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OS PATAXÓ E OS FLUXOS COLONIAIS1

Rodrigo de Azeredo Grünewald2

Introdução

Os Pataxó de que trata este trabalho são os chamados Pataxó Meridionais: grupo étnico formado a partir de aldeamento em 1861 por nativos das etnias Pataxó, Maxacali, Botocudo, Tupiniquim e provavelmente Camacã no local hoje conhecido como Barra Velha – a “aldeia-mãe” dos atuais Pataxó, distribuídos em uma dezena de aldeias na região do litoral do Extremo Sul da , municípios de Prado, Monte Pascoal, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Os indígenas enfrentaram diversos momentos históricos importantes para sua definição étnica caracterizados por conflitos que podem ser investigados como próprios da ingerência de fluxos coloniais específicos e diferenciados socialmente. O presente trabalho pretende selecionar três desses momentos e examinar os modos de vida impostos pelos fluxos coloniais próprios de cada momento, considerando também os mecanismos e lógicas que, de fato, operam nessas amplas relações coloniais, incluindo aí as respostas Pataxó. Interessante notar que, para cada um desses momentos, vão ser geradas “territorializações” específicas na vida Pataxó. Refiro-me por este termo, seguindo Oliveira, a processos de reorganização social decorrentes da presença colonial aqui entendida pelo seu aspecto da situação de sujeição indígena “a um aparato político- administrativo que integra e representa o Estado (ou politicamente soberano ou somente com status colonial)” (Oliveira, 1999a:20). O terceiro destes momentos (o turístico) será privilegiado analiticamente na medida em que trata de uma dinâmica atual e ainda muito pouca estudada pelas ciências sociais. O turismo como colonialismo quer manter sob domínio a atividade produtiva

1 Trabalho apresentado no GT – POVOS INDÍGENAS, coordenado por João Pacheco de Oliveira e John Manuel Monteiro no XXVI Encontro Anual da ANPOCS. Outubro de 2002, Caxambu, MG. 2 Professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected] ou [email protected] 2 indígena, isto é, quer integrar os Pataxó a um domínio imposto pela ordem capitalista global, inclusive em termos culturais. É assim que lanço mão da noção de fluxo colonial para lidar com relações assimétricas de fluxos culturais que acabam por caracterizar relações de sujeição de sociedades indígenas. Isto em consonância com idéias de Said, para quem imperialismo e colonialismo são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação (Said, 1995:40) - embora eu não esteja aqui tratando com colonialismo clássico, mas um neocolonialismo que, conforme Spivak (1999), se refere aos empreendimentos econômicos antes que territoriais. Parto assim do pressuposto da existência de culturas (como a indígena) colocadas em posições subalternas e das quais, em contrapartida, podem ser construídas etnicidades. É nesse contexto que se deve pensar a emergência de discursos sobre a diferença cultural como estratégia de sobrevivência em termos de uma postura pós-colonial que força, segundo Bhabha (2001), um reconhecimento das fronteiras culturais e políticas mais complexas que existem no vértice de esferas políticas freqüentemente opostas. Em termos metodológicos, acredito apropriado partir aqui da noção de situação histórica elaborada por Oliveira e por meio da qual esses momentos serão tratados (na medida do possível no breve espaço de que disponho) como uma construção do autor interessado nos “esquemas de distribuição de poder entre os diversos atores sociais” (Oliveira, 1988:57). Além disso, será válido também operar com a idéia de que os processos de mudança social ocorridos nestas situações históricas (de territorializações) não sejam vistos como autocontidos, mas, seguindo formulação do Sjöberg (1993), como resultado de “interação multiplex” onde toda uma multivocalidade de estratégias culturais e de poder serão evocadas nos processos de construção social das arenas Pataxó, ou seja, dos campos sociais (Gluckman, 1987) onde os Pataxó procuram se estabelecer com legitimidade.

O Aldeamento

O ilhéu da Coroa Vermelha (município de Santa Cruz Cabrália — litoral do Extremo Sul da Bahia) é palco do Descobrimento do Brasil, pois foi onde Pedro Álvares 3

Cabral desembarcou em 22 de abril de 1500 e onde também foi celebrada a Primeira Missa em solo brasileiro quatro dias depois que a frota portuguesa ancorou na atual Baía Santa Cruz Cabrália. Na Coroa Vermelha, o descobridor foi recebido por índios Tupiniquim, que habitavam aquela porção litoral em decorrência da grande expansão dos Tupi — oriundos do Sul e do Oeste — na costa brasileira. Na verdade, o continuum Tupi da Costa estava interrompido no sul da Bahia e norte do Espírito Santo pelos tapuias3 genericamente conhecidos como Aimorés (na verdade os Botocudos) e com quem guerreavam. Este momento foi extremamente negativo para as populações indígenas que, desde as primeiras tentativas de escravidão, foram desterritorializadas4, travaram sérios conflitos entre si e com os colonizadores que, ao longo dos séculos, se estabeleceram em fazendas e outras unidades produtivas, além de também congregar os indígenas em aldeamentos capuchinhos ou jesuítas. Apesar de certo contato com os colonizadores, continuaram os ataques às vilas e às fazendas, considerando-se a existência de índios selvagens na região até meados do século XIX. Sabe-se, pois, que nos três séculos seguindo ao Descobrimento não apenas os Botocudos, mas índios das famílias Pataxó, Maxacali e Camacã, que andavam em pequenos bandos nas matas próximas à faixa costeira, atacavam os donatários da Capitania de Porto Seguro (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1998). Em relato de viagem realizada entre 1815 e 1817, Wied-Neuwied (1989) divulga que os Pataxó guerreavam com os Botocudos na região hoje referente aos atuais municípios de Santa Cruz Cabrália e de Porto Seguro. E ainda, segundo o mesmo cronista, os Pataxó apareciam recorrentemente em todo o litoral do Extremo Sul da Bahia para trocar seus produtos da mata, para onde voltavam em seguida. A essa época, se encontravam ainda nessa porção do litoral, “pequenas povoações de Tupiniquins, de há muito aldeados junto a estabelecimentos coloniais — Prado, Caravelas, Santa Cruz etc — e na antiga missão jesuítica de Trancoso” (Sampaio, 1996). Mas foi com o objetivo de acabar com os ataques a fazendas de Prado e Porto Seguro e civilizar os índios que, em 1861, o Governador da Província da Bahia

3 Termo genérico para populações de índios não-Tupi que dominavam originalmente o litoral e de onde foram expulsas na conquista Tupi (cf. Fausto, 1998). 4 Digo desterritorializadas porque antes da colonização do europeu houve a expansão Tupi pelo litoral, promovendo certamente diásporas acompanhadas de “territorializações” (Oliveira, 1999a). 4 manda fundar a atual aldeia de Barra Velha (limite meridional do município de Porto Seguro) congregando ali nativos das etnias Pataxó, Maxacali, Botocudo, Tupiniquim e Camacã. Mas reunidos aí, não foram pelas autoridades reconhecidos em suas especificidades étnicas (não eram mais Pataxó, Maxacali etc), mas apenas índios fadados ao esquecimento (o que se percebe, inclusive, pela ausência de documentação a respeito) e em relativo isolamento. É assim que em estudo de 1898 (Aragão, 1899) requerido pelo Governador do Estado da Bahia para a comemoração do IV Centenário do Descobrimento — e no qual objetivava-se averiguar, com base nos dados de campo então coletados, os fatos conhecidos sobre a chegada dos portugueses no Brasil —, concluiu-se que não existiam na região “vestígios materiais dos índios encontrados por Cabral nem mesmo descendentes diretos que tenham deles conservado a pureza da raça primitiva” (Aragão, 1899). Assim, esta foi uma situação histórica na qual os índios do litoral do Extremo Sul da Bahia e matas adjacentes tiveram suas terras ocupadas na frente de expansão da conquista da terra com uma lógica nitidamente de expansão da produção agrícola até a queda de investimentos da Coroa por causa inclusive dos ataques indígenas. Difícil estabelecer as lógicas indígenas em suas uniões, resistências etc na medida em que não há registros orais ou escritos disso – a não ser que houve uma territorialização forçada, isto é, que envolveu um processo de reorganização social conjunto para as populações autóctones da região numa aldeia.

