Ricardo Esteves Gomes

O design brasileiro de tipos digitais: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional

Rio de Janeiro 2010

2

Ricardo Esteves Gomes

O design brasileiro de tipos digitais: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do titulo de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Design, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Washington Dias Lessa

Rio de Janeiro 2010

3

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/G

G633 Gomes, Ricardo Esteves. O design brasileiro de tipos digitais: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional / Ricardo Esteves Gomes. – 2010. 211 f.

Orientador: Washington Dias Lessa. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Escola Superior de Desenho Industrial. Bibliografia.

1. Composição tipográfica por computador- Teses. 2. Tipos para impressão - Teses. 3. Computação gráfica – Teses. 4. Tipografia digital - Teses. I. Lessa, Washington Dias. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Escola Superior de Desenho Industrial. III. Título.

CDU 655.262

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação / tese.

______

Assinatura Data

4

Ricardo Esteves Gomes

O design brasileiro de tipos digitais: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do titulo de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Design, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 12 de Abril de 2010

Banca examinadora:

______Prof. Dr. Washington Dias Lessa (orientador) ESDI/UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______Prof. Dr. João de Souza Leite ESDI/UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______Profa. Dra. Priscila Lena Farias SENAC-SP – Centro Universitário Senac

______Profa. Dra. Suzana Valladares Fonseca PUC-RJ – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2010

5

DEDICATÓRIA

Para Dino, Maria Amélia e Janaina.

Para todos aqueles que insistem em tornar os seus sonhos uma realidade.

6

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Washington Dias Lessa, por ter abraçado prontamente a pesquisa desde o início e por toda sua paciência, dedicação e compartilhamento de conhecimentos durante seu desenvolvimento.

Aos professores João de Souza Leite e Priscila Lena Farias, pelas generosas contribuições para o aprimoramento desta investigação.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo financiamento.

A todos os designers e pesquisadores que, de maneira direta ou indireta, contribuíram para que essa pesquisa se tornasse possível, em especial para: Rodolfo Capeto, Fabio Lopez, Gustavo Ferreira, Claudio Rocha, Henrique Nardi, Tony de Marco, Fernando Mello, Yomar Augusto, Leonardo Costa, Eduardo Omine, Eduilson Coan, Marconi Lima, Eduardo Berliner, Felipe Kaizer, Fabio Haag, Fernanda Martins, Marina Chaccur, Gustavo Lassala e Rafael Neder.

À Fátima, pela ajuda sempre que precisei e pela eficiência modelo.

À minha esposa Janaina, pelo amor que supera limites. Pela parceria em todos os momentos nessa jornada de dois anos.

Aos meus pais, por apioarem meus objetivos incondicionalmente.

A todos os amigos que fiz no mestrado da Esdi!

7

The computer put the means of production of in the hands of individuals.

Cyrus Highsmith, em artigo publicado no website do Type Directors Club (TDC) de New York.

8

RESUMO

GOMES, Ricardo Esteves. O design brasileiro de tipos digitais: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional. 2010. 211 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Escola Superior de Desenho Industrial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Esta pesquisa se propôs investigar como surgiu e vem se constituindo o campo profissional do design brasileiro de tipos digitais. Foi estabelecido um mapeamento aberto desse processo, identificando os marcos, os agentes e as relações que os conectam na consolidação dessa área de atuação. São, inicialmente, abordadas delimitações e categorias relativas à tipografia e ao design de tipos em geral, e as particularidades desse campo frente ao paradigma das tecnologias digitais. Em seguida são abordadas as condições tecnológicas e sócio- econômicas que possibilitaram o crescimento da atividade em âmbito internacional e seu surgimento no Brasil, bem como os modos de colocação dos projetos na esfera de mercado e algumas tendências projetuais/estilísticas contemporâneas. São também indicados os eventos de promoção da atividade no Brasil a partir do início da década de 2000, bem como as principais publicações nacionais dedicadas ao assunto. São, então, apresentados os projetos identificados como mais relevantes dos designers de tipos brasileiros, a partir de meados da década de 1980 até o ano de 2009. Nessa etapa da pesquisa foram utilizadas referências bibliográficas já disponíveis sobre o assunto, bem como entrevistas realizadas com designers de tipos brasileiros. Por fim, são apontados os principais caminhos seguidos, alguns dilemas do presente e algumas perspectivas que se desenham para o futuro.

Palavras-Chave: Tipografia digital. Design de tipos digitais. Prática profissional de design de tipos digitais.

9

ABSTRACT

This research explores the constitution of Brazilian digital type design as a professional field, from its earliest days till the latest developments. Through an open mapping process, milestones, agents and relationships are identified as important steps in its consolidation. Initially categories related to typography and type design in general are defined, demarcating the specific characteristics of this area faced by the paradigm of digital technologies. Then follows a survey of the technological, social and economic conditions underpinning the growth of this field worldwide and particularly in Brazil, as well as ways of placing new designs on the market and some contemporary trends in style and project. Considering the Brazilian context, events promoting digital type design during the 2000 decade are listed, together with the most important Brazilian publications in this field. This is followed by an overview of Brazilian type designs from the mid-1980s through to year-end 2009, based on references in the literature, as well as interviews with Brazilian type designers. The final section indicates the main paths followed in this field, outlining current dilemmas and offering glimpses of possible future scenarios.

Keywords: Digital typography. Digital type design. Professional practice in digital type design.

10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – Diferenças construtivas entre a escrita manual e o letreiramento. 26 Linha central e linhas de contorno. (ilustração do autor)

Figura 02 – Modo como os caracteres são organizados na composição 27 tipográfica digital. Espacejamentos entre letras. (ilustração do autor)

Figura 03 – Composição de uma fonte digital após ajuste de kerning. (ilustração do autor) 27

Figura 04 – Distribuição equilibrada entre os espaços vazios internos e externos 27 às letras. (ilustração do autor)

Figura 05 – Fonte Underscript (1997), de Claudio Rocha. (http://www.itcfonts.com) 30

Figura 06 – Letreiramentos pintados em placas por João Juvêncio Filho. (FARIAS, 2000a) 30

Figura 07 – Família Seu Juca (2002) em seu estilo Um, de Priscila Farias. 31 (http://www.T-26.com)

Figura 08 – Regular (1967-1986), de Jan Tschichold. 39 (http://www.linotype.com/1436/sabon-family.html)

Figura 09 – Fonte Crete Thin (2007), da fundição argentina Typetogether. 39 Design de Veronika Burian. (http://www.type-together.com/Crete)

Figura 10 – Fonte Demos Regular (1975), de Gerard Unger – um dos primeiros 48 tipos traduzidos para a tecnologia digital. (http://www.gerardunger.com/allmytypedesigns/allmytypedesigns04.html)

Figura 11 – Gráfico do ritmo de publicação de fontes brasileiras no revendedor 60 norte-americano MyFonts. (ilustração do autor)

Figura 12 – Cubo de interpolação de Noordzij e os eixos x, y, z. (NOORDZIJ, 2005) 74

Figura 13 – Diagrama ilustrativo do sistema Thesis original (1994), de Lucas de Groot, 76 com as famílias TheSerif, TheMix e TheSans em seus diferentes pesos. (http://www.lucasfonts.com)

Figura 14 – Superfamília display Aviano (2007-2009), de Jeremy Dooley, em algumas 77 de suas fontes. (http://new.myfonts.com/search/aviano/fonts/)

Figura 15 – Sistema Elementar (2003-2009), de Gustavo Ferreira. (FERREIRA, 2007) 77

Figura 16 – Fonte Fake Human (2004-2005), de Yomar Augusto. (espécime tipográfico 81 cedido ao autor).

Figura 17 – Fonte Maryam (2005-2007), de Ricardo Esteves, em sua versão Regular. 81 (ilustração do autor)

11

Figura 18 – Um exemplo de fonte de simulação de impressão de baixa tecnologia. 82 Letterpress Text (2001) em sua versão Regular, do designer norte-americano Chris Costello. (http://new.myfonts.com/fonts/chriscostello/letterpress-text/)

Figura 19 – Famílias Beowolf (1989), dos holandeses Erik van Blokland e 83 Just van Rossum (http://www.fontshop.com/fonts/downloads/ fontfont/ff_beowolf_ot/) e Trixie (1991), de Erik van Blokland. (http://www.fontshop.com/fonts/downloads/fontfont/ff_trixie_ot/)

Figura 20 – Fontes Trashold (2004) e Nars (2003), de Eduardo Recife. 84 (http://new.myfonts.com/foundry/Misprinted_Type/)

Figura 21 – Fonte Discord Error Regular, que compõe da família Discord (2009) 84 de Rafael Neder. (http://new.myfonts.com/fonts/neder/discord/)

Figura 22 – Infográfico dos principais eventos de promoção do design brasileiro 96 de tipos digitais na década de 2000. (ilustração do autor)

Figura 23 – Sumô (1989), de Tony de Marco – a primeira fonte digital brasileira com 101 a intenção de se criar um desenho inédito que se tem registro. (FARIAS e PIQUEIRA, 2003)

Figura 24 – Fontes Quadrada e LowTech (Fat e Regular), de Priscila Farias. 103 (http://www.T-26.com)

Figura 25 – Fontes Gema e Underscript, de Claudio Rocha (http://www.itcfonts.com) 103

Figura 26 – Fontes Marola e Xibiu do grupo Subvertaipe. (FARIAS e PIQUEIRA, 2003) 106

Figura 27 – Algumas fontes produzidas pelo grupo carioca Fontes Carambola: 107 Montevideo Estressado, Espieky (Normal e Bold), Baigon, Zedsded, Bebit 5 e Punheta de Bacalhau. (NARDI, 2005)

Figura 28 – Algumas fontes produzidas pelo grupo pernambucano Tipos do aCASO. 108 (FARIAS, 2001)

Figura 29 – Fonte TransBrasil (1999-2000), projetada para a identidade corporativa 109 da empresa homônima, por Fernanda Martins. (iustração cedida ao autor)

Figura 30 – Fontes Adrenalina (2003-2007), de Gustavo Lassala 112 (http://new.myfonts.com/fonts/brtype/adrenalina/), e Brasilêro (2002), de Crystian Cruz (CRUZ, 2003).

Figura 31 – Família Houaiss (2001), de Rodolfo Capeto. (ilustração cedida ao autor) 114

Figura 32 – Família Seu Juca (2002), de Priscila Farias. (http://www.T-26.com) 115

Figura 33 – Família Samba (2003), Tony e Caio de Marco. 116 (http://www.linotype.com/92026/samba-family.html)

Figura 34 – Família Beret (2003), de Eduardo Omine. (http://www.linotype.com/ 116 91948/beret-family.html)

12

Figura 35 – Sistema Elementar (2003-2009), de Gustavo Ferreira. (FERREIRA, 2007) 119

Figura 36 – Fonte Great Circus (2004) em sua versão Dirty, de Eduardo Recife. 120 (http://new.myfonts.com/fonts/misprinted/great-circus/)

Figura 37 – Família Foco (2002-2008), de Fabio Haag. (ilustração cedida ao autor) 120

Figura 38 – Fonte Colonia Regular (1999-2003), de Fabio Lopez. 121 (ilustração cedida ao autor)

Figura 39 – Família Mello Sans (2005-2009), de Fernando Mello. (http://www.fermello.org) 123

Figura 40 – Fonte Goteira, de Rogério Lionzo. (http://www.flickr.com/photos/ 124 lionzo/240967912/)

Figura 41 – Família Dendekker (2004-2005), de Yomar Augusto, em suas versões 124 Regular, Italic e Bold. (espécime tipográfico cedido ao autor)

Figura 42 – Família Estado Serif (2005), de Ericson Straub, Eduilson Coan e 126 Fabio Augusto, em suas versões Normal, Italic, Bold e Bold Italic. (espécime tipográfico cedido ao autor)

Figura 43 – Família Adriane Text (2007), de Marconi Lima. (http://www.typefolio.com/ 127 Adriane_Text_Specimen.pdf)

Figura 44 – Família Frida (2006-2007), de Fernando Mello. (http://www.fermello.org) 128

Figura 45 – Fonte HandMade (2008), de Eduardo Recife. (http://new.myfonts.com/ 129 fonts/misprinted/hand-made/)

Figura 46 – Família Kuat, de Thiago Shardong, Chris Calvet e Marcos Leme, projetada 130 para a identidade visual do produto homônimo. (ADG, 2009)

Figura 47 – Fonte Knight Frank, de Fabio Haag, projetada para a identidade visual da 130 empresa homônima. (ADG, 2009)

13

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

1 DELIMITAÇÕES BÁSICAS DO DESIGN DE TIPOS: 23 ESPECIFICIDADES DO DESIGN DE TIPOS DIGITAIS

1.1 Design e uso de tipos 23

1.2 Diferenças entre escrita manual, letreiramento e tipografia 24

1.3 Duas grandes categorias de uso: tipos para texto de imersão 33 e tipos display

1.4 Especificidades gerais do design de tipos digitais 40

2 CONDIÇÕES E CARACTERÍSTICAS TECNOLÓGICAS 47 E SÓCIO-ECONÔMICAS DO DESIGN DE TIPOS DIGITAIS

2.1 O computador pessoal / desktop publishing / formatos digitais 49

2.2 Tipos digitais e novas mídias 52

2.3 Novas configurações de mercado 54

2.4 A internet como meio de difusão de produtos 56

2.5 Crescimento da produção/comercialização 58

2.6 A tipografia segundo padrões contemporâneos de 61 produção e consumo

2.6.1 Paradigma hipermoderno 61

2.6.2 A compressão do espaço tempo e o presentismo 64

2.7 Algumas tendências projetuais contemporâneas 67

2.7.1 Fontes em catálogo e fontes sob encomenda 69

2.7.2 As superfamílias tipográficas 73

2.7.3 Potencialidades estilísticas abertas pela tecnologia digital 78

2.7.3.1 Tipos que simulam a escrita manual 79

2.7.3.2 Tipos que simulam a imprecisão 82

14

3 A PRODUÇÃO BRASILEIRA DE TIPOS DIGITAIS 86

3.1 Iniciativas de promoção da atividade 88

3.1.1 Publicações nacionais: a importância da produção 97 editorial para a prática efetiva

3.1.2 Algumas referências colaborativas na Web para 98 a troca de conhecimentos

3.2 A produção na década de 1980: primeiras iniciativas no Brasil 100

3.3 A produção na década de 1990: uma primeira fase do design 102 brasileiro de tipos digitais – iniciativas independentes e experimentação

3.4 A produção na década de 2000: uma segunda fase do design 113 brasileiro de tipos digitais – experiências internacionais e amadurecimento

CONCLUSÃO 134

REFERÊNCIAS 138

ANEXO 1 – Iniciativas nacionais que abordam o design de tipos 143 em disciplinas de cursos de graduação em design: um levantamento básico

ANEXO 2 – Entrevistas estruturadas A: 4 designers 158 de tipos cariocas

ANEXO 3 – Entrevistas estruturadas B: 10 designers 187 de tipos brasileiros

15

INTRODUÇÃO

Desde a conclusão de minha graduação, no final de 2005, quando desen- volvi um projeto prático de criação de uma fonte tipográfica, juntamente com uma monografia contendo uma reflexão crítica sobre seu processo de construção, estive, nos anos subseqüentes, diretamente ligado à prática e ao ensino do design de tipos. Com o desenvolvimento da família Maryam, de caráter caligráfico, criada entre 2005 e 2007 e publicada comercialmente em fevereiro de 2007, tive a oportunidade de iniciar um conhecimento prático, não somente acerca do desenvolvimento projetual, mas também sobre a lógica de funcionamento do mercado global de tipos digitais.

Com o inesperado sucesso comercial em âmbito internacional dessa pri- meira família tipográfica, me senti estimulado a continuar desenvolvendo novos tipos comerciais, que viriam a seguir, com resultados semelhantes. Ainda entre os anos de 2006 e 2007 trabalhei como professor substituto na Universidade Federal do Espírito Santo, onde criei, na graduação em design daquela Universidade, uma disciplina optativa de design de tipos digitais, de caráter experimental, ministrada por mim durante esse mesmo período. Ambas as experiências, tanto no que diz respeito à prática projetual, quanto ao ensino do design de tipos, me serviu de estímulo para aprofundar meus conhecimentos acerca desse campo e de seus vários matizes, ascendendo a vontade de saber mais a respeito de como ele se articula na contemporaneidade.

Nosso objetivo nessa pesquisa foi o de investigar como surgiu e como vem se constituindo o campo profissional do design brasileiro de tipos digitais. Buscamos estabelecer um mapeamento aberto1 desse processo, voltado para a identificação dos marcos e das relações que os conectam, caracterizando a consolidação dessa nova área de atuação. Para isso, trabalhamos a partir de três perspectivas: 1) considerando as conceituações que delimitam o campo do design de tipos digitais,

1 O termo mapeamento é aqui usado metaforicamente, transcendendo, evidentemente, a acepção geográfica, e envolvendo marcos técnicos-profissionais em “espaços” conceituais, sociais, econômicos, culturais, etc. Assim como o seu caráter aberto considera tanto uma busca de conformidade com a dinâmica das condições e ações profissionais, quanto a consciência dos limites de uma dissertação de mestrado.

16

as quais necessariamente se referem ao campo geral do design de tipos; 2) bus- cando caracterizar as influências das mudanças tecnológicas e de agenciamento de mercado sobre a atividade – em âmbito nacional e internacional – e modos de abordagem projetual dados por essas condições; 3) levantando a produção efetiva dos designers de tipos digitais brasileiros a partir da década de 1980 até o ano de 2009 e as principais iniciativas de promoção da atividade ao longo da década de 2000.

Aqui não será abordado o design brasileiro de tipos na era pré-digital. Esta opção de pesquisa poderia se justificar considerando tanto uma investigação sobre a existência de continuidades e rupturas, quanto comparações que tornassem mais nítidas as particularidades do design de tipos digitais no contexto brasileiro. No entanto a escassez de dados trabalhados a respeito do assunto pediria uma inves- tigação específica, deslocando esforços em relação à delimitação cronológica do surgimento e desenvolvimento do design de tipos digitais.

Inicialmente pretendíamos investigar também o ensino sistemático do design de tipos como matéria específica em instituições de ensino superior. Nesse sentido, foi realizado um levantamento preliminar que consta do Anexo 1 dessa dissertação. Entretanto, com o amadurecimento da pesquisa, um aprofundamento nesse sentido revelou-se fora do escopo almejado e pouco viável dentro das limitações de uma pesquisa de mestrado.

Tendo em vista nosso envolvimento direto com a atividade dentro dos escopos profissional e acadêmico, o recorte dessa pesquisa foi definido de maneira dinâmica, na medida em que foram sendo estabelecidas ricas relações com designers de tipos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Relações essas, possíveis através de simpósios, congressos, palestras, Bienais, entrevistas e por meio da internet, bem como da bibliografia levantada. Desse modo, procuramos identificar elementos relevantes para a ampliação do conhecimento a respeito desse tema específico no Brasil, a partir de uma compreensão geral dos elementos que influenciam na formação desse campo de atuação projetual e de nossa história recente. Essa dissertação é, portanto, o resultado concreto de algumas dessas arti- culações e se propõe a contribuir para o fomento da atividade em âmbito nacional.

17

Considerando que existem atualmente poucos pesquisadores dedicados a esse assunto específico no Brasil, e acreditando no valor didático que pode estar implicado na pesquisa, nos posicionamos intencionalmente numa abordagem ampla, no sentido de procurar compreender como o design de tipos digitais vem se estru- turando no âmbito profissional, no caso particular do nosso país. Vale ressaltar que vivemos em um momento histórico em que a atividade do design de tipos digitais se insere no paradigma da globalização, e que grande parte do mercado de licen- ciamento de tipos digitais, para uso em projetos gráficos, está concentrado na América Anglo-Saxônica e na Europa. Portanto, não podemos deixar de considerar os modos como alguns agentes internacionais contribuem efetivamente para o crescimento do campo profissional no Brasil e como isso pode influenciar na prática projetual dos designers de tipos brasileiros.

Como método principal de pesquisa quanto aos projetos brasileiros de tipos digitais, utilizamos o levantamento bibliográfico em publicações especializadas, que tratam do tema do design de tipos e da tipografia em geral, mas também, e princi- palmente, da bibliografia já disponível a respeito do design de tipos digitais no Brasil. Considerando a escassa quantidade de registros e reflexões nacionais a respeito dessa prática específica de projeto, outras fontes auxiliares foram utilizadas, como entrevistas com designers de tipos brasileiros e informações públicas disponíveis em websites de fundições e distribuidores de tipos digitais.

Vale ressaltar que a pesquisa coloca o final do ano de 2009 como marco de fechamento. Ou seja, estará inevitavelmente desatualizada a partir daí. Assim como deve ser indicado que eventos futuros podem levar a reconsiderações do levanta- mento aqui apresentado.

No Capítulo 1, tratamos de conceitos que delimitam o design de tipos em geral e que são também utilizados para a delimitação do nosso objeto de pesquisa – o design de tipos digitais. Essas definições dizem respeito a categorias e seus res- pectivos termos de ocorrência freqüente no âmbito profissional do design. Procura- mos problematizar algumas dessas categorias e esclarecer de que modo elas serão utilizadas nesta pesquisa.

18

Na terminologia profissional, o termo “tipografia” é amplamente difundido e usualmente funciona como um conceito “guarda-chuva”, abarcando diferentes práti- cas relacionadas, muitas vezes de modo impreciso. Por esse motivo, tratamos de diferenciar o campo conceitual do que chamamos de uso de tipos – mais difundido pela tradição da programação visual – do design de tipos, existente há mais de cinco séculos, mas ainda pouco abordado no ensino regular de design nas universidades brasileiras.

Em seguida, tratamos das diferenças entre tipografia, escrita manual2 e letreiramento3, de acordo com as concepções de Smeijers (1996) e Noordzij (2000), discutindo como elas se diferenciam a partir das técnicas empregadas. As cate- gorias e termos tradicionais serão utilizados para a compreensão da tipografia nas tecnologias contemporâneas. A partir de alguns exemplos de tipos brasileiros, obser- vamos de que modo a escrita manual e o letreiramento podem ser utilizados como subsídios para desenvolvimento de fontes tipográficas digitais.

Outra delimitação importante diz respeito à categorização tipográfica a partir de sua dimensão pragmática4. Tendo em vista as duas grandes categorias de uso envolvidas em projetos tipográficos na atualidade – tipos para texto de imersão e tipos display – partindo das teorizações de Tracy (1986), Noordzij (2000), Frutiger (2002) e Unger (2007), discutimos suas diferenças fundamentais, indicando que os limites entre as duas categorias freqüentemente se tornam pouco precisos na produ- ção contemporânea. Finalizando o capítulo, tratamos de algumas especificidades do design de tipos digitais, baseados em reflexões de Noordzij (2000) e Smeijers (1996), bem como nos conhecimentos acumulados em nossa experiência prática.

