ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO

─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Textos Completos

ISSN 2358-405X

Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017.

Orgs. Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) Célia Arns de Miranda (UFPR)

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Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Regulamento, Normas e Outras Informações http://gtdramaturgiaeteatro.blogspot.com.br/

Projeto Gráfico, Capa e Diagramação Kaline Cavalheiro da Silva

Orgs.

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) Célia Arns de Miranda (UFPR)

Catalogação-na-Publicação (CIP) (Sistema de Bibliotecas – UNIOESTE)

Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro (3.:2017: Cascavel PR). S474 Anais do III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Dramaturgia e a cena contemporânea: 13, 14 e 15 setembro de 2017 / (Orgs) Lourdes Kaminski Alves, Célia Arns de Miranda. - -- Cascavel (PR): UNIOESTE, 2017. 189p.:il.[on line]

. ISBN: 2358-405X

1. Teatro (Literatura). 2. Teatro contemporâneo. 3. Atores. I. Alves, Lourdes Kaminski. II. Miranda, Célia Arns de. III. Silva, Kaline Cavalheiro da IV. Título.

Rosângela A. A. Silva – CRB 9ª/1810 CDD 808.8241

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ORGANIZAÇÃO DO EVENTO

Coordenação Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) Célia Arns de Miranda (UFPR)

Organização dos Anais

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) Célia Arns de Miranda (UFPR)

Conselho Científico

Alexandre Villibor Flory (UEM) Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) André Luís Gomes (UnB) Célia Arns de Miranda (UFPR) Esther Marinho Santana (UNICAMP) Gabriela Lirio Gurgel Monteiro (UFRJ) Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) Diógenes André Vieira Maciel (UEPB) Martha Ribeiro (UFF) Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE) Priscila Matsunaga (UFRJ) Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR) Sonia Pascolati (UEL)

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Apresentação

O Grupo de Trabalho Dramaturgia e Teatro da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – iniciou suas atividades no biênio 1999- 2000 como expansão do GT Estudos Shakespearianos, congregando pesquisadores da grande área Letras, Linguística e Artes em torno de questões teóricas, históricas e práticas pertinentes aos estudos de dramaturgia e teatro. A partir de 2009, durante encontro do grupo em Brasília (UnB), as atividades acadêmicas foram estendidas à participação de pesquisadores não vinculados ao GT, movimento que se sedimentou com a realização do I Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e Intermidialidade, em outubro de 2013, na Universidade Estadual de Londrina (UEL). O II Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e Ensino foi sediado pela UEM de 16 a 18 de setembro de 2015. O III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro - Dramaturgia e a cena contemporânea foi realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), nos dias 13, 14 e 15 de setembro de 2017. O Encontro Intermediário do GT visa à apresentação e o debate sobre as pesquisas que são desenvolvidas no âmbito do Grupo, por seus membros efetivos e convidados, que por sua vez, articulam estas pesquisas a outros projetos em suas instituições, considerando-se projetos convergentes entre as linhas de pesquisa, nos níveis da graduação e da pós-graduação, iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutoramento e outros. Esta articulação é importante, tanto para o fomento no campo dos estudos em dramaturgia e teatro e sua relação com a sociedade, quanto pela articulação com a área de Letras e Linguística, devido a aproximação entre as áreas. O objetivo é abrir espaço para discussão de pesquisas em andamento nos diferentes níveis e contribuir para a formação de pesquisadores nesse campo de estudos acadêmicos que, embora tenha se fortalecido nas últimas décadas, ainda necessita ampliar seu espaço nos cursos de Letras. As três edições do seminário já atestam que a configuração do encontro intermediário do GT como espaço de acolhimento de pesquisas para além de seus membros efetivos e colaboradores atende à necessidade de estimular jovens pesquisadores a desbravar as searas da pesquisa em dramaturgia e teatro e multiplicar espaços de discussão sobre esses campos, já que eles não são abundantes nos eventos da área de Letras. A terceira edição do seminário contou com três mesas temáticas organizadas a partir das linhas de pesquisa: a) Dramaturgia e a cena contemporânea; b) Teatro e ensino: práticas educativas; c) Teatro e reflexões teórico-críticas, com 66 comunicações orais distribuídas em 8 mesas de debate em que pesquisadores de vários estados trocaram saberes e experiências. Do Paraná, estiveram presentes, além da universidade sede, a UTFPR, UEM, UEL, UNESPAR, UEPG, UNICENTRO, UNOPAR, UNIANDRADE. Dos demais estados, tivemos representantes da UnB, UFGD UFPel, UFF, UNIRIO, UNM, UNICAMP, UFU,UFRJ, UEPB, UERJ, EAWM, UFSC, UFV, UFMS e UNESP/Assis/SP, confirmando a abrangência nacional do evento. Grande também é a diversidade das pesquisas discutidas, com destaque para estudos sobre a cena contemporânea, tema geral do seminário, contemplando o processo criativo de laboratórios de criação e investigação da cena contemporânea; o corpo cênico contemporâneo; a cena contemporânea em uma abordagem autoetnográfica; perspectivas intermidiais na dramaturgia contemporânea; microutopias do texto e da cena; práticas da leitura dramática na sala de aula; o teatro político nacional; estudos comparados em

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dramaturgia nacional e estrangeira; o trabalho do ator; o trabalho do tradutor-dramaturgo; reavaliações da tradição e algumas de suas formas, como metateatralidade da autoficção cênica; intertextualidades; recriações; discussões sobre o trágico moderno; as relações entre teatro e sociedade; a presença da mulher na escrita e na cena dramatúrgicas. As pesquisas apresentadas deram mostras do caráter qualitativo e profícuo do debate e das trocas de ideias em torno das temáticas contempladas nas linhas de pesquisa do GT. No planejamento apresentado para o biênio 2017/2018, a presente gestão definiu, como uma das estratégias de trabalho, dar continuidade às ações planejadas no biênio anterior que demandavam um tempo maior para a sua execução, a exemplo da publicação que contempla o tema das relações entre o teatro e o ensino, reafirmando que há muito a se considerar em relação a esse importante projeto. Para atender a este objetivo propusemos a produção bienal de Cadernos Temáticos organizados a partir do eixo discutido no biênio anterior - Teatro e Ensino. Assim, durante o III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro - Dramaturgia e a cena contemporânea ocorreu o lançamento simbólico da Série Caderno Temático Vol. I - Teatro e Ensino: Estratégias de Leitura do Texto Dramático. Simbólico, pois a editora não conseguiu entregar a tempo o Caderno, assim sendo, o lançamento efetivo do Caderno Temático ocorrerá no XXXIII Enanpoll, que ocorrerá nos dias 27 a 30 de junho de 2018, na UFMT-Cuiabá. O destaque do III Seminário ficou por conta da edição especial do projeto “Quartas dramáticas”, coordenado por André Luís Gomes na UnB, que trouxe uma proposta de leitura sobre a peça BLECAUTE de David Anderson. Peça inspirada na vida real de um jovem de Glasgow, Thiago, que foi preso por tentativa de homicídio e ganha liberdade condicional. Na peça, o jovem acorda em uma cela da prisão numa noite e não consegue se lembrar como ele chegou lá, ou o que ele fez para merecer ser trancado. Gradualmente, tudo vem inundando de recordações. O coordenador do “Quartas dramáticas observa: “O texto teatral não tem indicações cênicas (rubricas) e nem mesmo falas são designadas às personagens, portanto, o grupo pode livremente atribuir falas para atores/atrizes, individuais e em coro, e construir a movimentação cênica. O texto é inovador do ponto de vista formal, mas não deixa de tratar de conflitos sociais/familiares presentes no nosso dia-a-dia: um pai machista e violento, uma mãe submissa e infeliz, um avô morrendo de câncer e o isolamento crescente do jovem Thiago, viciado em filmes violentos. Paralela à história de Thiago, construí a história de Júlio que gradativamente vai se transformando em Júlia. E esse paralelo é possível, pois os motivos que levam Thiago a se comportar violentamente podem ser os mesmos que comprometem os sonhos, a liberdade e a felicidade de Júlio/Júlia: violência doméstica, bullying, repressão escolar, preconceito, agressão policial etc.. A questão não é de onde tudo deu errado, mas como e porque tudo deu errado”. (André Luís Gomes) Em mais uma das edições do Encontro Intermediário do GT, André Luís Gomes (UnB), nos brinda com uma Oficina e Montagem da Encenação da Leitura, um intenso processo de trabalho, aprendizagem e superação para os participantes da oficina e um momento de emoção e reflexão ao público presente no evento.

As fotos abaixo dão uma pequena mostra visual do que foi a atividade:

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A publicação destes Anais registra parte da produção acadêmica discutida nos 3 dias do evento, que será complementada pelo livro Dramaturgia e a cena contemporânea, em andamento, com previsão de lançamento ao final do biênio 206/2018.

Agradecemos o apoio recebido do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIOESTE e do Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA), assim como agradecemos o apoio institucional da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PRPPG), da Pró-reitoria de Extensão (PROEX), da Direção do campus de Cascavel e sua equipe e da Fundação Araucária. Um agradecimento especial à Assistente do PPGL, aos monitores, alunos de graduação e de pós-graduação, que possibilitaram as atividades acadêmicas e culturais desses três dias de intensa discussão, trabalho e confraternização em torno dos estudos teatrais.

Desejando boa leitura, esperamos que este registro inspire novas pesquisas e estimule pesquisadores a se juntarem a nós na próxima edição do evento, a ser realizada em 2019.

Lourdes Kaminski Alves

Célia Arns De Miranda

Mesa de Abertura do III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Dramaturgia e a Cena Contemporânea – Diálogos Iniciais – Lourdes Kaminski Alves, Célia Arns Miranda, Alexandre Villibor Flory e Sonia Pasolati.

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Sumário Apontamentos Sobre O Testamento do Cangaceiro, de Chico de Assis: Uma Peça da Construção do Projeto de Cultura Popular do Teatro Brasileiro na Década de 1960 ...... 9 Beatriz Yoshida Protazio A Contemporaneidade de Augusto Boal na Experiência com a Dramaturgia Breve: Poesia na Carne da Periferia ...... 20 Alai Diniz Marco Pezão Iadocicco A Pesquisa em Literatura Dramática Contemporânea: Breve Análise da Peça Música Para Cortar os Pulsos, de Rafael Gomes ...... 32 Mario Celso Pereira Junior Fernanda Vieira Fernandes A Poética Marginal de Amor, Paixão e Desencanto na Obra de Roberto Parra, no Teatro Popular, La Negra Ester ...... 42 Patricia V. Cuevas Estivil A Prática da Leitura Dramática na Formação Docente em Teatro e Sua Repercussão no Estágio do Ensino Médio da UFPel ...... 54 Juliana Caroline da Silva Fernanda Vieira Fernandes A recepção inicial de Edward Albee no Brasil ...... 62 Esther Marinho Santana Combate de Negro e de Cães: A Representação da Mulher e do Negro na Peça de Bernard-Marie Koltès ...... 73 Fernanda Vieira Fernandes Discussão Sobre o Trágico Moderno em “Os Mal-Amados”, de Lourdes Ramalho ...... 84 Monalisa Barboza Santos Distanciamento Épico e Gestus Social: do Palco Ao Romance...... 95 Sandra Vanessa Versa Kleinhans da Silva Experiência e Memória “Sofá que Desce o Rio” ...... 106 Neuri Luis Mossmann Quem São Estas Vozes: Modos Difusos de Figuração da Identidade em Martin Crimp e Sarah Kane ...... 110 Márcio Luiz Mattana Metaforizando a experiência: imagens da vida e da memória em I am my own wife, de Doug Wright, e em Finir en Beauté, de Mohamed El Khatib ...... 121 Felipe Valentim O Corpo Cênico Contemporâneo: Um Estudo sobre a Conscientização dos Gestos ..... 133 Thiago Piquet da Cunha O Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare e sua Presença na Cena Contemporânea Brasileira ...... 142

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Angélica Tomiello Ói Nóis na Rua: O Amargo Santo da Purificação encenado pelo grupo Ói Nóis Aqui Traveiz ...... 153 Hadassa Nascimento Welzel O Trabalho do Tradutor-Dramaturgo: Um Estudo Pavisiano da Tradução ...... 165 Braz Pinto Junior Recriando A Tragédia Shakespeariana: Macbeth de Villela ...... 172 Rebeca Pinheiro Queluz Reflexões Sobre a Leitura Dramática na Sala de Aula ...... 181 Gracielle Cristina Selicani Barbosa Rodolfo Barroso Rosemari Bendlin Calzavara Revisitando Arena conta Zumbi: A montagem de João das Neves ...... 189 Ana Maria Lange Gomes Síntese, fluxo, repetição, retradução: Doctor Faustus Lights the Lights, ...... 198 a obra "teatral" de fronteira de Gertrude Stein ...... 198 Fábio Fonseca de Melo Teatro Paraibano Pede Passagem: Linguagem e Representação Cultural em Lourdes Ramalho ...... 210 Fernanda Félix da Costa Batista

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Apontamentos Sobre O Testamento do Cangaceiro, de Chico de Assis: Uma Peça da Construção do Projeto de Cultura Popular do Teatro Brasileiro na Década de 1960

Beatriz Yoshida Protazio (UEM)1

Resumo: Este trabalho pretende estudar, a partir do conceito de teatro épico-dialético, a peça O Testamento do Cangaceiro, de Chico de Assis e o projeto de cultura que ela – entendida dentro de uma trilogia de peças do autor e de um projeto mais geral da cena teatral das décadas de 1950 e 1960 no Brasil – desvela. O enredo desenvolve-se a partir da morte dos pais de um jovem sertanejo, que será o “herói” da peça, Cearim. O personagem se envolve em uma série de confusões e armadilhas em busca de uma “melhora de vida”. Nesse sentido, a partir de sua forma estética, buscar-se-á ver como ela responde às necessidades impostas por seu tempo histórico e refletir sobre seus acertos e limites, desde o ponto de vista das relações entre arte e sociedade e o projeto mais geral no qual ela se insere. Palavras-chave: teatro brasileiro; cordel; Chico de Assis; literatura e sociedade.

Parece-nos que discutir esta peça de Chico de Assis passa, primeiramente, por entender um pouco suas ideias e a sua confluência ou divergência dentro do projeto político- cultural do Teatro de Arena. A isso, presta-nos excelente interesse, o livro de Jalusa Barcellos “CPC DA UNE – Uma história de paixão e consciência” (1994), no qual estão contidos dados valiosíssimos para a história do teatro brasileiro em formato de entrevistas; dentre as quais, presentemente, tem especial importância a de Chico de Assis. A certa altura da entrevista, Chico de Assis fala um pouco sobre como ele vê a questão da “cultura popular” e diz que essa cultura é mais profunda, não se encontra numa superfície, e que estaria bastante ligada a um sincretismo e a um quê farsesco, “uma linguagem cara-de- pau, para ser mais popular” (BARCELLOS, 1994, p.144-145). Assim, é possível entender que, para o Chico, a questão da cultura popular está bastante ligada à sátira, ironia, ao dizer sem dizer, em outras palavras, ao campo da farsa/comédia. Nossa hipótese é de que, com isso, Chico de Assis organiza uma proposta sobre o que seria – ou como deveria ser trabalhada – a cultura popular dentro do projeto dos grupos de teatro dos quais ele fez parte – Arena e Centro Popular de Cultura (CPC). Nesse sentido,

1 Mestranda em Estudos Literários no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM). [email protected] 9 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

acreditamos que, graças a sua vivência como ator, dramaturgo e diretor, bem como aos processos de formação pelos quais passaram os integrantes do Arena, ele foi capaz de formular uma ideia de popular brasileiro como essencialmente ligado à comicidade. Se fôssemos pensar em algo como a cláusula dos estados, por exemplo, pensando numa tradição teatral, essa posição de Chico de Assis em relação ao popular ligado à comicidade parece ainda mais justificar-se. Além disso, se pensarmos na história do teatro brasileiro, que tem na comédia alguns de seus nomes mais significativos, como Martins Pena e Artur Azevedo, essa questão levantada pelas reflexões do dramaturgo parecem fazer ainda mais eco. O Brasil, como nação “subdesenvolvida”, precisava encontrar uma maneira de expressar-se e, uma hipótese nossa é a de que essa maneira é alcançada, pelos autores brasileiros, de forma excepcional na comédia, a princípio. Ainda que a crítica tradicional – com olhos de alfandega francesa, como diria Iná Camargo Costa – tenha objetado por muito tempo que o país não tinha um teatro nacional no século XIX. Sobre este assunto, porém, não nos deteremos mais pois não é, propriamente, o assunto deste artigo, embora julguemos que seja importante passar por ele para entender as ideias de Chico de Assis. Assim, a retomada de um “panorama crítico” do teatro no país que faz Iná Camargo Costa em A hora do teatro épico no Brasil nos parece essencial para seguir pensando sobre a formação e consolidação do gênero dramático por aqui, haja vista que ela resgata parte de nossa história teatral e coloca a cena na história brasileira. A nós, tem particular interesse que estejam colocados nessa obra também o Teatro de Arena e o Centro Popular de Cultura, uma vez que esses grupos fazem parte da construção de um acúmulo estético e teórico do teatro nacional e são parte do percurso de Chico de Assis.

Chico de Assis: O regional como uma das linhas de força do Arena

De acordo com VILLAS BÔAS, R. L (2009), Arena vai para o Nordeste apenas 1957, intercambiar conhecimentos e práticas com o Movimento de Cultura Popular (MCP), assim, esse contato do Chico com o sertão se daria apenas 3 anos após a escrita da primeira parte da peça (1954) e um ano após a montagem desta primeira versão. Não sabemos de fato precisar quando se deu sua escrita na versão que chegou até nós – a da publicação pela Imprensa Oficial em 2009 – no entanto, em 1961, o Arena monta o Testamento, com direção de 10 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Augusto Boal e José Renato e música de Carlinhos Lyra e essa parece, conforme o próprio Chico de Assis em entrevista a Capuani, uma versão ao menos mais aproximada do que veio a ser aquela com a qual trabalhamos neste artigo e que coaduna com o próprio pensamento do dramaturgo expresso na entrevista a Jalusa Barcellos na qual ele fala, entre outras coisas, sobre a cultura popular e a escrita dessas três peças que tematizam o homem nordestino sertanejo2. Em 1960, Chico dirige A Mais-valia Vai Acabar, Seu Edgar, peça de Oduvaldo Vianna Filho, na “areninha” da Faculdade de Arquitetura, no Rio de Janeiro e esse fato, de acordo com ele, marca o início da conformação do grupo que seria o Centro Popular de Cultura (CPC), no RJ. Nesse momento, ele está muito próximo a Carlos Estevam Martins que também foi muito importante para o CPC e era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O próprio Chico foi membro do PCB, segundo ele mesmo, até 1961. Depois de se desligar do “partidão”, como esclarece em entrevista para Barcellos (1994), ele é convidado por Glauber Rocha para ir à Bahia. Conforme ele, o convite do Glauber se deu no sentido de ele ir para ajudar os baianos a entenderem “a estrutura”: “lá (na Bahia), eles estavam organizados, conforme conta o dramaturgo paulistano, em “mais ou menos uns seis caras liderando, entre eles Paulo Gil Soares, Capinam etc...”, (JALUSA, 1994, p. 140-141). Nas palavras do próprio Chico de Assis, essa foi sua primeira vivência real com o Nordeste. Morando lá, ele conheceu mais profundamente o cordel, as cheganças, as marujadas, a capoeira e o pessoal do candomblé, os quais também eram politicamente atuantes, de acordo com o dramaturgo. Além do CPC, ele participou da política regional e chegou ao extremo de receber ameaças de morte. Esse episódio, além de outros fatores, o fez voltar à São Paulo. Na volta ao Sudeste, ele auxiliou a formação do CPC de Santo André. Sua entrevista para Jalusa Barcellos, apesar de suas limitações, é bastante importante para entender os processos pelos quais passou esse autor em suas idas e vindas pelo Brasil. Assim, chegamos em 1963 – às portas do golpe – e Chico de Assis lembra-nos de um encontro que buscava aglutinar todos os CPCs estavam ativos na época que aconteceu em Pernambuco. Ele relata que, em sua opinião, o encontro era utopista, pois, para ele, era

2 Parece haver algumas divergências quanto à data da escrita definitiva da peça nas duas entrevistas utilizadas para este artigo: “Chico de Assis” in CPC da UNE uma história de paixão e consciência, de Jalusa Barcellos (1994) e a entrevista concedida pelo dramaturgo a Maria Lucia Damato Capuani para sua tese de doutorado em 2010. 11 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

impossível tirar diretrizes comuns de atuação para os CPCs, haja vista que em cada lugar o CPC funcionava de uma maneira: “esses Centros Populares de Cultura passaram a existir cada qual ao seu jeito”. (JALUSA, 1994, p. 142-143). Nossa breve digressão sobre essas experiências, serve ao intuito de escarafunchar o pensamento do Chico – embora este seja bastante entremeado de vai e vens, e ele mesmo apresente divergências em suas memórias, além disso, Chico é bastante polêmico, como se pode facilmente constatar pesquisando um pouco sobre o dramaturgo – para localizar a peça Testamento do Cangaceiro dentro de um projeto que opinamos que Chico de Assis tinha, ou seja, fazer cultura popular brasileira. Além disso, é importante também para tentar localizar “o como” ele materializava suas ideias sobre esse fazer cultura popular Sobre a assim chamada Trilogia de Cordel, Chico de Assis afirma, em entrevista a Jalusa Barcellos, que fez uma pesquisa sobre as estruturas populares, a fim de “conhecer os seus porquês, as suas razões peculiares” (JALUSA, 1994, p. 147), para só então montar o texto definitivo. Se é assim, e também por tudo o que ele disse nas várias fontes em que o buscamos, então, mais do que escrever uma peça de cores regionais, ele dá autorização para conjecturar que também buscou “completar” o que considerava em falta nos projetos do Arena e do CPC em relação à cultura popular. Ou seja, buscou esse “por dentro” do homem brasileiro, do homem sertanejo, que ainda não tinha lugar na dramaturgia dos grupos do Sudeste brasileiro que almejam um fazer cultural que dialogasse verdadeiramente com o povo e não apenas com um público restrito. Ferreira Gullar, em seu artigo A Cultura posta em questão, ressalta a importância do caráter de renovação e inovação nacional desse período do teatro brasileiro. Ele defende a importância dessa nacionalização para um país subdesenvolvido como o Brasil: “a luta pelo novo no mundo subdesenvolvido, é uma luta anti-imperialista. E isso é verdade tanto no campo da economia, como no da arte.”. (GULLAR, 1965, p. 176). Assim, nossa hipótese é de que o tema do povo nordestino tenha vindo à baila no teatro dos grupos do eixo Rio-São Paulo pelas mãos de Francisco de Assis Pereira como uma peça que faltava na construção de um extenso quadro teatral, entendido como um projeto desses grupos de produção de uma cultura popular que alcançasse verdadeiramente as camadas populares e não somente a classe média urbana.

12 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Trocando em miúdos: mito do herói ou construção do anti-herói no teatro brasileiro e outros apontamentos sobre O Testamento do Cangaceiro

O “enredo” da peça se constitui da seguinte forma: um jovem pobre e brasileiro nordestino está no enterro de seus pais. Finda o enterro e o jovem, perdido, sem saber o que fazer, encontra com sua madrinha – transfigurada numa espécie de anjo. Ela dá à Cearim uma série de conselhos para que ele seja bom, generoso e sempre grato a deus, para que sua vida “melhore”. Com os conselhos da madrinha, Cearim parte em busca de uma “vida melhor”. Em seu caminho, ele encontra um cangaceiro, que está prestes a morrer, este lhe dá um testamento e faz com que nosso heroi jure que fará cumprir todo o testamento. Nessa busca, Cearim é várias vezes passado para trás, roubado, acusado de roubo, preso, se envolve com puta, com delegado, é enganado por padre e por sacristão, engana padre e sacristão, se mete com irmão de cangaceiro, com cego “trambiqueiro”, de tudo um pouco. Nesse jogo de idas e vindas, Cearim está sempre acompanhado da madrinha-anjo, que lhe aconselha sempre “os bons costumes”. Mas, a certa altura da peça, ele pede ajuda ao cão, porque julga que seguir os conselhos da madrinha não está dando os resultados que ele esperava. No entanto, os conselhos do diabo também acabam não dando a Cearim o que ele queria, isto é, “melhorar de vida”. O irmão do cangaceiro morto se agrupa com o cego para matar Cearim. Mas nosso anti-herói escapa dessa armadilha graças a sua própria sagacidade, sem deus e sem diabo, e se passando por fantasma, rouba de volta o dinheiro que os dois lhe haviam tomado. Na mesma bodega em que recuperou parte de “seu” dinheiro, ele arranjou um baú velho cheio de fantasias e se pôs atrás do vigário, vestido de padre, para tentar enganar o pároco. A armadilha de Cearim se volta contra ele mesmo e acaba preso. Na cadeia, encontra com Ercília – a “mulher do cangaceiro” que também já o havia roubado. Mas, dessa vez, ela o ajuda a escapar da prisão. Uma vez solto, Cearim vai reaver seu baú de fantasias e encontra com o sacristão que pensamos ter morrido no início da peça ao tentar roubar Cearim junto com o padre. Os dois partem em busca de comida e vão pedir ajuda a alguns camponeses que

13 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

estão passando grandes dificuldades graças ao coronel que fechou um armazém que lhes fornecia provisão para chantageá-los a entregar metade de sua colheita em troca de comida. Ao ouvir a situação dos camponeses, Cearim lhes diz que era necessário que tomassem as terras do coronel e do vigário, pois só assim seria possível trabalhar e comer com dignidade. Ele conta sua história para os camponeses e a peça termina com o narrador, antecedido por Cearim e pelo “o coro da maldade”, no qual os personagens cantam: “A gente não pode ser bom / A gente não pode ser mau / Quando a gente quer ser bom acaba mal / Quando a gente é mau é bom” (ASSIS, 2009, p. 117-118) e Cearim também canta: “Mas a maldade não vai pra sempre existir / Pois um dia há de haver que a bondade há de vir” (ASSIS, 2009, p.117-118) e assim por diante.

A peça, escrita a partir de 1954, apresenta um final “em aberto” que lembra muito outras peças feitas pelo grupo de autores que compõe e transita entre o CPC e o Arena, só para dar um exemplo, lembra-nos, em certa medida, de Mutirão em novo sol, que também termina como quem olha de soslaio e antevê uma possível organização dos de baixo contra os de cima. Assim, um recurso que dá um tom épico à peça é este coro apresentado no final, que interrompe o fluxo da ação – que talvez, por seu momento histórico não pudesse mesmo continuar, haja vista o vai e vem em termos de organização pelo qual passa o movimento camponês historicamente – e também o diálogo – principal recurso do drama burguês. Além disso, o conteúdo da canção também chama muito a nossa atenção para um mote bastante “brechtiano”, isto é, a questão da “bondade” e da “maldade”. Só para fins de ilustração do porquê consideramos este mote “brechtiano”, trazemos um trecho de Santa Joana dos Matadouros que elucida bem a questão:

Ah, bondade sem efeito! Intenções impalpáveis! Eu não transformei nada. Deixando infrutífera e rapidamente a cena Eu lhes digo: Atenção para que vocês ao deixarem o mundo Não apenas tenham sido bons como estejam Deixando um mundo melhor! (BERTOLT, B., 2001, p. 185).

14 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Quer dizer, a bondade, como prega a moral burguesa e cristã, serve aos ricos e não aos pobres. A maldade como ideologia é a necessidade do pobre; a maldade verdadeira é a exploração do pobre pelo rico. Portanto, quando não mais um homem puder explorar outro homem, a bondade, não como ideologia do pobre que morre de fome calado, mas como coisa verdadeira poderá existir:

Mas a maldade não vai pra sempre existir Pois um dia há de haver que a bondade há de vir Mas até esse dia chegar a gente tem que ver Também tem que pensar pro dia chegar também tem que lutar Todos vão ser bons Ninguém mais vai ser mau Lindo dia de igualdade Quando tudo vai mudar. (ASSIS, 2009, p. 117-118).

A presença de um narrador, que além de narrar, também explica e opina na história é um recurso já bastante conhecido do teatro épico que aparece em Assis, como forma de interromper a ação, evitando a criação da empatia do público com as personagens e perspectivando os acontecimentos a fim de evitar que a obra se postulasse como neutra – na acepção do drama burguês que se pretende como verdade e cópia fiel da realidade:

NARRADOR – E Cearim mais o Sacristão desmemorizado seguiram a passo lento pela estrada, em busca de alguma boa alma que lhes desse o que comer. Chegaram a uma roça, onde alguns camponeses trabalhavam. (ASSIS, 2009, p. 113).

Enquanto os camponeses cantam a boca chiusa:

NARRADOR – Não guardo de meu uso. Conto. faço mesmo gosto de contar e recontar. Só por diversão de ver as caras mudarem de jeito quando a história muda de jeito. Escolho as partes curtas, que dão bom lugar de começo, meio 15 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

e um bom ponto certo de paragem... Fim? Não... que só com morte ou cataclismo. (ASSIS, 2009, p. 118- 119).

Além destes recursos, a peça tem função bastante didática, no sentido que desvela para o espectador/leitor o funcionamento das instituições burguesas, de modo que as coloca de forma bastante evidente como partes de um sistema que serve única e exclusivamente aos de cima, e não como entidades neutras, como a ideologia burguesa as vende para o povo. Assim, a Igreja, representada enquanto instituição pelo padre e pelo sacristão, é apresentada, em primeiro lugar, como possuidora de terras, o que já a afilia aos possuidores e não aos despossuídos, além disso, os clérigos trabalham sempre em favor da obtenção de mais recursos “para a casa deus”, ou, melhor seria dizer, trabalham em favor de si mesmos, desvelando a mesquinhez da prática religiosa e sua real afiliação de classe. Aparece também em cena a polícia, por meio do coronel e do cabo, mostrando que a justiça também precisa “ganhar o seu” e, portanto, está do lado de quem melhor paga oferecer. Dialeticamente, neste caso em especial, mostra também que os baixos salários e a falta de estrutura para trabalhar podem “corromper” os indivíduos que trabalham “com a lei”. Assim, temos um plano totalizante da instituição como cão de guardas do capitalismo, ao mesmo tempo em que a peça descobre a polícia como instituição de coerção de um Estado parcial que trabalha em favor da manutenção das condições de dominação dos ricos, percebemos a que condições estão submetidos os que trabalham salvaguardando o sistema, principalmente as baixas patentes. Assim, o espectador/leitor acaba não por simpatizar com um ou outro personagem, mas pode refletir sobre essas questões que constituem as engrenagens do sistema de exploração a que ele próprio está submetido. A família também é instituição representada na peça, por um lado, pela “mulher” do cangaceiro morto, que é uma prostitua e, por outro, por seu irmão, que se mostra mais triste pela morte do irmão assim que percebe que ficou com parte do dinheiro que ele possuía. Nossa hipótese é de que representar assim o “casamento” e a família, com a sua ausência e a sua dissimulação, respectivamente, testemunha uma falta de sentido na existência desta instituição tão valorosa para a burguesia – não à toa, os dramas burgueses são construídos no espaço “do lar” –, mas que, ao tratar dos de baixo em sua perspectiva, faz nenhum sentido construí-la em cena. 16 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Uma última instituição que representa por sua ausência e que gostaríamos de tratar neste artigo é a justiça. Os tribunais - a justiça - se quer aparecem na peça. O nosso “herói”, Cearim, tem de fazer justiça por si mesmo. Em outras palavras, a justiça está tão “do lado de lá”, que enquanto a peça se configura deste lado, uma comédia dos pobres, nem se quer é possível enxergá-la – seja em cena, seja na vida empírica dos pobres. Por fim, uma hipótese sobre a figura do herói nesta peça, a qual o próprio Chico de Assis diz existir. Para nós, o que existe em O testamento do cangaceiro é um herói à la Macunaíma, ou, para ficarmos no campo do teatro, um “herói” brechtiano (em que pese ser Brecht um “anti-heroísta”). Cearim não é nem bom, nem mau; ele é, sobretudo, humano. Um humano pobre que age pela lei da necessidade. É, portanto, um anti-herói burguês.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi refletir acerca da proposta de Chico de Assis para o fazer teatral, mais especificamente do que se convencionou chamar de sua “trilogia de cordel”, entre as décadas de 1950 e 1960, no Brasil, bem como propor alguns apontamentos em termos de análise crítica da peça “O testamento do cangaceiro” a partir do conceito de teatro épico- dialético, tendo sempre em vista as relações que se estabelecem entre arte e sociedade. Esse processo foi permeado das reflexões e propostas críticas presentes nos trabalhos de Maria Lucia Damato Capuani, Rafael Litvin Villas-Bôas, Jalusa Barcellos, Iná Camargo Costa e, em certa medida, do próprio Brecht, como se vê nas considerações que fazemos sobre a questão da bondade versus maldade e na proposição de que há uma visada brechtiana em vários recursos usados por Chico de Assis nessa peça, como o narrador e coro, os quais são técnicas bastantes familiares para os leitores de Brecht e espectadores do teatro épico. Outras tantas reflexões e hipóteses poderiam ter sido desenvolvidas a partir deste objeto, no entanto, as limitações de tempo e espaço fizeram-nos propor este recorte que aqui se encontra, a fim de, ao menos, contribuir para a construção de uma fortuna crítica sobre a obra de Chico de Assis, na qual descobrimos ao longo desta pesquisa enorme valor e riqueza política e intelectual. Em que pese a profusão e a nem sempre coesão de seu pensamento, a proposta de cultura popular de Chico de Assis mereceria um estudo de mais fôlego, haja vista que, parece-nos, bastante singular e ainda pouco estudada, pelas dificuldades mesmo que 17 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

tivemos para encontrar material que desse suporte à nossa pesquisa. Um outro ponto que mereceria ser abordado com mais vagar é a alcunha de teatro de cordel que tem sido atribuída a esta sua trilogia de peças e que talvez, ao levar-se em conta com mais rigor a teoria da literatura de cordel, esteja deslocada de seu sentido original. A peça, como fruto de uma acumulação crítica e estética do fazer teatral que perpassou o Teatro de Arena e o CPC, é cheia de nuanças. Por isso, procuramos explorar os que acreditamos serem os principais elementos que a identificam com um fazer épico do teatro. Assim, concentramos nossa análise nas técnicas do coro e do narrador, as quais interrompem o fluxo da ação, oportunizando uma parada para a reflexão do espectador-leitor sobre os mecanismos de exploração do capitalismo num país de modernização conservadora, como é o Brasil, e também no desmantelamento do caráter pretensamente neutro das instituições que blindam a estrutura capitalista de exploração do homem pelo homem, desumanizando as relações e tornando-as mercadoria. Por fim, esperamos que nosso trabalho contribua para uma atualização crítica nos estudos literários que buscam colocar na história do teatro brasileiro o teatro feito nas décadas de 1950 e 1960 por grupos e autores que tinham, apesar de seus limites e acertos, em comum um projeto de fazer cultura popular, que merece ser documentado ainda hoje, por sua importância para a arte e cultura brasileiras, e que possa ser encarado não como um trabalho definitivo, mas como um estímulo a novas contribuições que enriqueçam ainda mais o debate sobre as relações entre a arte e a sociedade, em especial o teatro, que tem sido historicamente negligenciado no campo das letras.

Referências

ASSIS, Chico de. O testamento do Cangaceiro. In: O teatro de cordel de Chico de Assis. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 22-119 BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência [depoimentos a] Jalusa Barcellos – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. 427p. BERTOLT, Brecht. A Santa Joana dos Matadouros. Tradução e apresentação de Roberto Schwarz. – São Paulo: Cosac Naify, 2001 (1.ª reimpressão 2009), 218 p.

18 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

CAPUANI, Maria Lucia Damato. A trilogia de folheto de cordel de Chico de Assis. 2010. 87f. Dissertação. (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-graduação em Artes, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo. COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. 2ª. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2016. 215p. Dados da Enciclopédia Cultural do Itáu – O Testamento do Cangaceiro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 de Mai. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 GULLAR, F. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, 126p. p. 176. VILLAS BÔAS, R. L. Teatro político e questão agrária 1955-1965: contradições, avanços e impasses de um momento decisivo. 2009. 233f. Tese. (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura, do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, Brasília.

19 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

A Contemporaneidade de Augusto Boal na Experiência com a Dramaturgia Breve: Poesia na Carne da Periferia

Alai Diniz (UNIOESTE/Fundação Araucária) Marco Pezão Iadocicco (Espaço Cultural I Love Laje)3

Resumo: O ensaio apresenta uma experiência dramatúrgica criada para o contexto da literatura periférica de São Paulo, em 2017, com a finalidade de elaborar uma estratégia a partir do sistema Augusto Boal, superando a recepção interna de Boal, no Brasil, do fim do século XX. O fato de que Boal haja vivido na ditadura e experimentado a diáspora latino- americana, tornou-se uma referência internacional, graças à abrangência de seus métodos e procedimentos que poderiam configurar-se na área das Artes Cênicas como um sistema Boal, no entanto, tendo sido um dos ícones do movimento artístico dos anos 60 com o Teatro de Arena e produzido uma dramaturgia que combinava a arte à política houve rejeição pela academia brasileira, no período pós-ditatorial, em particular no que tange à formação de profissionais da área de teatro. Ao criar técnicas, gêneros e procedimentos e um modo de encarar as relações entre ator e não ator, após sua morte, constitui-se em um legado para uma experiência dramatúrgica com cenas breves que tem como proposta a de formar público para o teatro.

Palavras-chave: Teatro; Augusto Boal; dramaturgia breve; recepção.

“A ficção do teatro não visa a reproduzir uma situação do ‘real’, mas pretende extrair, através da ilusão que ela postula e desmente ao mesmo tempo, os próprios procedimentos pelos quais, contraditoriamente, o social é construído.” (Roger Chartier).

Introdução

Partindo de um ensaio anterior que problematizava a recepção brasileira de Augusto Boal na academia no contexto dos anos 80 e 90,4 este estudo se propõe a enfocar alguns aspectos da contemporaneidade dessa obra, assim como entender a divergência entre o crescimento da projeção internacional de Boal, no fim do século XX, em contraposição a certa resistência em circuitos universitários, no Brasil, especificamente em cursos de formação teatral. Seria um sintoma possível verificar a escassa visibilidade acadêmica da obra de Augusto Boal, em pesquisa a bancos de teses das principais universidades

3 Alai Diniz - Professora Visitante Sênior do Programa de Pós-Graduação em Letras, campus Cascavel- [email protected]; Marco Pezão – poeta e dramaturgo, coordenador do projeto contemplado pela Lei de Fomento à Cultura da iPeriferia – [email protected] 4 Garcia Diniz, Alai (2013) “Augusto Boal no Brasil e suas marcas de contemporaneidade” foi publicado na Revista TEATRO: Revista de Estudios Culturales/A Journal of Cultural Studies vol. 26, nº 26, [2013], PP.57- 72. 20 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

brasileiras? Em treze títulos dedicados a Boal, até o ano 2000, apenas dois trabalhos pertenciam a décadas anteriores (1995 e 1999)5. Em 2007, em uma entrevista a Douglas Tavares Borges Leal, ao responder sobre a disseminação de seu método na India, Boal explica por que acha que no Brasil sua recepção começou tarde.6 Tal percepção do diretor sobre um tipo de resistência acadêmica, tendo como causa o exílio nem sempre se traduzia em uma rejeição direta de suas propostas, embora esteja claro que, até os anos 90, com raras exceções, vigorou um maior silenciamento no que tange a artigos e teses dedicadas ao autor. Essa produção local contrasta com sua inserção latino-americana e a internacionalização, tradução e difusão de seus métodos no Ocidente e no Oriente.

Primeira tentativa de pesquisa no GT de Dramaturgia

Em reunião do Grupo de Trabalho em Dramaturgia e Teatro da ANPOLL – Associação Nacional de Pesquisa em Letras e Linguística -, formado por pesquisadores, no ano de 2007, houve a primeira tentativa de obter respostas sobre esse ambiente de inércia ao sistema de Boal no Brasil. De duas dezenas de docentes7 a quem foi entregue um questionário, houve tão pequeno o número de envio das respostas (três) que optamos pela desistência de uma indagação formal, quantitativa, sem, contudo, deixarmos de aproveitar alguns dados. Neste sentido, vale a pena explicitar que a perspectiva em torno do silêncio ao redor de Augusto Boal pertence ao campo da especulação que a provisoriedade do gênero ensaio permite experimentar. Também é fato que, no cenário brasileiro, após o falecimento de Boal, em maio de 2009, houve uma mudança em sua recepção. O número de teses e estudos produzidos desde

5 Em pesquisa realizada nas páginas da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia apontaram oito (8) títulos sobre Augusto Boal Teatro do Oprimido com a maior parte dos títulos após o ano 2000, assim como sobre Teses e Dissertações no site da USP indicaram mais dois títulos nos anos de 1999 e 2006. 6 Em entrevista de Douglas Leal, ao ser indagado sobre o exílio, Boal confirma: Boal – Por causa do exílio e por causa de certa resistência que houve em meios acadêmicos inclusive, e continua havendo. É besteira deles porque é uma coisa que existe, tem que abrir os olhos pra ver que existe. Entrevista realizada em 15/10/2007. www.questaodecritica.com.br/author/douglas-leal acessado no dia 10 de julho de 2011. 7 Em anexo, publico o conteúdo da pesquisa de 2006. 21 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

então podem confirmar isso. Entretanto, nos limites da produção do ocultamento que pretende refletir sobre a invisibilidade de Boal será necessário rever certos paradigmas com que se analisou a contribuição desse autor nos meios acadêmicos brasileiros e discutir também o alcance de sua obra no século XXI. O que motivaria essa espécie de rejeição velada? Na tentativa de esclarecer alguns pontos, contextualizar, minimamente, a trajetória de Augusto Boal pode ajudar a esclarecer alguns pontos a serem recordados. Na esteira de Paulo Freire com a pedagogia do oprimido, Augusto Boal funda um modo de ver o teatro moldado no contexto latino-americano. Meio século depois, recordamos não apenas as célebres montagens de Arena conta Zumbi (1965), ou Arena conta Tiradentes (1967) que eram conduzidas pela música (espécie de Broadway engajada?), demonstrando como, mesmo após o golpe militar de 1964, em lugar de ceder a uma nova conjuntura política, constituía-se um dos cenários culturais de resistência dos grandes centros urbanos. A sutileza do musical em ritmo de percussão, herança da palavra cantada de uma oralidade afrodescendente, usada para levantar a memória da escravidão ou do colonialismo, testava pela primeira vez o sistema coringa, criado por Boal à luz da proposta épica brechtiana que sobrepunha a narrativa à atuação, a fim de ativar a reflexão do espectador e criar a distância da catarse. Ao lado dessa dramaturgia transformadora, testemunhamos a prática das primeiras oficinas de teatro Jornal, que, realizadas no Teatro São Pedro, sob organização de Celso Frateschi, multiplicava a grupos amadores da periferia de São Paulo a experiência dramatúrgica do sistema Boal, No início dos anos 70, no bairro do Campo Limpo formávamos com estudantes do GECALI (Ginasio Estadual do Campo Limpo), escola extinta logo depois. A partir da aprendizagem dramatúrgica, com a escrita das peças pelo próprio elenco, partíamos para apresentá-las em diferentes paróquias (CEBs) da região. Padre Jaime, irlandês e um de nossos parceiros nas apresentações de obras teatrais, tornou-se hoje uma das eminências na questão de Direitos Humanos da Zona Sul. De 1956 a 1971, Augusto Boal esteve à frente do Teatro de Arena, formando um acervo teatral digno de ser registrado e comentado em cursos de Artes Cênicas, como parte da trajetória da arte nos limites geopolíticos e sob circunstâncias que não podiam cair no esquecimento. 22 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

É certo que, no século XXI, tem crescido as pesquisas sobre a obra de Boal, no entanto, parece que ainda persistem rechaços velados em algumas universidades que não chegaram a realizar a memória das transformações do teatro e de seu público no Brasil, a fim de verificar como a proposta de Augusto Boal atendeu e cumpriu com os anseios de uma juventude que necessitava contestar o status quo, os rumos sociais e políticos e que lutava contra tudo que rompesse com a lógica que fatiava o mundo em dois universos estanques, entre outros, o da Guerra Fria. No rastro da Revolução Cubana, a década de 60 também compreendia a possibilidade da utopia e não só a literatura latino-americana; como “la Nueva Canción Chilena”; a MPB, o cinema, como o Teatro Arena, o Oficina, e com uma nova estética, a própria Tropicália foram os pilares de uma arte que empunhava suas bandeiras. A peça Revolução na América do Sul (1960), de Augusto Boal, sob a direção de José Renato, estava diretamente vinculada ao imaginário da época e evidenciava uma grande transformação na dramaturgia pela busca do farsesco e a diluição do realismo cujo conflito se armava ao redor de um protagonista. Contra possíveis críticas ao engajamento político da obra, Boal preventivamente escrevia:

há tempos, um crítico afirmou que não se deve meter política em teatro. Essa resistência ao tema proibido jamais teve razão. Teatro não é forma pura, portanto, é necessário meter alguma coisa em teatro, quer seja política ou simples história de amor, psicologia ou indagação metafísica. E se política é tão bom material como qualquer outro. (BOAL, 1960,p. 6)

Essa obra de Boal criticada como a que deixa em segundo plano a estética, não deixou de representar um pioneirismo no campo brechtiano do teatro brasileiro e um marco no rumo tomado pela busca e atração de um público estudantil, sequioso de reflexões sobre a atuação intelectual naquele tempo e lugar. Houve o início da convergência entre os anseios de participação da juventude nos destinos nacionais e o foco vivo da arte dramática em situação de opressão. A proliferação de um tipo de engajamento político nacional, popular e democrático que nascia com o Centro Popular de Cultura – CPC, criado em 1961, no Rio de Janeiro a partir da conexão com o movimento estudantil, arregimentava setores da música, artes plásticas, teatro, literatura e cinema para conscientizar as massas em portas de fábrica, favelas e sindicatos. De modo paternalista e

23 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

militante essa fulguração marxista construía, nos anos 60, um discurso utópico do qual se nutriram muitos grupos de teatro, dentre eles o Teatro de Arena. Em meio a essa vinculação da arte com a política, um fragmento da entrevista de Augusto Boal ao jornal O Estado de São Paulo serve para constatar o rumo que o Arena havia tomado para tentar sanar:

[...] a falta de comunicação de muitas das nossas montagens: o teatro lá, e o público cá.Várias tentativas tem sido feitas para restabelecer o teatro de autoria brasileira – não somente o teatro do dramaturgo brasileiro – o espetáculo do homem do teatro brasileiro. (BOAL, 13/04/1964, p.11)

Ao lado de alguns outros grupos de intenso labor no Brasil, redirecionava-se o mapa de uma dramaturgia em busca de autores locais que se transformava com uma dramaturgia, atuação e direção renovadoras. Sem ter consciência do nacionalismo que a proposta carregava, há resquícios de que este discurso de Boal estivesse ligado a um imaginário da década de 50, permeado pela busca de uma economia centralizada na indústria brasileira, um dos eixos da política do governo de Juscelino Kubischeck. Essa sobrecarga política diante dos recursos estéticos não impedia que mesmo crítico, Décio de Almeida Prado reconhecesse, em 1988, na obra O teatro brasileiro moderno que o Teatro de Arena significou, nos anos 60, uma profunda transformação estética no Brasil. A busca de um público universitário e não só o de elite, forjava um pensamento crítico como estimulava um palco circular, em forma de arena para o embate, atuação e a aproximação de sujeitos que experimentavam, coletivamente, uma outra estrutura de sentimento. À distância cabe ler que a década de 60 torna-se, de fato, um ponto de inflexão do teatro no Brasil com a formação de um novo público e sua ampliação rumo á democratização da arte cênica que convive com os riscos que tal visão acarreta na dramaturgia daquele tempo em particular. As novas experiências de preparação do ator (com Stanislawski e a criação de jogos); o despojamento da cena e a proximidade do espectador, aliava-se a um engajamento político que concebia a cultura sob o prisma da agit prop que o modelo nacional–popular disseminava, levando Boal a conceber espetáculos muito diferentes dos comerciais. 24 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Tal proposta absorve o desejo estudantil de participação política e demonstra como o teatro oferecia um crescente confronto com a ditadura que ia tecendo sua rede de medidas entre 1964 a 1968, com o Ato Institucional no. 5 de modo a atingir, visceralmente, as práticas culturais com a censura. As perseguições e constantes formas de pressão acabam desterrando o grupo Opinião e expulsando os melhores quadros da arte brasileira: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Augusto Boal, entre tantos outros artistas. Assimilando o enfoque de Sara Rojo (UFMG) em sua resposta à pesquisa sobre a contribuição de Boal: “na linha do teatro político (Piscator, Brecht, etc.) é o maior metodólogo do teatro latino-americano” (2006).8 Com o distanciamento dos fatos, em mais de meio século, e com os mecanismos virtuais e eletrônicos, seria possível redimensionar a contribuição de Boal, fora dessa conjuntura de leitura circunstancial de uma dramaturgia, e, para além do messianismo das doutrinas hegelianas de classes que, de certa forma, relegava a um segundo plano outras exclusões de gênero e etnia, o que o faz repensar mais tarde. A eficácia do sistema de Augusto Boal é que, de fato, seu legado penetra no campo das epistemes do drama e adverte para um novo rumo metodológico a oferecer uma imaginação fundadora para o teatro ao resto do mundo e desse ponto do planeta - América Latina - com suas contingências e situações concretas. Como seria possível para um curso de Artes Cênicas deixar de esmiuçar a trajetória de tantas descobertas técnicas e metodológicas? É por considerar que nossa experiência atual na dramaturgia de cenas breves na periferia de São Paulo ao partir da técnica do teatro jornal se constitui em um dos focos desse ensaio que cabe agora entender como a obra de Augusto Boal potencializa uma atuação viva da arte diante da complexidade da realidade global na atualidade.

Marcas de contemporaneidade: Poesia na Carne

No início dos anos 70, o estudante que era mecânico de máquinas de escrever conhece a professora, em início de carreira, no Campo Limpo. Nasce daí o Grupo de Teatro Semente que se apresentava nas igrejas (CEB) no auge dos anos de chumbo. Em 1975, ela é presa e se

8 Pesquisa realizada por Alai Garcia Diniz com os participantes do Grupo de Trabalho Dramaturgia e Teatro durante o XXII Encontro da ANPOLL, realizado em na PUC/São Paulo, ANPOLL (2006) . 25 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

auto exila, voa longe. O estudante vira ator, poeta, dramaturgo e no início do século XXI cria o Sarau da COOPERIFA no Taboão com outros poetas. A repressão abortou o teatro há quarenta anos, mas não a parceria... intacta que aqui rola até hoje pra criar as cenas breves de Poesia na Carne. Entre a macro e a micropolítica, a peça em quatro cenas, celebra um reencontro que não se esgota no desejo de refletir, mas propõe a criação de uma poética que reclama a tática do Teatro Jornal (Boal) na estética de cenas breves que mapeiam a política( “Propinocracia”); a credulidade (“Pastoreio”), a corrupção (“Loa da Salsicha”), a carência de ética (“Sobreviventes”) que vão golpeando o cotidiano na contemporaneidade. Agitadores culturais da periferia, somos e vemos os saraus como ferramentas importantes quanto ao incentivo à leitura, à literatura e à oralidade. Lançados à prática, os escândalos políticos se alternam em manchetes diárias da mídia e nos chamam atenção. Optamos por escrever cenas breves. Escolhido o tema, em forma de laboratório, das matérias jornalísticas aproveitamos o léxico peculiar para a criação dramatúrgica. Uma frase puxa a outra, entre conflitos, acertos e discordâncias, a dramaturgia foi se compondo através de ensaios. O fato de trabalharmos juntos facilitou o processo mnemônico e a montagem dos quadros, a representação foi um exercício cotidiano. Tivemos como preocupação que o tempo de cada cena não excedesse a três minutos. “Loa da salsinha” é a primeira cena. É melódico e os versos vão sendo trabalhados simultaneamente, lembrando que a “loa” é um dos gêneros do teatro clássico espanhol que introduzia as apresentações nos corrales: o espaço dedicado ao teatro. No espetáculo do século XVI/ XVII havia a loa, sátira musical, também os entremeses em prosa e os atos da comédia, em geral em versos. A nossa “loa” tem como pano de fundo o escândalo da carne podre que fez parte do noticiário brasileiro em maio de 2017 sobre a má qualidade de gêneros alimentícios de frigoríficos que adulteravam os embutidos e acabaram por trazer desconfiança à exportação para o mercado internacional. “Propinocracia” atraiu nossa atenção pela novidade lexical (neologismos) e o embalo na criação de dois personagens corruptos. “Pastoreio” teve como fonte a fala de um pastor nordestino. A gravação do áudio circulou pelas redes sociais, ao estimular a mulher a ofertar seu carro à igreja, como modo

26 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

dela alcançar bens materiais. Trabalhamos o discurso teatralmente, mantendo frases e intenções, mas acrescentamos uma personagem feminina para que a cena fosse um diálogo. Na cena “Sobreviventes” procuramos um viés autobiográfico, aproveitando um assalto que, de fato, sofremos e que daria à sequência de cenas um componente testemunhal na linha da micropolítica. O encerramento com o poema de Marco Pezão “Briga de casal” foi o fecho da performance a fim de testar como a voz dialógica transforma outros gêneros literários em drama. Duas subjetividades que escolhem uma vereda de indignação por crerem ainda na partilha do sensível que o teatro instantâneo pode oferecer no aqui-e-agora do sarau que é parte da literatura periférica. Esse movimento que nasce ao redor da cidade implica entender uma faceta literária que adota a oralidade e o encontro como parte de uma cena lírica da carência de direitos e, além de reclamá-los ao poder, esmurra a porta da cultura pra inventar um outro saber, um gênero que transgride a escritura, não para aboli-la, mas para projetar a potencialidade da voz, das vozes e dos corpos que na precariedade do entorno cobram ação, estimulam o pertencimento à comunidade, democratizam a cultura letrada no ato de construir uma subjetividade semeada na resistência. E aí cabe a digressão. Giorgio Agamben quando esteve em Florianópolis, em 2009, não estava interessado nas quarenta e duas praias da ilha da Magia, mas sim em subir o morro da Caixa pra conhecer o cotidiano de uma comunidade. Preocupado com a vida nua, o morro pra ele exemplificaria um novo tipo de campo de concentração. Seria a periferia um modo de naturalizar um espaço de vulnerabilidade social calcada na violência e na carência de direitos? É contra os dispositivos de alienação que o sarau prolifera no âmago da fala, da presença e adota o corpo como seu suporte principal. Daí surgem editoriais independentes, livros em cartonera, em formatos artesanais e nesse contexto cobra sentido a cena breve. Um gênero que permite o diálogo, o hic et nunc do deboche diante da macropolítica. E aqui nos reportamos a um dos ensaios de Agamben “O que é um dispositivo” pra justificar esse ligeiro deslocamento entre o mundo profano e o messiânico, a fim de converter essa nossa busca, não em uma nostalgia, mas em um novo modo de encarar esse momento como parte de dispositivos que sujeitam indivíduos, ao mesmo tempo que os “dessubjetivam”. Uma máquina de poder que não adota mais os métodos tradicionais como os da prisão, da 27 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

escola, a confissão. Com celulares, TV, câmeras de controle e internet, cria-se, não um sujeito real, mas “espectral”. (AGAMBEN, 2009,p.13).