O Parque

Se depois de aldeados, os índios mantiveram contato esporádico com pescadores, comerciantes com quem trocavam mercadorias ou deixavam sua produção em consignação e fazendeiros para quem alguns trabalhavam sazonalmente, caíram por outro lado em total esquecimento por parte das autoridades, sendo silenciados pela (na) história. Mas registros orais e escritos nos permitem construir o quadro de um segundo processo de desterritorialização e reterritorialização (ou diáspora e territorialização). Depois de aldeados em 1861, os índios de Barra Velha aparecem citados no Diário Oficial de 1925 como “Tupinambás Patachós” e quando o almirante Gago Coutinho 5 aterrissou na aldeia em 1939 fez referência aos “caboclos inteiramente abandonados... doentes e analfabetos” como “descendentes dos Tupiniquins”. Na década de 1940, mais precisamente na época da Guerra, os índios passaram por bons momentos empregados em fazendas extraindo a borracha do Mucugê o que deu até para reformar o telhado da igreja – época em que tiveram também contato com soldados que patrulhavam a costa. Mas o que importa mesmo foi que nessa época uma equipe chefiada por homem chamado de Dr. Barros apareceu para demarcar as terras da região explicando que ali seria criado um parque florestal e que os índios deveriam ir procurando outras colocações, pois todos seriam retirados pelo Governo da área. Já nessa época e devido a esta informação, algumas famílias deslocam-se para outro lugar fundando a aldeia de Águas Belas. Foi então que o líder Honório seguiu para o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em busca de reconhecimento do território indígena e afirmando que suas terras estavam sendo invadidas. Mas Honório foi ludibriado por dois homens (aparentemente do Partido Comunista) que, se identificando como Tenente e Engenheiro, afirmaram que resolveriam seus problemas e apareceram em Barra Velha em 1951 e lideraram os índios em um saque a uma mercearia de Prado e a um roubo de uma vaca em Caraíva (distrito de Porto Seguro vizinho a Barra Velha), fazendo com que as polícias militares de Prado e de Porto Seguro cruzassem, numa madrugada, fogo na aldeia, fazendo com que os índios se dispersassem pelas matas e fazendas da região (o que promoveu, inclusive, o surgimento da aldeia de Mata Medonha). Os poucos que voltaram só encontraram as cinzas da aldeia que foi totalmente incendiada. Coube a uma família o trabalho de buscar reunir novamente os índios no lugar. Mas alguns anos depois, quando os índios já começavam a sentir certa segurança na aldeia, aparece funcionário (Miravaldo Siguara) do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) indenizando os moradores da área para que desocupassem-na por causa da criação do Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP) em 1961. Os índios mais uma vez tiveram que se dispersar às pressas pelos matos e de novo a mesma família foi responsável pelo retorno à área. Apesar de terem sido proibidos pelo IBDF de caçar, coletar e estabelecer roças, os índios ficaram na aldeia, passando sérias necessidades e pegando piaçava e plantando um mínimo de noite para tentar enganar os guardas que, quando os flagravam, atiravam com suas armas sem piedade. Foi um funcionário do SPI (Francisco 6

Sampaio) que, negociando com o IBDF, conseguiu uma pequena quadra para que os índios conseguissem plantar algo coletivamente enquanto negociações sobre a terra indígena se arrastavam até a demarcação na década de 80. A idéia do Parque é, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA), de um “parque educativo, recreativo e para visitação, não para exploração5”. Trata-se de uma reserva ambiental visitada quase que unicamente de dezembro a março e um pouco em junho e julho, ou seja, no período de férias, por muitos turistas (raros os estrangeiros) pelo seu referencial histórico e pela própria visualização do Monte Pascoal, lugar que marca, no imaginário nacional, o Descobrimento do Brasil6. Esse é um fluxo colonial que, ao contrário do anterior, não pretende se acionar pelo desenvolvimento econômico da floresta ou de unidades de produção individuais, mas pela imposição de uma área de não utilização econômica, mas pensada como símbolo de nacionalidade. É então um fluxo que descarta a população nativa, impondo a preponderância da nação com preservação ambiental daquele espaço semântico do Descobrimento. Mas Parques Nacionais, segundo MacCannell (1992a), surgem também no compasso da destruição da natureza, tornando a natureza museumizada; é uma lembrança do que a natureza seria se ainda existisse, é uma celebração da natureza que acaba por afirmar o poder da civilização industrial que ao restringir natureza autêntica ou histórica aos parques se dá ao direito de destruir tudo que não está protegido pelo Decreto do Parque. Cria-se a ideologia da natureza re-creacional, que é contrapartida do avanço do desenvolvimento econômico na região.

5 Depois de reunião do Conselho de Caciques Pataxó realizada entre os dias 16 e 18 de agosto de 1999, os Pataxó ocuparam no dia 19 do mesmo mês o PNMP que, segundo tais lideranças, está dentro dos limites de sua terra. O discurso apresentado em carta às autoridades brasileiras foi o de uma “retomada” do seu território que a partir de então deveria passar a ser visto como Parque Indígena. Com isto, as aldeias que rodeiam o Parque (Boca da Mata, Meio da Mata, Barra Velha, Águas Belas e Corumbauzinho) seriam integradas numa nova terra indígena, que passaria por um reestudo. Os Pataxó dizem ainda que não são “destruidores da floresta” e que preservariam e recuperariam o Parque da situação que o governo, através do IBDF e depois IBAMA, deixou suas terras. Em agosto de 2002 está se comemorando os três anos de retomada do Parque. 6 Das entrevistas com os visitantes do Parque, destaco a “importância histórica” como o principal motivo (quase exclusivo) da visitação — embora houve quem dissesse que estava visitando o Parque “sem nenhum motivo especial”. Quanto ao que pensam dos índios vendendo artesanato nesse lugar de importância histórica, poucos quiseram falar alguma coisa, limitando-se geralmente a dizer que não podem emitir opinião sobre o assunto. 7

Este momento se mostra importante e positivo na medida em que os índios, apesar de todas as dificuldades, continuam querendo ser índios ao invés de se integrar totalmente ao desenvolvimento regional. É a partir dessa escolha de permanecer índio e na luta para conseguir isso no âmbito desse fluxo colonial que surge a necessidade de criar um regime de índio (Grünewald, 2001) para representação da indianidade (Oliveira, 1988) nas amplas arenas políticas que se estabelecem.

