32º Encontro Anual da Anpocs.

GT 19. Entre fronteiras e disciplinas: estudos sobre África e Caribe.

Memória e identidade nas comemorações Herero na Namíbia.

Josué Tomasini Castro Mestrando em Antropologia Social Universidade de Brasília (UnB)

Resumo No presente trabalho pretendo apresentar algumas reflexões sobre as celebrações do Dia Herero realizadas anualmente desde de 1924 em Okahandja no norte da Namíbia. Estas comemorações são marcadas pela presença massiva dos maiores líderes herero ainda vivos que, reunidos com os demais, percorrem um trajeto historicamente estabelecido (acredita-se que este tenha sido o caminho percorrido em 1923 quando do enterro de Samuel Maherero, na época chefe supremo dos hereros) que termina nas honrarias prestadas diante dos túmulos de Tjamuaha, Maherero e Samuel Maherero. No trajeto, as mulheres usam seus vestidos vitorianos e muitos dos homens utilizam os uniformes do antigo exército alemão, colonizadores da região até o fim da segunda guerra mundial. Pretendo, enfim, me aproximar destas realidades etnográficas procurando relacionar as noções de memória e identidade.

“Finally it’s over ”, me disse Goliat enquanto sentava exausto em um banco a minha frente. Ele havia praticamente coordenado grande parte do evento. Eu também me sentia exausto, havia estado em pé e no sol pelas últimas oito horas tentando ao máximo manter-me atento para tudo que ocorria a despeito de minha fome e desânimo. Era o fim da tarde do dia 24 de agosto de 2008, um domingo, o último dia das já “tradicionais” comemorações herero em Okahandja, situada à 70km de Windhoek, capital da Namíbia, ao sul do continente africano. Há 85 anos o corpo do primeiro chefe supremo herero ( headman ) Samuel chegava nesta cidade para ser re-enterrado ao lado de seu pai, Maharero, e seu avô, Tjamuaha. Seu corpo foi recebido com grande respeito e clamor, o filho voltava aos pais ao mesmo tempo em que inspirava o renascimento de uma consciência e orgulho nacional entre um povo que esteve muito perto de ser extinto no curso de sua história. (van Rooyen, 1984, p. 74). Um ano depois instituiu-se o dia 26 de agosto 1 como a data oficial para as visitas aos túmulos destes e, mais tarde, outros líderes hereros. Muitos significados foram atribuídos a tais comemorações e meu interesse nelas é de entender qual o papel que estas podem cumprir na construção de determinada identidade herero. Após uma primeira experiência com este mesmo grupo entre o final de 2005 e início de 2006 em Okondjatu, um vilarejo herero à quase 300km da capital (onde trabalhei com as relações entre o

1 A definição das datas exatas da comemoração dependem de cada ano: “ In January 1935 the Hereros reached na agreement with the Administration concerning the day on which they would hold their annual ceremonies at the ancestral graves. ‘They all agree that the day should be the 26 th August when this date falls on Sunday, but when the 26th August is a weekday, then the day of access is to be the first Sunday after the 26 th August,’ according to the agreement ” (Pool, 1991, p. 207). Ainda hoje, no entanto, parece haver pouco conhecimento sobre essas questões (de fato, isso não parece importar tanto), sendo que neste ano as comemorações foram realizadas no final de semana anterior ao dia 26 de agosto (sendo este, por sua vez, instituído na década de 1960 como o feriado nacional em honra heróis da nação). complexo de ancestralidade herero – o Fogo Sagrado – e o cristianismo protestante no local 2), eu me dirigia agora para uma análise talvez mais arriscada, justamente porquê mais ampla. Mesmo reconhecendo a impossibilidade de fazer de uma estadia de apenas 35 dias algo que se possa chamar “trabalho de campo” insisti em voltar à Namíbia para treinar meu olhar antropológico e tentar diminuir a ingenuidade de muitas de minhas hipóteses quando pensava neste evento e na importância que ele poderia ter na criação de uma forma herero particular de se situar no mundo. É dessa experiência – e eu prefiro chamá-la de “reconhecimento de campo” – que parto para a construção deste texto. Minha melhor ferramenta em campo e a qual utilizo aqui com mais confiança são as minhas próprias observações do evento, as quais, conjugadas com o uso de uma bibliografia sobre o tema, me ajudarão a compor algumas hipóteses mais apuradas sobre as relações entre memória e identidade nesta experiência herero. Elaboro de antemão uma análise histórica e bibliográfica, procurando situar o leitor ao contexto específico do evento. Em seguida exploro as possibilidades daquele olhar antropológico, certamente uma mirada ainda pouco treinada para o evento em questão. Por fim, proponho a possibilidade de utilizar os conceitos analíticos destacados no título deste ensaio como ferramentas úteis na explicação deste evento que tomo aqui como um evento crítico para a experiência de mundo deste grupo.

Percursos históricos Na manhã do dia 23 de agosto de 1923, uma comitiva de 150 cavaleiros e 1.500 soldados – todos devidamente uniformizados –, esperavam na estação ferroviária de Okahandja, distrito do então protetorado sul africano da África do Sudoeste (hoje a independente Namíbia), a chegada do corpo de Samuel Maharero, guardado por seu filho Friedrich Maharero e mais 49 compatriotas vindos de Serowe, a capital do reino de Bamangwato, atual Botswana, para enterrar Samuel – o primeiro chefe supremo herero – ao lado de seu pai (Maharero) e seu avô (Tjamuaha), naquela que desde 1864 era o centro da chefitânia de Maharero, na época, o mais rico entre todos os chefes ( Omuhona , plural Ovahona ) hereros da região.

