Nº 531 | Ano XVIII | 17/12/2018 Etty Hillesum O colorido do amor no cinza da Shoá Faustino Teixeira Beatrice Iacopini Mariana Ianelli Ceci Baptista Mariani Ricardo Fenati Gabriela Acerbi Eduardo Losso Thiago Amud

Antropoceno ■ Marco Antonio Valentim ■ Ethienne Turpin EDITORIAL

Etty Hillesum – O colorido do amor no cinza da Shoá humanamente compreensível que quem vi- Gabriela Acerbi, socióloga e mestranda em Ci- veu a perversidade do mal, prefigurado no ências Sociais, descobriu Etty recentemente e não holocausto, perca a luz e passe a refletir ape- esconde seu encanto. Para ela, a experiência da Énas a dor. Mas essa não é a única saída. A experiên- jovem judia revela que é possível se criar mesmo cia de Etty Hillesum nos campos de concentração diante de um abismo. Para ela, os diários de Etty da Segunda Guerra prova isso: a jovem judia não se Hillesum são um apelo a essa criação e uma recusa entrega à dor e tampouco responde ao ódio na mes- a condicionar-se ao adverso. ma potência. Sua arma é o canto de alegria em meio Eduardo Guerreiro Brito Losso, professor às dificuldades, como uma flor que irradia calor na de Teoria da Literatura do Departamento de Ciên- resistência gélida e tétrica do inverno sob a égide na- cia da Literatura da Universidade Federal do Rio zista. Na esperança de sempre ver a luz mesmo em de Janeiro, reflete, a partir da experiência de Etty, meio à realidade sombria, a IHU On-Line traz a sobre as inquietudes que afligem o nosso tempo, mística de Etty Hillesum como tema central desta perversidades que, se não forem apreendidas nas edição. pequenas ações, acabam personificando o pior da É nesse sentido que Faustino Teixeira, profes- humanidade. sor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação Thiago Amud, compositor, arranjador, cantor em Ciência da Religião da Universidade Federal de e violonista carioca, também destaca a importân- Juiz de Fora, observa nessa jovem mística a arte de cia da resistência alegre. Assim, olha para a forma encontrar o Deus interior capaz de fortalecer contra como as Marchas de 2013 foram apreendidas pelo todo o mal que a cerca, sem ceder em nada a senti- “neofascismo” e vê na arte uma forma de ativar mentos malignos e ainda irradiar amor. “Com todas sentimentos que mobilizam sentimentos positivos 2 as condições para dizer o contrário, Etty rechaça em como reação. sua reflexão qualquer possibilidade de adesão ao ódio”, sintetiza. Também podem ser lidas as entrevistas com Mar- co Antonio Valentim, professor da Universida- Beatrice Iacopini, formada em Filosofia e em de Federal do Paraná - UFPR, repensa a Filosofia a Teologia e é professora no ITCS Filippo Pacini - Pis- partir de postulados capazes de pensar nossa huma- toia e colabora com a Escola de Teologia da Dioce- nidade desde um ponto de vista não autocentrado, se de Pistoia, lembra que é necessário desenterrar e sim extra-humano e propõe como o fascismo se Deus dos corações martirizados. “Etty Hillesum tornou a política oficial do Antropoceno; e Etien- nos ensina a perceber a profunda unidade de tudo, ne Turpin, filósofo, pesquisador do Instituto de razão pela qual quem se empenha a melhorar a si Tecnologia de Massachusetts e diretor fundador do mesmo, na realidade, muda o mundo”, pondera. Anexact Office, reconhece o Antropoceno como um Mariana Ianelli, poeta, ensaísta, cronista e crí- alerta sobre as ações humanas no planeta. tica literária brasileira, chama atenção para a ca- Por fim, uma reportagem especial destaca os even- pacidade da jovem de encontrar Deus não apenas tos que estão sendo preparados pelo Instituto Hu- em seu interior, pois “desenterra Deus do fundo do manitas - IHU para 2019. coração dos outros”, livre de qualquer amarra ou preconceito. Desejamos a todas e todos um Feliz Natal e um abençoado Ano Novo! Ceci Maria Costa Baptista Mariani, profes- sora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da Faculdade de Teologia, foca sua aná- lise no amor que Etty é capaz de mobilizar. Segundo a professora, pela entrega amorosa, a jovem chega a um Deus que habita nela e reconhece nele a face daqueles que a cercam. Para Ricardo Fenati, mestre em Filosofia e inte- grante do Centro Loyola, de , a expe- riência mística de Etty Hillesum é espiritual, e não psíquica, segundo revela em registros das primeiras anotações de seu diário. Foto: Scott Hart / Flickr Creative Commons

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Sumário

4 ■ Temas em Destaque 6 ■ Reportagem | China, Juventudes, Revolução 4.0, Economia, Literatura, Políticas Públicas são temas da programação do IHU para 2019 10 ■ Tema de capa| Etty Hillesum, a voz que se ergue das sombras como brasa e reinventa a esperança 14 ■ Tema de Capa | Faustino Teixeira: Etty Hillesum canta a alegria contra o ódio 22 ■ Tema de Capa | Beatrice Iacopini: Trabalhar sobre si mesmo é a única solução para o mal 29 ■ Tema de Capa | Mariana Ianelli: A jovem mística que “desenterra Deus do fundo do coração dos outros” 35 ■ Tema de Capa | Ceci Mariani: O amor é central na mística feminina de Etty Hillesum 41 ■ Tema de Capa | Ricardo Fenati: A mística, uma vivência psíquica? Não, uma experiência espiritual 45 ■ Tema de Capa | Gabriela Acerbi: Etty Hillesum e a criação diante do abismo 53 ■ Tema de Capa | Eduardo Losso: A necessidade de reconhecer o mal no humano para enfrentá-lo 63 ■ Tema de Capa | Thiago Amud: Contra os ressentidos de 2013 é preciso alegria como substância para resistência 70 ■ Dossiê Antropoceno | Marco Antonio Valentim: Fascismo, a política oficial do Antropoceno 76 ■ Dossiê Antropoceno | Etienne Turpin: O Antropoceno é um alerta sobre as ações humanas no 3 planeta 80 ■ Publicações | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco: Da esperança ao ódio: Juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo 81 ■ Publicações | Livro: Pesquisas, Instituições e Sociedade nas Tramas de Crise 82 ■ Publicações | Luis David Castiel: O mal-estar na cultura medicamentalizada 83 ■ Publicações | Austen Ivereigh: A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança? 85 ■ Outras edições

Diretor de Redação Inácio Neutzling ([email protected]) Coordenador de Comunicação - IHU Ricardo Machado – MTB 15.598/RS ([email protected]) Jornalistas João Vitor Santos – MTB 13.051/RS ([email protected]) ISSN 1981-8769 (impresso) Patricia Fachin – MTB 13.062/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU ISSN 1981-8793 (on-line) ([email protected]) Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS Revisão CEP: 93022-000 Carla Bigliardi Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 e-mail: [email protected] Projeto Gráfico e Editoração A IHU On-Line é a revista do Institu- Ricardo Machado to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Diretor: Inácio Neutzling publicação pode ser acessada às segun- Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Nestor Pilz das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia ([email protected]) no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch, Anielle Silva, William Gonçalves, Stefany O conteúdo da IHU On-Line é copyleft. de Jesus Rocha, Wagner Fernandes de Azevedo e Juliana Borgmann.

EDIÇÃO 531 TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana. “A morte pertence à vida. Ela nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos” “A teologia sempre é possível e deve ser feita para responder com sentido crítico às demandas derradeiras da condição humana, mas ela deve de- sembocar numa espiritualidade.”

Leonardo Boff é doutor em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Foi professor com os Franciscanos em Petrópolis e na Universidade do Estado do . Disponível em http://bit.ly/2QQ318B.

Cinquenta anos depois do AI-5, autoritarismo continua no DNA do brasileiro “Eu tomei uma decisão nesse momento: todas as manhãs quando desper- tava, prometia a mim mesmo ‘hoje não vou ficar paranoico’. Isso valia por 24 horas.”

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Disponível em http://bit.ly/2PFe13U.

4 Cena política é concebida para ser machista

“A liberdade de expressão das mulheres acaba sendo falsa, pois quando se manifestam e estão em tom discordante do masculino político, são taxa- das de ‘loucas’, ‘histéricas’ ou ‘burras’.”

Luciana Panke é pós-doutora em Comunicação Política pela Universidade Autônoma Metropolita- na - UAM do México e professora na Universidade Federal do Paraná – UFPR. Disponível em http:// bit.ly/2UMZkzs.

Educação para redes e reconstrução de parâmetros de realidade “É preciso mostrar as dinâmicas e as finalidades dos sistemas algorítmi- cos. Esses dispositivos são performáticos e cada vez mais preditivos. Eles alteram os ambientes em que operam.”

Sérgio Amadeu é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP. Participou da implementação dos Telecentros na América Latina e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre - CISL. Disponível em http://bit.ly/2Em0tZi.

Estar simplesmente presente: Merton e a vida contemplativa “Thomas Merton é para mim uma das figuras mais importantes do século XX, que apontou de forma fundamental o perfil de uma mística profunda- mente ligada ao tempo e desperta para o amor a Deus e ao próximo.”

Faustino Teixeira é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Reli- gião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. Disponível em http://bit. ly/2ElNir2.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Leonardo Boff: Quase metade dos A democracia em amigo do bem jovens brasileiros com suspenso, 50 anos do AI-5 diploma está fora da área de formação

“Leonardo fez ao longo da O número de brasileiros O termo revolução é carre- vida quatro grandes balan- que concluíram o ensino su- gado de toda uma semântica ços: nos 50, 60, 70 e agora perior e estão trabalhando particular, designando uma aos 80. Minha intenção aqui, fora de sua área de atuação espécie de contrarrevolu- neste breve texto, é captar o aumentou neste ano. Entre ção ao que seria a ascensão que ocorreu nesta revisão de os jovens, esse grupo teve comunista no Brasil, mani- vida que Leonardo foi fazen- acréscimo de seis pontos festa na figura de Jango, ex- do em cada um desses pas- percentuais e já representa -ministro de Getúlio Vargas. sos”. 44,2% do total de formados. Do delírio anticomunista dos Se consideradas todas as anos 1960, restou apenas as O texto é de Faustino Teixeira, publi- cado nas Notícias do Dia do IHU, em idades, a parcela é de 38%, sombras dos dez anos mais 14-12-2018, disponível em http://bit. o maior patamar desde o duros da ditadura civil-mi- ly/2BhauUf. início da série histórica, em litar. 2012. A reportagem é de Ricardo Machado A reportagem é de Fernanda Nunes, e Wagner Fernandes de Azevedo publicada por O Estado de S.Paulo, publicada nas Notícias do Dia do IHU, 13-12-2018, reproduzida nas Notícias em 13-12-2018, disponível em http:// 5 do Dia do IHU, em 14-12-2018, disponí- bit.ly/2zZSqyi. vel em http://bit.ly/2LflfeB.

“Bolsonaro afronta e “Bolsonaro promete um Agrotóxicos. Uma confronta os indígenas” muro de vergonha para o questão de saúde meio ambiente”

Em entrevista à revista “Uma derrota”. É assim que Movimentos sociais, sa- Globo Rural, Cleber Buzatto, Marcio Astrini, coordenador nitaristas e organizações secretário-executivo do Cimi de políticas públicas do Gre- internacionais apontam as (Conselho Indigenista Mis- enpeace e membro da coor- contradições do atual siste- sionário), órgão vinculado denação do Observatório do ma agroalimentar, produtor à Igreja Católica, disse que Clima, classifica a retirada da de doença e injustiça social. as declarações do presidente candidatura do Brasil para A agroecologia ganha im- eleito Jair Bolsonaro sobre sediar a próxima Conferência portância no debate sobre os indígenas são desrespei- sobre as Mudanças Climáti- o que fazer para superar o tosas e estão alimentando o cas da ONU no ano que vem, a modelo da ‘revolução verde’. preconceito e até atos de vio- COP25. Durante a Conferên- O artigo é de André Antunes, publica- lência contra algumas tribos cia do ano passado, o Brasil do no portal EPSJV/Fiocruz, reprodu- em regiões como Rondônia. anunciou a candidatura para zido nas Notícias do Dia do IHU, em sediar o evento em 2019. 4-12-2018, disponível em http://bit. ly/2Bg6m6U. A entrevista é de Bruno Blecher, publi- cada por Globo Rural, reproduzida nas A entrevista com Marcio Astrini é de Notícias do Dia do IHU, em 13-12-2018, Marina Rossi, publicada por El País, e disponível em http://bit.ly/2QOrlrz. reproduzida nas Notícias do Dia do IHU, em 4-12-2018, disponível em http://bit. ly/2EyufuG.

EDIÇÃO 531 REPORTAGEM

Arte Jonathan Camargo / IHU

6 China, Juventudes, Revolução 4.0, Economia, Literatura, Políticas Públicas são temas da programação do IHU para 2019

Ricardo Machado

ara o ano de 2019, a agenda de programação do Instituto Humanitas Unisinos - IHU está recheada de novos eventos sobre variadas temáticas e com ampliação da programação na Unisinos Porto Alegre. Somente no primeiro semestre serão Poito atividades, de ciclo de palestras a cinedebates, passando por jornadas de estudos. Os eventos, cabe lembrar, seguem a tradição do IHU, sendo amplamente abertos não somente para estudantes mas também para toda a comunidade. As informações detalhadas sobre cada um dos eventos podem ser acessadas no ende- reço ihu.unisinos.br/eventos. A seguir, apresentamos brevemente cada um dos eventos que compõem a programação do primeiro semestre.

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4º Ciclo de Estudos Revolução 4.0. Impactos nos modos de produzir e viver

Dando continuidade aos debates sobre as transformações tecnocientíficas, o 4º Ciclo de Estudos Revolução 4.0. Impactos nos modos de produzir e viver realiza cinco conferências para tratar de um dos temas mais relevantes da contemporaneidade. A exemplo das demais revoluções, a atual que vivemos produziu inovações tecnológicas tais como inteligência ar- tificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia e armaze- namento de energia. O que há de novo em relação às prede- cessoras é a fusão, cada vez mais difícil de delimitar, das di- mensões física, digital e biológica. Tudo isso produz novos modos de viver, impactando a forma como as pessoas se relacionam no mundo do trabalho e nos modos de apren- dizagem. O evento ocorre de 25 de março a 29 de maio de 2019, nos campi São Leopoldo e Porto Alegre da Unisinos. Mais informações em http://bit.ly/revolucao-40.

Ciclo de Estudos A China e o mundo. A (re)configuração geopolítica global

O crescente protagonismo chinês no cenário global se tornou um dos mais importantes vetores geopolíticos no contexto atual. Enten- der a atuação da China e suas complexidades históricas, políticas e culturais é uma tarefa que se apresenta como 7 um tremendo desafio, sobretudo ao Ocidente. Em termos globais, esta é a primeira vez que o predomínio europeu e norte-americano se vê realmente ameaçado por uma po- tência oriental que opera a partir de suas próprias lógicas e dinâmicas. O processo é classificado, por alguns autores, como “orientalização”. Dentro da atual conjuntura, a pro- posta do evento é pensar o Brasil e suas possibilidades de desenvolvimento em perspectiva com estas possíveis mu- danças geopolíticas. O evento ocorre no dia 7 de maio, na Unisinos Porto Alegre. Mais informações em http://bit.ly/ china-e-o-mundo.

Ciclo de Estudos As juventudes do Brasil. Mutações e (im) possibilidades

Mais do que o atravessamento comum a muitas pautas, o tema da Juven- tude engendra todo um universo de discussões, incom- preensões e análises. Para adentrar nesse universo, o IHU realiza o Ciclo de Estudos As juventudes do Brasil. Muta- ções e (im)possibilidades, cujo objetivo é compreender as juventudes da contemporaneidade no Brasil, seus protago- nismos, possibilidades e limites. As conferências abordam desde temas relacionados às dimensões psicológicas desses jovens até aspectos da religiosidade e da formação cultural e intelectual. Compreender os caminhos trilhados pelos jo- vens pode ajudar a entender desafios atuais e futuros, so- bretudo no que diz respeito aos projetos políticos nacionais que vêm se desenhando. O evento ocorre de 28 de março a 30 de maio de 2019. Mais informações em http://bit.ly/ juventudes-brasil.

EDIÇÃO 531 REPORTAGEM

Juventudes, redes sociais e suas (des)conexões

Outro evento do IHU que discute centralmente a questão da Juventude tem como horizonte e público-alvo agentes pastorais. In- titulado Juventudes, redes sociais e suas (des)conexões, a programação retoma debates da 47ª Jornada Mundial das Comunicações Sociais, que vem discutindo aspectos da Igreja e suas interconexões com a internet, sobretudo em sua presença nas redes sociais, o que causa profundas transformações nas formas de convívio social e nos aspec- tos relacionados à religiosidade cristã, em sentido amplo, e, mais especificamente, católica. Diante disso, o evento se propõe a pensar e debater sobre os desafios e possibilidades das mídias e redes sociais para evangelização. Pensar tais implicações significa colocar em pauta os temas das juven- tudes em perspectiva com a vivência da fé cristã e de seu engajamento eclesial. O evento ocorre no dia 18 de maio de 2019, na Unisinos Porto Alegre. Mais informações em 8 http://bit.ly/juventudes-e-redes.

Páscoa IHU – Políticas Públicas

Seguindo a tradição do Instituto, a Páscoa IHU, que chega à sua 16ª edição, terá como fio condutor o debate sobre as Políticas Públicas. Quando utilizadas como ferramenta de luta e produção de justiça social, as políticas públicas se tornam como dispo- sitivos de acesso a direitos cidadãos e enfrentamento das mais diversas vulnerabilidades presentes em nossa socie- dade. Dado que o cenário atual impõe inúmeras adversi- dades, (re)pensar as políticas públicas no atual contexto, debatendo os principais desafios e possibilidades, torna-se uma tarefa urgente. A institucionalização da austeridade fiscal como paradigma político e o corte de gastos no orça- mento público para áreas como educação e saúde impõem a necessidade de uma profunda discussão sobre os impactos dessas políticas no cenário brasileiro. O evento ocorre de 11 de março a 25 de abril de 2019, na Unisinos São Leopoldo.

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I Ciclo Ontologias Anarquistas

Para pensar as questões contemporâneas desde paradigmas não hegemô- nicos, o I Ciclo de Palestras Ontologias Anarquistas promo- ve uma articulação entre o pensamento acadêmico, filosó- fico, psicanalítico, literário e poético em perspectiva com questões contemporâneas. Se o fim do mundo ou de um mundo, tal qual está dado, torna-se uma possibilidade real, restabelecer conexões com pensamentos e cosmologias his- toricamente marginalizadas – como dos povos ameríndios, por exemplo – se torna uma forma alternativa de propor novas questões. O esgotamento e a necessidade de refor- mulação de categorias típicas da Modernidade tensionam nossas formas de pensamento diante do fim de um mun- do simbólico (a Modernidade) e concreto (a emergência do Antropoceno). O evento ocorre na Unisinos Porto Alegre, de 3 de abril a 30 de maio de 2019. Mais informações em http://bit.ly/ontologias-anarquistas. 9

Cinedebates IHU

Pensando em outras linguagens para apresentar os eixos de trabalho do Instituto, o evento Cinedebates IHU promoverá a exibição de filmes e debates sobre temas contemporâneos em pers- pectiva com aspectos centrais de atuação do IHU: Ética, Trabalho, Sociedade Sustentável, Mulheres – sujeito socio- cultural e Teologia Pública. Os filmes que serão debatidos são Uma noite de 12 anos, Eu, Daniel Blake, Pantera Negra, Hannah Arendt e Ex-Pajé, cada um deles relacionado, res- pectivamente, a cada um dos eixos de atuação do IHU. O evento é gratuito e ocorre na Unisinos Porto Alegre, de 20 de março a 25 de maio. Mais informações em http://bit.ly/ cinedebates-ihu.

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

Etty Hillesum | Foto: Wikimedia Communs

10 Etty Hillesum, a voz que se ergue das sombras como brasa e reinventa a esperança

João Vitor Santos

magine viver a dor da guerra na própria da Universidade Federal de Juiz de Fora pele, a qual é rasgada pelo sofrimento - PPCIR-UFJF, “uma das personalidades que transpassa a todos que são redu- mais luminosas do século XX”. Izidos a um campo de concentração, mas De acordo com informações da Cruz Ver- sem perder a potência da vida e a capaci- melha, Etty morreu em Auschwitz, na Po- dade de olhar além de todo o mal ao redor lônia, em 30 de novembro de 1943, aos 29 e encontrar amor. Essa é Etty Hillesum, anos de idade. Nasceu em 25 de janeiro de a judia que, depois de viver confinada no 1914, em Middelburg, nos Países Baixos, campo de Westerbork, na região onde hoje atual Holanda. Aos dez anos de idade, vai é a Holanda, é transferida de trem, jun- com os pais e dois irmãos viver na cidade to com toda a família, para ser morta em de Deventer. Sua família era de judeus não Auschwitz, jornada em que muito prova- praticantes. O pai, Louis Hillesum, era velmente já perde os pais, sobrando ape- professor com formação em línguas clás- nas ela e o irmão. Nos seus últimos relatos, sicas. Junto com a esposa, a russa Riva diz que todos estavam “calmos e fortes” e Hillesum-Bernstein, além de Etty, tiveram que teriam “deixado o campo cantando”. ainda dois filhos, Jaap Hillesum, que se Essa cena revela por que Etty Hillesum é torna médico, e Mischa Hillesum, reco- considerada uma das místicas mais desta- nhecido pelo talento musical. cadas de nosso tempo, ou, como descreve Quando Etty completa 18 anos, os pais Faustino Teixeira, professor do Programa a enviam para estudar línguas eslavas em de Pós-Graduação em Ciência da Religião

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“Quão grandes são as necessidades de suas criaturas terrestres, Deus meu. Agradeço- lhe porque permite que tantas pessoas venham a mim com suas tristezas” – Etty Hillesum

Amsterdã. Ali, gradua-se em Jurisprudên- e a escritos de Santo Agostinho, além de cia, além de seguir os estudos de línguas Rilke e Dostoiévski. Mais tarde, os dois e dar aulas de russo, idioma que aprende vão viver um relacionamento amoroso. com a mãe. Descrita por muitos biógrafos Ela será sempre grata pelos ensinamentos 11 e pesquisadores como uma jovem culta, de seu mentor, a quem denominava como animada, curiosa e inquieta, nunca escon- seu “obstetra da alma”. “Você me ensinou dera sua grande capacidade de introspec- a pronunciar com propriedade o nome de ção. Ela mesma se reconhece assim, como Deus. Você tem sido o intermediário entre descreve em um de seus diários em 1941: Deus e eu [...] Agora eu serei o intermedi- ário para todos aqueles a quem eu possa “Quero algo e não sei o quê. Mais uma chegar”, escreveu ela depois da morte de vez me sinto presa a grande ansiedade seu parceiro. e desejo de busca; tudo está em ten- são dentro da minha cabeça [...] No Na mesma medida em que Etty avançava fundo de mim mesma, sou como uma no conhecimento interior, a guerra recru- prisioneira de um novelo de fios e com descia e tornava a vida cada vez mais difícil absoluta clareza nos pensamentos. Às vezes não sou mais que um pobre dia- para os judeus. Nesta altura, a jovem já es- bo com medo. [...] Às vezes me sinto tabelecera uma relação bem próxima com como uma lata de lixo; sou tão turva, Deus. Aliás, um Deus que descreve como cheia de vaidade, de irresolução, de habitando o seu “eu” interior. E é nesse sentimento de inferioridade. Mas em interior e com apoio desse Deus que vai mim também há honestidade e um de- buscar resistência às atrocidades impostas sejo apaixonado, quase elementar de pelo regime nazista. clareza e harmonia entre o exterior e o interior” “Meu Deus, toma-me pela mão, vou É para conhecer mais o seu interior e segui-lo como uma boa menina, não atender esses desejos de harmonia que a vou opor muita resistência. Não me jovem vai procurar Julius Spier, um judeu afastarei de nenhuma das coisas que me acontecerem nesta vida, tentarei alemão refugiado na Holanda, psicotera- aceitar tudo da melhor maneira. Gos- peuta, discípulo de Jung e que trabalha to do aconchego e da segurança, mas com a nova ciência da psicoquirologia, que não vou me rebelar se for a minha vez estuda o comportamento humano a partir de estar no frio, enquanto segurar a da análise das mãos. É ele quem vai mo- minha mão, eu vou a qualquer lugar e tivar Etty a escrever como forma de bus- tentarei não ter medo. E onde quer que car o seu mundo interior. Sob sua batuta eu esteja, procurarei irradiar um pou- co desse amor, desse amor verdadeiro também vai se dedicar à leitura da Bíblia

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

pelos homens que eu carrego dentro criatura desesperada que não sabe de mim [...] Uma vez que se começa a como viver. Então, começam os meus caminhar com Deus, simplesmente se problemas. Não basta pregá-lo, Deus continua a caminhar e a vida se trans- meu, não basta desenterrá-lo dos co- forma em um único e longo passeio.” rações dos outros. É preciso abrir-lhe o caminho, Deus meu, e para fazer isso E assim ela fez. Em julho de 1942 come- é preciso ser um grande conhecedor do çou a trabalhar como datilógrafa no Conse- espírito humano. Meus instrumentos lho Hebraico, um órgão burocrático criado para isso são limitados. Mas já exis- pelos alemães para fazer a mediação com tem, até certo ponto: vou melhorá-los a comunidade judaica. No entanto, ela não pouco a pouco, com muita paciência.” se encontrava feliz e seguia sua busca até E assim ela vai trabalhando junto a es- que, estimulada por outros funcionários sas pessoas dilaceradas pela guerra. Mas do departamento burocrático, decidiu a escuta exercida por Etty Hillesum não é se tornar voluntária no campo de Wes- apenas no sentido de confortar os sofridos. terbork. Originalmente criado como um Ela se nega a entregar suas forças ao ódio acampamento para refugiados judeus por que se espalha como rastilho de pólvora e autoridades locais no verão de 1939, vai se vê na alegria e na punção de vida a maior tornar um campo de concentração também de todas as formas de resistência, como é em julho de 1942, quando as autoridades possível perceber em sua anotação: alemãs tomam o espaço. Etty chega ao campo em agosto do mesmo ano, depois “A ausência de ódio não significa, por si da dominação germânica. Como esse era só, a ausência de um desdém moral ele- um local de refugiados, havia antes escolas mentar. Eu sei que quem odeia tem boas razões para isso. Mas por que devemos e muitos judeus trabalhavam e produziam sempre escolher o caminho mais bara- nesse espaço. Mais tarde, quando todos fo- to? Lá [em Westerbork] eu pude tocar ram levados para Polônia, havia ainda os com a mão como cada átomo de ódio que nutriam a esperança de viver como no que se soma ao mundo torna-o mais 12 antigo abrigo. inóspito. E creio que, talvez ingênua, mas teimosamente, esta terra poderia Quando os nazistas recrudescem sobre ser um pouco mais habitável, graças ao os judeus de Westerbork, as autoridades amor sobre o qual o judeu Paulo escre- determinam que parte dos servidores do veu aos habitantes de Corinto”. Conselho Hebraico retornem para Amster- O professor Faustino Teixeira recorda que, dã. Etty decide ficar, pois considerava fun- dentre os confinados no campo de Wester- damental cuidar daquelas pessoas feridas bork, “Etty era reconhecida como o ‘coração e assustadas. Conforme relata em um de pensante’, a ‘personalidade luminosa’”. “Foi seus diários: um testemunho de fé, esperança e amor entre aqueles deserdados. O seu trabalho “Quão grandes são as necessidades de suas criaturas terrestres, Deus meu. essencial foi o de erigir uma ‘barreira inte- Agradeço-lhe porque permite que rior’ para evitar que a apatia ou o desânimo tantas pessoas venham a mim com tomassem conta de seus companheiros”, suas tristezas: falam tranquilas e sem aponta. Para Faustino, a voz de Etty Hille- suspeitas e, de repente, saem todas as sum se erguia “das sombras como brasa nas suas tristezas e se descobre uma pobre cinzas e reinventava a esperança”. ■

Veja as principais publicações com os escritos de Etty Hillesum - Diário. Lisboa: As- -Cartas 1941-1943. sírio & Alvim, 2008. Lisboa: Assírio & Al- vim, 2008.

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Confira algumas obras sobre Etty Hillesum

- 15 dias de oração com Etty Hillesum, de Pierre Ferrière. Paulinas, 2016. - Etty Hillesum: Interioridad y transformación social. Una lectura desde la ladera sur, de Manuel de Jesús Corral Corral - Etty Hillesum - Um Itinerario Espiritual, de Lebeau- Paul. Editorial Ao Braga, 2014 - Reading Etty Hillesum in Context: Writings, Life, and Influences of a Visionary Author, de Klaas Smelik, Gerrit van Oord e Jurjen Wiersma. Amsterdam University Press, 2018. - Etty Hillesum in facetten, de Brandt van den. Damon Educatie, 2003. - Anne Frank en Etty Hillesum, de Denise de Costa. Balans, Uitgeverij, 1996. - Siamo partiti cantando. Etty Hillesum, un treno, dieci canzoni, de Matteo Corradini. Rue- ballu, 2017. - Etty Hillesum: Dio matura. Un viaggio in quaranta tappe, de MichaelDavide Semeraro. la meridiana, 2005.

O IHU também publicou uma série de textos sobre Etty Hillesum

- Etty Hillesum: o canto da vida. Publicado nas Notícias do Dia de 20-1-2014, disponível em http://bit.ly/2Skyvkr. 13 - Etty Hillesum, a jovem que encontrou Deus durante a Shoah. Publicado nas Notícias do Dia de 27-11-2018, disponível em http://bit.ly/2KE3l4J. - Etty Hillesum: reencontrar a vida no turbilhão do Holocausto. Publicado nas Notícias do Dia de 22-2-2013, disponível em http://bit.ly/2zvoeux. - Etty Hillesum rumo a Auschwitz, com radiosa esperança. Publicado nas Notícias do Dia de 19-11-2013, disponível em http://bit.ly/2P8bu21. - No arco-íris de Etty Hillesum. Publicado nas Notícias do Dia de 22-4-2013, disponível em http://bit.ly/2PYFa6Z. - O renascimento de Etty Hillesum. Publicado nas Notícias do Dia de 8-1-2014, disponível em http://bit.ly/2AvXbyR. - No fim, permanecerá apenas o grande amor. Em memória de Edith Stein. Publicado nas Notícias do Dia de 9-8-2018, disponível em http://bit.ly/2QkPdCT. - Etty Hillesum, o abandono do sujeito. Publicado nas Notícias do Dia de 16-8-2018, dispo- nível em http://bit.ly/2KGk7Ae. - Etty Hillesum na oração inter-religiosa desta semana. Publicado nas Notícias do Dia de 23-11-2018, disponível em http://bit.ly/2DNrzbs. - Etty Hillesum na oração inter-religiosa desta semana. Publicado nas Notícias do Dia de 14-9-2018, disponível em http://bit.ly/2P92WI3.

Documentário Veja mais sobre a vida e os escritos de Etty Hillesum no documentário O Amor como única solução - Etty Hillesum, dublado em português, disponível em http://bit.ly/2SlAghj.

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Etty Hillesum canta a alegria contra o ódio Faustino Teixeira observa na mística a arte de encontrar o Deus interior capaz de fortalecer contra todo o mal que a cerca, sem ceder em nada a sentimentos malignos e ainda irradiar amor

João Vitor Santos

ma das faculdades mais im- fundo de seu mundo interior, mas pressionantes em Etty Hille- interditado por camadas de pedras e sum é a de se manter firme, detritos, que somente através de um Uresistente em meio ao horror que é trabalho contínuo poderia ser desen- o de estar sufocada em um campo de terrado novamente”, descreve. concentração. Mas ela ainda vai além, Assim, é por Deus que Etty chega não se resigna apenas a respirar para ao amor. “Os dois sentimentos fun- se manter de pé, quer pulsar, e mais: damentais que delineavam o per- quer nutrir uma paixão alegre em curso espiritual de Etty foram Deus meio à tristeza. “Com todas as con- e o Amor”, acrescenta Faustino. São dições para dizer o contrário, Etty re- sentimentos que a fazem ver o outro chaça em sua reflexão qualquer pos- e crer que há nele uma potência de 14 sibilidade de adesão ao ódio”, destaca resistência alegre. “O amor ao próxi- Faustino Teixeira, teólogo e profes- mo era um desdobramento natural de sor na Universidade de Juiz de Fora. sua experiência de Deus”, sintetiza. “Abrir espaços para sentimentos de vingança era para ela ampliar a dinâ- Faustino Teixeira é professor e mica da dor e do sofrimento”, avalia. pesquisador do Programa de Pós- É por isso, segundo o professor, que -Graduação em Ciência da Religião ela vai por outra via. “A grande lição da Universidade Federal de Juiz de é a da resistência e alegria. Vejo como Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É um de seus legados mais importan- doutor e pós-doutor em Teologia pela tes, o desafio de alargar sempre mais Pontifícia Universidade Gregoriana, os espaços de alegria e paz nos cami- de Roma. Entre suas obras publica- nhos de nosso tempo”, aponta. das, destacamos Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Na entrevista a seguir, concedida Creio Eu (São Paulo: Terceira Via, por e-mail à IHU On-Line, Faustino 2017) e Finitude e Mistério. Mística e detalha como a jovem judia vai se Literatura Moderna (Rio de Janeiro: fortalecer para seguir adiante e levar Mauad, 2014). Também organizou, a esperança em tempos sombrios. entre outros, Nas teias da delicadeza “Com seu finíssimo olho espiritual, (São Paulo: Paulinas, 2006), As reli- Etty era capaz de amar a todos, sem giões no Brasil: continuidades e rup- pensar em reciprocidade. Esse amor turas (Petrópolis: Vozes, 2006), este estava firmado em seu mundo inte- em parceria com Renata Menezes, e rior e irradiava como perfume”, anali- As orações da humanidade (Petró- sa. E é também nesse mundo interior polis: Vozes, 2018), em parceria com que ela encontra Deus. Afinal, “Deus, Volney Berkenbrock. para Etty, consistia na ‘parte melhor e mais profunda’ de si mesma”. “Deus estava para ela dentro do ‘poço’ pro- Confira a entrevista.

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“Diferentemente dos místicos tradicionais, Etty foi alguém que viveu sua experiência de Deus na dinâmica ordinária do tempo”

IHU On-Line – Quem é Etty assim excepcional. Voltou-se para menina que não sabia ajoelhar-se2. Hillesum? Qual sua importân- o Direito, com estudos em Amster- IHU On-Line – No que consis- cia no universo místico? dã. Encontrou guarida na casa de te a mística dessa jovem? O que Hendrik (Han) J. Wegerif, um viú- Faustino Teixeira – Ela talvez a difere de místicas que, como vo com o qual Etty vai se relacionar seja uma das mais impressionantes Teresa de Ávila3, encontram posteriormente. Permaneceu em e singulares místicas do século XX. seu “Castelo Interior” através Amsterdã até junho de 1943, quando Era holandesa. Ela nasceu em Mi- da oração? então foi encaminhada para o cam- ddelburg de uma família de judeus po de concentração de Westerbork, Faustino Teixeira – Foi uma não praticantes no dia 5 de janeiro de no nordeste da Holanda, criado em mística singular e original. Diferen- 1914. O seu pai, Levie Hillesum, era 1939 pelo governo holandês para temente dos místicos tradicionais, professor de línguas clássicas e vivia abrigar os refugiados judeus. Du- Etty foi alguém que viveu sua expe- em Middelburg desde 1911. Estudou rante sua formação universitária em riência de Deus na dinâmica ordiná- línguas clássicas na Universidade Amsterdã, Etty conviveu num clima ria do tempo, com suas vicissitudes, 15 de Amsterdã, coroando sua carreira estudantil de esquerda e antifascis- dramas e contradições. Foi uma mís- com um doutorado em 1908. Sua ta, com empenho político militante, tica “anticonvencional”. Tinha como mãe, Rebeca Bernstein, era russa. mesmo não pertencendo a nenhum traço peculiar uma vida fora do pa- Os pais se casaram em dezembro de partido político. Estudou ainda lín- drão. Com 27 anos, relacionou-se 1912 e tiveram três filhos: Etty, Jaap guas eslavas em Amsterdã e Leiden, simultaneamente com dois homens, e Mischa. Os dois meninos tinham um trabalho interrompido em ra- o viúvo Han Wegerif4 e o terapeuta formações distintas. O primeiro, zão da intervenção bélica alemã na dela, Julius Spier5. Viveu também Jaap, formou-se em medicina. Era Holanda. Chegou, porém a concluir muito inteligente mas psicologica- sua formação em língua e literatura mente frágil, tendo-se internado di- 2 Etty Hillesum. Diario. Edizione integrale. Milano: Adel- russa, tendo ensinado a língua numa phi, 2012, p. 794. Utilizei também a tradução portuguesa. versas vezes em instituições psiquiá- Etty Hillesum. Diario 1941-1943. 3 ed. Lisboa: Assírio & Universidade popular de Amsterdã. Alvim, 2009. (Nota do entrevistado) tricas. O outro irmão, Mischa, tinha 3 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carmelita espanhola Curioso destacar que quando ela um grande talento musical. Tornou- nascida em Ávila, Castela, famosa reformadora da ordem foi deportada para Auschwitz, onde das Carmelitas. Canonizada por Gregório XV (1622), é fes- -se pianista. Mas como seu irmão, tejada na Espanha em 27 de agosto, e no resto do mundo morreu, tinha levado consigo uma em 15 de outubro. Foi a primeira mulher a receber o títu- tinha problemas psiquiátricos que o lo de doutora da igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Bíblia e um livro de gramática russa. Entre seus livros citam-se Libro de su vida (1601), Libro acompanharam por toda vida. de las fundaciones (1610), Camino de la perfección (1583) Hoje, Etty vem reconhecida por e Castillo interior ou Libro de las siete moradas (1588). Etty, como os outros membros de Escreveu também poemas, dos quais restam 31 deles, e todos estudiosos como uma mística sua família, não frequentava a sina- enorme correspondência, com 458 cartas autenticadas. singular. O processo de seu cresci- Sobre Teresa, confira Teresa – A Santa Apaixonada, (Rio goga. Isso significa que a presença de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria de Rosa Amanda mento interior foi, porém, progres- Strausz; Obras completas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa religiosa explícita era rarefeita em Teresa de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. sivo, com uma dinâmica vital que sua vida, não estando habituada à Paulus, 1983). A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o driblou a inquietude que dominava título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, prática religiosa. Deus era “pouco dois centenários, analisa o legado de Merton. Confira em o seu mundo interior. E vários fato- https://goo.gl/jOlXOi. (Nota da IHU On-Line) mais que um sentimento de algo res contribuíram para isso, entre os 4 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e que preside a natureza e tudo o que dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- quais a presença do terapeuta e qui- sum acaba indo viver na casa dele, torna-se sua governan- existe”1. Etty passou sua juventude te e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer romancista Julius Spier (1887-1942) Julius Spier. (Nota da IHU On-Line) em Middelburg. Em sua primeira em sua vida, a partir do início de fe- 5 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu formação acadêmica não se mostrou alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- vereiro de 1941. Foi lindo esse pro- dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai cesso vital que mudou a vida desta para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse 1 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera. Fi- da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu renze: Le Lettere, 2018, p. 18 (a cura di Beatrice dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter Iacopini). (Nota do entrevistado) do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se

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o “trauma” de um aborto voluntá- cimento interior, muito favorecido “parte melhor e mais profunda” de rio, relatado em seu diário, em 8 de pela presença de Spier ao seu redor. si mesma, aquela a quem chamava dezembro de 19416. O assunto será Sua juventude, como a de outros Deus17. A jovem holandesa sentia-se mencionado em seu diário, com dor, contemporâneos, foi marcada por “eleita por Deus”, eleita para perma- quando assinala a presença do “me- inquietude e impaciência, insegu- necer atenta e viva num ambiente nino nunca nascido”. A leitura do rança e solidão. Relata em seu diário que se acentuava cada vez mais hos- diário indica que essa “carência” de que chegou em certa ocasião a pen- til e desumano. Dizia em seu diário, instinto materno se deve também à sar em suicídio11. Sofria também de em 12 de julho de 1942, numa de violência com que presenciou a reti- bulimia, mesmo durante o período suas mais lindas orações: rada forçada de seu irmão, Mischa, em que viveu em Westerbork12. Só de casa para uma de suas interna- aos poucos, num trabalho singular “Vou ajudar-te, Deus, a não me ções psiquiátricas. de “higiene espiritual” é que ela foi abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com ante- encontrando o caminho da paz em Dizia no diário, impactada com cedência. Mas torna-se-me cada seu coração. Foi um intenso pro- a cena, que jamais portaria em seu vez mais claro o seguinte: que cesso de busca do domínio interior, ventre uma criança que poderia ser tu não nos podes ajudar, que de harmonização de todas as suas nós é que temos de te ajudar, e infeliz. Era o trauma dessa presença contradições e dificuldades13. Não ajudando-te, ajudamo-nos a nós do sofrimento psíquico na família7. foi um caminho fácil até encontrar a próprios. E esta é a única coisa Como mostrou a estudiosa Wanda que podemos preservar nestes intimidade com Deus14. Tomasi8, “nem a sua liberdade sexu- tempos, e também a única que al nem o aborto são obstáculos à sua importa: uma parte de ti em 18 relação com Deus, que prossegue e nós, Deus” . até se intensifica após estes aconte- O que vai presidir a vida de Etty, a cimentos”9. Distintamente de Teresa “Dizia no diário, partir de certo momento, é um co- de Ávila, bem domiciliada no catoli- lóquio ininterrupto com Deus, um cismo, Etty foi uma mística de gran- impactada com contínuo falar com ele, com alegria e de “liberdade do Espírito”, sem estar liberdade. Um passo fundamental de encerrada em nenhum recinto con- a cena, que acolhida gratuita ou reconhecimen- 16 fessional: “não pertence totalmente to de Deus em seu mundo interior. nem ao judaísmo nem ao cristianis- jamais portaria Falava sempre da necessidade de mo”10. Se podemos definir de alguma abrir caminhos para esse Mistério, forma sua santidade, o termo que em seu ventre deixar que ele aflorasse com seus melhor se adapta é o de uma santi- uma criança dons inusitados e benfazejos. Deus dade inter-religiosa. estava para ela dentro do “poço” que poderia profundo de seu mundo interior, mas interditado por camadas de pe- IHU On-Line – Como compre- ser infeliz” dras e detritos, que somente através ender o Deus de que Etty Hille- de um trabalho contínuo poderia ser sum fala? desenterrado novamente19. A experiência de Deus acompanha Faustino Teixeira – Antes de fa- É algo laborioso, que exige paciência, profundamente sua experiência de lar sobre Deus, é necessário indicar que se dá a cada dia, num processo de mergulho no mundo interior, de cui- os passos que marcaram o cenário abrir passagem à fonte original que dado com o “ponto virgem”, com o de sua vida interior. O que ocorreu habita o nosso mundo interior e que seu fundo interior, com a centelha em sua caminhada foi um rico e pa- aprendemos a nomear como Deus20. O florescente e verdejante, para- uti ciente processo pedagógico de cres- acesso a Deus, segundo sua visada, lizar uma expressão cara a Mestre só vem facultado pelo mergulho na Eckhart15. Como diz o místico ale- especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- vital “corrente subterrânea” que pre- tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir mão, “aqui o fundo de Deus é o meu side o mistério da vida. Essa “corren- deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino fundo e o meu fundo é o fundo de junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa te” (stroom) “é a alma do mundo, o (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- Deus”16. Deus, para Etty, consistia na seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua sentido e a força vital que, como uma irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota da IHU On-Line) música de fundo, permeia e sustenta 6 Ibidem, p. 265. (Nota do entrevistado) 11 Etty Hillesum. Diario, p. 737 e 796. (Nota do entrevis- todo o criado: toda criatura humana 7 Ibidem, 260. (Nota do entrevistado) tado) 8 Wanda Tommasi: professora associada de história da 12 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 8 e Etty e a história mesma”21. Diz ainda em filosofia no Departamento de Ciências Humanas na Uni- Hillesum. Cartas 1941-1943. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, versidade de Verona, na Itália. Por muitos anos ela vem p. 199. A edição italiana: Lettere. Edizione integrale. Mila- pesquisando o horizonte da diferença sexual. Sua inten- no: Adelphi, 2013. (Nota do entrevistado) ção também é aumentar a contribuição de pensadoras 13 Etty Hillesum. Diario, p. 687. (Nota do entrevistado) 17 Etty Hillesum. Diario, p. 141-142. Na edição portugue- femininas, especialmente no contexto contemporâneo. 14 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 92. sa, p. 251-252. (Nota do entrevistado) (Nota da IHU On-Line) (Nota do entrevistado) 18 Ibidem, p. 713. (Nota do entrevistado) 9 Wanda Tommasi. A liberdade do Espírito: Etty Hillesum, 15 Mestre Eckhart. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/ 19 Etty Hillesum. Cartas, p. 112. (Nota do entrevistado) uma santidade nova. Concilium, v. 351, n. 3, 2013, p. 116. Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 50 (Sermão 2). 20 Etty Hillesum. Diario, p. 777. (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) 21 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 158. 10 Ibidem, p. 117. (Nota do entrevistado) 16 Ibidem, p. 67 (Sermão 5b). (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE seu diário, em 28 de setembro de Não te trago somente as minhas mística apaixonada pelo capítulo 13 1942: lágrimas e pressentimentos da primeira carta aos Coríntios, que temerosos, até te trago, nesta fala do hino à caridade: “Ainda que tempestuosa e parda manhã de “Creio que é justamente o medo eu falasse línguas, as dos homens domingo, jasmim perfumado. E que as pessoas têm de se esfor- e as dos anjos, seu eu não tivesse a çarem demais que lhes retira as hei-de trazer-te todas as flores suas melhores forças. Quando que encontre pelo caminho, meu caridade, seria como um bronze que uma pessoa, ao fim de um pro- Deus, e a sério que são muitas. soa ou como um címbalo que tine” (1 cesso longo e difícil que prosse- Hás-de ficar sinceramente tão Cor 13, 1)31. Etty tinha muita clareza gue diariamente, atingiu as fon- bem instalado em minha casa sobre a urgência da hospitalidade. tes primárias dentro de si, a que quanto é possível. E já ago- Acentuava a importância de “hospe- ra para te dar um exemplo ao eu agora desejo chamar Deus, dar o outro no espaço interior e dei- e quando uma pessoa trata de acaso: se eu estivesse encerra- xar que se expanda”, de buscar con- manter esse caminho até Deus da numa cela acanhada e uma aberto e livre de obstáculos – o nuvem passasse ao longo da mi- servar um lugar para ele, um lugar que acontece ‘trabalhando-se a nha janela gradeada, então eu de destaque, onde possa amadurecer si própria’ –, essa pessoa reno- iria trazer-te essa nuvem, meu e revelar sua potencialidade única32. va-se na fonte e então não ne- Deus, se pelo menos ainda tives- cessita de ter medo de oferecer se forças para isso”24. 22 forças a mais” . Etty sentia-se, verdadeiramente, Foi justamente bebendo nesta cor- nos braços de Deus, em seu acon- “A experiência rente subterrânea que Etty conse- chego misericordioso e hospitalei- guiu dar um significado novo à sua ro25. O mistério de sua resistência de Deus vida e firmar-se na resiliência es- encontrava também na presença de sencial. Anotava em seu diário, em amigos especiais, como Spier, Liesl e acompanha 17 de setembro de 1942: “Estou-te Werner26. Os dois sentimentos fun- profundamente grata, meu Deus, por tornares a mi- damentais que delineavam o per- nha vida tão bonita onde quer que eu curso espiritual de Etty foram Deus sua experiência esteja”23. Daí o toque peculiar de seu e o Amor. O amor ao próximo era mantra vital: “A vida é bela”. um desdobramento natural de sua de mergulho no 17 experiência de Deus27. Dizia com fre- quência que nossa tarefa no tempo mundo interior” IHU On-Line – E se o Deus é a de “aumentar a escolta de amor de Etty Hillesum reside no seu sobre esta terra”, evitando a todo interior, quais os desafios de o custo o acirramento do ódio. O IHU On-Line – A jovem judia encontrar a face de Deus no ou- amor, sim, é o valor essencial que ela é completamente desterrada tro? Como ela atualiza a ideia buscava deixar como herança para e condenada a viver o mun- de hospitalidade? os tempos futuros. do que lhe sufoca a liberda- de. Mas, ao mesmo tempo, ela Faustino Teixeira – A missão le- E assim o fez. Como num belo ges- mergulha em si mesma e alarga vada avante por Etty foi de não dei- to eucarístico, doou o seu corpo, par- seu espaço interior. Quais os xar escapar Deus, daí sua preocupa- tiu-o, para reparti-lo entre os seres desafios para apreender esses ção em agradá-lo de todas as formas humanos28. Etty estava movida pelo movimentos em Etty Hillesum? possíveis. Na bela oração de 12 de sentimento de amor universal, que Como é possível em tanta dor julho de 1942 dizia: envolvia alemães e holandeses, ju- ainda ser capaz de perceber um deus e não judeus29. Com seu finíssi- céu azul? “O jasmim nas traseiras da mi- mo olho espiritual, Etty era capaz de nha casa encontra-se agora amar a todos, sem pensar em reci- Faustino Teixeira – Dentre os completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos procidade. Esse amor estava firmado diversos místicos que ajudaram a dias. As suas florzinhas bran- em seu mundo interior e irradiava delinear a vida espiritual de Etty cas boiam dispersas nas lama- como perfume. Dizia que o amor ao Hillesum, podemos indicar o poeta centas poças negras do telhado semelhante é como “um brilho ele- Rainer Maria Rilke33. São diversas raso da garagem. Mas, algures mentar que nos sustenta”30. Era uma vezes que ele aparece citado no seu em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão 31 Ibidem, p. 98. (Nota do entrevistado) exuberante e delicado como 24 Etty Hillesum. Diario, p. 714-715. Na edição portugue- 32 Etty Hillesum. Diario, p. 416. E também: Etty Hillesum. sempre floriu. E espalha os odo- sa, p. 253. (Nota do entrevistado) Pagine mistiche. Milano: Ancora, 2007, p. 83. (Nota do en- 25 Ibidem, p. 711. (Nota do entrevistado) trevistado) res pela casa onde habitas, meu 26 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 16. 33 Rainer Maria Rilke, ou Rainer Maria von Rilke (1875- Deus. Como vês, trato bem de ti. (Nota do entrevistado) 1926): foi um poeta de língua alemã do século XX. Escre- 27 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo. veu também poemas em francês. Rilke fez seus estudos Il problema del male in Etty Hillesum e Simone Weil. Mila- nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894 no: San Paolo, 2009, p. 117. (Nota do entrevistado) fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de 22 Etty Hillesum. Diario, p. 777. Na edição portuguesa, p. 28 Etty Hillesum. Diario, p. 797. (Nota do entrevistado) amor, intitulada Vida e canções (Leben und Lieder). Não 310. (Nota do entrevistado) 29 Etty Hillesum. Cartas, p. 55. (Nota do entrevistado) exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, sempre, à custa 23 Ibidem, p. 758. (Nota do entrevistado) 30 Ibidem, p. 190. (Nota do entrevistado) de amigas nobres. (Nota da IHU On-Line)