O Turismo

Com a afirmação indígena, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) então aparece no lugar do SPI no final dos anos 60, impondo uma indianidade – como o registro de nomes indígenas - e inaugurando o Posto Indígena em Barra Velha. Mas a condição de vida era extremamente precária. A construção da rodovia BR 101 vinha cortando a floresta e, no seu rastro, serrarias e depois fazendas de gado se estabeleciam. Mas este desenvolvimento não se liga diretamente aos Pataxó, que continuavam isolados em Barra Velha, em alguns outros núcleos formados pelas duas dispersões mencionadas, além das várias famílias (conjuntos de famílias) espalhadas entre Monte Pascoal, Caraíva e Corumbau, ou de outras morando ainda em matas mais distantes. Eram pequenos agricultores que ainda arriscavam uma caçada de vez em quando no interior da Mara ou pesca no mar e mangue no litoral. Buscavam manter os elos econômicos caracterizados por trocas entre as famílias de parentes que moravam no interior e litoral que se perpetuavam há gerações, embora a situação econômica estivesse péssima como resultado da ação do IBDF. Isso fez com que o segundo chefe de posto da FUNAI, Leonardo Machado, sugerisse a confecção de artesanato dado o fluxo turístico que se anunciava, inclusive com a prevista inauguração do marco do Descobrimento do Brasil em Coroa Vermelha. Mostrou colares Xerente (onde havia trabalhado) e orientou os índios na produção e comercialização da peças. A idéia do artesanato indígena para venda a turistas vinha tentar suavizar aquela situação de penúria como uma alternativa econômica. É nessa época que, paralelamente ao aprendizado do artesanato em Barra Velha, alguns índios se transferem para Coroa Vermelha, iniciando ali uma nova aldeia 8

Pataxó bem onde se inauguraria um ano e meio depois o marco do Descobrimento. Esta nova aldeia, voltada especificamente para a comercialização do artesanato ao turista, se desenvolve rapidamente e assume características urbanas. No final dos 70, não só Coroa Vermelha, mas também Barra Velha já não tinham o artesanato como alternativa econômica, mas como sua principal fonte de subsistência – o que se expandiu nos anos 80 à aldeia de Boca da Mata e à criação de uma outra exclusivamente artesanal (Trevo do Parque) à beira da BR 101 na embocadura com a BR 498, que leva ao Monte Pascoal. O turismo chega como uma frente que remodela a vida indígena em boa parte da região, impondo novos ritmos, inserções sociais etc. Partindo das noções de fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira e de frentes de contato de Darcy Ribeiro, Paul Aspelin (1977) introduziu na antropologia do turismo a idéia de frente turística para se referir ao turismo como uma forma de contato cultural percebido no âmbito geral da economia política e da ética de tomada de decisão e levando em consideração a presença da indústria do turismo. É nesse âmbito que é percebida a situação de contato cultural assimétrico produzida na interação social entre nativos e uma sociedade desconhecida que se aproxima a fim de explorar os recursos turistificáveis. Tal frente atinge os Pataxó, que se inserem nela diretamente ou indiretamente com objetos de um colonialismo interno tal como pensado por Graburn (1976) através da noção de Quarto Mundo7, que é um “nome coletivo para todos povos aborígines ou nativos cujas terras ficam dentro de fronteiras nacionais e administrações tecnoburocráticas dos países do Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Como tais, são populações sem países próprios, que estão geralmente em minoria e sem o poder de dirigir o curso de suas vidas coletivas” (Graburn, 1976:1). E o artesanato Pataxó para surge como objetos inventados para consumo externo, fazendo com que os índios se tornassem dependentes (não autônomos) do branco consumidor das peças que, como artes em mudança bem expressam, segundo Graburn, etnicidades emergentes, identidades em mudança e estímulos e ações repressivas comerciais e coloniais. Por fim, essas artes em contextos de mudança sociocultural têm importante função ao manter a identidade dos

7Este conceito refere-se a não-nações (non-nations), ou seja, populações nativas sujeitas a colonialismo interno, que logicamente formam a categoria político-estrutural de Quarto Mundo, embora possam emergir como nações independentes. 9 membros do grupo independentemente se, no processo de renovação das tradições, ocorre empréstimo de traços culturais ou mesmo a criação de novos. Esse é bem o contexto do surgimento do turismo étnico entre população que só conseguiu preservar alteridade “através de isolamento geográfico a que o antropólogo mexicano Gonzalo Aguirre Beltrán (1979) tem chamado ‘regiões de refúgio’... Povos do Quarto Mundo ocupam os últimos restos de um planeta que o sistema capitalista mundial ainda não tem encontrado exploração que valha a pena. Esse último refúgio da modernidade está agora sendo invadido pelo turismo étnico” (Graburn,1976:10). Assim, “turismo étnico representa a última onda da expansão do capitalismo explorador para a mais remota periferia do sistema mundial... Povos do Quarto Mundo que foram primeiro repelidos para regiões de refúgio - as ‘reservas nativas’ dos colonizados - estão agora sendo ‘redescobertos’ como um recurso turístico” (idem). Para MacCannell (1992b), a difusão global da “Cultura Branca”, colonização interna e as instituições do moderno turismo de massa estão produzindo novas e mais formas étnicas altamente determinísticas do que aquelas produzidas durante a primeira fase colonial. O foco está num tipo de etnicidade-para-turismo no qual culturas exóticas figuram como atrações chave com esforços dos nativos para satisfazer a demanda turística, para “go-native-for-tourists”. Mas os comportamentos dos turistas com relação à etnicidade difere dos anteriores (de militares, religiosos etc) na medida em que o turismo promove a preservação e recriação dos atributos étnicos. Mas não apenas uma identidade pode estar em construção numa ampla arena turística. Ao tratar o conceito de “creole culture” (cultura creola), como “uma combinação de diversidade, interconexão e inovação, no contexto dos relacionamentos globais centro- periferia”, Hannerz (1996:67) percebe um continuum entre esses dois pólos com uma variedade de mistura entre eles, ou mesmo vários continuuns coexistentes onde emblematizações de distinções através de distribuições culturais descontínuas podem aparecer em forma de etnicidades. Esse é o caso, para a região do litoral do Extremo Sul da Bahia, daquilo que chamo de baianidade — uma construção que emerge, por entre uma variedade de correntes que fluem simultaneamente na mesma região, se distinguindo a partir de emblemas que definirão seus participantes através de certos critérios de pertencimento a uma referência específica, de um baiano étnico. 10

Ora, o estado da Bahia, pelo menos sua porção litoral, tem há muito apa- recido na vanguarda de movimentos culturais que promovem ou reforçam uma identidade baiana, uma baianidade, onde as características culturais do baiano são incrementadas como tradicionais e positivas. Essa baianidade se estende desde a questão racial da morenidade, e segue pela oferta de comidas e ritmos musicais que são gerados periodica- mente como símbolos representativos da Bahia e que rapidamente se transformam em moda em todo o país e até no exterior. Na região em foco, não é o índio Pataxó que é promovido (ou vendido), mas o baiano. O marketing em Santa Cruz Cabrália recai principalmente sobre passeios de escuna a partir do Rio João de Tiba e um pouco sobre história, com visitação a três grandes construções do século XVII: Igreja de Nossa Senhora da Conceição (padroeira da cidade), Casa de Câmara e Cadeia e as Ruínas da Primeira Escola Jesuítica no Brasil. Descendo para o sul de Porto Seguro em direção a Arraial d’ Ajuda, Trancoso e Caraíva, o turismo se baseia na idéia de descanso em contato com a natureza — apesar da agitação noturna dos bares, principalmente em Ajuda . Em Porto Seguro mesmo, os fundamentos do turismo são o moreno (com sua baianidade), a história (diversas atrações), “mulher” e sol. Portanto, o único marketing cultural patrocinado por agentes externos na região é o da baianidade — como se pode perceber inclusive a um simples olhar nos souvenirs (camisetas em especial) da região ou se atentar para a ideologia passada pela mídia que não se interessa em promover aspectos da cultura indígena. Nos passos de MacCannell, entendo essa baianidade como um fenômeno da Cultura Branca dominante e, portanto, precondição estrutural para a formação de grupos étnicos. Contra a Cultura Branca (o imperialismo ou o colonialismo) emerge a etnicidade Pataxó com a forma retórica de índios do descobrimento.

