AMBÍGUA SITUAÇÃO TRABALHISTA: ANÁLISE DA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA Nº 44.71 DA JUNTA DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO DE CATENDE DO ANO DE 1971

Lara Maria de Holanda Soares Bacharel em Comunicação Social (UFPE); Graduanda de História (UFPE)1. E-mail: [email protected].

RESUMO

Na análise de processos trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de Catende (JCJ Catende) entre 1971 e 1973, é possível observar a situação dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro. Este período é marcado por incentivos à produção sucroalcooleira, como as ações do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA). Já em relação aos trabalhadores, verifica-se uma situação ambígua: nas reclamações que ingressavam na JCJ Catende, há a não observância a direitos trabalhistas, como férias, 13º salário, entre outros. Essas considerações são feitas a partir de pesquisa através do método serial, a fim de se obter uma visão global da situação desses trabalhadores, mas que também possibilita a análise de casos exemplares. É o caso do processo trabalhista nº 44.71, com 34 reclamantes que trabalhavam em um engenho arrendado e reivindicavam o direito a férias, 13º salário e complementação salarial. Ao final, a Junta reconheceu o direito de 4 reclamantes. Um dos aspectos que chama a atenção é a ambiguidade que há no processo, como a concordância dos representantes dos reclamantes com todas as documentações juntadas pelos reclamados, não questionando nem mesmo um documento que um dos reclamantes afirmou, numa espécie de “denúncia”, não corresponder à sua assinatura.

PALAVRAS-CHAVE: Junta de Conciliação e Julgamento; trabalhadores rurais; história serial.

INTRODUÇÃO

Catende, a 142 quilômetros do , é um dos municípios pernambucanos da Zona da Mata Sul com grande concentração fundiária e marcado pela monocultura da cana de açúcar, com canaviais e usinas, tais como a Usina Catende S/A. Esta usina foi fundada em 1829 no Engenho Milagre da Conceição e se tornou próspera em 1927, sob a administração de Antônio Ferreira da Costa Azevedo, conhecido como “Seu Tenente”. A pesquisadora Renata Siqueira destaca que na década de 1930 a Usina Catende era

1 Graduanda do Bacharelado em História na Universidade Federal de (UFPE), onde desenvolve pesquisa de iniciação científica (Pibic), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob orientação da Profa. Dra. Christine Dabat.

considerada “uma das maiores usinas da América Latina, chegando a possuir 43 propriedades agrícolas e uma via férrea de 140 quilômetros.” (2016, p. 85) Diante deste cenário marcado pela cana de açúcar, esta pesquisa analisa a situação dos trabalhadores do setor. Para tanto, são utilizados como fonte primária os processos da Junta de Conciliação e Julgamento de Catende (JCJ Catende) entre os anos de 1971 e 1973. A partir da metodologia serial, que possibilita uma visão global, abrangente, da situação dos trabalhadores através de séries históricas, também é possível observar casos exemplares. Alguns documentos chamam a atenção pelas particularidades que apresentam. É o caso do processo nº 44.71, da JCJ Catende, que será analisado neste artigo. Com este levantamento de processos, é possível observar a situação dos trabalhadores, tendo como objetivo apresentar algumas ambiguidades na situação trabalhista no setor sucroalcooleiro. Para se chegar a esta análise, também é feito um estudo do universo da pesquisa, com a leitura de autores como Manuel Correia de Andrade, Tamás Szmrecsányi, da professora Christine Dabat e de pesquisas como a de Renata Siqueira. Uma primeira ambiguidade a ser notada é a postura distinta do Estado em relação ao setor sucroalcooleiro e aos trabalhadores. O setor açucareiro é caracterizado pelos incentivos estatais desde seu início, no período colonial (com a inserção de outras variedades da planta, como a cana caiana, e de engenhos a vapor), passando pelo período imperial (com o investimento na implantação dos engenhos centrais) até chegar ao período republicano. As políticas de Estado beneficiaram o setor através de incentivos, empréstimos e de órgãos como o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) — criado em 1º de junho de 1933, pelo Decreto nº 22.789, com o objetivo de orientar, fomentar e controlar a produção de açúcar, álcool e suas matérias-primas em todo o Brasil, extinto em 1990. Segundo Manuel Correia de Andrade, o processo usineiro compreendeu quatro períodos, dos quais o quarto e último corresponde ao recorte desta pesquisa, iniciado segundo o autor nos anos 1970, quando a “intervenção governamental buscou dinamizar, modernizar e acelerar a concentração da produção de açúcar e expandir a produção de álcool, visando a reformular a política energética do país” (ANDRADE, 1994, p. 36)

