AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE TERRITORIAL EM NO SÉCULO XIX: UMA ANÁLISE DOS REGISTROS PAROQUIAIS DE TERRA

Juliana Pereira Ramalho 1 (UFOP)

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as formas de acesso a terra na Freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas no século XIX. Para isto, utilizamos como fonte os registros paroquiais de terra produzidos entre 1855 e 1857 para a freguesia em estudo. Pesquisadores da história agrária brasileira argumentam que é possível encontrar nos registros paroquiais de terra indícios de complexos mecanismos de aquisição da propriedade da terra no século XIX, os quais envolvem transações de um mercado impessoal entrelaçado, por exemplo, de interesses familiares e relações de vizinhança no processo de manutenção e transmissão da propriedade da terra. É com o intuito de problematizar as formas de acesso e transmissão da propriedade territorial, na freguesia de São Pedro do Fanado, Minas Novas, que apresentamos uma exploração das informações contidas nos registros paroquiais de terra produzidos, os quais versam sobre compra, herança, dote e posse da terra. Palavras-chave: Terra; acesso à terra; Freguesia de São Pedro do Fanado.

Resumé: Ce travail a comme objectif d’analyser les formes d’accès à la terre dans la freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas au XIX siècle . Les sources utilisées pour cet étude ont été les enregistrements paroissiales de la terre. Les studieux de l’histoire agraire brésilienne argumentent que c’est possible trouver dans les enregistrements paroissiales de la terre des indices des complexes mecanismes d’acquisition de la terre pendant le XIX siècle auquels envelloppent des transations du marché impersonnel entrelacés, par exemple, d’interêts familiales et de relations de voisinage dans le processos de la transmission de la proprieté de la terre. C’est avec l’objectif de problématiser les formes d’accès et de transmission territoriales dans la Freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas qui ont presente une exploration des informations contenues dans les enregistrements paroissiales de la terre auquels entremêlent sur l’achat, l’héritage, le dot et la possession de la terre. Mots-clés: Terre; Accès; Freguesia de São Pedro do Fanado.

1 A participação neste evento foi financiada pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de . 1

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar as formas de acesso a terra na Freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas no século XIX. A região em estudo, localizada no nordeste de , parte do que se conhece como médio , teve seu povoamento originário das descobertas de ouro e diamantes, no fim do século XVII e início do século XVIII. Apesar da penetração de colonizadores portugueses nessa região desde o século XVI, seu povoamento foi marcado por

aglomerados urbanos (embora com uma urbanização incipiente), irregularmente distribuídos (na medida em que sua localização se deve à concentração natural dos recursos minerais), de crescimento rápido e estagnação posterior, e com forte presença da escravidão africana(PORTO, 2009, p. 66-67). Há que considerar que este povoamento foi consequência, sobretudo, da expansão da ação de bandeirantes paulistas, especialmente a partir da descoberta de ouro no Frio (PORTO, 2009).

A freguesia de São Pedro do Fanado é um exemplo claro deste processo: de um dos povoados resultantes do povoamento da região do Serro Frio – o povoado de – saiu a bandeira de Sebastião em 1727 em busca de novas áreas mineradoras, atingindo o Rio Fanado, que já havia sido examinado por outros bandeirantes e, ali, nada encontrando, “o infamaram, dando-lhe tal nome ” (VASCONCELOS, 1974, p. 52). A bandeira de Sebastião Leme, ao adentrar um dos afluentes do Rio Fanado, obteve mais êxito que seus antepassados ao encontrar “um estupendo lençol de ouro, que rasgaram. Bom Sucesso! Foi o nome que lhes brotou da boca nas alegrias do arraial, que aí logo fundaram ” (VASCONCELOS, 1974, p. 52). Construíram ali uma capela e demarcaram as terras entre si.

A descoberta do ouro atraiu para região do arraial um grande contigente de interessados em explorar o ouro, o que concorreu para a rápida formação de outros arraiais como Itapera, Paiol, Água Suja, Piedade, sendo o maior de todos eles São Pedro do Fanado - o primeiro que se formou na localidade (VASCONCELOS, 1974, p. 53).