A Coroa Vermelha e a Reserva da Jaqueira

Do primeiro processo de aldeamento dos nativos em Barra Velha até o reaparecimento indígena em meados do século XX, os atuais Pataxó perderam muito de seus costumes tradicionais, incorporando - apesar do isolamento - vários outros típicos dos regionais. No início da década de 1970, quando um marketing do Descobrimento é 11 destacado na região, os Pataxó passam a ser chamados para fazerem representações de sua cultura (danças) em contextos escolares, inaugurações municipais e outros atos políticos (o que faziam em troca de uma feira). Isso os faz se voltar novamente para suas práticas culturais próprias, inclusive com a preocupação de rever a língua em quase total abandono. Além disso, o fato de a FUNAI ter imposto o uso dos nomes indígenas e o início da confecção comercial do artesanato para turistas fez com que os Pataxó iniciassem um processo de incremento de itens de cultura gerados em termos de tradição. Claro que o item mais rapidamente desenvolvido foi o artesanato pelo retorno financeiro imediato que proporcionava. Mas os turistas compradores das peças artesanais demandavam que os índios apresentassem uma língua própria, além de nomes indígenas e uma história ligada ao Descobrimento do Brasil – afinal, ocupavam o local do encontro inicial entre os nativos e o colonizador europeu. Por fim, suas danças e músicas passaram a ser também objeto de interesse dos turistas, bem como aspectos de sua vida cotidiana como alimentação, moradia, plantas medicinais etc. Mas em 1972, uma família de índios que moravam fora dos limites de Barra Velha muda-se para a Coroa Vermelha e instala-se exatamente no local do Descobrimento do Brasil, lugar este que, já no ano seguinte, receberia várias outras famílias oriundas de Barra Velha que foram tentar a vida ali vendendo ou trocando artesanato com os poucos hippies que acampavam nas praias. Mas em 1974 o marco do Descobrimento foi inaugurado com a instalação inclusive de grande cruz de madeira representando a Primeira Missa celebrada no Brasil. A partir daí o turismo começou a se desenvolver na região, no início de forma bastante tímida, mas, a partir do início dos anos 1980, de maneira avassaladora. Foi quando começaram a chegar os primeiros ônibus de turismo na Coroa Vermelha, que passou, então, a ser visitada por um número bastante significativo de turistas. Aí foi o grande boom, com o nome de Porto Seguro se tornando um grande chamariz para um turismo histórico (local do Descobrimento do Brasil e da Primeira Missa celebrada em solo brasileiro, além de diversas importantes instalações coloniais com sua arquitetura restaurada), recreativo (belas praias) e cultural (chamariz da cultura baiana, com sua culinária, danças, músicas ou ritmos). Em todos esses anos, Coroa Vermelha foi sempre um ponto comercial de visitação ao marco do Descobrimento e à cruz da Primeira Missa. Os índios sempre se 12 mantiveram no local e cresceram em muito sua população que ali se fixou como numa aldeia urbana e comercial vivendo as pessoas exclusivamente da produção e comercialização de artesanato para turistas. De fato, a Coroa Vermelha era uma aldeia urbana e comercial que se caracterizava por forte variação sazonal, tendo sua demografia fortemente alterada entre o inverno e verão. Além disso, com o crescimento da aldeia e frente às expectativas de demarcação da mesma por parte da FUNAI, muitos desses índios que a ocupavam apenas no verão resolveram se mudar definitivamente para lá a fim de viver exclusivamente do turismo. Mas essa população, ainda na época da forte sazonalidade, precisava de terra também para agricultura e de madeira própria para o artesanato. Assim, ocuparam uma faixa de floresta próxima à praia, que desmataram vendendo parte da madeira para madeireiras e parte utilizando para o artesanato (bem como as sementes de muitas árvores). Foram muito criticados inclusive pelos próprios índios por terem desmatado uma importante área de floresta conquistada. Esse lugar agora se destina à agricultura e se pretende também começar pecuária, além do cultivo de plantas medicinais. Ou seja, querem usar o vazio deixado pelo desmatamento para alternativas de sustentabilidade, complementando algumas necessidades da comunidade indígena. Mas não só essa mata era utilizada pelos Pataxó desde há muito tempo para retirada de piaçava, sementes etc. Toda floresta em volta também era alvo de perambulações indígenas. E, certa vez, vendo outra importante parcela de mata ameaçada por tratores da empresa proprietária, os Pataxó resolveram também ocupá-la, conseguindo permanecer ali e afirmando que aquela mata seria para preservação ambiental, renovação de seus recursos naturais e que não a desmatariam. Em abril de 1998, a Terra Indígena da Coroa Vermelha é demarcada em duas glebas: Praia (contendo área do Descobrimento, residências e comércio indígena) e Mata (contendo as duas florestas ocupadas e sendo uma destinada à agricultura e outra à preservação ambiental), sendo que a segunda parcela de mata ocupada em 1997 foi preparada para o desenvolvimento do que os Pataxó chamaram de “ecoturismo”. Criaram a Associação Pataxó de Ecoturismo (ASPECTUR) e fundaram a Reserva Ecológica da Jaqueira no ano de 1999, com o objetivo explicitado de “vivenciar e demonstrar a beleza da nossa cultura e preservar o meio ambiente”. Construíram então, em formato arredondado, 13 algumas casas pequenas e uma grande (Centro de Reuniões) e todas as sextas-feiras os Pataxó cultivam suas tradições neste local. Desde fins de 1999, a Reserva da Jaqueira já está aberta para visitação turística, de estudantes e pesquisadores com acompanhamento de guias Pataxó da ASPECTUR. As visitações são em dois períodos diários: manhã e tarde. Um ônibus de uma das três companhias de turismo que estão trabalhando com os Pataxó chega com os turistas e estaciona num local próprio em frente ao portal de acesso à Reserva. Os visitantes fazem uma breve caminhada numa trilha pela mata até chegarem ao centro turístico (cultural) da Reserva. De lá, são ainda orientados por outra breve trilha onde os Pataxó apresentam seus conhecimentos da flora e da fauna local. Visitam também o viveiro de mudas de plantas para replantio de árvores ameaçadas de extinção como Jacarandá e Pau-Brasil ou árvores que fornecem as sementes ou madeira para o artesanato, além de outras espécies fundamentais para a reprodução social de sua cultura tradicional. Depois o visitante pode ouvir uma palestra no Centro de Reuniões sobre sua história de lutas com o homem branco, suas lendas, seus hábitos e costumes e fazem perguntas que o índio palestrante responde com muita simpatia. Depois os visitantes são convidados a conversar com o pajé e saber sobre a medicina indígena. Seguem então para uma degustação da culinária tradicional (peixe e aipim assados na folha da patioba) e também da bebida tradicional (o Aluá ou Cauim). Depois o turista pode observar a confecção do artesanato (e também comprá-lo, se quiser) com utilização de matéria-prima obtida exclusivamente na Mata e, por fim, o visitante assiste a uma representação da cultura com músicas e danças cantadas na língua Pataxó (onde também são muitas vezes convidados a participar da roda da dança). Ao final desta visita de umas três horas de duração, o turista volta para o ônibus e vai embora levando geralmente um souvenir dos Pataxó. De fato, a Jaqueira é muito importante para eles na medida em que, ali, “os índios fazem a afirmação da cultura indígena e valorizam a floresta”. O objetivo principal do Projeto8 foi a “implantação de atividades de ecoturismo, turismo cultural e educação ambiental na Reserva da Jaqueira”. Tal Projeto “visa fornecer os meios necessários para a geração sustentável de renda e preservação permanente da Mata, parte em estado primário e o resto em excelente estado de conservação, restabelecendo o corredor ecológico com a