Já quanto aos trabalhadores observa-se que a situação trabalhista, que já não era boa antes da implantação das usinas, continuou sem verificar avanços significativos até a década de 1960. Como indica Siqueira, “os avanços na produção açucareira não tiveram aspectos positivos para os trabalhadores, os mesmos se viram em condições de extrema pobreza e oprimidos pelo patronato.” (2016, p. 85) Mesmo com a criação da Justiça do Trabalho, com a definição de suas competências em 12 de dezembro de 1940, pelo Decreto nº 6.596, e com a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, foi apenas em 1963 que os trabalhadores rurais tiveram seus direitos trabalhistas reconhecidos: o ETR reforçava e detalhava as disposições gerais da CLT para os assalariados agrícolas, como direito ao salário mínimo, férias anuais remuneradas, repouso semanal, direito aos trabalhadores se organizarem em sindicatos iguais aos urbanos, registrados no Ministério do Trabalho, conforme indica Manuel Correia de Andrade (1989, p. 57 apud FERREIRA FILHO, 2012, p. 31). Quanto às Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJ), as primeiras do Brasil foram criadas em 1932 através do Decreto nº 22.132, sob o princípio de conciliação entre as partes, em que o presidente da Junta faria a proposta e, caso esta não prevalecesse, os dois vogais das partes e o próprio presidente profeririam julgamento, por maioria. Antes da criação das JCJ, a Justiça Comum era o órgão responsável pela resolução dos conflitos entre empregadores e empregados, baseada no Código de Processo Civil (Lei nº 3.071 de 1º de janeiro de 1916). Em 1962, foram criadas as 8 primeiras JCJ de Pernambuco, pela Lei nº 4.088. Entre as primeiras Juntas, estava a JCJ Palmares, que atendia o município de Catende. Esse município só passou a ter uma Junta própria com a Lei nº 5.650, de 11/12/70, que criou “na Justiça do Trabalho das 6ª e 7ª Regiões 20 Juntas de Conciliação e Julgamento”2.

2 “Art. 1º Ficam criadas nas 6ª e 7ª Regiões da Justiça do Trabalho 20 (vinte) Juntas de Conciliação e Julgamento, assim distribuídas: a) na Sexta Região - quatro em Recife (6ª a 9ª), uma em cada um dos Municípios de Cabo, Catende, Pesqueira, , todas no Estado de Pernambuco; uma em Penedo, no Estado de Alagoas, uma em João Pessoa (2º), no Estado da Paraíba, uma em Macau e uma em Mossoró, no Estado do Rio Grande do Norte; [...] Art. 2º Integram a jurisdição das Juntas de Conciliação e Julgamento, criadas pelo artigo 1º, os seguintes Municípios: [...]

Figura 1 Municípios sob jurisdição da JCJ Catende3

Após a promulgação da CLT e do ETR, o Código Civil ainda era utilizado nas reclamações dos trabalhadores. De acordo com Ferreira Filho, “Embora, já em 1943, a CLT incluísse várias cláusulas que também eram estendidas aos trabalhadores rurais, na prática, foi o vazio jurídico que predominou até 1963.” (FERREIRA FILHO, 2010, p. 213). A lei do ETR foi aprovada de forma relativamente fácil, segundo Andrade, pois atendia às necessidades de áreas de agricultura mais dinâmica, com exploração de terra em termos capitalistas nas quais o trabalhador já havia sido apropriado, enquanto que nas

c) Junta de Conciliação e Julgamento de Catende (PE), com jurisdição sobre os Municípios de , , , Belém de Maria, , São Benedito do Sul, Quipapá, Jurema e Cupira; [...]”. Fonte: Lei nº 5.650/70. Disponível em: . 3 Figura editada pela pesquisadora a partir de imagem da Internet. Original está disponível em: < https://www.panelaspernambuco.com/2010/06/mapa-de-panelas-pernambuco.html>. Acesso: 27/08/18.

