Colóquio: Arte Partilha do Sensível

Título: Memória afetiva, redemocratização e o horizonte pedagógico na Coleção TABA: histórias e música brasileira para crianças (1982-1986). CAMILA LORDY COSTA1

A MPB relacionou e diferenciou um grupo específico de artistas e intelectuais atuantes na oposição ao regime militar através das lutas culturais dos anos 60, 70. No contexto da “resistência democrática” dos últimos anos do regime, a MPB fez a trilha sonora da abertura política conforme análise de Marcos Napolitano (2010) e foi usada para transmitir ideias- imagens, idéias-força e ideologias durante o processo de redemocratização, como legado que ultrapassou o campo estético transformando-se numa instituição sócio-cultural. Nos anos de chumbo, boa parte da literatura infantil refletiu a preocupação com a perda dos direitos civis e conseguiu driblar os censores e circular ideias sobre justiça, liberdade e democracia já que passava desapercebida como “coisa de criança”. Segundo Maria Clara Machado, autora de três fascículos da coleção e vencedora do prêmio Hans Christian Andersen em 2000, o Nobel da literatura infantil mundial, “a censura não nos impediu de criar nem se exerceu sobre nós (...) nada que se comparasse às dificuldades com a censura então enfrentadas no Brasil pela imprensa, pela música popular, pelo cinema, pelo teatro, pela literatura para adultos.” 2

Na década de 80, durante o período de abertura democrática, as estratégias de venda da indústria cultural desempenharam importante papel na “educação sentimental” e política de uma geração inteira de jovens incentivados pelo consumo mercadológico de bens culturais. A IKM Relações Públicas, empresa contratada para divulgação, promoção institucional e comercial do produto TABA, descreve a coleção no item dos objetivos de comunicação como um lançamento que “vem estabelecer uma linguagem mais direta com as crianças, utilizando para isso, histórias desenhos, músicas e criatividade nacionais. (...) o produto inédito no mercado brasileiro, vem preencher uma importante lacuna no segmento infantil, atualmente

1 Mestranda, UNESP, Campus de Franca

2 Entrevista da autora em https://tvbrasil.ebc.com.br/exilio-e-cancoes/episodio/ana-maria-machado-e-suas- memorias-do-exilio consultada em 24/07/2020.

2 quase que suprido somente por materiais importados e adaptados.” 3 Para esse objeto de análise, supomos que a arte engajada do passado, aquela que fez uso da “boa palavra”, da “mensagem conscientizante” em defesa da liberdade de opinião, denunciando a violência política, as voltas com o problema do público a ser atingido4 e querendo alcançar as massas, ganhou um segmento inédito no mercado. Já dentro do processo de consolidação do mercado de bens culturais, esta arte, através das histórias brasileiras, conseguiu circular e ampliar a “boa palavra” e o mercado para MPB atingindo o público consumidor mais jovem de todos, a criança. Porém, inserida na indústria cultural, selecionou um grupo de consumidores com poder aquisitivo, aqueles que poderiam comprar os fascículos nas bancas de jornais e dispor de uma vitrola como opção para momentos de lazer, educação e cultura, designados pela IKM como “nosso público alvo A e B”.

A Coleção TABA de histórias e música brasileira, publicada pela Editora Abril de 1982 à 1986 é um produto híbrido de literatura infantil, música popular e folclórica, ilustrações e propostas de brincadeiras teatrais que articula a construção de um imaginário de pertença à nova cultura nacional renascida com a abertura democrática. A coleção reuniu, mesmo que indiretamente, as linguagens relativas às cinco artes estético-ideológicas que configuraram a resistência cultural: música popular, teatro, literatura, artes plásticas e cinema, já que a trilha sonora fez uso de um conceito da sétima arte, o leitmotif 5, para caracterizar os personagens. Foram 40 fascículos de histórias ilustradas e narradas num disco de sete polegadas com efeitos sonoros, locuções, gravações originais dos artistas da MPB e novos arranjos para as antigas toadas, cantigas de roda, trava-língua e parlendas da tradição oral, compondo uma