Considerações Finais

Com o projeto “Do Campo Limpo ao Sintético: Poesia sem Miséria”, coordenado por Marco Pezão, contemplado pela primeira edição da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, junto à tarefa de dar visibilidade ao campo da várzea, como parte de uma cultura da periferia e único espaço de lazer local, regido pela comunidade, profano, ainda machista com a motivação de incluir nele a pauta de gênero, da diversidade. Com ações diversificadas neste espaço comunitário o interesse é atuar para que o campo da várzea torne-se também um “campo de arte”. No entanto, a tarefa a que nos propomos não é nada fácil, a de formar um público para teatro e para isso cabe lembrar que, no dia 03 de setembro, as tais cenas breves foram testadas no campo, em dia de final de campeonato. Se não atraíram pouca atenção, pelo menos, para muitos parecia que um teatro ali fosse motivo de constrangimento a muitos que tinham ido lá para ver futebol. Invadimos o espaço dedicado a outro lazer? Entretanto, não houve dificuldade em conseguir que baixassem o som do funk que rolava no bar do campo, mas quando um dos times fez um gol, ninguém conseguia nos ouvir... Abortamos a última cena breve, é claro. De fato, ainda assim houve quem nos felicitou e até recebemos um convite para reapresentar Poesia na Carne no dia das Crianças, o que acabamos aceitando, não para reapresentar a peça, mas para uma oficina de poesia com um público infantil. Cabe relatar que o inusitado aconteceu porque, graças a essa manhã fatídica no Centro Desportivo Comunitário Uleromã do Inocoop que Fernando Solidade Soares nos convidou para a primeira interface entre a cena breve e o audiovisual, ao dirigir “Propinocracia” em formato de curtametragem. Esta produção realizada para a FELIZS – Feira Literária da Zona Sul ganhou asas.9 Do teatro ao cinema, através da intermidialidade que possibilita no meio audiovisual um maior alcance para o nosso canto, em linguagem cinematográfica alcançamos dez mil

9 O curta metragem teve mais de dez mil visitas no site. 28 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

espectadores. A cultura audiovisual unida ao teatro como roteiro possui seu público, mas ainda há carência de formação de público para fruir da arte teatral. A questão entre a presença e os meios tecnológicos que propiciam a virtualidade do audiovisual ainda exerce sobre nós um enigma a ser descoberto. Segue o desafio de levar a arte ao campo. Entre algumas tentativas houve a frustração já que o jogo rolava enquanto apresentávamos ao lado, próximo aos torcedores que, em lugar de olhar a cena, se apegavam ao celular como se estivessem constrangidos pela nossa performance. E para concluir, vale a pena recordar a Alain Badiou que em uma de suas conferências sobre “Verdade e sujeito” entende este último não como um ser, uma origem, um sentido, mas como um ponto de verdade (p. 44). Verdade para o filósofo francês se diferencia de saber por sua novidade. Aquilo que Boal chegou a denominar como pedagogia. Hegel diz que a verdade é um percurso. Boal é, pois, o construtor de uma pedagogia dramática, de um ponto de verdade que interrompe a repetição no teatro e forja um modo aberto de criar grupos, formar atores e relacionar o fazer teatral com seu contexto e cujo evento indica uma aposta que começa com uma decisão de dizer. (BADIOU, 1994, p. 46) O que Boal não explicita é que sua opção também era a de militante. Opunha-se ao campo inimigo do velho teatro e rejeitava o teatro tradicional ao abrir-se a outros espaços como prisões. Semelhante ao que Maiakovski tentou em vida, a Boal coube deixar o habitat comum do teatro (o palco, mesmo em forma de arena), abolia a facilidade do reconhecimento do evento e saía para buscar o público no espaço particular da fábrica, do ônibus ou do bairro. Na periferia de hoje, experimentamos ir ao CDC, a esse espaço que com todos os percalços, ainda se constitui em resistência, mesmo com todas as agruras que também existem ali, por que não ampliar seu usufruto, abrindo-o a um campo de arte? Hoje, o sistema de Boal lança uma luz para uma genealogia do teatro que transgride o palco, cria a interação entre ator e não ator, transita entre linguagens e mídias, entre a irrealidade do cotidiano e a realidade da imaginação, faz do jornal uma fonte da arte que debocha do absurdo que é viver sob o escândalo de golpes sucessivos que boicotam nossos direitos e na tentativa de pensar porque existimos e não escorraçamos esse poder ilegítimo,

29 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

sobrevivemos com o ato de pensar simbolicamente o presente. Isso Boal tira de letra com sua resistência de uma arte do (a) oprimido(a).

Referências

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31 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

A Pesquisa em Literatura Dramática Contemporânea: Breve Análise da Peça Música Para Cortar os Pulsos, de Rafael Gomes

Mario Celso Pereira Junior (UFPel)10 Fernanda Vieira Fernandes (UFPel)11

Resumo: Este trabalho tem como objeto de estudo a peça Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis (2010), do dramaturgo brasileiro Rafael Gomes. O texto dramático apresenta os universos particulares de três jovens personagens e a ciranda de relações amorosas vividas por elas. O interesse pela referida obra despontou a partir da participação do autor deste artigo como colaborador no projeto de pesquisa “Leituras do drama contemporâneo”, da Universidade Federal de Pelotas, coordenado pela Prof.ª Dra. Fernanda Vieira Fernandes. Em 2016, o grupo analisou aspectos do texto de Gomes e propôs uma leitura dramática do mesmo. O artigo visa apresentar uma breve análise da peça a partir dos seguintes pontos: estrutura geral, tempo/espaço, linha de ação, personagens e conflito. No primeiro momento, serão fornecidas informações sobre o projeto desenvolvido na UFPel, o dramaturgo e a obra. Na sequência, o trabalho dedicar-se-á ao estudo dramatúrgico da peça utilizando como principais referenciais Jean-Pierre Ryngaert (1998), Jean-Pierre Sarrazac (2012), Renata Pallottini (2013) e Massaud Moisés (2012). Por fim, lançar-se-á uma reflexão inicial a partir da investigação realizada na pesquisa sobre os aspectos da escrita dramática contemporânea verificados em Música para cortar os pulsos.

Palavras-chave: dramaturgia contemporânea; análise dramatúrgica; Rafael Gomes; Música para cortar os pulsos.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar uma breve análise da peça Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis, de Rafael Gomes. O interesse em analisar a obra surgiu em 2016, durante um dos ciclos de estudo do projeto “Leituras do drama contemporâneo”, do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). O grupo, no qual o autor deste artigo participa como colaborador, é coordenado pela Prof.ª Dra. Fernanda Vieira Fernandes e constituído atualmente por cinco estudantes de fases distintas do curso, dos quais duas são bolsistas de iniciação científica.

10 Discente do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); [email protected]. 11 Professora Doutora do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); orientadora; [email protected]. 32 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Inicialmente, serão exibidas as informações centrais do projeto, tais como seu objetivo e os seus mecanismos de funcionamento, seguido das informações sobre o dramaturgo e a obra. Logo após, o artigo dedicar-se-á ao estudo dramatúrgico da peça a partir dos seguintes pontos: estrutura geral, tempo/espaço, linha de ação, personagens (como são construídos, suas características, seu comportamento, o que dizem sobre si e o que dizem sobre elas) e conflito, utilizando como modelo uma das propostas de análises apresentadas por Renata Pallottini (2013). Será utilizado também como referencial teórico Jean-Pierre Ryngaert (1998), Jean- Pierre Sarrazac (2012) e Massaud Moisés (2012). À guisa de conclusão, propõe-se uma reflexão inicial acerca das características e aspectos da escrita contemporânea de textos dramáticos, observadas em Música para cortar os pulsos.

Do projeto “Leituras do drama contemporâneo” à obra de Rafael Gomes

O projeto de pesquisa “Leituras do drama contemporâneo” foi criado pela supracitada professora no segundo semestre de 2015 e cadastrado em abril de 2016 na UFPel, e é vinculado ao Grupo de Estudos da Plataforma CNPq chamado “Teatro: Histórias e Dramaturgias” (GETEHD). O objetivo da pesquisa é estudar textos dramáticos escritos a partir do final do século XX, estendendo-se até os dias atuais. A ideia é expandir a visão dos colaboradores a respeito das produções da literatura dramática contemporânea, bem como, identificar suas poéticas e suas peculiaridades. A criação do grupo surgiu a partir de um diagnóstico realizado pela coordenadora, quanto à proximidade do estudante de teatro com as obras e autores contemporâneos. Ela observou que a maioria dos discentes chegava ao final do curso tendo lido poucos escritores de peças produzidas atualmente, visto que, durante a graduação, a maior parte do escopo de dramaturgias estudadas foram escritas antes da metade do século XX. Com isso, o projeto “é visto como uma oportunidade de aproximar os estudantes da literatura dramática” (FERNANDES, 2016, p. 3). O trabalho é dividido em três eixos principais: o primeiro é a leitura e estudo de textos teóricos, que servem como base para a pesquisa das características e especificidade das peças teatrais contemporâneas. São realizados também estudos sobre a prática de leitura compartilhada, mais especificamente sobre leitura dramática, auxiliando o entendimento do 33 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

terceiro eixo do trabalho. A segunda parte, é relativa à prática de análise de dramaturgias. Para tanto, o grupo escolhe um dramaturgo (elencado previamente pela coordenadora e as bolsistas), juntamente com uma peça do mesmo, que servirá como objeto de pesquisa, esmiuçando suas linhas e entrelinhas, observando suas peculiaridades e traçando paralelos com a parte teórica já mencionada. Por fim, no terceiro eixo de ação, é realizado ao final de cada ciclo de estudo uma leitura dramática pública, a fim de compartilhar a peça estudada pelo grupo, ampliando assim o horizonte de receptores da obra. Conforme menciona Fernandes (2016), atinge-se desta maneira diretamente aqueles que participam como colaboradores da pesquisa, mantendo também a relação com textos teóricos, e, indiretamente, aqueles que prestigiam como espectadores das sessões. Ao final de cada encontro de leitura, é proposto uma roda de debate, com o propósito de dividir com todos os presentes as investigações elaboradas pelo pequeno coletivo, contribuindo desta forma com a recepção simbólica por parte dos ouvintes. Um dos autores estudados pelo projeto foi o dramaturgo e diretor Rafael Gomes. Paulista, formado em cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado, roteirizou e dirigiu diversos curtas-metragens, ganhando vários prêmios e tendo exibições fora do país. Um dos seus trabalhos mais conhecidos é o curta-metragem Tapa na pantera (2006), que fez muito sucesso na internet, recebendo milhões de visualizações. Também trabalha como roteirista e diretor para seriados e programas de televisão. No teatro, teve sua estreia como diretor e escritor na peça Música para cortar os pulsos, ganhando o prêmio de melhor peça jovem em 2010, pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). A escolha da obra se deu pelo contato que a coordenadora do projeto de pesquisa teve com a mesma durante uma apresentação em Porto Alegre, no ano de 2012. Soma-se a isso o fato de ser uma escrita voltada para o público jovem, atendendo assim uma faixa etária de espectadores que geralmente não é atingida como foco central. O número de produção de peças direcionadas para os adolescentes é bem menor se comparada às escritas para adultos e crianças. O grupo debruçou-se nos estudos do texto, realizando posteriormente uma leitura dramática seguida de um bate-papo, em setembro de 2016. Foi nessa ocasião que o discente autor do artigo teve contato com a escrita do dramaturgo. Música para cortar os pulsos conta com um mecanismo de escrita muito bem elaborado, que apresenta como recurso dramático trechos de músicas para expressar os 34 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

pensamentos, desejos e sentimentos das personagens. A estreia da montagem, ocorreu no SESC Pinheiros em São Paulo, em 7 de outubro de 2010, com direção e criação textual de Rafael Gomes e encenada pela Cia. Empório de Teatro Sortido. O texto apresenta os universos particulares de três jovens e a ciranda de relações amorosas vividas por elas.

Breve análise do texto Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis

Este trabalho, como explicitado anteriormente, prevê um estudo inicial da obra de Gomes, utilizando como principal referencial teórico de modelo de análise Renata Pallottini (2013). Serão considerados em especial o universo em que se passa o enredo, a linha dramática, as personagens e os conflitos que permeiam o texto. É relevante ressaltar que a análise em determinados momentos ultrapassa o texto escrito, já que considera algumas possíveis maneiras de encenações se levadas ao palco. Conforme Massaud Moisés (2012), a peça de teatro se encontra entre o campo literário e o teatral, no primeiro ao aderir à palavra como um meio de comunicação e, no segundo, ao extrapolar a folha de papel quando expressa no palco. É importante frisar que o estudo deste trabalho se detém majoritariamente nas palavras escritas, ou seja, nas características encontradas na obra literária propriamente dita, entretanto

[...] ocorre que a análise de tais aspectos literários atingirá determinado ponto, para além do qual já estaremos invadindo o plano da representação, ou seja, da peça encenada. Nesse caso, teríamos de avaliar o texto em sua representabilidade, sua teatralidade ou sua probabilidade como espetáculo. (MOISÉS, 2012, p. 243)

O universo da peça: tempo/espaço

A peça se passa no tempo titulado pelo autor como “O presente”, e logo após é ressaltado que corresponde à encenação de estreia. Com isso, Gomes demonstra que situa a ação temporal em sua contemporaneidade. No entanto, os fatos ocorridos durante todo o enredo mencionam acontecimentos anteriores, visto que no ‘presente’ as personagens relatam episódios ocorridos no passado, como alguém contando o que houve em uma determinada

35 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

época, ou seja, narrando a sua história de vida. Há também a passagem de tempo dos quadros, como por exemplo: no início da peça, nas duas primeiras cenas, quando as personagens narram o primeiro contato que tiveram com suas paixões e, no final, o momento em que tudo já tinha se transformado em uma confusão de sentimentos entrelaçados. O espaço de ação não é definido por Gomes, embora seja possível identificar uma espécie de espaço de confissão, como se todas as personagens estivessem em um mesmo lugar, separadas por algo que as impede de ouvir a outra, embora consiga olhar, ou imaginar a pessoa com quem deseja falar. O contato direto com o leitor, ou com a plateia, é de grande ênfase. Aquele que lê (ou assiste) é colocado no lugar de personagem ouvinte, como um cúmplice disposto a escutar todos os lamentos. Essas confissões explanam sobre os casos amorosos de cada personagem, seus medos, suas angústias, seus fracassos e desilusões amorosas, envolvendo o leitor/espectador, que se identifica com aqueles amores de cortar os pulsos. Aparecem também durante as narrações citações de espaços onde ocorreram os encontros, como a escola (primeiro lugar de encontro entre elas), a casa das personagens, festas, um concerto de ópera, uma livraria, o carro do Felipe (uma das personagens), entre outros lugares que demonstram um pouco do cotidiano de um jovem urbano de classe média.

Linha de ação dramática

A ação principal da obra está nessa confissão das personagens, desde o momento em que iniciam suas histórias até o grande nó do triângulo amoroso, desenrolando para um final aberto a interpretações. O texto está dividido em dez cenas curtas, que recebem um nome a partir de estágios dos encontros amorosos, como se a cada cena o título contasse fases que podem ocorrer no desenrolar das paixões: Nomes, Palavras, Sentimentos, Gestos etc. As cenas podem funcionar como quadros, ou seja, isoladamente, entretanto elas estão encadeadas da melhor maneira possível, com o propósito de construir uma linha dramática.

As jovens personagens

36 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Música para cortar os pulsos conta com três personagens adolescentes – Isabela, Felipe e Ricardo –, todas protagonistas e as únicas que aparecem em cena. Além delas, outras duas participam de forma indireta no enredo, envolvidas nos conflitos amorosos: Gabriel (o ex-namorado de Isabela) e Arthur (namorado de Ricardo). Estas últimas não serão analisadas aqui por não se tratarem de personagens centrais. Isabela se apresenta inicialmente desiludida por ter sido abandonada pelo ex-namorado e parece decidida a não amar mais ninguém (p. 21).12 Suas outras características são informadas pelas personagens restantes, como por exemplo: Felipe comenta que a Isabela é uma garota pequena, eloquente, cheia de vida, sorridente, pensativa, inteligente, decidida e crê que ela seja organizada em relação a seus sentimentos (p. 22-23). Ricardo diz que ela é seu farol, sua melhor amiga, aquela pessoa que consegue confortar e acalmar as pessoas (p. 61- 63). Também pode se observar através das falas da personagem que ela é uma pessoa que vive remoendo suas dores por conta do término do namoro, que fica reforçando para si mesma que o que aconteceu é passado e que a vida continua, mas acaba sendo somente um disfarce do que ela realmente sente. Felipe é um rapaz heterossexual, tímido, que se encontra a princípio com medo de ficar sozinho, temeroso de não amar alguém de verdade. Ele se apresenta como um garoto popular, cheio de amigos e garotas bonitas ao seu redor, pelas quais ele se sente atraído, porém não consegue desenvolver um sentimento profundo por elas, como se as suas emoções e envolvimentos com as outras jovens não fossem verdadeiros. Ele faz uma comparação com um dublê de filme de ação:

Funciona assim: eu sou o galã, o personagem principal da minha vida. Eu falo o texto do jeito certo, sou verdadeiro, carismático, razoavelmente inteligente e sedutor – na verdade, eu sou tímido, mas é incrível como as pessoas se sentem atraídas por isso. Só que nas sequencias de perigo sentimental, o menor que seja, eu mando chamar meu dublê. Quem vê o filme pensa que sou eu mesmo ali, vivendo aquilo. Mas eu sei que não. (p. 15)

12 A edição de referência é: GOMES, Rafael. Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis. São Paulo: Leya, 2012. Salvo indicação contrária, as citações à referida peça foram retiradas desta edição e serão indicadas apenas pelo número de suas páginas, entre parênteses. 37 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Felipe fala ainda que não é uma pessoa que se apaixona rápido, no entanto, tudo isso é descartado quando ele beija Isabela pela primeira vez, porque logo no dia seguinte sente-se apaixonado por ela. Passava o dia pensando nela (p. 25), planejando a vida juntos (p. 33) e imaginando o que ela estaria fazendo durante o dia todo (p. 39-41). Ricardo relata que Felipe é apaixonante (p.14), um doce de pessoa (p. 29), especial e carinhoso (p. 50-51). Isabela diz que ele é envolvente, sexy (p. 53), um fofo, cavalheiro, um amor de pessoa, além de sensível e sensato (p. 55). Observando as falas da própria personagem, é possível analisar que no começo da peça Felipe é decidido naquilo que faz, pensa e sente, todavia, com o passar do tempo, ele vai demonstrando ser um rapaz em processo de descoberta dos seus sentimentos e gostos, posto que mais para o final da trama as falas dele se mostram confusas, não sabendo exatamente o que ele realmente pensa sobre o amor e as relações, questionando até a sua orientação sexual: “Eu fico pensando nele e ele é um homem, entende? Ele tem corpo de homem e cara de homem e cheiro de homem e boca de homem e bigode... Eu sou um homem e ele é um homem e isso é... estranho?” (p. 59). Ricardo é um rapaz homossexual, que acredita que cada pessoa pode ocupar um espaço diferente no seu coração, abrindo a possibilidade de amar diversas pessoas ao mesmo tempo. Ele se denomina fraco para as pessoas apaixonantes, e confessa se envolver facilmente (p. 14-15). Ricardo conta ao espectador/leitor que namorava com Arthur há dois anos quando conheceu e se encantou com Felipe, contudo seguiu gostando também de seu namorado, e compara, neste caso, os amores com os meios de transportes, cada um com seu espaço: “a água para os barcos, o céu para os aviões, as estradas para os carros” (p.15). Porém, este argumento que ele tenta sustentar já não é válido quando o amor dele por Felipe toma uma proporção muito grande, a ponto de ele terminar com Arthur, mesmo sabendo que seu novo amor é heterossexual e a chance de eles ficarem juntos era ínfima. Felipe comenta que Ricardo é seu melhor amigo, aquele mais próximo, que se sente bem ao seu lado, formando uma dupla em que tudo faz sentido (p. 46). Isabela relata que Ricardo seria o seu par perfeito se ele não fosse gay, mas de qualquer forma o amor entre eles não diminui por esse fato (p. 57). Embora ele diga que se apaixona facilmente, as falas da personagem demonstram que Ricardo é um rapaz muito romântico, daqueles que mandam textos, mensagens, cartões de amor e demonstra seus carinhos e afetos.

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Conflitos

A história deste triângulo amoroso dispõe como conflito principal a descoberta juvenil do amor (para eles, verdadeiro e único) e suas complicações, os entraves e, até mesmo, as desilusões amorosas, capazes de deixarem qualquer pessoa em um estado de desalento. Aquele momento em que tudo que está escrito nas músicas mais tristes faz todo o sentido, por isso o título Música para cortar os pulsos. O autor do texto faz menção a esse sentimento ao colocar como subtítulo da obra justamente monólogos sentimentais para corações juvenis, ou seja, a peça destina-se a todos que já tiveram ou ainda mantém o seu coração jovem, capaz de se perder em meio ao caos dos amores intensos. Partindo do conflito principal, a dramaturgia ainda traz o conflito interno de cada personagem. Isabela, após ter seu coração partido pelo Gabriel, fica remoendo as suas dores mais intensas e tenta convencer-se de que precisa recomeçar, buscando alternativas para desviar o seu foco para um outro alguém. Entretanto, no final, o seu ex-namorado continua presente em suas recordações e é possível fazer a leitura de que ela não tenha superado o término deste relacionamento. Felipe, que no começo se sente com medo de nunca se apaixonar por ninguém de verdade, pensa ter encontrado em Isabela a sua paixão tão esperada. Ao fim, percebe que sua expectativa foi maior do que a dimensão real do seu sentimento, e tudo aquilo que estava fervilhando em seus pensamentos, acaba esfriando. Nesse momento de desilusão, a notícia de que seu melhor amigo, Ricardo, é apaixonado por ele o pega desprevenido. Esse fato deixa a personagem reflexiva e questionadora sobre sua sexualidade e com receio de se deixar atrair por outro homem e dar uma oportunidade para esse amor que ele nunca experimentou. O conflito entre se arriscar ou recuar o faz tomar uma atitude inesperada no final, quando ele percebe nunca ter dito que amava alguém de verdade: ele decide dizer isto ao amigo e, quem sabe, se permitir o envolvimento amoroso. Ricardo desenvolve seu conflito a partir do momento em que se apaixona por Felipe e tenta acreditar que seria mais uma de suas paixões passageiras, mas, com o passar do tempo, esse sentimento fica incontrolável, levando-o a terminar seu relacionamento anterior e arriscar a chance de comprometer-se com Felipe. Isso cresce de tal forma que, ao ver o amigo beijando Isabela em uma festa, Ricardo confessa o que sente por ele. Depois desse momento, 39 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

ele fica arrasado com tudo o que passou e decide abandonar de vez essa paixão, até que seu interfone toca e o espectador/leitor, que junta as confissões de um e outro, sabe que se trata justamente de Felipe disposto a começar uma nova história.

Considerações finais: alguns aspectos da dramaturgia contemporânea na peça

À guisa de conclusão, o artigo se debruçará em um estudo inicial de alguns aspectos da escrita dramática da atualidade observados na peça Música para cortar os pulsos, durante o processo de pesquisa no projeto “Leituras do drama contemporâneo”. Conforme Jean-Pierre Ryngaert (1998), uma das características tendenciosas entre os dramaturgos contemporâneos é a separação das cenas por fragmentos, recorte de cenas intituladas com nomes, que podem dialogar com o que virá na sequência ou não. O texto de Gomes segue por essa linha, quando ele escolhe arquitetar de uma forma linear, porém recortada e intitulando as cenas, como já abordado anteriormente. Outro aspecto marcante da peça são os monólogos intercalados de várias personagens, mostrando as diversas faces das relações entre elas, elevando o nível de complexidade do texto monologado. Certas obras entrecruzam os monólogos sucessivos de· vários personagens que se encontram, apenas fugidiamente ou até mesmo que nunca se encontram, e cujos eventuais pontos comuns não são dados logo de início. Esses monólogos apresentam pontos de vista múltiplos sobre uma mesma realidade, recebida ou vivida de modos diferentes. O enredo é construído pela ordenação dessas vozes que se entrecortam às vezes de maneira evidente; às vezes os eventuais cruzamentos de dados são deixados à iniciativa do leitor ou do espectador. (RYNGAERT, 1998, p. 94)

Ao mesmo tempo em que essas vozes falam a partir do seu ponto de vista, do seu mundo íntimo, sem qualquer contato direto com a outra, as intercalações desses monólogos, em alguns pontos do tecido dramático, dão a impressão de um diálogo, momento este em que há perguntas e respostas que se complementam, mesmo sabendo que as personagens conversam apenas com o leitor/espectador e consigo mesmas. Desta forma o escritor consegue “expandir o teatro fazendo os monólogos dialogarem” (SARRAZAC, 2012, p. 73).

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O dramaturgo se aventura na sua escrita, colocando trechos e frases de músicas que ele considera “de cortar os pulsos”, com o intuito de expressar os sentimentos, desejos e vontades das personagens. Um recurso que pode ser explorado por meio da fala ou até cantarolado, não havendo no texto, uma indicação de uso dessas canções. Por fim, a peça Música para cortar os pulsos é uma obra instigante, capaz de conduzir o leitor/espectador para o universo amoroso mais íntimo das personagens e proporcionar uma identificação com os sofrimentos, medos e angústias que permeiam os conflitos de cada um: “Este texto existe porque um dia eu senti um amor de cortar os pulsos. Mais de um. Todos nós. A eles eu o dedico.” (p. 7). Rafael Gomes arquitetou cada palavra e cada música com o objetivo de alcançar os corações juvenis e, com maestria, conseguiu atingir o autor deste artigo.

Referências

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A Poética Marginal de Amor, Paixão e Desencanto na Obra de Roberto Parra, no Teatro Popular, La Negra Ester

Patricia V. Cuevas Estivil 13

Resumo: Este artigo propõe uma releitura da peça teatral, cume da arte popular contemporânea chilena, a partir da obra em décimas, do cantor, compositor e poeta popular Roberto Parra Sandoval, La Negra Ester (1971). Nesta obra, o autor relata em versos autobiográficos, uma etapa de sua vida que começa em setembro de 1958, quando é contratado para tocar o violão na orquestra Luces del Puerto, no cabaré Río de Janeiro, no porto de San Antonio, Chile. Ali conhece a Negra Ester, meretriz do porto muito famosa e desejada, que o introduz na marginalidade e no vício pelo corpo desejado. Propõe-se analisar estéticas culturais diferentes que operam uma dessacralização do culto em meio à explosão de uma poética marginal que chega com força e se estabelece na sociedade chilena. A palavra suja, o gesto obsceno e a imagem, estabelecem vínculos entre a poesia popular e a poética do teatro moderno contemporâneo. A peça revela a dor da paixão e desencanto da vida nos prostíbulos, a mercê de outra marginalidade muito mais poderosa, porém, oculta nas convenções sociais estabelecidas pela burguesia chilena de colarinho branco. A linguagem coloquial, revestida de sarcasmo, ironia e humor, se transformam em material de riqueza e complexidade por onde transita o submundo chileno, numa sociedade marcada pela dupla moral.

Palavras-chave: Teatro Popular Chileno; Poética marginal; dessacralização; Roberto Parra.

Abstract: This article proposes a rereading of the play, of contemporary Chilean popular art, La Negra Ester (1971), of the singer, composer and popular poet Roberto Parra Sandoval. In this work, the author reports in autobiographical verses, a stage of his life that begins in September 1958, when he is hired to play the guitar in the Luces del Puerto orchestra, in Rio de Janeiro Cabaret, in the port of San Antonio, Chile. There he meets Negra Ester a prostitute of the port, very famous and desired, who introduces him to marginality and addictions. It is proposed to analyze different cultural aesthetics that operate a desacralization of the cult in the midst of the explosion of a marginal poetic that arrives with strength and establish itself in the Chilean society. The dirty words, the obscene gestures and the image, establish links between popular poetry and the poetics of contemporary modern theater. The play reveals the pain of passion and disenchantment of life in brothels, at the mercy of another, much more powerful marginality, but hidden in the social conventions established by the white-collar Chilean bourgeoisie. The colloquial language, clothed with sarcasm, irony and humor,

13 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu, nível Mestrado e Doutorado em Letras da UNIOESTE, Campus de Cascavel-PR. Orientanda da Professora Dra. Lourdes Kaminski Alves, coorientação da Professora Dra. Paula Miranda, PUC-Chile. 42 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

becomes a material of wealth and complexity where the Chilean underworld transits, in a society marked by the double moral.

Keywords: Popular Chilean Theater; Marginal poetics; desacralization; Roberto Parra.

Introdução A obra La Negra Ester de Roberto Parra Sandoval, será analisada a partir da noção de Poesia Marginal ou Literatura Marginal de Heloísa Buarque de Hollanda, segundo a qual, trata-se de “uma literatura feita pelos sujeitos dessa periferia, com uma grande força literária e com forte impacto político.” A análise tem por base o conceito de “literatura menor”, desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1990), com base na noção de “desterritorialização”. A esta reflexão se junta o conceito de Memória Fraturada, tal como trata Nelly Richard (2007), e estudos da crítica literária e artes cênicas como Andrés Piña (1988) e Maria de la Luz Hurtado (2016). Busca-se destacar a poesia das margens que nos leva a conhecer o interior dessas vidas marginalizadas, a partir de sua própria voz. Para Deleuze e Guattari (1990, p. 13) “La literatura menor, no es la literatura de un idioma menor, sino la literatura que una minoría hace dentro de una lengua mayor. El idioma, en este caso, se ve afectado por un fuerte coeficiente de desterritorialización”, que afeta o enunciado com matizes próprios de um lócus enunciativo mínimo, o qual se desloca rompendo as fronteiras que impõe a língua como norma e como código representante de um grupo hegemônico. O discurso ou o texto artístico é elaborado sem fazer uso dessa língua maior, preservando assim sua integridade. Neste caso, a autobiografia em versos octossílabos fala desde seu lugar mínimo para um palco erudito e letrado hegemônico, buscando recuperar a memória e problematizar a realidade desse grupo, utilizando seus próprios recursos semânticos, literários e discursivos. Nessa modalidade literária, em que o sujeito do enunciado é também enunciação, o que caracteriza a dualidade do texto autobiográfico, as palavras são expressão viva da memória de uma minoria não letrada, ou escassamente letrada, que utiliza a linguagem oral de uma variante social, cheia de gírias e expressões idiomáticas próprias para expressar o caráter ideológico, político e cultural de um cotidiano que só a ele pertence. Neste sentido, a “literatura menor” se transforma em ponto de ataque e resistência diante de uma sociedade

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letrada excludente, a sociedade intelectual das obras de arte canônicas, dos que assistem ao teatro erudito, à academia, como se pode observar neste fragmento: Al puerto de San Antonio Me fui con mucho placer. Conocí a la Negra Ester en casa de Celedonio -era hija del demonio- Donde ella se divertía: su cuerpo al mundo vendía […] La Negra Ester, muy cosquillosa, no aguantaba la barreta; güen chancho, bonitah tetah su carita como rosa. como espiga de orgullosa (PARRA, 1971, p. 13).

Estas primeiras estrofes, escritas em décimas, o autor resiste a utilizar a língua de uma “literatura maior”, mesmo sendo seu destinatário, e começa a descrever o submundo com as palavras que usa o povo na sua cotidianidade, a partir dali onde se desenvolve a trama, sendo que o recurso de escrever em décimas, La Negra Ester, introduz também, as características da poesia popular erótica. Tema recorrente nos poemas de Roberto Parra. Esta orgulhosa resistência é também uma forma de valorar aquilo que o referencia como pertencente a um determinado grupo social que fala uma língua, mesmo sendo, essa língua menosprezada pela “cidade letrada”, lembrando a Angel Rama (2015). Mas escrever e se expressar em sua língua acaba sendo também, a única forma de expressão que possui essa classe social, mesmo assim a necessidade de falar é quase vital. Deleuze e Guattari no livro Kafka, por uma literatura menor (1990), refletem sobre a impossibilidade de Kafka em escrever em outro idioma, que não fosse o alemão, e da impossibilidade de não escrever, como uma necessidade mais forte que ele, então Kafka escreve, “porque a consciência nacional insegura, oprimida, passa necessariamente pela literatura” (DELEUZE e GUATTARI,1990, p. 15). Neste sentido, Roberto Parra (1971) apresenta a mesma impossibilidade de ficar calado e aceitar a opressão do sistema capitalista patriarcal, que massacra e normaliza a desigualdade, relegando grupos sociais que deveriam fazer parte da sociedade, a um espaço marginalizado, onde por força das condições cruentas da vida, se vê obrigado a assimilar os

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estereótipos que lhe conferem uma identidade menor. Para elevar a voz, Roberto Parra utiliza a literatura, mas uma literatura menor que nos fala desde esse espaço plural, complexo: o prostíbulo e todo o contexto que envolve esses corpos marginalizados, dilacerados e em tensão com um espaço maior e historicamente elitizado, o teatro e o público representante da classe intelectual. O dramaturgo move-se pela necessidade de denunciar e reparar esses corpos que não interessam a ninguém, devolvendo a eles a fragilidade e a sacralidade da vida. Um ato político, com certeza, que nos faz refletir sobre o espaço do outro, o preconceito e a discriminação com que olhamos para sua diversidade/alteridade. Deleuze e Guattari nos alertam dizendo que, o mais popular se encontra nas periferias. E é verdade, em suas fontes foram beber diversos poetas, artistas, sociólogos e filósofos, e ali encontraram a riqueza da sua arte, na linguagem do povo e na complexidade de suas formas. A imersão no ambiente popular desprovida de sua autenticidade perderia toda sua força de expressão. Por tanto, a obra popular precisa falar pela boca do povo, e nesse espaço mínimo trazer a memória coletiva a ser mantida como expressão e resistência de um grupo social excluído. Este ato conecta de imediato a obra a uma questão política, em que o individual da autobiografia se torna cerne do coletivo. Ao falarmos da autobiografia, lembramos-nos de memória individual, como se quem escreve se detivesse em seus próprios fragmentos de vida e se propusesse contar a sua história. Nelly Richard (2007) nos fala da memória individual como uma forma fragmentada do passado, da desmemoria, uma memória que busca reconstruir aquilo que a faz escrever e reescrever o passado, portanto, não se trata de lembranças fixas, elas sofrem acomodações que mostram outro viés da realidade:

[...] la desmemoria, es saber que el pasado no es un tiempo irreversiblemente detenido y congelado en recuerdo bajo el modo del “ya fue” que condena la memoria a cumplir la orden de restablecer servilmente su memoriosa continuidad. El pasado es un campo de citas atravesado tanto por la continuidad (las formas de suponer o imponer una idea de sucesión) o por las discontinuidades: por los cortes que interrumpen la dependencia de esa sucesión a una cronología predeterminada. Solo hace falta que ciertos trances críticos desaten-esa reformulación heterodoxa para que las memorias trabadas por la historia desaten sus nudos de temporalidades en discordia. (RICHARD, 2007, p.14)

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Roberto Parra parece querer desatar esses nós de temporalidade em discórdia que o obrigam a escrever e a reescrever os fatos que, de alguma forma, profundamente dolorosa o fizeram deixar ir embora a mulher amada, como algo que socialmente devia ser feito para respeitar os acordos coletivos de uma sociedade aburguesada e hipócrita, mas que intimamente, deixou fraturas profundas no seu verdadeiro eu, nascido e criado em ambientes populares.

Uma Obra Autobiográfica

Quantas vezes nos deparamos na vida com homens que perderam a razão por uma mulher, ou que se entregaram à bebida por uma desilusão amorosa. Roberto Parra (1921- 1995), conhecido como o tio Roberto, irmão de Nicanor e Violeta Parra, cantor, compositor, poeta e dramaturgo popular, nesta obra, La Negra Ester (1988), decide contar sua própria história, por meio de um recurso que sua irmã, Violeta Parra, já havia usado a autobiografia em décimas. Aqui protagoniza a própria marginalização, entregue à bebida, depois de conhecer uma meretriz do porto de San Antonio, a 100 km de Santiago do Chile, o qual muda completamente o rumo de sua vida. A Negra Ester era uma mulher caprichosa e orgulhosa de seus feitios profissionais, mas de bom coração, conhecida e desejada pelos marinheiros, que faziam fila no bordel para comprar umas horas de amor com ela. Trabalhava num bordel chamado “La casa de Celedonio”. Roberto é contratado como guitarrista na orquestra Luces del Puerto na boate Rio de Janeiro, onde conheceu a mulher, da qual se apaixonaria perdidamente. “Era hija del demônio/ donde Ella se divertía/ su cuerpo al mundo vendía” (PARRA,1971,p.13). Mas, ele se envolve emocionalmente com essa mulher, seduzido pela sua graça e virtuosidade “La Negra, muy cosquillosa, no aguanta la barreta/Güen chancho, bonitah tetah/ su carita como rosa,como espiga de orgullosa...” (PARRA,1971,p13). Assim, Roberto conta que ele decide dominar seu orgulho, mas a Negra Ester não dava atenção a seus apelos, ao contrário, continuava muito popular e requisitada pela clientela, o que ativa mais seus desejos. A história nasce em 1940 em meio à Segunda Guerra Mundial, mas se transforma num livro em décimas somente em1971, provavelmente, pela necessidade de seu autor de esvaziar a alma da dor e das lembranças que voltavam repetidamente a sua memória. 46 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Aqui devemos entender a importância da memória, por se tratar de uma obra autobiográfica. Um processo aberto de constantes resignificações que obriga a pessoa a tomar consciência sobre o vivido e as relações que este passado tem com as condições que possibilitaram ou impossibilitaram um determinado desenlace. Nas palavras de Nelly Richard (1999, p. 30) “La memória es un proceso abierto de reinterpretación del pasado que deshace sus nudos para que se ensayen de nuevo sucesos y comprensiones […] Y es la laboriosidad de esta memoria insatisfecha, que no se da nunca por vencida”, o que possibilita a escritura autobiográfica. Em 1988, depois de duas tentativas de estreias frustradas, a obra foi adaptada para teatro num trabalho conjunto entre Roberto Parra e Andrés Pérez Araya:

Autor de las famosas cuecas choras y de piezas del llamado jazz huachaca, Roberto Parra reestructuró su obra en décimas. “Con Roberto -explica Andrés Pérez- hemos trabajado en la transformación de lo que era un texto político, en imágenes teatrales. No ha habido distorsión porque hemos hecho todo el montaje junto a Roberto. El añadió escenas y participó en nuestro proceso creativo”. (PEREZ, 1989)

A peça estreou sob a direção de Andrés Pérez que havia criado a companhia o Gran Circo Teatro, baseada na sua experiência trabalhando no Circo Theatre du Solei. De acordo com dados coletados do periódico La Época, por Andrés Pérez “La obra debutará en Puente Alto, debido a que una de las motivaciones fundamentales del grupo es descentralizar la cultura y entregarla a las distintas comunas de Santiago.” (PÉREZ, 1989, p. 06) O Gran Circo Teatro tinha as características de uma tenda de circo, organizada em forma circular em torno do cenário, o que trazia à memória a organização espacial do circo Thêatre du Solei da França, em que André Pérez havia trabalhado, especialmente, no que se refere ao modo como os atores preparavam a estréia da peça, como explica Memoria Chilena, da Biblioteca Nacional de Chile:

En su forma de trabajar, el colectivo reprodujo buena parte de las técnicas y métodos aprendidos por Andrés Pérez durante su residencia en Francia junto al Théâtre du Soleil, en especial el proceso de puesta en escena en que los actores ensayaban todos los personajes hasta poco antes del estreno. 47 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

O que possibilitava a realização de um teatro que estivesse ao alcance do povo. Como se observa nesta entrevista realizada a Andrés Pérez pelo jornal La Época, por motivo da estreia da peça: “El eje del Gran Circo Teatro es hacer teatro popular", (La Época, 6 de septiembre de 1989, p. 28), para aqueles que não estavam acostumados a assistir espetáculos teatrais em salas especiais. De acordo com este espírito, as obras que Andrés Pérez levou ao cenário junto a sua companhia, apresentam denominadores comuns no temático:

Hablan de mundos marginales, de pobreza y prostitución, territorios endurecidos que, paradojalmente, son cruzados por la profunda humanidad de sus personajes. En esa humanidad destaca lo ingenuo de los personajes, sean borrachos, marinos, mendigos, obreros, policías, hombres o mujeres, gente vieja o joven. Todos son protagonistas de crónicas de la vida diaria. Una mayoría con procedencia social a medio camino entre lo urbano y lo campesino.

O Fenomeno Negra Ester

A causa principal do sucesso da peça é retroativa à sua estréia. A Negra Ester coloca no cenário, personagens do povo, do submundo e isto é o que provoca uma excelente aceitação do público. Trata-se desse Chile gozoso e em “estado de graça” como comenta Labra (1989) que corresponde a uma época anterior à convulsão da ditadura militar.

Su propuesta tan naif llegó en el momento preciso en que todos queríamos reencontramos con la esencia de la identidad nacional. En la platea se codearon sin complejo después de mucho tiempo, todas las clases sociales, todos los sectores, para seguir la historia de amor 'maldito' entre el cantor borracho y la ramera, para compartir y disfrutar esta fiesta un poco libertina pero rebosante de chilenidad. (LABRA, 1989, p. 40)

A obra teatral foi recebida pela crítica especializada, de forma otimista, pela comoção que causou em todas as esferas sociais. Neste sentido, vale a pena observar a recepção da obra a partir de especialistas na área e compreender seu alcance.

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María de la Luz Hurtado, socióloga e especialista em teatro, destaca a presença de elementos cênicos originais introduzidos na montagem da peça. “La utilización al comienzo de la obra, del himno nacional musicalizado con una cierta distorsión irónica; o de coreografías mudas que aludían al terremoto ocurrido en la ciudad de Chillán en 1939”, possibilitaram ao espectador a compreensão do tom em que se desenvolveria a peça. (HURTADO, 2017) Assim mesmo, Hurtado afirma que a versão cênica de La Negra Ester não pretendia apresentar-se como a história mais real e autêntica de Roberto Parra, ao contrário, nela se exibia explicitamente sua teatralidade, rompendo a quarta parede e dando acesso ao público aos camarins de vestiário e maquiagem. Outra crítica que é necessário destacar, pertence a Andrés Piña. Segundo este sociólogo:

En síntesis, lo que ha logrado esta pieza teatral - a través de la historia de ese cantor que ama a una prostituta, pero que en sucesivas huidas termina por perderla- es la escenificación, la materialización de un trozo de la cultura popular chilena, donde la música, la entonación, los modos escénicos de decir, el movimiento, la gestualidad, los exagerados rasgos faciales, la vestimenta y los espacios están arraigados en todas las clases sociales. (PIÑA, 1987)

Além disto, Piña entende que a proposta do grupo é buscar as cenas de identidade chilena na zona do marginal, o rural e os extramuros, e não nos ambientes e estilos da classe média. O rosto deste teatro é violentamente popular, colorido, autônomo e de perfil nítido, perante o qual todos os chilenos se podem observar, transformando a obra em um ponto de encontro de uma nacionalidade fraturada que se recompõe sobre o cenário. “Porque la obra demuestra que guarda la memoria colectiva de un país y sus peripecias comunes y corrientes - naif, despolitizadas y carentes de retórica- son nuestra verdadera historia. (PIÑA, 1987). Para Juan Pablo Donoso, diretor do Teatro Nacional do Chile, o êxito radica no fato de ter conseguido o equilibrio entre sentimento e forma. “El sentimiento emana de la personalidad de Roberto Parra como hombre, artista y pueblo. La forma se mantiene vital, lúdica y virtuosa en la interpretación". (PIÑA, 1987). Essa forma se refere entre outras coisas, à preservação da linguagem popular. Os exemplos ilustram bem dois pontos principais na peça: a descrição que Roberto faz do êxito que Negra Ester tinha com os homens, e do

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sarcasmo das palavras com que Negra Ester o apelidou: “Cola hacían loh marinoh./ Ella leh daba guaraca./ Se reía la maraca/ del pobre Jetulio Vargah; la palabra máh amarga que ella me ha dirijío”. (PARRA,1971,p.15) Um dia em que a Negra Ester estava bêbada, ela se oferece a Roberto: “Creí que estaba soñando/ lah piernah me están temblando./ Miro la linda vieja:/ -Se van a acabar tuh quejah/ y también loh alborotoh;/ ¡La suertecita del roto!/ Ya te encuentro máh bonito./ A tu jaula pajarito, /y empieza a hacerle cototo.”(PARRA,1971,p16) Entretanto, após a noite de prazer, ela acorda sem saber com quem passou a noite e muito agressiva por encontrar a quem tem que pagar a conta, o que muda totalmente a situação. “La noche quién la pagó, tocaba el pito la Negra – Me aprovechaste curá./Te corriste viejo é mierda. –Y si usté me convidó.” (PARRA, 1971, p.16). Roberto Parra descreve a situação de desespero em que Ester se encontra diante do medo que ela tem do seu alcoviteiro, então, ela pega o violão com que Roberto Parra trabalhava na boate e o entrega ao rufião para pagar a conta. Roberto Parra expressa seu desconcerto: “Me puse loh pantaloneh; no me entraban loh zapatoh;/ Me le hacía el mojigato;/ Me enredé en unoh calzoneh./ Son muchoh loh tropezoneh/ que pasan todoh loh pobreh.” (PARRA, 1971, p.18). As falas aspiradas com haga em lugar de s para formar o plural das palavras representam a linguagem oral, assim como o pronome de complemento indireto fora de lugar na frase “Me le hacía el mojigato”, são formas utilizadas por uma variante social, específica dos bairros periféricos não letrados ou muito escassamente letrados, que dão vida a essa situação, agitada, de tensão e perigo, mas também, de reflexão sobre a própria situação. “Todoh loh pobreh” representa essa classe e suas vidas miseráveis, que não interessam a ninguém. Esse ato político de reflexão, no final do relato, enfrenta a classe dominante e hegemônica que estabelece as regras inclusive, para utilizar a língua, como uma forma de preservar sua superioridade. Assim também, se escuta um lamento “Son muchoh loh tropezoneh”, como uma tomada de consciência da crueza em que se desenvolve a grande maioria das classes marginalizadas pelo sistema. Um submundo submetido pela falta de recursos básicos. Há que considerar uma característica importante nesta obra, ela transcende os limites nacionais, e como bem o expressa a atriz chilena Sandra Solimano, no Diario Fortin 3, p.12 50 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

"[...] el gran mérito del director es que adaptó una obra chilena que no era teatro y la hizo traspasar fronteras, porque La Negra hoy es internacional."

A Inovação do Espaço Teatral

Como podemos apreciar, a peça La Negra Ester proporciona vários objetos de estudos dentre eles, sua popularidade, seu êxito internacional, o momento político no qual vivia o país e principalmente, o sentimento de identidade que gera a forma, a montagem como um grande circo-teatro:

[…] ya que el teatro dejó de ser un arte exclusivo para una cierta clase social y se convirtió en un lugar abierto para el público no habituado al "arte de las tablas". El espíritu festivo que invadía esta obra, hace pensar en un teatro con características del teatro del Siglo de Oro, donde cada representación era una fiesta popular en sí misma. (SOLIMANO, 2017, p.12).

No Chile atual, essa inovação criou um espaço verdadeiramente ativo e eficaz para que o teatro chegue as camadas sociais mais pobres, com “ El teatro a mil”, uma modalidade econômica de fazer e apresentar o espetáculo, em que qualquer espaço público serve – uma praça, o pátio de uma galeria pública, a rua, o estacionamento, todos os espaços se transformaram em possíveis palcos onde as artes cênicas ocupam o lugar e marcam encontro com esse público mínimo: La innovación del espacio teatral creado por Andrés Pérez para La Negra Ester, cambió la relación entre el público y la obra, no solo porque a este se le entregaron claves de su identidad, sino porque el humor y la apertura convirtieron cada presentación en una fiesta (SOLIMANO, 2017, p.12).

Esta inovação ocorreu devido à experiência do diretor adquirida na montagem de peças no teatro Solei. Como o explica Juan Pablo Donoso, em e uma entrevista do Diario La Tercera.

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En 1988 y tras permanecer seis años en Francia, Andrés vino a Chile sólo por un mes a hacer un taller, sin embargo, se quedó. El actor nacional Willy Semler le mostró las décimas de Roberto Parra; entonces, Andrés sintió que ahí había algo grande y aceptó trabajar en el texto de la obra junto al destacado autor, dando origen a La Negra Ester.[…] Posteriormente, creó la compañía "Gran Circo Teatro", donde puso en práctica mucho de lo aprendido en el Théatre du Soleil, de Francia. Fue así como La Negra Ester, cuya propuesta teatral tendría como eje central el rescate de las tradiciones, se transformó en el primer montaje de éxito masivo del teatro chileno.

Parafraseando Maria de Luz Hurtado e Andrés Piña, a singularidade que Andrés Pérez imprimiu nesta peça se explica, entre outras coisas, pela incorporação ao espetáculo dos seguintes elementos:

a) Utilização de uma barraca circense localizada na praça de um dos bairros mais periféricos da cidade de Santiago como lugar físico para as representações, Puente Alto. b) Uso de uma linguagem cotidiana repleta de chilenismos (algo que recém 15 anos mais tarde começará a ser emulado pela televisão chilena). c) Emprego de vestiário evocativo da época (anos 40). d) Uso de maquiagem facial tipo mascaras (inspiradas no teatro japonês). e) O protagonismo da música dentro do espetáculo (uma banda de músicos interpretava ao vivo suas criações para a peça). f) Venda de comida típica chilena nos intervalos.

Para estes críticos, o uso de todos estes elementos e sua prévia escolha implicou numa exploração a fundo das possibilidades da teatralidade visual, criando um ambiente tipicamente popular chileno, ou seja, festivo, pícaro e musical, que gerou, no espectador, um sentimento de pertença e identificação com aquilo que estava assistindo. Como consequência, este fato provocou uma mudança de relacionamentos entre a obra e o espectador, já que a este se entregavam claves de sua identidade, o que implicou num aumento no grau de cumplicidade entre o espetáculo e o público.

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Desta maneira, temos revisado as principais opiniões dos especialistas em teatro com respeito ao valor e à transcendência de La Negra Ester no âmbito cultural chileno. Mesmo que, entre eles não exista um consenso para determinar o que é o mais destacável desta obra, podemos apreciar que existe uma propensão a sublinhar o trabalho no palco por ambos o autor e o diretor.

Referências

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A Prática da Leitura Dramática na Formação Docente em Teatro e Sua Repercussão no Estágio do Ensino Médio da UFPel

Juliana Caroline da Silva (UFPel)14 Fernanda Vieira Fernandes (UFPel)15

Resumo: Este trabalho tem como objetivo relacionar a pesquisa em leitura dramática realizada no projeto “Leituras do drama contemporâneo” à atuação no estágio de ensino médio da aluna do curso de Teatro-Licenciatura Juliana Caroline da Silva, colaboradora do projeto. O artigo parte do percurso e relato de experiência da discente, projetando fundamentar a importância da prática com leitura dramática na formação docente e do quanto a mesma repercutiu diretamente na execução do estágio curricular. Este, com o intuito de familiarizar os alunos com alguns conceitos do teatro, ampliou, através do recurso das leituras, as possibilidades e concepções da linguagem cênica viáveis na escola pública. A prática agregou conhecimentos específicos do teatro, tais como dramaturgia, ação falada e expressão vocal. O projeto será contextualizado inicialmente para evidenciar o modo como este se refletiu no estágio e, na sequência, o artigo dedicar-se-á ao relato da experiência propriamente dita, dentro da escola, tendo como referenciais Fernandes (2016), Ryngaert (1996), Pavis (1999) e Gayotto (1997). Por fim, o estudo prevê uma breve reflexão baseada em Vidor (2016), Rosa (2006) e Reis (2014), abordando a dimensão que a pesquisa com literatura e leitura dramática possui na formação da artista, pesquisadora de iniciação científica e docente. Palavras•chave: pesquisa; leitura dramática; estágio; formação docente.

1. Introdução

Com o objetivo de relacionar a pesquisa em literatura e leitura dramática realizada no projeto “Leituras do drama contemporâneo”, coordenado pela Prof.ª Dra. Fernanda Vieira Fernandes, à atuação da autora no estágio curricular de ensino médio, orientado pela professora responsável pela disciplina, Dra. Vanessa Caldeira Leite, este trabalho parte do percurso e relato da experiência da discente do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e sua colaboração no projeto de pesquisa. O projeto surgiu em novembro de 2015, quando a coordenadora diagnosticou que uma grande quantidade de alunos do curso se formava tendo lido e conhecido poucas dramaturgias

14 Graduanda em Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de Iniciação Científica PBIP UFPel – [email protected]. 15 Professora Doutora do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Orientadora – [email protected] 54 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

da atualidade. Portanto, com o objetivo de pesquisar sobre a literatura dramática contemporânea e suas peculiaridades, o grupo passou a se debruçar nas obras produzidas a partir das últimas décadas do século XX. Composto atualmente por cinco alunos, entre eles duas bolsistas de iniciação científica, além da coordenadora, o grupo investiga sobre conceitos relacionados à literatura dramática do período mencionado. Também compõe o objetivo da proposta: ler peças e pesquisar sobre os dramaturgos, buscando relacionar os conceitos estudados com as obras e ainda realizar leituras dramáticas abertas ao público ao final de cada período de atividade. Esses ciclos duram entre um ou dois meses e são formados pela escolha de um autor e um texto do mesmo, uma análise da obra, relacionando com as teorias debatidas e finalizando com a prática, o preparo da ação corpórea e vocal para a apresentação pública. Para a realização desta, a cada novo processo, é pensado conjuntamente em uma estética a ser utilizada. Ao final de cada sessão, ocorre um bate-papo com os espectadores, levantando questões exploradas no texto e sobre o autor, assim como as impressões dos leitores e dos espectadores ouvintes. Seguindo a proposta deste artigo, apresenta-se como esse projeto e a participação da autora nas pesquisas por ele propostos influenciaram sua escolha por trabalhar com leitura dramática no ambiente escolar.

2. Contato

2.1 Com quem: os corpos que se encontram na escola

O estágio curricular em ensino médio da autora foi realizado na Escola Estadual de Ensino Médio Nossa Senhora de Lourdes, de Pelotas/RS. As salas, com um tamanho médio, não comportavam o trabalho corporal com uma turma de 37 estudantes, como era o caso do 1º ano A. As aulas aconteceram, geralmente, às sextas feiras no último período, das 11h às 11h50. Os estudantes, com em média 14 anos, tinham como responsável pelas aulas de arte uma professora cuja formação é em espanhol, porém, que ministra as duas disciplinas na escola, além de literatura. A escolha da temática a ser trabalhada surgiu de alguns apontamentos que antecederam a observação da turma em que aconteceria o estágio. O primeiro deles diz 55 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

respeito ao tempo de cada hora/aula dentro das 20h obrigatórias, considerando o sistema de aulas de muitas escolas estaduais de Pelotas em que são destinados ao ensino médio 50 minutos semanais para a disciplina de arte e apenas ao primeiro ano. O segundo, contando que muitos alunos desconheciam a prática teatral ou conheciam apenas um modo de se vivenciar teatro. Já o terceiro e último ponto, crucial, seria o âmbito teatral com o qual a estagiária estaria mais envolvida naquele momento de sua formação: o de estudos a partir e sobre a dramaturgia. Atentando ao tempo e pouco ou nenhum conhecimento específico do teatro por parte dos estudantes, a proposta proporcionaria uma familiarização desses com possibilidades de fazer teatral com início no texto dramático, o que tornou-se o objetivo geral do estágio. No primeiro contato com a turma, a observação de uma aula de Arte, percebeu-se que seria necessário um esforço para conquistar a fruição do texto e aproximar os alunos da leitura dramática, já que estavam majoritariamente afastados do hábito da leitura por prazer. Projetou-se no curto período de atuação, a prática de conteúdos que focassem a ação do estágio na disseminação de alguns conhecimentos específicos do teatro, como dramaturgia, ação falada e expressão vocal. Pretendia-se criar possibilidades de expressão vocal, de interpretação de personagens e situações, compreensão da relação palco-plateia, apreciação de trabalhos teatrais enquanto espectadores e reflexão sobre manifestações artísticas, além da experiência com leitura dramática. Tendo isso em vista, o trabalho desenvolvido dentro das aulas ministradas na escola utilizou como metodologia: realizar breves contextualizações teóricas sobre os referidos conceitos teatrais, embasadas em Pavis (1999) e Ryngaert (1996); experienciar recursos vocais com base em Gayotto (1997); vivenciar a leitura dramática enquanto ator/leitor e espectador e, por fim, refletir sobre o aprendizado.