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diário34. Nas Cartas a um jovem po- descrever o bater do coração: eta, Rilke aconselha o aprendiz de tão lento e regular e tão suave poesia, Franz Kappus35, a “entrar em quanto abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse, e “O que vai si mesmo”, como condição essencial também tão bondoso e compas- de iniciação ao mundo dessa arte. sivo”38. presidir a Igualmente nas Elegias de Duíno, Rilke assinala que “em parte alguma Animada interiormente ela podia vida de Etty, a o mundo existirá, senão interior- dizer ao final de cada dia, a ple- mente”36. nos pulmões, que a vida é bela, que partir de certo “apesar de tudo é muito bela”39. A Etty adentra-se no mundo inte- cada momento que se seguia à sua momento, é rior e busca ouvir o canto da pro- submersão em si, retornava com a fundidade, a escuta da paisagem de alegria essencial. Uma escuta lumi- um colóquio si mesma. Diversas vezes utiliza a nosa que fazia repercutir e irradiar expressão hineinhorchen, ou seja, o o canto do amor e da esperança. Ti- ininterrupto prestar atenção dentro, que envolve nha também o hábito de se recolher o mundo de si, dos outros e de Deus, no banheiro, numa esteira de fibra com Deus, ou, em outras palavras, o canto das de coco, para fazer suas orações, ali coisas. Ela seguia à risca o conselho tranquila como Buda40, e participar um contínuo de reservar um momento especial e vitalmente de sua “hora quieta”, fa- garantido para o devido tempo inte- zer sua “higiene da alma”41. Apren- falar com Ele, rior, a hora de quietação (stille stun- deu a escutar o mundo da profun- de), o repousar em si mesma (ruhen didade, a estar atenta no aqui e no com alegria in sich). Ali naquele espaço interior agora, com as marcas do despoja- é que ela podia acessar com alegria a e liberdade” mento e da simplicidade. Era uma jovem mulher ensolarada. “corrente subterrânea da vida”, que Tinha dentro de si uma porção da aquece os dias e fornece o significa- Quanto mais equilibrada se sentia, eternidade. Dizia: “Os céus dentro do essencial da dinâmica existencial. tanto mais forte e solidificada para de mim são tão vastos como os que 18 Ali ela encontrou a força necessária enfrentar os desafios. Dizia em carta estão por cima de mim”44; ou ainda: para manter acesa a sua resistência ao seu terapeuta e amante Spier, tam- “Através de mim correm os largos contra a dor e a perseguição. Ela di- bém nomeado amorosamente como rios e situam-se as altas montanhas. zia em seu diário, em 12 de março de Tide: “Mesmo se estivesse numa cela E por detrás dos matagais do meu 1942: “Quando uma pessoa leva uma subterrânea, aquele pedacinho de desassossego e confusão estendem- vida interior, talvez nem haja assim céu se estenderia dentro de mim e o -se as largas planícies do meu sos- tanta diferença entre estar fora ou meu coração voaria até ele como um sego e entrega. Todas as paisagens dentro dos muros de um campo”37. pássaro, e é por isto que tudo é assim estão dentro de mim”45. Tinha a viva Com o olhar iluminado do mundo simples, extraordinariamente sim- 42 consciência de que a construção interior ela era capaz de ver jardins ples e belo, e rico de significado” . da paz interior repercutiria na paz nas paisagens mais sombrias e ir- Seu desejo mais forte era o de viver universal46. Chegou a cunhar uma radiar o toque da alegria. Em pági- a simplicidade dos lírios do campo palavra, com base em Eckhart, Ge- na de seu diário, em 30 de maio de e poder “tocar com a ponta dos de- latenhaid, que poderia ser definida 1942, afirmou: dos os contornos da época”, ou então ser como o pequeno pastor que guia como abandono fiducioso. “Num momento inesperado, suas ovelhas tocando alegremente a abandonada a mim própria – sua flauta e olhando o céu43. encontro-me de repente encos- IHU On-Line – Qual o papel de tada ao peito nu da Vida e os 38 Ibidem, p. 568. Na edição portuguesa, p. 187-188. Julius Spier nas descobertas de braços dela são muito macios (Nota do entrevistado) Etty Hillesum? A partir dessa e envolvem-me de modo muito 39 Ibidem, p. 414. (Nota do entrevistado) relação, como “experiencia” o protetor, e nem sequer consigo 40 Buda: é um título dado na religião budista àqueles que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos amor? fenômenos e se puseram a divulgar tal redescoberta aos demais seres. “A verdadeira natureza dos fenômenos”, 34Etty Hillesum. Diario, p. 363, 368-369, 450, 464,466,592- aqui, quer dizer o entendimento de que todos os fenôme- Faustino Teixeira – Foi Julius 593, 730. (Nota do entrevistado) nos são impermanentes, insatisfatórios e impessoais. Tor- 35 Franz Xaver Kappus (1883-1966): oficial militar austría- nando-se consciente dessas características da realidade, Spier um dos personagens mais im- co, jornalista, editor e escritor que escreveu poesias, con- seria possível viver de maneira plena, livre dos condiciona- portantes na tessitura do mundo in- tos, romances e roteiros. Kappus é conhecido principal- mentos mentais que causam a insatisfação, o desconten- mente como o cadete da academia militar que escreveu tamento, o sofrimento. O primeiro buda Sidarta Gautama. terior de Etty Hillesum. O primeiro para o poeta austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926) em Foi um príncipe da região do atual Nepal que se tornou contato aconteceu em 3 de fevereiro uma série de cartas de 1902 a 1908 que foram reunidas e professor espiritual, fundando o budismo. Na maioria publicadas no best-seller Letters to a Young Poet. (Nota das tradições budistas, é considerado como o “Supremo de 1941, quando ela o procurou para da IHU On-Line) Buda” de nossa era, Buda significando “o desperto”. (Nota 36 Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São da IHU On-Line) Paulo: Globo, 2013, p. 22 e 33; Id. Elegias de Duíno. 6 ed. 41 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 12. São Paulo: Globo, 2013, p. 63 (sétima elegia). (Nota do (Nota do entrevistado) 44 Ibidem, p. 638. (Nota do entrevistado) entrevistado) 42 Etty Hillesum. Diario, p. 752. (Nota do entrevistado) 45 Ibidem, p. 792-793. (Nota do entrevistado) 37 Etty Hillesum. Diario, p. 413. (Nota do entrevistado) 43 Ibidem, p. 766. (Nota do entrevistado) 46 Ibidem, p. 778. (Nota do entrevistado)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE fazer terapia. Era grande a diferença Deus53. Foi também com Spier que Rilke. Com ele, alguns conselhos es- de idade entre os dois: ele tinha 54 Etty deu-se conta da centralidade senciais para o processo formativo, anos e ela 26. Era um judeu alemão do amor universal. Em carta a Spier, que incidiu na sua redação, como os que veio para a Alemanha em razão datada de 5 de agosto de 1941, re- traços da paciência e da humildade, da perseguição nazista. Incentivado conhece que foi ele quem ensinou a bem como uma porta de entrada sig- por Jung47, desenvolveu uma técnica ela “que o amor por todas as coisas é nificativa para adentrar-se nos mis- terapêutica que se utilizava da leitu- mais belo do que o amor por uma só térios de Deus. De forma semelhante ra das formas e linhas das mãos para pessoa”54. Foi por incentivo de Spier ao que ocorreu com Thomas Mer- abordar o tratamento e cura das que Etty deu início à redação de seu ton57, Rilke teve um lugar de desta- pessoas. Era um profissional compe- diário. que na vida de Etty. Dizia no seu diá- tente, muito amado pelas mulheres, rio que ele é alguém que se leva junto com uma vida espiritual destacada48. a vida inteira, um marco referencial IHU On-Line – De que forma para a existência58. Assim ocorreu com Etty, que foi to- o exercício da escrita contribui mada de encanto por ele. Em várias para a constituição de um ca- páginas de seu diário relata o traço minho que leva ao conhecimen- IHU On-Line – Etty Hillesum sedutor de sua personalidade, o fas- to e fortalecimento interior? fala em abrir o espaço interior cínio causado por ele. Dizia que dez todas as manhãs. Podemos as- minutos com ele valiam um dia in- Faustino Teixeira – O processo sociar essa perspectiva à ideia teiro. Em página de seu diário, em 9 da escrita em Etty Hillesum ocor- cristã de que os valores evangé- de março de 1941, fala sobre ele: “Os reu como passo de seu tratamento licos devem ser vividos a cada seus olhos límpidos e puros, a gran- terapêutico. Foi Spier quem, prova- dia e em todos os atos, por mais de boca sensual, a corporalidade velmente, a incentivou a começar a insignificantes que possam pa- maciça, quase taurina, os movimen- escrever o seu diário55. Foi quando recer? Por quê? tos livres e ligeiros como pluma”49. então ela pôde expressar com sen- Diante dele conseguia recuperar timento vivo os traços de sua vida, Faustino Teixeira – Foi também suas forças. seus temores, alegrias e esperan- um conselho dado por Spier a Etty ças. Não há dúvida alguma sobre a no processo terapêutico, o de levar Ocorria também, na dinâmica te- importância desta arte de escrever ao coração aquilo que se encerra na 19 rapêutica, lutas corporais entre os na conformação do pensamento de cabeça. Ou seja, o caminho de bus- dois, onde muitas vezes ela saía Etty, bem como de seu equilíbrio in- ca essencial do mundo interior e da exaurida50. Ao longo do processo, terior e de sua espiritualidade. Dizia, prática da oração continuada. Acon- ela acabou apaixonando-se por ele. em página de seu diário, que não ti- selhou Etty a dedicar-se pelo menos Foi também uma relação que abriu nha acesso ao significado profundo meia hora por dia à prática da me- novos caminhos espirituais na vida da dinâmica de sua escrita56. Mas ditação, e também a ajoelhar-se59. de Etty, com conselhos importantes certamente era algo que marcou e Tudo isso fazia parte de um progra- dados por ele a ela em torno de sua firmou o seu itinerário. ma de “higiene da alma”, mesmo re- formação espiritual, indicando au- conhecendo que já antes Etty tinha tores que foram fundamentais para feito contato com a obra de Rilke, o seu aprimoramento pessoal: a lei- que também aconselha esse exercí- tura da Bíblia e de Agostinho51, por cio interior. exemplo52. “Etty sentia-se É evidente a associação com a prática Etty assinala em seu diário que foi nos braços de cristã, cujos livros inspiradores foram ele, Spier, quem libertou suas forças também indicados para leitura de Etty, interiores e quem a ensinou a pro- Deus, em seu como a Bíblia e Santo Agostinho. Aos nunciar com naturalidade o nome de aconchego poucos, Etty foi acordada para o valor capital da oração, do ajoelhar-se, de 47 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra suíço. Colega misericordioso se entregar humildemente ao Mistério de Freud, estudou medicina e elaborou estudos no campo Maior. Dizia em página de seu diário da psicologia, discutindo os conceitos de introversão e ex- troversão. (Nota da IHU On-Line) e hospitaleiro” que queria ser “uma única, grande 48 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 10. 60 (Nota do entrevistado) oração. Uma única, grande paz” . Dizia 49 Etty Hillesum. Diario, p. 31 e 599. (Nota do entrevis- ainda: “Ainda me restam duas mãos tado) 50 Ibidem, p. 42 e 71. (Nota do entrevistado) No processo de sua criação, deve- 51 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como San- to Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e fi- -se destacar o influxo importante de lósofos dos primeiros anos do cristianismo, cujas obras fo- 57 Veja Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na in- ram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo timidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, e da filosofia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é 2001, p. 302. (Nota do entrevistado) amplamente considerado como sendo o mais importante 53 Etty Hillesum. Diario, p. 752. (Nota do entrevistado) 58 Etty Hillesum. Diario, p. 368-369 e 592-593. (Nota do dos padres da Igreja no Ocidente. Suas obras-primas são 54 Etty Hillesum. Cartas, p. 23. (Nota do entrevistado) entrevistado) A cidade de Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line) 55 Etty Hillesum. Diario, p. 22 (palavras do editor do diário: 59 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11. 52 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11. Klaas A.D. Smelik). (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) 56 Etty Hillesum. Diario, p. 452. (Nota do entrevistado) 60 Etty Hillesum. Diario, p. 786. (Nota do entrevistado)

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juntas e um joelho dobrado”, algo no desabrochar da espontaneidade. ção. Naquele local, como assinalou que aprendeu com dificuldade61. Dizia com razão a teóloga Wanda em carta, “não se podia fazer muito Tommasi, a liberdade do Espírito é com palavras, e por vezes, uma mão Em momentos ainda mais som- o que caracteriza a mística de Etty sobre o ombro era demasiado pesa- brios, quando os apuros se acirra- Hillesum. Ela trouxe consigo e ins- da”66. ram, dizia: “Há de haver sempre uma pirou para o mundo uma santidade nesga de céu visível em alguma parte Duras são suas palavras sobre as colada no tempo, aberta aos ventos e tanto espaço em meu redor, que condições vividas ali no campo de da espontaneidade, ancorada na cer- as minhas mãos sempre se poderão Westerbork67. Mas não se deixou teza da Presença de um Mistério que juntar em oração”62. Quanto mais o tomar pelo ódio, ao contrário, con- é sempre maior, e que não se confor- cerco se apertava no campo de Wes- tinuou celebrando a alegria da vida, ma exclusivamente a nenhum recin- terbork, mais significado alcançava num abandono fiducioso e arreba- to confessional. a oração na vida de Etty, formando tador ao Deus misericordioso. Com como que uma “cela monástica” pro- todas as condições para dizer o con- tetora, onde podia encontrar a paz63. trário, Etty rechaça em sua reflexão “O amor, qualquer possibilidade de adesão ao ódio. Abrir espaços para sentimen- IHU On-Line – A jovem judia sim, é o valor tos de vingança era para ela ampliar também fala em “respeitar as a dinâmica da dor e do sofrimento68. pausas”. No que consiste isso? essencial que Assinalou em carta de dezembro de E como difere a ideia de “pau- 1942: “Lá (em Westerbork), experi- sa” da de “paralisia” e “medo”? ela buscava mentei com vigor como cada átomo de ódio que se introduz neste mundo Faustino Teixeira – As pausas deixar como torna-o ainda menos acolhedor”69. foram sendo fundamentais na vida Etty, com seu exemplo e sua prática, espiritual de Etty, como já falei ante- herança para não nega a existência do mal, mas o riormente. Trata-se do cuidado com desarma, “subtraindo-o do poder de o mundo interior e com o repousar os tempos definir em última instância o que é a em si mesmo para poder escutar o 20 vida”70. Há que alargar, sim, os espa- canto das coisas. É nesses momentos futuros” ços e sentimentos de amor. de calma, tranquilidade e atenção que se consegue captar o rumor da IHU On-Line – Etty Hillesum corrente subterrânea da vida. manifesta claramente a potên- IHU On-Line – Na sua opi- Para que isso ocorra é necessá- cia do amor e da alegria, mas nião, qual a grande lição de rio todo um trabalho para vencer chega a refletir acerca de - sen Etty Hillesum? as barreiras do pequeno eu (kleine timentos contrários a esses, Faustino Teixeira – Para mim, ik). Essa dinâmica de quietação não como o ódio? a grande lição é a da resistência e significa, em hipótese alguma, em Faustino Teixeira – O amor é alegria. Vejo como um de seus le- fuga do mundo ou temor da dinâ- a chave de compreensão da espiri- gados mais importantes o desafio mica do tempo, mas um processo de tualidade de Etty Hillesum. Dizia de alargar sempre mais os espaços “equilibração” interior para poder com vigor em suas cartas e em seu de alegria e paz nos caminhos de adentrar-se no tempo e nas suas lu- diário que é tarefa nossa contribuir nosso tempo. E também de acender tas com mais empenho e eficácia. É para que a “escolta de amor” cresça sempre os meandros da resistência, o que também dizia Teresa de Ávila sobre a terra. A seu ver, “cada miga- encontrando brechas para apontar em suas Moradas: “O amor ao pró- lha de ódio que se acrescenta ao ódio caminhos alternativos em favor de ximo nunca desabrochará perfeita- já exorbitante torna esse mundo ina- um mundo melhor. mente em nós se não brotar da raiz bitável e insustentável”64. Etty tinha do amor de Deus” (V M 3,9). Apesar de todas as opressões, ex- todos os ingredientes para deixar-se clusões e marginalizações a que nós IHU On-Line – O que é a liber- tomar pelo ódio ali no campo de con- humanos, e também as outras espé- dade em Etty Hillesum? centração, em Westerbork. Ali viveu cies companheiras, sofrem, faz-se num pedacinho “terrivelmente triste Faustino Teixeira – A liberda- necessário criar novos espaços de e vergonhoso” da história da huma- de para ela é algo de essencial, que acolhida, cuidado, ternura e hospi- nidade65. Um motivo de vergonha. vem coroar uma dinâmica de vida Ali visualizou o potencial de sofri- pautada pela gratuidade e pelo ple- mento que um ser humano é capaz 66 Ibidem, p. 93. (Nota do entrevistado) 67 Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork. Roma: Srl, de enfrentar, da dor e da humilha- 2014. (Nota do entrevistado) 61 Etty Hillesum. Diario, p. 793. (Nota do entrevistado) 68 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 110. 62 Ibidem, p. 718. Na edição portuguesa, p. 256. (Nota (Nota do entrevistado) do entrevistado) 69 Ibidem, p. 147. (Nota do entrevistado) 63 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 20. 64 Etty Hillesum. Diario, p. 688. (Nota do entrevistado) 70 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, (Nota do entrevistado) 65 Etty Hillesum. Cartas, p. 92. (Nota do entrevistado) p. 35 (citando P. King). (Nota do entrevistado)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE talidade. São valores essenciais que te o medo e o desespero de tantos o centro de si mesma. Sabia aceitar aprendemos com práticas como as companheiros e companheiras não com honradez os momentos “não de Etty Hillesum. Uma jovem pro- foi nada fácil. Tudo muito difícil. criativos” e mais vazios que às vezes vada, que em situações de extrema Apontava em seu diário – citando “distraíam” o seu coração, e tudo opressão conseguiu manter acesa a Mechanicus – que se sobrevivesse enfrentado com muito garbo e paci- chama da alegria e partiu cantando naqueles tempos difíceis, sairia mais ência78. Sabia que tinha uma missão para Auschwitz71. É um exemplo que madura, mas se morresse, também essencial naquele campo de dor: deixa rastros na nossa memória e sairia mais madura e profunda73. “Desenterrar Deus no coração dos que nos anima a irradiar algo seme- atormentados”, resguardando neles lhante em nosso tempo sombrio. o sentido da própria dignidade”79, o desafio de despertar para a vida aquilo que já morreu nos vivos80. IHU On-Line – De que forma, “Com seu Desde aquela data central de sua inspirados na mística de Etty vida, em 3 de julho de 1942, com- Hillesum, podemos encarar finíssimo olho preendeu o plano dos alemães e os desafios de nosso tempo er- se deu conta da proximidade de guendo uma barreira interior espiritual, Etty sua morte81. Começa a falar so- para evitar que a apatia e o de- bre a morte com tranquilidade e a sânimo tomem conta de nosso era capaz de aceita em seu itinerário. Diz numa ser? Como, diante da afronta e carta: “A possibilidade da morte da intolerância, responder com amar a todos, é um dado tão absoluto na minha alegria e amor? sem pensar em vida, como se a morte, por assim Faustino Teixeira – Sem dúvi- dizer, a tivesse ampliado tanto da, esse é um desafio essencial. Am- reciprocidade” que o enfrentar e aceitar a morte, pliar o campo energético de nosso a destruição, qualquer espécie de mundo interior. Já dizia um grande destruição, passou a fazer parte humanista, “revolucionários tristes Tão duro ver a cada semana o desta vida”82. Mas foi adiante com só fazem uma triste revolução”. É trem partir levando seus amigos segurança e fé, pois sabia que tinha 21 cuidando de nosso mundo interior e para Auschwitz; tão difícil acompa- um destino a cumprir e que estava ajudando os nossos amigos a fortale- nhar o sofrimento de seus pais, e se amparada por Deus. Sabia como cerem o seu mundo, que poderemos maravilhar ao ver seu pai dizer que se colocar diante das circunstân- manter acesa a chama da esperan- estava pronto para suportar viver cias adversas, e de forma otimista. ça. Em nosso tempo, a doença mais o que tantos outros passaram an- Estava ali para poder testemunhar terrível e quantitativamente mais tes dele74. Tudo isso se explica pela que Deus viveu também naquele presente é a depressão. Exemplos e presença de um brilho incomum tempo83. Daí ser reconhecida no testemunhos como os experimenta- em seu coração, de potencialização campo de Westerbork como o “co- dos por Etty são alvissareiros. Daí a vital. Uma força dinamogênica que ração pensante”, que mantinha a importância de resgatar e alimentar a fazia manter acesa a alegria em chama da esperança sempre acesa. o seu fantástico legado. seu coração. Dizia numa clássica E concluo com um lindo pensa- carta que era fundamental manter mento tirado de seu diário: “Dá- “uma grande dose de sol dentro de -me um pequeno verso por dia, IHU On-Line – Deseja acres- si” para evitar o choque psicológi- meu Deus. E se eu nem sempre o centar algo? co75. Permaneceu aquecida sob o puder copiar por não haver papel mote central de sua vida: “A vida Faustino Teixeira – Gostaria ou luz, então hei-de declamá-lo é bela!”, apesar de tudo. Em outra ainda de dizer algo a respeito de baixinho para o teu grande céu, à passagem de seu diário, sublinha: como Etty Hillesum encarou a pro- noite, mas dá-me um pequeno ver- “Quero estar lá no meio daquilo a ximidade de sua morte. É impres- so de vez em quando”84. Esse pode que as pessoas chamam ‘terrores’ e sionante a serenidade com que ela ser, sem dúvida, o mantra de todos ainda dizer que a vida é bela”76. enfrentou a dura situação no campo nós nesses momentos sombrios em de Westerbork. O sofrimento esta- Sabia como enfrentar suas “de- que também vivemos.■ va presente. Ela dizia: “A cada dia pressões”, encarando-as como se envelhece dez anos”72. Tão difícil “pausas criativas”77, sempre com 78 Etty Hillesum. Diario, p. 796. (Nota do entrevistado) 79 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 30. verificar que diariamente morriam o olhar voltado para o alto e para (Nota do entrevistado) duas a três crianças naquele campo, 80 Etty Hillesum. Diario, p. 755. (Nota do entrevistado) 81 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, e ter que testemunhar continuamen- 73 Etty Hillesum. Cartas, p. 159. (Nota do entrevistado) p. 39. (Nota do entrevistado) 74 Ibidem, p. 171. (Nota do entrevistado) 82 Etty Hillesum. Cartas, p. 219. (Nota do entrevistado) 75 Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork, p. 29. (Nota 83 Etty Hillesum. Diario, p. 738. (Nota do entrevistado) 71 Etty Hillesum. Cartas, p. 238 e 261. (Nota do entrevis- do entrevistado) 84 Ibidem, p. 773. Na edição portuguesa, p. 305. (Nota tado) 76 Etty Hillesum. Diario, p. 791. (Nota do entrevistado) do entrevistado) 72 Etty Hillesum. Diario, p. 715. (Nota do entrevistado) 77 Etty Hillesum. Cartas, p. 28-29. (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

Trabalhar sobre si mesmo é a única solução para o mal Para a filósofa Beatrice Iacopini, Etty quis, acima de tudo, desenterrar Deus dos corações martirizados

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto

as páginas que compõem os assim como ela é e de amar o próximo seus diários, Etty Hillesum sem reservas”. “nos ensina a perceber a pro- Na entrevista a seguir, concedida Nfunda unidade de tudo, razão pela qual por e-mail, Beatrice também faz um quem se empenha a melhorar a si mes- convite aos leitores: “Cada um de nós mo, na realidade, muda o mundo”, diz pode tentar fazer aquilo que Etty fez: a filósofa italiana Beatrice Iacopini à cultivar e manter a própria ‘posição IHU On-Line. Segundo ela, as malda- interior’, porque, sempre como na- des que a jovem judia presenciou em quela época, alguém deve sobreviver Westerbork fez com que ela cultivasse para que ‘mais tarde possa testemu- uma “riquíssima vida interior”. Lá, diz, nhar que Deus viveu também nessa ela “carregou-se de primorosa ternura época’; e cada pessoa de fé deveria se 22 e, pelo menos, de compaixão pelos mi- fazer a pergunta que ela se fez: ‘Por lhares de rostos da miséria e da dor que que eu não deveria ser essa testemu- encontrava todos os dias, incluindo os nha?’”. dos agressores”. Beatrice Iacopini é formada em Apesar de a mística de Etty não ter flo- Filosofia e em Teologia. Atualmente le- rescido dentro de uma tradição religio- ciona no ITCS Filippo Pacini - Pistoia sa, Beatrice explica que, “em essência”, e colabora com a Escola de Teologia da o caminho de Etty foi o mesmo percor- Diocese de Pistoia. Estudiosa do pen- rido por Teresa de Ávila e João da Cruz, samento de Etty Hillesum, Beatrice é “o da superação da dimensão estreita, autora, juntamente com Sabina Moser, mesquinha do próprio eu, que favore- de Uno sguardo nuovo. Il problema del ce o acesso àquela dimensão de nós em male in Etty Hillesum e Simone Weil que somos a imagem e semelhança de [Um olhar novo. O problema do mal em Deus, e na qual, ao alcançá-la, somos Etty Hillesum e Simone Weil, em tra- capazes de compreender realmente o dução livre] (Ed. San Paolo 2009). sentido profundo da vida, de amá-la verdadeiramente por aquilo que ela é, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os maio- restaram várias cartas escritas por rado do extraordinário crescimen- res desafios para compreen- ela a amigos. A leitura de um mate- to humano e espiritual que ocorreu dermos o percurso de cresci- rial tão vasto pode assustar muitos, nela em poucos meses, desde que mento humano e espiritual de até porque, como sempre acontece – deprimida, confusa, egocêntrica Etty Hillesum? no gênero diarístico, nas páginas – começou a se tratar com Julius de Etty, encontramos reflexões po- Spier1, psicoterapeuta dotado de Beatrice Iacopini – Essa jovem derosas, misturadas, porém, com judia holandesa, nascida em 1914 e anotações da vida cotidiana ou com morta em Auschwitz em 1943, dei- 1 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu trechos que ela copiava de autores alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- xou-nos um volumoso diário que dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a particularmente congeniais a ela. ocupa milhares de páginas impres- Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai Assim, não é fácil traçar o fio dou- para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise sas. Além disso, felizmente, também e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu

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“Etty não floresceu dentro de uma tradição religiosa específica: mesmo sendo de família judaica, não tinha sido educada na religião dos seus antepassados, nem jamais se converteu ao cristianismo ou a outra religião” uma notável profundidade espiritu- de outros místicos medievais, levou uma vida secular, caracteriza- al, até quando tomou a decisão mui- como Teresa de Ávila2, João da da, acima de tudo, por uma liberdade to corajosa de pedir para ser enviada Cruz3, entre outros? de costumes bastante surpreendente para o campo de concentração de para aquele tempo, portanto, muito Beatrice Iacopini – Aparente- Westerbork para ajudar os depor- diferente da de um dominicano como mente, é claro, trata-se de autores tados como podia e, acima de tudo, Eckhart4 ou de uma carmelita como muito distantes de Hillesum. Acima para tentar “desenterrar Deus dos Teresa. Isso a torna particularmente de tudo, ao contrário dos místicos corações devastados dos homens”. contemporânea e próxima do ser hu- citados por você, Etty não floresceu mano de hoje, da qual ela é verdadei- Depois, há uma dificuldade mais dentro de uma tradição religiosa espe- ramente irmã. Seu percurso místico substancial: em uma primeira lei- cífica: mesmo sendo de família judai- – especifiquemos também que ele não tura, a posição que Etty tomou nas ca, não tinha sido educada na religião tem nada de visionário ou de extático trágicas circunstâncias em que se dos seus antepassados, nem jamais se – desenvolve-se todo na dimensão co- encontrava vivendo pode ser incom- converteu ao cristianismo ou a outra tidiana, na prosaicidade de ambientes 23 preensível, até mesmo inaceitável. religião. Portanto, não há nela qual- comuns, e a sua ascese, que também Os seus escritos são pontilhados por quer base dogmática nem uma lingua- está presente (ela também, assim uma espécie de refrão, que a vida é gem teológica específica. Eu também como os grandes mestres do passado, “bela, boa, até mesmo justa”. Ressoa acredito que é importante salientar desenvolveu um caminho de purifica- continuamente a determinação de que, enquanto esses místicos ama- ção de si), não tem nada de medieval. rejeitar o ódio em relação aos agres- dureceram as suas experiências espi- sores e o convite a amar os inimigos, rituais dentro de ordens religiosas e, Em essência, porém, o seu caminho precisamente enquanto a Europa portanto, de uma vida monástica, Etty foi o mesmo, ou seja, o da superação era dilacerada pela guerra e enfure- da dimensão estreita, mesquinha ciam-se as perseguições nazistas. A do próprio eu, que favorece o aces- escolha de não se pôr a salvo e, ao 2 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carmelita espanhola so àquela dimensão de nós em que nascida em Ávila, Castela, famosa reformadora da ordem contrário, de ir voluntariamente a das Carmelitas. Canonizada por Gregório XV (1622), é fes- somos a imagem e semelhança de tejada na Espanha em 27 de agosto, e no resto do mundo um campo de concentração também em 15 de outubro. Foi a primeira mulher a receber o título Deus, e na qual, ao alcançá-la, somos pode parecer uma forma de imper- de doutora da igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre capazes de compreender realmente o seus livros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de las doável resignação. A esse propósito, fundaciones (1610), Camino de la perfección (1583) e Cas- sentido profundo da vida, de amá-la tillo interior ou Libro de las siete moradas (1588). Escreveu considero que é mais fácil compre- também poemas, dos quais restam 31 deles, e enorme verdadeiramente por aquilo que ela é, ender tudo isso se inserirmos Hille- correspondência, com 458 cartas autenticadas. Sobre Te- assim como ela é e de amar o próximo resa, confira Teresa – A Santa Apaixonada (Rio de Janeiro: sum na grande tradição mística, não Objetiva, 2005), de autoria de Rosa Amanda Strausz; Obras sem reservas. só cristã. completas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de Je- sus – “Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centená- rios, analisa a legado de Merton. Confira em https://goo. IHU On-Line – No que con- IHU On-Line – O que difere a gl/jOlXOi. (Nota da IHU On-Line) siste o mal em Etty Hillesum? 3 João de Yepes ou São João da Cruz (1542-1591): ingres- mística de Etty Hillesum, que sou na Ordem dos Carmelitas aos 21 anos de idade, em Como ela concebe a superação 1563, quando recebe o nome de Frei João de São Matias, vive na chamada Modernidade, em Medina del Campo. Em setembro de 1567, encontrou- do mal? -se com Santa Teresa de Jesus, que lhe falou sobre o pro- jeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter aos padres. Aceitou o desafio e trocou o nome para João do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, juntamente com 4 Eckhart de Hochheim, O.P. (1260-1328): mais conheci- especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- Frei Antônio de Jesús Heredia, iniciou a Reforma. No dia do como Mestre Eckhart, em reconhecimento aos títulos tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir 25 de janeiro de 1675, foi beatificado por Clemente X. Ca- acadêmicos obtidos durante sua estadia na Universidade deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino nonizado em 27 de dezembro de 1726 e declarado Doutor de Paris, foi um frade dominicano, reconhecido por sua junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952, foi proclamado obra como teólogo e filósofo e por seu misticismo. Ele é (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- Patrono dos Poetas Espanhóis. Sua festa é comemorada considerado como um dos grandes símbolos do espírito seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua no dia 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz, confira As intelectual da idade média. (Nota da IHU On-Line) irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota obras completas de São João da Cruz (Petrópolis: Vozes, da IHU On-Line) 2002). (Nota da IHU On-Line)

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Beatrice Iacopini – A esse pro- de fundar uma teodiceia a vontade Weil, comprometida a tal ponto com pósito, é preciso, acima de tudo, ter mistificadora do eu de impor as pró- o social que foi operária de fábrica em mente que Hillesum não é uma prias leis sobre a realidade e encai- e participou da revolução espanho- filósofa e não escreveu tratados, mas xá-la em esquemas reconfortantes. la; Hillesum, capaz de não “fazer”, sim páginas de diário: portanto, Aquela que se escancara inesperada- como ela mesma dizia, mas apenas nunca encontramos um tratamento mente diante de Etty, em vez disso, é de “ser”. sistemático do problema do mal, que uma verdadeira via mística, ou seja, No entanto, a experiência espiritu- é abordado, em vez disso, em chave uma visão das coisas desprovida das al delas – que floresceu, em ambos existencial, como cada um de nós faz projeções do eu. Etty compreende os casos, sem ter sido preparada de quando é posto contra a parede pela que, ao se renunciar a interpretar modo algum por qualquer caminho vida e pelos dramas que ela coloca a realidade com categorias nossas, de tipo confessional – foi pratica- diante de nós. Desde a primeira ju- evitando de fazer violência e de criar mente idêntica: o contato vital com ventude, Etty tinha vivido uma pro- sistemas consoladores, mas falsos, e o eterno permitiu-lhes viver livres funda desorientação: era afligida por ao se cultivar a paciência e a humil- dos limites e da mesquinhez dentro distúrbios psicossomáticos, passava dade de escutá-la profundamente, dos quais tudo o que é “pessoal” nos por um opressivo estado de pessi- então se captam o ritmo e as leis, força. Ambas consideraram funda- mismo, de falta de sentido e de ten- as profundas conexões que mantêm mental trabalhar pela progressiva tações suicidas. Os dois irmãos mais o todo unido, sem, portanto, elimi- separação do eu, para dar lugar ora novos, além disso, sofriam de fortes nar o negativo, que encontra, assim, à aceitação do vazio, nas palavras de distúrbios psiquiátricos, e ela tinha também ele, o seu lugar no todo. Weil, ora à quietude interior, com assistido pessoalmente, várias ve- O sentido, que ela mesma define uma expressão cara a Hillesum, va- zes, cenas chocantes que acabaram como “inexplicável”, da beleza de zio/quietude que contribuem para a em internações forçadas. Portanto, viver certamente não pode se fundar total acolhida e aceitação de tudo o ela conhecera o mal na forma de so- na realidade da crônica – muitas ve- que é. Assim, o mundo e a vida se es- frimento existencial desde a adoles- zes desoladora e angustiante –, mas cancararam em toda a sua beleza aos cência. Mais tarde, acrescentou-se o no fato de ter afinado os sentidos seus olhos e, neles, aprenderam a ler encontro com a guerra, o nazismo, espirituais que permitem perceber a o sinal da presença de Deus. as perseguições. 24 corrente subterrânea que percorre a

vida e que só um ouvido treinado e Percurso espiritual finíssimo pode ouvir atrás do baru- IHU On-Line – Etty Hillesum O percurso espiritual que Etty ini- lho das bombas e dos tanques, atrás conserva na essência de seu for- ciou graças a Spier que a levou a uma do clamor e do caos dos eventos co- talecimento interior uma ideia conversão do olhar sobre aquilo que tidianos. de liberdade? Como compreen- de esse conceito de liberdade e chamamos de mal: quanto mais ela ia rastreando nas suas profundezas o de que forma, na sua experiên- centro de si, mais ela se enraizava no IHU On-Line – Que conexões cia de escuta e acolhimento, ela Deus que lá havia encontrado, mais podemos estabelecer entre Etty revela essa liberdade? Hillesum e Simone Weil5? percebia que aquilo que ocorre de Beatrice Iacopini – Efetivamen- fora não é tão importante, se apren- Beatrice Iacopini – De certa te, poderíamos ver todo o percurso dermos a viver “à escuta daquilo que forma, é difícil encontrar duas mu- de Hillesum como uma busca da vem de dentro”. lheres mais diferentes do que Etty liberdade, como um caminho de li- A sua resposta não é filosófica: o e Simone: a primeira, sensual e ex- bertação: ela entrou na psicoterapia mistério do mal, do sofrimento, da tremamente feminina, “bulímica” porque se sentia presa de um “nó opressão do homem sobre o homem em relação a tudo que encontrava emaranhado”, de uma desordem permanece insolúvel; mas nos diz de belo no seu caminho; a segunda, interior que lhe tornava quase in- que há um modo de contemplar a ascética, quase acorpórea, que prati- tolerável viver. A terapia com Spier realidade mais profundo do que o camente se deixou morrer de fome. imediatamente fez milagres, e a sua intelectual, que permite aceitar as vida começou a decorrer mais flui- contradições e inseri-las na “única 5 Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã francesa. Cen- damente, a desordem progressiva- trou seus pensamentos sobre um aspecto que preocupa poderosa totalidade”, em que cada a sociedade até os dias de hoje: o tormento da injustiça. mente cedeu espaço a uma quietu- Vítima da tuberculose, recusou-se a se alimentar, para de interior cada vez maior, graças à uma delas tem o seu lugar certo. Ao compartilhar o sofrimento de seus irmãos franceses que olhar iluminado pela luz do espírito, haviam permanecido na França e viviam os dissabores da qual foi-lhe possível “repousar em si Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as edições mesma”. Depois, quando começou a tudo se revela “um bem assim como 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra Viva, disponí- vel em http://bit.ly/tZSCDr; 168, de 12-12-2005, Hannah pôr em prática os ensinamentos es- é”. Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, disponível em http://bit.ly/v0aMxT; pirituais de Spier, treinando-se para Como se vê, Etty não tenta sequer 313, de 3-11-2009, Filosofia, mística e espiritualidade. Si- extinguir o “pequeno eu”, aquele eu mone Weil, cem anos, disponível em http://bit.ly/w374lt. elaborar alguma teodiceia, ao con- (Nota da IHU On-Line) “tão obtuso, com os seus desejos que trário, denuncia em cada tentativa se limitam a perseguir as satisfações

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE mesquinhas”, ela sentiu que se es- apenas a suspeita fugaz de uma har- místicos chamam de fundo da alma, cancarava o acesso a regiões de si monia na natureza, algo incerto e in- o lugar onde surge a identidade, a das quais ela não conhecia a existên- definido, absolutamente irrelevante. intimidade mais profunda do su- cia. Assim, descobriu que é possível jeito, onde Deus habita ou, melhor, Aprendendo a frequentar os seus ser pátria para si mesmo, que dentro onde, de modo misterioso, Deus e a lugares interiores, porém, no fun- de nós existem espaços tão vastos alma são uma coisa só. Ela, que de do de si, escancararam-se para ela que podem hospedar e deixar decan- aventuras teve muitas, dirá, depois, “vastos panoramas”, amplos espa- tar, purificando-o, tudo aquilo que que Deus é “a maior e ininterrupta ços acolhedores aos quais ela se as- ocorre lá fora, tão vasto a ponto de aventura interior” do ser humano, e somou timidamente, para depois ter lugar até mesmo para Deus. Su- que aquelas, para Deus, são as úni- tomar posse com decisão daquele perar o apego ao próprio eu signifi- cas cartas de amor que deveriam ser Alguém que Etty, no início, custava cou para ela não dar mais ouvidos às escritas. a chamar de Deus. Sempre me sur- próprias “paixões” (diante das quais, preende muito essa espécie de pudor No encontro com Deus, Etty ama- como indica o próprio termo, somos linguístico: o temor de dizer “Deus”. dureceu uma visão revolucionária, “passivos”, portanto, não livres), aos Talvez, ela tivesse medo de que ela perfeitamente resumida nestas li- sentimentos mais baixos de inveja, confundisse essa surpreendente Pre- nhas esplêndidas: “Tu não podes nos ciúme, rancor, ódio – que também sença interior com aquele ser mi- ajudar, nós, a contrário, devemos te ela, assim como todos, sentia e sobre tológico de barba, que é Deus para ajudar, e é fazendo isso que, no fun- os quais trabalhou muito – e aos me- muitos, ou com qualquer imagem do, ajudamos a nós mesmos. Tudo dos que fazem perder a bússola. que o homem possa fazer dele. Tal- o que podemos salvar em tempos Assim, o fato de viver enraizada nas vez ela soubesse que esse Alguém é como estes e também a única coisa profundezas do eu, onde eu e Deus grande demais para poder ser encer- que importa é um pedacinho de ti são a mesma coisa, presenteou-lhe rado em uma palavra. Depois, ela se em nós mesmos, Deus... Há pesso- uma experiência de autêntica liber- curvou a usar aquela palavra “Deus”, as – não é possível acreditar nisto! dade, que ela nunca havia experi- porque, de algum modo, tinha que se – que, mesmo no último momento, mentado antes; uma liberdade tão expressar, mas especificando que se põem a salvo aspiradores, garfos e grande a ponto de lhe permitir não tratava apenas de “uma estrutura de colheres de prata, em vez de se pre- odiar os nazistas e não temer as suas ocuparem contigo, meu Deus. E há 25 opressões: “Não estamos nas garras pessoas que só pensam em assegurar de ninguém quando repousamos o próprio corpo, que já se tornou um nos braços de Deus”, respondia ela “Hillesum não mero recipiente de mil medos e de aos amigos que lhe imploravam para mil ressentimentos. Elas dizem: não se proteger, de algum modo. Uma li- é uma filósofa me terão em suas garras! Esquecem- berdade tão grande a ponto de se in- -se que nunca estamos nas garras de ternar espontaneamente no campo e não escreveu ninguém quando estamos nos teus de Westerbork, para compartilhar braços”. o destino do seu povo e a ponto de tratados, mas poder exclamar, dentro das restritas O Deus de Etty fronteiras daquele campo de concen- sim páginas tração, que “estamos em casa em to- Trata-se de uma verdadeira revo- dos os lugares sob este céu, quando de diário” lução copernicana, que coloca no trazemos tudo dentro de nós mes- centro não mais a responsabilidade mos”. de Deus, mas sim a do ser humano: serviço”. “E Deus também não é responsável em relação a nós pelos absurdos que O fato é que, de um modo total- IHU On-Line – Que Deus é re- nós mesmos cometemos: os respon- mente misterioso também para ela, velado através da experiência sáveis somos nós!”. O Deus de Etty a sua vida tornou-se “um ininterrup- de Etty Hillesum? é um Deus que confia a própria pre- to escutar dentro de mim mesma, sença no mundo ao ser humano, por- Beatrice Iacopini – Antes do en- aos outros, a Deus. E, quando eu que, sem o ser humano, nada pode contro com Spier, Etty era – como digo que escuto dentro, na realidade, fazer; é uma presença a ser cuidada muitos hoje – essencialmente ag- é Deus quem escuta dentro de mim. e uma fonte jorrante, mas que deve nóstica: Deus para ela era apenas o A parte mais essencial e profunda de ser limpada continuamente para que Grande Talvez (roubo a esplêndida mim que dá ouvidos à parte mais es- não se obstrua. E, quando se mani- 6 expressão de Thornton Wilder ), sencial e profunda do outro. Deus a festa a tentação de não crer mais, Deus”. é preciso “recolher Deus”, impedir 6 Thornton Niven Wilder (1897-1975): foi um escritor es- Etty nos conta aqui uma desco- que ele se afaste e nos abandone, por tadunidense. (Nota da IHU On-Line) berta: ela encontrou aquilo que os nossa causa.