regiões de relações de trabalho não capitalistas os proprietários esperavam que o ETR não viesse a ser aplicado de fato (1986, p. 35):

Essa crença tinha um certo fundamento, uma vez que a Consolidação das Leis de Trabalho, de 1943, já reconhecia o direito do trabalhador rural ao ‘salário mínimo (art. 76), direito ao aviso prévio em caso de demissão (art. 487), férias remuneradas (art. 129) e obrigatoriedade das normas gerais dos contratos de trabalho (art. 442)’ (COSTA, 1981), e a Constituição de 1946, em seu artigo 157, assegurava a estabilidade aos trabalhadores. Estes princípios, porém, nunca haviam sido respeitados. [...] Ocorria, porém, que o ETR não surgia como uma dádiva aos trabalhadores rurais, mas como uma conquista e que estes, organizados em sindicatos a nível municipal, em federações a nível estadual e em confederação a nível nacional, tinham condições de se mobilizar, de enfrentar uma luta séria e consequente e ir gradativamente fazendo valer os direitos que haviam conquistado.” (ADRADE, 1986, p. 35)

O ETR, contudo, não significou que os trabalhadores tiveram seus direitos atendidos de fato. Nos processos analisados, que inclusive se situam em um período entre 7 e 10 anos após a aprovação do ETR, vê-se que era recorrente os trabalhadores entrarem com uma reclamação nas Juntas de Conciliação afirmando terem sido demitidos sem justa causa e sem receber indenização, aviso-prévio, além de reclamarem pela ausência de anotação na Carteira Profissional de Trabalho, o não recebimento de férias ou do salário mínimo, férias, 13º salário, descanso remunerado. Também aparecem nas reclamações denúncias de violência e ameaças por parte de empregadores, entre outros. Vale ressaltar também que o período analisado foi o da ditadura civil-militar (que durou entre 1964 e 1985), caracterizado pela repressão e violência do Estado brasileiro. A propósito, Manuel Correia afirma que:

Reprimido o movimento ‘camponês’, partiu o governo para modernizar a agroindústria em termos capitalistas, aplicando leis como a nº 1.168, de 27 de agosto de 1971, o Programa Nacional de Melhoramento da Cana de Açúcar, concretizado por intermédio do Programa de Racionalização da Agroindústria Açucareira (1971) e do Programa de Apoio à Agroindústria Açucareira (1973), com o intuito de melhorar as condições agrícolas, orientar a produção de novas variedades de cana, mediante a criação de estações experimentais, e

modernizar o combate às pragas que atingiam os canaviais. (ANDRADE, 1994, p. 41)

Na análise do processo trabalhista nº 44.71, é possível observar que a reclamação foi aberta em 08/09/71 na JCJ Catende, mas é fruto de dois processos anteriores abertos na JCJ Palmares que depois foram remetidos para a JCJ Catende. Os dois processos iniciais da JCJ Palmares eram os de número 303.71 e 304.71, com data de abertura em 31/03/71 e que contavam, respectivamente, com 19 e 15 reclamantes, totalizando 34 trabalhadores. Ressalte-se que os trabalhadores tinham a possibilidade de recorrer à Justiça do Trabalho com causas coletivas. Ou seja, processos com mais de um reclamante não eram exceção.