2.2 Com o que: a leitura de teatro

Buscando atingir os objetivos, o primeiro conceito apresentado à turma foi dramaturgia. Inicialmente, houve a conceituação da palavra e, logo após, foram apresentadas as partes constitutivas do texto teatral. A dramaturgia foi conteúdo presente durante todas as aulas, principalmente nas três experiências dos alunos com leitura dramática enquanto atores/leitores, que aconteceram com cenas do texto Aquele que diz sim, aquele que diz não, de Bertolt Brecht; uma cena do texto A cantora careca, de Ionesco; e uma cena do texto O 56 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Mercador de Veneza, de Shakespeare. Além dessas, os alunos foram espectadores da leitura dramática Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis, de Rafael Gomes, que foi realizada pelo projeto “Leituras do drama contemporâneo” na escola. É importante ressaltar que a escolha por estes textos foi decorrente da formação acadêmica que os aproximou da estagiária. O de Brecht fora trabalhado na disciplina de Teatro na Educação II; o de Gomes, analisado e apresentado cinco vezes como leitura dramática pelo projeto de pesquisa; o de Ionesco, também lido nos estudos do projeto; e o texto de Shakespeare, utilizado em uma ação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), do qual a autora foi bolsista durante dois anos e meio. O contato da turma com a ação falada deu-se em paralelo à expressão corporal, ao propor investigações de recursos vocais nos preparos corpóreo-vocais. Além disso, a expressão corporal permitiu aos alunos um espaço para a improvisação, como consequência da atividade com o texto A cantora careca, e também com o estímulo de cenas de Don Juan, de Molière, e O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, os dois últimos, textos que foram encontrados pelos alunos na biblioteca da escola em uma das aulas. Foi utilizada pela estagiária como forma avaliativa para analisar o processo de aprendizagem dos alunos, uma atividade voltada aos recursos vocais, em que os estudantes levaram à aula por escrito exemplos de diferentes recursos que perceberam utilizar durante um dia, como volume, articulação, entonação e pausa. Na aula posterior à leitura dramática realizada pelo projeto “Leituras do drama contemporâneo” na escola, uma segunda avaliação foi feita, enfatizando em grupo alguns elementos internos e externos do texto e da leitura, como em uma roda de conversa, para serem escritos na sequência e entregues à estagiária. Nesta avaliação, foram analisados, entre outros aspectos: a disposição cênica escolhida pelos leitores, o figurino, as personagens e a estrutura do texto. Como última proposta, foi realizada uma autoavaliação, que permitiu aos alunos reverem o que foi estudado, elencando as dificuldades individuais e do coletivo, além de estimular a reflexão sobre a postura dos alunos, seguindo alguns critérios como a participação nas atividades, o quanto conseguiram ou lhes foi permitido se expressarem em aula e o quanto se dedicaram aos trabalhos em grupo. Desde a primeira aula, em que a estagiária apresentou a proposta com leitura dramática para a turma, houve uma grande repulsa. Repetidas vezes os alunos reclamaram, 57 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

pediram para não precisarem escrever, afirmaram que “ler é muito chato” e expuseram que preferiam fazer outra coisa. Persistindo no seu objetivo e ciente de que se tratava de uma impressão de senso comum, a estagiária foi lentamente construindo a leitura, apresentando o conceito de dramaturgia, sua estrutura e levantando exemplos próximos aos estudantes. Logo após, foi abrindo espaço para experiências vocais e só depois realizou a ação da leitura dramática. A turma seguia o desenrolar da aula e, aos poucos, se percebia lendo e fazendo apontamentos sobre os textos lidos. Através da leitura dramática foi trabalhado com a turma: dramaturgia, expressão vocal (recursos vocais) e análise do texto teatral (mesmo que de maneira inicial). Portanto, o objetivo do estágio foi atingido com sucesso, já que por meio da leitura dramática os estudantes se aproximaram de conhecimentos específicos do teatro. Porém, o conteúdo com o qual os estudantes estabeleceram relação nas primeiras aulas, antes do contato com a leitura dramática enquanto ator/leitor e enquanto espectador, não foi suficiente para que houvesse correspondência entre as obras ali apresentadas e os interesses, desejos e necessidades da turma, para que se identificassem e que pudessem encontrar na leitura dramática um espaço para expressarem suas interpretações, percepções do mundo, suas formas de exercerem a reflexão e afinarem emoções. Segundo Vidor (2016), o processo de compreensão resulta da interação das características do leitor (conhecimento prévio, perspectiva, interesses, atitudes, objetivo da leitura, capacidade cognitiva, estratégias e estilos de processamento) e das características textuais (conteúdo, estrutura, assinalamentos e ilustrações presentes no texto). Foi possível reconhecer que não houve uma construção de interesse efetiva para uma fruição entre a turma de estudantes e a leitura de teatro.

2.3 Quem e o que: a necessidade da construção do interesse para o contato entre corpo e leitura no teatro Ao refletir sobre a busca incessante por um aprimoramento do ensino e aprendizagem na escola particular em que atua, Roseli Reis aponta que, por muitos anos, professores expressam cansaço e desencanto, usando como justificativa as

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Dificuldades de ensinar os alunos devido a sua ‘falta de preparo’, aos ‘conteúdos mal trabalhados’[...] falta de compromisso das famílias em passar valores básicos aos filhos, dentre eles o valor do estudo, da busca por saber. (REIS, 2014, p.11)

Além disso, professores ressaltam também o comportamento inadequado dos alunos. Porém, no contexto do estágio, é preciso considerar que a condição do adolescente – em processo de desenvolvimento social, que é estudante do ensino médio já com uma bagagem de experiências escolares e participante em um ensino empobrecido – determina a manifestação do seu interesse. Há uma ideia, comum aos alunos do ensino médio, de que adquirir conhecimento só é possível por vias desgostosas, como se tudo o que poderia ser absorvido na escola estaria distante do prazer, pelo fato do aprendizado ser uma obrigação. Aproximando o descaso dos alunos em questão pela obrigação em estudar ao desinteresse como consequência de uma série de fatores que constituem o sistema educacional brasileiro, foi possível encontrar na turma do 1º ano A uma forte aversão à leitura. Os estudos da autora enquanto colaboradora do projeto “Leituras do drama contemporâneo” permitiram- na observar que a turma em que estagiaria necessitava primeiramente admitir elementos, conforme sugerido por Vidor (2016), como a possibilidade de interpretações, a composição da ficção, fabulação e poesia e a posição ativa da sua imaginação. Dos estudantes era requisitado cooperação para alcançarem o prazer na ação da leitura. Atualmente, o maior fator influente que interfere no processo da fruição literária é o espaço dos equipamentos eletrônicos. Segundo Gideon Rosa, “a relação de um espectador com a obra corresponde diretamente a seu horizonte de interesses, seus desejos, suas necessidades, assim como sua classe social e sua história pessoal” (2006, p.32). Aproximar jovens tão imersos nas mídias eletrônicas e na velocidade dos compartilhamentos de informações (além do desinteresse e descontentamento pelo processo de aprendizagem) à pratica da leitura dramática, foi um desafio enfrentado durante todo o estágio. Heloise Vidor aponta que “a leitura permite que aquele que lê possa escavar o texto” (2016, p.78), mas esta postura depende do seu objetivo, que, por sua vez, depende do seu interesse, além de outras coisas. As vozes de 37 estudantes presentes nas aulas seriam capazes de viver inúmeros personagens, de expor situações, de elaborar e preencher espaços de acordo com a imaginação de cada um, porém, a leitura dramática, ainda segundo Vidor, “exige vontade de literariamente ir em direção ao outro” (2016, p.78). Esta vontade precisaria ser 59 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

construída, dados os posicionamentos dos estudantes frente à escola e, principalmente, frente à leitura em geral. O ato de ler é baseado no desejo, no interesse, no prazer, ler é manter-se em comunhão com o próprio corpo, com o tato, o olhar, a escuta. Propondo um estágio com base na leitura dramática, foi necessário reconhecer as possibilidades que cada estudante-leitor possui de participar e compreender à sua maneira, ou não, conforme suas vivências pessoais, sua posição social, sua imaginação e sua opinião.

3. Considerações finais

O texto dramático, passível de ações de leitura, vocalização, escuta e visualização, tornou possível à turma contemplar algumas propostas do processo de aprendizagem de teatro previstas no PCN (2000): “realizar produções artísticas e compreendê-las [...]; apreciar produtos de arte e compreendê-los [...]; analisar manifestações artísticas, conhecendo-as e compreendendo-as em sua diversidade histórico-cultural [...]”. O interesse da futura docente pela fruição da dramaturgia e pela possibilidade de se fazer teatro no ambiente escolar, com conteúdo teatral costumeiramente pouco trabalhado e/ou distante do espaço destinado à essa área na escola (de apresentações espetaculares em datas comemorativas, por exemplo), nasceu da bagagem de estudos teóricos oferecidos a ela pelo projeto de pesquisa “Leituras do drama contemporâneo”, e que a mesma quis experimentar e colocar em prática no estágio com o ensino médio. Com a finalização do estágio, foi possível refletir sobre a necessidade da construção do interesse para o contato entre corpo e leitura no teatro e também sobre a dimensão que a pesquisa com literatura e leitura dramática possui na formação da autora enquanto artista, pesquisadora de iniciação científica e futura docente. A prática dos conhecimentos adquiridos ao longo da formação da mesma no universo escolar e o desafio constante de envolver os estudantes e conseguir proporcionar a eles uma experiência com conhecimentos específicos do teatro partindo da leitura dramática, colocou em jogo o interesse da própria futura professora na temática escolhida para o trabalho. Ao defrontar-se com o desinteresse pela leitura, mais do que a agitação e indisciplina da turma, confirmou-se a carência de se experienciar a literatura dramática dentro do ambiente escolar mediante a leitura compartilhada e a presença do outro na concepção de sentido. 60 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

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A recepção inicial de Edward Albee no Brasil

Esther Marinho Santana (UNICAMP)16

Resumo: O texto apresenta uma seleção da recepção inicial de The Zoo Story (1958/59), a estreia de Edward Albee como autor teatral profissional, pela crítica brasileira, ao longo da década de 1960. Resgato, aqui, as primeiras produções da peça em São Paulo e no Rio de Janeiro, destacando a interpretação geral do dramaturgo como um expoente da literatura Beat, e como um novo representante do Teatro do Absurdo. As circunstâncias da chegada de Albee ao Brasil e a sua primeira compreensão local oferecem um profícuo panorama da relevância do autor e do teatro norte-americano para o cenário nacional do período.

Palavras-chave: Edward Albee; The Zoo Story; Teatro do Absurdo; Anos 1960.

Introdução

The Zoo Story, a primeira peça profissionalmente produzida de Edward Albee, estreou em Berlim, em 1959, acompanhada de Krapp’s Last Tape, de Samuel Beckett. No ano seguinte, o mesmo programa duplo foi montado na Provincetown Playhouse, na Off- Broadway nova-iorquina, onde obteve 582 sessões, um êxito singular para aquele contexto. Ainda que a atenção imediata se voltasse para Beckett, uma vez que Endgame emplacara, em 1958, mais de cem sessões no Cherry Lane Theatre, o maior interesse, tanto por parte da crítica quanto do público, acabou se concentrando no novato Albee, conforme aponta Horn (2003, p. 81). Ao longo da década de 1960, o título foi remontado por diversas vezes em diferentes cidades dos Estados Unidos, bem como em países da Europa e da América Latina. Em seus comentários acerca das remontagens de The Zoo Story em Nova York, Stephen J. Bottoms defende que sua progressiva popularidade a tornou

the defining Off-Broadway play of the era. The play revived, almost single- handedly, the American little theatre tradition of the self-contained one-act

16 Doutoranda do programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas (IEL/ UNICAMP). Bolsista CNPq: 140361/2016-2. E-mail: [email protected] 62 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

drama, and did it by fusing a distinctly American urban realism with new ideas derived from the European “theatre of the absurd”. (2006, p. 21)

Com um único ato, a peça apresenta o encontro do pacato e retraído editor de textbooks, Peter, que lê todos os domingos no mesmo banco do Central Park, com o enérgico Jerry, que o aborda para contar sobre sua recente ida ao zoológico. Ao longo da interação, Jerry alterna-se entre indagar insistentemente sobre a rotina de seu interlocutor, e expor seu próprio cotidiano solitário. Quando Peter decide encerrar a conversa, provoca uma peculiar resposta de Jerry: instaurando uma disputa pelo banco onde estão, a princípio faz-lhe cócegas, seguidas por empurrões, e, enfim, xingamentos e socos. Em meio às agressões, Jerry atira uma faca para que o amedrontado Peter se defenda, sobre a qual se joga, ferindo-se fatalmente. A ação é encerrada com o lembrete de Jerry de que Peter leve seus pertences e parta logo, para que não seja ligado àquela morte, e com seus agradecimentos por tê-lo consolado. Apresentarei, aqui, parte da fortuna crítica brasileira de The Zoo Story, publicada em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, no decorrer dos anos 1960. Atesta-se, por meio das diversas montagens ocorridas no país em tal período, que a relevância do título ultrapassou o seu meio de origem, impactando também o cenário teatral local. Nota-se, ainda, a comum rotulação da peça como um fruto do Teatro do Absurdo, que definiria sua temática, por conseguinte, como a demonstração do fracasso da tentativa de contato e de comunicação entre Jerry e Peter.

A chegada de The Zoo Story ao Brasil

Em 1961, em uma ação de divulgação cultural promovida pelo governo dos Estados Unidos, uma companhia de atores advindos do Actors Studio, de Nova York, viajou para Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e México. Dirigida por Tad Danielewski, a New York Repertory Theatre Touring Company encenou, nos Teatros Municipais do Rio de Janeiro, a partir de 15 de agosto, e no de São Paulo, a partir de 22 de agosto, três diferentes sessões. A primeira era composta pelo primeiro e o terceiro atos de Sweet Bird of Youth, e a íntegra de

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Suddenly Last Summer, de Tennessee Williams; a segunda, por Miss Julie, de August Strindberg, com The Zoo Story; e a terceira, por I am a Camera, de John van Druten. William Daniels e Ben Piazza, intérpretes das primeiras montagens na Off-Broadway, foram, respectivamente, Peter e Jerry17. No Jornal do Brasil, Bárbara Heliodora anunciava, em duas colunas, de 20 de julho e de 15 de agosto de 1961, o aguardado repertório dos visitantes, comentando que a peça de Albee seria “um diálogo angustiante no qual dois mundos diversos tentam se comunicar”. Sábato Magaldi, em um texto para o Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo, de 19 de agosto de 1961, destacava que a visita dos atores permitiria ao público brasileiro enfim conhecer e “avaliar a aplicação do Método de Stanislavksi, no palco”. Que seja dito de passagem, nota-se certa imprecisão na descrição do sistema de atuação característico do Actors Studio, oriundo, em verdade, das práticas de Lee Strasberg junto ao grupo, e não propriamente das teorizações de Stanislavski. Na mesma página do periódico, tal estilo de encenação era explicado de maneira mais acertada por Décio de Almeida Prado. A notoriedade do Actors Studio era descrita também por Van Jafa, n’O Correio da Manhã, de 13 de agosto de 1961, onde observava que “atores e diretores do mundo inteiro” recorriam à companhia para “apuros e novos horizontes”. O crítico aproveitava para anunciar a vinda ao Brasil de alguns de seus membros, por meio da New York Repertory Company, tecendo breves comentários sobre cada um dos profissionais. Após a antecipada apresentação de Miss Julie e The Zoo Story, Heliodora, no Jornal do Brasil de 19 de agosto de 1961, defendeu que a peça de Albee contara com atores “à vontade” com o Método, tendo Ben Piazza se saído “satisfatoriamente”, e William Daniels, após um bom desempenho inicial, esbarrado em um final para o qual “não tem envergadura”. Para ela, tratava-se de um texto ferino, do “mais importante autor que o teatro fora da Broadway já revelou”. Van Jafa, diferentemente, em seu texto publicado na mesma data, n’O Correio da Manhã, teceu apenas comentários positivos para as interpretações de ambos os atores, “no melhor estilo do ‘Actors’ Studio”. Ademais, enfatizou que Albee realizava “um teatro completamente moderno”, em cujas falas constava “uma espécie de Ionesco”.

17 Wiliam Daniels esteve na montagem original, na Provincetown Playhouse, e repetiu o papel de Peter na segunda produção nova-iorquina da peça, estreada em 12 de setembro de 1962, no East End Theatre, quando Ben Piazza interpretou Jerry, tornando a fazê-lo em outros revivals naquela década: (último acesso em 16/10/2017) 64 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Conquanto o intuito da turnê norte-americana fosse a divulgação cultural dos nomes artísticos mais efervescentes nos Estados Unidos no período, promovendo tanto seus intérpretes e realizadores cênicos, quanto seus autores de literatura teatral, o interesse brasileiro voltou-se, de início, para o afamado Método específico do Actors Studio. Se os profissionais de teatro nacionais o conheciam por terem de fato visto seu uso nos Estados Unidos, lido a respeito, ou meramente ouvido os tantos burburinhos, empolgavam-se, naquela ocasião, com a sua inédita demonstração nos palcos locais. Todavia, em meio a tal ânsia imediata por contato com a companhia nova-iorquina, The Zoo Story obteve destaque. Para Henrique Oscar, n’O Diário de Notícias, de 25 de fevereiro de 1962, a peça de Albee foi o mais exitoso item do repertório dos visitantes. A obra inaugurava, assim, uma trajetória ímpar no país.

Uma combinação da literatura Beat com o Teatro do Absurdo

Em 1962 e 1963, The Zoo Story recebeu suas primeiras produções brasileiras, em São Paulo e no Rio de Janeiro: dirigida, respectivamente, por Paulo Mendonça, na Escola de Arte Dramática, e por Martim Gonçalves, no Teatro Maison de France, onde integrou um programa duplo com L’Orchestre, de Jean Anouilh18. Embora amplamente comentada em diversos jornais, a peça contou com curtas temporadas, de poucas sessões. Posteriormente, em novembro de 1965, em uma montagem tanto conturbada quanto influente, enfim atingiu maior público. Dirigida por Emílio Fontana, e estrelada por Raul Cortez e Líbero Rípoli Filho, estreou no Teatro Oficina, em São Paulo, em um programa originalmente idealizado com a complementação de um “Panorama da poesia beatnik”19. Seriam declamados trechos de “América”, de Allen Ginsberg, a íntegra de “Poema”, de Jack Micheline, e “Quadros do mundo que se foi – n. 8”, de Lawrence Ferlinghetti, acompanhados pela projeção, em slides,

18 A respeito de tal espetáculo, Yan Michalski critica as interpretações de Heleno Prestes, responsável por um Jerry insosso, e de Roberto Cleto, criador de um Peter inexpressivo. Porém, o crítico exalta o texto de Albee, que considera deter “um talento excepcional” (A História do Zoológico, de Albee. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 04 – Caderno B, 18 out. 1963). 19 Tais materiais se encontram nos acervos do Arquivo Miroel Silveira, localizado em São Paulo – e, em 2017, redefinido como Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura. 65 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

das imagens da bandeira dos Estados Unidos e da Estátua da Liberdade, vista de costas. Contudo, conforme relata Décio de Almeida Prado, tal contraparte foi censurada sem maiores justificativas, restando ao crítico a indagação se a proibição se trataria de uma ação brasileira para “não ferir os melindres de um país amigo” (1987, p.115), haja visto a reputação de tais escritores como anárquicos e cáusticos críticos do funcionamento político e social dos Estados Unidos da época. Segundo Prado, a interdição porventura estaria, ainda, ancorada no julgamento de um caráter subversivo do material, que poderia ter sido compreendido como literatura marxista engajada. Em suas impressões para a montagem de The Zoo Story conduzida por Fontana, o crítico relembra o espetáculo trazido pela New York Repertory Company, e aponta que tanto a direção quanto as interpretações da versão brasileira seriam demasiadamente brandas, empalidecendo diante da brutalidade da produção estrangeira. Para ele, a violência seria a força estruturante da peça albeeana, pois “não conseguindo entrar em contato com os outros pelo amor (...) só lhe resta (a Jerry) a violência, que, aliás, ele faz voltar-se contra si mesmo” (ibid., p. 116). Em setembro de 1966, a peça partiu para o Ponto de Encontro, onde foi complementada, dessa vez com a devida aprovação da censura, com um ato anterior, no qual duas jovens irmãs norte-americanas relatavam uma viagem pela América do Sul, e interpretavam “Oito canções de protesto”: “A Hard Rain’s Gonna Fall”, “East Virginia”, “House Carpenter”, “Very Last Day”, “Birmingham Sunday”, “500 Miles”, “Fennario” e “The House of the Rising Sun”. Tais faixas, de Bob Dylan, Joan Baez e outros intérpretes folk, tratavam-se de referências ao que se compreendia como a cultura jovem do Greenwich Village do período, ou, em termos mais abrangentes, da típica identidade Beat. Nesse sentido, os poemas que inicialmente acompanhariam The Zoo Story, bem como a seção musical, conferiam o tom desejado por Fontana para a sua encenação: entendia-se Jerry como um Beat, e se estendia tal rotulação para a própria literatura teatral de Albee. Prado, assim como significativa parcela da crítica teatral brasileira, aderiram à tal lógica e descreveram tanto a personagem quanto o dramaturgo como “beatniks”, não destoando de tendências interpretativas para a peça em seu contexto de origem, onde também chegou a ser inserida no compasso da produção literária Beat (HORN, 2003, p. 81).

66 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Em 16 de dezembro de 1966, Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, estreou no mesmo Ponto de Encontro. Após uma breve temporada no Teatro de Arena, foi levada, em 1967, para o Teatro da Rua, onde passou a compor um programa duplo com The Zoo Story. A combinação de Albee com Plínio parecia se conformar à visão geral local, já previamente circulada, do título albeeano como uma aposta no inevitável fracasso da conciliação, do acolhimento e da comunicação, ancorando-se em fundo explicitamente cruel e pessimista. Segundo tal ótica, para sujeitos que almejam o estabelecimento de um contato de valor, a violência seria o único desdobramento possível - tal como transcorreria na peça pliniana, na qual Tonho termina por assassinar seu companheiro de quarto, Paco. Para Paulo Mendonça, o programa duplo de 1967 ofereceria, nas ações de ambos os dramaturgos, “a mesma atmosfera sufocante, a mesma amargura fundamental, o mesmo mundo sem horizontes e sem soluções, o mesmo vazio denso de sofrimento, de frustração, de azedume”, no qual “personagens se movem às cegas, abandonadas”. Torna-se seguro apostar, pois, que, tendo Mendonça dirigido The Zoo Story na Escola de Arte Dramática de São Paulo, anos antes, a obra albeeana adquiriu, desde sua chegada ao Brasil, um patente ar de desencantamento. Luis Carlos Maciel - que, em 1961, após retornar de uma temporada nos Estados Unidos, dirigira sem maior repercussão The Zoo Story e The Death of Bessie Smith, em Salvador, e que, em 1969, montaria, no Rio de Janeiro, o espetáculo mais exitoso O homem feio, composto pela estreia albeeana e pela declamação de “O uivo”, de Allen Ginsberg – encontrava-se na mesma esteira, em seus apontamentos de 1963. Para ele, havia nas literaturas da época a recorrente temática da discordância irremediável entre o sujeito verdadeiramente sensível e lúcido e a sociedade onde deveria viver, à qual, contudo, “jamais se integram os que despertam para o vazio da existência”. Citando como articuladores de tais noções os “angry young men”, particularmente representados pelo dramaturgo inglês John Osbourne e sua Look Back in Anger, de 1956, bem como os poetas Beat, coloca The Zoo Story no mesmo diapasão dos “novos nihilistas”: confiando em seus “rebeldes sem causa e sem esperança”, todos assumiriam uma recusa fundamental ao conformismo social, não oferecendo maiores alternativas edificantes. Assim, Jerry seria um outsider cujo suicídio se tornaria inevitável, uma vez que seria a única resposta cabível ao seu isolamento e à sua dissonância com o status quo vigente, 67 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

representado por Peter. “As tentativas fracassadas de alcançar uma relação satisfatória” de Jerry com seu interlocutor revelariam a “impossibilidade de conciliação ou entendimento entre esses dois projetos originais de existência, o do solitário outsider e o do homem enquadrado nos quadros vigentes”. Ao final, ao se jogar sobre a faca que atirara para Peter, Jerry “consuma sua desesperança”, incontornável. “Por que não se matar, se este mundo não nos oferece valores e não nos cremos capazes de cria-los?”, indaga Maciel, remetendo à “rebelião metafísica, no sentido de Albert Camus”, e, por conseguinte, aproximando Albee da temática central dos dramaturgos europeus do Teatro do Absurdo, conforme a teorização idealizada por Martin Esslin. Carlos von Schmidt, em via aparentada à de Maciel, também traça analogias entre a peça de Albee e Look Back in Anger, de Osborne, e assemelha Jerry à cultura Beat, descrevendo-o como um “hipster”, ou um “beatnik”, que, ao se lançar mortalmente sobre a faca segurada por Peter, realiza um “gesto de rebeldia, de revolta, de não-aceitação do mundo” representado por seu interlocutor. Semelhantemente a Maciel, que analisa a rebelião de Jerry em termos existenciais, von Schmidt elogia-a por não confiar necessariamente em um tom político-partidário. Em tal perspectiva, Albee retrataria o assombro do homem contemporâneo confrontado com a vida humana banalizada por bombas atômicas, com as ameaças da Guerra Fria, e com as diversas incoerências do comunismo e do capitalismo. Abstendo-se de um teatro de agitação e propaganda e de doutrinação, o título albeeano estaria, em sua matriz anárquica, distante de ideologias ou partidarismos específicos, e seria uma análise única e mordaz dos conflitos e tensões latentes do período, enfrentados por Jerry com seu violento inconformismo. O crítico, por fim, celebra Albee como o “dramaturgo norte- americano mais comentado, discutido, criticado, elogiado, conhecido” daquele momento. Igualmente, Jota Dangelo nota que o autor era o “mais discutido, comentado, defendido e atacado dramaturgo norte-americano”. O “extraordinário talento” de Albee, manifesto em seu hábil uso de recursos tragicômicos e em seus contundentes diálogos, seria singular, ainda, por tratar-se do “primeiro dramaturgo americano que se filia ao ‘teatro do absurdo’, e que se mostra, nesta filiação, mais desenvolvido do que outros colegas seus”. De acordo com Dangelo, não apenas The Zoo Story, como também as peças subsequentes a ela, refletiriam plenamente a forma e o tema do Absurdo, possuindo como força motriz a dramatização do “esforço descomunal que o homem realiza para entrar em contato com seus 68 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

semelhantes”. Em tal âmbito, o indivíduo repetidamente tentaria remediar sua solidão, consciente ou não que “não há contato possível”, resultando em interações sempre “duvidosas”, nas quais não se sabe se há ou não relação de valor. Porém, precisamente porque incertas, conduziriam à repetição teimosa, em um ciclo de ânsia para que o insignificante e fugidio enfim signifique e permaneça. Albee encaminharia, pois, tais desesperadas tentativas de contato para o extremo, onde restaria somente a violência, o elemento central de The Zoo Story. Vastamente noticiada e discutida ao longo da década de 1960 pela crítica teatral brasileira, a peça parece ter servido de inspiração básica, sobretudo após o programa duplo que a combinou a Dois perdidos numa noite suja, para os jovens dramaturgos debutantes em 196920, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Conforme pontua Anatol Rosenfeld em uma resenha de tal temporada, Antônio Bivar (O cão siamês ou Alzira Power), Consuelo de Castro (À flor da pele), Isabel Câmera (As moças), Leilah Assumpção (Fala baixo, senão eu grito) e José Vicente (O assalto) estrearam, naquele ano, peças significativamente similares. Derivadas, aparentemente, de The Zoo Story, todas possuíam uma mesma dinâmica cênica, concentrada nas interações entre apenas duas personagens, nas quais, para Rosenfeld, uma “marginal e outcast, livre ou neurótica e inconformada, agride a outra, mais ‘quadrada’, de tendência mais conformista, assentada e estabelecida” (2008, p. 166), propensa a condutas burguesas, embora não obrigatoriamente da burguesia. Ademais, os sujeitos das cinco peças anseiam e se esforçam para o estabelecimento de contato e comunicação, sem que, no entanto, nenhum acolhimento ou vínculo significativo terminem conquistados. Seus tensos encontros produzem uma violência que termina reduzida a resíduos infrutíferos. O embate entre um outcast solitário e um pacato homem conformado à rotina de banalidades da classe média advém, de fato, da peça albeeana, selada violentamente, com a morte de Jerry. O desfecho, de acordo com a crítica brasileira geral, seria uma triste declaração: a rebelião de Jerry contra a sociedade em face da qual está em dissonância demonstraria, como, talvez, todas as fúrias de desajustados, que respostas de revolta se consumiam em si próprias. Ou seja, Jerry falecia, e a peça chegava ao fim sem que se sentisse compreendido, e sem que Peter fosse transformado.

20 Embora Bivar tenha estreado em 1967, com Cordélia Brasil e Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, é, graças às semelhanças formais e temáticas, comumente colocado ao lado de tais autores. 69 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Rosenfeld nota, ainda, que os títulos dos estreantes possuíam estruturas linguísticas afins, repleta de termos coloquiais ou vulgares, como o teatro pliniano. Também Mario Schenberg sustenta que as obras “se relacionam com a peça pioneira de Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja, e também com a clássica Zoo Story de Albee, com a sua ênfase na situação existencial de hoje” (CASTRO, 1989, p. 523). Pode-se defender, portanto, que o programa duplo de 1967 foi de essencial importância para a formação inicial de tais jovens dramaturgos, e que reafirmou o tom pessimista já previamente conferido à peça inicial de Albee. É igualmente seguro apostar que, se “o teatro do absurdo, o tropicalismo e o advento da contracultura são as principais referências dos jovens dramaturgos da geração de 1969” (FARIA, 2013, p. 243), conforme observa Welington de Andrade, a recepção crítica brasileira de The Zoo Story revela que a peça pode ser inserida tanto na esteira do Teatro do Absurdo, quanto nos índices de contracultura, particularmente presentes na literatura Beat norte- americana.

Considerações finais

The Zoo Story aportou no Brasil apenas um ano após sua estreia na Off-Broadway, trazida pelo mesmo elenco de suas primeiras montagens nova-iorquinas. Ainda que apresentada em poucas sessões, restritas à pequena elite cultural teatral de São Paulo e do Rio de Janeiro, foi consideravelmente noticiada, graças, em um primeiro instante, à sua vinculação ao célebre Actors Studio. Ao longo da década de 1960, acabou por receber diversas produções nacionais, compondo, em 1967, um icônico programa duplo com Dois perdidos numa noite suja, com a qual Plínio Marcos despontava, tornando-se um dos dramaturgos mais notáveis do teatro brasileiro. Paralelamente, Quem tem medo de Virginia Woolf? estreava com antecipação em São Paulo, em 1965. O título, debutado na Broadway, em 1962, obtivera ali 664 sessões, marcando a estrondosa migração de Albee para aquelas engrenagens comerciais. A produção paulistana, dirigida por Maurice Vaneau, e estrelada por Cacilda Becker e Valmor Chagas, contou com uma exitosa temporada. Em tal âmbito, de maneira geral, o teatro albeeano foi colocado, desde The Zoo Story, em um compasso pessimista e cínico, e identificado com o 70 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Teatro do Absurdo e com a literatura Beat. Desse modo, influenciou diversos jovens dramaturgos locais, que debutaram peças repletas de elementos da contracultura internacional, nas quais desesperadas tentativas de comunicação culminavam no fracasso, restando apenas, ao final, uma violência infecunda. Assim seria a base constituinte do trabalho albeeano, afinal. Após os anos 1960, The Zoo Story jamais recebeu outra grande montagem profissional no Brasil. Até mesmo a celebridade de Albee - que, ao longo das décadas que se seguiram, consolidou-se como um dos nomes mais elementares do cânone teatral dos Estados Unidos no século XX -, rareou em nosso país. Sua primeira peça, no entanto, não apenas segue considerada o título definidor da Off-Broadway naquela década, como também se mostra de relevância ímpar para o desenrolar do teatro brasileiro daquele momento. A recuperação e a análise da recepção inicial de The Zoo Story no Brasil – aqui selecionada e apresentada de maneira sucinta, em virtude dos limites do artigo – oferece um panorama de como tal título foi compreendido na dinâmica teatral nacional. Ainda, permite que os desdobramentos de suas produções locais sejam melhor compreendidos. A fortuna crítica brasileira não parece destoar de leituras norte-americanas iniciais. A ampla rotulação da peça como um produto Beat21, e, especialmente, como uma exposição dos princípios temáticos e formais do Teatro do Absurdo, pode ter servido de impulso norteador para a reescritura de The Zoo Story, em 2004, quando Albee a transformou em Peter and Jerry (reintitulada At Home at the Zoo, em 2009). Nessa ótica, a organização da primeira recepção do título de estreia do dramaturgo, quer em seu contexto de origem, quer em palcos estrangeiros onde obteve trajetórias fecundas, revela-se ainda mais necessária.

Referências bibliográficas:

21 Aponto, brevemente, que tal identificação sempre soou problemática, pois a aparência de Jerry, segundo a qual “His fall from physical grace should not suggest debauchery; he has, to come closest to it, a great weariness” (ALBEE, 1961, p. 11) não correspondia necessariamente à de um jovem Beat. No entanto, provavelmente foi assim já de imediato considerada devido ao intérprete original de Jerry, George Maharis - conhecido pela série televisiva Route 66, de elementos afins às questões Beat. Ademais, as anedotas pessoais de Jerry evocam um Village onde tal cultura pulsava, povoado, fora da ficção, por Albee e pelos articuladores de um teatro underground, desvinculado da Broadway e da cultura de massas. Urge considerar que na reescritura de The Zoo Story as referências temporais referentes à década de 1960 foram alteradas, sugerindo que a ação se passa nos dias atuais. 71 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

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72 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Combate de Negro e de Cães: A Representação da Mulher e do Negro na Peça de Bernard-Marie Koltès

Fernanda Vieira Fernandes (UFPel)22

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal analisar como o dramaturgo Bernard-Marie Koltès insere e caracteriza a personagem feminina Léone e o personagem negro Alboury na peça Combate de negro e de cães. A proposta dialoga com a tese de doutorado em Letras da autora defendida em 2014 na UFRGS. Tendo como ponto central as relações estabelecidas entre dois homens brancos franceses e os personagens em estudo neste artigo, a obra koltesiana apresenta aspectos importantes no que se refere à opressão racial e de gênero. Inicialmente, serão fornecidas breves informações sobre o autor e a peça. Na sequência, o artigo debruçar-se-á na análise dos referidos personagens, verificando algumas de suas características gerais, a maneira como são construídos, como se comportam na trama e, em especial, como são vistos e tratados pelos demais. Logo após, lançar-se-ão ideias de aproximação entre a figura da mulher e a do negro por conta das situações de opressão em que se encontram no enredo, ainda que as mesmas possuam suas peculiaridades. À guisa de conclusão, o trabalho refletirá sobre a importância de temas como o racismo e o machismo na dramaturgia contemporânea ocidental.

Palavras-chave: Bernard-Marie Koltès; Combate de negro e de cães; personagem feminina; personagem negro.

Introdução

Este artigo, apresentado aos Anais do III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Dramaturgia e a cena contemporânea, sob a organização do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL, debruça-se na inserção, construção e caracterização dos personagens Léone e Alboury na peça Combate de negro e de cães, de Bernard-Marie Koltès. A proposta parte de estudo anterior realizado pela autora em sua tese, defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intitulada O personagem negro na literatura dramática francesa do século XX: La Putain respectueuse, de Jean-Paul Sartre, e Combat de nègre et de chiens, de Bernard- Marie Koltès. Na pesquisa de doutoramento o foco recaiu sobre a representação dos

22 Professora Doutora do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - [email protected]. 73 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

personagens negros no teatro francês do século XX, com um apanhado histórico sobre o tema e o estudo de caso das referidas obras teatrais.23 No percurso, todavia, descobriu-se uma aproximação entre os personagens da mulher e do negro nos enredos sartriano e koltesiano, pois estes encontram-se solitários em suas jornadas e achatados pelos personagens masculinos brancos. As opressões – racial ou de gênero – que sofrem acabam por tocar-se, levando-os a uma empatia mútua. É justamente sobre este tema, em um dos textos do corpus, que trata este trabalho. Num primeiro momento, serão fornecidos alguns dados sobre o dramaturgo, ainda pouco estudado no Brasil. Na sequência, ainda de caráter introdutório, serão apresentadas informações sobre Combate de negro e de cães, tais como sua gênese, sua estreia e seu enredo. Logo após, tratando mais especificamente do tema do artigo, os personagens Léone e Alboury serão brevemente analisados no que diz respeito às suas características gerais e comportamentais, além da observação sobre a forma como os mesmos são construídos na trama, e como são percebidos e tratados pelos demais. A partir disto, seguirão alguns pontos de aproximação entre as duas figuras por conta das situações opressivas particulares em que se encontram. Por fim, a autora lançará uma reflexão sobre a relevância de temas como os que se colocam na peça de Koltès.

O dramaturgo: Bernard-Marie Koltès

Bernard-Marie Koltès é considerado um dos principais nomes da dramaturgia francesa do século XX. Nascido em Metz no ano de 1948, tem como alguns dos temas principais de suas peças a solidão, a marginalidade, a violência, a falta de comunicação (ou impossibilidade de comunicação), as minorias, os estrangeiros e a política. Sua produção para o teatro teve início na década de 1970, inicialmente criando releituras teatrais para obras de outros autores, tais como Gorki, Dostoievski, Shakespeare e Sallinger. Em 1977, inaugurou uma nova fase em seu percurso como autor, de uma escrita mais pessoal, com La Nuit juste avant les forêts: “[...] quand je me suis mis à écrire, c’était complètement différent, c’était un autre travail. Les anciennes pièces, je ne les aime plus, je n’ai plus envie de les voir monter” (KOLTÈS, 2006,

23 A referência completa à tese de doutorado da autora encontra-se nas Referências, ao final do trabalho. 74 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

p.10). No teatro, sua produção contabiliza quinze peças. Seu principal parceiro cênico foi o diretor Patrice Chéreau, que, entre os anos de 1983 e 1988, dirigiu quatro de suas peças. As temáticas para sua escrita surgiam, em especial, a partir das experiências de suas viagens, pelo contato que tinha com diferentes realidades e histórias. Na maioria das vezes optava pelos continentes americano e africano. Visitou países como Nigéria, Mali, Costa do Marfim, México, Estados Unidos, Guatemala, Nicarágua e Brasil. Koltès faleceu bastante jovem, aos 41 anos, vítima da AIDS. Sua obra ganhou cada vez mais destaque, com um número considerável de vendagem editorial, traduções para diversos idiomas e encenações por todo o mundo.

A peça: Combate de negro e de cães

O texto dramático em estudo neste artigo foi escrito em 1979 e teve sua estreia em 1983, sob a direção de Chéreau. O ponto de partida para a sua criação foi a viagem que o escritor fez à Nigéria em 1978, permanecendo cerca de um mês em um canteiro de obras com alguns amigos. Essa foi sua primeira visita à África e marcaria sua trajetória para sempre:

J’avais besoin d’aller en Afrique pour écrire tout [...]. Pour moi l’Afrique, c’est une découverte essentielle! Essentielle pour tout. Parce que c’est un continent perdu. Absolument condamné [...]. C’est comme un bateau qui chavire et qui est très rempli de gens et qui est perdu! Il n’y a aucun espoir [...]. Pour moi l’Afrique c’est un truc décisif pour tout, pour tout, pour tout. Je n’écrirais pas s’il n’y avait pas ça. (KOLTÈS apud UBERSFELD, 1999, p.34-35)

Cumpre frisar também que em Combate de negro e de cães foi a primeira vez que Koltès inseriu um personagem negro no enredo, fato que se repetiria em todos os seus textos posteriores, com exceção do último, Roberto Zucco. Em carta enviada da Nigéria a Hubert Gignoux, diretor do Teatro Nacional de Estrasburgo na época, publicada na revista Europe (1997, p.13-22), o dramaturgo relatou sua experiência no país africano e muitas são as semelhanças com a construção que ele faz na trama de Combate: elementos da ambientação/cenário, comportamento dos personagens, diálogos, entre outros. Bernard-Marie Koltès pôde também conviver de perto com o racismo dos funcionários brancos que trabalhavam no local, expressos em discursos preconceituosos. 75 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Anne Ubersfeld ressalta um episódio diretamente ligado ao texto dramático: durante sua estadia, um operário negro morreu esmagado por uma das máquinas e o fato foi tratado com banalidade, quase como cotidiano e risível (UBERSFELD, 1999, p. 37). A morte de um operário, justamente, é o que dá início ao conflito da peça. Outro ponto crucial, destacado pelo próprio autor como seu pontapé inicial de escrita, foram os sons que faziam à noite os guardas negros das torres de controle que garantiam a segurança ao canteiro, chamando uns aos outros para evitar o sono durante a madrugada. Esses registros sonoros são descritos na rubrica inicial e em algumas falas dos personagens:

Os chamados da guarda: barulhos de língua, de garganta, choque de ferro com ferro, de ferro com madeira, gritinhos, soluços, cantos breves, apitos, que percorrem os arames farpados como uma risada ou uma mensagem codificada, barreira para os barulhos da selva, em volta do acampamento. (KOLTÈS, 2010, p.21)

Apesar da peça se passar na África num período de dominação das empresas estrangeiras e do neocolonialismo, Koltès parecia não querer levantar a bandeira destes temas, negando seu interesse por eles e afirmando que seu desejo era apenas criar uma história a partir de um lugar no mundo (KOLTÈS, 2006, p.11-12). Combate de negro e de cães apresenta em seu enredo quatro personagens em um canteiro de obras de uma empresa francesa, localizado num país do oeste da África não determinado. São eles: Horn (homem branco, francês, mestre de obras e chefe do canteiro), Cal (também branco e francês, engenheiro), Alboury (o negro nativo) e Léone (mulher francesa, branca e recém chegada de Paris). A ação principal desenvolve-se a partir de um fato anterior à peça propriamente dita: Cal, em um de seus ataques de ira contra os negros, assassinou Nouofia, um operário, e jogou seu corpo no esgoto. Dividido em vinte cenas numeradas com algarismos romanos, o texto inicia quando Alboury, alegando ser irmão do morto (seja essa relação determinada por laços consanguíneos ou de coletividade), exige de Horn que o cadáver lhe seja entregue para os rituais da aldeia. O chefe do canteiro tenta convencê-lo a desisitir da solicitação, oferecendo-lhe dinheiro e uísque. Cal deseja matar Alboury. Horn, num primeiro momento, busca acalmar o colega da empresa, procurando meios de conciliação. Além destes três homens em conflito, há uma

76 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

mulher, Léone, trazida por Horn para lhe fazer companhia, que acaba por envolver-se com o negro. Ao descobrir a atração da mulher por Alboury, o chefe apóia o assassinato dele, aliando-se ao seu subalterno. Contudo, o plano deles fracassa quando os guardas que vigiam o canteiro atiram em Cal, matando-o e traindo os superiores brancos que, em tese, deveriam proteger. Léone retorna a Paris, Horn permanece sozinho e Alboury desaparece.

A personagem feminina: Léone

Léone é descrita na didascália inicial da obra como uma mulher trazida ao canteiro por Horn. Com o desenrolar dos fatos, o espectador/leitor toma conhecimento de que ela é jovem (cerca de trinta anos), branca e oriunda de Paris, onde ela diz que trabalhava como camareira em um hotel. Única representante do sexo feminino na trama e recém-chegada ao local, aparece em doze das vinte cenas. A mulher é objeto de desejo dos três homens, porém, cada um reage a este impulso de maneira diferente. Horn vê em Léone uma companhia, a esperança de fim para sua solidão, alguém que ele deve proteger, embora ele não saiba exatamente como lidar com a presença feminina no canteiro – que é uma novidade para ele. O seu olhar só muda quando descobre o interesse dela pelo negro, indignando-se com a suposta traição e envergonhando-se do comportamento dela. Alboury respeita o fato de ela pertencer ao chefe, mantém distância tanto por ela ser branca, quanto por acreditar que ela possa ameaçar seu objetivo de buscar o corpo de Nouofia. Ela menciona que ele é o único que fita seus olhos, porém, mesmo tratando-a com deferência, ele expressa em alguns momentos seu machismo. Cal é o mais direto em seu desejo, extremamente misógino, assediando-a de forma agressiva, humilhando-a e duvidando de seu caráter. O comportamento de Léone oscila entre a excitação por conhecer o continente africano (sobre o qual ela possui uma visão bastante romântica) e o receio em relação à presença masculina no local. O fator determinante para suas atitudes e estados psicológicos, são as relações estabelecidas entre ela e os demais personagens, passando da mulher frágil e ingênua perante Horn, para a oprimida e assustada diante de Cal e, por fim, encantada diante de Alboury. A sua postura vai se transformando a medida em que a trama vai sendo construída, marcada em especial pela forma brutal com que o engenheiro a trata e pela sua paixão imediata pelo homem negro. Léone ganha um ar cada vez mais desesperado. Quando 77 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

renegada por Alboury, tem o seu ápice na peça: quebrando uma garrafa de uísque, ela corta o rosto tentando fazer uma marca tribal como a que ele possui. Seu destino não lhe reserva um bom desfecho e sua última aparição mostra um veículo que a conduz de volta ao aeroporto para embarcar para Paris. Em meio aos conflitos entre os brancos e os negros, Koltès constrói e insere uma personagem que não faz parte de nenhum dos grupos:

Léone est au cœur d’un conflit qui ne la concerne en rien; elle ne fait partie d’aucun des clans en présence, que ce soit celui situé du côté africain (la communauté villageoise ou l’amitié entre Alboury et Nouofia) ou du côté français dans l’espace du chantier public (complicité entre les deux ingénieurs). (POUJARDIEU, 2003, p.37)

Ou seja, ela não pertence àquele lugar e não há ninguém ali que vá fazer algo por ela. Seu espaço e seu grupo ficaram para trás, em Paris, onde também parece que ela não se sentia bem, expressando a opressão feminina em todo o lugar. Frágil, Léone busca a todo momento uma noção de pertencimento a algo ou a alguém, uma afirmação de identidade. Em determinado ponto do texto ela chega a afirmar que está acostumada a ser o que não se deve ser e que pode vir a ser qualquer coisa, até mesmo negra, se isso for necessário para aproximá-la de Alboury. A negritude assume características para ela que vão além da cor. Ou seja, Koltès transpõe para a dramaturgia a imagem da mulher que precisa mascarar-se e assumir diferentes papéis durante a sua trajetória para que ocupe espaços, seja aceita, respeitada ou, ainda, amada.

O personagem negro: Alboury

Alboury, conforme mencionado anteriormente, é o primeiro personagem negro de Bernard-Marie Koltès. Ele é descrito na rubrica de abertura como “um negro misteriosamente introduzido no canteiro” (KOLTÈS, 2010, p.20). Seu nome remete a uma figura histórica da região em que atualmente se localiza o Senegal e que se opôs à penetração branca na África. Diante desta informação já se pressupõe um personagem forte e de resistência perante os brancos. Entretanto, mesmo plenamente consciente de tudo o que se passa em seu território, e demonstrando isso em suas falas bastante lúcidas, de caráter político inclusive, ele não parece 78 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

desejar a disputa com os franceses, só pede que lhe concedam o corpo de seu irmão morto – o que não deixa de ser uma espécie de disputa simbólica entre brancos e negros. Seu objetivo é claro e imutável do início ao fim do enredo e nada o desvia disso:

[...] le seul personnage qui se présente et qui, clairement, déclare ses motifs [...]. Pourtant, son identité et ses intentions sont constamment mises en doute. Horn veut savoir au nom de qui il vient, et Cal met en question ses motifs. La présence d’Alboury est justifiée par la force d’un vouloir. (PALM, 2009, p. 48)

O negro precisa do corpo para manter a coletividade entre os seus. Diferentemente de Horn, que imagina e descreve na cena IV a união dos povos a partir do achatamento de suas culturas em grupos homogêneos, Alboury crê na noção do coletivo a partir de seu grupo e da presença importante de cada membro. Mesmo solitário, ele transmite a noção comunitária de sua aldeia e dá voz ao grupo que representa, no qual nem os mortos são abandonados. Com a recusa na entrega do corpo, lhe resta apenas a vingança, ordenando a morte de Cal aos guardas das torres. O personagem aparece em dez cenas, sempre um tanto quanto escondido, na semiobscuridade, pois sua presença não é benvinda ali no espaço dos europeus, que o desconhecem (ele não é um operário). A luz elétrica é refúgio dos brancos e uma forma de proteção para eles. Já o negro tem no escuro maior segurança. No início da cena XIII, quando Horn acende uma lanterna para iluminá-lo, ele imediatamente pede que a mesma seja desligada. No entanto, isso não faz dele uma figura covarde. Pelo contrário, o simples fato de adentrar no território dos brancos demonstra sua coragem e firmeza nas convicções. Os tiros disparados sob seu chamado na cena final revelam a liderança que exerce juntos aos negros. O primeiro personagem com o qual Alboury mantém contato é Horn, que o vê com desconfiança. O chefe do canteiro, até o momento em que descobre o interesse de Léone pelo outro, busca a diplomacia nas negociações. Depois, nutre um sentimento de raiva ainda maior do que o de Cal. O engenheiro não tem contato direto com o negro em nenhum momento da peça e ele deixa claro que não conversará com Alboury de maneira alguma, enxergando-o como um animal e usando expressões de baixo calão para referir-se a ele e aos demais negros. Seus sentimentos variam entre o medo e o ódio. Os dois homens brancos divergem em sua postura de europeu colonizador, sendo o primeiro aquele que busca meios pacíficos de 79 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

dominação e o segundo, meios violentos e bélicos. A mulher, como analisado no item acima, deixa-se levar pelo encantamento que sente por aquela figura exótica que lhe dá atenção, mas ela não consegue entender as atitudes e valores de Alboury frente à busca do corpo. O negro mantém distância dos brancos, numa relação respeitosa e crítica. Ele, que é tomado por primitivo, é o personagem mais centrado e sensato, consciente de seu espaço, de sua situação e do olhar que os demais têm para ele.

Situações de opressão: algumas aproximações entre os personagens

O primeiro ponto de aproximação a ser observado a partir das breves análises dos personagens é a condição em que se encontram. Ambos solitários, sem pares em sua trajetória. Três homens e uma mulher. Três brancos e um negro. Em quaisquer destas classificações um deles é quem está sozinho. Eles são construídos por alguém que lhes reserva o olhar do outro, visto que Bernard-Marie Koltès era homem e branco. A origem do discurso, neste caso, é fator determinante para compreender que é pela via do outro que o negro e a mulher são concebidos na peça. Os dois são os estrangeiros no canteiro (mesmo que Alboury seja o único africano entre os quatro), os intrusos que surgem para desestabilizar a suposta harmonia, imposta na base da violência velada. Ele, aquele que pertence ao local embora seja invisível, cuja identidade não faz diferença para os brancos. Ela, aquela que vem de fora na tentativa de fugir de uma vida que levava em seu local de origem. As duas figuras se aproximam na opressão e descobrem que, no ambiente hostil dos brancos dominadores, não há vez ou voz para os subjugados. Existem instantes de profundo afeto entre eles, como nas cenas VI, IX e XI. Todavia, suas diferenças sociais, regionais, étnicas, de gênero, culturais e históricas os impedem de aliar-se de fato. Os momentos de ternura são efêmeros e criam elos frágeis, que não se sustentam ou geram atos revoltosos. Com o decorrer da história, o que se vê é a mulher desesperada frente ao que ocorre e o negro mantendo-se firme em seu objetivo, colocando-o acima de qualquer outro envolvimento que possa vir a ter com ela. Ele é negro e já participa de uma coletividade entre os seus, ela deseja ser negra na busca de pertencer a algo ou a alguém. Estaria na mulher a 80 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

mistura dos povos, se ela mantivesse sua identidade branca e desejasse envolver-se realmente com o outro, não se transformar no outro. Em Combate de negro e de cães, o único contato real e sincero com o negro é feito por Léone. Se a primeira leitura leva diretamente o olhar para a temática do racismo e neocolonialismo europeu na África, é inegável que a opressão de gênero está posta em cena. Ao final, Léone retorna ao seu estado inicial, de volta a Paris. Sua consciência é achatada pelo machismo e toda tentativa de insurgir-se contra o sistema que a marginaliza é sufocado. Koltès coloca, assim, de forma muito clara, o problema da submissão feminina em um universo onde se espera da mulher apenas a aceitação, sem reações que possam provocar qualquer revolução. Ela é aquela que carrega a marca do pecado original, como Eva, que se deixa levar pelo desejo. Léone sai do canteiro sem levar consigo nada além de uma cicatriz no rosto e desprezo masculino. Alboury, por sua vez, é parcialmente vencedor na disputa que se estabelece, porque Cal é morto e o assassinato de Nouofia é vingado.

Considerações finais: uma dramaturgia que dialoga com sua época

O breve estudo sobre a representação de uma personagem feminina e de um personagem negro na obra teatral koltesiana apresentado neste trabalho evidencia um interesse do dramaturgo por valer-se de temas de sua contemporaneidade para a construção de seus enredos. Uma das características das grandes obras que permanecem e se destacam para além do seu tempo é o debate de problemas e realidades de suas épocas, direta ou indiretamente, valendo-se ou não de metáforas. Koltès negava o interesse pelo engajamento a causas específicas em sua escrita, evitando centralizar Combate de negro e de cães na temática do racismo ou do neocolonialismo. Esse discurso dele mostra-se muito mais como uma postura frente à própria criação artística e à possibilidade de que o olhar lançado para ela fique reduzido às questões políticas e, até mesmo, panfletárias, perdendo-se aspectos poéticos, por exemplo. Se ele negava que o tema central fossem os negros (o tema que mais se sobressai), não podia negar que o enredo provoca as reflexões, que a história conduz o pensamento para além da vida dos quatro personagens, integrando episódios próximos temporalmente com o período que ele vivenciou. 81 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Colocando Léone e Alboury na posição em que se encontram no texto dramático, Koltès revela a opressão de dois grupos dos quais ele não faz parte: mulheres e negros. E, avançando no tema, demonstra relações entre estes sujeitos e com os demais, que os subjugam: L’individu Koltès manifeste avec la dernière énergie son vouloir: saisir l’humain dans la différence, comme si seule cette différence ou plutôt notre rapport à elle pouvait être constructive et féconde. C’est un point de départ absolu non seulement de sa pensée, mais de son art. (UBERSFELD, 1999, p. 142)

Anne Ubersfeld ressalta que, frente à mundialização que crescia nos anos de 1980, o dramaturgo verificou a possibilidade de não privilegiar apenas o Ocidente, como se fazia até então, dando abertura para as demais culturas existentes à margem no processo de globalização, daí a escolha da ambientação africana nesta peça e o deslocamento dos personagens europeus para lá. Refletir sobre os personagens feminino e negro em Combate de negro e de cães é lançar-se nas proposições que Koltès fez, construindo universos muito particulares para eles. O verdadeiro combate que se trava não é apenas entre homens e mulher, ou entre brancos e negro, mas a partir de consciências que insistem em sua supremacia e pretendem a todo momento e a qualquer preço manter o statu quo de dominação branca masculina ocidental. Um crime abre a história, os tiros a fecham. Não há solução na obra que advenha do diálogo, pois os personagens homens brancos não conseguem estabelecer qualquer troca que não seja partindo da violência verbal e corporal. Se existe um rastro de solidariedade e tentativa de aproximação, isso aparece como fagulha e está nos oprimidos a única chance de coesão.