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Há que ressaltar que a riqueza aurífera destas “minas novas” atraiu não apenas o interesse da população que para lá se dirigiu, mas também foi alvo de disputas administrativas entre o Governo da Província de Minas Gerais e o governo da Bahia, o que denota sua importância econômica no nordeste mineiro.

Vasconcelos (1974) argumenta que Leme do Prado, após a descoberta das novas minas e ao encontrar com seus primos Domingos Dias do Prado e Francisco Dias do Prado, que administravam as minas auríferas de , próximas às de São Pedro do Fanado, se uniram e deram manifesto das novas terras descobertas ao governo da Bahia e não ao governo de Minas Gerais, manobra esta que visava a sonegar “os quintos”, uma vez que “Minas já estava com o fisco aparelhado, e a Bahia, “ sobre não o ter, era país de portas abertas para os extravios ” (VASCONCELOS, 1974, p. 55). Isso fez com que as Minas Novas ficassem sob o comando do Governo da Bahia até 1757 no que diz respeito a questões econômicas, militares e eclesiásticas.

São Pedro do Fanado, nesse período, se destacou por ser um exímio produtor aurífero, o que levou o Vice-Rei a criar uma Intendência em “Arassuaí” para que a população não necessitasse quitar o seu ouro na casa de Jacobina, que ficava distante uma da outra duzentas léguas. Sobre o êxito de Minas Novas, afirma Vasconcelos (1974):

a fertilidade do novo distrito, basta dizer que, de meados de 1730 a igual período de 1731, se fundiram no Arassuaí 216 arrobas de ouro com guias e outras tantas com fianças, e como é força adivinhar que maior cópia se teria escondido ou extraviado, não fica sem razão calcular o vulto de mil arrobas (VASCONCELOS, 1974, p. 57). Essa importância econômica também se fez notar pela presença do Estado e da Igreja com a criação de capelas e novas freguesias na região. Em 1730, São Pedro do Fanado foi elevada à condição de Vila com o nome de Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas do Fanado, tornando-se sede do Termo de Minas Novas e, em 1740, “recebeu título e foros de cidade, com a denominação de cidade de Minas Novas” (HALFELD, 1998, p. 150), tornando-se assim o centro principal do município de Minas Novas, que contava com uma população total de 72 mil habitantes, sendo que a população de toda a paróquia do centro principal abarcava 15 mil habitantes e o da cidade era de 3 mil habitantes, de acordo com o levantamento de Halfeld (1998), feito entre os anos de 1850 e 1860. É relevante destacar que, 3

apesar de todas as mudanças ocorridas no nome do primeiro povoado das “Minas Novas”, a denominação de São Pedro do Fanado é recorrente na documentação que compõe o corpo documental deste trabalho, por isso, no decorrer deste texto, será utilizada a denominação de São Pedro do Fanado de Minas Novas para nos referirmos ao espaço da pesquisa.

Com o declínio do ouro, a região passou a se dedicar ao cultivo do algodão, inicialmente exportando o produto bruto para o Rio de Janeiro e, posteriormente, manufaturando a própria matéria-prima. Nesse sentido, uma citação se faz pertinente:

Isso provocou (a produção de algodão) uma expansão do povoamento para áreas anteriormente não abrangidas pela mineração, pois o algodão passa a ser produzido também em menor escala em regiões do médio Jequitinhonha (PORTO, 2009, p. 69). A autora argumenta ainda que uma das características da produção do algodão em Minas Novas era o fato de ser produzido em propriedades de pequeno e médio porte, utilizando mão de obra familiar ou de alguns escravos. Essa característica da produção em pequenas propriedades se manteve, inclusive após a decadência da produção algodoeira.

