devido ao incidente, foi assinada uma emenda constitucional conhecida como Ato Autorizador, que extinguia a administração parlamentar e deixava o Poder Legislativo exclusivamente nas mãos do governo. 12 Organização internacional formada em 1919, após a Primeira Guerra, encabeçada pelas potências vencedoras do conflito, tinha como um de seus principais objetivos a manutenção e preservação da paz. 26

e a Polônia em 1939 o conflito foi deflagrado: o mundo estava às portas, uma vez mais, de uma guerra mundial.

É importante frisar, no entanto, que o início da Segunda Guerra Mundial não significou a participação direta imediata dos EUA. O país historicamente adotava uma política isolacionista, a qual Jean-Pierre Fichou (1990, p. 122-123) define como uma ―grande tendência fundamental‖ estadunidense, proveniente das lembranças coletivas do período colonial, sendo ainda uma ferramenta para a proteção da indústria nacional contra importações, assumindo assim uma função protecionista. A Doutrina Monroe seria um exemplo desse caráter isolacionista. Tal Doutrina foi uma política estabelecida pelo presidente estadunidense James Monroe em 1823 e pregava a não intervenção do país em questões europeias em troca da não intervenção europeia na América. Os EUA se colocariam ainda como juiz e guardião das questões envolvendo a América, tendo como lema a frase ―América para os americanos‖.

É, portanto, uma doutrina antes de tudo defensiva que prega que as potências europeias não poderiam mais criar novas colônias em território americano e que elas não deveriam jamais tentar implantar lá o seu sistema econômico e político. A livre circulação deverá ser garantida nos oceanos (FICHOU, 1990, p. 126).

Entretanto, esse caráter isolacionista é questionável. De acordo com George Charles Grosscup III (1972, p. 20), o isolacionismo ocorre apenas quando uma nação corta todas as relações significativas ou compromissos com as demais nações, recuando para um estado de reclusão e autossuficiência. Existem diferentes dimensões de isolamento, podendo um país, por exemplo, isolar-se diplomaticamente em relação a outro, não reconhecendo independência ou soberania de determinado governo ou se isolar economicamente, rompendo relações comerciais. No entanto, essas diferentes formas de isolamento não constituem por si só a política isolacionista, são parte de um todo, sendo o isolacionismo um isolamento geral. A partir disso, pode-se dizer que o divulgado isolacionismo estadunidense se aproximaria mais de um isolamento político, pois, apesar de se evitar o envolvimento em conflitos estrangeiros, acordos de cunho econômico persistiam. Mesmo esse isolamento político pode ser problematizado, como demonstra a intervenção militar dos EUA na Independência Cubana em 1898, que os colocou em oposição à Espanha; o processo foi seguido pela anexação do Havaí, Porto Rico, Guam e Filipinas. Ressalta-se ainda a posterior participação na Primeira Guerra Mundial.

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Apesar da participação na Primeira Guerra Mundial, as supostas tendências isolacionistas estadunidenses se agravaram após a Crise de 192913. Na década de 1930, populariza-se no país uma tese de que as guerras seriam causadas por interesses econômicos, de modo que foi instituída pelo Senado, em abril de 1934, uma comissão especial de investigação na indústria de munições para averiguar sua influência na política internacional e na geração de conflitos. A comissão foi liderada pelo Senador isolacionista Gerald P. Nye, e produziu um relatório que indicava os banqueiros e os homens de negócios como fatores de influência para a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial (LINK; CATTON, 1965, p. 779).

Como apontando por Victor Gordon Kiernan (2009, p. 282), quando assume a presidência em 1933, Franklin Delano Roosevelt se mostrou mais interessado nos problemas internos urgentes do país do que na política externa. Um exemplo disso foi a neutralidade estadunidense na Guerra Civil Espanhola de 1936-3914. Nesse contexto destaca-se um discurso proferido por Roosevelt em outubro de 1937, denominado Quarantine Speech15, em que o presidente estadunidense faz uma condenação à guerra. Roosevelt ressalta o contraste entre a paz em que se encontravam os EUA e a situação do restante do mundo, onde a ―santidade dos tratados‖ vinha sendo rompida. Uma dessas quebras de tratado citada no discurso foi do Pacto Kellog-Briand, de 1928, o qual renunciava a guerra como política nacional. Apesar do alto número de países que aderiram ao Pacto, logo alguns signatários o romperam; o Japão, com a invasão da Manchúria em 1931, e a Itália liderada por Benito Mussolini, que invadiu a Etiópia em 1935, foram dois deles. Diante disso, Roosevelt ressaltou que os EUA não estavam livres de sofrerem ataques e que as demais nações pacíficas deveriam tomar medidas para defender suas leis e seus princípios. Para ele, a guerra era um ―contágio‖ e as nações desordeiras eram uma minoria que deveria ser posta em quarentena, deixando os portadores do ―vírus da guerra‖ isolados; isso em um mundo, como ressaltado no discurso, em que as nações se encontravam interligadas economicamente. Depreende-se assim que a quarentena sufocaria economicamente os países beligerantes a ponto de fazê-los desistir de seus objetivos.

13 Processo também chamado de ―Grande Depressão‖, resultante da queda da Bolsa de Valores nos EUA em um terço, no dia 24 de outubro de 1929, conhecido como ―Quinta Negra‖. De acordo com Purdy (2016, p. 205) muitos especuladores perderam de uma vez só tudo o que haviam investido. 14 Apesar do governo dos EUA se abster de participar do conflito na Espanha, Buades (2013, p.96) aponta que as empresas estadunidenses Texaco, Ford e General Motors exportaram material de guerra para as forças rebeldes lideradas pelo General Francisco Franco. 15 Discurso disponível em . Acesso em: 02 abr. 2019, às 16h05min. 28

Por ressaltar a negação da guerra e condenar investimentos em armamentos o discurso foi interpretado por alguns como isolacionista, entretanto a atitude de Roosevelt de cobrar dos países ―amantes da paz‖ que, entre outras medidas, propusessem a quarentena dos rompedores de acordos, demonstra uma intervenção dos EUA nos conflitos além do continente americano, indicando que a tradicional tendência isolacionista do país talvez estivesse se exaurindo.

Com o início e a intensificação das tensões na Europa que gerariam a Segunda Guerra Mundial, alguns setores do governo começaram a colocar em xeque esse isolacionismo, sobretudo quando a Alemanha firmou parceria com o Japão, entrave a interesses econômicos estadunidenses no Pacífico. Junto ainda à Alemanha e Japão, a Itália constituiria a aliança entre esses três países, conhecida como Eixo16.

De acordo com Kiernan (2009, p. 287), muitos isolacionistas estadunidenses, sobretudo os ligados às grandes corporações, argumentavam que o preço da participação do país na guerra seria a desordem e o socialismo, e que o embate entre nações capitalistas destruiria o próprio capitalismo. Entretanto, o crescimento das ambições japonesas no Pacífico atraía cada vez mais a atenção dos EUA para a guerra. Na década de 1930, o Japão se tornava progressivamente mais industrializado e almejava se tornar uma potência hegemônica no continente asiático. Conforme explica Moniz Bandeira (2009, p. 114), o projeto japonês era ter no continente uma ―esfera de coprosperidade‖, aos moldes do que os EUA exerciam na América através da Doutrina Monroe. O Japão visava ampliar seus mercados na região, bem como a oferta de mão de obra barata. Além disso, procurava o máximo controle sobre matérias-primas encontradas na região, sobretudo petróleo, estanho e borracha. Tais matérias- primas eram abundantes nas colônias francesas, holandesas e inglesas no sudeste do continente, para onde, após invadir a China no fim dos anos 1930, o Japão dirigiu sua expansão.

Os EUA, que na região controlavam as Filipinas, além de várias ilhas no oceano Pacífico, também objetivavam com sua presença a obtenção de matérias-primas, mão de obra e mercados consumidores, e viam a expansão japonesa como uma séria ameaça aos seus

16 Aliança formada por Alemanha, Itália e Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1º de novembro de 1936, Alemanha e Itália assinaram o primeiro pacto de cooperação, o Eixo Roma-Berlim. Em 26 de novembro de 1936, Alemanha e Japão assinaram o Pacto Anticomitern, uma reação contra a União Soviética e a Internacional Comunista. A Itália se uniria ao pacto em 1937. Em 1939 seria firmado entre Alemanha e Itália o Pacto do Aço, que previa colaboração militar entre os dois países. Em 27 de novembro de 1940, seria enfim assinado por Alemanha, Itália e Japão o Pacto Tripartite, conhecido como Eixo, que integrava os objetivos militares dos três países durante a guerra.

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interesses. Kiernan (2009, p. 289) destaca que por muito tempo nos círculos econômicos estadunidenses pensou-se que o Japão era a única barreira eficaz contra o avanço do comunismo na região, temor que começara a ser levantando após a Revolução Russa17 em 1917. Todavia ―uma perspectiva cada vez mais discernível da China derrotada e de seus recursos monopolizados por um Japão militarista era repulsiva‖ (KIERNAN, 2009, p. 289).

A guerra, como aponta Kiernan (2009, p. 287), poderia também ser uma forma de afastar o foco nos problemas internos ainda não resolvidos provenientes da Crise de 1929, visto que os perigos externos eram mais visíveis e palpáveis, mais fáceis de serem avaliados e combatidos. Sean Purdy (2016, p. 215) destaca que as políticas do New Deal18 empreendidas por Roosevelt para combater os efeitos de 1929 proporcionaram estabilidade social no país, mas não a plena recuperação econômica.

Além dos entraves com o Japão no Pacífico, existia um temor quanto à força militar alemã. Tota (2009) aponta que muitos nos EUA sustentavam a crença de que a Inglaterra não aguentaria muito tempo a guerra contra a máquina bélica alemã e, de fato, os conflitos na Europa demonstravam que os ingleses se encontravam cada vez mais enfraquecidos diante dos avanços alemães no continente. Uma vitória da Alemanha contra a Inglaterra era vista como uma ameaça contra os interesses estadunidenses e ao ―modo de vida americano‖, uma vez que a Alemanha era considerada por muitos políticos dos EUA como a principal concorrente econômica do país.

Perante esse contexto, o presidente Roosevelt enviou um telegrama a Hitler, datado de 14 de abril de 193919. No telegrama, Roosevelt expressava a preocupação dos países do ―Hemisfério Ocidental‖ com a possível ocorrência de um novo conflito internacional. Pedia ainda 10 anos de garantias de não-agressão a 31 países, que tiveram seus nomes mencionados. A resposta, como aponta Moniz Bandeira (2009, p. 104), viria publicamente duas semanas depois com um pronunciamento de Hitler no Reichstag, onde disse que 14 guerras foram travadas de 1919 a 1938 sem participação da Alemanha, e que no mesmo período 26 intervenções e sanções foram empreendidas, também sem o envolvimento da Alemanha - enquanto desde 1918 os EUA haviam executado seis intervenções militares. Hitler ainda fez

17 Conflitos ocorridos na Rússia em 1917 que resultaram na derrubada da monarquia que comandava o Império Russo e criação da URSS, o primeiro país socialista do mundo. 18 Pacote de reformas criadas por Franklin Delano Roosevelt em 1933 e 1934 com o objetivo de promover a recuperação industrial e agrícola dos EUA, além de regular o sistema financeiro e providenciar assistência social e obras públicas, visando amenizar os efeitos da Crise de 1929. 19 Telegrama disponível em . Acesso em: 01 mar. 2019, às 14h02min. 30

referência a Doutrina Monroe, expondo que objetivava sustentar uma doutrina similar na Europa. Apesar de o telegrama não ter surtido efeito apaziguador, seu envio simbolizava uma quebra da política isolacionista, principalmente porque Roosevelt deixa claro no documento o seu caráter intermediador nas relações entre a Alemanha e os demais países envolvidos no possível conflito.

Com a invasão sem muitas dificuldades da França pela Alemanha em 1940, os políticos estadunidenses se alarmaram ainda mais com a situação do conflito e uma boa parte desses via como necessário o envolvimento do país (LINK; CATTON, 1965, p. 807-808). O país começou sua participação por meio da exportação de material bélico para os países Aliados20, sobretudo para a Inglaterra. Segundo Moniz Bandeira (2009, p.111), de outubro de 1939 a abril de 1940 os EUA despacharam mais de US$ 50 milhões para a Grã-Bretanha e França em armamentos. Em 3 de setembro de 1940, Roosevelt enviou a Inglaterra cerca de 50 destróieres21. Em troca, foram cedidos o uso das bases inglesas em Newfoundland, Guiana e Caribe. Tal fato foi visto pela Alemanha como um ato de guerra.

Em um dos seus conhecidos pronunciamentos de rádio, os Fireside Chat, Roosevelt disse que o auxílio às nações beligerantes era necessário, pois os EUA correriam menos riscos de entrar na guerra se ajudassem os outros países a se defenderem dos ataques do Eixo. Durante o pronunciamento usou a célebre frase em que dizia que o país seria o ―arsenal da democracia‖22. Roosevelt colocava os EUA como guardiões da democracia, sendo sua função a defesa através do fornecimento de armamentos às nações oposicionistas ao Eixo. Diante desse contexto, é importante fazer uma breve consideração sobre qual democracia é referenciada por Roosevelt.

Refletindo sobre os diversos sentidos contidos no termo democracia desde sua origem há 2500 anos na Grécia, Sabrina Costa Nicolazzi aponta que a ―democracia se transformou em um veículo de expansão e consolidação de uma ideologia que vai além dela mesma‖ (NICOLAZZI, 2014, p. 21). Como ressaltado por Fichou (1990, p. 20), a democracia estadunidense se baseava em um igualitarismo calcado no lado material da vida, ou seja, na igualdade de capacidade e oportunidade para se adquirir bens e no sucesso individual baseado pelo grau de opulência. No já citado ―Discurso da Quarentena‖ (Quarantine Speech),

20 Países que se opuseram ao Eixo. 21 Navio de guerra, também conhecido como contratorpedeiro, usado principalmente na escolta de embarcações menores. 22 Discurso disponível em . Acesso em: 01 mar. 2019, às 15h00min. 31

Roosevelt destacou que a ―maioria esmagadora‖ dos países desejava viver em paz, e relaciona essa paz à liberdade econômica e à remoção das barreiras contra o comércio. A democracia também estaria ligada a uma economia liberal aos moldes estadunidenses e pode-se dizer que a promoção e defesa da democracia significavam a promoção e defesa dos interesses estadunidenses, de suas concepções sociais e econômicas, ligadas ao liberalismo econômico, bem como a tentativa de legitimação do país como uma liderança mundial.

Apesar do discurso pró-democracia, é importante frisar, como feito por Howard Zinn (2005, p. 306), qual era o tratamento dado aos EUA internamente às suas próprias minorias sociais e raciais. A população negra, como exemplo mais explícito, encontrava-se segregada, sem poder conviver nos mesmos espaços públicos com brancos, ocasionalmente vítimas de linchamentos. Como sublinhado por Purdy (2016, p. 2008), a população afro-americana seria a mais afetada pelo desemprego durante a Grande Depressão, uma vez que brancos desempregados começaram a preencher vagas de trabalhos antes reservadas aos negros, como vagas de faxineiros e porteiros. A democracia defendida pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, apesar dos discursos, não se referia ao social, principalmente dentro de suas fronteiras.

Em março de 1941, o ―arsenal‖ de Roosevelt aumentaria ainda mais com a aprovação do Lend-Lease Act, a Lei de Empréstimos e Arrendamento que, basicamente dava a Roosevelt autoridade de vender, arrendar, trocar ou emprestar qualquer forma de artigos de defesa a qualquer país cuja proteção o presidente julgasse de vital importância. Os EUA passaram então a fornecer um montante ainda maior de munição, tanques, aviões e armas à Inglaterra. Moniz Bandeira (2009, p. 113) destaca que para o financiamento do programa foi reservado um montante de US$ 7 bilhões. Assim como já havia acontecido na Primeira Guerra, os EUA tornavam o belicismo um lucrativo e viável artigo de exportação. A busca pelo lucro e expansão da hegemonia financeira do dólar não se findavam nos tempos de guerra, mas, ao contrário, se tornavam ainda mais intensas.

Apesar do envolvimento inicial com o conflito ser baseado no envio de recursos de guerra, aos poucos Roosevelt preparava a nação para a participação direta na guerra, com o envio de tropas ao front. De acordo com Moniz Bandeira (2009, p. 112), em setembro de 1940, Roosevelt enviou ao Congresso um projeto pedindo autorização para convocar os reservistas para o serviço militar; apresentou também, em janeiro de 1941, uma proposta de orçamento no valor de US$ 17.5 bilhões, dos quais US$ 10,8 bilhões seriam destinados à

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defesa. Roosevelt não via segurança na resistência inglesa e considerava a entrada dos EUA na guerra vital para a derrota da Alemanha.

Foram também tomadas medidas contra o Japão que sinalizavam para um conflito. Em 1940, Roosevelt proibiu a exportação de sucata de ferro, petróleo e seus derivados para os japoneses. Como ressalta Moniz Bandeira, além de cortar o fornecimento de petróleo, em julho de 1941, Roosevelt congelou as contas japonesas em bancos estadunidenses visando debilitar ainda mais a economia dos rivais asiáticos.

Tais medidas visaram a estrangular economicamente o Japão, que, impossibilitado de importar matérias-primas fundamentais para a sua indústria, sobretudo petróleo, só tinha como alternativas ou retirar tropas da China e da Indochina ou buscar fontes de matérias-primas em outras partes, através da invasão, o que provocaria a guerra contra os EUA (MONIZ BANDEIRA, 2009, p. 115).

Entretanto boa parte da população era contrária à entrada do país na guerra. As memórias da Primeira Guerra ainda estavam bem vivas para a população. Nesse conflito, conforme citado por Hobsbawm (1995), 116 mil estadunidenses perderam suas vidas no front no período de apenas um ano e meio em que o país participou de forma direta na guerra. A tendência isolacionista se enraizou ainda mais na população após essa guerra e, durante a campanha eleitoral de 1940, Roosevelt prometera às mães estadunidenses que não enviaria seus filhos para lutarem em guerras estrangeiras (KIERNAN, 2009, p. 288). Uma pesquisa promovida pelo Instituto Gallup, em 1937, mostrou que dois terços da população pensavam que a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial havia sido um erro (LINK; CATTON, 1965, p. 780). Com a opinião pública contrariando as intenções de Roosevelt, fazia-se necessário tomar medidas que tornasse essa camada da população favorável à ida dos EUA à Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, foi importante o uso da propaganda na criação de uma opinião popular alinhada às intenções dos governantes estadunidenses pró-conflito.

1.2 A caminho do conflito: a campanha de convencimento estadunidense em prol da guerra

Desde a Primeira Guerra Mundial, aproveitando a popularidade dos meios de comunicação e do crescimento da sociedade de massas, um elemento tornou-se uma arma tão importante nas guerras quanto metralhadoras, canhões e granadas: a propaganda.

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Pode-se dizer, a partir da leitura de Rogério do Espírito Santo Leão (2015, p.12), que a propaganda consiste num processo de disseminação de informações com o objetivo de influenciar opiniões, atitudes, sentimentos e demais subjetividades em prol da aquisição de um produto ou serviço demonstrado como superior e necessário, ou ainda em favor da naturalização e aceitação de uma determinada ideologia. A propaganda pode ser disseminada por diversos meios, como cartazes, anúncios de rádio e televisão, música, jornais, dentre outros.

No caso da propaganda de guerra, há um objetivo claro de infundir ideias que tornem o conflito justificável e aceitável, além de definir padrões de comportamento a serem seguidos pela população em tempos de batalhas. Entre os vários temas retratados nas propagandas de guerra, destacavam-se os pedidos de doações, racionamento de recursos necessários para o sustento e vitória das tropas, bem como as propagandas que buscavam recrutar soldados e levar a população que não estava diretamente envolvida com o conflito, como as mulheres, a participar de organizações de retaguarda, como as indústrias internas armamentistas e alimentícias, por exemplo, visando torná-los participantes do esforço de guerra. Tais aspectos podem ser evidenciados na imagem a seguir.

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Imagem 1 - ―Our boys need sox, knit your bit‖

Fonte: Boston Athenaeum Digital Collections23

A Imagem 1 é um pôster produzido durante a Primeira Guerra Mundial, e demonstra a importância dos anúncios publicitários naquele conflito. Veiculado pela Cruz Vermelha24, a sua frase é apelativa e direta: ―Nossos garotos precisam de meias. Tricote a sua malha‖. Quando as tropas estadunidenses começaram a ser enviadas para o front na Europa, a American Red Cross enviou ao país um pedido urgente de meias, suéteres e cachecóis. O anúncio presente no pôster era uma forma não só de suprir as necessidades dos soldados, mas também de incluir as mulheres no esforço de guerra, através de sua participação na confecção de tais peças de roupas. É interessante notar que na imagem, os novelos de lã estão à frente do símbolo da Cruz Vermelha, representando a função de ―tricotar‖ como algo tão responsável por salvar vidas quanto as demais ações promovidas pela instituição.

Outro elemento importante nas propagandas era a desqualificação do inimigo, gerando uma imagem negativa perante o olhar da população. A propaganda busca, entre outros

23 Disponível em . Acesso em: 8 mar. 2019, às 13h18min. 24 Movimento internacional humanitário, criado pelo suíço Henry Dunant no ano de 1863, tendo como objetivo ―prevenir e aliviar o sofrimento humano durante guerras e emergências como epidemias, inundações e terremotos‖, de acordo com o site da Cruz Vermelha Brasileira. Disponível em . Acesso em: 01 abr. 2019, às 15h49min. 35

aspectos, criar um consenso na população quanto ao apoio à guerra, por meio de símbolos patrióticos, slogans e demais componentes comuns à identidade nacional de um país. Leão destaca, inclusive, a forma como, em tempos de conflito, a propaganda é um instrumento que aponta quais são os comportamentos que devem ser adotados pela sociedade.

A propaganda foi, e é isto que pretende-se que se entenda, uma ferramenta da qual se fez uso – e ainda se faz – para estabelecer parâmetros comportamentais a serem adotados e cumpridos, reforçar o status das lideranças vigentes atribuindo-lhes modelos de conduta que deveriam ser supostamente seguidos pela sociedade, além, é claro, de informar sobre o andamento dos acontecimentos. [...] Suas imagens e slogans, apelando para uma grande variedade de temas culturais e nacionalistas, serviram para atrair a adesão pública à campanha de guerra. (LEÃO, 2015, p. 14)

É nesse sentido que se sobressai a propaganda de guerra estadunidense. No país, como destacado por Leão (2015, p. 34), tal modalidade de propaganda foi utilizada com mais frequência e volume principalmente após a criação do Office of War Information (OWI), órgão nascido em 1942, quando os EUA já estavam envolvidos diretamente na guerra. É esse órgão que irá consolidar e desenvolver os serviços de informação governamentais e a propaganda de guerra estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, no período anterior à entrada direta do país na guerra, a propaganda vinha sendo usada principalmente com o intuito de convencer a população a abandonar a política isolacionista e apoiar a ida do país e, consequentemente, de seus filhos a mais um conflito de dimensões mundiais. A propaganda podia ser veiculada em suportes mais expostos e objetivos, como nos pôsteres. Os pôsteres foram um dos principais meios da divulgação das propagandas de guerra, devido aos baixos preços de confecção e o forte apelo visual, além da facilidade de circulação (LEÃO, 2015, p. 36). Eram colocados nas paredes de escolas, repartições públicas, teatros e demais localidades onde pudessem ser visualizados por um grande número de pessoas.

O apelo à aprovação da entrada na guerra poderia estar presente também em filmes, livros e discursos. Nesse contexto, os anúncios via rádio, um dos principais meios de comunicação do período nos EUA, ganhavam relevância. A rádio foi um meio aproveitado inclusive pelo presidente Franklin Delano Roosevelt. Durante seu período como mandatário da Casa Branca, realizou vários discursos através da rádio, que ficaram conhecidos como Fireside Chats (o nome pode ser traduzido como ―Conversas ao pé do fogo‖). Os Fireside

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Chats começaram durante o combate à Grande Depressão, mas continuaram durante os demais mandatos de Roosevelt. De acordo com Tota (2009), o programa se mostrou uma estratégia publicitária bem-sucedida, pois colocava o presidente em contato direto com a população estadunidense e dava-lhe a impressão de que não estaria sozinha em tempos de crise. Os anúncios radiofônicos de Roosevelt continuaram a ser usados no período da Segunda Guerra Mundial e se tornaram uma importante ferramenta nos esforços de convencimento da população a aderir à causa de guerra.

Em um dos Fireside Chats, datado de 26 de maio de 194025, Roosevelt deixou claro à população estadunidense a intenção de levar o país ao front. O discurso foi proferido apenas alguns dias após a França ter sido invadida pela Alemanha. Ante a isso, Roosevelt usou de certo sentimentalismo, dizendo que se pronunciava em favor das mulheres, crianças e idosos desses países necessitados de ajuda, vinda ―from us, across the sea‖ (de nós, do outro lado do mar‖). O presidente usou também as invasões para demonstrar que os EUA não estavam livres de sofrerem efeitos parecidos, apesar da crença no isolacionismo do continente americano em relação ao resto do mundo. Ressaltou ainda o crescimento nos investimentos militares do país, deixando explícito que os EUA estavam preparados para uma guerra e, de certa forma, esperando por ela.