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É impressionante como nas páginas mo e saber captar a verdade sem de- ruminações, “representações de Etty já está contida grande parte formá-la com as projeções do eu psi- convencionais” ou “fossilizadas” do debate sobre a compreensão de cológico (desejos, ciúmes, medos...); da vida e das pessoas, sentimentos Deus após Auschwitz: com extraor- é escutar as profundezas de si e do apropriativos e divisivos, e, assim, dinária lucidez, ainda no meio do mundo, invertendo a perspectiva co- estão na origem de toda insatisfação, grande massacre, ela não só captou mum pela qual nos deixamos guiar infelicidade, pessimismo. a enormidade de todo aquele mal, pelos eventos externos e não por Permanecer conectado à corrente mas também previu as interrogações “aquilo que sobe de dentro”. Escutar que permeia todas as coisas produz a que, depois, surgiriam. dentro requer um constante exercí- atitude interior de aceitação confiante cio de silêncio e atenção, retribuído, Etty explora, graças à sua experiên- das coisas como elas são, o “abandono no entanto, pelo escancaramento de cia espiritual, fronteiras teológicas confiante” (gelatenheid, correspon- espaços interiores cada vez mais li- particularmente atuais: ela nos fala dente holandês ao eckhartiano Ge- vres e inalienáveis. de um Deus que não é o deus oni- lassenheit), que é uma consequência potente da história – no qual, aliás, O outro verbo (literalmente digerir, imediata, senão até a mesma coisa, hoje, não se está mais disposto a crer assimilar) é uma prática consequen- da fé em Deus. O abandono confian- –, mas sim um Deus que se confia, te à primeira e significa dar espaço e te cria um estado de quietude e torna um Deus a ser cuidado, a ser hospe- amorosa hospitalidade a toda pessoa possível repousar em si mesmo, no dado, a ser mantido vivo, que coinci- e a todas as coisas, também àquilo próprio espaço interior, mas só é pos- de com a nossa verdadeira liberdade que parece negativo e provoca dor. sível no desapego, que é a tarefa que e que nos salva de dentro de nós, É a habilidade de recolocar também cabe ao ser humano e à qual Etty se mudando não as coisas e os eventos, as circunstâncias e as experiências dedicou com os seus exercícios ascéti- mas o nosso olhar sobre as coisas e mais negativas no centro de si, im- cos: todo o resto é simplesmente dado sobre os eventos. pedindo-as de permanecer no nível a nós, sem que nós devamos fazer superficial e de se apossar da pessoa, mais nada. Ao grito nietzschiano “Deus está perturbando a sua emotividade. A dor morto”, com Etty poderíamos res- assim absorvida e resolvida pode se ponder que é bom que ele tenha sido transformar em uma peça daquela IHU On-Line – Que dimensão morto, porque ele era apenas um 26 “grande bem-aventurança” que é a o amor e a compaixão universal ídolo da nossa imaginação e, com vida interior e desenvolver energias assumem em Etty Hillesum? ele, não desaparece o horizonte, de insuspeitadas. fato, ao contrário, ele é recolocado Beatrice Iacopini – Com a exa- no lugar certo: não fora, mas dentro Treinando-se até o ponto de fazer cerbação das leis raciais, Etty dedica de nós, onde na realidade sempre se com que a escuta profunda e a assimi- muitas reflexões à sua situação e, ao encontrou – por outro lado, os místi- lação se tornassem verdadeiros hábi- contrário do que muitos lhe suge- cos de todos os tempos disseram isso tos da alma, Etty aprendeu a sentir e, rem, sente a precisa responsabilida- – e de onde ninguém tem o poder de depois, a permanecer conectada com de pessoal de não poder aceitar solu- apagá-lo. Etty nos entrega, em tem- aquela corrente subterrânea – outra ções privilegiadas e, assim, se isentar pos de grande desorientação e, pelo expressão recorrente e central – que, de um destino comum. Aquilo que menos nas minhas latitudes, de ag- como uma música de fundo, permeia ela viu acontecendo com os judeus nosticismo generalizado, as coorde- e sustenta a criação, cada criatura hu- de toda a Europa, em sua opinião, ti- nadas de uma fé ainda possível. mana e a própria história, e na qual nha dimensões tão assustadoras que se manifesta a presença de Deus. É constituíam uma espécie de “destino

vivendo conectados com essa cor- de massa” que ela estava decidida IHU On-Line – Na sua opi- rente que ganhamos o olhar mesmo a não evitar, “eliminando todos os nião, quais são os conceitos de Deus sobre o cosmos e captamos, infantilismos pessoais”: tentar pro- mais centrais na mística de Etty assim, a sua coerência e a sua riqueza teger a si mesma parecia-lhe um Hillesum? Por que e como com- de significado; caso contrário, per- comportamento fora da história e, preendê-los? demo-nos atrás dos detalhes e per- além disso, uma covardia – como demos de vista as “grandes linhas”. no caso daqueles judeus que se es- Beatrice Iacopini – Vou respon- Essa corrente universal, que é a voz condiam – porque “quem quer que der usando alguns termos-chave do e o poder de Deus no universo, jorra queira se salvar deve saber, porém, léxico de Etty. Comecemos com dois em cada ser humano, nas suas fontes que, se ele não for, outra pessoa terá verbos, hineinhorchen (alemão) e interiores que são a própria essência que ir em seu lugar”. É evidente que verwerken (holandês), que indicam do seu ser, mas, muitas vezes, estão não se trata de um fatalismo resig- no diário duas atitudes da alma. Hi- sepultadas por detritos e, para liberar nado, mas sim da convicção que se neinhorchen, escutar dentro, signi- o seu acesso, é preciso um trabalho de tem diante de algo muito maior do fica se habituar a ver o que flui em escavação e de remoção daquilo que que uma questão pessoal, algo que o profundidade, ir além da superfície ali depositam o eu e a mente, que, com indivíduo não pode mudar de modo dos eventos, das pessoas, de si mes- o seu incessante trabalho, produzem algum, senão inserindo-se nisso:

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“Duvido que eu me sentiria bem se aquilo que gostaríamos. Está em inspiraram nela e aos quais, na minha soubesse que me salvaria, enquanto nosso poder rejeitar essa barbárie opinião, Hillesum, de um modo mais milhares vão morrer. Acho absurdo no nosso íntimo: podemos não cul- ou menos consciente, se vincula. e ilógico tomar iniciativas [assim]”. tivar em nós esse ódio, porque, caso Alguns intérpretes da pós-moderni- contrário, o mundo não dará sequer Etty quis compartilhar “o fardo da dade, primeiramente R. Panikkar8, in- um passo fora da lama em que se en- dor” e da história, mantendo sem- terrogando-se sobre o futuro das reli- contra”. pre um olhar mais amplo do que giões, defenderam que o nosso século as estreitas fronteiras do presente No campo, ela se esforçou como “ou será místico ou não será”: eu acho imediato e levando consigo aque- pôde para ajudar, mas, acima de que Etty é uma das respostas mais la que ela sentia como sua tarefa: tudo, para “desenterrar Deus dos co- convincentes nesse sentido. “Gostaria de me encontrar em todos rações martirizados”, como ela dizia. aqueles campos que estão espalha- Ela chegou a escrever, com uma es- dos por toda a Europa, gostaria de tupefaciente referência ao sacrifício IHU On-Line – Uma das cenas estar em todas as frentes; não quero, eucarístico: “Parti o meu corpo como mais impactantes de Etty Hille- por assim dizer, ‘estar segura’, que- se fosse pão”. sum é a descrição de quando ela ro estar lá, quero que haja um pou- joga do trem que a leva à morte co de fraternidade entre todos esses um bilhete que diz “deixamos o chamados ‘inimigos’ onde quer que IHU On-Line – Tzvetan To- campo [de concentração] can- eu me encontre, quero entender o dorov7 diz que Etty Hillesum tando”. Como a senhora lê esse que acontece; e gostaria que todos rompe com uma tradição de momento? E que outras cenas aqueles que conseguirei encontrar pensamento ocidental, que en- na história dessa mística a se- [...] possam entender esses grandes fatiza o sujeito, “que representa nhora destacaria? acontecimentos como eu os enten- os outros como os instrumentos Beatrice Iacopini – Certamente, do”. eventuais das investigações rea- o bilhete a que você alude é um teste- lizadas pelo eu”. A senhora con- Por isso, ela fez com que fosse en- munho altíssimo: ter a força e o desejo corda? E a partir do próprio tex- ainda de verter sobre o papel palavras to dela, poderia nos demonstrar como essas, de dentro de um vagão como propõe esse rompimento 27 lotado de pessoas que vão morrer, de “eu autocentrado” e exerce já é, por si só, um sinal do profundo esse autoconhecimento capaz de “Ela conhecera amor pela vida e pelos outros que Etty acolher e escutar o outro a partir tinha amadurecido. Naquele bilhe- o mal na forma de si mesma? te, que alguns camponeses piedosos de sofrimento Beatrice Iacopini – É uma obser- recolheram no campo adjacente à vação bastante pertinente, e eu acho ferrovia e enviaram à destinatária, a existencial que esse aspecto é uma das muitas amiga Christine, Etty escreveu que ti- perspectivas de leitura de Hillesum. nha aberto a Bíblia ao acaso: um dos desde a A história da filosofia ocidental foi, últimos gestos que conhecemos dessa principalmente, a descoberta e a exal- jovem mulher, portanto, é um gesto adolescência” tação progressiva do eu e da sua força, de entrega a Deus, através da sua Pa- enquanto, no pensamento indiano e lavra. Não só isso, o versículo que ela oriental, em geral, sempre teve muito copiou contém um significativo jogo viada para Westerbork, o lugar que mais espaço a desconstrução do eu. de palavras: “O Senhor é o meu refú- os judeus tentavam evitar com todas No entanto, gostaria de salientar que, gio”, em que a palavra que significa as suas forças. Lá, apesar do infer- na nossa história, também é rastre- “refúgio”, no holandês antigo da Bí- no, ela viveu uma riquíssima vida ável uma corrente indubitavelmente blia, é a mesma que, em holandês mo- interior e de relação: carregou-se de minoritária, que muitas vezes perma- derno, significa “partida”! Etty quer primorosa ternura e, pelo menos, de neceu subterrânea, que vai na direção dar a entender aos seus amigos que a compaixão pelos milhares de rostos oposta: poderíamos fazê-la partir no sua “partida” está em Deus, como to- da miséria e da dor que encontrava neoplatonismo e depois segui-la nos das as coisas que lhe acontecem, como todos os dias, incluindo os dos agres- seus entrelaçamentos com uma certa testemunho do “abandono confiante” sores. filosofia cristã. É aquela que floresceu de que eu falava acima. especialmente na mística renana-fla- Bem antes de as deportações se de- No diário e nas outras cartas, há ce- menga e nos autores que depois se sencadearem, Etty escreveu: “A bar- bárie nazista desperta em nós uma 7 Tzvetan Todorov (1939): filósofo e historiador búlgaro, 8 Raimundo Panikkar: teólogo indiano, autor de, entre barbárie equivalente, que operaria crítico da linguagem. Confira a entrevista concedida por outros, The Unknown Christ Of Hinduism: Towards An com os mesmos métodos se apenas ele à IHU On-Line, intitulada Os inimigos da democracia e Ecumenical Christophany. Maryknoll, Nova Iorque: Orbis o perigo das exigências hipertrofiadas, publicada na edi- Books, 1981. (Nota da IHU On-Line) pudéssemos pôr em prática hoje ção número 407, de 05-11-2012, disponível em http://bit. ly/U4r4I4. (Nota da IHU On-Line)

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nas que permanecem impressas, não dalle Lettere [O jasmim e a poça. rioridade/compromisso social. Usan- tanto porque são eventos de grande Textos do Diário e das Cartas, do as suas próprias palavras, trabalhar porte, mas pelo seu significado espi- em tradução livre] (Ed. Le Let- sobre si mesmo não é individualismo ritual: vem-me à mente, por exemplo, tere, 172 páginas). Por que re- mórbido, mas sim a única solução aquela manhã em que – ela conta isso publicar os diários agora? O para o mal. Eu acho que Hillesum nos no dia 27 de fevereiro de 1942 – ela que essa volta ao texto de Etty ensina a perceber a profunda unidade acompanhou Spier à Gestapo. Lá, um Hillesum lhe revelou? de tudo, razão pela qual quem se em- jovem gendarme gritou contra ela não penha a melhorar a si mesmo, na re- Beatrice Iacopini – Como eu di- sei o quê, e ela, em vez de se assustar alidade, muda o mundo, e essa lição, zia, os escritos de Hillesum preen- ou se indignar, conta ter sentido uma com mais razão, deveria ser assumida chem mais de mil páginas, e nem to- sincera compaixão por aquele jovem pelas religiões que, mais do que nunca, dos estão dispostos a fazer o esforço de ar atormentado e oprimido. Ou têm uma grande responsabilidade, a necessário para lê-los na sua inteireza. quando fala das flores, particularmen- de ensinar a superar cercas e divisões, Por outro lado, é importante demais te do jasmim atrás da casa, que ela abandonar todo espírito de proselitis- que essa figura central do século XX tanto amava e que continua amando mo para lançar com uma só voz uma seja conhecida pelo maior número e, sobretudo, diria, olhando: são o mensagem às pessoas de boa vontade, de pessoas possível. A minha antolo- símbolo da beleza da vida, da compai- mensagem que poderíamos sintetizar gia nasce com a intenção de fornecer xão, da presença de Deus no mundo, assim: trabalhar sobre si mesmo para uma escolha de trechos ordenados por que sempre existem, mas que é pre- abandonar toda perspectiva egocên- temas, de modo que esteja à disposi- ciso saber percebê-las; e ela sabe que trica e, assim, deixar emergir Deus, ou ção dos leitores uma espécie de mapa é importante que alguém, ainda, no seja, o amor, no mundo. que possa orientá-los pelas etapas meio da degradação e dos desastres fundamentais do seu percurso espiri- da guerra e do ódio, tenha olhos para tual. Preparar a tradução dos textos, elas, porque esse olhar salva e trans- IHU On-Line – Deseja acres- por outro lado, permitiu-me entrar mite intactas às gerações futuras bele- centar algo? ainda mais no mundo de Etty e fazer za, amor, substancialmente, Deus. algumas descobertas iluminadoras: Beatrice Iacopini – Gostaria de Depois, tem esse gesto tão recorren- por exemplo, a presença em algumas concluir com uma reflexão que tam- 28 te no diário, ajoelhar-se: Spier se ajoe- de suas páginas do termo eckhartia- bém é um convite. A barbárie nazista lhava para rezar, e, assim, ela também no Gelassenheit (na forma holandesa foi terrível, mas novas barbáries es- quis tentar, mas, no início, ela não gelatenheid) que ajuda a demonstrar tão continuamente à espreita no nos- gostava desse gesto, não o sentia como como a experiência espiritual de Hil- so planeta (e, não nos esqueçamos, dela. Um dia, no entanto, de repente, lesum se insere na tradição da grande dentro de nós). Diante de violências, encontrou-se jogada no chão por algo mística cristã. opressões, depredações do homem maior e, a partir de então, começou a contra o homem, assim como diante

se definir como “a moça que não sabia das próprias tentações de ceder à in- se ajoelhar e aprendeu a fazê-lo”. Esse IHU On-Line – Quais os maio- tolerância, à raiva, à violência, cada movimento do corpo, que para ela era res desafios para, em nosso um de nós pode tentar fazer aquilo de recolhimento mais do que de sub- tempo e inspirados em Etty Hil- que Etty fez: cultivar e manter a pró- missão, era o ato de quem está como lesum, salvaguardarmos o jas- pria “posição interior”, porque, sem- que vencido pela beleza e, ao mesmo mim, símbolo de beleza e vida, pre como naquela época, alguém deve tempo, sabe conservar em si o seu se- das poças, do ódio, da guerra e sobreviver para que “mais tarde possa gredo, e tornou-se o gesto sintetizador da intolerância? testemunhar que Deus viveu também de toda a sua fé. Um gesto que, depois, nessa época”; e cada pessoa de fé de- Beatrice Iacopini – Aqui, quero se fez até mesmo interior, a tal ponto veria se fazer a pergunta que ela se fez: evidenciar principalmente a realiza- que, mais tarde, ela escreveu: “Nos “Por que eu não deveria ser essa teste- ção em si da unidade que se cumpriu momentos mais inesperados, alguém munha?”. em Etty: a moça saiu do caos e do de- se ajoelha de repente em um cantinho sespero quando encontrou o centro “Eu gostaria tanto de sobreviver do meu ser. Às vezes, enquanto estou de si e, então, todas as contradições, para transmitir a esta nova era toda a caminhando pela rua ou estou bem no as divisões foram sanadas, porque humanidade que conservo em mim, meio de uma conversa. E esse alguém tudo ganhava luz e vida da poderosa apesar dos fatos de que sou testemu- que se ajoelha lá sou eu”. autoridade central que reinava nela. nha todos os dias. Além disso, o único Então, com ela, poderíamos aprender modo que temos para preparar o tem- a não distinguir e opor – como fize- po novo é prepará-lo desde agora em IHU On-Line – Recentemen- mos durante séculos e tendemos a fa- nós mesmos”: também essas palavras, te, a senhora editou uma nova zer sempre – pares de opostos, como tão altas, podem e devem inspirar cada publicação acerca dos escritos compromisso consigo mesmo/com- leitor do diário, contra todo desencora- de Etty Hillesum, Il gelsomino e promisso com os outros, vida ativa/ jamento e contra toda tentação de ab- la pozzanghera. Testi dal Diario e vida contemplativa, trabalhar na inte- dicar das nossas responsabilidades.■

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

A jovem mística que “desenterra Deus do fundo do coração dos outros” Mariana Ianelli reconstrói a Etty Hillesum livre de qualquer amarra, que é capaz de encontrar o divino até mesmo entre os perversos

João Vitor Santos

la não se sentia nas garras de exatamente nesses termos”, pontua. ninguém. A maneira como essa Ainda sobre sofrimento, Mariana ain- mulher age coincide com o que da destaca que “Etty insiste que ainda Eela sente, pensa e escreve.” É assim nos falta, aos ocidentais, aprender a que a poeta Mariana Ianelli define Etty sofrer, aprender a não repudiar a ex- Hillesum, a jovem holandesa que de- periência da dor, porque a energia que cide viver entre judeus no campo de alguém empenha em resistir ao sofri- concentração. Mas essa mulher não mento poderia estar sendo empenhada “escolhe apenas sentir a dor. Ela busca em algo mais fecundo”. Assim, deixa conhecer o seu interior. “Etty como que claro que não é necessário “remoer” o faz as pazes com seu próprio sofrimen- sofrimento, ainda mais em tempos de to, com a saúde fraca, as dores de ca- penúrias. A lição da jovem mística é a beça, um aborto, ela vai se unificando, de que “é urgente cultivar um espaço criando um espaço interno de silêncio, de calma para restauração das nossas 29 conseguindo um equilíbrio entre fora forças”. “A lição que Etty depreende da e dentro”, observa, na entrevista con- guerra, e que transcende circunstâncias cedida por e-mail à IHU On-Line. E, históricas, é uma lição espiritual”, sin- uma vez encontrando esse equilíbrio, tetiza Mariana. é dele que espalha o sorriso em meio a tanto desespero. “A partir daí, bem no Mariana Ianelli é poeta, ensaísta, meio do inferno de sua época, no meio cronista e crítica literária brasileira, de gente que se desesperava ou desistia com mestrado em Literatura e Crítica ou negociava a vida a qualquer preço, Literária pela Pontifícia Universidade ela pôde estender a mão para o outro”, Católica de São Paulo - PUC-SP. Entre completa. suas produções, destacam-se os livros de poesia Trajetória de antes (1999), Entretanto, se engana quem pensa que Duas chagas (2001), Passagens (2003) a jovem buscava dar alento apenas aos e Fazer silêncio (2005), finalista dos menores. O Deus que ela alcança através prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cul- de cultivo de seu “eu interior” lhe gera tura 2006, além de Almádena (2007), um brilho e esse brilho, segundo Ma- finalista do prêmio Jabuti 2008, Tre- riana, a faz capaz de perceber Deus até va alvorada (2010) e O amor e depois mesmo entre aqueles que promovem o (2012), todos pela editora Iluminuras. sofrimento. “Era esse brilho que impor- Como ensaísta, é autora de Alberto Pu- tava defender até as últimas, e fazia Etty cheu por Mariana Ianelli (ed. UERJ, observar com interesse todo tipo de gen- 2013). Estreou na prosa com o livro de te, inclusive o comandante do campo, os crônicas Breves anotações sobre um ti- guardas, os dirigentes judeus, os judeus gre (ed. ardotempo, 2013). alemães. Etty queria desenterrar Deus do fundo do coração dos outros, assim, Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Entre tantas rava ou desistia ou negociava a vida ção”, frase que se tornou famosa. E, imagens fortes de Etty Hille- a qualquer preço, ela pôde estender finalmente, a última frase, do último sum está aquela em que, do a mão para o outro, pôde se dar para caderno dos diários de Etty de que trem que vai levá-la do campo o outro, viver o dia a dia num cam- se tem notícia (o caderno que Etty de concentração para a morte, po de trânsito e escrever sobre o que manteve no campo de Westerbork se ela joga para a amiga um cartão via sem submergir. Etty preparava a perdeu): “Gostaria de ser um bálsa- em que diz “deixamos o campo bagagem dos que eram convocados mo para muitas feridas”. Essa frase cantando”. O que essa passa- para o transporte e não submergia. está gravada num monumento à bei- gem revela sobre essa mulher? Depois foi ela mesma com seus pais ra do rio Ijssel, em Deventer, cidade e seu irmão, cantando. Isso revela onde Etty passou sua adolescência. Mariana Ianelli – Essa partida que sua alma continuava viva. Representa, espiritualmente, com de Etty Hillesum, cantando, é real- seu característico acento cristão, o mente impressionante, lembrando ápice da entrega amorosa de Etty, que, no mesmo trem, uns vagões à IHU On-Line – Como compre- sua máxima abertura para o outro. frente, iam seus pais e o irmão mais ender a dinâmica do silêncio e novo. Isso revela exatamente o que da escuta em Etty Hillesum? a própria Etty expressou nos seus IHU On-Line – De que amor cadernos, um ano antes: que ela não Mariana Ianelli – Há uma ima- fala Etty Hillesum em seus es- se sentia nas garras de ninguém. gem à qual Etty recorre frequente- critos? A maneira como essa mulher age mente em seus diários para descre- coincide com o que ela sente, pensa ver sua paisagem interior. Ela sega o Mariana Ianelli – Etty fala de e escreve. Quando passa a frequen- matagal que esconde a vista, depois um amor que é refúgio, confiança, tar, ainda voluntariamente, o campo capina a terra, até que pouco a pouco proteção. Ela começa a cultivar esse de Westerbork1, é como se estivesse o exercício da meditação vai abrindo amor rezando, o que exige dela a pronta para aceitar Auschwitz2 como uma planície imensa e impertur- quebra de um primeiro bloqueio, qualquer outra coisa terrível, porque bável dentro dela. Essa planície a porque até então, com 27 anos, Etty àquela altura já nada podia quebrá- acompanha aonde ela vai, uma pai- nunca tinha pronunciado o nome de -la por dentro. Sua alma não estava sagem cultivada nos momentos de Deus, nem se ajoelhado. O que ela 30 em jogo nessa partida. oração, meditação, silêncio. É nesse passa a cultivar, na medida em que lugar que Etty se põe à escuta. esse exercício da oração vai ganhan- Para isso, Etty esteve se preparan- do espaço e importância, é uma par- do durante dois anos, lutando inte- Se pudéssemos recorrer a outra te de Deus dentro dela. riormente, e escrevendo sobre essa imagem, agora, para sintetizar a na- luta interna em seus diários, se lim- tureza espiritual dessa escuta, seria Quando, mais adiante, Etty con- pando do ódio, do rancor, do medo, aquela dos anjos de Wim Wenders3 segue canalizar esse amor para os cuidando da alma. Etty como que faz sobre os nossos ombros, ouvindo e gestos mais simples, é sua parte de as pazes com seu próprio sofrimento, sofrendo nossas angústias, nossos Deus vindo à tona, buscando a parte com a saúde fraca, as dores de cabe- traumas, nossas pequenas ternuras. de Deus que existe no outro. O amor ça, um aborto, ela vai se unificando, Etty se abre para essa compaixão pelo outro passa a ser uma extensão criando um espaço interno de silên- quase sobre-humana e vai em busca desse amor maior. Numa carta de cio, conseguindo um equilíbrio entre do que se passa no mais íntimo do agosto de 1943 à amiga Maria Tuin- fora e dentro. E então, a partir daí, outro. Numa das entradas dos di- zing4, Etty fala desse sentimento, ra- bem no meio do inferno de sua épo- ários, em 16 de setembro de 1942, dicalmente místico e poético ao mes- ca, no meio de gente que se desespe- percebemos bem essa dinâmica do mo tempo, quando diz que “o amor silêncio e da escuta numa espécie de pelo nosso semelhante é como um oração, que é dirigida, dessa vez, não brilho elementar que nos sustenta” 1 Campo de Westerbork: foi um campo de concentração situado a cerca de 15 km da vila de Westerbork, Países Bai- a Deus, mas aos homens que Etty e que o “nosso semelhante por si só xos, onde hoje é a Holanda. Este acampamento tinha sido observa em Westerbork, indo e vin- quase não tem nada a ver com isso”. iniciado pelas autoridades neerlandesas durante o verão do, sempre atarefados. Ela pede inti- de 1939, a fim de receber os refugiados provenientes de Era esse brilho que importava de- origem judaica na Alemanha. Os primeiros refugiados mamente para ser a guardiã da alma chegaram em Westerbork. Quando o exército alemão in- fender até as últimas, e fazia Etty vadiu a Holanda, havia 750 refugiados no acampamento. desses homens. Em 1 de julho de 1942, as autoridades alemãs tomaram o observar com interesse todo tipo de controle do acampamento. Westerbork se tornou oficial- mente um “campo de trânsito”, ou campo de passagem, Mais adiante, Etty formula o desejo gente, inclusive o comandante do antes do envio de judeus para outros locais, como Aus- místico de ser “o coração pensante campo, os guardas, os dirigentes ju- chwitz, na Polônia. (Nota da IHU On-Line) 2 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo de campos de de todo um campo de concentra- deus, os judeus alemães. Etty queria concentração localizados no sul da Polônia, símbolos do Holocausto perpetrado pelo nazismo. A partir de 1940, o governo alemão comandado por Hitler construiu vá- 3 Ernst Wilhelm “Wim” Wenders (1945): cineasta, dra- 4 Maria Tuinzing: foi uma das melhores amigas de Etty. rios campos de concentração e um campo de extermínio maturgo, fotógrafo e produtor alemão, além de uma das Foi ela que indicou Etty para trabalhar na casa de Han We- nesta área, então na Polônia ocupada. Houve três campos mais importantes figuras do Novo Cinema Alemão. Des- gerif, um viúvo de quem ela foi uma espécie de governan- principais e 39 auxiliares. Como todos os outros campos de 1996, Wenders é presidente da Academia de Cinema ta, em Amsterdã. Antes de deixar Westerbork pela última de concentração, os campos de Auschwitz eram dirigidos Europeu em Berlim. Entre suas obras, destacamos Der vez, Etty deu a Maria seus diários que, por sua vez, pas- pela SS comandada por Heinrich Himmler. (Nota da IHU Himmel über Berlin (Asas do Desejo, de 1987). (Nota da sou os diários de Etty para Klaas Smelik e sua filha Jopie On-Line) IHU On-Line) (Johanna). (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE desenterrar Deus do fundo do cora- coração a coração, que Etty inspira, a todos. Sem deixar de mencionar ção dos outros, assim, exatamente é sem dúvida uma das chaves para se a riqueza de leituras cruzadas que nesses termos. Achava que só indi- compreender a admiração e o entu- há nas cartas e nos diários, Mestre vidualmente, cada um trabalhando siasmo dos seus leitores. Eckhart10, Santo Agostinho11, Dos- por dentro esse refúgio comum, uma toievski12, Freud13, Jung14, Rilke15, Uma bibliografia atualizada, so- nova geração mais humana poderia mente em francês, já reúne mais de começar a ser gestada. Quando as quarenta títulos sobre Etty Hille- pessoas elas mesmas se permitissem sum, sem contar dezenas de artigos emanar algo além de ressentimento, em coletâneas e outros estudos. Os 10 Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em Hochheim, quando interrompessem o ciclo do na Turíngia. Ingressando no convento dos dominicanos leitores de Etty são, de fato, amigos de Erfurt, estudou em Estrasburgo e em Colônia. Tornou- ódio. Para Etty, não era Deus que -se mestre em Teologia e ensinou em Paris. Em sua obra, de Etty. está muito presente a unidade entre Deus e o homem, devia acudir a humanidade, mas o entre o que consideramos sobrenatural e o que achamos contrário. Outro aspecto a considerar é o ser natural. É um pensamento holístico, pois para Eckhart devemos reconhecer Deus em nós, mas este caminho não meio intelectualmente fecundo, em- é fácil. O homem deve se “exercitar nas obras, que são seus frutos”, mas, ao mesmo tempo, “deve aprender a ser bora psicologicamente difícil, em livre mesmo em meio às nossas obras”. Eckhart morreu IHU On-Line – Etty Hillesum que essa mulher se criou, o talento em 1327. Em 27 de março de 1329, foi dado ao público a bula In agro dominico, através da qual o Papa João XXII tem admiradores em todos os para o estudo das línguas (o pai, ju- condenou vinte e oito proposições do Mestre Eckhart. Das vinte e oito, dezessete foram consideradas heréticas campos, superando a ideia de deu holandês, foi diretor do liceu de e onze, escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de fronteiras entre Oriente e Oci- Deventer), a presença da música (o que nos transformamos em Deus. Mas esta condenação papal justifica-se, na medida que as ideias de Eckhart ti- dente. Como observa essa gran- irmão mais novo era pianista e com- nham uma dimensão revolucionária. Elas foram acolhidas de adesão dos leitores aos seus positor), a intimidade com a língua e pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo eckhartiano à interioridade da fé e à união divina escritos? a literatura russas (a mãe era russa). como uma rebelião implícita à exterioridade “farisaica” de Além disso, o entorno sempre cheio uma hierarquia e de um clero moralmente decadente (pa- Mariana Ianelli – Podemos pen- rece que a coisa nunca mudou muito mesmo). Sua heran- de pessoas, todas muito diferentes, é ça influenciou, entre outros, significativamente, Martinho sar a universalidade de Etty, e o en- Lutero. Sobre o tema Místicas, conferir tema de capa da outro aspecto igualmente relevante. IHU On-Line, edição 133. (Nota da IHU On-Line) tusiasmo de seus leitores, sob vários Em Amsterdã, Etty foi governanta 11 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como San- aspectos. Do ponto de vista da lin- to Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e fi- na casa de Han Wegerif8, e ali con- lósofos dos primeiros anos do cristianismo, cujas obras fo- guagem, a metáfora de um “coração ram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo vivia diariamente com uma família e da filosofia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é pensante” talvez seja o que melhor 31 bastante heterogênea (a descrição a amplamente considerado como sendo o mais importante simboliza o caráter universal dessa dos padres da Igreja no Ocidente. Suas obras-primas são seguir é dela): uma alemã cristã, uma A cidade de Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line) interlocução, que não se dá (ou não 12 Fiódor Mikhailovich Dostoievski (1821-1881): um dos estudante judia, um pequeno-bur- se basta) no plano das ideias, mas no maiores escritores russos e tido como um dos fundadores guês social-democrata e um jovem do existencialismo. De sua vasta obra, destaca-se Crime fundo de um coração. Essa lingua- e castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamá- estudante cristão. Ela considerava zov. Ao autor, a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006, gem, que irradia de um ponto cen- dedicou a matéria de capa intitulada Dostoiévski. Pelos uma “tarefa” manter todos unidos, tral, tem ressonância em diferentes subterrâneos do ser humano, disponível em http://bit.ly/ ainda que os conflitos da época -va ihuon195. Confira, também, as seguintes entrevistas sobre culturas, filosofias e religiões. o autor russo: Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e estra- zassem cada vez mais para dentro nhamento, com Aurora Bernardini, na edição 384, de 12- 5 12-2011, disponível em https://goo.gl/xzfwFD; Polifonia Vale citar Karima Berger , e seu de casa. Depois, o convívio com o atual: 130 anos de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, livro Les Attentives6, de 2014. Esse círculo de Julius Spier9, o Conselho na edição 288, de 6-4-2009, disponível em https://goo.gl/ VvqQSt; Dostoiévski chorou com Hegel, entrevista com ensaio tem o espírito de uma imensa Judaico e, por fim, o campo de Wes- Lázló Földényi, edição nº 226, de 2-7-2007, disponível em https://goo.gl/Uap1Sb. (Nota da IHU On-Line) carta de amor assinada por uma lei- terbork, onde literalmente um mun- 13 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em tora de Etty. Argelina, muçulmana, do em miniatura se concentrava. Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In- teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé- Karima se identifica com a menina todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse Toda essa multidão de pessoas in- de uma fotografia (de um recorte de quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas teressava a Etty, ela buscava ouvir pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abando- jornal) que Etty mantém perto da nando a hipnose em favor da associação livre. Estes ele- mentos tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a sua escrivaninha, a quem ela chama ideia de que as pessoas são movidas pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes de “pequena marroquina” em seus 8 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e foram controversos na Viena do século 19 e continuam diários. Karima reconhece, também, dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, de sum acaba indo viver na sua casa, torna-se sua governante 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sig- no recinto de silêncio dentro de Etty, e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer Julius mund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit. o mihrab7 das mesquitas. Essa ami- Spier. (Nota da IHU On-Line) ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema 9 Julius Spier (1887-1942 ): psicólogo e quirologista judeu de capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/ zade profunda, inter-religiosa, de alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação tem dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a como título Quer entender a modernidade? Freud explica, Iris Edition. Seguiu um treinamento em canto clássico e disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Li- foi para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Ele entra em ne) 5 Karima Berger: escritora argelina, autora de vários ro- análise e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que 14 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra suíço. Colega mances e ensaios que têm como tema culturas árabe e fizesse “psico-quirologia” o seu trabalho, tendo em conta de Freud, estudou medicina e elaborou estudos no campo francesa e o questionamento de suas raízes espirituais. o seu dom de ler nas linhas das suas mãos as aptidões e o da psicologia, discutindo os conceitos de introversão e ex- Entre suas obras, destacamos Éclats d›islam (2009) et Les caráter do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, troversão. (Nota da IHU On-Line) attentives. Un dialogue avec Etty Hillesum (2014). (Nota onde se especializou em estabelecer diagnósticos médi- 15 Rainer Maria Rilke por vezes também Rainer Maria da IHU On-Line) cos a partir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver von Rilke (1875-1926): foi um poeta de língua alemã do 6 Albin Michel Littérature, 2014. (Nota da IHU On-Line) deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino século XX. Escreveu também poemas em francês. Rilke 7 Mirabe ou mirabi é um termo que designa um nicho em junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e forma de abside numa mesquita. Tem como função indicar (com quem ele teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas Berlim. Em 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção a direção da cidade de Meca, para qual os muçulmanos se perseguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde de versos de amor, intitulados Vida e canções (Leben und orientam quando realizam as cinco orações diárias. (Nota sua irmã já reside. É lá que vai conhecer Etty Hillesum. Lieder). Não exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) sempre, à custa de amigas nobres. (Nota da IHU On-Line)

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Kierkegaard16, Nietzsche17, Tolstoi18, o trágico se mistura com o cômico, estetismo e buscar uma “sinceridade a Bíblia, e tantos outros. Tudo isso o maravilhoso com o banal, o ba- cristalina”, essa na qual toda mística, atesta uma amplitude de afinidades nal com o terrível, igual à vida. Por segundo ela, deveria se basear. e conexões, uma empatia, uma aber- exemplo, nem tudo era pesadelo no Há um episódio que ocorre com tura, que possivelmente se desdo- dia a dia em Westerbork, havia tam- Etty em Westerbork que lembra o bra hoje numa multidão de leitores. bém momentos dignos de beleza, e ocorrido com Anna Akhmátova19 nas Acrescentando, finalmente, nosso Etty mostra isso maravilhosamente filas das prisões de Leningrado20. contexto de época, de corações afli- nas suas cartas. Ela não se contenta Etty pergunta a alguém, na plata- tos, um contexto mais que propício com esquemas nem maniqueísmos, forma dos transportes, enquanto para receber o que Etty tem a nos está sempre procurando ver mais observa os vagões serem carregados dizer. fundo e sob outras perspectivas. Sua de gente: “Conseguirá alguma vez visão de mundo não é só feita de pa- alguém descrever ao mundo exterior lavras e pensamento, é também uma o que aconteceu aqui?” Porque seria IHU On-Line – Que narrativa visão de mundo que nasce da experi- preciso discernir, no meio daqueles Etty Hillesum tece do mundo ência do corpo e do sentimento, e aí trens e barracões lotados, as pesso- que a cerca? é que reside a potência da escrita de as, cada uma com suas contradições, Etty: ela coloca à prova a linguagem Mariana Ianelli – Etty tece uma seus sonhos, seus medos. e, para isso, seu meio de exercício é a narrativa cheia de nuances, em que própria vida, as pessoas à sua volta, sua época. 16 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencialista IHU On-Line – Que grande dinamarquês. Alguns de seus livros foram publicados sob Ela tece realidades matizadas, por experiência reside e é relatada pseudônimos: Víctor Eremita, Johannes de Silentio, Cons- tantín Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Haufnien- assim dizer, em que paisagens do nos diários de Etty Hillesum? sis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbinder, Frater Tacitur- espírito coexistem com paisagens nus e Anticlimacus. Filosoficamente, faz uma ponte entre a Mariana Ianelli – A experiên- filosofia de Hegel e o que viria a ser posteriormente o exis- humanas. Se o cerco vai se fechan- tencialismo. Boa parte de sua obra dedica-se à discussão cia de um destino construído desde do com interdições, confiscos, con- de questões religiosas como a natureza da fé, a instituição dentro, sem autoboicotes. A arquite- da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. Autor de O Con- vocatórias, Etty continua a sentir ceito de Ironia (1841), Temor e Tremor (1843) e O Deses- tura de um espaço íntimo de silêncio pero Humano (1849). A respeito de Kierkegaard, confira a que respira um “ar não racionado” e entrevista Paulo e Kierkegaard, realizada com Álvaro Valls, desde onde a relação com o mundo e 32 que o céu sobre ela é sem fronteiras. da Unisinos, na edição 175, de 10-4-2006, da IHU On-Li- as pessoas se transforma. Ninguém ne, disponível em http://bit.ly/ihuon175. A edição 314 da Prisioneiro, para Etty, era o soldado IHU On-Line, de 9-11-2009, tem como tema de capa A nos pode fazer mal, Etty insiste em atualidade de Soren Kierkeggard, disponível em https:// para lá do arame farpado. O terrível dizer. Pode não restar mais nada, ela goo.gl/kZW87Z. Leia, também, uma entrevista da edição de sua época era Auschwitz, mas em 339 da IHU On-Line, de 16-8-2010, intitulada Kierkegaard continua a se sentir em casa debai- e Dogville: a desumanização do humano, concedida pelo outras circunstâncias, outra época, filósofo Fransmar Barreira Costa Lima, disponível em ht- xo do céu. O jasmineiro nos fundos tps://goo.gl/cr4qoE. (Nota da IHU On-Line) podia ser a Sibéria. Essa compreen- da sua casa pode ser completamente 17 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, co- são maior das coisas, de ver mudar a nhecido por seus conceitos além-do-homem, transvalo- destruído por um temporal, porque, ração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno roupagem, o cenário da história, sem retorno. Entre suas obras, figuram como as mais impor- em algum lugar dentro de Etty, esse tantes Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização mudarem os sentimentos, alimenta- Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A jasmineiro continua a dar flor. genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu va em Etty o interesse pelas pessoas, até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que afinal estão sempre a misturar, Portanto, é também a experiência que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs- che, foi dedicado o tema de capa da edição número 127 nelas mesmas, o bem e o mal. de uma liberdade inviolável, que vai da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó- se fortalecendo ao longo dos diários, sofo do martelo e do crepúsculo, disponível para down- load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos transformando o ânimo dessa mu- IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Uma vida sem esquemas lher, desbloqueando-a para certas Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein palavras, como amor e Deus, que an- à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis- Sabendo que a vida não cabe em ponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo tes ela evitava por soarem pretensio- esquemas, ela procura um rosto hu- radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual sas, até que passa a vivê-las na prá- discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger mano no soldado, ou percebe, além ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, tica. É também a experiência de uma parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferen- do ódio evidente dos nazistas, o ódio ça – Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des) repotencialização dessas palavras, menos óbvio, mas igualmente des- governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da como amor e Deus, num contexto revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Niet- truidor, entre os seus. De maneira zsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade que as mesmas parecem perder sen- da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia que Etty está sempre a buscar o que e disponível em https://goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de tido. 9-4-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à ela chama de uma nova linguagem tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// para dar conta dessas nuances. Aqui- bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) 18 Liev Tolstoi (1828-1910): escritor russo de grande in- lo que ela descreve como paisagem 19 Anna Akhmátova (1889-1966): pseudônimo de Anna fluência na literatura e na política do seu país, teve uma Andreevna Gorenko, foi uma das mais importantes poeti- importante influência no desenvolvimento do pensamen- do espírito ou vida interior é algo sas acmeístas russas. (Nota da IHU On-Line) to anarquista, concretamente, considera-se que era um que precisa se misturar à vida coti- 20 Cerco a Leningrado: foi um cerco militar à então ci- cristão libertário. Suas obras mais famosas são Guerra e dade de Leningrado (atualmente, São Petersburgo), na Paz, de 1865, onde ele descreve dezenas de diferentes diana, emanar do corpo e agir sobre então União Soviética (atualmente, Rússia), pelas tropas personagens durante a invasão napoleônica de 1812; e da Alemanha Nazista, Itália e Finlândia durante a Segunda Anna Karenina, de 1875, que traz a história de uma mulher a realidade. Quando a linguagem de Guerra Mundial. Durou cerca de 900 dias, de 8 de setem- presa nas convenções sociais e um proprietário de terras Etty se põe à prova desse modo, é bro de 1941 a 27 de janeiro de 1944. Foi um dos cercos (reflexo do próprio Tolstoi), que tenta melhorar a vida de mais longos e destrutivos da história das guerras. (Nota seus servos. (Nota da IHU On-Line) para abandonar qualquer espécie de da IHU On-Line)

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Etty denomina Julius Spier, que “porções de eternidade”, na pintura lhor a própria vida nessas filigranas aparece citado logo nas primeiras li- de Etty. de beleza que coexistem com o hor- nhas dos diários, o “parteiro da sua ror. Se alguém não experimenta essa Tudo acontece no presente e é alma”, o que “desenterrou Deus do outra duração, se alguém vai levado também atemporal. Naquele lugar, seu interior”. Os diários, justamente, de cá para lá, de estímulo em estí- árido em tantos aspectos, a vida (ao todo onze cadernos preservados mulo, a alma pode enfartar, como continua cheia de sentido para Etty. entre 1941 e 1943) como que dão diz Byung-Chul Han23 em A socieda- Nem tudo é melancolia e cansaço, o conta desse desabrochar da alma de do cansaço24, pensando nos nos- sofrimento é um componente entre de Etty. Entre os escritores mais sos dias. Era contra esse colapso da outros, só um dos tons, de uma pai- citados (e são muitos), há um que alma que Etty trabalhava dentro de sagem riquíssima em matizes. Cada ela denomina seu mestre: Rainer si mesma e na sua relação com o ou- dia em Westerbork, para Etty, é uma Maria Rilke. Vale a pena lembrar a tro, sempre buscando despertar para vida. O que importa para ela é “cem importância de Rilke nessa jornada vida essa interioridade com a qual a por cento ser”, esteja onde estiver, espiritual de Etty, tanto quanto a de poesia, em geral, se comunica. dure o tempo que durar. Podem ex- Julius Spier, porque o que os diários propriá-la de tudo, ela não se sente relatam é também a experiência ex- expropriada. A semente de esperan- traliterária de uma poesia possível, IHU On-Line – Qual a potên- ça, nesse caso, depende de um novo hoje, agora. cia de Etty Hillesum para se tempo ir se preparando, humana- compreender e encarar os de- mente, dentro de cada um. safios de nosso mundo/tempo IHU On-Line – Etty Hillesum com o amor e a alegria? faz da sua experiência em Wes- IHU On-Line – Num mundo Mariana Ianelli – Etty nos faz terbork, região próxima de que não para, numa sociedade ver uma dupla vida que todos leva- onde hoje é a Holanda, a busca da informação e do estresse, mos, mas de que nem todos se dão pela esperança. Quais os de- como o silêncio e a poesia po- conta: a vida ao redor, que a toda safios para compreender essa dem nos abrir caminhos para hora nos enreda em circunstâncias mística que é capaz de ver cor a busca interior, daquilo que é diferentes, e a vida que cada um vive no cinza da dor? Como nutrir a essencial? em si mesmo, espiritualmente. Essas 33 esperança em meio ao dester- vidas coexistem, se comunicam, atu- ro? Mariana Ianelli – O silêncio per- am juntas, e Etty dá expressão a esse mite uma abertura, uma brecha para Mariana Ianelli – Cento e qua- movimento, diga-se, nem sempre sentir uma outra duração, um outro renta anos antes de Etty frequentar harmonioso. Quando por fora tudo ritmo, que não se afina com essa vida a província de Drenthe, onde fica desmorona e o que está em jogo é o alucinada de estímulos por minuto, Westerbork, no norte da Holanda, que alguém tem por dentro, é então mas se afina com a experiência da Van Gogh21 esteve ali, e, durante que esta segunda vida é chamada a poesia, no que nela há de profunda- três meses, pintou alguns quadros e mostrar a sua força. mente pessoal. Porque Etty pratica- aquarelas de uma paisagem verde- va essa abertura, porque exercitava Etty insiste que ainda nos falta, aos -terrosa, de horizonte aberto, com cotidianamente a leitura de poesia ocidentais, aprender a sofrer, apren- um grande céu predominando sobre (entre outras leituras), em especial der a não repudiar a experiência da os campos. O que Etty acrescenta a poesia de Rilke, quando chegou o dor, porque a energia que alguém a essa paisagem, quando ela chega momento de ela deixar o conforto da empenha em resistir ao sofrimen- ali, primeiro como voluntária, de- sua escrivaninha em Amsterdã para to poderia estar sendo empenhada pois como interna do campo, é, por viver num dos barracões lotados de em algo mais fecundo. O que Etty exemplo, a surpresa de um tremo- Westerbork, esse refúgio de silêncio, aponta, em outros termos, é que não ceiro-roxo, um pôr do sol que ela vê fortalecido na prática, foi também há necessidade de enfatizarmos o sentada num caixote ou o retrato de com ela. sofrimento, sobretudo em tempos um momento de seu pai lendo Ho- mero22 para meninos doentes. São Enquanto chegavam e partiam os trens para o Leste, Etty abria uma 23 Byung-Chul Han (1959): pensador sul-coreano, teórico cultural e professor da Universidade de Artes de Berlim. 21 Vincent Willem Van Gogh (1853-1890): pintor neer- brecha naquele cotidiano cinzento É o autor de dezesseis livros, dos quais os mais recentes landês, considerado o maior de todos os tempos desde são tratados sobre o que ele chama de “sociedade do Rembrandt, apesar de durante a sua vida ter sido mar- para, de repente, olhar gaivotas. É cansaço” (Müdigkeitsgesellschaft), uma “sociedade da ginalizado pela sociedade. Sua influência no expressio- como se a poesia a ajudasse a ler me- transparência” (Transparenzgesellschaft) e seu conceito nismo, fauvismo e abstracionismo foi notória e pode ser neologista de shanzhai, que procura identificar modos reconhecida em variadas frentes da arte do século XX. Van de desconstrução nas práticas contemporâneas do ca- Gogh foi pioneiro na ligação das tendências impressio- pitalismo chinês. O trabalho atual de Han se concentra nistas com as aspirações modernistas. Hoje em dia várias há cerca de 3500 anos e consagrado o gênero épico com na transparência como uma norma cultural criada pelas das suas pinturas, entre elas Doze girassóis numa jarra, A as suas grandiosas obras: A Ilíada e a Odisseia. Nada se forças do mercado neoliberal, que ele entende como o casa amarela, Quarto em Arles, Os comedores de batas e sabe seguramente da sua existência; mas a crítica moder- impulso insaciável para a divulgação voluntária que beira Auto-retrato encontram-se entre os objetos mais caros do na inclina-se a crer que ele terá vivido no século VIII a.C., o pornográfico. Segundo Han, os ditames da transparên- mundo, sendo superados apenas por Pablo Picasso. Era embora sem poder indicar onde nasceu nem confirmar cia impõem um sistema totalitário de abertura à custa de portador de epilepsia e também de distúrbio bipolar (psi- a sua pobreza, cegueira e afã de viajante, caracteres que outros valores sociais, como vergonha, sigilo e confiança. cose maníaco-depressiva). (Nota da IHU On-Line) tradicionalmente lhe têm sido atribuídos. (Nota da IHU (Nota da IHU On-Line) 22 Homero: primeiro grande poeta grego, que teria vivido On-Line) 24 Vozes, 2015. (Nota da IHU On-Line)

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de sofrimento evidente, mas sim é Etty Hillesum. A lição que Etty de- IHU On-Line – Deseja acres- urgente cultivar um espaço de calma preende da guerra, e que transcen- centar algo? para restauração das nossas forças, de circunstâncias históricas, é uma Mariana Ianelli – Escrevi alguns um refúgio de silêncio, um momento lição espiritual. Cada um deve “re- artigos e crônicas sobre Etty Hille- de repouso. tornar ao próprio centro” e trabalhar sum e o campo de Westerbork. Tam- dentro de si a vida nova. Preparar a vida nova requer um bém um ensaio, “O livro de horas de trabalho justamente em favor da Etty Hillesum”, publicado na coletâ- vida e do que dá sentido a ela. “A nea Mística e Literatura (Fonte Edi- dor é imperativa, mas não a dor / da torial, 2015) organizada pelo prof. dor”, diz um poema de Adriana Lis- (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent) Faustino Teixeira. e Hanói (um dos Livros do ano do jornal O Globo). Publi- 25 boa , e esses versos poderiam ser de cou também grandes obras para crianças, como Língua de trapos (Prêmio de autor revelação da FNLIJ) e Um rei Tomo a liberdade de transcrever sem majestade. Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países. Seus poemas e contos saíram em publicações aqui dois poemas, também escritos 25 Adriana Lisboa: poeta e contista, autora, entre outros como Modern Poetry in Translation, Granta, Asymptote e a partir da leitura das cartas e dos livros, dos poemas de Parte da Paisagem e Pequena mú- revista Casa de las Américas. É mestra em literatura brasi- sica, e dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Sa- leira e doutora em literatura comparada pela UERJ. (Nota diários. ■ ramago), Um beijo de colombina, Rakushisha, Azul-corvo da IHU On-Line)

UMA FLOR ENTRE AS PÁGINAS E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus.

Etty Hillesum

Olhai o jasmim como cresce

Entre o muro lamacento e o telhado,

Como continua a florir no meio dos campos gelados – 34 Nem o lírio dos Evangelhos

Nem a rosa branca de Rilke

Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles.