2 O termo escrita manual é utilizado aqui como tradução para a palavra handwriting. Tendo em vista o uso corrente de outros termos referentes a esse universo, como calligraphy, script e written letters, o termo escrita manual funcionará como conceito guarda-chuva, abarcando os três anteriores. Julgamos como sendo o termo semanticamente mais adequado nesse contexto, por se referir à feitura de letras utilizando a mão, um suporte físico e um instrumento de escrita que emana substâncias corantes. Desse modo, escrita manual não se restringe ao universo da caligrafia artística, mas se refere a qualquer modo de manifestação visual dos códigos verbais utilizando os elementos técnicos acima mencionados.

3 Adotaremos a palavra letreiramento como tradução em português para a palavra lettering. A tradução é utilizada por Priscila Farias em seu artigo 'Notas para uma normatização da nomenclatura tipográfica'. In: Anais do P&D Design 2004 - 6º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design (versão em CD-Rom sem numeração de página). São Paulo, 2004.

4 Excluímos desse estudo os chamados tipos dingbats, por entendermos que eles pertencem mais ao universo da ilustração do que ao projeto de sistemas utilizados historicamente na linguagem escrita.

19

O Capítulo 2 é dedicado a reflexões acerca dos fatores que modificam a prática do design de tipos, a partir de relações tecnológicas e sócio-econômicas. Em uma breve retrospectiva, tratamos do computador pessoal e do desktop publish- ing – elementos fundamentais para a difusão da atividade em âmbito internacional, a partir de meados da década de 1980 – e de alguns desdobramentos para os tipos nas novas mídias. Com a proliferação dos textos nas telas, em seus diferentes for- matos, acreditamos que esse modo de aparecimento da tipografia começa a ganhar uma maior importância relativa na atividade do design de tipos, antes concentrada exclusivamente nas mídias impressas.

Com as mudanças tecnológicas, novas empresas estrangeiras se articulam e ocupam espaço, algumas delas desempenhando um importante papel na difusão da produção brasileira em âmbito internacional. Abordamos a rede mundial de com- putadores como elemento potencializador de mercado e o conseqüente crescimento na produção e comercialização de tipos inéditos. No que diz respeito à produção brasileira de tipos disponíveis em catálogo, apontamos alguns dados obtidos no portal MyFonts, que podem ser úteis para a mensuração do ritmo de publicação por esse revendedor ao longo dos últimos anos.

Considerando a tipografia segundo padrões contemporâneos de produção e consumo, apontamos o paradigma hipermoderno (Lipovetsky, 2004), o estoque zero e o presentismo (Lévy, 1993 e Lipovetsky, 2004) como conceitos que se mostram adequados para compreender o estabelecimento de uma nova realidade comercial específica. Nesse sentido identificamos mudanças progressivas nas relações entre as pessoas e os objetos/produtos/informações que cercam o universo da percepção coletiva nas últimas duas décadas, bem como possíveis implicações para a prática do design de tipos.

Por fim, abordamos algumas tendências projetuais contemporâneas. Trata- mos dos dois modos de colocação de projetos em âmbito profissional: os tipos disponibilizados em catálogos e os tipos feitos sob encomenda. Apontamos ainda algumas tendências projetuais/morfológicas observadas na produção atual, possibi- litadas ou facilitadas pelas novas tecnologias: as superfamílias tipográficas, os tipos que simulam a escrita manual e os tipos que simulam a imprecisão.

20

O Capítulo 3 trata da produção de tipos digitais por designers brasileiros nas últimas duas décadas e das iniciativas de promoção da atividade a partir do início da década de 2000. Indicamos os principais eventos de ampla divulgação que ajudaram a promover a atividade, tais como palestras, exposições, Bienais e congressos. Destacamos a importância das publicações nacionais que tratam do design de tipos digitais para o amadurecimento da prática em nível profissional e acadêmico. Tendo em vista o importante papel da Web na troca de informações e conhecimentos específicos, indicamos também algumas referências que auxiliam a prática, presen- tes na rede mundial de computadores, possíveis por meio de iniciativas nacionais e estrangeiras.

Em seguida nos dedicamos a uma análise diacrônica, investigando em que contexto o desenvolvimento de tipos digitais se insere no Brasil, quais foram os principais atores envolvidos nessa prática projetual e algumas de suas principais influências. Para isso, utilizamos como critérios de seleção dos designers envol- vidos, o enquadramento em ao menos uma dessas categorias: 1) grande número de citações em publicações especializadas; 2) publicações de trabalhos em bienais nacionais ou internacionais; 3) premiações em concursos promovidos por associa- ções ou empresas internacionais de grande visibilidade; 4) visível desempenho em vendas no mercado internacional por meio de distribuidores de fontes digitais.

A partir da identificação das produções brasileiras mais relevantes segundo os critérios acima, procuramos aprofundar a compreensão do desenvolvimento projetual, a partir do discurso de seus autores em publicações especializadas. Devido ao grande número de projetos encontrados segundo esses critérios, apenas alguns deles serão ilustrados – os que consideramos de particular interesse a partir de três critérios: a) seu caráter pioneiro; b) a apresentação de um determinado vetor projetual tratado no texto; c) sua qualidade técnica/estética.

Como modo de complementar informações não encontradas na bibliografia disponível, aplicamos entrevistas estruturadas com alguns desses designers, inves- tigando como e em que contexto se deu a feitura de determinados projetos de grande relevância para a produção nacional. Algumas das entrevistas (Anexo 2)

21

foram realizadas em uma etapa anterior à dissertação. Embora tenham sido feitas com outros objetivos iniciais, algumas informações obtidas foram aproveitadas nesta pesquisa. As entrevistas presentes no Anexo 3 foram realizadas em uma etapa posterior ao esgotamento da revisão bibliográfica. Os critérios de seleção para os designers entrevistados nessa segunda etapa foram: a adequação a uma das quatro categorias citadas e a necessidade de obtenção de maiores informações sobre projetos específicos, ou sobre iniciativas por meio de grupos independentes. Procu- ramos enfatizar alguns dos que permanecem em atividade na projetação de tipos digitais, e/ou que tiveram uma importância histórica notória para esse campo no Brasil.

Por fim, analisamos se os métodos utilizados nessa pesquisa foram eficazes no cumprimento de nosso objetivo de investigar o estado atual da atividade. Pretendemos estabelecer, portanto, um panorama geral do design brasileiro de tipos digitais, analisando que caminhos estão sendo seguidos, quais são os dilemas do presente e quais perspectivas podemos esperar para o futuro.

Dos Anexos dessa dissertação constam investigações que, de algum modo, nos auxiliaram no cumprimento dos objetivos ao longo do percurso da pesquisa.

O Anexo 1 trata de um levantamento preliminar de iniciativas de ensino de design de tipos em território nacional. Tendo em vista a ausência de cursos de pós- graduação em design de tipos no nosso país, fizemos um levantamento das inicia- tivas que tratam da matéria em questão, em cursos de graduação plena em design/ programação visual nas instituições de ensino superior brasileiras. Estabelecemos, portanto, um corte sincrônico sobre o ensino do design de tipos digitais no Brasil a partir de um levantamento de caráter preliminar. Tal levantamento foi feito por meio de questionários estruturados, enviados aos coordenadores de cursos, e posterior análise dos resultados obtidos. Essas informações poderão servir como subsídio para uma investigação sobre o tema do ensino em específico.

No Anexo 2 estão presentes quatro entrevistas estruturadas realizadas com designers de tipos cariocas. Essas entrevistas foram presenciais e anteriores ao início da redação da dissertação (ano de 2008). Tiveram como objetivo estabelecer

22

uma investigação exploratória sobre a prática projetual e processos de criação des- ses designers. Serviram como subsídio para o conhecimento de algumas iniciativas de projeto específicas e ajudaram na delimitação da pesquisa aqui apresentada.

Do Anexo 3 constam as entrevistas realizadas com alguns designers brasileiros em janeiro de 2010. Foram feitas com o objetivo de captar informações sobre iniciativas e experiências de projeto específicas tratadas no Capítulo 3. Infor- mações essas que não puderam ser obtidas por meio das referências bibliográficas disponíveis.

23

1 – DELIMITAÇÕES BÁSICAS DO DESIGN DE TIPOS: ESPECIFICIDADES DO DESIGN DE TIPOS DIGITAIS

1.1 – Design e uso de tipos

O termo “tipografia” costuma gerar certas ambigüidades. Ao mesmo tempo em que é utilizado na terminologia profissional para se referir ao estudo da história, anatomia e uso dos tipos, com certa freqüência, é também utilizado para se referir ao desenvolvimento de novos desenhos tipográficos. O mesmo acontece com o termo “tipógrafo”, ora se referindo ao antigo profissional que compunha livros e outras peças gráficas utilizando tipos, ora se referindo ao designer que se propõe a desenvolver tipos inéditos. Por esse motivo, utilizaremos nessa pesquisa o termo “designer de tipos” para se referir ao profissional ligado ao desenvolvimento de novos desenhos tipográficos e de sua produção.

Do outro lado, portanto, estaria o designer que utiliza os tipos já existentes para projetar suas peças gráficas, sejam elas impressas ou em mídia eletrônica. Nessa pesquisa, quando utilizarmos os termos “designer gráfico” ou “programador visual”, estaremos nos referindo ao profissional que utiliza tipos projetados por terceiros em seus projetos. Faremos essa diferenciação apenas para fins de análise, pois sabemos que, na prática esses dois papéis estão intrinsecamente ligados e, em muitos casos, podem ser exercidos por um mesmo indivíduo. Desse modo, podemos tratar o designer de tipos como um projetista e fornecedor de famílias tipográficas – ferramentas indispensáveis para que sejam possíveis projetos de livros, revistas, jornais, sistemas de sinalização, websites, interfaces digitais, embalagens, entre tantos outros realizados pelo programador visual.

É importante notar que essas diferenças não são apenas de especificidade ou generalidade da atividade, mas há também uma diferença ligada ao mercado. Tendo em vista que os designers de tipos desenvolvem fontes tipográficas que podem ser utilizadas por outros profissionais, em muitos casos, os designers gráficos se tornam os próprios clientes desses primeiros. Embora a atividade do

24

design de tipos exista muito antes da própria inauguração do conceito contem- porâneo de design – remontando aos tempos de Gutenberg – hoje podemos dizer que grande parte dos designers de tipos atuantes têm formação em programação visual, caracterizando essa atividade como parte desse campo de estudos mais amplo. Evidentemente, sempre há exceções à regra, e podemos observar também profissionais autodidatas que realizam projetos bastante competentes nesse sen- tido. No Brasil, podemos ver os designers de tipos Tony de Marco e Marconi Lima, como exemplos de que a busca do conhecimento específico não se restringe necessariamente à formação acadêmica canônica.

1.2 – Diferenças entre escrita manual, letreiramento e tipografia

Tendo em vista a prática projetual e a tradição do design gráfico, vemos como necessário esclarecer algumas categorias e termos que dizem respeito ao universo mais geral da concepção visual da escrita5, e os modos com que serão utilizados nesta pesquisa. Antes de discutirmos especificamente sobre o design de tipos, se faz necessário compreender como esses diferentes modos de manifesta- ção da escrita mantêm pontos de convergência, mas também como se diferenciam em função das técnicas empregadas. É o caso do trio escrita manual (handwriting) / letreiramento (lettering) / tipografia (typography) que, com alguma freqüência, costuma provocar polêmicas, ou falhas de entendimento. Posições radicais não faltam na abordagem dessas categorias, ora alegando que as três não possuem diferenças fundamentais, fazendo parte de um mesmo campo conceitual, ora esta- belecendo limites radicais, defendendo que as três possuem características tão distintas que sequer valem a pena serem colocadas em confronto. Apesar das posições radicais de alguns designers, o que encontramos na maior parte da bibliografia consultada parece apontar muito mais para um caminho do meio.

5 Apesar do termo escrita (writing) ser utilizado por alguns autores para se referir à escrita manual (handwriting), o primeiro é utilizado aqui no sentido mais amplo, como uma manifestação concreta das formas convencionadas do alfabeto. Nesse sentido, a escrita manual, o letreiramento e a tipografia podem ser considerados diferentes meios técnicos de escrita.

25

Acerca dos procedimentos técnicos, Fred Smeijers utiliza os termos “writing”, “lettering” e “typography” para descrever o que ele chama de “as três maneiras de criar letras”. Vale ressaltar que a utilização do termo “escrita” pelo autor não tem exatamente a mesma acepção que utilizamos na pesquisa. Embora utilizemos o termo no sentido amplo, Smeijers, ao contrário, utiliza “escrita” num sentido mais restrito, para se referir à escrita manual. Sobre esse modo de concepção da informação escrita, Smeijers defende que:

As palavras escritas podem ser utilizadas apenas durante o próprio processo da escritura: o momento da produção e do uso é o mesmo. [...] A escrita acontece apenas quando você concebe letras com sua mão (ou outra parte do seu corpo) e quando cada parte significativa das letras é feita com um traço. Na escrita, letras inteiras, ou mesmo palavras inteiras, podem ser feitas em um traço. [...] Por favor, não chame isso de tipografia, simplesmente porque faz uso de letras. (SMEIJERS, 1996, p. 19, tradução nossa6)

A ocorrência da escrita manual acontece, portanto, no momento do ato produtivo. Uma mesma forma não pode ser repetida com precisão absoluta duas vezes, pois ela é resultado de um momento único na relação entre o corpo, a ferramenta, o pigmento (quando é o caso) e o suporte, na execução de um traço. Embora um letreiramento também possa ser feito manualmente, ele se diferencia da escrita manual pelo modo estrutural com que as letras são construídas. Enquanto no letreiramento, a forma da letra é desenhada por meio de linhas de contorno, na escrita manual, ao contrário, ela acontece a partir de uma linha central, conforme podemos ver ilustrado a seguir.

6 Citação original em inglês: Written letters can be used only during the process of writing itself: the moment of production and of use is one and the same. [...] Writing only happens when you make letters with your hand (or another part of your body) and when every significant part of the letters is made in one stroke. In writing, whole letters, even whole words, can be made in one stroke [...] Please do not call it typography, just because it happens to use letters. (SMEIJERS, 1996, p. 19)

26

Figura 01 – À esquerda podemos ver uma letra escrita utilizando uma pena hidrográfica de ponta chata. A modulação dos traços na escrita manual, nesse caso, acontece de acordo com o ângulo do instrumento empregado. Ao centro, vemos a estrutura da linha central com a qual essa letra foi escrita manualmente. À direita vemos a mesma letra desenhada a partir de linhas de contornos, como acontece no letreiramento, bem como nas fontes tipográficas.

Quando se refere ao letreiramento (lettering), Smeijers enfatiza o fato de estarmos tratando de letras desenhadas (drawn letters).

São letras cujas partes significativas são feitas com mais de um traço. O termo ‘letras desenhadas’ nos lembra novamente da pena e do papel. Mas o escopo do letreiramento é, evidentemente, muito maior do que as formas de letras que podemos desenhar no papel. Também estão incluídas as grandes letras em néon nos prédios. Letras gravadas em pedra também são letreiramentos. [...] Esse processo parece ter mais em comum com a tipografia do que a escrita, pois, em grande parte dos trabalhos de letreiramento, as formas das letras parecem muito com os tipos de impressão. Mas essa é uma falsa conexão. [...] Letras desenhadas para formar palavras podem, em mãos habilidosas, parecerem tipográficas; mas o espacejamento e o alinhamento são determinados manualmente, e isso define o processo como letreiramento. (SMEIJERS, 1996, p. 19, tradução nossa7)

Desse modo, o letreiramento se diferencia da tipografia não só pela questão da unidade mínima envolvida, mas também pelos diferentes meios técnicos de relacionar as formas e contraformas. No primeiro caso, as relações de cheios e vazios são determinadas manualmente, a partir de uma palavra ou grupo de pala- vras específicas. Já na tipografia, o espacejamento é dado pelos espaços vazios deixados em cada caractere (à esquerda e à direita da forma da letra) no momento da produção da fonte. Esses espaços vazios, em geral, são projetados para que,

7 Citação original em inglês: These are letters whose significant parts are made of more than one stroke. The term ‘drawn letters’ reminds us again of pen and paper. The scope of lettering is of course much greater than the letterforms one can draw on paper. It also takes in large neon letters on buildings. Letters cut on gravestones are lettering too. [...] Lettering seems to have more in common with typography than writing does, because, in much lettering work, the letterforms look very much like printing types. But this is a false connection. [...] Letters rubbed down to make words may, in skilful hands, look typographic; but the spacing and alingment is determined by hand, and this defines the proces as lettering. (SMEIJERS, 1996, p. 19)

27

sejam quais forem as combinações de letras, o ritmo permaneça constante no momento da leitura. A importância do ritmo de espaços vazios fica mais eviden- ciado nas fontes para texto de imersão, em que uma certa constância é desejável para uma leitura confortável. Mas esse princípio também se aplica em alguns casos de fontes display, a não ser no caso de soluções estéticas que tenham como proposição principal questionar ou desconstruir esses referenciais, ou seja, manter espaços ópticos não-uniformes entre letras. Ambas as categorias de uso serão problematizadas adiante.

Em fontes tipográficas, os ajustes de kerning acontecem apenas nos casos de exceção, em que uma determinada combinação não venha a gerar um equilíbrio óptico adequado (ou desejado) entre cheios e vazios. Essa relação estrutural é ilustrada nas três figuras a seguir.

Figura 02 – Modo como os caracteres são organizados na composição tipográfica digital. Os espacejamentos entre letras normais de uma fonte são criados a partir do posicionamento das linhas laterais (em azul), que definem o início e o fim de cada letra.

Figura 03 – Composição de uma fonte digital após ajuste específico de kerning entre o par “fo”, eliminando o excesso de espaço vazio deixado pelo ajuste métrico normal.

Figura 04 – Distribuição equilibrada entre os espaços vazios internos (em amarelo) e externos (em verde). São consideradas as áreas entre a linha de base e a altura-x.

28

Um exemplo de relação simbiótica, embora não radical, entre o trio escrita manual/letreiramento/tipografia, pode ser observado nos textos do teórico holandês Gerrit Noordzij, que defende a idéia de que:

Geralmente os tipos têm sua origem no letreiramento. Nesse caso, eles são diferentes da escrita manual, feita com um único traço. Essa diferença, entretanto, não é essencial. [...] A diferença essencial entre a escrita manual e a tipografia é que, no primeiro caso, as palavras e as letras são feitas simultaneamente, enquanto as letras tipográficas são construídas antecipadamente. Tipografia é a escrita com letras pré-fabricadas. [...] (NOORDZIJ, 2000, p. 30, tradução nossa8)

Nesse sentido, Noordzij aponta primeiro a relação de semelhança das fontes tipográficas em relação ao letreiramento (lettering). Essa similitude se dá pelo fato de que, em ambos os casos, as formas das letras são construídas por meio de linhas de contorno (outlines). Ao contrário da tipografia e do letreiramento, na escrita manual as formas são compostas por meio de linhas centrais, e sua forma final se dá na conjunção entre o movimento da mão, a ferramenta, o suporte e a substância corante utilizados (LIMA, 2009).

Em relação ao par tipografia/escrita manual, podemos destacar o fato de, no segundo caso, as letras não terem necessariamente uma separação rígida, pois sua materialização final acontece no mesmo instante da sua concepção formal, ou seja, no momento do ato de escrever. No caso da forma cursiva, essa relação de fluidez na concepção formal pode ser ainda mais enfatizada. Por outro lado, na tipografia, a composição é estruturalmente fragmentada, tendo a letra como unidade mínima, a partir da qual as palavras e frases são compostas. Além disso, na tipografia, a concepção formal e o uso efetivo na composição de um texto ocorrem em etapas distintas – o que demanda a racionalização do processo produtivo.

A definição de Noordzij, da tipografia como “escrita com letras pré- fabricadas”, parece ser esclarecedora para compreendermos suas diferenças funda- mentais em relação à escrita manual e ao letreiramento. Nessas duas últimas, a

8 Citação original em inglês: Generally, typefaces have their origin in lettering. In that case they are different from handwriting with its single strokes. This difference, however, is not essencial. [...] The essential difference between handwriting and typography is that handwriting the words and the letters are made simultaneously whereas typographic letters are made in advance. Typography is writing with prefabricated letters. [...] (NOORDZIJ, 2000, p. 30)

29

própria palavra escrita (ou um grupo de palavras), em sua concepção visual, passa a ser a unidade mínima envolvida, permitindo uma maior liberdade formal relativa nesse pequeno sistema de formas e contraformas. Essa conjunção se daria, portanto, na forma de bloco imagético, formando uma unidade que não é pensada em função de sua reprodução em fragmentos mínimos de letras, mas de sua harmonia formal dentro daquela palavra, ou conjunto de palavras, em particular. Nesse sentido, os logotipos, na maioria dos casos, são letreiramentos, mesmo quando usam tipos pré-existentes. Isso se deve ao fato de que, em sua concepção, quase sempre envolvem modificações em espacejamentos, ou, em certos casos, modificações no próprio desenho original das letras. Desse modo, a concepção de novos desenhos de letras e o uso de tipos podem se fundir. Não são incomuns os casos de famílias tipográficas que foram iniciadas a partir de letreiramentos, bem como a quantidade de designers de tipos que também trabalham com logotipos feitos sob demanda – o que demonstra que essas atividades estão intrinsecamente ligadas.

Ao longo da história da tipografia, tanto a escrita manual quanto o letrei- ramento, sempre serviram de referenciais para a concepção das formas tipográ- ficas. Tendo em vista sua invenção original e difusão pela Europa a partir do Século 15, sabemos que as primeiras fontes tipográficas simulavam o modelo da escrita manual dos livros copiados. Era natural que isso acontecesse, já que faziam parte da cultura material da época. Essa relação original sempre foi tão estreita que é absolutamente lógico encararmos essas categorias como sendo intrinsecamente ligadas. Mesmo agora, mais de quinhentos anos depois, em muitos casos, a visua- lidade de letreiramentos e de escritas manuais funcionam como referências para a concepção de fontes tipográficas.

Em alguns exemplos de fontes tipográficas brasileiras pode-se observar essa relação simbiótica da tipografia, tanto em relação ao letreiramento, quanto à escrita manual. Como um exemplo de fonte projetada com a intenção explícita de simular uma escrita manual, podemos citar o exemplo brasileiro da Underscript (1997), de Claudio Rocha, feita a partir de um estilo particular do próprio designer. Underscript foi feita originalmente com uma caneta hidrográfica de ponta redonda, composta somente em caixa-alta, com variações formais de cada letra inseridas no

30

lugar da caixa-baixa. É uma fonte com grande variação de largura e altura, fugindo, portanto, da regularidade presente em projetos mais tradicionais. Possui pouca variação de espessura e terminações arredondadas – resultantes das marcas deixa- das pela ferramenta empregada em seus esboços originais. Esse projeto, ilustrado a seguir, será retomado no Capítulo 3, quando tratamos especificamente da produção brasileira de tipos digitais.