Um dos principais pontos do discurso foi o apelo à questão da segurança nacional. Apontada por Tota (2009) como uma ―obsessão americana‖. A questão da segurança nacional, o temor pela invasão de seu território, acabou definindo-se como um dos fatores formadores da identidade nacional estadunidense. De certa maneira, esse temor legitimava o isolacionismo, mas, de forma contraditória, também foi usado constantemente em tempos de guerra para justificar a participação e intervenção dos EUA em conflitos. A ameaça à segurança nacional, fosse real ou não, trabalhava também em favor do sentimento de união, revelando-se, assim, um fator favorável na criação de apoio populacional em torno de objetivos concernentes ao governo.

Roosevelt indicava que a ameaça à segurança nacional estadunidense não era apenas ligada a questão de armamentos militares, mas que novas táticas de ataque estavam sendo utilizadas pelos ―inimigos‖, citando como exemplo os quintas-colunas26, que seriam espiões e

25 Discurso disponível em . Acesso em: 8 mar. 2019, às 14h57min. 26 A expressão ―quinta-coluna‖ teria tido origem durante a Guerra Civil Espanhola, com o general Emilio Mola Vidal que, ao marchar em direção a Madri com quatro de suas colunas expedicionárias, teria dito que uma 37

sabotadores trabalhando dentro do país, de forma a favorecer uma possível invasão alemã, bem como desmobilizando as forças estadunidenses por meio da geração de boatos e sabotagem. Para o presidente estadunidense, conforme seu discurso de 26 de maio de 1940, seriam esses os ―sabotadores‖ responsáveis por disseminar boatos que faziam com que as políticas governamentais, como por exemplo, os investimentos militares, passassem a ser vistos com desconfiança e ceticismo. Isso apresentava para Roosevelt e seus correligionários favoráveis à participação estadunidense na guerra uma oportunidade de desqualificar a oposição antiguerra. Segundo o presidente, não se deveria permitir que essas forças se espalhassem no ―Novo Mundo‖ como se espalharam no ―Velho‖. Todo homem e toda mulher deveria ser uma peça na proteção à segurança nacional, combatendo esses espiões e seus rumores. O temor da presença dos quintas-colunas era um dos alvos da propaganda de guerra estadunidense, como demonstra a imagem a seguir.

Imagem 2 - ―Pare o quinta-coluna!‖

Fonte: National Archives Catalog27

O pôster acima, Imagem 2, veiculado pelo OWI, ou seja, posteriormente ao discurso de Roosevelt e à entrada direta dos EUA na guerra, demonstra bem a imagem que se construiu

quinta-coluna, formada por militares madrilenhos, o apoiava. A expressão também teria sido utilizada pelo general Queipo de Llano, quando o líder fascista do golpe contra a República, Francisco Franco, se preparava para marchar sobre Madri com quatro colunas. Llano teria dito que: "A quinta-coluna está esperando para saudar-nos dentro da cidade". Disponível em . Acesso em: 19 jul., 2019, às 17h31min 27 Disponível em < https://catalog.archives.gov/id/513873> Acesso em: 8 mar. 2019, às 16h25min. 38

de um ―quinta-coluna‖, sendo que a manchete do anúncio não deixa dúvida sobre a identidade do personagem. O indivíduo da imagem é representado aparentemente com roupas militares, roupas essas que lembram as indumentárias nazistas, inclusive com utilização de uma braçadeira, deixando claro sua função militar e a qual exército pertence. Na sua roupa estão escritas as palavras ―bigotry‖ (intolerância), ―foreign propaganda‖ (propaganda estrangeira) e ―sabotage‖ (sabotagem), sendo visivelmente características atribuídas ao indivíduo que as ―veste‖. Ao mesmo tempo, o soldado tenta derrubar uma coluna, onde se encontra escrita a palavra ―justice‖ (justiça). Ao lado dela há outras três colunas, representando a liberdade, igualdade e unidade. Esses quatro pilares seriam o sustentáculo dos EUA, representados como valores supostamente inerentes ao país e, nesse contexto, o quinta-coluna, um inimigo estrangeiro, era visto como uma ameaça. Alguém deveria parar o quinta-coluna. Para se combater os inimigos supostamente infiltrados internamente no país, mais do que um esforço empreendido por meios militares, contava-se com o apoio e o engajamento da população, elementos também ressaltados pelas propagandas do período, tal como mostra o cartaz a seguir.

Imagem 3 - ―Silêncio significa segurança‖

Fonte: National Archives Catalog28

28 Disponível em < https://catalog.archives.gov/id/515987> Acesso em: 08 mar. 2019, às 16h54min. 39

A Imagem 3, também é um pôster veiculado pelo OWI e, apesar de não mostrar diretamente atos dos supostos espiões e sabotadores estrangeiros, faz referências a eles, ressaltando o papel da população ao dizer que ―Silence means security‖ (Silêncio significa segurança). Ou seja, não se comunicar com os indivíduos suspeitos, possíveis espiões ―quinta- colunistas‖ e não reproduzir seus boatos era visto como um esforço de guerra a ser empreendido pela população. Mais do que uma arma e os punhos, o silêncio seria uma arma fundamental para combater os sabotadores, não espalhando suas ideias. Sobre a participação da população é interessante reparar que a mulher da imagem, sinalizando silêncio, está vestida com uniforme militar, dando a entender que o seu silêncio a torna uma combatente, tendo uma colaboração tão importante quanto a colaboração dos soldados nos campos de batalha. A diferença em relação aos demais soldados, além da ―arma‖ utilizada para combater os inimigos, era o espaço geográfico em que se dava o embate: o front das mulheres e demais civis que não se encaixavam nos parâmetros necessários para ingresso nas Forças Armadas tradicionais não eram as trincheiras, os campos minados, as praias europeias e bases no pacífico, e sim sua vizinhança, sua escola, seu trabalho.

A representação de todos os setores da sociedade como peças importantes na guerra é uma característica das chamadas ―guerras totais‖. De acordo com Luiz de Alencar Araripe (2006, p. 374), esse tipo de conflito ocorre quando todos os recursos do país, sejam eles humanos ou materiais, são utilizados a favor da nação no combate e no sustento de suas tropas. Tota (2006, p. 383) aponta que em uma guerra total qualquer indivíduo que se encontra do lado ―inimigo‖ é considerado não apenas uma pessoa, mas um combatente, mesmo que não esteja diretamente envolvido com a guerra. André Martin (2006, p. 259) explana ainda que nesse tipo de guerra não há a possibilidade de armistício e só a rendição total do inimigo é capaz de encerrar a peleja. A Primeira Guerra Mundial havia inaugurado a era das guerras totais e com a Segunda Guerra Mundial com abrangência e danos ainda maiores, o conceito seria ampliado. Eric Hobsbawm discorre sobre as particularidades da guerra moderna.

Temos como certo que a guerra moderna envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda a economia para sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis; produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países nela envolvidos (HOBSBAWM, 1995, p. 51).

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Em um país dividido, onde não havia o apoio necessário à entrada dos EUA na guerra, a ―campanha de convencimento‖ empreendida por Roosevelt e por diversos meios de comunicação teria algum efeito sobre a população, entretanto, era necessário algo maior para reverter a comoção popular em massa em favor da participação no conflito. E o ponto de virada da opinião pública do país viria no fim de 1941. As tensões entre EUA e Japão no Pacífico chegariam ao seu estopim após uma série de impedimentos econômicos colocados pelos EUA aos japoneses. Houve uma última tentativa de acordo proposta pelo general japonês Hideki Tojo em outubro de 1941, mas foi recusada por Roosevelt, que deu ao Japão um ultimato: deveriam retirar suas tropas da China e da Indochina e desfazer a aliança com Alemanha e Itália (MONIZ BANDEIRA, 2009, p. 118). Roosevelt sabia que o ultimato seria recusado, o que levaria o Japão a reagir, conduzindo os EUA para a guerra.

No dia 7 de dezembro os japoneses atacaram a base naval estadunidense em Pearl Harbor, no Havaí, matando, de acordo com Moniz Bandeira (2009, p. 121), 2.746 pessoas, entre marinheiros, soldados e civis. O fato causaria um grande choque na população, que subitamente passou a apoiar a entrada do país no conflito. Era o pretexto que Roosevelt necessitava para colocar o país em marcha para a nova guerra mundial. No dia seguinte ao ataque, o Congresso dos EUA declarou guerra ao Japão, e no dia 11 de dezembro Japão, Itália e Alemanha declararam guerra contra os EUA. Começaria assim, como demonstrado por Zinn (2005, p. 306), uma guerra comumente reconhecida como popular, vista a partir daí nos EUA ―como uma boa guerra do povo contra o fascismo‖ (PURDY, 2016, p. 217). O apoio havia, enfim, sido criado.

Por mais que tivesse sido necessário um acontecimento de dimensões catastróficas para ―empurrar‖ os EUA em direção à guerra, o fator propagandístico teve importância na tentativa de influenciar e convencer a população estadunidense a respeito da participação estadunidense no conflito mundial, se espalhando pelas vias mais convencionais, como jornais e cartazes, mas também através das culturas de massas, por meio de filmes, livros e das ascendentes histórias em quadrinhos.

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1.3 Histórias em quadrinhos: breves considerações e as mudanças no contexto de guerra

Atualmente, os filmes de super-heróis são responsáveis por boa parte do lucro da indústria cinematográfica de Hollywood, com vários lançamentos desse ―subgênero‖ anualmente, dividindo os chamados ―universos compartilhados‖ que estabelecem ligação entre diferentes filmes e aumentam ainda mais sua popularidade. O filme Vingadores: Guerra Infinita, por exemplo, lançado no ano de 2018, arrecadou mundialmente mais de 2 bilhões de dólares29, tornando-se uma das maiores bilheterias da história. Tais filmes provém de uma mesma matéria prima que se popularizou, sobretudo, no decorrer do século XX: as histórias em quadrinhos ou comics.

Em sua obra A leitura dos quadrinhos (2018), Paulo Ramos ressalta que as histórias em quadrinhos possuem uma linguagem autônoma, por mais que compartilhem de algumas características de outras linguagens.

Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há muitos pontos em comum com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens (RAMOS, 2018, p. 17).

A história em quadrinhos, apesar de ―emprestar‖ da literatura algumas de suas características, não é simplesmente uma forma de literatura ou gênero de tal linguagem, pelo contrário, é uma linguagem que abrange diferentes gêneros, podendo ser considerado, segundo Ramos (2018, p. 20), um ―hipergênero‖. Os quadrinhos possuem uma estrutura narrativa em sequência, podendo ser exposto em um quadrinho ou mais, onde os personagens podem ser visualizados, e o que eles falam geralmente é lido em balões, simulando um discurso direto. No decorrer do desenvolvimento das histórias em quadrinhos, outras características foram sendo adicionadas pelos autores, como pantomimas, onomatopeias, o uso de cores, diferentes formatos de balões, dentre outras inovações, que auxiliaram na popularização da linguagem entre o público. Will Eisner destaca a particularidade da mistura de imagens e palavras das histórias em quadrinhos.

29 Dados fornecidos pelo site Box Office Mojo, que mostra a evolução das receitas de bilheteria do cinema, operando desde 1998. Disponível em . Acesso em: 06 mai. 2019, às 15h41min. 42

Desde a primeira aparição dos quadrinhos na imprensa diária, na virada do século, essa forma popular de leitura encontrou um público amplo e, em particular, passou a fazer parte da dieta literária inicial da maioria dos jovens. As histórias em quadrinhos comunicam numa ―linguagem‖ que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público. Pode-se esperar dos leitores modernos uma compreensão fácil da mistura imagem-palavra e da tradicional decodificação de texto. A história em quadrinhos pode ser chamada ―leitura‖ num sentido mais amplo que o comumente aplicado ao termo (EISNER, 1989, p. 7).

Quanto ao surgimento de fato das histórias em quadrinhos, não há uma confluência única entre os estudiosos do tema e nem é a proposta do presente trabalho buscar exatidão sobre tal questão. Brian J. Robb (2017, p. 23) aponta para a importância dos jornais periódicos, que surgiram por volta dos séculos XVII e XVIII com a popularização das prensas tipográficas, sobretudo na Europa e nos EUA. Alguns desses periódicos traziam em seu conteúdo imagens e desenhos de cunho político ou destinados à moda e aos demais costumes sociais. Nesse cenário destacam-se artistas como os caricaturistas James Gillray (1757-1815), Thomas Rowlandson (1756-1827) e o pintor e gravurista inglês, Willian Hogarth (1697- 1764). Foi Hogarth que popularizou legendas de texto acompanhando suas imagens, podendo ser consideradas um ―protótipo‖ dos balões de fala dos quadrinhos.

As histórias publicadas nesses periódicos tinham o objetivo principalmente de expressar valores considerados corretos para a época, tal como enfatiza a obra A Harlot‘s Progress, produzida por Hogarth em 173230. A obra retratava a vida de uma moça do interior da Inglaterra que, ao se mudar para Londres, torna-se uma prostituta e acaba morrendo vítima de doenças venéreas. O sucesso da história geraria uma continuação três anos depois, denominada A Rakes‘s Progress, em que o filho de um comerciante rico decide viver uma vida suntuosa e libertina que culmina no seu internamento em um hospício. A mensagem das obras, demonstrando as consequências de modos de vida considerados na época concupiscentes, aquém dos padrões sociais, era a clara defesa de uma vida austera, regrada aos padrões sociais vigentes.

Nesse aspecto, segundo Robb (2017, p. 25), o artista suíço Rudolphe Töpffer (1799- 1846) inovaria, trazendo histórias que não enfatizavam a questão da instrução moral, mas o entretenimento. As histórias sequenciais de Töpffer eram contadas com desenhos que possuíam legendas embaixo (como demonstradas na Imagem 4) e fizeram grande sucesso na Europa e nos EUA, onde surgiam também edições pirateadas de suas obras. Töpffer pode ser

30 Disponível em . Acesso em: 25 mar. 2019, às 14h51min. 43

considerado um dos percursores das histórias em quadrinhos, demonstrando a importância do artista para o desenvolvimento do que pode ser considerada a gênese das histórias em quadrinhos.

Imagem 4 - Histoire de Mr. Vieux Bois (1827), de Rudolphe Töpffer

Fonte: MOYA, 1986, p. 11

Na Alemanha, destacou-se outro nome importante para o desenvolvimento das histórias sequenciais, o caricaturista Wilhelm Busch (1832-1908). O artista alemão se popularizou através da tira Max und Moritz (no Brasil traduzido como Juca e Chico), que contava a história de dois meninos travessos e as confusões apresentadas por eles. Apesar do sucesso, o conteúdo das tiras rendeu críticas à Busch, como ressaltado na seguinte afirmação de Álvaro Moya:

Os dois garotos travessos e aprontadores foram criticados imediatamente pelos pedagogos, como viriam a ser criticadas todas as posteriores criações dos quadrinhos que mostravam crianças travessas. Mas as crianças-leitores consagraram os personagens noir amarelos, vermelhos, azuis, coloridos do mundo criativo das comics (MOYA, 1986, p. 15).

A polêmica causada pelas histórias infanto-juvenis de Busch era uma amostra da vigilância que por diversas vezes pairou sobre as histórias em quadrinhos, advinda de setores educacionais, médicos e religiosos. Além do sucesso obtido através de suas histórias, Busch pode também ser considerado um pioneiro em alguns aspectos técnicos das histórias em quadrinhos ao utilizar uma linguagem com base na pantomima, com imagens em sequência contínua e da esquerda para a direita, sugerindo ao leitor a ideia de movimentação e progresso.

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Nos EUA, as tiras em quadrinhos começariam a se popularizar principalmente no final do século XIX, sobretudo, como apontado por Robb (2017, p. 25), com o ―duelo‖ nesse ramo entre os jornais New York World e New York Journal, capitaneados respectivamente por Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst. Através do New York World, foi lançado em 1895 The Yellow Kid (traduzido no Brasil como O Menino Amarelo), criado por Richard Felton Outcalt (1863-1928). Em 1897, o New York Jornal começou a publicar Katzenjammer Kids (no Brasil, Os Sobrinhos do Capitão), criação do artista alemão naturalizado estadunidense, Rudolph Dirks (1867-1968).

Em The Yellow Kid, contavam-se as histórias de um garoto careca, vestido com um pijama amarelo, morador de uma área de cortiços em Nova York denominada Hogan‘s Alley. As histórias traziam sutis críticas sociais, em um ambiente permeado por tensões raciais e de classe. Como destacado por Cord A. Scott (2011, p. 15), as imagens aparentemente infantis das histórias em quadrinhos ocultavam temas políticos e sátiras aos assuntos cotidianos do período.

Como esses cartuns frequentemente apresentavam crianças como seus principais personagens, eles foram identificados como um meio infantil; porque eles foram escritos de tal forma que imigrantes e pessoas menos instruídas poderiam entendê-los, histórias ilustradas também se tornaram associadas com as classes mais baixas. Por causa desse público percebido, tiras como The Yellow Kid foram capazes de comentar sobre questões políticas de uma forma que parecia inofensiva à primeira vista. No entanto, elas se tornaram mais sofisticados do que se supunha, desmentindo o equívoco comum de que os quadrinhos eram apenas um meio infantil, simplista e rebuscado demais para leitores adultos sérios. (SCOTT, 2011, p. 15)31

As tiras do personagem tornaram-se as primeiras a serem publicadas de maneira semanal, aos domingos. Em 1896, Outcalt e seu personagem se transferiram para o jornal rival, o New York Journal, e com a mudança veio também a inovação do uso de desenhos progressivos e de textos de fala para indicar diálogo entre os personagens, os balões de fala (embora, por vezes, o texto de fala fosse escrito no pijama do ―menino amarelo‖). De acordo

31 Tradução livre de Because these cartoons often featured children as their principal characters, they became identified as a children‗s medium; because they were written in such a way that immigrants and less educated people could understand them, illustrated stories also became associated with the lower classes. Because of this perceived readership, strips like The Yellow Kid were able to comment on political issues in a way that seemed harmless at first glance. Yet they became more sophisticated than was supposed, belying the common misconception that comics were solely a children‗s medium, too simplistic and lowbrow for serious adult readers (SCOTT, 2011, p .15). 45

com Moya (1986, p. 23), tais ideias inovadoras e que caracterizariam as histórias em quadrinhos dali em diante, teriam sido encorajadas por Hearst, o dono do jornal.

Imagem 5 - The Yellow Kid (1896), de Richard Felton Outcalt

Fonte: ImageText32

A Imagem 5 traz uma história do Yellow Kid, pulicada em 25 de outubro de 1896, no New York Journal. Nela são perceptíveis os balões de fala, que saem principalmente do gramofone, sendo que, com exceção da última cena, as falas do personagem principal são escritas em seu pijama. Percebe-se também a ausência de linhas delineando e separando os quadrinhos, apesar de ser perceptível também uma sequência de cenas a partir dos diferentes desenhos do Menino Amarelo e do Gramofone, que constituem uma sequência narrativa. A presença de balões e a ausência dos quadros demonstram que a história em quadrinhos, no momento da publicação, era uma linguagem em desenvolvimento.

Rudolph Dirks, por sua vez, fortemente influenciado pelo trabalho de Busch em Max und Moritz, como apontado por Robb (2017, p. 26), trazia em seu Katzenjammer Kids as peripécias de dois meninos arteiros, os irmãos gêmeos Hans e Fritz, juntamente com o

32 Disponível em < http://imagetext.english.ufl.edu/archives/v10_1/exner/>. Acesso em: 29 abr. 2020, às 17h12min. 46

Capitão, hospedados em uma pensão numa colônia alemã na África. Dirks também trouxe inovações, desenvolvendo ainda mais o uso de balões de fala e introduzindo os balões de pensamento, representados por uma série de bolhas interrompidas que levavam ao balão de palavras.

Tais inovações técnicas adquiridas ao longo do tempo, a continuidade das imagens, o uso de balões, a periodicidade dos personagens, estabeleceram o que seria a forma padrão popularizada das histórias em quadrinhos. Com a constituição do formato padrão explanado, salienta-se a constituição da imagem do super-herói que se popularizaria nessa linguagem ascendente.

Pode-se dizer que o ―caminho‖ para os super-heróis dos quadrinhos foi aberto, inicialmente, por histórias de aventura. Um dos pioneiros desse tipo de quadrinhos, e da linguagem como um todo, foi o desenhista ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910). Nascido na Itália em 1843, Agostini veio para o Brasil ainda jovem, naturalizando-se brasileiro e se tornando um dos principais artistas gráficos do Império do Brasil, tendo uma presença constante na imprensa de sua época, sendo, como ressaltado por Ricardo Jorge de Lucena Lucas (2013, p. 157), um dos sócios da Vida Fluminense - uma das principais expoentes da imprensa ilustrada do período. Bernardo Domingos de Almeida (2010, p. 114), afirma que Agostini antecipou em suas obras algumas das características que viriam a constituir a estrutura das histórias em quadrinhos.

O flerte de Agostini com características que viriam a fazer parte da linguagem dos quadrinhos se expressa principalmente em duas obras periódicas do autor: As Aventuras de Nhô Quim (1869-1870) e As Aventuras de Zé Caipora (1883-1906). De acordo com Almeida (2010, p. 115-116), a primeira foi publicada periodicamente na Vida Fluminense e contava a história de Nhô Quim, um caipira que se muda para o Rio de Janeiro e tem que lidar com os costumes diferentes da vida urbana. Já a segunda obra foi publicada de forma periódica, inicialmente nas páginas da Revista Ilustrada, mas posteriormente seria continuada em outras revistas, como Don Quixote e O Malho. Zé Caipora, um homem urbano carioca, acaba entrando em diversas aventuras, como, por exemplo, combater onças e tribos indígenas na mata atlântica, demonstrando também como o ―outro‖ era imaginado e representado pela sociedade urbana do Rio de Janeiro.

Para Almeida (2010, p. 115-116), Agostini criou com as histórias de Zé Caipora o gênero de aventura realística nos quadrinhos; bem antes, inclusive, de uma das grandes obras 47

do gênero, o Tarzan, criação de Edgar Rice Burroughs, ser adaptada para os quadrinhos por Hal Foster em 1929. A Imagem 6 traz o já citado embate entre Zé Caipora e uma onça.

Imagem 6 - As Aventuras de Zé Caipora, de Angelo Agostini

Fonte: https://zupi.pixelshow.co/33

Percebe-se, a partir da Imagem 6, a não utilização dos balões de fala, uma das primeiras características associadas às histórias em quadrinhos, sendo estes substituídos por legendas na parte inferior de cada quadrinho. É importante apontar que a mesma técnica é utilizada em Prince Valiant in the Days of King Arthur (Príncipe Valente), de Hal Foster, considerada uma das principais obras dos quadrinhos. A divisão em quadros bem delineados e separados e a progressão narrativa presente em sequência nesses quadros são algumas das características que Agostini imprime em sua obra e que vieram a ser parte importante da constituição das histórias em quadrinhos como conhecidas atualmente.

33 Disponível em . Acesso em: 29 abr. 2020, às 16h28min. 48

Outro pioneiro desse tipo de quadrinhos foi o cartunista estadunidense Roy Crane (1901-1977), criador de séries como Wash Tubbs e Captain Easy (no Brasil respectivamente chamadas de Tubinho e Capitão César). Crane destacou-se pelo uso de ganchos que conectavam as histórias das tiras, fazendo com que as aventuras de seus personagens se estendessem pelas próximas semanas nos jornais, estratégia essa longamente explorada pelas histórias em quadrinhos até os dias atuais. Foi também caracterizado por um maior realismo nos traços de suas histórias em quadrinhos (PATATI; BRAGA, 2006, p.34-35).

Como citado, essas histórias se popularizaram principalmente a partir da década de 1920, período marcado pelos efeitos ainda sentidos da Primeira Guerra e, posteriormente, pela Crise de 1929, sendo por vezes tais histórias consideradas um escapismo para seus leitores, mais interessados em olharem para mundos distantes do que para o mundo ao seu redor, como destaca Scott.

Enquanto muitos veteranos da Grande Guerra estavam se adaptando à vida nos EUA, formas crescentes de entretenimento competiam por status na cidade e no país. Os jornais do domingo serviram como uma forma de escapar da tristeza dos noticiários diários, especialmente depois da Quinta- Feira Negra e do início da Grande Depressão. Os quadrinhos, normalmente de dois a quatro painéis organizados como uma coluna horizontal - de onde veio o termo ―tira‖ - forneciam ao leitor todo tipo de informação e humor. [...]. As histórias em quadrinhos deram aos leitores uma entrada para uma realidade alternativa mais feliz. Essa audiência incluía adultos, que procuravam escapar das más notícias da primeira página do jornal; e crianças, que podiam não entender os conceitos de adultos, mas entendiam a história através de gravuras (SCOTT, 2011, p. 24)34.

O clima escapista, o desejo por aventuras em outros países e planetas, por vezes imaginários, os personagens fortes e indestrutíveis, que não eram afetados por traumas provenientes da guerra ou por escassez financeira foram fatores que influenciaram diretamente na construção da imagem dos super-heróis dos quadrinhos.