Referências

FERNANDES, Fernanda Vieira. O personagem negro na literatura dramática francesa do século XX: La Putain respectueuse, de Jean-Paul Sartre, e Combat de nègre et de chiens, de Bernard-Marie Koltès. 2014. 234f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2017. KOLTÈS, Bernard-Marie. Combate de negro e de cães, O retorno ao deserto e Tabataba. Edição bilíngue português-francês. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Aliança Francesa/Instituto Totem/Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2010. ______. Lettre d’Afrique. Europe: revue littéraire mensuelle: Bernard-Marie Koltès, nº 823- 824, Paris: Europe et les auteurs, novembro-dezembro de 1997, p. 13-22. 82 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

______. Une part de ma vie: entretiens 1983-1989. Paris: Minuit, 2006. PALM, Stina. Bernard-Marie Koltès: vers une éthique de l’imagination. Paris: L’Harmattan, 2009. POUJARDIEU, François. La figure du Noir dans la dramaturgie de Bernard-Marie Koltès. Théâtre/Public: Compagnies théâtrales, l’art et la gestion/Koltès, Novarina, Beckett, Shakespeare, nº 168, Paris: Théâtre de Gennevilliers, maio-junho de 2003, p.35-65. UBERSFELD, Anne. Bernard-Marie Koltès. Paris: Actes Sud, 1999.

83 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Discussão Sobre o Trágico Moderno em “Os Mal-Amados”, de Lourdes Ramalho

Monalisa Barboza Santos (UEPB)24 Orientador: Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)25

Resumo: Ao declarar que “Os mal-amados é uma tragédia”, a dramaturga Lourdes Ramalho gerou uma série de questionamentos sobre esta peça, notadamente ao se considerar a formalização de um conflito indissolúvel, anunciado desde os primeiros acontecimentos, como possibilidade de leitura do enredo. Porém, deve-se questionar: quais os critérios para a classificação de um texto como tragédia? Como se aciona o trágico na modernidade? Por meio desses questionamentos, buscou-se discutir aspectos como a forma da Tragédia, a filosofia do trágico e suas relações com a modernidade/contemporaneidade, a partir da análise-interpretação da peça ramalhiana: “Os mal-amados” (1976-7). Os resultados obtidos em meio a essas reflexões são apresentados nesse artigo de forma parcial, visto que a pesquisa se encontra em fase de desenvolvimento. Toma-se as discussões realizadas por Sarrasac (2013), Szondi (2011), Lesky (1996) e Maciel (2017). Esta pesquisa explicita a importância em torno do preenchimento dos pontos obscuros do teatro de Campina Grande-PB, tomando as contribuições ramalhianas e seu empreendimento sobre as formas de pensar e fazer teatro em nossa região.

Palavras-chave: Lourdes Ramalho; trágico moderno; filosofia do trágico; dramaturgia moderna.

Palavras Iniciais

O processo de modernização da cena teatral brasileira, a partir dos incentivos de diversas companhias, buscara uma dramaturgia que refletisse a "cara" do Brasil. Nesse contexto, nasceu a necessidade de redemocratização do teatro, cujo conteúdo trouxesse assuntos de interesse popular. Por meio do "Manifesto do Teatro Popular do Nordeste", de 1961, permeado pelas contribuições de nome como Hermílio Borba Filho e Ariano Suassuna, deu-se início uma série de propostas, através de concursos, visando o aparecimento dessa "nova" forma de fazer e pensar teatro em nossa região.

24 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba – E-mail: [email protected] 25 Professor Doutor, da Universidade Estadual da Paraíba – E-mail: [email protected] 84 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Nessa dinâmica, o teatro amador assume importante papel, visto que diferente das demandas do mercado teatral não visa o lucro como prioridade. Sendo assim, no dizer de Maciel (2017, p. 33), "Coube, então, ao teatro amador o compromisso com a experimentação que, segundo a definição, lhe parecia mais natural, levando à modernização da cena, quando se tornou possível e viável assumir montagens para fazer frente ao que vigorava no mercado teatral [...]". Dito isso, deve-se considerar que ao se tratar do teatro moderno, precisa-se tomar como ponto de partida o teatro amador. Maria de Lourdes Nunes Ramalho configura-se como uma autora relevante para a formação de uma dramaturgia nordestina. No processo de redemocratização da cena teatral nordestina, demonstrou seu comprometimento com a problemática de uma tradição cultural nordestina. "Os mal-amados", cujo texto é de 1976 e montagem de 1977, nasceu por meio do incentivo da Secretaria de Cultura da Paraíba, em que se lançou um edital do II Concurso Paraibano de Peças Teatrais – em Julho de 1977. A peça é apresentada sob dois pontos: regional e universal, em que Lourdes Ramalho destaca o linguajar nordestino/costumes/preconceitos, assim como um tema universal pois "em todas as épocas e em todos os lugares as mulheres foram sempre tratadas como objetos, propriedade dos homens" (RAMALHO, 1980, p. 83). Ao considerarmos a relevância da dramaturga enquanto empreendedora cultural, ao voltarmos o nosso olhar para sua escrita, percebe-se aspectos concernentes a um rompimento com o que antes era produzido. Em entrevista a Ronaldo Dinoá, no Diário da Borborema (05/09/1982), ela declara que “Os mal-amados” é uma tragédia e isso despertou alguns questionamentos da crítica da época, levando-nos a refletir sobre a possibilidade de um trágico moderno neste texto. A partir disso, questiona-se quais os critérios de classificação dessa peça como tragédia? De que forma se aciona o trágico na modernidade? Sendo assim, busca-se esclarecer os pontos escuros do teatro de Campina Grande-PB, tomando a dramaturga e a peça analisada como ponto de partida para se pensar em uma constituição de uma “cena moderna”. As contribuições de Sarrazac (2013) serviram para refletirmos sobre a noção de um drama-da- vida, que pensa na recuperação de uma tragédia universalmente humana como forma de compreender o acionamento do trágico moderno, ou do quotidiano, na contemporaneidade.

85 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Da “crise do drama” ao “drama-da-vida”

A dialética entre os enunciados formais e conteudísticos, assim como a categoria de historicidade estão no centro das discussões empreendidas na “Teoria do drama moderno”, de Peter Szondi (2011). A incompatibilidade entre uma forma particular que é colocada em conflito pelo conteúdo o instigou a traçar uma noção de crise. A fim de demonstrar a sua teoria, aquele pesquisador buscou identificar na tradição a formulação do conceito de drama, cujo alicerce são as relações intersubjetivas, em que o diálogo é o motor da ação dramática e o tempo presente se torna condicionante. Encontrou-se, assim, o conceito de drama como uma forma ensimesmada, ou em outras palavras, o drama puro/absoluto. O drama absoluto – originário da Inglaterra Elisabetana passou a ser questionado pelas peças analisadas por Szondi26, em que se ressalta o aprofundamento épico/lírico e, consequentemente, o distanciamento do diálogo. Tal afastamento influencia Szondi a repensar e negar as concepções tradicionais/aristotélicas como parâmetros para o que se produzia. Isso porque essa linha estabelecia diretrizes e uma defesa das formas a-históricas, estanques e pré-estabelecidas. Para fundamentar seu posicionamento, o pesquisador aponta para a “contradição [que] surge quando um enunciado fixo e não questionado da forma passa a ser exposto em questão pelo conteúdo” (SZONDI, 2011, p. 20). Em meio às contradições, o drama absoluto passou a modificar-se na tentativa de salvar e, posteriormente, superar a crise que lhe atingira. Para isso, utilizou-se de recursos presentes em outros gêneros, rumando para uma romancização – ao recuperarmos o termo cunhado por Bakhtin, ou uma epicização. Estabelecendo-se, pois, como um drama moderno, cujas características podem ser compreendidas por meio do diálogo intrasubjetivo, em que o tempo é esgarçado, o diálogo é improdutivo e o fato é um acessório. Jean-Pierre Sarrazac, influenciado pela perspectiva szondiana, prefere lidar com essa crise do drama e a suposta “superação” do épico sobre o dramático como uma mudança de paradigma ou uma “mutação lenta”, negando a perspectiva teleológica. Enquanto Szondi

26 Em sua análise, Szondi utiliza-se de um recorte de 1880-1950, destaca, por exemplo, as peças de Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Maeterlinck, Hauptmann. Esses que estão inseridos no processo de transição dos elementos. Além disso, o pesquisador aponta para as tentativas de salvação e resolução. Para isso, baseia-se em Piscator, Brecht, Wilder, Miller, etc. 86 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

tratara do drama absoluto versus drama moderno – resultado de uma ultrapassagem épica; Sarrazac, por sua vez, lida com a conceituação de um drama-da-vida (novo paradigma) e o drama-na-vida (concepção antiga), esse último que retrata:

[...] uma forma dramática assente numa grande reviravolta da sorte – passagem da felicidade à infelicidade ou o contrário –, num grande conflito dramático, composto por <>. Em suma, assente num desenvolvimento ao mesmo tempo orgânico e lógico da ação (SARRAZAC, 2011, p. 40).

O drama-da-vida reunirá outros elementos, contrários aos moldes antes estabelecidos, isto é, a unidade de lugar, a unicidade da ação e a jornada fatal. Ao passo que o drama-na-vida recorre à existência de um herói, o drama-da-vida liga-se ao homem comum e às situações conflituosas que o atinge, recupera, pois, a noção de uma tragédia universalmente humana. A diferenciação desses modos se dá, sobretudo, no âmbito do infra-dramático em que não há mais a mudança drástica de um estado de felicidade para infelicidade (ou o contrário), pois esses acontecimentos se confundem. Então, nas palavras de Sarrazac (2011, p. 41), “já não há progressão dramática, já não há nó e desenlace, já não há grande catástrofe, mas sim uma série de pequenas”. O drama-da-vida torna-se algo voltado ao íntimo e ao quotidiano, aproxima-se do anonimato, absorve os conflitos históricos, resultando em um alargamento do dramático, cuja ação das personagens torna-se mais passiva do que ativa. A nova perspectiva (drama-da-vida) opõe-se ao modelo aristotélico-hegeliano ao se simpatizar com a tragédia universalmente humana (termo empreendido por Schopenhauer na época de Ibsen, Strindberg, Maeterlinck). Visão essa que Lukács considerou uma inanição da vida em geral. Por outro lado, Sarrazac (2013) considera que há nesse posicionamento uma negação do rompimento entre o trágico e a tragédia clássica. As discussões sobre o trágico e a tragédia desembocam numa problemática, isso porque ao lidar com o princípio do trágico traçamos um caminho de retorno à tragédia ática. Albin Lesky (1996) já apontava para alguns pontos cruciais dessa relação conflituosa. O mito, que servira como fonte dos temas trágicos, direcionava a criação da trajetória de um herói marcado pela harmatia, cuja morte era certa, isso desde os primeiros poemas épicos. Nesta perspectiva, percebe-se que os gregos, de fato, contribuíram para a criação da arte trágica, porém não desenvolveram nenhuma teoria do trágico que contemplasse a concepção de

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mundo. Diante disso, alguns teóricos recuperaram tais moldes clássicos para defender posicionamentos mais radicais em torno da tragédia (à exemplo de Goethe, Schiller) visto que há uma tentativa de um modelo a-histórico que Lesky (1996) já considerava como uma impossibilidade. Por isso, o autor aponta para uma separação do conceito, a fim de alcançar um melhor esclarecimento sobre o mesmo. Apresenta, então, três modos de lidar com esse trágico em que temos: uma visão cerradamente trágica do mundo, um conflito trágico cerrado e uma situação trágica. Ao aniquilar as forças e os valores que se contrapõem, a visão cerradamente trágica do mundo não pode ser solucionada e é inexplicável por nenhum sentido transcendente. A segunda concepção, o conflito trágico cerrado, apresenta-nos uma situação sem saída, que culmina na total destruição, essa constitui-se como um discurso parcial porque não traz uma total representação do mundo. A situação trágica nos exibe elementos que demonstram que a falta de saída não é definitiva, uma vez que pode propiciar uma solução para o conflito. O termo "trágico" funciona, assim, como um elemento de esclarecimento para essa problemática, uma vez que se pode declarar que um texto é uma tragédia não só para demonstrar que ele possui características de um determinado gênero da literatura clássica, "mas também por causa de seu conteúdo trágico, que dentro dessas peças se configura em sua situação trágica" (LESKY, 1996, p. 39). Diante disso, o uso do trágico se relaciona a uma abertura ao desenlace do conflito, pois através dessa perspectiva uma tragédia ática pode dialogar com o trágico por demonstrar uma situação que, por exemplo, não impossibilita o desfecho feliz. Sendo convencional a situação apresentar-se como indissolúvel e culminar na morte. Lesky (1996) propõe uma visão do trágico na tragédia grega, visto que diversas peças apresentam um final conciliatório que contrariava as noções normativas do gênero. Ao deslocarmos esta problemática para o trágico moderno e contemporâneo não há como enxergá-lo a partir da visão aristotélica, pois de acordo com a proposta de Sarrazac (2013, p. 13), “se há um trágico moderno [este] não poderia associar-se, como em Aristóteles e como na tragédia antiga, a ‘um restabelecimento da fortuna’ e à inelutável catástrofe final. Seria antes o efeito da catástrofe inaugural: o simples fato de nascer, de ser lançado ao mundo”. A concepção sarrazaquiana aponta para uma filosofia do trágico apresentada como uma:

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[...] construção eminentemente moderna, a originalidade dessa reflexão filosófica, com relação ao que foi pensado até então se encontra justamente no fato de o trágico aparecer como uma categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana, a dimensão fundamental da existência (MACHADO, 2006, p. 42-43).

A partir da mudança do drama, ao se influenciar dessa visão trágica do mundo já se nota, desde os primeiros momentos, a construção de um conflito indissolúvel. Isso significa que o “o trágico do drama-da-vida é um trágico com pavio que queima lentamente. Nesse teatro de essência estática, o trágico está presente desde os primeiros instantes da peça e não faz senão revelar-se progressivamente, no sentido fotográfico da palavra” (SARRAZAC, 2013, p. 14). Sabendo disso, a partir de agora rumaremos para uma aproximação das noções apontadas por essa perspectiva ao que Lourdes Ramalho propõe como a formalização de uma tragédia na peça “Os mal-amados”.

“Os mal-amados” como possibilidade de uma leitura do trágico moderno

Em “Os mal-amados” (1976-7), o espectador já está inserido em um ambiente em que a tensão está instaurada. A personagem principal é o coronel Julião Santa Rosa e a peça retrata os preconceitos e sua falta de limites em torno da opressão à mulher. O sertão nordestino, no ano de 1922, é o cenário da trama em que conhecemos o conflito familiar envolvendo Ana Rosa, filha de Julião, que teve um caso amoroso com um sacerdote da cidade. Com isso, ela desperta a ira do pai que descobre a sua gravidez. Após isso, o patriarca dá ordens para que matem o padre e planeja o assassinato da filha, simulando uma morte natural. As outras personagens são: Paulina (esposa de Julião), Mariinha (afilhada), Clemente (criado), Isidoro (vizinho), Gumercindo (empregado) e Dr. Pedro Santos (advogado e sobrinho do padre). Através dessa peça ramalhiana, nos deparamos com o conflito no qual os Santa Rosa estão inseridos, isto é, eles são atingidos por uma série de situações trágicas, presentes desde os primeiros momentos da peça. Por meio das ações do coronel, diversas situações graves passam a acontecer: o assassinato do Padre; "a morte para o mundo" de Ana Rosa, uma vez que seu pai resolve prendê-la no sótão tendo os ratos como sua companhia; o fato do patriarca ser atingido por uma hemiplegia, que deixa metade de seu corpo paralisado; a descoberta do 89 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Dr. Pedro em relação à morte do tio e o desfecho da história, com a importante participação de Paulina, que, no clímax da peça, resolve dar cabo da vida do marido, matando-o com toxina para rato. Na coletânea Teatro paraibano, hoje (CORRÊA NETO et. al., 1980), a peça é identificada como “Texto Teatral Trágico”. E em entrevista ao Diário da Borborema, em 05 de setembro de 1982, Lourdes Ramalho declara que “Os mal-amados é uma tragédia”. Esse fato nos leva a refletir sobre o modo como a autora identifica esta sua produção, buscamos problematizar o que levou a dramaturga compreender seu texto e à recepção crítica da peça. Ao lidarmos com a modernidade, avançamos para um terreno que está em transformação constante, porém percebe-se que por meio dessa renovação ou pulsão rapsódica27 nos deparamos com um movimento heterogêneo, no qual diversos elementos podem ser combinados entre si. Lourdes Ramalho, desde a adolescência, sob influência da sua mãe escrevia peças. Em sua profissão como professora, incentivava a produção teatral. Diante disso, em uma das críticas dirigidas à peça “Os mal-amados”, Carmélio Reynaldo, no Jornal “A União” (1977), ao refletir sobre sua trajetória, traz alguns exemplos de espetáculos montados pela dramaturga e sua mãe, Ana de Figueiredo, nas escolas públicas:

Os espetáculos, montados com alunos do Grupo Escolar e da escola Normal eram compostos de números de variedades e tinham, no final, uma peça curta que recebia a denominação de Drama, mesmo que fosse uma comédia, geralmente escrita por uma das duas, baseados às vezes em estórias de Trancoso, em obras literárias ou em fatos reais (REYNALDO, 15/03/1977).

O modo popular das peças e as suas definições enquanto gênero estão no centro desse comentário, Reynaldo considera uma espécie de amadorismo por parte da dramaturga no que se refere à definição do gênero nas peças apresentadas. Esse ponto nos fez refletir acerca da problemática da peça "Os mal-amados" e a sua definição enquanto tragédia. Em outro

27 A pulsão rapsódica nasce a partir do conceito de rapsódia que corresponde ao gesto do autor rapsodo – seu significado corresponde ao gesto de costurar, liga-se a procedimentos de escritas à exemplo da montagem, hibridização, colagem e coralidade, “a rapsódia afirma-se como um conceito transversal importante, que se declina em uma série de termos operatórios, desembocando na constituição de uma verdadeira constelação” (SARRAZAC, 2012, p. 152). 90 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

momento dessa crítica, ele aponta alguns desvios que observa na peça em questão, declarando as suas preferências:

Outros motivos que me levam a preferir As Velhas a Os Mal-Amados é a forma como a trama, nesta peça, se desenlaça e leva o advogado a descobrir o mandante do assassinato do tio. O recurso quebra totalmente o clima dramático quando o negro Clemente, à maneira dos personagens de esquetes circenses, fornece pistas das quais qualquer pessoa deduz o restante, e depois desconversam atrapalhado, tentando remendar. Ora, se o escravo era a única pessoa de confiança de Julião Santa Rosa, não poderia agir como um tolo nem um tagarela para assunto de tal natureza! (REYNALDO, 15/03/1977).

A partir daí, Reynaldo inicia uma série de apontamentos em relação a algumas inadequações que, na sua opinião, cercam a montagem da peça. Ele ressalta que, em muitos momentos, a peça assemelha-se mais a uma farsa do que a um drama. Ao destacar o caráter cômico da personagem Clemente e o seu patrão, o crítico aponta um dado negativo para a proposta “séria” que a peça deveria possuir. No entanto, podemos considerar que o artifício utilizado pela dramaturga demonstra um caráter de mistura como declara Ayala (1997. Dito isso, para a crítica da época, a união desses elementos aponta para uma possível inadequação do gênero proposto, mas que através dessa perspectiva moderna/contemporânea, nos leva a outros aspectos híbridos, misturados, comum ao popular, através da costura de elementos contrários. “A possibilidade de relação com o nosso próprio mundo” é um dos requisitos que Lesky (1996, p.33) aciona para o alcance do efeito trágico, isso porque “[...] o caso deve interessar-nos, afetar-nos, comover-nos. Somente quando temos a Sensação do Nostra res agitur, quando nos sentimos atingidos nas profundas camadas do nosso ser, é que experimentamos o trágico”. Sob essa perspectiva, em uma das críticas direcionadas à peça ramalhiana, Teresinha Figueiredo reflete sobre a ligação da peça com o cotidiano da época. Para ela, Julião Santa Rosa é resultado de seu meio, suas ações são despertadas como uma espécie de estímulo e reações, cuja preocupação principal volta-se para a honra, com isso “o clima de tragédia que se desenrola no texto é fruto da família patriarcal brasileira” (FIGUEIREDO, 27/05/1977). As relações estabelecidas com a realidade demonstram que essa situação poderia se passar em qualquer parte do mundo, onde as normas rígidas e muitas vezes irracionais persistem.

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Ana Rosa, Mariinha e Paulina são as maiores vítimas do coronel. Todavia, Ana Rosa, apesar de não participar da ação, carrega consigo a “dignidade de erro”, seguindo um processo ascensional por meio do processo descensional de Julião. A “ascensão” ocorre quando é colocada no sótão – parte superior da casa, sendo intitulada pelas demais personagens como “Santinha”, “Prinspa”, “Virge”. A primogênita dos Santa Rosa é a que move as demais personagens em torno de si, porém, mesmo diante da sua importância no enredo, não possui nenhuma fala. Do ponto de vista da teoria da mudança de estilo, Szondi (2011), ao tratar da relação sujeito-objeto, declara que esse é condicionado pelo tema, por fundamentar o princípio formal da obra. Assim, por meio desse ponto de vista, uma temática passa a influenciar na forma dramática, com isso afirma que:

[...] como a crise do drama levou à passagem do estilo dramático para o estilo contraditório, partindo dos deslocamentos temáticos, deve-se compreender a mudança seguinte numa temática que em grande parte se mantém a mesma como o processo no qual o que era temático se precipita em forma (SZONDI, 2011, p. 82).

Nesse momento, ao voltarmos o nosso olhar à Ana Rosa, não se pode desconsiderar o motivo desta permanecer calada durante a ação. O texto de Lourdes Ramalho, portanto, aponta-nos as modificações formais que aparecem ao longo da peça, logo, a personagem formaliza o que está indicado pelo tema – como mulher, ela permanece silenciada e impossibilitada de tomar suas próprias decisões. Assim, as personagens envolvidas nesse conflito são homens comuns, que nos remete o trágico do quotidiano (SARRAZAC, 2013), em que não há mais a presença do herói aos moldes gregos, mas que possibilitam por meio da exortação à honra; da linguagem e dos costumes fazer uma relação com o nosso próprio mundo, isto é, a realizar um diálogo entre a vida e a arte. Por isso, desde os primeiros acontecimentos, o espectador está inserido nesse clima trágico, cujo pavio queima lentamente.

Palavras Finais

92 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Através dessas reflexões, buscamos esclarecer alguns pontos obscuros da cena teatral do Nordeste. Os resultados aqui obtidos são parciais no que se refere à pesquisa que se encontra em desenvolvimento. Com isso, mesmo que de modo rápido, refletimos sobre as influências do teatro moderno presentes em nosso cenário nordestino/paraibano/campinense. Nos baseamos na produção de Lourdes Ramalho como uma empreendedora cultural do teatro paraibano, reconhecendo que, mesmo permanecendo desconhecida no âmbito da dramaturgia nacional, ela representa uma forte influência na cultura teatral campinense. Por meio da escrita da peça “Os mal-amados”, desenvolvida em meio ao incentivo de uma redemocratização do teatro, cujo objetivo era o empreendimento estético em torno de um popular/regional, observamos traços de uma perspectiva híbrida na sua construção. Isso porque a dramaturga une elementos trágicos e cômicos nessa peça, unindo outros elementos caros acerca da temática que pode ser recuperada pela forma, a exemplo da constituição da personagem Ana Rosa. No que concerne à recepção e definição do gênero da peça, buscamos analisar o trágico moderno e a filosofia do trágico, demonstrando, através da aplicação em críticas e referências à peça na época de sua montagem em contraponto com o drama-da-vida, termo empreendido pela perspectiva sarrazaquiana. Compreendemos, portanto, que há um conteúdo trágico em “Os mal-amados”, porém, a peça não representa a tragédia nos moldes clássicos, constituindo-se como uma tragédia universalmente humana, em que não há a mudança drástica de um estado de infelicidade para felicidade ou o seu contrário, pois, as situações trágicas se confundem e estão presentes desde os primeiros momentos da cena, isto é, como uma catástrofe inaugural, mesclando-se às esferas dos vivos, e apontando para um “mundo misturado”, como é comum se observar em dados modos de representar o Nordeste nas artes.

Referências

ANDRADE, Valéria. A força nas anáguas: matizes de hispanidade na dramaturgia de Lourdes Ramalho. In: MALUF, Sheila Diab. AQUINO, Ricardo Bigi de (orgs). Reflexões sobre a cena. Maceió: EDUFAL, Salvador: EDUFBA, 2005, p. 315-331. 93 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996. MACHADO, Roberto. Poética da tragédia e filosofia do trágico. In: O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Azhar, 2006. p. 23-49. MACIEL, Diógenes André Vieira. Lourdes Ramalho na cena teatral campinense (1974- 1975). 2017. 97 f. Monografia (Estágio pós-doutoral) - Curso de Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. RAMALHO, Lourdes. Os Mal-Amados. In: CORRÊA NETO, Alarico et. al. Teatro paraibano, hoje. João Pessoa: A União, 1980. p. 81-150. SARRAZAC, Jean-Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno - que poderia ser um trágico (do) quotidiano. Pitágoras 500, Campinas, v. 4, p. 3-15, abr. 2013. SARRAZAC, Jean-Pierre, A rapsódia. In: Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 152-155. SARRAZAC, Jean-Pierre. A “reprise” (resposta ao pós-dramático). In: Outro diálogo: elementos para uma poética do drama moderno e contemporâneo. Tradução de Luiz Varela. Évora: Editora Licorne, 2011. p. 33-50.

Textos e arquivos pesquisados em Jornais

DINOÁ, Ronaldo. D. Lourdes Ramalho: uma mulher a serviço da cultura teatral campinense. Diário da Borborema, Campina Grande, 05 set. 1982. p. 2-3. FIGUEIREDO, Teresinha. Como nossos ancestrais. Os mal amados: uma tragédia sertaneja. Lourdes Ramalho: por um teatro paraibano. O Norte, João Pessoa, 27 mai. 1977. REYNALDO, Carmélio. Sobre Os Mal-Amados e outras peças de Lourdes Ramalho. A união, João Pessoa, 15 mai. 1977. p. 16.

94 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Distanciamento Épico e Gestus Social: do Palco Ao Romance

Sandra Vanessa Versa Kleinhans da Silva (UNIOESTE) 28

Resumo: As obras de Brecht revelam o esforço em refletir dialeticamente as relações entre a própria obra e a sociedade, as quais são intensificadas pelo efeito de distanciamento proposto por ele em seu teatro épico, teatro no qual Brecht acredita ser necessário mostrar, não somente as relações inter humanas no palco, mas também as determinantes sociais de tais relações. Neste estudo, objetiva-se refletir sobre as potencialidades estéticas do efeito de distanciamento e do Gestus social em duas obras distintas de Brecht: a Ópera dos Três Vinténs (1928) e o Romance dos Três Vinténs (1934). Vale salientar que estes textos, resguardadas as diferenças de gêneros literários, temporalidades e contextos históricos, operam na constituição de uma `consciência de minoria`, em que o personagem funciona como um veículo de comunicação e impulsiona a reflexão crítica do leitor/público/plateia. Embasam a reflexão crítica, os próprios estudos de Brecht sobre o teatro e sobre a literatura, estudos de Anatol Rosenfeld (1985), Gerd Alberto Bornheim (1992), Peter Szondi (2001), entre outros.

Palavras-chave: Brecht; teatro/romance; distanciamento épico; gestus.

Introdução

Este artigo apresenta um breve estudo da peça teatral A Ópera dos Três Vinténs (1928) e do Romance dos Três Vinténs (1934), de Bertolt Brecht, objetivando-se refletir sobre as potencialidades estéticas do efeito de distanciamento e do Gestus (elementos estéticos formulados por Brecht), nas duas obras distintas brechtianas. Para atender a esse objetivo, buscou-se apoio na formulação teórica de Anatol Rosenfeld (1985), Bertolt Brecht (1992, 2005), Gerd Alberto Bornheim (1992), Peter Szondi (2001), entre outros.

28 Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, pela UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, sob orientação da professora Dra. Lourdes Kaminski Alves, e-mail: [email protected].

95 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Do lugar teórico crítico O dramaturgo constrói na produção teatral sua representação simbólica de mundo, logo o drama, indiferentemente de seu tempo e local, consegue adentrar no processo de imaginação do ser humano. Portanto, para Peter Szondi (2001, p.30), o teatro “não fala; ele institui a conversação”. Estudos teórico-críticos sobre o gênero dramatúrgico, a exemplo de Bertolt Brecht (1992, 2005) e Gerd Alberto Bornheim (1992) propõem as subdivisões: Teatro Dramático, Teatro Épico ou Dialético, com base no modus operandi da representação e da recepção. A partir daí, estas formulações teóricas encontram ressonância nos estudos de Jean-Pierre Sarrazac (2012), Peter Szondi (2001), Anatol Rosenfeld (1985), Renato Cohen (2002) entre outros, com importantes desdobramentos para se pensar as práticas teatrais no Brasil e no mundo. O Teatro Dramático tem sua base nos pressupostos de Aristóteles, segundo Bornheim (1992), “[...]. A dramaturgia fechada, ou aristotélica, prende-se aos antigos preceitos: obediência básica às três unidades, mas com certa tolerância, atenção à velha exigência da causalidade no desenvolvimento da ação, ao conflito e ao desenlace dessa mesma ação, e algumas coisas mais” (BORNHEIM, 1992, p. 317), ao contrário desta modalidade de teatro, encontra-se o Teatro Épico ou Dialético, inaugurado por Brecht. Conforme Bornheim (1992), o teatro épico se mostra como uma forma de teatro extremamente rica devido à variedade e aos diversos elementos dos quais dispõe: desde uma nova técnica de atuação e direção até uma nova dramaturgia, na qual há as mais variadas “técnicas de palco, a música, o emprego de filmes, e outras coisas mais [...]” (BORNHEIM, 1992, p. 138). Ademais, uma das características do teatro épico é a presença da narrativa, em que o autor atua também como o narrador da história, divergindo totalmente do teatro aristotélico, pois de acordo com Rosenfeld:

O teatro épico mostra-se, logo, narrativo; diverge totalmente do teatro dramático, no qual não havia um deus ex machina e ninguém contava a história; as personagens a viviam, em vez de contá-la. O autor, no teatro épico, manipula a ação, faz saltar o tempo, seleciona os acontecimentos, cenas e lugares. (ROSENFELD, 2009, p. 300)

96 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Outro aspecto importante a ressaltar sobre o teatro épico é a reflexão crítica e social que ele desperta. Nessa perspectiva, as peças de Brecht trazem à tona as questões sociopolíticas, à crítica à burguesia, os sujeitos marginalizados, os paradoxos, a ruptura da quarta parede29; diferindo das características do teatro dramático. Para Brecht (apud Bornheim, 1992), “Distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece o óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade” (BRECHT, tomo III, 101, apud BORNHEIM, 1992, p. 243), ou seja, gerar um estranhamento diante daquilo que já conhecemos e nos parece óbvio, mas que sem se estar distanciado não se consegue de fato uma reflexão crítica. Bornheim observa que quando “se fala em distanciamento, logo se pensa no ator”, no entanto, lembra que “[...]temos em mãos um verdadeiro sistema dos distanciamentos, composto de diversas partes que se encadeiam com suas práticas em um todo unitário. (BORNHEIM, 1992, pp. 247-248). Desse modo, ao encontro das ideias do autor supracitado, o efeito de distanciamento é um dos elementos fundamentais na teoria do teatro épico brechtiano, e ao falar de tal efeito, salienta-se que este ocorrerá por meio do público, do ator, dos elementos cênicos, da música e, também, do diretor. Portanto, para que esse efeito ocorra, é importante o espectador também estar distanciado, ou seja, o público necessita deixar de ser passivo e agir de maneira crítica e reflexiva. Outra elaboração conceitual, desenvolvida por Brecht e igualmente importante para se refletir sobre distanciamentos, é o conceito de Gestus, o qual designa as relações dos homens entre si, visto que segundo Brecht:

[...] por Gestus não se deve entender a gesticulação; não se trata apenas de movimentos de mão que sublinham ou elucidam, trata-se, sim, de posturas gerais (Gesamthaltungen). Uma língua é gestual quando ela descansa sobre o Gestus, quando mostra determinadas posturas daquele que fala, que contrapõe o falante a outras pessoas. (BRECHT, tomo III, 281, apud BORNHEIM, 1992, p. 281)

29 Segundo Fialho (2016), a quarta parede seria um limite virtual o qual se transforma em uma janela para outra realidade, distante e intocável. A quebra da quarta parede ocorre quando se ultrapassa esse limite, conseguindo fazer com que o ator e o público se percebam e interajam de forma direta, deixando-se de lado a ilusão do espectador de ser somente um observador invisível (ou ignorado) da ação cênica.

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Destarte, o Gestus diz respeito ao papel social ocupado, desde todo o gestual, o vestuário, o estereótipo, o discurso até a forma de agir, que comunica a gestualidade própria de um papel social, como se verifica na seguinte parte da peça:

PEACHUM –– Estes são os cinco tipos básicos da miséria capazes de comover o coração humano. Ao ver tais tipos, o home cai naquele incomum estado de espírito que o predispõe a soltar o dinheiro. Equipamento A: vítima do progresso dos meios de transporte. O aleijado bem-humorado, sempre alegre –– mostra como se faz ––, sempre despreocupado, exacerbado por um toco de braço. Equipamento B: vítima da arte da guerra. O treme-treme importuno, molesta os transeuntes, inspira repulsa –– mostra como se faz ––, atenuada por condecorações. Equipamento C: vítima do progresso industrial. O cego digno de piedade ou A Escola Superior da Arte de Mendigar [...]. (BRECHT, 2004, pp. 18-19)

Ou seja, o Gestus se mostra por meio da máscara social de cada indivíduo, o que fica perceptível no excerto acima, no qual cada personagem assume uma máscara social, a fim de instigar a piedade humana, e assim, conseguir dinheiro. Destaca-se que os elementos cênicos presentes na peça, a presença do Gestus e a quebra da quarta parede (elementos que rompem com a ilusão de realidade) ajudam a se chegar ao efeito de distanciamento. Segundo Rodrigues (1970/1), ao se analisar os temas abordados por Brecht em seu teatro, “[...] a colocação paradoxal (e o paradoxo é a característica mais evidente em Brecht) se explica na medida em que, para êle, as condições sociais em que o homem é obrigado a viver impedem-no de revelar sua verdadeira face humana.[...]” (RODRIGUES, 1970/1, p. 196). Essa hostilidade humana e o paradoxo ficam notórios na seguinte fala do senhor Peachum:

PEACHUM para o público –– Preciso inventar algo novo. Está ficando cada vez mais difícil, pois meu negócio é despertar a piedade dos homens. Existem umas poucas coisas capazes de comover o coração humano, poucas apenas, mas o pior é que, quando são usadas com freqüência, elas deixam de fazer efeito. É que o homem tem a terrível capacidade de se tornar insensível a seu bel-prazer. Por exemplo, se um homem vê um pobre aleijado para na esquina, na primeira vez, assustado, dá-lhe logo dez vinténs, mas na segunda vez solta apenas cinco, e se o vir uma terceira vez, o mandará friamente para a cadeia. A mesma coisa acontece com os meios espirituais [...]. (BRECHT, 2004, p. 15)

98 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Nessa citação fica clara a perspicácia de Brecht ao criticar o quão hostil e mesquinho o indivíduo se torna na sociedade capitalista, ao utilizar da cordialidade e piedade humana para se conseguir poder e dinheiro. Pois ele (o personagem/persona) se utiliza disso para que seu negócio (criar e “aliciar” mendigos) vá em frente e ele consiga se sair bem financeiramente, porém a piedade a qual ele quer que os outros tenham, ele não a possui, comunicando aí, o paradoxo desta personagem. De acordo com Bornheim (1992), ressalta-se ainda que para o efeito de distanciamento ocorrer, Brecht desnuda o ambiente, tira a decoração supérflua, torna o espaço mais versátil e flexível e a música é disposta de maneira distinta ao teatro dramático, pois o “início de uma canção coincidia com mudanças na iluminação, iluminava-se a orquestra e na tela de fundo apareciam os títulos de cada número cantado; além disso, os atores (cantores) mudavam de posição em cena. [...]”. (BORNHEIM, 1992, p. 299). Tais características são explícitas nesta cena da peça, por intermédio de uma música crítica sem perder sua tonalidade poética:

Marcam o ritmo batendo com o pé em cadência. Mas nada lhes dá prazer. Calam-se e põe de novo, tranqüilamente, os pés em cima das mesas. Os homens passam pela rampa cantando. Depois saem pelos fundos. OS HOMENS –– Vem primeiro a barriga E em segundo vem amar Em terceiro vem a briga, E beber, em quarto lugar! Que fique bem compreendido: Aqui é tudo permitido! (BRECHT, 2004, p. 149)

Um dos aspectos notórios do efeito de distanciamento são as músicas (em estilos de canções e baladas) presentes no decorrer da peça, pois elas servem como um intróito/prólogo da temática a ser explorada em cada ato, como uma preparação para que o espectador compreenda o que será tratado em cada parte da peça, com a finalidade de gerar a curiosidade e o estranhamento. No início da peça, isso fica perceptível, pois seu prólogo é intitulado como a Moritat30 de Mac Navalha (em português a Balada de Mac Navalha) por meio da qual é narrado um dos

30 “A palavra Moritat significa, em português, “balada”, e está associada tradicionalmente à canção de um antigo cantor de rua, com uma estrutura melódica e harmônica simples, embora cantada de forma específica a um propósito e a uma situação. O cantor apresentava narrativas diversas: de crime, sentimentais, fatos importantes, desastres naturais, entre outros. Ele também se utilizava de um realejo (órgão de barril) e fazia a apresentação de 99 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

crimes cometidos por Mac Navalha e também a sua a fama de bandido temido por todos e que ainda não pagou por seus crimes, sendo esta cantada por um cantor de feira, a qual diz:

Tubarão tem dentes fortes, Que não tenta esconder; Mackie tem uma navalha, Que ninguém consegue ver.

[...]

Mosche Meier está sumido, E outros tantos marajás: Sua grana embolsa o Mackie, Mas tu nada provarás. (BRECHT, 2004, p. 13)

Outro exemplo disso ocorre no primeiro ato da peça, o qual inicia com o coral matinal de Peachum (conhecido como o chefe da mendicância por aliciar mendigos para trabalhar para ele), em que se comunica claramente a crítica à sociedade capitalista e também a religião sendo usada como um meio de se conseguir dinheiro/esmolas, por intermédio da exploração do sentimento de piedade daqueles que têm medo de enfrentar o “Juízo Final”, de forma irônica: Acorda, macaquinho cristão! Começa a pecar salafrário! Tu não passas de um charlatão: Ganharás do Senhor teu salário.

Vende a mulher e o irmão, Porque és um patife venal. Deus pra ti é uma bolha de sabão? Tu verás no Juízo Final. (BRECHT, 2004, p. 15)

Nessa mesma linha de raciocínio, Polly, filha do chefe da mendicância, acaba se casando (contra a vontade e escondida dos pais) com o chefe dos bandidos, Mac Navalha. E ela conta aos pais o ocorrido por meio de uma canção. E, ao finalizar a canção, é, no mínimo paradoxal, a crítica da senhora Peachum e do senhor Peachum à Mac Navalha, pois eles ficam indignados por a filha se casar com um bandido, quando, na verdade, a criaram para que se

imagens pintadas expostas em estandartes. Este tipo de apresentação de rua era comum no sul da Alemanha até os anos vinte do século vinte [...]” (TEIXEIRA JÚNIOR, 2014, p. 133).

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casasse com alguém rico e que a sustentasse com um estilo de vida ainda melhor ao que lhe fora proporcionado. Tais críticas surgem nas seguintes falas:

SENHORA PEACHUM –– Casada? Primeiro, nós a cobrimos toda de vestidos e chapéus e luvas e sombrinhas, e depois que ela já nos saiu tão cara quanto a um transatlântico, ela mesma se joga na sarjeta como um pepino podre. Você casou mesmo? (BRECHT, 2004, p. 42)

PEACHUM –– Então, ela virou uma fêmea de criminoso. Muito bonito. Que beleza! (BRECHT, 2004, p. 44)

Na citação supracitada, nota-se o chefe da mendicância e sua esposa criticando o chefe dos bandidos. Entretanto, ambos pertencem a uma mesma classe social, low class que serve à high class, estando todos envoltos sob a necessidade de conseguir dinheiro a qualquer custo. Salienta-se que os elementos cênicos são de suma importância quando se fala em distanciamento épico. Sendo assim, além das músicas, do vestuário, dos gestos, há também a presença de letreiros, os quais auxiliam na criação do introito/prólogo da cena, comunicando a plateia o tema a ser tratado naquele momento. Isso fica perceptível, nesta parte da peça: “Iluminação para canção: luz dourada. O órgão é iluminado. Do alto da cena descem três refletores presos a uma barra. Nos letreiros lê-se: COM UMA PEQUENA CANÇÃO, POLLY INSINUA AOS PAIS SEU CASAMENTO COM O LADRÃO MACHEATH” (BRECHT, 2004, pp. 42-43). No final do enredo da peça, Mac Navalha é condenado à forca (por meio de uma armação feita por seu sogro senhor Peachum), no entanto, no momento de sua execução entra um arauto a cavalo, com um aviso, o qual mais uma vez mostra uma sagaz crítica à sociedade burguesa, pois:

BROWN –– Por motivo de sua coroação, Sua Majestade a Rainha ordena que o Capitão Macheath seja imediatamente libertado. Aplausos entusiásticos. Ao mesmo tempo, ele será elevado à categoria de nobre hereditário –– júbilo –– e receberá o castelo de Marmarel, bem como uma pensão de dez mil libras até o fim de sua vida. Aos casais de noivos aqui presentes, Sua Majestade transmite seus régios votos de felicidades. [...] PEACHUM –– Por isso, fiquem todos onde estão para cantar o coral dos mais pobres deste mundo, cuja vida dura vocês representaram hoje, pois, a realidade, justamente o fim deles é que é péssimo. Os reais arautos quase nunca aparecem, depois de os pisados desta vida terem se levantado. Por

101 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

isso, a iniquidade não deveria ser por demais perseguida. (BRECHT, 2004, p. 107)

Nesse trecho fica claro que os que possuem maior poder e status social sobressaem àqueles sujeitos marginalizados, característica marcante na sociedade capitalista; instigando a plateia a refletir crítica e dialeticamente, a fim de que consigam estar distanciados para de fato compreender os elementos estéticos brechtianos. Os elementos estilísticos do teatro épico, independente do gênero, remetem a uma sociologia do gênero dramatúrgico ao modo como Lukács (2000) tratou de uma sociologia do romance. Na acepção desse autor, o romance “é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. (LUKÁCS, 2000, p. 59) Desse modo, o romance não pode dar forma a uma totalidade de vida fechada em si mesma, como ocorria na epopeia clássica. O romance mostra a vida fragmentada do mundo moderno e é justamente nessa raiz histórica que se observam “as principais distâncias entre os dois tipos de narrativa; a eliminação do verso na narrativa do romance acompanha uma transformação do tempo histórico, o verso é eliminado para tornar a realidade empírica fragmentada e escarnecida no romance”. (SILVA, 2000, p. 03) Nesse sentido, segundo Tiago Martins, “Lukács entende que um gênero literário (ou qualquer aspecto estético) não é meramente o resultado da inventividade de autores ou de uma evolução isolada da forma, e sim um produto, um resultado de formas sociais de produção e de consumo de em um dado momento histórico”. (MARTINS, 2012, p. 248) Tal como Lukács vê no romance, um gênero de reflexão acerca da condição social do homem, Brecht vê no teatro épico uma forma de expor a realidade social dos sujeitos marginalizados, tecendo-se uma crítica ao capitalismo e à burguesia. O narrador e a narratividade do Romance dos Três Vinténs trazem elementos que rompem com o efeito de ilusão. Além disso, o perfil das personagens e a ambientação também são aspectos importantes para que se alcance o efeito de distanciamento e se perceba a presença do Gestus social (as máscaras sociais usadas pelas personagens). Acerca dessas características, tem-se um exemplo na introdução do capítulo IV do Romance dos Três

102 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Vinténs, na qual a voz do narrador aparece antecedendo o que está por vir no decorrer da narrativa, e isso fica evidenciado neste excerto:

Cada homem deveria ter bondade Mas assim não são as coisas na verdade! Final dos Três Vinténs: “Sobre a incerteza das coisas humanas”. (BRECHT, 1976, p. 56)

Na peça, Brecht traz diversos elementos que rompem com a quarta parede, levando ao efeito de distanciamento. Muito próximo a esse procedimento estético, no romance, também há a presença dessas músicas com a função de um prólogo de cada capítulo e/ou partes dos capítulos, sendo que as músicas são sempre críticas e introduzem o tema. O exemplo abaixo é o intróito do capítulo II, exemplificando bem o que foi supracitado, pois uma das temáticas a ser tratada é sobre os reflexos e os impactos da guerra nos indivíduos:

E foram-se para a guerra E precisavam de balas E havia muita gente boa Disposta a dá-las. “Sem munição não há guerra, Eis as balas, meus filhos! Vocês vão à batalha Nós faremos munição.” E fizeram um monte de balas E depois lhes faltou guerra Mas houve muita gente boa Disposta a provocá-la. “Vamos, filho, para a luta! A pátria está em perigo! Pelas mães, pelas irmãs, Pelo trono, pelo altar!” Canção de guerra. (BRECHT, 1976, p. 28)

Outro exemplo das potencialidades estéticas do efeito de distanciamento é a presença de provérbios, além de canções e baladas, como prólogo dos capítulos. No capítulo XII, tem- se o provérbio antigo: “Onde um potro se afoga Existe água”, sendo este usado para instigar o leitor a pensar e refletir sobre os possíveis crimes cometidos por Mac Navalha. Destarte, ressalta-se que, no início de cada capítulo, há um intróito/prólogo à temática a ser tratada – por meio de canções, de citações, de provérbios e da própria voz do narrador – 103 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

preparando-se, então, o leitor para o que será discorrido no decorrer do romance, a fim de se alcançar o distanciamento épico.

Considerações Finais

Tanto o texto dramatúrgico quanto o romance comunicam ácidas críticas a todo um sistema de organização ancorado no capitalismo e as suas mazelas sociais, principalmente com relação à sociedade burguesa na qual os indivíduos, de acordo com a ironia brechtiana, ou serão assaltantes ou serão burgueses, e estarão sempre em busca de dinheiro, indiferentemente do que terão de fazer para consegui-lo. Distintamente ao teatro dramático, em que havia uma empatia do espectador até se chegar à catarse, o teatro épico traz à tona o efeito de distanciamento. Essa ideia gera uma reflexão crítica acerca dos aspectos sociais comunicados no decorrer dos textos, não à identificação, mas à negação, impulsionando assim a reflexão crítica do leitor/público/plateia. Por fim, salienta-se que ambas as obras, apesar de terem sido escritas em 1928 e 1934, respectivamente, expressam uma visão crítica social atualizada - todos determinados a conseguir dinheiro, sejam esses sujeitos burgueses ou marginalizados.

Referências

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MARTINS, Tiago. Notas sobre o romance e sobre a teoria do romance: a questão da condição humana em um gênero que ainda vive. In: RevLet – Revista Virtual de Letras, v. 04, nº 02, ago/dez, 2012. Disponível em: . Acesso em: 03/09/2016. PEIXOTO, Fernando. Brecht: vida e obra. 3. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. RODRIGUES, Márcia Regina. Traços épico-brechtianos na dramaturgia portuguesa: o render dos heróis, de Cardoso Pires, e Felizmente há luar!,de Sttau Monteiro [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo, Perspectiva, 1985. SILVA, Edson José da. Encontros de Vista, v. 15, nº 1, jan./jun, 2015. Disponível em: < http://www.encontrosdevista.com.br/Artigos/res_01_15.pdf>. Acesso em 17/04/2017. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo, Cosac&Naif, 2001. TEIXEIRA JÚNIOR, Geraldo Martins. Dramaturgia, Gestus e música: estudos sobre a colaboração de Bertolt Brecht, Kurt Weill e Hanns Eisler, entre 1927 e 1932. Brasília, 2014. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/18099/1/2014_GeraldoMartinsTeixeiraJ%C3%BAni or.pdf. Acesso em: 19/08/2017. VASQUES, Eugénia. Piscator e o Conceito de “Teatro Épico”. Escola Superior de Teatro e Cinema: 2007. Disponível em: http://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/198/1/piscator.pdf. Acesso em 18/08/2017.

105 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Experiência e Memória “Sofá que Desce o Rio”

Neuri Luis Mossmann31

Resumo: “Sofá que Desce o Rio” é um curta documentário inspirado no cotidiano das pessoas que moram no Bairro São José em João Pessoa – PB. Esse projeto de fazer um filme saiu de uma oficina de teatro, que foi desenvolvida junto à comunidade, com a intenção de associar o cotidiano das pessoas às cenas – propondo a relação do real vivido com o teatro. Este trabalho foi uma criação conjunta com a comunidade, razão pela qual o denominamos também como um projeto social, de potencial crítico e criativo.

Palavras-chave: Teatro; documentário; comunidade.

Tudo começou com uma oficina no Bairro São José em João Pessoa – PB. A oficina chamava-se “Teatro nos becos, ruas e janelas”, com a intenção de participar de um projeto da FUNJOPE – Fundação Cultural de João Pessoa, que se chamava “Oficinas Culturais nos Bairros” e tinha como proposta incentivar os vários movimentos artísticos, além de potencializar talentos nos Bairros. Outro objetivo do projeto era apresentar os resultados dessas oficinas nos festivais artísticos, nos Bairros e/ou comunidade onde era realizada a Oficina. Apresentamos um espetáculo de rua, que passava pelas portas, becos e janelas. Inclusive o título do projeto era: “Teatro nos becos, ruas e janelas”. Depois desse processo todo, fomos chamados para conversar com a equipe da FUNJOPE, que consideraram o resultado, a síntese do projeto “Oficinas Culturais nos Bairros” e pediram para que fosse transformado em filme. Recebemos todo apoio da Fundação e comunidade para a produção do curta intitulado “Sofá que Desce o Rio”, uma relação de vida e histórias entre os moradores do Bairro São José e o Rio Jaguaribe. A relação das pessoas do Bairro São José e o Rio Jaguaribe foi um dos principais focos para a criação do roteiro. Andamos pelos becos, ruas e casas para conversar com os moradores e entrevistá-los. Essa foi a estratégia e/ou meio para a criação do tal roteiro. Tínhamos que saber dos moradores como era o Rio Jaguaribe quando chegaram para morar e como estava no momento, ou época em que foi feito as filmagens para o curta. A maioria dos

31 Coordenador da Oficina e diretor do Filme. Trabalha no projeto “Oficina e Exposição do TUCCA – Teatro Unioeste Campus de Cascavel. Encenador da peça “Árvorere”, 2017. 106 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

depoimentos são referentes as casas que foram construídas muito próximas das margens, a poluição e a construção de um imenso estacionamento de um dos principais Shopping Centers construído nas imediações do Rio e das casas. Isso implicou na tomada de quilômetros de Mangue e espaços que poderiam servir de lazer aos moradores. Mesmo assim, em alguns depoimentos, deu para perceber que o Shopping proporcionava empregos e praça de alimentação à comunidade. A praia de Manaira, que fica muito próxima da comunidade, também foi apresentada no filme, isso porque era local de trabalho para alguns vendedores ambulantes do Bairro e também servia como área de lazer. Discutiu-se muito sobre isso, porque as pessoas deixavam de ir à praia para passear no Shopping. Além das entrevistas que serviu como material para o roteiro, incluímos poemas de Bertolt Brecht e um fragmento da peça “Antes do Fim”, de Marcelo Bourscheid.

Conceitos Estruturadores para o Roteiro São José

1. Amarração cronológica: História do bairro São José, desde a ocupação das margens do rio, seguindo pelo cotidiano das pessoas, até a apresentação dos problemas da comunidade. Pode-se usar imagens do rio Jaguaribe em diferentes momentos do dia para abrir cada bloco.

1.1 Rio Jaguaribe ao amanhecer (ocupação das margens do rio) • Cenas de natureza, o rio, suas margens e correntezas. • Os calangos- sátiros representando a ocupação das margens, becos e moradores. • Depoimentos de como o bairro começou e como foi se desenvolvendo, como era no princípio. A cena de Ricardo e a filha pode ser a passagem para o bloco seguinte.

1.2 Rio Jaguaribe ao meio-dia (cotidiano da comunidade): • Cenas das ruas e becos • Calangos-sátiros começamos o passeio pelos becos, levando a conhecer os mais diversos recantos. • A mulher que cuida das crianças • O homem que conserta ventiladores • O homem que houve Agnaldo Timóteo • Depoimentos de como é a vida no bairro • Atividades culturais da comunidade.

1.3 Rio Jaguaribe no início da noite (problemas enfrentados pelos moradores e sua vida noturna. • Cenas da poluição do rio • Cenas das enchentes 107 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

• Cenas dos prédios oprimindo a comunidade • Depoimentos de problemas relacionados à violência • As Betes vão à luta • Cenas de lazer cheias de gente.

1.4 Final

• Cortejo festivo pelas ruas do bairro ao som de Siba, guiado por um carro de som.

Fala de Eurípedes: Odeio um cidadão moroso na hora de servir a pátria e pronto para prejudicá-la, esperto consigo mesmo e inútil para a cidade. Ésquilo – Não é prudente criar um filhote de leão numa cidade, quem fizer isto terá de obedecer aos caprichos da ferazinha. (ARISTÓFANES, As Rãs, 2000, p. 284).

Referências

ARISTÓFANES. As Rãs. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003.

Curta-metragem que retrata o Bairro São José é lançado nesta sexta. Disponível em: http://www.joaopessoa.pb.gov.br/curta-metragem-que-retrata-o-bairro-sao-jose-e-lancado- nesta-sexta/. Acesso em 10 de agosto de 2017.

Textos Neuri Mossmann, (17/10/2010), organizado a partir de entrevistas com pessoas da Comunidade São José em João Pessoa, PB. Texto Raniê Santos de Lima: “A Beth”.

Trecho de Antes do Fim, de Marcelo Bourscheid. (Peça escrita durante a Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, sob orientação de Roberto Alvim, no ano de 2009).

108 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Fotografia de Neuri Mossmann Um dos becos do Bairro São José, João Pessoa – PB.

109 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Quem São Estas Vozes: Modos Difusos de Figuração da Identidade em Martin Crimp e Sarah Kane

Márcio Luiz Mattana (UNESPAR)32

Resumo: O presente estudo discute questões relativas à identidade ficcional em dois autores da nova escrita britânica, Martin Crimp e Sarah Kane. A pesquisa se concentrou nas peças em que as falas das personagens são distribuídas por siglas (letras ou números) e naquelas cuja interlocução é marcada apenas por travessões ou quebras de linha, deixando para a montagem a atribuição das falas. Ao analisar as peças, o estudo busca pistas de modos alternativos de figuração de identidade e de subjetividade.

Palavras Chave: Identidade; subjetividade; dramaturgia contemporânea.