2 Experiência que resultou na minha monografia de graduação, “Discursos Herero sobre uma África cristã: contribuições antropológicas para o estudo de fenômenos sincréticos” (2006). Eles faziam parte de um dos vários grupos hereros que, sob a liderança de seus chefes, fugiram para o deserto do Omaheke após a batalha de Waterberg no dia 11 de agosto de 1904, que marcou o fim dos 8 meses da participação herero na guerra entre os alemães e as demais sociedades africanas no território. Pressionados pelo exército alemão, eles fugiam para sobreviver e neste trajeto se viram desmantelados, dispersos por toda a região: alguns grupos seguiram para o norte, em direção à Ovambolândia, outros conseguiram cruzar o país até Walvis Bay, território britânica situado na metade do litoral namibiano, alguns foram capazes de viver por longos anos em locais desabitados na região central da Namíbia em meio às montanhas e formações rochosas, por fim, ainda outros – este foi o caso do grupo de Samuel –, após vagarem pelo deserto do Kalahari em busca de fontes de água conseguiram chegar até a também britânica Bechuanalândia (atual Botswana) de onde muitos jamais retornariam (seja por vontade própria ou pela imposição do exército alemão e, depois, pelas forças sul africanas que preferiram manter o grupo de Samuel e seus filhos separados dos demais, devido aos receios de que um possível novo levante anti- colonial voltasse a ocorrer). A guerra, que teve início em janeiro de 1904, em Okahandja, começou justamente com o conflito entre Samuel Maharero e seus liderados contra os alemães devido à motivos não muito esclarecidos. Em uma carta escrita para Sekgoma Letsholathebe, solicitando um local para se assentar com seu grupo em Batawana, distrito da administração britânica, Samuel afirma acreditar que “ the beggining of the trouble was that I gave the English some boys to work in Johannesburg ” (cf. Gewald, 1999, p. 179). Mais tarde, estudiosos procuraram descrever os eventos como produtos de um longo processo de desapropriação de terras e gado por parte do governo alemão (Ngavirue, 1997). Nas palavras de Horst Drechsler ([1966] 1980) “ it was the systematic expropriation of the Herero and their consequent status of rightlessness that impelled them to their national uprising agains German imperialism ” (p, 132). Outras perspectivas acadêmicas propõem ainda diferentes explicações, como é o caso, por exemplo, do recém citado Jan-Bart Gewald (1999), que procurou entender as causas do conflito a partir da frustração das percepções européias sobre o que seria a vida daquelas sociedades com as quais eles se defrontavam e às quais deveriam converter tanto ao cristianismo como à civilização. Esse não esclarecimento desenvolveu-se também na forma como a guerra foi descrita. A tendência dentro da historiografia acadêmica, por exemplo, foi pensá-la como “ the Herero and the Nama wars of resistance ” (Ngavirue, 1997, p. 115). Uma vertente política-militante, no entanto, dizia ter sido esta o primeiro movimento nacionalista namibiano 3, qualificando-a como a primeira guerra da liberação nacional (SWAPO, 1981) ou a grande guerra de resistência (Dierks, 2002) – termos geralmente defendidos por aqueles que buscavam continuidades entre os movimentos pela liberação nacional pós-1950 e as guerras anti-coloniais (ver também Drechsler, 1966; Bridgman, 1981). Uma terceira abordagem iria ainda afirmar que nós deveríamos insistir em descrever tais acontecimentos como “ the Namibian war of anti-colonial resistance ”, ressaltando também que “the use of Namíbia in this case would have geographical and to a lesser degree also political and ideological significance ” (Alexander, 1988, p. 195). Seja qual for a abordagem assumida, é indiscutível o fato de que por mais curta que tenha sido a participação herero efetiva neste conflito (que durou até os primeiros meses de 1908), a reação alemã à resistência herero – tida como uma de tipo “genocída” (Koessler, 2006 & 2007; Stone, 2007) – “ did lead to the complete destruction of Herero society as it had existed prior to the war. As a result of the war, the Herero lost all their rights to land, cattle, chiefs and their own religion .” (Gewald, 1999). Como os hereros existiam antes da guerra, é claro, estaria também aberto à contestações ou pelo menos à ressalvas. Antes da chegada dos primeiros colonizadores na região, o que se entendia por herero – na época (década de 1850) conhecidos como Damara – eram grupos de pastoralistas que, a partir do século XVI chegaram à Namíbia via o rio Kunene, ao norte, e se estabeleceram nas regiões centrais da região, perto do que hoje é Windhoek e Okahandja e também ao norte, nas atuais fronteiras do país com a Angola. Como percebemos nas etnografias de grupos pastoralistas em África 4, tais sociedades caracterizam-se por uma forte descentralização e alta mobilidade, o que se aplica igualmente aos hereros na Namíbia. Assim, a centralização de uma liderança era restrita aos limites do Ozonganda , um assentamento sob a liderança de um Omukuru , chefe de um clã patrilinear 5. O poder deste chefe em concentrar e adquirir aderentes

3 Uma tendência claramente defendida por Terence Ranger em seus artigos “ Connexions between 'Primary Resistance' Movements and Modern Mass Nationalism in East and Central Africa (I e II) ” (1968a; 1968b) e, alguns anos mais tarde, reconsiderada por ele em seu “ The People in African Resistance: A Review ” (1977). 4 Tal são os casos clássicos dos Nuer (Evans-Pritchard, 1993 [1940]). 5 Interessante ressaltar que equilibrando o poder e a autoridade do chefe patrilinear, existiam os clãs matrilineares, chamados de eanda , simbolizado por elementos ecológicos e que complementa o oruzo patrilinear (Gibson, 1956). A sucessão era prescrita pelo lado matrilinear, ou seja, o sobrinho do atual líder deveria liderar o Ozonganda (van Rooyen, 1989). estava completamente limitado à satisfação que os últimos sentiam debaixo de seu cuidado e caso algum lhes desagradasse eles não hesitariam em “votar com seus pés”. 6 Estes grupos compartilhavam uma lingua (o Otjiherero ), bem como certos traços culturais em comum 7. Eles eram, mesmo assim, separados em seis grandes grupos: Ovaherero, Ovabanderu, Ovahimba, Ovatjimba, Ovazemba e Vakwandu. Historicamente, no entanto, percebemos a discriminação de três grupos, separados em grande medida por determinantes ambientais e distribuição geográfica. São estes os Ovaherero, os Ovabanderu e os Ovahimba. 8 Todos aqueles que tratam de alguma forma com a história herero e os concomitantes desenvolvimentos históricos do contato com os europeus, ao falarem em “herero” estão incluindo, debaixo desta categoria todos aqueles grupos, mas tratam, na verdade, da história e trajeto das chefaturas Ovaherero, ou pelo menos a consideram como mais legítima que as demais na construção deste particular projeto identitário aglutinador. Isto parece estar relacionado à situação colonial que começou a se desenvolver no território desde a década de 1840 com a chegada dos primeiros missionários e mercadores e a concomitante apropriação por parte dos hereros, de termos, conceitos e bens materiais daqueles estrangeiros. Isto teria feito com que, antes do fim do século XIX, já existissem grandes assentamentos hereros autônomos, governados por Ovahona muito mais poderosos 9. A nomeação de Samuel Maharero como chefe supremo dos hereros em 1891, nesse sentido, não foi a inclusão meteórica de um novo sistema político em uma sociedade politicamente estática, pelo contrário, ela teria sido apenas mais um desenvolvimento da relação entre hereros e – nesse caso – alemães. A contestação, além do mais (e voltando a ela), não é apenas uma reflexão acadêmica. A própria autoridade de Samuel foi contestada, tanto em relação à sua nomeação como chefe supremo, como também da posição assumida no pratriclã de seu pai quando da sua morte, em

6 Igor Kopytoff (1987) considera com destreza estas questões quando tratando da formação das sociedades africanas. 7 “ Not only do these people speak dialects of a common language, but they also share a number of cultural elements that relate to social organization, preferred economy, cosmology, epistemology and spatio-organization” (Gewald, 1999, p. 12). 8 Dentro de cada um desses segmentos, no entanto, havia uma constante segmentação, uma comparação com o caso Nuer é possível e poderá acrescentar pontos interessantes. No entanto, reservarei tal esforço outro texto. 9 “ By the time of the formal (although hardly the effective) inception of German colonialism in 1884-1885, most Otjiherero-speakers in central were grouped under four main leaders: Maharero, based on Okahandja; Kambazembi at the Waterberg; Manasse Tjiseseta at Omaruru; and Kahimemua, leader of the Mbanderu, a Herero phratry, at Otjihaenena in the east. Of these, Maharero was the most powerful , and it was his son and successor, Samuel Maharero, who was formally made chief of ‘the Herero’ by the Germans in 1891 ” (Wallace, 2003, p. 357). 1890. Da mesma forma a nomeação de (que foi apontado por Samuel como seu representante na Namíbia após a fuga de 1904), em 1925, ao cargo de chefe sênior de todos os hereros, foi igualmente contestada, causando conflitos internos nesta grande e larga categoria (“hereros”). Temos então que a criação de uma identidade herero, tal como é descrita por diversos autores se dá a partir da perspectiva Ovaherero que, escondida sob a categoria “herero”, pretende definir e congregar um único projeto identitário. Tanto como um passado estático e tradicional, o desenvolvimento dessa ideologia herero moderna está aberta à contestações entre aqueles sobre os quais esta categoria pretende abranger. Voltemos ao fim da guerra, quando (1907-8) já não existiam forças “nativas” organizadas que pudessem se opor às investidas alemãs. Aqueles que participaram da guerra haviam sido dispersos e sofrido fortes baixas em seus contingentes, enquanto que aqueles – como os Ovambo – “poupados” durante a guerra, se viram forçados à migrações para trabalhar para o desenvolvimento da colônia alemã que agora padecia com poucos recursos e – como alguns políticos alemães previram durante os massacres – pouca mão-de-obra. Seguem-se, assim, oito anos (1907-1915) comumente descritos “ as a time of African suffering and misery ” (Prein, 1994, p. 100) ou, como Horst Drechsler ([1966]) descreveu, a época “of the peace of the graveyard ”. Outros estudiosos, no entanto, analisando alguns acontecimentos desse período, procuraram destacar as formas de resistência anticolonial silenciada e criativa – “by paying close attention to the complex nature of consciousness as well as the various means involved in resistance ” (Prein, 1994, p. 121). Esta consciência teria sido expressa na apropriação, por parte dos jovens da época, sobreviventes da guerra e mão-de-obra barata, de itens e idiomas europeus como armas no difícil contexto no qual eles se encontravam, criticando, assim, a dependência dos mais velhos das constantes súplicas ao suporte colonial 10 . Dessa forma, estes jovens demonstraram que “ the resistance of the ruled does not only grow out of the barrel of a gun, but runs the gamut from ‘material’ to ‘symbolic’, from gun to top hat ” (Prein, 1994, p. 101).