A inspiração para a figura dos super-heróis que dominariam as histórias em quadrinhos pode ser encontrada, de acordo com Robb (2017, p. 17) na literatura pulp35,

34 Tradução livre de While many veterans of the Great War were adapting to life back in the United States, rising forms of entertainment competed for status in the city and country alike. The Sunday newspaper funnies served as a form of escape from the gloominess of daily news events, especially after Black Thursday and the start of the Great Depression. The comics, usually two to four panels organized as a horizontal column—from whence came the term ―strip‖—provided the reader with all sorts of information and humor. […]Comic strips gave readers an entry to a happier alternate reality. This audience included adults, who looked to escape bad news from the front page of the newspaper; and children, who might not understand the adult concepts but understood the story through pictures. (SCOTT, 2011, p. 24) 35 Revistas conhecidas por serem produzidas em papel barato, fabricado a partir da polpa da celulose. 49

caracterizada pelas penny dreadfuls e dime novels, literaturas baratas e, portanto, de fácil acesso. A primeira se popularizou na Inglaterra Vitoriana36 e possuía histórias contadas em capítulos, publicados semanalmente, de gênero policial, violentas e sensacionalistas. As dime novels possuíam estrutura parecida com a literatura barata inglesa, mas eram uma criação estadunidense, recorrente na segunda metade do século XIX. Esses tipos de literatura já apresentavam combatentes do crime mascarados e, além dessas figuras heroicas, trazia ainda excêntricos personagens considerados de má índole, que influenciariam os vilões das histórias em quadrinhos.

Os super-heróis modernos foram pensados também baseados nos heróis da Antiguidade, encontrados nas diferentes mitologias, sobretudo a grega.

Muitas dessas histórias falavam de um panteão de deuses e deusas capazes de proezas sobre-humanas. Nem todos os heróis sobrenaturais eram deuses tão distantes da humanidade comum. Em algumas histórias, humanos se encontravam com deuses e ganhavam poderes sobre-humanos. Outros eram frutos de um ato sexual entre deuses e humanos; portanto, herdavam suas habilidades (ROBB, 2017, p. 18).

Dentre as lendas mitológicas que se destacam, pode-se citar deuses como os que habitavam o Monte Olimpo, na Grécia. Desses deuses, cada um possuía um atributo especial, muitos dos quais são, inclusive, atributos transferidos a personagens das histórias em quadrinhos atuais. Outras figuras lendárias, como os semideuses Perseu, Hércules e o mesopotâmico Gilgamesh também foram influências diretas nas criações dos heróis contemporâneos. Algumas dessas figuras acabariam até mesmo sendo adaptadas diretamente para as histórias em quadrinhos das grandes editoras atuais. Os deuses do Olimpo são personagens recorrentes nas histórias da Mulher-Maravilha da DC Comics, enquanto as adaptações de Hércules e Gilgamesh já foram membros da equipe dos Vingadores da Marvel.

Outro elemento que marcou presença na constituição do modelo de super-herói foi o folclore e seus ―seres fantásticos‖. Robin Hood, por exemplo, exerceria forte influência sobre os personagens dos quadrinhos. O lendário personagem do folclore britânico seria, segundo os relatos populares, um fora-da-lei que lutava pelos pobres e oprimidos, punindo os opressores. Robb (2017, p. 22) aponta que tais características seriam transferidas diretamente aos super- heróis modernos que, na maioria das vezes, também seguem o código de honra de luta pelos

36 A chamada Era Vitoriana foi o período em que a Rainha Vitória reinou sobre a Inglaterra, junho de 1837 a janeiro de 1901. 50

desfavorecidos. Além disso, grande parte dos heróis, ao assumirem o papel de ―justiceiros‖, agindo por conta própria, acabam entrando em rota de colisão com as autoridades, sendo encaixados também com o rótulo de fora-da-lei.

Um aspecto de Robin Hood que também serviria como base para as lendas dos quadrinhos é a questão do uniforme. O uniforme de Robin Hood é tradicionalmente descrito como verde-musgo, que serve tanto para disfarçar sua identidade quanto para que o personagem se camuflasse em meio às florestas, seu principal campo de atuação (ROBB, 2017, p. 22). O uso de uniforme é uma marca registrada dos super-heróis e o uso no sentido da camuflagem também pode ser visto em alguns deles, como o Batman, que utiliza o tradicional uniforme de morcego negro, que o auxilia a não ser visto nas noites da cidade fictícia de Gotham City. A importância de Robin Hood nos quadrinhos é tão grande que seu aspecto visual e suas ideias de defesa dos oprimidos influenciaram o universo dos heróis dos quadrinhos diretamente, como com a criação do super-herói Arqueiro Verde, da DC Comics.

Com o início dos quadrinhos nos periódicos por meio das tirinhas de entretenimento personagens das pulps como o Zorro e o Tarzan foram, aos poucos, sendo adaptados para o formato. Outros personagens originais também foram surgindo e germinariam raízes que iriam culminar no ideal de herói dos quadrinhos, sendo esses personagens denominados por Robb (2017, p. 32) como ―protossuper-heróis‖. Um dos ―protossuper-heróis‖ que surgiram nesse contexto inicial dos quadrinhos foi o Fantasma. Criado em 1936, por Lee Falk e pelo desenhista Ray S. Moore, o Fantasma começou a ser publicado diariamente no New York American Journal. O personagem, assim como Robin Hood, era marcado por seu uniforme singular: malha roxa colante e uma máscara sem pupilas, que viriam a ser tendência entre super-heróis. Outra criação de Lee Falk que teria grande influência sobre o mundo dos super- heróis foi o mágico Mandrake. Além de suas ―super-habilidades‖ hipnóticas, o personagem utilizava uma marcante cartola, além de uma capa sobre seu elegante terno. Assim como a malha colante do Fantasma, a capa seria um adereço comum no vestuário dos super-heróis. Como ressaltado por Patati e Braga (2006, p. 58), os aspectos visuais desses personagens, demarcados de modo mais chamativo, acabavam por se fixar com mais facilidade na memória do leitor.

Tiras como Buck Rogers, outra adaptação da literatura pulp, e Flash Gordon também marcariam as bases da fundação do que viria a gerar os super-heróis modernos, doando a esses os elementos de ficção científica que povoam os universos fantásticos criados nos

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quadrinhos, oferecendo uma explicação ―plausível‖ aos fatos ficcionais e prodigiosos encontrados em suas histórias. Como sublinhado por Patati e Braga (2006. p. 49), nesse tipo de história a ciência acabava por ser considerada a solução ou a maldição de tudo e tal fato pode ser visto influenciando diretamente nos quadrinhos de super-heróis: muitos heróis, incluindo o Capitão América, como se verá, foram criados por seus autores ou adquiriram suas habilidades a partir de experiências científicas. A ―face negativa‖ da ciência, por sua vez, seria representada na construção de muitos dos inimigos desses super-heróis, sendo vistas como ―aberrações‖ tecnológicas. A ficção científica influenciaria também na construção de novos mundos para as histórias em quadrinhos (o Superman provém do fictício planeta Krypton), bem como, posteriormente, temas mais complexos para as histórias, como vórtices temporais e realidades paralelas.

Com o formato dos quadrinhos e os elementos padrões que viriam a constituir as histórias dos super-heróis delineados, foram dados os passos que culminariam, de fato, no surgimento dos heróis dos quadrinhos. Em 1933, o formato moderno da revista em quadrinhos, encadernado e colorido, viria a ser instituído, alavancando ainda mais tal forma literária.

Ao receber a tarefa de criar uma publicação para ser oferecida como brinde em mercadorias do varejo, o vendedor Max C. Gaines, da Eastern Color Printing Company, criou um formato de revista em quadrinhos colorida que é conhecida por milhões de compradores regulares nos dias de hoje. Isto levou à criação da revista em quadrinhos de 64 páginas Famous Funnies, uma publicação de 10 centavos de dólar vendida em bancas de jornais e que colecionava uma variedade de tiras dominicais coloridas reeditadas dos jornais (ROBB, 2017, p. 34-35).

Logo, a bem sucedida Famous Funnies enfrentaria concorrência. Entre os concorrentes estava a New Comics, revista destinada a publicação de conteúdo original, criada em 1935 pela editora National Allied Publications, que viria a se tornar posteriormente a DC Comics. A empresa fora criada por um ex-militar escritor de histórias pulp, o Major Malcolm Wheeler-Nicholson. Ele contrataria dois artistas jovens de origem judia aficionados por revistas de ficção científica e que revolucionariam o mundo das ―histórias desenhadas‖: Jerry Siegel e Joe Shuster.

Fãs de ficção científica, seriados de cinema e tiras de jornais e leitores ávidos de revistas pulp como Amazing Stories e Weird Tales, Siegel e Shuster, respectivamente argumentista e desenhista, ao longo do tempo produziram várias histórias e personagens

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originais, mas se consagrariam com a criação do Superman. Robb (2017, p. 39-40) aponta que os dois tinham produzido vários ―protótipos‖ antes de chegarem ao definitivo Superman. O herói seria, no entanto, recusado por Wheeler-Nicholson, que gostou do personagem, mas achava que ele deveria ser publicado em cores e com várias páginas por capítulo, algo que não era feito pela New Fun, principal revista da editora na época.

O Superman (que no Brasil também ficaria popularmente conhecido como Super- Homem) só seria publicado em 1939. Nesse momento, segundo Robb (2017, p. 48-49), a empresa era controlada por Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, que antes eram os responsáveis pela Independent News, distribuidora dos títulos da National. Wheeler- Nicholson acabou se endividando com a empresa e se viu obrigado a admitir Donenfeld e Liebowitz como sócios. Em 1938, os dois expulsaram Wheeler-Nicholson da empresa. Na busca por materiais originais para serem publicados, encontraram a proposta de Superman de Siegel e Shuster, vetada pelo antigo dono. Ficou decidido que o Superman seria o carro-chefe da primeira edição da Action Comics (Imagem 7), nova revista da editora.

Imagem 7 - Action Comics número 1

Fonte: DC Fandom37

37 Disponível em . Acesso em: 29 mar. 2019, às 00h26min 53

A Action Comics número 1 chegou às bancas estadunidenses em abril de 1938 e se tornou um sucesso instantâneo, inaugurando a chamada Era de Ouro das histórias em quadrinhos38. Como seus criadores, o super-herói era um forasteiro, mas não vinha simplesmente de outro país, e sim de outro planeta: Krypton. Assim como Robin Hood e o Fantasma, possuía um uniforme característico, com o chamativo vermelho e azul que remetiam à bandeira estadunidense. À semelhança dos deuses mitológicos, possuía atributos fantásticos particulares — como a ―superforça‖ mostrada na capa de Action Comics número 1 — que passariam a ser descritos como ―super-poderes‖, e que, na época do lançamento do personagem, eram um pouco diferentes de seus poderes atuais, como descreve Moya:

O Super-Homem de então não era tão super assim. Dava saltos, corria mais do que um trem, aparava uma bala com a mão ou o peito e era vulnerável. Hoje, voa a uma velocidade mais rápida do que a luz, já enfrentou bombas atômicas e é vítima apenas da emanação da criptonita, um metal de radiação de seu planeta. A visão raio-X e o ouvido ultrassensível foram acrescentados depois que se notou que os leitores engoliam qualquer coisa (MOYA, 1986, p. 145).

Devido ao sucesso, em menos de um ano o Superman ganharia sua própria revista, algo inédito para um personagem super-herói. O sucesso também levaria ao surgimento de vários outros super-heróis nos quadrinhos e ao consequente florescimento de mais editoras e artistas dedicados ao meio. Logo viriam personagens como o justiceiro Batman (1939), Flash (1940), Lanterna Verde (1940), Gavião Negro (1940) e a Mulher-Maravilha (1942).

A imensa popularidade do Superman de Shuster e Siegel influenciou alguns personagens que beiravam o plágio. Robb (2017, p. 80) cita o exemplo do Wonder Man, personagem surgido na revista Wonder Comics número 1, com data de capa de maio de 1939. O herói também possuía superforça e, assim como Clark Kent, Fred Carson, a identidade verdadeira do herói, também escondia seu supertraje por baixo das roupas do dia-a-dia. O personagem foi criado pelo, ainda iniciante Will Eisner, sob encomenda de Victor Fox, da Fox Comics, rival da DC, que processaria Fox e limitaria a participação do personagem apenas ao número de estreia. De mais sucesso foi a vida editorial do Capitão Marvel, criado pelo argumentista Bill Parker e pelo desenhista C.C. Beck para a editora Fawcett Comics, no

38 Costuma-se separar cronologicamente o período de existência das histórias em quadrinhos por ―eras‖, sendo basicamente identificadas quatro: Era de Ouro, Era de Prata, Era de Bronze e Era Moderna. A Era de Ouro geralmente é situada entre 1938 e 1954, sendo seu marco inicial o surgimento do Superman na Action Comics número 1. De acordo com Guerra (2011, p. 7), o termo ―ouro‖ é usado devido a esse período ser o apogeu dos quadrinhos, com a explosão de publicações e o surgimento de inúmeros novos personagens, sobretudo os super- heróis. 54

início de 1940. Da mesma forma que o Superman, o personagem possuía habilidades como superforça e velocidade e se via constantemente envolvido em aventuras de ficção científica. A diferença, entretanto estava na identidade civil do herói: não era um adulto como Clark Kent, mas sim um adolescente chamado Billy Batson, que se transformava no super-herói toda vez que dizia a palavra ―Shazam‖, composta das iniciais de personagens mitológicos, que também lhes davam suas habilidades: Salomão (sabedoria), Hércules (força), Atlas (vigor), Zeus (poder mágico), Áquiles (coragem) e Mercúrio (velocidade). Sendo um adolescente, o personagem falava diretamente com os anseios do jovem público leitor. O personagem foi um sucesso de vendas, que foi interrompido em 1953 devido a um processo da DC Comics, alegando infração de direitos autorais em relação ao Superman. Em 1972 a DC adquiriu os direitos do herói, que voltaria a ser publicado e posteriormente teria seu nome mudado para Shazam devido à existência de um Capitão Marvel na editora concorrente, Marvel Comics.

A partir do surgimento do Superman foi aberta a era dos super-heróis nas histórias em quadrinhos, era essa que se mostrou duradoura, perdurando até os dias atuais. Produzidas por autores inseridos em seus respectivos contextos sociais, dialogando com os acontecimentos ao seu redor, o aspecto instigador dessas histórias fez com que muitas carregassem consigo ideologias, opiniões e representações elaboradas por seus criadores, demonstrando suas sensibilidades e percepções, além da tentativa de criar um diálogo e surtir influência sobre o seu público leitor. Os enredos das histórias carregariam marcas do período em que eram concebidas.

Os criadores de costume trabalham com os narizes afiados procurando criar o produto mais vendável, um tal projeto envolve a busca daqueles que melhor capturem o espírito de sua época. Uma resposta a uma interrogação qualquer, articulada ou não, que esteja presente na sociedade (PATATI; BRAGA, 2006, p. 62).

Os eventos da realidade surtiam impacto sobre os criadores de quadrinhos, indicando inclusive qual ―nicho‖ seria mais rentável para as publicações. Não poderia ser diferente com o advento da Segunda Guerra Mundial, que desde o início dos conflitos na Europa marcaria presença nessa ascendente linguagem, mesmo nos EUA, que ainda não participavam diretamente da guerra. Pode-se dizer que com o conflito há uma ―virada temática‖ nas histórias em quadrinhos.

Inicialmente, as histórias refletiam os efeitos da Crise de 1929, sendo uma forma de escapismo para os problemas econômicos e sociais enfrentados por seus criadores e leitores.

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Como destacado por Scott (2011, p. 28), os leitores, sobretudo estadunidenses, gostavam de ver os super-heróis lutando contra aqueles que exploravam os maus momentos para o próprio benefício financeiro. O crime doméstico, a corrupção, a especulação financeira, os magnatas das munições (dialogando com tendência isolacionista do período), se juntavam à cientistas maquiavélicos e monstros sobrenaturais na galeria de vilões das histórias em quadrinhos. Os super-heróis não se caracterizavam apenas por seus uniformes e poderes, mas também pela defesa da justiça social, atuando em favor dos fracos e oprimidos, como indicava a primeira história do Superman, em que o herói foi chamado de ―campeão dos oprimidos‖.

Se nos primeiros anos a ―missão heroica‖ desses personagens girava em torno da defesa dos pobres, indefesos e oprimidos contra todo tipo de injustiça, seja essa provocada por um super-vilão ou um político corrupto, com o advento da Segunda Guerra, a ―área de atuação‖ dos heróis dos quadrinhos mudaria, uma vez que passariam a defender o ―modo de vida americano‖, tornando-se símbolos de segurança nacional e do combate aos ―inimigos da democracia‖.

Os quadrinhos de super-heróis estavam em transição dentro das ideologias sociais que expressavam. Os heróis fantasiados do fim dos anos 1930 foram produtos das reformas sociais do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt. Os super-heróis tinham como alvos os criminosos comuns e a ganância do mundo corporativo, e defendiam o ―cidadão comum‖ contra o sistema. Conforme a década de 1940 se aproximava e a expectativa de guerra crescia, o foco mudou para um patriotismo mais ostensivo, que então evoluiu para o que agora seria visto como uma propaganda nitidamente incômoda contra estrangeiros (principalmente alemães e japoneses). [...] O Super-Homem já era um defensor da ―verdade e justiça‖ em casa. Agora, a ―verdade e justiça‖ seria exportada à força para a Europa em nome da democracia, da liberdade e do fim da opressão (ROBB, 2017, p. 87).

O principal símbolo dos quadrinhos no período, o Superman, apesar de ter aventuras focadas em combater super-vilões e as mazelas sociais dos EUA, trouxe também em suas primeiras aparições um reflexo do clima de guerra presente no mundo. Em Action Comics número 1, há uma história em que o herói investiga uma guerra em um país fictício da América do Sul chamado San Monte, onde se descobre que os conflitos foram gerados por políticos e empresários armamentistas. Ao desmascarar as ―forças por trás da guerra‖, Superman captura os líderes dos exércitos que guerreavam e pede para que lutem entre si. Ao perceberem que não estavam ―bravos‖ um com o outro, Superman leva os líderes a entenderem que não há motivo para os exércitos guerrearem, pois não sabiam o motivo da luta e estavam apenas promovendo a venda de munições (FLOR, 2014, p. 73). A história 56

dialoga com a pretensa tendência isolacionista do período, que colocava a culpa dos conflitos nos magnatas da indústria bélica, mesmo tal isolacionismo sendo mais retórica do que prática. Como demonstrado por Ricardo Bruno Flor (2014, p. 81), não há embate entre justos e injustos, sobre qual dos lados do conflito é ―bom‖ ou ―mau‖; a guerra é o mal em si.

A Segunda Guerra Mundial não demorou a ―capturar‖ o Superman para seu esforço. No início de 1940, a revista de entretenimento Look39 encomendou de Jerry Siegel e Joe Shuster uma história curta de criação principal dos autores. O resultado foi uma história de duas páginas denominada ―How Superman would end the war‖ (Imagem 8).

Imagem 8 - Como o Superman acabaria com a guerra

Fonte: Sequart Organization40

Na história, o herói captura Hitler e Stalin e os arrasta para serem julgados pela Liga da Nações41, em Genebra, onde são condenados pelo ―maior crime da história moderna – agressão não provocada contra países indefesos‖42. A presença de Stalin ao lado de Hitler como responsável pelos conflitos pode ser devido ao Pacto de Não Agressão assinado por

39 Revista de entretenimento, publicada no período entre 1937 e 1971. Apesar de possuir alguns artigos, tinha como foco a fotografia. 40 Disponível em < http://sequart.org/magazine/23691/on-how-superman-would-win-the-war/>. Acesso em: 06 abr. 2019, às 18h29min. 41 Organização política antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU). 42 Tradução livre de modern history‘s greatest crime—unprovoked aggression against defenseless countries. 57

Alemanha e União Soviética em agosto de 1939, que ainda vigorava na data de publicação dessa história, mas também demonstra que dentro dos EUA existia a percepção entre algumas pessoas de que a União Soviética era um perigo tão grande quanto a Alemanha para a concepção de democracia entre os estadunidenses e também responsável pela quebra dos tratados antiguerras do período. A Imagem 8 mostra os últimos quatro quadros da história; é possível notar no segundo quadro, posicionado no canto direito superior, que Superman carrega os líderes da Alemanha e da União Soviética pelo colarinho, expondo um desprezo do herói estadunidense em relação a eles. Outro ponto que chama atenção é a mudança nas cores do uniforme do Superman: o tradicional vermelho e azul com o escudo em ―S‖ amarelo no peito dá lugar a um uniforme branco com detalhes vermelhos. A razão disso foi o fato de a história ser impressa em preto e branco, e o vermelho ser a única cor disponível43.

O exemplo de How Superman would end the war não seria, porém, constante nas histórias do Superman presentes na Action Comics ou em Superman, título próprio do personagem, publicado a partir de 1939. A força desproporcional do personagem, que poderia resolver a guerra rapidamente, como mostrado na história publicada na Look, fez com que os autores evitassem a guerra como tema de suas histórias e, como abordado por Richard D. Deverell (2013, p. 41), a editora do Superman, a DC, evitou retratar o herói de forma que pudesse desonrar os sacrifícios reais de soldados lutando no exterior. Siegel e Shuster encontraram uma forma de excluir o Superman da guerra na Europa, ao contarem em uma tira de jornal que Clark Kent foi rejeitado no alistamento, pois ao usar acidentalmente sua visão de raio X para ler uma tabela de letras no teste de visão, acabou lendo a tabela de outra sala (ROBB, 2017, p. 97).

A partir disso, a participação do Superman na Segunda Guerra Mundial seria mais limitada, mas ainda presente. Segundo Deverell (2013, p. 16-17), em Action Comics número 26, encontra-se presente o primeiro anúncio público em uma história do Superman: um painel no final de uma aventura do herói pedindo doações para o fundo de ajuda humanitária de Roosevelt. Pedidos de doações humanitárias e compras de bônus de guerra, uma constante nos quadrinhos do período anterior à entrada dos EUA na guerra, tornaram ainda mais presentes após o ataque a Pearl Harbor. Nota-se também que as capas de Action Comics e Superman traziam, por vezes, alusão ao contexto da Segunda Guerra Mundial, apesar das histórias

43 DARIUS, Julian. On ―How Superman Would Win The War‖. Sequart Organization, 2013. Disponível em: < http://sequart.org/magazine/23691/on-how-superman-would-win-the-war/>. Acesso em: 10 mai. 2019, às 19h00min. 58

presentes no conteúdo dessas revistas raramente carregarem uma temática relacionada ao conflito na Europa. Na capa de Superman número 12 (Imagem 9), por exemplo, o herói caminha de braços dados com um soldado do exército e um marinheiro.

Imagem 9 - Capa de Superman número 12

Fonte: DC Fandom44

A capa, de autoria do desenhista , ao trazer o personagem unido aos dois militares, demonstrava o apoio patriótico do Superman e consequentemente da editora às tropas, e colocava os soldados no mesmo status que o super-herói, valorizando o trabalho militar. É importante ressaltar que a data de capa da edição é de setembro-outubro de 1941, portanto anterior à entrada dos EUA no conflito, podendo ser entendida como propaganda em favor das tropas e, por consequência, da entrada direta do país na guerra. A exaltação às tropas e ao alistamento militar é uma das características das histórias em quadrinhos desse período.

44 Disponível em . Acesso: 08 abr. 2019, às 15h22min. 59

A editora concorrente da DC, Marvel Comics, também incluiu no esforço de guerra um dos seus principais super-heróis do período, , O Príncipe Submarino, como exemplificado na revista Marvel Mistery Comics número 4, de fevereiro de 1940.

Imagem 10 - Capa de Marvel Mystery Comics

Fonte: Marvel.com45

A capa dessa edição (Imagem 10), mostra o herói aquático enfrentando um submarino com bandeira nazista — que ostenta o título de ―death raider‖ (corsário da morte) — a atacar outro navio, provavelmente estadunidense. Nota-se ainda que os marinheiros nazistas mantêm uma mulher como refém, provavelmente a personagem Betty Dean, presença constante nas histórias de Namor (inclusive no enredo apresentado nessa revista), e que aqui exercia o papel mais recorrente de mulheres nas histórias de super-herói na Era de Ouro: a ―donzela em perigo‖, que precisa ser salva pelo protagonista. Ao contrário do Superman, no entanto, a

45Disponível em: . Acesso em: 11 mai. 2019, às 17h00min. 60

aventura de Namor não se limita apenas à capa, e na história do personagem presente nessa edição, ele enfrenta o ataque de submarinos nazistas aos navios de abastecimento estadunidenses.

Os conflitos na Europa influenciaram diretamente também na criação da revista em quadrinhos Wings Comics, da editora Dell Publishing. Scott (2011, p. 27) cita que a revista trazia histórias em quadrinhos que contavam aventuras da guerra, sendo alguns dos personagens presentes na revista ―Jane Martin, a Enfermeira‖, que posteriormente se revelaria uma espiã, e ―The Skull Quad‖, um grupo de bombardeiros aliados, formado por um escocês, um inglês e um estadunidense, em missões na Europa. Os personagens, entretanto, não eram heróis com poderes sobrenaturais, nem utilizavam uniformes chamativos; eram soldados simples, a quem eram atribuídas características como valentia e astúcia.

Mesmo com a indefinição em relação a entrada direta dos EUA na guerra por meio do envio de tropas ao conflito, nos quadrinhos o país já era participante ativo dos conflitos. Após envolver heróis consagrados e criar representações dos soldados transpostos para as páginas dos quadrinhos, não demorou para a Segunda Guerra Mundial influenciar a criação dos primeiros super-heróis ―patrióticos‖, prontos para tentar incutir o patriotismo nos leitores, apoiar o alistamento militar e defender a entrada direta dos EUA na guerra. Entre esses heróis, estaria o Capitão América, que estreou em 1940 dando um soco em Adolf Hitler, deixando bem claro de que lado ele estava, bem como quem eram os inimigos e como eles deveriam ser tratados pelos EUA.