Figura 05 – Fonte Underscript (1997), de Claudio Rocha. Um exemplo de fonte baseada na escrita manual.

Em relação às fontes baseadas em letreiramentos, podemos citar a família tipográfica Seu Juca (2002), de Priscila Farias, inspirada nos desenhos de letras vernaculares do pernambucano João Juvêncio Filho – um letrista do Recife conhe- cido como Juca. Baseada na seleção de um dos muitos estilos de letras pintadas nas placas de Juca, Farias criou uma família de 4 fontes com variações estilísticas, com letras não alinhadas e com a simulação de uma extrusão em uma perspectiva distorcida, que lembra, de certo modo, o universo visual dos quadrinhos.

Figura 06 – Alguns letreiramentos pintados em placas por João Juvêncio Filho, o Juca.

31

Figura 07 – Família Seu Juca (2002) em seu estilo Um, de Priscila Farias.

Nesse exemplo, que também será retomado no Capítulo 3, ocorre a apro- priação de referências visuais de outros autores na criação de fontes digitais. Em muitos casos, os designers de tipos costumam se apropriar também de letreira- mentos desenvolvidos em seus próprios trabalhos profissionais, ou em experi- mentos formais. Nesse tipo de abordagem (da apropriação explícita), com certa freqüência, se torna difícil identificar um único autor. Tendo em vista que, desde o Renascimento, os designers de tipos sempre se apropriaram de referências visuais pré-existentes, esse tipo de prática se tornou muito comum, tanto no design de tipos em geral, quanto em casos brasileiros particulares. Por outro lado, é importante ressaltar que o design de uma fonte tipográfica sempre envolve quêstões intrínsecas na criação de identidade e ritmo entre uma grande quantidade de variáveis. Desse modo, mesmo que o designer tenha a intenção de reproduzir de modo fiel um determinado estilo em uma fonte, a partir de um letreiramento específico, novos problemas formais sempre serão encontrados no ato projetual, na ampliação dos glifos existentes e nas relações entre os mesmos.

Apesar da relação estreita que os sistemas tipográficos podem ter com o letreiramento, é importante salientar que, na tipografia, os textos são compostos, em geral, a partir de tipos (matrizes de impressão, originalmente) de letras em caixa- alta, caixa-baixa, numerais, sinais de pontuação e caracteres para-alfabéticos pré- fabricados.

Para que isso seja possível, é necessária a figura do designer de tipos, que projeta não somente a forma das letras em uma composição particular (como é o caso do letreiramento), mas também as relações de espaços vazios no interior e no exterior das letras, de modo que os caracteres tipográficos possam ser combinados e recombinados entre si da maneira mais harmônica possível, sejam quais forem as combinações de letras e palavras. Ou, nas palavras de Jan Tschichold, “[...] a

32

criação de uma relação lógica e óptica entre as letras, palavras e partes de frases [...]” (TSCHICHOLD, 1925).

Em uma fonte tipográfica, os caracteres podem ser utilizados novamente em novas composições, preservando suas características. Esse aspecto tipográfico da recombinação e reutilização dos tipos de maneiras diversas não pode ser observado no letreiramento, tampouco na escrita manual.

Outro ponto em questão, que não é abordado pelos autores, mas que vale a pena levantar, é em relação ao nível de complexidade dos sistemas envolvidos. Enquanto no letreiramento, salvo raras exceções, o designer deve relacionar um conjunto relativamente pequeno de letras em uma combinação particular, numa composição tipográfica, o designer compositor recorre a modelos já pensados e fabricados anteriormente pelo designer de tipos. No design de uma fonte tipográfica é preciso relacionar um número sensivelmente maior de variáveis, no sentido de criar identidade formal entre os diferentes glifos do alfabeto latino e, ao mesmo tempo, mantê-los diferentes o bastante para que sejam reconhecidas suas parti- cularidades.

No caso das fontes digitais, dentro dos conjuntos de caracteres conven- cionados pelos códigos Unicode (que permitem a comunicação perfeita entre o arquivo de fonte e os teclados), se tomarmos como exemplo apenas o conjunto ISO 8859-1 Latin 1 (Western), ou seja, o básico em uma fonte comercial para as línguas das Américas e da Europa Ocidental, são um total de 257 caracteres que devem ser desenhados e espacejados. Quando tratamos de fontes que envolvem também outras línguas, ou mesmo outros sistemas de escrita diferentes do latino (Ex. grego, cirílico, devanagari, árabe), a complexidade do sistema se torna ainda maior. Numa família tipográfica com vários pesos e variações estilísticas, a ação projetual do designer de tipos ganha ainda outras proporções, ou seja, esses números passam a ser multiplicados pela quantidade de fontes presentes na família. Portanto podemos afirmar que o número de elementos visuais a serem articulados em fontes tipográ- ficas, é sensivelmente maior do que no caso de um letreiramento com algumas letras, em uma combinação singular.

33

Desse modo, em estrito senso, seria equivocado chamar a feitura de um logotipo, por exemplo, como design de tipos, embora vejamos que as duas práticas mantêm uma estreita relação. No primeiro caso, seria mais adequado dizer que este pertence universo do letreiramento, que envolve outras técnicas projetuais e apre- senta uma complexidade diferente em relação a uma fonte completa de um único estilo, ou a uma família tipográfica mais complexa. Por outro lado, embora na composição tipográfica sejam utilizadas letras pré-fabricadas (sejam elas peças físicas ou dados em um arquivo digital), o processo de percepção e leitura perma- nece o mesmo, bem como a importância da articulação das relações entre espaços cheios e vazios. Por esse motivo, é importante que encaremos essas diferenças não como regras absolutas, mas como guias para compreender diferentes práticas ligadas à manifestação da palavra escrita.

1.3 – Duas grandes categorias de uso: tipos para texto de imersão e tipos display

Tendo em vista as duas grandes categorias de uso que norteiam a aplicação pragmática de uma fonte tipográfica, podemos notar duas forças extremas – uma que se aproxima da tradição deixada pelo livro impresso e de seus modelos ampla- mente convencionados; e outra que se afasta desses modelos, valorizando a excentricidade da forma tipográfica e o impacto visual que ela pode produzir. A tradição tipográfica do texto de imersão impresso, sustentada por mais de cinco séculos, deixou marcas visíveis nos referenciais de leitura. O modelo da letra humanista em especial, criada durante Renascimento italiano, permaneceu durante muito tempo como o principal padrão que constitui as rotinas de reconhecimento na leitura ocidental. Essa tradição, gerada pelo uso repetido de desenhos de tipos específicos, baseados, por sua vez, em modelos caligráficos, ajudou a criar o que Noordzij chama de “modelo mental” das letras. Esses modelos não estariam em um desenho tipográfico ou caligráfico específico, não possui uma forma claramente delimitada, mas trata-se de uma abstração mental criada a partir de nossas rotinas de leitura.

34

Finalmente, a idéia de cada letra é um conceito na mente do homem. É por meio desse conceito mental que somos capazes de escrever e desenhar letras e reconhecê-las quando lemos. Mas, como todos sabemos, a forma real dada a qualquer letra varia consideravelmente. [...] O conceito mental não é preciso, mas flexível. É certamente versátil e, ainda assim, cada letra possui identidade. Ela tem certas características que são indispensáveis. (NOORDZIJ, 2000, p. 21, tradução nossa9, itálicos do autor)

Assim, podemos dizer que formas legíveis são uma questão de costume. Essa hipótese é validada também por Eric Gill, ao dizer que “Legibilidade, na prática, corresponde simplesmente àquilo a que estamos habituados (GILL, 2003, p. 71).” Quando nos deparamos com uma forma de letra ligeiramente “excêntrica”, a primeira reação costuma ser o estranhamento e a tentativa de enquadramento racional dentro dos modelos mentais com que estamos acostumados. Mas se vemos essa mesma forma repetidas vezes em um texto, chegará um momento em que, pelo contexto das formas mais gerais das palavras, passaremos a ignorá-la, imer- gindo no conteúdo da mensagem verbal. Esse é o processo pelo qual todos passa- mos durante a alfabetização. A nova forma de letra passará a fazer parte de nosso novo repertório, tornando-se progressivamente invisível aos nossos olhos de leitor. Entretanto, em um texto de imersão, ou seja, de leitura contínua por um longo período de tempo, costuma-se valorizar o esforço mínimo.

Desse modo, formas que já estão muito próximas do repertório visual cole- tivo tornam-se mais adequadas para esse tipo de leitura específica. Essa teoria se consolida pelo paradigma do “cálice de cristal”, difundido por Beatrice Warde (1956), em que a autora defende a idéia de que a tipografia bem utilizada deveria ser invisível como tal, do mesmo modo como o tom de voz perfeito seria o veículo que não se nota na transmissão das palavras e idéias. Muito embora esses conceitos de “perfeição” e “transparência” absoluta sejam bastante questionáveis, os escritos de Warde tiveram bastante ressonância durante as décadas seguintes, influenciando diferentes designers e tipógrafos. Ainda sobre os modelos mentais convencionados e o processo de leitura, Heiderhoff afirma que:

9 Citação original em inglês: Ultimately the idea of each letter is a concept in the mind of man. It is by means of this mental concept that we are able to write and design letters and to recognize them when we read. But, as we all know, the actual form given to any one letter varies very considerably. [...] The mental concept is not precise it is flexible, indeed protean, and yet each letter has identity. It has some characteristics which are indispensable. (NOORDZIJ, 2000, p. 21)

35

A leitura é um processo complexo que poderia ser descrito do seguinte modo: o leitor tem, aderida em seu subconsciente, uma espécie de matriz da forma de cada letra do alfabeto. Quando ele lê, a letra percebida recorre às matrizes. Ela é comparada com a silhueta correspondente e adaptada, sem reservas, quando o signo é similar, ou com resistência, se a forma difere demasiadamente. Mediante a leitura cotidiana, as matrizes se consolidam incansavelmente e obtêm um contorno preciso nas profundidades do subconsciente. São as escrituras clássicas que, em primeiro lugar, formaram essas matrizes. Há pouco tempo, as letras sem serifa se agregam ao mesmo esquema. (HEIDERHOFF In: FRUTIGER, 2002, p. 37, tradução nossa10)

A descrição do “modelo mental” ou “matrizes da forma” parece muito próxima da definição de Noordzij. Entretanto, enquanto o primeiro descreve esses modelos como “flexíveis”, estando em constante mutação, Heiderhoff os define como tendo “um contorno preciso”. Logo em seguida o autor se contradiz, ao lem- brar que desde o século 19 os tipos sem serifa também começaram a integrar essa matriz, ampliando o repertório de modelos de leitura coletivo. Os tipos sem serifa, que num primeiro momento eram vistos como “excêntricos” e mais adequados para pôsteres e textos de consulta, hoje são usados também para leitura contínua, em certas situações projetuais, aparentemente sem maiores problemas para a per- cepção do leitor médio.

Essa conclusão, entretanto, está longe de ser um consenso. Alguns designers de tipos tradicionalistas ainda advogam a idéia de que tipos sem serifa nunca devem ser utilizados em textos de imersão, pois a ausência destas geraria uma maior dificuldade no reconhecimento imediato dos blocos de palavras e, por isso, causariam maior fadiga no leitor. Entretanto, essa questão não será desen- volvida aqui.

Algumas diferenciações conceituais em relação às categorias de “tipos para texto de imersão” e “tipos display”, envolvem questões referentes à aplicação técnica. É o caso de Walter Tracy, que define o problema da seguinte maneira:

10 Citação original em espanhol: La lectura es un proceso complejo que podría describirse de la siguiente: el lector tiene, incrustada en su subconciente, una espécie de matriz de la forma de cada letra del alfabeto. Cuando lee, la letra percibida recorre las matrices, es comparada com la silueta correspondiente y es adaptada sin reservas cuando el signo es similar, o con resistencia, si la forma difere demasiado. Mediante la lectura cotidiana, las matrices se consolidan incansablemente y obtienen un contorno preciso en las profundidades del subconciente. Son las escrituras clássicas as que, en primer lugar, formaron las matrices; desde hace poco, los palosecos se hen incrustado en el mismo esquema. (HEIDERHOFF In: FRUTIGER, 2002, p. 37)

36

Particularmente, às vezes existe uma falta de entendimento em relação à diferença fundamental entre os tipos projetados para exibição [display] e os tipos indicados para texto. A diferença pode ser expressada como uma máxima: tipos para texto, quando ampliados, podem ser utilizados em títulos; tipos display, se reduzidos, não podem ser utilizados na composição de texto. (TRACY, 1986, p. 27, tradução nossa11)

É importante notar que, o universo a que Tracy se refere parece restrito à tradição da tipografia impressa, utilizada em projetos de livros e periódicos. Nesse sentido, desenhos de tipos com contraste fino/grosso moderado, suportam uma boa redução sem que seus traços mais finos desapareçam na impressão. Por outro lado, fontes de contraste acentuado seriam adequadas para títulos, por preservarem suas formas claramente visíveis apenas em grandes tamanhos de corpo.

A máxima de Tracy é, sob certa ótica, verdadeira, mas o problema da cate- gorização tipográfica pelo uso pragmático não parece ser tão simples assim. Atual- mente, os modos de aparecimento da tipografia são muito mais diversos do que há algumas décadas atrás e não se restringem apenas ao design de livros e periódicos, nem sequer ao universo da produção impressa. Um movimento diverso em relação à tradição editorial do texto de imersão já se mostrava presente nos tipos de madeira, produzidos no século 19, para aplicação em cartazes de grandes formatos, com formas bastante peculiares e inovadoras para a época. Dessa maneira, vemos que diferentes modos de leitura parecem exigir diferentes modos de abordagem projetual, tanto no campo mais amplo do design gráfico, quanto no design de tipos em específico.

No que diz respeito a essa primeira grande categoria, chamada também de “tipos para texto” ou “tipos de leitura”, Frutiger utiliza conceitos de Beatrice Warde, quando se refere à dita tipografia “invisível”12:

11 Citação original em inglês: In particular, there is sometimes a lack of understanding of the fundamental difference between types designed for display and types meant for text. The difference can be expressed as a maxim: text types when enlarged can be used for headings; display types, if reduced, cannot be used for text setting. (TRACY, 1986, p. 27)

12 Vale salientar que existe a posição de quem relativize essa invisibilidade, afirmando que o designer de tipos deve ter uma posição mais ativa no sentido de incorporar personalidade no desenho tipográfico, e que este deve ser utilizado, pelo designer gráfico, em confluência com a intenção subjetiva do autor do texto.

37

A escrita é um instrumento que transporta alimento intelectual. [...] O tipo usado deve ser fácil de ler. Costuma-se dizer que ele tem que ser ‘invisível’, que deve ‘desaparecer’ por trás do texto, que para uma leitura confortável o leitor não deve sequer notá-lo. (FRUTIGER, 2002, p. 42, tradução nossa13)

Citações como essas são bastante freqüentes, delimitando essa categoria de projetos tipográficos como aquela que respeita profundamente as regras formais amplamente difundidas pela tradição. As inovações tipográficas, freqüentemente, se apresentam apenas nos detalhes de acabamento, remates, terminais, formas das serifas, angulação de eixo e detalhes de proporção, mantendo mesma estrutura básica do alfabeto romano como estamos habituados. Nesse sentido, o ideal da tipografia “invisível” seria não ser sequer notada pelo leitor. Do outro lado dessa dicotomia conceitual estariam os chamados “tipos display” ou “tipos fantasia”, onde a expressão gráfica da forma teria mais liberdade para se manifestar:

As escritas de fantasia têm sua razão de ser nos textos bastante breves, como cartazes, programas de televisão, páginas da Web, embalagens, fachadas de lojas, etc. Os tipos fantasia são incontáveis: bonitos, feios, provocadores, legíveis, ilegíveis. Devido à sua singularidade e sua surpre- endente silhueta, eles pretendem, antes de tudo, captar a atenção do leitor. Rapidamente sugerem uma sensação, uma textura ou uma atividade. (FRUTIGER, 2002, p. 45, tradução nossa14)

É importante notar mais uma vez que Frutiger delimita esses dois conceitos em função de uma razão pragmática. De um lado temos textos em que o leitor imerge em seu conteúdo, desejando, conseqüentemente, um estado de repouso visual e previsibilidade para que seu percurso aconteça com o máximo de conforto. É o caso de livros, jornais e algumas revistas. Do outro lado, temos textos cuja principal função é despertar o leitor de um estado de inércia ou repouso perceptivo e atrair sua atenção imediata para uma determinada mensagem. Essa atração freqüentemente se dá por meio de uma conjugação de formas de maneira menos tradicional. O desenho tipográfico pode contribuir nesse sentido, acentuando um

13 Citação original em espanhol: La escritura és un instrumento que transporta alimento intelectual. [...] El tipo utilizado debe ser fácil de leer. Suele decirse que tiene que ser ‘invisible’, que debe ‘desaparecer’ tras el texto, que para una lectura cómoda, el lector no debe notarlo siquiera. (FRUTIGER, 2002, p. 42)

14 Citação original em espanhol: Las escrituras de fantasia tienen su razón de ser en los textos muy breves, como carteles, programas de televisión, páginas Web, envases, rótulos de tiendas, etc. Los tipos fantasia son incontables: bonitos, feos, provocadores, legibles, ilegibles. Por su singularidad y su sorpreendente silueta, pretenden, ante todo, captar la atención del lector. A menudo, sugieren una sensación, una textura o una actividad. (FRUTIGER, 2002, p. 45)

38

determinado tom de uma mensagem, ou chamando a atenção para si mesmo antes que seja lido. Esse modo de abordagem abre caminhos para uma maior experi- mentação e excentricidade no desenho.

Como veremos adiante no Capítulo 3, na produção brasileira de tipos digi- tais, a criação de tipos display se tornou muito abundante a partir da década de 1990, e continua prevalecendo numericamente em nossa produção em relação aos tipos para textos de imersão.

Atualmente estamos cercados de textos por todos os lados, seja no ambiente urbano, de trabalho, em espaços comerciais, na televisão, ou na rede mundial de computadores. A quantidade de mensagens disponíveis muitas vezes ultrapassa nossa capacidade de decodificação, tornando-se “paisagem”, ou seja, passam a ser ignoradas pelo excesso, fazendo com que selecionemos apenas aquilo que nos interessa ou nos estimula de algum modo. Por esse motivo, muitas das mensagens visuais têm que se esforçar para provocar e seduzir o seu leitor, gerar uma diferença na rede de percepção coletiva. Nesse sentido, formas que tendem a se diferenciar da tradição podem ser úteis, se utilizadas na devida medida.

Sobre essa dicotomia, Gerard Unger reitera o fato de existirem diferentes modos de leitura e que, tanto o desenho de tipos quanto sua aplicação, costumam ser projetados tendo em vista diferentes funções:

[...] de um lado, algumas poucas palavras podem ser lidas de imediato – algumas vezes, sem que sequer queiramos lê-las – e do outro, temos textos que requerem uma leitura longa e atenta. Não é fácil para os leitores manterem esses dois mundos separados, simplesmente porque eles freqüentemente vêm juntos, como embalagem e substância: como na capa e conteúdos de um livro, por exemplo. E em revistas eles são muitas vezes encontrados lado a lado, como títulos projetados de modo proeminente, sobre colunas de texto corrido sem obstrução. Torna-se difícil para leitores, tipógrafos e designers de tipos ignorarem os níveis de conservadorismo que a história parece ter lhes dado. Entretanto, na realidade, existem poucas pessoas totalmente progressistas, ou completamente conservadoras: combinações de conservadorismo e progressividade são comuns e variadas. [...] (UNGER, 2007, pp. 40-41, tradução nossa15)

15 Citação original em inglês: [...] on the one hand a few words can be read in a flash – sometimes even without wishing to – and on the other texts that require long and attentive reading. It is not easy for readers to keep these two worlds apart, if only because they so often go together as wrapper and substance: as the cover and contents of a book, for instance. And in magazines they are often found side by side as strikingly designed

39

Embora vejamos, nesses e em outros exemplos de Unger, uma certa predi- leção pelo mercado editorial, parece ficar claro que, mesmo nesses casos, os limites entre esses dois modos de abordagem projetual não são absolutamente inde- pendentes. Devido ao caráter ambíguo do termo “progressista”, utilizado por Unger, preferimos chamá-lo de renovador – no sentido de modificar, de maneira sutil, elementos antigos, transformando-os em novos. No design de tipos, falar em algo “novo” é sempre muito relativo, pois não é possível desprezar o legado da história para as convenções de leitura, bem como a influência do repertório visual adquirido por meio dos tipos existentes. Mas, de certo modo, mesmo nos tipos para texto, é possível revitalizar o desenho do alfabeto por meio dos detalhes, mesmo quando mantida sua mesma estrutura básica convencionada. As duas forças opostas – conservadorismo e renovação – parecem estar quase sempre presentes, em diferentes medidas, nas diversas situações de design e uso dos tipos. Um exemplo comparativo pode ser visto abaixo.

Figura 08 – Um exemplo de design claramente conservador em tipos para texto. Fonte Sabon Regular (1967-1986), uma versão da da fundição alemã Linotype, feita a partir de cortes de Jacques Sabon, um auxiliar de Claude Garamond. Projeto de Jan Tschichold.

Figura 09 – Um exemplo de design que traz algo novo em tipos para texto, por meio dos detalhes pouco convencionais de serifas e terminais. Fonte Crete Thin (2007), da fundição argentina Typetogether. Design de Veronika Burian.

heads over otherwise unobstrusive columns of running text. It turns out to be difficult for readers, typographers and type designers to shrug off the lebels of conservatism that history seems to have given them. In reality, however, there are few wholly progressive or completely conservative people: combinations of conservatism and progressiveness are common and varied. [...] (UNGER, 2007, pp. 40-41)

40

Se olharmos pelo ponto de vista da função (no sentido amplo), parece existir dois vetores que repetidamente se cruzam num mesmo espaço gráfico. De um lado temos o design que privilegia a transparência, ou seja, o acesso mais rápido e com menor esforço possível ao conteúdo. Nesses casos, o caráter conservador e o peso da tradição na atividade projetual parecem ser maiores. Do outro lado temos o design que privilegia a presença, ou seja, aquele que visa gerar interesse, seduzir, atrair o foco perceptivo para uma determinada mensagem. Nesse sentido, formas menos convencionadas pela tradição do livro impresso parecem encontrar maior espaço para se manifestar, sendo, em muitos casos, fundamental para cumprir sua função comunicativa. A capacidade de promover o intercâmbio entre esses dois modos de percepção – o ver e o ler – parece ser o que torna grande parte dos projetos de design gráfico realmente interessantes, e no design de tipos não parece ser diferente.