10 “ Contrary to the opinion of many European observers, however, Africans did not simply mimic European culture when they wore European clothes or sang German songs. Similar to Africans pugnacious use of Christian idioms, they frequently employed European items as satirical weapons that were directed more against black authorities than whites ” (Prein, 1994, p. 117). Os trabalhos de Clyde Mitchell (1956) e Terence Ranger (1975) sobre as sociedades de dança Beni no sudeste africano e o trabalho de Fabian (1995) sobre a encenação de uma peça na Zâmbia, são um bom ponto de partida para tratar destas questões. Estas atitudes, conjugadas às constantes fugas dos trabalhadores das fazendas alemãs geraram um certo ar de suspeita de que tais grupos estariam reorganizando-se para reiniciar as lutas anti-coloniais. No entanto, mais do que insurgências anti-coloniais, aquelas pessoas estavam preocupadas com demandas mais imediatas. 11 Foi com a expectativa de que essas demandas fossem respondidas que, com o início da primeira guerra mundial, hereros e a maioria dos grupos no território se juntaram aos sul-africanos nos confrontos com os alemães. Logo após o primeiro ano de guerra, a ainda África do Sudoeste passou às mãos da União (sul-africanos e britânicos, ou talvez melhor, britânicos via sul- africanos) que, de saída teve de lidar com uma população alemã hostil 12 e uma população africana potencialmente hostil. Assim, ao mesmo tempo em que temia uma tentativa alemã de re-introduzir seu governo, a União precisava manter ao seu lado as populações africanas. No intuito de levar isso a cabo procurou-se tanto enfatizar a ineficiência alemã para governar o território (esforço que culminou na escrita de relatórios sobre a forma como os alemães tratavam as sociedades por eles subjugadas, mais tarde compilados no que ficou conhecido como Blue Book 13 ), quanto reproduzir uma política colonial mais conciliatória com as populações locais. Assim, acreditando nas promessas de auto-determinação e re-apropriação dos bens perdidos durante o governo alemão – e aproveitando este período de transição, marcado por fracas “exigências” coloniais –, vários grupos que haviam migrado para outros territórios durantes a guerra de 1904 e o período de miséria que se seguiu à 1907, começaram a retornar ao território: “Namibians in general and Herero pastoralists in particular were quick to use the opportunity to recoup some of the losses suffered under the Germans, both in terms of acquiring means of productions and recreating new social and political structures on the shattered foundations left after the 1904 extermination campaign conducted against the Hereros. (...) Hereros from all over the territory started to move towards Okahandja, the former centre of the Paramount Chiefs ” (Werner, 1990, p. 479).

O processo de gradualmente se re-estabelecer nas suas terras “ancestrais” foi acompanhado também “ by concerted attempts by elements among the Herero to reorganise

11 Bom ressaltar que o aparato colonial alemão pós-1907 “ was hardly determined by legislative debates among the colonisers. Instead, Africans and Germans negotiated the structure of colonial society in their daily confrontations ” (Prein, 1994, p. 104). 12 Para um estudo mais detalhando (porém pouco etnográfico) sobre a situação dos alemães após a perda do território ver “ Creating Germans Abroad. Cultural Policies and National Identity in Namíbia ”, escrito por Daniel Joseph Walther, 2002). 13 Para uma revisão anotada do mesmo ver “ Words Cannot be Found: German Colonial Rule in Namíbia ”, publicado em 2003, por Jeremy Silvester e Jan-Bart Gewald. themselves on an ethnic basis as a more coherent rural community ” (ibid, p. 480). Nesse sentido, parte daqueles movimentos tidos como “mímicas” do exército alemão tiveram um papel importante. Tal foi o caso do movimento Truppenspieler (“brincando de soldado”). Com suas origens traçadas à metade da década de 1890 – quando Samuel Maharero distribuiu lenços de chapéu vermelho aos jovens de seu exército –, o movimento como tal iniciou- se apenas depois da derrota herero em 1904, sendo reportado pela primeira vez apenas em 1916 como uma organização perigosa à autonomia da União: “in 1916 (...) farmers had complained about labourers drilling at night, and after enquiries the military magistrate in Okahandja found that workers in the ‘neighbourhood are all in touch with the movement’ ” (Werner, 1990, p. 482). Sua estrutura e prática era militar. Cada distrito tinha seu próprio regimento, com nome próprio, especialidades e seus próprios líderes. O movimento, como tal, representava uma estrutura para unificação herero, mais tarde desenvolvendo-se também como uma sociedade de ajuda ( benefit society ). Assim, o clima que se seguiu nestes primeiros anos de domínio sul-africano foi de auto- determinação e independência do território (Belfiglio, 1979). Houve uma fermentação entre os diferentes grupos que voltavam à Namíbia, um revivalismo das “antigas práticas” (Ngavirue, 1997; Wallace, 2003; SWAPO 1981). No entanto, logo ao fim da primeira guerra mundial, quando a África do Sul tornou-se oficialmente responsável pelo desenvolvimento do território e dos seus habitantes 14 , as expectativas das populações locais em relação ao governo sul-africano foram frustradas (Gewald, 1999) e iniciou-se o estabelecimento de um rígido sistema de reservas nativas (claramente reservatórios de trabalho) que, restritas a pequenas e pouco produtivas porções do território, viram o país ser leiloado e o aumento da população branca quase dobrar em menos de 10 anos (Katjavivi, 1988). A partir deste momento, os movimentos recém criados com o intuito de unir os dispersos e politicamente desorganizados grupos do território entram em cena como grupos potencialmente anti-coloniais, tal é o caso do Truppenspieler que com o enterro de Samuel Maharero foi investido

14 No dia 17 de dezembro de 1920, a África do Sul, ao lado dos britânicos, tornou-se oficialmente responsável pelo desenvolvimento do território e dos seus habitantes. No decreto assinado sob os termos da então Liga das Nações a administração sul africana deveria “ promote to the utmost the material and moral well-being, and the social progress of the inhabitants of the Territory ... the Mandatory shall see that the slave trade is prohibited, and that no forced labour is permitted except for essential public works and services, and then only for adequate remuneration ” (cf. Katjavivi, 1988, p. 13) de símbolos e significados exclusivamente hereros, bem expresso na criação da associação herero Otjiserandu ou Red Band Organisation que a partir de 1923 foi responsável pela coordenação das comemorações anuais da morte de Samuel. Até hoje, o Dia Herero ou Dia da Bandeira Vermelha (como também é conhecido), é caracterizado pela marcha de tropas. Aqui, enfim, podemos retornar ao evento com o qual iniciei este texto: o enterro de Samuel Maharero. Volto a ele e acrescento que entre todos aqueles homens não havia uma única idéia de um projeto identitário herero. Naquele momento, nós tínhamos membros do Truppenspieler com as faixas vermelhas presas em seus chapéus defendendo a nomeação de Frederick Maharero como seu chefe supremo, Hosea Kutako que em breve viria a ser nomeado o chefe sênior no lugar de Frederick e que não possuía aceitação unânime do seu cargo e representatividade, além de representantes do governo sul-africano que procuravam lidar com todas estas diferentes tendências, tentando manter o controle e o domínio da situação (a segregação – mais tarde oficialmente ditada sob as égides do Apartheid –, a mão-de-obra barata etc.). Ainda assim, com todas essas forças contestatórias (ou seja, que não conjugam positivamente para a criação de um único projeto identitário herero), o enterro de Samuel foi entendido como o início de uma nova era para a “nação herero”, o primeiro momento na história em que os “hereros” existiram como uma única sociedade: “At the funeral of Samuel Maharero the various strands of Herero society that had emerged in the aftermath of the war came together and, through the process and ceremony of burying Samuel Maharero, were woven and drawn together to make up, for the first time in history, a unitary Herero society ” (Gewald, 1999, p. 282).