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CAPÍTULO 2

A CONSTRUÇÃO DO CAPITÃO AMÉRICA

2.1 Heróis patrióticos e o surgimento do Capitão América

Mesmo com a indefinição sobre a participação direta dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o conflito criava ecos na sociedade estadunidense, até mesmo nos meios usados pela população como entretenimento. Um desses meios afetados pelo clima bélico foi a ascendente indústria das histórias em quadrinhos. Muitos dos personagens de sucesso dos quadrinhos no período, como o Superman e Namor, o Príncipe Submarino, refletiram em suas publicações o contexto de guerra. Não demoraria a surgir no horizonte dos quadrinhos os primeiros heróis de cunho patriótico.

Desses heróis patrióticos o mais conhecido — e de vida editorial de maior sucesso — é o Capitão América. O ―super-soldado‖, contudo, não foi o primeiro herói motivado pelo sentimento patriótico; pode-se citar como seus antecessores os personagens Uncle Sam, Minute-Man e The Shield.

O Uncle Sam (Tio Sam) é uma figura folclórica dos EUA, utilizada pelo país em períodos de guerra como forma de apoio às tropas. Sua primeira representação gráfica foi feita pelo chargista Thomas Nast no século XIX, mas a imagem mais conhecida do personagem é o cartaz produzido durante a Primeira Guerra Mundial por James Montgomery Flagg, onde o Uncle Sam, vestido com roupas das cores da bandeira dos EUA, incluindo uma cartola adornada por estrelas, aponta para o leitor, e carrega no cartaz a sugestiva manchete ―I want you for U.S. Army46‖. O ícone folclórico foi adaptado para os quadrinhos pelo argumentista Will Eisner (que se tornaria um dos grandes nomes dos quadrinhos) juntamente com o desenhista Dave Berg na National Comics número 1 (Imagem 11), publicado pela editora , com data de capa de julho de 1940. Em 1941, o personagem ganharia uma revista com seu nome na editora, demonstrando de certa forma o sucesso obtido junto ao público, visto que apenas personagens muito populares ganhavam seus próprios títulos.

46 Em tradução livre ―Eu quero você nas Forças Armadas dos EUA‖ 62

Imagem 11 - Capa de National Comics número 1

Fonte: Plus47

Nas histórias, a lenda folclórica se personificou: de acordo com sua história de estreia nos quadrinhos, o Uncle Sam era um espírito nascido na independência dos EUA, em 1776, que teria estado presente quando Norte e Sul resolveram suas diferenças e também nas trincheiras em 1917 e que, agora, pela primeira vez na história dos quadrinhos se juntaria a luta contra o crime, o mal e a injustiça, uma vez que:

[...] 21 anos depois que os americanos derramaram seu sangue, para que um sistema de governo, oferecendo liberdade, igualdade e busca da felicidade, pudesse ser preservado, as forças do mal, a ganância e o crime ameaçam o

47 Revista disponível online em . Acesso em: 24 abr. 2019, às 00h42min. 63

próprio ideal, dos quais nasceram os maiores personagens da América48 (EISNER, 1940, p. 1).

As ―forças do mal‖ que se levantavam 21 anos após a Primeira Guerra Mundial podem ser interpretadas como as ameaças representadas pelo Eixo ao ―modo de vida americano‖, caracterizado por uma pretensa ―liberdade, igualdade e busca da felicidade‖. Atribui-se, assim, à participação dos EUA na Primeira Guerra motivos ―nobres‖; o país teria se sacrificado, derramado seu sangue por um sistema de governo que assegurasse tais virtudes. Dito isso, o Uncle Sam se levantava nos quadrinhos como um defensor desses direitos supostamente conquistados e assegurados pelo sistema de governo estadunidense. O herói folclórico é acompanhado em suas histórias pelo garoto Buddy, e combate inimigos que geralmente são alegorias dos nazistas e japoneses (em algumas histórias os inimigos são de fato alemães e japoneses, mas prevaleciam as alegorias). Em uma história presente em National Comics número 3, Uncle Sam luta contra um poder expansionista da Ásia que almeja dominar as Filipinas recém-independentes. O ―poder expansionista‖ da Ásia é uma clara referência ao Japão, sendo o enredo da história pautado pela defesa da liberdade das Filipinas frente a anseios ditatoriais; contudo, é importante ressaltar que, fora dos quadrinhos, quem por muito tempo exerceu o domínio sobre as Filipinas foram os EUA.

Outro herói patriótico do período anterior à entrada direta dos EUA na Segunda Guerra Mundial foi o Minute-Man. O personagem, criado por Charlie Sultan, fazia parte da Fawcett Comics, mesma editora de um dos maiores sucessos do período, o Capitão Marvel, e fez sua estreia na Master Comics número 11, com data de capa de fevereiro de 1941. O personagem era uma clara homenagem aos minutemen, milícias de colonos armados que se defendiam e faziam atos de sabotagem contra os ingleses durante a Independência dos EUA (KARNAL, 2016, p. 88). A identidade real do herói era o soldado Jack Weston, que, na prática, não possuía superpoderes além das aptidões físicas de um soldado treinado. Com a identidade de Minute-Man, caracterizado com uma camisa que remete a bandeira dos EUA, além de calças e botas no estilo militar, o personagem era enviado geralmente a missões secretas e era considerado ―The one man army‖ (―O exército de um homem só‖), como visto na Imagem 12, demostrando o caráter individualista que geralmente permeia os super-heróis.

48 Tradução livre de 21 years after Americans had shed their bloods, so that a system of government, offering freedom, equality and the pursuit of happiness, might be preserved, the forces of evil, greed intolerance and crime threaten the very ideal, out of which Americas greatest character has born. (EISNER, 1940, p. 1) 64

Imagem 12 - Minute-Man – ―The one man army‖

Fonte: Comic Book Plus49

A imagem acima é o primeiro quadro da história de estreia do Minute-Man. A fala do narrador, no canto inferior direito do quadro, ressalta que o ―espírito da guerra‖ que ―esmagava‖ a Europa se dirigia à América, e o ―povo livre‖ dos EUA se preparava reunindo ―armas, homens e defesas‖, sendo uma dessas defesas o Minute-Man, indicando o papel do herói como parte do esforço de guerra que ia se constituindo — ao menos nos quadrinhos. O temor de um possível ataque ao continente americano, sobretudo aos EUA, é uma característica desse quadro que será uma constante nos quadrinhos de super-heróis do período. Ainda sobre esse primeiro quadro, dois pontos se destacam: o primeiro é o que parece ser uma representação de um globo terrestre atrás do Minute-Man que aparentemente, pela sua posição frente ao globo com arma em punho, protege o ―mundo‖ do inimigo pronto para atacar, um possível paralelo com a função auto imposta dos EUA de protetor do resto do mundo contra

49 Revista disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2019, às 15h17min. 65

os ataques do Eixo; o segundo ponto é o fato de o vilão estar de costas para o leitor, não sendo possível ver sua face, demonstrando um certo desprezo quanto a identidade desse indivíduo, o que pode ser entendido como uma desumanização do inimigo.

O antecessor do Capitão América que mais o influenciaria seria o The Shield (O Escudo). O personagem, criado pelo argumentista Harry Shorten e pelo desenhista Irv Novick, fez sua estreia na revista Pep Comics número 1 (Imagem 13), pertencente à editora MJL Publications (futura ), com data de capa de janeiro de 1940, mas provavelmente disponível para venda em novembro de 193950. Dessa forma, pode-se considerar The Shield o primeiro herói tipicamente patriótico das histórias em quadrinhos. O herói possuía um uniforme vermelho, azul e branco, em que se destacava no peito o formato de escudo baseado na bandeira dos EUA.

Imagem 13 - Capa de Pep Comics número 1

Fonte: http://readcomiconline.to51

50 Informação do site Grand Comics Database, disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2019, às 17h00min. 51 Disponível em < https://readcomiconline.to/Comic/Pep-Comics/Issue-1?id=96730#2> .Acesso em: 26 de abril, 2019, às 17h20min. 66

O herói era um químico chamado Joe Higgins, filho de Tom Higgins, um agente do FBI que fora morto por um sabotador alemão. Tom trabalhava em um soro de superforça desejado pelos nazistas. Após a morte do pai, Joe continua o trabalho com o soro e acaba o aplicando em si mesmo. Com os poderes adquiridos pelo uso do soro, Joe se torna um agente do FBI subordinado diretamente a J. Edgar Hoover, o único a conhecer sua identidade secreta. A presença de Hoover, diretor do FBI, na história estabelecia uma ligação do enredo com o contexto político da ―vida real‖ estadunidense, dando ao The Shield um caráter mais sério e crível em relação a outros super-heróis. O herói contava ainda com a ajuda de Dusty Simmons, órfão que também teve o pai morto por ajudantes estrangeiros. The Shield era mais um herói que chamava atenção pelo forte apelo gráfico de seu uniforme. Os aspectos gráficos, ideológicos e até mesmo a história de origem do ―Escudo‖ exerceriam uma grande influência sobre uma vindoura criação de uma das grandes editoras do período, a , futura Marvel, na época propriedade de Martin Goodman.

De acordo com Sean Howe (2013, p. 17-18), Goodman, nascido no Brooklin em 1908, era filho de imigrantes russos. Ainda jovem, trabalhou como representante editorial na Eastern Distribuing; quando essa veio à falência, Goodman fundou juntamente com o amigo Louis Silberkleit uma pequena editora denominada Newsstand Publications, direcionada para a publicação de histórias românticas e westerns. Após uma crise financeira em 1934 a empresa quase faliu, Silberkleit deixou a parceria e Goodman assumiu totalmente a empresa, conseguindo passar pela crise e estabilizar a editora financeiramente.

A empresa passou posteriormente por várias razões sociais, visando vantagens em caso de problemas jurídicos. Nomes como ―Atlas‖ e ―Zenith‖ foram usados, mas o que acabou ficando foi ―Timely‖, retirado do subtítulo de uma revista da editora. Foi com esse nome que a empresa fez a ―virada‖ em seu foco, das pulps, cada vez mais prejudicadas pela concorrência das rádios, para as histórias em quadrinhos, em franca ascensão (HOWE, 2013, p. 19-20).

Com o crescimento das histórias em quadrinhos, surgiu uma nova gama de artistas e editoras, com uma produção e demanda cada vez maiores e com um modo operacional cada vez mais organizado e profissional. Sean Howe ressalta a produção editorial era uma verdadeira ―linha de produção‖.

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Em 1937, visionários começaram a montar serviços de produção editorial: criavam quadrinhos numa eficiente linha de produção, seguindo os moldes da indústria de vestuário. O roteirista entregava o roteiro a uma linha de montagem composta de ilustradores veteranos sem muita opção de emprego ou a recém-graduados da escola de artes, armados com pranchas Bristol de 35 por 53. Eles, por sua vez, repartiam a ação numa série de quadros simples, elaboravam os desenhos a lápis, acrescentavam o cenário, adornavam a arte com nanquim, inseriam os diálogos e passavam guias de cores à gráfica. Não era a rota da fortuna, mas, na agonia da depressão, era um trabalho garantido (HOWE, 2013, p. 20).

Dentre essas empresas que iam surgindo com ―linhas de produção‖, a Funnies Inc. seria a intermediária da entrada de Goodman e consequentemente da Timely no mundo das histórias em quadrinhos. De acordo com Howe (2013, p. 21), a empresa foi fundada por um ex-coronel chamado Lloyd Jacquet que contratou diversos artistas para criarem novos super- heróis. Entre esses artistas estavam e que criaram, respectivamente, o Tocha Humana e Namor, o Príncipe Submarino. Os dois personagens seriam publicados em uma revista da editora, entretanto, a revista nunca saiu da gráfica e os personagens foram negociados com Goodman para serem publicados pela Timely. Tocha Humana e Namor foram publicados juntamente com outros heróis como Ka-Zar e Santo na revista Marvel Comics número 1, que possuía a significativa quantidade de 64 páginas. A revista foi lançada em 31 de agosto de 1939, horas antes de a Alemanha nazista invadir a Polônia, e foram vendidos inicialmente 80 mil exemplares, sendo que, após reimpressão, esses números aumentaram ainda mais.

As aventuras da Timely se destacavam pelo uso de ambientes reais. O palco de atuação de muitos dos seus heróis era Nova York, em detrimento das fictícias Gotham e Metrópolis, de Batman e Superman. Com isso, abriram-se ainda mais precedentes para que os ―problemas reais‖ tivessem impacto no mundo dos super-heróis. Além disso, à medida que Tocha Humana e Namor ―passeavam‖ pelos edifícios e ruas da cidade, ao compartilharem esse mesmo universo, o encontro entre os dois era inevitável e acabou por acontecer em Marvel Mystery Comics n. 8 e n. 9.52 Cria-se a ideia de um mesmo universo compartilhado pelos super-heróis, o que viria a ser recorrente nesse tipo de quadrinhos, acabando por culminar no imenso universo compartilhado da Marvel, que se estenderia posteriormente aos cinemas.

Com o sucesso crescente das histórias em quadrinhos de super-heróis, Goodman decidiu investir na criação de mais personagens como Namor e Tocha Humana, mas advindos de sua própria editora, sem o auxílio de intermediários, como era o caso da Funnies Inc. com

52 As duas edições se encontram disponíveis para leitura em http://readcomiconline.to/ 68

os dois personagens mais famosos da Timely até o momento. Nesse contexto, de acordo com Howe, destacou-se o argumentista Joe Simon:

Goodman não queria contar apenas com o estúdio de Lloyd Jacquet, principalmente se quisesse outros sucessos. [...] Quando Goodman requisitou mais um herói no estilo do Tocha Humana, um dos freelancers de Jacquet, Joe Simon, assumiu a bronca e criou o atirador de chamas Máscara Ardente [Fiery Mask]. Goodman resolveu ir diretamente a Simon e pedir para ele criar novos personagens para a Timely. Simon, ex-cartunista de jornal, nascido em Rochesterm Nova York, ganhava sete dólares por página na Funnies Inc.; Goodman pagaria doze, que ainda era menos do que pagava direto a Jacquet. Simon, negociador astuto que sempre foi, aceitou a grana (HOWE, 2013, p. 24-25).

Além de trabalhar na Timely, Joe Simon era editor-chefe da Fox Publications, onde conheceu um jovem artista chamado Jacob Kurtzberg, que ficaria conhecido com o nome Jack Kirby. De acordo com Howe (2013, p. 25), Kurtzberg cresceu em cortiços da Zona Leste de New York; com uma infância difícil, encontrava seu escape na fantasia. Criava suas próprias histórias, mas seus primeiros trabalhos foram cartuns informativos do Boys Brotherhood, um clube de voluntários criado para resgatar crianças de rua. Passou por várias agências antes de chegar à Fox.

Simon era um admirador do trabalho de Kurtzberg e, assim que se tornou funcionário da Timely, levou o artista para auxiliá-lo, ainda como freelancer, na criação de novos personagens. Juntos, criaram personagens como Red Raven (Corvo Vermelho), Marvel Boy e Vision (Visão). Foram esses trabalhos que Kurtzberg começou a assinar com o pseudônimo Jack Kirby, nome pelo qual se tornaria conhecido no meio dos quadrinhos. A dupla seria responsável pela criação do próximo ―mega-sucesso‖ da Timely, criação essa ligada ao contexto de guerra em que o país vivia.

Com Goodman demandando cada vez mais a criação de novos heróis e o contexto de guerra que invadia as histórias quadrinhos, Simon e Kirby criaram para Timely seu próprio herói patriota, o Capitão América. Tal criação deve ser compreendida, portanto, dentro do contexto comercial da indústria dos quadrinhos do período, onde a virada temática das histórias em direção à guerra provocou uma ―explosão‖ de heróis patrióticos que demonstravam a ânsia de suas respectivas editoras por parte da receita lucrativa gerada pela venda desses heróis politicamente engajados. Apesar do caráter propagandístico que poderiam ter, tais personagens eram uma resposta à demanda do mercado e não de uma encomenda do governo estadunidense. O fator mercadológico envolvendo as histórias em quadrinhos foi 69

preponderante para a popularização desse tipo de personagens, sendo o Capitão América parte dessa tendência, que começou antes dele e continuaria após sua criação com o aparecimento de novos heróis patrióticos.

Entretanto, a questão comercial foi apenas um dos elementos influentes na criação do Capitão América. Não há como desconsiderar que os heróis patrióticos expressavam as opiniões dos quadrinistas53 a respeito do conflito, e como eles os representavam junto aos leitores denotam que esses personagens eram vetores das percepções e subjetividades de seus criadores. Joe Simon queria criar um símbolo54 que representasse a opinião dos que apoiavam a entrada dos EUA, em detrimento a uma grande parcela da população que se posicionava contra o envolvimento.

Simon tinha certeza de que o Capitão América era uma criação explicitamente política: ele queria refletir a própria repulsa ao regime nazista. Achava que o movimento antiguerra era bem organizado, mas aqueles que apoiavam o envolvimento americano não tinham uma plataforma. O Capitão América foi a resposta (ROBB, 2017 p. 83).

O herói também retratava a preocupação já presente em muitos dos autores de quadrinhos da época de que Hitler deveria ser parado de alguma forma. Uma das razões para esse senso de urgência pode ser atribuída à origem desses autores: Kirby e Siegel, assim como Shuster, eram de origem judia. O Superman não chegou a participar ativamente da guerra (sua força desproporcional acabaria com o conflito rapidamente, o que era inverossímil), mas sua revista foi usada para demonstrar apoio às tropas. Segundo Kirby, com a iminência da guerra e o fervor patriótico que aos poucos surgia em alguns setores, ―era ridículo não ter um Capitão América, porque era uma ideia que seria comprada por todos‖55. , argumentista da Timely e criador de futuros sucessos como Homem-Aranha e Quarteto Fantástico, Bob Kane, o criador do Batman, e Will Eisner eram outros exemplos de escritores judeus envolvidos na produção de quadrinhos; essa grande incidência de autores judeus auxilia a compreender o porquê dos super-heróis estarem envolvidos com a guerra antes mesmo das tropas estadunidenses.

53 Profissionais envolvidos com a criação das histórias em quadrinhos. 54 No documentário ―Super-Heróis: A Batalha Sem Fim‖ (2013), uma fala de Simon testifica a questão da criação de um símbolo: ―Ele era um Tio Sam da modernidade, um cara que podia ser seu amigo, ou seu filho, ou seu pai. Ele era um símbolo.‖. 55 Fala também presente no documentário ―Super-Heróis: A Batalha Sem Fim‖ (2013). 70

Mesmo que tais autores judeus estivessem reagindo à perseguição aos judeus empreendida por Hitler, é importante notar alguns sinais que indicam que esse tipo de perseguição não era exclusividade do nazismo. Assim como Jack Kirby era um pseudônimo de Jacok Kurtzberg, Bob Kane na verdade se chamava Bob Kahn e Stan Lee era o pseudônimo de Stanley Lieber. A troca de sobrenomes judeus por nomes artísticos mais ―americanizados‖ demonstra que havia resistência a eles na sociedade estadunidense. Tal afirmação é endossada por Richard A. Hall (2011, p. 21), que afirma que escritores e artistas judeu-americanos não eram bem aceitos nos principais meios de comunicação, encontrando um lugar na mídia na indústria das histórias em quadrinhos, que nascia nas primeiras décadas do século XX, e não era um meio de status tão grande, inicialmente visto como entretenimento infanto-juvenil. Infere-se que os sentimentos antissemitas estavam, contraditoriamente, presentes nos EUA, que entre as justificativas de sua vindoura participação na Segunda Guerra Mundial, alegou a luta contra o antissemitismo de Hitler.

Tendo esse fator da influência judaica em questão nas criações nos quadrinhos, há de se considerar o teor propagandístico na criação do Capitão América de Simon e Kirby, que refletia de certo modo as posições políticas de sua dupla de criadores. Tal fato é atestado pela data de publicação da primeira revista do herói, lançada em 20 de dezembro de 1940 (apesar de sua capa datar março de 1941). O Capitão América já estava envolvido com a guerra mesmo antes da declaração de guerra dos EUA ao Japão, no dia 8 de dezembro de 1941.

Quando foi enfim publicado, o herói patriótico da Timely se tornou o principal sucesso da editora. Segundo Howe (2013, p. 29) e Hall (2011, p. 2), Captain America número 1 chegou à marca de um milhão de exemplares vendidos, números que na época eram atingidos apenas por Superman, superando as expectativas. Além do grande sucesso entre seu público- alvo, as crianças, a revista teve boa aceitação entre o público adulto, principalmente entre jovens soldados.

Pode-se dizer também que houve uma confiança da editora no sucesso do seu herói patriótico, uma vez que lhe foi dado um título próprio, algo raro no meio, visto que era comum os novos heróis estrearem em títulos já consolidados ou que traziam em seu conteúdo diferentes histórias de vários personagens; o Batman estreou na , The Shield teve sua primeira aparição na Pep Comics, Uncle Sam e Minute-Man estrearam respectivamente na National Comics e na Master Comics, mesmo o Superman, grande sucesso editorial do período, fez sua estreia na Action Comics. A estreia do Capitão América

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com seu próprio título o diferencia dos outros heróis patrióticos do período e explica o seu maior sucesso editorial em relação aos mesmos. Não se pode deixar de notar também os elementos que essa edição de estreia trouxe para captar a atenção dos leitores: um herói vestido com as cores do país, combatendo corpo-a-corpo o Führer, e sendo declarado por seus autores como um defensor das fronteiras estadunidenses.

2.2 “Sentinel of our shores”: o Capitão América como defensor do território estadunidense

A primeira edição de Captain America é mundialmente conhecida mesmo mais de 70 anos após seu lançamento. Um dos motivos desse reconhecimento é sua icônica capa, que traz o herói desferindo um soco contra Adolf Hitler, imagem que marcaria o surgimento do Capitão América, demonstrando o objetivo da criação do personagem.

Imagem 14 - Capa de Captain America número 1

Fonte: SIMON; KYRBY, 1941, capa. 72

A capa (Imagem 14) utiliza diversos elementos para ressaltar a intenção patriótica do novo personagem da Timely, dentre esses dois se destacam. O primeiro é a quase onipresença da bandeira dos EUA, sinalizada no uniforme do Capitão América e no fundo em que o logo do nome da revista está escrito. O vermelho, azul e branco acabam se destacando em meio a soldados nazistas uniformizados, que não apresentam grandes diferenças entre si. O escudo triangular do Capitão América remete ao uniforme do herói The Shield, fato esse que geraria um problema jurídico para a editora de Martin Goodman e na segunda edição de Captain America o escudo seria mudado para o formato circular utilizado até os dias atuais. O capacete do herói é adornado nas laterais por asas de águias, ave símbolo estadunidense. Além disso, possui luvas e botas de bucaneiros, que eram usadas pelos minutemen durante a Independência dos EUA. Tudo isso colabora para o que Danlei Bandeira (2018, p. 29) chama de ―iconificação do personagem‖, no caso, tornando-o um ícone nacional estadunidense. A constante presença das cores da bandeira dos EUA deixa exposta a intencionalidade patriótica e o direcionamento que o novo herói da Timely tomaria. O Capitão América foi mais uma peça do esforço de guerra estadunidense nos quadrinhos, e mais uma voz em prol da entrada do país no conflito fora das páginas das revistas.

Um segundo elemento que prontamente chama a atenção na capa dessa edição é a presença do líder nazista, Adolf Hitler, sendo golpeado pelo Capitão América, ato que demonstrava a opinião dos autores Joe Simon e Jack Kirby a respeito do que os EUA deveriam fazer com o Führer e com a Alemanha Nazista. Robb (2017, p. 92-93) ressalta que Hitler era uma figura fácil de ser retratada. Seu aspecto visual, com corte de cabelo e bigode característicos, era simples de caricaturar e o faziam um personagem facilmente reconhecido. Mas não era só o visual de Hitler que facilitava sua transposição para as páginas dos gibis. Mesmo antes dos EUA entrarem diretamente na Segunda Guerra, Hitler já era uma figura odiada e temida, encarnando a imagem de ―inimigo comum‖. Seus discursos calorosos, seus planos ―antidemocráticos‖ como chanceler, e sua visão de mundo baseada na supremacia da raça ariana56 o faziam um vilão ideal para o mundo dos quadrinhos.

Entretanto, apesar de Hitler se destacar na capa juntamente com o Capitão América, sua presença nessa edição se limita apenas a isso; nas histórias que compõem Captain America número 1, Hitler não é um personagem que participa diretamente dos enredos, é apenas citado, mas não há um momento em que a cena da capa seja reproduzida. A presença

56 Suposta linhagem mais ―pura‖ dos seres humanos, representada por indivíduos altos, fortes e claros. Seriam, de acordo com os entusiastas dessa teoria, o ápice da civilização. 73

de Hitler pode ser interpretada como um artifício para angariar leitores, visto que era uma figura conhecida da população, a ―face‖ dos conflitos na Europa, sendo a capa algo com função publicitária. Apesar disso, a imagem possui outros pontos relevantes para análise além da presença do líder alemão.