Figura 2 JCJ Catende, Processo 44.71, folhas 2 e 12, indicando abertura das reclamações dos trabalhadores através do seu sindicato de classe

As reclamações 303.71 e 304.71 foram requeridas por trabalhadores rurais através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Maraial, ao qual estavam sindicalizados. Todos os trabalhadores moravam no mesmo engenho, onde também trabalhavam, e que

pertencia a uma usina, mas estava arrendado a um particular. Destaca-se o fato de os trabalhadores terem recorrido à JCJ Palmares quando trabalhavam para o engenho, pois não há indicação de demissão nas reclamações. O objeto da reclamação era a reivindicação de direitos trabalhistas não atendidos pelo empregador, referentes a férias, 13º salário e diferença salarial. Um outro aspecto que se destaca na análise do processo nº 44.71 é a postura ambígua dos defensores dos reclamantes, caracterizada pela concordância dos representantes dos trabalhadores em relação a todas as documentações anexadas ao processo a pedido do reclamado. Não há questionamentos, por exemplo, a respeito da idoneidade das provas juntadas.

METODOLOGIA

A metodologia adotada nesta pesquisa é a história serial, com a elaboração de uma série de dados a partir de processos trabalhistas da JCJ Catende, no período de 1971 a 1973. Com a história serial, é possível fazer uma análise global da situação trabalhista desses atores, através do levantamento de dados com as demandas por eles apresentadas. Segundo Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Pérez Brignoli, uma série de dados só faz sentido quando é construída para responder a perguntas muito precisas (2002, p. 30). Ou seja, uma história sistematicamente quantificada pressupõe que as hipóteses de trabalho do historiador sejam tornadas explícitas:

Renunciando à sua feliz inocência o historiador teve de tomar conhecimento de algo fundamental: da necessidade, ou melhor, da inevitabilidade de selecionar, recortar, construir seu objeto em função de suas hipóteses, de seu marco teórico e metodológico. (CARDOSO & BRIGNOLI, 2002, p. 30)

Ou seja, é a partir de um recorte espaço-temporal e de um marco teórico e metodológico estabelecidos que esta análise pode ser feita. Partindo dessa metodologia, os processos da JCJ Catende são selecionados para depois serem compiladas informações

dos reclamantes, tais como: motivação da reclamação; gênero; estado civil; residência; tempo de serviço; categoria do trabalhador (sua função); se tem carteira assinada; se é sindicalizado; etc. Dos 198 documentos analisados até o momento, apenas 24 se referiam a trabalhadores que não desenvolviam atividades relacionadas à indústria açucareira (por exemplo, advinham do setor educacional e de energia). Os demais 174 processos se referiam a trabalhadores vinculados à produção sucroalcooleira. A viabilidade desta pesquisa se deve ao acesso às fontes da Junta de Conciliação e Julgamento de Catende (JCJ Catende), disponíveis graças ao convênio entre o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT 6ª Região) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Os processos estão disponibilizados para consulta no 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFPE. Além disso, trabalhos acadêmicos já realizados a partir dos processos de outras Juntas de Conciliação e Julgamento, atestam a grande variedade de informações e a necessidade de essas fontes serem analisadas, trazendo novos olhares sobre a história dos trabalhadores.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A cana de açúcar que ainda hoje é parte da paisagem da Zona da Mata pernambucana foi o produto que mais gerou riqueza em todo o período de colonização do Brasil, como afirma Manuel Correia de Andrade. A agricultura nordestina tem caráter essencialmente comercial desde a colonização até os dias de hoje, mesmo com crescimento de classe média e do mercado interno com a industrialização. Andrade diz que: Seu domínio se manifesta através da proteção dispensada pelos órgãos governamentais à grande lavoura — à cana-de-açúcar, ao café, ao cacau, etc. — e ao completo desprezo às lavouras de subsistência ou 'lavouras de pobre', como se diz frequentemente no Nordeste. (2005, p. 64)

As políticas estatais beneficiaram o setor sucroalcooleiro através de incentivos, empréstimos e de órgãos como o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) — criado em 1º de junho de 1933, através do Decreto nº 22.789, com o objetivo de orientar, fomentar e controlar a produção de açúcar, álcool e suas matérias-primas em todo o Brasil, sendo