[Do livro O amor e depois, Editora Iluminuras, 2012]

UMA ESTRELA NOS CAMPOS

Com Etty Hillesum seus crimes). o sorriso de Buda, um terreno baldio. E trabalhava mais: era uma estaca no mar, E já havia partido, muito antes Trabalhava. Trabalhava numa de partir, debaixo primavera fria era um pedaço de granito, era o próprio mundo de um céu sem palavras: era esperando ser como a lua, ser uma estrela nos campos, como um pasto: prestes a ser destruído. E tra- balhava mais: era a mulher já sem nome do uma vasta paisagem tranquila vagão número 12, – estava com os deportados, com os desaparecidos, na direção do Leste, cantando e desenterrava Deus de sob pe- com alegria. dras e cascalhos. estava com uma flor num re- tângulo de jardim. O caminho até o cais era feito entre soldados De minuto a minuto, forjando a [Do livro Tempo de voltar, Edi- calma em pessoa, ções Ardotempo, 2016] (todos tão pequenos por trás de

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O amor é central na mística feminina de Etty Hillesum Ceci Mariani observa como, pela entrega amorosa, a jovem chega a um Deus que habita nela e reconhece nele a face do outro, daqueles que a cercam

João Vitor Santos

e uma forma muito simplifi- mundo que recebe em seu corpo. Com cada, podemos afirmar que os seu seio aberto, deixa-se penetrar pela místicos, segundo a teóloga vida”, constata. Para ela, a jovem judia DCeci Maria Costa Baptista Mariani, são vive não só o encontro consigo. Parte de aqueles que por uma experiência subje- si, mas busca uma relação com o mun- tiva alcançam o divino. Mas esse não é do. “A mística de Etty Hillesum é uma apenas um divino celestial, distante. É mística relacional, ela chega a Deus na algo próximo, capaz de habitar em si e relação com o mundo e com o outro, li- nos que estão em nosso entorno, como dando com a realidade que recebe em si apreende Etty Hillesum na sua experi- e a inquieta. Não é apenas autoconheci- ência mística. “Essa mulher descobre, mento, um conhecimento de si para si no silêncio atento aos seus movimentos mesma. É um trabalho interior, um co- interiores, os caminhos para o encontro nhecimento de si para o outro”, explica. 35 com Deus que vai inspirar uma vivên- Ceci Maria Costa Baptista Ma- cia profunda do amor no cotidiano da riani é professora do Programa de vida”, destaca a professora. Sem pro- Pós-graduação em Ciências da Religião mover separações polares, Ceci destaca na Pontifícia Universidade Católica de que essa mística em Etty é ainda carre- Campinas e da faculdade de Teologia. gada de nuances femininas. “Quando Ainda integra a Sociedade de Teologia nos atemos aos testemunhos femininos, e Ciências da Religião - Soter. Possui percebemos que eles refletem uma for- bacharelado e Licenciatura em Filoso- ma própria de relação com a realidade”, fia pela Faculdade de Filosofia Nossa aponta. E explica: “o corpo feminino é Senhora de Medianeira, graduação em marcado por uma dinâmica centrípeta, Teologia Dogmática pela Pontifícia Fa- movimento de atração, sedução, dese- culdade de Teologia Nossa Senhora de jo de ser penetrada, tornar-se fecunda; Assunção, mestrado em Teologia Dog- diferente do corpo masculino, que tem mática pela Pontifícia Faculdade de uma dinâmica centrífuga que corres- Teologia Nossa Senhora de Assunção ponde ao movimento de penetração em e doutorado em Ciências da Religião relação ao objeto desejado”. pela Pontifícia Universidade Católica Assim, na entrevista concedida por de São Paulo. Entre suas publicações, e-mail à IHU On-Line, Ceci detalha em destacamos Mística e Teologia: Desa- que consistem esses movimentos de fios contemporâneos e contribuições. amor. “Os relatos místicos femininos Atualidade Teológica (PUCRJ, 2009, refletem, em geral, uma forma de en- v. 33) e Teologia e Arte: expressões de trega amorosa própria. Lendo os escri- transcendência, caminhos de renova- tos de Etty Hillesum, temos a sensação ção (São Paulo: Paulinas, 2011). de que ela vai trabalhando a cada dia o Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como o místico ria, essa mulher descobre, no silêncio liberdade. Em muitas narrativas con- e o feminino se revelam na ex- atento aos seus movimentos interio- sideradas místicas se observa uma re- periência de Etty Hillesum? res, os caminhos para o encontro com lação íntima entre o descentramento Deus que vai inspirar uma vivência e a liberdade. Dentro da tradição cris- Ceci Maria Costa Baptista Ma- profunda do amor no cotidiano da tã isso é muito presente. riani – Eu tenho como referência vida. A meditação, lemos no diário de para a compreensão do místico, a ca- Etty Hillesum, em registro de 8 de ju- Mística feminina racterização do fenômeno proposto nho de 1941, tem como objetivo con- por Velasco1. Esse autor vai distinguir verter o mais íntimo do próprio ser Esses traços que Velasco distingue, na experiência mística os seguintes em uma vasta planície vazia para que em princípio não oferecem elementos traços essenciais: (1) é uma experi- Deus e o amor possam entrar. Não o para falar de uma mística feminina, ência subjetiva que afeta o humano amor exclusivista que produz deleite pois são características essenciais que como um todo e tem lugar no centro indescritível e faz orgulhar-se do su- se percebe nos vários relatos místicos da pessoa; (2) é vivida de forma insu- blime que se sente, mas o amor que independentemente de gênero, atra- peravelmente obscura e sumamente se pode dedicar às pequenas coisas de vés de uma abordagem fenomenoló- certa; (3) é uma experiência passiva, cada dia4. gica. No entanto, quando nos atemos recebida como dom; (3) tem caráter aos testemunhos femininos, perce- extático, supõe descentramento; (4) bemos que eles refletem uma forma impõe uma forma específica de uso própria de relação com a realidade. das faculdades: a razão não atua ex- “Quando nos Do ponto de vista simbólico, esclarece plicando, compreendendo, mas escu- F. Dolto5, o corpo feminino é marcado tando, e a vontade não intervém do- atemos aos por uma dinâmica centrípeta, movi- minando, mas fazendo-se disponível mento de atração, sedução, desejo de e acolhendo; (5) impõe nesse sentido testemunhos ser penetrada, tornar-se fecunda; di- uma nova forma de ser que não se ferente do corpo masculino, que tem opera com base em possuir ou domi- femininos, uma dinâmica centrífuga que corres- nar, mas na disposição para entregar- percebemos ponde ao movimento de penetração -se e acolher, é uma experiência que em relação ao objeto desejado6. Sendo 36 2 tem caráter oblativo . que eles o relato místico, expressão de uma É certo que encontramos no diário busca pessoal, ele carrega as marcas de Etty Hillesum (escritos entre refletem uma da corporeidade. os anos 1941 e 1943), esses traços Os relatos místicos femininos refle- apontados por Velasco. Tendo forma própria tem, em geral, uma forma de entrega inicialmente objetivos terapêuticos, amorosa própria. Lendo os escritos de esses cadernos vão narrar o processo de relação com Etty Hillesum, temos a sensação de que a leva ao encontro com Deus a realidade” que ela vai trabalhando a cada dia o a partir do mergulho ao fundo de mundo que recebe em seu corpo. Com si mesma. Aconselhada por Julius Saindo da dispersão em busca do seu seio aberto, deixa-se penetrar pela Spier3 – psicoquirólogo com quem centro no interior de si, para além vida. Isso é simbolicamente feminino. começa um acompanhamento – a das aparências, se descobre a paz que Percebemos, em sua narrativa, que ela realizar meia hora de meditação diá- vem do descentramento. No diário encontra o mistério de Deus – faz a ex- ela diz, o importante é deixar de lado periência da totalidade – trabalhando o pequeno ego na relação com o tra- a vida que recebe em si, com suas ten- 1 Juan Martín Velasco (1934): teólogo espanhol, sacerdo- te, doutor em filosofia de Leuven, lecionou no seminário balho e com as outras pessoas (posi- sões e seus conflitos. de Madrid (1960) e, desde 1970, é professor de fenome- nologia na história da religião na Pontifícia Universidade ção 337), passar do pessoal ao supra- O seu itinerário espiritual inclui tam- de Salamanca. Suas obras incluem El encuentro con Dios. pessoal, o mais importante é o todo. Una interpretación personalista de la religión (1976) e bém a valorização da intuição, um Lenguaje científico, mítico y religioso (1980). (Nota da IHU Dirigindo-se a si mesma, aconselha: aspecto associado à experiência fe- On-Line) 2 VELASCO, 1994, p. 79. (Nota da entrevistada) “Hás de permanecer distanciada de minina, no sentido que descreve, por 3 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu tudo aquilo que atrai teu interesse. 7 alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- exemplo, Edith Stein , quando se refe- dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a Não deves aliar tuas forças interiores Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise a nenhuma outra coisa, não deves in- 5 Françoise Dolto (1908-1988): foi uma pediatra e psica- e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse vestir nelas, mas reservá-las para ti nalista francesa. Foi nomeada por Michel Foucault como da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu um dos signatários proeminentes da petição francesa de dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter mesma. (...) não deves desejar pos- 1977 contra as leis de idade de consentimento. (Nota da do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se IHU On-Line) especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- suir o outro, não exijas dele nada” 6 cf. DOLTO, Françoise. No jogo do desejo. Rio de Janeiro: tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir (posição 343, registro de junho de Zahar Editores, 1984, pp. 260-26. (Nota da entrevistada) deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino 7 Edith Theresa Hedwing Stein [Edith Stein] (1891-1942): junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa 1941). Isso proporciona uma grande religiosa alemã, a última de onze irmãos de uma família (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- judia que professava o judaísmo. Faleceu, aos 51 anos, seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua asfixiada numa câmara de gás, no campo de concentra- irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota ção de Auschwitz, na Polônia. Foi professora de Filosofia, da IHU On-Line) 4 (HILLESUM, 2011, posição 308). (Nota da entrevistada) discípula de Edmund Husserl. Para conhecer mais sobre

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE re a uma natureza própria da mulher minha pequena cabeça. E isso signi- que forma isso se reverte na re- voltada para o cuidado. Na mulher, fica ser ativa”. lação com o outro? ela afirma, existe uma tendência natu- Essa síntese a partir da vivência fe- Ceci Maria Costa Baptista Ma- ral à totalidade e integridade em dois minina da passividade que Etty Hil- riani – A mística de Etty Hillesum sentidos: ela própria gostaria de trans- lesum percebe tão bem, talvez seja é uma mística relacional, ela chega a formar-se num ser humano completo, uma das melhores contribuições que Deus na relação com o mundo e com total e universalmente desenvolvido, a mulher possa dar no resgate da pos- o outro, lidando com a realidade que além de querer ajudar também aos sibilidade de uma atuação no mundo recebe em si e a inquieta. Não é ape- outros a serem assim e de ter em vista fundada na comunhão e não na do- nas autoconhecimento, um conheci- sempre o ser humano completo quan- minação. mento de si para si mesma. É um tra- do lida com as pessoas8. No seu relato balho interior, um conhecimento de de 7 de outubro de 1941, Etty Hillesum si para o outro. Isso é extremamente escreve: “Não deves viver baseando- IHU On-Line – O que mais o atual e necessário em uma socieda- -se unicamente em tua inteligência, encanta da experiência mística de narcisista que entende o conhe- mas em fontes mais profundas, mais de Etty Hillesum? Por quê? cimento de si como autoajuda para permanentes, se bem que deves estar um bem viver superficial e não como agradecida à tua inteligência como Ceci Maria Costa Baptista Ma- duro trabalho de aprofundamento. precioso instrumento para aprofun- riani – O que me toca nos escritos Sua tarefa espiritual é encontrar pa- dar os problemas que sua alma susci- de Etty Hillesum é a transparência. lavras apropriadas que deem sentido ta. Dito mais sobriamente: o que tudo Seu esforço sincero de falar sobre à vida em ebulição – em tensão, em isso quer dizer-me é que, provavel- si mesma, convicta do bem que as contradição – e oferecê-las (sabe que mente, deveria ter mais confiança em suas descobertas espirituais podem o que resolve em si, resolve para mil minha intuição” (posição 500). proporcionar a outras mulheres. O outras mulheres). trabalho de enfrentar-se a si mes- ma buscando palavras apropriadas: É certo que esse seu esforço de “Não há remédio: terei que resolver encontrar palavras apropriadas Dor e amor meus próprios problemas. Sempre que refletem o sentido das coisas Olhando para o profundo de si, Etty tenho a sensação de que se os resolvo é a melhor dádiva, um grande 37 Hillesum encontra as palavras apro- para mim mesma, também os resol- ato de amor que alcança a todos, priadas para falar da passividade que verei para outras mil mulheres. Por atravessa o tempo e chega a nós com também marca simbolicamente o fe- isso tenho que enfrentar-me a mim grande poder de atuar em novas minino por estar associada à atitude mesma. Mas a vida é, certamente, sensibilidades. Escrever sobre a sua receptiva própria da corporeidade muito difícil, sobretudo quando não relação com o mundo é sua missão feminina. Vale ler todo o dolorido re- se encontram as palavras apropria- sagrada. Vale destacar a força do 9 gistro de 4 de setembro de 1941 onde das” . que escreve no registro de 26 de agosto de 1941: “Estou sumamente se encontram reflexões em que a dor Sua experiência espiritual é, de incomodada, com um estranho e de amor provocada pela consciência fato, eucarística. O relato de sua infernal desassossego que poderia de não poder ter o homem que ama dura busca pessoal não é apresenta- ser produtivo se soubesse o que fazer se mistura às dores experimentadas do como modelo de superação a ser com ele. Uma inquietude ‘criativa’. no enfrentamento dos desafios da seguido, mas como oferta de si. Vale Não do corpo – nem sequer uma realidade social conflituosa em que destacar esse belo extrato: “Sigo bus- dezena de apaixonadas noites de está imersa. No interior desse relato, cando fora a confirmação do que se amor poderia mitigá-la. É quase ela fala de passividade ativa, uma for- oculta em meu interior, sabendo que uma inquietude ‘sagrada’. ‘Oh, Deus, ma de expressão muito interessante só posso obter claridade empregan- toma-me em tuas grandes mãos e para descrever a síntese operada in- do minhas próprias palavras. Tenho converte-me em seu instrumento, ternamente entre atividade e passi- que acabar com essa preguiça, e em permite-me escrever...’”11. vidade: “Às vezes sinto que estou em particular com minhas inibições e um abrasador purgatório e que estou minhas inseguranças, se quero en- sendo forjada em outra coisa. Mas, contrar a mim mesma e, desse modo, IHU On-Line – Como a Moder- em quê? Somente posso ser passiva, encontrar aos demais. Devo obter nidade impacta na experiência deixar que me suceda. Mas também claridade e aprender a aceitar-me”10. sinto que todos os problemas de nos- mística? sa época e da humanidade em geral Ceci Maria Costa Baptista Ma- têm que ser combatidos dentro de IHU On-Line – Como Etty Hil- riani – Os registros de Etty Hille- lesum chega ao seu Deus e de sum podem ser considerados bons seu pensamento, consulte a edição 168 da revista IHU On- exemplos de uma mística que se con- -Line, de 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século 9 HILLESUM, 2011, posição 349, registro de 4 de agosto de XX. (Nota da IHU On-Line) 1941. (Nota da entrevistada) 8 STEIN, 1999, p. 282. (Nota da entrevistada) 10 Ibidem, posição349. (Nota da entrevistada) 11 posição 516. (Nota da entrevistada)

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figurou com as transformações mo- tes e com as forças da natureza (...)”. nu em meio aos restos monstruosos dernas. Ela pode ser caracterizada provocados pelas absurdas ações do Também Moltmann15, resgatando a como uma mística dos olhos abertos, homem”17. tradição judaica do cristianismo, em para usar a expressão de Metz12. Uma sua obra A fonte da vida: O Espírito Em seu diário, ela expressa um mística que conta com o desenvolvi- Santo e a teologia da vida (2002), vai compromisso espiritual com a ação. mento de uma consciência histórica refletir sobre a santidade como teste- Quer ajudar a Deus, pois entende crítica adquirida na modernidade e munho de vida que implica liberdade que Deus só pode nos ajudar se nos que tem no seu centro a compaixão. e justiça. Deus santifica o povo, ele dispomos a ajudá-lo. E ajudar a Deus Uma hermenêutica histórico-crítica afirma, caminhando junto com ele e significa para ela, fundamentalmen- possibilita ver mais claramente que promovendo um aprendizado de li- te, proteger o que há de Deus em nós o olhar messiânico de Jesus que não berdade e justiça: “Como companhei- e nos outros. No registro de julho de se destina aos pecados dos outros, ro de Israel na caminhada e também 1942, anotação intitulada “Oração mas aos seus sofrimentos. Descobre- no sofrimento, Deus santifica o povo matutina de domingo”, podemos -se com isso, no olhar de Jesus, “a que elegeu, fazendo dele a ‘luz das na- ler: “E tudo o que podemos fazer paixão por Deus como empatia pelo ções’, porque desse povo hão de vir o nesses dias e o que realmente im- sofrimento alheio, como mística prá- conhecimento de Deus, a liberdade e porta é proteger esse pouco de ti, oh tica de compaixão”13. a justiça, ou seja, a salvação do shalon Deus, em nós. (...) devemos defender Metz fala a partir do cristianismo, para todos os povos” (p. 54). Para os a sua morada em nosso interior até mas podemos observar esse espírito cristãos, ele acrescenta, santificação é o final”18. também em outras tradições. No juda- seguir a Jesus que vivenciou a contra- Podemos dizer que Etty Hillesum é ísmo, por exemplo, temos os escritos dição entre a vontade de santificação de fato contemplativa na ação, pois os de Heschel14 que tem um sentido pro- divina e o sentido humano da santida- seus registros vão mostrar um esforço fético muito forte. No livro intitulado de como privilégio. cotidiano de concentrar-se no que é O Schabat. Seu significado para o fundamental, fazer com que cada dia homem moderno (2002), ele faz uma seja uma pedra a mais na construção crítica à civilização técnica que fez do Etty do futuro que se mostra tão incerto. trabalho lugar de exploração: “A des- No mesmo registro de 12 de julho de 38 peito de nossos triunfos, caímos ví- A mística expressa nos registros 1942, ela escreve: “Oh Deus, tenho a timas do trabalho de nossas mãos; é do diário de Etty Hillesum tem esse suficiente força para sofrer em grande como se as forças que conquistamos mesmo sentido de uma espirituali- escala, mas existem mais de mil pre- nos tenham conquistado”, ele escreve. dade engajada na realidade e mar- ocupações diárias que me assaltam Para ele, o sábado, dia de abstenção do cada pela compaixão e pelo cuidado. sem aviso prévio como se fossem pul- trabalho, é um dia de resistência, “dia Diante da dura realidade da Shoá que gas. Assim que, por hora me coço e para estarmos conosco, um dia de se- toca a sua própria pele, Etty Hille- me digo: ‘Já recebi suficiente atenção paração do vulgar, de independência sum reza a Deus, dizendo: “Pretendo neste dia, os muros protetores de um de obrigações externas, um dia em que enfrentar o seu mundo, oh Deus, não lugar acolhedor ainda me rodeiam nós deixamos de adorar ídolos da ci- fugir da realidade para os meus be- como uma roupa gasta e familiar, há vilização técnica, um dia que não usa- los sonhos – embora eu acredite que suficiente comida para hoje, e a cama, mos dinheiro, um dia de armistício na belos sonhos possam coexistir com com lençóis brancos e cobertores luta econômica com nossos semelhan- a realidade mais horrível – e conti- quentes, me aguarda essa noite, en- nue a louvar sua criação, oh Deus, tão não permitas que desperdice um apesar de tudo.”16 Quer olhar tudo 12 Johann Baptist Metz (1928): teólogo católico alemão, átomo de minha força em mínimas professor de Teologia Fundamental, professor emérito na de frente, inclusive os piores delitos, preocupações materiais. Faça que Universidade de Münster, Alemanha. Aluno de Karl Rah- e “descobrir o pequeno ser humano ner, desfiliou-se da teologia transcendental de Rahner, em eu use cada minuto e o converta em troca de uma teologia fundamentada na prática. Metz está no centro de uma escola da teologia política que influen- um dia proveitoso, uma pedra a mais ciou fortemente a Teologia da Libertação. É um dos teó- nos cimentos sobre os quais construir logos alemães mais influentes no pós-Concílio Vaticano II. 15 Jürgen Moltmann (1926): professor emérito de Teolo- 19 Seus pensamentos giram ao redor de atenção fundamen- gia da Faculdade Evangélica da Universidade de Tübingen. nosso futuro tão incerto’” . tal ao sofrimento de outros. As chaves de sua teologia é Um dos mais importantes teólogos vivos da atualidade. memória, solidariedade e narrativa. Dele publicamos uma Foi um dos inspiradores da Teologia Política nos anos 1960 entrevista na 13ª edição, de 15-4-2002, disponível em e influenciou a Teologia da Libertação. É autor de Teologia http://bit.ly/ihuon13. (Nota da IHU On-Line) da Esperança (São Paulo: Herder, 1971) e Deus crucificado: 13 METZ, 2013, p. 19. (Nota da entrevistada) a cruz de Cristo como fundamento e crítica da teologia IHU On-Line – Podemos com- 14 Abraham Joshua Heschel (1907-1972): rabino nascido cristã (Petrópolis: Vozes, 1993), entre outros. Do autor, a preender a mística como uma na Polônia, de origem judaica hassídica (tinha entre seus Editora Unisinos publicou o livro A vinda de Deus. Escato- ascendentes várias lideranças ligadas ao movimento hassí- logia cristã (São Leopoldo, 2003). Confira a entrevista de crítica ao estado de opressão dico do leste europeu). Estudou na Universidade Humbol- Moltmann na IHU On-Line nº 94, de 29-3-2004 em http:// dt, Alemanha, e viveu nos Estados Unidos. Esteve ao lado bit.ly/ihuon94. Sobre o tema, Frei Luiz Carlos Susin deu que se vive? Por quê? de Martin Luther King em manifestações pela igualdade uma entrevista na edição 72, de 25-8-2003, disponível em de direitos entre brancos e negros. É autor de O Schabat: http://bit.ly/ihuon72.A edição 23 dos Cadernos Teologia Ceci Maria Costa Baptista Ma- seu significado para o homem moderno (São Paulo: Edi- Pública, de 26-9-2006, tem como título Da possibilidade tora Perspectiva, 2012), obra que, no contexto da espi- de morte da Terra à afirmação da vida. A teologia ecológi- ritualidade judaica, introduz a ideia de uma “arquitetura ca de Jürgen Moltmann, de autoria de Paulo Sérgio Lopes da santidade”, surgida não no espaço, mas no tempo: o Gonçalves. (Nota da IHU On-Line) 17 posição 632. (Nota da entrevistada) judaísmo seria uma religião da temporalidade, com signi- 16 registro de 29 de maio de 1942, posição 635. (Nota da 18 posição 645. (Nota da entrevistada) ficações relacionadas à eternidade. (Nota da IHU On-Line) entrevistada) 19 posição 652. (Nota da entrevistada)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE riani – Olhando para as narrativas descobre a quem pertence e a partir quecimento das capacidades organi- místicas, percebe-se muito bem a sua disso ordena a sua vida. zadoras das instituições religiosas, a dimensão crítica. Em vista de uma tendência forte é para a individuali- Nessa medida, é livre, resiste a toda aproximação mais íntima a Deus e zação do crer e do agir, para a afeti- forma de opressão. Uma espiritua- almejando um contato mais direto vização e a relativização das crenças” lidade mística, como vemos nos re- com o Absoluto, o místico, por um (p. 132). Faz parte da última fase do latos de Etty Hillesum já citados an- lado, vislumbra o essencial, central capitalismo de consumo a penetração teriormente, confere centralidade ao na existência. Rubem Alves20, um dos princípios do hiperconsumo no sujeito porque nutre a partir mesmo teólogo brasileiro de quem eu gosto interior da alma religiosa. da fonte, do Mistério Santo, do “De muito, falecido em 2014, fala que na onde” e do “Para Onde” de nossa exis- Por outro lado, observam-se ainda profundidade do humano habita uma tência. posturas que recorrem a um outro grande ausência, um desejo imenso polo, vemos claramente o crescimen- que indica que não estamos limitados to do fundamentalismo religioso. a essa vivência imanente e que somos Num contexto de relativismo pro- destinados à transcendência. “A mística de movido pela multiplicação de ofertas Vislumbrando o absoluto, o místico religiosas, muitos vão buscar socorro capta, por outro lado, a relatividade Etty Hillesum em propostas em geral dogmáticas e de todas as coisas. Ora, o poder da moralistas, que ofereçam respostas opressão está muitas vezes associado é uma mística claras e seguras. Os caminhos da mís- à idolatria, ao fato de se atribuir valor tica em contraposição a essa onda de absoluto ao que é relativo, transfor- relacional, ela superficialidade ou ao enrijecimento mar o que é mediação em fim último. tradicionalista, é busca de liberdade Esse é o grande debate empreendido chega a Deus apoiada no encontro com esse Misté- por Paulo21 na Carta ao Romanos em rio Santo com o qual nos deparamos torno do tema da Lei. Absolutizar a na relação com quando ousamos, na vida, empreen- lei religiosa ou moral, absolutizar um der mergulhos mais profundos, ins- sistema político, absolutizar uma for- o mundo e pirados nos testemunhos desses que, ma de organização social etc. é estar como Etty Hillesum, trilharam esse 39 sob o risco da escravidão. O místico com o outro” itinerário e encontraram as palavras IHU On-Line – Qual o espa- apropriadas para comunicar a beleza ço da mística numa sociedade das suas descobertas espirituais. 20 Rubem Azevedo Alves [Rubem Alves ] (1933-2014): pós-moderna? Que caminhos a foi um psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro. Foi autor de livros religiosos, mística pode nos abrir para en- educacionais, existenciais e infantis. É considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos cararmos os desafios de nosso IHU On-Line – Deseja acres- [carece de fontes], um dos fundadores da Teologia da Li- tempo? centar algo? bertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. (Nota da IHU On-Line) Ceci Maria Costa Baptista Ma- Ceci Maria Costa Baptista Ma- 21 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilícia, riani – Estamos caminhando sobre riani – Quero agradecer ao IHU por hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. En- tretanto, é mais conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É os escombros da Modernidade e ven- ter me convidado a debruçar sobre a considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais im- do a religião transformada em um experiência espiritual dessa mulher portante no desenvolvimento do Cristianismo nascen- conjunto de quinquilharias e sendo nesse momento de celebração do te. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu oferecida como mercadoria barata. advento, de contemplação do Misté- Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava 22 à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região Lipovetsky , em sua obra A felicida- rio da Encarnação. Seus escritos são de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia de parodoxal (2007), descreve muito realmente inspiradores, frutos de in- a Damasco, teve uma visão de Jesus envolto numa gran- de luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias bem a espiritualidade do consumo. tensa convivência com essa Presença por Ananias, que o batizou como cristão. A partir deste encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era Na sua interpretação, o retorno do re- amorosa que armou sua tenda nesse um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, ligioso é, na verdade, uma reconfigu- mundo. Espero que esse trabalho de fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo ração do cristianismo mais adequado vocês contribua muito para tornar fez muito pela difusão do Cristianismo entre os gentios e aos ideais de felicidade hedonista do essas belas palavras mais conhecidas é considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção fundamental capitalismo de consumo. Essa espi- entre nós. Lamentavelmente temos do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verda- deiramente transformou o cristianismo em uma nova reli- ritualidade de consumo se constitui, apenas uma edição em língua portu- gião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. ele afirma, sobre um fundo “de enfra- guesa do livro Uma vida interrom- A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível pida, publicada em 1981 pela edito- em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevância atual, dispo- 22 Gilles Lipovetsky (1944): filósofo francês, professor de ra Record e de muito difícil acesso. nível em https://goo.gl/bKZcM0. Também são dedicadas filosofia da Universidade de Grenoble, teórico da hipermo- Quem sabe, por conta de uma maior ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU em formação, dernidade, autor dos livros A Era do Vazio, O luxo eterno, Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sen- O império do efêmero, entre outros. Sobre o tema, confira divulgação desses escritos, possa- tido de realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, a edição 105 da revista IHU On-Line, edição 105, de 14- e a edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo 6-2004, intitulada Moda. Luxo. Uma sociedade cosmética, mos ganhar uma nova edição em contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã disponível para download em http://www.ihuonline.unisi- português aqui no Brasil. ■ no século I, disponível em http://bit.ly/ihuteo55. (Nota da nos.br/uploads/edicoes/1158262259.25pdf.pdf. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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REFERÊNCIAS

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A mística, uma vivência psíquica ? Não, uma experiência espiritual A experiência mística de Etty Hillesum foi registrada em seu Diário, que nas primeiras anotações demonstra haver alguma coisa que a incomoda, relata Ricardo Fenati

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin

s desafios para apreender a ex- experiência espiritual, e não de uma vi- periência mística de Etty Hille- vência psíquica”. sum “decorrem da natureza” da Etty Hillesum, menciona o professor, Oprópria experiência mística, que trans- é um exemplo de quem viveu a expe- cende a razão, pontua Ricardo Fenati. riência mística. “Se formos capazes de Segundo ele, numa cultura como a nos- acolher esse desconhecimento a que sa, “marcada pela onipresença do dis- pertencemos, é bem possível que isso curso”, aquelas “experiências que assi- nos aproxime de uma experiência reli- nalam os limites da linguagem tendem giosa. Esse foi o caso de Etty Hillesum. a ser ignoradas ou circular em meios Mas não se trata de um método. Ou muito restritos”. Em relação às experi- como diz ela: ‘A única coisa que uma ências místicas, frisa, “há uma dificul- pessoa pode fazer é pôr-se humilde- dade adicional, dada a deterioração que mente à disposição e deixar-se tornar a expressão mística vem sofrendo”. Na um campo de batalha. As questões têm 41 avaliação do professor, o “uso abusivo” de se albergar nalgum lado, precisam do termo mística tem diluído o seu sig- encontrar um lugar onde possam lutar nificado e é “preciso resgatar o seu uso e descansar, e nós, míseros humanos, mais apropriado que alude seja ao limi- devemos abrir nosso espaço interior a te da racionalidade, seja, sobretudo, à elas e não fugirmos’”. presença de uma Alteridade radical”. Ricardo Fenati graduou-se e fez Na entrevista a seguir, concedida por mestrado em Filosofia na Universidade e-mail para a IHU On-Line, Fenati ex- Federal de Minas Gerais - UFMG, cuja plica que a experiência mística “assina- dissertação debruçou-se sobre o tema la os limites do humano, numa civiliza- O mal-estar na epistemologia, a partir ção marcada pela ilusão da saciedade e de Gaston Bachelard. Fenati integra o da autossuficiência” e implica “um afas- Centro Loyola, de Belo Horizonte. tamento do eu”, “um mergulho no que o excede” e, portanto, “trata-se de uma Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor situa do houvesse... algo a prender-me”. E nada, num primeiro momento, pare- a experiência de Etty Hillesum como a ela sobram argúcia intelec- ce aplacar. E ela espera que, com o entre o sofrimento e a sede de tual e experiência existencial, o que tempo, tudo isso que, por ora, per- infinito. Por quê? lhe parece faltar não é oferecido pela manece oculto, venha à tona. Tem, vida em torno, que ela experimenta então, apenas 27 anos e espera mui- Ricardo Fenati – Se acompa- intensamente. Ou seja, o mal-estar to do futuro. nharmos o Diário de Etty Hillesum, a que ela se refere excede os recur- veremos, já nas primeiras anotações, sos disponíveis no meio à sua volta, o sentimento de que há alguma coisa alude a alguma coisa ainda não no- IHU On-Line – Quais os maio- que a incomoda, alguma coisa a ser meada, mas que, à maneira de uma res desafios para apreender a enfrentada, ainda que não se saiba ausência, permanece presente. Mais experiência mística de Etty Hil- exatamente do que se trata. É ela do que sofrimento, talvez devêsse- lesum? quem diz que “há algo que continua mos falar de padecimento, de um profundamente encarcerado dentro Ricardo Fenati – Inicialmente, pathos que invade a existência e que de mim... é como se lá bem no fun- os desafios que decorrem da natu-

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reza da experiência mística, sabida- de de nossa singularidade hu- bilitar a presença de Deus entre nós. mente opaca às investidas de uma mana. Mas como compreender razão bem-comportada. Numa cul- esse seu movimento em meio à tura marcada pela onipresença do dor de uma guerra gerada pelo IHU On-Line – Como o senhor discurso, experiências que assina- que de pior pode haver na per- apreende a presença do pensa- lam os limites da linguagem tendem versidade humana? mento de Julius Spier1 na místi- a ser ignoradas ou circular em meios ca de Etty Hillesum? Ricardo Fenati – Essa é a sin- muito restritos. E, no que se refere gularidade da experiência de Etty Ricardo Fenati – José Tolentino a experiências de natureza mística, Hillesum. Se havia, e havia, nela o Mendonça2, que prefacia a edição há uma dificuldade adicional, dada a pressentimento de algo a sua espe- portuguesa do Diário, fala de três deterioração que a expressão mística ra, de algo a ser desenterrado em encontros decisivos na vida de Etty vem sofrendo. O uso abusivo dessa meio a escombros, apenas com a Hillesum: “o primeiro tem o nome expressão – a mística de um time de perseguição dolorosa ao seu povo de uma pessoa; o segundo tem o futebol, por exemplo – dilui o seu e a si mesma é que esse pressenti- nome de um lugar; o terceiro não significado. Seria preciso resgatar o mento se torna um acontecimento. tem nome: é o encontro com o pró- seu uso mais apropriado que alude É ela quem diz: “Trabalho e vivo prio Inominável”. A pessoa do pri- seja ao limite da racionalidade, seja, com a mesma convicção e acho a meiro encontro é Julius Spier, que sobretudo, à presença de uma Alteri- vida prenhe de sentido, cheia de se ocupa da psicoquirologia, leitura dade radical. Também devemos lem- sentido apesar de tudo, embora já morfológica das mãos. Spier, à ma- brar que tradição católica entre nós não me atreva a dizer uma coisa neira de um tutor, é o primeiro a é pouca afeita à dimensão mística da dessas em grupo... O viver e o mor- indicar uma passagem na selva de experiência religiosa. rer, o sofrimento e a alegria, as bo- sentimentos que caracterizava a vida lhas nos meus pés gastos e o jasmim de Etty Hillesum. As palavras dela atrás do quintal, as perseguições, não poderiam ser mais claras: “ele IHU On-Line – Quais são as as incontáveis violências gratuitas, foi o obstetra de minha alma”. Com marcas e características dos tudo e tudo em mim é como se fosse ele, ela aprende a orar, a se referir a chamados místicos contem- uma forte unidade e começo a en- Deus. Lê a Bíblia, lê Sto. Agostinho3. porâneos? O que os diferem 42 tender cada vez melhor, espontane- É junto a ele que irá descobrir a sin- da mística medieval, especial- amente por mim, sem que ainda o gularidade do seu caminho. E é dele mente no que diz respeito à consiga explicar a alguém como as que escuta: “Tenho a impressão de busca do “eu interior”? coisas são”. ser um estado preparatório para um Ricardo Fenati – Essa é uma grande amor teu”. Um pouco mais pergunta muito ampla e seria mui- tarde, Julius Spier morre e ela pros- to difícil respondê-la. São muitos segue o caminho. os místicos contemporâneos, e eles “O campo pertencem a tradições religiosas muito distintas, o que inviabiliza da mística 1 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- uma caracterização mais aguda. dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a Iris – enquanto Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai Observo apenas dois pontos: o pri- para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise meiro diz respeito à implausibili- e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse experiência da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu dade da experiência mística, cuja dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter natureza assinala os limites do hu- do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se e enquanto especializou em estabelecer diagnósticos médicos a partir mano, numa civilização marcada da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino junguia- pela ilusão da saciedade e da autos- no. Depois de se divorciar de sua primeira esposa (com reflexão – é um quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas persegui- suficiência. Nesse sentido, o campo ções nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua irmã da mística – enquanto experiência já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota da lugar efetivo IHU On-Line) e enquanto reflexão – é um lugar 2 José Tolentino Calaça Mendonça (1965): teólogo e poe- efetivo de crítica da cultura. E o se- ta português. Ordenado padre em 28 de julho de 1990, de crítica da deslocou-se para Roma, onde terminou o seu mestrado gundo ponto é que costumamos nos em Ciências Bíblicas. Doutorado em Teologia Bíblica e escritor de peças de teatro, é igualmente diretor da re- esquecer que a experiência mística cultura” vista de teologia Didaskalia editada pela Faculdade de é um afastamento do eu, é um mer- Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Atualmente é professor auxiliar na mesma Universidade e gulho no que o excede. Trata-se de diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Talvez estejamos acostumados a uma experiência espiritual, e não de Conferência Episcopal Portuguesa. (Nota da IHU On-Line) acolher a presença de Deus apenas 3 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como Santo uma vivência psíquica. Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filóso- em circunstâncias pouco adversas, fos dos primeiros anos do cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e mas convém lembrar que não há da filosofia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é gesto humano, nem mesmo a mais amplamente considerado o mais importante dos padres IHU On-Line – Etty Hillesum da Igreja no Ocidente. Suas obras-primas são A cidade de absurda e dolorosa das guerras, ca- Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line) busca um Deus na profundida- paz de extinguir ou mesmo impossi-

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Mas a origem do Diário é outra, pro- cios. O que são essas pausas e cede da busca de compreensão de si, silêncios? E como os encontrar IHU On-Line – Julius Spier de- quando já está bastante próxima de hoje, num tempo de muitas fa- fendia que corpo e alma estão Jules Spier. É ela quem diz: “Vai ser las, ruídos e pouca escuta? estreitamente ligados e preci- um momento doloroso e difícil de sam estar em harmonia. Pode- Ricardo Fenati –Pausa e silêncio ultrapassar para mim: confiar o meu mos associar essa perspectiva são formas de combater nossa vora- ânimo reprimido a um insignifican- a uma lógica moderna que arti- cidade. A realidade nunca se oferece te pedaço de papel quadriculado. Os cula fé e razão? Por quê? ao nosso primeiro olhar, nunca se pensamentos são por vezes muito esgota nas interpretações habituais, Ricardo Fenati – Certamente nítidos e claros na minha mente, os não importa o quão compartilhadas que Spier defendia a interação entre sentimentos extremamente profun- elas sejam. A linguagem, o recurso corpo e alma. Lembremo-nos que a dos, é, porém, difícil conseguir es- à linguagem, é a primeira estratégia iniciação espiritual de Etty Hillesum crevê-los. Essencialmente, acho, tem de que dispomos para não nos su- junto a seu mentor foi acompanhada a ver com um sentimento de vergo- jeitarmos aos nossos hábitos, aos de exercícios físicos e de um inten- nha”. nossos costumes e, é claro, à pres- so convívio amoroso. Essa junção de são de tudo que é imediato em nós. corpo e alma não me parece cons- Mais adiante, também a linguagem tituir uma novidade para ela, cuja e as ideias a que recorremos podem vida amorosa, desde muito tempo, funcionar como um esforço de ple- nunca foi separada da inquietação “Pausa e nitude, como uma recusa do vazio, espiritual. Somos nós, uma vez mais, do inacabado, do incerto. Ora, esses na nossa tradição católica que temos silêncio são elementos são ingredientes inesca- dificuldade com essa aproximação. páveis da existência humana. Nas Com relação ao restante da questão, formas de palavras de Etty Hillesum: “Há al- não concordo. Aqui não se trata da turas em que gostaria de refugiar- articulação entre fé e razão, mas do combater nossa -me, com tudo o que existe em mim, reconhecimento da sacralidade do em meia dúzia de palavras, procu- corpo humano. voracidade” rar um abrigo para aquilo que há 43 em mim, em algumas palavras. Mas ainda não há palavras que queiram IHU On-Line – Etty Hillesum O Diário, que não foi escrito tendo me abrigar... E eu estou sempre à começa sua jornada interior em vista a publicação, é constitutivo procura de meia dúzia de palavras”. através do exercício da escri- do itinerário espiritual de Etty Hille- ta. Podemos compreender esse sum. É um exercício de intimidade, como um método para acessar uma forma de atenção a si mesma, Não importa muito, acredito, que o divino que habita em nós? um texto que recebemos do desco- o nosso tempo seja esse de muitas Por quê? nhecido que há em nós. Se formos falas e ruído e pouca escuta. A aven- Ricardo Fenati – Etty Hillesum capazes de acolher esse desconhe- tura da existência sempre ocorre na é intelectualmente talentosa. Leitora cimento a que pertencemos, é bem singularidade de cada um de nós. E de Rilke4 e Dostoiévski5, professo- possível que isso nos aproxime de como estamos tratando de Etty Hil- ra de russo, certamente seguiria a uma experiência religiosa. Esse foi lesum, convém lembrar que a sua carreira acadêmica, não fosse o seu o caso de Etty Hillesum. Mas não se experiência, de densidade mística assassinato tão precoce. Escrever, trata de um método. Ou como diz insuspeita, ocorre em circunstân- portanto, estava no seu horizonte. ela: “A única coisa que uma pessoa cias as mais desfavoráveis possíveis, pode fazer é pôr-se humildemente em meio a uma violência estontean- 4 Rainer Maria Rilke (1875-1926): um dos mais impor- à disposição e deixar-se tornar um te. tantes poetas de língua alemã do século 20 por sua obra inovadora e seu incomparável estilo lírico. (Nota da IHU campo de batalha. As questões têm On-Line) de se albergar nalgum lado, preci- 5 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores sam encontrar um lugar onde pos- IHU On-Line – Como Etty do existencialismo. De sua vasta obra, destaca-se Crime e castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. Ao sam lutar e descansar, e nós, míseros Hillesum compreende o amor autor, a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006, dedicou a humanos, devemos abrir nosso espa- e de que forma esse amor a co- matéria de capa intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos do ser humano, disponível em http://bit.ly/ihuon195. Con- ço interior a elas e não fugirmos”. necta ao divino? fira, também, as seguintes entrevistas sobre o autor russo: Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e estranhamento, com Ricardo Fenati – A experiên- Aurora Bernardini, na edição 384, de 12-12-2011, dispo- nível em https://goo.gl/xzfwFD; Polifonia atual: 130 anos cia amorosa, nas suas diversas di- de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, na edição 288, IHU On-Line – No seu proces- mensões, sempre esteve presente de 6-4-2009, disponível em https://goo.gl/VvqQSt; Dos- so de busca interior, Etty Hille- toiévski chorou com Hegel, entrevista com Lázló Földényi, na vida de Etty Hillesum. No seu edição nº 226, de 2-7-2007, disponível em https://goo.gl/ sum descobre a necessidade de Uap1Sb. (Nota da IHU On-Line) Diário, ela diz que “Eroticamente respeitar as pausas e os silên- sou refinada, e quase diria suficien-

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temente experiente para figurar en- com ela que aprendemos, deve nos tre o número das boas amantes”. E tomar a tal ponto que nos esque- devemos lembrar que manteve, du- çamos do que há de infinito na po- rante muito tempo, uma dupla liga- “A história, tência amorosa. Resistimos porque ção amorosa, com Jules Spier e com é nosso dever, resistimos porque Han Wegerif6, em cuja casa morava. tão curta, tão nada é mais real do que aquilo que Mais adiante, após a sua aproxima- gera nossa esperança. Para terminar ção mais intensa com a experiência intensa, de com palavras de Etty Hillesum: “... a religiosa, a disposição amorosa ca- vida é grandiosa e boa e interessan- minhará em mais direções. O seu Etty narra uma te e eterna, e quando uma pessoa trabalho como enfermeira no cam- coloca a tônica sobre si própria e se po de Westerbork, o lugar do segun- crescente debate e se enfurece, a pessoa igno- do encontro a que se referia Tolenti- ra a grande e eterna corrente que é no, e o terceiro, o seu encontro com disponibilidade, a vida... Então aparece de repente, o Inominável. E aí o que ela escreve batendo as asas com grande enver- e vive é inesquecível: “Vou ajudar- uma crescente gadura, um pedaço de eternidade -te, Deus, a não me abandonares”. sobre mim”. Mais tarde escreverá: “Às vezes, entrega e, pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os planos mesmo, um IHU On-Line – Deseja acres- que tens para mim, tu Deus... Hoje, centar algo? vendo bem, vivi coisas grandiosas progressivo Ricardo Fenati – Recomendo e esta noite, também, meu Deus, vivamente a leitura do Diário e das agradeço-te por eu poder suportar repouso Cartas de Etty Hillesum. Estão edi- tudo e por haver poucas coisas que inquieto em tados em Portugal, pela Assírio e não ponhas no meu caminho”. Ou Alvim. No Diário, há um prefácio ainda: “Dentro de mim há um poço Deus” notável de José Tolentino Men- profundo. E lá dentro está Deus. 44 donça. E lamento que uma mística Às vezes consigo lá chegar. Mas IHU On-Line – Etty Hillesum da grandeza de Etty Hillesum seja, acontece mais frequentemente ha- transforma a dor em potência do ponto de vista editorial, pouco ver pedras e cascalhos no poço, e aí alegre de resistência. O que difundida entre nós, ausente mes- Deus fica soterrado. Então é preciso essa sua experiência pode nos mo das editoras confessionais, o desenterrá-lo”. A história, tão curta, dizer acerca de nosso tempo? que talvez seja explicado pela qua- tão intensa, de Etty narra uma cres- Ricardo Fenati – Etty Hillesum, se ausência da tradição mística no cente disponibilidade, uma crescen- mais de uma vez, referindo-se aos catolicismo brasileiro. Contamos te entrega e, mesmo, um progressivo alemães ocupantes do território ho- apenas com um volume publicado repouso inquieto em Deus. landês, diz que não deveríamos nos pelas Paulinas (15 dias de oração deixar aprisionar pelo ódio. Resistir com Etty Hillesum). Tenho notícia ao que avilta a condição humana, o de uma edição do Diário no Brasil, 6 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e que procura banalizá-la, será sem- editora Record, 1981, mas trata-se dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- pre um dever. Foi o que ela fez em sum acaba indo viver na sua casa, torna-se sua governante de um volume difícil de ser encon- e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer Julius circunstâncias mais do que difíceis. trado. Em sites, é mais fácil encon- Spier. (Nota da IHU On-Line) Entretanto, nenhuma dor, é ainda trar material sobre Etty Hillesum. ■

Leia mais - O trânsito da mística no espaço do conhecimento. Entrevista com Ricardo Fenati, pulicada na revista IHU On-Line número 435, disponível em https://bit.ly/2EmRDeA.

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Etty Hillesum e a criação diante do abismo Segundo a socióloga Gabriela Acerbi, os diários de Etty Hillesum são um apelo à criação e uma recusa a condicionar a experiência ao abismo

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin

catástrofe, seja como condição ciganas da etnia callon na região do de vida ou como mote para a sul de Minas Gerais para o desenvolvi- produção intelectual de Etty Hil- mento de suas pesquisas. “Em uma das Alesum, é o que desperta o interesse da pesquisas que trabalhei direcionada socióloga Gabriela Acerbi para a obra às políticas de financiamento social e dessa jovem judia, que narrou em car- moradia popular, passei bastante tem- tas e diários a sua experiência durante po tentando redimensionar a vida e as a Segunda Guerra Mundial. “Etty é uma formas de resistir nesse campo social descoberta recente para mim e o que eu da habitação que é também financeiro e sei sobre ela, no sentido daquilo que que está imerso num sistema de crédi- me instiga em relação ao seu trabalho to, dívida e estruturações do mercado”, e sua vida, é que ela foi uma escritora observa. “Aos poucos mergulhando em na catástrofe. Na catástrofe, enquanto políticas públicas e lógicas de gestão, se uma condição de vida e de produção in- entende que a vida é feita, sim, a partir 45 telectual, mas também sobre a catástro- do que o Estado oferece, mas também a fe, enquanto um tema a ser abordado, partir de todas as coisas e situações nas que está refletido nos seus escritos de quais ele se ausenta. E nesse sentido, um modo muito particular, por outras a vida é muito criativa. Podemos usar vias. E é por isso que seu trabalho me o mesmo raciocínio para pensar nas afeta tanto”, diz. ocupações indígenas, quem sabe nas Na entrevista a seguir, concedida por ocupações urbanas na cidade, ou nos e-mail à IHU On-Line, Gabriela Acerbi movimentos campesinos. São tantas as menciona que, através dos diários de ausências institucionais (sejam elas de Etty, “somos convidados a um percur- esquerda ou direita), são tantas as der- so onde fronteiras entre o íntimo e a rotas quase corriqueiras – de um pon- noção de humanidade, entre o homem to de vista estrutural – que a vida vai e a natureza, entre nós e a metafísica sendo promovida por outros meios: um divina estão borradas, se atravessam e tal modo de fazer retalhado, também são constantemente redefinidas”. Nos com tudo aquilo que falta. E isso tudo é escritos da jovem judia, que foi “emba- muito produtivo, como eu já falei ante- lada pelo estado de guerra e políticas de riormente, é tecido também a partir dos morte”, também é possível encontrar a abismos colocados”, afirma. sua “crença na criação, de que é possível Gabriela Acerbi é graduada em criar mesmo sem escrever uma palavra Ciências Sociais pela Universidade Fe- ou pintando um quadro, mas moldando deral de Santa Catarina - UFSC. Atu- uma vida interior”, pontua. almente é mestranda em Ciências So- Gabriela também encontra a potên- ciais, com ênfase em Antropologia pela cia criativa dos poemas de Etty na vida Pontifícia Universidade Católica de São cotidiana, ao acompanhar experiências Paulo - PUC-SP. em moradias populares e em ocupações Confira a entrevista.