Introdução

Falando sobre a (crise da) personagem contemporânea, Jean-Pierre Ryngaert afirma que “o personagem enunciador passou por um regime de emagrecimento a ponto de sua silhueta apagar-se” (in SARRAZAC, 2012, p. 138). Um dos indícios que o autor aponta é o esvaziamento da dramatis personae, agora habitada por monossílabos e apelidos – Hamm, Clov, Didi, Gogo – em Beckett, ou mesmo por siglas – H1, F2 – em Natalie Sarraute. Já não se sustenta a expectativa histórica de um drama baseado na individualização da ação e do discurso, na relação entre a ação – o motor da narrativa – e seu sujeito – a figura que age e fala, corporificada no ator: “o desaparecimento de uma identidade fixa é paralelo à crise da fábula”, pois “a lógica da narrativa progride em função de personagens coerentes e submetidos a uma ação federativa” (in SARRAZAC, 2012, p. 137). Por outro lado, nada faz crer que um teatro da fala vá deixar de existir ou que as representações de identidade estejam exiladas do palco contemporâneo. Assim, a pergunta de Ryngaert continua válida: “Quem fala aqui?” Mesmo em um teatro livre “das necessidades da encarnação”, ainda há uma voz que “não é nem diretamente a do autor, nem obrigatoriamente a do narrador [...], nem completamente a do ator”. (in SARRAZAC, 2012, p.139-140). Se o

32 Professor Assistente; UNESPAR – Universidade Estadual do Paraná; [email protected].

110 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

ator produz uma voz que não é completamente a sua, de quem é a voz? Na busca de aprofundar esta questão, o presente artigo se concentra no estudo de quatro peças teatrais da recente dramaturgia britânica: Atentados33 e Menos emergências34, de Martin Crimp; e Ânsia35, e Psicose 4.4836, de Sarah Kane; Duas delas apresentam falantes definidos por siglas (letras ou números). Outras duas excluem até mesmo as siglas oferecendo no máximo marcas de interlocução (travessões, quebras de linha, recuos), de modo que fica para cada montagem a tarefa de definir quantos e quais falantes estão em cena. Em que medida a ideia de personagem se apagou nestas dramaturgias? Stuart Hall afirma que o entendimento do sujeito como “uma identidade unificada e estável”, aceito desde o Iluminismo, tem dado lugar à noção do sujeito como “fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). É sensato imaginar que noções menos unificadas de identidade ficcional se apresentem em resposta. A identificação entre ator e personagem é uma construção histórica. Como afirma Patrice Pavis (2011, p. 285), “apesar da ‘evidência’ desta identidade entre um homem vivo e uma personagem, esta última, no início, era apenas uma máscara – uma persona”. A transmutação “em entidade psicológica e moral semelhante aos outros homens” é um fenômeno histórico e pode-se pensar que a referida crise da personagem é, na verdade, a crise deste modelo histórico. Cristina Delgado-García considera o tema por este viés. Concentrada em peças cujas falas “não têm atribuição ou são atribuídas a falantes opacos, parecem ser (des)corporificadas ou receber várias encarnações ao mesmo tempo, e não criam sensação convincente ou estável de individualidade ficcional” (2015, xi), a autora defende que tais textos “evocam e provocam entendimentos do sujeito ininteligíveis sob a norma liberal-humanista que parece dominar a concepção aceita de sujeito e de personagem teatral” (2015, xii). Contra a visão hegemônica do sujeito como “um indivíduo auto-idêntico, único, coerente e racional”, Delgado-García entende personagem como “qualquer figuração de uma subjetividade, qualquer esboço teatral

33 Attempts on Her Life, de Martin Crimp, estreou no Royal Court Theatre em 07 de março de 1997. (CRIMP, 2005, p. 201). 34 Fewer Emergencies, de Martin Crimp, é uma trilogia composta por três peças curtas. Uma delas, Face To The Wall, estreou no Royal Court Theatre em 12 de março de 2002. A trilogia completa estreou no mesmo teatro em 08 de setembro de 2005. (CRIMP, 2015, p. 80-81). 35 Crave, de Sarah Kane, estreou em Edimburgo em 13 de agosto de 1998. (KANE, 2015, p. 154). 36 4.48 Psychosis, de Sarah Kane, estreou Royal Court Theatre em 23 de junho de 2000. (KANE, 2015, p. 204). 111 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

da existência humana, não importa quanto seus contornos sejam individualizados ou, inversamente, quanto sejam indefinidos”. (2015, p. 231). Seguindo caminho similar, a presente pesquisa busca quaisquer traços de caracterização e quaisquer indícios de identidade ficcional neste grupo de textos, procurando entender que figurações de sujeito (e de subjetividade) eles projetam.

Atentados e Menos emergências, de Martin Crimp

Na trilogia Menos emergências (formada por três peças curtas, Todo o céu azul, De cara pra parede e Menos emergências) os falantes são indicados por números. O texto indica apenas que a falante 1 da primeira peça é mulher e que o falante 1 da segunda é homem. Os demais podem ter qualquer gênero. Estes falantes constroem narrativas sobre personagens que jamais entram em cena: uma mulher que se casa muito cedo, um que invade uma escola, um casal que veleja pelo mundo e deixa o filho em casa. Os números funcionam como siglas para indicar os falantes, dos quais foram subtraídos quase todos os traços: “2 Ela se casa muito nova, não é mesmo? / 3 Faz o quê? / 2 Se casa, se casa muito nova e, imediatamente, percebe / 3 Ah é? Que foi um erro? / 2 Imediatamente percebesimque foi um erro. (CRIMP, 2015, p. 87)37. A maioria dos traços individuais dos falantes foi omitida mas é possível perceber que há entre os falantes uma definição bastante clara das funções a desempenhar. O falante 1 conduz a narrativa, articula os dados da fábula e define o ponto de vista da personagem central:

2 Ela vêisso mesmoA sua vida inteira diante dos seus olhos como um… 3 Cadáver? 1 Cadáver?nãonãoo quê?nãonão é isso que ela pensaé mais como uma auto-estrada à noiteuma faixa de asfalto que se estende diante dela, com sinais luminosos indicando os quilômetrosquilômetro após quilômetro após quilômetro. (Pausa) Ela não sabe muito bem o que fazer. (CRIMP, 2015, p. 87)38

37 2 She gets married very young, doesn’t she. / 3 Does what? / 2 Gets married, gets married very young, and immediately realises– / 3 Oh? That it’s a mistake? / 2 Immediately realises – yes – that it’s a mistake. (O artigo utiliza, no caso desta peça, a tradução de Marcos Davi Steuernagel, não publicada em livro). 38 2 She sees – that’s right – her whole life stretched out in front of her like a... hmm... / 3 Corpse? / 1 Corpse? – no – no – what? – no – that’s not the way she thinks – it’s more like a motorway at night – a band of concrete stretched out in front of her with reflective signs counting of the miles – mile after mile after mile. (Pause) She’s not sure what to do. 112 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Os outros falantes comentam, fazem perguntas, contradizem a voz central. Libertos da tarefa de representar seres ficcionais definidos e individualizados, estes falantes assemelham- se a actantes (ver UBERSFELD, 1995, p. 33-46). O falante 1 é o sujeito – aquele que conduz a narrativa – e os demais falantes revezam-se nas funções de adjuvantes e antagonistas. O objeto, a matéria da narrativa – a mulher casada, o assassino, o casal que veleja, a criança trancada em casa – está sempre ausente, jamais entra em cena. Destinador e destinatário – de onde vêm e a que se destinam as narrativas – são ocultos ou indefinidos. Além disso, uma análise das falas permite afirmar que os falantes de Menos emergências se comportam, na maioria do tempo, como um grupo de autores. Embora isto não se evidencie sempre, os gestos de autor estão por todo o texto, na escolha das palavras e nos juízos de valor: “como um nadador – não é nadador – não me ajude – como um mergulhador – está certo isso – mergulhando no sangue – ele é como um mergulhador mergulhando no sangue – é isso mesmo – isso é bom – bem bom”. (CRIMP, 2015, p. 110)39 Atentados é anterior a Menos Emergências e o texto não oferece sequer siglas (letras ou números) para atribuição das falas. A peça apresenta 17 quadros em que vozes indefinidas falam de uma personagem ausente – Anne ou Anya, Anny, Annushka. Pela voz destes falantes, a personagem ausente ganha uma nova identidade a cada quadro. É “uma heroína de filme, uma vítima da guerra civil, uma consumidora típica, uma mega estrela, uma guia de turismo, uma marca de carro, (...) uma terrorista internacional, uma fundamentalista, uma artista, uma refugiada” (SIERZ, 2006, p. 49). No lugar de nomes ou siglas, as falas são marcadas por travessões: “Um travessão ( – ) no começo da linha indica a mudança de orador. Se não houver travessão após a pausa significa que o mesmo personagem continua falando”. (CRIMP, 2005, p. 202)40. Não há siglas, não há distribuição prévia das falas. Não se sabe sequer quantos falantes há. Também não há marcas individuais ou indicação de gênero e idade. O texto se recusa a escolher que corpos dirão que textos. O que se tem e uma espécie de jogo de montar entre o discurso dos falantes no texto e os corpos/as vozes de um elenco:

39 1 like a swimmer – not swimmer – don’t help me – like a diver – that is right – diving into blood – he’s like a diver diving into blood – that’s right – that’s good – very good. 40 A dash ( - ) at the beginning of a line indicates a change of speaker. If there is no dash after a pause, it means the same character is still speaking. (para esta peça, usa-se tradução de Murilo Hauser, não publicada em livro). 113 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

– Verão. Um rio. Europa. Estes são os ingredientes básicos. – E um rio a atravessá-la. – Um rio, exatamente, atravessando uma grande cidade européia e um casal na margem do rio. Estes são os ingredientes básicos. – A mulher? – Jovem e bela, naturalmente. (CRIMP, 2005, p. 208)41

Como no caso de Menos emergências, a maioria dos quadros apresenta uma narrativa ou um ponto de vista claro (embora a narrativa de cada quadro contradiga as demais). Uma análise do discurso vai sugerir que num quadro estes falantes sejam roteiristas de cinema, por exemplo. Em outro quadro, vizinhos; em outro, policial (ou policiais) e interrogado; em outro, críticos de arte. Ao atribuir as falas, cada montagem define quantos e quais atores estarão em cena, tomando quase todas as decisões relativas a gênero, idade, etnia. Uma única exceção digna de nota se coloca no quadro 16 (Pornô), em que o texto indica claramente idade e gênero da falante principal: “O principal orador é uma mulher muito jovem. À medida que ela vai falando as suas palavras são desapaixonadamente traduzidas para uma língua africana, da América do Sul ou do Leste Europeu”. (CRIMP, 2005, p. 269)42. Fora esta exceção o que resta são as funções próprias de cada cena. Os falantes se caracterizam a partir do que são enquanto grupo em cada quadro – são roteiristas, vizinhos, testemunhas, locutores, críticos de arte – e na relação estabelecida entre este grupo e a protagonista ausente. Não é mero acidente, portanto, que estes diversos grupos empreguem com tanta frequência a primeira pessoa do plural: “Nós simpatizamos”, “Nós não podemos ter certeza”, “Nós já não vimos isso tudo (...)?”, etc. (CRIMP, 2005, p. 219; 232; 255)43. O que se vê, quadro a quadro, são personagens que se definem por seu pertencimento a um grupo. E se cada quadro revela uma nova Anne, também se pode afirmar que cada quadro revela um novo grupo, com sua própria lógica e suas próprias regras.

Ânsia e Psicose 4.48, de Sarah Kane

41 – Summer. A river. Europe. These are the basic ingredients. / –And a river running through it. / A river, exactly, running through a great European city and a couple at the water’s edge. These are the basic ingredients. / –The woman? / –Young and beatiful, naturally. 42 The principal speaker is a very young woman. As she speaks her words are translated dispassionately into an African, South American os Eastern European language. 43 “We sympathise”; “We can’t be sure”; “Haven’t we seen all that (...)?”. 114 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Se em Menos emergências, de Martin Crimp, as siglas (números) indicam falantes cuja função actancial pode ser claramente definida, o mesmo não acontece em Ànsia, de Sarah Kane, outra peça organizada pelo mesmo procedimento de atribuição de fala. Nesta peça as falas estão divididas entre quatro falantes nomeados por letras (C, M, B, A) e não há qualquer outra indicação individual. Todos os traços habituais de caracterização são indefinidos ou ambíguos: “Os sinais alfabéticos que nomeiam os falantes de Crave não são marcados por gênero, não possuem conotações étnicas ou religiosas e não sugerem, nem de modo tênue, idade ou posição social” (DELGADO-GARCÍA, 2012, p. 238). De início não é fácil entender a natureza da relação que se dá entre estes falantes. Não é possível definir quem fala a quem nem precisar em que medida uns respondem aos outros. A busca por marcas de identidade e subjetividade nas falas, por outro lado, vai revelando uma série de vestígios de caracterização: “A Eu não sou estupradorx. / M David? / (Um momento). / B Aham. / A Eu sou pedófilx. / M Você lembra de mim?” (KANE in LOPES, 2012, p. 05)44. Cada vestígio permite supor um leque de identidades possíveis por detrás das falas. Um(a) pedófilo(a), alguém chamado David, uma mulher mais velha que um rapaz, diversas imagens soltas de individualidade emergem do texto: “B Você vai chegar em mim e me seduzir? Preciso ser seduzido por uma mulher mais velha. / M Não sou uma mulher mais velha. / B Mais velha que eu, não mais velha de velha” (KANE in LOPES, 2012, p. 07). Em algumas passagens pode-se mesmo identificar fragmentos de diálogos entrelaçados, como pedaços de cenas paralelas que foram emaranhadas: “B Você é lésbica? / M Ora por favor. / B Achei que esse seria o porquê de você não ter filhxs. / A Por quê? / M Nunca encontrei um homem em que eu confiasse. (KANE in LOPES, 2012, p. 11)45. Tende-se a empreender o esforço de desembaraçar o texto na tentativa de encontrar cada diálogo em sua especificidade e, por este meio, entender a quem pertence cada uma destas vozes. Tal esforço costuma levar à hipótese de que as letras/siglas estejam ligadas a quatro palavras-chave, child, mother, abuser, boy: “Neste caso, A representa abusador, B é rapaz, C é criança e M é mãe”. (SIERZ, 2014, p. 142). É este, por exemplo, o ponto de partida de

44 A I’m not a rapist. / M David? / (a beat) / B Yeah. / A I’m a paedophile. / M Do you remember me?(KANE, 2015, p. 156). 45 B Are you a lesbian? / M Oh please. / B I thought that might be why you don’t have children. / A Why? / M I never met a man I trusted. (KANE, 2015, p. 163). 115 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Graham Saunders (2002, p. 32), para quem “o pedófilo confesso chamado ‘A’, em Crave, inflige sofrimentos psicológicos indizíveis à jovem ‘C’ e, ao mesmo tempo, faz um longo e ardente discurso em que fala dos vários modos pelos quais tenta expressar seu amor”. Porém, associar as quatro letras a estes quatro indivíduos ficcionais é uma tarefa inglória. No todo do texto, os falantes assumem diversas outras funções e não se fixam em nenhuma. Além disso, há diversos momentos em que um discurso unívoco e articulado se fragmenta entre os quatro falantes, como se eles representassem uma única subjetividade: “M Regra número um. / C Nada de registros. / M Nada de cartas. / A Nada de contas no cartão de tardes no motel, nada de notas de joias caras, nada de ligar pra casa e desligar em silêncio” (KANE in LOPES, 2012, p. 30)46. Assim, não é possível colocar as falas em uma situação definida nem entender os falantes como portadores de um objetivo articulado. Em lugar disso há narrativas e identidades dispersas pelo texto e os falantes são eventualmente atravessados por elas. Neste sentido, uma abordagem racionalista da peça não oferece o suficiente para formar uma imagem da identidade singular de cada falante. Ainda assim, estas quatro identidades – pedófilo(a), vítima de abuso, rapaz e mulher que quer ter filhos – mesmo que não corporificadas claramente, sustentam o poema dramático com sua presença espectral. Em Psicose 4.48 desaparecem as siglas para atribuição de falas. Sarah Kane não deixa nenhuma instrução prévia sobre quem fala e as pistas de eventual troca de interlocutor são fugidias: travessões, quebras de linha, diferentes recuos. Os fragmentos guardam relação com um quadro clínico de depressão e, por extensão, com um(a) paciente. Esta primeira presença de um sujeito – paciente – percorre todo o texto e se intensifica no emprego ostensivo da primeira pessoa: “Eu estou triste / (...) / Eu estou entediadx e insatisfeitx com tudo / (...) / Eu gostaria de me matar”. (KANE, 2015, p. 206)47. Tende-se a entender a peça como monólogo, pela própria natureza da sua escrita. Como aponta Delgado-Garcia, “há casos que são uma reminiscência do solilóquio” (2015, p. 99). Mas as marcas gráficas do texto, ao contrário, sugerem uma pluralidade de vozes. Em primeiro lugar, há seis fragmentos que contêm diálogos (indicados por travessões), o que oferece, direta ou indiretamente, o embate entre duas possíveis posições de sujeito. E alguns destes diálogos podem ser entre paciente e

46 M Rule one. / C No records. / M No letters. /A No credit card bills for afternoons in hotel rooms, no receipts for expensive jewelry, no calling at home then hanging up in silence. (KANE, 2015, p. 181). 47 I am sad / (...) / I am bored and dissatisfied with everything / (...) / I would like to kill myself. (a tradução é do articulista e também busca manter as ambiguidades da língua original). 116 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

médico(a): “– Você não precisa de umx amigx. Você precisa de umx médicx. / (Um longo silêncio) / – Você está tão erradx” (KANE, 2015, p. 236)48. Não há como precisar quantas vozes médicas aparecem no texto, seja nestes diálogos, seja no corpo do texto, na forma de prontuário médico: “Lofepramina, 70 mg, aumentada para 140 mg, depois para 210 mg. Ganho de 12 kg. Perda de memória recente. Nenhuma outra reação”. (KANE, 2015, p. 224)49. Falantes ou não, há certamente diversas figuras médicas, há “Doutorx Isso e Doutorx Aquilo e Doutorx Quéisso” (KANE, 2015, p. 209)50. E ao menos uma delas assume um papel que transcende a relação profissional: “confiei em você, amei você, e não é perder você que me machuca, mas sim tuas falsidades descaradas do caralho que se mascaram em notas médicas” (KANE, 2015, p. 210)51. Há, portanto, um jogo de montar entre a matéria verbal difusa do texto e o(s) corpo(s) em cena. Mesmo que a unidade temática leve a encenar a obra como um grande solilóquio, trata-se de um texto atravessado por múltiplas vozes. E, por mais ambíguas e contraditórias que sejam as marcas de identidade no texto, a peça oferece figurações profundas de subjetividade humana e, com elas, uma noção singular de identidade ficcional. Sobre estas duas peças de Sarah Kane, Cristina Delgado-García defende que o apagamento das marcas – especialmente as de gênero – faz parte de uma estratégia política de escrita não normatizante. Partindo da crítica de Judith Butler, Delgado-García entende estes textos como exemplos de uma “performatividade própria da recusa que, neste caso, insiste na reiteração da sexualidade além dos termos dominantes” (BUTLER; LACLAU; ZIZEK, 2000, p. 177). A autora reúne um sólido conjunto de marcas textuais da ambiguidade de gênero nas duas peças. Especialmente no que toca a Psicose 4.48, é notável a quantidade de referências a um corpo queer pelo texto, em imagens como a de uma “hermafrodita despedaçadx que confiava em si mesmx” (KANE, 2015, p. 205)52, ou nos indícios de insatisfação com a genitália (p. 207)53, ou ainda a imagem de “um sentido preso numa carcaça alienígena” (p. 214)54. Delgado-García entende que “as sugestões de intersexualidade e transgênero em

48 – You don’t need a friend you need a doctor. / (A long silence) – You are so wrong. 49 Lofepramine, 70mg, increased to 140mg, then 210mg. Weight gain 12kgs. Short term memory loss. No other reaction. 50 Dr This and Dr That and Dr Whatsit (...). 51 I trusted you, I loved you, and it’s not losing you that hurts me, but your bare-faced fucking falsehoods that masquerade as medical notes. 52 the broken hermaphrodite who trusted hermself alone (...). 53 I dislike my genitals. 54 a sense interned in an alien carcass (...). 117 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Psccose 4.48 permitem uma leitura queer da noção de subjetividade que a peça apresenta” (DELGADO-GARCÍA, 2015, p. 103).

Considerações Finais

A visão de conjunto destas seis peças permite avançar algumas colocações interessantes. Em primeiro lugar, há a constatação de que o apagamento da dramatis personae corresponde a um deslocamento da noção de personagem, mais que a uma dissolução desta noção. O que se apaga, em termos gerais, é a individualização das falas e dos falantes. O efeito disso é o colapso de um modelo histórico de personagem. A ideia de que uma personagem corresponde a um corpo e/ou a um falante, o gesto em que o performer se coloca no lugar de uma personagem, eis o que entrou em crise – e eventualmente se dissolveu – nestas dramaturgias. Em seu lugar, instaurou-se “uma ideia dispersa de self, e esta dispersão foi (ou tem sido) representada de muitos modos diferentes no teatro alternativo contemporâneo” (FUCHS, 1996, p. 9). Tais modos de representação incluem desde a possibilidade de construção de identidades coletivas até a ideia de um corpo atravessado por identidades múltiplas ou uma subjetividade individual representada por uma multiplicidade de corpos. Em segundo lugar, a par da similaridade estrutural destas quatro peças, pode-se perceber a oposição entre dois modos majoritários de figuração da identidade. Em Crimp, trata-se principalmente da representação de identidades coletivas em tempos e lugares concretos, embora eventualmente indeterminados. Mesmo estando apagados os traços de individualização, é possível ver o encontro concreto de um grupo de pessoas. Em cada quadro destas peças, geralmente, o endereçamento é claro e todos ouvem todos. Os falantes são anônimos mas sua fala os caracteriza como grupo e sua função dentro do grupo também está marcada no texto, em maior ou menor grau. As duas peças de Sarah Kane, por sua vez, parecem propor outro tipo de figuração da subjetividade. Nestas obras não há o sentido de ação coletiva das primeiras, os falantes parecem muitas vezes isolados dos demais e não há nenhuma certeza a respeito do endereçamento das falas. São falantes atravessados por identidades múltiplas, flutuantes, “desencarnadas”. Há momentos de exceção em ambos os

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casos (os seis diálogos claros em Psicose 4.48; a voz solitária listando palavras no quadro 10 de Atentados), mas a análise geral aponta para este contraste. Em terceiro lugar, é possível apontar o possível sentido político de algumas destas representações de identidade e de subjetividade, partindo do que se apaga e do que se mantém das marcas de caracterização dos falantes. Para Cristina Delgado-García, a recusa a definir e individualizar os falantes permite a representação de subjetividades para além da norma e dos modelos hegemônicos, permite representar sujeitos “estranhamente híbridos, relacionais ou baseados na prática, que problematizam a noção de identidade e sua política” (DELGADO- GARCÍA, 2015, p. 5-6). Para a autora, trata-se também de uma recusa aos limites de representação de gênero, especialmente nas peças de Sarah Kane. Nos dois textos de Crimp, a caracterização do gênero dos falantes também tem viés político evidente. Em Menos emergências, as duas marcas de gênero – referentes ao falante 1 de dois quadros, indicados como um homem e uma mulher – tematizam claramente o lugar de fala: uma mulher falando por outra, um homem falando por outro. O mesmo talvez possa ser dito da figura feminina no quadro Pornô, de Atentados. De resto, o anonimato dos falantes das dua peças de Crimp produz um discurso que, mesmo distribuido entre vozes de um elenco, continua sendo um discurso coletivo. Neste sentido, tematizam as próprias políticas de distribuição da fala. Isto se dá no embate de cada cena ou quadro, mas está também no embate entre protagonistas ausentes – Anne, a mulher que casa cedo, o assassino, etc. – e falantes anônimos. O anonimato dos falantes é, portanto, estrutural. Em O espectador emancipado, ao descrever os movimentos da arte contemporânea para responder politicamente ao mundo, Jacques Racière fala que “uns se empenham em mostrar- nos os ‘viéses’ da representação dominante das identidades subalternas, outros nos propõem afinar o olhar diante das imagens de personagens com identidade flutuante ou indecifrável” (RANCIÊRE, 2012, p. 51). As quatro peças aqui tratadas podem ser entendidas no trânsito entre estes dois campos.

Referências

ABIRACHED, Robert. La Crise du Personnage dans le Théâtre Moderne. Collection Tel. Paris: Galimard, 1994.

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Metaforizando a experiência: imagens da vida e da memória em I am my own wife, de Doug Wright, e em Finir en Beauté, de Mohamed El Khatib

Felipe Valentim (UERJ)55

Resumo: O presente trabalho toma por base a construção dramatúrgica a partir da noção de fragmento nas peças I am my own wife, do estadunidense Doug Wright, e Finir en Beauté, do franco-marroquino Mohamed El Khatib. Para tanto, desenvolvemos algumas reflexões sobre as noções de "real" e de "documento", dedicando especial atenção à costura subjetiva que perpassa a criação de um arquivo. O olhar subjetivo, entrelaçado à experiência individual, é capaz de documentar vivências, afetos e trajetórias, além de produzir realidades passíveis de narração no interior da arquitetura cênica. Nosso objetivo consiste em investigar tal produção no processo de criação, em que o "eu" se forma a partir da história do outro. A conclusão sinaliza que as trocas simbólicas movimentam um jogo em que a experiência produz realidades e negocia seus efeitos.

Palavras-chave: cena documental; autobiografia; dramaturgia; encenação.

Considerações Iniciais

A inserção do elemento "real" é, de alguma forma, uma marca corriqueira na cena contemporânea. Tal elemento evoca uma obrigatória discussão que envolve concepções de verossimilhança e de verdade. Ora, a própria categoria "real" é posta em crise, uma vez que sua totalidade ambicionada pelo aparato cênico impõe-se à percepção como um real empenhado em fingir o irreal. Ademais, a própria problemática da subjetividade corresponde a uma realidade permeada por imagens. Em relação às formas de representação do real, Hal Foster (2014, p. 137), em O retorno do real, analisa o hiper-realismo como um subterfúgio contra o real, empenhado em selá-lo atrás das superfícies, embalsamá-lo nas aparências. Tal selamento é empreendido, segundo o autor, de três formas distintas: a primeira consiste em representar a realidade aparente como um signo codificado; a segunda, em reproduzir a realidade aparente como uma

55 Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo PPGL-UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). 121 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

superfície fluída; a terceira, em representar a realidade como um quebra-cabeça visual com os mais variados tipos de reflexos e refrações. Da mesma forma, André Carreira e Ana Maria de Bulhões-Carvalho (2013), no artigo "Entre mostra e vivenciar: cenas do teatro do real", estão debruçados sobre os tensionamentos de um real tratado como tema e o real tratado como experiência compartilhada entre atores e espectadores. Segundo os autores, mesmo que não haja um entendimento particular sobre o sentido exato daquilo que se convencionou chamar teatro do real, é possível afirmar certo consenso sobre sua abrangência, visto que "[...] inclui indiferentemente uma nomenclatura que trata de dar conta das propostas desse teatro que busca o real como elemento, e pode ir do biodrama ao teatro autobiográfico, passando pelo teatro documentário, teatro reportagem, até pelo docudrama" (CARREIRA; BULHÕES-CARVALHO, 2013, p. 34). Os autores chamam atenção para o território difuso sobre o qual a cena do real adquire suas formas, sabendo-se que o próprio "real" pode irromper na tessitura da cena como um acontecimento. "Isso passaria a incluir possíveis falhas, inimagináveis, porque a ficção, supostamente, não admitiria erros" (idem, ibidem, p. 35). Contudo, o que pulsa nas questões e análises levantadas pelas leituras dos referidos estudiosos está centrado na ideia de "referencialidade" e "efeitos de realidade", que tomam o elemento "real" como algo circunstancial e relativo; sendo a representação compromissada com o que é referenciado na cena. Assim, a visão caleidoscópica que Foster (2014) debruça sobre o hiper-realismo, como um subterfúgio contra o real, desloca objetos e multiplica perspectivas: trata-se de um fenômeno que nos permite ler o "real" como elemento que só pode ser percebido em sua pluralidade.

O pressuposto do que hoje se convenciona chamar "teatro do real" ou "cena do real" é que tudo o que ocorre na cena pode ser documentado e foi baseado em pesquisa de arquivos e registros, ainda que possa resultar em espetáculos que tomem diferentes formas [...] Supõe que se possa considerar o real na cena como constatação de uma informação que se assegure verdadeira, matéria real concreta, verificável pelo depoimento das várias testemunhas que a presenciam. Essa matéria que se verifica na cena é real em si. Constitui um campo de observação quase autônomo, independente (CARREIRA; BULHÕES-CARVALHO, 2013, p. 35).

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Entre as muitas reflexões proporcionadas pelos supracitados autores, destacamos duas grandes correntes por eles avaliadas como suportes do "teatro do real". A primeira toma o real como elemento temático: a "[...] proposta inicia a inovação na própria dramaturgia textual, no arrolamento de materiais, de documentos e no seu agenciamento pela criação dramatúrgica". E a segunda estabelece "o real como matéria da experiência na cena, o real como acontecimento, como irrupção no tecido ficcional" (idem, ibidem, p. 37).

Metaforizar a Experiência

Após estabelecermos algumas proposições que sugerem uma aproximação das noções de "real" e de "documento", dedicamos especial atenção à costura subjetiva que perpassa a criação de um arquivo. Entendemos que, a partir da experiência, reais se constroem e têm seus efeitos negociados. Desta forma, o olhar subjetivo, que se entrelaça à experiência individual, documenta vivências, afetos e trajetórias. Nosso interesse recai sobre a experiência e suas marcas subjetivas, potencializadas pelos relatos em primeira pessoa; uma característica possibilitada por aberturas nas cenas documentais a partir da década de 1970. Elegemos, portanto, como objetos de análise as dramaturgias I am my own wife, de Doug Wright, e Finir en beauté, de Mohamed El Khatib, interpretando não só a potência dos relatos como experiência metaforizada, mas como estas metáforas atravessam a vida e a memória. Com base nas interpretações que se desenvolvem ao longo deste trabalho, foi possível acrescentar uma outra leitura sobre o elemento "real" às contribuições de Carreira e Bulhões-Carvalho (2013): o real está na ordem do presente, do aqui-agora; o que passou, ou está no tempo pretérito, é um possível ficcional, pois ele é um ausente a partir do qual eu construo o que sou, ou o que eu apresento. A alteridade sempre está em questão, pois ela habita o ser humano. Tratamos da lógica temporal deixando-se subentender uma relação entre tempo e memória. É a partir das contribuições de Henri Bergson (1999) e das leituras de Gilles Deleuze (1999) sobre a obra de Bergson, que encontramos alguns caminhos para traçar esse entrecruzamento, essa inter-relação. A memória é movimento assim como o tempo; não se pode afirmar que tempo é memória, mas que a memória é produto do tempo. Memória é um movimento que compõe um complexo emaranhado de fios e de vazios; ela não é arquivo, está 123 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

sujeita à manipulação e pode ser, também, involuntária, acessada por imagens, odores, sons e toques. Tem-se o afeto como estímulo narrativo, pois a memória é capaz de constituir uma narrativa e "[...] narramos também porque algo nos tocou, porque fomos afetados, porque pessoas, encontros e acontecimentos produziram em nós a marca desse afeto", para falar como Janaina Leite (2017, p. 9). Assim, as dramaturgias que compõem nosso corpus de análise serão lidas pelos rastros de ausência nelas subscritos. Se temos a alteridade aqui posta em questão, entendemos as relações com o outro como uma forma de narrar a própria história do "eu": são os rastros do que eu fui e do que agora eu sou. Em El Khatib, tem-se a relação com a mãe; em Wright, com a figura histórica Charlotte von Mashldorf. A construção dramatúrgica das referidas peças explora o diálogo a partir da noção de fragmento a partir de entrevistas marcadas por uma relação de afeto entre entrevistado e entrevistador. Em Wright, o dramaturgo se incumbe da tarefa de resgatar a história de uma travesti que sobreviveu ao nazismo e ao comunismo na Alemanha Oriental; ao editar o material coletado, os limites entre entrevistado e entrevistador são borrados. Em El Khatib, o entrevistador reconstrói a história do luto de sua mãe que falece durante um processo em que ela cedia entrevistas ao próprio filho para projeto de "escrita do íntimo", sobre o qual ele estava engajado e que tinha por escopo examinar modos de traduzir a sua língua materna, o árabe, para uma linguagem teatral. As peças são narrativas construídas a partir de documentos: páginas de diários, cartas, mensagens eletrônicas e virtuais, reportagens; fragmentos que evidenciam relações afetivas, narrativas autobiográficas, trechos da língua materna, além de demarcar o espaço cênico como um espaço da memória. Ao analisar o "espaço biográfico", Leonor Arfuch (2010, p. 11) realiza uma leitura da vida como um efeito narrativo, sujeito "[...] a certos procedimentos compositivos, entre eles, e prioritariamente, os que remetem ao eixo da temporalidade". O tempo, ao ser articulado sobre um modo narrativo, se torna cada vez mais humanizado.

Falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas a uma disposição de acontecimentos – históricos ou ficcionais – numa ordem sequencial, a uma exercitação mimética daquilo que constituiria primariamente o registro da ação humana, com suas lógicas, personagens, tensões e alternativas, mas à forma por excelência de estruturação da vida e, consequentemente, da identidade, à hipótese de que existe, entre a atividade 124 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

de contar uma história e o caráter temporal da experiência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas que apresenta uma forma de necessidade "transcultural" (ARFUCH, 2010, p. 112, grifos da autora).

Originado em entrevistas com a própria Charlotte, o monólogo I am my own wife tem múltiplos personagens e perspectivas. Todos apresentam o corpo travestido. Doug Wright escreveu a obra como um diálogo entre ele e o corpo que conta a história, o que possibilita a um leitor/espectador interpretar a história através do olhar do entrevistado e do entrevistador. O texto sugere a visão do dramaturgo sobre sua entrevistada, tendo em vista que selecionar, editar e lapidar o material coletado implica relativizar pontos de vista. O público tem oportunidade de conhecer as múltiplas facetas de Charlotte, o que pode fazê-la parecer enigmática. A pós-leitura (ou pós-espetáculo) é produto dessa fragmentação. A documentação posta à seleção de Wright diz respeito ao conteúdo narrativo criado a partir das memórias narradas por Charlotte e o conteúdo escrito dos emails trocados. O processo desenvolvido por Wright tem proximidades com as reflexões de Janaina Leite (2017) sobre o real o e ficcional no plano complexo dos mecanismos que produzem imagens do passado e de nós mesmos. A pesquisadora ressalta que "as memórias inventadas agem sobre cada um de nós de forma tão potente quanto as memórias reais" (LEITE, 2017, p. 16, grifos da autora). Assim, as concepções de ficção, realidade e imaginário propostas por Wolfgang Iser (2002) indicam que realidade e ficção não se opõem, mas são interdependentes, complementares e intercambiáveis. A relação que se faz entre tais elementos – realidade e ficção – é realizada pelo imaginário, através do que o filósofo chama de "atos de fingir". Janaina Leite (2017, p.16, grifos da autora) coloca que "[...] uma memória inofensiva que nunca existiu enquanto evento pode ser criada pela memória para omitir o evento significativo. A lembrança foi forjada pela memória ao fundir duas experiências e criar com isso uma cena 'ficcional'". Para Iser (2002), o imaginário é experimentado de modo fluido, cuja ausência de um referencial específico permite a invenção de outras realidades. É por meio do imaginário que se cria, projeta e forja realidades. É possível observar como a relação triádica – real / fictício / imaginário – estudada por Iser integra todo o processo de construção da obra I am my own wife. Trata-se de uma escrita dramatúrgica pautada na edição e na seleção dos fatos coletados

125 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

a partir de uma entrevistada que se reinventou em corpos durantes contextos de horror e se "transformou" 56 em antiguidade como forma de se perpetuar. Também é importante ressaltar que as proposições de Iser nos permitem pensar a criação cênica, uma vez que, assim como ocorre no texto, pelo ato de fingir57, a realidade repetida se transforma em signo de outro elemento. No evento cênico, muitos significados podem ser produzidos. Tendo-se a linguagem como um meio para compreensão do indivíduo no mundo, é importante inserir nestas reflexões as contribuições de Hans-Georg Gadamer (2005) sobre a experiência hermenêutica e a autonomia do indivíduo. Em Verdade e método, o filósofo investiga a natureza da compreensão humana, considerando-se o sujeito como parte de um contexto histórico e linguístico, o qual fornece uma pluralidade de sentidos dentro do conjunto de possibilidades que são moldadas a partir de tal contexto. Na referida obra, a "hermenêutica da finitude" é esboçada no encontro do limite na consciência da história. Gadamer (2005) destaca a historicidade da compreensão em uma relação sujeito-sujeito: a semântica se desprende de uma abertura linguística ao mundo por um jogo pragmático, pois a compreensão do sentido está na busca por um entendimento mútuo entre autor e intérprete. A experiência, compreendida na sua concreção singular e histórica, integra a formação de um indivíduo enquanto participante de uma pluralidade cultural. Tais colocações são pertinentes à estrutura de uma cena documental, tendo em vista que os fatos são justapostos consoante a experiência de quem narra e entendidos pela experiência de quem ouve (ou assiste). Assim, pode-se situar tanto a relação entre Charlotte / Wright, na produção dramatúrgica, como Wright / público, na ficção dos fatos coletados. Por mais que Wright não se coloque com destaque na dramaturgia, seu personagem tem uma participação bastante efetiva. Ora, a análise de Nils Highberg (2011) sobre os áudios da entrevista que são tocados em momentos da peça denotam a veracidade do que é narrado

56 When families died, I became this furniture. When the Jews were deported in the Second World War, I became it. When citizens were burned out of their homes by the Communists, I became it. After the coming of the wall, when the old mansion houses were destroyed to create the people’s architecture, I became it (WRIGHT, 2004, p. 13, grifos meus). 57 Wolfgang Iser divide em três os "atos de fingir" presentes no texto literário: seleção, combinação e autodesnudamento. O desenvolvimento de cada um nesta secção pode acarretar uma quebra do limite de páginas estipulado para apresentação deste trabalho. 126 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

em cena. A função dos áudios é evidenciar que a peça encenada baseia-se em registros obtidos em encontros de Wright com Charlotte. Os áudios fazem de Wright um personagem que partilha a experiência e convida o público a reconstruir a história. No fim da peça, o áudio traz Charlotte apresentando seu museu; na rubrica, há uma indicação de que Doug está em pé, ouvindo. Gadamer (2005), ao abordar a história efeitual como base da experiência hermenêutica, coloca o indivíduo em evidência: um ser histórico no processo de experiência. Por isso, a apresentação dos fatos se dá a partir do confronto, pois o que é lido (ou pré- concebido) no registro factual encontra oposições com as novas possibilidades de leitura que a obra produz. A história efeitual, portanto, é trabalhada pelo filósofo como uma consciência da historicidade do indivíduo que, a partir das experiências, se compõe numa relação intersubjetiva. A cena documental reitera, desta forma, que o indivíduo está muito mais submetido à história do que tem consciência. A partir das colocações de Gadamer, é possível interpretar a estrutura da dramaturgia de Wright, tangenciando não só os aspectos que integram o conteúdo por ele selecionado, mas a forma que a escrita estipula para transposição texto / cena. São inúmeras as formas de tornar visíveis os relatos de Charlotte, portanto o ato de selecionar o que se dá a entender, o que pode se tornar visível e a inteligibilidade dos fatos constituem os caminhos pelos quais o sensível é organizado. Para o filósofo Jacques Rancière (2009), o sensível partilhado é organizado através da estética e da política. Entendemos as práticas estéticas como formas de visibilidade das práticas de arte, de modo que os recortes dos silêncios, dos ditos e não-ditos, do fato e da ficção, do visível e do invisível compõem a política como um modo de experiência. A dramaturgia em questão nada mais é do que o recorte de uma vida narrada que atravessa o entrevistador e o in-forma pelo potencial político que consiste na partilha da experiência e do sensível que afeta os corpos. Se a performance também for interpretada como um modo de partilha das ressignificações, será possível identificar a experiência como fator gerador, como o efeito do constante desdobramento da ação sobre si mesma. Wright e Charlotte são, portanto, postos em um jogo "da verdade", inventando a forma que convém à experiência por eles partilhada, para falar como Janaina Leite (2017, p. 18), trazendo para o

127 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

plano da invenção a produção de enunciados sobre a própria experiência, uma vez que "[...] não há uma maneira natural, objetiva de se narrar a vida". Wright (2004, pp. XV-XVI) escreve uma introdução para a peça intitulada "Portrait of an enigma", na qual explica algumas posições tomadas durante a composição da dramaturgia, dentre elas, o autor destaca sua decisão de se colocar como um personagem da história:

I would even appear as a character, a kind of detective searching for Charlotte's true self. At first, the notion appalled me: depicting myself onstage? It felt like the most flagrant act of narcissism a writer could commit. Furthermore, I was a playwright, not a memoirist; I hid my true self behind invented characters far more colorful and articulate than I. Nevertheless, the thematic possibilities seemed rich; if Charlotte were a curator of nineteenth-century antiquities, I would present myself in the play as a curator of her. The whole place could be a rumination on the preservation of history: Who records it and why? What drives its documentation? Is it objective truth, or the personal motive of the historian? When past events are ambiguous, should the historian strive to posit definitive answers or leave uncertainty intact? The only way to pose theses questions was through my own inclusion as a character. And if I were going o be presumptuous enough to parlay Charlotte's life as drama, how could I be bashful about my own? It would be hypocrisy of the most cowardly sort.

I am my own wife é o retrato poético de um corpo imaginado, de uma história recontada e da resistência de um ser em significância. A estrutura da narrativa teatral e os caminhos que possibilitam sua encenação são claramente estabelecidos por Wright, que conduz os modos de se ler o corpo apresentado. Sendo assim, tem-se a construção do entrevistado pelo entrevistador, com as brechas que este propõe daquele. Um entrevistado que atrai por sua existência impossível e utópica, tendo em vista a crueldade dos momentos históricos por que passou. E, mesmo assim, um entrevistado tão enigmático, cuja única forma de poder de que dispõe é tornar-se memória através de seu gosto pelas antiguidades e pelo museu até hoje mantido na Alemanha. Janaina Leite (2017) nos reafirma que escrever é também uma forma de não deixar esquecer. A potência do "tornar-se" empreendida por Charlotte ultrapassa a própria ideia de vida: enquanto não for esquecido, o "eu", de uma certa forma, se perpetua. O mesmo processo pode também ser observado na obra do franco-marroquino Mohamed El Khatib, Finir en beauté. A relação mãe/filho costura a dramaturgia, El Khatib reúne fragmentos, trechos de mensagens e gravações como forma de recuperar o tempo perdido, o tempo literário da mãe

128 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

que jamais aprendeu a ler e o tempo mãe-filho: "[...] eu leio e ela, ela ama-me. / Ela morre e eu leio para a manter em vida. / São 4 horas. / O livro chegou ao fim, a minha mãe partiu. / Abro outro livro" (EL KHATIB, 2017, p. 12). Em nota apresentada no final da dramaturgia, o autor não só revela as bases que sustentaram o processo de criação, mas também manifesta uma vontade de reconstruir o próprio tempo que passou:

Reuni o conjunto do ‘material-vida’ à minha disposição entre maio de 2010 e agosto de 2013. Nem sempre pedi as autorizações necessárias. Não me pus a questão dos limites, da decência, do pudor. Juntei o que pude e reconstruí. Aconteceu tudo muito depressa e sem premeditação. Esta ficção documental é aqui restituída arbitrariamente sob a forma de um livro, de forma cronológica, mais ou menos linear. Não há qualquer suspense, no final sabemos que ela morre e que o filho está muito, muito triste. Sabemos também que se pudesse voltar atrás agiria certamente de outra maneira. Teria estado mais presente. Teria estado mais atento. Teria sido mais simpático. Teria sido mais curioso. Teria tido em conta os sintomas. Teria tentado ajudar como deve ser. Teria procurado a melhor clínica. Teria aprendido o árabe. Ter-se-ia unido à família. Teria tentado estar acima da média. Teria sido um filho irrepreensível (EL KHATIB, 2017, p. 55).

Os fragmentos reunidos por El Khatib adquirem uma nova configuração temporal. O material disposto numa sequência cronológica, indicando-se horas e minutos que marcaram o início das gravações e as interferências nestes registros que também são colocadas na dramaturgia: "11h10: O telefone toca, ela atende" (EL KHATIB, 2017, p. 21); "11h14: As empregadas da limpeza entram para mudar os lençóis e limpar o quarto" (idem, ibidem, p. 22). Datas, horas e minutos marcados nas gravações, em SMS e e-mails trocados e nas páginas de diário possibilitam ao dramaturgo revisitar o tempo passado de modo a reconstituí-lo e conferir-lhe determinada "presença". Arfuch (2010, p. 116) nos diz que "a temporalidade mediada pela trama se constitui, desse modo, tanto em condição de possibilidade do relato quanto um eixo modalizador da (própria) experiência". Trazer a exatidão do tempo vivido ambiciona tornar não só os relatos, mas a vida coesa. El Khatib, porém, vai mais além, tornar o passado presente transforma a coisa vivida em uma imagem aberta ao jogo reflexivo e à mutabilidade inerente ao movimento da memória. Ao tratar o diário como um ato, Janaina Leite (2017, p. 21) afirma que

129 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

[...] o diário deve ser tomado mais como uma prática do que como produto. Ele projeta uma identidade, ao mesmo tempo que é um ato de resistência contra uma memória falível já que tenta ser registro do vivido. No entanto, o fracasso inevitavelmente abraça essas duas tentativas.

É a identidade pouco estável à mercê do imediatismo da escrita, de que nos fala Janaina Leite (2017), e que se manifesta na organização dos fragmentos colados na dramaturgia de El Khatib. O dramaturgo remonta os momentos vividos na tentativa de recompor o luto e a si mesmo: "Não estou de luto, sinto dor" (EL KHATIB, 2017, p. 46).

A vida ‘em estado de acontecer’, a ignorância do futuro e o descontínuo em relação ao passado, nos deixam diante de uma performance que atualiza o processo de figuração do eu e da experiência ao mesmo tempo que faz do registro estratégia de sobrevivência do vivido (LEITE, 2017, p. 22).

El Khatib ressignifica a própria experiência do luto ao colocá-la em cena. O mosaico de fragmentos costurado pela busca de um tempo mãe-filho não evidencia apenas a perda ou a dor do luto, mas o processo de autorreconhecimento do próprio autor. A sensibilidade centraliza a atenção aos detalhes dos fatos registrados, dos documentos selecionados, recortados e colados. A atenção também recaí sobre as nuances da língua, pois palavras e expressões como "transplante", "médico", "necrotério", "luto", "condolências", "morte", "fragilidade", "perda", "unidade de cuidados paliativos" são tomadas na função metalinguística da linguagem: tem seu significado expandido em notas de rodapé sempre que aparecem no corpo do texto. A língua árabe aparece sutilmente no contexto dramatúrgico e o próprio autor sinaliza, no início, que a conversa com o pais aconteceu naquela língua. "Os meus pais estão na França há mais de trinta anos mas ainda não falam francês; mas isso é outro problema" (EL KHATIB, 2017, p. 13). Assim como a língua alemã, em I am my own wife, o árabe, em Finir en beauté, marca um lugar de pertença. El Khatib tem, de certa forma, a experiência partilhada ligada à experiência linguística. Convém trazer, brevemente, alguns pontos também presentes na autobiografia linguística In other words, assinada por Jhumpa Lahiri (2016). Os autorretratos descritos pela autora expressam a descoberta da língua pelos olhos de uma criança. Lahiri escreve em língua estrangeira, o italiano, explorando a solidão e a desconhecido que ela proporciona, de modo semelhante, tem-se Wright com a língua alemã e El Khatib com a exploração metalinguística 130 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

dos códigos. Evidencia-se o processo de redescoberta das próprias experiência pelo contato sensível com a língua. Desvendar os códigos é uma maneira de deslocar-se para conhecer a si mesmo, colocando-se no jogo vida/morte: escrever para viver. E, com isso, tocamos mais uma vez nas leituras de Janaina Leite (2017), pois o diário é uma forma de perpetuar o presente; é uma prática altamente performativa.

[...] é interessante pensar que um diário é necessariamente escrito sob o signo do presente. O passado, assim como a memória, têm papeis secundários nessa prática. Ele é marcado pela vivência imediata, pelo contingente e, sobretudo, é escrito na ignorância de seu fim. (LEITE, 2017, pp. 20-21)

Considerações Finais

A relação vida/morte ganha outro contorno neste trabalho, evidenciando "reais" construídos a partir da experiência vivida. Podemos afirmar que Charlotte se perpetua não apenas como memória (ou lembrança) de uma sobrevivente dos períodos de horror por que atravessou, tampouco pelas antiguidades que colecionava e agora dispostas no museu, mas pelas marcas e afetos deixados em Wright: I am my own wife é mais sobre o entrevistador que sobre o entrevistado. Aqui, trazemos à discussão a morte não como ausência de vida, mas como um desdobramento dela. É como se a morte possibilitasse uma nova forma de existir, mas em arte: Charlotte vive na obra de Wright; da mesma forma, a mãe de El Khatib também vive na arte do filho. Em cena (ou em jogo?), temos os rastros do que o "eu" foi e do que agora ele é. Wright e El Khatib narram os atravessamentos como processo e como formadores de um "eu" que se faz no presente (ou no real) da cena. Nesta troca simbólica, a experiência produz reais e negocia os seus efeitos.

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 131 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

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132 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

O Corpo Cênico Contemporâneo: Um Estudo sobre a Conscientização dos Gestos

Thiago Piquet da Cunha (UFF)58

Resumo: O estudo crítico sobre o corpo constata que as transformações artísticas vêm propondo que este deva assumir uma maior centralidade nas obras de artes, principalmente a partir dos anos 60 e 70, com o surgimento dos happenings, da body- art e da performance. A partir de então, observamos haver uma forte tendência em se (con)fundir, numa mesma ação, diferentes vertentes artísticas, e cada vez mais surgirem indagações mais densas sobre o conceito de corpo. Com enfoque na questão dos gestos e movimentos para se construir um corpo cênico contemporâneo, atrelado ao conceito de “corpo sem órgãos” proposto por Artaud no início do século XX, e do “corpo paradoxal” proposto por José Gil nos anos 2000, este estudo mergulhará no livro “A Dança” escrito por Klauss Vianna nos anos 90, em busca de conceitos que nos leve a uma percepção total do corpo e à conscientização dos gestos.

Palavras-Chave: Corpo; dança; movimentos; gestos

Introdução

As origens do termo Performance

A partir da segunda metade do século XX, podemos observar a eclosão dos happenings, da body art e da performance, uma vez que diversos fatores levaram estas manifestações artísticas da época a consolidar uma concepção de corpo puro e autêntico. A profª. Dra. Viviane Matesco59, em seu livro chamado Em torno do Corpo fala sobre o fato de que “a impossibilidade de repetição, a relativa margem de imprevistos e a utilização de locais alternativos que misturavam teatro, dança, música, escultura, poesia e pintura conferiam caráter híbrido aos eventos do happening” (MATESCO, 2016). Sobre a Body-Art, ela fala de uma tensão que as ações refletiam na ordem social e que convertiam o corpo em produto, em objeto econômico, em máquina ou instrumento do artista; e fala também sobre a ideia de explorar o corpo do artista como suporte de arte em detrimento da exaltação à beleza. Se

58 Aluno do Programa de Pós Graduação em Stricto Sensu - Mestrado Acadêmico - em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (PPGCA/UFF). [email protected] 59 Doutorado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/2008). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). 133 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

referindo à performance, Matesco afirma que esta surgiu através dos trabalhos que passaram a ser concebidos segundo o pressuposto da imagem. A partir deste pressuposto, Matesco defende que a relação entre ação e imagem implica uma série de condicionamentos que esgarçam o efêmero e o instável, considerando esta implicação como marcas principais da identidade inicial da arte corporal que vão dar início ao que chamaremos de performance. Consideraremos então que “a performance é uma modalidade de expressão que aparece em sua protofase nas seratas futuristas e, posteriormente, nas apresentações Dadá do Cabaret Voltaire sem se definir, contudo, como linguagem artística individualizada” (GLUSBERG apud VINHOSA, 2016). Podemos entender a performance a partir de dois fatores essenciais que, segundo Matesco são: o ritmo – que por repetição e/ou lentidão suspende o fluxo normal da vida – e o fato de os trabalhos serem concebidos a partir do pressuposto da imagem. Para a autora, “esses dois aspectos separam o artista de seu corpo, que passa então a ser observado do exterior.” (MATESCO, 2016). Dialogando com estes argumentos, Josete Ferál60 vai dizer que “a performance toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador” (FÉRAL, 2008). Os processos poéticos desencadeados pela arte contemporânea, a partir da arte conceitual, nos fazem refletir sobre o fato de que “os processos criativos passam a incorporar a personificação do artista na obra como um produto da sua subjetivação” (SARZI-RIBEIRO, 2014). Para Viviane Matesco, “na arte conceitual, a ideia é o mais importante, e a forma material é secundária, efêmera, despretensiosa e/ou desmaterializada”. (MATESCO, 2016). Em uma citação sua, Matesco diz também que “o que importa é a potência sensível desencadeada pela própria situação.” (idem) Expandindo a noção de corpo para além dos limites impostos pela pele e compreendendo a extensão da psique a que sempre se refere a professora, podemos constituir um discurso melhorado sobre o conceito de corpo não substancial e exaltar a potência que o conceito ‘corpo’ alcança em um campo extra-físico. Percebemos nitidamente esse discurso com Jean-Luc Nancy61 quando diz que:

60 Teórica sobre teatro contemporâneo 61 Filósofo francês da atualidade. 134 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

O corpo, a corporeidade do corpo – quer dizer, a sua extensão, a sua expansão, a sua expressão – comporta a verdade de que nada se reúne numa intimidade cúmplice de si, mas de que tudo se lança para mais longe, mais para o dentro porque mais fora do que qualquer recolhimento. (NANCY, 2015)

Todos estes discursos me trouxeram a visão que vai além de querer buscar uma representatividade artística do corpo, mas também uma tentativa de compreensão do que entendemos como corpo. Eles demonstram a existência de um espaço extracorpóreo que ainda se encaixa no campo do CORPO, ou seja, o que está em volta não deixa de ser corpo, o que discutimos sobre o corpo... Sendo assim, procurei canalizar melhor a minha pesquisa e focar em uma análise da metodologia de Klauss Vianna, na dança, em busca de um corpo cênico contemporâneo, sob uma visão mais abrangente de Corpo e me deparei com Artaud e o corpo sem órgãos.

Compreensões sobre O Corpo sem Órgãos

“O corpo é a vontade em ação. [...] O corpo sem órgãos é um corpo que significa um duplo espectro plástico, nunca acabado, construindo- se através da identificação cruel com seu corpo pleno.” (Daniel Lins)

Desde a tragédia grega até os tempos modernos, diversos filósofos criticam a existência de um juízo pré concebido socialmente. Juízo este chamado por Artaud de juízo de Deus. São concepções sobre ética e moral que estabelecem regras, normas e padrões a serem seguidos, imposta pelo “coro” e aceita pelo indivíduo. Assim como Spinoza, Kant, Nietzche, Kafka, entre outros... Artaud vai combater veementemente este juízo alegando que esta regulagem nos impossibilita de agir por vontade própria e que Deus nos controla, nos sopra as palavras que dizemos, nos furta tudo aquilo que achamos ser executado por nós unicamente; assim como nossos órgãos que nos regula sem nossa consciência. Sendo assim, Artaud faz uma proposição: “o homem é enfermo porque é mal construído. Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente, deus e juntamente com deus os seus órgãos” (ARTAUD apud SALES, 2012).