extinto em 1990. Manuel Correia de Andrade ainda afirma que: “O que se observa, muitas vezes, é que a modernização e o uso de uma tecnologia mais eficiente provocam mais a degradação da questão social do que a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e da população.” (1994, p. 151) Na fase anterior ao desenvolvimento das usinas, na segunda metade do século XIX, o governo imperial incentivou a implantação dos engenhos centrais. Esses maquinismos foram idealizados por estadistas e montados com garantias estatais para a obtenção de capitais, mas eram de propriedade de companhias estrangeiras (ANDRADE, 2005, p. 102). Como explica Andrade, “Estes engenhos centrais seriam, porém, apesar da aplicação de capitais estrangeiros, um sério fracasso; a maioria deles não moeu mais de um ano. Esse fracasso deu margem ao aparecimento da usina e à transformação de alguns engenhos centrais em usinas” (2005, p. 103). Dessa forma, o investimento estatal não representou um retorno para o Estado, ou melhor, para a sociedade brasileira ou mesmo para os trabalhadores desse setor. Outro autor que corrobora essa ideia é Tamás Szmrecsányi, que explica que o planejamento socioeconômico realizado pelo Estado não significa uma centralização e o controle governamental sobre as atividades econômicas e sociais: “Planejamento e mercado não são mutuamente exclusivos; antes, pelo contrário, eles tendem a ser complementares, e podem ser combinados de várias maneiras.” (1979, p. 6) O setor sucroalcooleiro, através do latifúndio e das políticas estatais, sempre manteve uma profunda divisão social que marca as relações trabalhistas no Brasil, com destaque para a situação dos trabalhadores rurais. Szmrecsányi ainda explica que vários ramos do setor agroindustrial (indústria transformadora de produtos agropecuários) e da indústria fornecedora de meios de produção (equipamentos e insumos para a produção agropecuária) geralmente são classificados no setor industrial:

A produção agropecuária propriamente dita faz parte de um sistema, ou de um complexo, mais abrangente e cada vez mais integrado, no qual também se incluem diversos ramos industriais e de serviços, bem como entidades e atividades estatais, todos a ela permanentemente vinculados” (1983, p. 4)

Esse padrão de acumulação na economia brasileira iniciado nos anos 1960 não é resultado de mera especialização setorial da produção agropecuária e de sua integração numa divisão regional do trabalho, segundo Szmrecsányi: “Ela tem provocado também profundas mudanças nas relações de trabalho que lhe são subjacentes e, por decorrência das mesmas, na política agrária governamental.” (1983, p. 39). Em situação oposta ao do desenvolvimento do setor sucroalcooleiro com o incentivo estatal, a situação do trabalhador rural foi marcada pela degradação social. A pesquisadora Renata Siqueira aponta alguns mecanismos de regulamentação dos direitos dos trabalhadores durante o governo de Getúlio Vargas, como as Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJ), criadas em 1932 através do Decreto-Lei nº 22.132, com o intuito de conciliar empregadores e empregados, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1943. Essas duas medidas representam marcos nas relações de trabalho no Brasil, mas não se pode deixar de notar outros aspectos envolvidos, como ressalta Siqueira: “os esforços se davam sempre no sentido de controlar os problemas, evitando constantemente a luta de classes.” (2016, p. 87) Esse legado getulista, segundo a pesquisadora Christine Dabat, trouxe alguns marcos para as relações de trabalho da zona canavieira, mas também se manifestou com ambiguidades em relação aos assalariados agrícolas, já que não contemplava os trabalhadores rurais ou, quando isso ocorria, se dava de maneira parcial e teórica. Além disso, Dabat ressalta que “O Estado manteve sempre, na zona canavieira, uma forte presença a serviço dos empresários, inclusive em assuntos de controle da mão de obra.” (2012, p. 100) Apenas em 1963, com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), 20 anos após a promulgação da CLT, é que os trabalhadores rurais passaram a contar com um mecanismo legal que garantisse a aplicação de seus direitos trabalhistas, como: estabilidade no emprego após um ano de trabalho; salário mínimo; descanso semanal e férias remuneradas; aviso prévio; indenização por tempo de serviço; entre outros. (SIQUEIRA, 2016, p. 86)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos dados da JCJ Catende analisados até o momento, referentes ao ano de 1971, pode-se verificar uma semelhança com o que já foi analisado pela pesquisadora Renata Siqueira no ano de 1972: homologações de opção pelo FGTS, de demissões e também reclamações de trabalhadores requerendo direitos trabalhistas não respeitados pelos empregadores. Dos 198 documentos analisados até o momento, apenas 24 se referiam a trabalhadores (sendo 02 do sexo feminino e 22 do sexo masculino) que não desenvolviam atividades relacionadas à indústria açucareira (por exemplo, advinham do setor educacional e de energia). Os demais 174 processos se referiam a trabalhadores relacionados à produção sucroalcooleira. Desses 174 processos, apenas 08 eram abertos por trabalhadoras (sexo feminino), enquanto os 164 restantes foram reclamações efetivadas por trabalhadores (sexo masculino). E nenhum dos 08 processos referentes às trabalhadoras tratava de homologação por opção ao FGTS, todos versavam sobre rescisão de contrato com desistência de estabilidade (adquirida após 10 anos de trabalho contínuo), requerendo direitos como indenização, aviso-prévio, diferença de salário retido, 13º salário e férias. No caso do processo nº 44.71 da JCJ Catende, ao analisar as 97 folhas que compõem o processo, observa-se que a reclamação foi aberta em 08/09/1971 na JCJ Catende, mas que ela é decorrente da junção de dois processos anteriores abertos na JCJ Palmares e remetidos à Catende. Vale lembrar que a JCJ Palmares, aberta em 1962, atendia à jurisdição de Catende, mas este município passou a ter sua própria JCJ a partir da Lei nº 5.650/70. Os dois processos iniciais da JCJ Palmares eram os de número 303.71 e 304.71, com data de abertura em 31/03/71 e que contavam, respectivamente, com 19 e 15 reclamantes, totalizando 34 trabalhadores. Ressalte-se que os trabalhadores tinham a possibilidade de recorrer à Justiça do Trabalho com causas coletivas. Ou seja, processos com mais de um reclamante não eram exceção. As reclamações 303.71 e 304.71 foram requeridas por trabalhadores rurais através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Maraial, ao qual estavam sindicalizados. Todos os trabalhadores moravam no mesmo engenho, onde também trabalhavam, e que pertencia a uma usina, mas estava arrendado a um particular. Destaca-se o fato de os