3 transcrição adaptada dos registros do CONRERP 2ª região – São Paulo/ Paraná sobre planejamento das ações de marketing para o lançamento da TABA. Disponível em: https://web.archive.org/web/20101226105034/http://www.conrerp2.org.br/index.php?mact=News,cn tnt01,print,0&cntnt01articleid=446&cntnt01showtemplate=false&cntnt01returnid=127 consultado em 26/07/2020

4 As formas mercantilizadas da canção para o grande público massivo sempre foi uma questão para a “ação histórica efetiva” das propostas para uma cultura mais nacional e mais popular dos artistas engajados. (NAPOLITANO, 2017)

5 Um motivo ou frase musical ou ainda uma canção que representa um personagem ou uma situação recorrente. ROCHA Natália Caramel. As relações entre música e cinema em romances Históricos, IA/USP, 2016 . Consultado em 25 jul/ 2020.

3 trilha sonora com várias técnicas empregadas em estúdio. Vale lembrar que a coleção Disquinho (1960-1970), cuja proposta semelhante de histórias em vinil era anterior a coleção TABA, tinha um tratamento mais homogêneo e orquestral da trilha, feita com arranjos de Radamés Gnatalli e as composições e adaptações de . Queremos apontar para uma busca social por formas mais complexas no uso da tecnologia, um processo de complexidade que é interno às forças produtivas dessa sociedade em 1980, conforme as proposições de Raymond Williams. Um novo processo de comunicação estabelecido entre a obra e seu tempo histórico como “relações entre elementos em um modo de vida global” (WILLIAMS, 2001: p. 63) que são frutos de transformações maiores.

No produto TABA, as canções tornaram-se importantes articuladoras na triangulação entre as palavras do texto, muitas vezes escrito para servir uma música específica, e as ilustrações, o que ampliou a experiência estética na recepção das narrativas. Nesse contexto, em que o contato visual da criança com a contadora ou contador de histórias não ocorre, perdeu-se a cumplicidade do olhar mas ganhou-se a trilha sonora. A MPB, particularmente, articulou uma dupla recepção do produto pois incluiu os adultos no direcionamento do conteúdo de música popular brasileira ainda que admitindo o espaço do imaginário e da criação próprio da criança. É notável que entre as estratégias de mídia, a empresa IKM fez esforços para veicular o lançamento em programas de variedades como “o Show da Manhã” da Rádio Jovem Pan, o “Programa Fausto Canova” da Rádio Excelsior e ainda a “TV Mulher” da Rede Globo. Outra evidência da inclusão do adulto está nos pontos de capital importância das estratégias de mídia estabelecendo que, “pela novidade, impacto e, acima de tudo, pelo aproach que o produto traz - histórias brasileiras e músicos brasileiros – ele necessita um “gancho” promocional muito forte, dirigido ao público primário e secundário (crianças e seus pais).” 6

Inserido na nova ordem social de modernização da sociedade brasileira, num “capitalismo domesticado”7 (ORTIZ, 2012: p. 212), o vinil de sete polegadas compartilhou

6 Idem, CONRERP.

7 O autor defende que um “passado selvagem” ligado à uma sociedade que buscava seu destino cede lugar à institucionalização na forma de racionalidade e de uma ordenação maior do processo capitalista.

4 uma memória ligada à instituição MPB8 entre adultos e crianças, uma tradição sócio-cultural e um tipo de gosto com critérios vinculados à educação política, estética e sentimental. Mas é necessário fazer a ressalva de que a MPB foi inserida num contexto híbrido, no qual “estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2001) indicando outras formas de recepção da canção enquanto obra. Perguntamos então, o que se ganha e o que se perde quando a canção está submetida à história? Quais são as características do “diálogo-decodificação- apropriação” nesse novo espaço cultural em que a MPB divide o protagonismo com a literatura infantil?