Com as facilidades na produção tipográfica, provocadas pelas mudanças tecnológicas ocorridas nas últimas décadas, atualmente vemos um número enorme de novos tipos display sendo lançados no mercado todos os meses. A quantidade de tipos para texto de imersão também aumentou consideravelmente, de modo que, mesmo nesses casos, algumas particularidades no projeto das famílias também são desejáveis, embora ocorram de maneira muito mais sutil. A idéia de transparência absoluta, em si mesma questionável, parece não encontrar mais tanto espaço, num mercado internacional ávido pela diferença.

1.4 – Especificidades gerais do design de tipos digitais

Muito embora a atividade do design de tipos físicos exista desde o século 15 e mantenha muito mais pontos de convergência do que de divergência com nosso objeto de estudo, aqui delimitaremos nosso recorte a partir da atividade do design de tipos digitais. Entendemos o design de tipos digitais como atividade de interesse específico, pois este é possibilitado pelos equipamentos técnicos da era da infor- mática, que desencadearam mudanças sensíveis no modo de fazer fontes tipográ-

41

ficas, no tempo de desenvolvimento e difusão desses produtos, bem como em suas propriedades constitutivas.

Na tipografia com matrizes físicas, o processo de mecanização da escrita é uma das principais característica que a diferencia de outras técnicas correlatas. Desde seu surgimento, sua lógica de construção é modular – cada glifo é gravado em um bloco retangular e a justaposição de diferentes combinações desses blocos formam as matrizes de impressão. Na tipografia física, essa limitação material dos tipos móveis era uma realidade intransponível – ela definia os limites em que uma composição tipográfica poderia se organizar, dentro de uma grade de construção relativamente rígida.

Gerrit Noodzij sintetiza a questão do seguinte modo:

Os retângulos de letras de um mesmo tamanho de corpo podiam ser compostos em linhas. As letras podiam ser espacejadas, mas os retângulos rígidos, de metal ou madeira, não podiam se superpor. Desde a introdução da fotocomposição eles podem, já que agora os retângulos se tornaram imaginários. [...] Fundidores de tipos e compositores poderiam apontar para os sólidos que desapareceram, mas para o designer, o retângulo sempre foi imaginário. (NOORDZIJ, 2000, p. 04, tradução nossa16).

A observação do autor se dá em função de um profundo conhecimento acerca do design de tipos. Sabe-se que o que importa para a leitura não é a grade invisível que organiza os glifos, mas em como se dá o ritmo entre formas e contra- formas no texto percebido/visível. Nesse sentido, os espaços vazios dentro e fora das letras têm tanta importância quanto seu preenchimento. Mas é fato que, a partir da difusão da fotocomposição, mesmo essas regras puderam começar a ser “burladas” pelo designer compositor, possibilitando a criação de espacejamentos negativos, superposições e outros malabarismos gráficos nem sempre muito fun- cionais para a leitura, mas que podem gerar interesses particulares. Na tipografia digital essa liberdade ficou ainda mais enfatizada pelos softwares de edição de texto e diagramação.

16 Citação original em inglês: Letter-retangles of equal body-size could be composed to lines. They could be spaced but the rigid retangles of metal or wood could not overlap. Since the introduction of photocomposition they can, as the retangles have become imaginay now. [...] Typefounders and compositors might point at the solids that disapeared, but to the designer the retangle has always been imaginary. (NOORDZIJ, 2000, p. 04).

42

Com a tipografia digital, o design de tipos pôde ganhar diferentes propostas, com uma quantidade de abordagens estéticas distintas sem precedentes. Consi- derando os formatos digitais no projeto de tipos, as propriedades materiais são inevitavelmente deixadas em segundo plano. Não queremos dizer com isso que a matéria deixe de existir, pois sem ela a tipografia não poderia se efetivar concre- tamente, seja por meio da tinta e do papel (ou outro suporte), seja por meio de raios luminosos e em constante movimento das telas de computadores, aparelhos tele- visivos, celulares e dispositivos de leitura eletrônica.

Mas com os arquivos de fontes codificados em algoritmos e com sua construção feita por meio das curvas vetoriais de Bézier, as fontes deixam de ser associadas a um material em específico (metal, madeira, ou filme) e passam a poder ser inte- gradas a qualquer material, podem tomar a forma e o tamanho que for necessário, a partir de cálculos precisos.

A tipografia passa a ser encarada como software (ou como arquivos digitais) e, com isso, é aberta uma nova gama de possibilidades, não só no que diz respeito aos aspectos formais, mas também nas inteligências computacionais embutidas nas fontes. Sob essa perspectiva, Smeijers enfatiza que:

A transformação do tipo, de uma corporificação material fixa para o arquivo digital, nos abre outras possibilidades. As fontes tipográficas podem ser inteligentes. Podem ser feitas para modificar sua aparência randomi- camente. Isso é apenas o começo para novas potencialidades. Os tipos inteligentes serão capazes de fazer muito mais do que simplesmente se auto-representar. [...] (SMEIJERS, 1996, p. 183, tradução nossa17)

A partir do surgimento do formato OpenType, em específico, já é possível embutir algumas “inteligências” simples em fontes tipográficas, como substituições automáticas de determinados pares de caracteres por ligaturas, substituições por desenhos de glifos alternativos para um mesmo caractere, letras caudais, diferentes estilos de numerais, entre várias outras possibilidades gráficas, que já existiam na

17 Citação original em inglês: The transformation of type from a fixed material embodiment into digital file opens up further possibilities. can be smart. They can be made to modify and change apperance at random. This is just the start for new potentials. Smart typefaces will be able to do much more than simply represent tehmselves [...] (SMEIJERS, 1996, p. 183).

43

tipografia com matrizes físicas, mas que agora passam a exigir menos esforço intelectual e físico por parte do compositor. Essas ações podem ser programadas no arquivo digital, para que sejam facilmente acionadas, a critério de quem utiliza as fontes, no momento da composição do texto. Nesse sentido, amplia-se o escopo das preocupações e potencialidades envolvidas em projetos de tipos digitais. Entretanto, a operação efetiva dessa gama de possibilidades, presentes no novo formato, depende fundamentalmente do suporte fornecido pelos softwares gráficos ampla- mente difundidos, estabelecendo limites claros para o funcionamento de determi- nadas automações.

Quanto à realização processual da escrita, com o computador pessoal e ferramentas que possibilitam a execução de múltiplas tarefas, é dada ao designer a facilidade de experimentar novas soluções gráficas, visualizá-las em um monitor, apagar uma determinada ação com um simples toque de botões e refazê-la de outro modo, sem custos materiais adicionais. Para o designer de tipos, o ambiente digital também possibilitou algumas facilidades de operação. O tempo envolvido na produ- ção de uma fonte também pôde ser reduzido, embora, em âmbito profissional, conti- nue sendo grande, dada complexidade dos sistemas tipográficos.

Outra particularidade surgida com o design de tipos digitais foi a retomada da integridade do processo produtivo por parte do designer. Contrariando a lógica enfatizada pela revolução industrial, que separa o ambiente de projeto daquele da fabricação, com as tecnologias digitais passa a ser possível para o profissional atuar tanto no desenvolvimento das diretrizes gráficas que formam a identidade de um projeto tipográfico, quanto em sua produção efetiva que visa gerar uma fonte digital funcional (ou, em casos mais complexos, uma família com vários estilos derivados).

O fato é que se tornou possível para designers autônomos, ou mesmo para autodidatas, com equipamentos e softwares a preços relativamente acessíveis, ter contato com o mesmo aparato tecnológico utilizado por grandes empresas tradi- cionais especializadas. Com isso, ocorreu uma “democratização produtiva” no que diz respeito à concepção de novas famílias tipográficas. Ganhou-se liberdade, tanto do lado de quem utiliza tipos em projetos gráficos, quanto por parte de quem os projeta e fabrica.

44

Do mesmo modo, sua distribuição é amplamente facilitada pela sua repro- dução potencialmente infinita e a não necessidade de se ter um estoque. Nos tempos da tipografia de metal, madeira e filme, como ainda acontece com qualquer produto de propriedades materiais, era necessário que as fundições tivessem um determinado número de fontes fabricadas e disponíveis em estoque, bem como uma logística altamente sofisticada para distribuição em diferentes partes do mundo, envolvendo o tempo de deslocamento físico desses produtos.

Com a tipografia digital, o desenho tipográfico original (typeface) e as fontes (através das quais a produção de textos é possível) se aproximam, pois passa a ser utilizando um mesmo dispositivo técnico para a concepção formal e sua fabricação como arquivos funcionais. O arquivo de fonte gerado, quando instalado em um sistema, passa a ser a própria origem de reprodução. Com a anulação definitiva das distâncias para comunicação interpessoal e transferência de dados entre compu- tadores, várias dessas dificuldades operacionais são superadas, abrindo espaço para as propostas tipográficas autônomas, não apenas nos países centrais da eco- nomia, mas também nos países emergentes como o Brasil.

Em uma visão panorâmica das relações comerciais internacionais ao longo dos séculos, podemos notar alguns momentos de ruptura na relação com o tempo. No século 15, com as grandes navegações e o conseqüente início do processo de globalização, para que um produto se deslocasse de um continente a outro, poderia levar meses. Com o desenvolvimento tecnológico, esse tempo seria progressiva- mente reduzido, até que, com a aviação, no início do século 20, ele passaria a ser contado em horas. Com a rede mundial de computadores, finalmente, um produto imaterial pode cruzar o mundo em uma fração de segundos.

Essa redução do tempo entre uma ação e uma reação, ou seja, o intervalo entre input e output, aproximando-se progressivamente do zero, cria uma nova rela- ção com a realidade percebida. Todo modo de espera passa a ser percebido como uma falha, um entrave, um detalhe a ser removido da realidade, em favor da máxima eficiência operacional. Tendo em vista a tipografia como um recurso formal automa- tizado/mecanizado da escrita, e considerando seu novo paradigma tecnológico, ganha consistência teórica as considerações de Lévy, quando afirma:

45

[...] A escrita era o eco, sobre um plano cognitivo, da invenção sociotécnica do tempo delimitado e do estoque. A informática, ao contrário, faz parte do trabalho de reabsorção de um espaço-tempo social viscoso, de inércia, em proveito de uma reorganização permanente e em tempo real dos agenciamentos sociotécnicos: flexibilidade, fluxo tencionado, estoque zero, prazo zero. (LÉVY, 1993, p. 114)

Lévy usa o termo “escrita” para se referir às suas corporificações físicas, colocando a informática como um desdobramento da escrita histórica. Conforme já indicado, entendemos aqui a escrita em um escopo diferente, segundo o qual a informática pode englobar suas diferentes manifestações, inclusive e principalmente a tipográfica. Acreditamos que a informática serviu não para substituí-la, mas, ao contrário, para difundi-la ainda mais nesse novo contexto sócio-técnico.

É importante notar a perspectiva visionária de Lévy, tendo em vista que suas considerações foram publicadas quando a Web como conhecemos existia apenas ainda em caráter inicial/embrionário. Assim, os mecanismos de comunicação, nesse início de século, tendem a relativizar as referências espácio-temporais, num cons- tante fluxo de informações oferecidas. Na tipografia, podemos notar o crescente caráter efêmero de boa parte dos produtos, influenciados pela moda, tendo em vista o ritmo de produção mundial. Outros, por outro lado, resistem ao tempo, e perma- necem sendo utilizados mesmo depois de muitos anos.

Sintetizando essas considerações, entendemos o design de tipos digitais como o desenvolvimento de fontes tipográficas, organizadas em arquivos eletrô- nicos, que podem ser instalados em sistemas operacionais de computadores e utilizados em diferentes softwares gráficos como ferramentas de apoio para outros projetos, por outros profissionais das áreas do design e da comunicação. Sua especificidade, portanto, se dá em função dos objetos desenvolvidos. As fontes tipográficas digitais são arquivos codificados que podem ser visualizados em uma tela, utilizados por meio do teclado e permitem dar saída em diferentes tipos de impressoras, ou equipamentos de pré-impressão. Não possuem limitação material em sua constituição original (como ocorria, por exemplo, nos tipos de chumbo e de madeira) e permitem a programação de ações “inteligentes” que podem ser aplicadas no momento da composição. Sua limitação, por outro lado, se restringe às propriedades constitutivas das curvas vetoriais de Bézier, às possibilidades dos

46

softwares de criação e produção de fontes digitais e aos padrões do mercado de softwares gráficos.

Podemos dizer que, no âmbito profissional, para a concepção de uma fonte tipográfica dentro das tecnologias atuais, ou seja, no ambiente digital, é necessário, além dos desenhos de letras em caixa-alta, caixa-baixa, numerais, sinais diacríticos, sinais de pontuação e sinais para-alfabéticos, a programação das métricas tipográ- ficas em softwares de produção, bem como os ajustes de espaços vazios externos para cada caractere, os ajustes de kerning entre pares de caracteres específicos e a programação dos hints (dicas) – as instruções que possibilitam uma adequada renderização do texto na tela em diferentes tamanhos de corpo. Uma fonte tipográ- fica que atenda a diferentes padrões lingüísticos internacionais envolve uma grande quantidade de caracteres a serem projetados, além de suas relações espaciais na composição de palavras e frases.

47

2 – CONDIÇÕES E CARACTERÍSTICAS TECNOLÓGICAS E SÓCIO-ECONÔMICAS DO DESIGN DE TIPOS DIGITAIS

Em um processo que se inicia na década de 1960 e se acelera a partir da década de 1980, algumas importantes mudanças tecnológicas começaram a surgir e a modificar progressivamente as rotinas de trabalho dos designers gráficos, bem como dos designers de tipos.

Com as impressoras offset e de rotogravura, a qualidade de impressão pôde dar um salto considerável. Mais do que uma mudança tecnológica, é possível dizer que houve também uma mudança de paradigma – da impressão tridimensional para a impressão bidimensional, ou seja, da impressão feita pela força de uma matriz sobre o papel para aquela feita por repulsão entre água e gordura em uma chapa gravada.

Nos tipos fundidos, em seus equipamentos técnicos tardios – o Linotipo e o Monotipo –, a adesão da tinta no papel se dava por pressão, de modo a criar uma textura tátil característica. O desenho dos tipos deveria ser concebido tendo em vista essa realidade e limitação tecnológica. Com o desenvolvimento da impressão plana, além de ser dado um passo sutil na direção da desmaterialização da matriz, a reprodução tipográfica em larga escala deixa de ser restrita a equipamentos propri- etários – para ser mais exato, dos equipamentos fornecidos por duas empresas, que teriam uma posição privilegiada sobre uma boa fatia do mercado por muitos anos: a Linotype e a Monotype.

A tipografia em fotocomposição foi um importante salto tecnológico, que seria amplamente difundida na prática profissional. Representou um período de transição da tipografia em matrizes físicas para uma progressiva implementação dos formatos digitais. Sobre essa mudança tecnológica, Robert Bringhurst, aponta para a nova realidade que começaria a ser criada:

48

A escolha de fontes era reduzida. E com o uso súbito e amplamente difundido dessas máquinas complexas, porém simplificadoras, veio o colapso final do antigo sistema de ofício dos aprendizes e das guildas. As máquinas de fotocomposição e os seus usuários mal tinham começado a dar conta dessas disfunções quando o equipamento digital apareceu para substituí-las. [...] em retrospecto a era da fototipia parece apenas um breve interregno entre o metal quente e a composição digital. No fim das contas, a inovação mais importante no período 1960-80 não foi a conversão das fontes para o filme ou para o metal, mas o advento dos computadores para editar, compor, corrigir o texto e comandar as últimas gerações das máquinas de composição. (BRINGHURST, 2005, p. 155)

A velocidade na produção gráfica dá um novo salto, reduzindo custos mate- riais tanto na fabricação de novos tipos quanto para aqueles que iriam usá-los. Mas é apenas com a tipografia digital no desktop publishing que uma efetiva disponi- bilização em larga escala da tecnologia necessária para a produção começa a se configurar. Com ela, novas empresas e profissionais autônomos puderam atuar criativamente numa área antes mitificada por muitos e restrita a uma pequena elite técnico-intelectual.

Nos primórdios da era digital, já em 1975, as famílias Marconi, de Hermann Zapf, e Demos, de Gerard Unger, foram os primeiros desenhos tipográficos originais traduzidos para a nova tecnologia dos computadores. Utilizando o sistema Ikarus, desenvolvido pela empresa URW em 1973, esses primeiros tipos digitais eram descritos em linhas de contorno, a partir de equações matemáticas simples, e renderizadas em pixels, nos seus diferentes tamanhos de corpo. Essa tecnologia possibilitou a saída em diferentes equipamentos que utilizavam computadores, como impressoras matriciais, plotters e equipamentos de corte para sinalização.

Figura 10 – Fonte Demos Regular (1975), de Gerard Unger – um dos primeiros tipos traduzidos para a tecnologia digital. Ao lado, grade de construção em pixels de uma letra “s” da fonte Demos Bold.

49

Durante alguns anos outros sistemas de construção tipográfica digital concorreram em paralelo, até serem progressivamente substituídos pelos métodos que utilizavam curvas de Bézier cúbicas e quadráticas. Vivemos em um momento histórico de ampliação dessa área específica do design, com um grande número de profissionais, incluindo alguns brasileiros, trabalhando exclusivamente no desenvol- vimento de novas famílias tipográficas. Isso se torna possível, entre diversos outros fatores, pela difusão dessas novas tecnologias nas últimas décadas. Com isso, novos agentes surgem e passam a constituir um novo sistema de produção, tanto no que diz respeito aos aspectos tecnológicos quanto de mercado.

2.1 - O computador pessoal / desktop publishing / formatos digitais

Entre os equipamentos técnicos que permitiram as mudanças no modo de produção e distribuição de fontes tipográficas, podemos afirmar que a invenção do computador pessoal foi determinante para tal fenômeno. Com a criação, em espe- cial, das interfaces gráficas de sistemas operacionais, baseados na metáfora do escritório, o computador pôde, efetivamente, começar a fazer parte do universo projetual dos designers. A concepção do computador pessoal pronto para usar, em oposição àqueles anteriores cujo principal interesse seria a montagem e progra- mação, foi determinante para as mudanças na relação dos designers gráficos com as ferramentas de projeto. Desse modo, podemos dizer que o Apple Macintosh, lançado em 1984, é um marco definitivo para a concepção da chamada informática amigável, em vigência até a atualidade. Auxiliado pela difusão de impressoras de baixo preço, o Apple Macintosh encontrou suporte para se tornar um “elo essencial de uma cadeia de publicação auxiliada por computador (LÉVY, 1997, p. 50)”.

Com a rápida difusão desses equipamentos (hardwares) e seus programas (softwares), os designers passaram a poder operar várias ferramentas em um mesmo dispositivo técnico. Além disso, com a possibilidade de edição e visualização de conteúdos gráficos, na tela, em tempo real, abriu-se um novo caminho para expe- rimentações a baixo custo operacional e com tempo de execução sensivelmente reduzido. Com os primeiros programas de edição e construção de arquivos de fontes

50

tipográficas digitais no desktop, em especial o Fontstudio, da extinta Letraset e o Fontographer, da também extinta empresa Altsys, logo uma nova geração de designers surgiria, com experimentos formais sem precedentes em termos quanti- tativos. Mais tarde, já na década de 2000, outro programa passaria a dominar o mercado – o Fontlab Studio da empresa Fontlab Ltd.

Acerca desse tema, Farias afirma que,

O advento de novas tecnologias da escrita e da impressão, como o desenvolvimento das técnicas de fotocomposição (a partir do final da 2ª Guerra), as letras transferíveis (1957), as copiadoras eletrostáticas (1959), e principalmente o desktop publishing (1984), fez crescer o interesse pela tipografia. Até muito pouco tempo, contudo, o campo ‘oficial’ do design de tipos era reservado a poucos especialistas. Uma prova disso é a constatação de que as inovações tipográficas surgidas em contextos de experimentação, pelo menos até a década de 80, são inovações muito mais ligadas a usos não tradicionais de caracteres já existentes do que à criação de novas fontes (FARIAS, 2000, p. 18).

Desse modo, novas configurações produtivas começariam a se organizar. É nesse contexto técnico que surgem algumas das primeiras “digital type foundries”, fornecendo fontes digitais para diferentes usos.

No início da década de 1980, o principal interesse seria desenvolver fontes para uso nas telas de baixa resolução dos computadores existentes até então. As fontes bitmap seriam adequadas para essa situação de uso e suas formas eram definidas por um mapa de pixels para cada caractere, em cada tamanho em que seriam exibidas na tela. Na impressão, entretanto, seu aspecto seria bastante precário quando ampliado a grandes tamanhos. Com o surgimento dos formatos de fontes em arquivos vetoriais escalonáveis, passou-se a desenvolver também fontes que pudessem ser utilizadas adequadamente na impressão, por meio de instruções matemáticas precisas que preservariam as formas das letras, em diferentes tamanhos, quando impressas. Para tanto, os computadores da Apple utilizariam o formato PostScript Type 1, desenvolvido e patenteado pela Adobe.

Em 1985, a Apple adotou o sistema de descrição PostScript em suas pri- meiras impressoras laser, juntamente com o programa de diagramação PageMaker.

51

Com uma rápida difusão, em pouquíssimo tempo o PostScript se tornaria um padrão de mercado, revolucionando a indústria gráfica mundial.

No final da década de 1980, a Apple desenvolveu um novo formato em paralelo, o TrueType, que faria sua estréia em 1991, no seu sistema operacional Mac OS 7, e seria adotado também pela Microsoft, logo depois, em seu sistema operacional Windows 3.1.

Alguns anos depois, ambos os formatos passaram a ser utilizados, tanto pela Microsoft, a partir do Windows 2000, quanto pela Apple, a partir do Mac OS X. Entretanto, a necessidade de pagar royalties a um de seus principais concorrentes motivaria a Microsoft a desenvolver sua própria tecnologia de fontes, chamada inicialmente de TrueType Open. Em 1996 a Adobe juntou suas forças à empresa de Bill Gates, integrando as instruções de outlines PostScript no novo formato, final- mente rebatizado de OpenType.

Alguns acordos entre as principais empresas desenvolvedoras de software, e o aperfeiçoamento do novo formato nos anos subseqüentes, faria com que, a partir de meados da década de 2000, o OpenType se tornasse o principal padrão da indústria tipográfica. Isso se deu, de um lado, pela questão da compatibilidade: o formato OpenType passou a ser compatível com ambos os principais sistemas operacionais do mercado (Mac OS e Windows), de modo que um mesmo arquivo de fonte pudesse ser instalado em diferentes plataformas, sem a necessidade codifi- cação específica de diferentes arquivos para cada sistema. Também no sentido da compatibilidade, um arquivo OpenType pode incluir tanto instruções TrueType (de curvas quadráticas) quanto instruções PostScript (de curvas cúbicas). Num outro sentido, o OpenType possibilitou a programação de algumas funcionalidades e variações formais de glifos, que podem ser projetadas previamente e automatizadas num mesmo arquivo de fonte, tais como: ligaturas, frações, diferentes estilos de numerais, substituição contextual por glifos com desenho alternativo, substituição por versaletes e a possibilidade de um amplo suporte para diferentes sistemas lingüísticos.