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IHU On-Line – O que você co- toda barbárie. E isso causa bastante gar para tudo. Em mim há a Terra e nhece acerca de Etty Hillesum estranhamento e ao mesmo tempo também o céu”. e sobre a sua forma de resis- admiração. Etty morreu antes de completar 30 tência à dor, ao sofrimento e à Etty é uma mulher que vai morrer anos, em setembro de 1943. Ela tam- amargura gerados pela guerra? no campo de extermínio e que tem bém teve todos os seus familiares, Gabriela Acerbi – Etty é uma uma escrita embalada pelo estado pais e os dois irmãos exterminados descoberta recente para mim e o que de guerra e políticas de morte, mas pelo nazismo e o momento em que eu sei sobre ela, no sentido daquilo que ao mesmo tempo está cavando começou a escrever foi exatamente que me instiga em relação ao seu tra- fugas para o corpo capturado em quando o domínio nazista se inten- balho e sua vida, é que ela foi uma Auschwitz. E sua poética vai sendo sificou na Holanda, não muito dis- escritora na catástrofe. Na catástro- costurada entre esses dilaceramen- tante de onde a pequena Anne Frank fe, enquanto uma condição de vida tos, de corpos, de subjetividades, de também escrevia. e de produção intelectual, mas tam- cidades, de organizações comunitá- Ainda sobre seus diários em tem- bém sobre a catástrofe, enquanto um rias, de famílias, de relações, da es- pos de guerra, tenho a impressão tema a ser abordado, que está refle- piritualidade... Mas diante disso, ela de que somos convidados a um per- tido nos seus escritos de um modo está oferecendo algo que é mais do curso onde fronteiras entre o íntimo muito particular, por outras vias. E que um testemunho diante do horror e a noção de humanidade, entre o é por isso que seu trabalho me afeta e do abismo. homem e a natureza, entre nós e a tanto. metafísica divina estão borradas, se Etty foi uma jovem judia que viveu atravessam e são constantemente intensamente a atmosfera da Segun- redefinidas. Lendo alguns trabalhos da Guerra Mundial e seus desdobra- de análises sobre a produção de Etty, mentos mais violentos e íntimos, enquanto uma tradição também es- aqueles que afetaram os corpos du- “Ela foi uma piritual e um percurso de resistência rante o avanço das ocupações nazis- escritora na e libertação, há autores que desta- tas. É nesse contexto do holocausto, cam o distanciamento de Etty de 46 dessa matança de mais de oito mi- catástrofe” um olhar autocentrado, assim como lhões de pessoas consideradas “in- o abandono de representações con- dignas de viver” que Etty começou vencionais da vida e do eu. Tzvetan a escrever o primeiro dos seus oito Crença na criação Todorov1 (2016) vai defender que diários, isso em 1941, na Holanda, Etty se afasta progressivamente da dois anos antes de ir para o campo Em um de seus famosos trechos, tradição do pensamento ocidental, de concentração. E é nesse contexto Etty reforça sua crença na criação, do predomínio do sujeito, onde a sua também que ela se produziu enquan- de que é possível criar mesmo sem recusa e resistência propõem um ca- to escritora e intelectual. É nesse escrever uma palavra ou pintando minho em que não há a prevalência universo tirânico que ela se formou um quadro, mas moldando uma vida do eu centralizador, nesses termos e se fez enquanto uma mulher que interior, o que nos faz pensar muito que estamos eurocentricamente fa- estava ali elaborando, criando e re- nessa situação dos campos de con- miliarizados. E também, que ela pro- formulando os desdobramentos centração onde há uma paralisação põe um direcionamento outro para políticos do seu tempo à sua ma- do corpo, que aprisionado, não pode que a vida pudesse ser salvaguar- neira. Elaborações éticas, estéticas, fazer muita coisa diante do horror. E dada, com novos parâmetros, como políticas, poéticas e místicas sobre ela está atenta a essa dimensão me- um recomeçar do zero na Europa o caos instaurado, também sobre si nor, que é também por onde compar- pós-guerra. Nesse sentido, é mais do mesma e dimensões da experiência e tilha a sua dor. Quando escreve, Etty que uma oposição ao nazismo, mas do ser, num sentido mais filosófico e vai povoando essa vida confinada e uma recusa de lugares e modos de tecidas nesse estado de guerra total. perseguida com outras forças, como, agir. Desses lugares afogados nos Um estado de guerra que refletia a por exemplo, as forças da natureza poços de ódio – em suas palavras consolidação de uma racionalidade a quem ela sempre se refere. Lendo – onde as retidões não vão vir em científica, totalitária, instrumental, seus diários, fico com a impressão de benefício de um “eu” autocentrado e que atuou sobre natureza, vidas, que Etty redimensiona sua vida cap- nem apenas por ele. E nessa dimen- territórios e corpos, numa realidade turada, por exemplo, quando insiste são existencial que é outra, Etty es- de violência tão intensa que dificul- em dizer que em seu corpo correm tava sempre recrutando os elemen- ta qualquer reflexão no sentido de largos rios, situam-se altas monta- tos da natureza, experimentando reparações. E se você se dedicar aos nhas. Ou que nos matagais do seu árvores enquanto bosques inteiros, escritos de Etty, vai encontrar ali for- desassossego – palavras suas – há largas planícies rasas do seu sossego ças imponderáveis, muito sutis, mas 1 Resistenti. Storie di donne e uomini che hanno lottato também potentes, de uma capacida- e entrega. “Todas as paisagens estão per la giustizia [Resistentes. Histórias de mulheres e ho- dentro de mim. Há igualmente lu- mens que lutaram pela justiça, em tradução livre], Ed. Gar- de de seguir acreditando diante de zanti, 2016. (Nota da entrevistada)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE hospedando em si as flores, trazendo prisão, que aconteceu em 1979 por modo capitalista e as condições ma- a terra. Trazendo-as para esse ter- questões políticas associadas ao seu teriais e subjetivas que vão fazendo a ritório existencial que afrontava os envolvimento na causa operária e vida ruir a partir desses domínios e muros dos campos de concentração lutas autônomas italianas. Apesar referentes. Diante disso, Negri é bom perseverando na vida pacientemen- de abordagens e contexto distintos também porque nos ajuda a pensar a te, de forma recolhida e até mesmo entre Etty e Negri – que também partir das derrotas, com sua análise esvaziada, que era íntegra e criativa. perdeu o pai assassinado por fascis- do sofrimento que é uma chave para tas – promovi esse encontro, pois resistir. ambos remontam questões interes- Voltando a Etty, tenho que ela IHU On-Line – Pensando santes sobre tal compartilhamento está produzindo diante do avanço ainda a partir da experiência da dor, as possibilidades da criação e dos campos de extermínio e há aí de Etty, como compreender o desdobramentos possíveis diante de uma experiência ética da dor (tam- avanço do individualismo e da condições opressivas. É uma ligação bém através do corpo), do domínio intolerância no mundo de hoje? imaginária sobre condições de vul- nazista sobre o existente – a quem E como, em meio à aspereza das nerabilidade que estruturam proces- ela responde desmedidamente, em relações cotidianas, acreditar sos de reinvenção da vida. direção ao amor, com sua experiên- na possibilidade de mudança cia mística e religiosa. Etty não está tanto através do amor quanto recusando falar apenas do horror, da alegria? ela está recusando condicionar sua Gabriela Acerbi – Entre as várias “Lendo seus experiência ao abismo. Ela cria so- questões que podemos encontrar diários, bre ele. Em seus diários, toca Deus, nos textos de Etty, vejo seu apelo à a humanidade e a si mesma. No livro criação como uma estratégia de fuga, fico com a de Negri, ele está retomando a his- assim como uma forma de recusa à tória bíblica de Jó e sua experiência proliferação de práticas de ódio, tira- impressão com Deus também diante do sofri- nia e dominação. Etty descreve como mento. Jó confronta Deus, mas tam- a barbárie nazista despertava uma de que Etty bém se aproxima dele, depois cons- barbárie idêntica, íntima, que se pu- trói radicalmente um mundo novo. 47 desse, empregaria os mesmos méto- redimensiona Um mundo liberto – e é sobre essa dos de poder para fazer o que está libertação que Negri vai tecer a ideia na ordem do seu desejo. De acordo sua vida de criação, onde a potência forma-se com ela, sobre essa barbárie que se- na dor, mas se desenvolve na relação ria nossa, pessoal, talvez corporal, capturada” com o ser. deveríamos rejeitar arduamente e Para mim, todas essas coisas vão interiormente, o que seria um com- sendo articuladas a nos permiti- bate a qualquer ódio possível de ser Avanço do individualismo e rem pensar em modos de fazer que cultivado. Seria necessário manter da intolerância são políticos, onde as crises vão se acesa tal combatividade, coloca Etty, constituindo como caminhos de mas nunca, em hipótese alguma, ela E se a intenção é falar sobre o avan- luta e reconstrução do ser. E nesse poderia passar por um regime de ço do individualismo e da intolerân- sentido, gosto muito quando o au- ódio e violência, compartilhando o cia no mundo de hoje, a militância tor contrapõe a incomensurabilida- idioma desses sistemas dominado- e o trabalho de Negri são bom en- de das dores diante daquilo que ele res, opressivos. contro para reformular as questões desse individualismo, já que o que chama de cultura da medida, um Quando comecei a ler Etty e pensar ele anuncia relaciona-se diretamen- fanatismo instrumental pelo cálculo, sobre essas questões de intolerân- te com as condições de desigualda- esse esforço de racionalização que cia e sofrimento, lembrei muito de de no modo de produção capitalista ao mesmo tempo que se expande, um livro do filósofo italiano Anto- (que nos é uma condição e muito expõe sua decadência e insustenta- 2 nio Negri , chamado Jó a força do nos têm feito pensar atualmente em bilidade; uma ruína das leis. É as- escravo. Quando escreveu o livro, relação aos seus horizontes neolibe- sim que Negri associa sua ânsia por o autor cumpria seu quarto ano de rais). Penso que a questão da into- libertação à incomensurabilidade de lerância liga-se a tudo que sustenta uma dor que não pode ser medida, e esse modo que nos paralisa e esgo- a consequência disso é que só a pai- 2 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana ta, estruturalmente, politicamente, xão da criação poderia responder à de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais derrocada da medida. “Lá onde as italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império (Rio economicamente, afetivamente e de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, pu- que também tem a ver com dimen- velhas medidas caíram, era preciso blicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael sões da colonialidade do poder, com criar novas, e a partir daí a paixão Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de residia inteiramente na capacidade 29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis- a fabricação da miséria humana do ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) de mover-se com alegria para além

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da medida.” (Negri, 2002). É a des- patriarcado, no campo de desigual- a lembrança daquelas manifestações crição de uma dor ontológica, como dades no mundo do trabalho, no mobiliza, uma euforia da ordem do destaca Pelbart3 (2013), o que na ló- genocídio indígena, das populações caos... Mas as Jornadas de Junho gica negriana é também uma recusa pretas e periféricas. Que é um mar foram tanta coisa que nós seguimos ontológica. Uma forma de pensar as de gente, de universos, de corpos e aqui falando sobre elas, retomando existências por aquilo que dói e tam- de experiências que não se entregou os acontecimentos pra tentar elabo- bém por aquilo que elas constroem diante das derrotas. Mas produziu rar o que estamos vivendo agora, já recusando, como Etty, que recusa se sobre elas, deu sentido à vida, perpe- que essas coisas parecem estar en- resignar às condições do extermínio, tuou modos de ocupar as cidades, os trelaçadas. Cinco anos depois das trazendo em seus diários não só dor, campos, aliançadas localmente em ruas cheias de gente, de exigências mas também aquilo que florir, que múltiplas experiências produzidas a inegociáveis, múltiplas, quase inco- pode enunciar uma nova comunida- partir das suas dores incomensurá- municáveis, a gente não sabe bem o de. veis e dos seus mundos, que se man- que achar daquele emaranhado que tiveram, que não deixaram de exis- era muito potente e também assus- E quando vocês me perguntam, tir. Penso que isso é responder com tador – no sentido daquilo que sen- como, em meio à aspereza das rela- paixão e alegria, ainda que tudo... timos diante do desconhecido, como ções cotidianas, acreditar na possi- Serve pra pensar em todas as vidas me lembra em um bilidade de mudança tanto através matáveis que resistiram... de seus poemas: “uma espécie de pu- do amor quanto da alegria, acredito dor que se tem diante do que é gran- que o caminho seja por aí. Redimen- de demais”. sionar a potência da dor e daquilo que ela pode recusar e criar. Dado ao “Vejo seu apelo Mas quando vocês me perguntam contexto em que vivemos, o desenho como ficam todos aqueles sonhos desse Brasil que ganhamos agora em à criação como diante desse atual avanço da extre- outubro de 2018, mas também a par- ma direita, e o que resiste num Bra- tir de toda nossa trajetória histórica, uma estratégia sil amargurado pela crise econômi- acredito que precisamos redimen- ca, primeiro gosto de lembrar onde sionar as criações, a potência da ale- de fuga, estão enraizadas essas amarguras e 48 gria e estar atento ao que vem sen- também parte daqueles sonhos. Um do produzido. Podemos pensar que assim como dos pesquisadores de Junho em que desde as ocupações portuguesas em confio bastante é André Fogliano nosso território, nossas primeiras uma forma (2018). Em sua cartografia afetiva experiências coloniais e os proces- de recusa à dos enunciados e imagens do levante sos de escravidão, paixões, alegrias e brasileiro, ele tratou Junho como um formas de resistir estão sempre sen- proliferação acontecimento-problema, experiên- do tecidas diante das suas derrotas cias-limite que desestabilizaram o (que são inúmeras e desiguais, acu- de práticas de atual estado de coisas e de discursos muladas historicamente). Mas elas com o qual a governamentalidade do estão aí, cotidianamente consolidan- ódio, tirania e capitalismo mundial integrado ope- do forças escapáveis e muitas vezes rava no país e no mundo. Sua hipóte- imperceptíveis, mas imensamente dominação” se descreve como essas insurreições potentes. desarmaram estados de percepções estabelecidos, que se convencionou Penso tudo isso num sentido polí- IHU On-Line – Você viveu in- chamar de Antropoceno – e então tico-prático, nos modos cotidianos tensamente as reivindicações há no seu trabalho uma abordagem de levar a vida, nas alianças comuni- de 2013 e as possibilidades de que chama atenção para essa crise tárias que seguem as margens e nas transformações sociais profun- do referente, em terras brasileiras e bordas, as lutas diárias e o cultivo do das implicadas nas marchas e também como um problema geral, estar junto, principalmente frente manifestações populares. Hoje, de mundo, que traz à tona o confron- às desigualdades que se alastram. cinco anos depois, e com o avan- to de vários mundos e modos de vida Podemos pensar nas dimensões co- ço da extrema direita, como fi- que vinham entrando em confronto loniais do racismo, nas forças do cam todos aqueles sonhos? E o com parâmetros da governamenta- que resiste num Brasil amargu- lidade vigente. Como já vinha sendo 3 Peter Pál Pelbart (1956): é um filósofo, ensaísta, profes- rado pela crise econômica? sor e tradutor húngaro, residente no Brasil. Graduado em colocado por pesquisadores como Filosofia pela Universidade Paris IV (Sorbonne), é mestre Gabriela Acerbi – É sempre Eduardo Viveiros de Castro4, Débo- pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PU- C-SP, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo difícil falar de Junho de 2013... Acre- e livre-docente pela PUC-SP. Vive na cidade de São Paulo, onde é professor da PUC-SP e coordena a Companhia Tea- dito que chega a ser uma tarefa in- 4 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropólogo brasi- tral Ueinzz, formada por pacientes psiquiátricos do hospi- grata, já que Junho é muita coisa. leiro, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na tal-dia A Casa. (Nota da IHU On-Line) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu a Isso sem falar de todos os afetos que entrevista O conceito vira grife, e o pensador vira proprie- tário de grife à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005,

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE rah Danowski5... rar. Achille Mbembe6, autor do livro e de um tempo que ruiu. Que está Crítica da Razão Negra, já havia ruindo faz tempo... Por mais que ele Nesse sentido, Junho de 2013 teria anunciado sobre essa bifurcação en- se alastre, nas suas variações, con- levantado todo um campo de possí- tre democracia e capital financeiro, tradições, na incoerência dos muitos veis experimentações e também de e sobre as ameaças que esse modo votos... Ele expressa também o de- incômodos não mais sustentáveis. de subjetivação neoliberal nos tra- sespero de algo em queda. Não é só Experimentações tecidas também ria às nossas frágeis democracias: isso, mas tem ali algo que insiste de- diante dos desdobramentos neolibe- uma condição de endividamento da sesperadamente, que esbraveja para rais que nos atravessam, enquanto vida similar à lógica perpetuada na não deixar outros modos que estão aí Brasil, e diante dos nossos impasses escravização das populações negras, prevalecerem. Acontece que todas as coloniais-capitalistas atualizados, horizontes endurecidos e mortais, forças as quais o Bolsonaro se opõe dinâmicas neodesenvolvimentistas produtores de sistemas de regimes seguem existindo, sempre! E se ago- muito bem instauradas e todas as de sofrimento aliados aos modos de ra estamos vivendo uma dimensão tensões produzidas nessa intensi- governo. de derrota, estamos vivendo tam- ficação de modos de exploração e bém uma dimensão de lutas que se condicionamentos da vida na era acirram, que não se dobram diante do capital financeiro, dos grandes dos insuportáveis que as assolam. E empreendimentos, dos megaeven- isso não é uma situação só de agora, tos, de regimes de endividamento “Etty não está isso sobrevive historicamente. contemporâneo, expropriações e recusando de uma crise política generalizada, Nesse sentido, eu penso com Negri quanto aos seus formatos e modos falar apenas o Brasil de agora e o presidente que de operar, o esgotamento dessas ins- ganhamos: criações a partir das pró- tituições. do horror, ela prias condições de sofrimento viven- ciadas. Acho necessário lembrar que está recusando o que está ruindo diz mais respeito a eles do que a nós. Como não pen- Necropolítica tropical sar nos impactos do feminismo que condicionar 49 E pensando no agora, é claro que corre a ventos rápidos, que produz estamos todos muito preocupados sua experiência novas coisas em termos de produ- com o que foi consolidado em outu- ção de subjetividade, dimensões de bro deste ano no país. Não consigo ao abismo. Ela família, de relações, do mundo do ver menos do que uma necropolítica trabalho? Novas socialidades im- tropical alargando passos, ganhan- cria sobre ele” plicadas. Ou como não pensar nas do mais braços. Planos explícitos de Dito isso, ainda acredito que nos vidas aldeadas que não estão histo- morte, de medo e um campo de des- ajuda a pensar e a respirar, lembrar ricamente diminuindo? Pelo contrá- montes que intensificarão o soterra- que esse avanço da extrema direita é rio, são territórios em disputa, aderi- mento de direitos, dos programas e também a expressão de um mundo dos, exigidos, de gente que se dispõe políticas sociais, enfim, tudo sendo a falar uma língua institucional no arrastado por horizontes neoliberais sentido de uma traição político-lin- 6 Joseph-Achille Mbembe, conhecido como Achille guística, para garantir seu direito de e ultraconservadores, a radicalização Mbembe (1957): é um filósofo e cientista político. Natural dessa coisificação da vida, das pes- de Otélé, em Camarões Franceses, obteve seu Ph.D. em sobrevivência. Também formas de História na Universidade de Sorbonne, em Paris, França, soas, do meio ambiente, das relações em 1989. Referência acadêmica no estudo do pós-colo- vidas aquilombadas, pretas, que ali- nialismo e pensador das grandes questões da história e cerçam sua ancestralidade às novas de trabalho, do campo educacional, da política africana – apesar de, ele próprio, não se definir da saúde pública... A política inten- como “teórico do pós-colonialismo”. É professor de Histó- formas e caminhos para conquistar ria e Ciência Política na Universidade Duke (Virgínia, Esta- sificando ares empresariais devasta- dos Unidos) e na Universidade Witswatervand (Joanesbur- direitos, acessos e redimensionar as go, África do Sul), além de pesquisador no Wits Institute violências vividas... Uma luta que dores, sob a lógica do investimento for Social and Economic Research (WISER) dessa mesma e da resiliência. E isso tem menos a universidade. É um autor conhecido, tanto pelos seus arti- vem a suor e sangue. Assim, prefiro gos nas versões em espanhol do Le Monde Diplomatique pensar num campo que se cria a par- ver com quem os escolheu, mas mais como pelas suas contribuições para os livros coordenados com as condições que eles vão ope- por Gilles Kepel, As políticas de Deus (A proliferação do tir das condições menos favoráveis divino na África subsaariana); Jérôme Bindé, Para onde vão os valores?: colóquios do século XXI (Do racismo como possíveis, mas que se opõe à nossa prática da imaginação); Fernando López Castellano, De- sensação atual de desmoronamento. disponível em http://bit.ly/ihuon161. Entre outras publi- senvolvimento: Crónica de um desafio permanente (Poder, cações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna (São Paulo: violência e acumulação) e Okwui Enwezor, O desacolhe- Há vidas não arruinadas. Como não CEDI), A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios dor. Cenas fantasma na sociedade global (Necropolítica). de antropologia) (São Paulo: Cosac & Naify) e Metafísicas Em Crítica da razão negra (Lisboa: Antígona, 2014), o autor olhar para 2018 sem lembrar das canibais (São Paulo: Cosac & Naify). Também é autor do elabora sobre o conceito de “Negro”, sobre a evolução candidaturas de mulheres, mulhe- prefácio do livro A queda do céu – Palavras de um xamã do pensamento racial europeu que o origina e sobre as yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Paulo: máscaras usadas para o cobrir com um manto de invisi- res-trans, negras, indígenas e qui- Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) bilidade. O texto é profundamente teórico, permeado por 5 Déborah Danowski: bacharela, mestra e doutora em uma filosofia política latente: além de ser um acadêmico lombolas eleitas este ano? Bancadas Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de de referência, Mbembe é também um acadêmico compro- populares e coletivas, por exemplo Janeiro - PUC-Rio, onde é professora. Fez estágio pós- metido com o tema. (Nota da IHU On-Line) -doutoral em Filosofia na Universidade de Paris IV (Paris- -Sorbonne). (Nota da IHU On-Line)

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como o MUITAS7, a candidata eleita de mundo não cansaram de chegar. rados parar enxergar aquilo que está Érica Malunguino que administra o Temos aí Davi Kopenawa11, Ailton sendo inventado, essas produções quilombo urbano Aparelha Luzia, a Krenak12, Sônia Guajajara13 que saiu cotidianas, comunitárias, que talvez Bancada Ativista8 no Rio de Janei- como candidata a vice-presidente do sejam “pequenas” demais para quem ro, Áurea Carolina em Minas Gerais país. A verdade é que nunca foi mui- concentrou-se apenas numa lógica anunciando que eles vão aquilombar to favorável e que as dimensões da de partidos – ou de um determina- as instituições?... Se a gente quiser, dor e da catástrofe sempre estiveram do lugar da “esquerda” nacional. podemos chamar de política menor aí. E nesse sentido, penso que é im- Existem modos de vida, modos de – no sentido minoritário, como bem portante a gente reforçar e lembrar organizações coletivas que estão aí queria Deleuze9, e assim, incrivel- os projetos e iniciativas que estão e constantemente se atualizando e que mente potentes, batalhadas diante sempre estiveram sendo produzidos talvez a gente não consiga encaixá- das derrotas históricas e diárias. por aqueles que podem dar nome à -los naquilo que esperamos que seja sua própria dor, que podem criar a um modo de resistir ou de agir poli- Ainda sobre esses caminhos não re- partir dos seus abismos. Isso tudo ticamente. signados e dores que criam, gosto de são políticas de localização. São polí- retomar a pesquisadora bell hooks10 Em uma das pesquisas que traba- ticas não ressentidas, são expressões (2013), que fala da sua trajetória lhei direcionada às políticas de fi- de amor, de potência, de guerra, de com a produção de conhecimento e nanciamento social e moradia popu- festa e de vida. Também é poético, as questões do sofrimento – e que no lar, passei bastante tempo tentando estético, místico e é político. seu caso, associam-se diretamente redimensionar a vida e as formas de às violências e desigualdades vividas resistir nesse campo social da habi- na segregação racial institucionaliza- tação que é também financeiro e que IHU On-Line – Quais os maio- da nos Estados Unidos, que, nos ter- está imerso num sistema de crédito, res desafios para se conceber mos de lei, só foi cair depois de 1967. dívida e estruturações do mercado. uma reinvenção da política no No livro Ensinando a transgredir, Após acompanhar experiências co- Brasil através da alegria? a educação como prática de liber- tidianas em moradias populares e dade, bell hooks elabora sobre os Gabriela Acerbi – Acho que também em ocupações ciganas da efeitos e os caminhos abertos ao se gostaria de direcionar a intenção da etnia callon na região do sul de Mi- 50 dar nome à dor. O que abarca tanto reinvenção para a própria pergunta nas Gerais, me esforcei para tentar uma dimensão coletiva da dor, quan- em vez de respondê-la. Ainda tenho percorrer com mais cuidado as ar- to uma muito íntima e individual dos dúvidas de se não seria necessário ticulações e negociações que pro- processos de cura ao se nomear os a gente parar de perguntar sobre a duzem formas de habitar distintas efeitos do sofrimento e trazê-los ao reinvenção da política, mas reinven- e também particulares. Aos poucos campo educativo, trazê-los ao lugar tar os olhos de quem olha para ela (e mergulhando em políticas públicas de elaboração. também os olhos que definem o que e lógicas de gestão, se entende que é política). Às vezes fico com a im- a vida é feita, sim, a partir do que o Quando penso nessas campanhas, pressão de que não estamos prepa- Estado oferece, mas também a par- quando olho para o que temos em tir de todas as coisas e situações nas termos de Brasil, as dinâmicas co- 11 (1956): escritor e líder in- quais ele se ausenta. E nesse sentido, munitárias que se perpetuam e as dígena brasileiro. Ainda criança, viu a população de sua a vida é muito criativa. Podemos usar amarguras dos processos políticos terra natal ser dizimada por duas epidemias, ambas tra- zidas pelo contato com o homem branco. Trabalhou na o mesmo raciocínio para pensar nas que passamos, gosto de lembrar Fundação Nacional do Índio como intérprete. Mudou-se para a aldeia Watorik+ na década de 1980. Casou-se com ocupações indígenas, quem sabe nas que historicamente nossas condi- a filha do pajé e se tornou chefe do posto indígena Demi- ocupações urbanas na cidade, ou nos ções nunca foram fáceis. Há anos e ni. Foi um dos responsáveis pela demarcação do território Yanomami em 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global movimentos campesinos. São tantas anos, populações indígenas, xamãs, 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La chute du ciel, escrita em parceria com o antropólogo francês Bruce as ausências institucionais (sejam anunciam que as catástrofes e fins Albert, foi lançada na França. O livro teve tradução para o inglês, francês e italiano e sua edição em português saiu elas de esquerda ou direita), são tan- em 2015 A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami tas as derrotas quase corriqueiras 7 https://www.somosmuitas.com.br/ (Nota da entrevista- (São Paulo: Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) da) 12 Ailton Alves Lacerda Krenak, mais conhecido como – de um ponto de vista estrutural – 8https://monicadabancada.com.br/ - https://pt-br.face- (Minas Gerais, 1953): é um líder indígena, que a vida vai sendo promovida por book.com/bancadaativista/ (Nota da entrevistada) ambientalista e escritor brasileiro. É considerado uma das 9 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, outros meios: um tal modo de fazer Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Ber- possuindo reconhecimento internacional. Pertence à etnia gson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Pro- indígena crenaque. (Nota da IHU On-Line) retalhado, também com tudo aquilo fessor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze 13 Sônia Bone Guajajara (1974): é uma líder indígena que falta. E isso tudo é muito produ- atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e sin- brasileira, formada em Letras e em Enfermagem, especia- gularidades. (Nota da IHU On-Line) lista em Educação especial pela Universidade Estadual do tivo, como eu já falei anteriormente, 10 Gloria Jean Watkins (1952): mais conhecida pelo pseu- Maranhão. Recebeu em 2015 a Ordem do Mérito Cultu- dônimo bell hooks (escrito em minúsculas), é uma autora ral. Sua militância em ocupações e protestos começou na é tecido também a partir dos abis- feminista e ativista social nascida nos Estados Unidos. O coordenação das organizações e articulações dos povos mos colocados. E no nosso contexto nome bell hooks foi inspirado em sua bisavó materna, Bell indígenas no Maranhão - Coapima e levou-a à coordena- Blair Hooks. Sua produção trata da interconectividade de ção executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil atual, penso que isso tudo é sobre raça, capitalismo e sexo, que ela descreve por sua capaci- - Apib. Antes disso ainda passou pela Coordenação das dade de produzir e perpetuar os sistemas de opressão e Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - Coiab. criação de condições de sobrevivên- dominação de classe. Publicou mais de 30 livros e muitos Foi candidata à vice-presidência na chapa com Guilherme cia, como para a pesquisadora Verô- artigos. Aborda raça, classe e gênero na educação, arte, Boulos, pelo Psol. (Nota da IHU On-Line) história, sexualidade, mídia de massa e feminismo. (Nota nica Gago (2014) que vai falar de um da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE neoliberalismo desde baixo, que são que constantemente atualizam o oficiais, é preciso também querer en- os modos de dar conta da dinâmica campo das resistências que estamos xergar esses lugares por onde a vida social, política e econômica, que re- querendo nos referir e enxergar, das está constantemente produzindo. siste à exploração e à despossessão e reinvenções. Sejam jornadas do mês Essas localizações onde é necessário que se desprega desse espaço do cál- de Junho17, sejam pequenos e es- um fazer particular e até mesmo tá- culo, das leis de medida. trondosos ganhos no campo da polí- ticas de visibilidade, também formas tica institucional, seja na amplitude de cuidar da vida e mantê-la vivível, Nesse sentido, eu lembro que todas de um quilombo ou de uma terra já que, de onde se situa, as condições as vezes que eu preciso falar sobre ocupada frente as não demarcações nem sempre ou quase favoreceram. reinvenção política, gosto de usar É como uma perseverança ainda que o mesmo trecho de uma poeta que tudo – e que nos dias atuais é atra- gosto muito. Matilde Campilho14, 17 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, tam- bém conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, vessada, joga junto e dribla modos em uma breve entrevista sobre arte, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram várias manifestações populares por todo o país que ini- de fazer neoliberais e as condições música e poesia, insiste que essas cialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas institucionais que se avivam nesses coisas não salvam o mundo, mas de transporte público, sobretudo nas principais capitais. Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes, contextos. salvam o minuto e isso é suficiente. os atos pela redução das passagens nos transportes pú- blicos ganharam grande apoio popular em meados de Depois ela reforça que estamos aqui junho, em especial após a forte repressão policial contra Fiquei pensando que eu podia en- os manifestantes, cujo ápice se deu no protesto do dia para “dançar um pouquinho sobre 13 em São Paulo. Quatro dias depois, um grande número cerrar o trecho dessa pergunta reto- os escombros. Não deixar que a po- mando Etty Hillesum e tudo aquilo eira dê alergia nos olhos”. E nessa que ela fez com as condições de ex- dança, cada um faz como pode... “A “Ainda tenho termínio, me perguntar quais as con- gente vai tentando salvar os segun- dições de resistência e invenção po- dinhos — da minha vida, da vida de dúvidas se lítica no contexto do nazismo... E aí, todos meus amigos e de alguém que penso que eu teria que tentar focar lê uma estrofe. E já é bom.” não seria no que Etty criou. A dança sobre os escombros de Ma- necessário a tilde me lembra a política cotidiana, IHU On-Line – De que forma a constantemente reinventada. Me gente parar de arte e a cultura podem se con- 51 lembra que as dimensões do que é figurar como alternativas de política e resistência são mais largas perguntar sobre resistência ao totalitarismo, do que definem os teóricos. Uma dis- sendo capazes de abrir pers- cussão que vem sendo amplamente a reinvenção pectivas para o diálogo? tecida por uma antropóloga em que confio e admiro, a Alana Moraes15, da política, mas Gabriela Acerbi – Acho que um em suas pesquisas a partir da atu- pouco dessa resposta está dissolvida ação das mulheres no movimento reinventar os em tudo que tenho falado até agora. de luta por moradia, o MTST... Ala- Queria apenas sugerir que a gen- na me ajudou a retomar os desafios olhos de quem te trouxesse para a palavra cultura epistemológicos de uma pesquisa- uma dimensão de “modo de vida” e dora que lemos bastante, e que nos olha para ela então me sinto mais à vontade pra ajuda a reconfigurar o olhar para o falar, no sentido de perceber, de es- que seria o campo da ação política. (e também tar sensível a captar a inventividade Donna Haraway16 (1995) enfatiza desses modos, aquilo que eles estão tal possibilidade de ver a partir dos os olhos que produzindo, em variados aspectos abismos, a partir dessa localização que compõem suas “culturas”... Pen- que é periférica. E quando convo- definem o que so que, diante dos totalitarismos, es- cou os abismos, a autora me levou é política)” tão em jogo também os inegociáveis automaticamente para experiências de populares tomou parte das manifestações nas ruas em dos modos de existir, ainda que eles novos diversos protestos por várias cidades brasileiras e estejam sob ameaça de serem tritu- até do exterior. Em seu ápice, milhões de brasileiros es- tavam nas ruas protestando não apenas pela redução das rados. Talvez a arte seja sim uma 14 Matilde Maria d’Orey de Sousa e Holstein Campilho tarifas e a violência policial, mas também por uma grande (1982): é uma poeta portuguesa. (Nota da IHU On-Line) variedade de temas como os gastos públicos em grandes dimensão por onde é possível que 15 Alana Moraes: é antropologia formada pela Universida- eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos ser- algo escape, mas assim como tantas de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra em Sociologia viços públicos e a indignação com a corrupção política em e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente geral. Os protestos geraram grande repercussão nacional outras coisas que estão implicadas cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do e internacional. Sobre o tema, confira a edição 193 dos nas tais culturas. Não sei se falar em Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do cole- Cadernos IHU ideias, intitulada #VEMpraRUA: Outono Bra- tivo Urucum pesquisa-luta. (Nota da IHU On-Line) sileiro? Leituras, disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw. A formas de diálogo, mas daquilo que 16 Donna Haraway (1944): bióloga, filósofa, escritora e edição 524 da revista IHU On-Line, Junho de 2013 – Cinco professora nascida nos Estados Unidos. Escreveu diver- Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática vai ser mantido, que vai ser comuni- sos livros e artigos sobre ciência e feminismo. Entre seus nunca realizada, de 18 de junho de 2018, está disponível cado de alguma maneira – nem que textos mais destacados está o ensaio Manifesto ciborgue. em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/524. (Nota da Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do sé- IHU On-Line) seja inventando uma maneira nova. culo XX, publicado originalmente no periódico Socialist Review, em 1985. (Nota da IHU On-Line) Se for pra pensar a arte, então pen-

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sar uma dimensão de perpetuação, tos naquele dia. Ou que a pajelança que se abre, que vem desse encontro de comunicar, de fazer falar aquilo indígena vai continuar existindo, de forças. Um possível esse que se que diz respeito aos modos de vida. que a congada mineira ocupará as liga a uma feitura do mundo, um E isso também tem a ver com formas ruas em maio pra São Benedito, que modo de fazer diante dos escom- de se relacionar, de se alimentar, é um Santo negro. Ou que os Yano- bros, como disse acima, e que está as práticas religiosas, as dimensões mami vão seguir enxergando os es- vinculado a um modo de vida e às rituais, afetivas e festivas que são píritos xapiri, fazendo eles dançarem formas que ele encontra para perse- mantidas, as formas como educamos para o céu não cair, ainda que a mi- verar suas concepções, seus concei- as crianças, como se cura, como se neração coma seus territórios acele- tos, sua ação. trata do corpo... radamente e os contamine com suas epidemias. Penso que a vida – todas essas que IHU On-Line – Que histórias são negadas pelos regimes que defi- você gostaria que sua geração nem os matáveis, os aniquiláveis – IHU On-Line – A truculência narrasse aos que virão? já é em si foco de resistência, e são da ditadura no Brasil fez aflo- vários focos... É claro que podemos Gabriela Acerbi – Se for pra falar rar movimentos artísticos que falar em circuitos artísticos, mas po- em histórias que deixaremos, gosta- são reconhecidos até hoje, a demos falar em todos os circuitos ria que a gente conseguisse trazer a dor da Shoá fez emergir a po- produtivos que propagam modos força das contranarrativas. Histórias esia de amor nos escritos de de estar no mundo e suas formas a contrapelo, num sentido benjami- Etty Hillesum, e nas dificulda- de extravasar e driblar as forças que niano talvez (para usar as ideias de des da vida nas periferias das os oprimem... E assim eles garan- alguém que também morreu no co- grandes cidades do Brasil sur- tem perpetuação... Gosto de pen- lapso da Segunda Guerra Mundial e gem o samba, o rap e outras sar quais são as histórias que estão seus extermínios, como Etty). Gos- tantas manifestações culturais sendo cantadas num samba de roda, taria que deixássemos uma multipli- e artísticas. É em momentos- que histórias estão sendo dançadas, cação de histórias do ponto de vista -limite que o ser humano pode por exemplo, por um grupo de afoxé, dos vencidos, aquelas que até então ser capaz de revelar o seu me- no maracatu, no jongo, que mundo existiram, mas não ocuparam as nar- lhor? Por quê? 52 é cantado no rap. Que mundos es- rativas oficiais. Aquelas que não são ses gestos, essas letras, esses modos Gabriela Acerbi – Acredito que encontradas no idioma institucional, de fazer estão convocando? E nesse a resposta dessa pergunta pode ser e se estão, foram retorcidas. Contra- sentido, de contar histórias que não encontrada em tudo que falei até narrativas, no plural, que furem as as narrativas oficiais, de achar- mo agora, e para não me repetir, chamo bolhas, as identidades, as noções de dos pra fazer vazar uma vida, isso é atenção apenas para essa questão sujeito dominantes e também as pre- sim muito potente, necessário, ur- do que “melhor pode ser revelado” tensões modernas de modos ociden- gente! E ao mesmo tempo, isso é o do ser humano. Não sei se alcança tais, europeus, masculinos, brancos, que se faz, há anos e anos... Nessas essa condição do melhor ou do pior, da mercadoria de criar, escrever e horas gosto de pensar a própria vida mas aquilo que pode ser feito, pro- produzir. enquanto obra, uma estética da exis- duzido frente a todas essas dificul- Na verdade, tenho a impressão de tência. Estética, ética, política... dades, as violências vividas e aos que essas contranarrativas não pa- problemas estruturais que assolam. Fico pensando que com Bolsonaro ram de se multiplicar, de ocupar os Acredito que estamos falando então ou sem Bolsonaro, por exemplo, can- espaços, e principalmente, sem preci- da capacidade de produzir um pos- domblecistas vão seguir guardando sar dobrarem-se à gramática da sujei- sível. E frente a todas essas trucu- as sextas-feiras, vestindo o branco, ção, da servidão e da subalternidade lências, nessa ação artística ou qual- não comendo determinados alimen- instaurada. ■ quer outra que seja, há um possível

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A necessidade de reconhecer o mal no humano para enfrentá-lo Eduardo Losso reflete sobre as inquietudes que afligem o nosso tempo, perversidades que, se não forem apreendidas nas pequenas ações, acabam personificando o pior da humanidade

João Vitor Santos

m geral, quando se fala que Etty livre, “nosso corpo deseja ambientes na- Hillesum esteve diante da face do turais, não cubículos emparedados, nem mal por ter vivido a Shoá, a afir- prédios gigantescos, luzes ofuscantes, ba- Emação é aceita. Entretanto, quando se rulhos gritantes, ruas apinhadas e carros diz que esse mal que nutriu uma guerra é numerosos”. Ou seja, é na natureza que o composto de sentimentos presentes ain- ser humano se completa. Mas, no nosso da hoje, um estranhamento pode se esta- tempo, nos movemos para cada vez mais belecer. “Se não estamos pensando radi- longe desses ambientes naturais. “O mer- calmente o nosso mal, é porque ele está cado, essa mão invisível, inquestionável e vencendo. Bem, diante dos fatos recentes, soberana, quer eliminar as poucas reser- isso é uma evidência”, aponta o professor vas naturais que sobram, multiplicar mais Eduardo Losso, que quer chamar aten- seres como nós retirando todos os seus ção justamente para esse ponto. Afinal, direitos mínimos e engordar cidades: isso a maldade da Shoá não surge do nada, não tem como dar certo”, analisa. Assim, mas de sentimentos bem humanos que das muitas possibilidades de buscar essa 53 se convertem em ações perversas. “Hoje, reconexão, está o silêncio. Aquele mesmo contudo, temos bons motivos para dizer que faz Etty encontrar a paz dentro de si que o abismo de nosso niilismo é bem num ambiente tão inóspito. Para Losso, o mais grave que o de nossos antecessores desafio é buscar essa conexão. “O silêncio modernos, mas não vejo ninguém enca- diz mais do que todos os sons que inces- rando o assombroso alcance dele, isto é, santemente nos perseguem, e é e será o nosso mal”, observa. “Isso significa que, cada vez mais, sem dúvida, um dos maio- por mais que tenhamos lido Nietzsche, res luxos da contemporaneidade”. Kierkegaard, Benjamin, Adorno, Cruz e Eduardo Guerreiro Brito Losso Sousa, Augusto do Anjos, Machado de é professor adjunto de Teoria da Litera- Assis, Drummond, não estamos à altura tura do Departamento de Ciência da Li- dos abismos de nosso tempo como eles, teratura da Universidade Federal do Rio no seu tempo, estiveram, talvez preci- de Janeiro - UFRJ, membro permanente samente porque o nosso é bem maior”, do Programa de Pós-Graduação em Ci- completa. ência da Literatura da UFRJ e coeditor Na entrevista a seguir, concedida por da Revista Terceira Margem, do PPG-CL e-mail à IHU On-Line, Losso se propõe a da UFRJ. É graduado em Letras, mestre refletir acerca de formas de fazer resistên- e doutor em Ciência da Literatura pela cia ao mal de nosso tempo. Para tanto, rei- UFRJ, com estágio na Universität Leip- tera, é preciso conhecer esse mal. “Todo zig, Alemanha. Entre os livros que orga- ser humano é um nazista diante de outros nizou, destacamos Diferencia minoritaria animais, dito famoso de Isaac Bashevis en Latinoamérica (Georg Olms, 2008), Singer. Nunca houve tantos corpos dó- O carnaval carioca de Mário de Andrade ceis, tantos trabalhadores produtivos, (Azougue, 2011) e Música Chama (Cir- logo, tanta riqueza detida por tão poucos, cuito, 2016). Ainda é autor de Renato proporcionalmente, e nunca houve uma Rezende por Eduardo Guerreiro B. Losso nobreza tão poderosa e intocável quanto (EdUERJ, 2014). a atual elite financeira global”, reconhe- Confira a entrevista. ce.Segundo o professor, o ser humano é

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IHU On-Line – Etty Hillesum broso alcance dele, isto é, o nosso Sousa5, Augusto do Anjos6, Machado encarou de frente as faces mais mal. Isso significa que, por mais que de Assis7, Drummond8, não estamos perversas do mal. O que é o mal tenhamos lido Nietzsche1, Kierke- à altura dos abismos de nosso tem- do nosso tempo? E como resis- gaard2, Benjamin3, Adorno4, Cruz e po como eles, no seu tempo, estive- tir a ele? ram, talvez precisamente porque o nosso é bem maior. Se não estamos Eduardo Losso – Ao longo da pensando radicalmente o nosso mal, história de diferentes civilizações é porque ele está vencendo. Bem, dominantes, a humanidade desen- 1 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, co- diante dos fatos recentes, isso é uma volveu orgulho por suas habilidades nhecido por seus conceitos além-do-homem, transva- loração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno evidência. e conquistas, que levaram, no perí- retorno. Entre suas obras, figuram como as mais impor- tantes Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização odo moderno, à crença no progres- Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A Não estamos mais diante do niilis- genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu so: social, tecnológico e espiritual. O até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso mo nietzschiano, que serve de base capitalismo é um sistema que se ali- que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs- para a afirmação trágica da vida e a che, foi dedicado o tema de capa da edição número 127 menta de suas próprias crises. Hou- da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó- descoberta libertadora da vontade ve muitos questionamentos a respei- sofo do martelo e do crepúsculo, disponível para down- de poder. Não estamos mais dian- load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos to de seus perigos, houve muita luta IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich te da crítica da burguesia que re- Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. contra seus princípios, houve a crise Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein sulta numa utopia revolucionária. dos mais caros valores ocidentais, à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis- Não estamos mais diante da desco- ponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo cristãos e iluministas, mas mesmo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual berta abissal do inconsciente e do discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger tal crise engendrou uma eufórica ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, entusiasmo modernista diante de transvaloração de todos os valores. parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferen- mundos desconhecidos a serem re- ça – Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des) governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da velados pela inovação artística da Hoje, contudo, temos bons motivos revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Niet- forma, de uma autodestruição cria- para dizer que o abismo de nosso nii- zsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia tiva e radicalmente renovadora da lismo é bem mais grave que o de nos- e disponível em https://goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de arte. Tampouco estamos no perío- sos antecessores modernos, mas não 9-4-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// do de revolta dos jovens diante das vejo ninguém encarando o assom- bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) 2 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencialista inúteis mortes da guerra do Vietnã, 54 dinamarquês. Alguns de seus livros foram publicados sob pseudônimos: Víctor Eremita, Johannes de Silentio, Cons- nos EUA, que levou à descoberta tantín Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Haufnien- de toda uma geração do pacifismo, sis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbinder, Frater Tacitur- nus e Anticlimacus. Filosoficamente, faz uma ponte entre a da liberação sexual, da alteração da filosofia de Hegel e o que viria a ser posteriormente o exis- tencialismo. Boa parte de sua obra dedica-se à discussão percepção, motivando o projeto de “O abismo de de questões religiosas como a natureza da fé, a instituição colocar a “imaginação no poder”, no da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. Autor de O Con- ceito de Ironia (1841), Temor e Tremor (1843) e O Deses- maio de 68 francês, assim como na nosso niilismo pero Humano (1849). A respeito de Kierkegaard, confira a entrevista Paulo e Kierkegaard, realizada com Álvaro Valls, possibilidade de transformar antro- da Unisinos, na edição 175, de 10-4-2006, da IHU On-Li- pofagicamente a cultura de massa ne, disponível em http://bit.ly/ihuon175. A edição 314 da é bem mais IHU On-Line, de 9-11-2009, tem como tema de capa A internacional numa modernização atualidade de Soren Kierkeggard, disponível em https:// goo.gl/kZW87Z. Leia, também, uma entrevista da edição complexa em que o local só enrique- grave que o 339 da IHU On-Line, de 16-8-2010, intitulada Kierkegaard ce uma perspectiva global, no tropi- e Dogville: a desumanização do humano, concedida pelo filósofo Fransmar Barreira Costa Lima, disponível em ht- calismo brasileiro. de nossos tps://goo.gl/cr4qoE. (Nota da IHU On-Line) 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi re- fugiado judeu e, diante da perspectiva de ser capturado antecessores pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à Escola de 5 João da Cruz e Sousa (1861-1898): foi um poeta bra- Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tan- sileiro. Com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, to por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo foi um dos precursores do simbolismo no Brasil. Segundo modernos, místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor profun- Antonio Candido, Cruz e Sousa foi o “único escritor emi- do da língua e cultura francesas, traduziu para o alemão nente de pura raça negra na literatura brasileira, onde são importantes obras como Quadros parisienses, de Char- numerosos os mestiços”. (Nota da IHU On-Line) mas não vejo les Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de Marcel 6 Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos [Augusto Proust. O seu trabalho, combinando ideias aparentemente dos Anjos] (1884-1914): poeta paraibano, identificado antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dialéti- muitas vezes como simbolista ou parnasiano, mas mui- ninguém co e do misticismo judaico, constitui um contributo origi- tos críticos, como o poeta , concordam em nal para a teoria estética. Entre as suas obras mais conhe- situá-lo como pré-moderno. Entre seus autoepítetos, se cidas, estão A obra de arte na era da sua reprodutibilidade destacam “Poeta da morte”, “Poeta do hediondo” e “Poeta encarando o técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) da Anti-Hipocrisia”. (Nota da IHU On-Line) e a monumental e inacabada Paris, capital do século XIX, 7 Machado de Assis [Joaquim Maria Machado de Assis] enquanto A tarefa do tradutor constitui referência incon- (1839-1908): escritor brasileiro, considerado o pai do tornável dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a realismo no Brasil, escreveu obras importantes como Me- assombroso entrevista Walter Benjamin e o império do instante, con- mórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas cedida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora à IHU Borba e vários livros de contos. Também escreveu poesia e On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/zamora313. foi um ativo crítico literário, além de ser um dos criadores alcance (Nota da IHU On-Line) da crônica no país. Fundador da Academia Brasileira de 4 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólo- Letras. Sobre o escritor, há duas edições da IHU On-Li- go, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do ne: 262, de 16-6-2008, intitulada Machado de Assis: um dele, isto é, o pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou conhecedor da alma humana, disponível em http://bit.ly/ conhecido no mundo intelectual, em todos os países, em ihuon262, e 275, de 29-9-2008, intitulada Machado de As- especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escri- sis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil, disponível em nosso mal” to junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Insti- https://bit.ly/2oHHiQt. (Nota da IHU On-Line) tuto de Pesquisa Social, que deu origem ao movimento 8 Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): poeta bra- de ideias em filosofia e sociologia que conhecemos hoje sileiro, nascido em Minas Gerais. Além de poesia, produziu como Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) livros infantis, contos e crônicas. (Nota da IHU On-Line)