Os artistas e intelectuais envolvidos no projeto TABA apontaram para uma pluralidade de memórias, entre elas o passado melancólico do atraso rural diante de uma modernidade representada pelo instável, transitório e efêmero. Há evidências nos textos de uma volta no tempo com a finalidade pedagógica de projetar um futuro novo, transformado pela experiência da “arte revolucionária” que queria aproximar o povo, “sujeitos da história”, da construção de uma identidade brasileira através do projeto político e cultural do nacional- popular. Liberdade, Cultura Popular, Tradição, Modernidade, Escravismo Colonial, são conceitos contemplados nas 40 narrativas da coleção TABA que permitem agrupar as histórias de acordo com a temática do enredo. Porém, a construção de representações para além da cultura letrada, pautadas no poder da oralidade, das imagens e da performance corporal dialogando com o imaginário infantil será a abordagem metodológica para relacionar o presente e o passado a partir da premissa analítica de Suzana Sardo (2013) na qual é inerente às ações humanas a diluição das cartografias de saberes e as práticas de interlocuções entre disciplinas. Abordaremos a coleção admitindo que “o acontecimento musical obriga a coincidência entre o ser e o estar, entre o saber e o fazer, entre o pensar e o agir, entre o

8 Conforme esclarece Marcos Napolitano em Seguindo a Canção -Engajamento político e indústria cultural da MPB (1959-1969), mais do que um gênero musical ou movimento artístico, a MPB se tornou “fonte de legitimação da hierarquia sócio-cultural brasileira”, transformando-se numa verdadeira instituição.

5 tempo, o espaço e o lugar” 9 em busca de sentidos diante das transformações ocorridas na representação do nacional na década de 1980.

O projeto contou com um grupo heterogêneo de artistas e intelectuais, pautados pela ética e pelo engajamento político em nome da liberdade democrática, da possibilidade de crítica e de opinião, muito de acordo com os debates de pluralidade estético-ideológicos ligados à resistência cultural das décadas anteriores. Nas escolhas dos profissionais participantes da coleção TABA estiveram artistas reconhecidos e premiados na literatura infanto-juvenil que fizeram parte do grupo de artistas e intelectuais ligados às cinco artes de resistência: a idealizadora e escritora Sonia Robatto, as autoras , Maria Clara Machado, Ana Maria Macchado, Joel Rufino dos Santos, os ilustradores Alcy Linares, Paulo Caruso, Walter Ono, Michele Lacocca além dos artistas Nara Leão, , , e Tom Zé entre outros.

Durante a ditadura militar, a cultura foi o ponto de convergência para a crítica ao regime e a música popular brasileira foi inserida num “sistema” que interligava autor-obra-público- crítica que, em muitos casos, admitiu o engajamento do trabalho intelectual através da conscientização política pela palavra. Pensamos que essas experiências musicais do passado forjaram um horizonte de expectativa10 a partir dos sentimentos de esperança, de desejo por liberdade e a consciência da luta de “todos” contra um inimigo comum. Nesse projeto, o conteúdo das narrativas junto com a trilha sonora apontam para a possibilidade de construir uma história futura em bases democráticas e para o desejo de aproximar as crianças da cultura brasileira e da estética musical que contribuiu para resistência civil e para a abertura política na década de 1980. Através da mistura das diferentes linguagens artísticas elaborou-se uma maneira lúdica de engajamento na cultura do nacional, cujos objetivos, ao menos na área de

9 A autora quer demonstrar que a música define um universo fragmentado, descontínuo e plural em que sua existência depende da coexistência, interação, intersubjetividade e diálogo. (p. 71)

10 Expressão usada por Heinhart Kosselleck em “Futuro Passado” para uma categoria de conhecimento capaz de fundamentar a possibilidade de uma história futura a partir de uma experiência passada. (p.306)

6 marketing, ambicionaram obter “o aval do Ministério da Educação, reforçando seus aspectos didáticos” 11