135 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Artaud propõe em seu manifesto Para acabar com o juízo de Deus (Pour en finir avec le jugement de dieu, 1947) que criemos um corpo sem órgãos, entendido por Deleuze como um corpo afetivo, “feito apenas de osso e sangue” (DELEUZE apud LINS, 1999). Precisamos entender o corpo sem órgãos como uma resistência a qualquer tipo de regra, regulagem, controle, ordem, todos os arquétipos da representação. O poder do corpo sem órgãos é o de desestruturar as instituições, acabar com as máquinas julgadoras, ele vai de encontro à toda visão despótica e autoritária. E seguindo esse preceito Artaud vai dizer que: “se o denomino corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os extratos de organização, tanto aos da organização do organismo quanto aos da organização de poder.” (ARTAUD apud LINS, 1999) Artaud acredita que criar um corpo sem órgãos seria indispensável para manter o homem vivo, pois ele daria ao homem o poder da criação, fazendo-o “artista de seu próprio desejo” (ARTAUD apud LINS, 1999). Ou seja, “é o desejo desejando o desejo” (idem). Ao dizer que a vida “[...] trata-se da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer contra nós. Não somos livres.” (ARTAUD, 2006) Ele defende que:

Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu verdadeiro lugar. (ARTAUD apud SALES, 2012)

Toda essa eloquência faz de Artaud um dos teóricos de teatro mais instigador, na minha opinião. Pois ele não finaliza seu anseio, mas semeia uma eterna reflexão a respeito das nossas ações e desejos. Como ele próprio disse: “Eu gostaria de fazer um Livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que os levassem lá onde jamais consentiriam em ir, uma porta simplesmente aberta para a realidade.” (ARTAUD, 1995) Em conformidade com seus manifestos cruéis, Artaud potencializa suas confabulações em busca de um corpo passível de afetar e ser afetado, de ser poroso e permitir os atravessamentos, as novas experiências. Como vai dizer o escritor e ensaísta Carlos Pessoa Rosa:

Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas, abrir o corpo a conexões; cabe ao artista arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de

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exploração; arrancar o inconsciente da significância e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção. (ROSA, 2017)

Deleuze vai dizer que, com o corpo sem órgãos, “Artaud dará ao sistema da crueldade desenvolvimentos sublimes, escrita de sangue e vida que se opõe à escrita do livro, como a justiça ao juízo, e acarreta uma verdadeira inversão de signos” (DELEUZE, 1997). Desta forma, unimos os ideais de Artaud em sua eterna indagação no fazer teatral verificando que a materialidade da carne deve sucumbir-se em favor de uma criação afetiva de um duplo que, na verdade, é uma construção de si mesmo. E essa batalha traçada entre o homem insurgente para refazer um corpo e um eu livre; essa luta contra todas as forças que o controlam e que se opõem à sua originalidade levam a construção de um corpo sem órgãos. Como vai dizer Marco De Marinis sobre este conceito é que:

A realidade não está na fisiologia de um corpo, mas na perpétua busca de uma encarnação que, perpetuamente desejada pelo corpo, não é de carne, mas de uma matéria que não seja vista pelo espírito, nem percebida pela consciência e seja um ser pleno de pintura, de teatro, de harmonia. (DE MARINIS, 2005, tradução minha)

E neste cenário conflituoso onde se pretende encontrar um corpo genuíno e colocá-lo à frente das obras de arte, me deparo com os escritos de Klauss Vianna que propõe uma conscientização total do corpo para se promover os gestos de maneira autêntica. Sua proposta dialoga em diversos pontos com Artaud e outros autores críticos que faço comparações a seguir.

Um mergulho crítico no livro A Dança de Klauss Vianna

Com meu estudo sobre a metodologia de Klauss Vianna, do que tive contato com sua filosofia, pude perceber que Klauss defende que o movimento individual de cada corpo estimula uma dança pessoal e única através de experiências cinestésicas. Conforme ele descreve em seu livro A Dança, de 1992, Klauss propõe a seguinte reflexão:

Se a dança é um modo de existir, cada um de nós possui a sua dança e o seu movimento, original, singular e diferenciado, e é a partir daí que essa dança e esse movimento envolvem para uma forma de expressão em que a busca na

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individualidade possa ser entendida pela coletividade humana. (VIANNA, 1992)

Ao ler sobre o atletismo afetivo no livro “O teatro e seu duplo” de Antonin Artaud pude verificar que, em algumas citações de Klauss Vianna, havia algo em comum entre esses pensadores. Eram várias similaridades a respeito do discurso sobre o corpo e a maneira como são apresentadas as funções do nosso corpo, que não pude evitar a comparação. Como por exemplo, quanto a valorização da respiração, o trecho do livro “A Dança”, destacado a seguir, me pareceu muito conciso a título de efetuar tal aproximação com Artaud. Para alcançar seu objetivo de recriar a linguagem teatral, Artaud se lança no estudo de um “atletismo afetivo” no intuito também de admitir que o ator precisa ter uma espécie de “musculatura afetiva” que fosse correspondente a uma localização física dos sentimentos. Seu foco principal era a respiração, pois ele dizia ser o alimento da vida. É na respiração que Artaud entende estar o ‘controle’ das paixões. Ele afirma que “a respiração acompanha o sentimento e pode-se penetrar no sentimento pela respiração.” (ARTAUD, 2006) E vai além dizendo que “os mesmos pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação do pensamento afetivo”. (idem). Já Klauss Vianna vai dizer que:

Em sentido mais amplo, a ideia de espaço corporal está intimamente ligada à ideia de respiração – que, ao contrário do que pensamos, não se resume à entrada e saída do ar pelo nariz. Na verdade, o corpo não respira apenas através dos pulmões. Em linguagem corporal, fechar, calcificar e endurecer são sinônimos de asfixia, degeneração, esterilidade. Respirar, ao contrário, significa abrir, dar espaço. Portanto, subtrair os espaços corporais é o mesmo que impedir a respiração, bloqueando o ritmo livre e natural dos movimentos. Imagem muito forte de nossa emoção, a respiração representa nossa troca com o mundo. (VIANNA, 1992)

Outro pensador com quem faço aproximações é José Gil ao ler sobre o conceito de corpo paradoxal onde ele vai dizer que “o corpo tem de se abrir ao espaço, tem de se tornar de certo modo espaço; e o espaço exterior tem de adquirir uma textura semelhante à do corpo a fim de que os gestos fluam tão facilmente como o movimento se propaga através dos músculos”. (GIL, 2004) A partir desta definição, retorno ao texto de Klauss para destacar o trecho que diz: Ao dividirmos os espaços nos localizamos dentro deles. Estabelecemos seus limites, tão importantes para o surgimento de uma verdadeira ação. Mas essa

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ação depende dos limites em que atuamos: o gesto, o som da voz, a intenção serão limitados pelas paredes, pelo teto e pelo chão em que essa ação se passa. (VIANNA, 1992)

Acho engraçado como as teorias, os pensamentos de Klauss Vianna se enquadram tão bem nas discussões estabelecidas por diversos outros teóricos do corpo. É como se eles estivessem conversando juntos, informalmente, mas ao mesmo tempo estão em décadas diferentes. Em 2002, Eliane Robert de Moraes, no livro O corpo impossível, disse que:

A identidade corporal foi perdida, chegando a um grau zero, fazendo com que artistas encarassem essa ausência de silhueta. O corpo já não era mais o clássico corpo de antes. A partir de então, para que a fábula aconteça, o homem precisa não apenas confrontar-se com sua própria imagem, mas interrogar-se diante das outras criaturas. (MORAES, 2002)

Sendo que Klauss Vianna já havia escrito algo parecido também sobre isso, em seu livro, dez anos antes. Dizia ele que:

Todos sabemos que o corpo existe, mas sabemos intelectualmente. [Ele fora esquecido ou está adormecido]62 Para acordar este corpo é preciso desestruturar, fazer que a pessoa sinta e descubra a existência desse corpo. Somente aí é possível criar um código pessoal, não mais aquele código que me deram quando nasci e que venho repetindo desde então. O que proponho é devolver o corpo às pessoas. (VIANNA, 1992)

O que vai ao encontro também de Artaud, quando ele aborda as questões da ‘palavra soprada’ e reflexões em cima do manifesto Para acabar com o juízo de Deus. No entanto, para este primeiro momento, finalizarei por aqui, pois pretendo aprofundar mais estes conceitos na minha dissertação.

Considerações Finais

Ao analisar as transformações teóricas e práticas no campo das artes cênicas, observamos as constantes mudanças em prol da valorização e autonomia do

62 Grifo meu 139 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

ator/performer/bailarino. Desde o século XX, que no Teatro acompanhamos as mudanças com a decadência da cena dramática, passando a surgir sucessivamente os movimentos pela cena naturalista, simbolista, o teatro moderno, pós dramático e o novo teatro, até estagnarmos alargadamente no teatro contemporâneo. Já com a Dança não foi muito distinto; saiu do clássico, passou pelo moderno e se encontra no contemporâneo, com poucos outros movimentos de considerável radicalização, além da dança-teatro de Pina Bauch. Percebo que este esgarçamento temporal vem criando cada vez mais conflitos para as discussões sobre definir e enquadrar as artes cênicas em uma nomenclatura que já não é mais tão limítrofe assim. A distinção entre teatro e dança já atingiu um lugar tão minucioso que já não é mais coerente fazer tal comparação. Ainda mais com o surgimento da Performance que se colocou em um lugar ainda mais instável, pois possui uma gama extremamente amplificada de conceitos e definições, querer engessar estes conceitos seria um tanto quando desprezível. No entanto, prefiro relacioná-los com a percepção de que, mesmo sendo distintos entre si, mas não podendo classificar suas diferenças, todos estes movimentos são convergentes com seus discursos sobre o corpo. E é este ponto de conversão que me instiga a analisar as maneiras de abordagem das vertentes cênicas. Qual o entendimento sobre o corpo? O que está em primeiro plano na cena? Como se constrói este novo corpo cênico contemporâneo que já não se submete mais ao texto, nem ao encenador, diretor, coreógrafo, etc.? Se a autonomia destes intérpretes foi alcançada, minha pesquisa se fará baseada nestes mecanismos que o tornam independentes e criativos. Como Artaud que propõe a extinção dos órgãos ou Klauss que sugere uma compreensão dos gestos genuínos. Minha busca será por ferramentas práticas e teóricas que me direcionem aos diversos tipos de estudos cênicos contemporâneos em favor de um corpo substancial ou não, criativo, autêntico, inquietante e em constante ação.

Referências

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. Perspectiva, São Paulo, 1995. _____ . O Teatro e seu Duplo. Martins Fontes, São Paulo, 2006. _____. Pour en finir avec le jugement de dieu. 1974. Disponível em: http://archives.skafka.net/alice69/doc/Artaud%20Antonin%20- %20Pour%20en%20finir%20avec%20le%20jugement%20de%20dieu.pdf 140 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Acesso em: 10/09/2017 DE MARINIS, Marco. Artaud y el segundo teatro de la crueldad. En: En busca del actor y del espectador. Galerna, Buenos Aires, 2005, PP.163-178 DELEUZE, Giles. “Para dar um fim ao juízo”. In: Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1997. FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, n.8, p. 191-210, 2008. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/issue/view/4700/showToc GIL, José. O corpo paradoxal. In: GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminuras, 2004. LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. MATESCO, Viviane. Em torno do corpo. Niterói. PPGCA/UFF. 2016. MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. Rio de Janeiro: Iluminuras. 2002. NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora; tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. 1ª Ed. Rio de Janeiro: 7Letras. 2015. SALES, Márcio. Deleuze e Artaud: um passeio pelo corpo sem órgãos. 2012 Disponível em: https://caosmofagia.files.wordpress.com/2011/12/deleuze-e-artaud-um- passeio-pelo-corpo-sem-c3b3rgc3a3os.pdf . Acesso em: 12/09/2017 SARZI-RIBEIRO, Regilene. O corpo no vídeo e o corpo do vídeo. In Poiésis 23. Niterói: PPGCA. 2014 VIANNA, Klaus. A Dança. 7ª Ed. São Paulo. Summus Editorial, 2002. VINHOSA, Luciano. Arte Reflexões no Silêncio entre ruminâncias e experiências. Niterói. PPGCA/UFF. 2016.

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O Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare e sua Presença na Cena Contemporânea Brasileira

Angélica Tomiello (UEM)63

Resumo:A presença de Shakespeare em encenações é recorrente em diferentes épocas e países, não por sua universalidade, mas pela qualidade de sua obra. Desde os primeiros registros de sua presença no teatro brasileiro, do século XIX ao século XX, feitos por Celuta Moreira Gomes (1959), percebe-se que, mesmo que com as traduções francesas, tão problemáticas para alguns devido ao caráter romântico dado às peças shakespearianas, o dramaturgo elisabetano se fez presente. Na cena contemporânea tal presença não deixou de ser relevante através do trabalho de grupos de teatro popular, como o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, que desde sua fundação em 1993 com a encenação de Sonhos de uma noite de verão, traz o bardo para os palcos. É um grupo que mantém o caráter colaborativo de produção, um contínuo de estudos sobre a presença cênica do ator, sempre com a técnica clown presente em sua estética de criação. O objetivo do presente trabalho é, portanto, apresentar o trabalho desse grupo da cena nordestina, que, de certa forma, atualiza os sentidos da obra shakespeariana, retomando o caráter popular de sua obra a partir da inserção, enquanto grupo teatral brasileiro, na cena contemporânea.

Palavras-chave: Shakespeare; Cena contemporânea; Teatro brasileiro; Clowns de Shakespeare.

Introdução Considerando a formação do teatro brasileiro com os grupos de teatro popular, alguns dos grupos formados a partir da década de 90 se destacam na cena contemporânea brasileira, como é o caso do grupo de teatro popular nordestino Clowns de Shakespeare, que trabalham com o texto shakespeariano, mas não somente com ele, ao longo de mais de duas décadas de atuação. A união de elementos da cultura popular brasileira e nordestina, do cômico, e, de certa maneira, do político, pensando-se na atuação do grupo e sua inserção no contexto em que estabelece sua relação dialética, ilustram o direcionamento dos Clowns, que, com raízes modernistas e influência dos grupos de teatro popular de 90, constroem um projeto estético bem delimitado e direcionado no trabalho com o texto de William Shakespeare e toda a carga

63 Mestranda em Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura e Historicidade, do Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (2016-2018). E-mail para contato: [email protected]. 142 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

canônica que ele traz consigo. Atuando, então, na contramão das companhias profissionais, com um texto canonizado pela crítica, visto como difícil por alguns, é que o grupo se encaixa (atuante dialeticamente) na cena contemporânea brasileira.

O Grupo: surgimento, projeto estético e atuação na cena contemporânea brasileira

O grupo nordestino Clowns de Shakespeare, um dos mais antigos de Natal, fundado em 1993, é um dos grupos de teatro popular brasileiro que corrobora com a popularização de Shakespeare com inúmeras encenações ao longo de seus 24 anos de história e sintetiza os caminhos tomados pelo teatro brasileiro ao longo de seu desenvolvimento (cômico e popular). Eles “conhecem o classicismo a ponto de poder jogar com ele com uma intencionalidade nossa, sem deformá-lo na essência, somando-o ao que conhecem de nossa tradição cômica” (VARGAS apud FARIA, 2013, p. 116). Nessa atuação a partir da tradição do cômico, com uma bagagem já desenvolvida pelos demais grupos de teatro popular brasileiro que surgiram desde a década de 90 do século XX, o grupo atua com características mais livres de interpretação e produção para as encenações shakespearianas. A arte de reescrever, representar, adaptar, enfim, William Shakespeare sempre será um desafio devido à carga social que o autor traz consigo há mais de quatro séculos e a aura canônica que envolve o autor desde sua valorização romântica no século XIX. Esse desafio é tomado, porém, pelo grupo nordestino Clowns de Shakespeare, que aceita com suas produções teatrais, que fazem a relação entre passado e presente, assinalar as características de seu contexto a partir da retomada de uma obra de arte precedente sem pender ao amadorismo, muito menos à concordância e reafirmação dessa aura já bastante canonizada por companhias de teatro profissionais, mais inseridas, diretamente, na concepção capitalista de produção. Baseando-se no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, publicado em 1928, como afirma Bennett (2016), rompendo com os moldes instituídos, o grupo se encaminha para a adaptação do texto shakespeariano sem ressalvas, imprimindo o caráter tupi nas produções, a partir da inserção de elementos culturais locais nordestinos nas encenações de seu Shakespeare potiguar, sem pretensões totalizantes para todo o território brasileiro, nem tentativas de pictorização. 143 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

The Clowns de Shakespeare take their methodological lead from a distinctively Brazilian publication, the 1928 “Cannibalist Manifesto”, that informs their radical rewriting of the source text, a strategy that combines with their own development of an outdoor circus ring as signature performance space. The contradictions and conflicts of local history become part of Richard III’s story and vice versa. The staging, buoyed by song and music, transforms urban space to recognize native performance traditions as much as Shakespearean ones, recent Brazilian political scandals as much as the intrigues of a distant time in the English monarchy. This critical account cautions against tendencies to pigeonhole too easily one production as representative of a country’s past and present relationships to Shakespeare. (BENNETT, 2016, p. 7)

Aspecto interessante é notar como o grupo possui raízes modernistas, seja pelo nome, seja pela concepção estética que adota. No manifesto antropofágico, Oswald de Andrade propõe a inserção de elementos tupis naquilo que os estrangeiros tentaram nos impor. Absorver, portanto, a cultura do outro, a partir de sua própria atuação e nova concepção. Esse guia insinua a liberdade que pode existir no trabalho com textos canônicos, como o fazem os Clowns.

Figura 1. Sede do grupo no bairro Lagoa Nova, em Natal (RN), o Barracão Clowns

Como mencionado, o nome do grupo, retirado de um poema de outro, também, modernista, Manuel Bandeira, Poética, percebemos um delineamento estético de trabalho artístico similar ao manifesto oswaldiano. O autor apresenta a recusa frente a certas manifestações literárias parnasianas e comedidas pela lírica pura. A menção dos Clowns de Shakespeare, faz referência à liberdade de fala, de expressão, de posicionamento, de opiniões dos personagens clownescos que aparecem nas peças shakespearianas, como Falstaff, por

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exemplo, ou ainda o bobo (clown) do Rei Lear, que não são comedidos por convenções sociais ou líricas em suas falas e seus atos. É esse o aspecto que o grupo quer evidenciar ao trabalhar com o dramaturgo inglês, fugindo de uma concepção “museológica”, como afirma Fernando Yamamoto, um dos fundadores do grupo. No poema, é possível notar melhor, como esse direcionamento para o trabalho estético se dá com a contraposição do lirismo parnasiano e a proposta de liberdade: Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. (BANDEIRA, 1986, p. 75)

Os grupos de teatro popular, de maneira geral, viram com os amadores no início do século XX as possibilidades de modernização do teatro brasileiro. Nos diferentes direcionamentos dentre eles, os grupos que surgiram nas décadas de 30, 60 e 90, absorveram essas inovações e propuseram manifestações teatrais mais interessadas e politizadas (questionadoras), não inseridas no lucro capitalista das companhias profissionais (que, em certa medida, também se aproveitaram dessas inovações da modernização no teatro

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brasileiro). Essa atuação dos grupos amadores e de teatro popular muito definiu o caminho dos grupos de teatro popular contemporâneos.

Figura 2. Atuação fora do teatro comercial/profissional em palcos italianos.

Os movimentos de grupo dos finais da década de 70 e início da década de 80 são aqueles que, principalmente, delineiam o posicionamento dos grupos mais contemporâneos, a partir da década de 90. Entre o que ficou desses grupos, alguns elementos tidos como comuns, aparecem na organização e história do grupo Clowns de Shakespeare, como: (1) a atuação fora do teatro comercial/profissional, (2) a adoção de formas populares para os espetáculos, (3) a utilização de métodos coletivos ou colaborativos de produção, (4) a manutenção da sede do grupo em um bairro, funcionando de maneira itinerante, (5) independência governamental, tanto em relação a auxílios financeiros quanto filiações partidárias, o que não caracteriza alienação em relação às questões culturais e políticas do país (sem pretensões realistas), além do (6) intercâmbio e parcerias com outros grupos de teatro popular brasileiros, com (7) manutenção de cursos e oficinas que promovam a formação de novos grupos. Todos esses aspectos compõem a proposta presente no projeto estético do grupo Clowns de Shakespeare, cada um a sua medida, como poderemos ver a seguir. O processo colaborativo de produção que tem raízes na criação coletiva dos primeiros grupos de teatro popular surgidos a partir das década de 40-50 horizontaliza as relações entre os sujeitos criativos, aspecto mantido pelos grupos surgidos posteriormente, como é visto, por exemplo, no processo de criação adotado pelo grupo natalense. Nesse

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processo, os espetáculos apresentados podem sofrer algumas alterações conforme as encenações continuam de acordo com a colaboração de todos os envolvidos no processo, onde o princípio que constitui o projeto é compartilhado por todos os integrantes, sem trocas de responsabilidades. “A preparação do roteiro ou texto da peça pelo dramaturgo implica um vínculo estreito com o processo improvisacional dos atores e pressupõe adesão à ideia da dramaturgia como construção coletiva que, ainda assim, ostenta uma autoria.” (GARCIA apud FARIA, 2013, p. 317)

Figura 3. Processo coletivo/horizontal de produção e manutenção de cursos e oficinas que ampliam as possibilidades de formação de novos grupos

A liberdade tomada com o texto shakespeariano faz parte da proposta estética do grupo nesse trabalho coletivo. Além de tal aspecto, os estudos continuados para trabalho com a presença do ator em palco e a musicalidade são pontos desenvolvidos pelo grupo, com sede no Barracão Clowns, em Natal. A estética clownesca também faz parte do conceito estético do grupo, não o palhaço propriamente, mas o trabalho com a lógica subvertida como um instrumento que une a crítica, o cômico e o popular, seja relacionando-se diretamente com as plateias, seja presente nos versos das adaptações feitas pelo grupo. Esse aspecto retoma ainda, o aspecto levantado ao início do presente trabalho, quando da menção da presença do cômico e do popular em todo o percurso de formação de teatro brasileiro. É importante ressaltar, se ainda não ficou evidente, que o grupo se insere no locus do teatro nordestino, que além da brasilidade que o compõe, apresenta aspectos culturais muito específicos dessa região (lembrando que a região possui suas especificidades, mas cada

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espaço do Nordeste demonstra, ainda, diferenças culturais que os tornam únicos). O teatro nordestino, além de aspectos de brasilidade, cômicos e populares, é um teatro que

[...] gira no âmbito do universo cômico popular, alimentado por estereótipos, caricaturas, máscaras. Nenhuma das personagens da Compadecida é desenhado de modo realista. Todos eles têm uma outra derivação. Vieram das tradições do mamulengo, do teatro de bonecos (fantoches, bonecos de mão, bonecos de vara, marionetes) que, vindo da Europa nas naus portuguesas, enraizou-se no Nordeste, tornando-se elemento de destaque naquela cultura. (GUZIK in FARIA, 2013, p. 142)

Os Clowns, como não poderia deixar de ser, além das características dos grupos de teatro popular, possui em sua estética elementos típicos desse universo teatral nordestino, como o cômico popular (Commedia dell’Arte), com a presença do cangaceiro em algumas encenações, como ocorre, por exemplo, em Sua Incelença, Ricardo III do grupo em destaque, além das cantigas tradicionais do contexto em que se inserem, no trabalho com a musicalidade, as incelenças, na mesma referida peça. O sentido coletivo impresso pelo grupo mantém um vínculo com a coletividade territorial e cultural onde se inserem, de onde retiram elementos linguísticos, por exemplo, vinculando o trabalho realizado à manutenção da memória cultural local, sua autonomia e sua identidade frente às demais manifestações artísticas do território brasileiro (muitas delas massificadas enquanto produtos da indústria cultural). A relação dialética entre arte e sociedade é vista na atuação do grupo que, ao mesmo tempo em que utiliza elementos culturais locais em suas encenações, devolve ao contexto local sua atuação, seja na formação de novos grupos ou com as próprias encenações que movimentam o social. Longe de buscar qualquer compromisso naturalista de representação baseada na realidade, o grupo apresenta o teatro como teatro e não como imitação ilusionista da vida real, sendo a utilização das técnicas clown exatamente um dos recursos que distancia o grupo de uma tentativa realista de produção, como ocorre com muitas companhias contemporâneas ao encenar Shakespeare na lógica ideal enquanto o cânone ocidental, fugindo das possibilidades de subversão do conceito de clássico. Nessa lógica produz-se efeitos de distanciamento que não permitem ao espectador assumir atitudes sentimentais frente ao apresentado, ainda que,

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talvez, não provoque criticidade e atuação social, como o queria a proposta do teatro épico brechtiano. Mais um recurso que funciona como elemento épico de distanciamento, pensando especificamente na encenação de Sua Incelença, Ricardo III, de 2010, é a manutenção dos atores que não estão em cena ao redor do palco, quebrando qualquer expectativa de ilusão que se possa provocar nos espectadores a partir de uma de uma suposta realidade cênica; se torna difícil esquecer que se está assistindo a uma peça teatral a partir desse efeito de distanciamento. Outro recurso brechtiano utilizado pelo grupo nordestino em questão, é a utilização de elementos cênicos que suavizam as ações, tornando-se ‘não reais’, como mortes onde os personagens continuam cambaleando e falando um longo tempo ‘depois de morrer’, ou voltam para comentar situações enquanto ainda jazem com o corpo em cena. Porém, é válido lembrar que, mesmo sendo possível enxergar elementos do teatro épico brechtiano na atuação do grupo, não se pode afirmar que o resultado seja a concretização do teatro épico como ocorre em outros grupos, como a Companhia do Latão, que possui uma presença política mais engajada.

Figura 4. Utilização de elementos populares na concepção estética: sanfonas, carroças, lampião, guarda-chuvas, etc.

O grupo, ainda ativo no ano de 2017, com espetáculo Abrazo, e com sede no Barracão Clowns (Espaço Cultural Casa da Ribeira) como ilustrado na primeira foto do presente trabalho, em Natal, mantém atividades de estudo programadas constantes, como seminários, cursos, oficinas modulares (para adultos) e infantis, intercâmbios com outros

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grupos de teatro popular, como com o projeto Redemoinho, ou o Movimento A Lapada, em 2008, sempre aprimorando a pesquisa teórica em torno da presença cênica do ator e a relação do teatro popular com a comédia a partir de uma perspectiva horizontal de colaboração. Participa do Palco Giratório promovido pelo SESC, além de outras turnês, onde leva seus espetáculos em cartaz. Dentre as peças shakespearianas que constam em seu repertório, podemos mencionar a estreia do grupo, em 1993, com Sonhos de uma noite de verão; Noite de Reis, em 1994, quando o grupo investe pela primeira vez na formação de seus atores, trazendo profissionais para cursos e oficinas; A Megera DoNada, com estreia em 1998, tendo iniciado o processo de montagem em 1996; Sonhos de uma noite só, em 1999, pelo projeto Shakespeare na Rua; Muito barulho por quase nada, em 2003, sendo essa montagem a marca da transição do amadorismo para uma maior inserção na cena cultural potiguar, além de participar de seu primeiro festival internacional de teatro, o FIT de São José do Rio Preto (SP), circulando até 2006 e Sua Incelença, Ricardo III, em 2010, circulando, também, por vários festivais de teatro nacionais e internacionais.

Considerações Finais

Ao evidenciar o trabalho de um grupo de teatro popular nordestino que atua na cena contemporânea no Brasil e busca inspiração nos escritos de William Shakespeare é possível perceber como há um cuidado com as produções feitas, como existe um projeto estético muito bem estruturado por trás de todas as encenações que acompanham e construíram o caminho do grupo ao longo de seus 24 anos de atuação, com elementos de cultura popular nordestina e aqueles que se fazem presentes desde sempre na cena brasileira: cômico e popular. Nessa evidência, a valorização do popular, a reinterpretação de Shakespeare fugindo do conceito estabelecido de cânone, ainda na contracorrente das companhias de teatro profissional que se inserem prontamente no sistema capitalista pelo lucro das produções, são aspectos que marcam e corroboram aos recentes direcionamentos dos trabalhos feitos com o texto shakespeariano na busca por sua (re)popularização.

Referências 150 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

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Ói Nóis na Rua: O Amargo Santo da Purificação encenado pelo grupo Ói Nóis Aqui Traveiz

Hadassa Nascimento Welzel (UEM)64

Resumo: O objetivo deste artigo é proporcionar um olhar atento à dramaturgia do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, o qual teve seu início no ano de 1978 e tem um papel importante no âmbito do teatro brasileiro, mais especificamente entre os coletivos de teatro que têm uma preocupação em fazer teatro político. O recorte escolhido foi a encenação da peça de 2008, O amargo santo da purificação, cujo assunto é a ditadura brasileira tendo como fio condutor poemas de Carlos Marighella, que na peça são musicados. Para tanto, utilizaremos tanto conceitos do teatro épico elucidados por autores como Iná Camargo Costa e Anatol Rosenfeld quanto a gravação da encenação da peça.

Palavras-chave: Ói Nóis Aqui Traveiz; teatro; sociedade.

Introdução

O intuito desse artigo, fruto de uma pesquisa de um ano, é estudar a encenação da peça O amargo santo da purificação, cuja estreia foi em 2008, sem perder de vista o trabalho coletivo da “tribo” de atuadores Ói nóis aqui traveiz. Sobre o grupo, sendo tribo um termo que eles mesmos se atribuíram, este tem conseguido desempenhar um trabalho que merece ser estudado. O mesmo começou suas atividades no dia 31 de março de 1978 e, desde a sua fundação, tem buscado um teatro comprometido com o momento político pelo qual o país vive. Inicialmente, nos chamou a atenção o coletivo ter como base teórica para seus trabalhos tanto Antonin Artaud quanto Bertolt Brecht; afinal de contas, os escritos de Artaud tem como base uma concepção de teatro como ritual, em que os espectadores mergulham na cena e a vivenciam como performance, enquanto Brecht preza sobretudo uma distância crítica entre palco e plateia. Isso gerou o questionamento sobre como se daria essa articulação íntima. Além disso, vale dizer que o trabalho se pautará numa concepção de literatura que procura estudar afundo as mediações entre esta e a sociedade. Dessa maneira, nosso trabalho terá primeiro uma breve explanação inicial a respeito de algumas características do teatro épico; depois faremos uma retomada do teatro épico no Brasil para logo em seguida nos atermos à

64 Mestranda na Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected] 153 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

sua fase atual, e assim poderemos prosseguir tanto ao trabalho do grupo Ói Nois Aqui Traveiz quanto à peça em questão, O santo amargo da purificação.

Início do teatro épico

Apesar de o teatro épico utilizar muitos recursos comuns tanto ao teatro oriental quanto às tragédias gregas e ao teatro de Shakespeare, foi Bertolt Brecht (1898-1956), também influenciado por outros, dentre eles Erwin Piscator, quem deixou contribuições mais significativas para a teoria e dramaturgia moderna. Anatol Rosenfeld disse, em uma palestra de 1966, (p. 29, 2012) que quando a própria cosmovisão dificultava a redução do universo ao diálogo interindividual o teatro precisou de elementos épicos (por exemplo, o coro). Ou seja, toda vez que o teatro desejava expandir para contextos universais ou sociais, era necessário recorrer a algum tipo de recurso narrativo, uma vez que só assim se torna possível ampliar o mundo para além dos limites da moral individual e da psicologia racional. Assim, no contexto alemão, tendo como precursores o naturalismo e expressionismo, os quais já expressavam uma crise do sujeito frente ao seu contexto sócio-histórico, Brecht, em teoria e prática, consolida o que hoje chamamos de teatro épico. Vale dizer que na primeira metade do século XX o tipo de teatro que vinha sendo encenado como regra era o drama burguês, o qual tinha em seu fundamento uma estrutura fechada, já as peças épicas, de Brecht, possuem uma estrutura fundamentalmente aberta. Quais seriam então algumas diferenças entre uma peça rigorosa, fechada, e uma épica? Aqui não se pretende listar as diferenças em algum esquema, apesar de o próprio Brecht já ter feito isso, antes, serão mencionados alguns pontos que têm como base notas esparsas do acervo de Rosenfeld. Primeiramente, vale colocar em evidência que o teatro tradicional apresenta personagens em choque por meio do diálogo interindividual; e o que não pode ser exposto usando tal recurso não existe no teatro dramático. Além disso, o drama é a ação que se desenrola agora, em outras palavras, os personagens vivem o seu destino pela primeira vez no momento da peça. Os atores, dessa forma, são impossibilitados de atuarem dialeticamente, pelo contrário, vivem os personagens em cada encenação na atualidade da representação. Ainda, a ação precisa ter um decurso contínuo, sem saltos temporais ou espaciais, pois não há 154 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

um narrador que possa selecionar as cenas ou manipular a deslocação espacial; cada cena motiva a próxima e há um desenvolvimento autônomo da fábula por força própria. Por causa desses elementos o público “vive” uma ilusão da realidade, o que possibilita uma identificação intensa para com as personagens e suas situações; em consequência disso o público poderá passar por uma catarse e sair do teatro aliviado e purificado das tensões e ou paixões excessivas. Em contrapartida, o teatro épico não se atém a esse modelo inexorável. Sua estrutura é mais aberta e ele rompe as unidades de ação, tempo e lugar. Em vista disso o teatro épico abre-se para um mundo maior, há variedade de tempos, lugares e episódios, e por essa razão, o diálogo interindividual é ultrapassado pela riqueza cênica e pelos diversos elementos visuais e imaginários que quase se sobrepõem à exposição puramente verbal. Também por causa desses motivos, como explica Rosenfeld (2012, p. 29):

Há saltos no tempo e no espaço que pressupõem a intervenção de um narrador (mesmo que não explícito) que, sem se preocupar com a concatenação causal rigorosa da ação, seleciona de um tecido de eventos múltiplos, entrelaçados com outros eventos, os episódios que se lhe afiguram dignos de serem apresentados.

Essa foi uma introdução do que seria um teatro épico, também chamado de dialético. Assim podemos agora passar para a recepção deste com nossas cores locais.

Início do teatro épico no Brasil

Aqui, pautados na obra A hora do teatro épico no Brasil (1996), de Iná Camargo Costa, podemos dizer que o marco do teatro épico no Brasil teve início com a encenação da peça Eles não usam black-tie, escrita por Gianfrancesco Guarnieri, com estreia em 22 de fevereiro de 1958. Tal encenação, realizada pelo Teatro de Arena de São Paulo, teve, entretanto, seus precedentes, dentre os quais é importante mencionar o Teatro de Brinquedo, as peças de Oswald de Andrade, o Teatro do Estudante, Os Comediantes, os paulistas GUT (Grupo Universitário de Teatro) e GTE (Grupo de Teatro Experimental) e o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Este, de 1948, foi a primeira experiência de um teatro estável no Brasil, mas, segundo a autora, era totalmente voltado para um mercado burguês que desejava

155 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

conhecer o que se passava na Europa e nos Estados Unidos. Assim o TBC poderia ser caracterizado como uma empresa teatral. Este grupo diferia do projeto do Arena, o qual nasce em 1953, e, diferente do TBC, tinha todos os integrantes participando de todas as etapas de produção, seja da criação da dramaturgia até o debate sobre o modo de encenação. A similaridade que o Arena e o TBC tinham na segunda metade dos anos cinquenta, segundo Costa (1996, p. 19), era a manutenção de elencos estáveis. Ainda segundo a autora, ao longo da encenação de Eles não usam black-tie, o Arena estava sendo aparentemente irracional ao ir contra as “leis” do mercado, e havia o risco de o grupo se desfazer em 58, ano no qual José Renato (diretor do grupo) decidiu montar a peça em questão. A importância da peça encontra-se, primeiramente, na mudança de foco em relação às outras peças do teatro brasileiro, pois pela primeira vez o proletariado como classe assumiu a condição de protagonista de um espetáculo, prova essa da experimentação que começava a acontecer com as formas teatrais agora no Brasil depois da crise do drama burguês. Segundo Costa (1996, p.36), Eles não usam black-tie apresenta dois pontos de vista opostos e conflitantes, uma vez que a forma utilizada na peça foi dramática e conservadora enquanto o assunto da mesma não. Apesar disso, a importância da peça é inegável, e justificável tal escolha de forma pelo fato de que Guarnieri ainda não estava esteticamente à altura do momento histórico. Ainda em relação à encenação da peça anteriormente citada, é importante ressaltar que por meio dela o teatro recebeu um novo público, formado por estudantes e trabalhadores do setor terciário. O êxito que a peça teve ainda fomentou discussões teatrais, como o Seminário de dramaturgia, o qual tinha como um de seus propósitos revelar novos autores. Um exemplo desses novos autores foi Augusto Boal, o qual, ao longo do seminário escreveu, em 1960, Revolução na américa do sul. Vale notar a importância de Boal para o Arena, o qual, chamado em 1956 para dirigir algumas peças do grupo e trazer novos ares, chega com uma bagagem de anos estudando dramaturgia nos EUA, mais especificamente com John Gassner, além de ser familiarizado tanto com a obra de Brecht quanto de Stanislavski. Assim, Boal rapidamente percebeu que seria preciso criar um caminho dentro do Arena para conseguir fazer um teatro moderno e atuante no Brasil. Continuando o percurso do Arena, as reflexões a respeito do teatro moderno na época deste foram relevantes a ponto de fazer com que Oduvaldo Vianna Filho, conhecido como 156 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Vianinha, identificasse e expressasse uma contradição existente entre o assunto da peça de Boal e o público do teatro de Arena, o qual, na época, era formado por estudantes de classe média. O assunto foi discutido no Seminário, a ponto de Vianinha sugerir que o Arena, que tinha um espaço fixo graças a um grupo de sócios que tinham direito a assistir às estreias, passasse a funcionar de maneira que não dependesse das regras do mercado teatral estabelecido (inspirado no “teatro livre” de Antoine e socialistas franceses do século XIX), ideia refutada por José Renato, Augusto Boal e Guarnieri. Tal situação motivou Vianinha a se desligar do grupo e lançar outro projeto, o qual também foi de suma importância para o teatro brasileiro. Com a ajuda de estudantes de sociologia e economia política, Chico de Assis dirigiu a peça de Vianinha A mais-valia vai acabar, seu Edgar, no teatro da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tal encenação teve um enorme sucesso entre o público estudantil, com os 1200 lugares do teatro por dois anos muito frequentado (encenações com no mínimo 400 pessoas) e, após o êxito, Vianinha, Chico de Assis e Carlos Estevão Martins participaram da fundação em 1962 do CPC – Centro Popular de Cultura –, vinculado à UNE (União Nacional dos Estudantes), que faria parte de um dos momentos mais maduros e promissores do teatro brasileiro moderno dos anos 60. A respeito disso, Iná Camargo Costa afirma que:

Em busca de outro público (popular), os artistas do CPC criaram uma nova concepção de texto, de cena, de produção, de interpretação, de acordo com o espírito do teatro político de agitação e propaganda, conhecido como agitprop, expressão criada pelos primeiros artistas políticos deste século no período heróico da revolução soviética. Foi portanto no CPC que se verificou no Brasil a revolução teatral legitimamente comparável à que se produziu em outros lugares, a começar pela União Soviética, que nos deu a conhecer dramaturgos da estatura de Maiakóvski e diretores como Meyerhold. (COSTA, 1996, p. 185)

Lamentavelmente, entretanto, em março de 1964, quando o CPC preparava a inauguração de seu teatro na sede da UNE no Rio de Janeiro, houve o golpe militar, e o prédio da UNE foi incendiado. O pior não foi o incêndio do prédio, mas como um grupo como o CPC foi apagado. Na primeira resposta ao golpe de 64, com o Show Opinião, dirigido por Boal, na opinião de Costa (1996) alguns sintomas já podiam ser percebidos, uma vez que o espetáculo 157 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

e o grupo não só deixaram de mencionar o desastre do golpe como também se apresentaram como um passo à frente; primeiro capítulo da autocrítica dos artistas de esquerda na qual Vianinha e os seus companheiros do Grupo Opinião começam a desqualificar a experiência anterior (COSTA, 1996, p. 187).

Teatro épico brasileiro: fase atual

Segundo Sérgio de Carvalho (2011), pode-se dividir o teatro político brasileiro em três ciclos de politização. O primeiro e o segundo foram abordados no item anterior (Oswald de Andrade no primeiro, Arena e CPC no segundo), e o ciclo atual se inicia a partir dos anos 90, mais especificamente no final dos anos 1980. Apesar de pouco material sobre ele, uma vez que esse ciclo ainda está em curso, pode-se dizer que ele tem sido uma reação aos excessos de mercantilização da cultura ocorridos nos anos 80. Nesse contexto podem-se citar grupos como o próprio Ói Nóis Aqui Traveiz, a Companhia do Latão, o Coletivo Alfenim e o coletivo Ocamorana, os quais, junto de vários outros coletivos de teatro, têm contado a história dos “vencidos” (Benjamin, 1985) com vigor estético notável. O grupo Ói Nóis se faz presente no ciclo mencionado e, conforme já foi apontado, sobre ele recaiu o recorte para essa pesquisa; por isso agora será feita uma apresentação breve do grupo e seus antecedentes, uma vez que por meio dela já será possível notar a preocupação política e estética do grupo desde os seus primórdios.

Ói Nóis através da História

A Tribo foi criada propositalmente, no dia 31 de março de 1978, por Paulo Flores, Rafael Baião e Júlio Zanotta, sendo os dois primeiros formados no curso de Arte Dramática da UFRGS, e o último, um escritor com o qual Paulo se deparou no ano anterior. Os fundadores sentiam falta de um teatro que pudesse influenciar o público a ponto de suscitar mudanças, no qual público e atores não estariam separados por uma parede invisível, mas envolvidos em uma mesma situação crítica. Além disso, os três foram motivados e de certa forma impulsionados pela insatisfação política, ocasionada pela ditadura e pelo desagrado com o teatro que vinha sendo feito em Porto Alegre. 158 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

O que nos chama atenção quando estudamos o grupo é tanto o caráter coletivo deste, o qual, desde seu início, estuda, elabora os textos e monta todo o palco junto, além de sempre propor trabalhos junto à comunidade na qual está inserido, quanto seu esmero em procurar expressar esteticamente questões de ordem política e social. Durante seu início, o Oi Nois procurou, inspirado no teatro da crueldade de Artaud, romper a barreira entre público e atores, até por vezes chocar o público, para então suscitar alguma reação ou criticidade por parte do mesmo.Ao longo dos anos, porém, o grupo, por meio de estudos e experimentos de uma linguagem estética, chegou ao que hoje podemos chamar de síntese de ritual e epicidade. Isso porque o grupo trabalha tanto com peças que denomina “rituais”, para públicos de no máximo 50 pessoas, nas quais trabalha com aproximações para então interromperem: um jogo de fluxo e refluxo ao longo de toda a peça; tanto com teatro de rua. Nos dois tipos de trabalho podemos encontrar tanto características rituais, no sentido de uma vivência compartilhada, quanto épicas, com uma linguagem cheia de distanciamentos, justaposições e alegorias. A peça O santo amargo da purificação, faz parte do teatro de rua do grupo. De acordo Britto, cuja tese de doutorado é sobre o trabalho deste coletivo como forma de resistência, pode-se afirmar que (p.20) “o grupo, nesses quase trinta [mais de trinta atualmente] anos de existência, ainda hoje permanece como uma potência de metamorfose, de criação e resistência, apesar das tentativas de exclusão ou cooptação pelas potências de controle que procuram neutralizar sua ação”.

Ói Nois na rua: O santo amargo da purificação

Tendo isso em vista podemos agora iniciar a análise da peça escolhida. Vale frisar que ao longo da pesquisa, além dos autores já mencionados, também nos aprofundamos em pensadores como Peter Szondi (2001), Isabel Loureiro (2005) e Walter Benjamin (2012) para entendermos de forma mais pujante tanto o contexto histórico quanto sua dialética com as linguagens estéticas que foram surgindo a partir do início do século XX na Alemanha. Além disto, é importante mencionar que a análise das cenas se fez possível por meio de uma gravação desta peça, a qual está disponível gratuitamente na internet.

159 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Nesse trabalho de pesquisa de teatro de rua, a Tribo escolheu a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. O guerrilheiro nascido em Salvador no dia 5 de dezembro de 1911 e assassinado em 4 de dezembro de 1969 foi figura política importante, sendo um dos principais organizadores da luta contra a ditadura militar. Ao contrário de uma trama em forma linear (apesar de o assunto ser de suma importância), o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz encenou a trajetória de Carlos Marighella de modo que lhe fez jus, e não como uma história dramática de um indivíduo lutando contra o mundo. Não foi só a história de um personagem que nos foi contada, foi a história de militantes que foram apagados de nossa “História” oficial, e também da nossa história atual (como em uma cena em que há personagens protestando e os manifestantes são atacados por militares, fazendo alusão aos protestos de 68, situação muito atual, pois continuamos apanhando e sendo reprimidos em 2017) e a nossa possível história futura (conjuntura atual). No início da encenação notamos escolhas interessantes: há dois grupos de atores vindo de lugares diferentes, um com um grupo cantando uma canção cujo ritmo remonta às suas origens africanas, por parte de mãe, e o outro sobre o pai dele, italiano, como uma tarantela. Os dois grupos usam roupas coloridas, máscaras e há uma personagem com um traje característico baiano em cima de pernas de pau. Além de a peça começar simultaneamente em dois lugares diferentes (Minuto 2 da gravação), até haver o encontro das duas descendências, o efeito visual e musical chama muita a atenção; os sons de tambores (vindo do grupo africano) e a música com letra italiana (e instrumentos como acordeão, meia lua e violão) se encontram ao mesmo tempo em que as roupas coloridas que simbolizam os tipos sociais diferentes se mesclam em dança (Minuto 5). Quando os dois coros se encontram, temos o início do poema Vai Carlos, ser Marighella na Vida, de José Carlos Campinan, musicado e logo em seguida os personagens continuam a narrar o nascimento de Marighella por meio de um de seus poemas que foi musicado, Canto para Atabaque. Do nosso ponto de vista havia o risco de mostrar Marighella como um herói (mesmo que o silenciamento a respeito dele já justifique sua narração), mas o assunto histórico vem à tona em todos os fragmentos da peça e extrapola qualquer possibilidade de que a peça tinha de se tornar acrítica. Além do mais, a forma como essa “trajetória” é encenada cria distanciamentos ao longo de toda a peça. Exemplo disso são os 160 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

coros e as músicas que abordam acontecimentos da vida de Marighella, ou seja, o personagem Marighella, ao longo da peça, está ali, mas sua história é contada pelos outros. Embora haja uma nítida perspectiva de falar positivamente de Mariguela, essa posição é explícita, e deixa claro que as outras histórias ditas oficiais de sua vida também tinham uma visão de mundo escamoteada. A encenação foi feita de maneira que os eventos históricos se apresentam cronologicamente e ao mesmo tempo em que há uma espécie de fio narrativo, ele foi cortado em vários pedaços ,pois como se sabe não é de interesse do teatro moderno fazer um retrato orgânico, totalizante. A música é uma constante, a tal ponto que podemos dizer que se trata de um musical. Ela pode ser paródica, passional, opaca, dura, variando seu registro como variam também os modos de encenação. Assim como Peter Bürger explica ao apresentar o conceito de alegoria em Benjamin, que “o alegórico arranca um elemento à totalidade do contexto social” (BÜRGER, 2008, p.131), também aqui vários elementos díspares são trazidos para construir uma figura de Mariguela: seu interesse pela música, pelo povo, pela luta política, pelos amores. Na encenação de rua, por meio de vários fragmentos criou-se sentido. Tanto a cena inicial que mencionei quanto outras que serão abordadas fazem um conjunto que exige a construção de um sentido, mas se o grupo optasse por outro caminho, poderia também apresentar vários fragmentos separadamente, escolha que também produziria sentidos. No decorrer da encenação, vemos bonecos que parecem de Olinda, vemos um Getúlio Vargas que com um bambolê na cintura e uma cabeça desproporcional (que o ator “vestiu”) unidos ao trabalho corporal do ator, que representa Vargas dando passos curtos demais para o seu tamanho, fica cômico e caricato, uma alegoria das mais significativas. Assim como acontece com o personagem de Getúlio Vargas, os figurinos, junto com o trabalho corporal, seriamente elaborado, e que notamos ao longo de toda a peça, criam efeitos estéticos muito efetivos. Não se trata de uma peça que se limite ao texto, embora o seu texto seja fundamental; todo o trabalho ligado à cenografia, ao trabalho corporal, aos conjuntos cênicos (como os grupos cantores, ou o grupo da ditadura), aos coros, faz com que a peça ganhe em dinamismo e em profundidade. O texto é reforçado por essas outras dimensões de significação, que criam climas e também instauram distanciamentos pronunciados, que nos levam da comunhão ritual à distância épica. 161 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Um momento que gostaríamos de mencionar por conta do distanciamento crítico gerado ocorre durante a declamação de um poema muito romântico (Minuto 39), feito pelo personagem de Marighella com uma moça. Com movimentos circenses e por meio de entonações propositalmente exageradas produz-se um efeito irônico. Ao mesmo tempo em que o diálogo dos personagens é de um amor absoluto, os movimentos e a entonação transmitem a mensagem de uma relação que, segundo o cristianismo, seria “carnal”. Assim como em vários momentos da peça, nessa cena há interação com o público, o qual reforçou a comicidade do amor que estava sendo “declamado”. Em suma, pode-se dizer que,nesta cena, há o amor, mas também a ridicularização do amor romântico como ele costuma ser apresentado pela indústria cultural, como o ponto-alto de um projeto de vida e de sucesso, como algo imaterial, metafísico, o que é contrastado pelo conceito de amor aqui apresentado; e que não deixa de ser amor, claro. Após, aos 43 minutos da gravação da peça, um “carro alegórico” faz passagem. Ao contrário de um desfile de carnaval, esse carro faz uma entrada forçada, que corta o espaço no qual até então tínhamos visto as outras cenas. Nessa clara alegoria do golpe militar e da ditadura, pela primeira vez alguns personagens ficam em um nível elevado em comparação com os outros atores e público. A alegoria se materializa da seguinte forma: em cima desse carro assustador que, pela sua elevação denota hierarquia, há uma espécie de máquina cheia de metal, na qual vão um ator com cabeça de macaco e um outro, vestido de branco, com cabeça de águia, além de esferas grandes de metal, dentro das quais alguns personagens serão encarcerados mais tarde. Podemos interpretar essa chegada como sendo a ditadura que, também, envolve o “avanço tecnológico”de que o país tanto necessitava de progresso, bem como o imperialismo americano (cabeça de águia). Em frente a essa máquina entram junto quatro atores com sobretudos pretos e cabeças de macaco (com a mesma caracterização de um dos personagens que está junto da “máquina”), levantando os braços e pisando com força no mesmo ritmo marcial, de modo que os outros personagens são forçados a se posicionarem atrás deles. Ao fundo há uma gravação que pode ser do ano de 1964; não é possível compreender tudo que é falado, mas conseguimos entender que é um discurso de repressão, até mesmo pela entonação. Ao mesmo tempo em que a gravação acaba começa a ser tocado um surdo seguindo a métrica de outro poema cancionado de Marighella, O desfile dos desgraçados. 162 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Outro aspecto que gostaríamos de ressaltar é a forma que o grupo escolheu para encenar momentos horrendos da nossa história, como as repressões, torturas e mortes. Na primeira cena em que o assunto é a repressão após o golpe de 64, a qual se dá durante o poema musicado acima mencionado, os personagens que representam os militantes dão tapas neles mesmos com suas mãos, puxam suas próprias cabeças (como se tivessem sendo torturados com afogamento), fecham suas bocas e tapam seus ouvidos. Através dessa “dança”, ao mesmo tempo em que percebemos a seriedade do que se deu nesse momento da história não somos levados ao sentimentalismo acrítico.

Considerações Finais

O intuito dessa análise foi de mostrar como se dá a linguagem teatral do Ói Nóis, uma vez que no teatro épico todos os elementos têm tanto peso na definição do que é a obra quanto o texto (Costa, 2012). Notamos que, de fato, o grupo tem um trabalho extremamente elaborado; nessa peça percebemos isso em sua forma e conteúdo. Ademais, precisamos dar o mesmo peso para a relevância da forma de trabalho do Coletivo, o qual tem uma proposta colaborativa em todas as suas peças, além de trabalhos junto da comunidade em que estão em Porto Alegre. Toda essa dimensão teórica e prática do grupo, que por meio de estudos aprofundados consegue configurar sua linguagem estética, sempre ligada também ao seu engajamento, é digna de ser estudada.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, Vol. I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. BRITTO, Beatriz. Uma tribo nômade: a ação do Ói Nóis Aqui Traveiz como espaço de resistência. Porto Alegre: Terreira da Tribo, 2008. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008. CARVALHO, Sérgio de. Atitude modernista no teatro brasileiro. In: ARAÚJO, Antônio; AZEVEDO, José Fernando Peixoto de; TENDLAU, Maria (Orgs.). In: Próximo ato: teatro de grupo. São Paulo:Itaú Cultural, 2011, p.99-103. COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. RJ: Paz e Terra, 1996.

163 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

_____. Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Expressão Popular, 2012. ____. Sinta o drama. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. FARIA, João Roberto (direção). História do teatro brasileiro. Vol. I. São Paulo: Perspectiva, 2012. LOUREIRO, Isabel. A revolução alemã, 1918-1923. São Paulo: Editora UNESP, 2005. ROSENFELD, Anatol. Brecht e o teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2012. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880 – 1950]. Tradução de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

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O Trabalho do Tradutor-Dramaturgo: Um Estudo Pavisiano da Tradução

Braz Pinto Junior (UFGD)65

Resumo: A especificidade da tradução teatral segundo PAVIS (2008) em O Teatro no Cruzamento de Culturas é foco desse estudo que procura traçar um paralelo entre o trabalho do tradutor e o do dramaturgo. A partir de uma reflexão sobre o processo de tradução do texto dramático e de suas características procuramos considerar o gênero dramático e sua concretização cênica transcendendo a relação sugerida pelo senso comum de causa e efeito. Nessa perspectiva em que o texto dramático não é entendido apenas como base para uma encenação futura, mas como um processo de criação em diversos níveis, buscamos entender também o processo de tradução literária como uma espécie de adaptação dramatúrgica em que é possível conceber elementos comuns ao trabalho do dramaturgo, o que resulta na adoção do conceito híbrido de tradutor-dramaturgo.

Palavras-chave: Dramaturgia; Tradução Teatral; Patrice Pavis; Tradutor-dramaturgo.

Introdução

A reflexão sobre o processo de tradução de peças teatrais requer certa atenção do tradutor e deve ser considerada para além da relação sugerida pelo senso comum de causa e efeito com relação à sua concretização cênica. Por se tratar o texto dramático de uma modalidade literária essencialmente mimética que prioriza a ação em detrimento de certos elementos narrativo-descritivos, é comum imaginarmos o trabalho do tradutor de peças de teatro como uma atividade relativamente “simples”, principalmente se comparada à tradução de gêneros literariamente mais “densos”. Tal concepção, pertencente ao senso comum, deve ser evitada, pois, o texto dramático pode ser lido como obra literária independente e não apenas como base para uma encenação futura que o potencialize, nem como um processo de “transposição” para o palco à medida que lhe sejam “acrescentados” ou “extraídos” significados que o façam “ganhar vida” na forma da representação teatral. Na verdade, devemos pensar nele como uma obra de arte

65 Professor Adjunto da Graduação em Artes Cênicas na Faculdade de Comunicação Artes e Letras (FACALE) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: [email protected] 165 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

dotada de uma existência própria embora possua relações de interdependência com o mise-en- scène. A relação entre texto dramático e encenação é antes, segundo Patrice Pavis (2008) uma “tensão”, um jogo entre duas instâncias hermenêuticas, enunciado e enunciação e se dá sempre de forma “marginal e paródica no sentido etimológico do termo” (p. 33). Pavis (2008) sugere a necessidade de um trabalho específico de tradução que prefere chamar de “teatral”, preocupada com a dupla dimensão (literária e cênica) do texto dramático, ao afirmar que não se deve traduzir apenas textos de uma língua para a outra e que “no teatro a tradução passa [também] pelo corpo dos atores e pelo ouvido dos espectadores” (p.124). O autor situa o tradutor e o texto traduzido na intersecção de dois conjuntos “aos quais pertencem em graus diversos”: o da cultura de partida e o da cultura de chegada. Para ele, o texto (não apenas dramático) traduzido faz parte tanto do “texto e da cultura-fonte” quanto do “texto e da cultura-alvo” e sofre um processo de mediação durante o processo de tradução. No caso específico do texto escrito para ser dito no palco essa mediação passa a estar preocupada também com a dimensão interativa da enunciação mesmo que o tradutor não tenha contato direto com a encenação passada ou futura do texto que se dispõe a traduzir, a ele cabe a tarefa de interpretá-la de forma real ou virtual durante o processo de tradução. Pavis parece pensar de forma didática o que chama de “tradução teatral” tanto como um fenômeno composto por uma série de concretizações inerentes ao processo de representação teatral quanto como o processo de tradução propriamente dita de um texto dramático de uma cultura para outra. Para ele, o encenador ou o tradutor de uma peça deveriam, ao menos hipoteticamente, dominar as diversas fases ou esquematizações mentais decorrentes do processo de tradução teatral sem perder de vista o jogo entre texto e cena ao invés de simplesmente preencher as “lacunas” deixadas pelo texto (no caso do encenador) ou se preocupar unicamente com a dimensão linguística do texto a ser traduzido (no caso do tradutor).