trabalhadores terem recorrido à JCJ Palmares quando trabalhavam para o engenho, pois não há indicação de demissão nas reclamações, mas sim a indicação de que os reclamantes eram trabalhadores do engenho. O objeto da reclamação era a reivindicação de direitos trabalhistas não atendidos pelo empregador, referentes a férias, 13º salário e diferença salarial. A primeira audiência na JCJ Palmares foi agendada para 19/05/71, na qual o reclamado (arrendatário do engenho) solicitou que a usina proprietária do engenho fosse convocada como litisconsorte, ou seja, parte do processo judicial. O pedido foi aceito pelo juiz, que remarcou nova audiência para 16/07. Como os processos 303.71 e 304.71 tinham o mesmo objeto de reclamação e as mesmas partes, o juiz da JCJ Palmares determinou que fossem anexados, para que a Junta fizesse uma só instrução, seguindo o artigo nº 842 da CLT: “Sendo várias as reclamações e havendo identidade de matéria, poderão ser acumuladas num só processo, se se tratar de empregados da mesma empresa ou estabelecimento”. Em sua defesa, a usina apresentou cópia da escritura do arrendamento e defendeu que não deveria ser responsabilizada pela reclamação, pois o engenho estava arrendado, cabendo ao arrendatário a responsabilidade pelas questões trabalhistas, alegando a sucessão de responsabilidade. O engenho foi arrendado de dezembro de 1968 a maio de 1974. A usina ainda pediu que, caso sua alegação inicial não fosse acatada, que ela pudesse apresentar provas de que havia pago os direitos trabalhistas anteriores a dezembro de 1968. O juiz acatou a alegação, então a usina não foi considerada litisconsorte. Entretanto, o juiz determinou a realização de perícia das folhas de pagamento para verificar a frequência dos trabalhadores e determinar se tinham direitos a receber. Em 03/09/71, o juiz da JCJ Palmares remeteu os dois processos à JCJ Catende, alegando que o conflito ocorreria na jurisdição daquela Junta. A JCJ Catende aceitou a competência em 08/09/71, quando teve início o processo nº 44.71 da JCJ Catende. A remessa se deu sem que nenhuma das partes houvesse solicitado, o que estava previsto no Código de Processo Civil de 1939 (vigente no momento do processo em questão, já que o CPC seguinte foi posterior, de 1973), que em seu Parágrafo Único do artigo 273