8 Ver www.rebarsa.com/pataxo 14

Estação Vera Cruz, área tombada pelo Patrimônio Mundial”. Embora já esteja em funcionamento, a Reserva da Jaqueira ainda espera apoio técnico e financiamento para consolidar a viabilização de outras medidas, cujo conjunto das ações “permitirá a sustentação do projeto e a realização de trabalhos educativos e sociais junto à comunidade, além da geração sustentável de renda para os membros da Associação” Pataxó de Ecoturismo. Por fim, o Projeto espera como resultados os seguintes pontos: “preservação e recuperação da Mata Atlântica na Jaqueira, no seu entorno e corredor com a Estação Vera Cruz e CEPLAC; geração e desenvolvimento de alternativas sustentáveis de emprego e para a população indígena Pataxó de Coroa Vermelha; fortalecimento institucional, gerencial e administrativo dos índios Pataxó com potencial multiplicador nas outras aldeias; afirmação e fortalecimento da identidade cultural e domínio territorial da comunidade indígena Pataxó de Coroa Vermelha; educação e conscientização ambiental das crianças e jovens indígenas e não indígenas da região, assim como dos turistas; criação de uma referência regional e nacional que sirva como exemplo e modelo de desenvolvimento sustentável para as demais comunidades indígenas”. A criação da Reserva Pataxó da Jaqueira remete ao desenvolvimento de parte da comunidade indígena da Coroa Vermelha de forma sustentável, recaindo sobre seus aspectos culturais e ecológicos. Há, portanto, que se examinar agora em como pensar essas idéias que aparecem no discurso da ASPECTUR enquanto fundamentais para justificar a atividade turística proposta. Se a noção de desenvolvimento costuma ser pensada em termos econômicos e, assim, muitas vezes o que se pondera quando se fala na instalação de um projeto turístico numa pequena comunidade é a relação de sujeição de uma cultura por outra, a natureza da mudança, segundo Nash (1996), depende do tipo de turismo e do contexto envolvidos. Se pelo aspecto cultural, muito se tem falado em aculturação de pequenas sociedades hospedeiras envolvidas em processos de desenvolvimentos turísticos, pode-se perceber que o inverso pode ser mais evidente em certos casos onde a cultura nativa é revitalizada a fim de exposição nas arenas turísticas locais e, além disso, onde o desenvolvimento de uma arena turística não implica em dominação econômica sobre os nativos, podendo partir, 15 inclusive, destes mesmos a gestão da atividade turística. Surge logo então a idéia de desenvolvimento sustentável. Esta noção9 aparece historicamente relacionada ao interesse deliberado com desenvolvimento social surgido em meados do século passado principalmente para as populações dos Terceiro e Quarto Mundos. Este desenvolvimento era pensado em termos econômicos e principalmente no sentido de uma gradual emancipação da dependência do Primeiro Mundo. No entanto, surge também a noção de “desenvolvimento alternativo” referindo-se às tendências de se colocar menos ênfase na produtividade econômica, se comparado com objetivos sociais e ambientais. Embora definido de várias maneiras e rótulos (cf. Nash, 1996:122), o termo “sustentabilidade” acabou por se impor como uma síntese para todas as tendências alternativas e o termo “desenvolvimento sustentável” começou a ser usado, segundo Sharachchandra Lélé (apud. Nash, 1996), nos anos 1980 “como um novo meio de expressar um interesse deliberado para a conservação da natureza10” (Nash, 1996:122). Segundo Figueiredo (1999), “o conceito de desenvolvimento sustentável não implica a idéia de não-desenvolvimento ou desenvolvimento zero; tampouco pressupõe apenas a necessidade de se obter o consumo excessivo. De fato, esse conceito pressupõe um desenvolvimento que se auto-sustente, através da preocupação com a capacidade de suporte da natureza, e ainda transferindo a noção de desenvolvimento econômico para uma visão mais geral que inclua a natureza, as sociedades, as culturas, enfim, um desenvolvimento sócio-econômico eqüitativo e holístico” (Figueiredo, 1999:36). De fato, parece que tem sido mais plausível optar pelo entendimento do desenvolvimento sustentável pela via da “consciência ambiental”. De acordo com o “relatório Brundtland (WECD 1987:43), ‘desenvolvimento sustentável é o

9 Segundo Ribeiro, “Não deixa de ser curioso que a maioria das definições de desenvolvimento sustentável aproxime-se claramente de visões harmônicas, não conflitivas dos processos econômicos, políticos e sociais envolvidos no drama desenvolvimentista. De fato, é mais nessa direção que a crítica, justificável, de muitos cientistas sociais se tem feito sentir com relação ao ambientalismo, em geral, e à idéia de desenvolvimento sustentável, em particular. Talvez as facetas mais imediatamente criticáveis se refiram a um campo clássico na análise do desenvolvimento e da expansão de sistemas econômicos: a distribuição desigual de poder político e econômico entre as classes, segmentos e populações que participam do drama desenvolvimentista” (Ribeiro, 2000:154). 10 Isso cria, segundo Nash, um conflito entre ambientalistas e desenvolvimentistas, uma vez que os segundos “pensam a sociedade e o meio ambiente mais como recursos para o desenvolvimento, não como coisas que precisam ser protegidas” (Nash, 1996:122). 16 desenvolvimento que vai ao encontro das necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de encontrar suas próprias necessidades’” (Nash, 1996:125). Há, de fato, uma conexão entre o conceito de sustentabilidade e preocupações ambientais. Desenvolvimento sustentável se refere primariamente a manter um meio ambiente que suporte a vida humana para algum nível de bem-estar no presente e para o futuro. Isso envolve, de certo, uma reavaliação dos objetivos econômicos e sociais, reorganização dos sistemas econômicos e estratégias de controle sobre a população. Uma das opções de desenvolvimento aparece então com o ecoturismo11. Chambers (2000) também lembra que “o ideal de sustentabilidade é a segurança de um recurso poder ser submetido ao uso humano sem ameaça à sua capacidade para se reabastecer. Ecoturismo não apenas encoraja a retenção e conservação de recursos naturais, mas também pode servir par educar ambos turistas e suas comunidades ‘hospedeiras’ como por exemplo para a complexa interação das pessoas e ambientes naturais” (Chambers, 2000:85). Esta interação inclusive pode ser vista com um dos tipos de ecoturismo e tem sua busca principal em comunidades indígenas uma vez pensadas como sociedades tradicionais que não precisam destruir a natureza para repor suas necessidades de vida12. Um desses tipos de ecoturismo seria então o que Valene Smith (apud Chambers, 2000) identificou como “turismo indígena” a partir de quatro características (os quatro Hs): habitat, herança, história e artesanato13. Essas quatro características são achadas no desenvolvimento da Jaqueira na medida em que os Pataxó fornecem uma bela demonstração de adaptação do homem ao habitat da Mata Atlântica, exibem diversidade cultural herdada de seus antepassados, apresentam palestras sobre sua inserção histórica a partir do seu ponto de vista em contraposição ao do colonizador, e, por fim, oferecem para o visitante a oportunidade de ver a confecção e comprar diversas peças artesanais comercializáveis, além das diversas de utilização cerimonial, doméstica etc. Chambers