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Não temos mais motivo de nenhum diante da inversão de todo motivo lógica propagandística do escânda- grande entusiasmo metafísico, pós- de orgulho em vergonha de ser ho- lo do dia, perpetrada pela estrutura -metafísico, existencial, artístico e mem. Homem: nos dois execráveis conjunta da grande mídia, mídias al- político. Todo ser humano é um na- e interligados sentidos da palavra. ternativas oportunistas e Facebook, zista diante de outros animais, dito Nunca na história chegamos à con- banaliza tais pautas, para, como res- famoso de Isaac Bashevis Singer9. clusão de que era melhor não termos posta, propagar a ascensão das men- Nunca houve tantos corpos dóceis, existido. Somos baratas mamíferas tiras que a contrariam, das ilusões tantos trabalhadores produtivos, fazendo porcarias no único plane- favoráveis ao sistema, e desagregam logo, tanta riqueza detida por tão ta que temos. Uma certa leitura da o árduo trabalho formativo, prático e poucos, proporcionalmente, e nunca metamorfose de Kafka11 se tornou o crítico que deveríamos ter nelas. As houve uma nobreza tão poderosa e nosso retrato. Os poucos índios que pautas da esquerda viram pequenas intocável quanto a atual elite finan- ainda e sempre resistem têm toda crenças, uma separada da outra, bri- ceira global. razão em sentirem nojo de nós. Se gando por espaço. o homem branco via-se a si mesmo Talvez os evangélicos sejam mais como o paladino da racionalidade e, sinceros em sua fé do que a fé dos consequentemente, da responsabili- Morte de Deus e do homem progressistas. As diferentes modali- dade, que fazer diante da descoberta dades de culto ao escândalo se tor- Nunca na história da humanidade nam, então, manifestações de nossa setores progressistas tiveram uma cegueira fundamental: estampa-se consciência tão clara das ilusões de o nosso fracasso, mas ele é tão de- sua superioridade frente a outros se- finitivo e gritante que, justamente, res. O ser humano escraviza animais, “Todo ser não somos capazes de assumi-lo, aí extingue várias espécies, desequili- podemos inventar o simulacro subs- bra profundamente a biosfera e mul- humano é um titutivo que quisermos para tampar tiplica a sua população – para quê, o vazio. afinal? Para emburrecer passando nazista diante horas na timeline das redes? Para A revolta progressista, que conti- assistir insultos e piadinhas de you- de outros nuamente conclama um novo slo- 55 tubers? Para aumentar a desigual- gan, retira uma nova hashtag do dade dentro de sua própria espécie, animais” bolso para reivindicar suas pautas, para manter o bem-estar de cada vez só responde à agenda prévia de no- menos pessoas e agravar o estresse tícias do dia ditadas pela mídia e im- e o sofrimento de uma maioria cres- de que sua racionalidade instrumen- postas pela estrutura programática cente? tal é a destruidora da vida no plane- das redes sociais. Em suma, ela é tão ta, incapaz de frear a ânsia extermi- niilista quanto o desejo de grandeza Se todo o polo progressista sabe nadora de gerar lucro a todo custo? nacional da extrema direita. Uma muito bem aonde esse monumen- reage impotente diante da catástro- tal empreendimento levará – para fe, outra alucina, potente, e torna a o fim dos recursos naturais, o fim catástrofe o seu triunfo. Essa sede Banalização das pautas das grandes florestas, o completo de grandeza, tanto dos ideólogos de desequilíbrio ecológico e, por con- 12 Podemos afirmar aqui e ali que Trump quanto do atual ministro seguinte, o aquecimento global, a temos novos projetos pela frente: das Relações Exteriores do novo pre- tragédia anunciada das mais terrí- sustentabilidade, movimentos iden- sidente, é uma reação compreensível veis catástrofes –, não estamos mais titários, democratização das mídias. à derrocada de todos os valores pas- somente diante da morte de Deus e Apesar de serem pautas urgentes e sados que a esquerda hoje só pode da consequente morte do homem, entender como mentira, e não con- 10 extremamente necessárias, a própria da qual falava Foucault . Estamos segue encontrar outro valor senão nos oprimidos por essa mentira, na- 9 Isaac Bashevis Singer (1902-1991): escritor judeu-a- exceção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo. queles tidos como fracos, que agora mericano. Nasceu na Polônia, mas viveu muitos anos nos gl/RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos Estados Unidos, onde escreveu e publicou sua obra. (Nota IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, da IHU On-Line) Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a 10 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) 12 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- obras, desde a História da Loucura até a História da sexua- 11 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de língua sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente lidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), alemã. Considerado pela crítica um dos escritores mais dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- influentes do século 20. A maior parte de sua obra, como o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo A metamorfose, O processo e O castelo, está repleta de cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição psicológica, conflito entre pais e filhos, personagens com perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro- 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transfor- tecionismo norte-americano, por onde passam questões edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ mações místicas. Albert Camus, Gabriel García Márquez econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da e Jean-Paul Sartre estão entre os escritores influenciados Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em pela obra de Kafka. O termo “kafkiano” popularizou-se em Trump Organization e fundador da Trump Entertainment https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo bio- português como algo complicado, labiríntico e surreal, Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, político da vida humana, de 13-9-2010, disponível em ht- como as situações encontradas em sua obra. (Nota da IHU riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná- tps://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de On-Line) -lo famoso. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

devem se tornar fortes. manidade e de suas personalidades engordar cidades: isso não tem como modelares cria, naturalmente, uma dar certo. histeria moral, pois todo mundo Para alienar-se de suas necessida- quer apontar os defeitos dos outros, O mal des reais, as pessoas se deixam atrair as qualidades perderam o atrativo. não pelo remédio, mas pelo veneno. Manipuladores de opinião percebe- Um é o fundamentalista da gran- A lógica dispersiva da notícia e da ram que o ódio deve ser estimulado e deza, outro não deixa de idolatrar o propaganda, que já era parte inte- direcionado para os seus interesses. oprimido. Ambos fogem, do mesmo grante da grande mídia, é agravada modo, do niilismo, isto é, do mal de Contudo, essencialmente, esse im- mil vezes com as postagens e os en- nosso tempo. Entendo o mal não pério do ódio, essa impossibilidade caminhamentos das redes sociais. como a força de atração do pecado, de admiração substancial, vem de Muitos acreditaram piamente no mas como a consequência da fragi- uma vergonha de toda a espécie, potencial de informação e demo- lidade diante da poderosa treva da que não está sendo nem pode ser cratização da internet, que, de fato, falta de sentido. Tal abismo leva à seria enorme, se o seu potencial des- proliferação de culpas e dívidas in- trutivo não fosse maior, se o último finitas, concretas ou imaginárias, pudesse ser alertado, aplacado, e não monetárias ou morais, que se pode “Nunca estimulado, como é o caso. atribuir aos dominantes, por seus privilégios, ou aos dominados, por na história sua suposta incapacidade meritocrá- tica, mas que não serve a outro moti- chegamos à Renovação bem-sucedida vo senão dar sentido ao que não tem. conclusão de do totalitarismo Só ganhamos força diante do va- Enquanto os técnicos da internet zio, primeiro, descobrindo que ele que era melhor estavam testando e sofisticando no- faz parte de nós; segundo, o quanto vas modalidades de controle com somos pequenos diante dele, sendo não termos seus complexos algoritmos, inte- 56 partes dele; terceiro, o quanto tal pe- lectuais progressistas vips estavam quenez tem sua grandeza. Uma lição existido” rebatendo alegremente os teóricos dos grandes pensadores do niilismo da manipulação de cinquenta anos foi sempre a seguinte: não existe a dita. Mas, na prática, a sensação de atrás com sorriso no rosto. Enquanto mínima perspectiva de resposta a asco do ser humano por outros seres argumentos da teoria pós-moderna ele senão reconhecendo e assumindo humanos existe, especialmente nas estavam se regalando com relativis- toda a extensão de seu alcance. An- cidades cada vez mais numerosas, e mos, o cinismo dos manipuladores tes de passar para qualquer proposta vai aumentar, e vai buscar justificati- atuais estava se servindo deles para de solução, que já deve ser entendida vas ideológicas advindas de orgulho uma renovação muito bem-sucedida de saída como parcial, é preciso de- ferido, preconceito, bolhas, polariza- do totalitarismo. morar-se mais tempo no insolúvel. ção, moralismo, do que seja, para se Sabe aquela tese de Lyotard13 de Ora, é precisamente isso que não es- expressar e agir. que as metanarrativas dominantes tamos fazendo. Nosso corpo deseja ambientes deram lugar a micronarrativas frag- naturais, não cubículos empareda- mentadas, e cujo conceito de “nar- dos, nem prédios gigantescos, luzes rativa” se tornou tão onipresente? IHU On-Line – Como o mal ofuscantes, barulhos gritantes, ruas Bem, talvez estejamos vendo justa- se perfaz no totalitarismo? E apinhadas e carros numerosos. Nos- mente o avanço de metanarrativas como ele se revela no tecido sos olhos desejam olhar paisagens que se alimentam de polarização re- social em nosso tempo, em que de verdade, não telas durante horas cíproca. O mais confortável é sempre também somos atravessados por dia. Nosso olfato deseja respirar estar, inclusive, do lado de uma vitu- pelas tecnologias? o ar de vegetação exuberante, não perando outra. Quem critica ambas Eduardo Losso – Nunca setores cheiros de comida por todo lado só e busca algo genuinamente diferente dominantes, como celebridades da para atrair clientes, perfumes artifi- vive no meio do tiroteio, desprotegi- política e do entretenimento, foram ciais, poluição. Não preciso dizer que do. A hipótese das micronarrativas, tão atacados e injuriados. Toda e nosso sistema nervoso deseja andar nos locais mais globalizados, não é qualquer pessoa, por mais respeita- tranquilo e não com medo de agres- da ou querida que seja ou tenha sido, sores e assaltantes. Mas o mercado, essa mão invisível, inquestionável e 13 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, pode ser vítima de escracho nas re- autor de uma filosofia do desejo e significado repre- des sociais. Esse fenômeno não está soberana, quer eliminar as poucas sentante do pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomenologia (Lisboa: Edições 70, 1954), O inumano: desligado daquele, da vergonha de reservas naturais que sobram, mul- considerações sobre o tempo (Lisboa: Estampa, 1990), tiplicar mais seres como nós retiran- Heidegger e ‘os judeus’ (Lisboa: Instituto Piaget, 1999) e A ser homem. O destronamento da hu- condição pós-moderna (8ª ed. Rio de Janeiro: José Olym- do todos os seus direitos mínimos e pio, 2004). (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE senão mais uma metanarrativa. De que forma a relação com a silêncio e da contemplação na escrita é capaz de fornecer um mística moderna? caminho para o transcendente? Eduardo Losso – “O silêncio me IHU On-Line – Em meio à dor Eduardo Losso – Não há nada diz muito mais, muito mais/ do que do campo de concentração, Etty transcendente sem que não ganhe todos os sons: diz-me aos ouvidos Hillesum encontra espaço para existência no imanente, assim como da alma”, afirma a poeta simbolista, agradecer a vida e enxerga o não há nada espiritual que não se dê feminista e negra e ainda hoje infe- céu azul em meio ao cinza. Po- senão a partir e por meio do mate- lizmente pouco conhecida Gilka Ma- deria esse ser um exemplo da rial, daí o conceito de Hadot se in- chado15, em 1917, no fabuloso livro poesia como exercício espiritu- titular prática espiritual. De fato, o Estados da alma. al que valoriza a arte do viver, ato de escrever é uma das principais apesar de toda adversidade? Quando alguém vive na cidade atividades da história da ascese, isto grande, mesmo num bairro residen- Eduardo Losso – O que não fal- é, da prática de si, cuja meditação cial relativamente tranquilo, quando tam são exemplos da poesia como se mora num prédio de sete andares uma forma moderna de prática es- ao lado de outros de dez, ouvirá inin- piritual, por mais que críticos literá- terruptamente ruídos de obras, mú- rios pós-modernos impliquem com “Os poucos sicas de alto-falantes estridentes de a palavra “espiritual” e não saibam pessoas que não sabem escutar sem como um Pierre Hadot14 a utilizou índios que incomodar os outros, latidos de cães em relação à filosofia antiga. A po- ainda e sempre infelizes porque vivem dentro de esia moderna, especialmente desde apartamento, festas, brigas, TVs no o simbolismo, não foge do niilismo, resistem têm máximo volume. Dificilmente tere- pelo contrário, ela dedica boa parte mos a perspectiva social de uma re- de suas energias a ele e, ao mesmo toda razão educação para o respeito ao espaço tempo, exercita a fundo vias sutis de acústico do outro e para a apreciação reencantamento do mundo, através em sentirem do silêncio. Tenho insistido muito de experiências embriagadoras que nesse ponto. 57 ela mesma pode originar, sem apelar nojo de nós” nem para drogas, nem para grandes O que poetas e místicos mais fize- rituais ou festas. demorada e registrada se dá nas ram ao longo da história foi eviden- anotações pessoais, quando a escrita ciar uma verdadeira recherche do Do mesmo modo, em vários ca- serve ao desenvolvimento espiritual silêncio, interior e exterior, inclu- sos ela se propõe a estabelecer um do sujeito, e não a trabalhos mera- sive da complexa interpenetração novo tipo de prática de vida mate- mente burocráticos. A escrita sai do espacial entre o material e o espi- rial e espiritual em meio à apoteose âmbito utilitário e entra no terreno ritual que se dá na ambiência, na da produtividade, do consumo e da da autotransformação e, sempre Stimmung, dentro do fora e fora do desigualdade. Um traço caracterís- quando imerge em si mesmo, neces- dentro. O silêncio diz mais do que to- tico da poesia moderna é, antes de sariamente serve para outros que es- dos os sons que incessantemente nos mais nada, ser uma nova medida de tejam numa busca, numa quête. perseguem, e é e será cada vez mais, sobrevivência ascética, nunca fuga sem dúvida, um dos maiores luxos ou passatempo intimista. É a resis- Evidentemente, a investigação es- da contemporaneidade. Feliz de tência da experiência que deseja se piritual que ocorreu no terreno da quem possui a dádiva rara de algum tornar uma reexistência do encanta- filosofia antiga, do monasticismo e, tempo de silêncio em sua residência. mento. no renascimento, dos filósofos her- Alceu Amoroso Lima16, no livro Me- méticos da natureza, influenciou ditações sobre o mundo interior, de profundamente a imersão subjetiva 1953, reflete já naquele tempo sobre IHU On-Line – A mística de da poesia nos mesmos períodos até a a dificuldade do amante do silêncio Etty Hillesum é revelada nos es- modernidade, bem como vice-versa. viver na cidade grande, no caso, no critos de seus diários e cartas. Isto é, a poesia também influenciou Rio de Janeiro. Imagine então o que tais movimentos. A conexão entre os ele não diria hoje, já que a maioria 14 Pierre Hadot (1922-2010): filósofo francês, é um dos dois é uma das pesquisas compara- coautores do livro Dicionário de ética e Filosofia Moral tistas mais importantes de se fazer (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Suas pesquisas concen- traram-se primeiramente nas relações entre helenismo hoje em dia, e esse é um foco central 15 Gilka Machado (1893-1980): foi uma poetisa brasilei- e cristianismo, em seguida, na mística neoplatônica e na ra. Seu trabalho geralmente é classificado como simbo- filosofia da época helenística. Elas se orientam atualmente do meu trabalho. lista. Machado ficou conhecida como uma das primeiras para uma descrição geral do fenômeno espiritual que a mulheres a escrever poesia erótica no Brasil; também foi filosofia representa. Em português, pode ser lido o livro de uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino (em sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Paulo: Loyola, 1910), que defendia o direito das mulheres ao voto. (Nota 1999). Para uma resenha da obra, confira a revista Síntese da IHU On-Line) 75 (1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de IHU On-Line – Etty Hillesum 16 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de Henrique C. de Lima Vaz. Em português, foi publicado, em também fala da necessidade Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e lí- novembro de 2014, o seu livro Exercícios Espirituais e Filo- der católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. sofia Antiga (É Realizações Editora). (Nota da IHU On-Line) dos silêncios. Qual o espaço do (Nota da IHU On-Line)

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da população vive em cidades e não tanto uma lição de rebeldia quanto um conflito interior muito inten- mais no campo, estando os centros de prática de si, tanto de disciplina so com seu destino de pecadores. urbanos brasileiros certamente en- quanto de indisciplina extática. Re- Lautréamont20 assume a maldição, tre os mais barulhentos e hostis do comendo a audição da canção “In- Huysmans21 produziu um decaden- mundo? discipline”, do King Crimson17 dos tismo maldito para depois se conver- anos 80, um bom exemplo de peso ter de novo ao catolicismo. Depois, dionisíaco pós-psicodélico, feita de muitos escritores católicos defen- uma estrutura contrastiva, cheia de dem o catolicismo de Baudelaire e Poesia e espaço para quie- jogos rítmicos internos, que ilustra Rimbaud; outros, especialmente os tude musicalmente o assunto. surrealistas, defendem seu caráter anticlerical. Essa briga fica evidente, A violência social não está só no A outra questão que a sua pergunta âmbito mais grosseiro da ameaça à aqui no Brasil, nas diferentes leitu- toca é o que seria, afinal, uma mística 22 integridade física, ela também se dá ras que Mário e Oswald de Andra- da própria poesia moderna, não é? 23 24 no estresse ininterrupto do descon- de , de um lado, e Murilo Mendes , 25 forto físico e psíquico, que poderí- Jorge de Lima e Alceu Amoroso 26 amos chamar de tortura suave, soft Lima , de outro, fazem dos precur- torture. A poesia, nesse sentido, é “As pautas da sores, e como os desdobram em suas mais, repito, do que um passatempo esquerda viram de pessoas instruídas, ela pratica um 20 Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseu- modo de vida que já é uma forma de dônimo literário de Conde de Lautréamont (1846-1870): pequenas foi um poeta uruguaio que viveu na França. É o autor dos sobrevivência. Ela abre um espaço Cantos de Maldoror. Sua poesia também era apreciada de quietude que permite observar a por André Breton, que o considerava, de certa forma, como um dos precursores do surrealismo. (Nota da IHU ansiedade exterior e interior de lon- crenças, uma On-Line) 21 Joris-Karl Huysmans (1848-1907): foi um escritor e ge, de modo semelhante a medita- crítico de arte francês, primeiramente associado a Émi- ções budistas. separada da le Zola e ao grupo de naturalistas. Depois, juntou-se ao Movimento Decadente Francês. Huysmans era “um artista maior do que Zola”, segundo o crítico Ford Maddox Ford, Tenho escrito frequentemente so- outra, brigando no Marchas da literatura (1938): “deixou as catedrais e bre essa questão, justamente porque as estradas deste mundo em 1907, e não suponho que 58 se ouvirá, ao menos uma vez, em qualquer época, seu quase ninguém reflete sobre isso em por espaço” nome mencionado em reuniões literárias.” A conversão de Huysmans, do Satanismo ao Catolicismo, da obsessão termos históricos, concretos e con- por sensações bizarras à busca da vida espiritual, pode ser temporâneos. Louvar o silêncio abs- seguida em livros como A rebours (1884), Là-bas (1891) e La cathèdrale (1898). (Nota da IHU On-Line) tratamente, sem ter em mente essa IHU On-Line – O senhor tra- 22 Mário de Andrade (1893-1945): nascido em São Paulo, balhou a secularização da mís- poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte dimensão concreta, é insatisfatório. e fotógrafo brasileiro. Um dos fundadores do modernis- tica na arte moderna. No que mo brasileiro, praticamente criou a poesia moderna bra- sileira com a publicação de seu livro Pauliceia desvairada, consiste essa secularização? em 1922. Foi a força motriz por trás da Semana de Arte Podemos considerar que o Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a lite- IHU On-Line – De que forma ratura e as artes visuais no Brasil. Exerceu uma influência a Modernidade reconfigura a transcendente foi esvaziado? enorme na literatura moderna brasileira e, como ensaísta e estudioso (foi um pioneiro do campo da etnomusicolo- poesia e como isso impacta no Por quê? gia), sua notoriedade transcendeu as fronteiras do Brasil. Andrade foi a figura central do movimento de vanguarda místico, no transcendente? Eduardo Losso – Foi. A cren- de São Paulo por vinte anos. Seu romance Macunaíma foi publicado em 1928. (Nota da IHU On-Line) Eduardo Losso – A Moderni- ça numa transcendência eterna foi 23 Oswaldo de Camargo: poeta e escritor brasileiro, estu- completamente abalada, sim, no se- dou no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São dade deu à poesia a possibilidade José do Rio Preto. Ainda aprendeu a tocar piano e harmo- de sua autonomia, de seu destaque tor mais avançado da poesia moder- nia no Conservatório Santa Cecília, em São Paulo. Intitula- -se herdeiro de buscas culturais de negros do País que, no de ideologias e doutrinas religiosas. na, mas isso não se deu sem muitas início do século XX, começaram a reavaliação da situação Como a mística, inclusive a poesia perturbações coletivas e pessoais. do elemento afro-brasileiro e partiram para uma tentativa 18 19 de inseri-lo social e culturalmente, tendo como armas so- mística, especialmente desde o sé- Baudelaire e Rimbaud expõem bretudo agremiações de cultura, jornais alternativos para a coletividade, teatro negro, a literatura, sobretudo a escrita culo XII, tinha sido uma ameaça ao por poetas de temática afro-brasileira, como Lino Guedes e . (Nota da IHU On-Line) controle eclesiástico, a mística deu 17 King Crimson: é um grupo musical inglês formado pelo 24 Murilo Mendes (1901-1975): um dos mais importantes à poesia moderna a chave de como guitarrista Robert Fripp e pelo baterista Michael Giles em poetas brasileiros, nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. 1969. O estilo musical da banda costuma ser categoriza- Publicou seu primeiro livro, Poemas, em 1930, ano em que perseguir o reencantamento do do como rock progressivo, mas a sua sonoridade carrega também estreia o poeta Carlos Drummond de Andrade. mundo num mundo desencantado, vários estilos, como jazz, música erudita, new wave, heavy Recebeu, em 1972, o prêmio internacional de poesia Et- metal e folk. (Nota da IHU On-Line) na-Taormina. Nesse ano veio ao Brasil pela última vez. Ao sem ignorar o abalo dos valores dou- 18 Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta e teó- lado de seus livros, Murilo Mendes também publicou mui- rico da arte francês. É considerado um dos precursores to na imprensa, em especial artigos sobre artes plásticas, trinários e, mesmo que a mística tra- do Simbolismo e reconhecido internacionalmente como tendo ainda escrito muitos textos para catálogos de expo- dicional não pretenda romper com o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente sições de arte. (Nota do IHU On-Line) com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com 25 Jorge de Lima (1893-1953): escritor brasileiro, alagoa- autoridades doutrinais, são elas que diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também in- no. Suas obras se dividem em três fases mais notórias: a fluenciou profundamente as artes plásticas do século XIX. primeira, de cunho parnasianista/simbolista; a segunda, rompem com a mística, devido a sua Em 1857 lança As flores do mal, contendo 100 poemas. O quando aderiu ao movimento modernista; e a terceira, incorrigível ousadia. livro é acusado de ultrajar a moral pública. (Nota da IHU quando seus livros exibiam um profundo traço surreal e On-Line) religioso, notadamente católico. (Nota da IHU On-Line) 19 Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891): poeta 26 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de As variadas místicas do século XII francês. Produziu suas obras mais famosas quando ainda Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e lí- ao XVII deram à poesia moderna era adolescente, sendo descrito por Paul James, à época, der católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. como “um jovem Shakespeare”. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE poéticas. lado menosprezado (como é o caso do sujeito diante da morte de Deus de Hugo31, Baudelaire, Rimbaud, – o abismo do niilismo – que foi ex- Uma coisa é a rebeldia anticlerical Mallarmé32, Nerval33, Breton34, entre perimentado intensamente por to- que é explícita nos movimentos sim- tantos outros), ou foram quase apa- dos esses nomes que citei aqui e que bolista e surrealista, outra é a proxi- gados da história (é o caso do grande motivou idas e vindas de todos eles midade de ambos com o esoterismo. poeta e intelectual simbolista brasi- entre os três territórios que eu men- A presença constante do esoterismo leiro Dario Vellozo35). O que nossa cionei: cristianismo, ateísmo e esote- no século XIX e em boa parte do sé- academia pós-moderna não quer ver rismo, e que, inclusive, deu margem culo XX nos movimentos artísticos é que o esoterismo pode ter tanto a incursões em religiões orientais, sempre foi vista com extrema repul- tentáculos progressistas quanto os hinduísmos e budismos, especial- sa tanto por católicos e protestantes mais temerariamente conservado- mente. quanto por ateus anarquistas, comu- res. Se você não reconhece os pro- nistas, socialistas e liberais. Tal eso- Não podemos desconsiderar o fato gressistas, se você teima em manter terismo tem raízes antigas, mas suas de que a política se tornou, estrutu- o tabu de não falar dele, de não es- bases floresceram no hermetismo ralmente, a verdadeira religião, com tudá-lo, o resultado é lógico: ele vai renascentista e ele explodiu, tornan- direito a fidelizações inabaláveis ou prosperar lá no outro lado. do-se moda, na segunda metade do conversões extremas, demonizações século XIX, e não se entende o sim- Tudo isso para dizer que existe uma do lado oposto, cismas, projetos bolismo sem ele. No modernismo, o problemática nessa questão que está messiânicos, e a maior prova disso esoterismo foi uma presença central puramente atrelada a meros confli- é, justamente, como a importância em todas as suas vertentes, especial- tos de influência política, em que os da religião na política só tem cres- mente em figuras como Kandinsky27 terrenos de saber e poder se digla- cido. Deveríamos pensar num outro e Breton28; em seguida, todo um es- diam e criam forças de atuação no fenômeno: escolas de pensamento piritualismo da vida alternativa, fora reconhecimento de escritores mo- dentro de formações profissionais, da cidade, vai mobilizar beatniks dernos. Quando se fala levianamente tanto na universidade como fora e hippies. O belo filme de “cânone”, dever-se-ia pensar nes- dela, contêm uma estrutura que pede contato (2018)29, de Gabrie- sas relações de força mais específicas tem suas modalidades de conver- la Greeb30, deste ano, exemplifica o de sua configuração. são, iniciação e sacerdócio secular. lado paranormal dessa vertente. Certamente que elas convivem entre 59 si, seja com discussões amigáveis, Na briga entre ateus e cristãos, es- seja com formas de blindagem e ti- critores ateus ou supostamente ateus O abismo do niilismo pificação recíprocas. Pessoas podem ou disfarçadamente ou discretamen- pertencer a uma, ou a duas escolas, te religiosos são bem aceitos para O outro lado da questão é o drama ou áreas de conhecimento, ou de es- críticos literários laicos, enquanto tudo (studies), podem criar espaços escritores orgulhosamente cristãos 31 Hugo von Hofmannsthal (1874-1929): foi um escritor e dramaturgo austríaco e um dos instituidores do Festival de de mediação metodológica ou “in- são bem aceitos em terrenos teológi- Salzburgo. Hofmannsthal alcançou prestígio internacional graças a sua colaboração com o compositor e maestro terdisciplinar”, ou mesmo podem cos, e menos aceitos do outro lado. alemão Richard Strauss e foi um dos mais importantes re- existir pessoas híbridas, “contempo- Muitos escritores que flertaram com presentantes do movimento Fin de Siècle da língua alemã. (Nota da IHU On-Line) râneas”, perdidas ou não, mas essas o esoterismo ou tiveram esse seu 32 Stéphane Mallarmé (1842-1898): poeta e crítico lite- rário francês. Mallarmé se utilizava dos símbolos para possibilidades de afrouxamento não expressar a verdade através da sugestão, mais que da narração. Sua poesia e sua prosa se caracterizam pela mu- diminuem seu poder de estabeleci- 27 Wassily Kandinsky (1866-1944): artista russo, naciona- sicalidade, a experimentação gramatical e um pensamento mento não só no plano mental, mas lizado francês, professor da Bauhaus e introdutor da abs- refinado e repleto de alusões que pode resultar em um tração no campo das artes visuais. (Nota da IHU On-Line) texto às vezes obscuro. Seus poemas mais conhecidos são no âmbito de todo um modo de vida. 28 André Breton: criador do movimento artístico e literário L’aprés-midi d’un faune (1876), Herodias (1869) e Un coup Uma pode estar em baixa e diminuir conhecido como Surrealismo, surgido na França, no início de dês (1897). Outras obras importantes de Mallarmé são do século XX. Em 1924, André Breton publica o Primeiro a antologia Verso e prosa (1893) e o volume de ensaios sua influência e voz, outra pode estar Manifesto Surrealista. A sua pretensão é conseguir a escri- em prosa Divagações (1897). Mallarmé destacou-se por ta automática, o fluxo do subconsciente liberado de todas uma literatura que se mostra ao mesmo tempo lúcida e em alta e obrigar todas a ser levada as pressões sociais e culturais. A influência da psicanálise e obscura. É, por isso, considerado um poeta difícil e hermé- em consideração. Chegando a esse das obras de Freud é evidente, e na sua base reside a ideia tico. Sobre Mallarmé, confira a entrevista A quase-arte de de conseguir mudar a sociedade. Para isso, a escrita deve Mallarmé, concedida por André Dick, doutor em Literatura ponto, ela vai incidir em costumes, ser pura, refletindo unicamente aquilo que pensamos, sem Comparada pela UFRGS. O material pode ser acessado em correções nem retificações impostas pela “autocensura” www.ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) comportamentos, modos de existên- que todos exercemos. (Nota da IHU On-Line) 33 Gérard de Nerval (1808-1855): poeta francês. Desde cia. 29 Documentário sobre a escritora, poeta e dramaturga cedo foi atraído pela literatura alemã, em especial “Contos Hilda Hilst, considerada uma das mais importantes vozes Fantásticos”, de Hoffmann, e “Fausto”, de Goethe, que co- da língua portuguesa do século 20. Com arquivos pes- meçou a traduzir em 1828. (Nota da IHU On-Line) Recentemente, no plano político, soais, depoimentos, encontros e intervenções, o filme re- 34 André Breton: criador do movimento artístico e literário houve, para um grande número de vela sua memória e presença na Casa do Sol, chácara onde conhecido como Surrealismo, surgido na França, no início vivia em Campinas. (Nota da IHU On-Line) do século XX. Em 1924, André Breton publica o Primeiro pessoas, uma experiência radical de 30 Gabriela Greeb: diretora e roteirista de cinema, estu- Manifesto Surrealista. A sua pretensão é conseguir a escri- dou Filosofia, Letras e Ciências Humanas na PUC e na USP. ta automática, o fluxo do subconsciente liberado de todas conversão ao feminismo, ou ao ati- Deixou o Brasil em 1989 para estudar línguas na Europa, as pressões sociais e culturais. A influência da psicanálise e vismo ecológico, ou ao veganismo, onde ficou por 12 anos entre Londres, Barcelona e Paris. das obras de Freud é evidente, e na sua base reside a ideia Autora de curtas de ficção, documentários e vídeo instala- de conseguir mudar a sociedade. Para isso, a escrita deve em que o mundo se revelou com- ções, Greeb realizou seu primeiro documentário em 1996, ser pura, refletindo unicamente aquilo que pensamos, sem Le Baiser, que foi exibido em mais de mil salas de cinema correções nem retificações impostas pela “autocensura” pletamente diferente do que havia da França. Em 2003, fundou o estúdio independente Ho- que todos exercemos. (Nota da IHU On-Line) sido outrora. Essa capacidade de memadefilms, com o objetivo de produzir documentários 35 Dario Persiano de Castro Vellozo (1869-1937): poeta e autorais e instalações audiovisuais. (Nota da IHU On-Line) escritor brasileiro. (Nota da IHU On-Line) transformação profunda de subjeti-

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

vidades que movimentos políticos, ficit de atenção, sobre a qual filoso- trabalho de incursão na Amazônia intelectuais, ideológicos e culturais fa o grande teórico crítico Christoph profunda de Thiago de Mello41, na possuem molda a visão de mundo Türcke36, cujo último livro lançado no voz da divina cantora Ilessi, também dos envolvidos. No elevado nível de Brasil José Pedro Antunes37 traduziu me entusiasma. O livro que organizei promessa e potencial de autotrans- e eu revisei: ela leva a um empobre- com Pedro Sá Moraes, Música cha- formação, escolas de pensamento cimento inédito da percepção, uma ma, fala sobre essa produção. laicas e ordens esotéricas não estão tremenda cegueira para sutilezas. nada distantes umas das outras. Francisco Bosco38, importante figura da política cultural de hoje, é um dos Os conservadores reagem religiosa- Além da MPB poucos pensadores conscientes desse mente a um fenômeno que, de fato, problema. não pode ser excluído do âmbito re- Já não sei se seria fora da MPB, mas ligioso, mesmo que advindo de um Então, se artistas, críticos e produ- de qualquer modo mais dentro do rock terreno tido como secular. O que ge- tores culturais de alto nível não pa- alternativo, as composições solos de ralmente é trabalhado no plano dis- ram de trabalhar, devemos é dar es- ex-integrantes da histórica banda dos cursivo, em cursos, palestras, artigos paço a eles, e não duvido que, junto anos 90 de “rock regressivo”, Zumbi e livros, tendo um projeto de expan- com o árduo esforço de educadores, do Mato, refiro-me a Löis Lancaster e são ideológica, depois pode chegar essa é a melhor coisa que podemos Marlos Salustiano, estão simplesmen- em notícias, memes, posts, vídeos, fazer para lidar com os terrores con- te no auge de sua criatividade e pro- compartilhamentos e encaminha- temporâneos, por isso vou aqui citar dutividade e revelam-se a fina flor do mentos de WhatsApp e Facebook. Vi- alguns nomes. Thiago Amud39 aca- melhor que o rock brasileiro produziu vemos hoje uma espécie de hiperpe- bou de lançar o CD O cinema que o em toda sua história, motivo pelo qual netração de ideologias na vida virtual sol não apaga. Junto com os dois eu os considero, junto com Amud, os dos usuários. O nível de constância e outros, a obra de Amud tem se reve- principais nomes de uma construtiva intensidade de informação, advinda lado como a melhor coisa que já ouvi ousadia artística na música popular. de diversas mídias e interatividades, da MPB nos últimos 30 anos, não é à A banda Dos Cafundós foi, a meu ver, pode compor um indivíduo tão pre- toa que Caetano tem falado dele em a grande revelação de 2012, mas, por enchido por uma visão de mundo quase toda entrevista que dá recen- 60 ser um trabalho sofisticado demais quanto o monge mais devoto e o ati- temente. para atrair um público mais extenso (é vista mais empenhado. Ainda insisto no CD do Pedro Sá o que sempre lamento na vida…), um 42 Moraes40, Além do princípio do de seus integrantes, Pedro Carneiro , prazer, de 2013, que merece mais por vezes com o nome artístico “Vovô IHU On-Line – No Brasil de atenção do que teve. Tanto o CD de Bebê”, passou para o terreno da MPB hoje, há espaço para a arte em Amud quanto o do Pedro tiveram a e aí tem sido mais reconhecido, e nos meio a tantas crises? Por quê? inventiva produção de Ivo Senra. O últimos dias fez um quarteto com 43 Eduardo Losso – Deve haver, não Amud, Sylvio Fraga e Luiza Brina, tem como não haver. Depende de nos- cujo show recente foi lindo de se ver, sa saúde mental, de nossa medida de 36 Christoph Türcke: filósofo alemão, professor de filoso- aliás, o trabalho poético, musical e fia na Hochschule für Grafik und Buchkunst em Leipzig. sobrevivência, hoje, não ficar só dan- Dentre suas principais publicações, destacam-se: Der tolle cancional de Sylvio Fraga é especial. Mensch. Nietzsche und der Wahnsinn der Vernunft (4a ed., Nos últimos anos também se sobres- do importância a eternas discussões 2000), livro que foi traduzido para a língua portuguesa sobre política partidária, que geral- com o seguinte título: O louco: Nietzsche e a mania da saíram as belíssimas composições mi- razão (Rio de Janeiro: Vozes, 1993); Sexus und Geist: Phi- mente nos tornam reféns de projetos losophie im Geschlechterkampf (3a ed., 2001); e Rückblick neiras de Kristoff Silva, que recomen- de poder dos políticos e dos partidos, aufs Kommende: Altlasten der neuen Weltordnung. (Nota do expressamente. Gosto também de da IHU On-Line) 44 45 e destituem nossa própria autonomia 37 José Pedro Antunes: possui graduação em Letras pela Rômulo Fróes e Bruno Cosentino . Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e espaço de circulação enquanto pro- (1972), mestrado em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (1989) e doutorado em Teoria Li- 41 Thiago de Mello (1926): poeta brasileiro, ícone da li- dutores culturais, isto é, ofuscam a terária pela Universidade Estadual de Campinas (2001). teratura do Amazonas. Tem obras traduzidas para mais nossa política. O holofote constante Atualmente é professor assistente doutor da Universidade de trinta idiomas. Preso durante a ditadura, exilou-se no Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Temas de inte- Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e compa- na polarização apagou a cena artís- resse: tradução literária, teoria literária, vanguardas histó- nheiro por toda a vida. Com o fim do regime militar vol- tica de tal forma que geralmente as ricas, literatura alemã do século XX, teatro, cinema, poesia, tou à sua pequena cidade natal, Barreirinha, onde vive até língua alemã, entre outros. (Nota da IHU On-Line) hoje. (Nota da IHU On-Line) únicas manifestações culturais que se 38 Francisco de Castro Mucci (1976): conhecido como 42 Pedro Carneiro: músico, percussionista, compositor e Francisco Bosco, é um poeta, compositor e filósofo bra- maestro. Pedro Carneiro é um dos poucos músicos de per- destacam são aquelas que se referem sileiro. Em 2015, foi nomeado presidente da Funarte. Em cussão que fez carreira internacional como solista e se es- a ele. Isso já é um certo silenciamen- 2016 foi exonerado. Filho do músico João Bosco, fez dou- tabeleceu como um dos principais percussionistas solo do torado em Teoria Literária pela UFRJ. Foi coordenador da mundo, apresentando-se regularmente por toda a Europa, to da cultura, justamente na sua ca- Rádio Batuta e colunista do jornal O Globo. Suas primeiras Ásia e Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line) composições em parceria com o pai foram registradas por 43 Sylvio Fraga: poeta e compositor carioca, formado em pacidade única de singularização de este no CD As mil e uma aldeias, de 1997. A dupla voltou Economia pela PUC-Rio, diretor do Museu Antônio Parrei- vozes. A espetacularização da guerra a funcionar nos álbuns Na esquina (2000) e Malabaristas ras, em Niterói. Também é mestre em poesia na New York do sinal vermelho (2003). Também compôs com Guinga University. (Nota da IHU On-Line) moral (que é chamada, ironicamente, (Noturno Copacabana) e Fred Martins (Sem aviso, gravado 44 Romulo Fróes (1971): cantor e compositor brasileiro, por Maria Rita). (Nota da IHU On-Line) iniciou sua carreira na banda Losango Cáqui, com quem de “cultural”) retira a atenção para 39 Thiago Amud (1980): cantor, compositor, arranjador e lançou de forma independente, dois discos: Losango Cá- outras dimensões do olhar. Trata-se violinista brasileiro. (Nota da IHU On-Line) qui_1997 e Losango Cáqui #2_1999. (Nota da IHU On-Li- 40 Pedro Sá Moraes: cantor e compositor carioca de MPB. ne) de um dos efeitos da cultura do dé- (Nota da IHU On-Line) 45 Bruno Cosentino: é cantor e compositor brasileiro.

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Poesia Cohn54 e sua Azougue Editorial, cujo Agora cito novos poetas que têm trabalho crítico é imprescindível, re- me chamado atenção. Em primeiro Poetas em atividade não faltam: vigorador de um viés do pensamento lugar, uma explosão de mulheres, o merecem especial louvor os vete- poético pouco visível antes dele e do que todos estão comemorando com ranos que sempre aparecem com qual sinto fazer parte. Sua produção razão: Ana Paula Simonaci, Danielle grandes surpresas, como Afonso encantadora tenho estudado como o Magalhães, Gab Marcondes, Maria- Henriques Neto, o verdadeiro mago ponto de chegada daquilo que cha- na Basílio e Bruna Mitrano; além surreal da geração marginal, que em mamos de tradição delirante na po- delas, Nuno Rau, Rafael Zacca e o breve vai lançar seu primeiro épico; esia brasileira, bem como o trabalho jovem monge Tito Leite, cujo livro a vida no estranho mundo natural editorial e poético de Renato Rezen- Digitais do caos, me surpreendeu. de Leonardo Fróes46 e seu último de55, sobre o qual já escrevi um livro. Na prosa, gosto especialmente dos livro, Trilha; a incansável e ininter- Da minha geração, também desta- romances de Marcia Tiburi59 e os rupta produção de Armando Freitas co a produção de André Luiz Pinto, 47 contos de Evando Nascimento. Filho ; impressionam também os Tarso de Melo56, Rodrigo Petronio57 últimos livros de Salgado Maranhão. e Mariana Ianelli58. Por que não lembrar do meu re- O trabalho crítico e poético de Al- cém-lançado livro, Sublime e violên- berto Pucheu48, também intenso e cia. Ensaios sobre poesia brasileira numeroso, tem sido uma voz singu- contemporânea, em que reflito so- lar ao pensar sobre política a partir “Louvar o bre todas essas questões e analiso a de seu desguarnecimento poético- obra de alguns dos autores que citei? -filosófico. Também impressiona o silêncio nosso acadêmico Marco Lucchesi49, um dos maiores pensadores e pra- abstratamente, IHU On-Line – Depois da ex- ticantes da contemporaneidade da periência de 2013, o Brasil vive mística na poesia hoje. Dessa ge- sem ter em um avanço da extrema direita. ração, sempre acompanho Claudia Como o senhor vê esse atual ce- Roquette Pinto50, Carlito Azevedo51 e mente essa nário? O que ficou das resistên- Eucanaã Ferraz52; vale destacar a ex- cias e dos sonhos de 2013? 61 travagante poesia de Waldo Motta53. dimensão Eduardo Losso – Acho que a es- A mais incansável e ativa de todas concreta, é querda (não somente o PT, a esquer- as pessoas que conheço é Sergio da como um todo) deve fazer uma profunda autocrítica de todos os er- insatisfatório”. ros que levaram a dar de mão beija- (Nota da IHU On-Line) 46 Leonardo Fróes (1941): é um poeta, tradutor, jornalista, da a vitória a eles. A meu ver, ela se naturalista e crítico literário brasileiro. (Nota da IHU On- enganou gravemente em quatro as- -Line) 54 Sergio Cohn (1974): poeta e editor. Dirige a revista 47 Armando Martins de Freitas Filho (1940): é um poeta Azougue desde 1994 e coordena a Azougue Editorial des- pectos: desprezo pela classe média, brasileiro. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Bar- de 2001. (Nota da IHU On-Line) bosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal 55 Renato Rezende (1964): escritor, tradutor e artista desprezo pela religião (dos setores de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, no Rio visual. Graduou-se em Estudos Hispânicos pela Universi- mais culturais e intelectualizados), de Janeiro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional, dade de Massachusetts, Estados Unidos. Sua obra Ímpar assessor no gabinete da presidência da Funarte, onde se venceu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca desconsideração pelas preocupações aposentou. (Nota da IHU On-Line) Nacional como melhor livro de poesia de 2005. (Nota da morais da população e fragmentação 48 Alberto Pucheu (1966): filósofo, poeta e ensaísta bra- IHU On-Line) sileiro, professor doutor do curso de Teoria Literária da 56 Tarso de Melo (1976): é um advogado e poeta brasilei- dos movimentos identitários. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de ro. (Nota da IHU On-Line) Janeiro. (Nota da IHU On-Line) 57 Rodrigo Petronio (1975): escritor e filósofo brasileiro. 49 Marco Lucchesi: mestre em História pela Universidade Doutor em Literatura Comparada pela UERJ, com uma tese Por tudo isso, eu poderia ficar aqui Federal Fluminense e em Letras (Ciência da Literatura) pela sobre mesologia, uma teoria geral dos meios situada na falando do pavor que todos sentem Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Letras fronteira entre a cosmologia, a filosofia, a arte e a antro- (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de pologia. Desenvolveu doutorado sanduíche na Stanford pela ascensão de um pensamento ex- Janeiro. Atualmente é professor adjunto da Universidade University, sob orientação de Hans Ulrich Gumbrecht. For- Federal do Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line) mado em Letras Clássicas (USP), tem dois mestrados: em 50 Claudia Roquette-Pinto (1963): poeta brasileira. (Nota Ciência da Religião (PUC-SP), sobre o filósofo contempo- 59 Marcia Tiburi: filósofa e artista plástica brasileira, es- da IHU On-Line) râneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada (UERJ), pecialista em Filosofia pela Universität Gesamthochschule 51 Carlito Azevedo (1961): é um editor, tradutor, crítico e sobre arte e filosofia na Renascença. Foi professor e coor- Kassel, Alemanha, mestra e doutora em Filosofia pela Pon- poeta brasileiro. (Nota da IHU On-Line) denador dos cursos de Literaturas Espanhola e Hispano-A- tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) 52 Eucanaã Ferraz (1961): poeta brasileiro. Publicou, entre mericana na Universidade Santo André e da Universidade e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), outros, os livros de poemas Desassombro (7 Letras, 2002 - Anhanguera. É professor da pós-graduação dos cursos de respectivamente, com a tese Dialética negativa: superação Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Argumento e Roteiro e de História da Arte da FAAP. (Nota negativa e a transformação da Filosofia em Theodor W. Nacional, melhor livro de poesia de 2002), Rua do mundo da IHU On-Line) Adorno. É autora de, entre outros, Filosofia Cinza – a me- (Companhia das Letras, 2004), Cinemateca (Companhia 58 Mariana Ianelli: poeta, ensaísta, cronista e crítica lite- lancolia e o corpo nas dobras da escrita (Porto Alegre: Es- das Letras, 2008), Sentimental (Companhia das Letras, rária brasileira, mestra em Literatura e Crítica Literária pela critos, 2004); Metamorfoses do Conceito – ética e dialética 2012 - Prêmio Portugal Telecom 2013) e Escuta (Compa- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. negativa em Theodor Adorno (Porto Alegre: Editora da nhia das Letras, 2015): para o público infanto-juvenil, Poe- Entre suas produções, destacam-se os livros de poesia UFRGS, 2005) e A mulher de costas (Rio de Janeiro: Ber- mas da Iara (Língua Geral, 2008). (Nota da IHU On-Line) Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens trand Brasil, 2006). É autora da 11ª edição do Cadernos 53 Edivaldo Motta (1959): é poeta, ator, numerólogo, (2003) e Fazer silêncio (2005), que chegou a finalista dos IHU ideias, intitulado Os 100 anos de Theodor Adorno e curador, místico e agitador cultural brasileiro, comumen- prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006, Além de a filosofia depois de Auschwitz, disponível para download te ligado à geração marginal da década de 1980 e, mais Almádena (2007), finalista do prêmio Jabuti 2008, Treva al- no site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, www.ihu. especialmente, à de 1990, apontado como uma das mais vorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela edito- unisinos.br. Tiburi fez parte do elenco do programa Saia representativas vozes da poesia brasileira no final do sécu- ra Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu Justa, veiculado pelo canal fechado GNT, ao lado de Moni- lo XX e início do século XXI, ao lado de Fabrício Carpinejar, por Mariana Ianelli, (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com ca Waldvogel, Betty Lago, Maitê Proença e Soninha Fran- Angélica Freitas, Micheliny Verunschk, Frederico Barbosa, o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. cine. Para mais detalhes, visite www.marciatiburi.com.br. Cláudia Roquette-Pinto e Cuti. (Nota da IHU On-Line) ardotempo, 2013). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