Nos interessa investigar mais de perto a natureza corporal da experiência musical e trazer para o foco de análise o afeto operando na transmissão dos valores caros à geração dos pais, entendido como a capacidade de “um corpo de agir, se engajar, se conectar, de modo que autoafecção está ligada ao auto-sentimento de estar vivo – isto é “vivacidade” ou vitalidade”12. Para além dos horizontes de expectativa dos pais, a investigação da afetividade é a premissa teórica para interpretar os efeitos para além das representações que o som produz, a música produzindo subjetividades, capacidades corporais, identificações e atuando para “criar atmosferas particulares através da indução, modulação e circulação de determinados estados de ânimo, sentimentos e intensidades, que se sentem, mas ao mesmo tempo, não pertencem a nada em particular”13. Com o afeto, supomos uma outra forma de engajamento, mais específica do que a “a atuação do intelectual através da palavra, (...) colocada a serviço de causas públicas e humanistas”, ou mesmo das “artes que apelavam para aos sentidos corpóreos e emoções, através de imagens, sons e ritmos” (NAPOLITANO, 2017, p. 112) dos artistas de esquerda, configurando outra estrutura para a recepção musical na década de 1980.

De forma breve, tentaremos aplicar a premissa afetiva que pretendemos investigar. No fascículo 39, a história da “Chapeuzinho Vermelho” foi reescrita como peça de teatro em 1957 e em 1983, ganhou uma trilha bossa nova, a “mais perfeita tradução” da modernidade na música popular brasileira, nas palavras de Caetano Veloso em Verdade Tropical. Além de conter o fonograma original de “Lobo Bobo”, cantado por João Gilberto no LP Chega de Saudade, logo na introdução, ouve-se a cantiga de roda “Ciranda Cirandinha” arranjada com

11 Idem, CONRERP

12 CLOUGH, Patricia Tricineto. A Virada Afetiva: teorizando o social. (Tradução por Lucas Faial Soneghet) Blog do Labemus, 2020. [publicado em 16 de julho de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/07/16/ a-virada-afetiva-teorizando-o-social-por-patricia-ticineto-clough, consultado em 24/07/2020.

13 VILA, Pablo e MOLINERO, Pablo. Cantando los afectos militantes: las emociones e los afectos en dos obras Del canto folklórico peronista e marxista de los’ 70 (p. 12)

7 doze acordes configurando uma estética típica da bossa nova. A estratégia de captação usada pela trilha, entendida aqui como sedução do ouvinte na troca comunicativa, convidou a criança a apreciar, a fazer analogias e comparações com uma cantiga conhecida enquanto apresentou a novidade do arranjo bossa nova. Na canção “Lobo Bobo”, o conteúdo dos versos interpretado por João Gilberto foi transformado pelo contexto da história e o lugar de memória daquilo que se tornou um “produto brasileiro de exportação dos mais refinados e requisitados no exterior”14 ganhou um novo formato de escuta, distante da ideia original da composição de Bôscoli e Carlos Lyra da oferta de amor do Lobo derretido pela Chapeuzinho, e assim, pôde ser compartilhado entre gerações. Quais sentimentos poderiam ser atribuídos à escolha da bossa nova na história da “Chapeuzinho Vermelho” modernizada, sendo os versos da canção original uma narrativa diferente da adaptação feita por Maria Clara Machado? Onde se encaixa o medo do Lobo Mau numa canção que fala de um Lobo Bobo e não dialoga com os momentos tensos da história? São os afetos dos adultos no comando, “em prol da música popular brasileira de “qualidade” e contra a “radiodifusão comercial e à influência deletéria da música estrangeira” (GARCIA, Tânia. 2017, p.64) presente na concepção de uma cultura nacional-popular militante da tradição da MPB? Sendo assim, a música adulta é o sedimento para estabelecer a pertença à uma coletividade? Os caminhos do afeto mantiveram o sentido atribuído para o repertório da MPB e do folclore das décadas anteriores ou, na década de 1980, houve uma nova construção para os significados cognitivos e para os estímulos emocionais dessas canções? Levantamos a hipótese de que a trilha não corrobora para o conteúdo emocional das cenas de maior tensão e talvez aproxime os afetos da chave da “generalização de uma experiência histórica” (GARCIA, Walter. 2001:p.168) de promessa de felicidade que a estética da bossa nova, eterniza como um “momento feliz de nossa história”15, conforme análise de Lorenzo Mammì, tanto para os pais como para os filhos.