52

Ao longo das últimas duas décadas, a tecnologia de fontes escalonáveis para impressão permaneceu essencialmente a mesma, com pequenos refinamentos técnicos. No que diz respeito à visualização na tela, foram desenvolvidas as tecno- logias de hinting. Tratam-se de instruções programadas no momento do projeto, que determinam um comportamento previsto para a visualização das fontes, que pode variar consideravelmente em diferentes sistemas de renderização.

2.2 – Tipos digitais e novas mídias

Como sabemos, a tradição no design de tipos ao longo de seus cinco séculos foi construída em uma relação estreita com o universo da impressão. As relações materiais entre os leitores e os objetos gráficos nunca estiveram limitadas ao visual, embora saibamos que este ocupe o papel de protagonista entre os sentidos. Na impressão, os métodos utilizados, os pigmentos, os suportes e os acabamentos contam tanto quanto o desenho tipográfico em si. A tipografia sempre se inseriu nesse contexto técnico. Foi apenas com as produções videográficas e, pouco depois, com as interfaces gráficas digitais, que o desenho tipográfico deixou sua relação com a matéria pigmento, para entrar numa nova relação com a matéria luz. Com os formatos digitais, deixou uma existência materialmente palpável, para entrar em uma outra, em bits. Na tela, a troca de impulsos eletro-químicos, que existe na relação tátil com o papel e olfativa com a tinta, dá lugar a uma relação puramente visual com as unidades mínimas de cor luz (RGB) e, finalmente, com sua materialização final nos monitores de computadores, em pixels.

Como vimos anteriormente, essa relação e a necessidade pragmática de adaptar as antigas fontes tipográficas às novas tecnologias, deram origem à tipografia digital. Atualmente, as fontes tipográficas contêm instruções para que funcionem tanto na saída em impressoras e equipamentos de pré-impressão, quanto na visualização na própria tela – seu ambiente original no qual é projetada. Historica- mente, sabemos que nenhuma nova tecnologia substitui por completo uma anterior, e sim fornece novos subsídios e, conseqüentemente, acrescenta novas possibi- lidades para suas antecessoras. Como a indústria da impressão permanece funcio-

53

nando plenamente, a tipografia digital teve que se adequar a essa realidade e a maior parte do mercado de novas fontes continua voltado para esse fim. Por outro lado, as interfaces gráficas digitais, já há algum tempo, dão fortes sinais de sufici- ência pragmática para certos fins, e a tipografia voltada exclusivamente para esses meios já dá sinais de ser um novo campo a ser explorado.

Nos dispositivos móveis como o aparelho celular, o aumento progressivo na resolução das telas começa a diminuir os limites de aplicação tipográfica. Em telas de 1 bit (geralmente preto e branco), o desenho das chamadas fontes bitmap teve seu papel fundamental nessa transição. Com as novas telas com maior profun- didade de cor, o texto pode ter seus contornos suavizados e, com isso, começa a se aproximar do resultado visual obtido na impressão. O mesmo princípio ocorre nas telas de computadores desktop e laptop, bem como nos dispositivos de leitura que começam a surgir, também chamados de leitores ou livros eletrônicos, como o Amazon Kindle, a linha Sony PRS e o Apple iPad. O avanço tecnológico nesse sentido, faz com que os designers de tipos tenham que se preocupar cada vez mais com os diferentes modos de aparecimento de suas fontes nas telas, em diferentes tecnologias de renderização de texto.

Outro debate muito recente nesse sentido diz respeito à ampliação do uso de fontes em páginas da Web. Embora as fontes digitais sejam encaradas como software, existem problemas quanto à sua distribuição, pois os modelos de licenci- amento atuais não prevêem a disponibilização dos arquivos em servidores de acesso público – necessários para que uma fonte que não é padrão dos sistemas operacionais seja lida corretamente na rede. No entanto, soluções paliativas estão sendo desenvolvidas nesse sentido – todas em fase de testes e de exploração de mercado.

54

2.3 – Novas configurações de mercado

Para compreendermos o contexto em que o Brasil começa a consolidar sua produção de tipos digitais e se inserir em um quadro internacional, antes se faz necessário conhecermos alguns dos principais atores pioneiros no design de tipos digitais, que impulsionaram esse mercado ao longo da década de 1980 e 1990. É o caso da empresa Bitstream Inc., conhecida por ter sido a primeira a ser nomeada como uma fundição de tipos digitais (digital ) – termo este que seria amplamente difundido nos anos subseqüentes. A empresa foi fundada em 1981 por Matthew Carter e Mark Parker, na pequena cidade de Marlborough, no estado de Massachusetts, Estados Unidos. A Bitstream atenderia uma demanda de mercado, desenvolvendo versões digitais de vários tipos tradicionais. Devido a questões legais do direito autoral americano, suas primeiras fontes foram lançadas com nomes diferentes em relação aos desenhos originais em que foram baseadas. Posterior- mente a empresa desenvolveria também tipos de desenho inédito, ampliando seu catálogo. Ao longo dos anos subseqüentes, a Bitstream se tornou uma grande empresa de tecnologia, de capital aberto na Nasdaq. É a proprietária do portal MyFonts que, na década de 2000, se tornou um dos maiores e mais receptivos distribuidores de fontes no mundo, possibilitando a entrada de vários designers de tipos brasileiros no mercado internacional.

Com uma importância histórica semelhante, podemos citar a fundição digital Emigre, fundada em 1984 pelo casal Rudy VanderLans e Zuzana Licko, na cidade de Berkeley, estado da Califórnia, Estados Unidos. Além de estar diretamente envol- vida com a produção de tipos inéditos para as tecnologias de desktop publishing dos computadores Macintosh, a Emigre exerceu uma importante influência sobre designers de tipos em todo o mundo, especialmente na década de 1990. Isso se deu, principalmente, por meio da publicação de sua revista homônima, a partir do mesmo ano de sua fundação. Teve 69 números publicados ao todo, entre 1984 e 2005. Com estética e conteúdo questionadores, a revista Emigre logo se tornaria uma referência para a nova geração de designers de tipos que surgiria nos anos de 1990, ao lado de outras revistas sobre cultura visual como a Eye Magazine, Communication Arts, Fuse, Ray Gun e a científica Visible Language.

55

Pouco depois, entre os anos de 1988 e 1990, Erik Spiekermann e sua esposa Joan, juntamente com Neville Brody, criaram a distribuidora FontShop International. Criaram também a fundição digital FontFont, convidando jovens designers de tipos para fornecerem produtos para seu catálogo. Entre eles podemos citar os próprios fundadores, além de alguns designers europeus como Peter Biak, Erik van Blokland, Just van Rossum, Fred Smeijers, entre vários outros. Em pouquíssimo tempo, a FontShop se tornaria uma das maiores e mais respeitadas empresas revendedoras de fontes no mundo, incorporando os catálogos de outras fundições digitais associadas. É uma empresa multinacional, com sede em San Francisco, Estados Unidos, e filiais na Alemanha, Áustria, Bélgica e Austrália. A penetração de fontes brasileiras nesse distribuidor ainda é pequena. Isso acontece, em certa medida, pelos rígidos critérios de seleção para o estabelecimento de par- cerias, diferentemente de outros revendedores que surgiriam depois, como a T-26 (na década de 1990) e MyFonts (na década de 2000) com estruturas mais modestas e políticas mais abertas para a inclusão de novos tipos com diferentes propostas estéticas.

Paralelamente a essas iniciativas pioneiras, algumas empresas de maior tradição tipográfica, como a Monotype Corporation, a Linotype GmbH e a Interna- tional Typeface Corporation (ITC), migraram para a nova realidade digital, reproje- tando seu acervo de fontes para os novos formatos, mantendo também uma posição privilegiada no fornecimento desses produtos. Pelo fato dessas empresas possuírem os direitos intelectuais de grande parte dos tipos “clássicos”, passaram a apostar muito mais no licenciamento de famílias tipográficas que já obtinham bastante demanda por parte dos designers gráficos na era pré-digital do que no desenvol- vimento de tipos de desenho inédito. Por outro lado, essas empresas passaram a comercializar também alguns tipos desenvolvidos já na era digital, por designers de todo o mundo, sendo alguns deles brasileiros, como veremos adiante, no Capítulo 3.

A história dessas empresas na era digital passou por uma série de fusões e mudanças de nome. Em 1986 a ITC comprou a Letraset – empresa que ficou mundialmente conhecida pelo fornecimento de letras transferíveis. Em 1999, a Monotype Corporation foi comprada pela multinacional Agfa-Compugraphic, mudan- do seu nome para Agfa Monotype. Logo depois, em 2000, a Agfa Monotype incor-

56

porou a ITC. Em 2004 foi novamente comprada pela mega-corporação norte- americana de investimentos de capitais TA Associates, mudando de nome mais uma vez para . Em 2007 a nova Monotype Imaging comprou também a Linotype GmbH. Com isso, essas três empresas tradicionais finalmente se tornaram parte de uma mesma corporação, embora continuem mantendo suas marcas e sedes individuais nos Estados Unidos e na Alemanha.

Em pouco tempo, centenas de outras fundições digitais independentes viriam a surgir em todo o mundo, ampliando consideravelmente a quantidade de tipos de desenho inédito fornecidos para licenciamento e uso pelos designers gráficos.

2.4 - A internet como meio de difusão de produtos

A distribuição comercial de tipos digitais em âmbito internacional teve início muitos anos antes da criação da internet, utilizando meios de comunicação tradi- cionais como o telefone e o correio. Mas sua implementação, aos poucos, fez com que a difusão da produção de designers de tipos independentes (incluindo os brasileiros) ganhasse outras proporções.

Embora a Internet tenha sido construída, inicialmente, com fins estritamente militares, é com sua difusão pelo mundo, fazendo uso da chamada Word Wide Web, que finalmente ganhou interesse público. A partir do ano de 1993, com a introdução do navegador Mosaic e, pouco depois, em 1994, com o Netscape Navigator 1.0, o compartilhamento de documentos hipermídia, contendo textos, imagens e sons, passa a ser utilizado em larga escala, por meio de conexões remotas entre compu- tadores, utilizando as linhas telefônicas. A lógica do hipertexto e de seu sistema de navegação entre diferentes páginas por meio de hiperlinks, foi determinante para que essa disseminação fosse possível. No mesmo ano de 1994, diferentes serviços e produtos já seriam oferecidos, utilizando a rede mundial de computadores como mídia auxiliar.

57

É nesse novo contexto técnico que surgem fundidoras como as norte- americanas House Industries e T-26, publicando trabalhos experimentais de alta qualidade técnica e catálogos impressos que logo ganhariam o gosto de grande parte dos designers. Durante a segunda metade da década de 1990, as vendas de fontes aconteciam de maneira híbrida, utilizando a internet, o telefone e o correio convencional para entregas. As fundidoras apostavam no refinamento de seu mate- rial impresso, que viria acompanhado de disquetes com os arquivos para instalação.

Mas foi apenas no início da década de 2000 que o modelo de negócios baseado na Web começaria a dominar amplamente o mercado tipográfico. Com o aumento progressivo das velocidades de conexão e transmissão de dados, o comércio eletrônico, nesse âmbito, apresentaria algumas vantagens. Pelo fato de o produto final ser um arquivo eletrônico, este não sairia de seu meio original – os discos rígidos dos computadores. Tendo isso em vista, reduziu-se também o tempo de entrega. Pelo fato de os produtos não serem mais enviados pelo correio, mas por uma interface eletrônica, permitiu-se o download imediato. A facilidade e a velo- cidade das vendas puderam encontrar espaço para um fluxo de dados e de capitais em outras proporções. A divulgação dos produtos, também baseada na Web, reduziria sensivelmente os custos envolvidos, antes ancorados na publicação e envio de catálogos impressos.

No congresso da ATypI (Association Typographique Internationale) de 1999 foi anunciado o surgimento do distribuidor MyFonts, vinculado à sempre pioneira Bitstream, entrando em atividade na Web efetivamente em 2000. Apoiado no comércio eletrônico, o novo modelo apresentava algumas diferenças em relação aos demais. Várias fundições poderiam apresentar seus produtos em um mesmo espaço de vendas online, concorrendo diretamente entre si. Outra característica do MyFonts foi a abertura para diferentes propostas estéticas, muitas vezes antagônicas, pouco selecionando o que deveria ser publicado. Ofereciam um alto percentual de royalties para os designers e fundições, acima do padrão de mercado até aquele momento – o que possibilitou o surgimento de centenas de profissionais autônomos vendendo seus produtos sob uma nova marca, ao invés de vincular sua produção a uma fundidora já existente.

58

Quando nos referimos a uma nova marca, é importante ressaltar que grande parte das fundições digitais que vemos no mercado hoje não são necessariamente empresas. Em muitos casos, e especialmente nos países de economia ainda pouco desenvolvida, um designer de tipos cria sua própria “fundição” pessoal, assinando seus contratos de distribuição como pessoa física, mas apresentando seus produtos sob um nome fantasia que facilite a assimilação internacional. A fundição, nesses casos, nada mais é que um nome, uma marca, um domínio registrado na internet e um designer (ou um grupo de designers) com equipamentos e conhecimentos necessários para projetar e produzir fontes próprias.

Rapidamente muitas empresas e designers independentes se associariam a esse modelo de distribuição. Outros distribuidores anteriores ao MyFonts, como a FontShop, continuariam suas atividades em paralelo, embora com políticas de publicação mais conservadoras, apostando na imagem da alta qualidade técnica e estética de seus produtos. Pouco depois, em 2001, a Agfa Monotype (atual Monotype Imaging) lançaria sua loja eletrônica Fonts.com.

É importante notar que, mais do que simples mudanças pontuais na tecno- logia envolvida na atividade do design e distribuição de tipos, bem como nos siste- mas de comunicação, estamos entrando em um novo modo de organização de forças de mercado, ancorado nas interfaces digitais, que rapidamente estabelece sua própria lógica de funcionamento. Nesse sentido, Lévy aponta que,

Basta que alguns grupos sociais disseminem um novo dispositivo de comunicação, e todo o equilíbrio das representações e das imagens será transformado, como vimos no caso da escrita, do alfabeto, da impressão, ou dos meios de comunicação e transporte modernos. Quando uma circunstância como uma mudança técnica desestabiliza o antigo equilíbrio das forças e das representações, estratégias inéditas e alianças inusitadas tornam-se possíveis. Uma infinidade heterogênea de agentes sociais exploram as novas possibilidades em proveito próprio (e em detrimento de outros agentes), até que uma nova situação se estabilize provisoriamente, com seus valores, suas morais e sua cultura locais (LÉVY, 1993, p. 16).

A partir de meados da década de 1990 e, especialmente, da década de 2000, novas empresas se estabeleceriam, outras ampliariam seus catálogos de fontes disponíveis, utilizando a rede mundial de computadores como principal meio de negócios. Os grandes revendedores de fontes digitais se tornaram lojas virtuais, em

59

que se pode buscar, testar, comprar e baixar fontes licenciadas para uso em compu- tadores pessoais. No que diz respeito às fontes em catálogos, a Web se tornou o principal meio de fluxo de dados e de capitais envolvidos nesse mercado. Devido à própria natureza dos arquivos digitais, de reprodução imediata e em número indeter- minado de cópias, sem qualquer custo envolvido nessa tarefa, a comercialização de arquivos eletrônicos trouxe algumas vantagens em relação aos produtos físicos, bem como novos dilemas a serem solucionados, como a conseqüente disseminação de cópias ilegais.

2.5 – Crescimento da produção/comercialização

As facilidades da era digital trouxeram para a tipografia, assim como para outros campos de produção de bens culturais, uma maior democratização do conhe- cimento produtivo e uma conseqüente ampliação mercadológica.

Como vimos, com o surgimento das chamadas “fundições digitais” indepen- dentes abriu-se, a partir de meados da década de 1980, um novo campo de possibi- lidades. Nesse sentido, aparecem novos profissionais atuando no meio e em quan- tidade visivelmente maior que nas décadas anteriores à existência do computador pessoal (desktop PC) e das interfaces gráficas dessas máquinas.

Atualmente, o mercado internacional de tipografia digital é um nicho de atuação de designers que cresce visivelmente a cada dia. Com as facilidades de comunicação estabelecidas pelas novas tecnologias, os designers de tipos brasi- leiros passam a ter uma maior facilidade de se inserir num mercado que é global. Desse modo, faz sentido considerar alguns agentes que possibilitam a difusão de parte da produção brasileira nesse sentido, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, onde a demanda pelo licenciamento de tipos inéditos é visivelmente maior do que em nosso mercado interno.

Se tomarmos como um exemplo o mercado de varejo (retail fonts), ou seja, o desenvolvimento e comercialização de fontes tipográficas de uso não-exclusivo

60

para diferentes profissionais em pequenas quantidades, vemos que o crescimento da produção dos designers desse segmento e suas conseqüentes implicações econômicas e culturais andam a um passo muito mais largo do que as análises críticas a esse respeito.

Observando o portal MyFonts.com – atualmente um dos maiores reven- dedores de fontes no mundo em termos de volume e que abarca uma grande quantidade de tipos feitos por designers brasileiros – pudemos levantar algumas informações relevantes em seu banco de dados público18.

No que diz respeito às fontes brasileiras distribuídas por esse canal de vendas, podemos observar um crescimento quantitativo considerável nos últimos 8 anos. Até o ano de 2009, o total de fontes nacionais disponíveis no MyFonts soma 662, o que demonstra que essa empresa norte-americana se tornou um importante agente na difusão de nossa produção tipográfica comercial de varejo em âmbito internacional. O ritmo da produção brasileira distribuída por seu canal de vendas online pode ser visto no gráfico a seguir:

Figura 11 – Gráfico do ritmo de publicação de fontes brasileiras no revendedor norte-americano MyFonts.

18 Disponível em . Último acesso em 1o jan, 2010.

61

É possível observar um crescimento progressivo no ritmo de publicação nacional entre 2002 e 2005 e uma aceleração visível entre os anos de 2006 e 2007, atingindo seu pico em um momento de superprodução geral da economia mundial. O ritmo sofreu uma desaceleração no ano de 2008 – momento marcado pela crise econômica global – e continuou decaindo em 2009. Com uma menor quantidade de capital circulando nos Estados Unidos e na Europa e com o crescimento qualitativo dos tipos oferecidos, o mercado internacional, conseqüentemente, se torna mais exigente.

Os fatores econômicos podem ajudar a compreender essa queda quanti- tativa nacional nos últimos 2 anos, embora ela possa ser explicada também, em grande parte, pela progressiva especialização da atividade do design de tipos no Brasil. Com uma maior difusão de conhecimentos específicos e com a qualificação dos especialistas na área ao longo da década de 2000, é previsível que o cresci- mento quantitativo continue sofrendo uma redução em seu ritmo no início da década de 2010, em benefício do crescimento qualitativo da produção nacional.

2.6 – A tipografia segundo padrões contemporâneos de produção e consumo

Tendo em vista as implicações sociais envolvidas na disseminação das novas tecnologias, faz sentido refletirmos aqui sobre alguns aspectos das redes de relações entre sujeitos e objetos/informações estabelecidas nas últimas décadas. Para isso, utilizamos formulações de Gilles Lipovetsky e Pierre Lévy, estabelecendo paralelos com as mudanças na indústria tipográfica.

2.6.1 – Paradigma hipermoderno

Com centenas novas fontes tipográficas sendo oferecidas todos os meses, há um problema de caráter prático: Como dar vazão a tamanha produção? Reven- dedores como MyFonts, que tem como foco uma variedade dissolvida de diferentes

62

públicos, optam por dar especial ênfase midiática aos tipos recém-lançados. Com isso, outros tipos tendem a cair em número de vendas, quando não no esqueci- mento, num fluxo constante de mecadorias-moda. Nesses casos, o caráter de projeto que tem em vista a permanência perde um espaço relativo, dando lugar ao efêmero e à satisfação imediata. Outros importantes revendedores como FontShop e Linotype, tendem a publicar uma menor quantidade de novas fontes em seus catálogos. Pelo fato de esses revendedores possuírem um considerável número de patentes das suas chamadas fontes “originais”, sob as marcas FontFont e Linotype Originals, respectivamente, estas tendem a reapresentar, nos veículos de comuni- cação com seus clientes, suas próprias fontes e as de um grupo seleto de fundições associadas. Mesmo nesses casos, embora essa multiplicação ocorra de maneira menos extrema, a oferta de novos produtos também cresce progressivamente.

A atividade de conceber novas famílias tipográficas – que tradicionalmente sempre envolveu um longo tempo de desenvolvimento de projeto – , atualmente, já começa a sofrer os reflexos do novo ritmo do movimento na economia e dos modos de percepção nas relações sociais. Além disso, sendo as fontes tipográficas digitais arquivos organizados por meio de algoritmos, sua vida útil potencial é ilimitada, ao menos enquanto permanecerem em operação os dispositivos técnicos necessários para sua leitura. Entretanto, o tempo de vida percebido da maior parte desses produtos é sempre menor, pois cada uma dessas criações se insere numa indústria que precisa de atualização constante para reproduzir seu capital. Fontes criadas há pouco tempo são deixadas de lado em benefício de outras mais novas, num paradigma de renovação levado às últimas conseqüências.