Sem dificuldades podemos duvidar disto. Duvidar de que todos que estavam lá, naquele momento, preocupavam-se com as mesmas coisas e, mais que isso, percebiam o que ali ocorria de igual maneira. Se o que se passava ali era “ a symbolic resurrection of the Herero army in the ecletic style which it had adopted before the risings of 1904 to 1907 ” (Ngavirue, 1997, p. 193), o enterro era também a centralização da memória Ovaherero como a base ideológica de um projeto para uma única identidade herero. A aceitação, por parte dos outros grupos, certamente passa por questões e pressões políticas (os Ovaherero ainda eram o mais importante grupo herero aos olhos dos administradores coloniais) bem como por negociações. Nesse sentido, Zedekia Ngavirue (1997) destaca com felicidade que “ it is understandable that the Mbanderus would not have the same feelings as those which the other Hereros have for the red colour ”, ressaltando em seguida o aspecto multicolor da celebração: “Hence when this symbol was revived, they adopted green (an overlap with the Damaras) as their colour; the people of the Omururu chief, Manasse Tjiseseta, who reluctantly accepted Samuel Maharero as paramout, adopted yet another colour, ‘otjizemba’ (black with white dots). By and large, Herero unity was preserved through a compromise arrangement. The 26 th of August was to be celebrated by all the Hereros, but not only were the Mbanderus and the Omaruru Hereros to join the parade with their own colours but at Okahandja, homage was to be paid at both the graves of Kahimemua and the Mahareros ” (Ngavirue, 1997, p. 195).

Esse “ compromise arrangement ”, no entanto, não duraria para sempre e nem se expressaria da mesma forma. Logo nos primeiros anos de 1930, Hosea Kutako, agora o líder sênior herero, começa a enfrentar alguns problemas com seus compatriotas da Ojiserandu , os quais exigiam que o cargo de Kutako fosse entregue à Frederick Maharero, este sim, “verdadeiro” líder tradicional herero, o verdadeiro Omuhona . De fato, cada um dos lados representavam uma estratégia diferente de ajustamento à situação colonial. O primeiro assumia uma posição reformista, “ which aimed at securing concessions from the government for a piece of land here and there; educational facilities and better wages ”; os últimos assumiam uma posição militar mileniarista, com uma forte tendência “tradicionalista”. (Ngavirue, 1997, p. 198). Levado ao limite, estas duas grandes divisões políticas dentro do universo herero parecem poder ser definidas como uma oposição entre Ovahona (líderes tradicionais) e Headmen (líderes criados pela administração colonial) 15 . Tal disputa, de fato, foi um estorvo para Kutako que, em 1938 reclamava à administração colonial que “ they [the Truppenspieler/Otjiserandu movement] ask only that Samuel Maharero’s son should take my place as leader of the Herero nation” (cf. Werner, 1990, p. 493), afirmando ainda que “ the main thing is that they should be stopped altogether even if they don’t drill or wear uniforms or red bands. They should be made to listen to the leaders that have been place in authority by the Government ” (p. 497). No entanto, a partir de 1946, ambos conjugaram seus esforços ante a incorporação do território como um estado da África do Sul. Assim, com o início de um movimento para a liberação nacional mais articulado e dessa vez fortemente alicerçado nas populações de trabalhadores Ovambo (cf. SWAPO, 1981), um novo tipo de união é projeto no

15 O próprio Samuel Maharero tinha sido, em 1890, nomeado o chefe supremo sob os hereros, mas é importante ressaltar que, diferentemente de Hosea Kutako (apontado por Samuel como o porta-voz dele no território e não sucessor ), o patriclã Maharero já possuía – junto, é claro, com outros ovahona – um local de destaque no território devido a sua riqueza e a forte concentração do seu poder. território, um novo projeto identitário, dessa vez relacionado com a criação da Namíbia independente e de seus namibianos. Durante este momento temos os fortes esforços da SWAPO ( South West African People’s Organization ) em criar um tipo de união identitária nacional que se desprendesse dos vínculos étnicos. As comemorações herero, nesse sentido, são agora atacadas por este projeto identitário que as percebem como ameaças à unidade nacional. Não entrarei por estas questões, mas acho importante ressaltar o trabalho de Zedekia Ngavirue (1997) que procura demonstrar o constante fator étnico na criação de corporações políticas no território da atual Namíbia, ressaltando a própria SWAPO como um partido majoritariamente Ovambo, criando um projeto identitário ideologicamente comprometido também com esses vínculos étnicos.

* * * Temos assim que a história da criação de uma única identidade herero ultrapassou períodos muito distintos. Desde os primeiros movimentos de centralização (coroados pela nomeação de Samuel Maharero como líder supremo herero), passando pela guerra contra os alemães e o enterro de Samuel; o revivalismo inicial da colonização sul-africana e a tensão seguinte criada pela política segregacionista do Apartheid : a projeção de uma identidade herero esteve sempre aberta à contestações. As celebrações do Dia Herero, realizadas desde 1924, são talvez a criação mais visível destas projeções. Sua importância, no entanto, também passou por oscilações. No momento inicial, elas serviram “ to emphasize to the Herero their specific identity as herero with a specific history of having come through the hellfire of war” (Gewald, 1999, p. 285) e tal identidade era criada, acima de tudo, pela oposição com os europeus (alemães primeiro, ingleses em seguida). A partir de 1946 elas foram vistas como uma ameaça aos demais grupos “nativos” no território, uma ameaça à moderna construção nacional. Enfim, na década de 1990, ano da independência da Namíbia, “ cette expression de la mémoire herero revêt um intérêt nouveau ” (Bertout, 2006, p. 67), o qual mantinha os europeus como par de oposição, mas incluía também os demais grupos no território, principalmente os Ovambos, representados pela SWAPO (ou o contrário, já que os líderes da SWAPO jamais admitirão isto, afirmando que existem inclusive hereros entre seus filiados). É a partir deste último período que iniciam-se as discussões a respeito dos pedidos dos hereros por reparações históricas dos alemães devido ao genocídio levado a cabo por estes no início do século XX: “L’intérêt suscite par cett question depuis le milieu dês années 1990 est dû, dans une large mesure, à la campagne orchestrée par um group constitué autour du chef suprême dês Herero, Kuaima Riruako. Ce groupe a, entre autres, engagé dês poursuites judiciaires contre l’Allemagne auprès d’um tribunal américain ” (Kössler, 2006, p. 57).