No entanto, a respeito desse período, especialmente sobre meados do século XIX e início do século XX, há um silêncio historiográfico a respeito da região em questão. Nesta linha de observação, João Valdir Souza (2003), ao analisar a produção acadêmica sobre o Vale do Jequitinhonha, argumenta que há uma lacuna de estudos em relação ao espaço e ao tempo para a região. Em relação ao espaço, pode-se identificar a escassez de discussões acadêmicas sobre a região da qual Minas Novas é constituidora do centro histórico, predominando uma produção sobre algumas regiões do Jequitinhonha, como o Serro e Diamantina. Quanto ao tempo,

há uma grave lacuna historiográfica no que se refere ao século XIX e à primeira metade do século XX, na região que compreendia o termo de Minas Novas, o que compromete uma visão de maior alcance sobre a história local. Raros são os trabalhos que abordam esse período histórico. Grosso modo, os autores afirmam que a região entrou em profundo estado de abandono e estagnação do final do século XIX, voltando a aparecer como objeto de interesse apenas a partir de meados do século XX. Predomina, neste caso, uma interpretação sustentada em ciclos econômicos (mineração, algodão, pecuária) fora dos quais praticamente nada de relevante teria acontecido (SOUZA, 2003, p. 3).

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Isto evidencia a necessidade de uma exploração documental e de uma análise historiográfica que possibilite a problematização da vida econômica e social das “Minas Novas”, no século XIX. Uma das fontes que possibilitam a análise da região, especialmente no que se refere à organização agrária, são os Registros Paroquiais de Terra - RPT. Estudiosos da história agrária brasileira argumentam que é possível encontrar nos registros paroquiais de terra indícios de complexos mecanismos de transmissão e de acesso à propriedade da terra e que, por sua vez, estão relacionados a diferentes tipos de interesses e racionalidades econômicas.

Acesso à terra na Freguesia de São Pedro do Fanado

Com o intuito de problematizar estas formas de aquisição da propriedade da terra é que apresentamos, neste trabalho, uma exploração das informações contidas nos registros paroquiais de terra entre os anos 1855 e 1857, que versam sobre compra, herança, dote, dádiva, doação, cessão e posse da terra, na freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas. Isso denota que, se nos primórdios de seu povoamento, o acesso a terra ocorreu especialmente através da posse da terra, conforme nos informa Botelho (1999), em meados de 1850, já era possível encontrar complexos mecanismos de acesso a terra de origem comercial, como a compra, e também de origem familiar,como o dote, a herança, e formas compostas em que diferentes categorias se conectam com a finalidade de proporcionar o acesso a terra, além de outras categorias, respaldadas em redes de reciprocidades pessoais como a doação e a dádiva.

Tomando como base os princípios da micro-história, que busca problematizar o micro para compreender relações que no nível macro seriam difíceis de serem vistas ou analisadas, este trabalho busca problematizar as relações que perpassaram estas diferentes categorias de acesso a terra, como uma forma de elencar indícios de estratégias adotadas pelos indivíduos no acesso a terra. A estratégia, nesse sentido, é entendida como um conjunto de práticas que têm uma determinada finalidade sem, no entanto, terem sido concebidas a priori para tal

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finalidade, ou seja, é um conhecimento prático que se adquire participando de um contexto social em um tempo histórico específico (BOURDIEU, 1990).

A respeito das nossas fontes, é importante dizer que os Registros Paroquiais de Terra se destacam por serem os únicos dados fundiários existentes, anteriormente à década de 1970 (LINHARES, 1981), daí sua importância para a história agrária no século XIX. É uma documentação produzida no contexto da lei de terras de 1850, que tinha como objetivo alargar as relações capitalistas no meio rural, uma vez que estabelecia que a aquisição de terras deveria ocorrer através da compra e venda (COSTA, 1999). Assim, foi determinado que se fizesse o registro das terras possuídas, por freguesia, que ficaria sob a responsabilidade dos párocos,

devido ao regime do padroado, resultante da aliança Igreja-Estado, que perdurou no Brasil, até o advento republicano, o acompanhamento estatístico da população constituía atributo de párocos, que recebiam côngruas do poder público, também o primeiro censo fundiário do Brasil foi lhes confiado. Em consequência, essas escriturações ficaram inapropriamente denominadas de registros paroquiais de terra (NEVES, 2003, p. 204). Nesse contexto, os registros paroquiais de terra seriam uma ferramenta de legalização das propriedades no solo do Império:

Tanto os que obtiveram propriedades ilegalmente, por meio da ocupação, nos anos precedentes à lei, como os que receberam doações mas nunca preencheram as exigências para a legitimação de suas propriedades puderam registrá-las e validar seus títulos após demarcar seus limites e pagar as taxas (COSTA, 1999, p. 171). Os Registros Paroquiais de Terra são, portanto, resultantes de:

uma determinação que obrigava, em tese, os possuidores de terras a declarar seus domínios junto aos vigários de cada freguesia, indicando o nome do possuidor, a extensão (se conhecida), os confrontantes da propriedade e o nome do particular das situações, caso houvesse alguma. Os vigários eram obrigados a aceitar as declarações da maneira que fossem prestadas, mesmo que faltassem informações requeridas (LOUREIRO, 2010, p. 8) Apesar de os Registros Paroquiais de Terra serem uma fonte importante para a história agrária no Brasil do XIX, há diversas lacunas nas informações, consequência do despreparo dos párocos responsáveis pela confecção dos registros (NEVES, 2003), ou até mesmo da sagacidade ou ignorância dos declarantes, que forneciam informações vagas sobre os limites

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de sua propriedade, em muitos casos não indicando o processo de aquisição da propriedade, ou não informando a extensão da propriedade. Todas essas lacunas nos Registros Paroquiais de Terra podem ter sido ampliadas pelo fato de que

os párocos foram autorizados a cobrar emolumentos pela execução dos registros, calculados conforme o número de palavras, critério que induzia à condensação máxima dos textos de cada cadastro, prejudicando a qualidade das informações (NEVES, 2003, p. 204-205). Isso pode explicar o fato de nossa amostra, composta por 212 registros paroquiais de terra, ter 53 declarações que não informam a maneira como ocorreu o acesso a terra, como podemos verificar no Quadro 1.

Quadro 1 – Formas de aquisição da propriedade na Freguesia de São Pedro do Fanado (Registros Paroquiais, 1855-1857)

Forma de Acesso a Terra Número de declarantes

Cessão 1

Compra 61

Dádiva 8

Dádiva e compra 1

Doação 7

Dote 4

Dote/compra 1

Herança 31

Herança/compra 8

Herança/compra/posse 1

7

Posse 34

Posse/dádiva 1

Usufruto de terra da Igreja 1

Não descreve 53

Total 212

Como se pode ver, a forma de acesso a terra que mais se destaca na Freguesia de São Pedro do Fanado é a compra. Em um primeiro momento, poderíamos afirmar que teríamos ali um desenvolvido mercado territorial. No entanto, é necessário problematizarmos esse mercado, pois a aparente comercialização da terra pode nos revelar relações complexas de vizinhança (LEMOS, 2012) e de reciprocidade, mediadoras nesse processo de compra e venda.

Giovani Levi (2009), em estudo sobre o mercado de terra em Santena, no Antigo Regime, nos chama a atenção para os problemas sobre a mercantilização da terra nos debates historiográficos. O autor defende que a máxima de que tudo aquilo que é comprado e vendido foi produzido para a venda não pode ser aplicado para a terra, especialmente quando diz respeito ao contexto do Antigo Regime. Basta relembrar que a terra era, não só o pilar da produção, mas estava também no centro do sistema de poder e de proteção social, o que tornava a sua mercantilização um processo complexo e viscoso. Levi (2009) chega à constatação de que na região de Santena, o preço da terra não era determinado pela lei da oferta e da procura, mas “ eram diferentes caso as transações ocorressem entre parentes, vizinhos ou estranhos, e eram sensivelmente mais altos à medida que se reduzia a distância de parentesco ” (LEVI, 2009, p. 93). Isso porque de acordo com o autor mudava o conteúdo das reciprocidades.

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Apesar de os registros paroquiais de terra não apresentarem os valores das propriedades adquiridas, o que nos possibilitaria um estudo de cruzamento das relações de vizinhança 2 e de parentesco com os preços, é possível verificar a existência de proximidade pessoal entre os contratantes.

Dos 61 registros referentes à compra, Quadro 1, 15 deles mencionam os nomes dos antigos proprietários, sendo que sete destes declarantes eram vizinhos.