O que acontece ao redor de Hitler e do Capitão América também oferece elementos importantes para a análise. Ao fundo, um soldado nazista assiste em um grande monitor o que parece ser um sabotador explodindo uma fábrica de munições estadunidense. Outros detalhes são um mapa dos EUA e uma folha caída no chão, na qual parece estar escrita a frase ―planos de sabotagem para os EUA‖. Através desses dois elementos, percebe-se o temor de que a Alemanha pudesse atacar os EUA em seu território, ameaçando a segurança nacional estadunidense, ainda que na época a Segunda Guerra acontecesse, sobretudo, em território europeu. Sinaliza-se aqui quais seriam os perigos a ser combatidos pelo herói durante suas histórias.

A defesa do território estadunidense é ressaltada não apenas nos inimigos e seus planos em desenvolvimento presentes na capa. Logo abaixo do nome da revista, a capa anuncia o Capitão América como ―sentinel of our shores‖ (―sentinela de nossas costas‖), ou seja, um protetor das fronteiras estadunidenses. Assim, define-se a função inicial do Capitão América como um herói com o dever de proteger as fronteiras estadunidenses de invasões inimigas, ainda que a guerra estivesse se desenvolvendo de fato longe dali, na Europa. A partir disso, pode-se afirmar que o Capitão América é um herói criado por influência do temor estadunidense a respeito da segurança nacional, temor que não era apenas presente nos criadores do Capitão América, mas também era divulgado pelo presidente Roosevelt, como atestado em um Fireside Chat do dia 26 de maio de 1940, alguns dias após a invasão da França por parte da Alemanha.

Há muitos entre nós que no passado fecharam os olhos para eventos no exterior - porque acreditavam de boa fé no que alguns de seus conterrâneos lhes disseram - que o que estava acontecendo na Europa não era da nossa conta; que não importa o que acontecesse ali, os EUA poderiam sempre seguir seu curso pacífico e único no mundo. Há muitos entre nós que fecharam os olhos, por falta de interesse ou falta de conhecimento; pensando sinceramente que as muitas centenas de quilômetros de água salgada tornaram o Hemisfério Americano tão remoto que os povos da América do Norte, Central e do Sul poderiam continuar vivendo em meio a seus vastos recursos sem referência ou perigo de outros Continentes do mundo. [...] Para aqueles que fecharam os olhos por qualquer uma dessas muitas razões, para aqueles que não admitiram a possibilidade da tempestade que se aproximava

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- para todos eles, as últimas duas semanas significaram a quebra de muitas ilusões57.

É esse temor que vai dar um objetivo à missão do Capitão América em suas primeiras histórias. Sua função de defensor do território estadunidense é comprovada pelo fato de todas as missões do herói na primeira edição de Captain America se passarem dentro dos EUA. Apenas na segunda edição o Capitão fez sua primeira missão fora dos EUA. Ainda assim, a maioria das histórias das primeiras edições, escritas por Simon e Kirby, são em território estadunidense. Outra característica do Capitão América que atesta a função defensora é seu equipamento: ele não está armado com um revólver, uma espada, uma lança ou qualquer arma que seja utilizada para ataque, mas sim com um escudo, objeto utilizado para defesa. Pode-se estabelecer uma relação com a tentativa de afirmar os EUA como um país que apenas se defende das ameaças trazidas pela guerra, e só ataca tendo essa defesa como objetivo. A primeira página da primeira história do Capitão América presente nessa edição, denominada ―Case No. 1. - Meet Captain America‖ (Caso No. 1. – Conheça o Capitão América), traz mais elementos que auxiliam na compreensão do ―caráter‖ que Simon e Kirby atribuíram ao herói e o direcionamento de suas histórias.

57 Tradução livre de There are many among us who in the past closed their eyes to events abroad --because they believed in utter good faith what some of their fellow Americans told them -- that what was taking place in Europe was none of our business; that no matter what happened over there, the United States could always pursue its peaceful and unique course in the world. There are many among us who closed their eyes, from lack of interest or lack of knowledge; honestly and sincerely thinking that the many hundreds of miles of salt water made the American Hemisphere so remote that the people of North and Central and South America could go on living in the midst of their vast resources without reference to, or danger from, other Continents of the world. […]To those who have closed their eyes for any of these many reasons, to those who would not admit the possibility of the approaching storm -- to all of them the past two weeks have meant the shattering of many illusions. Discurso disponível em < https://millercenter.org/the-presidency/presidential-speeches/may-26-1940- fireside-chat-15-national-defense>. Acesso em: 29 mai. 2019, às 15h15min. 75

Imagem 15 - ―Meet Captain America‖

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 2

Nessa primeira página (Imagem 15), o quadro maior serve como uma apresentação do Capitão América e seu ajudante, Bucky, que também havia sido referenciado na capa. Os dois acenam ao leitor em frente ao que parecer ser a Casa Branca, residência presidencial estadunidense. Tal representação é mais uma tentativa de estabelecer um caráter patriótico no Capitão América, mostrando-o como um ícone estadunidense, um herói criado ―sob medida‖ para o país. Essa ligação do personagem a símbolos nacionais como a bandeira e a Casa Branca é uma tentativa de ―simbolização‖ do próprio Capitão América, visando ―familiarizá- lo‖ com os leitores, também estadunidenses, uma vez que símbolos podem ser compreendidos como instrumentos de integração social e constituintes de identidade (BOURDIEU, 1989, p. 9). É notável ainda que a cor amarela ao fundo, com um tom claro e um tanto opaco, contrasta com o colorido da roupa dos heróis, acabando por destacá-las ainda mais.

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A página traz também, no quadro inferior à esquerda, uma breve apresentação dos inimigos a serem combatidos na história: espiões quinta-colunistas, que estão infiltrados no exército estadunidense e procuram explodir uma fábrica de munições do país. A menção ao Führer não deixa dúvida sobre qual a nacionalidade desses espiões, que no transcorrer da história atingem seu objetivo de sabotar a fábrica. É justamente devido a esses ataques que o Capitão América é criado.

Ainda nessa página, pode-se destacar o quadro superior à esquerda, que mostra um processo de alistamento. A narração ressalta a dicotomia entre os ―cruéis belicistas europeus‖ e a América ―amante da paz‖.58 Atribuem-se, assim, características bélicas à Europa (sem especificar um país), colocando-a como causadora do conflito e como dominadora, ameaça a uma América (que simboliza os EUA) pacífica, que não procura a guerra, mas que a deve encarar por culpa dos europeus, que na história trazem o conflito pra dentro das fronteiras estadunidenses. Entretanto, mesmo com Simon atribuindo o pacifismo como uma característica ―americana‖ nesse contexto, fora das páginas do Capitão América, apesar de ainda não estar envolvido na guerra em seus fronts de forma direta, os EUA já haviam negociado um valor superior a US$ 50 milhões em armamentos com Inglaterra e França, tornando o militarismo um artigo de exportação, como citado por Moniz Bandeira (2009, p.111). Na prática, a atitude dos EUA não era tão pacífica quanto descreviam os criadores do Capitão América.

Diante da guerra supostamente trazida pelos europeus, os EUA teriam que reagir, e uma forma de reação apresentada aqui pelos autores é o alistamento dos ―jovens de nosso país"59, indicando que a história é definitivamente voltada para um público de leitores dos EUA. Além disso, pode-se entender também tal trecho da história como um apoio ao alistamento dos leitores com idade militar, revelando um aspecto ideológico do enredo, principalmente levando em conta a definição de Eagleton (1997, p. 53) da ideologia como uma crença voltada para ação.

A tentativa dos autores de construir a imagem do Capitão América como um símbolo nacional estadunidense não é delimitada apenas por seu uniforme, ou pelo próprio nome do herói. Steve Rogers, a identidade civil do Capitão América, é um soldado, um jovem que como vários de seus leitores também resolveu se alistar no exército dos EUA. O título de

58 Traduções livres para os termos ―ruthless war-mongers of Europe‖ e ―peace-loving America‖. 59 Tradução livre de the youth of four country. 77

―capitão‖ atribuído ao herói também não deixa dúvida quanto a seu caráter militar. De acordo com Benedict R. Anderson (2008, p. 34), a nação é um conceito imaginado como comunidade, construído com base no que ele chama de ―profunda camaradagem horizontal‖, que faz com que indivíduos sejam capazes de se sacrificar por criações imaginárias e limitadas. Em um sentido semelhante, Otto Bauer (2000, p. 58) afirma que o caráter nacional é definido pela comunhão de destino. O que une as pessoas de uma nação em um mesmo sentimento são características compartilhadas, o fato de ambos viverem na mesma cidade, caminharem pelas mesmas ruas, lerem os mesmos jornais pela manhã, falarem a mesma língua, se alistarem em um mesmo exército, atribuírem sentido parecido a uma bandeira, a um hino ou a um monumento histórico, como a Casa Branca. É essa comunhão de destino que associa ainda mais a imagem do Capitão América com seus leitores e contribui para a tentativa de torná-lo um símbolo para esses leitores.

Nesse ponto, há uma diferença entre o soldado, o Capitão América, e os também patrióticos Uncle Sam e The Shield, visto que estes, apesar de suas referências nacionalistas, não possuem uma identificação tão próxima com os leitores, tornando a comunhão de destino um pouco mais distante. Uncle Sam era a personificação de uma lenda folclórica, enquanto Joe Higgins, identidade civil de The Shield, era um agente do Federal Bureau of Investigation (FBI), um cargo que apesar de também ligado ao Estado, era menos acessível do que o cargo de recruta no exército, como era o de Steve Rogers e de vários jovens dos EUA.

Martin Goodman encomendou um personagem que encarnasse o suposto ―espírito americano‖, que utilizava a violência apenas como último recurso. Um dos objetivos mais importantes com a criação do Capitão, no entanto, era ter um personagem que se identificasse com o público leitor.

Os motivos eram puramente editoriais (comerciais), ele acreditava que, com a época de alistamento já se aproximando, dificilmente haveria uma única família americana que não tivesse um parente recrutado, seja ele um pai, um irmão, um tio etc.; um personagem estritamente patriota teria um apelo alto entre as crianças desse cenário de possível guerra (BANDEIRA, 2018, p. 27).

Apesar de o Capitão América ser um soldado, o jovem Steve Rogers teve dificuldades para ingressar no exército. Como demonstrado no enredo da história de estreia, o jovem se alistou voluntariamente, mas foi recusado no alistamento por inaptidão física, sendo apresentado como um rapaz de estatura franzina. Segundo Bandeira (2018, p. 28), Joe Simon,

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ao criar a história do futuro herói, se baseou em uma nota de jornal que relatava sobre um rapaz que foi reprovado nos exames médicos necessários para o ingresso no exército e clamava ao apelo público e seu ―espírito patriota‖ por um aval para ser aceito. Devido a essa inaptidão física, Steve Rogers é cobaia do teste de um novo soro (chamado em publicações posteriores de soro do supersoldado), que, segundo o cientista responsável, professor Reinstein (uma referência a Albert Einstein), construiria no corpo e cérebro de Steve, tecidos que aumentariam sua inteligência e estatura física a níveis surpreendentes.

Imagem 16 - ―We shall call you Captain America, son!‖

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 5

Como visto na Imagem 16, é o Dr. Reinstein quem ―batiza‖ o herói com o nome de Capitão América e, segundo ele, a América ganharia com o seu experimento força para defender as fronteiras. O quadro maior demonstra que a experiência com o soro se mostrou bem-sucedida após a aplicação e Steve Rogers sofre visivelmente uma mudança física que o deixa mais forte, longe de sua aparência franzina de antes. A ciência e seus experimentos, na mão dos estadunidenses, são mostrados como algo benéfico, ao contrário das experiências científicas conduzidas pelos nazistas. Sobre a abordagem de Joe Simon e Jack Kirby quanto uso de experiências científicas em seres humanos na criação do Capitão América, Shesmman Fernandes Barros de Melo discorre:

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[...] a criação do Capitão América faz uma analogia a uma das mais brutais atrocidades cometidas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a utilização de cobaias humanas em experiências. Semelhante ao que o governo estadunidense realizou no mundo ficcional, os médicos da Alemanha nazista realizaram no mundo real, inúmeras ‗experiências‘ desumanas, cruéis, e muitas vezes mortais em milhares de prisioneiros dos campos de concentração (MELO, 2012, p. 50).

Apesar do antagonismo na guerra, a aparência de Steve Rogers após a aplicação do soro, a aparência do soldado ideal de Simon e Kirby, branco, alto e forte, de porte atlético, apresenta semelhanças com o ideal ariano de Hitler, demonstrando que tal estereótipo não era valorizado apenas por nazistas. Essa semelhança entre padrões ideais de aparência aponta para outra semelhança existente entre os dois países: a eugenia.

A eugenia é uma teoria do final do século XIX e início do século XX, criada pelo inglês Francis Galton, consistindo no estudo de agentes que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente. Resumidamente, pode- se dizer que a eugenia seria a ―busca pela melhoria da raça humana sob o ponto de visto biológico‖ (DIWAN, 2018, p. 37). A eugenia trazia em suas ―entrelinhas‖, pretensamente científicas, o preconceito. Entre os principais objetivos de Galton com a eugenia, estava evitar o nascimento de ―incapazes‖, através da esterilização ou do controle sobre os fluxos imigratórios, por exemplo, e estimular a procriação dos ―bem-nascidos‖, entre os mais ricos.

De acordo com Pietra Diwan (2018, p. 33), o crescimento intenso das cidades no final do século XIX, a pobreza e desigualdades sociais geradas por tal crescimento alertaram a burguesia para alguma forma de controle sobre a multidão que surgia, e que devido a suas numerosas fileiras, era temida pelas classes dominantes. A eugenia se apoiava no darwinismo social, que adaptava para o meio social a premissa de Charles Darwin da evolução como consequência da luta pela vida, da sobrevivência das espécies mais adaptadas biologicamente. Através disso, as classes dominantes do final do século XIX e início do XX, buscavam uma base científica para o controle e permanência no poder. Uma dessas formas de controle foi a eugenia. A pobreza passa a ser vista como sinônimo de perigo e associada à degeneração física. Cabe ressaltar que uma das bases da eugenia de Galton é que determinadas características seriam transmitidas entre os indivíduos por hereditariedade e não como resultado do meio ambiente. Talentos, doenças mentais e marginalidade, seriam heranças genéticas (DIWAN, 2018, p. 40-41). Sendo assim, a pobreza não seria uma consequência das desigualdades sociais, da má distribuição de renda, da exploração, mas sim genética, e que deveria ser detida por meio de métodos de ―melhoria da raça‖. 80

O nazismo teve como uma de suas principais características a eugenia, ferramenta na busca pela suposta ―raça pura‖, a raça ariana. Segundo Diwan (2018, p. 64), apesar de se popularizarem a partir da ascensão de Hitler ao poder, em 1933, os ideais de melhoramento da raça na Alemanha já vinham sendo debatidas em períodos anteriores. Em 1905 o eugenista Alfred Ploetz fundou a Sociedade Alemã para Higiene Racial, primeira organização do gênero na Alemanha. Após a Primeira Guerra Mundial, durante a República de Weimar, os eugenistas alemães começaram a dar maior ênfase para a ―regeneração‖ do homem ariano, com o objetivo de reduzir os custos sociais daqueles que eram vistos como ―improdutivos‖ (DIWAN, 2018, p. 65), demonstrando assim a influência da economia nos aspectos sociais.

Entretanto, o auge das doutrinas eugênicas na Alemanha será mesmo a partir de 1933, quando é aprovada a primeira lei de esterilização da Alemanha. Em 1935, são aprovadas as Leis Raciais, que traziam algumas medidas como o controle e proibição de casamentos entre indivíduos com doenças genéticas e a proibição de casamentos inter-raciais. Com o progresso do regime as medidas foram ficando mais radicais, como exemplificado pelo programa de eutanásia que ficou conhecido como T4, que, de acordo com Kitchen (2009, p. 136), até setembro de 1939, tinha assassinado cerca de 5 mil crianças deficientes. Além dos deficientes físicos e mentais, outros ―indesejáveis‖ assassinados pelo regime nazista foram judeus, ciganos, homossexuais, alcoólatras e opositores do regime.

Os nacional-socialistas, portanto, combinavam a eugenia com sua forma particularmente venenosa de antissemitismo e racismo, criando uma mistura verdadeiramente demoníaca. Decidiam quem era ―normal‖ e ―saudável‖ e se empenhavam em destruir os que não se enquadrassem nesses critérios. (KITCHEN, 2009, p. 132)

Apesar da ―popularidade‖ obtida durante o regime, o uso da eugenia não é uma exclusividade do nazismo. No início do século XX, as ideias eugênicas estavam em voga em várias partes do mundo, inclusive nos EUA. Em 1903, foi criada a primeira sociedade eugênica estadunidense, a Associação Americana de Reprodução, que a partir de 1905 passou a ter um Comitê de Eugenia. A primeira lei de esterilização foi implantada nos EUA em 1907. Diwan (2018, p. 57) ressalta que entre 1907 e 1949, estima-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido esterilizadas nos EUA. Existiam no país concursos populares de Fitter Families (Famílias em Forma) e Better Babies (Melhores Bebês), que avaliavam famílias e bebês respectivamente. No caso do primeiro, de acordo com o estado mental, emocional, físico e intelectual, e do segundo, levando em conta a educação, higiene e forma física. A Sociedade

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Americana de Eugenia (AES), criada em 1925, apoiava a esterilização eugênica, a segregação e as leis de restrição ao casamento entre doentes mentais e ―incapazes‖ (DIWAN, 2018, p. 58- 59).

Destaca-se ainda o envolvimento do empresariado estadunidense com a propagação da eugenia, e isso não apenas dentro dos EUA. O empresário E. S. Gosney foi o fundador da Fundação para Aperfeiçoamento Humano, instituição que conduziu o maior programa de esterilização dos EUA, implantado na Califórnia, e que, segundo Diwan (2018, p. 60), também apoiou o programa de esterilização da Alemanha durante o nazismo. O Instituto Kaiser Wilhelm (KWI), um dos maiores divulgadores da eugenia na Alemanha, recebeu financiamento da Fundação Rockfeller, que construiu suas instalações em 1927. A eugenia só começou a ser rechaçada pelos EUA e pela maioria da comunidade científica do mundo após a Segunda Guerra Mundial, quando já estava associada à imagem do nazismo.

É importante diferenciar as duas categorias de eugenia: eugenia positiva e eugenia negativa. Diwan (2018, p. 50) explica que a eugenia clássica de Galton seria uma eugenia positiva, que visava melhorar a população geneticamente através de casamentos entre os ―bem-dotados biologicamente‖ e de programas educacionais que estimulavam uma reprodução consciente entre casais saudáveis ao mesmo tempo em que desencorajavam a procriação dos ―inferiores‖. Os concursos entre famílias e bebês que se tornaram mania nos EUA se utilizavam da eugenia positiva, que estimulava os ―bem-nascidos‖. Já a eugenia negativa via como prioridade ―livrar‖ a espécie da degeneração através da esterilização eugênica, consentida ou não; da segregação, exemplificada pelo confinamento dos ―indesejáveis‖ em sanatórios; das leis para restrição de imigração, eutanásia, infanticídio e aborto. As medidas tomadas contra os grupos vistos como geneticamente inferiores durante o nazismo são expressões da eugenia negativa. É fundamental frisar que os termos ―eugenia positiva‖ e ―eugenia negativa‖ são conceitos criados pelos próprios teóricos da eugenia, não apresentando no presente trabalho um juízo de valor que possa apontar para algo benéfico a respeito dessa teoria. A eugenia, em suas múltiplas manifestações, representava o preconceito, racial e de classe, presente no darwinismo social.

Considerando então essa diferenciação, pode-se dizer que a transformação de Steve Rogers, conduzida pelo elemento fantasioso representado pelo soro do supersoldado, foi um exemplo de eugenia positiva, uma vez que modificou as características físicas do recruta, transformando um rapaz raquítico e de baixa estatura em um soldado alto e corpulento, mais

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rápido, mais ágil, produzindo assim uma suposta ―melhoria‖ genética. A ideologia eugenista influenciou a representação de Steve Rogers, e sua aparência após a aplicação do soro remete não só ao ideal ariano de Hitler, mas ao ideal físico aceitável e buscado pelos eugenistas. O Capitão América era o ―tipo eugênico‖ ideal do início do século XX.

O Capitão América era também o soldado ideal dos EUA, o padrão de ―bom combatente‖ patriota, pronto a se sacrificar pela nação. As histórias mostram um Capitão América sempre pronto e ávido pelas missões e que nunca foge do dever de defender o país, fazendo o necessário para cumpri-lo, como mostra comicamente a Imagem 17.

Imagem 17 - O Capitão América vai à Europa

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 20

A Imagem 17 é um trecho da história denominada ―Traped in the nazi Strong-hold‖ (Preso na fortaleza nazista), segunda história presente em Captain America número 2. Nela Steve Rogers e seu ajudante, Bucky, se disfarçam para irem à Europa (a primeira vez que isso acontece em uma história do herói), em busca do financista Henry Baldwin, que havia prometido auxílio financeiro à Grã-Bretanha e acabou raptado por espiões nazistas. Apesar do aspecto cômico do disfarce de uma senhora idosa sendo usado por Rogers, o que também denota a faceta mais infantil e lúdica das histórias do Capitão América, é importante ressaltar que o personagem quebra um padrão social da época ao se vestir de mulher, mas a mensagem

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transmitida pelos autores é clara: qualquer sacrifício é válido pela nação e, em tempos de guerra, até mesmo alguns padrões podem ser rompidos em prol da causa.

Ainda sobre essa história, como mencionado, o personagem Henry Baldwin promete financiar a Grã-Bretanha na guerra. O personagem é apresentado logo no início da história, em uma conferência nos EUA, onde outro personagem o anuncia para a multidão, ressaltando que havia chegado a hora das democracias se unirem e que ―o destino do mundo depende da vitória britânica‖60. Tal fala se encaixa com discursos de Roosevelt anteriores à entrada dos EUA na Guerra, em que o presidente ressaltava a importância de o país auxiliar financeiramente os países que se opunham ao Eixo, e demonstra um alinhamento ideológico de Joe Simon e Jack Kirby com Roosevelt. Em um quadro posterior, Bucky anuncia: ―é isso que eu chamo de um americano de verdade!‖61, e Steve Rogers completa dizendo que mais pessoas como Baldwin eram necessárias. O soldado ideal, construído por Simon e Kirby, não apenas se sacrifica e faz o que for preciso pela nação, mas também apoia aqueles que vão ao auxílio da pátria.

Os roteiros das histórias a todo o momento ressaltam, através de outros personagens, qualidades do Capitão América. Na história de estreia, o jovem Bucky, antes de descobrir a identidade secreta de Steve Rogers, declara que gostaria de ser como o Capitão América, demonstrando a intenção dos autores em transformar o novo personagem em uma inspiração para o público infanto-juvenil. Em uma história de Captain America número 4, após mais uma missão de combate a espiões no território estadunidense, o herói é elogiado pelo presidente dos EUA (que é apenas referido como ―President‖, sem nome próprio), que ao ouvir as notícias declara: ―seja quem for e onde estiver o patife, a América agradece a ele. Seus feitos viverão para sempre!‖62. Em outra história, o sargento Duffy, superior de Steve Rogers e Bucky no acampamento de Forte Leigh, e que se mostra sempre exigente e crítico de seus recrutas, chama a atenção dos soldados Rogers e Barnes, ao dizer que se eles tivessem metade do cérebro do Capitão América chegariam em algum lugar dentro do exército. O personagem Capitão América é construído por Joe Simon e Jack Kirby como um espelho não só para as crianças, mas também para militares e para os políticos estadunidenses, ainda hesitantes em enviar tropas estadunidenses ao front na Europa nesse período. As histórias em quadrinhos do herói tentam transmitir a ideia que todos, da mais inocente criança ao

60 Tradução livre de The fate of the world depends on Britain‘s victory [...]. 61 Tradução livre de Now he‘s what I call a real american! 62 Tradução livre de Whoever and wherever the rascal is, America thanks him. His deeds will live forever! 84

presidente dos EUA, deveriam ter a bravura do Capitão América no combate aos ―inimigos da democracia‖.

Outro aspecto que se destaca na personalidade construída pelos autores ao Capitão América é o rigor usado pelo herói contra seus inimigos. O personagem se refere aos inimigos, em vários momentos, com termos pejorativos, por exemplo, ―vermes‖. Em determinada história, ao combater alguns espiões nazistas, Steve Rogers os chama de ―ratzis‖, um neologismo misturando os termos ―rats‖ (ratos) e ―nazis‖. Aliás, ―rato‖ é um termo constantemente usado nas histórias em relação aos integrantes do Eixo, tanto pelo Capitão América, quanto pelo jovem Bucky.

A violência exercida pelo Capitão América contra seus inimigos não é apenas verbal, e se faz presente também na forma como esses vilões são combatidos pelo herói. Um exemplo é visto logo na primeira história do herói, como mostrado no trecho presente na Imagem 18.

Imagem 18 - Capitão América x Espião

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 7

Logo após a aplicação do soro em Steve Rogers, um dos homens do governo que assistiam a experiência se revela um espião nazista e é prontamente detido pelos socos do regenerado soldado Rogers e, após um desses golpes, é arremessado, tropeça em um equipamento de laboratório, morrendo eletrocutado, cena vista nos dois primeiros quadros da Imagem 18. No quadro inferior da esquerda, Steve Rogers declara que o espião ―teve o 85

destino que mereceu!‖63, justificando a violência e a morte, desde que fossem destinadas a um ―merecedor‖, como era o caso dos ―inimigos da democracia‖. Simon e Kirby representavam dessa forma a opinião daqueles que pensavam que os crimes cometidos por nazistas deveriam ser combatidos com violência e os cometedores desses crimes mereciam a morte. Não há preocupação com a humanização dos inimigos (raramente são atribuídos nomes aos vários espiões combatidos nas histórias) e nem com o nível da violência utilizada para detê-los, não levando em consideração que o público-alvo da publicação é infanto-juvenil.