11 E devo desde já deixar claro que, embora muitas vezes a procura turística recaia sobre natureza intocada e cultura primitiva, as alternativas de ecoturismo não excluem o fato de as populações alvo do turismo poderem lançar mão de modos de vida típicos das sociedades ocidentais. 12 Isso é relevante no caso que examino aqui também pelo lado em que aproxima as pessoas à natureza, ou seja, quando se cria um turismo para se observar pessoas que, considerados como que tendo ficado à margem da evolução da civilização, passam a ser interessantes como foco de observação pela sua cultura presumidamente mais simples e próxima da natureza. 13 Handicraft. 17 acrescenta um quinto H que é referente à cura14 e também encontrado na Jaqueira, pois, como se vê, o pajé está sempre ali para conversar com os turistas, indicando as plantas medicinais e os tratamentos apropriados. E se a idéia de ecoturismo surge exatamente “quando as preocupações com o turismo menos predatório são colocadas em discussão” (Figueiredo, 1999:55), o “turismo indígena” Pataxó surge também, através da noção de ecoturismo, configurando um sistema de idéias e ações para orientar o desenvolvimento de parcela da comunidade indígena. Na Jaqueira, a idéia do ecoturismo se liga à noção de desenvolvimento como desenvolvimento sustentável, ou seja, o “desenvolvimento que, ao contrário das concepções tradicionais, pressupõe uma forma de viver e agir, em que a finalidade da produção e do consumo é proporcionar o bem-estar da maioria da população, provocar um impacto menor no meio ambiente, através de novas formas de conhecimento sobre a relação homem/natureza” (ibid:39)15. De fato, o turismo na Jaqueira pode se caracterizar como ecológico, uma vez que este, “segundo Ceballos-Lascurain (1987 apud Boo, 1990), pode ser considerado a ‘execução de uma viagem a áreas naturais que estão relativamente sem distúrbios ou contaminação com o objetivo específico de estudar, admirar e desfrutar o panorama junto à faunas e à flora silvestres, assim como qualquer manifestação cultural (passada ou presente) que se encontre nessas áreas’. Assim, o turismo ecológico é caracterizado por uma série de atividades (estudar, admirar) realizadas em uma natureza preservada e tem como atrativos a paisagem, a floresta e a cultura” (ibid:55). Ainda segundo Figueiredo, “Boo (1992, p. 3) faz uma diferenciação importante no assunto que discutimos aqui: o turismo ecológico seria ‘viagem natural que favorece a conservação e reforça o desenvolvimento sustentável’ e surge da união da indústria da viagem com a conservação de espaços naturais, enquanto a simples viagem a

14 Healing. 15 Segundo Ribeiro, “poder-se-ia argumentar que propostas como as de etnodesenvolvimento (...) e, sobretudo, as de ecodesenvolvimento que se expressam nos trabalhos... possuíam, no início da discussão sobre sustentabilidade, um maior nível de elaboração. Apesar de evidentemente elas fazerem parte da genealogia que informa em maior ou menor grau a noção de desenvolvimento sustentável, foram ou subsumidas nesta última ou tendencialmente ignoradas no debate político em termos mais amplos. As relações entre ecologistas e indigenistas, apesar de crescentemente localizadas sob um mesmo guarda-chuva, também conformam um campo político diferenciado. A leitura, no senso comum, de que as populações indígenas detêm um conhecimento harmônico, não destrutivo da natureza, deu um gande peso à eleição do índio genérico como modelo” (Ribeiro, 2000:153-4). 18

áreas naturais caracterizaria o turismo tradicional. Notamos aí que, segundo tais conceitos, o turismo ecológico tem uma nítida idéia de espírito conservacionista que vai diferenciá-lo do turismo tradicional, que não possui esse espírito e, no caso do turismo de massa, até se opõe a ele. Além disso, o turismo ecológico irá contribuir para a construção de práticas de desenvolvimento sustentável em áreas naturais” (ibid.)16. Um dos principais argumentos para o desenvolvimento do turismo ecológico é a longa lista de benefícios que ele pode proporcionar. Eu destaco aqui dois pontos extraídos de Figueiredo: “criação de áreas de preservação, como parques e reservas, bem como a ampliação dos fundos para investimento e proteção dessas áreas” e “afirmação da identidade cultural dos residentes, pela preservação de suas tradições para o Ecoturismo” (ibid:58-59). Bom lembrar, por fim, que o Projeto da Jaqueira se promove com o rótulo do ecoturismo, o qual pode ser aplicado, como observa Chambers, a uma “ampla variedade de experiências, cada uma associada com diferentes estratégias e expectativas” (Chambers, 2000:85). Mas antes de examinar cuidadosamente este fenômeno, vale observar que, muitas vezes, pode haver conflitos entre as maneiras de se pensar o desenvolvimento do turismo em relação ao meio ambiente, ou seja, quando turistas, mediadores/empreendedores e nativos têm pontos de vista distintos sobre cada um desses conjuntos de atores sociais, sobre o meio ambiente e sobre o desenvolvimento local.

Como já foi examinado anteriormente, a aldeia da Coroa Vermelha surge por iniciativa exclusiva dos indígenas que lá se estabeleceram a fim de comercializar artesanato para turistas. Não havia qualquer planejamento para o desenvolvimento da área no início dos anos 1970: a Marinha era responsável pela orla e os terrenos comprados além da Área de Marinha eram destinados à futura especulação imobiliária, uma vez que a região se anunciava pelo seu potencial turístico. A Coroa Vermelha se urbanizou em fins dessa