Nesse sentido, não estaríamos mais em ruptura com a tradição, conforme o paradigma moderno, mas num processo de renovação constante daquilo que é disponibilizado no mercado. Desse modo, há uma contradição estabelecida entre o que a tecnologia pode nos oferecer em termos de estabilidade e o que o mercado espera para a manutenção do fluxo capitalista. Por outro lado, produtos vistos como “tradicionais”, não são propriamente descartados, pois continuam tendo grande procura. O que ocorre é um crescimento constante do banco de dados de fontes disponíveis para o uso, que já começam a atingir patamares quantitativos que impedem o conhecimento pleno dos designers acerca de tudo o que é produzido e

63

disponibilizado nesse sentido. O fato é que, embora com a rede mundial de compu- tadores, tudo tenha atingido patamares internacionais, deixamos de lado os grandes projetos de reformulação global e passamos a valorizar os pequenos projetos de reformulação individual, valorizamos menos as ideologias universalistas e mais o pequeno discurso, que se insere, cedo ou tarde, nos mecanismos da sociedade de consumo. Nesse sentido, Lipovetsky inaugura o conceito do paradigma hipermo- derno, segundo o qual,

Tudo se passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se não mais de sair do mundo da tradição para ascender à racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria modernidade, racionalizar a racionalização - ou seja, na realidade destruir os “arcaísmos” e as rotinas burocráticas, pôr fim à rigidez institu- cional e aos entraves protecionistas, relocar, privatizar, estimular a concorrência [...] A mitologia da ruptura radical foi substituída pela cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rentabiliade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovação. Resta saber se, na realidade, isso não significa modernização cega, niilismo técnico-mercantil, processo que transforma a vida em algo sem propósito e sem sentido. (LIPOVETSKY, 2004, p. 57)

Dessa maneira, a presença das contradições relativas ao modo com que o mundo contemporâneo se organiza devem ser levadas em consideração quando tratamos dos valores envolvidos na concepção, produção e difusão de novos produtos. Numa sociedade voltada cada vez mais para o que Lipovetsky chamou de hiperconsumo (2004, pp. 24-26) – um desdobramento do consumo de massa, esta- belecido a partir das últimas décadas do século passado – , cresce a demanda por tipos para composição de textos voltados para uma diferenciação no aparecimento, em confluência com o movimento de fluxo acelerado das mercadorias. Esse novo paradigma do consumo é definido pelo autor como:

[...] um consumo que […] se dispõe em função de fins e de critérios individuais e segundo uma lógica emotiva e hedonista que faz que cada um consuma antes de tudo para sentir prazer, mais que para rivalizar com outrem. O próprio luxo, elemento de distinção social por excelência, entra na esfera do hiperconsumo porque é cada vez mais consumido pela satisfação que proporciona (um sentimento de eternidade num mundo entregue à fugacidade das coisas), e não porque permite exibir status. (LIPOVETSKY, 2004, pp. 25-26)

64

Com isso, fica clara a ascensão do design que visa despertar aspectos emocionais das pessoas, na busca pelo prazer efêmero, que tende a levar em consi- deração particularidades do comportamento individual. Vivemos em momento no qual algumas dessas contradições começam a ser colocadas em cheque, tendo em vista a recente crise econômica internacional. Observando os tipos que ocupam posições privilegiadas nos rankings de mais vendidos, nos revendedores que tornam essa informação pública como FontShop e MyFonts, é possível especular que vivemos num momento peculiar em relação à diversidade de abordagens estéticas bem sucedidas. Talvez caiba as palavras de Aldus Manutius, fundidor visionário do final do século 15, que consideraria que tipos de bom desempenho podem ser tam- bém aqueles capazes de serem “apreendidos pelo coração” (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004, p. 27).

2.6.2 – A compressão do espaço-tempo e o presentismo

Aqui trataremos de um fenômeno contemporâneo abordado tanto por Pierre Lévy quanto por Gilles Lipovetsky. Ao consultar esses autores, pudemos notar que, em certo ponto do raciocínio, ambos tratam do mesmo fenômeno, apenas em diferentes perspectivas e com diferentes palavras. Tal fenômeno é chamado tanto por Lipovetsky quanto por Lévy de “presentismo”. Em outros momentos são utili- zados também os termos “compressão do espaço-tempo” e “tempo real”, para se referir às mudanças acerca da realidade percebida, proporcionada pela aparente imediatez na era da informática em que vivemos.

Com o fenômeno da informática e da rede mundial de computadores, o fluxo de informações textuais ganha um modo de operação diferente das mídias analó- gicas/impressas. Enfatizado mais recentemente pelo fenômeno dos blogs e das redes sociais, cada sujeito passa a desempenhar, potencialmente, um papel de autor e pode influenciar opiniões e ações daqueles que lhe são, ao mesmo tempo, leitores e críticos, informados e informantes. A tipografia aplicada diretamente na Web ainda encontra sérias limitações se comprada com a gama de possibilidades

65

que temos no universo da impressão. Entretanto agenciamentos técnicos já estão sendo feitos no sentido de aumentar drasticamente essa gama de possibilidades.

Em suas primeiras décadas, o papel da Web sobre tipografia ainda é o de difusão de produtos/arquivos em larga escala. Em 2009, entretanto, já podemos ver ações efetivas no sentido contrário, da retro-alimentação – as fundições tipográficas, em comunicação com os desenvolvedores dos navegadores e empresas de tecno- logia, pretendendo modificar o aspecto visual da Web.

Considerando os mecanismos de comunicação da rede mundial de compu- tadores, com o surgimento do conceito de “tempo real”, a realidade percebida pas- saria a ser não mais reflexo de uma sucessão lógica de acontecimentos históricos, mas uma seqüência ininterrupta de momentos presentes. Ao invés de pretender abarcar todos os conhecimentos verdadeiros sobre um determinado assunto, a vocação das redes informáticas parece ser a de colocar o conhecimento operacional mais atual (e, portanto, sempre obsoleto) à disposição dos profissionais especi- alistas, bem como a de difundir informações para os chamados usuários, de acordo com os interesses desses especialistas. Uma relação de poder é criada entre aqueles que programam e aqueles que são programados. Mas esses limites de papéis não podem ser claramente estabelecidos, pois sempre será preciso utilizar um programa já concebido por outros para seguir adiante com a cadeia produtiva.

Fora do contexto altamente especializado, a maior parte dos indivíduos (os chamados usuários) permanece na base da pirâmide informática. Acerca da relação com o tempo e com o conhecimento, Lévy esclarece que:

A noção de tempo real, inventada pelos informatas, resume bem a carac- terística principal, o espírito da informática: a condensação no presente, na operação em andamento. O conhecimento de tipo operacional fornecido pela informática está em tempo real. Ele estaria oposto, quanto a isso, aos estilos hermenêuticos e teóricos. Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e do tempo linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelas redes de informática. (LÉVY, 1993, p. 115, itálico do autor)

66

Em uma sucessão de estímulos imediatos, o problema da acumulação de informações dá lugar ao problema da seleção de informações de interesse. Se anali- sarmos o desenho tipográfico como um discurso visual, poderemos dizer que ele tem a vocação para enfatizar significados sugeridos em um texto. A forma das letras teria a potencialidade de construir significados, de acordo com os repertórios visuais coletivos, na conjunção entre conteúdo visual e conteúdo verbal num contexto pragmático.

Considerando os novos modos de articulação das informações no mundo contemporâneo e a efemeridade das relações entre os sujeitos e os objetos, ou mesmo entre os sujeitos e seus próprios desejos, a capacidade formal intrínseca de um desenho tipográfico de atrair a atenção para si pode ser, em grande parte dos casos, um importante elemento para que uma leitura efetiva aconteça. Nesse contexto técnico-cognitivo, a lógica do espetáculo parece encontrar um caminho aberto para se manifestar. Nesse sentido, aquilo capaz de atrair o foco perceptivo de um número maior de leitores, por meio de um input passional, tende a funcionar melhor (no sentido da comunicação efetiva) do que uma abordagem baseada em uma sucessão de argumentos racionais.

Podemos entender a atenção ou o foco perceptivo como uma atitude cogni- tiva por meio da qual concentramos nossa atividade psíquica sobre um determinado estímulo, no caso, visual/verbal. Esse estímulo pode gerar uma sensação, uma representação, um desejo, e por fim, fazer com que o leitor/visualizador elabore conceitos. Desse modo, podemos dizer que, de modo geral, a atenção parece ter a habilidade de criar a própria consciência. A capacidade de seleção e exclusão per- ceptiva do ser humano é sabida, embora muitas vezes subestimada. No contexto técnico do tempo real da informática, a memória imediata costuma ser mais esti- mulada e requisitada do que a memória de longo prazo. Que tipos de questões poderão se formar a partir desse modo de operação já é tarefa para os psicólogos cognitivos.

As noções de tempo real e compressão do espaço-tempo são compartilhados tanto por Pierre Lévy, no estudo do que chamou de tecnologias da inteligência, quanto por Gilles Lipovetsky, em sua reflexão sobre os fenômenos da sociedade

67

contemporânea. A aceleração das relações sociais estabelece um novo ritmo de produção para o novo século. A produção de tipografia digital, como campo reno- vado de atuação do design, se instalou justamente em meio a essas mudanças.

2.7 – Algumas tendências projetuais contemporâneas

A difusão do design de tipos como uma atividade profissional foi sensi- velmente ampliado por meio das novas tecnologias. E no bojo desta nova realidade destacam-se aspectos que caracterizam tendências projetuais contemporâneas.

Um primeiro aspecto diz respeito a dois modos de atuação profissional: o design de tipos em catálogo e o design de tipos sob encomenda. Evidentemente, ambas as abordagens já existiam antes da tipografia digital, mas com ela ganham outras proporções, ou seja, passam a ser facilitadas e a contar com um número consideravelmente maior de profissionais atuantes.

Outros aspectos dizem respeito a tendências morfológicas, que foram possibilitadas ou ampliadas pelo uso dos computadores e dos arquivos codificados digitalmente, bem como por novas teorias e proposições estéticas.

Uma das tendências morfológicas se caracteriza pela multiplicação de vari- ações de um alfabeto em termos de peso, inclinação, largura, ocorrência com ou sem serifa etc., apontando para o desenvolvimento das superfamílias tipográficas.

Uma outra tendência morfológica diz respeito a novas caracterizações estilísticas. Com a grande produção e com os revendedores de fontes digitais, a variedade de abordagens projetuais de novos tipos nunca foi tão diversificada, tornando sua categorização bastante complexa. Os antigos modelos classificatórios baseados da tradição da tipografia do livro impresso tendem ser insuficientes para compreender a cultura visual contemporânea. Com as possibilidades intrínsecas ao hipertexto, a organização desses bancos de fontes passam a abarcar também a linguagem natural, baseada em palavras-chave de busca. É o que acontece de fato

68

em sites de comércio eletrônico de fontes como o MyFonts, a FontShop e a Fonts.com (Monotype Imaging), que arbitram sobre suas próprias categorias, mas também permitem buscas por palavras determinadas pelo usuário, bem como pelos designers de tipos no momento da publicação de suas fontes. Para fins de análise, esse modo de operação, em conjunção com a liberdade projetual dos designers de tipos, torna uma classificação fechada tarefa bastante complexa, se não impossível.

A partir dos questionamentos acerca do paradigma moderno, diferentes referências estilísticas são freqüentemente misturadas em um mesmo desenho tipográfico, com um nível de liberdade conceitual que hoje vemos com certa natura- lidade, mas que há algumas décadas atrás provavelmente não teriam a mesma aceitação dentro do repertório visual da sociedade ocidental. Esse nível de liberdade de criação fez com que começasse a aparecer um número cada vez maior de famílias tipográficas que não se enquadram perfeitamente em quaisquer das classi- ficações canônicas, gerando um problema prático para uma indexação eficiente dessas produções em catálogos de fontes digitais. Sobre esse tema, Phil Baines afirma que:

Hoje, tipos novos e incomuns são a maioria e o ritmo de fabricação é frenético. [...] Em termos de classificação, isso se apresenta como um pesadelo tanto prático quanto filosófico. Enquanto alguns escritores possam questionar até mesmo o direito de existência de muitos desses novos tipos, o propósito de qualquer sistema de classificação é registrar a prática real e mostrar o sentido desta. Os sistemas baseados em Vox não mais refletem o que está acontecendo no ‘grande mundo mau’ do uso tipográfico. (BAINES, 2002, p. 47, tradução nossa19).

Neste quadro ganham peso os tipos que apontam para a simulação da escrita manual, assim como os tipos que apresentam uma imprecisão planejada. É importante ressaltar que não temos aqui, qualquer pretensão de estabelecer um novo quadro de classificação para a produção tipográfica contemporânea, mas apenas ressaltar uma realidade do mercado.

19 Citação original em inglês: Today, new and novelty typefaces are in the majority, and the pace of manufacture is frenetic. [...] In terms of classification this presents both a practical and a philosophical nightmare. While some writers may question the right of many new typefaces even to exist, the purpose of any classification is to record actual practice, and try to make sense of it. Vox-based systems no longer reflect what is happening in the big bad world of type usage. (BAINES, 2002, p.47)

69

20 2.7.1 – Fontes em catálogo e fontes sob encomenda

Um dos principais modos de atuação dos designers de tipos digitais é o desenvolvimento de novos desenhos de alfabetos e produção de fontes, visando à comercialização não-exclusiva de licenças de uso para terceiros. Essa é a abor- dagem que chamamos aqui de fontes em catálogo. Nesse sentido, com certa freqüência, o processo de trabalho do designer de tipos se dá de uma maneira diferente do que estamos acostumados na programação visual, pois nem sempre se tem um briefing gerado a partir de um problema pontual de um cliente. Em muitos casos, ao contrário, as diretrizes iniciais de um projeto podem ser delimitadas pelo próprio designer, seja com a intenção de gerar tipos que funcionem para uma determinada situação hipotética, seja para gerar novas possibilidades gráficas a partir de uma lacuna ou uma tendência de mercado identificada.

Os fatores que motivam os projetos de novos tipos podem ser dos mais diversos. Alguns são movidos por um resgate histórico, outros por uma razão pragmática de uso, outros tendem para a manifestação de uma expressão gráfica pessoal específica, entre tantas outras razões possíveis. Mas independente dos fatores motivadores, o que são gerados, por fim, são novos insumos que podem ser utilizados por outros designers que queiram dar aos seus trabalhos um caráter visual particular, de acordo com as características semânticas e pragmáticas de seus projetos. Dentro dessa abordagem, os designers de tipos desenvolvem produtos inéditos e os disponibilizam em seus catálogos, para o uso de outros profissionais, a partir da aquisição de licenças de uso. Essas aquisições podem ser feitas direta- mente com as fundições digitais, ou com seus revendedores.

Vale salientar que, atualmente, o mercado de licenciamento de fontes no Brasil ainda é bastante pequeno se comprado com os países centrais da economia. Isso se dá tanto por questões econômicas quanto culturais. A ausência de uma

20 Utilizaremos o termo “fontes em catálogo” para nos referirmos àquelas fontes disponibilizadas nas chamadas libraries (bibliotecas de fontes) de diferentes fundições digitais para uso não-exclusivo de diferentes compradores ao redor do mundo. Na língua inglesa, elas também são muito freqüentemente chamadas de retail fonts (fontes de varejo). Entretanto, devido ao valor pejorativo muitas vezes implicado na palavra varejo, em português, associado popularmente a produto barato e de baixa qualidade, preferimos evitar esse termo, na medida do possível. Para fins de categorização, “fontes em catálogo” nos parece mais adequado para que permaneçamos no âmbito semântico correto.

70

tradição no design de tipos no Brasil pode ajudar a explicar o motivo pelo qual pouco se conhece a respeito dessa atividade projetual. Algumas iniciativas de exploração de mercado interno para fontes em catálogo já foram realizadas por grupos pionei- ros, ao longo da década de 1990, como veremos adiante, no Capítulo 3. Entretanto, poucas dessas iniciativas persistiram por muito tempo e, atualmente, a aposta no mercado internacional parece ser o caminho seguido pela maioria dos designers de tipos brasileiros.

Para entender esse modo de abordagem projetual é importante notar que, aquilo que sustenta esse mercado – que também podemos chamar de fontes de varejo – é a comercialização direta ou indireta desses arquivos digitais (a partir das licenças de uso), que podem ser instalados em computadores e utilizados com algu- mas restrições. Por não depender de uma encomenda externa, esse tipo de abordagem se tornou um campo aberto, tanto para projetos com características visuais conservadoras, quanto para caminhos mais experimentais no design de tipos, permitindo abarcar todos os nuances possíveis entre os dois extremos. Nesse sentido, independentemente dos conceitos difundidos sobre o que configura uma família tipográfica de boa qualidade, assim como das motivações e intenções dos designers de tipos, quem decide o que deve ser utilizado, em última instância, são os profissionais usuários dessas fontes oferecidas.

Para o designer de tipos oferecidos em catálogo, a relação de controle sobre seu projeto termina no momento da comercialização. Assim, mesmo que uma deter- minada família tipográfica seja desenvolvida com intenções de uso bem delimitadas e explicitadas, a perda do controle é inevitável, a partir do instante em que seu uso efetivo é realizado por outros profissionais com liberdade criativa. Portanto, o número de utilizações possíveis de uma família tipográfica, disponibilizada nesse mercado, tende ao infinito. Do mesmo modo, a concretização do uso, em projetos gráficos específicos, pode gerar novos insights para seu criador original, numa relação de mútua troca simbólica/cognitiva entre os designers de tipos e os designers gráficos.

71

É importante salientar que, na tipografia digital atualmente encarada como produto de software e, portanto, de reprodução potencialmente infinita, o retorno comercial por parte dos designers de tipos se dá em função da comercialização das licenças de uso das fontes, segundo algumas convenções internacionais adotadas pelas chamadas “fundições de tipos digitais” e seus revendedores. Assim, em termos gerais, os direitos intelectuais sobre uma fonte digital permanecem com seu autor, que concede aos seus clientes os direitos de uso não-exclusivos (no caso das fontes de varejo), ou exclusivos (no caso de grande parte dos projetos feitos sob encomenda). Esse modelo de negócios permite a sustentação da produção tipográ- fica profissional em âmbito internacional. Os termos das licenças de uso costumam variar entre diferentes fundições digitais, mas em termos gerais envolvem um número determinado de computadores em que uma fonte deverá ser instalada. No caso de grandes corporações, com uma grande rede de máquinas e de usuários, é comum adquirir licenças adicionais, proporcionais à quantidade necessária estima- da. Em fontes comerciais, por motivos óbvios, costuma ser vetado o comparti- lhamento ou redistribuição dos arquivos para terceiros (com algumas exceções para gráficas e bureaus de impressão). Em termos gerais costuma ser vetada a modificação na programação das fontes, a não ser quando o texto é convertido em curvas e passa a se configurar como um objeto gráfico vetorial, como no caso de logotipos e outros letreiramentos derivados.

Com a impossibilidade de controle sobre o uso, os designers de tipos dependem fundamentalmente das boas práticas de seus clientes, no sentido de entender e respeitar as licenças de uso das fontes comerciais adquiridas em comum acordo. Como as leis de direito autoral variam consideravelmente entre diferentes países, em geral se leva em consideração a Convenção de Berna21 – um acordo de colaboração assinado pelos governos da maior parte dos países do mundo, ainda em 1886.

Outro modo de atuação nessa área diz respeito aos tipos desenvolvidos a partir de uma encomenda externa, ou seja, projetos de novas famílias tipográficas em que se tem em vista um problema pontual de um terceiro. Com a democrati-

21 Disponível em: Último acesso em 20 dez, 2009.

72

zação produtiva nas últimas décadas, é possível observar também um crescimento considerável no que diz respeito às fontes feitas sob encomenda, embora não tenham sido encontrados dados conclusivos para validação dessa hipótese. Os clientes, nesse caso, podem ser escritórios de design e branding, editoras, empresas desenvolvedoras de software, entre outras que utilizam a tipografia como diferencial competitivo em relação aos seus concorrentes. Nesses casos, é bastante comum a encomenda de desenhos tipográficos exclusivos para uso de uma deter- minada corporação ou produto em sua identidade visual. A percepção da diferença no projeto e de sua singularidade visual, nesses casos, costuma ser fundamental. Como exemplos de famílias tipográficas exclusivas que são referências interna- cionais recentes, podemos citar a Xerox Sans (2007), desenvolvida pelo escritório inglês Fontsmith para a nova identidade visual da Xerox, composta por 27 fontes ao todo, com variações de pesos, larguras e inclinações; a família Prelude (2009), desenvolvida pela FontBureau, de Boston, para o novo sistema operacional dos telefones móveis da Palm; a família Xbox 360 (2005), desenvolvida para a identi- dade visual e interface gráfica do videogame de mesmo nome, da Microsoft, pela norte-americana Ascender Corporation.

Como exemplos de projetos multinacionais nesse sentido, que tiveram participações efetivas de designers brasileiros, podemos citar: A recente família Toyota (2008-2009), desenvolvida para a identidade visual da empresa japonesa homônima pela Dalton Maag (DaMa), de Londres, com a participação do brasileiro Fabio Haag. Outro exemplo recente é o desenvolvimento da fonte tipográfica Unity (2009), pelo brasileiro Yomar Augusto, para aplicação exclusiva nos materiais espor- tivos da Adidas durante a Copa do Mundo de 2010.

Nesses casos, o modo de trabalho do designer de tipos se aproxima dos métodos de trabalho difundidos na prática da programação visual. Parte-se de uma encomenda externa, com critérios projetuais delimitados por uma situação de uso pontual. Nesses casos, o profissional tende a ter um maior controle sobre o uso final de seus tipos projetados, por ser estabelecida, com bastante freqüência, uma relação próxima entre o projetista das fontes e aquele que irá aplicá-las, seja num projeto de identidade visual, num projeto editorial, num projeto de sinalização, ou numa interface gráfica digital.

73

A demanda por esse modo de ação projetual no Brasil está em franco crescimento, embora aquém, em termos quantitativos, em relação a outros países com maior tradição tipográfica e maior poder econômico. Alguns exemplos de fontes brasileiras feitas sob encomenda para o mercado interno poderão ser vistas no Capítulo 3 dessa dissertação.

2.7.2 – As superfamílias tipográficas

A ampliação das variáveis de peso, largura, inclinação e estilo em uma família tipográfica já há algum tempo não é uma novidade. Um pioneiro nesse sentido foi o suíço , quando desenvolveu sua família sem serifa , publicada pela extinta fundição Deberny & Peignot, em 1957. A Univers continha originalmente 21 fontes (atualmente são 63 ao todo), combinando diferentes pesos (6 variáveis), larguras (6 variáveis) e inclinações (2 variáveis). Frutiger criou também um sistema numérico próprio para a nomenclatura de suas fontes, mas, talvez pelo alto nível de abstração, este último não foi adotado em larga escala em outras famílias semelhantes no mercado. O grande rigor técnico e estético da família Univers fez com que ela permanecesse entre as mais populares até os dias atuais – um trabalho que ultrapassou os limites do seu tempo.

Outro ator que contribuiu bastante para o surgimento de grandes famílias tipográficas (em número de fontes) foi holandês Gerrit Noordzij, quando criou seu conhecido cubo de interpolação (NOORDZIJ, 2005), baseado em suas teorias sobre a origem da forma tipográfica nos diferentes tipos de penas caligráficas, conforme a figura a seguir.

74

Figura 12 – Cubo de interpolação de Noordzij, à direita, e os eixos x, y, z, à esquerda.