Este assunto – que, de fato, parece ser hoje o grande interesse fora e dentro da academia, isto é, para hereros e estudiosos – tem sido o centro das discussões modernas sobre as comemorações herero (inclusive, apesar de tais compensações já terem sido negadas pelos alemães, diversos outros grupos na Namíbia tem se organizado em torno de comemorações iniciando uma clara competição pela vitimização (Köessler, 2007, p. 19) – o caso do Dia Damara é um ponto interessante em questão – e uma instrumentalização dessas celebrações para além de seus significados simbólicos). Tais estudos têm procurado debater, afinal de contas, se o que ocorreu foi um genocídio ou não, mostrando que (e a novidade é pouca) a história é um terreno de contestação. Além disso, enfatiza-se fortemente as políticas da memória, destacando que ser herero e participar nestas comemorações é, na verdade, uma mera estratégia política e não um campo de defesa da criação de um projeto identitário herero (ainda longe de estar concretizado). Seja qual for a projeção deste jogo político – internacional com as demandas por reparações históricas (Kössler, 2006 e 2007) ou nacional com as demandas por re-inserção na “grand récit ” da nação namibiana (Bertout, 2006) – é certo que esta própria política da memória, ela mesma, é responsável por criar um projeto identitário ou, talvez, esteja mesma baseada em um desses projetos. Enfim, estas comemorações engendram e dão vazão a diferentes projetos e visões de mundo. Para alguns, o que está em jogo é a transmissão da história herero aos mais jovens, para outros é a articulação política visando os pedidos por reparação, e para tantos destes são os dois. O que me parece interessante apontar é que, seja como for, a demanda por uma unidade herero, ou melhor, o reconhecimento desta unidade se dá justamente na definição de um inimigo comum. Se tomamos o exemplo Nuer (Evans-Pritchard, 2002), Tiv (Bohannan, 1958) ou Tallensi (Fortes, 1940) veremos que tais grupos vivendo em diversas comunidades autônomas (que compartilhavam uma mesma língua, sistema religioso e estavam conectadas por laços clânicos) poderiam se unir como uma unidade maior quando em guerra ou na realização de uma cerimônia específica. Evans-Pritchard (2002), por exemplo, esbarra constantemente na política implícita Nuer e na impossibilidade de ser pensar em algo que se diga “Nuer” há não ser, talvez, naqueles grandes eventos. Ora, o caso Herero não me parece tão diferente. A questão, ao que parece, é que após a guerra contra os alemães aqueles grupos autônomos não puderam reconstruir suas estruturas antigas: não havia pessoas para isso. Muitos fugiram em grupos distintos (ou seja, não foi uma fuga ordenada), outros foram levados para campos de concentração e a maioria morreu. A guerra, em 1904, destruiu as até então existentes estruturas políticas de cada uma das linhagens e Ozonganda herero e o enterro de Maharero, seguido pela oficialização das comemorações anuais, foi o que permitiu o surgimento de um novo tipo de organização social. Durante este período as organizações de tipo militar ( Truppenspieler e mais tarde o Otjiserandu ) também pareciam servir como laços de filiação. Se as antigas estruturas organizacionais foram destruídas outras se criaram neste novo contexto social urbano. Em seu livro “Custom and Politics in Urban Africa ” (1969), Abner Cohen procura entender como os diferentes grupos étnicos presentes no espaço urbano de uma cidade nigeriana organizam-se em grupos de interesse com funções políticas. Ao refletir sobre as formas com que tais grupos mantêm e estruturam sua existência, ele afirma que “ some ethnic groups make extensive use of religious idioms in organizing these functions. Other groups use kinship, or other forms of moral relationships, instead ” (1969, p. 5). Ora, voltando ao caso herero veremos que não é possível usar a religião como esse idioma, já que muitos agora são cristãos e não mais acreditam no Fogo Sagrado ( Okuruuo ). Da mesma forma com o parentesco que, conforme veremos a seguir na descrição da comemoração em si, é um fator de divisão e não comunhão. Assim, na necessidade de conjugar pessoas com vínculos religiosos, familiares e hoje certamente culturais relativamente diferentes, faze-se uso da história como idioma privilegiado para garantir a existência do grupo. É a memória como base para a construção identitária de um grupo. Essa história é aquela dos conflitos com os colonizadores. Assim, não é que eu esteja defendendo necessariamente “ the need for enemies ” (Bailey, 1998) ou um tipo de construção identitária necessariamente dual (Barth, 1959), apenas afirmo que aquele conflito foi o que permitiu que essas novas formas de organização tivessem a possibilidade de surgir. Sigo agora para a apresentação de minhas observações e impressões das comemorações anuais herero em Okahandja no ano de 2008 e ao final, já em guisa de conclusão, proponho algumas impressões sobre as possíveis relações entre memória e identidade neste evento e suas posições na construção de uma nova forma de organização social entre os herero.