É fato que na década de 1980 houve uma nova abordagem da cultura popular vinda do esvaziamento da “cultura de esquerda” nacionalista assim como uma leitura diferente dos

14 MEDAGLIA, Julio. Balanço Bossa Nova, p.70

15 MAMMÌ, Lorenzo. “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”. Novos Estudos, nº34. São Paulo, CEBRAP, nov.1992, p. 64

8 folcloristas de antigamente que buscavam a preservação do “autêntico” para uso do erudito no nacional conforme as apropriações intelectuais da música em 1950. É fato também que no período de “abertura”, os jovens universitários urbanos aproximaram-se mais da cultura popular comunitária, “fora dos circuitos de mercado, (...) como geradora de subjetividades próprias, singulares do “ser povo”, sem que nenhuma hierarquia intelectual ou cultural fosse lícita para sua interpretação ou apropriação” (NAPOLITANO, 2017, p. 324). Tendo em vista as mudanças do “lugar do povo” na produção cultural, queremos investigar quais afetos contribuem para os filtros técnicos e estéticos do “nacional-popular” mais cosmopolita e se houve algum reflexo das mudanças que anunciavam visões menos idealistas em relação a cultura popular na base afetivo-pedagógica da coleção TABA de histórias e músicas brasileiras.

Conforme os levantamentos de Napolitano, a generosidade dirigida para a comunidade popular, a esperança e a crença em um futuro melhor são sentimentos que pertencem à “nova esquerda” e aos novos grupos de oposição ao regime. Os intelectuais jovens estavam em busca de encontrar a “raíz” da comunidade popular democrática, desconstruindo a ideia do intelectual e do artista como “heróis da resistência” que previamente conceituavam o “ser povo” em prejuízo das experiências diretas de interação prática com as comunidades e de grupos culturais populares. No começo da década de 1980, houve uma valorização por parte dos estudantes universitários do Samba de Bumbo e da cultura caipira em São Paulo assim como do jongo fluminense, da oralidade nas comunidades afro-brasileiras de quilombolas ou da busca por experiências xamânicas em comunidades indígenas. A valorização das raízes populares, assim como a pluralidade das novas demandas de identidade podem estar incluídas ou serem pensadas nessa coleção?

A coleção materializou o desejo de construir uma memória e conjugar as narrativas com a música popular para construir um ambiente de escuta para a transmissão de ideias. Importava falar do país a partir da perspectiva da pluralidade cultural inerente a uma geografia e a uma história colonial brasileira. Vamos investigar se essa pluralidade regional e cultural esteve atrelada às ideias de uma cultura de esquerda que pertenceu à “corrente da hegemonia” e, nesta perspectiva, só aumentou o repertório de “brasilidade genérica” própria de um nacional

9 agora bastante diluído pela indústria cultural. Por outro lado, há a hipótese de valorização do regionalismo e das singularidades do “ser povo” como na história do Rio Grande do Sul “Salamanca da Jarau”, na história do Nordeste “Severino faz Chover”, na história mineira “Zé Prequeté” ou na explicitação da violência da herança escrava como na história “O mistério de Zuambelê”.