Seu modelo proposto considera as variações de peso e contraste, de acordo com as partes grossas e finas da pena de ponta chata. O eixo-x representa as variações de espessura na parte fina da pena (traços horizontais), enquanto o eixo-y representa as partes grossas (traços verticais). O eixo-z do cubo representa a interpolação entre os diferentes resultados possíveis, variando, portanto, tanto os traços finos quanto os grossos. Noordzij e suas teorias exerceram (e ainda exercem) uma forte influência nas principais escolas de design de tipos no mundo. Dois exemplos de designers de grande reconhecimento internacional que seguem um caminho semelhante são os também holandeses de Peter Biak, criador da fundição Typotheque, e Lucas de Groot, responsável pela fundição Lucas Fonts. Ambas são mundialmente conhecidas pela sua excelência como fornecedoras de extensas famílias tipográficas.

O conceito de superfamília (superfamily), como ficou conhecido na comunidade tipográfica internacional, diz respeito a um conjunto de fontes lançadas sob uma mesmo nome/marca comum e que são combinadas em diferentes famílias tipográficas, com diferentes classes estilísticas. Fontes pertencentes a uma super- família costumam ter variações não apenas em peso, inclinação, largura e tamanhos ópticos, mas também em outras características formais, como a presença ou não de serifas e o contraste fino/grosso. Possuem características de design comuns que

75

permitem com que elas sejam vistas como parte de um mesmo conjunto e que possam funcionar juntas, harmonicamente, em um mesmo objeto gráfico. As primei- ras manifestações dessa tendência são creditadas a Lucian Bernhard e (LO CELSO, 2000), com a família Romulus, desenvolvida a partir de 1930.

Na tipografia digital, um dos primeiros projetos envolvendo o conceito de superfamília foi a , criada a partir de 1984, por Kris Holmes and Charles Bigelow. O sistema completo envolve as famílias básicas Lucida (com serifa), Lucida Sans, ambas com diferentes pesos, itálicos e versões condensadas. Mas ainda podemos encontrar outras famílias derivadas com diferentes estilos, tais como Lucida Sans Typewriter, Lucida Console, Lucida Grande, Lucida Casual, Lucida Handwriting, Lucida Calligraphy, Lucida Blackletter, Lucida Fax e Lucida Bright.

Como outro marco importante no desenvolvimento dessa abordagem, pode- mos citar a superfamília Rotis, projetada por Otl Aicher em 1988. Nesse sistema complexo de formas inter-relacionadas, Aicher dividiria as famílias em quatro grupos: Sans (Grotesque), Semi-sans (Semi-grotesque), Semi-serif (Semi-antiqua) e Serif (Antiqua). Embora inovador e visionário, o projeto parece permanecer inacabado como sistema. Tanto a Rotis Sans quanto a Rotis Semi-sans possuem as faces Light, Light Italic, Regular, Italic, Bold e Extra-bold; enquanto a Rotis Serif possui as faces Regular, Italic e Bold, e sua versão Semi-serif apenas Regular e Bold.

Atualmente, o maior sistema tipográfico (em número de fontes) disponível no mercado profissional é a superfamília Thesis (1994-2000), criada pelo designer holandês Lucas de Groot. Trata-se de um sistema que foi composto inicialmente por 3 famílias – TheSans, TheMix e TheSerif. A primeira é uma família sem serifa, enquanto a última, sua versão serifada. A família intermediária – TheMix – é uma construção híbrida entre os dois desenhos. Cada uma delas possui 8 pesos roma- nos e seus respectivos itálicos, totalizando 48 fontes.

Posteriormente a superfamília foi sendo ampliada e atualmente conta tam- bém com as famílias TheSans Condensed, TheSans Hair, TheSans Office, TheSans Mono, TheSans Mono SemiCondensed, TheSans Mono Condensed, TheSans Mono Office, TheSans Mono Condensed Office, TheSans Typewriter, TheMix Condensed,

76

TheMix Office, TheMix Mono e TheSerif Office. Ao todo, a superfamília Thesis possui mais de 300 fontes distintas.

Figura 13 – Diagrama ilustrativo do sistema Thesis original (1994), de Lucas de Groot, com as famílias TheSerif, TheMix e TheSans em seus diferentes pesos.

Lucas de Groot ficou conhecido no Brasil após ter participado, na equipe liderada por Erik Spiekermann, do projeto de uma família tipográfica exclusiva para o jornal Folha de S.Paulo, desempenhando um papel importante em nossa história recente.

Esses e outros atores em muito influenciaram outras menores fundições independentes, fazendo com que uma grande gama de variáveis em uma família tipográfica, aos poucos, se tornasse desejável para os designers utilizadores de fontes. Mesmo que, em boa parte dos casos da produção independente, possa se questionar quanto eles se caracterizam adequadamente no modelo de super- famílias, o fato é que o fenômeno de percepção coletiva do que é desejável em um grande sistema tipográfico torna-se cada vez mais complexo.

Observando a lista de fontes mais vendidas no revendedor MyFonts22, pode- mos notar reflexos desse pensamento até mesmo em tipos voltados somente para uso em títulos e textos de curta leitura, como o da superfamília display Aviano, projetada pelo norte-americano Jeremy Dooley. Em sua primeira versão serifada (2007), a Aviano possui 4 pesos; na Aviano Sans (2007) – sua versão sem serifa que mantém o mesmo esqueleto – foram projetados 5 pesos. Posteriormente ainda foram projetadas a família Aviano Slab (2007), com serifas quadradas, a Aviano Serif (2008), semelhante à primeira Aviano, porém com serifas menores e contraste fino/grosso menos acentuado e, mais recentemente a Aviano (2009), com

22 MyFonts Best Sellers. Disponível em: Acessado em 25/08/2009.

77

grande contraste e serifas retas. Considerando esse sistema de fontes display como mais um tipo de superfamília, vemos um total de 21 fontes ao todo, o que demonstra que o conceito não mais se aplica apenas às fontes voltadas para uso em textos de imersão, mas transcende às tentativas de enquadramento em um único modelo projetual. tr

Figura 14 – Superfamília display Aviano, de Jeremy Dooley, em algumas de suas fontes. À esquerda: Aviano Regular, Aviano Sans Regular e Aviano Slab Regular. À direita: Aviano Serif Regular e Aviano Didone Regular.

Como exemplos de famílias tipográficas brasileiras com grande variação de pesos e estilos, podemos citar o sistema Elementar (ilustrado a seguir), projetado pelo carioca Gustavo Ferreira, e atualmente distribuído pela Typotheque, e a família Beret, projetada pelo paulista Eduardo Omine e distribuída pela Linotype. Ambos os projetos serão tratados com maiores detalhes no Capítulo 3 dessa dissertação.

Figura 15 – Um exemplo de superfamília tipográfica brasileira: Sistema Elementar, de Gustavo Ferreira, projetado inicialmente para leitura em telas de baixa profundidade de cor (1 bit).

78

2.7.3 – Potencialidades estilísticas abertas pela tecnologia digital

Como citamos anteriormente, com as novas tecnologias dos computadores e com as propriedades materiais não sendo mais um elemento limitador da fabricação de novos tipos, uma ampla gama de novas possibilidades técnicas e estéticas foram abertas. Foi nesse contexto que se inseriram fundições digitais como a Emigre, conhecida nas décadas de 1980 e 1990 pelos seus tipos, ora voltados para uma adequação técnica às novas mídias, ora propondo soluções estéticas questionadoras. Com uma produção bastante prolífica durante esse período, designers como Zuzana Licko e Jonathan Barnbrook difundiram suas fontes pelo mundo com designs de bastante presença visual, tanto no que diz respeito às fontes para texto de imersão, quanto em relação às fontes display. Com a edição da revista da Emigre, puderam influenciar vários outros designers no intuito da experimentação formal, amplamente facilitada pela tecnologia.

Numa linha semelhante se inseriu, em 1994, a fundição digital T-26, do designer Carlos Segura, incorporando em seu catálogo tipos ainda mais experi- mentais em termos morfológicos, criados por diferentes designers. De acordo com Segura:

Naquele tempo, era difícil encontrar tipos experimentais sem ter que fazer uma busca extensa, ou desenhando você mesmo seu tipo. Então nos focamos num plano de construir uma comunidade de designs globais, a partir de origens que estavam sendo ignoradas, tais como novos talentos emergentes e estudantes. [...] Nós tentamos coisas novas. Quando você faz isso, o risco de falhar é maior, e a maioria não quer seguir nesse caminho. [...] (SEGURA In: EARLS, 2002, p. 85, tradução nossa23)

A essas iniciativas específicas de mercado, se alia ainda a produção de designers de estilo desconstrutivo como David Carson que, embora nunca tenha sido designer de tipos, influenciou uma geração no sentido dos questionamentos estéticos acerca da legibilidade.

23 Citação original em inglês: At the time, it was difficult to to find experimental type without going through an extensive search, or drawing it yourself, so we focoused on a plan to build a community of global designs from sources that were being ignored, such as new up-and-coming talents and students. [...] We try new things. When you do that, the risk of failure is greater, and most are unwilling to go down the road. [...] (SEGURA In: EARLS, 2002, p. 85)

79

Além dessas iniciativas particulares, podemos dizer que o desktop publishing possibilitou um nível de experimentação formal sem precedentes. Durante a década de 1990, em especial, em muitos casos a precisão formal dá lugar a exploração de potencialidades dos novos softwares de produção. As curvas vetoriais de Bézier atualmente possibilitam um número quase ilimitado de curvas em um arquivo de fonte, com alto nível de precisão. Com a superação dessas limitações, alguns designers de tipos se sentem estimulados a simular outros meios de produção, tais como as idiossincrasias da escrita manual e as imprecisões deixadas pela impres- são de baixa tecnologia. Esse contexto técnico dá abertura também à estética da sujeira (grunge24), ou ainda a erros simulados através de programação de dados. Essas tendências podem ser observadas no que diz respeito ao desenvolvimento de tipos display, onde a liberdade de experimentação formal se faz muito mais presente do que no caso dos tipos para texto de imersão.

Com o grande número de fontes existentes, num mercado global de fácil acesso e sem muitas regras rígidas, outras tendências projetuais/morfológicas pode- riam ser observadas. Nos ateremos aqui apenas a duas que pudemos identificar como sendo mais recorrentes no mercado de fontes em catálogo, disponíveis em alguns dos principais distribuidores mundiais.

2.7.3.1 – Tipos que simulam a escrita manual

Como o próprio título sugere, essa categoria de fontes se caracteriza pela simulação das estruturas formais presentes na escrita manual. É bastante comum encontrarmos tipos dessa natureza classificados como “Script”, “Handwriting” e “Calligraphy”, apenas para citar os termos mais utilizados em diferentes bibliotecas de revendedores de tipos digitais. Trabalhos acadêmicos recentes, como o do autor Fabio Pinto Lopes de Lima (que assina seus projetos como Fabio Lopez), se debru- çam sobre a questão, levando e consideração questões construtivas como ferra- menta, suporte e substância corante, bem como o movimento do traço.

24 Embora o conceito de “grunge” seja ainda pouco delimitado, nos referimos a ele por ter se tornado um termo amplamente adotado pelo mercado. Trata-se, aqui, da incorporação da sujeira como um elemento constitutivo nas formas tipográficas.

80

Em alguns casos, essa simulação está associada à perícia manual, ao rigor do treinamento caligráfico e à ornamentação, em outros, à imprecisão do gesto do não-especialista, ou mesmo ao erro intencional do calígrafo. Em relação a esse último caso, Lima sugere que:

No ambiente digital – onde a precisão da tecnologia de reprodução é ainda mais impressionante – a estratégia adotada para a representação dos valores humanos é justamente a busca pelo que se opõe à principal característica do meio: a precisão. [...] A imprecisão (forjada ou autêntica) passou a constituir um valor representativo do universo da caligrafia, ou seja, a imperícia técnica acabou transformando-se em uma característica marcante da atividade (LIMA, 2009).

Vale ressaltar que, por maior que seja o treinamento do especialista, a impre- cisão é uma das características que particularizam a escrita manual (ou caligrafia, utilizando a categorização de Lima). Em oposição a ela estaria a tipografia tradi- cional e sua reprodução seriada e mecanizada/automatizada. Numa época em que quase tudo pode ser reproduzido com perfeição, a busca por características que simulem as limitações humanas parecem estar presentes em uma boa parte da produção de tipografia digital contemporânea.

Atualmente, esse tipo de abordagem é facilitado, em primeiro lugar, pela virtualização das métricas tipográficas. Na tipografia digital as linhas que definem o início e o final de cada caractere (sidebearings) passam a ser virtuais, podendo estar posicionadas, inclusive, em um espaço negativo em relação ao desenho da letra. O mesmo acontece com o kerning, que passa a ser não mais um corte em uma peça metálica, mas um espaço positivo ou negativo programado para uma determinada combinação específica de letras, na qual a métrica regular não pode solucionar os problemas de espacejamento óptico. Isso abre caminho, por exemplo, para uma facilitação no design de tipos cursivos de ligação direta entre caracteres, sem maiores limitações técnicas, pois uma forma pode se superpor a outra nos progra- mas de edição de texto.

Na escrita manual, é sabido que uma letra real nunca é exatamente igual à outra, do mesmo modo como acontece com as ligações entre letras que, fre- qüentemente, também possuem suas particularidades. A simulação dessas carac-

81

terísticas é facilitada, atualmente, pelas possibilidades do formato OpenType. Utilizando esse tipo de arquivo de uso, uma série de comportamentos podem ser programados no momento de sua produção, tais como: substituições automáticas e discricionárias de determinados pares de caracteres por ligaturas; substituições de glifos principais por glifos alternativos; substituições por letras caudais; e até mesmo níveis mais sofisticados, como substituições contextuais no momento da digitação, de acordo com uma determinada gama de combinações de caracteres pré-pro- gramadas.

Nos últimos anos da década de 2000, podemos observar uma proliferação cada vez maior de fontes dessa natureza em fundições digitais e seus reven- dedores, muitas delas obtendo ampla aceitação comercial. Dois exemplos brasileiros desse modo de abordagem são a fonte Fake Human, de Yomar Augusto, ainda não comercializada; e a família Maryam (ilustrada abaixo), de Ricardo Esteves, com- posta por duas fontes distintas que podem ser combinadas entre si, contendo uma grande quantidade de ligaturas, automatizadas por meio da programação no OpenType. É atualmente comercializada pelos revendedores MyFonts, Linotype,

Monotype (Fonts.com) e AscenderFonts.

Figura 16 – Fonte Fake Human (2004-2005), de Yomar Augusto.

Figura 17 – Fonte Maryam (2005-2007), de Ricardo Esteves, em sua versão Regular.

82

2.7.3.2 – Tipos que simulam a imprecisão

Tendo em vista que muitas das fontes que sugerem a manualidade podem indicar também a imprecisão, pode-se questionar essa categoria como pertencente à anterior. Entretanto, entendemos aqui a abordagem da imprecisão em um sentido mais amplo, não necessariamente se limitando aos exemplos do primeiro caso. Como foi dito, esses diferentes modos de abordagem, em muitos casos, se cruzam, não sendo portanto categorias voltadas para a classificação, mas para a compre- ensão de diferentes tendências projetuais/morfológicas.

Atualmente podemos observar várias possibilidades de abordagem sobre a imprecisão no desenho tipográfico. É importante não confundirmos aqui a impre- cisão intencional com a falta de rigor técnico. Embora o mercado internacional esteja repleto de exemplos do segundo caso, nos ateremos aqui apenas a projetos em que a imprecisão é incorporada como um artifício de linguagem.

Um exemplo observável bastante comum são os tipos digitais que simulam a impressão com tipos de chumbo de baixa tecnologia. Em grande parte desses casos, as fontes digitais são revivals de desenhos tipográficos históricos. Embora algumas das sutilezas das prensas tipográficas não possam ser simuladas em um tipo digital, como, por exemplo, a tridimensionalidade tátil, fontes que simulam tecnologias históricas parecem buscar uma estética lírica de algo que se perdeu no tempo e que deve ser lembrado.

Figura 18 – Um exemplo de fonte de simulação de impressão de baixa tecnologia. Letterpress Text (2001) em sua versão Regular, do designer norte-americano Chris Costello.

Outro tipo de abordagem é a imprecisão programada pelo computador. Um marco histórico nesse sentido foi a fonte Beowolf (1989), projetada por Erik van Blokland e Just van Rossum, da empresa holandesa LettError. Utilizando o sistema de descrição PostScript, que permitia uma alta precisão na impressão, a fonte foi

83

projetada para subverter a lógica programada originalmente. Ela possuía um dese- nho regular de todos os caracteres e uma programação embutida que determinava deslocamentos randômicos de nós vetoriais, sob determinados limites, no momento da saída na impressora. Desse modo, uma letra nunca seria impressa exatamente igual a outra, contrariando a lógica da precisão e repetição com fidelidade.

Poucos anos depois, em 1991, a LettError lançou a fonte FF Trixie. Nesse caso, trata-se de uma fonte de simulação de máquina de escrever (typewriter). Foi projetada a partir de originais impressos na tecnologia real, digitalizada e organizada na forma de uma fonte digital. Durante as décadas seguintes, a fonte Trixie ficou bastante popularizada pelo uso em aberturas de filmes e em seriados de TV como Arquivo-X. Em 2009 foi lançada sua segunda versão revisada e com possibilidades de variação formal ampliadas pela tecnologia do OpenType.

Figura 19 – Famílias Beowolf (1989), dos holandeses Erik van Blokland e Just van Rossum, e Trixie (1991), de Erik van Blokland. Ambas são comercializadas pela LettError e FontFont.

A partir da década de 1990 é criado o movimento grunge. Este surge a partir da produção musical das bandas de rock de Seattle, Estados Unidos, cuja sonori- dade era caracterizada por distorções de guitarra bastante peculiares e cheias de ruído, bem como pelos vocais roucos e arrastados.

84

Alguns anos depois o termo “grunge” passa a ser adotado também para descrever uma visualidade “suja”, muito influenciada pela estética punk da década de 1970 e pelos designers desconstrutivos, mais contemporâneos. A partir da década de 2000 o termo “grunge” é incorporado como palavra-chave nas buscas nos sites de alguns dos maiores revendedores de tipos, como FontShop, MyFonts e Fonts.com. É caracterizado pela incorporação da sujeira, do ruído, ou da distorção como elementos construtivos na forma tipográfica. Em alguns casos, se aproximam esteticamente de um caráter expressionista, incorporando as marcas ferramentais e uma experiência emocional representada na forma.

Como exemplos brasileiros que se enquadram nessa linha morfológica, podemos citar algumas produções do mineiro Eduardo Recife – fontes Trashold (2004) e Nars (2003), ilustradas abaixo – , publicadas por sua fundição pessoal Misprinted Type e comercializadas pelo MyFonts. Outro exemplo é a família Discord (2009), do também mineiro Rafael Neder. Embora use características formais distintas, de construção mais geométrica, alguns pesos da família também simulam a imprecisão. Suas fontes são distribuídas pelo MyFonts e pela T-26.

Figura 20 – Fontes Trashold (2004) e Nars (2003), de Eduardo Recife.

Figura 21 – Fonte Discord Error Regular, que compõe da família Discord (2009) de Rafael Neder.

85

Aqui tivemos um breve panorama do contexto tecnológico/social/mercado- lógico em que a atividade do design de tipos se insere. No próximo capítulo abor- daremos a produção nacional nas últimas duas décadas e suas particularidades no contexto brasileiro

86

3 – A PRODUÇÃO BRASILEIRA DE TIPOS DIGITAIS

Tendo em vista a caracterização do contexto brasileiro, a pesquisa foi feita por meio de levantamento de dados bibliográficos (livros, periódicos, anais de con- gressos, catálogos, publicações avulsas, websites de fundições de tipos digitais), e com base em entrevistas que realizamos com alguns designers de tipos (Anexos 2 e 3): Beto Shibata, Claudio Rocha, Eduardo Berliner, Eduardo Omine, Eduilson Coan, Fabio Lopez, Felipe Kaizer, Fernando Mello, Gustavo Ferreira, Leonardo Costa (Buggy), Marconi Lima, Priscila Farias, Tony de Marco e Yomar Augusto.

Neste processo, foi de fundamental importância o levantamento publicado em “Fontes Digitais Brasileiras: de 1989 a 2001”, de autoria de Priscila Farias e Gustavo Piqueira. Para os anos subseqüentes consultamos as oito edições da revista Tupigrafia, os catálogos da Bienal da ADG, os catálogos da Bienal Latino- americana de Tipografia (Letras Latinas/Tipos Latinos), o artigo “Uns tipos novos: a nova geração da tipografia brasileira”, de Norberto Gaudêncio Junior e Gustavo Lassala, além de algumas entrevistas com designers de tipos, realizadas por ter- ceiros e disponíveis em revistas e websites.

Como critérios para a seleção dos designers brasileiros mencionados na pesquisa foram considerados:

• Tendo em vista um projeto realizado, que existissem pelo menos 3 citações dele em publicações especializadas; • Publicações de tipos em catálogos de bienais nacionais e internacionais;

• Premiações em concursos promovidos por associações e empresas internacionais de grande visibilidade;

• Vendas no mercado internacional, por meio de revendedores de fontes digitais.

87

Em relação à estratégia adotada a seguir, quanto a uma reprodução seletiva das fontes citadas, foi considerada a produção mais relevante em cada período, tendo em vista as publicações em livros, revistas especializadas e catálogos de Bienais.

Na medida em que a produção se desenvolveu no Brasil, fica evidente o crescente número de trabalhos citados. Não tivemos como pretensão mostrar todos eles, mas apenas aqueles que consideramos mais relevantes em cada momento, tendo em vista a qualidade técnica e estética. No período da década de 1990 será possível notar uma predominância dos tipos display nas imagens selecionadas. Isso se deve ao fato de ser essa a opção projetual mais recorrente na época. Na década de 2000 serão mostrados também tipos para texto de imersão, a partir do momento em que eles começaram a ser produzidos em maior quantidade relativa no Brasil. É válido lembrar que não há a pretensão de que esta seja uma versão definitiva acerca dos acontecimentos, mas apenas uma das possíveis, tendo em vista a realidade observada.

A partir da década de 1980 e especialmente de 1990, o campo do design de tipos digitais começou a crescer exponencialmente, tornando-se progressivamente uma área de especialização da programação visual. Isso se consolida na década de 2000 pelo crescente número de cursos de especialização e mestrado em design de tipos no exterior, sendo os principais deles situados na Europa, como o Master in Typeface Design na University of Reading, na Inglaterra, criado em 2000; o Master in Type&Media na Royal Academy of Arts, em Haia, na Holanda, iniciado em 2002; e a Maestría en Tipografía Avanzada, na Universidad Autónoma de Barcelona, na Espanha, em atividade desde 2003. Mais recentemente, no âmbito latino-americano, situam-se também o Posgrado en Diseño de Tipografía, na Universidad de Buenos Aires, na Argentina, e a Maestría en Diseño Tipográfico, no Centro de Estudios Gestalt, na cidade de Veracruz, México, ambos iniciados em 2008. Em um outro sentido, essa progressiva especialização da atividade se dá também em função de uma realidade de mercado, tanto no que diz respeito aos tipos feitos sob enco- menda, quanto aos tipos em catálogo, distribuídos por revendedores internacionais.