Um símbolo patriótico, expresso tanto a partir de sua aparência quanto de seus discursos, um defensor do território estadunidense e de seus ideais, um modelo para novas gerações, para soldados e para homens poderosos, um combatente implacável de todos que ameaçassem os auto-atribuídos valores de seu país: o Capitão América, construído por Joe Simon e Jack Kirby buscava representar todos esses aspectos, ser uma figura de estabilidade em meio ao caos da guerra, e o símbolo do que deveria ser feito pelos EUA em relação a esse conflito, de acordo com a opinião de sua dupla de criadores. Como o jovem Steve Rogers, o país deveria se colocar a frente do conflito e não fugir de sua missão heroica, como ―guardião da democracia‖. O Capitão América era a representação do que, pra muitos estadunidenses, sobretudo os patriotas mais ―exaltados‖, deveria ser um ―verdadeiro americano‖, como atesta a fala do autor de histórias em quadrinhos, :

Demonstrando tanto a grandiosa extravagância dos super-heróis quanto o espírito de nacionalismo que agita a bandeira, o Capitão América foi o consumado chauvinista e a mais absoluta certeza de sucesso... [ele] não era uma encarnação de características humanas, mas uma ideia pura. Ele não era um homem, mas todos os homens; não um ser, mas um deus cumulativo que simbolizava a realidade interior do homem. Ele era a verdade americana. (STERANKO, 1970, p. 54)

As histórias em quadrinhos que tiveram como temática a guerra eram, como destaca Scott (2011, p. 7), uma forma de explicar um mundo cada vez mais confuso e complexo para crianças e adolescentes, tendo uma função ―tradutora‖ da realidade para esse público. É claro, entretanto, que essa tradução não era neutra ou imparcial, e seguia o direcionamento dado pelos autores, bem como suas concepções ideológicas. O Capitão América era a personificação de uma concepção simplista e maniqueísta da guerra, em que os EUA representavam o bem, a inocência, a igualdade, a paz antibélica, ignorando as contradições presentes do país, como a colaboração com o belicismo dos Aliados, a disputa pelo domínio

63 Tradução livre de A fate he well deserved! 86

no Pacífico e as concepções segregacionistas presentes dentro das fronteiras estadunidenses. A tentativa de tradução do contexto político e social feita pelos autores para o público infanto- juvenil se tornou ainda mais significativa com a criação de personagens coadjuvantes que buscavam aumentar a identificação e envolvimento dos leitores com as histórias vistas nos quadrinhos, como é o caso do sidekick do Capitão América, Bucky.

2.3 Bucky: sidekicks e a inclusão do leitor no esforço de guerra

Junto aos super-heróis que se popularizaram nas histórias em quadrinhos no final da década de 1930 e durante a década de 1940, destacam-se os personagens conhecidos como sidekicks, os ajudantes dos heróis. Esses coadjuvantes auxiliam os protagonistas em suas aventuras e não são uma particularidade apenas dos quadrinhos. Um dos grandes símbolos da literatura inglesa, o detetive Sherlock Holmes, tinha como coadjuvante o sempre presente Dr. Watson; o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, era acompanhado por Sancho Pança. Esse tipo de personagem servia como alguém com quem os protagonistas pudessem dialogar, exercendo uma importante função narrativa.

Nas histórias em quadrinhos, os sidekicks também tinham a função de estabelecer diálogo com os heróis protagonistas em prol de uma melhor fluidez narrativa; eles tinham, no entanto, uma característica particular em relação aos sidekicks da literatura: a faixa etária. Esses ajudantes eram jovens, muitas vezes crianças, sendo uma tentativa dos autores de quadrinhos de criar maior identificação dos jovens leitores com os personagens das revistas. O mais conhecido desses ajudantes é, provavelmente, Robin, o ―Menino Prodígio‖, parceiro mirim do Batman. Patati e Braga (2006, p. 82) ressaltam que ao invés dos leitores se identificarem com Batman, um adulto muito mais velho que boa parte deles, agora podiam se identificar com um personagem cuja idade se aproximava mais da sua, e que também simbolizava a vontade dos leitores de viverem as aventuras lado a lado com seus heróis. Era como se o leitor estivesse ―corporificado‖ na história a partir da figura do sidekick.

O sucesso desse tipo de personagem é atestado pela proliferação deles junto a diferentes heróis. O Tocha Humana era acompanhado por Toro, o Arqueiro Verde tinha a companhia de Speedy (no Brasil conhecido como Ricardito), Uncle Sam era auxiliado pelo órfão Buddy e The Shield tinha a ajuda do garoto Simmons Dusty, que assim como ele teve o

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pai morto por agentes estrangeiros. Até mesmo o Superman contava com o fotógrafo Jimmy Olsen como a referência jovem de suas histórias. Com o Capitão América não foi diferente, e desde a primeira edição de sua revista o personagem contou com a presença de Bucky. O garoto, apresentado como mascote do Regimento do Forte Leigh, descobre a identidade do Capitão América em uma noite em que vê Steve vestindo o traje do herói, preparando-se para sair em missão. A partir desse momento, Bucky passa a ser um protetor das fronteiras estadunidenses juntamente com o Capitão, acompanhando-o em suas aventuras.

Aparentemente, Bucky Barnes fica o tempo todo acampando com o regimento, mesmo sendo uma criança, inclusive exercendo funções semelhantes às de soldados, como limpeza, personagem até mesmo veste uniforme como os soldados. A única diferença de Bucky em relação aos demais recrutas é a idade. Nas edições de Captain America escritas por Simon e Kirby não há um aprofundamento quanto à vida pessoal de Bucky, nem uma justificativa explícita para que ele exerça funções e tenha atitudes de um adulto; a justificativa nas histórias é implícita: ao defender o território estadunidense, combater nazistas, dar exemplos de civilidade e altruísmo junto ao exército, Bucky pode ser interpretado como um modelo a ser seguido pelos leitores. Mesmo que crianças na ―vida real‖ não pudessem ser super-heróis ou se juntar as fileiras do exército antes da idade mínima, elas poderiam internalizar valores semelhantes aos do sidekick e assim como o jovem personagem apoiava o Capitão América, poderiam apoiar moralmente também os soldados, que podiam ser seus pais, irmãos ou vizinhos.

O apoio dado por Bucky ao Capitão América, porém, não é apenas moral. O personagem combate os inimigos fisicamente, em roteiros que mais uma vez ignoram o fato de ele ser uma criança. Tais combates apelam para situações de uso de violência sem censura por parte do personagem, como demonstrado na Imagem 19, situações essas que seriam impensáveis nas histórias em quadrinhos em períodos posteriores.

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Imagem 19 - Bucky em ação

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 8

A Imagem 19 faz parte de uma história em que Bucky se infiltra em um grupo de mendigos que trabalhavam como agentes nazistas. Na cena em questão, ele os ameaça, portando uma metralhadora, demonstrando novamente a propensão dos autores em dizer que em tempos de guerra tudo vale em prol da causa e determinados padrões, como uma criança manuseando uma arma de fogo, podiam ser quebrados. É importante destacar que nesse período não havia uma censura rigorosa nos conteúdos que eram publicados nas histórias em quadrinhos64. Nessa mesma história, Bucky é ameaçado de ser marcado com um ferro em brasa na forma de uma suástica e posteriormente utiliza o mesmo objeto para deter um inimigo.

Bucky é representado como um soldado na frente da linha de guerra, independente da sua idade, encabeçando, juntamente com o Capitão América, o combate a espiões nazistas em território estadunidense, utilizando de todos os recursos necessários para cumprir sua missão. O jovem sidekick é a principal ferramenta de identificação das histórias do Capitão América junto aos leitores infanto-juvenis, entretanto não é a única.

64 Apenas na década de 1950 passou a valer regras mais rigorosas de controle de conteúdo, com a aprovação do Comics Code Authority, uma forma de autocensura criada pelas editoras de quadrinhos como resposta a protestos de alas mais conservadoras da sociedade estadunidense, gerando o que Callari (2016, p. 80), chama de ―infantilização das histórias em quadrinhos‖, fazendo com que as fossem vistas como uma forma de arte menor e destinada apenas ao público infantil. 89

Imagem 20 - Torne-se um membro das Sentinelas da Liberdade

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 8

A Imagem 20 é o último quadro presente na história de estreia do Capitão América, é um convite às crianças para se tornarem membros do ―Sentinels of Liberty‖ (Sentinelas da Liberdade), grupo de ajudantes do Capitão América. Através do envio de 10 centavos de dólares (o mesmo preço da revista) ao endereço da Timely, o leitor receberia um cartão de sócio e um distintivo, como os mostrados na imagem, que o atestariam como membro do grupo. A função primária do anúncio era, provavelmente, uma ideia da Timely para perpetuar a imagem de seu novo personagem, através da criação de um fã-clube e angariar mais fundos. Segundo Scott (2011, p. 64), os fundos provenientes de tal ato não foram prometidos ao exército ou outra instituição governamental; o dinheiro acabou ―embolsado‖ por Martin Goodman. É importante destacar que apesar representação do herói voltada ao patriotismo, através de seu uniforme e da função de defensor das fronteiras estadunidenses, sua criação não possui ligação com alguma iniciativa governamental. O Capitão América foi mais uma das criações editoriais de seu tempo ligado ao contexto da guerra e refletindo a tendência do mercado no período.

Entretanto as opiniões pessoais de Simon e Kirby a respeito do conflito também fazem parte da construção das histórias, e se pode interpretar que no convite aos Sentinels of Liberty é transmitida também a mensagem de apoio ao envolvimento dos jovens leitores com a guerra, até mesmo as crianças, principais leitores e alvos do anúncio. O convite era para aqueles que queriam ajudar o Capitão ―em sua guerra contra os espiões e inimigos em nosso 90

meio que ameaçam nossa própria independência...65‖. Por mais que o grupo anunciado fosse um fã-clube, era também um incentivo às crianças para que permanecessem alertas, observassem possíveis espiões ao seu redor; uma sugestão para que vigiassem atitudes suspeitas de vizinhos ou conhecidos, atentando-se para qualquer coisa que indicasse que representavam perigo para a pátria. A ideologia da guerra total foi exposta no anúncio, indicando qual seria a função dos mais jovens que, ao vigiar seus vizinhos à procura de quintas-colunas, podiam se tornar tão importantes quanto seu super-herói favorito. Os Sentinels of Liberty acabam se materializando nas próprias histórias, como, por exemplo, em Captain America número 6, quando algumas crianças que fazem parte do grupo ,junto a Bucky, ajudam o Capitão América a deter uma gangue de ladrões de joias.

A presença do ajudante Bucky junto ao Capitão América e o convite aos leitores para serem parte do grupo Sentinelas da Liberdade eram a maneira de os autores levarem as crianças leitoras a se tornarem parte do esforço de guerra que nascia entre os que apoiavam a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. O objetivo das histórias se mostra ser não apenas entreter, mas também educar os corações e mentes do público infantil indicando padrões de comportamento a serem seguidos, caracterizando quem eram os inimigos e como eles deveriam ser combatidos, mostrando que a América (que na verdade simbolizava os EUA) deveria ser protegida, enfim, fazendo com que os leitores pudessem se imaginar lutando do lado certo, sendo parte do conflito do ―bem‖ contra as forças ―do mal‖.

Bucky não é o único coadjuvante de destaque nas histórias do Capitão América. Outra personagem presente em diversas histórias do herói é Betty Ross, uma agente do FBI, que inclusive participou do projeto que transformou Steve Rogers e lhe deu suas habilidades; ela utilizou o codinome de Agente X-13 e conduziu outros agentes do FBI e o franzino Rogers até o Dr. Reinstein e à sala de testes. Em uma edição posterior é revelado que o pai de Betty era um general do exército que foi morto por espiões e, por esse motivo, a personagem decidiu se tornar uma agente do FBI.

Betty Ross é a presença feminina mais constante nos enredos da revista Captain America. Daiany Ferreira Dantas (2006, p. 50) observa que as personagens femininas nas histórias em quadrinhos durante as décadas de 1930 e 1940 são marcadas pelo foco na representação do corpo, envoltas pelos símbolos e padrões de beleza da época, e diferencia

65 Tradução livre de ―in his war against the spies and enemies in our midst who threaten our very independence…‖ 91

tais personagens em duas categorias: donzelas e vilãs. As donzelas seriam as ―boazinhas‖, desenhadas com belos rostos e aspectos angelicais; de caráter passivo, eram retratadas na maioria das vezes em postura de submissão, constantemente em perigo e precisando ser salvas pelo herói. Já as vilãs tinham forte apelo sexual, com um desenho de corpo que ressaltava curvas e tentavam seduzir os heróis com a sensualidade. Betty Ross se encaixava na primeira categoria, da ―donzela em perigo‖, como demonstrado na Imagem 21.

Imagem 21 - Capa de Captain America número 3

Fonte: marvel.com66

Na capa de Captain America número 3 (Imagem 21), Betty e Bucky aparecem presos pelo vilão Caveira Vermelha, sendo que Betty está presa a uma espécie de canhão prestes a ser atirado. O Capitão América surge na imagem agredindo um capanga na tentativa de salvar os dois coadjuvantes. Apesar de ser uma agente do FBI, o que de certa forma elevava o status da personagem, essas situações em que Betty aparece presa por vilões, sendo resgatada pelo

66 Disponível em < https://www.marvel.com/comics/issue/7871/captain_america_comics_1941_3>. Acesso em: 19 de junho, 2019, às 16h27min 92

Capitão América e até mesmo por Bucky eram recorrentes. Como destacado por Dantas (2006, p. 51), as mulheres dos quadrinhos, seguindo as convenções sociais da época, eram construídas para o outro, então fato de Betty sempre se encontrar em perigo acabava por ser uma forma de o enredo demonstrar a bravura e heroísmo do Capitão América ao salvá-la. A personagem vive, assim, em função do herói, sendo privada de subjetividade própria.

Bucky e Betty Ross se juntavam ao Capitão América em uma representação unidimensional e simplista da guerra. O Capitão América e seus companheiros foram parte da tendência dos heróis patrióticos, que representavam em suas histórias a imagem idealista de seus autores a respeito do papel dos EUA no conflito que ocorria na Europa. Por mais que ainda houvesse a indecisão de parte da população quanto a ida ou não do país à guerra, para esses autores, muitos deles judeus, os EUA, supostamente defensores da liberdade e da democracia, deveriam deter imediatamente Hitler e as demais forças do Eixo, sendo os heróis a personificação de como isso deveria ser feito: rapidamente e com violência. As contradições estadunidenses, como a forma com que eram tratadas as minorias dentro de suas fronteiras, foram ignoradas. Dentro dessa concepção da guerra, o ―bem‖, representado na figura do herói, mantenedor do status quo, e de seus aliados, era oposto pelo ―mal‖, simbolizado pela figura dos vilões, personagens cuja construção é tão importante para análise quanto a do herói.

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CAPÍTULO 3

“INIMIGOS DA DEMOCRACIA”: OS VILÕES NAS HISTÓRIAS DO CAPITÃO AMÉRICA

3.1 O vilão nas histórias em quadrinhos

Não é um exagero dizer que na narrativa heroica o vilão tem tanta importância quanto o herói. Apesar de o herói ser a força motriz dessas narrativas, o personagem ao redor do qual tudo circula, o vilão muitas vezes se torna uma peça importante e recorrente, até mesmo tão popular quanto o herói. Mas o que é o vilão ou a vilã?

A obra O herói de mil faces, de Joseph Campbell (2007), discorre sobre a importância do mito nas sociedades e como o caminho tomado pelos protagonistas desses mitos apresentam recorrentes semelhanças, mesmo em sociedades diferentes. Os ―heróis‖ desses mitos, como Campbell os chama, mesmo com diferenças entre si, seguem determinados padrões em sua trajetória, dividida em três fases: partida, iniciação e retorno. Constitui-se, assim, o que se convencionou chamar ―jornada do herói‖. Cada fase possui suas próprias etapas e durante a fase da iniciação a primeira etapa destacada pelo autor é ―o caminho de provas‖, onde o herói enfrentará diversos perigos e provações (CAMPBELL, 2007, p. 102).

Um dos perigos enfrentados pelo herói é encarnado na figura do vilão, modelo de personagem recorrente nas mitologias heroicas, como descrito por Campbell:

A figura do monstro-tirano é familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até pesadelos do mundo; suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as mesmas. Ele é o acumulador do benefício geral. É o monstro ávido pelos direitos do ―meu e para mim‖. [...] onde quer que ponha a mão, há um grito [...]: um grito em favor do herói redentor, o portador da espada flamejante, cujos golpes, cujo toque e cuja existência libertarão a terra (CAMPBELL, 2007, p. 25).

A partir da apresentação feita por Campbell a respeito do ―monstro-tirano‖, compreende-se dois pontos importantes a respeito da figura do vilão: o papel do personagem para o desenvolvimento do herói e a repetição de diferentes personificações do vilão em diferentes histórias.

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A primeira relação mais evidente entre o herói e o vilão é a antítese que esse último personagem representa em relação ao protagonista. O herói representa os valores vistos como positivos pela sociedade em que está inserido, o que é entendido como ético por tais sociedades, sendo cumpridor dos modelos sociais e morais vigentes, um representante da estabilidade e um mantenedor do status quo (BANDEIRA, 2018, p. 14). O vilão, por sua vez, é o oposto do herói, representando ―o que é errado, injusto e controverso, que foge dos princípios morais e éticos, ou seja, o vilão, dentro de uma história de ficção, representa o mal‖ (FARIA, 2012, p. 134). Dessa forma, é adequado dizer que o vilão já ―serve‖ narrativamente ao herói na medida em que faz com que os ―valores heroicos‖ sejam amplificados quando comparados com os atos imorais do vilão.

A função narrativa do vilão se mostra muito importante para a construção do herói não só pela oposição das atitudes de ambos, mas também para a construção de seu caráter ―mítico‖. O vilão será a barreira para que o herói alcance seus objetivos ou, como na maioria das vezes, o próprio objetivo geral da missão do herói, quando se apresenta como uma ameaça à estabilidade e à ordem vigente da sociedade na qual os personagens estão inseridos. Como ressaltado por Mônica de Lima Faria (2012, p. 159), o herói só se tornará de fato um herói quando superar as provações, quando vencer o vilão, que personifica tais provações. Sem a existência de um vilão dificilmente existiria um herói (e o contrário também pode ser afirmado), visto que é o combate ao vilão que fará o herói evoluir, se fortalecer e ser mitificado. Há portando uma relação dialógica e de dependência entre herói e vilão.

É importante ressaltar, quando se refere aos heróis e vilões, que termos como ―moral‖, ―ética‖, ―bem‖ e ―mal‖ devem ser considerados em relação às sociedades onde são produzidas as histórias, tomando como referência as próprias noções de valores dessas sociedades. De acordo com Faria (2012, p. 22), a noção do que é certo ou errado modifica-se de acordo com o contexto histórico-social em que esses personagens são criados.

Destaca-se também outro aspecto relativo ao vilão que é a repetição de seu arquétipo em diferentes histórias, de diferentes sociedades, em diferentes épocas, visto que cada sociedade tem suas próprias mazelas, suas próprias noções de ―imoralidade‖ que podem ser personificadas na figura do vilão. Nessa perspectiva, Faria (2012, p. 168) aponta o exemplo do Demônio como o primeiro vilão da cultura judaico-cristã, representado como alguém que induz ao pecado, a expressão máxima da imoralidade de acordo com a cosmovisão judaico- cristã. Ainda de acordo com Faria (2012, p. 162-163), a Antiguidade oferece outros exemplos

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de vilões, como a Medusa, que, assim como as sereias, simbolizava o perigo da figura feminina fatal e que, principalmente no caso das sereias, seduz e mata o homem, demonstrando assim a visão nutrida pela sociedade grega do período a respeito da mulher.

Posteriormente, a figura do vilão se espalharia para outros meios culturais, como a literatura e o cinema. O Professor Moriarty, antagonista do detetive Sherlock Holmes, Capitão Gancho, inimigo de Peter Pan, Sauron, de O Senhor dos Anéis e Drácula, são alguns dos vilões populares da literatura e que, inclusive, ganharam reinterpretações no cinema. O cinema não apenas reproduziu personagens da literatura, mas também produziu vilões de grande popularidade entre o público, como Freddy Krueger, Jason e Darth Vader.

As histórias em quadrinhos também se apresentaram como um território fértil para a criação de vilões que, por vezes, se tornaram tão icônicos quanto os heróis contra os quais lutaram. O exemplo mais conhecido talvez seja do vilão Joker, conhecido no Brasil como Coringa. O vilão é o principal antagonista do herói Batman, sendo caracterizado por sua roupa e maquiagem de palhaço, além do uso do humor sarcástico e sua risada. A popularidade do personagem se mostrou tão grande a ponto de, em 1975, estrelar sua própria revista, algo incomum para um vilão no período.

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Imagem 22 - Capa de The Joker número 1

Fonte: Guia dos Quadrinhos67

A capa da primeira edição (Imagem 22) traz o Coringa combatendo alguns dos outros vilões de Batman (Charada, Pinguim, Duas-Caras, Mulher-Gato) e dizendo que a revista pertencia ao inimigo número 1 do Batman, que no caso era ele. O uso de cores mais vibrantes de seu uniforme e sua sorridente face demonstram o caráter humorístico do personagem que permearia sua revista, escrita por Dennis O‘Neil, argumentista recorrente nas histórias do Batman, e desenhada por Irv Novick e Dick Giordiano, ambos também com passagem pela revista do ―homem-morcego‖. Atribui-se como influência sobre a iniciativa de produzir uma revista protagonizada pelo vilão a popularidade ampliada que o personagem obteve com a série de Televisão ―Batman‖, exibida entre 1966 e 1968. Na série, o Coringa foi interpretado pelo ator Cesar Romero e, seguindo a tendência de tal produção, recebeu uma abordagem mais humorística e mais leve, mesmo que o personagem continuasse sendo o antagonista. No

67 Disponível em . Acesso em: 07 fev. 2020, às 15h51min. 97

cinema, o personagem foi representado em uma roupagem mais ameaçadora e soturna, sendo interpretado por atores como Jack Nicholson, Heath Ledger e Joaquin Phoenix.

Os vilões marcaram também a vida editorial do Capitão América. Segundo Faria (2012, p. 29), o vilão, assim como o herói, é uma imitação do real, sendo assim um produto do contexto histórico-social onde é criado. Nascido em um contexto marcado pela iminente participação estadunidense na Segunda Guerra Mundial, o Capitão América acompanhou a tendência dos quadrinhos do período de abordar vilões ligados aos inimigos de guerra. Dentro do escopo dos inimigos do herói, duas constantes temáticas se destacam: a presença do ―quinta-coluna‖ como ameaça principal, e a constante ―monstrificação‖ dos inimigos de guerra, sobretudo os japoneses. Os dois pontos destacados serão discutidos nos próximos tópicos.

3.2 A ameaça dos “quintas-colunas”

As histórias de origem do Capitão América, produzidas por Joe Simon e Jack Kirby, são responsáveis por lançar as ―bases de sustentação‖ do personagem. A criação do herói como um experimento científico, o uniforme e os discursos que remetem ao patriotismo, a defesa de valores estadunidenses e o soldado dentro do uniforme em permanente missão são algumas das características que fazem o Capitão América. Além dessas bases, outra característica das primeiras histórias é a repetição temática: as missões do Capitão América e de Bucky se passam, na maioria das vezes, dentro dos EUA, com o objetivo de deter os chamados ―quintas-colunas‖.

Os quintas-colunas, de acordo com os enredos escritos por Simon, seriam espiões e sabotadores estrangeiros, relacionados às forças do Eixo, infiltrados dentro dos EUA para ameaçar a independência do país, como ressaltado pelo anúncio publicitário das ―Sentinelas da Liberdade‖, presente no final da primeira história do Capitão América. É na primeira história, logo em sua página inaugural (Imagem 15), que dois quintas-colunas disfarçados de soldados são apresentados prontos para explodir uma fábrica de munições (ato que se concretiza na página seguinte), visando cumprir os ―planos do Führer‖, como um deles ressalta em sua fala.

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É interessante considerar que a ameaça à liberdade, simbolizada pela sabotagem da fábrica de munições, correspondia mais a uma ameaça ao esforço de guerra estadunidense. Interpreta-se que a mensagem de Joe Simon e Kirby, ao produzirem tal momento em seu enredo, era mostrar o interesse dos inimigos alemães em que os EUA não se envolvessem na guerra, sendo uma mensagem crítica ao fato do país, na ocasião, ainda não ter enviado tropas para a Europa.

A presença dessa ―categoria‖ de vilões se repete em outras histórias das edições produzidas pela dupla criadora do Capitão América. Ainda na primeira edição há uma história (Case Nº 2) em que dois videntes preveem em seus shows algumas explosões em território estadunidense, que logo após aconteceram. Uma dessas explosões foi em um forte militar, o Fort Bix. No decorrer da história é revelado que um dos videntes era na verdade um agente alemão chamado Wolfgang Von Krantz e que as explosões foram arquitetadas pela Gestapo68. De acordo com Von Krantz, o objetivo dos ataques seria ―destruir a moral dos EUA‖. Em outra história, presente em Captain America número 4, denominada Captain America and the Unholy Legion (Capitão América e a Legião Profana), os quintas-colunas são representados por mendigos que usam o dinheiro que ganham para financiar suas operações.