Um exemplo que podemos usar para ilustrar tal situação é o caso do Coronel José Bento Nogueira, casado com a filha do Coronel Jacintho Alves da Costa 3, o qual, também, era conhecido como Jacintho do Engenho. O coronel José Bento Nogueira declara em um único registro 4 quatro propriedades: a primeira é uma fazenda chamada Burity, comprada aos herdeiros do Comendador João Pereira de Araujo Pinto, que fazia divisas com a fazenda do Pombinho de seu sogro Jacintho Alves da Costa; a segunda propriedade é um sítio, não havendo informações sobre a forma de acesso a esta propriedade, que também fazia divisas com a fazenda de seu sogro e com os herdeiros de Pedro Soares. Além disso, o coronel José Bento possui uma parte de terras em comum com os herdeiros de Pedro Soares (vizinhos de seu sogro e, consequentemente, vizinhos de uma de suas propriedade – o sítio já mencionado), que foi comprada de um dos filhos de Pedro Soares. A quarta propriedade declarada pelo coronel José Bento é uma parte de terras na fazenda Pombinho, que ele mantém “em meação” com seu sogro. E, para finalizar, um sítio comprado de João Soares Cardoso e sua mulher também foi declarado pelo Coronel José Bento Nogueira. Esta última não fazia divisas com as outras propriedades, o que leva a entender que este último não era próximo das demais propriedades declaradas. Este caso é exemplificador de acesso a terra através de relações de parentesco e de vizinhança, denotando um interesse por compras de propriedades circunvizinhas até mesmo como uma forma de ampliação do patrimônio territorial.

2 Esse mesmo problema é enfrentado por estudiosos de outras regiões do Brasil, como, por exemplo, Lemos (2012), ao estudar as transações de terra em Guarapiranga. 3 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1298/65, Jacintho Alves da Costa. 4 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1260/4, José Bento Nogueira. 9

Outro exemplo que podemos usar para ilustrar as relações de proximidade entre os contratantes é o caso de Alexandre José Pinheiro 5, considerado pessoa de confiança da família Coelho Barbosa 6, que, após a partilha da fazenda Ribeirão do Sapé entre os herdeiros de Alexandre Coelho Barboza, comprou a parte da herança de Jacintho Coelho Barboza, filho de Alexandre Coelho Barboza. Portanto, ao cruzarmos as informações acerca de vizinhança e de parentesco, podemos afirmar que muitas “transações ficavam restritas a círculos fechados de sociabilidade local” (LEMOS, 2012, p. 11). Além disso, a combinação da compra da terra com o dote e a dádiva, Quadro 1, nos sinaliza, mais uma vez, para a proximidade das relações pessoais com as transações comerciais no acesso a terra, mas isso não quer dizer que não fosse possível a compra da terra por pessoas que não estivessem dentro deste círculo de sociabilidades. A partilha da terra, sobretudo após a morte do pai nos revela que alguns filhos – por razões não explícitas na documentação – não tinham interesse em manter a propriedade da terra, o que ocasionava a venda da parte que lhes era destinada.

Outros meios de acesso a terra que nos chamam a atenção são a herança – 31 declarações - e a posse – 34 declarações. A herança, movimento intimamente ligado aos processos de transferência de bens no meio rural, se configura, sobretudo para as famílias de grupos de agricultores, como um processo tenso que requer a construção de estratégias, negociações e equilíbrio, com o intuito de manter a terra em condições de tamanho para a produção (GALIZZONI, 2003). Isto quer dizer que a herança da terra

é um problema ambíguo, que traz em si possibilidades que precisam ser equilibradas. Para as novas gerações de agricultores continuarem como tais, elas precisam ter acesso a uma parcela de terra, que, se extremamente dividida, pode, ao contrário, inviabilizar a continuidade da família como grupo de agricultores independentes (Galizzoni, 2003, p. 562) Ao considerarmos que as terras da freguesia de São Pedro eram destinadas à agricultura, podemos afirmar que esses produtores rurais do século XIX daquela freguesia, por terem a terra como principal fonte de produção econômica, elaboravam estratégias que visavam à