16 Cabe lembrar Coelho (1998) que, apoiando sua análise na visão de que a natureza “natural” é mais um mito criado pela ideologia civilizatória, evoca o ecoturismo como veiculador da visão de natureza destituída de sociedade. Para ela, domina ainda uma visão a-histórica das relações entre natureza e sociedade que acaba por perpetuar formas antigas de representar a natura destituída de sociedade, ou seja, de complexidade. Assim o discurso do ecoturismo ganha força com valorização e defesa da biodiversidade e, só timidamente, da sociodiversidade: “e mbora não seja necessariamente antagônica, a expansão do ecoturismo pode não vir acompanhada de justiça social. A distribuição de renda desejada pode não acontecer, dando lugar à concentração ainda maior da riqueza. Essa atividade pode assim confirmar ou criar novas desigualdades sociais” (Coelho, 1998:72). 19 década, quando cresceu rapidamente com a construção de pousadas, casas de veraneio, comércio nas ruas e na orla (barracas de praia), e residências e lojas de artesanato dos indígenas e não-indígenas. Foi um desenvolvimento caracterizado pela busca incessante e a todo custo do lucro monetário, com total depredação ambiental e sem a menor preocupação com reservas de recursos, deixando a área, na década de 1990, totalmente entregue às especulações individuais de brancos e índios. Isso levou os Pataxó a necessitarem de uma área para agricultura (atividade com a qual guardam forte identidade) e ocuparam uma Mata, cujo desmatamento, como visto, foi muito criticado. Em abril de 1996, o Presidente da República inaugura o Museu Aberto do Descobrimento (MADE), projeto desenvolvido para a região pela Fundação Quadrilátero. Esse projeto seria executado pelo Ministério da Cultura (decreto 1775/96), tombaria uma área de 1.200 km2 do litoral do Extremo Sul da Bahia (as terras indígenas estariam aí incluídas em sua grande maioria) e se proporia atender, de modo falacioso, pelo que fica claro ao se ler artigo de Reesink (1996), “anseios de preservação da natureza, de rememorar a origem do país e dos diferentes povos que participaram da sua história, além de garantir uma intervenção e ordenação da ocupação de todo o espaço habitado utilizado pelas populações moradoras na região. De quebra, promoveria o turismo cultural e ecológico...” (Reesink, 1996:22). Este projeto não ouviu, entre outras partes, a comunidade indígena e tentou se estabelecer simplesmente da forma como seus idealizadores imaginaram, objetivo que não foi alcançado inclusive por sua arrogância ao não querer dialogar com os segmentos locais atingidos incluindo aí as lideranças indígenas indignadas com os planos do projeto para suas aldeias. Mas com este projeto e a chegada dos 500 Anos de Brasil, grandes expectativas foram criadas para a re-urbanização de Coroa Vermelha, que receberia inclusive representantes dos mais diversos povos (de recônditos amazônicos até a Europa) e que se pronunciariam nas comemorações/manifestações dos 500 Anos. Além da imposição dos monumentos, muito se discutiu sobre água encanada, quantidade de casas residenciais, pontos de venda de artesanato e barracas de praia para os índios, energia, saneamento etc, até que houve a desintrusão dos brancos da área, a reurbanização de todo complexo residencial e turístico. No entanto, nenhum plano de gestão ou desenvolvimento para a Coroa Vermelha parece ter se efetuado, além dos vários problemas de planejamento das 20 obras arquitetônicas e de engenharia. Enfim, os governos federal e estadual enfeitaram o lugar para as comemorações dos 500 anos de Brasil, deixando a comunidade totalmente desamparada de projetos e tendo que recorrer novamente ao arrendamento de terrenos ou pontos de venda comerciais para os brancos, que assim voltam a ocupar a área indígena. Perceba que Coroa Vermelha foi sempre uma aldeia urbana e comercial dedicada inteiramente ao turismo. As mudanças com as obras do MADE soam tão desastrosas para os indígenas que agora se torna emergencial o desenvolvimento de projetos sustentáveis e integrados como os da pesca, da agricultura, das plantas medicinais, alem dos de cultura, artesanato (selo Pataxó para exclusividade de comercialização das peças) e educação. Entretanto, nenhum desses projetos tem contado com o apoio, ou mesmo despertado o interesse, de agências financiadoras. No pensamento dos empresários da região, principalmente nos ramos de hotelaria e turismo, eles deviam tomar as rédeas da Coroa Vermelha, tirar os índios dali e colocar suas moradias bem longe na floresta. Para os empresários, os índios deviam aparecer ali somente para passar o dia vendendo o artesanato sob administração nos moldes capitalista moderno. A FUNAI não se posiciona e nem apresenta o menor interesse no desenvolvimento sustentável dos índios. Mas se a Coroa Vermelha de uma maneira geral encontra-se totalmente abandonada em termos de assistência ou projetos de gestão e desenvolvimento da comunidade indígena, a Jaqueira tem dado um exemplo de sustentabilidade e etnodesenvolvimento (revigoração do seu patrimônio cultural e conseqüente fortalecimento da sua identidade étnica) através do seu projeto de ecoturismo. Se a questão da sustentabilidade é mais ampla do que o espaço reduzido da Jaqueira, envolvendo toda Coroa Vermelha, a Reserva é, em larga medida, o centro de difusão da cultura (promoção de um etnodesenvolvimento) e das noções ambientalistas e de sustentabilidade. De fato, somente com a ocupação da segunda Mata e sua transformação na Reserva Pataxó da Jaqueira, foi que as noções de preservação ambiental e sustentabilidade começaram a fluir mais intensamente na comunidade indígena. Mas além dessas, a noção de “resgate” da “cultura tradicional” também ganhou força. O trabalho de “resgate da cultura” já se desenvolvia na Coroa Vermelha bem antes da ocupação desta segunda Mata e fazia parte de um movimento cultural amplo (incluindo outras aldeias) que buscava uma renovação e fortalecimento da identidade étnica Pataxó. Embora um grupo de moças 21

(justamente as que vão fundar posteriormente a Reserva da Jaqueira) se empenhasse sistematicamente no trabalho de produção cultural Pataxó na Coroa Vermelha, os ensaios das danças eram esporádicos e os índios mostravam-se pouco interessados pela atualização cultural. Não havia planejamento de um turismo cultural, ou turismo indígena ou turismo étnico17 para a Coroa Vermelha, que sobrevivia, além das barracas de praia, de um turismo histórico efetuado pelas empresas de turismo charter ou de massa (cf. Smith, 1989) visando visitação ao marco do Descobrimento - e os índios ali apareciam, pitorescamente, vendendo artesanato (souvenir) juntamente com não-índios. Diante desse quadro, o Projeto da Jaqueira tomou forma começou a funcionar em 1999 através de programa de ecoturismo levado adiante por aquele mesmo grupo de moças que se empenhava em passar as tradições para os demais índios através do “resgate da cultura” indígena. Com apoio de um casal (Jean, da ONG Flora Brasil, e Milene, então técnica da Secretaria de Meio Ambiente de Porto Seguro), conseguem delimitar metas, organizar o projeto e fazer os encaminhamentos necessários para conseguir as verbas principais do PROECOTUR – Programa Turismo Verde do Ministério do Meio Ambiente / Governo Federal - e tocar o início de um turismo em pequeníssima escala, mas exemplar no que tange às perspectivas ambientalistas, de sustentabilidade e de fortalecimento da identidade étnica pela revigoração cultural. Este projeto de turismo da Jaqueira ainda não está completo, pois pretende ser integrado à Coroa Vermelha (Praia), além de ampliar sua área local inclusive para hospedagem de turistas. Mas tal expansão da Reserva parece requerer a ampliação dos limites territoriais da Mata, uma vez que há lugares na Jaqueira de acesso proibido aos não-índios, onde os Pataxó fazem suas orações e demais atos íntimos e sagrados. A expansão territorial da Jaqueira deve ser vista com atenção uma vez principalmente que o seu entorno, ou seja, as matas vizinhas, foram totalmente depredadas pelos seus respectivos proprietários, que tiraram a madeira e agora estão vendendo a areia do solo. É lamentável circundar a Reserva e ver que não existe o cinturão ambiental previsto em lei. Já não bastasse os empresários terem sempre jogado os dejetos de suas pousadas no Rio Jardim na Coroa Vermelha, destroem agora rios e matas ameaçando inclusive o interesse do turista em se aproximar da Jaqueira.

17 Para precisão desses termos, ver Swain (1989), Wood (1984) e van den Berghe e Keyes (1984). 22

A Jaqueira parece funcional porque há uma demanda pós-moderna pela presença do exótico, do primitivo a ser transformado em atração turística. MacCannell (1992c) chamou de “ex-primitivos” justamente esses povos ou pessoas que, ao invés de irem vender sua mão-de-obra em fábricas ou fazendas, resolveram se tornar, pelo exotismo, atrativos no mercado turístico, pondo sua própria cultura à venda como mercadoria turística. É o caso do turismo étnico quando o nativo se torna um ator para representar sua própria cultura e onde cabe bem o rótulo de índio turístico. Mas essa cultura representada é de criação recente (final dos anos 1990) e direcionada, em certa medida, para fornecer o contraste esperado pelos grupos de turistas em visitação na região. Não se trata, portanto, de tradições que vem sendo passadas pelas gerações, mas atualizações históricas de cultura18 que obedecem a incentivos subjetivos internos (fortalecimento da identidade) e pragmáticos externos (representação para turistas). A Jaqueira é o lugar da Terra Indígena da Coroa Vermelha onde essa nova configuração cultural está sendo exibida para o turista através de um projeto de desenvolvimento sustentável. Alguns autores já questionaram a autenticidade de certas experiências turísticas (cf. Boorstin, 1964; MacCannell, 1973). Mais recentemente, ao lembrar que a partir de 1980 o capitalismo desorganizado se instala deixando para trás a era do turismo organizado, Barretto (1999) acaba por situar o turista dos dias atuais como um “pós- turista”, isto é, “um consumidor cool, que sabe que muitas coisas que vê não são autênticas, que pertencem à cultura do simulacro, mas não se importa, desde que estejam revestidas de alguma aura que lhe agrade” (Barretto, 1999:127). Embora me pareça apropriada esta afirmação para certos contextos, acredito não se aplicar ao caso em exame face à realidade e à vitalidade das formas culturais Pataxó apresentadas ao (e representadas para o) turista. Como já ressaltou Duggan (1997), “uma cultura autêntica não é a que permaneceu imutável, o que parece impossível sob qualquer condição, mas a que retém a habilidade de determinar a aplicabilidade de suas adaptações” (Duggan 1997: 31). Ou seja, se há um processo de atualização das tradições através de enxertos de cultura que a torna adaptada aos anseios turísticos, isso não é um simulacro, pois não pretende distorcer uma realidade. O olhar tanto dos turistas quanto dos pesquisadores deve atentar para o contexto da cultura - e uma cultura turística não é um simulacro, mas uma cultura produzida diante