tremista e nada respeitado por todos liam o outro lado, discutiam com -se a meu ver como central. os nossos critérios. Ao contrário, o muitas alteridades epistemológicas e que eu vou dizer é que precisamos sabiam, inclusive, apreciá-las. ouvi-los. Nossas humanidades foram Eu sou um ateu que fiz de todo o Repensando questões mo- criando, ao longo do tempo, uma re- meu esforço intelectual um espaço de rais doma em que só se lê mais ou me- diálogo com estudiosos de religião, e nos as mesmas escolas, as mesmas sinto muita falta desse empenho no Acho que intelectuais de esquerda tradições e vive-se sempre no mes- meu campo. Não é sem motivo que precisam repensar questões morais, mo espectro ideológico. Um Ben- meu grupo de pesquisa seja de estu- precisam ler mais sobre religião, pre- jamin, um Adorno, um Foucault60, dos interdisciplinares de mística, o cisam parar de menosprezar a classe um Leandro Konder61, um Antonio Apophatiké, e que estejamos sempre média e precisam parar de se subdivi- Candido62 não tinham esse entrave: publicando e produzindo eventos e dir, de se magoar uns aos outros e ter discussões. Merece menção um de- algum horizonte de união, para além 60 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas das disputas partidárias. E quando obras, desde a História da Loucura até a História da sexua- les, organizado por Marcus Reis Pi- lidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), nheiro63 e pela direção do Instituto de digo união, é para expandir mesmo: situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo Ciências Humanas e Filosofia da Uni- com religiosos, evangélicos inclusive com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, e, naturalmente, com a classe média a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição versidade Federal Fluminense - UFF, 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; em que compus a mesa com Maria que ridicularizam, enfim, é preciso edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ 64 C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da Clara Bingemer , e falamos sobre a reconhecer os progressistas de seto- loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em res que podem não estar dentro dos https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo bio- fundamental relação entre cristianis- político da vida humana, de 13-9-2010, disponível em ht- mo e universidade hoje. tipos ideais que a esquerda passou a tps://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de cultuar. Eles podem ser a ponte para exceção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo. gl/RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos Este ano houve eventos necessários se chegar à base perdida. IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, e produtivos dentro dessa área: parti- Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) cipei do VII Congresso ALALITE Rio A maior parte do povo brasileiro se 61 Leandro Konder: filósofo e professor da Pontifícia Uni- considera classe média, mesmo sen- versidade Católica (PUC-RJ) e autor de várias obras, entre 2018. Teopoética: Mística e Poesia, elas Marxismo e alienação: contribuição para um estudo que foi organizado por Alex Villas do classe C, então falar mal de classe do conceito marxista de alienação (Rio de Janeiro: Civili- média é um disparate, como já de- 62 zação Brasileira, 1965); A democracia e os comunistas no Boas, Marcio Capelli e Maria Clara, Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1980) e A derrota da dialética: monstrei em um artigo que teve al- A recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo na PUC-Rio; e de outro que destaco: dos anos trinta (Rio de Janeiro: Campus, 1988). Em maio Teopoética - Presenças do Sagrado guma repercussão. A maior parte do de 2002, foi homenageado com o Prêmio povo brasileiro gosta de moral e reli- de Melhor Intelectual do Ano durante a cerimônia de na Literatura, no Sesc São Paulo, or- lançamento do Fórum do Rio de Janeiro. É considerado gião. Se quiser sensibilizá-los, é pre- um dos grandes responsáveis pela divulgação e expansão ganizado por Leandro Garcia. Além dos diálogos sobre o marxismo no Brasil. Filho de Valério desses amigos citados que admiro, ciso deixar que eles nos sensibilizem. Konder, médico e líder comunista, Leandro teve o primeiro contato com os ideais marxistas durante a infância, em sua o trabalho de mística comparada de Mano Brown65 deu um recado a esse própria casa, onde intelectuais do Partido Comunista Bra- Faustino Teixeira, que além do mais sileiro (PCB) se reuniam. Tanto que ele militou dos 15 aos respeito, falta seguirmos a sua indica- 47 anos no partido. O que era apenas um interesse infantil é um leitor voraz de poesia, confirma- ção. Enquanto isso não ocorrer, verei gerou mais de 20 obras publicadas, além de traduções de autores marxistas como o húngaro Georg Lukács. Por cau- o retumbante fracasso como perfeita- sa da luta política, foi obrigado a fugir para a Alemanha, na década de 70, com o regime militar em seu encalço. Resistência. Em 1980, participou da fundação do Partido mente natural. Se a única esperança (Nota da IHU On-Line) dos Trabalhadores - PT. Em 1959, lançou sua obra mais da esquerda se reduzir a aguardar o 62 Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017): nas- influente, Formação da Literatura Brasileira. Outros títulos cido no Rio de Janeiro, na infância sua família mudou-se importantes que lançou são Literatura e sociedade (1965), fracasso deles, fico com a sensação para Poços de Caldas, em Minas Gerais. Escritor, ensaísta, Educação pela noite e outros ensaios (1987) e O roman- sociólogo e professor universitário, era expoente da crítica tismo no Brasil (2002). Sobre Candido, conferir as entre- de que ninguém mais sabe aprender literária brasileira e um dos maiores intelectuais da história vistas “A literatura é um direito do cidadão, um usufruto com as derrotas, isto é, que ninguém do Brasil. Professor emérito da Universidade de São Paulo peculiar”, concedida por Flávio Aguiar à IHU On-Line nº - USP e da Universidade Estadual Paulista - Unesp. Lecio- 278, de 20-10-2008, disponível em https://goo.gl/qa95Jy, mais sabe aprender. nou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e “Antonio Candido e a crítica cultural contemporânea”, - FFLCH da USP por 50 anos (1942 a 1992). Candido foi concedida por Célia Pedrosa à IHU On-Line nº 283, de 24- um dos principais pensadores ligados aos estudos sobre a 11-2008, disponível em https://goo.gl/92rizw. (Nota da formação do Brasil, inaugurados nos anos 1930 e 1940 por IHU On-Line) Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado 63 Marcus Reis Pinheiro: graduado em Filosofia pela IHU On-Line – Como nutrir Júnior. Ingressou na Faculdade de Direito e na Faculdade Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado, de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1939, doutorado e pós-doutorado em Filosofia pela Pontifícia esperança através da arte, es- tendo abandonado a primeira no quinto ano e se formado Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em pecialmente poesia e literatura, em Ciências Sociais em 1942. Em 1945, obteve o título de Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de livre-docente com a tese Introdução ao Método Crítico de Janeiro. Atualmente é chefe de departamento de Filosofia mobilizando um conhecimen- Sílvio Romero e, em 1954, o grau de doutor em Ciências da Universidade Federal Fluminense, onde é professor ad- to de si mesmo? E como levar Sociais com a tese Parceiros do Rio Bonito. Na Universida- junto II. (Nota da IHU On-Line) de Estadual de Campinas - Unicamp, recebeu o título de 64 Maria Clara Bingemer: teóloga e decana do Centro esse conhecimento individual à doutor honoris causa. Aposentou-se na USP em 1978, mas de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de, manteve-se como professor do curso de pós-graduação entre outros, A experiência de Deus num corpo de mulher transformação coletiva? até 1992, ano em que orientou a última tese. Foi crítico da (São Paulo: Loyola, 2002); e Deus amor: graça que habi- revista Clima (1941-4), juntamente com intelectuais como ta em nós. (São Paulo/Valência: Paulinas/ Siquem, 2003). Eduardo Losso – Eis a questão.■ o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, a ensaísta Confira entrevista concedida na edição 84 da IHU On-Line, Gilda de Mello e Souza e o neurocientista Antonio Branco de 17-11-2003, sobre a filósofa Simone Weil; na edição Lefévre. Acadêmica, a revista estabeleceu novos caminhos 103, de 31-5-2004, sobre o Simpósio Internacional O Lu- 65 Pedro Paulo Soares Pereira (1970): mais conhecido para a crítica paulistana. Candido também trabalhou como gar da Teologia na Universidade do Século XXI. Na edição como , é um rapper brasileiro, vocalista dos crítico dos jornais Folha da Manhã (1943-5) e Diário de São 121, de 1-11-2004, sobre o sentido cristão da morte. Maria Racionais MC’s, grupo de rap formado na capital paulista Paulo (1945-7). Em 1956, idealizou o Suplemento Literário, Clara é autora do segundo número dos Cadernos Teologia em 1988 e integrado por Ice Blue (Paulo Eduardo Salva- caderno de crítica que circulava no jornal O Estado de S. Pública, Teologia e Espiritualidade. Uma leitura teológico- dor), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Ge- Paulo até 1966. Na vida política, participou da luta contra -espiritual a partir da realidade do Movimento Ecológico e raldo Lelis Simões). (Nota da IHU On-Line) a ditadura do Estado Novo no grupo clandestino Frente de Feminista. (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

Contra os ressentidos de 2013 é preciso alegria como substância para resistência Thiago Amud analisa como as marchas foram apreendidas pelo “neofascismo” e vê na arte uma forma de ativar sentimentos que mobilizam sentimentos positivos como reação

João Vitor Santos

que a França tem vivido nos nesses movimentos que apreende si- últimos tempos com o movi- milaridades com a experiência de Etty mento dos “coletes amarelos” Hillesum. “Etty vai parar no coração Oparece um filme que já foi visto pelo da estrutura mortífera. Ali, dentro do Brasil em Junho de 2013, ou mesmo mundo exausto reencantado artificio- pelo francês Nuit debout de 2016. De samente pelos dispositivos do ocultis- uma onda de protestos desencadea- mo e da técnica, ela nos faz enxergar dos a partir das redes, aparentemente que as qualidades de nosso estar no sem liderança clara e como algo que mundo nunca são atributos concedi- emerge das bases, os confrontos se dos pelos donos do poder”, compara. tornam munição para o sufocamento Amud ainda aponta a arte como uma 63 de ações progressistas, ao passo que chave interessante, que pode ajudar nutrem reações de uma nova extrema nesse processo de resistência alegre. direita. “Até 2013, a direita andava “Os intelectuais acadêmicos da esquer- envergonhada, esgueirando-se fisiolo- da precisam entender algumas coisas gicamente em cantinhos do PSDB, do que artistas já intuem: que o iluminis- DEM. A partir de 2013, a direita bra- mo não pode virar superstição; que a sileira monta no cavalo negro do res- religiosidade do povo brasileiro tende sentimento e começa a agenciar todas ao messianismo; que ser republicano as sombras do país”, observa o músico não é sinônimo de ser democrata; que Thiago Amud, ao falar da realidade a classe média não deve ser entregue brasileira. Para ele, a profusão de 2013 de bandeja à máquina paranoica dos não foi entendida pela esquerda – e ultraconservadores; que é preciso não talvez nem pela direita –, mas desse apenas entender a forma como as re- “não entendimento” se abre uma bre- des (estruturas de natureza não em- cha e “o hype neofascista se alastra a pática) conseguem acicatar todos os partir daí”. desejos reativos, mas também elabo- E como reagir? “Se compreender- rar um programa de ação contra-hip- mos tal processo como um longo en- nótico sob medida para essas mesmas cadeamento entre causas intelectuais redes”, acrescenta. e efeitos anti-intelectuais, melhor Thiago Amud é compositor, arran- entenderemos que a perversão é uma jador, cantor e violonista carioca, par- dobra sombria necessária do mundo ceiro de artistas como Guinga, Fran- dito esclarecido, e não um seu aciden- cis Hime, Edu Kneip, entre outros. te”, analisa, na entrevista concedida Na sua discografia, destacamos 78 por e-mail à IHU On-Line. “Por isso, rotações (2000), Sacradança (2010) e a alegria deve ser a própria substância De ponta a ponta tudo é praia-palma de toda resistência aos hiper-racio- (2013). nais, dos catedráticos aos tecnicistas e aos ocultistas”, completa. Assim, é Confira a entrevista.

EDIÇÃO 531 TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Etty Hillesum IHU On-Line – Como observa trabalha uma resistência alegre a relação das gerações mais jo- IHU On-Line – Durante a re- em tempos sombrios, de perso- vens com as músicas de artistas pressão da ditadura militar, nificação do mal. Qual a potên- como Caetano1, Gilberto Gil2, a poesia e a música eram oxi- cia de uma resistência alegre gênio para resistência e para diante do perverso? 1 (1942): músico, produtor, arranjador quem sonhava com tempos me- e escritor nascido em Santo Amaro (BA). Com uma car- Thiago Amud – Os tempos que lhores. Quais os desafios para, reira que ultrapassa cinco décadas, Caetano construiu uma obra musical marcada pela releitura e renovação, couberam a Etty viver foram mais em meio à aspereza de uma considerada como de grande valor intelectual e poético. Começou sua carreira profissional em 1965, com o com- do que sombrios. Foram a própria realidade, conceber escapes pacto Cavaleiro/Samba em Paz, enquanto acompanhava Sombra desprendida da busca que através de uma arte que anima a irmã mais nova Maria Bethânia por suas apresentações nacionais do espetáculo Opinião, no Rio de Janeiro. Nessa o espírito alemão empreendeu no e não se entregue ao lamento? década, conheceu , e Tom Zé, parti- sentido de um total esclarecimento cipou dos festivais de música popular da Rede Record e Thiago Amud – Sinto que é pre- compôs trilhas de filmes. Em 1967, saiu seu primeiro LP, racional. A Reforma Protestante, a Domingo, com Gal Costa, e, no ano seguinte, liderou o ciso que todos deem tudo que têm movimento chamado Tropicalismo, que renovou o cená- Crítica da Razão Pura e a dialética uns aos outros, menos sua fonte mis- rio musical brasileiro e os modos de se apresentar e criar hegeliana, por exemplo, são sinais música no Brasil, através do disco Tropicalia ou Panis et teriosa de vida. Porque é claro que Circencis, ao lado de vários músicos. Em 1968, por conta de um processo autoanalítico multis- do recrudescimento da ditadura militar no Brasil, compôs há os que exigem de nós justamente secular que vai exaurindo o espírito É proibido proibir, música que foi desclassificada e vaiada aquilo que não podemos dar. durante o 3º Festival Internacional da Canção. Em 1969, alemão, inteiriçando-o. Quando cri- foi preso pelo regime militar e partiu para exílio político em Londres, onde lançou o disco Caetano Veloso (1971), ses econômicas e avanços tecnicistas com temática melancólica e canções compostas em inglês e endereçadas aos que ficaram no Brasil. Transa (1972) se juntam a isso, temos todos os ele- representou seu retorno ao país e seu experimento com mentos de uma ideologia totalizante compassos de reggae. Em 1976, uniu-se a Gal Costa, Gil- berto Gil e Maria Bethânia para formar os Doces Bárbaros, de guerra. grupo influenciado pela temática hippie dos anos 1970, “Os tempos lançando um disco, Doces Bárbaros, e saindo em turnê. A Sombra à qual me referi começa Na década de 1980, apadrinhou e se inspirou nos grupos de rock nacionais, aventurou-se na produção dos discos a ganhar vida própria quando ideó- Outras Palavras, Cores, Nomes, Uns e Velô, e, em 1986, que couberam participou de um programa de televisão com Chico Buar- logos, já sem lastro naquilo que um que. Na década de 1990, escreveu o livro Verdade Tropical dia fora a vitalidade daquela cultu- (1997) e lançou o disco Livro (1998). Ganhou o Prêmio a Etty viver Grammy em 2000, na categoria World Music. Com o disco 64 ra, identificam a desorientação da A Foreign Sound, cantou clássicos norte-americanos. Em 2006, lançou o álbum Cê, fruto de sua experimentação maioria e conseguem “reorganizar” foram mais do com o rock e o underground. Unindo estes gêneros ao os anseios nacionais lançando mão samba, Zii e Zie, de 2009, manteve a parceria com a Banda Cê, que se encerrou no disco Abraçaço, de 2012. É consi- de mitos ocultistas que aparente- que sombrios” derado um dos artistas brasileiros mais influentes desde a década de 1960. Em 2004, foi considerado um dos mais mente reinterpretam o sentido da respeitados e produtivos músicos latino-americanos do existência daquela cultura. Os mitos mundo, tendo mais de 50 discos lançados. Foi eleito pela arianistas galvanizam setores da eli- revista Rolling Stone o 4º maior artista da música brasileira O artista precisa se conhecer, sa- de todos os tempos pelo conjunto da obra e pela mesma te e das classes médias e fornecem revista o 8º maior cantor brasileiro de todos os tempos. ber qual é seu núcleo inegociável. Se (Nota da IHU On-Line) energia a um partido arrivista, cheio 2 Gilberto Gil (1942): cantor, compositor, multi-instrumen- algo ferir esse núcleo, que deixe vir tista, escritor, ambientalista e empresário nascido em Sal- de ressentidos e alucinados. vador (BA), um dos criadores do Movimento Tropicalista seu lamento, pois quando o artista nos anos 1960. Conhecido por sua inovação musical e por Se compreendermos tal processo significa sua dor, mitiga o sofrimen- ser ganhador de prêmios Grammys. Recebeu do governo francês a Ordem Nacional do Mérito (1997) e da Unes- como um longo encadeamento entre to do mundo. Não-artísticos são os co o título de “artista pela paz” (1999). Gil foi embaixador causas intelectuais e efeitos anti-in- amuos. Não-artística é a crueza da da ONU para agricultura e alimentação e ex-ministro da Cultura (2003-2008). Em mais de 50 álbuns lançados, ele telectuais, melhor entenderemos que dor. Não-artística é a neura irredimi- incorpora a gama eclética de suas influências, incluindo rock, gêneros tipicamente brasileiros, música africana e a perversão é uma dobra sombria ne- da. Porque mesmo elegíaca a criação reggae. Sua carreira musical começou em 1964, quando cessária do mundo dito esclarecido, permanece altiva em relação à mes- cursava Administração na Universidade Federal da , e participou do show Nós, Por Exemplo, ao lado de Caetano e não um seu acidente. Por isso, a quinhez. E, aí, já está a alegria: es- Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia, na inaugura- ção do teatro Vila Velha, em Salvador. Em 1965, mudou- alegria deve ser a própria substância boço de triunfo sobre a opressão da -se para São Paulo. No ano seguinte, sua música Ensaio de toda resistência aos hiper-racio- sintaxe normativa, no mínimo. geral, interpretada por Elis Regina, ficou em 5º lugar no 2° Festival de Música Popular Brasileira (FMPB), realizado nais, dos catedráticos aos tecnicistas pela antiga TV Record. Em 1967, a música Domingo no Penso que quem quer que tenha e aos ocultistas. Etty vai parar no parque, que cantou junto com os Mutantes, ficou em 2º ajudado qualquer pessoa a recuperar lugar no 3º FMPB. Nesse mesmo ano lançou seu primeiro coração da estrutura mortífera. Ali, disco, Louvação. O 3º FMPB foi o ponto de partida para o vontade de vida e alegria é um pou- Tropicalismo, de que Gil participou junto com Caetano Ve- dentro do mundo exausto reencan- co anjo da guarda. Somente na arte a loso, Torquato Neto, Tom Zé e Rogério Duprat, entre ou- tado artificiosamente pelos disposi- tros. Em 1968, lançou Gilberto Gil, com 14 músicas, entre tristeza alegra, porque o indizível ga- elas, Procissão e Domingo no parque. Lançou também um tivos do ocultismo e da técnica, ela disco manifesto, intitulado Tropicalia, do qual participa- nha nome sem perder o mistério. Por ram também Caetano, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e nos faz enxergar que as qualidades isso o artista não fabrica escapes: ele Torquato Neto. O Movimento Tropicalista foi considerado de nosso estar no mundo nunca são subversivo pela ditadura militar, e Gil foi preso, junto com cria o campo simbólico onde todos Caetano Veloso. Em 1969, ambos se exilaram na Inglaterra. atributos concedidos pelos donos do Nesse mesmo ano, foi lançado Gilberto Gil (1969), onde poderemos não sucumbir ao pesade- se destacou a música Aquele abraço. No início de 1972, poder. Alegria é entender que nasce- lo enlouquecedor da história. Gilberto Gil voltou ao Brasil, em seguida lançou Expresso mos com nossa morte e que dela só 2222. Em 1976, junto com Caetano, Gal e Betânia, forma- ram o conjunto Doces Bárbaros, que rendeu um álbum e nos tira Aquele que nos deu a vida. várias turnês pelo país. Em 1978, se apresentou no Festi- val de Montreux, na Suíça. Nesse mesmo ano ganhou o

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Milton Nascimento3, Chico Bu- sempre achei bobagem para aliviar Caetano arque4 e tantos outros que fa- má consciência de burguês. Ainda ziam resistência à repressão? mais em se tratando de música, que Caetano Veloso não se deixa captu- é fluência, não é cânone. rar pelas categorias da história e dos Thiago Amud – Dou aulas de mascaramentos teatrais: sua música violão e música e a maioria de meus Quanto aos quatro compositores se abre a tudo que é vontade de vida. alunos tem entre 20 e 30 anos. Eu, citados acima, há neles elementos Sua radical adesão aos ideais da de- aos 13 anos, já sabia que a músi- mais do que suficientes para todas as mocracia – e não um seu narcisismo ca brasileira seria meu destino. Fui inquietudes. – exige que ele interfira o tempo todo. crescendo em descompasso com Caetano se diz e se pensa sem parar meus colegas de sala de aula que, em porque dizer-se e pensar-se é exercí- sua esmagadora maioria, gostavam Chico cio de liberdade, interferir é afirmar apenas de funk, dance music ou he- as forças da vida. avy metal. (Hoje vejo com simpatia A obra de acompa- Seja entre concretistas ou funkeiros, o funk. Aprendi a gostar de tudo que nha toda a formação do Brasil: todos Caetano é sempre o coração sensível não fere a alteridade. E o funk é uma os ciclos, todos os apogeus, todas as do legítimo desejo brasileiro de ori- bomba de energia brasileira). decadências. Gostar de Chico é gos- ginalidade. Por isso mesmo – porque Voltando a meus alunos: se quando ele vê que poderíamos ser imensa- eu tinha aquela idade esses composi- mente maiores do que somos – algu- tores que você citou já faziam “mú- mas de suas canções mais violentas sica de velho” no entendimento ado- surgem nas décadas da redemocra- lescente de quase todo meu meio, tização, quando ficou nítido que me- imagine agora que eles têm 75 anos! “A alegria deve canismos opressores nunca deixaram Então, vou aos poucos percebendo ser a própria de atuar sobre os mais pobres. as inquietudes de cada aluno meu, suas questões existenciais, indigna- substância de ções políticas, conflitos amorosos e Gil 65 familiares. Só então eu tento aplicar toda resistência neles os grandes nomes da música Já a liberdade de Gil é a de quem brasileira, sempre a partir do que aos hiper- venceu o medo da morte; portanto, eles me mostram de si mesmos, e venceu o desejo. A complexidade de nunca a partir de apriorismos meus racionais, dos sua obra é tamanha que parece regi- sobre “formação cultural básica”. da por uma heteronímia quase pes- Não creio nesse negócio de ter que catedráticos soana. Mas, pop star ou mestre Zen, conhecer uma determinada quanti- tribal ou intimista, tecnológico ou dade de coisas para virar alguém. Já aos tecnicistas sertanejo, Gil sempre parece extrair até fingi que acreditava nisso, mas suas canções de embates totais entre e aos ocultistas” o seu coração e o do Ser. Assim, des- Grammy de Melhor Álbum de Word Music com Quanta vela dimensões e conexões tão insus- Gente Veio Ver. Em 1980, lançou uma versão em portu- guês do reggae No Woman, No Cray (Não Chores Mais), peitadas que não nos dão outra opção sucesso de Bob Marley. Entre 1989 e 1992, foi vereador senão aceitarmos a vida por inteiro – na Câmara Municipal de Salvador, pelo Partido Verde. Em 2003, foi nomeado ministro da Cultura, se desligando em tar do Brasil: é gostar do samba, é ser o que muitas vezes é mal interpretado janeiro de 2008, para se dedicar à carreira musical. Depois como relativismo ou passividade. de três casamentos, o músico está casado com Flora Gil, bom sujeito, é gostar da sofisticação que conheceu em 1979. (Nota da IHU On-Line) oblíqua da civilidade que em nós se 3 (1942): cantor e compositor brasi- Movimentando-se constantemente leiro, reconhecido mundialmente como um dos mais in- esboça de modo específico e que vira fluentes e talentosos cantores e compositores da Música entre ser ele mesmo o pulso da tribo e Popular Brasileira. Mineiro de coração, tornou-se conheci- e mexe é solapada por tsunamis de ser quem a pensa distanciadamente, do nacionalmente, quando a canção Travessia, composta barbárie. por ele e Fernando Brant, ocupou a segunda posição no Gil resulta misterioso. Há nele sem- Festival Internacional da Canção, de 1967. Em 1998, ga- nhou o Grammy de Best World Music Album in 1997. Foi O enamoramento do Brasil por Chi- pre algo que nos escapa, mas nunca nomeado novamente para o Grammy em 1991 e 1995. co é sinal de nosso ouvido musical, tanto quanto em Milton Nascimento. (Nota da IHU On-Line) 4 Chico Buarque [Francisco Buarque de Hollanda] (1944): pois o coração da música de Chico é músico, compositor, teatrólogo e escritor carioca. Um dos mais famosos nomes da música popular brasileira (MPB), ardiloso, suas tonalidades tendem à cuja discografia tem aproximadamente 80 títulos. Ganhou ambiguidade entre os modos maior fama por sua música, que comenta o estado social, econô- Milton mico e cultural do Brasil. Começa a ter destaque a partir de e menor, entre os afetos em conflito, 1966, quando lançou seu primeiro álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu o Festival de Música Popular Bra- da mesma forma que não sabemos se Milton talvez escape inteiramente sileira com a música A banda. Autoexilou-se na Itália em aqueles olhos ardósia são de zomba- até de si mesmo. Talvez antes dele 1969, devido ao aumento da repressão da ditadura insta- lada em 1964. Venceu três Prêmios Jabuti de literatura: o ria ou melancolia. Nunca saberemos a música popular brasileira nunca de melhor romance em 1992, com Estorvo, e o de Livro do Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Leite Derramado, o que nele é máscara. tivesse atingido o cerne inconsciente em 2010. (Nota da IHU On-Line)

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da vontade subjacente às represen- situando-o na linha da alquimia e da a direita andava envergonhada, es- tações. Por isso, tudo em sua música simpatia, inscrevendo-o na história gueirando-se fisiologicamente em é experiência religiosa, chamamen- da singularidade amorosa da música cantinhos do PSDB, do DEM. A par- to, iniciação, sacrifício, epifania, li- brasileira. tir de 2013, a direita brasileira mon- turgia, transe, comunhão. Ele não é ta no cavalo negro do ressentimento O Brasil não pode prescindir do discursivo, ele é a inteireza de uma e começa a agenciar todas as som- samba nem do rap. intensidade, de uma revelação. bras do país. Adensa-se o caldo onde se move: desejo de criminalizar cer- tos desejos sexuais, para desentravar IHU On-Line – Em 20137, o IHU On-Line – Na periferia a bestialidade de outros; projetos de Brasil viveu uma explosão de das grandes cidades brasilei- pauperizar mais ainda os periféricos, narrativas, de inúmeras ações ras, mesmo apesar de toda a desregulamentando seus direitos de coletivos que tomavam o es- adversidade, sempre brotou trabalhistas; avanços neopentecos- paço público. O que ficou dessa o samba, o rap e outras mani- tais sobre a saúde pública; avanços experiência hoje? festações artísticas que bus- ocultistas sobre a educação; defesa cam uma forma de resistência Thiago Amud – O hype neofas- do direito à propriedade acima do alegre. Hoje, nas periferias do cista se alastra a partir daí. Até 2013, direito à vida. Brasil, a arte ainda é uma arma Quase todas as famílias brasileiras potente contra supressão? Por mentos, entre eles: rock and roll, samba, samba rock (ter- mo que gosta de usar), bossa nova, jazz, maracatu, funk, racharam. E não creio que tão cedo quê? ska e até mesmo hip hop, com letras que misturam humor e sátira, além de temas esotéricos. A obra de isso tenha volta. Então, acho que os Thiago Amud – Toda resistên- tem uma importância singular para a música brasileira, coletivos emancipatórios que tam- por incorporar elementos novos no suingue e na maneira cia cultural surgida nas periferias de tocar violão, com características do rock, soul e funk bém tomaram as ruas em 2013, os do Brasil age sobre toda a sociedade movimentos sociais e os partidos de brasileira, e pode vir a ajudar a civili- oposição, precisam agir coordenada- zação como um todo, na medida em mente no sentido da organização da que entendemos por civilização um “Não-artísticos energia política. O movimento não projeto universalizante baseado no pode ser de mera reação, o que seria 66 respeito às alteridades. O sofrimen- são os amuos. aceitar o ressentimento como instân- to das periferias, sua experiência de cia política legítima. choque direto com as engrenagens Não-artística é Se as forças da conservação assumi- do Estado, produz os anticorpos da ram a vanguarda da agressividade, sociedade. a crueza da dor. caberá às forças do progresso assumir O Brasil viveu por muito tempo Não-artística a defesa suprapartidária do projeto a cultura dos negaceios, da síntese original do amálgama brasileiro. Por entre os contrários, do entrelugar. O é a neura outro lado, os intelectuais acadêmi- samba é isso: fluidez, síncope, triste- cos da esquerda precisam entender za que balança, dialética da malan- irredimida” algumas coisas que artistas já intuem: dragem. Já o rap, nascido nas peri- que o iluminismo não pode virar su-

ferias da megalópole pós-industrial norte-americanos. Além disso, trouxe influências árabes e perstição; que a religiosidade do povo São Paulo, introduz na cultura brasi- africanas, oriundas de sua mãe, nascida na Etiópia. (Nota brasileiro tende ao messianismo; que da IHU On-Line) leira, pela primeira vez, um discurso 7 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, tam- ser republicano não é sinônimo de bém conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, direto não conciliatório. Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram ser democrata; que a classe média várias manifestações populares por todo o país que ini- 5 não deve ser entregue de bandeja à Mas o mero fato de os Racionais re- cialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas máquina paranoica dos ultraconser- conhecerem a importância de Jorge de transporte público, sobretudo nas principais capitais. Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes, vadores; que é preciso não apenas Ben6 já particulariza o rap brasileiro, os atos pela redução das passagens nos transportes pú- blicos ganharam grande apoio popular em meados de entender a forma como as redes (es- junho, em especial após a forte repressão policial contra os manifestantes, cujo ápice se deu no protesto do dia truturas de natureza não empática) 5 Racionais MC’s: grupo brasileiro de rap, fundado em 13 em São Paulo. Quatro dias depois, um grande número conseguem acicatar todos os desejos 1988, e formado pelos MC’s Mano Brown, Edi Rock e Ice de populares tomou parte das manifestações nas ruas em Blue e o DJ KL Jay. É o maior grupo de rap do Brasil e novos diversos protestos por várias cidades brasileiras e reativos, mas também elaborar um está entre as bandas mais influentes do país. Suas canções até do exterior. Em seu ápice, milhões de brasileiros es- demonstram a preocupação em denunciar a destruição da tavam nas ruas protestando não apenas pela redução das programa de ação contra-hipnótico vida de jovens negros e pobres das periferias brasileiras e tarifas e a violência policial, mas também por uma grande sob medida para essas mesmas redes. o resultado do racismo e do preconceito, ao sustentarem variedade de temas como os gastos públicos em grandes a miséria diretamente ligada com a violência e o crime. eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos ser- Temas como a brutalidade da polícia, do crime organizado viços públicos e a indignação com a corrupção política em e do Estado, bem como o preconceito, as drogas e a ex- geral. Os protestos geraram grande repercussão nacional clusão social são recorrentes nas letras do grupo. Embora e internacional. Sobre o tema, confira a edição 193 dos IHU On-Line – Em tempos inicialmente conhecido apenas na capital paulista, o grupo Cadernos IHU ideias, intitulada #VEMpraRUA: Outono Bra- conseguiu alcançar sucesso significativo a partir dos ál- sileiro? Leituras, disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw. A de ódio e intolerância, ainda buns Raio X Brasil (1993), Sobrevivendo no Inferno (1997) edição 524 da revista IHU On-Line, Junho de 2013 – Cinco e Nada como um Dia após o Outro Dia (2002). (Nota da Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática potencializados pelas redes IHU On-Line) nunca realizada, de 18 de junho de 2018, está disponível sociais, surgem discursos que 6 Jorge Ben (1945): guitarrista, cantor e compositor popu- em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/524. (Nota da lar brasileiro. Seu estilo característico possui diversos ele- IHU On-Line) questionam o financiamento

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE de espetáculos, alegando que da deve lembrar que não me esquivei investimento público não deve IHU On-Line – Qual o papel da nem mesmo de estudar algumas ideias ser destinado para esse setor. arte numa sociedade em crise? da direita. Certa necessidade de osten- Como responder a esses dis- tar liberdade já me fez dizer a colegas Thiago Amud – Preparar o co- cursos? coisas injustas, por puro desfastio, por ração das pessoas para desejarem e horror ao tédio. Dandismo é sinal de Thiago Amud – Eu penso que os merecerem os tempos melhores; para melancolia. grandes artistas democráticos brasi- saberem que tal desejo não é aliena- leiros podem ainda roubar o prota- ção, mas, sim, saudade do futuro; Caí lá do alto, meu tombo foi longo gonismo dos debates sobre arte nas para saberem que tal merecimento e muito bem vivido, porque afinal caí redes. Não basta fazerem declarações nasce de uma reeducação ética e es- em mim. Sendo assim, vi de perto e à imprensa, não basta nada que ainda tética. posso afirmar que alguns dos avanços configure uma comunicação vertical mais sinistros da neodireita ainda pa- de cima para baixo entre artista e pú- recem, a muitos jovens semicultos e blico. desorientados, nada mais que amplia- ção do debate democrático. Muitos Esses grandes artistas precisariam “O sofrimento desses dândis não estão nem perto de horizontalizar sua comunicação, fo- intuir que servem de massa de mano- mentar fóruns de debate, ser peda- das periferias, bra. gógicos, abrir diálogos diretos em suas páginas para tentar neutralizar e sua experiência Até onde entendo, a esquerda deve reverter a corrente de desamor geral primar por sempre fazer que coisas formada por essa enorme quantidade de choque contraditórias circulem às claras. Cabe de pequenezas blindadas. Penso que a ela assumir os riscos da confusão eles deveriam fazer isso não apenas direto com as saudável do mundo moderno que ela, para “salvarem suas peles”, mas para num gesto iluminador, pariu. Mas, ao ajudarem a salvar as peles de todos engrenagens que me parece, no Brasil a intelectua- os que chegamos depois deles e que lidade progressista está tardando a ver amamos o Brasil, em grande medida, do Estado, a fundura do neomedievalismo jiha- 67 por causa deles. dista que agora está desferindo suces- produz os sivos golpes no bom senso e nas bases Esses pequenos ódios covardes es- humanistas da civilização. tão fazendo estragos porque perma- anticorpos da necem expressões de um quantita- Se a agenda regressiva está avançan- tivismo tacanho: número de likes e sociedade”. do tão a passos largos é porque um deslikes, “fulano enriqueceu”, “fulano neorrelativismo hiper-racional está é da mamata”. Ora, o mundo da arte conseguindo inverter sistematicamen-

é o mundo qualitativo. Portanto, pru- te o sentido de todas as narrativas e ridos aristocráticos não devem exi- IHU On-Line – Que canção re- convencer um bando de siderados em mir artistas de cumprir parte de seu presenta o Brasil de 2018? E que rede de que as esquerdas são corrup- papel civilizatório. Espero que sejam música inspira a sonhar e cons- tas, de que nunca houve ditadura, de radicalmente democráticos, que des- truir um futuro para o país? que falar da herança da escravidão é çam dos tronos e falem com todos mimimi, de que não há violência con- Thiago Amud – Vou começar essa diretamente, inclusive com os haters. tra mulheres etc. resposta por uma longa digressão. “Ouro, desça do seu trono!”, como Não me movo seguindo princípios rí- É preciso estudar. É preciso que os disse aquele samba8 divino do Paulo gidos de identidade e diferença. Não intelectuais progressistas estudem da Portela9. deduzo logicamente quase nada a par- os “fundamentos” dessa hiper- tir dos consensos. Por isso sinto que racionalidade neofascista que age às onde há horror há beleza (Olha a Etty claras invisivelmente, pois a agenda 8 Ouça a íntegra desse samba em http://bit.ly/2zWptmZ. aí de novo!). Estou sempre em busca política regressiva nada mais faz do (Nota da IHU On-Line) 9 Paulo da (1901-1949): foi um sambista brasileiro. do germe de alegria no horror geral. que traduzir tais “fundamentos”. Os Seu apelido é uma referência à Estrada do Portela, uma via que corta os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz. Foi um Onde há alastramento do fascismo intelectuais progressistas precisam dos que mais lutaram para mudar a imagem estereotipada há anticorpos, em quantidade ainda se manter maiores do que a direita, e preconceituosa que se tinha a respeito do sambista, de malandro e vagabundo, para a de artista de respeito. Para maior. abarcando-a, para antecipar suas isso, ele impôs vestuário próprio para sua agremiação, e movimentações e minimizar os males. defendia que todos os portelenses estivessem devidamen- Mas, analogamente, estive sensivel- te vestidos com as cores da escola no dia do desfile. Foi A meu ver eles poderiam estudar ao o primeiro presidente da Portela e sua casa foi a primeira mente atento aos muitos grãos de em- sede da escola, muito embora nesta época a sede não fos- menos duas fontes que, imagino eu, burrecimento geral que germinaram se nada além de um lugar para guardar os instrumentos. ainda desconhecem: o perenialismo Em 1937, Paulo da Portela foi eleito Cidadão Samba. Ain- nos tempos de coalizão democrática. da neste mesmo ano, participou da primeira excursão de sambistas ao exterior, indo ao Uruguai, e retornando ao Quem me conheceu na década passa- Brasil já no Carnaval. (Nota da IHU On-Line)

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de Guénon10 e o ocultismo de Evola11. Esquina13, da Casa da Tia Ciata14 e de Villa-Lobos15, da bossa nova e de Jorge Ben, das polirritmias das con- O caráter político dessa luta deve ser pop nacional e estrangeira (como o pop rock e o con- gadas e das harmonias de Guinga. vasto a ponto de incluir a luta pela des- cretismo) misturou manifestações tradicionais da cultu- colonização do imaginário de um país ra brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha obje- tivos comportamentais, que encontraram eco em boa em transe. Sendo assim, afirmo que parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se principal- tenho tentado acompanhar a curvatu- mente na música (cujos maiores representantes foram Avesso do fascismo ra desses problemas com minha mú- Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações artísticas diversas, como as artes plásti- A música brasileira é o avesso de todo sica. Mas meu trabalho, que tem sido cas (destaque para a figura de Hélio Oiticica), o cinema um teatro barroco de máscaras e uma (o movimento sofreu influências e influenciou o Cinema fascismo e eu sou um músico brasilei- novo de Gláuber Rocha) e o teatro brasileiro (sobretudo vontade romântica de interferência na nas peças anárquicas de José Celso Martinez Corrêa). ro. Algumas canções que escrevi entre Um dos maiores exemplos do movimento tropicalista 2004 e 2013 já anunciavam muito do ordem das coisas, já envereda por ca- foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada minhos outros. exatamente de “Tropicália”. Leia a edição 411, intitulada que vemos hoje. Depois dali enveredei Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amoro- sa para o Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411. por caminhos outros, onde estou re- Faço o que faço porque nasci no (Nota da IHU On-Line) encontrando o veio original da minha país do tropicalismo12 e do Clube da 13 Clube da Esquina: foi um movimento musical brasilei- ro surgido na década de 1960 em Belo Horizonte, Minas música. Que venha a alegria.■ Gerais, onde jovens músicos começaram a se reunir. Seu som se fundia com as inovações trazidas pela Bossa Nova 10 René Guénon (1886-1951): foi um intelectual francês a elementos do jazz, do rock – principalmente os Beatles –, do espaço. (Nota da IHU On-Line) do século XX tido por alguns como ‘inclassificável’. Sua música folclórica dos negros mineiros com alguns recursos 15 Heitor Villa-Lobos (1887-1959): compositor nascido influente obra, não obstante isso, pode ser classificada em de música erudita e música hispânica. Nos anos 70, esses no Rio de Janeiro. Aprendeu as primeiras lições de mú- três vertentes: a exposição da metafísica tradicional, a crí- artistas tornaram-se referência de qualidade na MPB pelo sica com seu pai, Raul Villa-Lobos, funcionário da Biblio- tica ao materialismo e individualismo do mundo moderno alto nível de performance e disseminaram suas inovações teca Nacional. Ele lhe ensinara a tocar violoncelo usando e a explicação do simbolismo das civilizações tradicionais, e influência a diversos cantos do país e do mundo. (Nota improvisadamente uma viola, devido ao tamanho de em especial das civilizações hindu, chinesa, islâmica e cris- da IHU On-Line) Tuhu (apelido de origem indígena que Villa-Lobos tinha tã. (Nota da IHU On-Line) 14 Casa da Tia Ciata: Hilária Batista da Silva, conhecida na infância). Sozinho, aprendeu violão na adolescência, 11 Giulio Cesare Andrea Evola (1898-1974): mais conhe- como Tia Ciata, cozinheira e mãe de santo nascida na em meio às rodas de choro cariocas, às quais prestou tri- cido como Julius Evola, foi um filósofo esotérico, escritor, Bahia, é uma das figuras mais influentes da cultura negra buto em sua série de obras mais importantes: Os Choros, pintor e poeta italiano do século XX, em cuja obra se têm carioca do início do século XX. Realizava encontros entre escritos na década de 1920. Destaca-se por ter sido o inspirado algumas correntes esotéricas contemporâneas e os músicos e religiosos filhos de santo, e nessas seções principal responsável pela descoberta de uma linguagem escritores tradicionalistas. De acordo com o pesquisador a música dava o tom. Músicos importantes como peculiarmente brasileira em música, sendo considerado Franco Ferraresi, “o pensamento de Evola pode ser consi- e Pixinguinha eram frequentadores assíduos das rodas, e o maior expoente da música do modernismo no Brasil, derado um dos sistemas anti-igualitários, antiliberais, anti- especula-se que Pelo Telefone, primeiro samba gravado compondo obras que contém nuances das culturas re- democráticos e antipopulares mais radicais e consistentes em disco, foi escrito em um desses encontros. A Casa da gionais brasileiras, com os elementos das canções po- do século XX”. (Nota da IHU On-Line) Tia Ciata é um escritório da Organização dos Remanes- pulares e indígenas. No Brasil, sua data de nascimento 12 Tropicalismo, Movimento tropicalista ou Tropicália: centes da Tia Ciata (ORTC) e espaço cultural para manter (5 de março) é celebrada como Dia Nacional da Música 68 movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influên- viva a memória da dama do samba. Uma exposição per- Clássica. (Nota da IHU On-Line) cia das correntes artísticas de vanguarda e da cultura manente sobre a veterana do samba é a principal atração

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Fascismo, a política oficial do Antropoceno Marco Antonio Valentim repensa a filosofia a partir de postulados capazes de pensarmos nossa humanidade desde um ponto de vista não autocentrado, mas, sim, extra-humano

Ricardo Machado

m nó górdio amarra o Antro- também de uma forma de pensar, que poceno ao fascismo. Ambos tende a sobreviver sob a forma não do aniquilam, ao mesmo tempo, espectro, mas do zumbi. “A meu ver, Uo planeta e as formas de vida que de- os saberes ancestrais ameríndios, bem pendem diretamente da diversidade como de outros povos extramodernos, ambiental, mas não somente, afinal se demonstram bem mais capazes de nós, os metropolitanos, estamos cada fazer frente à catástrofe dos dias atuais vez mais sujeitos à implacável intrusão e futuros do que o pensamento ociden- de Gaia. “O paradoxo do fascismo, que tal mais contemporâneo, o qual, por necessita do outro cuja existência se sua vez, assim ameaçado, tende cada empenha em aniquilar, se revela, des- vez mais a ceder a uma ancestralidade de uma perspectiva ecopolítica, como repressora. Num caso, trata-se do pen- sendo o mesmo que o paradoxo do samento dos futuros viventes; no outro, Antropoceno: a época do Homem é o do pensamento dos mortos-vivos”, pro- 70 tempo de sua própria extinção”, avalia voca. o professor e pesquisador Marco Anto- Marco Antonio Valentim graduou- nio Valentim, em entrevista por e-mail -se em Filosofia pela Universidade Fede- à IHU On-Line. “Conforme podemos ral do Paraná - UFPR e realizou mestrado testemunhar mundo afora, o fascismo é e doutorado em Filosofia na Universidade a política oficial do Antropoceno (assim Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Reali- como o capitalismo, o seu sistema eco- zou estágio pós-doutoral no Programa de nômico)”, complementa. Pós-Graduação em Antropologia Social Autor do livro Extramundanidade e do Museu Nacional do Rio de Janeiro. É sobrenatureza. Ensaios de ontologia in- professor no Departamento de Filosofia fundamental (Desterro [Florianópolis]: da UFPR. Publicou estudos de história Editora Cultura e Barbárie, 2018), lan- da filosofia sobre temas metafísicos, com çado em julho de 2018, Valentim toma foco no pensamento de Heidegger, Des- categorias hegemonizadas do campo cartes, Kant, Platão e Hegel. Atualmente filosófico, como mundo e natureza, e as desenvolve pesquisa em metafísica com- coloca em outro lugar. “O mundo reúne parativa, articulando concepções refe- tudo o que há de pensável pelo homem. renciais da filosofia moderna com ideias Quanto ao extramundo, ou seja, a um ameríndias transmitidas pela etnografia complexo de sentido em que a nature- e pela antropologia contemporânea. É za humana não atua como centro único pesquisador do SPECIES – Núcleo de de referência, é preciso uma estrutura Antropologia Especulativa. de pensamento completamente outra, A entrevista foi originalmente publica- capaz de romper com os limites esta- da nas Notícias do Dia de 31-10-2018, no belecidos pela Crítica para a esfera do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – pensável”, propõe. IHU, disponível em http://bit.ly/2A4H- Se o Antropoceno pode ser interpreta- 7Vx. do como o fim de um mundo, o fenô- Confira a entrevista. meno mostra os sinais de esgotamento

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“Pensar um extramundo, em sentido pós-kantiano, exige necessariamente abrir o pensamento a outra perspectiva”