Há um conceito afetivo na coleção que quer apresentar a liberdade como um sentimento conquistado e compartilhado por um coletivo, a proposição de um afeto transversal em forma de recado para as novas gerações. Não por acaso, o primeiro fascículo “Marinho, o Marinheiro”, escrito por Joel Rufino dos Santos e ilustrado por Michele Lacocca16, conta a história de Marinho decidido a tirar o boné e usar um passarinho na cabeça, contrariando o comandante. Ficou de castigo, preso no navio por desobedecer as ordens do superior mas não consegue controlar os próprios pés que saem da embarcação e levam o marinheiro para viajar no ritmo do bumba-meu-boi até a Bahia. Ao som de “Gaivota”, uma canção feita durante a prisão em Florianópolis pelo compositor e intérprete Gilberto Gil no ano de 1976, Marinho volta com uma “passarinhada” e o comandante acaba convencido de que usar “gaivota é muito mais bonito! Boné é muito sem graça”.

Narrador - E assim, o navio foi navegando de porto em porto, descobrindo terras, mundos, mares, com marinheiros felizes, cada um com seu passarinho na cabeça, cantando... (grifos nossos)

Nessa história, o marinheiro “não teve medo da raiva do comandante” mesmo ficando muito tempo de castigo e foi fiel à sua escolha para no fim ver sua liberdade transformar-se em nova “lei” para todos os marinheiros. O horizonte de um futuro melhor para todos, pautado por leis mais democráticas e liberdade de opinião é a mensagem, ou a “moral da história” que poderia ser interpretada pela condução da narrativa e da canção de Gil. Muitas histórias da coleção TABA trabalham com a liberdade enquanto afeto e conceito, literal ou

16 italiano chegado ao Brasil em 1960 que assina apenas Michele na coleção. Disponível em https://globaleditora.com.br/autores/biografia/?id=1628 consultado em 27/07/2020.

10 alegoricamente: 1. Marinho Marinheiro, 5. Bom dia todas as cores, 7. Folia dos Feijões, 8. O Barquinho, 14. Saci Pererê na mata escura, 15. Malandragens de um Urubu, 17. Filhote de Trem, 24. O rei que não sabia de nada, 2. Sapo vira rei vira sapo, 4. Tião das Selvas, 27. Mistério de Zuambelê, 29. A Bruxinha que era boa, 40. Romeu e Julieta, para citar algumas.

Para finalizar, faço uso do conceito de espaço heterotópico enquanto um “lugar outro” no sentido empregado por Suzana Sardo17 mas aplicado no espaço do afetivo enquanto um lugar de memória, espaço aberto entre gerações através do compartilhamento da canção. Cito uma passagem de Foucault para ilustrar a proposta de analisar essa coleção na perspectiva das transformações ocorridas nas representações do nacional incluindo o “giro do afeto” para desenvolver na criança o sentimento de pertença à uma cultura brasileira. Uma espécie de utopia, abordada aqui como “um lugar outro”, realizada no interior dessa cultura da memória da resistência, um espaço para imaginação na infância conduzido pelo “lugar afetivo” da canção na experiência de um tempo vivido pelos pais.

“Bordéis e colônias, esses são dois tipos extremos de heterotopia. E se se imagina, enfim, que o barco é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e é entregue, ao mesmo tempo, ao infinito do mar, e que, de porto em porto, de bordo em bordo, de bordel em bordel, vai até as colônias buscar o que elas guardam de mais precioso em seus jardins, vocês compreenderão por que o barco foi para a nossa civilização, desde o século XVI até nossos dias, ao mesmo tempo não só, evidentemente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso que eu falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio, essa é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos definham, a espionagem substitui a

aventura, e a polícia, os corsários.”18

17 A autora, refere-se as ações desenvolvidas por “projetos acadêmicos, iniciativas individuais de animadores culturais, artistas e educadores, etc, frequentemente em articulação com a Associação Cultural Moinho da Juventude (...)” para divulgar a cultura de origem dos moradores do Bairro da Cova da Moira em Lisboa.

18 (grifos nossos) Conferência proferida no Cercle d'Études architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente em Architecture, Mouvement, continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9. Tradução de Ana

11

FONTE:

Coleção TABA: histórias e músicas brasileiras, https://www.youtube.com/playlist?list=PL20A010A00A392A9D

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