“Hereros Day ”, Okahandja, Agosto de 2008. Pouco antes das nove horas da manhã do dia 22 de agosto, uma sexta-feira, saí de onde eu estava hospedado no centro da pequena cidade de Okahandja. Uma cidade de no máximo cinco mil pessoas que surpreende por seus dias pouco movimentados, mesmo sendo uma cidade tão próxima da capital e, por isso mesmo, na qual muitos esperavam um desenvolvimento mais acelerado. Caminho pela rua principal da cidade (a única onde se encontram os supermercados, bancos e outras facilidades) em direção a periferia, onde a maioria da população negra mora e onde as comemorações herero acontecem. Sigo pela rua da estação policial, cruzo a linha do trem que, desde o litoral, leva produtos do porto até a capital. Passo pela escola de primeiro grau, de segundo e entro na última rua antes de cruzar uma larga e pouco movimentada estrada (como na maioria deste país de pouco menos de dois milhões de habitantes) chegando ao pequeno setor industrial de Okahandja. Aqui o aspecto da cidade muda, estou entrando na periferia e a movimentação e olhares curiosos aumentam. Caminho por uma estrada de chão e atravesso a última rua antes de finalmente chegar ao commando herero de Okahandja a base das comemorações anuais herero, atrás dele se estendem as primeiras moradias da periferia. O trajeto não demorou mais de vinte minutos, mas são incríveis as divisões tão visíveis da cidade até a periferia, certamente resultado de eventos passados. O commando fica situado em meio a um descampado. Durante a semana um trator da prefeitura limpou o local deixando-o livre para as tendas e barracas que hoje começam a serem erguidas. No meio deste terreno há um pequeno salão construído com folhas de zinco e com um espaço aberto e suportes para uma cobertura a sua frente. Ao seu redor, sem abranger todo o terreno, pedras fazem o papel de cercas com direito a uma entrada principal e outras várias pequenas entradas ao redor do salão. Passando pela entrada principal, antes de chegar no salão, um círculo de pedras localizado na frente do salão abriga as brasas do Fogo Sagrado de Alfons Maharero, rei do Oruzo (Clã) Maharero, neto de Samuel Maharero. O rei permaneceu lá durante o evento, com alguns de seus familiares, abençoando com cuspes de água a todos que chegavam no terreno. Ao lado deste círculo de pedras há um pequeno monumento aos heróis e chefes hereros. No início da semana a visão era de uma casa abandonada e um descampado sem vida. Hoje, no entanto, o aspecto do local já é diferente. Ainda longe já se podia ver a bandeira vermelha de Maharero tremulando em um poste à frente do salão. Mais tarde a bandeira da Namíbia foi erguida no outro lado do salão e, no monumento foram colocadas mais três bandeiras, uma vermelha (representando os Ovahereros), uma verde (representando os Mbanderus) e outra branca (representando a Casa Real de Zeraua). Durante todo o evento muitos falaram da união de todas as bandeiras. Uma tarefa difícil, que parece ser um dos temas centrais dessas comemorações. Permaneci observando o movimento e conversando com algumas pessoas durante todo o dia. Uma enorme pilha de lenha foi colocada ao lado do salão para que todos usassem para acender suas fogueiras a noite; uma tela foi posta sobre as estruturas em frente ao salão e com o passar das horas mais pessoas chegavam. Tudo ainda estava calmo, se comparado com os próximos dois dias. Ao cair da tarde, o “pelotão” de Okahandja já treinava para o desfile de domingo marchando ao redor do salão do commando de Okahandja, da bandeira vermelha. Fora do cercado outras barracas foram armadas e amanhã muitas delas estarão vendendo comidas e bebidas. A noite chega com mais intensidade e as primeiras fogueiras começam a ser acesas. O grupo de jovens ainda ensaia os passos militares do desfile de domingo; alguns homens mais velhos se juntam para cantar músicas tradicionais (são como repentes que contam a história dos heróis hereros); outros homens se juntam para ajudar a montar uma tenda; eu observo tudo, me divirto, me sinto bem. Mais tarde, escuridão total, outros homens acabam de montar o que deverá ser uma tenda para a execução das danças “tradicionais” às quais só poderão ser assistidas por aqueles que pagarem uma pequena entrada. Fez-se uma fogueira em meio a tenda sem teto e mais de 10 homens estavam lá dentro, cantando, rindo, dançando. Foi muito bom e as entradas não foram cobradas. Durante a tarde conversei com algumas pessoas sobre os conflitos internos por reconhecimento de direitos de liderança entre os hereros. Uma reclamação comum é que as comemorações mudaram muito e o que antes era apenas uma forma de reafirmar a união herero era agora um instrumento político na mão de pessoas mal intencionadas. Não sei exatamente a quem cada uma daquelas pessoas se referiam, acredito, no entanto, que cada uma delas se referia a um líder em particular o qual prefere em detrimento dos outros. No outro dia, pela manhã, a movimentação já era maior. Cheguei ao terreno e vi que o rei Maharero estava lá novamente, recebendo a todos que, ajoelhados diante dele eram agraciados com sua benção. Ao redor do salão os homens mais velhos sentavam em bancos observando tudo, conversando enquanto os mais jovens ainda arrumavam o local, andando de um lado para o outro revendo amigos de outros vilarejos e cidades. Para a maioria dos homens as celebrações possuem um forte sentimento militar. Com pequenos batalhões e uma cavalaria ensaiando o desfile militar de domingo. Estes são seguidos por algumas mulheres que respondem aos gritos de guerra dos homens. Muitos deles adotam toda a performance militar, como se realmente estivessem em um campo de batalha, prestes a iniciar a luta. Ao cumprimentarem-se, os homens prestam continências uns aos outros e todos exibem suas medalhas e condecorações que são ou herdadas de seus pais ou compradas de alguns ambulantes que exibem diferentes tipos de estrelas e botões para venda. Mais tarde um desses batalhões se reuniu com um grupo de mulheres e com parte da cavalaria e começaram algo que parece um jogo. Uma hora o líder de um batalhão (general, tenente ou algum posto), em outra o líder de outro, eles trocavam incentivos e em seguida obtiam das mulheres (que se mantêm dançando uma do lado da outra) alguns gritos ritmados. Durante o dia todos os outros grupos farão o mesmo. Cada contingente que chega no commando , geralmente dividido em alguns carros (camionetes cheias de pessoas segurando bandeiras representando seu grupo), é recebido com uma grande agitação e as badaladas de um “sino” (um pedaço de metal pendurado em uma base e oco). De imediato todos se voltam para o commando para acompanhar os acontecimentos. A medida que mais pessoas vão chegando o clima se torna mais intenso, com constantes gritos e discursos que, nesse momento, são feitos em um microfone instalado em frente ao salão. As falas são, em geral, apresentações. As pessoas contam a história de sua família, dizem de onde vêm e terminam com gritos exaltando a comunidade herero. A tarde segue desta forma. O sino toca, carros entram no commando apressadamente, os cavalos que faziam sua “ronda” se dispersam pela rapidez irresponsável dos motoristas que são advertidos quando um senhor se coloca no caminho com os braços estendidos. Enquanto isso uma família se chega pela entrada principal, eles se ajoelham diante do rei Maharero que enche uma caneca de água e aos choros de uma criança borrifa a água com seu cuspe em toda a família que fecha os olhos. A mulher ri, o homem mantê-se sério, as crianças choram. Eles se levantam, cumprimentam os demais chefes e voltam para suas atividades normais. A tarde duas ovelhas são sacrificadas, com suas cabeças mirando o pôr do sol elas são estranguladas pelo joelho de um jovem, tendo depois seus órgãos colocados em um arbusto de acácia e o resto cozinhado em um pote colocado na fogueira. Ao redor do commando um número de pessoas cada vez maior se aglomera nos limites da “cerca” e lá ficam o dia todo observando as performances militares, os gritos, as histórias, o clima. Muitos brancos também começam a infestar o local, com suas máquinas gigantes e seus olhares invasores. Não preciso dizer que suas presenças não me agradam, sou confundido com todos eles, com o jornalista tirando fotos na cara de todos e com o turista que acha tudo muito lindo. A situação que já era difícil fica um pouco pior. No meio da tarde, K. Karua, presidente do DTA ( Democratic Turnhalle Alliance ), um dos partidos políticos reconhecido como herero, chegou ao local. Foi recebido com respeito e após cumprimentar a todos se dirigiu até o Alfons Maharero para saudá-lo e, em seguida, retornou ao salão onde se sentou com os demais chefes. Pouco mais de uma hora depois K. Riruako, chefe supremo dos hereros, também chegou e foi recebido com uma movimentação muito maior do que quando da chegada de qualquer outro. Todos se colocaram de pé no mesmo momento e pararam ao seu redor esperando dele alguma palavra. É realmente como se o presidente da nação ou um grande líder estivesse chegando ao alojamento de soldados. Todos ansiosos por uma palavra de incentivo pela batalha a ser travada. O único que ficou parado foi o rei Maharero e, após falar algumas palavras, Riruako se dirigiu até ele diante de seu Fogo Sagrado para cumprimentá-lo. Porém não recebeu nenhuma benção, nem se ajoelhou. Enquanto isso, o alvoroço continua, todos tiram fotos dos seus celulares, seguindo os passos de Riruako que retorna para se sentar ao lado de Karua. Além de chefe supremo, Riruako é presidente do NUDO ( National Unity Democratic Organization ), outro partido herero que, criado no fim da década de 1960 e do qual o DTA se originou no fim da década de 1970. A presença dos três representantes políticos (e não estou falando apenas da versão formal desta palavra, a uso para expressar o papel que estes três homens possuem nesta comunidade) segue até o fim das comemorações como uma visível competição de um certo projeto identitário herero, sendo que a relação entre Riruako e Alfons Maharero se parece muito com os conflitos que hereros no início do século passado tiveram quando da decisão dos governos coloniais na escolha dos chefes supremos. De fato, os dois estão lutando pelo reconhecimento governamental, ou seja, pela antiga posição de headman , mas enquanto Riruako se baseia em suas habilidades políticas, Maharero está claramente utilizando a “tradição”, se colocando na competição como um verdadeiro omuhona . Assim o dia segue, a noite as primeiras fogueiras voltam a ser acesas enquanto os chefes se reúnem no salão para tratar das negociações com o governo alemão a respeito do pedido de reparações históricas negada pelo parlamento daquele país. Fora, ao redor das fogueiras todos comem, bebem, cantam e dançam. O próximo dia, domingo, é o último e o principal. Antes das oito horas da manhã de domingo tudo já está organizado para o início da parada militar que se seguirá desde a periferia até a Heroes St. , onde os túmulos dos falecidos heróis herero serão visitados. Todos aqueles distintos batalhões se organizam em fila atrás dos carros dos três grandes líderes (Alfons Maharero, K. Karua, K. Riruako) que são escoltados pela cavalaria. “Right, left. Right, left. Right, left ” segue a parada cruzando a estrada federal, a principal rua de Okahandja e chegando enfim a Heroes St. na altura dos túmulos da família Maharero. Os túmulos estão em um pequeno cercado em frente de algumas casas abandonadas com seus vidros quebrados e cercados por grandes palmeiras. O local fica a pouco mais de duas centenas de metros da rua onde estávamos. A entrada é estreita e todos se aglomeram para passar por ela. A frente segue o rei Maharero e os outros dois líderes. A poeira se ergue, uniformes sujos, brancos tirando fotos. Enfim, diante dos túmulos todos se prostram enquanto Alfons Maharero inicia seu discurso, aqueles são seus pais e pela lógica do sistema religioso herero é apenas a ele que eles escutaram. Riruako, diferente de todos, se mantêm em pé, com suas mãos no pequeno muro que protege os túmulos. Maharero termina seu discurso e ao se levantar é seguido por todos enquanto faz a volta nos túmulos tocando os muros. A poeira que havia baixado um pouco, volta a levantar-se e talvez ela seja uma boa metáfora para dizer o que aconteceu com Riruako quando ele se sentiu no direito de dizer também algumas palavras: foi completamente encoberto. Enquanto ele falava todos seguiam Maharero ao redor dos túmulos, esbarrando em Riruako que estava no meio do caminho. Riruako terminou e sem seguir a fila que circulava os mortos e lhes prestava reverência seguiu para o seu carro que o levou diretamente aos túmulos de Hosea Kutako e Clemens Kapuo, os dois chefes supremos herero depois de Samuel Maharero e ele mesmo. Na rua, a parada se forma novamente, dessa vez de forma mais desorganizada, e todos se dirigem aos demais túmulos situados ao lado de uma igreja na esquina daquela mesma rua. Lá, eles se prostram novamente. A reverência parece ser menor. Dessa vez quem lidera os discursos é Riruako. Um homem com um equipamento de transmissão radiofônica se ajoelha ao seu lado, transmitindo suas palavras para aqueles que não puderam estar lá. Depois de alguns problemas para abrir a grade que guarda os túmulos, grande parte dos participantes entra no local para tocar cada um dos túmulos novamente. Segue-se daí para o cemitério a frente, também ao lado de uma igreja, onde estão enterrados outros chefes hereros de menor importância na criação da história e memória herero. Ali também estão enterrados conhecidos de muitos que morreram a poucos anos e também vários alemães mortos durantes as batalhas de 1904. Nesta última parada não há mais organização nenhuma, cada grupo de pessoas procura os seus. Pequenos grupos se aglomeram diante de um e outro morto para cantar-lhe músicas cristãs a capela. Riruako segue de túmulo em túmulo dando a todos algumas poucas palavras, seguido sempre por um constante grupo de admiradores. Alfons Maharero já havia voltado para o commando junto com outros grupos. Pouco a pouco os batalhões se reorganizam novamente e começam a voltar pelo mesmo caminho de onde vieram. Chegando ao commando todos se aglomeram em frente ao salão onde um pequeno culto é liderado pelo bispo da igreja Oruuano (“igreja tradicionalmente herero” – como me disse um pastor desta igreja em Okondjatu em 2005 –, criada na década de 1950 após um grupo de hereros desvinculou-se da então missão alemã Rhenish). Em seguida músicas. A repetição daqueles “jogos” militares. Homens gritam, outros respondem, mulheres cantam. O programa segue para o início dos discursos. Representantes da cidade, do governo, do comitê que cuida dos pedidos de reparações ( Genocide Committee ), seguido da palavra Alfons Maharero, K. Karua e K. Riruako. O meu receio de que os discursos seriam feitos em otjiherero se tornou realidade, mas todos tiveram traduções para o inglês, feitas pelos autores mesmo. Não terei espaço aqui para tratar individualmente de cada uma das falas, me limito em fazer algumas observações que merecem ser destacadas. Os temas centrais das falas são os pedidos de reparação aos alemães e a necessidade de que todas as bandeiras se unam. Em relação ao primeiro, existe uma divergência em relação ao que foi defendido na maioria dos discursos e aquilo que Riruako falou. Os primeiros conjugam-se todos para afirmar o que a representante do Genocide Committee disse ser a necessidade de que tais pedidos não sejam esquecidos. Após se perguntar se é pelo fato de eles serem uma população negra que os alemães não querem pagar as reparações (fazendo uma alusão com o caso judeu) e rechaçar o esforço do governo namibiano (e Riruako se inclui aqui) em encontrar reconciliação entre as partes (“we want reparations, we are not asking for reconciliations ”), ela afirma que estes pedidos continuarão a ser feitos de geração à geração, até que o governo alemão ceda. 16 Riruako, por sua vez, irá dizer que está questão deveria ser deixada para que os governos dos dois países resolvam. Segundo ele, a questão já está posta e agora “ we should look to the road ahead ”. O tema da união é comentado por todos. Karua, em seu discurso traz uma breve história da origem das comemorações, desde os primeiros tiros disparados em Okahandja em 1904 até 1924, quando as comemorações se tornaram oficiais. Durante seu percurso ele tem o cuidado de enfatizar os esforços conjuntos de todas as casas reais. O chefe da bandeira verde (Mbanderos) conclama esta união com igual referência a união das bandeiras. Riruako e todos os demais continuam a destacar essa necessidade de que todos hereros estejam em união para lutar contra, o que para Riruako, é o maior inimigo: “We are not against anybody, we are just against the resources of this country not being redistributed (...) Just look at this people who were living here for a long time ”. Essa união, não há dúvida, é o grande discurso deste evento. A despeito das cores, dos chefes, a história é o que os une. Nestas comemorações celebra-se a guerra contra os alemães e isso, a memória deste evento, parece ser justamente o que dá a todos um certo sentimento de pertença. Ao conversar com alguns participantes sobre tudo isso, não é incomum ouvir histórias a respeito dos seus pais e avós que lutaram e morreram na guerra. “ We will never forget ”, me disse