IHU On-Line – Como é possível de humanidade, borrar em múltiplas de um estabelecimento provisório do pensar um (extra)mundo e uma direções a fronteira entre humanida- conceito de sobrenatureza. A ideia era filosofia pós-kantiana? de e não-humanidade, no sentido de indicar que, bem ao contrário de su- favorecer a concepção e a formação de perar de todo o sobrenatural, com o Marco Antonio Valentim – O outros mundos humanos, bem como banimento metafísico de Deus, o pen- conceito kantiano1 de mundo resul- de mundos extra-humanos. Assim, samento moderno não fez senão redi- ta de uma redução da cosmologia pensar um extramundo, em sentido mensioná-lo, particularmente no sen- à antropologia. Mundo constitui, pós-kantiano, exige necessariamente tido da dominação do Homem sobre nesse sentido, o espaço-tempo de abrir o pensamento a outra perspec- a natureza. O pensamento moderno é desdobramento da natureza humana. tiva, experimentar sua própria huma- sobrenatural, mágico, mítico – à sua Assim, em chave kantiana, o mundo nidade, supostamente autorreferente, maneira. Seu mito fundador consiste reúne tudo o que há de pensável pelo sob o ponto de vista de outrem, ao naquilo que Lévi-Strauss3 chamou de homem. Quanto ao extramundo, ou mesmo tempo extra-humano e dife- “o mito da dignidade exclusiva da na- seja, a um complexo de sentido em rentemente humano. Trata-se, por- tureza humana”, o qual teria chancela- que a natureza humana não atua como tanto, de uma revolução contra-antro- do “todos os abusos”, ao mesmo tempo 71 centro único de referência, é preciso pológica, a ser operada a partir de uma no sentido do especismo e do racismo. uma estrutura de pensamento com- expansão política da cosmologia. De outro modo, à luz da problemática pletamente outra, capaz de romper ecológica contemporânea, poder-se-ia com os limites estabelecidos pela Crí- dizer que, transfigurado monstruosa- tica para a esfera do pensável. Isso não IHU On-Line – Como Deus mente em Homem, Deus tornou-se significa subverter o assim chamado abandonou seu espaço transcen- o agente por excelência do estado de “correlacionismo” kantiano pela sim- dente para ocupar o interior de exceção/extinção que chamamos hoje ples eliminação do polo humano da cada indivíduo e como isso pro- de Antropoceno, que jamais teria sido correlação (como propõe o contempo- duziu rupturas importantes nos metafisicamente possível sem a gran- râneo “realismo especulativo”). Pois modos de vida (especialmente de instauração, peculiarmente sobre- uma tal subversão só consuma, por no que diz respeito à divisão ra- natural, da divisão moderna entre na- negação, o projeto cosmológico cuja dical entre cultura e natureza)? tureza e cultura. face positiva é o antropocentrismo. Marco Antonio Valentim – A Pelo contrário, romper com esse pro- pergunta faz referência a uma hipótese jeto implica multiplicar os sentidos IHU On-Line – O que significa originalmente elaborada por Eduardo dizer que o Antropoceno é o re- Viveiros de Castro2, segundo a qual, sultado do banquete da constan- 1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, consi- na passagem à modernidade, Deus se derado como o último grande filósofo dos princípios da te e ininterrupta canibalização era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um transfigura com a divisão radical- en grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de tre natureza e cultura. Menciono essa partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre hipótese em Extramundanidade e so- 3 Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropólogo belga os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), que dedicou sua vida à elaboração de modelos basea- isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mes- brenatureza (cf. Prólogo) no contexto dos na linguística estrutural, na teoria da informação e mo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto na cibernética para interpretar as culturas, que conside- de conhecimento científico, como até então pretendera a rava como sistemas de comunicação, dando contribuições metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mun- 2 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropólogo brasi- fundamentais para a antropologia social. Sua obra teve do dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a prio- leiro, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na grande repercussão e transformou, de maneira radical, o ri da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu a estudo das ciências sociais, mesmo provocando reações entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, entrevista O conceito vira grife, e o pensador vira proprie- exacerbadas nos setores ligados principalmente às tradi- dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador tário de grife à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005, ções humanista, evolucionista e marxista. Ganhou renome com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível em disponível em http://bit.ly/ihuon161. Entre outras publi- internacional com o livro As estruturas elementares do pa- http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant, foi publicado o cações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna (São Paulo: rentesco (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para Cadernos IHU em Formação número 2, intitulado Emma- CEDI), A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios lecionar Sociologia na USP. Interessado em etnologia, rea- nuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser de antropologia) (São Paulo: Cosac & Naify) e Metafísicas lizou pesquisas em aldeias indígenas do Mato Grosso. As acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edi- canibais (São Paulo: Cosac & Naify). Também é autor do experiências foram sistematizadas no livro Tristes Trópicos ção 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada prefácio do livro A queda do céu – Palavras de um xamã (São Paulo: Companhia das Letras), publicado original- A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, dis- yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Paulo: mente em 1955 e considerado uma das mais importantes ponível em https://goo.gl/SIII5H. (Nota da IHU On-Line) Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) obras do século 20. (Nota da IHU On-Line)

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de Gaia? cosmopolítica da filosofia” pode outros se caracterizam por diferen- conformar um tensionamento à tes conceitos e experiências de ser Marco Antonio Valentim – A tendência antropocêntrica e et- humano (que abarcam, por sua vez, afirmação é de autoria do antropólogo nocêntrica da historiografia filo- diferentes modos de relação com os Mauro William Barbosa de Almeida. sófica? não-humanos), e o antropocentris- Cito-a nas páginas iniciais do livro mo moderno sempre foi marcado, a para delinear o contexto metafísico Marco Antonio Valentim – A despeito de (ou justamente devido a) em que ele procura se movimentar. ideia de uma história cosmopolítica suas pretensões universalistas, pela Gaia, ou seja, o sistema biogeofísico da filosofia é a ideia de uma história eleição de um tipo próprio e exclu- da Terra, é “canibalizada” pelos agen- em que a filosofia (bem entendido, sivamente humano. Por tudo isso, tes do Antropoceno, no sentido do co- a consciência espiritual do Ocidente a história cosmopolítica da filosofia lapso ambiental planetário, mediante moderno) seja revelada, em seus mais não será escrita por filósofos (pelo a exploração ilimitada das formas de variados desdobramentos, à luz de menos, não em primeiro lugar). vida que a constituem. Trata-se, em suas relações internas com outras tra- outros termos, do processo maxima- dições e mundos de pensamento, que mente acelerado de entropização do em geral não dispõem de nenhuma IHU On-Line – A propósito, sistema Terra, característico das so- voz na história que a filosofia conta a como o conceito de cosmopolí- ciedades que Lévi-Strauss qualifica de respeito de si, bem como à luz de sua tica, que se tornou famoso nos “quentes” por oposição às sociedades situação “ambiental”, relativa à cone- escritos de Isabelle Stengers6, “frias”, caracterizadas, de seu lado, xão também interna com outras for- transformou-se numa catego- por uma virtude neguentrópica capaz mas de vida e existência, extra-huma- ria central para pensarmos os de sustentar relações minimamente nas. Tome-se, por exemplo, o cogito desafios à vida e ao pensamen- equilibradas com o ambiente. de Descartes4, um dos pilares de sus- to contemporâneos? tentação da filosofia moderna: sob um Segundo Almeida, tal processo é ponto de vista cosmopolítico, relativo Marco Antonio Valentim – equivalente à dinâmica do Capital, à divergência entre mundos, a existên- Apesar de possuir diferentes versões o progresso modernizante pelo qual cia autoconsciente de um sujeito sobe- e aplicações, a referência principal “plantas, animais e escravos humanos” rano está intrinsecamente conectada, para o conceito de cosmopolítica é a são literalmente consumidos “para au- 72 ao mesmo tempo como causa e efeito, obra de Stengers. Em um ensaio de mentar a energia disponivel para clas- ao colonialismo – afinal, os grandes enorme importância (“The Cosmo- ses dominantes e sustentar cidades e inimigos de Descartes não seriam os political Proposal”, 2005), a filósofa imperios”. Enquanto Gaia se mantém canibais de Montaigne5? – e ao espe- elabora o conceito construindo-o por pela transformação contínua de ener- cismo – com efeito, o cogito tem sua equivocação a partir de e, ao mesmo gia em informação mediante a prolife- necessária contrapartida extra-huma- tempo, contra o conceito kantiano de ração desenfreada de formas de vida, o na na tese igualmente cartesiana das cosmopolitismo. O que mais me in- Capital se instaura com maximização “bestas-máquinas”, de consequências teressou no conceito foi sua dimen- sem limite da transformação reversa, devastadoras para animais não-hu- são ontológico-política: ao afirmar, com a redução drástica das formas de manos. contra a postulação “cosmopolita” de vida em função da antivida dos cani- um ponto de convergência universal bais. Mas, assim como o Antropoceno Subverter o etnocentrismo da fi- a todos os povos e seus respectivos põe em xeque a continuidade da vida losofia, colocando-a sob o ponto de mundos, a existência “desconheci- da espécie/povo que o desencadeou, vista daqueles que ela expulsa para da” (unknown) de um plano de di- assim também a canibalização de Gaia fora de si (ao mesmo tempo em que vergência irredutível entre múltiplos implica necessariamente a destruição não hesita em falar em seu nome), mundos, humanos e não-humanos, autofágica dos seus agentes. O implica necessariamente combater o conceito abre a possibilidade de paradoxo do fascismo, que necessita seu antropocentrismo, pois aqueles uma outra política, na qual está em do outro cuja existência se empenha jogo a composição, a transformação em aniquilar, se revela, desde uma 4 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemá- e destruição mútua de mundos. perspectiva ecopolítica, como sendo o tico francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho mesmo que o paradoxo do Antropoce- revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso Quanto à dimensão ecológica do por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, no: a época do Homem é o tempo de que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. conceito, ela é explícita na própria Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e da sua própria extinção. Conforme po- matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos formulação de Stengers, que vincu- demos testemunhar mundo afora, o e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comenta- la sua proposta a uma “ecologia das dores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama fascismo é a política oficial do Antro- de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), poceno (assim como o capitalismo, o posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da seu sistema econômico). IHU On-Line) 6 Isabelle Stengers: nascida em 1949, é formada em quí- 5 Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592): escritor e mica e professora de Filosofia da Ciência na Universidade ensaista francês, considerado por muitos como o inventor Livre de Bruxelas. Em 1993 foi laureada com o Prêmio de do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente, Filosofia da Academia Francesa. É autora de livros sobre nos seus Ensaios, analisou as instituições, as opiniões e os Teoria do Caos, em parceria com Ilya Prigogine, o físico- IHU On-Line – De que maneira costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época -químico russo-belga e Prêmio Nobel, conhecido por seu e tomando a generalidade da humanidade como objeto trabalho com estruturas dissipativas, sistemas complexos a composição de uma “história de estudo. (Nota da IHU On-Line) e irreversibilidade. (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE práticas”. Além disso, o conceito se semântico. Mas a que exatamen- implica outras formas de “domestica- encontra numa relação intrínseca te eles se referem? Como pode- ção”: a possibilidade de mundos em com a problemática da “intrusão de mos compreendê-los? que o homem existente (no sentido de Gaia” (cf. No tempo das catástrofes. Heidegger) não constitui a referência Marco Antonio Valentim – Ex- São Paulo: Cosac e Naify, 2015), pois central. tramundanidade resulta de uma a possibilidade de elaborar conceitu- transformação do conceito ontológico- Logo, extramundanidade diz respei- almente o fenômeno dessa intrusão, existencial de mundo, tal como este é to antes a uma situação variável que a que é o Antropoceno experimentado formulado por Heidegger8 em Ser e uma condição imutável: não se trata desde o mundo ocidental moderno, tempo. O filósofo elabora nessa obra daquilo que jaz além de todo mundo depende de uma abertura cosmopo- uma ontologia cujo centro é o mundo, possível, mas, como disse, da possi- lítica do pensamento, em particular compreendido como esfera do sentido bilidade de um outro mundo, estru- no que se refere aos modos pelos humano. No que se refere aos entes turalmente divergente daquele que é quais diferentes mundos (ethoi) não-humanos, ele os dirá “intramun- tomado como referencial. Assim, por compõem, por seu próprio conflito, danos”, significando com isso o supos- exemplo, as cosmologias ameríndias diferentes ambientes (oikoi). Ela- to fato de que, apesar de (à diferença são, quando comparadas à ontologia borações similares foram feitas, por do homem) não formarem mundo, fundamental, rigorosamente extra- exemplo, por Marisol de La Cadena7, eles fazem parte do mundo humano, mundanas; porém, quando tomadas que investiga a “ecologia das práticas ocupando aí uma posição ontologica- por si mesmas, revelam sentidos intei- através dos mundos andinos” (Earth mente subalterna. Ao propor o con- ramente próprios de mundo, irredutí- beings, Duke University, 2015), e ceito problemático de extramundano, veis à mundanidade existencial. Mauro W. B. de Almeida, que elabo- meu experimento consiste em liberar ra o conceito de “conflitos ontológi- Já o conceito de sobrenatureza foi esses entes, inclusive o humano, das cos” para considerar a guerra entre o haurido da antropologia de Viveiros amarras da mundanidade. Considerar Estado capitalista e Caipora na Ama- de Castro, na qual é empregado em a extramundanidade de um ente sig- zônia (“Caipora e outros conflitos vista de seu potencial ontológico-po- nifica encontrá-lo, como diria Deleu- ontológicos”, 2013). lítico para designar um certo regime ze9, “em estado livre e selvagem, além de transformação entre humanos e No que se refere precisamente dos ‘predicados antropológicos’”. Mas, extra-humanos (a rigor, de metamor- ao vínculo do capitalismo contem- obviamente, essa liberdade selvagem 73 fose transespecífica). É, sobretudo, porâneo com o Antropoceno, vale tal possibilidade contra-ontológica lembrar também o livro de Luiz que se encontra totalmente afasta- Marques, Capitalismo e colapso da, por uma questão de princípio, do ambiental (Campinas: Editora Uni- “A história horizonte especulativo de Ser e tem- camp, 2015), que, embora não explo- po. Assim, o que extramundanidade re a dimensão ontológica do proble- cosmopolítica designa como que em negativo (um ma, investiga o fenômeno por meio outro mundo possível que não é o nos- de uma vertiginosa “cosmopolítica” da filosofia não so), sobrenatureza o faz positivamen- de disciplinas, ciências humanas e te (um certo mundo efetivo em que o naturais. No caso de Extramunda- será escrita por nosso não tem lugar). nidade e sobrenatureza, o conceito de Stengers inspira decisivamente filósofos (pelo A articulação entre os dois conceitos suas articulações mais importantes, – um de origem filosófica, o outro de pois meu propósito era, sobretudo, menos, não em origem antropológica – perfaz o eixo realizar especulativamente uma pas- principal de Extramundanidade e sagem entre mundos de pensamento primeiro lugar)” sobrenatureza. Procurei indicar isso divergentes e mesmo incomensurá- adaptando os termos (mundo, nature- veis, cujo choque exprime a catástro- 8 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua za, extra- e sobre-) à sua composição obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática fe antropocênica e, ao mesmo tem- heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), na “fórmula canônica do mito” cunha- Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à meta- po, suas possíveis linhas de fuga. física (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de da por Lévi-Strauss (cf. epígrafe). As- 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível sim, a primeira parte do livro trata de em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponível extra-natureza e sobre-mundo como em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU IHU On-Line – Os dois termos em Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução elementos, expondo assim a gran- da primeira parte do título de da metafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ de divisão entre natureza e cultura, ihuem12, e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edi- seu livro – Extramundanidade e ção 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível habitada por animais e humanos. sobrenatureza – produzem, por em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical Por sua vez, a segunda parte toman- de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute si próprios, um deslocamento ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao bio- logismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré- -evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo gson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Pro- 7 Marisol de la Cadena: professora do departamento de biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line) fessor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze Antropologia da University of California, Davis, Estados 9 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e sin- Unidos. (Nota da IHU On-Line) Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Ber- gularidades. (Nota da IHU On-Line)

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do como elementos extra-mundo e um pensamento transcendentalmen- siste, do ponto de vista indígena, em sobre-natureza, configurando uma te outro. A sobrenatureza consiste um modo extremamente problemá- zona de indiscernibilidade entre na- na experiência da multiplicidade tico de transformação, metamorfose tureza e cultura, povoada de espíri- transcendental, refratária a toda e descontrolada ou “baixa antropofagia” tos e espectros. Na passagem entre qualquer espécie de unificação e nor- (Oswald de Andrade), capaz, no limi- as partes, animais viram espíritos, e matização. Todo fundamento é so- te, como adverte Davi Kopenawa10, de humanos, espectros. Essa é a trans- brenaturalmente contingente: como provocar a “queda do céu”, entendida formação que o livro busca explicitar diz Lévi-Strauss, “isso [o fundamen- como colapso irreversível da vida na mediante o arranjo instável entre to] não é tudo”. Terra. Se, como propõe Heidegger, aqueles conceitos principais. existir em vista de si mesmo é a pró- pria forma da relação com o ser em geral, devir-branco é um “mau devir” IHU On-Line – Como a pers- (Tânia Stolze Lima), pois implica, com pectiva da ontologia infunda- “Quanto ao o ingresso no ser, a impossibilidade de mental oferece alternativas tornar a devir. Enfim, devir-branco é para o pensamento? Qual o pa- extramundo é um conceito com que procurei especu- pel da “sobrenatureza” nesse lar sobre qual seria a situação virtual processo? preciso uma do conceito existencial de ser, enquan- to elemento completamente outro, no Marco Antonio Valentim – Em pensamento ameríndio. Trata-se, por- primeiro lugar, gostaria de enfatizar estrutura de tanto, de um conceito infundamental que a ontologia infundamental não do branco como polo de uma certa constitui nenhuma disciplina nem pensamento transformação sobrenatural, no caso, um projeto de disciplina filosófica. da extinção – acontecimento, por sua Trata-se de um oxímoro com o qual completamente vez, quase inefável (não fossem os denominei a operação de descentra- outra” brancos…) do ponto de vista indígena. mento do humano que o livro procura empreender. Uma ontologia infunda- IHU On-Line – De que maneira 74 mental é, a rigor, algo que não exis- o ser, no sentido heideggeriano, IHU On-Line – Qual a impor- te… Pois não há, em filosofia, discur- exprime um devir-branco? tância de levar em conta os sa- so mais “fundamentalista” que o da beres ancestrais ameríndios na ontologia. Assim, aspirar a uma plu- Marco Antonio Valentim – produção do pensamento con- ralidade ontológica é, no fundo, en- Essa é uma questão particularmente temporâneo? caminhar-se a um pensamento capaz polêmica, visto que ser, no sentido de prescindir do próprio conceito de de Heidegger, jamais equivaleria a Marco Antonio Valentim – Per- ser, o qual implica, invariavelmente, um devir, no sentido de Deleuze. mito-me divergir um pouco da for- a forma de fundamento. Logo, onto- Pois devir diz respeito sempre a mulação da pergunta, pois ela parece logia infundamental é um título pro- “movimentos aberrantes”, que contar com uma oposição estanque visório para uma disciplina inexisten- contrariam radicalmente a instituição entre ancestral e contemporâneo. É te (e que nem pretende existir como do referencial, fundamental e que, a meu ver, os saberes ancestrais tal). Trata-se de um pensamento que normativo, como é o caso do Ser. ameríndios, bem como de outros não procura ser “alternativo”, como Acontece que, a partir da aplicação povos extramodernos, se demons- uma variante do mesmo mundo, mas do conceito filosófico de devir a tram bem mais capazes de fazer frente sim alterado, por contágio com outro cosmologias ameríndias (aplicação à catástrofe dos dias atuais e futuros mundo. empreendida, com enorme do que o pensamento ocidental mais rendimento, por Viveiros de Castro contemporâneo, o qual, por sua vez, A sobrenatureza – em seu senti- e outros antropólogos), ocorreu-me assim ameaçado, tende cada vez mais do estrito, a saber, como dinâmica a hipótese segundo a qual o que se a ceder a uma ancestralidade repres- relacional de transformação entre toma, do lado ocidental, como Ser sora. Nada mais contemporâneo, face mundos divergentes – é uma potên- não poderia senão ser compreendi- cia antifundamental por excelência. do, do lado ameríndio, como uma O fundamento exige a extinção do 10 Davi Kopenawa Yanomami (1956): escritor e líder in- forma, ainda que extrema, de devir: dígena brasileiro. Ainda criança, viu a população de sua sobrenatural enquanto ameaça in- terra natal ser dizimada por duas epidemias, ambas tra- uma transformação-limite que tende zidas pelo contato com o homem branco. Trabalhou na compreensível que o acossa de fora Fundação Nacional do Índio como intérprete. Mudou-se ao fim absoluto das transformações, (mas também, em muitos casos, de para a aldeia Watorik+ na década de 1980. Casou-se com pois ser é a extinção do devir. a filha do pajé e se tornou chefe do posto indígena Demi- dentro). Experimentar algo como so- ni. Foi um dos responsáveis pela demarcação do território Yanomami em 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global brenatural é conhecê-lo como o que Se, do nosso ponto de vista, estamos 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La chute du ciel, escrita em parceria com o antropólogo francês Bruce faz radicalmente exceção à estrutu- por princípio condicionados a com- Albert, foi lançada na França. O livro teve tradução para o ra ou forma a priori do pensamento. preender os devires indígenas como inglês, francês e italiano e sua edição em português saiu em 2015 A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami Trata-se, no fundo, do encontro com modos de ser, nosso ser mesmo con- (São Paulo: Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line)

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE ao Antropoceno, do que, por exemplo, e sobrenatureza? Por onde ele tância fortemente favorável à escrita a memória ancestral das idades da transita? do livro, bem como aos estudos que Terra que o xamanismo yanomami lhe deram origem, a interlocução no Marco Antonio Valentim mantém e reelabora constantemente. species – núcleo de antropologia es- – Atinei para a possibilidade de Nada mais obsoleto, face ao mesmo peculativa, o qual fundamos, Alexan- compor um livro reunindo ensaios acontecimento, do que a pós-história dre Nodari, Flávia Cera, Miguel Carid sobre a divergência metafísica proclamada pelos avatares da filosofia Naveira, Vinícius Honesko, Juliana entre Ocidente moderno e América aceleracionista. Num caso, trata-se do Fausto e eu, no primeiro semestre de indígena em meados de 2013, pensamento dos futuros viventes; no 2015, na UFPR. O livro deve demais após a realização de um estágio outro, do pensamento dos mortos-vi- ao cultivo de “ciências inumanas” que pós-doutoral no Programa de vos. praticamos, junto a vários outros co- Pós-Graduação em Antropologia legas, no âmbito do species. A importância de levar a sério sa- Social do Museu Nacional/UFRJ, beres como os dos ameríndios re- sob a supervisão de Viveiros side, como afirma Lévi-Strauss, no de Castro, dedicado ao estudo IHU On-Line – Deseja acres- fato de que nossa própria sobrevi- da problemática ontológica no centar algo? vência, espiritual e física, depende pensamento ameríndio. O projeto de algo assim. Tudo o que nos falta seguiu instável e hesitante por Marco Antonio Valentim – em termos de “abertura ao Outro” vários anos, enquanto meus estudos Terminei a escrita do livro nos e capacidade ecopolítica concer- se aprofundavam confusamente idos de março deste ano, quase nem diretamente aos princípios em mais de uma direção. Até que simultaneamente ao assassinato de da sua sabedoria. Conforme diz aos poucos uma estrutura foi se Marielle Franco12 – acontecimen- Kopenawa, no dia em que não hou- consolidando. Foi quando percebi to que revela, entre muitos outros ver mais xamãs, o céu cairá: não que o livro poderia, ou mesmo de- desde então, e também antes disso, porque os Yanomami sejam o povo veria, consistir na escrita da pas- a captura do Estado brasileiro pela mais importante da Terra, mas por- sagem dos meus estudos críticos máquina de guerra do fascismo. O que a sabedoria extra-humana que sobre a ontologia fundamental livro se encerra apontando para a os xamãs yanomami ainda portam de Heidegger, que a essa altura relação constitutiva que há entre fas- e transmitem, resistindo a todo haviam chegado a um limite in- cismo contemporâneo e Antropoce- 75 custo ao seu extermínio pelos bran- transponível, e meus estudos ain- no. cos, está à altura de compreender da incipientes de ontocosmologia Como escrevo estas linhas logo antes as profundas transformações pelas ameríndia. do que pode vir a se configurar como quais o planeta passa atualmente. Daí para frente escrevi os textos res- sendo a captura definitiva, com conse- Qualquer um pode fazer a experi- tantes já tendo o livro em perspectiva. quências devastadoras para a vida dos ência: compare-se A queda do céu A isso se acrescentou ainda um remate povos no Brasil, para suas terras e até aos mais importantes dos ainda decisivo, proveniente de novos estu- mesmo para o planeta (já que está em raros discursos filosóficos contem- dos de pós-doutorado, dessa vez sob jogo nada menos que a sobrevivência porâneos sobre o Antropoceno. A a supervisão de Déborah Danowski11, próxima da Amazônia), é inevitável diferença, em termos de amplitu- no Programa de Pós-Graduação em que eu me questione sobre o sentido de de horizonte e complexidade Filosofia da PUC-Rio, sobre a relação do imbricamento entre o pensamen- de diagnóstico, é acachapante. É entre metafísica e termodinâmica no to escrito e o acontecimento, feito de como se só pudéssemos entrever Antropoceno. Com base nessas fontes, vidas e espíritos, ao qual ele procura o que realmente está acontecendo, o livro transita constantemente entre de algum modo corresponder. Pode- em termos de suas razões e conse- ontologia moderna, antropologia con- -se escrever para que as coisas acon- quências mais profundas, através temporânea, cosmologia ameríndia e teçam; também é possível fazê-lo para dos olhos dos outros. Como propõe cataclismologia (ocidental e indígena). que elas jamais sucedam. Só agora me Viveiros de Castro em seu prefácio Sobretudo, ele jamais teria sido gesta- dou conta de que o fiz, em grande me- ao livro de Kopenawa & Albert, a do sem a leitura de A queda do céu, pu- dida, pelo segundo motivo. nós, que nos tornamos alienígenas blicado originalmente em 2010. Outra em nosso próprio planeta natal, é Força, amor e sorte a todos, todas, influência muito importante foi a obra preciso, mais que nunca, reconhe- nós! ■ do filósofo argentino Fabián Ludueña cer, mundo afora, a “contempora- Romandini, particularmente devido à neidade absoluta” do pensamento 12 Marielle Franco [Marielle Francisco da Silva] (1979- sua escatologia espectrológica. Ade- 2018): socióloga, feminista, militante dos direitos huma- indígena. nos e política nascida no Rio de Janeiro. Filiada ao Partido mais, devo mencionar como circuns- Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. Crítica da intervenção federal no Rio de Ja- neiro e da Polícia Militar, denunciava constantemente abu- IHU On-Line – Como foi o 11 Déborah Danowski: bacharela, mestra e doutora em sos de autoridade por parte de policiais contra moradores processo de construção do Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, foi Janeiro – PUC-Rio, onde é professora. Fez estágio pós- assassinada a tiros. Os autores do crime ainda não foram seu livro Extramundanidade -doutoral em Filosofia na Universidade de Paris IV (Paris- identificados. (Nota da IHU On-Line) -Sorbonne). (Nota da IHU On-Line)

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O Antropoceno é um alerta sobre as ações humanas no planeta Etienne Turpin busca compreender o Antropoceno como um sinal de que os “efeitos agregados das ações humanas sobre humanos, não humanos e vários sistemas” estão estritamente conectados

Ricardo Machado| Edição: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

palavra Antropoceno é relativa Antropoceno não pode ser um objeto à área da Geologia, diz respeito restrito apenas a estudos de campos aos efeitos da ação do ser hu- como Geologia, Ecologia, mas também Amano sobre os mais variados sistemas deve se estender a áreas como Design da Terra. Entretanto, mergulhar no e Arquitetura. “A arquitetura tem sido conceito é entrar num complexo ema- bastante resistente ao ‘impacto’ há al- ranhado. Primeiro, porque não é con- gum tempo. Talvez desde o desvio do senso no campo científico a existência discurso da autonomia no discurso da desta como uma nova era na escala ge- arquitetura na América do Norte e na Eu- ológica e, segundo, porque há inúmeras ropa, a disciplina se apegou a uma ideia 76 interpretações acerca dessa ideia de de independência que a tornou cada vez “efeito dos humanos sobre os ecossis- mais retrógrada e reacionária, senão to- temas”. Fato que não pode ser negado talmente irrelevante para as preocupa- é que, desde que o homem fica em pé, ções contemporâneas”, aponta Turpin. domina a agricultura e passa a viver as- Para ele, é preciso que tenhamos consci- sentado, o planeta vem se transforman- ência de que “somos, em graus variados, do de forma exponencial. Por isso, o fi- reféns do Antropoceno, a imagem do Ho- lósofo e pesquisador Etienne Turpin vai mem como Mestre da Natureza”. além da busca conceitual e compreende Etienne Turpin é filósofo, pesquisa- o “Antropoceno como um alerta sobre dor do Instituto de Tecnologia de Mas- os efeitos agregados das ações humanas sachusetts e diretor fundador do Ane- sobre humanos, não humanos e vários xact Office, escritório de arquiteto em sistemas entrelaçados”. Na entrevista a que atua. Suas pesquisas se baseiam no seguir, concedida por e-mail à IHU On- design das cidades de Jacarta, na Indo- -Line, acrescenta que “tem a ver com nésia, e Berlim, na Alemanha. Também intensidade e velocidade, e como os é membro fundador do User Group, co- efeitos agregados das ações humanas operativa internacional de propriedade (muitas vezes não intencionais) que de trabalhadores que desenvolve infra- se acumulam. Mas esses efeitos não estrutura humanitária, software de có- se acumulam igualmente em todos os digo aberto e ferramentas de coleta de lugares, nem para todas as pessoas ou dados geoespaciais. Com sua parceira para cada grupo de pessoas”. Anna-Sophie Springer, Turpin é pes- E se desde que o homem começa o quisador do ReassemblingNature.org, processo de domesticação das plantas onde trabalham a partir da exposição já há alterações em todo o globo, ima- sobre o significado das coleções de his- gine quando constrói cidades e passa tória natural no Antropoceno. por cima dos mais inúmeros e diversos Confira a entrevista. ecossistemas. É por isso que o tema do

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“Vivemos em meio a montanhas de lixo que ajudaram a produzir o Antropoceno como cascas desprezadas da acumulação industrial-capitalista”

IHU On-Line – De que forma o dernidade de modo bastante explí- IHU On-Line – Esse novo re- Antropoceno, como era geoló- cito. Não estou tão certo quanto ele arranjo produz impactos no gica e ambiental, tem produzi- da profundidade ou da amplitude da campo do design e da arquite- do transformações nas formas ilusão. Certamente, durante a colo- tura? Explique. de vida e hábitos humanos em nização europeia, havia uma divisão Etienne Turpin – A arquitetu- escala global? clara e distinta entre humanos e na- ra tem sido bastante resistente ao tureza. Talvez seja por isso que Wal- Etienne Turpin – Em nosso es- “impacto” há algum tempo. Talvez ter D. Mignolo e Catherine E. Walsh critório de pesquisa em design (ane- desde o desvio do discurso da au- insistem em usar o termo moderni- xact office1), entendemos o Antropo- tonomia no discurso da arquitetura dade-colonialidade. ceno como um alerta sobre os efeitos na América do Norte e na Europa, a agregados das ações humanas sobre disciplina se apegou a uma ideia de 77 humanos, não humanos e vários independência que a tornou cada vez sistemas entrelaçados. Isso tem a “A arquitetura mais retrógrada e reacionária, senão ver com intensidade e velocidade, e totalmente irrelevante para as preo- como os efeitos agregados das ações ainda não cupações contemporâneas. Não pos- humanas (muitas vezes não intencio- so falar sobre a situação no Brasil, nais) se acumulam. Mas esses efeitos captou a mas eu lecionei no Canadá, nos Esta- não se acumulam igualmente em dos Unidos, na Austrália e na Rússia. todos os lugares, nem para todas as indignidade Eu vivo e trabalho na Europa e faço pessoas ou para cada grupo de pes- alguns workshops, mas realmente soas. Usamos o demonstrativo pro- de representar não leciono no verdadeiro sentido da ximal “este” para qualificar as nossas palavra. De qualquer forma, estou discussões: o que este Antropoceno os outros” bastante cético em relação ao que vi nos diz sobre poder político, controle na última década. social e imagens da natureza? Como Em 2013, depois de organizar o no breve filme-palestra Conspiracy De qualquer forma, essa divisão Simpósio The Geological Turn no of the Anthros, filmado no Rio Ci- não desapareceu porque provou ser Taubman College, na Universidade liwung de Jacarta, este Antropoceno uma ilusão. No mínimo, por ser um de Michigan, altos funcionários e está conectado, mas é distinto de ou- limite ilusório, é guardado mais fe- administradores me disseram que, tras instanciações. brilmente agora do que nunca. No apesar do enorme sucesso da própria Brasil, o trabalho de Paulo Tavares é IHU On-Line – Como o An- conferência, “ninguém nunca vai se especialmente importante para des- tropoceno, enquanto espírito importar com o Antropoceno”. Mi- montar o quadro epistemológico da do tempo, joga luz sobre certas lhares de conferências depois, sem modernidade-colonialidade, no que ilusões epistemológicas da Mo- falar da enxurrada de livros, artigos diz respeito às histórias indígenas. dernidade? Que ilusões em es- populares, publicações acadêmicas, Se existe uma prática de arquitetu- pecial ele ilumina? parece claro que muitas pessoas se ra no Brasil hoje que mostra como importam, sim, com essas preocu- Etienne Turpin – Esta é uma a prática pode se envolver em traba- pações. Então, eu me pergunto por pergunta mais para Bruno Latour, lhos críticos, situados e urgentes é a que esses arquitetos-acadêmicos es- que lida com essas heranças da Mo- agência Autonoma de Tavares. tavam tão ameaçados pela discussão do Antropoceno na época. Será por 1 http://anexact.org/.

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que a gravidade e a complexidade do trole à medida que tentam ganhar o IHU On-Line – De que forma problema que ele ajuda a delinear controle? podemos compreender o pa- torna a arquitetura e suas tradições radoxo de que o Antropoceno, especialmente cúmplices da impla- justamente a era em que a ação cável destruição do planeta? IHU On-Line – Poderíamos humana interfere diretamente dizer que o Antropoceno inau- na autopoiesis da terra, tornou Em última análise, como o próprio gura uma nova estética? De que os seres humanos ainda mais capitalismo, a disciplina tentará fa- ordem? reféns da natureza? zer do Antropoceno um tema do qual ela possa extrair frases discursivas Etienne Turpin – Eu tentei es- Etienne Turpin – Em uma re- úteis e, então, ir à caça da próxima crever sobre essa estética, tanto em cente exposição sobre o Antropoceno coisa na tentativa de representar a artigos anteriores, quanto na coleção que eu organizei com Anna-Sophie si mesma como um relevante cam- que editei com Heather Davis, inti- Springer no contexto de uma colabo- po de estudo. É um problema real- tulada Art in the Anthropocene [Arte ração de longo prazo chamada Reas- mente óbvio para mim: a arquitetura no Antropoceno], publicado pela sembling the Natural2, nós intervie- acadêmica está interessada na re- Open Humanities Press em 2015. No mos na exposição de um museu de presentação habilidosa e inteligente artigo “A estética não intencional do história natural, reorganizando-o, dos problemas, de tal modo que a Antropoceno”, eu argumentei que criticando-o e introduzindo 18 obras autoria, o poder e o controle per- essas estéticas estão todas ao nosso de arte contemporânea para contes- maneçam incontestados. Enquanto redor, incluindo algumas mais ób- tar a pedagogia do excepcionalismo essa vontade de dominação através vias, como as montanhas de lixo e humano que é ubíquo no museu em da representação não for superada, as gigantescas chaminés industriais. condições normais. Após três meses a disciplina simplesmente se tornará Vivemos em meio a montanhas de de visitação, recebemos os comentá- cada vez mais como um marketing lixo que ajudaram a produzir o An- rios do livro de visitas – os visitantes tridimensional. Se isso soa muito crí- tropoceno como cascas desprezadas ficaram furiosos. Fomos acusados​de tico, deveríamos pelo menos admitir da acumulação industrial-capitalis- destruir o museu de história natural! que a maioria das escolas de arquite- ta. Podemos imaginar essa estética Parece claro agora que, à medida tura estadunidenses hoje poderiam como caracterizada pelas externa- que as pessoas se tornam cada vez 78 ser subsumidas pelas faculdades de lidades territoriais e encarnadas da mais conscientes das catástrofes Administração como um subcampo imagem do progresso sob o capita- ecológicas iminentes (sejam elas do marketing com poucas mudanças lismo. referentes à extinção, às mudanças em seu currículo. climáticas etc.), elas se apegam ain- da mais fortemente a uma imagem da natureza que está na raiz do pro- IHU On-Line – Ainda faz sen- blema! Se somos, em graus variados, tido a divisão categórica entre reféns do Antropoceno, a imagem do natureza e cultura? Como o Homem como Mestre da Natureza Antropoceno produz uma nova – como Ele é apresentado em quase deontologia? “Se somos, em todos os museus de história natural Etienne Turpin – A divisão en- – torna-se um mito que deve ser de- tre natureza e cultura às vezes é graus variados, fendido para não admitirmos a nos- pragmática, mas não é nem categó- sa precariedade. rica nem ontológica. Eu acho que é reféns do importante aceitar que existem pro- cessos independentes da mente e da Antropoceno, IHU On-Line – Como o Antro- cultura, chamemo-los de realidade, poceno, mais especificamente o natureza ou do que você quiser. Ao a imagem aquecimento global, exige uma mesmo tempo, há pouca realidade nova forma de relação com as ou natureza, pelo menos na Terra, do Homem comunidades/populações mais que não seja de alguma forma afe- fragilizadas pelo rearranjo cli- tada pelo efeito agregado das ativi- como Mestre mático? Em particular, qual a dades humanas com as quais devem contribuição do design e da ar- interagir. Isso é algo que tentamos da Natureza” quitetura nesse sentido? escrever recentemente a respeito de Etienne Turpin – Minha prática cidades, mosquitos e dengue – como tem sido uma extensa etnografia ins- as suposições humanas sobre essas titucional e trabalho de campo, então, divisões realmente orientam a políti- ca urbana e/ou os processos urbanos que ficam ainda mais fora de con- 2 http://reassemblingnature.org/about/.

17 DE DEZEMBRO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE acho que, se os arquitetos estão se per- competindo umas com as outras so- tringida de tal modo que torna esses guntando: quem são as partes interes- bre quem é o árbitro apropriado do vários compromissos epistemológicos sadas ​nesse projeto, eles já estão muito Antropoceno. Incrível, não? De fato, valiosos, mas apenas parcialmente. atrasados. Se você precisa se pergun- Isabelle Stengers previu esse tris- Ninguém pode narrar o projeto inteiro tar para quem é o seu projeto, você já te resultado em sua entrevista com a partir de uma disciplina – engraça- entendeu tudo errado. A pesquisa em Heather Davis, publicada pela Open do, essa parece ser uma boa maneira design, software e infraestrutura hu- Humanities Press em Architecture de mantê-lo trabalhando, e de mantê- manitária em que eu tenho trabalha- in the Anthropocene [A arquitetura -lo trabalhando em conjunto. do, tanto com o anexact office quanto no Antropoceno], em 2013. com a cooperativa de propriedade dos trabalhadores User Group, começa IHU On-Line – É possível cons- atendendo às condições in loco. Onde truir alternativas aos dilemas estamos? O que está acontecendo? O ambientais e sociais originados que faz as coisas se moverem? O que pelo Antropoceno para além do faz as coisas pararem? debate acadêmico? De que ma- “Se você neira pode-se integrar outros Isso significa se sentar, ouvir, estar interlocutores na discussão, na cidade e fazer parte de suas ale- precisa se como, por exemplo, as popula- grias e tristezas, de seus potenciais ções atingidas pelas mudanças e seus limites. Os designers não são perguntar para climáticas? observadores privilegiados! Eles po- dem fazer parte de uma conversa, quem é o seu Etienne Turpin – Sim, eu acho fazer parte de uma narrativa, fazer que é possível. Pelo menos, na minha parte do processo, e eles têm algu- projeto, você prática, eu trabalho cruzando vários mas habilidades úteis, é claro. Mas, formatos para construir alternativas, se você não consegue ver uma cida- já entendeu porque acredito que seja possível e de ou um sistema pelo que eles são, tudo errado” urgente fazê-lo. Formei-me como fi- ou seja, como eles funcionam, o que lósofo, mas acho que a filosofia pode os residentes podem fazer uns com ser praticada melhor em vários regis- 79 os outros (para fazer referência ao tros em que o pensamento faz parte brilhante trabalho de AbdouMaliq do conjunto. Como editor (e, ocasio- Simone), você acaba de volta ao jogo Mas agora eu estou longe demais nalmente, como escritor), eu trabalho da representação. Há quanto tempo da academia para dar uma respos- com o setor de publicações porque Foucault falou sobre a indignidade ta adequada, para ser perfeitamen- ainda acredito que os livros (e as ideias de falar pelos outros? No entanto, a te franco. Eu sinceramente não sei que eles transmitem) são consequen- arquitetura ainda não captou a in- como esses debates disciplinares tes para essa condição que podemos dignidade de representar os outros! ainda podem persistir, para que fim, chamar de Antropoceno. Como cura- Se há alguma contribuição que a com quanta energia desperdiçada e dor, acho que as exposições ainda são arquitetura pode fazer, é definitiva- para quê?! Até mesmo a ideia de que um espaço para desafiar as narrativas mente a de ir ao encontro das lutas a multidisciplinaridade como tal é culturais dominantes e para reformu- pela justiça social e ambiental, e pela uma chave de ouro para o bloqueio lar os modos de ver o Antropoceno. integridade climática, com humilda- da complexidade parece um pouco Como designer que trabalha cruzando de – não como um especialista com como um slogan neoliberal nos dias o design urbano, o software de código respostas, mas para ouvir e aprender de hoje. Não que eu seja contra, mas aberto e a infraestrutura humanitá- com os que estão na linha de frente. o que precisamos são de modelos ria, gosto de pensar no nosso trabalho mais ágeis e convincentes de inves- como anastrófico. Se uma catástrofe é tigação e intervenção, não de um slo- o passado se separando, uma anástro- IHU On-Line – Quais os limi- gan de “vamos todos juntos”. fe é o futuro se unindo. Como podemos tes da arquitetura enquanto fazer design para as convergências do Em um projeto de software de código disciplina para enfrentar os Antropoceno (mudanças climáticas, aberto que eu ajudei a desenvolver na desafios colocados pelo Antro- luta política, migração, conflito etc.), Indonésia a partir de 2013, a equipe poceno? Como a multidiscipli- permitindo a colaboração, a coopera- de pesquisa original era composta por naridade pode contribuir nesse ção e a criatividade em participantes mais de 15 disciplinas distintas. Desde sentido? humanos e não humanos? Esse traba- então, dezenas de pessoas de outros lho não tem a ver com prever o futuro, Etienne Turpin – Cada discipli- campos também vieram trabalhar no mas se concentra em projetar uma na é uma herança do Holoceno, por- projeto, apoiaram-no e passaram por infraestrutura criteriosa, atentando tanto, nesse aspecto, a arquitetura é ele, e depois por outros projetos ou cuidadosamente para estas trajetó- como qualquer outro campo de pes- áreas de pesquisa. Por estar embasada rias do Antropoceno. ■ quisa. Agora, vemos as disciplinas em uma realidade concreta, ela é res-

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Da esperança ao ódio: Juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo

ensaio traz uma reflexão preliminar de uma etnografia longitudinal que vem sendo realizada desde 2009 sobre consumo e política entre jovens do Morro da Cruz (aqui, “o Morro”), a maior periferia de Porto Alegre. Mesmo sem resultados O teóricos ou empíricos conclusivos, conside- ramos de suma relevância apresentar este esboço de nossos dados. No trabalho pôde- -se observar as transformações pelas quais os jovens, suas famílias e seus entornos pas- saram pelos momentos chave da história re- cente do País, marcados, respectivamente, pela emergência e colapso do crescimento econômico. Essas fases do desenvolvimen- to nacional afetam não apenas as condições materiais da existência, mas igualmente o self individual, a capacidade de aspirar e as formas de fazerpolítica e de compreender o mundo. Esperança e ódio, por fim, não são 80 categorias totalizantes na perspectiva adota- da aqui. São antes tendências que nos aju- dam a pensar como a subjetividade política é moldada em contextos diferenciados. Havia ódio na esperança e parece haver esperança no ódio - e essa sutileza é, na verdade, cen- tral no argumento que traçaremos nas linhas que seguem. Rosana Pinheiro-Machado é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Fede- ral do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em Antropologia Social pela mesma univer- sidade. Foi professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford de 2013 a 2016. Atualmente é professora visitante no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP. Lucia Mury Scalco é socióloga e antro- póloga. Possui mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, quando desenvolveu pesquisas com os títulos “FaLa K É NóIs”: etnografia de um projeto de inclusão digital entre jovens de classes populares em Porto Alegre e O Consumo das novas tecnologias pelas classes populares, respectivamen- te. Atualmente, realiza investigações sobre os temas classes populares, inclusão digital, novas formas de apropriação das informações e do conhecimento, juventude e consumo. A versão completa está disponível em http://bit.ly/2CdxDbY. Esta e outras edições do Cadernos IHU ideias também podem ser obtidas diretamen- te no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço [email protected]. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Pesquisas, Instituições e Sociedade nas Tramas de Crise

VII SEMINÁRIO OBSERVATÓRIOS: PESQUISAS, INSTITUIÇÕES E SOCIE- DADE NAS TRAMAS DA CRISE dá sequência à tematização de interesse de um coletivo de Observatórios com atuação no campo social comprometido com a Oorganização e democratização das informações, assim como com a afirmação de polí- ticas públicas no contexto da sociedade contemporânea. O evento dá continuidade aos

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seis Seminários anteriores, que objetivaram promover o estudo e o debate sobre o papel dos Observatórios, suas metodologias e impactos. Este espaço de formação e articula- ção desde 2013 apontou para a constituição da REDE DE OBSERVATÓRIOS SOCIAIS, que assumiu a realização deste evento, assim como um conjunto de outras ações que apontam para o fortalecimento dos observatórios sociais como ferramentas estratégicas de afirmação da democratização do Estado e da sociedade brasileira. O livro apresenta importantes debates sobre o tema e discussões realizadas na última edição do evento.

A versão completa está disponível em http://bit.ly/2Cc0xcD.

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O mal-estar na cultura medicamentalizada

pesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica. Estas são identificadas por estudiosos do campo por vi- A sarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos através de recursos etica- mente discutíveis. Ao mesmo tempo, pode- -se afirmar que convivemos com uma “crise dos vínculos de confiança” nas interações médicas no desempenho de suas atividades. O comprometimento da dimensão ética no âmbito da atividade médica também pode encobrir interesses financeiros que partici- pam da mencionada crise dos vínculos, que pode ser desenvolvida a partir do conceito foucaultiano de governamentalidade apli- cado ao campo da medicina: a medicamen- talidade. Da mesma forma, podemos nos 82 referir a um epidemiopoder que irá confi- gurar práticas medicamentalizadas, se con- siderarmos as características básicas que definem o objeto das disciplinas do âmbito sanitário – saúde e vida nas populações. Mais: na atualidade, é a normatividade de base epidemiológica que rege os preceitos e recomendações que pretendem disciplinar as populações humanas no interior dos dis- cursos de promoção da saúde centrados no comportamento saudável com vistas à lon- gevidade com a qualidade de vida acessível ao consumidor. No limite, cada um deve ter metas de gestão da vida como fenômeno biológico configuradas por noções de risco propaladas por mensagens médico-epide- miológicas normativas de porta-vozes da fortaleza, prudência, moderação e tempe- rança em nome de estilos de vida regrados. Luis David Castiel possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (1975), mestrado em Community Medicine pela University of Lon- don (1981), doutorado em Saúde Pública pelo Fundação Oswaldo Cruz (1993) e pós-dou- torado pelo Depto. de Enfermeria Comunitaria, Salud Publica y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, Espanha (2005). Atualmente é pesquisador titular do Depto. de Epidemiología e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. A versão completa está disponível em http://bit.ly/2GhGNYX. Esta e outras edições do Cadernos IHU ideias também podem ser obtidas diretamen- te no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço [email protected]. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança?

artigo mostra como a opção Francisco foi o resultado de um sofisticado discer- nimento dos sinais da época da Igreja latino-americana, parte do qual foi um diagnóstico de onde a Igreja ocidental errara em sua resposta temerosa ao secu- Olarismo. Uma vez apreendido esse discernimento, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização. Austen Ivereigh é escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papado de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.

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A versão completa está disponível em http://bit.ly/2UEuclX. Esta e outras edições do Cadernos Teologia Pública também podem ser obtidas dire- tamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço [email protected]. Informações pelo telefone (51) 3590-8213. telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

A mística nupcial. Teresa de Ávila e Tomas Merton

Edição 460 – Ano XV – 16-12-2014 Em 2015, comemorou-se os 500 anos do nascimento de Teresa de Ávila (1515-1582) e o centenário de Thomas Merton (1915-1968) duas grandes referências da mística cristã. Reconhecidos pela busca da interioridade e pelo amor a Deus e ao próximo, evidenciar o legado teológico de ambos os místicos, sua trajetória, sentido e atualidade de suas vivências foi o tema de debate da revista IHU On-Line.

Maria de Magdala. Apóstola dos Apóstolos

85 Edição 489 – Ano XVI – 18-7-2010 A iniciativa do Papa Francisco de elevar a memória litúrgica de Ma- ria Madalena, no dia 22 de julho de 2016, à festa, como dos Apóstolos, é profética. Segundo Lilia Sebastiani, teóloga italiana, a decisão “in- screve-se na teologia dos gestos, mais do que das inovações doutrinais, e será lembrada como dos aspectos mais significativos de seu pontificado” Segundo ela, isto “não somente é importante para a história do culto de uma santa, mas para o devir do anúncio Pascal”.

Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XXI

Edição 168 - Ano V – 12-12-2005 “Parece que certas pessoas estão, em sua própria vida (e unicamente nis- so, e não como pessoas, por exemplo), de tal forma expostas que se tor- nam, por assim dizer, encruzilhadas e objetivações concretas da vida”, escreve Hannah Arendt. A frase prefigura seu próprio destino e o de duas outras mulheres, suas contemporâneas: Simone Weil e Edith Stein.

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