5 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1298/64, Alexandre José Pinheiro. 6 Alexandre José Pinheiro foi designado procurador de todos os herdeiros de Alexandre Coelho Barboza para fazer as declarações da propriedade da terra. 10

reprodução de seu grupo como produtores rurais. Vale ressaltar que através das declarações é possível identificarmos que nem sempre toda a extensão da propriedade era destinada ao cultivo. Muitos declarantes, ao apresentarem sua propriedade, descrevem-na como sendo composta por campos de criar, terras de cultura, caatinga e terras incultas. Isto significa que estes grupos de produtores necessitavam lançar mão de mecanismos que permitissem sua continuidade no tempo como produtores rurais. Uma das estratégias utilizadas no caso da herança é a manutenção da propriedade “em comum” entre os herdeiros, caso dos herdeiros de Manoel da Costa Barreiras 7, que, após sua morte, mantiveram a fazenda Palmital “em comum” com todos os herdeiros.

Outros exemplos poderiam ser citados, sobretudo se forem considerados os vizinhos declarados nos registros paroquiais em que é possível encontrar um número considerável de propriedades que estão em domínio de herdeiros que mantêm a propriedade indivisa. É interessante observar que essa tendência em manter a propriedade indivisa na região de Minas Novas é uma característica que permanece até os dias atuais. Flávia Galizzoni (2003), em um estudo antropológico sobre a transmissão da terra no alto Jequitinhonha, identifica que, pelo fato de as propriedades serem de pequeno porte, os lavradores sempre afirmam que “ suas terras estão no bolo, ou seja, sua posse está em comum ” (GALIZZONI, 2003, p. 265).

Outros mecanismos de acesso a terra são a combinação da herança com a compra – oito ocorrências – e a combinação da herança com a compra e a posse - uma ocorrência. Esses fatores combinados denotam os diferentes recursos com que o homem rural da freguesia de São Pedro do Fanado se cercou para garantir sua permanência e o acesso a terra e até mesmo o aumento das propriedades já adquiridas. Assim, a combinação de diferentes mecanismos como a posse e a compra, aliada à herança, serviria para repor o patrimônio territorial fragmentado em partilhas anteriores.

Além disso, é importante dizer que a terra era não apenas uma fonte econômica para as famílias proprietárias, mas também fonte de usufruto para os escravos libertos. No registro de

7 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1277/25, João Baptista Damasceno e demais herdeiros.

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terras de João Baptista Damasceno 8, o declarante informa que, na fazenda por ele e demais herdeiros declarada, residiam todos os escravos que se tornaram forros por ocasião da morte de seu sogro Manoel da Costa Barreiros e que eles tinham direito ao usufruto da terra, conforme vontade registrada em testamento de Manoel da Costa Barreiros.

A posse é outro meio de acesso a terra em São Pedro do Fanado. A respeito da posse da terra, Maria Verónica Secreto (2007) nos informa que, enquanto a concessão de sesmarias estava relacionada ao processo de acesso a terra dos grandes latifundiários, “ a posse era a pequena propriedade agrícola criada pela necessidade” ( SECRETO, 2007, p. 7-8). Esta citação é importante na medida em que a autora ressalta essa relação entre a posse e a pequena propriedade rural, o que pode explicar os indícios sobre o predomínio das pequenas propriedades na Freguesia em estudo. Quando comparamos a extensão declarada das propriedades em São Pedro do Fanado com outras regiões do Brasil, como a Zona da Mata Mineira, estudada por Rômulo Andrade (2006), e a região fluminense, pesquisada por Hebe Mattos (2009), observa-se tendência ao predomínio das pequenas propriedades na região das Minas Novas. Das duzentas e doze propriedades descritas nos registros analisados, apenas quatro se destacam pela extensão em relação às demais: a primeira, com extensão de 100 alqueires, é de propriedade do padre Francisco Ferreira Paulino 9, que, apesar de morar na parte urbana de Minas Novas, declara possuir terras de cultura e caatinga de criar próximo ao Ribeirão de Santa Rita, na freguesia; a segunda é descrita como sítio, com cinquenta alqueires de extensão; e as outras duas, com extensão de sessenta alqueires, sendo descritas como fazenda e terreno, respectivamente. No entanto, ainda é necessária a análise de todos os registros paroquiais existentes para a Freguesia de São Pedro do Fanado de Minas Novas, para ser possível a definição da extensão total descrita nos registros e, assim, ser possível fazer uma análise geral sobre o predomínio de pequenas propriedades ou sobre a concentração fundiária na região, no século XIX.

8ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1277/25, João Baptista Damasceno e demais herdeiros. 9ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1300/70, Padre Francisco Ferreira Paulino.

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Por fim, temos a doação e a dádiva, descritas como formas de acesso a terra. Estas duas categorias nos remetem a uma modalidade de economia que Marcel Maus (1974) identificou, sobretudo, nas sociedades tradicionais, em que as trocas são regidas pela lógica da reciprocidade. Nestas sociedades, a dádiva estaria vinculada a uma cadeia de obrigações regidas pelo “dar”, “receber” e “retribuir”. Esse circuito não poderia ser interrompido, em razão de as coisas em circulação terem um espírito – o mana . Neste tipo de trocas, o objeto trocado era entendido como detentor de algo do doador, que deveria retornar ao lar de origem, por isso, quando se aceitava algo de alguém, estava-se também aceitando algo da essência desse alguém, mobilizando, assim, as esferas religiosa, política, jurídica, econômica e moral. No Antigo Regime, a dádiva, segundo Pedro Ferreira (2010), tinha como objetivo “estabelecer vínculos sociais através da ajuda ao próximo”. No entanto, não era uma “ajuda” desinteressada, “pois mesmo que quem a concedesse não esperasse, pelo menos, à primeira vista, algo em troca, quem a recebia estava automaticamente comprometido à gratidão e à retribuição” (FERREIRA, 2010, p. 33). A dádiva, portanto, criava um elo entre doador e receptor e, no caso de São Pedro do Fanado, esse elo de generosidade/gratidão e retribuição era mediado pela oferta da terra por pessoas de destaque social, detentoras de prestígio social e econômico, caso do Tenente Coronel José Silverio da Costa 10 , casado com dona Erena Pereira Freire, dono de vinte e seis escravos, que ofereceu pedaços de terra em forma de dádiva a Manuel da Costa Pereira 11 , a Remualdo Rodrigues da Fonceca 12 , a Pedro da Costa Pereira 13 e a Justino da Rocha Barreiras 14 . Esse tipo de prática abre espaço para a hipótese de que na freguesia de São Pedro do Fanado havia uma elite que se utilizava de um “mercado de dons” para a construção e manutenção de redes de socialibilidades e de poder.

10 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Lista Nominativa de Habitantes da Freguesia de Minas Novas, 1831-1832. Fogo do Sargento Mor Silverio José da Costa. 11 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1291/48, Manuel da Costa Pereira. 12 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1292/49, Remualdo Rodrigues da Fonceca. 13 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1299/67, Pedro da Costa Pereira. 14 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Registro Paroquial de Terra da Freguesia de São Pedro do Fanado, 1855. Cadastro 1299/68, Justino da Rocha Barreiras. 13

Considerações finais

Os registros paroquiais de terra têm configurado para a freguesia de São Pedro do Fanado uma importante fonte histórica para seu estudo. Apesar da ausência de informações detalhadas sobre os sujeitos envolvidos nos processos de acesso a terra, verifica-se que os mecanismos de transferência territorial tiveram como característica predominante um amálgama de relações de vizinhança, parentesco e de reciprocidades, que, em muitas situações, se completaram com transações comerciais na construção de rearranjos da manutenção do patrimônio territorial.

Além disso, é possível verificar que para tal freguesia há indícios de predomínio de pequenas propriedades, o que contrasta com outras regiões de Minas Gerais e do próprio Vale do Jequitinhonha, como, por exemplo, o baixo Jequitinhonha, onde predominaram no século XIX as grandes fazendas produtoras de gado, alicerçadas, especialmente no sistema de agregação (RIBEIRO, 2003). Entretanto, há ainda a necessidade de cruzamento das informações contidas nos registros paroquiais de terra com outras fontes documentais, visto que os dados aqui apresentados ainda são resultado da fase inicial de uma pesquisa em andamento.

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