[O] tradutor está na posição de um leitor e de um dramaturgo (no sentido técnico da palavra): ele faz a sua escolha nas virtualidades e nos percursos possíveis do texto a ser traduzido. Ele “ficcionaliza” e “ideologiza” o texto ao imaginar em qual situação de enunciação está enunciado: quem fala a quem e para quais fins? (PAVIS, 2008, p. 127) 166 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Ao sugerir ao tradutor que acumule também a função de dramaturgo, Pavis parece reiterar a ideia de tensão entre o texto escrito e o texto encenado. Para ele, “não se traduz simplesmente um texto linguístico para outro; confronta-se, e faz-se comunicar graças ao palco, as situações de enunciação e cultura heterogêneas, separadas pelo espaço e pelo tempo”. (PAVIS, 2008, p. 124). Para ilustrar sua concepção, Pavis organiza um esquema (reproduzido abaixo na figura 1) que representa a tradução teatral como algo que se daria em etapas em uma série de concretizações (textual, dramatúrgica, cênica e receptiva) que parecer dar conta também das diversas estratégias constituintes do fenômeno tradutório (leitura, interpretação, produção de texto, apropriação, ressignificação).

Figura 1 – Esquema das concretizações pavisiano.

Fonte: Pavis (2008).

O esquema de Pavis não pretende limitar a ação do encenador tampouco reduzir o trabalho de tradução de um texto dramático a uma atividade técnica e desligada da reflexão ou da experimentação. Pelo contrário, Pavis parece querer reforçar a ideia de que é justamente o todo cênico, a representação teatral, ou a materialização da tensão entre texto e cena na “cultura-alvo” para um público, que deveria interessar, em última estância, ao tradutor que, portanto, não deveria traduzir um peça “unicamente para ser lida”. Tal modalidade de tradução envolveria outras estratégias (processos) de tradução (leituras, reescrituras, apropriações) e mesmo que, por alguma razão uma peça traduzida não

167 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

fosse levada a público em sua forma cênica propriamente dita (T3 e T4), deveria, segundo Pavis, guardar virtualmente (ainda que na forma de texto escrito – T1) todos os elementos necessários para tomar futuramente parte de uma concretização cênica. A aceitação do modelo pavisiano, porém, ao contrário do que Pavis pretende com sua visão ampla do processo teatral, pode resultar em uma ideia do trabalho do tradutor como algo pretencioso ou inviável, como afirma Bassnett (1991).

Se esse conceito for aceito, então, como já questionei anteriormente, ao tradutor caberia o impossível, ou seja, tratar um texto escrito que faz parte de um sistema mais complexo de signos, inclusive paralinguísticos e cinésicos, como se fosse um texto literário criado apenas para a página e para ser lido. A tarefa do tradutor torna-se então sobre-humana – dele ou dela se espera que traduza um texto a priori incompleto na língua de origem, que contenha um elaborado texto gestual66. (BASSNETT, 1991, p. 100)

Para a autora, Pavis, embora queira valorizar o trabalho do tradutor de teatro, acaba revelando uma visão estereotipada de seu trabalho, alguém que se imagine capaz de conceber o todo teatral em um trabalho parcial de tradução. Ao tornar tão pretencioso o trabalho do tradutor, contraditoriamente Pavis acabaria por revelar-lhe as limitações. Talvez seja essa uma interpretação possível da teoria de Pavis, visto que em uma tradição textocêntrica de representação que prevaleceu durante séculos na história do teatro o texto dramático deveria conter em potência o espetáculo e ao tradutor, bem como ao encenador, caberiam desvendar o sentido do texto e preservá-lo em outra língua, mantendo certa “fidelidade” ao autor. Embora Pavis pareça voltar o olhar para um teatro de textos clássicos, geralmente produzidos em épocas ou culturas das quais o encenador e o espectador guardam relativa distância, não há qualquer relação direta com uma visão textocêntrica do espetáculo. Pelo contrário, sua teoria sugere justamente o contrário, a medida que texto e encenação entram como elementos “irmãos” em um processo de representação e não como entes de uma relação causal.

66 If this concept is accepted, then, as I have argued elsewhere, the translator is being asked to do the impossible, that is, to treat a written text that is part of a larger complex of sign systems, including paralinguistic and kinesic signs, as if it were a literary text created for the page and read as such. The task of the translator thus becomes superhuman — he or she is expected to translate a text that a priori in the source language is incomplete, containing a concealed gestic text, into the target language which should also contain a concealed gestic text. 168 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Se, por outro lado, pensarmos na perspectiva do encenador e sua pesquisa textual durante uma montagem, há casos, por exemplo, em que o não se tem acesso ao texto na língua em que foi escrito antes de ser traduzido ou a outras traduções do texto com o qual se quer trabalhar e pode-se, por certo, ficar dependente de um único tradutor, mas é certo também que, em uma perspectiva contemporânea, a tradução por si só não teria esse poder de determinar a encenação, visto que essa também é em certo sentido uma forma de tradução e, portanto, admite transposições, adaptações, apropriações. Na verdade, Pavis estabelece seu foco sobre uma tradução “para a cena”, pensando o texto dramático em sua dupla dimensão verbal e gestual e acaba por incluir o tradutor desse tipo de texto como corresponsável juntamente com o encenador e os atores pela integridade dessas duas dimensões em sua concretização na forma de espetáculo. Para Bassnett (1991), porém, a teoria de Patrice Pavis ao colocar sob responsabilidade (exclusiva ou não) do tradutor de peças escritas para o teatro questões inerentes à encenação da qual, na maioria das vezes, ele não toma parte, só consegue corroborar para estabelecer ou reforçar hierarquias entre texto e cena, dramático e não-dramático (ou pós-dramático), cultura de origem e cultura de chegada, autor e tradutor.

E se Stanislavski ou Brecht tivessem considerado que a responsabilidade de decodificar o gesto fosse dos atores, supondo que no processo de tradução essa responsabilidade pudesse ser assumida pelo tradutor sentado à mesa enquanto imagina a dimensão da performance. O bom senso nos diria que isso não pode ser levado a sério67. (BASSNETT, 1991, p. 100)

De qualquer forma, Pavis, parece acertar ao defender a busca do gesto, da teatralidade, paralelamente à busca da palavra, da ideia, e o intercâmbio de culturas, linguagens e formas intersemióticas como recursos necessários à sua tradução teatral (ou à composição dramatúrgica).

Considerações Finais

67 And whereas Stanislawski or Brecht would have assumed that the responsibility for decoding the gestic text lay with the performers, the assumption in the translation process is that this responsibility can be assumed by the translator sitting at a desk and imagining the performance dimension. Common sense should tell us that this cannot be taken seriously. 169 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

A questão do trabalho do tradutor-dramaturgo pavisiano não parece estar ligada unicamente a uma concepção de gênero como poderíamos apreender em uma primeira abordagem, mas sim a uma metodologia que pode inclusive ser aplicada à tradução de textos não considerados teatrais. Sabe-se inclusive que a divisão em gêneros literários ou textuais já se encontra bastante relativizada na contemporaneidade. Em certo sentido pode-se afirmar que qualquer tradução (de textos dramáticos ou não) cujas estratégias ressaltem a tensão entre o texto, com suas características estético-linguísticas (enunciado), e sua recepção ou interpretação em determinado contexto cultural (enunciação) é possível de ser compreendida a partir do modelo de “tradução teatral” pavisiano. De certa forma, argumentando a favor de sua concepção, Pavis (2008), atribui à certa preocupação com o público, contexto e enunciação o fato de existirem traduções que parecem dizer mais na cultura de chegada do que diziam em sua cultura de origem, justificando que “Shakespeare é mais compreensível em tradução alemã ou francesa do que no original, pois o trabalho de adaptação à situação de enunciação tem sido feito necessariamente pela tradução” (p. 128). Nesse sentido, Pavis revela-se consciente das implicações políticas do ato tradutório quando se preocupa com as escolhas feitas pelo tradutor diante do/para com o texto/contexto que se propõe traduzir. A exemplo de Pavis, talvez possamos considerar o trabalho do tradutor, suas escolhas e limitações traçando analogias com o trabalho do dramaturgo, ainda que de forma conceitual, visto se tratar a teoria pavisiana de uma visão bastante esquemática da questão da especificidade. Não se trata apenas de utilizarmos uma nova terminologia para responsabilizarmos o tradutor pela “verossimilhança” da tradução ou pela identificação por parte do leitor, mas da possibilidade de reflexão sobre certas hierarquias entre texto e palco, autor e tradutor, ou tradutor e leitor/público, por exemplo, que podem nos ajudar a compreender melhor as ideias propostas pelo modelo pavisiano e aplicá-las em nosso estudo de tradução de uma peça teatral. Em suma, consideramos o conceito de “tradutor-dramaturgo” proposto por Patrice Pavis (2008) em sua abordagem “específica” da tradução como uma possibilidade de compreensão do ato tradutório que tenta conciliar enunciado e enunciação tendo como ponto 170 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

de partida o fenômeno teatral, mas não se restringindo ao trabalho com textos dramatúrgicos ou encenações, podendo ser entendido em um sentido mais amplo, abrangendo o fenômeno tradutório em geral.

Referências

BASNETT, Susan. “Translating for the theatre: The case against performability”.In: Erudit. Montreal, vol. 4, n. 1, 1991. Disponível em: Acesso em 13 out 2017. PAVIS, Patrice. O teatro o cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.

171 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Recriando A Tragédia Shakespeariana: Macbeth de Villela

Rebeca Pinheiro Queluz (UFPR)68

Resumo: Este artigo tenciona refletir sobre o espetáculo Macbeth, de Gabriel Villela, encenado pela primeira vez em 2012 no Teatro Vivo, em São Paulo. Contou com Marcelo Antony e Claudio Fontana nos papéis do protagonista Macbeth e de sua esposa e cúmplice Lady Macbeth, respectivamente. Para nossa análise foram utilizados uma gravação em formato de DVD, a tradução de Marcos Daud e o texto do espetáculo fornecidos pela produção. Nosso trabalho compartilha os pressupostos teóricos de Linda Hutcheon, Patrice Pavis, José Roberto O'Shea. Em Macbeth, Villela propõe uma reflexão em torno dos binômios vida e arte, realidade e ficção, entre aquilo que é ou não é, entre a aparência e a essência. Ele concretiza essa proposta, principalmente, através da introdução de elementos épicos e metateatrais. Os artifícios da construção dramática confrontam o espectador a todo momento, levando-o a manter uma atitude de distanciamento crítico. A encenação incorpora esses questionamentos existenciais, materializados no trabalho coletivo de produtores, cenotécnicos, coreógrafos, maquiadores, figurinistas, sonoplastas, contrarregras, figurantes e atores.

Palavras-chave: adaptação shakespeariana; Macbeth; teatro brasileiro; Gabriel Villela.

Introdução

Na história da adaptação, apropriação e tradução shakespeariana, Macbeth, considerada uma das quatro grandes tragédias, ocupa um lugar privilegiado. Os temas presentes nessa peça (ambição desmedida, aparência e realidade, o peso da culpa, a corrupção do poder, violência, tirania) fornecem material para incontáveis releituras e interpretações, em qualquer espaço ou tempo, em diferentes linguagens, como o cinema, a literatura, o balé, a ópera, os quadrinhos. No que diz respeito às encenações, só no Brasil há registros de, pelo menos, quinze montagens da peça realizadas por diferentes diretores teatrais. A tragédia escocesa passou pelas mãos de diretores como Fauzi Arap (1970), Ulysses Cruz (1992), Antunes Filho (1992), Regina Galdino (2008), para citar alguns nomes. A criatividade é infinita: criaram-se peças a partir do ponto de vista de Lady Macbeth, de suas ambições, medos, culpa e sua paixão pelo

68 Doutoranda em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. 172 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

marido; a partir de outros textos, como o filme de Akira Kurosawa, Trono manchado de sangue (1957); a partir do desmatamento na Amazônia por causa da ambição humana, que gerou e ainda gera assassinatos, conflitos e traz pesadas consequências para a fauna e a flora da região; a partir da transformação de Macbeth e seus companheiros em bonecos feitos de papel. É relevante pensar a tradição de Shakespeare no Brasil e, nesse caso, de Macbeth, para sabermos os modos como Shakespeare foi lido por aqui, como foi interpretado, adaptado e apropriado. Este texto tem como objetivo discutir uma encenação de Macbeth cuja estreia se deu em 2012 no Teatro Vivo em São Paulo. Tal montagem teve o mineiro Gabriel Villela na direção, que visa, em seus espetáculos, mesclar o erudito com o popular, as tradições brasileiras com influências estrangeiras, no intuito de aproximar a literatura clássica do espectador. Para a análise utilizamos uma gravação em formato de DVD, a tradução de Marcos Daud e o texto do espetáculo fornecidos pela produção, além de outros elementos que vão ser mencionados mais adiante. Diretor, cenógrafo e figurinista, Antônio Gabriel Santana Villela é mineiro e se destacou na década de 1990. Seus trabalhos apresentam uma teatralidade barroca que, inúmeras vezes, faz apelos ao imaginário brasileiro. Villela começou seu trabalho com o teatro amador em Carmo do Rio Claro (MG) que, segundo Dalmir Rogério Pereira, é uma “cidade de produção agrária inserida na cultura dos teares de pedal, que remontam a tradição judaico-cristã dos teares, das fibras naturais (algodão, lã de carneiro) e das tinturas naturais” (PEREIRA, 2010, p. 3-4). Ele fez um curso de direção teatral na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e estreou em 17 de maio 1989 com o espetáculo Você vai ver o que você vai ver, de Raymond Queneau. Tal representação teatral recebeu inúmeras premiações e se destacou pelo uso de diversas técnicas e convenções circenses. Posteriormente, Villela dirigiu outros espetáculos, como: O concílio do amor, de Oscar Panizza (uma produção do grupo Boi Voador), Relações perigosas, adaptação teatral de Heiner Müller, Vem buscar-me que ainda sou teu, de Carlos Alberto Soffredini, A guerra santa (uma versão brasileira de A Divina Comédia realizada por Luís Alberto de Abreu), A rua da amargura (segundo trabalho com o grupo Galpão), Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Salmo 91, de Dib Carneiro Neto, Esperando Godot, de Samuel Beckett, 173 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

entre outras. Também constam em seu extenso currículo musicais, espetáculos infantis, adaptações de obras brasileiras e estrangeiras, espetáculos de dança e óperas. O diretor mineiro já trabalhou com três peças do bardo além de Macbeth: a aclamada Romeu e Julieta (um espetáculo de rua apresentado pelo Grupo Galpão pela primeira vez em 1992), Sonhos de uma noite de verão (com a Cia Palácio das Artes, cuja estreia se realizou na Ópera de Arame, em Curitiba, em 2002) e Sua incelença, Ricardo III (espetáculo de rua com o grupo Clowns de Shakespeare com estreia em 2010). Tal como Shakespeare, o teatro de Villela dialoga com diferentes públicos, provocando uma incrível aproximação com a plateia – pela quantidade de referências, pelo uso de símbolos, pela linguagem coloquial, pela transposição dos cenários e figurinos, pelo trabalho com a gestualidade. Nessas produções, Villela mescla elementos culturais e temporalidades, inspirando-se na dramaturgia clássica do bardo inglês e prestando-lhe homenagem. Em outras palavras, ele realiza uma tradução intercultural para o solo brasileiro a partir das peças de Shakespeare e encontra uma nova forma de articulação entre esses dois sistemas culturais. Dessa forma, Villela funde o universo shakespeariano com a cultura popular brasileira, seja ela do sertão nordestino como em Sua incelença, seja do interior de Minas Gerais, seja a tradição do circo, dos ritos carnavalescos. Em suas peças shakespearianas, o diretor altera a linguagem dos versos ingleses, inserindo, como em Romeu e Julieta um vocabulário mineiro sertanês inspirado na linguagem de Guimarães Rosa. Ou, ainda, introduz canções populares, como as incelenças em Ricardo III, cantigas, serestas, modinhas e valsas. Através da inserção dos narradores (caracterizados como Shakespeare, em Romeu e Julieta ou remetendo à rainha Elisabete I, em Macbeth), Villela instiga o público a usar da imaginação e a sentir o poder das palavras, tão valorizadas na época de Shakespeare. Talvez inspirado na riqueza de imagens das peças shakespearianas, Villela constrói metáforas visuais em seus palcos, que enriquecem os sentidos e as possibilidades dos textos- base. O humor e a comicidade são vias utilizadas em seus espetáculos para conquistar os espectadores. Assim, destacam-se as figuras da ama de Romeu e Julieta, Lady Anne de Sua incelença e as bruxas e o porteiro de Macbeth. Outro aspecto importante em seus espetáculos são os figurinos e cenários, confeccionados a partir de objetos reciclados, de tecidos oriundos de diferentes partes do mundo.

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Da mesma forma que o Grupo Galpão e os Clowns de Shakespeare, o diretor mineiro acredita e estuda meios de popularizar o teatro através do espetáculo de rua e das práticas circenses, que comovem e envolvem plateias heterogêneas e, principalmente, estimulam os moradores da periferia a pensarem sobre aspectos culturais de seu país. O trabalho de Villela parece querer sublinhar as tradições nacionais, questionar a autoridade constituída e criticar a hegemonia dos mais favorecidos. Além disso, seus espetáculos denotam uma relação de afinidade estética com Minas Gerais e isso é percebido na maquiagem, no figurino e nos cenários. O diretor, em uma entrevista em 1992, afirmou que “o circo, a Igreja Católica e o imaginário cultural mineiro guiam a energia estética de minhas montagens” (In: ALVES; NOE, 2006, p. 119). Essa valorização da riqueza e do ecletismo da cultura mineira está diretamente relacionada à proposta de realizar uma aproximação entre a cultura popular e os textos clássicos, de modo que se crie uma linguagem mais acessível a partir de elementos conhecidos do público. A análise que propomos de Macbeth objetiva compreender como a peça shakespeariana (texto-fonte) foi apropriada, adaptada e ressignificada por Gabriel Villela (texto-alvo). Ela será realizada a partir da experiência viva e concreta (sem o filtro deformante de registros ou testemunhos, como aponta Patrice Pavis (2005)) que a autora teve ao assistir à encenação em São Paulo e da reconstituição do espetáculo possibilitada por inúmeros registros. Apesar de a análise se fundamentar, principalmente, em nossa experiência única e individual enquanto espectadoras diante do evento cênico, fizemos uso de alguns instrumentos de análise também destacados por Pavis (2005), como a descrição verbal, a tomada de notas, a leitura do programa teatral e do material de divulgação, fotos, entre outros. Ademais, em nossa pesquisa utilizamos uma gravação do espetáculo realizada pela equipe da UFPR TV em outubro de 2012, quando a montagem veio para Curitiba (Teatro Bom Jesus). Assim, o nosso olhar se concretiza como um conjunto da experiência individual diante da representação e da experiência mediada pelo vídeo. Dentro desse contexto, José Roberto O'Shea menciona no artigo “Impossibilidades e Possibilidades: análise da performance dramática”,

Se, tendo assistido ou não à performance, em virtude da efemeridade da atuação ao vivo, já não se “vive” no momento da análise o espetáculo, é preciso aceitar uma relação abstrata e mediada com o objeto analisado, bem 175 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

como tentar resgatar alguns dos princípios norteadores e seus respectivos efeitos, porém jamais o evento em si. Tal relação impede (e mesmo descarta) qualquer avaliação “objetiva”; na melhor das hipóteses, a avaliação enseja algum entendimento de processos que permitem (ou não) a realização de determinados ânimos estéticos e concepções conteudísticas, e do seu impacto (ou não) na platéia (O'SHEA, 2007, p. 154-155).

Em relação ao vídeo, o enquadramento já foi estabelecido pelo posicionamento da câmera, mas isso não invalida, como apontou O'Shea, a possibilidade de refletir sobre a linguagem e as opções de criação do espetáculo. O pesquisador também assinala que os elementos formais de uma montagem deixam atrás de si diversos registros (que ele chama de “pistas”), como: o texto de encenação e as gravações visuais, audiovisuais ou digitalizadas (sejam elas fitas de vídeo, DVDs, diapositivos, fotografias, desenhos, CD-ROMs). Todos esses elementos “ilustram o trabalho do ator, cenografia, figurino, maquiagem, uso do espaço, movimento e marcação, além de música, sonoplastia, desenho de luz, etc” (O'SHEA, 2007, p. 157-158) e se constituíram de um precioso instrumental para a análise que realizamos. Tendo em mente esses direcionamentos, fizemos uso da tradução de Marcos Daud (utilizada por Villela) e do roteiro do espetáculo fornecidos pelo produtor. Também nos servimos de vídeos de trechos da encenação que foram usados para a divulgação do espetáculo e passagens filmadas especialmente para o site Shakespeare Digital Brasil (http://www.shakespearedigitalbrasil.com.br/), vinculado à Universidade Federal do Paraná (UFPR). Por fim, entrevistas com os atores, diretor e produtor disponíveis na internet auxiliaram a captar, muitas vezes, a memória do espetáculo, apesar de que, faz-se necessário mencionar, esses depoimentos não determinaram o direcionamento da análise. Após três meses de ensaio, a montagem de Gabriel Villela estreou no Teatro Vivo em São Paulo em 1º de junho de 2012. De acordo com Claudio Fontana, produtor do espetáculo e intérprete de Lady Macbeth, essa encenação teve cerca de 50 récitas em São Paulo e mais 20 nas cidades de Curitiba, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Campo Grande, Vinhedo, São Bernardo e Porto Alegre. O texto da encenação de Macbeth foi construído, conforme já mencionado, a partir da tradução de Marcos Daud que teve colaboração de Fernando Nuno. A maior preocupação do diretor em relação ao texto shakespeariano era a de que ele pudesse ser acessível tanto ao público como aos atores que teriam que compreender e memorizar essas falas. Segundo Daud,

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a tradução da peça foi feita diretamente do inglês. Para isso, o tradutor utilizou a versão da Oxford editada por Nicholas Brooke. É possível notar que a tradução de Daud foi realizada com vistas à encenação; tendo esse objetivo em mente, foram utilizadas estratégias para oferecer ao público maior comunicabilidade. Uma dessas estratégias é a opção pela prosa direta, que deixa o texto menos poético, porém mais acessível. Outra opção do tradutor foi suprimir as imagens e referências mitológicas ou ainda nomes que dificultariam o entendimento. De modo geral, pode-se afirmar que a tradução é muito “parecida” com o texto de Shakespeare, no sentido de que não há grandes alterações no enredo propriamente dito. Tanto em Shakespeare quanto em Villela percorremos o caminho transcorrido por Macbeth desde quando ele é admirado e aclamado como general até o momento em que ele perde absolutamente tudo. A tragédia é determinada pelo domínio do poder que é instigado pelas bruxas e pela esposa e que está, obviamente, presente no próprio Macbeth. O que muda em relação à tragédia de Villela é como ela se concretiza, que é o que a teórica canadense Linda Hutcheon (2013) chama de adaptação: é essa recuperação, apropriação, tradução, reinterpretação que implica reescritura, diálogo intercultural, intermidial e intertextual. Em relação ao roteiro, foram realizados diversos cortes nas cenas tanto para adaptá- las ao número reduzido de atores no palco como para que a encenação se ativesse ao tempo determinado de 90 minutos. Certamente, esse foi o motivo pelo qual personagens secundárias como Caithness, Fleance, Siward, Seyton, Lady Macduff e seu filho, Hécate e a ama de Lady Macbeth foram excluídas dessa narrativa. Ao texto de Shakespeare, Villela acrescentou a personagem do narrador que inicia e finaliza o espetáculo, estabelecendo uma moldura narrativa dentro dos moldes brechtianos. Apesar dessa personagem proferir falas em apenas três cenas, além da abertura e do fechamento como já mencionado, é importante salientar que o narrador permanece no palco durante todo o espetáculo. Percebe-se que o enredo da tragédia shakespeariana recebeu pequenas modificações, entretanto, é uma repetição com diferença: a inserção da figura do narrador deflagra para os espectadores o rompimento da ilusão dramática ao perceberem que o narrador abre o livro e assume a função de re-contar os fatos ficcionais da peça shakespeariana. A partir daí estabelece-se o jogo da teatralidade. A encenação de Villela apresenta como proposta uma estética por meio da qual o público é repetidamente lembrado do caráter irreal da representação – a maneira de 177 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

representar deixa transparecer abertamente o jogo teatral. Como destaca João Alfredo Dal Bello (1997) em relação a Brecht, o teatro é que vai desmascarar e mostrar o comportamento da sociedade, seja através de elementos estéticos – da técnica teatral – seja por meio de elementos de conteúdo – da realidade –, dando ao espectador condições de julgamento crítico. O autor salienta ainda que Brecht considera que o teatro deve representar o mundo, não de forma enganosa como faz o teatro burguês, mas de maneira a pôr em evidência as contradições, a mostrar a desarmonia e a fugir da idealização. Em Macbeth (2012), os atores não mais incorporam as personagens, mas optam por mostrá-las. O espectador, por sua vez, não tem mais a fotografia, mas um reflexo crítico. Segundo o diretor dessa montagem, ela “segue mais o relato do que a interpretação visceral, sem o componente de realismo, aquela coisa toda ‘psicologizada’. Quem imagina e enxerga é o público” (G1, 2012). Ou, nas palavras do ator que interpreta o Banquo, Marco Antonio Pâmio, “Somos um grupo de oito atores preocupados em contar a história de Macbeth, mais do que efetivamente ‘vivê-la’, no sentido stanislavskiano do termo” (FAVO DO MELLONE, 2012). Por esse viés, um dos grandes desafios dos atores era manter esse distanciamento na atuação e representar as personagens extrapolando os tênues limites entre os efeitos do real e do irreal, ou seja, realizar uma representação distanciada do espetáculo. Em Macbeth, Villela utiliza diversos elementos épicos, tais quais: o prólogo, relatos de mensageiros, intervenções do narrador, supressão da tensão, entre outros. Ele introduz uma espécie de prólogo que antecipa a história para o espectador e trabalha com inúmeros relatos (de batalhas, do assassinato do rei, da revolta da natureza), além de inserir intervenções do narrador (que anuncia um ato ou explica uma situação para a plateia e que, às vezes, funciona como uma espécie de coro). Segundo Pavis, a atuação épica é acompanhada, muitas vezes, “por uma enfatização lúdica da teatralidade da representação. O épico, nesse caso, serve mais para questionar as possibilidades e limites do teatro do que para dar uma interpretação pertinente da realidade” (PAVIS, 1999, p. 112). O diretor também opta por trabalhar com adereços cênicos que recebem novas funções (como os fios de lã vermelha que representam o sangue; a antena de televisão que faz as vezes de luneta, cetro, punhal, agulha de tricô; o galho de árvore que simboliza a profecia das bruxas), coloca na encenação um elenco inteiramente masculino (que estabelece um diálogo com o teatro elisabetano), de modo que o

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espectador é confrontado a todo o momento com recursos que não o deixam se identificar com a narrativa; pelo, contrário, ele se torna um observador crítico. Igualmente, neste espetáculo há elementos metateatrais, como o prólogo proferido pelo narrador e que tem sua base no prólogo de Henrique V, visto que o mesmo cria um apelo para a imaginação da plateia, convidando-a a refletir sobre o processo de construção e de criação de uma peça de teatro, além de propor uma discussão em torno da narração e da representação, e de antecipar o enredo básico de Macbeth.

Considerações Finais

De modo geral, a montagem de Villela realiza uma re-teatralização: ela aponta para o teatro dentro do teatro em vários níveis. Em termos de conteúdo, essa encenação problematiza a relação do ser humano com o destino, o livre arbítrio, através de uma série de elementos, quais sejam: a moldura que remete ao Retrato de Dorian Gray (que fez um pacto, uma escolha consciente), as bruxas (que estão diretamente relacionadas à mitologia greco-latina das moiras/parcas e que estão presentes no palco em momentos-chave da encenação), a grande estrutura que compõe o cenário formada a partir da sobreposição de teares mineiros (que está centralizada no palco e na qual Macbeth fica preso no final do espetáculo), os véus utilizados por Lady Macbeth e por seu marido ao longo da encenação. A concepção de Villela só ganha vida no palco através da encenação. O roteiro é a tradução dos versos shakespearianos, mas não se pode afirmar que já é o trabalho do diretor mineiro. Este só se concretiza no palco, na cena. O que ocorre é uma repetição sem replicação, com variação, com diferença. Houve alterações, ajustes, cortes, inserções, releituras, reformatação, apropriação. Foram atualizadas a materialidade sonora e visual, os figurinos, foram estabelecidas as relações intertextuais. Macbeth de Villela tem em Shakespeare seu intertexto principal e apresenta outros intertextos secundários com a cultura oriental (na figura da gueixa incorporada por Lady Macbeth e através da relação com o filme de Kurosawa e sua concepção de destino), com a mitologia greco-romana das moiras e das parcas, com a tradição mineira dos teares, com a obra-prima de Oscar Wilde, Dorian Gray (onde mais uma vez são discutidas questões como a aparência e a realidade, a arte e a vida). Esse diálogo com outras obras enriquece a concepção 179 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

de Villela e oferece uma visão do mundo multifacetada e caleidoscópica, acentuando o caráter autorreflexivo do trabalho artístico. O diretor mineiro demonstra que o significado de uma obra se estabelece por meio de sua relação com outros textos e mesmo com a tradição literária, cultural, artística existente. Cabe ao espectador ativar essa rede intertextual e estabelecer as relações com os textos anteriores.

Referências

ALVES, Junia; NOE, Marcia. O palco e a rua: a trajetória do teatro do Grupo Galpão. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006. DAL BELLO, João Alfredo. Drama Histórico: leitura metateatral de Brecht e Dorst. Tese de Doutorado defendida no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1997. FAVO DO MELLONE. Marco Antônio Pâmio de volta a Shakespeare em Macbeth. 30 de maio de 2012. Disponível em: . Acesso em: 30/10/2017. G1 CAMPINAS E REGIÃO. ‘Convoca as pessoas a sentirem', diz Marcello Antony sobre peça Macbeth. 13/09/2012. Disponível em: . Acesso em: 24/10/2017. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. 2ª ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013. O'SHEA, José Roberto. Impossibilidades e possibilidades: análise da performance dramática. In: LOPES, L. P.; DURÃO, F. A; ROCHA, R. F. [orgs.]. Performances: estudos de literatura em homenagem à Marlene Soares dos Santos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guingsburg e Maria Lúcia Ferreira. São Paulo: Perspectiva, 1999. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo: Perspectiva, 2005. PEREIRA, Dalmir Rogério. A criação de figurinos por Gabriel Villela – um estudo de caso. In: Anais do 6º Colóquio de moda. 2010. Disponível em: . Acesso em: 30/10/2017.

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Reflexões Sobre a Leitura Dramática na Sala de Aula

Gracielle Cristina Selicani Barbosa69 Rodolfo Barroso (UNOPAR)70 Rosemari Bendlin Calzavara71

Resumo: O presente estudo tem como objetivo principal colaborar com a formação do jovem leitor das literaturas de Língua Portuguesa, que muitas vezes distancia-se da leitura por não compreender o universo composicional cultural de uma obra literária. A metodologia dessa proposta baseia-se em atividades de leitura e estudo crítico-reflexivo dos textos literários do dramaturgo brasileiro Jorge Andrade. Da mesma forma, a pesquisa tem ainda como ação, leituras literárias nos seus mais variados gêneros. Corroborando estas leituras a proposta visa à interação com o mundo do adolescente na transposição para uma montagem e representação cênica do texto lido. Dessa forma, desenvolver a análise e estudo da forma dramática como uma expressão de comunicação e linguagem dentro dos gêneros literários na sala de aula é extremamente pertinente tendo em vista os estudos mais recentes da teoria das letras e mais particularmente as propostas didático-pedagógicas para o ensino da literatura.

Palavras-chave: Letramento Literário; Teatro; Ensino; Jorge Andrade

Introdução O estudo e investigação da abordagem do texto dramático nos vários níveis de escolarização é extremamente relevante, tendo em vista que este gênero, desde a antiguidade clássica, permeia a vida social e comunitária do ser humano. A pesquisa em tela visa a discutir como é realizada a abordagem do teatro dentro dos estudos literários nos materiais didáticos utilizados na escola. Tanto na escola pública como na escola particular, o livro didático é a ferramenta fundamental nas salas de aula, ordena o trabalho pedagógico e auxilia o professor na condução dos conteúdos ministrados. As apostilas se tornaram um instrumento de aprendizado essencial às aulas e conforme as políticas educacionais, o material é constantemente aprimorado, uma vez que é um dos

69 Gracielle Cristina Selicani Barbosa – Especialista em Arte e Ensino das artes pela FAPR, Professora de Língua Portuguesa e Arte na rede particular de ensino, participa do grupo teatral Curió Curioso. [email protected] 70 Rodolfo Barroso, aluno de Especialização do Curso “Metodologias do ensino de língua portuguesa e literatura na educação básica” - UNOPAR. [email protected] 71 Rosemari Bendlin Calzavara – Doutora em Letras. UEL – Grupo de Pesquisa Estudos de Dramaturgia Moderna e Contemporânea. [email protected] 181 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

materiais principais da educação básica privada e a referência de leitura que os estudantes têm à mão. O norteador para a produção das apostilas em nosso país são os Parâmetros Curriculares Nacionais que, no caso do ensino de Língua Portuguesa, recomendam a diversidade textual para a ampliação das possibilidades da leitura do mundo. A ideia geral dos PCNs é que a diversidade orienta a exploração dos textos fazendo com que os alunos reflitam acerca dos seus saberes e sobre a linguagem, auxiliando a formação de uma visão crítica. Os textos literários não devem servir apenas como forma para trabalharem questões de gramática, mas, primeiramente, deve-se priorizar os sentidos da própria obra. Cabe observar que muitas vezes a apostila, assim como o livro didático, distancia o aluno da realidade da obra, pois trazem apenas trechos de textos, pedaços de frases descontextualizadas, isso faz com que o aluno tenha tudo fragmentado. Porém é preciso pontuar que a apostila deveria ser apenas um recurso, ajudando o professor na mediação do conhecimento, ainda que nem todos os docentes a utilizem como tal. Fica sempre a cargo do docente, introduzir outras formas de aprendizado, especialmente no que diz respeito à leitura de diversos gêneros textuais. Ao analisar as apostilas de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II do Grupo Positivo, pode-se se perceber que o gênero dramático é relegado ao segundo plano. O estudo do gênero é somente contemplado no 4°bimestre do 8° ano. Nesta unidade, o estudo o texto teatral é usado como recurso didático, apresenta-se a obra Megera Domada, de Willian Shakespeare, um trecho para a leitura fica em evidência, mas as atividades propostas dizem respeito à análise do discurso e transposição de gênero. A compreensão do gênero teatral como parte importante no processo de formação de leitores é essencial, deveria ser o principal objetivo, devido ao fato de que, assim como no teatro, o texto teatral consegue tocar as pessoas de modo particular e único. No momento, em que todos os elementos se submetem por intermédio da leitura, os significados surgem a partir de sucessivas estruturas combinatórias. Um som, um ritmo, um gesto, não são escolhidos aleatoriamente, mas a partir de um intrincado jogo de intencionalidades, através do qual o receptor pode sentir-se parte da história. O mergulho em si mesmo propiciado pelo teatro potencializa as descobertas pessoais. Esse jogo cênico promove reflexão e uma visão de

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mundo ampliada, possibilitando a formação de adultos com consciência crítica das relações de um modo geral. Se a apostila de Língua Portuguesa é praticamente omissa à linguagem dramática, seus elementos de encenação são contemplados em sua magnitude na disciplina de Arte. As apostilas de Arte do Grupo Positivo, de todas as séries do Ensino Fundamental II, trazem o estudo do Teatro e consequentemente do Texto dramático, seguindo a orientação dos PCNs de Arte que se referem a quatro tipos de artes para a formação educacional (Teatro, Artes Visuais, Dança e Música). A Arte, através de suas diferentes linguagens, proporciona novas formas de refletir sobre o universo, conhecer e perceber realidades objetivas e subjetivas relevantes a outros indivíduos, a sua sociedade e períodos históricos. A disciplina amplia concepções do ser humano sobre si mesmo e o mundo, possibilitando crescimento intelectual, cognitivo e social. Que se dá tanto pela expressão do pensamento, das emoções e inquietações humanas como das relações sociais, políticas, econômicas, possibilita o trabalho interdisciplinar. Para que a língua apresente sentido precisa ter uma história, esta precisa ser interpretada pelo sujeito que consegue materializar o discurso estabelecendo seu sentido. É papel do professor, estimular a expressão, a composição, a improvisação, a leitura e a interpretação de textos dramáticos para ter este sujeito atuante que explora seu corpo, os gestos, as expressões do rosto, a voz, as palavras, o espaço, o contato e o jogo, levando a um envolvimento com suas realidades, oportunizando a convivência com diferentes formas de agir e pensar os contextos, bem como estimular o processo de identificação ou distanciamento de histórias e memórias. É por este viés de identificação das histórias e memórias que se destaca o estudo dos textos de Jorge Andrade, um dos mais expressivos dramaturgos brasileiros que retrata a vida com intensa verdade e poesia. Através de suas obras, que percorrem o século XVIII até a década de 60, consegue retratar o que há de mais atual na situação do país, desde conflitos familiares até a corrupção do dia a dia. Em “A escada”, escrita e contada em 1960, claramente pode-se presenciar o vínculo entre fantasia e realidade, vivenciada por Antenor e Amélia, um casal de idosos que perpassam seus dias dentro de suas memórias, tais que não coincidem com a atualidade. Memórias ligadas ao passado de seus pais e avós, barões do café que deixaram uma suposta 183 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

herança: uma fazenda onde hoje é o bairro do Brás, em São Paulo. O casal mora em um prédio interligado por escadas, onde residem seus quatro filhos. Os filhos revezam-se nos cuidados com os pais alternando a hospedagem dos mesmos a cada mês. Diante desta realidade surgem os conflitos em cada lugar por onde passam. Os filhos de Antenor e Amélia, Helena, Maria Clara, Francisco e Vicente passam os dias vivenciando e buscando aperfeiçoar o desenraizamento da memória de seus pais tendo em vista o processo de mudança do espaço entre rural e urbano, a quebra da aristocracia, além da modernização e urbanização brasileira. Embora se considere necessário o pertencimento natural a uma coletividade que envolve nosso passado e nos aponte um futuro, como nos afirma BOSI (2003) “O desenraizamento é condição desagregadora da memória”, ou seja, a perda das raízes e referências que formam nossa essência, a nossa identidade. Entretanto, no caso de Amélia e Antenor, suas memórias se recusam a aceitar a realidade e a transformação sócio-econômica do país, ambos passam os seus dias alienados, presos a uma aristocracia decadente e a documentos sem valor. Da mesma forma, nos dias atuais, esta alienação também está presente em muitos pais e avós, que ainda preservam a fundo suas tradições e crenças, recusando-se a aceitar novos conceitos, ou mesmo a quebrar velhos preconceitos, como o racismo, também tratado na peça “A escada”, uma má herança deixada pela escravatura, tão difícil de desenraizar. A obra aborda ainda a decadência da antiga aristocracia, apontando para uma juventude que paulatinamente vai se afastando dos antigos padrões sociais gerando principalmente conflitos de gerações quando apresenta nas cenas da peça, a convivência de avós, pais e filhos. Uma das personagens que se destaca na peça é Helena, filha de Antenor e Amélia casada com Sérgio, sua vida se resume à companhia de um cachorro e eventualmente acompanhar o marido à cinemas, bares e shoppings, ou seja, uma realidade aparentemente fútil e comum em muitas pessoas da sociedade atual. Sua forma de se expressar causa incômodo a todos, sendo sempre dura ao se comunicar. Porém, no decorrer da peça ela se explica: “Eu prefiro ir ao cinema a ouvir discussões intermináveis!”, referindo-se no caso, a seu pai e a seu esposo que vivem discutindo. Ressalta ainda mais detalhadamente sua vida, afirmando que se sente sozinha no apartamento e como é dura a solidão de não se ter nenhum filho.

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Outro personagem que vale a pena destacar é Vicente, também filho de Antenor e Amélia. Vicente é um dramaturgo casado com Izabel, e durante o decorrer da peça são contemplados com o nascimento de um filho, Martiniano. Muitos acreditam que a figura de Vicente é um reflexo de Jorge Andrade, pois a descrição desta personagem é bastante parecida com os pensamentos, ideias e atitudes do dramaturgo. Incontáveis são os conflitos familiares (ou não) encontrados em suas peças, sendo estes necessários para a compreensão de suas obras. A moralidade de suas peças se encontra nos conflitos sociais, sendo ele mesmo um homem de fortes raízes, como cita João Roberto Faria (2013), comparando-o a Nelson Rodrigues:

Nenhum outro autor, nem mesmo Nelson Rodrigues, foi possuído por essa ambição grandiosa de entender o homem brasileiro no contexto nacional, não a partir de seu cotidiano, de seu presente, mas de suas raízes, do caminho que traçou ao longo de décadas (FARIA, 2013, p. 130).

Foi a partir dessa ambição de entender o homem brasileiro e até mesmo o próprio país que Jorge Andrade retratou os conflitos sociais na sua dramaturgia para desvendar ou até mesmo fazer o leitor refletir e se identificar com os personagens e suas raízes, sejam elas rurais ou urbanas. Estas reflexões que o dramaturgo pontua em suas peças corroboram as reflexões propostas pela pesquisa, o desejo de educar e formar um leitor com base no que ele é, levando-o a questionamentos sobre si mesmo. Sendo assim, vê-se nas obras de Jorge Andrade uma oportunidade no processo de formação, especificamente na educação básica. Proporcionar ao aluno ao conhecimento de obras dramáticas agrega o descobrimento de si mesmo, sem contar a expansão do vocabulário, conhecimento de novos gêneros literários e literaturas e em especial proporcionar o incentivo da leitura. Considera-se necessário proporcionar aos alunos uma reflexão saudável sobre os conflitos existentes nas famílias, fazendo-os identificá-los em seu cotidiano, de forma positiva e reflexiva. As peças de Jorge Andrade apontam para estas reflexões de forma positiva, como ele mesmo afirmou “O mundo que trazemos em nós é só o que conseguimos ver”, entrevista do autor com Delmiro Gonçalves (Revista Visão, 19 jun. 1964) apud FARIA (1998). Dessa 185 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

maneira se percebe que o autor não tinha uma preocupação apenas com a memória individual, mas com a memória coletiva, especialmente a memória familiar. Nas peças do autor, observa-se o conflito entre pais e filhos, certamente remetendo à própria vida de Jorge Andrade, mas também à vida de todo e qualquer cidadão. É comum o confronto entre pai e filho quanto à sua escolha profissional. Deste mesmo modo a decadência financeira, muito presente nos dias atuais, onde a crise gerada pela corrupção faz parte do dia a dia de todo brasileiro. É assim que as obras de Jorge Andrade, em especial “A escada”, tratam os conflitos e suas soluções: através de uma alusão à realidade. Ao ler suas peças, o leitor se identifica, reflete e analisa, fazendo uma comparação com seus próprios conflitos. É assim também que Jorge Andrade traz a moralização em suas histórias, não com frases de efeito, mas com a solução de conflitos, seja pelo perdão, pelo amor, pela paz. Enfim, com uma dose de auto- conhecimento que cumpra responder questionamentos históricos e sociais e a identificação de uma identidade brasileira que é plural na sua formação. Jorge Andrade ser entrevistado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 23 de outubro de 1970 afirmou que seu objetivo ao escrever suas peças era o de compreender uma realidade e atuar nela. No caso, ele abordou uma realidade onde não apenas ele atuava, mas também representava todo brasileiro. É possível compreender seu objetivo e suas obras ao comparar as famílias fictícias das obras às famílias brasileiras, observando as semelhanças entre cada conflito entre pai e filho, cada decadência, cada memória, etc. Na mesma entrevista para O Estado de São Paulo, Jorge Andrade diz sobre essa semelhança: “Fazendo parte de uma mesma realidade econômica, nossos ‘demônios’ só podiam ser os mesmos”. E complementa e encerra com uma solução para o homem brasileiro: “uma realidade precisa ser assumida para ser modificada”. (ANDRADE, 1970, p.12)

Considerações Finais

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É certo que a literatura tem como um de seus papeis essenciais a função psicológica, que através da imaginação e ficção propicia ao leitor o que há de mais íntimo no ser humano, a capacidade de fantasiar. No caso das escolas é inegável que a literatura chega aos alunos especialmente através dos livros didáticos ou apostilas. Conforme observado pela pesquisa, o uso destes materiais não contempla a plenitude de um texto literário, pois apenas trazem trechos de textos, ou pedaços de frases inseridas nos exercícios. Faz-se importante salientar que os textos fragmentados são resultado da leitura do autor do manual que fez os “cortes”, não possibilitando uma visão do todo. Também pode ser observado que os livros didáticos praticamente não abordam o gênero literário dramático. O texto dramático não faz parte do universo dos nossos jovens leitores, por escolha dos autores dos materiais utilizados nas escolas também os professores preferem a literatura em prosa e a discussão dos elementos da narrativa, buscando trabalhar contextos das obras e referências do autor. A dramaturgia brasileira é rica em autores e produções do gênero, daí a proposta em tela de começar a levar esta discussão para a sala de aula no intuito de contemplar a trilogia dos gêneros literários na escola, além de contribuir com a formação de outra categoria de leitores, capazes de interagir com a arte dramática.

Referências

ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. 2 ed. São Paulo, Perspectiva, 1986. ______. História narrada em ciclo teatral. Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 12, 23 out. 1970. Entrevista. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19701023-29309- nac-0012-999-12-not. Acesso em: 28 ago. 2017. BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003 FARIA, João Roberto. O Teatro na Estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. Ateliê Editorial, 1998. _____. História do Teatro Brasileiro. v. 2. São Paulo: Perspectiva; SESC, 2013. NOSELLA, Berilo Luigi Deiró. Pela “Escada” de Jorge Andrade: O nascimento de uma trajetória entre a memória e a história. Revista Crioula nº 10 (USP), novembro de 2011. PROSSER, Elisabeth Seraphim. Arte 7º ano. Curitiba: Positivo, 2012. v. 3. SOARES, Rosalina Mariana Rathlew. Língua Portuguesa 8º ano. Curitiba: Positivo, 2013.

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Revisitando Arena conta Zumbi: A montagem de João das Neves

Ana Maria Lange Gomes (UNESP/Assis/SP)72

Resumo: Quase cinquenta anos após a montagem inaugural paulista de Arena conta Zumbi de 1965, o diretor João das Neves traz aos palcos a sua versão da peça, contando para tal, pela primeira vez, com um elenco exclusivamente de atores negros. A proposta deste artigo é tecer algumas observações com relação a esta montagem, considerando as relações que conserva ou modifica com a primeira montagem de 1965, tendo por pano de fundo o contexto histórico e social de inserção dos espetáculos. Como material de análise serão considerados os paratextos publicitários, os materiais de divulgação, fotografias, texto da peça, entrevista dos artistas, críticas e os registros de áudio e vídeo. A partir dessas considerações, espera-se evidenciar, contrariando críticas da época, o caráter imperecível do texto dramatúrgico em questão.

Palavras-chave: Teatro; Arena conta Zumbi; musical brasileiro; João das Neves.

Introdução

No dia primeiro de maio de 1965, dia do trabalho, estreava nos palcos do Teatro de Arena, hoje Teatro de Arena Eugenio Kusnet, em São Paulo, o musical Arena conta Zumbi. O espetáculo, resultado de uma trajetória do grupo paulista de nome Arena, foi escrito por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri inspirados na canção Zambi de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. Utilizando como argumento básico o livro Ganga Zumba de João Felício dos Santos, a peça narra a luta dos quilombolas de Palmares relacionando-a ao momento político do país, o então recente Golpe Militar. Para um efetivo diálogo com aquele evento político, o grupo muniu-se diversas estratégias cênicas como o teatro jornal, a presença de música, a fusão de gêneros, o uso de máscaras entre outros, para então conseguir a “quebra” de ilusão. Uma vez que, “Em teatro, qualquer quebra desentorpece.” (BOAL, 1991, p. 202), o efeito deste movimento era o de causar a reflexão na plateia.

72 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação “Literatura e vida social” da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Assis. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 189 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Uma das estratégias mais inovadoras que surgiu com o espetáculo foi o esboço do que viria a ser o Sistema Coringa. Este sistema de revezamento de atores e papeis delineou-se em Zumbi, mas só veio a ser efetivo em Arena conta Tiradentes. Conjugado a estes artifícios elenca-se o trabalho de cenografia e figurino de Flávio Império e de iluminação de Orion de Carvalho. O cenário resumia-se a um longo tapete vermelho ao centro. Pelo mesmo motivo que já o título explicitava o caráter narrativo e focal com a chamada Arena conta, a ideia era, como conta o próprio cenógrafo, esclarecer os narradores:

No tempo de Zumbi, eu já estava mais afastado do Teatro de Arena de São Paulo. Já era freelancer. Mas nos mantínhamos sempre muito ligados. Eu não imaginava que iria fazer a cenografia do espetáculo, porque eles montaram o Zumbi de uma maneira completamente fechada. Trancaram o teatro, botaram uma cozinheira lá dentro. Os músicos, os atores e o diretor entravam às duas horas da tarde e saíam meia noite. Ficaram lá dentro até inventar o Arena conta Zumbi. Quando eu cheguei, estava pronto. Eles me mostraram o espetáculo. Ainda estava cru, mas estava tudo estruturado. E quando acabou, eu morri de rir. Falei: - Parece um bando de intelectuais, no tapete do pai, tomando uísque e conversando sobre o povo... E a cenografia que eu fiz, foi exatamente essa. Conversando com o Boal, ele falou: - Olha, é isso mesmo, você tem toda razão, faça. (Informação verbal, 1985)

Já o figurino, seguindo a mesma linha de evidenciar o lócus enunciativo, compunha-se de calças jeans e camisetas coloridas, moda entre a juventude da época. A escolha, além de assinalar a perspectiva da história fabulada, apontava para o processo de modernização do teatro almejado pelo grupo. A luz azul que incidia sempre sobre a figura de Zumbi quando este aparecia contribuía para esclarecer de que personagem tratava-se, afinal aquele novo sistema colocava os atores em um esquema de rodízios. Ao contrário das expectativas daquela época com relação a produções nacionais, a peça foi um sucesso de bilheteria e com isso, impulsionou o surgimento de dramaturgos nacionais. O quadro a seguir sintetiza a trajetória do grupo com o espetáculo:

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QUADRO DO PERCURSO DA ENCENAÇÃO DE ARENA CONTA ZUMBI Período Local Informações adicionais 1ª semana, Maio, 1965 São Paulo -dedicada aos estudantes com preço reduzido - casa lotada Agosto, 1965 Porto Alegre -na ocasião já tinha ultrapassado a centésima apresentação Setembro, 1965 Rio de Janeiro -outra montagem sob direção de Paulo José Outubro, 1965 Percorrido várias cidades do -atinge 200 apresentações no interior do estado dia 17 do mês Dezembro, 1965 Belo Horizonte ------Janeiro, 1966 Santos -Festival de teatro de Santos Maio,1966 Interior de São Paulo e ------Paraná Outubro 1966 São Paulo -retorna ao Teatro de Arena sob direção de Paulo José. Augusto Boal estava na Argentina. A partir de 1967 ------sai de cartaz. Preparação de Arena conta Tiradentes em fase final. Fonte: Elaborada pela autora73

Apesar da sólida trajetória com relação a público, o espetáculo recebeu críticas severas que, além de questionarem o maniqueísmo da peça, apontavam alguns equívocos estéticos. Um dos apontamentos negativos da crítica foi dirigido às alusões circunscritas aos acontecimentos, o que teria tornado a obra muito datada.

73 Quadro elaborado a partir das informações contidas no livro Zumbi, Tiradentes de Cláudia Arruda de Campos, 1988, página 13. 191 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

A montagem de João das Neves

Em 2011 iniciava-se um projeto de remontagem do espetáculo Arena conta Zumbi por iniciativa do Instituto Augusto Boal. Cecília Boal, viúva de Augusto Boal diretora do instituto e uma das idealizadoras da proposta, declarou em entrevista ser um sonho seu ver o espetáculo somente com atores negros, sendo assim, ficou a cargo de João das Neves o desafio de reunir o elenco e dirigir a nova versão do clássico paulista. A adaptação contou com a direção musical de Titiane, esposa do diretor, cenário e figurino de Rodrigo Cohen, iluminação do próprio João das Neves, produção e realização Sevla Produções e Instituto Augusto Boal, e no elenco, Alysson Salvador, Benjamin Abras, Evandro Nunes, Júlia Dias, Júnia Bertolino, Kátia Aracelle, Nath Rodrigues, Ricardo Campos, Rodrigo Almeida e Rodrigo Jerônimo. Além desta inovação com relação ao elenco, o título do espetáculo também sofreu modificações, deixando de ser Arena conta Zumbi para então adotar a forma sintética Zumbi:

ZUM Arena conta Zumbi BI

Esta mudança, embora sutil, acondiciona as principais diferenças entre as montagens, uma vez que indica a mudança de perspectiva. A despeito da versão original, Décio de Almeida Prado tinha dito que, "(...) o título é perfeito: a história não é vivida mas apenas narrada pelos atores. Estes não se apresentam como personagens, mas como narradores, atuando sempre coletivamente.” (1987, p. 68). Assim sendo, ao principiar o título com o nome do grupo, os autores assinalavam o papel de narradores e demonstravam tratar-se de uma perspectiva própria. Esta perspectiva foi corroborada pela escolha do cenário e figurino conforme já descrito acima em trecho do depoimento de Flávio Império. Todos estes elementos dialogavam com as ânsias do período daquela apresentação, referiam-se as reflexões daqueles jovens sobre aquele conturbado período político nacional, e sobre a ideia da força da união no combate à opressão. Somando-se a estes elementos havia ainda a

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preocupação estética-artística do grupo no sentido de prenunciar no teatro uma fase de modernização. Já nesta nova adaptação, transcorrido quase 50 anos da primeira, a ideia do grupo do coletivo de Arena conta, já extinto naquela ocasião, esvai-se e a proposta centra-se na figura de Zumbi. O encurtamento do título permite esta centralização, assim como o inédito elenco de atores exclusivamente negros, evidenciando com isso, a urgência da focalização para a questão da afrodescendência e identidade em nosso país, sobretudo na atualidade. João da Neves em entrevista a CartaCapital já tinha declarado que “Nós queríamos envolver nessa história seus verdadeiros nomes. Portanto, os negros” (2013), ao referir-se ao elenco inédito, e desta forma consolidou a focalização. Outros elementos testificaram a busca nesta montagem pela valorização da questão negra, uma de aspecto mais artístico e pessoal, a outra social e a nível nacional. Aquela diz respeito ao que ficou então denominado trilogia Afro-brasileira, isto é, a montagem por João das Neves de três peças de temática afro que foram reunidas em um único ciclo de apresentações a fim de comemorar os 80 anos de carreira do diretor. Esta, as discussões sobre a aplicação da lei 10.639 que prevê a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de Ensino. Todas estas questões impactaram diretamente na montagem, tornando-se visível no figurino, no cenário, nos movimentos corporais e arranjo musical. Por exemplo, o figurino, ao contrário do conjunto calça jeans e camiseta colorida da versão original, passa a ser composto por trajes mais primitivos evocando motivos afros. O cenário, já não mais aquele longo tapete vermelho, é formado por paliçadas distribuídas em torno do palco em seu exterior remetendo, com isso, ao refúgio dos escravos em Alagoas. Também compõe a cenografia um círculo pendurado por cordas no centro do palco, que pode muito bem inferir um mastro do navio negreiro. Desta forma, estes dois elementos conjugam a história negra no Brasil, incitando a lembrança da crueldade da escravidão, que trouxe os negros ao país, e a resistência e força através das lutas libertárias e da construção de quilombos. Os movimentos ritmados dos atores emulam a capoeira, e no arranjo musical há a presença de tambores africanos. No entanto, apesar desta centralização na figura de Zumbi como herói negro, a coletividade declarada da montagem paulista não diluísse-se, mas entra com intensidade na

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própria história, uma vez que com a ideia do quilombo pode-se evidenciar a organização social deste grupo e o espírito coletivo de resistência. Além da inserção da remontagem neste espírito, é possível ainda indicar mais 2 momentos representativos ao longo dos quase 5 anos de apresentações. Estes 3 momentos, que não se anulam mas antes interpõem-se, podem ser assim classificados e justificados:

Reflexão da afrodescendência e da identidade nacional com a inclusão negra (2011-2015)

Este dos três é o mais representativo e aquele que mais estendeu-se ao longo das apresentações. Alguns elementos contribuíram significativamente para esta ocorrência, a própria carreira do diretor, o sonho de Cecília e o contexto social. A temática da negritude tem sido contumaz na produção de João a partir da década de 1990, encaminhando-se para a sua já mencionada trilogia negra. Esta trajetória embasou e assessorou a adaptação de Zumbi pelos rumos que perfez. Contribuiu também para fundamentar a justificativa da proposta da peça encaminhada para o Sistema de Apoio às Leis de incentivo à Cultura – SALIC, que do mesmo modo explorou as reflexões da valorização da cultura negra:

Em pleno 2011, nos vemos em um novo momento: de liberdade e democracia e de valorização da história da África e da cultura afrobrasileira. Desde o início dos anos 2000 temos tido terras sendo oficialmente cedidas a remanescente de quilombos - os quilombolas ganharam novo lugar social no século XXI, bem como a cultura negra. Esse novo contexto de luta e afirmação, propicia essa nova montagem de “Zumbi”, de elenco totalmente formado por atores negros e com direção do João das Neves, contemporâneo de Boal, que tem trabalhado recentemente a história do Brasil no teatro pelo viés de seus grandes personagens negros como “Besouro” e “Chico Rei”. [...] O Rio de Janeiro tem sido palco de grandes musicais e o projeto “Zumbi” dirigido por João das Neves faz parte deste contexto. Está na hora de rever o legado do Arena levando-o para os jovens de hoje e dialogando com as questões contemporâneas de africanidade e identidade. (2012)

Além disso, o tema enunciou-se no período de estreia através do ciclo de palestras realizadas concomitante a exibição do espetáculo no Centro Cultural Banco do Brasil- CCBB do Rio de Janeiro. As palestras discutiam desde o racismo até a escravidão como pode-se verificar no quadro disposto abaixo:

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QUADRO CICLO DE PALESTRAS Tema Data Palestrante Representações racistas e antirracistas: 14/08 Profa. Liv Sovik como disti nguir umas e outras Quilombolas: territórios e direitos 16/08 Ronaldo Santos Agência de Redes para Juventude 17/08 Marcus Faustini Trabalho escravo contemporâneo 21/08 Prof. Ricardo Rezende Figueira Memória da Escravidão 22/08 Profa. Hebe Mattos Fonte: Elaborada pela autora

Todos estes elementos asseveram de que forma e com que ímpeto o assunto atravessou a montagem.