versava que: “Reconhecida a incompetência, o juiz, ex-officio, ou a requerimento, ordenará a remessa dos autos no juizo competente”4. Em 16/11/71, foi proferida a decisão do juiz da JCJ Catende, após a análise de provas apresentadas pelo reclamado e pela usina (as folhas de pagamento), além da perícia. A reclamação foi julgada procedente em parte, com o juiz determinando que, dos 34 trabalhadores que reivindicaram direitos, 8 tinham direitos trabalhistas a receber, sem dar maiores explicações para o fato de os demais 26 não fazerem jus à reivindicação. Após a decisão da Junta, o arrendatário do engenho entrou com recurso, alegando que já havia pago os direitos de 4 dos 8 trabalhadores, apresentando recibos que foram anexados ao processo como prova. O juiz acatou o recurso do reclamado, determinando o pagamento a apenas 4 trabalhadores. Ou seja, de uma reclamação feita por 34 trabalhadores, ao final apenas 4 foram julgados aptos a receber os direitos. Entre as ambiguidades na situação dos trabalhadores, verificadas neste processo, está a postura passiva dos representantes dos reclamantes: concordaram com todas as documentações juntadas pelos reclamados, sem jamais questionar a idoneidade de tais documentos. Há, contudo, alguns indícios que poderiam ser motivo de questionamentos por parte dos advogados, como a forma de preenchimento das folhas de pagamento dos trabalhadores, apresentadas como provas de pagamentos efetuados pela usina em 1968: a ficha anual de um dos trabalhadores estava devidamente preenchida, com diferentes tonalidades de tinta de caneta, indicando que foram sendo anotadas no decorrer do tempo. Já as folhas de outros trabalhadores estavam invariavelmente preenchidas, com o mesmo tom da tinta e caligrafia invariável, como se tivesse sido preenchida em um mesmo momento. O fato mais ambíguo, entretanto, é uma certidão em que um dos trabalhadores, inclusive um dos poucos que assinavam, até reconheceu ter recebido um pagamento conforme estava documentado, mas afirmou não reconhecer como sua a assinatura apresentada no documento. Ou seja, mesmo após essa espécie de denúncia do trabalhador seus representantes não fizeram nenhum questionamento, mantendo a mesma passividade.

4 Disponível em: .

A fim de tentar compreender a passividade dos representantes dos trabalhadores, deve-se levar em consideração o período analisado, marcado pelo silenciamento dos trabalhadores e pela repressão no campo, com o Estado brasileiro promovendo perseguição de líderes de movimentos sociais, de grupos e organizações que discordassem de seu projeto político e ideológico. Como aponta Ferreira Filho: “Sobrevivendo na corda bamba da legalidade dos anos de chumbo, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, concordavam, e até persuadiam seus associados, a aceitarem as propostas de conciliação, minúsculas que fossem.” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 85), o que demonstra a ambiguidade existente na situação dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro, os quais seus próprios representantes se viam muitas vezes acuados diante de possíveis ameaças ora do Estado, ora dos próprios empregadores. A importância deste tipo de pesquisa está na possibilidade de aprofundar os olhares sobre a história dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro, sobretudo dos trabalhadores rurais desse tipo de atividade econômica, tão abrangente e que comporta diferentes funções, que vão desde os que lidam com o plantio até os que atuam no interior das usinas. Este estudo é uma necessidade premente em um país como o Brasil, que ainda tem entre seus problemas mais complexos e profundos a questão agrária, vinculada à questão trabalhista — hoje seriamente ameaçada com a aprovação da reforma trabalhista de 2017, que já traz consequências nefastas para os trabalhadores brasileiros, com a precarização e mesmo a perda de seus direitos.

REFERÊNCIAS

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