18 Para uma discussão exaustiva desses processos, ver Grünewald (2001). 23 do contexto específico do turismo. É uma cultura que não obedece mais a lógicas ancestrais e relativas aos mitos de origem ou coisa parecida, mas uma cultura criada numa dinâmica pós-moderna, globalizada, informada por fluxos translocais de cultura ou co- tradições que se encontram organizando socialmente as culturas em contextos específicos (cf. Barth, 1984 e Hannerz, 1992). Assim, o que quero dizer é que a Reserva da Jaqueira não produz um turismo do simulacro ao apresentar para os turistas sua história, cultura (tradições) e relação com meio ambiente. Trata-se de uma dinâmica turística legítima e real. Ninguém está vendendo gato por lebre e os Pataxó confirmam o processo de “resgate da cultura”. O que não se pode é opor operacionalmente as idéias de resgate a de invenção ou as de cultura própria a de elementos externos. O processo de atualização cultural para exibição em arenas turísticas envolve criação (até coreográfica) e mistura de elementos próprios com traços culturais de outros povos e até dos brancos. Não existe cultura que não seja misturada (cf. Amselle, 1998) e há sempre momentos quando as misturas ou as invenções ocorrem. O desenvolvimento turístico sustentável pode muito bem ser esse momento de criatividade, quando o patrimônio cultural indígena é renovado, revigorado e sua identidade fortalecida de forma a configurar um nítido quadro de etnodesenvolvimento face ao fenômeno específico do turismo. Assim, vejo o Projeto da Jaqueira de forma muito positiva em termos de sustentabilidade ou de etnodesenvolvimento, onde o turista pode desfrutar de um belo passeio e conhecer o autêntico Pataxó moderno e turístico, o Pataxó real dos dias atuais. Seria um erro o turista querer encontrar o Pataxó da época de Cabral, pois isso não existe mais na medida em que os índios também estão inseridos na história. Tomar por base os livros dos cronistas e copiar a indumentária, formato das casas etc dos nativos de 500 anos atrás é que seria um simulacro total - e se esse índio existisse, ele não se prestaria ao turismo pelo seu próprio isolamento. A Reserva Pataxó da Jaqueira não é uma Ilha da Fantasia, mas um espaço social no qual traços culturais indígenas estão colocados à disposição do mercado turístico como meio alternativo de promover seu desenvolvimento sustentável. Considerações Finais: Turismo e Etnodesenvolvimento

24

Esse desenvolvimento econômico estabelecido em resposta ao fluxo imposto pela indústria do turismo apresenta, portanto, aspectos positivos que recaem sobre possibilidades de etnodesenvolvimento Pataxó não só em Coroa Vermelha, como também em Barra Velha e Monte Pascoal - lugares onde os índios foram expulsos pelo Parque Nacional do Monte Pascoal e que têm conseguido retomar. Ou seja, o turismo ainda é uma forte frente de expansão colonial na região e me parece que o desenvolvimento sustentável em algumas das aldeias Pataxó deve atentar para tirar o melhor proveito dessa característica. Em Coroa Vermelha há a necessidade de projetos diversificados (pesca, agricultura etc) que devem se integrar com o turismo de massa já existente e que precisa de ajustes organizacionais. Para Barra Velha visualizo uma possibilidade de desenvolvimento turístico para além da rápida visitação não planejada a aldeia (para conhecer e compra de artesanato) como ainda é feita atualmente pelos “andarilhos”. Há um potencial que ainda pode em muito ser explorado. Caberia ver se a aldeia teria interesse nesse tipo de desenvolvimento que pode envolver hospedagem, trilhas, danças, artesanato, centro cultural etc. Por fim, Monte Pascoal deve também ficar sob as rédeas indígenas e voltar seu desenvolvimento para o turismo em contraposição à preservação pura e simples de um patrimônio brasileiro. O índio, como dono da mata, representa melhor esse patrimônio nacional19. Pode, com co-participação empresarial ou governamental, gerar hotel, trilhas (inclusive ligando à Barra Velha, Boca da Mata etc), ou seja, integrar o Parque ao turismo indígena-étnico, ou ecológico de uma maneira geral20. Os Pataxó não devem se isolar da civilização, mas ter condições de se inserir como agentes ativos do seu desenvolvimento (pelo menos) no emaranhado dos fluxos culturais globais e respondendo aos anseios pós-modernos de busca pela primitividade21.

19 E faz parte inclusive de um imaginário que associa Descobrimento do Brasil, Monte Pascoal e índios, tal como se percebe por depoimentos de turistas como por expressões artísticas como o quadro de Gustavo Cruz exposto em galeria de Ipanema (RJ) por ocasião dos 500 anos. 20 Para tais desenvolvimentos, seria interessante levar em consideração as suposições de Nash (1989) quanto ao turismo como forma de imperialismo e pelo seu aspecto transacional, isto é, o que leva necessairamente em conta os mediadores (brokers) culturais de vários tipos e representando vários interesses em um negócio turístico. 21 Se, para Thomas (1994), cultura colonial inclui também as representações construídas pelos atores coloniais diretos e indiretos, atualmente o que ele chama de “primitivismo” é mais que um interesse no primitivo, pois atribui status exemplar a modos de vida simples ou arcaicos. Primitivismo tem a função narrativa de autenticar o retrato (e as virtudes) de uma sociedade oposta a nossa. 25

Isso é etnodesenvolvimento para os Pataxó e legítimo na medida em que sempre fez parte de sua dinâmica cultural a renovação contextual dos seus itens tradicionais. Mas esta seria uma outra territorialização caracterizada pelo uso do nicho ecológico em resposta a demandas turísticas e aclamaria por uma gestão independente do indigenismo oficial do Estado22. Além disso, tal proposta reclamaria estudos que levassem em consideração algumas questões levantadas por Oliveira (1999b) quanto a territórios ocupados por sociedades indígenas (como a Pataxó) que nem sempre se circunscrevem a um único tipo de meio ambiente e podendo, a meu ver, desenvolver projetos distintos para seus diversos nichos. Este é mais um motivo para que a questão fundiária das terras indígenas seja refletida de maneira mais complexa do que por uma lógica quantitativa baseada num simples módulo rural.

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22 Sugestões de discussões sobre etnodesenvolvimento e modelo tutelar podem ser encontradas em Lima e Barroso-Hoffmann, 2002 e Azanha, 2002). 26

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