16 Bom salientar que não há muito consenso se é com dinheiro ou algum outro tipo de investimento que tais reparações devem ser feitas. Durante o evento conversei com alguns chefes sobre isso e a questão claramente não está resolvida, alguns pedem que uma certa quantidade de dinheiro (alguns anos atrás um pedido foi feito através do parlamento americano de seis bilhões de euros ) lhes seja entregue em mãos e redistribuído outros, no entanto, dizem que o melhor seria que o governo alemão financiasse projetos de construção de escolas, hospitais e outros tipos de estruturas físicas nas regiões de maioria herero. Goliat, esquecer a história, descartar a memória de um passado, mesmo que vivido “de tabela”, é negar a possibilidade de uma experiência de mundo conjunta, de um projeto identitário herero. Perto das quatro horas da tarde tudo acaba. De uma hora para outra quase todos somem. Um grupo de pessoas se amontoam ao lado do commando para assistir a execução de músicas “tradicionais-modernas” herero enquanto alguns homens começam a limpar o espaço, retirar a tela, as bandeiras, baixar os postes. Crianças brincam no terreno agora vazio. Pessoas recolhendo os bancos e suas cadeiras. Alguns pequenos grupos seguem reunidos em frente às tendas, talvez ainda comentado os discursos que recém ouviram. “Finally it’s over ”, Goliat respira aliviado. Voltando para casa, neste dia, a pergunta que fazia a tudo isso e que continuo a fazer neste trabalho foi onde estão a memória e a identidade nisto tudo? A memória me causava pouca dúvida, o evento se origina justamente de acontecimentos do passado que, por sua vez, permanecem vivos nas roupas, nos discursos, no sentimento de injustiça, nos pedidos de reparação, todos conjugados para que nada seja esquecido, para que a memória da guerra se mantenha. A identidade, algo sobre o qual procuro ser mais crítico, me portando de forma menos ingênua diante deste instrumento, me parece existir como um projeto, um projeto de identificação na busca pela união que significa a criação de um sentimento de pertença. Este texto, como já disse, é uma tentativa de levantar algumas hipóteses, meu intuito final é conseguir lidar com esses dois termos sem me render a uma análise irrefletida. Ao fim, então, o que fica disso tudo?