Discussões políticas aferventadas (2013 -2014)

Durante os anos de 2013 e 2014 o país atravessa um período de intensas discussões políticas e manifestações populares. Nas ruas, a Manifestação dos 20 centavos, que surgiu como forma de contestação ao aumento das tarifas do transporte público, desencadeou uma sucessão de outras manifestações sobre os mais variados temas. Esses eventos repercutiram mundialmente e atraíram atenções internacionais sobretudo, porque o país preparava-se para sediar a Copa. As manifestações prolongaram-se em 2014 e política passou a ser pauta de conversas dos brasileiros. Em declaração à revista CartaCapital, João das Neves relacionou os eventos daquele período com o momento político de escritura da peça:

Agora, com as manifestações de rua, parecem ter tudo a ver com a ânsia de liberdade, com a ânsia de informação e justiça. A peça também foi escrita em um momento como esse. Essa obra é politicamente forte na medida em que ela é uma afirmação da nossa identidade nacional, do povo brasileiro e das suas formas de resistência. É uma obra de arte que transcende uma data específica e por isso não precisamos fazer grandes adaptações ao texto,

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apenas alguns cortes, porque ela se projeta para o futuro e isso, em si, é de um significado político muito forte. (Informação verbal, 2013)

Com isso, o diretor de Zumbi aproveitou para evidenciar a atemporalidade da peça e seu cunho político contrariando muito da crítica da época da temporada de Arena conta Zumbi que considerou o espetáculo datado justamente pelo diálogo com os fatos políticos do momento.

50 anos de Arena conta Zumbi (2015)

No ano de 2015, a primeira montagem do espetáculo completou 50 anos. A comemoração reacendeu a visibilidade do espetáculo e a importância da adaptação. O momento notabilizou ainda a continuidade da obra ao longo dos anos, seja a partir das músicas que se tornaram clássicos na voz de artistas famosos, caso de Upa Negrinho gravada por Elis Regina, como pela incidência de remontagens. Os indícios, 50 anos depois, refutaram a crítica que considerou o espetáculo muito circunstancial.

Considerações finais

“O público é sempre a herança mais decisiva, em qualquer arte. O modo como as pessoas aprendem a ver e a reagir é o que cria a condição essencial para o teatro”. (Raymond Williams)

Zumbi, partindo de seu clássico Arena conta Zumbi, ensinou que, em termos de história do Brasil, houve mudanças, mas também continuidades. João das Neves (2013) já tinha assinalado: “Hoje, temos a democracia minimamente restaurada, podemos comemorar a consciência negra e reafirmar a existência dessa cultura no nosso país. Isso mostra como a qualidade do trabalho ultrapassa os limites do tempo.” Mas, ao mesmo tempo também declarava (2013): “Essa obra é politicamente forte na medida em que ela é uma afirmação da nossa identidade nacional, do povo brasileiro e das suas formas de resistência.” As mudanças da remontagem testificaram os movimentos de perspectiva: centralização na figura histórica de Zumbi como herói, introdução de elementos da cultura

196 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

afro. Com isso, estabeleceu-se o diálogo com o público. A perpetuidade da obra, segundo João (2014), fica a cargo da sempre almejada liberdade: “A ânsia do ser humano por relações mais livres se conserva viva e efervescente. Essa peça transcende o momento histórico a que se refere.”. A recepção do público é um dos principais elementos da arte dramática. Sendo o teatro por excelência uma arte de proximidade direta com a sua plateia, a construção desta relação ao longo dos anos efetiva-se através de adaptações de clássicos. Um clássico, para ser tal, assegurou-se, nos montantes de obras artísticas, o seu quinhão na eternidade. Uma remontagem, portanto, possibilita verificar as mudanças de perspectivas e a permanência de alguns fatos.

Referências

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1991 BRASIL. Ministério da Cultura. Sistema de Apoio às Leis de incentivo à Cultura – SALIC. Projeto Zumbi. 2012. Disponível em: http://salic.cultura.gov.br/verprojetos?idPronac=501eac548e7d4fa987034573abc6e179MTQ4 MTMzZUA3NWVmUiEzNDUwb3RT . Acesso em 05 out. 2017. CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. CARNIERI, Helena. Zumbi encena texto de Boal só com atores negros. Gazeta do povo, Curitiba. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/zumbi-encena-texto-de- boal-so-com-atores-negros-9h7da6t7ilu41pvfvnlstypn2. Acesso em: 22 jun. 2017 GLOBO. Teatro. Inspirado em clássico do Teatro de Arena, 'Zumbi' reestreia em São Paulo. Disponível em: < http://redeglobo.globo.com/globoteatro/reportagens/noticia/2013/11/inspirado-em-classico- do-teatro-de-arena-zumbi-reestreia-em-sao-paulo.html >. Acesso em 07 set. 2017 IMPÉRIO, Flávio. Depoimento [1985] Entrevistador: Milleret, Margot. Disponível em: < http://www.flavioimperio.com.br/galeria/507872/507876>. Acesso em: 25. Fev. 2017. Acervo Flávio Império.

INSTITUTO AUGUSTO BOAL (Brasil). Zumbi. Disponível em: < https://institutoaugustoboal.org/tag/zumbi/> Acesso em: 12 jan. 2017 PRADO, Décio de Almeida. Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1987. RODRIGUES, Paloma. No Dia da Consciência Negra, a história de Zumbi é cantada. CartaCapital. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-dia-da-consciencia-negra-a-historia-de- zumbi-e-cantada-6649.html/view > Acesso em 12 jan. 2017.

197 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Síntese, fluxo, repetição, retradução: Doctor Faustus Lights the Lights, a obra "teatral" de fronteira de Gertrude Stein

Fábio Fonseca de Melo74

Resumo: Gertrude Stein denominou plays ou librettos alguns de seus textos. Embora tais termos nos remetam rapidamente à ideia de teatro ou opereta, sua abordagem é, antes, um exercício de desconstrução da linguagem e, mais especificamente, de desconstrução da própria categoria do "drama" e da escritura da "literatura dramática". Em sua "peça" Doctor Faustus Lights the Lights, analisaremos certos procedimentos linguísticos e seus efeitos, aspectos da oralidade e da teatralidade e sua interlocução mefistofélica com temas do cânone fáustico, mas, sobretudo, da modernidade europeia de sua época. Tais operações resultam numa "retradução" sintética desses temas e põem em vertigem a própria escritura da peça, produzindo o que chamei de "prosa teatral", num embaralhando das categorias literárias. Stein permanece visionária nessa desconstrução, sendo pós-dramática avant la lettre. Notam-se influências de seu modus operandi em sucessivas gerações de "desconstrutores", como em The $ Value of Man (Robert Wilson) e no procedimento de criação dramatúrgica de Richard Foreman.

Palavras-chave: Gertrude Stein; tradução literária; teatro pós-dramático; performance teatral.

Introdução

A escritura de Gertrude Stein foi, já, bem estudada e analisada – por Augusto de Campos (1986; 1989), por exemplo – de forma a demonstrar o jogo de expansão semântica almejado por sua exploração da concretude do signo submetido a manipulações transgressivas da sintaxe. Sua exploração da linguagem, como bem nos diz Luci Collin, “traz em si a condição de expressões que acenam para novas situações possíveis no discurso artístico e, por isso, são enquadrados como composições revolucionárias que operam uma reinvenção da linguagem” (COLLIN, 2008). Ao mesmo tempo, porém, se suas narrativas emulavam e faziam referências a formas literárias (romance histórico, com The Making of Americans; conto, com Three Lives; (pseudo)autobiografia, com The Autobiography of Alice B. Toklas) o faziam justamente com o fim de desconstruí-las, com fina ironia e humor farsesco para com as formas canônicas e seus

74 Fábio Fonseca de Melo é bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Interpretação Teatral pela ECA-USP – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, tradutor literário e professor de tradução na Geronymus Especialização de Tradutores. E-mail: [email protected]. 198 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

críticos literários, do qual Everybody’s Autobiography (“A autobiografia de todo mundo”) talvez seja o exemplo mais icônico. É, portanto, também com esse tratamento, a nosso ver, que Stein passa a escrever “peças” de teatro. Stein escreve peças que não são peças, não tem a intenção de vê-las realmente encenadas; são, antes, exercício de desconstrução das categorias literárias – neste caso, da dramaturgia, ou da literatura dramática. As “peças” (plays) de Gertrude Stein têm sido analisadas a partir do conceito de “peça-paisagem” (landscape plays), peças sem ação ou personagem cujo protagonista é o signo, a própria língua/linguagem. Há, porém, na obra dita “teatral” de Gertrude Stein, um texto singular. Nele, a experimentação linguística de Stein está muito mais próxima de seu pseudorromance The Making of Americans do que das “peças-paisagem”, ainda que apresente elementos destas últimas. Embora as cenas sejam, sim, quadros representativos de cargas psíquicas, nesse texto elas estão circunscritas a personagens. E, diversamente do restante de sua obra, o texto calca-se no cânone literário, ainda que de forma sintética, porém no intuito de reinterpretá-lo e remanifestá-lo como criação e crítica feminista. Tal composição parece também dialogar intimamente com os desenvolvimentos teatrais de sua época, em particular com o teatro épico narrativo dialético – uma das novas linguagens a emergir da investigação de uma seara de dramaturgos/diretores/pesquisadores que, desde fins do século XIX, buscavam maneiras de romper com a estrutura do drama clássico burguês. Trata-se de Doctor Faustus Lights the Lights, de 1938. Nessa obra, o jogo semiolinguístico exercitado por Stein maneja procedimentos como repetições (reiterativas ou reformulativas), aliterações, rimas internas, fricções entre auxiliares interrogativos e a pontuação, produzindo uma polifonia que produz referimentos semânticos por vezes sutis ou ocultos, por meio de um tipo de fluxo de pensamento e linguagem que ocorre pelas e apesar das quebras internas – um fluxo de pensamento em contínuo questionamento e reformulação. Um dos procedimentos que operam esse efeito é a já referida fricção entre os auxiliares interrogativos do inglês (will, do, did, shall, should...) e um contraditório ponto final, no lugar do esperado ponto-de-interrogação. Por exemplo:

Doctor Faustus’ song.

If I do it If you do it 199 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

What is it. (...) Faustus meditates he does not see the dog. Will it Will it Will it be Will it be it. Faustus sighs and repeats Will it be it. A duet between the dog and Faustus Will it be it Just it. (STEIN, 1996, pp. 599-600)

Stein subverte duas convenções do código da escrita para produzir um estranhamento, anunciando uma interrogação e concluindo a frase de modo afirmativo – uma afirmação que se interroga, expressa uma sensação de dúvida, de autoinquirimento. O problema que se coloca para a tradução para o português do Brasil é que nosso código não dispõem de auxiliares interrogativos (nem de pontuação que refira à interrogação no início da frase, como o ponto de interrogação de abertura do espanhol, “¿”). Para recriar esse contraste entre interrogação e afirmação presente no original, fiz uso de partículas e locuções interjetivas de dúvida em português:

Canção de Doutor Faustus. Se faço isso Se você faz isso Que é isso. (...) Faustus medita ele não vê o cão. Será que Será que Será que isso Será que é isso. Faustus suspira e repete Será que é isso. Um dueto entre o cão e Faustus Será que é isso Só isso. (STEIN, 1998, pp. 21-22)

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Neste caso, a solução proposta foi ainda textual. No entanto, nos casos em que o uso de partículas interjetivas com ponto final no fim da sentença não dê conta do efeito, uma chave possível para se obter esse efeito na performance oral do texto está ligada à função conativa da língua, na (mudança de) entonação ao longo da frase. Pretendo desenvolver mais este ponto num futuro trabalho. Outro aspecto neste e em outros textos de Gertrude Stein são as aliterações, rimas internas, ritmos e prosódias que cria. Por exemplo:

Faustus growls out. The devil what the devil what do I care if the devil is there. Mephisto says. But Doctor Faustus dear yes I am here. Doctor Faustus What do I care there is no here nor there. (…) and I was deceived and I believed miserable devil I thought I needed you, and I thought I was tempted by the devil and I know no temptation is tempting unless the devil tells you so. (STEIN, 1996, p. 597)

Do ponto de vista prosódico, temos um jogo interessante na primeira linha, cujos elementos poderiam ser entoados de, ao menos, duas maneiras:

1. The devil […] / what the devil [!] / what do I care if the devil is there [.] ou 2. The devil / what [?] / the devil / what [?] / [¿]do I care if the devil is there[.]

Na primeira resposta de Faustus a Mefistófeles, temos o mesmo jogo em operação:

1. What do I care[…] / there is no here nor there [.] ou 2. What [?] / [¿] do I care [.] / there is no here [...] / nor there [.] ou ainda 3. What [?] / [¿] do I care [.] / there is [!] / no here [...] / nor there [!]

201 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Pensando de maneira conativa, quanto mais divisões entonativas se fizer, mais se escutará, de Fausto (e em outros personagens) uma polifonia de vozes internas, por vezes contraditórias, mas também reiterativas e reformulativas, que só chegam a formar um fluxo de pensamento a duras penas, dando passos atrás e refazendo-se para poder avançar. O exemplo acima já denota algumas questões rítmicas propostas pelo texto de Stein. Mas as possibilidades rítmicas são ainda mais exploradas em ligação com a fonêmica, seja por repetição, seja por variação fonológica (nos exemplos a seguir, cada cor indica um som fonologicamente idêntico ou similar):

The devil what the devil what do I care if the devil is there. But Doctor Faustus dear yes I am here. What do I care there is no here nor there. (STEIN, idem)

Em português, recriei a ideia do jogo sonoro, mas com a fonética distinta da língua de chegada, e nem sempre nas mesmas posições devido à reformulação sintática. Também procurei uma forma de dizer que contivesse os elementos menores analisados acima que possibilitassem as múltiplas trocas de entonação de modo a fazer aflorar as vozes internas de Faustus:

O diabo o que o diabo o que me importa se o diabo bate à porta. Mas Doutor Faustus eu o vi e estou aqui. O que me importa não há cá nem lá. (STEIN, 1998, p. 17)

Repetições também são elementos característicos da obra de Gertrude Stein como um todo, mas neste texto em particular elas contribuem para a produção de um efeito encantatório que poderíamos relacionar ao tema fáustico ou, antes, mefistofélico, de feitiços e outras dicções associadas aos mitos medievos com o diabo:

I think I have thought thought is not bought oh no thought is not bought I think I have thought and what I have bought I have bought thought, to think is not bought but I I have bought thought (STEIN, 1996, p. 607)

No trecho acima, há uma repetição do th surdo do inglês e da terminação ought. Chamo atenção para as ocorrências de thought destacadas em amarelo que, embora guardem a 202 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

mesma morfologia com as demais ocorrências, têm uma classe gramatical distinta: são substantivos, e não particípios passados como as demais. Percebe-se até onde chega o jogo formal de Gertrude Stein. Procurei manter o jogo em português, porém deslocando-o sintaticamente:

Eu pensei ter pensado pensado não é comprado oh não pensado não é comprado eu pensei ter pesado bem pesado e o que eu pensei ter comprado um pensamento roubado, pensar não é comprado mas eu pensei ter comprado um pensamento pesado (STEIN, 1998, p. 37)

Estes são apenas alguns exemplos do tipo de relação de jogo que explorei para a transcriação – segundo o conceito estabelecido por Haroldo de Campos (2008) – do texto para o português do Brasil em seus aspectos mais sígnicos, semiolinguísticos. Note-se que, em todo texto dito “teatral”, ainda que como mero exercício linguístico ou estético, a ligação entre os aspectos fonêmicos e as possibilidades prosódicas e, ainda mais fortemente, a funcionalidade conativa é fértil. Tal fertilidade contribui enormemente para os efeitos obtidos pelos textos de Stein. O componente fonológico e conativo/performativo é constitutivo primordial em sua criação linguística. Em Stein, sonoridade e ritmo se organizam (ou se desorganizam) para além da simples fruição sonora, constituem o próprio Ser do texto, ou a própria “organização do sujeito”, nos termos de Meschonnic, quando propõe que “o liame entre o ritmo e o sujeito decorre do que eu entendo como pensamento poético, uma invenção do ritmo, no sentido de que o ritmo não é mais uma alternância formal, mas uma organização do sujeito” (MESCHONNIC, apud SCHNAIDERMAN, 2011, p. 88). Nesse sentido, as conexões entre signo e ritmo em Gertrude Stein podem ser compreendidas também como método, se considerarmos, como Meschonnic, “o ritmo como a organização e a própria operação do sentido no discurso. A organização (da prosódia à entonação) da subjetividade e da especificidade de um discurso: sua historicidade” (1999, p. 43). Sendo assim ao traduzirmos Gertrude Stein -- tradução interlinguística ou intersemiótica, tradução cênica – é preciso almejar uma transcriação que reflita os efeitos poéticos alcançados pela autora, devemos nos ater a que “o objetivo da tradução não é mais o sentido, mas bem mais que o sentido, e que o inclui: o modo de significar”, como bem coloca Meschonnic (idem).

203 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Encontrar o ritmo de Gertrude Stein está diretamente relacionado a encontrar a prosódia requerida por seus textos em português do Brasil e em sua performance cênica. De certa maneira, seu aspecto de repetições reformulativas no nível sintático se reflete nessa musicalidade também reformulativa, de ritmo entrecortado, de harmonias dissonantes e dissociantes que, não à toa, só pôde encontrar uma chave performativa algumas décadas mais tarde, nos minimalismos de Cage e na atomização da música contemporânea ou no tipo de teatro que Hans-Thies Lehmann chamou de “pós-dramático” (LEHMANN, 2007) – em que mesmo a palavra é considerada em sua plasticidade, em sua materialidade, como as encenações de primazia plasticovisual de Robert Wilson ou as reformulações psíquicas/oníricas de Richard Foreman – malgrado toda experimentação já iniciada pelos modernistas em música e nas artes cênicas pelas vanguardas históricas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Nesse sentido, se consideramos, ainda que de forma redutora, tais explorações artísticas, todas, como “experimentações da linguagem”, podemos dizer que Stein esteve uma vanguarda à frente de sua própria vanguarda. Como apontamos, diferentemente das “peças-paisagem”, em que Stein exercita já uma forma própria de escritura “teatral”, por assim dizer, em Doctor Faustus Lights the Lights ela parte da forma clássica da literatura dramática para, em seguida, começar a desconstruí-la. Expusemos que as categorias ou os estilos literários clássicos servem a Stein não para que ela os pratique, mas para que os desconstrua com sua escritura exploratória. Assim, embora a peça se inicie de maneira claramente dramática, logo a escritura do texto é subvertida, abandonando as indicações cênicas nas aberturas das partes, as indicações de personagens e rubricas recuadas à esquerda, e as falas correspondentes recuadas à direita. Então, Stein começa a desintegrar a estrutura do drama. É interessante notar – e talvez ainda não tenha sido notado – que, no Faustus de Stein, essa desconstrução é operada a partir de uma articulação entre duas estéticas que, nas experimentações teatrais de sua época, também se confrontavam, embora com causas diversas: o drama burguês e a narrativa épica brechtiana, cujos contornos foram bem estudados, respectivamente, por Peter Szondi (2001) e Anatol Rosenfeld (2006). Muito embora a troca de correspondências entre Stein e o dramaturgo norte-americano Thornton Wilder seja conhecida, não há indício, nessas missivas ou em qualquer outro “documento” acerca de Stein, nem em qualquer uma de suas criações, que ela acompanhasse 204 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

com interesse artístico tais desenvolvimentos na pesquisa teatral europeia das décadas de 1920 e 1930 a partir de sua residência em Paris. Isto configura uma novidade na fortuna crítica de sua obra e é algo que desejo pesquisar: se Stein travou contato de alguma forma com o teatro de Brecht ou outro autor do período de alguma forma ligado à renovação da linguagem narrativa no teatro. De toda forma, é forçoso reconhecer, conforme demonstraremos, que ela lança mão de ambas as estéticas para realizar a desconstrução vertiginosa da categoria literária teatral e explorar sua linguagem para além da possível leitura do texto como “peça”, “opereta” ou qualquer outro evento cênico. Em Doctor Faustus Lights the Lights, essa alternância vai se acelerando até a vertigem, na própria escritura, de forma que muitas vezes é difícil definir quando a fala é dramática ou narrativa, isto é, quando quem fala (o ator ou a atriz) está “dentro” ou “fora” da personagem. Ou seja, aqui, os jogos de linguagem de Stein são levados também à esfera do estilo, e não espanta que Stein tenha se servido – e levado a um ápice – dessa possibilidade de “movimento” propiciada pela técnica narrativa dialética. Como exemplo dessa articulação em dramático e narrativo, que entra em vertigem para explodir em prosa poeticoteatral, analisemos um trecho de Margarida Ida e Helena Anabela:

Seria a mesma tela se meu nome não fosse Margarida Ida e Helena Anabela seria a mesma tela eu desistiria até por um tapete e uma cadeira e pra ficar não pra cá mas pra lá, mas (e ela deixa escapar um guincho) eu estou pra cá não estou lá e eu sou Margarida Ida e Helena Anabela e não está tudo bem se eu não posso falar também o que houver pra falar o que houver pra ver e o que eu posso ver e posso ver tudo isso oh sim e eu chamo e chamo mas sim eu vejo tudo isso oh sim oh sim eu vi e estou aqui. Ela diz À distância há o amanhecer e perto dali não há nada. Há alguma coisa debaixo das folhas e Margarida Ida e Helena Anabela dá um giro rápido e vê que uma víbora mordeu ela. Ela vê isso e ela diz e o que é isso. Não há resposta. Isso machuca ela diz e então ela diz não na verdade não e ela diz foi uma víbora e ela diz como posso dizer eu nunca vi isso antes mas é isso ela diz e ela levanta de novo e senta e abaixa as meias bem não foi uma abelha não uma abelha atarefada não não, nem um mosquito nem uma picada foi uma mordida e serpentes mordem sim elas fazem isso talvez seja isso. Margarida Ida e Helena Anabela senta pensando e então ela vê uma camponesa com uma foice vindo. Eu fui ela diz eu fui mordida, a mulher chega mais perto, eu fui diz Margarida Ida e Helena Anabela eu fui eu fui

205 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

mordida. Você foi mordida responde a camponesa, porque sim isso pode acontecer na vida, então eu fui mordida diz Margarida Ida e Helena Anabela porque não se você foi mordida é a resposta dela. Elas ficam repetindo eu fui mordida e sim isso pode acontecer na vida então Margarida Ida e Helena Anabela diz deixa eu te mostrar e a mulher diz oh sim mas eu nunca vi ninguém que foi mordida antes mas me deixa ver não eu não posso dizer ela diz mas vá embora e faça alguma coisa, o que poderei fazer disse Margarida Ida e Helena Anabela faça alguma coisa pra parar o veneno, mas o quê disse Margarida Ida e Helena Anabela, um doutor pode fazer isso disse a mulher mas que doutor disse Margarida Ida e Helena Anabela, Doutor Faustus pode fazer isso disse a mulher, você conhece ele disse Margarida Ida e Helena Anabela não é claro que não conheço ele ninguém conhece há um cachorro, ele diz obrigado disse a mulher e vá e procure ele vá vá vá disse a mulher e Margarida Ida e Helena Anabela foi. (STEIN, 1998, pp. 29-31)

O primeiro parágrafo, acima, é dramático; em seguida, de “Ela diz” até “...ela vê uma camponesa com uma foice vindo” é teatro narrativo, da espécie dialética (de alternância entre assunção e distanciamento do ator em relação ao personagem); e daí em diante temos um imbricamento das formas que começa a levar a escritura para uma prosa sonoramente poética. Isto pode ser ampliado para o texto como um todo. Doctor Faustus Light the Lights revela, ainda, uma segunda novidade em contraste com o conjunto da obra de Stein: nele, ela trava diálogo com o cânone literário, por referência direta ao Fausto de Goethe e o correspondente mito medievo. O efeito encantatório obtido perscruta a dicção dos feitiços, bruxarias e outros sabás diabólicos, especialmente os ligados a Mefistófeles. Stein, porém, com expedientes lúdicos apoiados na rima interna, nas aliterações e em jogos recreativos, como parlendas e canções infantis (ou infantilizantes, pueris), inverte o feitiço, fazendo sua heroína, Marguerite Ida and Helen Anabel (junção da donzela ludibriada, Margarida, com a imagem da beleza etérea, Helena, conforme ocorrem no Fausto de Goethe, mais Ida e Anabel, nomes que ecoam outras mulheres de sua biografia), sobrepujar Faustus e o próprio Mefisto, numa liberação feminina que expressa artisticamente o momento feminista em que Stein se movimenta. Todo o texto, na verdade, evoca e põe em jogo diversos temas do Fausto goetheano em prol da construção dos “novos significados” do texto como um todo. Poderíamos assim resumir a ação em Doctor Faustus Lights the Lights: Faustus vendeu sua alma em troca da invenção da luz elétrica. A eletrificação urbana “apagou” a luz

206 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

natural, o luar (clair-de-lune) e agora seu Cão já não pode mais uivar para a lua. Um Menino pós-elétrico desconhece o mundo natural e inquire Faustus a todo instante sobre o “mundo anterior”. Faustus quer apenas banhar-se em luz elétrica, isolar-se, dormir (talvez sonhar). Faustus percebe que não só vendeu a alma, mas a perdeu. Sente-se mortificado, deseja “apagar-se” no inferno, mas já não pode ir para lá, pois já não tem alma. Margarida Ida e Helena Anabela (M.I.H.A.) perdeu sua identidade ao perder suas referências de mundo “natural” feminino: o mundo doméstico do casamento (emancipação). Em sua confusão mental, é picada por uma víbora. Uma camponesa com uma foice lhe diz para procurar Faustus, que poderá curá-la. Faustus se recusa a atendê-la, até mesmo a olhá-la (sua memória de Margarida e Helena do Fausto “original” lhe causa remorsos). Faustus entende o “mundo moderno” porque vendeu sua alma. M.I.H.A. está confusa. Regressões infantis, primordiais. O coro e os personagens suplicam que Faustus a cure; ele se nega. Mefisto se interessa pela alma de M.I.H.A. Passa a tentá-la com todos os artifícios da sedução masculina: o príncipe- encantado (“o estrangeiro”, O Homem que Veio do Mar), o mundo natural (o “Sol”), crianças (“Menininho e Menininha”, também uma recriação dos fogos-fátuos em Goethe). M.I.H.A. tende a deixar-se seduzir, mas, como foi “picada” (pela emancipação, consciência, feminismo nascente), sempre desmascara Mefisto. Como última cartada, Mefisto convence Faustus a levá-la para o inferno consigo. Então, rejuvenesce Faustus, numa referência ao Primeiro Fausto, de Goethe. M.I.H.A. tem um presságio, percebe a presença de um “duplo” com Faustus, e se recusa a acompanhá-lo. Não podendo iludir M.I.H.A., Mefisto acusa Faustus de tê-lo enganado, num jogo de espelhos. Para matar sua sede de vingança, Mefisto convence Faustus a cometer um “pecado” para poder ir pro inferno novamente. Ele mata o Menino e o Cão e desaparece nas sombras junto com Mefistófeles. A peça termina com a ladainha dos fogos-fátuos Menininho e Menininha ao Senhor Serpente. Tal diálogo direto com o cânone literário é raro na literatura de Stein, que, no nível temático, usa sua literatura principalmente como interlocução – no mais das vezes irônica – com os fatos e as condições do seu presente tempo histórico, no quadro nascente da moderna crítica cultural e, igualmente, como manifestação artística imbuída dos temas e críticas da primeira onda feminista. Não obstante, e por isso mesmo, o diálogo temático que ela constrói com os temas extraídos de Goethe lhe serve, antes de tudo, para um processo de síntese e

207 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

ressignificação dos aspectos que lhe interessam, reinterpretando o cânone à luz da modernidade e do feminismo.

Considerações Finais

Como arguimos no início deste artigo, nossa interpretação do procedimento de Stein é que, assim como faz (falsa) referência ao romance-histórico, ao conto e autobiografia para, com ironia e humor, desconstruir tais categorias com sua exploração da linguagem em seus menores elementos, aqui, também, ela se serve da forma dramática para desconstruir a escritura do drama. Assim como da obra de Stein como um todo, depreende-se não um intento estético, mas de superação estética. Também aqui, Stein não se confina ao exercício da alternância entre drama clássico e teatro narrativo; aos poucos, vai passando da alternância à concomitância entre os dois estilos, de forma que ambos se pulverizam. A certa altura, o que temos é um texto contínuo, no qual mal se identifica onde termina a fala de um personagem ou começa a de outro, ou só o sabemos a posteriori, resultando num texto em prosa, altamente poético, e de inegável teatralidade, que estou chamando de “prosa teatral” (ou “prosa poeticoteatral”). Chama a atenção também, nesta obra, sua referência e diálogo com o cânone literário – um procedimento atípico na produção de Gertrude Stein.

Referências

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_____. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial Cone Sul, 1998. SZONDI, P. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

209 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Teatro Paraibano Pede Passagem: Linguagem e Representação Cultural em Lourdes Ramalho

Fernanda Félix da Costa Batista (UEPB)75

Resumo: O teatro brasileiro foi, por muito tempo, reduzido à cena do eixo Rio-São Paulo, deixando de fora as produções cênicas que aconteciam, principalmente, no Nordeste. Este trabalho trata de uma discussão em torno do teatro campinense, a partir da análise- interpretação da produção de Lourdes Ramalho. A pesquisa resultante é caracterizada como documental, uma vez que utiliza fontes de jornais e outros documentos impressos para tecer as considerações sobre a peça “A feira”, encenada em 1976, tomada enquanto um documento histórico aberto às interpretações que dialogam com o contexto de produção-recepção. Tem- se como objetivo compreender a importância de Lourdes Ramalho para o teatro e atentar para a linguagem utilizada pela dramaturga, quase sempre tida como destaque na obra, capaz de representar de maneira enfática o povo do contexto retratado. Diante da análise empreendida é possível perceber um constante diálogo entre o texto ramalhiano e o cenário histórico-cultural vivido no Brasil entre os anos 1965-1985, bem como um uso da linguagem que se quer representativa da realidade cultural retratada pela dramaturga , em relação ao cenário nacional.

Palavras-chave: história do teatro; teatro paraibano; dramaturgia; Lourdes Ramalho.

Considerações Iniciais

A historiografia do teatro brasileiro é constituída praticamente, por aquilo que é produzido e reproduzido pelo eixo Rio-São Paulo, como já afirmou Guinsburg e Patriota (2012). Diante dessa constatação, faz-se necessário a identificação e estudo de outras produções que se fazem presentes no restante da cena nacional. Assim, esse trabalho propõe uma análise em torno da produção dramatúgica de Maria de Lourdes Nunes Ramalho, dramaturga campinense. Lourdes Ramalho possui um acervo dramatúrgico expressivo que pode ser lido por uma perspectiva cíclica, como apontam os estudiosos da obra ramalhiana, Maciel (2012) e Andrade (2012). Segundo Maciel (2012), a dramaturgia da autora supracitada possui características e pontos de intersecção que dialogam e, de certa forma, contribuem para um dado modo de ler a produção cênica e sua relação com o teatro nordestino.

75 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Literatura e Interculturalidade, na Universidade Estadual da Paraíba - UEPB. ([email protected]) 210 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Desta feita, é possível identificar ao menos dois ciclos bem definidos, o primeiro constitui-se no período de 1970, formado por obras voltadas ao sertão nordestino e a vivência da dramaturga na cidade de Campina Grande, estão nesse ciclo as obras Fogo-fátuo, de 1974, As velhas, de 1975, A feira, de 1976, Os mal-amados, de 1977 e A eleição, de 1978. No segundo ciclo, as diferenças do primeiro ciclo são expressas na forma e no conteúdo, uma vez que nesse ciclo a autora busca uma aproximação das raízes ibéricas, por meio das histórias contadas e em peças escritas em forma de cordel. Tendo em vista a vasta produção dramatúrgica de Lourdes Ramalho, este trabalho se propõe a uma análise do texto A feira, enfatizando a linguagem utilizada como uma forma de representação cultural, em diálogo com o contexto em que a peça foi produzida e recepcionada. Para tanto, tomamos o texto como um objeto histórico, para além de suas definições artísticas. Estabelece-se ainda um diálogo com a produção de Maciel (2014), Lima (2007), Lemaire (2011) e Brandão (2007) para a definição do percurso teórico-metodológico, uma vez que se trata de uma pesquisa de cunho historiográfico. Diante disso, faz-se necessário uma pesquisa documental, de forma que seja possível um levantamento de informações históricas capazes de contribuir para a leitura e análise do texto.

Lourdes Ramalho e a cena paraibana

Ao buscar a história das artes cênicas no Brasil encontramos o Rio de Janeiro e São Paulo como fortes expoentes dessa produção estética, mas só há, de forma sistematizada, pouco ou nenhum registro de ordem historiográfica e crítica dessa atividade no restante do país. É possível supor que essa ausência documental é consequência de um contexto social em que as relações entre arte e sociedade são ainda concebidas a partir de uma visão influenciada pelas expressões que se querem eruditas (cf. MACIEL, 2014), e, portanto, tendem a excluir dados modos de produção. Uma outra questão também se refere ao caráter regional das produções de fora do eixo, pois “às obras de literatura regionalista era atribuído um valor estético baixo ou nulo” (CHIAPPINI, 2014, p. 32). Inserida nesse contexto de marginalização está a produção cênica da dramaturga campinense Maria de Lourdes Nunes Ramalho que é marcada, desde a sua origem, pela luta

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por direitos de grupos minoritários, em defesa do que ela considera correto. As primeiras produções da autora não possuem muito destaque, são textos feitos para encenação em casa ou na escola em que estudava. Somente na década de 1970, Lourdes Ramalho passa a ser conhecida pelos críticos de teatro, quando suas peças são encenadas fora de Campina Grande, através de festivais de teatro amador que aconteciam pelo país, principalmente na região Sul e Sudeste. É desse momento de descoberta do teatro ramalhiano que pretendemos tratar, notadamente da época da encenação de A feira, em 1976. Além desse texto, outras peças fazem parte desse momento áureo do teatro campinense, bem como da descoberta/reconhecimento ou ainda de autoconsciência da dramaturga, conforme Andrade (2012) já apontou, são eles: Fogo – fátuo (1974), As velhas (1975), Os mal – amados (1977), A eleição (1978), esses textos possuem entre outras semelhanças o desejo da autora em representar características do povo nordestino (cf. MACIEL; ANDRADE, 2008). As produções desse primeiro ciclo buscam, entre outras coisas, levar para o restante do Brasil um (re) conhecimento das tradições do Nordeste e do povo nordestino, enfatizando suas lutas e sua força. Dessa maneira, sabendo da vasta produção da autora e de determinadas características que distinguirão esses textos, Maciel (2012) considera a produção artística ramalhiana em uma perspectiva cíclica. É através da contribuição dos estudos de pesquisadores como Andrade (2012) e Maciel (2012), que se dedicaram ao estudo da produção dramatúrgica de Lourdes Ramalho, que encontramos uma sistematização dessa produção, a qual é organizada, segundo os pesquisadores, em ciclos distintos, com objetivos diferenciados:

A visão da obra ramalhiana em ciclos, além de expor um projeto estético em desenvolvimento a partir de diferentes frentes de pesquisa, que se voltam para a construção de novas maneiras de ver o mundo, promovendo uma importante discussão em torno dos arranjos sociais e da cultura, abre espaço, ainda, para uma dimensão ideológica que expõe, a cru, estes mesmos arranjos, mas apresenta novas possibilidades para o seu rompimento e para um devir, este sempre em construção. Categorizar, então, esta obra e seus ciclos, como regionalistas é passar do real para o outro lado, como diria Fernando Pessoa, em que o regionalismo, para além de instrumento seccional, passe a ser uma noção de integração, marcada pela diferença que se nega a ser igual, por se entender diferente, dessemelhante. (MACIEL, 2012, p. 106) 212 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Isto posto, os textos do primeiro ciclo buscam representar o Nordeste e seu povo, as dificuldades enfrentadas no sertão, em relação à seca, à pobreza, aos desmandos políticos etc., operando uma clara denúncia social, mostrando ao Brasil uma realidade, muitas vezes, ignorada. Além dessas temáticas, em alguns textos, estariam presentes discussões sobre o papel da mulher, em textos como As velhas, mas também em outros, como A feira, é possível perceber a força da matriarca em nome da família, diante dos problemas impostos pela sociedade machista da época. Ainda segundo os estudiosos da obra ramalhiana que estamos considerando, é possível eleger o segundo ciclo dessa produção cênica. O segundo ciclo tem seu início na década de 1990, marcado pelo diálogo entre a tradição nordestina e a tradição ibérica. Além disso, no que diz respeito aos aspectos formais do texto, nesse período, os textos de Lourdes são concebidos como “dramaturgia em cordel”, intitulação dada pela própria autora (cf. MACIEL; ANDRADE, 2008). A partir dessas considerações e dessa visão dos ciclos da obra ramalhiana, identificamos uma das principais características da produção artística considerada: o apego às tradições nordestinas, refletidas não só nas temáticas aludidas nas peças, mas também pela linguagem em que se expressam, por isso, a produção de Lourdes é rotulada como regionalista, o que, em detrimento de outros conceitos, revela-se um tanto preconceituoso, se comparada à tradição que se quer vinculada à literatura erudita. Diante do exposto, tomamos como base as considerações de Brandão (2007) para a realização de uma pesquisa documental, uma vez que segundo a autora estamos lidando com a efemeridade teatral e, mais que isso, com a história de uma perda, em que é preciso reconstituir aquilo que se perdeu. Nessa perspectiva, a autora aponta uma maneira de buscar essas pistas, indicando ao pesquisador um caminho a ser trilhado, apresentando os recortes de jornal, como uma das principais fontes para esse tipo de estudo: uma pesquisa que se defina enquanto documental. Tal metodologia contribui para a identificação de marcas deixadas pela produção teatral ramalhiana nos contextos em que foi apresentada, para tanto consideramos os resquícios deixados nos recortes de jornais que circulavam no contexto que estamos

213 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

analisando: são críticas teatrais, crônicas e reportagens sobre as apresentações ocorridas na cidade na década de 1970, com forte presença da dramaturga Lourdes Ramalho. Na perspectiva que estamos centrados, adotamos os recortes de jornais que apresentam vestígios dessa apresentação e enfatizam a linguagem dos textos. São recortes que compõem o álbum de Lourdes Ramalho, constituindo as fontes primárias de segundo grau, pois elas estão mais distantes do processo da cena, o que lhes confere, em alguns casos, maior apreciação crítica e analítica, pois que são “vestígios espectadores”, diferente daqueles que estão envolvidos emocionalmente com o trabalho teatral, concebidos como “vestígios atuantes”, em contato direto com a cena (BRANDÃO, 2009).

A feira: linguagem e representação cultural

Para a análise empreendida, aqui, consideramos o uso do repertório linguístico nordestino feito pela dramaturga, uma vez que esse é, provavelmente, um dos aspectos que primeiro chama a atenção do leitor/espectador de A feira. Todavia, reiteramos que na encenação que estamos considerando existem outras marcas que refletem o contexto histórico-cultural em que estão inseridos os personagens e a própria dramaturga e que são fundamentais para a leitura e compreensão da obra, mas diante dos objetivos expostos nos deteremos a reflexão em torno da linguagem. Concebemos a produção ramalhiana sob o rótulo de regionalista, porém, sem escalas valorativas, pois a própria autora já afirmou a relação entre sua produção e os elementos da cultura popular, quando ela busca imprimir em sua produção as marcas do povo que representa: “no texto regional a gente tem de trazer à tona todos esses tipos que nós também conhecemos que são tipos populares e mais a vivência do nosso povo e seu folclore”. (DIARIO DA BORBOREMA, 05/09/1982, p. 2). Sabendo da importância de sua produção e, por escrever um teatro de características marcadamente regionais, Lourdes busca inspirações para suas peças em meio ao povo com quem ela convive, o que acontece em A feira. Em uma entrevista dada ao jornal Correio ela afirma “Quando escrevi “A feira”, o fiz com base nas histórias do povo, que ouvi na feira” (CORREIO, 16/08/1992, p. 5).3 É partir desse contato com aqueles que ela representa que sua dramaturgia não trata dessas realidades na perspectiva do exotismo, mas como algo natural, que é característico do lugar que ela conhece bem. 214 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 13, 14 e 15 de Setembro de 2017 ISSN: 2358-405X ANAIS DO III SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO ─ DRAMATURGIA E A CENA CONTEMPORÂNEA ─

Para que se possa entender melhor a trama, faremos uma breve contextualização da peça. Dividida em quatorze quadros, conta com a presença de três personagens principais: Filó, a mãe; Zabé, a filha; e Bastião, o filho – que compõem uma família marcada pelo choque entre as culturas da zona rural e urbana, vivenciada em uma feira livre do Nordeste. De forma geral, as situações apresentadas são corriqueiras, mas revelam “nas suas entrelinhas situações da degradação da condição humana das referidas personagens” (LIMA, 2007, p. 245). Através do contraste entre os povos dos dois ambientes, expõe-se o individualismo como condição característica do ser humano. Assim, a representação não é, apenas, de uma família da roça que se aventura pela cidade, é, também, uma crítica às desigualdades sociais, um retrato das injustiças daquele contexto, marcado pela repressão dos grupos militares no poder, pois, nela, o palco “torna-se o lugar privilegiado onde o testemunho vivo, ocular e auricular, traz a realidade e memória do povo nordestino, a denúncia dos males sociais, a crítica da injustiça social” (LEMAIRE, 2011, p. 55). Nessa perspectiva, a linguagem é o primeiro aspecto que chama a atenção do espectador/leitor, o que já foi apontado por Lima (2007). Em outros textos da dramaturga também há a exploração de uma variante linguística tal qual a falada pelo grupo social representado. Após uma apresentação de As velhas, em 1975, no Paraná, o jornal O Norte, fez uma reportagem, falando das impressões deixadas pelos grupos da Paraíba que participaram do III Festival de Teatro Amador, em Ponta Grossa-PR. Um dos principais destaques, ao se tratar do texto, ajuda a compreender a interpretação do que estamos tecendo:

“As velhas”, encenado pelo grupo de Campina Grande, com direção de Antônio Câmara, foi uma amostra de linguagem do agreste paraibano, recolhida pela professora Maria de Lourdes Ramalho, que conservou no texto toda a pureza da comunicação dos sertanejos e que para ser atendido pelas platéias do Sul, exigiu inclusive a distribuição de um pequeno dicionário. (O NORTE, 05/11/1975)

O fato é que a linguagem presente nas produções ramalhianas causaram estranhamento em plateias fora do Estado, muitas vezes, por ser tão fiel ao seu lócus de representação, por isso, conforme consta, durante aquela apresentação foi preciso o uso de dicionários para que a plateia fosse capaz de compreender as falas das personagens. Em A feira pode ter acontecido

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o mesmo, mas não se sabe, ao certo, se houve tamanho estranhamento, tendo em vista que os jornais presentes nos álbuns de recorte da autora não fazem referência a essa peça de forma individual, ou com ênfase a este aspecto da produção estética de Lourdes. Ainda segundo uma crítica presente no jornal A União, ao falar sobre a produção ramalhiana é dito que “Em A Feira e Os Mal-Amados, a pesquisa de Lourdes Ramalho para captar corretamente [o] falar [d]o povo sertanejo está mais cristalizada, inclusive com personagens falando de acordo com sua condição social. ” (A UNIÃO, 15/05/1977, p. 16). Através dos Festivais que ocorriam pelo Brasil, Lourdes divulgou suas peças e pôde ser reconhecida nacionalmente, divulgando os falares característicos do Nordeste e as heranças culturais de sua família. A tradição oral dos cantadores e violeiros da qual Lourdes Ramalho advém, influenciou diretamente sua produção artística. Segundo Lemaire (2011) é possível atribuir essas influências às correntes marcas de oralidade em suas peças, no entanto, essas marcas podem ser justificadas também pela constante crítica social que a autora faz através da linguagem lúdica que é característica da tradição oral. A influência dessa origem pode ser identificada em sua produção como um todo, mas, principalmente no segundo ciclo de seus textos, há um diálogo contundente com os folhetos de cordel, que possuem uma linguagem marcadamente oral. Esse ponto de vista pode ser confirmado, também, se observamos, além das marcas de oralidade, o uso de rimas, frequente, na apresentação das personagens.

HOMEM [...] (Canta) Compra um vidro e leva três – é o agrado do freguês.T’aqui um pra cavaleira – outro pro cidadão, outro pro Homem da Cobra – que é amigo do cão. Viva Deus e viva o Diabo – viva um prato de feijão. (RAMALHO, 2001, p. 93)

Em outra cena,

TAPIOQUEIRA (Canta) Pra gente branca e boa – tem beiju de coco pra cabra senvergonho – tem banana e soco. Aqui tem massa puba – que dá papa e angu quem não gosta quer gastar dinheiro – soque ele no... baú (RAMALHO, 2011, p.97) Além da semelhança com as cantigas orais, sobre as quais já fizemos referência, as apresentações desses personagens são as típicas propagandas encontradas nas feiras livres,

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plenas de ditados populares, que têm como função apresentar algum valor moral, e o uso de expressões bastante informais, muitas vezes, de caráter ambíguo, que levam ao riso. Analisando, primeiramente os ditos, é possível encontrar:

ZABÉ Tá vendo? – Costume de casa vai à praça. (RAMALHO, 2001, p. 93)

VERDUREIRA [...] quando num tem quem ensine – mestre mundo ensina. (RAMALHO, 2011, p. 103)

ZABÉ [...] pois no mato se diz: “casamento e mortalha – do/no céu se talha.” (RAMALHO, 2011, p. 106)

LOUCEIRA Tire a mão da peia que a besta é alheia. (RAMALHO, 2011, p. 109)

Esses ditos populares e provérbios identificados nas falas são, para a cultura popular, lições e conhecimentos de outras gerações que devem ser seguidos. São características como essas que colocam a produção ramalhiana no âmbito popular, dialogando com as reminiscências culturais do folclore e da sabedoria do povo. Há também, ainda mais forte, a presença de palavras ambíguas, principalmente, nas falas de Bastião, são expressões que provocam o riso, notadamente por conta das variantes marcadamente regionais, que dificilmente seriam compreendidas por quem não as utiliza, por exemplo: “peada”, “tesa”, “aprontamento”, “distração”, “muafo”, “mondrongo”, “cabrichola” “ronconcom”, “gaiteira”, “chaboqueira”, “modeza”, “enxerido”, “beradeira” “mangangá”, “labacé”, “atrasa-bóia”, “judeuza” etc... Em relação às ambiguidades, as falas de Bastião são as mais marcadas, principalmente por adotarem, com frequência, uma conotação sexual.

BASTÃO Arreganhe aí sua tapioca pra eu ver se tem coco dentro. TAPIOQUEIRA Mande sua mãe arreganhar primeiro. BASTIÃO (Observando.) Ô mulher da tapioca roxa! TAPIOQUEIRA Mais roxa é a da sua mãe, num já disse? (RAMALHO, 2011, p. 98)

Ou ainda, quando Bastião é agredido pelo Rapa.

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BASTIÃO Eu tomo esse cacete. RAPA (Cutucando-o com o cassetete) Toma uma de agrado. BASTIÃO Mãe, ele tá enfiando o pau em eu. – Ai seu cara de veado. (RAMALHO, 2011, p. 112)

Esses duplos sentidos, expressos pela fala de Bastião, são recorrentes na dramaturgia de Lourdes Ramalho, e são, também, marcas da influência das tradições orais nas produções da dramaturga. Além disso, a “linguagem chula, o deboche e a safadeza constituem elementos importantes dessas brincadeiras sérias das duas autoras, mais ainda dentro dos códigos da sociedade burguesa hoje [...]” (LEMAIRE, 2001, p. 77). Não se pode negar que esse duplo sentido, apesar de tom chulo, provoca o riso dos leitores/espectadores, e essa deve ser a pretensão da autora, para fazer críticas que, naquele contexto, poderiam sofrer retaliações,

Esse riso libertador, abafado na medida do possível pela cultura burguesa e pelo ensino formal, compõe-se, no fundo de dois risos que distingue e pratica o teatro da tradição judaica, a saber: o riso de alegria, do humor, da brincadeira (sâkhaq em hebreu) e o riso da zombaria (lâag em hebreu). Lourdes Ramalho sabe que estes risos subversivos, fundamentalmente anti- burgueses, permitem dizer a verdade sobre o passado e a vida e imprimi-la pela empatia na alma do público. (LEMAIRE, 2011, p. 77)

Identificamos que as conversas entre as personagens estão envoltas em um tom jocoso, com frequência, ainda que façam críticas a algum comportamento de outro personagem ou de um fato relacionado à realidade social em que vivem. Tendo em vista o contexto de produção da peça, o burlesco pode ser compreendido como uma estratégia da autora para transgredir as regras sociais de forma subjacente: é o caso da conversa entre Zabé e Filó sobre o comportamento dos homens em relação às mulheres. Ao falar da relação entre os sexos, Zabé afirma que os homens não se preocupam mais com as mulheres, nem mesmo em fazer um ato de gentileza; Filó, por sua vez, responde à filha dizendo que eles podem não ligar para as mulheres, no sentido de ter algum cuidado, no entanto, ligam “para outras coisas...”, assim, pelo riso, acionado com a fala de Filó, a autora reforça a crítica à postura dos homens que havia sido feita momentos antes. Filó diz à filha,

FILÓ Pode num ligar pra umas coisas, mas para outras ... Num viu quando a gente foi se assubir? – Você, nem tanto, que tava com calça de homem, mas

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eu, por mais que arrepanhasse a saia entre as perna, os que tava em baixo chega descangotava o pescoço – vê se me pegava descomposta ... ZABÉ Ora, pernas são canelas – merda pra quem olha pra elas. FILÓ É, mas se a gente descoida... ZABÉ Ô besteira – a senhora num tava forrada? FILÓ Num é que eu também me esqueci? – No caminho foi que eu me lembrei que a danada da caçola, desde o ano passado, ficou em casa de comadre Severina... (RAMALHO, 2011, p. 92)

A linguagem utilizada por Lourdes Ramalho chama a atenção de todos aqueles que leem ou assistem seus espetáculos, é através dessa linguagem simples que a dramaturga faz suas críticas à sociedade, uma característica dos textos confirmada por Lourdes:

LR – Eu acho que é uma maneira mais viável de levar a mensagem ao público. O público não gostaria de receber certas coisas com seriedade, então, qualquer coisa que desperte o riso se entende muito mais. É como se diz: “Sobre a nudez fria da verdade, o manto [diáfano] da fantasia”. Então, a gente brinca e torna tudo mais picaresco, com o intuito que não canse a plateia. A plateia recebe muito melhor certas coisas que a gente tem de dizer se elas vêm envoltas no humorismo. (REYNALDO, 1977, p. 16)

Considerações Finais

A produção de Lourdes Ramalho traz à tona uma linguagem representativa do Nordeste, com características enfáticas do povo sertanejo retratada em suas peças, principalmente em A feira. Por outro lado, é válido ressaltar que a dramaturga não vivencia as lutas dos povos representados em sua dramaturgia, pois a autora faz parte de uma camada social oposta. Quer dizer, Lourdes era casada com um homem pertencente à elite, mas, ainda assim, transita entre esses dois cenários socioculturais, o que faz com que ela seja considerada uma escritora bicultural, assim como outros escritores de sua geração, como Ariano Suassuna. Diante disso, é importante atentar para o fato de que a dramaturgia ramalhiana está inserida no contexto nordestino e, portanto, é passiva de interpretações e concepções que a marginaliza ao compreenderem a produção de cunho regional como inferior, quando comparada a literatura que se quer nacional. Assim, é importante reconhecer o uso de uma variante regional expressiva, como símbolo de representação de um dado contexto, como aquele apresentado na peça, pois essas produções e essas marcas chamam a atenção da esfera cultural para a presença e representatividade de determinadas produções como constituintes

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de um sistema literário constituído, quase exclusivamente, pela produção de um eixo dominante.

Referências

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Textos pesquisados em arquivos de jornais

DINOÁ, Ronaldo. Entrevista: D. Lourdes Ramalho: uma mulher a serviço da cultura teatral campinense. Tudo, suplemento dominical do Diário da Borborema, n. 350, 05 de setembro de 1982, p. 2-3. MOURA, Helder. A base ibérica do nosso teatro. Correio. Paraíba, 16 de agosto de 1992. p. 5.

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Peça “Os mal-amados” fará sua temporada no teatro Sta Roza. O norte. João Pessoa, sábado 23 de abril de 1977. REYNALDO, Carmélio. Sobre Os Mal-Amados e outras peças de Lourdes Ramalho. Correio das Artes, Suplemento do jornal A União, ano II, n. 44, João Pessoa, 15 de maio de 1977, p. 16.

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