Em The hunchback of Hollywood and the movie murder, história presente em Captain America número 3, são revelados mais detalhes em relação aos quintas-colunas. A história se passa no set de gravação de um filme de um diretor chamado Mark Carstine. O filme a ser gravado era um conto medieval que, segundo o diretor, se caracterizava como uma metáfora da luta contra a tirania, sendo um filme anti-nazista. Os problemas começam quando o diretor é assassinado por uma figura misteriosa e de aparência monstruosa, chamada apenas de ―O Corcunda‖. Durante as filmagens, em que Bucky e Steve Rogers trabalham como atores figurantes, ocorre outro assassinato, e a suspeita da identidade verdadeira do Corcunda recai sobre um dos atores, Goris Barloff, um popular ator de filmes de terror que interpretaria o personagem ―Corcunda‖ no filme. Posteriormente, é descoberto que Barloff não foi o responsável pelos assassinatos, mas sim Craig Talbot, outro famoso ator que estrelaria o filme. Ao lutar contra o Capitão América, o ator revela, impelido pelo herói, os motivos de assassinar o diretor do filme: o filme de Carstine era uma propaganda contra a ―causa nazista‖ e o ator via como seu dever assassinar o diretor pois era um membro da ―Bund‖. Mas o que era a Bund?

68 Polícia secreta nazista. 99

A German American Bund69 foi a maior organização pró-nazismo formada dentro do território estadunidense. Não há um consenso sobre a quantidade de integrantes de tal organização, mas Patrick Rodriguez (2014, p. 66) destaca um evento da organização, em 1939, realizado no Madison Square Garden, que teria atraído mais de 20 mil espectadores. A presença dos entusiastas do nazismo dentro dos EUA provavelmente influenciou Joe Simon e Jack Kirby a elencarem os ―quintas-colunas‖ como os principais inimigos do Capitão América em suas primeiras aventuras.

Entretanto enxergar os quintas-colunas como ameaça não era exclusividade dos criadores do Capitão América. Como citado anteriormente70, o próprio presidente Franklin D. Roosevelt, na tentativa de influenciar a opinião pública favoravelmente em relação à participação direta dos EUA na guerra, apontava em seus discursos os espiões e sabotadores nazistas como uma das grandes ameaças à segurança nacional. No Fireside Chat de 26 de maio de 194071, Roosevelt chama os quintas-colunas de ―cavalos de Tróia‖, e diz que a presença desses elementos em solo estadunidense era uma estratégia de guerra inimiga. No Fireside Chat seguinte, de 29 de dezembro de 1940, Roosevelt descreve quais seriam, supostamente, os objetivos desses ―agentes estrangeiros‖.

Os seus emissários secretos estão ativos em nosso país e em nossos vizinhos. Eles procuram despertar suspeitas e dissensões para causar conflitos internos. [...] Eles tentam despertar antigas inimizades racistas e religiosas que não deveriam ter lugar neste país. Eles são ativos em todos os grupos que promovem a intolerância. Eles exploram para seus próprios fins nossa própria aversão natural à guerra. Esses criadores de problemas têm apenas um propósito. É dividir nosso povo, dividi-lo em grupos hostis e destruir nossa unidade e quebrar nossa vontade de nos defender72.

Roosevelt expõe, assim, que o principal objetivo dos quintas-colunas seria causar dissensões e inimizades dentro dos EUA. É importante notar também a ênfase que o presidente colocou no objetivo dos agentes estrangeiros de fazer com que o país não entrasse na guerra. Tal afirmação era conveniente para a campanha de convencimento de Roosevelt

69 Pode ser traduzida de forma mais próxima como ―Federação Germano-Americana‖. 70 Ver Capítulo 1 71 Discurso disponível em < https://millercenter.org/the-presidency/presidential-speeches/may-26-1940-fireside- chat-15-national-defense>. Acesso em: 28 fev. 2020, às 19h52min 72 Tradução livre de Their secret emissaries are active in our own and in neighboring countries. They seek to stir up suspicion and dissension to cause internal strife. […] They try to reawaken long slumbering racist and religious enmities which should have no place in this country. They are active in every group that promotes intolerance. They exploit for their own ends our own natural abhorrence of war. These trouble-breeders have but one purpose. It is to divide our people, to divide them into hostile groups and to destroy our unity and shatter our will to defend ourselves. Disponível em < https://millercenter.org/the-presidency/presidential- speeches/december-29-1940-fireside-chat-16-arsenal-democracy>. Acesso em: 28 fev. 2020, às 21h48min. 100

junto à população, visto que sobre todo opositor do envio de tropas estadunidenses à guerra, todo ―pacifista‖, pairava a suspeita de ser, na verdade, um agente estrangeiro disfarçado, sob as ordens de Hitler.

O temor a respeito dos quintas-colunas também foi reforçado em um artigo do jornal The New York Times, de 16 de junho de 1940, escrito por Otto D. Tolischus73. No artigo os quintas-colunas são descritos como uma das ―novas armas de guerra‖ alemãs, que, em tempos de paz, colheriam para a Alemanha informações a respeito da política, das atividades comerciais e também da moral da nação em que estivessem infiltrados, além do objetivo de espionagem direta e, em casos emergenciais, treinamento de tropas de choque. Em tempos de guerra, ainda segundo o artigo de Tolischus, disfarçados de turistas, esportistas ou representantes comerciais, mas com uniformes em suas malas, os agentes estrangeiros logo assumiriam o comando de exércitos previamente organizados por outros espiões residentes no país vigiado.

Os entusiastas nazistas residentes nos EUA, representados como quintas-colunas por seus opositores, ganhavam, assim, através das histórias do Capitão América, dos veículos de imprensa e dos discursos de Roosevelt, o ar de ameaça urgente a ser combatida pelo país. Explodindo fábricas de munição, como mostrado por Simon e Kirby, ou disseminando discórdia, como ressaltado por Roosevelt, os quintas-colunas se tornavam vilões porque buscavam a todo preço impedir que os EUA se engajassem de forma direta no conflito. A ênfase nesses inimigos e na ameaça que supostamente representavam se mostrou uma estratégia viável para mudar a opinião dos setores isolacionistas, contrários ao envolvimento dos EUA com a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, uma análise mais cuidadosa a respeito das organizações pró-nazismo dos EUA, sobretudo a German American Bund, é importante para que se reflita sobre serem justificadas ou não as suspeitas disseminadas a respeito desses ―agentes estrangeiros‖.

A German American Bund foi antecedida por outras organizações alemãs em solo estadunidense. Os EUA possuíam um grande número de imigrantes alemães; de acordo com Rodriguez (2014, p.13-14), entre 1919 e 1933 cerca de 430 mil alemães chegaram aos EUA, na maioria das vezes, motivados pela crise econômica da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. A grande quantidade de imigrantes alemães fez com que surgissem várias

73 O artigo pode ser comprado no arquivo online do The New York Times < https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/ref/membercenter/nytarchive.html>. 101

organizações voltadas para os interesses alemães. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, muitas dessas organizações passaram a repercutir as influências de tal ideologia em seus círculos.

Segundo Rodriguez (2014, p.14), um dos grupos mais relevantes para se compreender o início da influência nazista nos EUA é o Deutsches Ausland-Instistut (DAI), numa tradução aproximada, Instituto Alemão de Relações Exteriores. O DAI foi criado na cidade alemã de Stuttgart, em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. Inicialmente, era uma instituição privada e sua função era elaborar propagandas relacionadas ao conflito. Após o fim da guerra o instituto passou a receber financiamento do governo alemão e teve sua função reorientada para o objetivo de manter o contato do país com emigrantes alemães ao redor do mundo. James E. Geels (1975, p. 29) aponta que o DAI possuía vastas informações sobre diversos aspectos envolvendo os emigrantes alemães.

Seus arquivos incluíam não apenas nomes de emigrantes individuais, mas, além disso, todos os jornais, periódicos e editores da língua alemã, organizações alemãs como grupos de igrejas e cantores e grupos educacionais preocupados com assuntos alemães, principalmente o idioma alemão (GEELS, 1975, p. 29-30)74.

Com a crescente popularização e a influência política do nazismo na Alemanha, o DAI passaria também a propagandear determinadas doutrinas similares às pregadas pelos nazistas na Alemanha. De acordo com Rodriguez (2014, p. 15), o líder do DAI no período, Fritz Wertheimer, acreditava que o dito ―excepcionalismo‖ do povo alemão unia todas as pessoas de ascendência alemã; diante disso, para Wertheimer, o objetivo do DAI seria evocar uma paixão supostamente existente em cada alemão ao redor do mundo, mas que estava adormecida.

Em relação aos EUA, objetivo do DAI, segundo Geels (1975, p. 33) seria o renascimento do interesse na Alemanha entre os germano-americanos. Para isso, financiavam visitas desses alemães radicados nos EUA ao país natal, além de promover programas culturais de valorização à cultura alemã. Alguns integrantes mais radicais do DAI acreditavam também que esses cidadãos germano-americanos poderiam influenciar a política externa estadunidense a favor dos interesses da Alemanha.

74 Tradução livre de Its files included not only names of individual emigrants, but, in addition, all German language newspapers, periodicals, and publishers, German organizations such as church and singing groups, and educational groups concerned with those things German, primarily the German language.(GEELS, 1975, p. 29-30) 102

Percebendo a numerosa quantidade de alemães residentes nos EUA, alguns membros do DAI, liderados por Fritz Gissibl, criaram, em 1924, uma nova organização alemã nos EUA, a Free Society of Teutonia, ou Teutonia Association (Sociedade Livre da Teutonia). Gissibl chegou no mesmo ano aos EUA e se estabeleceu na cidade de Chicago, onde fundou sua organização, que objetivava incutir a filosofia baseada na doutrina nazista, emergente na Alemanha no período. Em 8 de outubro de 1930, Gissibl escreveu uma carta ao Partido Nazista oferecendo auxílio para qualquer programa de propaganda que o Partido Nacional- Socialista alemão quisesse iniciar em solo estadunidense. Geels (1975, p. 52), aponta que tal acontecimento seria um sinal que provava que o Partido Nacional-Socialista não havia estabelecido a organização de Gissibl e nem controlava suas atividades, visto que Gissibl não cumpria ordens do partido, mas apenas oferecia auxílio caso os nazistas alemães julgassem necessário.

De acordo com Rodriguez (2014, p. 21-22), o grande problema da Teutonia Association era a dificuldade de se conectar com o contexto social no qual estavam inseridos os germano-americanos. As pautas da organização de Gissibl, voltadas para o ―resgate do germanismo‖ ao exaltar os ideais nazistas, eram muito orientadas para a Alemanha, e ignorava os fatos sociais que ocorriam dentro dos EUA, que, de fato, tinham importância para os germano-americanos. Como resultado desse distanciamento entre a organização e a vivência cotidiana, a Teutonia Association não foi mais do que um movimento marginal, sem conseguir angariar uma grande quantidade de membros e muito menos influenciar o contexto político estadunidense.

Em 1931, foi fundada uma filial do Partido Nacional-Socialista nos EUA, a Gauleitung-USA (GAU-USA). A nova organização acabou atraindo muitos membros da Teutonia Association, inclusive Fritz Gissibl (RODRIGUEZ, 2013, p. 28). A GAU-USA, todavia, foi na mesma direção da sua antecessora, focou mais em assuntos concernentes à Alemanha do que à população germano-americana e não conseguiu obter força política significativa dentro dos EUA.

A pouca influência política dos nazistas residentes nos EUA significou também pouca publicidade para eles. Nos quadrinhos as histórias cômicas predominavam e as tiras de aventura ainda estavam em seu início. Espiões nazistas não eram os vilões e o termo ―quinta- coluna‖ seria cunhado na Guerra Civil Espanhola, iniciada em 1936.

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A primeira organização a captar os anseios dos germano-americanos em relação ao contexto social dos EUA, não apenas aspectos da identidade nacional alemã foi o Friends of New Germany. Essa organização foi criada em 1933, por Heinz Spanknöbel, imigrante alemão que chegou aos EUA em 1929, mesmo ano em que se deu a crise econômica conhecida como Grande Depressão ou Crise de 1929. De acordo com Rodriguez (2014, p. 29- 30), Spanknöbel era membro da unidade de Detroit da GAU-USA e, em 1933, após a subida ao poder de Hitler na Alemanha, centralizou a liderança do movimento nazista estadunidense em suas mãos, convertendo sua unidade local em uma nova organização, que denominou Bund der Freunde des Neuen Deutschland ou, em inglês, Friends of New Germany (Amigos da Nova Alemanha). Em sua organização reuniu tanto membros vindos da Teutonia Association quanto da GAU-USA.

O diferencial da organização de Spanknöbel para as demais organizações alemãs dentro dos EUA, segundo Rodriguez (2014, p.30), foi a atenção dada às ―condições especiais nos EUA‖, mergulhado pela crise social e econômica iniciada em 1929 e que ainda causava impactos em 1933. A Crise de 1929 afetou todas as camadas sociais da sociedade estadunidense, e os germano-americanos empobrecidos mostraram-se mais propensos a ouvirem discursos que lhes falassem a respeito de sua situação cotidiana do que a retórica importada da Alemanha nazista.

Os principais alvos de críticas da organização Spanknöbel eram os judeus e comunistas, os quais considerava culpados pela Crise de 1929. Através do periódico Deutscher Weckruf und Beobachter, a organização expressava a urgência de ―limpar‖ os EUA da influência judaica e apontava as medidas do New Deal como uma ―conspiração‖ judaico- comunista (RODRIGUEZ, 2013, p.32-33). Além disso, o grupo também exaltava os feitos de Hitler na Alemanha, destacando principalmente as medidas relacionadas à economia em comparação com os EUA, que ainda lidava com os efeitos da Crise de 1929.

A mudança de retórica da organização de Spanknöbel em relação às suas antecessoras fez o grupo ter uma maior quantidade de adeptos. De acordo com Rodriguez (2014, p. 34), no seu auge, o Friends of New Germany chegou a ter 6 mil membros em suas fileiras; a GAU- USA, em comparação, chegou a ter apenas 500 membros. Mesmo com a crescente quantidade de integrantes, o Friends of New Germany não chegou a ter uma influência política em âmbito eleitoral, entretanto, o grupo, que inclusive promovia marchas sob a bandeira da suástica, chamou mais a atenção que as organizações anteriores. Todavia essa atenção não angariou

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apenas o apoio de mais germano-americanos, atraiu também para o grupo os olhares da crescente camada de estadunidenses oposicionistas do nazismo.

Um dos principais oposicionistas ao nazismo nos EUA era o congressista Samuel Dickstein, de ascendência judaica. Dickstein deu início a uma investigação federal sobre a influência do nazismo nos EUA por meio do Special Committee on Un-American Activities (Comitê Especial de Atividades Não-Americanas). Tanto Rodriguez (2014, p. 37) quanto Geels (1975, p. 55) destacam que o governo alemão começou a ver como publicidade negativa a atuação da organização de Spanknöbel, uma vez que o país não queria prejudicar relações com os EUA. Em setembro de 1935, Heinz Spanknöbel acabou envolvido em um escândalo ao tentar forçar um jornal germano-americano a imprimir material pró-nazismo. O episódio fez com que o Comitê de Dickstein emitisse, no dia 2 de novembro, um mandado de prisão para Spanknöbe que, entretanto, já havia fugido do país. Após isso, sua organização foi desmantelada.

O fim do Friends of New Germany, no entanto, não foi o fim do nazismo nos EUA. Das cinzas dessa organização surgiu a German-American Bund, liderada por Fritz Julius Kuhn. Nascido em Munique, Kuhn era veterano da Primeira Guerra Mundial e chegou aos EUA em 1927 e se estabeleceu em Detroit, trabalhando como engenheiro químico na Ford Motor Company (GEELS, 1975, p. 58). Foi líder da unidade de Detroit do Friends of New Germany.

Por mais que Hitler tenha se colocado contra a atuação do Friends of New Germany, após a saída de Spanknöbel a organização escolheu um novo líder e Kuhn acabou eleito para o cargo. Ao assumir a liderança, em 1936, Kuhn mudou o nome da organização e centralizou o poder em torno de si, se autointitulando Bundesführer da German-American Bund. O termo ―Bundesführer‖ demonstra o anseio de Kuhn em ser o ―führer‖ do nazismo estadunidense e a tendência a uma liderança centralizadora, inspirada em Adolf Hitler. A missão do grupo seria ―trazer de volta a justiça pró-alemã e pró-americana para os EUA, que haviam sido traumatizados cultural e economicamente pela Grande Depressão [...]‖ (RODRIGUEZ, 2013, p. 40-41). A Bund era dividida em filiais, unidades locais, distritos e departamentos. De acordo com Geels (1975, p. 60), a organização chegou a ter 69 unidades locais em 19 estados, sendo que 23 dessas filiais se localizavam em Nova York, que se tornou sua cidade sede. Geels (1975, p. 62), assim como Rodriguez (2014, p. 48), apontam também que o grupo, em sua

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maioria, era formado por cidadãos estadunidenses de ascendência alemã, pertencentes à classe pobre. Apesar disso, aceitava doações vindas de cidadãos alemães residentes na Alemanha, além das doações de seus poucos integrantes mais abastados. Em um tempo em que o colapso econômico gerado pela crise de 1929 ainda surtia efeito sobre as camadas mais pobres, a German-American Bund oferecia benefícios aos seus membros, o que colaborou para a adesão de muitos germano-americanos aos princípios nazistas pregados pela organização. A Bund oferecia empregos para alguns de seus membros, como por exemplo, os cargos na guarda pessoal de Kuhn, a Ordnungsdienst (OD), além de divulgar os estabelecimentos comerciais pertencentes aos seus membros (RODRIGUEZ, 2013, p. 53). De acordo com Geels (1975, p. 53-54), a organização possuía também acampamentos, que além de serem espaços para os debates políticos, também ofereciam atividades recreativas aos membros. Um desses acampamentos, o Camp Siegfried, localizado em Long Island, Nova York, chegou a receber 15.000 jovens germano-americanos no verão de 1936.

Segundo Geels (1975, p. 69), outro motivo que aumentou a adesão à Bund entre os germano-americanos foi a tendência anti-alemã nos EUA, que se deu após a Primeira Guerra Mundial e retornou com a ascensão do nazismo na Alemanha. Além disso, como uma resposta às políticas antissemitas de Hitler na Alemanha, muitos judeus estadunidenses demitiram funcionários alemães, colaborando para o aumento da oposição aos judeus entre os integrantes da Bund, que acabaram vendo na organização um abrigo diante da situação econômica e social em que se encontravam. O sentimento de revanche e a desolação diante da crise econômica foram os combustíveis que fizeram a German-American Bund crescer.

Uma das particularidades da German-American Bund é o que Rodriguez (2014, p. 63) chama de ―dual nacionalismo‖. Apesar da ascendência alemã dos seus integrantes e da exaltação ao nazismo de Hitler na Alemanha, a organização de Kuhn se colocava como divulgadora da única forma verdadeira de ―americanismo essencial‖. Ao mesmo tempo em que Kuhn almejava que os EUA se tornassem uma ditadura nazista sob sua liderança, a Bund supostamente defendia garantias constitucionais de liberdade civil, além de argumentar que o führer deveria prestar contas ao povo (RODRIGUEZ, 2013, p. 60). Hitler era exaltado pela organização, assim como personalidades da história estadunidense como George Washington e Abraham Lincoln. No evento da Bund no Madison Square Garden em 1939, pico da

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popularidade do grupo, um retrato de George Washington divide a parede do evento com as suásticas nazistas, mostrado na Imagem 23.

Imagem 23 - Reunião da German-American Bund no Madison Square Garden

FONTE: Dialog Internacional75

Apesar da complexa ideia de dual nacionalismo apresentada pela Bund, os quintas- colunas das histórias em quadrinhos do Capitão América, criados alguns anos depois do surgimento da organização, foram representados por Simon e Kirby de forma simplista, ligados unilateralmente ao nazismo alemão e opostos ao patriotismo estadunidense, representado na figura do Capitão América.

O ―verdadeiro americanismo‖ apregoado pela German-American Bund irritou os estadunidenses opositores ao nazismo e com sua crescente notoriedade a organização entrou na rota de investigação do House Committee on Un-American Activities (HUAC), liderado por Martin Dies Jr., um deputado conservador do Texas, auxiliado por Samuel Dickstein, velho opositor do nazismo nos EUA. De acordo com Rodriguez (2014, p. 72), o objetivo do HUAC era descobrir a extensão da influência estrangeira nos EUA.

Mesmo com a Alemanha monitorando a existência das organizações alemãs fora do país, pode-se interpretar, a partir da leitura de Geels (1975) e Rodriguez (2014), que não havia uma ligação direta entre os nazistas alemães e os nazistas estadunidenses, muito menos uma

75 Disponível em . Acesso em: 15 mar. 2020, às 00h12min. 107

influência do Partido Nacional-Socialista alemão nas ações cotidianas tomadas pela Bund em solo estadunidense, sendo, portanto, problemático classificar a organização de Kuhn como uma ―quinta-coluna‖ alemã nos EUA.

Geels (1976, p. 84) aponta que desde a década de 1920 o governo alemão orientava que as organizações alemãs formadas dentro dos EUA tivessem cautela para não adotarem políticas que fossem prejudiciais às relações diplomáticas do país com os EUA. Essa orientação perdurou na década seguinte, mesmo após o início dos conflitos iniciais da Segunda Guerra Mundial na Europa. Organizações anteriores à Bund, como o Friends of New Germany, chegaram a ser vistas pelo governo alemão como um ―empecilho‖ nos esforços para estabelecer relações amistosas com os EUA (GEELS, 1975, p. 87).

Apesar dessa tentativa de distanciamento do governo alemão em relação às organizações alemãs formadas nos EUA, os líderes da Bund, entre eles Fritz Kuhn, relatavam aos seus membros que o grupo era mantido pelo Reich alemão, estando sobre os cuidados próximos inclusive das principais lideranças do nazismo alemão, Hermann Goering, Joseph Goebbels e também Adolf Hitler. Para Geels (1975, p. 88), a constante tentativa feita por Kuhn e os demais líderes da Bund de ligar a organização ao governo alemão era uma tática para impressionar os próprios membros do grupo.

[...] a Bund estava ansiosa para ser aceita pelo Reich e até pediu instruções e orientações aos funcionários do Reich. A Bund não foi facilmente dissuadida pela indiferença do Reich e continuou a agir como se fosse realmente a representante do partido nos EUA. (GEELS, 1975, p. 88)

Além de o governo alemão ver como indesejados possíveis incidentes diplomáticos com os EUA, Geels (1975, p. 89) ressalta que as agências alemãs estavam mais preocupadas com a formação de esferas de influência na Europa. Aparentemente não houve uma ligação direta da Bund com o governo alemão e não há indícios de grandes ―sabotagens‖ feitas pelos seus integrantes em solo estadunidense, ao contrário do que era apontado por seus críticos. Geels (1975, p. 80-81) cita como exemplo a OD, a guarda uniformizada da Bund. Os opositores mais ferrenhos da organização comparavam a OD com a SA (Sturmabteilung ), a milícia paramilitar nazista. Entretanto até mesmo alguns dos críticos da Bund diziam que a semelhança entre os dois grupos era apenas na questão do uniforme. Na prática, a OD servia mais para construir uma imagem de formalidade e respeito entre a própria organização, e suas ―ações terroristas‖ não passaram de trocas de insultos com alguns opositores exaltados.

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O comitê liderado por Martin Dies Jr. contou com o auxílio investigativo do principal serviço de inteligência dos EUA, o FBI. De acordo com Rodriguez (2014, p. 73), porém, a investigação do FBI não conseguiu encontrar indícios que mostrassem que a Bund representasse uma ameaça à segurança pública. Mesmo sem indícios advindos da investigação, o HUAC, ou ―Dies Committee‖ como ficou popularmente conhecido, acusou a German-American Bund de ―antiamericanismo‖. Tais acusações se baseavam nos testemunhos do jornalista John C. Metcalfe, que teria participado de reuniões da Bund em 1937, e alegava que Fritz Kuhn mantinha contato constante com Adolf Hitler. Entretanto Rodriguez (2014, p. 73-74) afirma que os testemunhos de Metcalfe eram ―dúbios‖ e ―altamente suspeitos‖, além de não serem confirmados por outro testemunho. Mesmo assim as afirmações do jornalista foram utilizadas contra a Bund pelo HUAC e, por mais que o Comitê não tivesse provas para prender nenhum líder da Bund, a acusação de ―antiamericanismo‖ foi publicamente divulgada e popularizada entre os críticos da organização de Kuhn.

Além da repercussão na imprensa, Rodriguez (2014, p. 74-75) ressalta que as acusações à Bund reverberaram também no meio do entretenimento, citando o filme Confessions of a Nazi Spy, lançado em 1939, onde os antagonistas eram espiões nazistas que tentavam coletar informações militares a respeito dos EUA. A partir disso, pode-se conjecturar que Joe Simon e Jack Kirby foram influenciados pela repercussão midiática da investigação contra a Bund, elegendo os ―quintas-colunas‖ como os principais vilões das histórias iniciais do Capitão América.