Conclusão: da identidade à memória. Antes de levantar as hipóteses para essa pergunta se faz necessário elaborar uma reflexão teórica inicial sobre a possibilidade do uso conjunto de memória e identidade na formação de uma determinada visão de mundo. Durante todo o texto falo da formação de projetos identitários herero, quer dizer, diferentes projeções do que poderia ser uma visão de mundo herero e, em geral, mesmo que não explicitamente, procurei sugerir que o projeto que melhor se encaixa ou que parece ter mais aceitação (implícita, é claro) é aquele que se utiliza da memória dos conflitos contra os colonizadores. As comemorações herero tratadas aqui são talvez o local privilegiado desta projeção. Minha aproximação da idéia de projeção parte do estudo de Le Page (1985) no qual ele afirma que atos de fala são atos de identidade e que esta, por sua vez, é construída pela relação entre projeção e feedback. Ora se pensarmos em “atos de memória” ao invés de “de fala”, veremos que esta simples equação também se aplica. Assim como a fala (a língua) está susceptível a imprevisibilidades, a memória não é um campo do qual se tem consenso. Ela não é pensada da mesma forma por aqueles que vivenciaram certo evento pessoalmente ou por aqueles que o vivenciam “por tabela” (Pollak, 1992). Além disso, dentro de cada um desses “grupos”, as percepções sobre o que realmente ocorreu variam. Assim, tal como Le Page (1985) afirmou, seria correto dizer que “ the identity of a group lies within the projections individuals make of the concepts each has about the group ” (p. 2), o mesmo ocorre com a memória (e não os entendo aqui como sendo a mesma coisa, ou possuindo a mesma função). As projeções das quais falo, nesse caso, são projeções herero de uma memória herdada, isto é, que “não se refere apenas à vida física da pessoa” (Pollak, 1992, p. 204), elas fazem sentido também ao grupo que, neste caso, vivenciou a guerra contra os alemães em 1904 e os posteriores conflitos na luta pela independência. São, nesse sentido, certamente construções e, “se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (ibid). O que estou querendo demonstrar, no entanto, não é apenas a ligação entre a memória e um sentimento de identidade (de pertencimento, poderia dizer também) herero, mas que este projeto identitário herero, proclamado, vivenciado, corporificado nestas comemorações, são de fato centrados na memória e não, por exemplo, na tradição do Fogo Sagrado, dos clãs, da dupla descendência, etc (não que estes não tenham importância, o Fogo Sagrado, afinal está lá e os conflitos dentro do grupo se dão justamente pelo idioma do parentesco). Estou seguindo aqui a inspiração de uma certa virada para o corpo e a técnica na antropologia que afirma, por exemplo, que a percepção de mundo de determinada comunidade pode ser centrada na habilidade e não na tradição. Este é o caso, por exemplo, do trabalho de Luciano C. Bornholdt (2008, tese em andamento ) que, estudando as relações sociais de peões vivendo na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, afirma que “ this perspective changes our perception of gaúcho skills, from one in which their skills are techniques to another in which their skills are their particular way of being in the world ”. Aplicando isto ao caso aqui exposto, teríamos a percepção de que a memória seria mais do que heranças de um grupo, mas a forma particular na qual os hereros (ao menos esse herero “genérico”, criado nas comemorações) se colocam no mundo. Cole (1998), ao refletir sobre um grupo Betsimisaraka em Madagascar, afirma a possibilidade disto quando ressalta que “Betsimisaraka theory holds that to remember is more than simply to recall a specific evento or fact. It means defining their place and position in the world, asserting links with particular people and places while rejecting others ” (p. 616). Isto me faria repensar a necessidade de trabalhar necessariamente com o conceito de identidade, me possibilitaria não me render à esta palavra (Brubaker & Cooper, 2000) – certamente arriscando me render talvez à outra: “memória” – como uma ferramenta analítica e abordar pela idéia de uma “memória coletiva” (ou social, como queira) as projeções herero, acreditando que ela possua um local de destaque na construção deste projeto, já que as pessoas não falam se sua identidade enquanto hereros, mas da sua história enquanto tal. Ou seja, partindo da idéia de que as pessoas utilizam as lembranças (herdadas) dos acontecimentos do passado (memória) e não a “tradição” ou a “identidade” para definir seu local no mundo. Enfim, “memória”, nas comemorações herero, me parece ser uma entidade mais concreta do que “tradição” e “identidade” e por isso sua posição privilegiada para explicar o funcionamento dessas celebrações e a projeção de um “ser” (ação) herero. Assim, se minha ferramenta de análise são as noções de memória (principalmente sua “versão” coletiva), seria interessante e necessário discutir sua formação, isto é, o que faz uma memória ser coletiva. Minha pergunta central, no entanto, não é onde se encontra a memória – se no indivíduo (Bergson, 2006) ou na sociedade (Halbwachs, 1992 e 2006) –, mas como ela é experimentada, se concretiza, se corporifica. É nesse sentido que a concatenação do pensamento de Connerton (1989) toma parte central de minhas discussões: “if there is such a thing as social memory, I shall argue, we are likely to find it in commemorative ceremonies; but commemorative ceremonies prove to be commemorative only in so far as they are performative; performativity cannot be thought without a concept of habit; and habit cannot be thought without a notion of bodily automatisms ” (p. 4-5).

Tomando este eixo de análise, eu sou levado a pensar justamente estas comemorações, refletir sobre como ela se dá. Afinal – fazendo o percurso inverso da lógica de Connerton – é apenas observando os automatismos corporais que poderei pensar o hábito, a performance, entendendo, assim, o funcionamento da cerimônia e enfim, chegando à memória social. Ou seja, é necessário descrever a ponta do iceberg para depois conjecturar sobre sua matéria submersa, de difícil mensuração 17 . Nesse sentido, o trabalho de Shaw (2002) sobre as praticas de adivinha Temne também é inspirador, pois ela nos desafia a pensar a memória tal como ela é expressa, incorporada em práticas culturais e não inscrita discursivamente no dia a dia de determinado grupo 18 . No caso herero, o que ocorre são os dois: a memória é tanto apresentada discursivamente como executada nas roupas, nas reverências, nas bênçãos do rei Maharero, ou seja, no corpo. Minhas incursões nessas discussões não se arriscam tanto a ponto de defender um certo paradigma da corporalidade (Csordas, 1990, Strathern, 1996, Farquhar & Lock, 2007), mas é certo que em todas essas “performances”, para usar o dialeto deste paradigma, o corpo não é simplesmente “a repository for social symbolism, a receptacle but also a ‘natural’ model for ‘mindful’ operations ” (Strathern, 1996, p. 25), dessa forma, parto dele como ação que engendra mudanças, que cria e não simplesmente reproduz. 19 Assim, minha hipótese central é que estas comemorações projetam na comunidade herero um pertencimento de grupo que lança mão da memória de acontecimentos vividos “por tabela” em detrimento de outros fatores dos quais se tem menos consenso, como a filiação religiosa (muitos dos participantes nestas comemorações são cristãos e não compartilham nas estruturas do Fogo Sagrado) ou a filiação política que claramente não é um campo compartilhado, sendo que as disputas políticas são visíveis na própria organização do evento e nos acontecimentos imprevistos durante o mesmo (como a problemática relação entre Alfons Maharero, K. Karua e K. Riruako). Para além disso é interessante destacar que esta projeção apenas encontrou espaço após aquele momento inicial pós-guerra no qual as diferentes comunidades herero perderam o alicerce de suas estruturas sociais. O enterro de Samuel Maharero (mais do que sua morte em si) possibilitou que um novo alicerce fosse criado para um novo tipo de estruturação social: era a

17 E não estou aqui querendo dizer que esta conjecturação é uma atividade do antropólogo, tal como estes, aqueles com os quais dialogamos também partem do visível para explicar o invisível, do observável para conjecturar sobre o significado daquilo, sobre as bases do iceberg. 18 O caso das comemorações herero, no entanto, não se assemelham com as práticas de adivinhação Temne as quais, a autora afirma, representam “ more tacit apprehensions of practical memory, ‘forgotten as history’ (...) precisely because they are embedded in habits, social practices, ritual processes, and embodied experiences ” (Shaw, 2002, p. 7). 19 Interessante pontuar que talvez isto não esteja tão distante das análises de Sahlins, da relação entre estrutura e prática, quando ele afirma, por exemplo, que “the interaction of system and event is itself susceptible of structural account, that is, as a meaningful process ” (Sahlins, 1981, p. 33). memória como base para a existência de uma nova experiência de mundo herero que se cria no novo contexto político e social vivido na região. Esta re-estruturação, passava invariavelmente, por novas percepções sociais, por novos projeções identitárias. Enfim, são com estas reflexões em mente que procurei abordar as comemorações herero em Okahandja. A resposta, certamente não é e nem será definitiva. Acredito que, ao fim, possuo algumas possibilidades analíticas que aqui foram colocadas talvez de forma ainda pouco ordenada para tratar com este evento que desperta tanto meu interesse. A desordem é resultado também de minha recente volta de “campo” e do processo ainda inacabado de acomodar todas as informações bibliográficas, teóricas e experiência vivida em um pensamento mais seguro que deverá tomar forma na construção de minha dissertação, fruto destas reflexões. Bibliografia ALEXANDER, Neville. 1988. “The Namibian War of Anti-colonial Resistance, 1904-7”. In Brian Wood (ed.), Namibia 1884-1984: Readings on Namibia’s History and Society. London: Namibia Support Committee & United Nations Institute for Namibia. 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