De acordo com Rodriguez (2014, p. 75-76), após as constantes investigações e crescente oposição da imprensa, a German-American Bund começou a se desfazer em dezembro de 1939, quando o promotor Thomas Dewey condenou Fritz Kuhn por roubo e apropriação indébita dos fundos da própria organização. Kuhn foi condenado a 5 anos de prisão. Em 1945, após o fim de sua pena, foi deportado para a Alemanha Ocidental para ser julgado como inimigo de guerra. A German-American Bund ainda tentou se manter após a prisão de Kuhn, mas acabou dissolvida oficialmente em 8 de dezembro de 1841, um dia após o ataque japonês à base militar de Pearl Harbor.

Os quintas-colunas de Simon e Kirby não eram representados apenas por integrantes da Bund, ou capangas e espiões comuns. Na história denominada The Riddle of the Red Skull (O do Caveira Vermelha), os autores apresentam aquele que seria o grande

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antagonista do Capitão América ao longo de sua vida editorial: o Caveira Vermelha. Nessa primeira versão do personagem76, a icônica caveira vermelha que dá nome ao personagem na verdade é um capacete, que esconde a identidade de George Maxon, um empresário dono de uma empresa fictícia chamada Maxon Aircraft Company, produtora de aeronaves militares. Inicialmente, Maxon é apresentado como um aliado dos EUA e só se descobre que ele é o vilão no final da história.

A ideia do envolvimento do setor empresarial com o nazismo, expressa por Simon e Kirby através do personagem Caveira Vermelha, também pode ser vista como reflexo do contexto social vivido pelos EUA no período em que os quadrinhos do Capitão América foram produzidos. Moniz Bandeira (2017, p. 42-43) aponta que existia uma significativa simpatia pelo nazifascismo entre os ―homens de negócio‖ estadunidenses. O autor cita como exemplo de colaboração entre empresas estadunidenses e o regime nazista a International Bussiness Machine (IBM), que forneceu máquinas utilizadas nos campos de concentração nazistas, e a Standard Oil, propriedade da família Rockfeller, que forneceu petróleo e gasolina para a Alemanha. Outro exemplo conhecido de empresário estadunidense simpatizante do regime nazista foi Henry Ford, dono da Ford Motors Company, que, segundo Moniz Bandeira (2017, p. 45), financiava o Partido Nacional-Socialista alemão desde os anos 1920. Na mesma década Ford escreveu um livro chamado The International Jew: The World‘s Problem, com conteúdo antissemita. Em 1938, Henry Ford foi condecorado por Karl Kapp, embaixador da Alemanha nos EUA, com a Grande Cruz da Águia Alemã, condecoração que também foi dada a personalidades como Benito Mussolini, líder do fascismo italiano e Francisco Franco, ditador da Espanha.

Em comparação aos ―quintas-colunas‖, da German-American Bund, é correto dizer que os empresários estadunidenses simpatizantes do regime de Hitler tiveram uma ligação mais direta e significativa com o Partido Nacional-Socialista. Entretanto, apesar de colaborações e defesas da ideologia nazista, não houve ameaça ao território estadunidense promovida por esses simpatizantes ao nazismo, ao contrário do Simon e Kirby buscaram construir em seus vilões dos quadrinhos. Pode-se dizer que as ameaças foram ―ampliadas‖ para se adaptarem aos papéis de vilões. Ao olhar as questões políticas e sociais que envolviam Joe Simon e Jack Kirby no contexto da criação do Capitão América, é possível interpretar que

76 Posteriormente, a história de origem e a identidade secreta do Caveira Vermelha seria modificada: ele passou a ser Johann Schmidt, um agente nazista, próximo de Adolf Hitler e que se tornaria chefe da Hydra, uma das organizações terroristas do universo fictício da Marvel. 110

os criadores do personagem também buscavam fazer algo relativamente comum em tempos de guerra: a ―demonização‖ dos oponentes.

3.3 Representações dos inimigos de guerra nas histórias do Capitão América

Joe Simon e Jack Kirby apresentam nas 10 primeiras edições de Captain America as suas visões a respeito da Segunda Guerra Mundial: uma guerra representada de forma maniqueísta e simplificada, onde aos EUA são atribuídos valores morais como liberdade e democracia, supostamente inerentes ao país, enquanto os inimigos de guerra se transformam em vilões, esses descritos como os culpados pela guerra, detratores dos supostos valores inerentes aos EUA, e vistos como moralmente inferiores. As análises das representações sobre esses vilões são importantes para compreender não só as visões particulares de Simon e Kirby sobre os oponentes estadunidenses, mas também a forma como se deu a representação do ―outro‖ em tempos de guerra.

Nas histórias do Capitão América, a oposição entre os ―mocinhos‖ e os ―vilões‖ não aconteceu apenas nos discursos verbais escritos por Simon ao longo dos enredos, que colocam em lados diferentes os ―cães da democracia‖, termo usado pelo agente nazista que tenta acabar com Steve Rogers na primeira história do herói, e os ―inimigos da democracia‖, como são por várias vezes chamados os inimigos estadunidenses nas revistas do herói. A diferenciação entre os personagens também é ressaltada na representação gráfica de Jack Kirby. Antonio Luiz Cagnin (1975, p. 51), destaca a importância fundamental da representação gráfica nas histórias em quadrinhos, uma vez que o desenho é uma forma do emissor (o desenhista) orientar a percepção do significado em relação à história contada. Os desenhos de Kirby colaboram significativamente para a construção representativa a respeito da guerra, juntamente com os diálogos escritos por Joe Simon.

Como visto na Imagem 16, presente no Capítulo 2, Steve Rogers, após a aplicação do soro, é representado como um homem forte, alto e caucasiano. Jack Kirby é cuidadoso em representar o personagem com uma boa aparência, inclusive no semblante de seu rosto, com traços leves e formas bem definida. Com os vilões, entretanto, os traços de Kirby trazem algumas mudanças. Pode-se exemplificar tal afirmação com a Imagem 24, que mostra o quinta-coluna sabotador que explode a fábrica de munições.

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Imagem 24 - Quinta-coluna explodindo fábrica de munições

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 3

Os traços usados para retratar o vilão não são tão definidos, a arte é mais caricata, muito diferente das representações de Steve Rogers, que mostram um personagem com aparência mais realista e menos estilizada. Os traços, sobretudo da face do vilão, são feitos para que se transmita por parte do personagem um sentimento de raiva e maldade. Entender as características que compõem as faces desenhadas dos personagens contribui para uma análise mais enriquecedora da história como um todo, uma vez que o rosto ―externa os sentimentos. [...] Os traços fisionômicos dão maiores informações e funcionam como canais auxiliares da comunicação oral‖ (CAGNIN, 1975, p. 100). A escolha por fazer o personagem ser representado de uma forma mais caricata e menos realista colabora no distanciamento dele com o que seria natural, demonstrando, assim, através da representação gráfica, que o vilão está fora do padrão de normalidade e do que é aceitável pela sociedade que o retrata.

A representação gráfica ―não-natural‖ dos vilões fica ainda mais evidente na história seguinte de Captain America número 1, onde os vilões são Sando e Omar, os já citados vilões que faziam shows adivinhando tragédias que aconteceriam nos EUA. A Imagem 25 mostra os dois personagens.

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Imagem 25 - Sando e Omar

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 11.

O personagem mais alto é Sando, retratado com um rosto de feição séria e um ar soturno, confirmado pelos seus ombros largos e com extremidades bem acentuadas, que compartilham para a construção de uma representação ―vilanesca‖ do personagem. No decorrer da história é revelado que Sando na verdade se chama Von Krantz, um quinta-coluna alemão. A nacionalidade do personagem é estereotipada pelo uso do monóculo, característica comum dos vilões de nacionalidade europeia, sobretudo alemã, nos quadrinhos. Pode-se dizer que o monóculo, bem como a roupa social do personagem, o aproximam muito mais da imagem de um ―homem de negócios‖, reproduzindo a tendência de muitos vilões dos quadrinhos dos anos 1930 serem ligados à corrupção empresarial. Apesar dos traços mais rígidos e ameaçadores, Sando ainda pode ser facilmente identificado como um ser humano, ainda que mais caricato, como o quinta-colunista da fábrica de munições. O mesmo não se pode dizer de seu parceiro, Omar. O personagem é um anão de pele amarelada e cabeça de dimensões exageradas. A tentativa é clara de aproximar o personagem de uma figura menos humana e ―não natural‖, representando-o não como mais um vilão, mas algo próximo de um monstro. Não há citações sobre a nacionalidade de Omar.

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A associação entre a representação gráfica dos personagens e suas respectivas nacionalidades é um ponto importante a ser ressaltado. Os vilões alemães são representados como antidemocráticos, com atitudes cruéis, assassinando opositores e não hesitando em colocar vidas inocentes em risco. Entretanto a aparência desses personagens, apesar das particularidades ressaltadas, remete ao padrão do que era visto como ―normal‖ para a sociedade estadunidense. Os alemães, apesar da perversidade a eles atribuída, ainda são seres humanos. Havia um certo cuidado ao representar os alemães nas histórias em quadrinhos do Capitão América, tanto que a referência à nacionalidade alemã raramente é utilizada, e os vilões são, na maioria das vezes, identificados apenas como nazistas. De acordo com Deverell (2013, p. 45), a razão disso seria a grande presença de descendentes e imigrantes alemães nos EUA. Para o autor, os vilões nazistas nada mais eram que uma extensão dos cientistas loucos, vilões populares nos quadrinhos antes da guerra.

Em relação aos japoneses, a representação ―vilanesca‖ produzida por Kirby ganhou outras características. Ao contrário dos vilões alemães, o retrato dos vilões asiáticos era bem longe de algo considerado ―natural‖. A eles não era atribuída humanidade, mas sim monstruosidade, como demonstra a imagem a seguir.

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Imagem 26 - Capitão América contra os ―Gigantes Orientais‖

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 1.

A Imagem 26 é a primeira página da história denominada Captain America and the Ageless Orientals who wouldn‘t die!!, presente em Captain America número 2, colocada à venda em fevereiro de 194177. Os vilões da história são os ―Gigantes Orientais‖, que possuem uma aparência totalmente ―monstrificada‖: são gigantes, magros, com pernas e braços cumpridos, dedos longos de unhas pontiagudas que mais parecem garras, olhos rasgados, presas e pele esverdeada. Além disso, o argumento de Simon os apresenta mais como animais irracionais. Na história, os Gigantes Orientais são usados como arma por um bancário chamado Benson, que primeiramente utiliza o vilão para deter investigadores do FBI que

77 Informação do site Grand Comics Database . Acesso em: 01 abr. 2020, às 19h20min. 115

investigavam irregularidades nas declarações de imposto de renda do executivo. Posteriormente, os Gigantes Orientais passam a roubar bancos. A história então não apresenta uma temática ligada com a Segunda Guerra Mundial, a não ser a presença dos vilões asiáticos. É revelado, posteriormente, que os Gigantes Orientais vieram do Tibete. Apesar da nacionalidade diferente, é importante ressaltar que o Pacto Tripartite entre Alemanha, Japão e Itália foi firmado em setembro de 1940, colaborando para a criação de um ambiente de preconceito aos asiáticos dentro dos EUA, portanto a revista, publicada em 1941, já poderia estar levando em consideração a aliança entre esses países.

Em Captain America número 6, a história intitulada Meet The Fang – Arch fiend of the Orient, também tem como antagonista um vilão de origem asiática, chamado Fang, nome que, além de remeter a certos nomes asiáticos, também pode ser traduzido como ―presa‖. Nessa história, um agente de uma ―nação asiática agressora‖, chamado Barão Nushima, vai até o bairro chinês da cidade de São Francisco, onde fica o esconderijo do vilão Fang. O plano de Nushima é contratar Fang e seus capangas para impedirem que dois diplomatas chineses se dirijam à Washington para firmar acordos econômicos com os EUA. Apesar de não haver uma confirmação quanto à nacionalidade de Nushima, dá-se a entender pelo termo ―nação asiática agressora‖ usado por Simon no enredo, que a referida nação é o Japão. Isso também pode ser deduzido por razão da disputa entre Japão e EUA pela esfera de influência na China, assim como na referida história do Capitão América.

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Imagem 27 - Capitão América x Fang

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, p. 25

Na Imagem 27, presente na referida história, Fang é perseguido pelo Capitão América. O vilão também é representado com características ―não-naturais‖: assim como os Gigantes Orientais, possui unhas que parecem garras e presas. O tom de pele de Fang e seus capangas chineses é mais amarelado em comparação com os personagens estadunidenses, um estereótipo comum na representação de asiáticos nos quadrinhos estadunidenses. Além da aparência assustadora, o vilão não hesita em tomar atitudes ―cruéis‖ como, por exemplo, torturar um dos diplomatas chineses raptados. Tanto com os Gigantes Orientais quanto com Fang e seus capangas, a intenção foi de mostrar os personagens como ―incivilizados‖, com atitudes mais próximas de animais do que de seres humanos. Rui Zink (2011, p.52-53) mostra que a desumanização do inimigo em tempos de guerra é algo comum e até visto como útil, uma vez que é preciso fazer o oponente ser desumano para que a violência contra ele seja vista como algo benéfico e necessário. É importante tornar o inimigo ―odiável‖ perante os olhos não só dos soldados no front, mas da população também, uma vez que na guerra total todos os elementos da sociedade se tornam parte do conflito. Esse objetivo se faz a partir de dois processos: a ultrassimplificação da mensagem e a demonização do outro.

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A ultrassimplificação é bem visível nas histórias do Capitão América escritas por Simon e Kirby, uma vez que os enredos são excessivamente simplistas e maniqueístas, apresentando uma característica ―unidimensional‖ dos personagens: o Capitão América e seus aliados estadunidenses são representados como inquestionavelmente bons e os vilões, alemães ou japoneses, são malignos. Quando há uma falha moral nos personagens estadunidenses, esses acabam por se revelar quintas-colunas, a serviço do nazismo. A guerra também é representada como um confronto do bem contra o mal, sem uma discussão profunda sobre as causas do conflito e muito menos quanto às contradições relativas à política externa estadunidense como, por exemplo, se portar como uma nação pacífica e ao mesmo tempo negociar armamentos com a Inglaterra, ou ainda o fato de lutar supostamente pela democracia e liberdade na Europa e no Pacífico, mas ainda assim manter a segregação entre brancos e negros em seu território.

A demonização do outro é explicitada nas atitudes atribuídas por Joe Simon aos vilões e também na representação gráfica de Jack Kirby. Entretanto, há de se considerar a diferença entre a representação dos vilões europeus e dos vilões asiáticos. Os nazistas são estereotipados como cruéis, antidemocráticos, belicistas e até mesmo covardes. Na já citada história Trapped in the nazi strong-hold78, presente em Captain America número 2, Capitão América e Bucky vão até a Europa e acabam encarando pessoalmente Adolf Hitler e Hermann Goering, que são encontrados pelos dois heróis escondidos atrás de uma mesa e depois discutem entre si pra ver quem lutaria com o ―pequeno cara‖, se referindo à Bucky, demonstrado que nenhum dos dois teria coragem para enfrentar o Capitão América.

Apesar dessas características, na maioria das vezes os vilões nazistas não são representados como monstros ou algo próximo a isso, ao contrário dos vilões de origem asiática que, independente da nacionalidade, acabavam por concentrar em si estereótipos e preconceitos dos autores estadunidenses em relação aos japoneses. Deverell (2013, p. 45) aponta que os japoneses não eram vistos pelos estadunidenses apenas como inimigos de guerra, mas também como inimigos raciais, uma vez que possuíam características étnicas e culturais diferentes. Essas diferenças já não eram tão grandes entre estadunidenses e alemães. Pode-se compreender então que havia um conflito também racial envolvendo EUA e Japão, imbuído da ideologia de superioridade racial e cultural estadunidense, que influenciou a representação dos japoneses entre os estadunidenses, inclusive entre Joe Simon e Jack Kirby.

78 Ver o capítulo 2. 118

Há uma terceira história envolvendo inimigos asiáticos em Captain America número 5. Em Captain America and the Riddle of the Great Sea Dragon, o vilão principal é o Capitão Okada, que comanda um submarino gigante em forma de dragão que busca descobrir segredos militares estadunidenses no Pacífico. Em nenhum momento é dito que Okada é japonês, entretanto o vilão faz referências de apoio ao Eixo, deixando subentendida a sua nacionalidade.

Imagem 28: Capitão Okada e seus capangas

Fonte: SIMON; KIRBY, 1941, P. 9.

A Imagem 28 mostra Okada e seus capangas mantendo preso o Comandante Phillips, da Marinha dos EUA, a quem o vilão torturava para conseguir informações militares sigilosas, e sua filha Marie. Em comparação com os Gigantes Orientais ou com Fang, Okada tem uma aparência mais ―humanizada‖, apesar de ser representado como um impiedoso militar que não hesita em usar a tortura para conseguir as informações que precisa. Seus capangas, no entanto, são altos e fortes, retratadas vestindo apenas tanga e sempre agindo com brutalidade, a mando de Okada. Mais uma vez, a imagem passada através de Okada e, principalmente de seus capangas, é a de que os japoneses seriam incivilizados e cruéis.

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Assim, a visão que Joe Simon e Jack Kirby constroem e perpetuam a respeito dos vilões nas histórias do Capitão América também colabora para a construção da representação entre os leitores dos inimigos de guerra. É importante pontuar que a simplicidade temática das histórias do Capitão América pode ser atribuída ao fato de o público-alvo nesse período ser o infantil. Entretanto, tomando o mesmo ponto como consideração, deve ser ressaltado que essas histórias, apresentando um maniqueísmo nada velado, buscam perpetuar uma ideologia relativa à guerra nas crianças leitoras, que são orientadas a reconhecer quem são os inimigos (que podem inclusive estar na casa ao lado), quais, supostamente, eram suas origens e suas intenções, e como esses leitores deveriam agir em relação a esses inimigos. Possíveis quintas- colunas deveriam ser vigiados e denunciados; já os inimigos do outro lado dos oceanos Pacífico e Atlântico deveriam ser desprezados, odiados e o combate a eles era necessário, consequentemente sendo necessário o abandono da postura isolacionista, seguindo o exemplo do Capitão América que foi ao embate desses inimigos nos quadrinhos. Se o inimigo fosse especificamente o japonês, essa situação se aprofundava: esses, considerados culturalmente bárbaros, eram monstruosos, e, portanto não eram dignos de viver. Os criadores do Capitão América repetiriam uma tendência de tempos de guerra: desumanizar os inimigos e tornar virtuosos e legítimos os combates.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As 10 primeiras edições da revista Captain America, além de definirem as características do herói que seriam reproduzidas ao longo dos anos, são também uma forma de conhecer as representações de seus criadores, Joe Simon e Jack Kirby a respeito da Segunda Guerra Mundial em seu período inicial, sendo, portanto, um retrato da guerra pintado pelos autores do herói. No período em que as histórias são produzidas, o governo dos EUA, apesar de colaborações armamentistas com os países opositores ao Eixo, não havia oficialmente entrado no conflito, o que só veio a acontecer em 8 de dezembro de 1941, após as edições escritas por Simon e Kirby serem publicadas. Entretanto, o clima bélico e de preparação pra uma possível participação direta dos EUA na guerra já eram vistos na imprensa, nos discursos de Roosevelt e, consequentemente, foi representado nas historias em quadrinhos. Apesar do impasse a respeito da entrada direta ou não do país na guerra, nas histórias do Capitão América a Segunda Guerra Mundial já envolvia os EUA, inclusive chegando às fronteiras do país, principalmente por meio dos ―quintas-colunas‖, espiões estrangeiros que estariam ―infiltrados‖ no país visando sabotar os esforços de guerra. Diante disso, Simon e Kirby delineiam qual seria a função do Capitão América nesse esforço de guerra: proteger o território estadunidense desmascarando espiões e combatendo com violência tanto os inimigos existentes dentro do país, quanto os vilões no exterior, embora o foco fosse mais direcionado para defesa do território estadunidense. No entanto, a participação do Capitão América não se dava apenas dentro das histórias em quadrinhos, mas possuía também uma função ideológica em relação aos estadunidenses do ―mundo real‖, especialmente seus leitores: orientar as ações a serem tomadas pela população em relação ao conflito, além de opinar sobre quais atitudes deveriam ser tomadas oficialmente pelo país. O personagem Capitão América é uma representação das atitudes que Joe Simon e Jack Kirby acreditavam que os EUA, tanto politicamente quanto socialmente, deveriam ter em relação à Segunda Guerra Mundial. Politicamente, assim como o Capitão América encarava pessoalmente os ditos ―inimigos da democracia‖, os EUA deveriam se envolver diretamente com o conflito e enviar suas tropas para a Europa. Assim como Steve Rogers e Bucky combatiam os ―quintas-colunas‖ nas páginas das histórias em quadrinhos, a população deveria ficar atenta aos supostos espiões nazistas que estariam infiltrados nos EUA. O alistamento era também incentivado para que os leitores, na devida faixa etária, se juntassem

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ao seu herói na defesa de ―democracia‖ e da ―liberdade‖. É claro que, para a defesa desses valores supostamente ―americanos‖, os autores suprimiram das revistas quaisquer contradições sociais e políticas referentes aos EUA, como a segregação racial ou a agressiva política externa do país, disfarçada pelo discurso oficial do isolacionismo. As revistas do herói buscaram a identificação com o público infanto-juvenil através do jovem Bucky, da mesma faixa-etária de muitos dos leitores, e também do convite ao grupo ―Sentinelas da Liberdade‖. A identificação, além de girar em torno da questão comercial, tentando solidificar um público consumidor para a revista e angariar fundos, também tinha como objetivo incluir esses jovens leitores no esforço de guerra vindouro: em uma guerra total, onde todos os elementos da sociedade são ―peças‖ do mecanismo de guerra, os jovens deveriam estar atentos às pessoas com atitudes suspeitas ao seu redor, como aquelas que discursavam contra o envolvimento dos EUA no conflito. As histórias do Capitão América deixam transparecer que essas atitudes suspeitas poderiam esconder um quinta-coluna, pronto para ameaçar a segurança nacional. Os quintas-colunas, representados por Simon e Kirby, tiveram inspiração nos grupos germano-americanos de orientação nazista existentes nos EUA no período anterior à Segunda Guerra Mundial, dentre os quais, a principal representante foi a German-American Bund. Entretanto, esses grupos não apresentaram, de fato, uma ameaça ao território estadunidense, e nem mesmo se pode afirmar que suas ações fossem parte da política externa de Adolf Hitler, uma vez que o Partido Nacional-Socialista, no período anterior ao conflito, não criava incidentes diplomáticos com os EUA. As histórias em quadrinhos do Capitão América amplificaram o nível de ameaça desses grupos para poder transformá-los em vilões que representassem perigo para o herói e seu país em suas histórias. A transformação dos inimigos de guerra em vilões dos quadrinhos também envolveu um processo de desumanização e ―demonização‖, sobretudo dos inimigos asiáticos, representados graficamente pelos desenhos de Jack Kirby como monstros, o mais longe possível do retrato de um ser humano, imbuídos de atitudes cruéis e, igualmente, desumanas. Os vilões, assim como o Capitão América, são construções ideológicas, que expressam representações raciais e culturais vigentes na sociedade estadunidense envolvida com a guerra. A representação gráfica exerce o papel de expressar o não dito pela comunicação oral das histórias, colaborando para a produção do sentido. Essa desumanização dos inimigos é algo comum em tempos de guerra, tendo como objetivo tornar esse inimigo odiável,

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naturalizando assim o combate e a violência contra ele. Na Segunda Guerra Mundial não foi diferente, e as histórias em quadrinhos do Capitão América materializaram essa tendência. O conflito entre o Capitão América e seus inimigos é simplificado e maniqueísta, com o confronto ―bem x mal‖ bem definido. Tanto os personagens considerados ―bons‖ como o Capitão América e seus aliados, quanto os ―vilões‖, são unidimensionais, sem nuances a mais em seu caráter, sendo retratados como totalmente bons ou totalmente ruins, de acordo com o olhar de seus autores. As histórias procuram definir assim para os leitores, de forma clara, quem são os heróis e os vilões em tempos de guerra. É importante ressaltar que a revista Captain America não teve em sua produção participação do governo estadunidense. A publicação da Timely Comics seguiu o direcionamento da indústria dos quadrinhos da época, onde os super-heróis patrióticos começavam a se tornar uma tendência. O Capitão América não foi o primeiro e, após seu sucesso, muitos outros surgiriam; o herói criado por Joe Simon e Jack Kirby foi um fruto da tendência da época, sendo o de maior sucesso entre os heróis patrióticos. Esse sucesso pode ser explicado pelo fato de sua editora já ser consolidada no período, com outras publicações no mercado, bem como pelo fato de ter atribuído ao personagem um título próprio, algo pouco usual no período e que geralmente acontecia apenas com personagens já consagrados. Deve-se levar em conta também que Joe Simon e Jack Kirby foram influenciados pelo fato de que, em um contexto em que isolacionistas não queriam que o país fosse à guerra, existia também uma plataforma de divulgação entre aqueles que pensavam o contrário, sendo essa ―ala pró-guerra‖ apoiada por nomes de peso como Roosevelt. Os interesses acabaram convergindo e as histórias do Capitão América foram parte dos esforços para reverter a opinião daqueles contrários à entrada oficial dos EUA na Segunda Guerra Mundial.

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Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 26 de junho de 2020.

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Matheus Ostemberg Benites da Silva

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