88

Como vimos no Capítulo 2, ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000, nos países centrais da economia, surgiram novos revendedores desses produtos e as chamadas fundições de tipos digitais (digital type foundries) independentes, possibilitando a difusão e comercialização de novas fontes para as novas tecno- logias em escala mundial.

No contexto brasileiro, é importante pontuar o papel pioneiro de alguns professores/pesquisadores no fomento dessa produção dentro das universidades, destacando: Rodolfo Capeto, na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI/ UERJ), cuja atividade didática subsidiou a produção de designers de tipos como Gustavo Ferreira e Fabio Lopez; Priscila Farias, na Faculdade SENAC de Comuni- cação e Artes (SENAC-SP), que subsidiou a produção de designers como Caio de Marco e Nikolas Lorencini; e Vicente Gil, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), estimulando designers como Eduardo Omine a Fernando Mello. Desde meados da década de 1990 podem ser registradas várias iniciativas de estudantes quanto ao estudo e desenvolvimento de tipos digitais, sendo que alguns deles posteriormente se tornaram profissionais da área.

Além disso, hoje existem disciplinas específicas de design de tipos, imple- mentadas em cursos de graduação no Brasil, conforme poderemos ver no levan- tamento preliminar25 feito em 2009, que consta dos Anexos dessa dissertação. Além das iniciativas no espaço formal de ensino, ao longo da década de 2000, ocorreram também várias iniciativas de promoção da atividade, conforme veremos a seguir.

3.1 – Iniciativas de promoção da atividade

As iniciativas aqui descritas servirão para situar o leitor acerca dos principais eventos que promoveram a atividade do design de tipos digitais ao longo da última década, facilitando a apresentação dos projetos mencionados. Algumas dessas

25 Conforme indicado na Introdução, fazia parte de nossa intenção original investigar a situação de ensino do design de tipos como matéria específica. Entretanto, tendo em vista os limites de uma pesquisa de mestrado, um aprofundamento de nosso levantamento preliminar evidenciou-se fora do horizonte desta investigação.

89

iniciativas serão citadas novamente adiante, quando tratamos de alguns dos mais relevantes projetos brasileiros na área.

Como um fator de promoção, podemos citar a exposição Tipografia Brasilis (São Paulo, 2000, 2001 e 2002), como uma das importantes iniciativas de difusão da produção nacional. Foi a primeira exposição brasileira de grande divulgação e com foco no design de tipos que se tem registro. As três edições da mostra foram realizadas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e organizada por Cecília Consolo e Luciano Cardinali, da Associação dos Designers Gráficos (ADG)26. Reuniu uma grande quantidade de fontes de caráter experimental, trabalhos artísticos de letreiramento, e algumas fontes feitas sob encomenda para identidades corporativas de empresas no Brasil. Em sua última edição, em 2002, contou ainda com um workshop do designer de tipos argentino Rubén Fontana, ampliando, para os participantes, conhecimentos no que diz respeito ao desenvolvimento de novas famílias tipográficas.

Outro importante elemento promotor do design de tipos no Brasil foi a inclusão, partir de 2002, da tipografia como uma categoria na Bienal Brasileira de Design Gráfico, promovida pela ADG. Poucos anos após sua fundação em 1989, a Associação dos Designers Gráficos passou a promover a Bienal de Design Gráfico, reunindo trabalhos de escritórios, que ficaram registrados em seus catálogos. Mas foi somente a partir de sua 6ª edição, em 2002, que os trabalhos expostos passaram a ser divididos em categorias, com uma dedicada à tipografia. Com isso, um maior número de trabalhos relacionados ao design de tipos passaram a ser inscritos, dando visibilidade para a produção nacional nesse âmbito.

A categorização por modalidade projetual continuou por mais duas edições, até o ano de 2006. Em sua 9ª edição, em 2009, deram lugar a categorias concei- tuais, e as fontes tipográficas passaram a fazer parte do amplo grupo chamado de “comunicação sintética”.

26 Fundada por designers gráficos paulistas em 1989, a ADG sempre esteve associada a uma preocupação de organização de mercado, inicialmente ligada apenas aos profissionais de programação visual de São Paulo. Posteriormente procurou adquirir um âmbito nacional, abrindo espaço para a associação de designers de outros estados.

90

Ainda durante a edição de 2002 da Bienal da ADG, segundo relatos de diferentes designers, foi de importante relevância o workshop realizado no mês de março daquele ano, no Senac-SP com o designer de tipos suíço Bruno Maag, da empresa britânica Dalton Maag, especializada no desenvolvimento de famílias tipo- gráficas feitas sob encomenda, para grandes empresas multinacionais. Nessa ocasião, o designer suíço introduziu referenciais quanto ao desenvolvimento de famílias tipográficas para textos de imersão, tendo a participação de importantes designers de tipos brasileiros e entusiastas da atividade como Fabio Haag, Luciano Cardinali, Priscila Farias, Crystian Cruz, Billy Bacon, Rafael Dietzsch, Henrique Nardi e Marina Chaccur.

São registrados também alguns eventos regionais com a participação de designers de tipos brasileiros, como o “tyPE: Tipografia em Recife”, organizado por Leonardo Costa (Buggy), em 2004, com a realização de palestras e workshops. Nele palestraram designers como Claudio Rocha, Billy Bacon e Henrique Nardi, além do próprio organizador.

Em 2005 situou-se também o fórum “Tipo Assim”, organizado pelo Núcleo de Tipografia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), em Belo Horizonte, com palestras, mini-cursos, seminários e exposições. Teve a participação de palestrantes como Lucy Niemeyer, Hugo Werner, Bruno Martins, Rodolfo Capeto e Silvestre Rondom Curvo.

Ainda em relação aos eventos regionais, em 2007, aconteceu o “Tudo- TemTipo: Encontro Tipográfico de Salvador”, organizado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), na figura do professor Alessandro Farias, com workshops e palestras de Tony de Marco, Leonardo Costa, Elias Bittencourt, Adriana Valadares e Henrique Nardi.

Entre os outros importantes eventos de promoção de design de tipos no Brasil, estão os dois congressos DNA Tipográfico (São Paulo, 2003 e 2005), organi- zados pela revista Tupigrafia e pelo Senac-SP, com o objetivo de observar um panorama da produção nacional por meio de trocas de experiências presenciais entre os participantes. A primeira edição do DNA Tipográfico, em 2003, intitulado

91

também como Congresso Brasileiro de Tipografia, reuniu alguns dos principais designers de tipos brasileiros, bem como o palestrante estrangeiro Akira Kobayashi, funcionário da Linotype que desenvolveu importantes projetos em parcerias com algumas lendas vivas do design de tipos, como Adrian Frutiger e Hermann Zapf. O congresso foi de fundamental importância para a difusão de conhecimentos a respeito do design de tipos como atividade projetual e da produção nacional na área naquele momento. Por meio de palestras expositivas dos participantes e de mesas redondas, reuniu designers brasileiros como Claudio Rocha, Luciano Cardinali, Fabio Lopez, Billy Bacon, Rodolfo Capeto, Gustavo Piqueira, Fernanda Martins, Angela Datanico, Rafael Lain, Tony de Marco, Priscila Farias, Crystian Cruz, José Bessa, Cláudio Reston, Leonardo Costa, Alexandre Wollner, Claudio Ferlauto, Guto Lacaz e Jimmy Leroy.

O encontro teve sua segunda e última edição no ano de 2005 (DNA Tipográfico 2), agora com o título de Congresso Latino-Americano de Tipografia, quando reuniu os designers e palestrantes brasileiros Claudio Rocha, Tony de Marco, Priscila Farias, Fabio Lopez, Rodolfo Capeto, Henrique Nardi, Claudio Ferlauto, Hugo Cristo, Marcos Mello, Chico Homem de Melo, Bruno Porto, Billy Bacon, Herbert Baglione e Baixo Ribeiro. Nessa segunda edição, reuniu os pales- trantes estrangeiros Akira Kobayashi (Japão), Pancho Galvez (Chile), Luis Siquot (Argentina), Bruno Steinert (Alemanha), Gabriel Martinez Meave (México), Jorge de Buen (Argentina), Vincenzo Scarpellini (Itália) e Massimo Gentile (Itália).

No ano de 2003, também em São Paulo, os designers Henrique Nardi e Marcio Shimabukuro criaram o projeto Tipocracia – uma série de cursos e palestras que visavam promover a produção tipográfica brasileira, estabelecendo parcerias com editoras, associações e universidades. Continuado posteriormente por Nardi e ativo até o presente ano, o projeto rapidamente percorre mais da metade dos esta- dos brasileiros e países europeus como Portugal e Áustria. Além do esforço de fomento dessa produção nacional e de incentivo ao design de novos tipos, a política criada por Nardi, de doação de livros como contrapartida para as universidades em que o curso passaria, trouxe uma importante contribuição para a ampliação do acervo nas bibliotecas de nossas instituições.

92

Ainda em 2003, aconteceu na cidade de Minneapolis, Estados Unidos, a primeira exposição TypeCon/Letras Latinas. O projeto original foi uma idealização da revista argentina tipoGráfica, na figura do designer Rubén Fontana, com júri com- posto também por Pablo Cosgaya e Marcela Romero, todos argentinos. O projeto deve como objetivo selecionar os melhores trabalhos latino-americanos inscritos, para serem expostos na conferência TypeCon 2003, organizada anualmente, desde 1998, pela associação norte-americana Society of Typographic Aficionados (SOTA). Foram selecionadas e expostas, 15 fontes latino-americanas, entre elas 2 brasilei- ras. A primeira exposição Letras Latinas daria origem ao que viria a ser, poste- riormente, a Bienal Latino-Americana de Tipografia, mais conhecida como Bienal Letras Latinas (2004 e 2006) e posteriormente mudando sua nomenclatura para Bienal Tipos Latinos (2008).

A primeira edição da Bienal Latino-Americana de Tipografia (Letras Latinas 2004) foi promovida também pela revista tipoGráfica, em continuidade ao projeto original da primeira exposição no ano anterior. Reuniu um total de 235 trabalhos latino-americanos, entre eles 50 brasileiros. O evento percorreu as cidades de Buenos Aires (Argentina), São Paulo (Brasil), Veracruz (México) e Santiago (Chile). Os tipos brasileiros expostos dividiam-se em 12 na categoria “texto”, 25 na categoria “títulos”, 11 na categoria “experimentais” e 2 na categoria “miscelâneas”.

Ao observarmos os números relativos a cada categoria, e considerando que tanto a categoria “títulos” quanto a categoria “experimentais” corresponde ao univer- so do que chamamos aqui de fontes display, fica bastante claro como esse modo de abordagem projetual teve um peso maior no Brasil do que em outros países. Se tomarmos essas duas linhas de trabalho – tipos para uso em texto de imersão e tipos para uso display – como um universo total a ser analisado, veremos que o balanço da produção brasileira nesse período ficou em 75% relativa às fontes display e 25% relativo às fontes para texto. A liberdade formal adotada pelos designers brasileiros, aliada a uma ausência de tradição consolidada no desenvol- vimento de tipos para texto, mostra que a produção de tipos display (sejam eles para títulos ou experimentais) foi sensivelmente dominante no nosso país, nesse período.

93

Em sua segunda edição (Letras Latinas 2006), o júri selecionou os 70 melhores trabalhos (7 brasileiros) entre os 427 inscritos (aproximadamente 100 brasileiros). A exposição itinerante percorreu Argentina, Chile, México, Brasil, Colômbia, Venezuela e Uruguai. Reuniu, ao todo, 2 trabalhos de brasileiros na categoria “texto”, 3 na categoria “títulos”, 3 na categoria “experimentais” e 1 na categoria “miscelâneas”. O número de projetos selecionados foi visivelmente menor que na edição anterior. O motivo disso se deve ao fato de que, na edição de 2006, terem sido selecionadas apenas as 70 melhores fontes latino-americanas inscritas (na avaliação do júri), enquanto em 2004, terem sido expostos todos os trabalhos recebidos.

Com a extinção da revista tipoGráfica e o término da liderança de Rubén Fontana na organização do evento, a edição 2008 da Bienal, agora com o nome Tipos Latinos, passa a ser organizada por um novo comitê central em Buenos Aires e coordenações regionais em cada país, porém mantendo seus mesmos moldes e objetivos originais.

Na terceira edição da Bienal Latino-Americana de Tipografia (Tipos Latinos 2008), uma das novidades foi a inclusão da categoria “família”, relativa aos sistemas tipográficos com várias fontes, com variações de peso e/ou estilo. A necessidade pragmática de inclusão dessa categoria, mostra como o design de tipos tem evoluído na América Latina.

Nessa edição foram selecionados 69 trabalhos de design de tipos (14 brasileiros), entre 352 inscritos (73 brasileiros). Entre os tipos brasileiros seleci- onados foram 2 na categoria “família”, dedicada às famílias tipográficas para texto com vários pesos, inclinações e outras variáveis; 5 na categoria títulos; 2 na cate- goria “experimentais”, 1 na categoria “tela” e 2 na categoria “miscelâneas”. Foi a maior das edições em termos de abrangência geográfica, percorrendo diferentes cidades entre os países da Argentina, Brasil, México, Chile, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Bolívia, Equador, Paraguai e Peru.

94

Ainda em relação aos eventos de promoção da atividade, já no final da última década surgiram uma série de encontros, inicialmente com um caráter informal, que receberam o nome de DiaTipo. O projeto foi iniciado em reuniões de designers de tipos brasileiros que participam da lista de discussão nacional na internet de tipografia e caligrafia27. Posteriormente foi formalizado, com a organi- zação de palestras com especialistas.

O DiaTipo teve sua primeira edição formal em abril de 2008, na Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP), organizado por Luciano Cardinali, com o tema “OpenType”. Teve palestras sobre o assunto com os designers Eduardo Omine, Fernando Caro e Tony de Marco. Reuniu na platéia ainda outros designers de tipos paulistanos como Crystian Cruz, Nikolas Lorencini, o organizador Cardinali, entre outros participantes.

A segunda edição formal do evento aconteceu em dezembro de 2008, na mesma ESPM-SP, sem um tema fixo, com o título DiaTipo Natal 2008. Nessa edição, o evento foi organizado por Luciano Cardinali e Henrique Nardi. Teve, pela primeira vez, transmissão ao vivo por vídeo-conferência via internet, e pôde ser assistido em outras partes do Brasil e do mundo. As palestras foram ministradas por alguns designers de tipos brasileiros que tiveram experiências de estudos na Europa – Gustavo Soares, Fernando Mello e Gustavo Garcia – além do veterano Claudio Rocha. Reuniu ainda, no auditório, outros designers de tipos brasileiros como Eduilson Coan, Gustavo Lassala, Rafael Neder, Luciano Cardinali e Tony de Marco. Contou ainda com uma mesa redonda entre os palestrantes, com a inclusão de Crystian Cruz, em Reading, na Inglaterra, por vídeo-conferência.

A terceira edição formalizada do DiaTipo aconteceu mais uma vez na capital paulista, em abril de 2009, como parte da programação paralela à 9ª Bienal de Design Gráfico da ADG. Recebeu o nome de DiaTipo & Tipocracia, sendo organi- zado por Henrique Nardi. Numa seqüência de 5 dias, contou com os palestrantes brasileiros Crystian Cruz, Fabio Haag, Fabio Lopez, Eduilson Coan, Ricardo Esteves e com a pesquisadora inglesa Catherine Dixon. Reuniu na platéia os designers Tony

27 Disponível em: Último acesso em 08 jan 2010.

95

de Marco, Luciano Cardinali, Gustavo Soares, entre outros. Teve transmissão mais uma vez por vídeo-conferência, via internet, com grande audiência do público externo que, pela primeira vez, ultrapassou numericamente o público presencial.

O evento teve sua quarta edição formal em dezembro de 2009, na Facul- dade Impacta de São Paulo, em uma seqüência de palestras condensadas em um único dia. Organizado novamente por Nardi, recebeu o nome de DiaTipo Natal 2009 e teve como palestrantes André Stolarski, Daniela Fontinele, Fabio Haag, Fernando Mello, Gustavo Lassala, Kollontai Diniz, Marconi Lima, Matheus Barbosa, Rafael Neder, Ricardo Esteves, Priscila Farias, Crystian Cruz, Marina Chaccur, além do próprio organizador. Na platéia ainda estiveram presentes os designers de tipos Fabio Lopez, Fernanda Martins, Eduilson Coan, Eduardo Omine, Gustavo Soares, e Claudio Rocha. Apresentou público recorde em sua transmissão online e teve, pela primeira vez, todas as palestras gravadas para registro28.

28 Disponível em: Último acesso em 08 jan 2010.

96

Figura 22 – Infográfico dos principais eventos de promoção do design brasileiro de tipos digitais na década de 2000.

97

3.1.1 – Publicações nacionais: a importância da produção editorial para a prática efetiva

Além das iniciativas de promoção por meio de Bienais, exposições, congres- sos e ciclos de palestras, apontamos para a importância das publicações de livros e revistas dedicados ao assunto, como um modo de incentivo essencial para a prática. Destacamos aqui algumas delas, em âmbito nacional.

Em setembro do ano 2000, passa a ser publicada, em São Paulo, a revista Tupigrafia, por uma iniciativa independente dos editores e designers de tipos Claudio Rocha e Tony de Marco. Foi de fundamental importância na difusão da produção tipográfica nacional e contou, ao longo de suas edições, com textos dos mais diversos estilos: poéticos, técnicos, históricos, de entrevistas. A revista teve, até o presente ano, 8 edições, sendo a última publicada em 2008. Na primeira edição, sem dar maiores explicações, os editores introduzem a proposta da revista com um texto construído poeticamente, sugerindo o compromisso de observar a tipografia nacional:

A ligação já foi feita. Não precisa explicar. O espaço urbano e o pensamento individual se alimentam mutuamente. Nosso território, apesar dos muitos pesares, surpreende, refaz. Tupigrafia é o rastro da tipografia que se movimenta corriqueira e sedutora (é bom observar que este país já tem sua produção tipográfica). [...] temos que ter consciência do espaço que ocupamos. Aliás, sem percepção não há contorno, não há nada. (ROCHA e DE MARCO In: Tupigrafia 1, 2000, p. 03)

Logo, Tupigrafia passou a ser uma palavra de ordem associada a uma obser- vação livre da cultura tipográfica local. A revista deixou clara, ao longo de suas primeiras edições, a preocupação em se observar alguma raiz da cultura visual brasileira, ligada não somente à tipografia, mas também às diferentes manifestações da escrita, como os letreiramentos e a escrita manual.

Entre os livros publicados por autores brasileiros, já são vários os que tratam do tema da tipografia em geral – anatomia dos tipos, uso e aplicação. Nos últimos anos, cresce o número de publicações em português, incluindo importantes tradu- ções de livros de autores estrangeiros.

98

Mas são poucas as publicações de autores brasileiros que abordam o design de novos tipos como um assunto específico. Entre as produções nesse sentido, podemos citar o livro “Tipografia Digital: o impacto das novas tecnologias”, de Priscila Farias, publicado em 1998 pela editora 2AB (1ª edição); o livro “Projeto Tipográfico: análise e produção de fontes digitais”, de Claudio Rocha, que teve sua primeira edição publicada em 2002 pela editora Rosari; o citado “Fontes Digitais Brasileiras: de 1989 a 2001”, de Priscila Farias e Gustavo Piqueira, publicado em 2003 também pela Rosari; e mais recentemente o livro “MECOTipo: Método de Ensino de Desenho Coletivo de Caracteres Tipográficos”, de Leonardo Costa (Buggy), publicado em 2007 de modo independente.

3.1.2 – Algumas referências colaborativas na Web para a troca de conhecimentos

Tendo a Web como importante meio de articulação, busca e troca de conhe- cimentos específicos a partir de meados da década de 1990, destacamos algumas importantes iniciativas que colaboraram com o crescimento da área do design de tipos digitais. Pelo fato de termos pouca bibliografia em português, alguns designers de tipos autodidatas brasileiros buscam conhecimentos, seja pela importação de livros em inglês, seja por fóruns de discussão que tratam da tipografia em âmbito internacional. Nesse sentido, destaca-se o site Typophile, com fóruns de discussão onde, com um inglês razoável, é possível conversar com importantes figuras do design de tipos de projeção mundial. O site possui também uma enciclopédia tipográfica (Typowiki), criada de modo colaborativo pelos próprios usuários. Fundado em 2000, o site permanece, após dez anos, como um dos mais relevantes pontos de convergência de designers de tipos em âmbito internacional. A referência ao Typophile fica explicitada como um elemento impulsionador da produção nos relatos de designers como Fernando Mello e Eduardo Omine. Teve contribuições esporá- dicas também de Gustavo Ferreira, além do próprio autor desta dissertação.

99

Outra importante referência nesse sentido é o site TypeCulture, de origem norte-americana, iniciado em 2004. Abriga uma fundição digital, além de fontes de pesquisa acadêmica, disponibilizando artigos em inglês escritos por diferentes designers de tipos de várias partes do mundo, incluindo Eduardo Berliner e Fernando Mello, entre os brasileiros.

No que tange as iniciativas brasileiras, o maior canal de troca de conhe- cimentos via Web tem sido a lista de discussão nacional de tipografia e caligrafia, iniciada em 1998. Caracterizou-se como um importante mecanismo de articulação entre designers de tipos brasileiros nos últimos 12 anos. Foi de fundamental relevância para a troca de conhecimentos práticos e teóricos, bem como para a divulgação da produção tipográfica brasileira e de eventos relacionados.

A mais recente iniciativa brasileira para a difusão de conhecimentos na Web, em português, é o site Tipos do Brasil. Nasceu de discussões acerca da possível criação de uma associação nacional de profissionais ligados ao design de tipos. Devido às distâncias regionais e à ausência de uma massa crítica, nada foi encami- nhado nesse sentido. Mas essas discussões deram origem ao site, que tem por objetivo divulgar a produção nacional e contribuir para discussões acerca dos temas da tipografia em geral e do design de tipos em específico. Foi fundado em setembro de 2009 por um grupo que envolve designers e pesquisadores de diferentes partes do país: Gustavo Lassala, Rafael Neder, Ricardo Esteves, Fabio Haag, Frederico Antunes, Tony de Marco, Eduilson Coan, Hugo Cristo, Marconi Lima, Yomar Augusto e Pedro Moura. Ainda mais recentemente incorporou outros designers como Marina Chaccur, Fátima Finizola e Fabio Lopez.

100

3.2 – A produção na década de 1980: primeiras iniciativas no Brasil

Durante a década de 1980, o design de tipos digitais no Brasil ainda ensaiava seus primeiros passos. Vivíamos o paradigma em que o interesse pelo uso do computador pessoal era, em grande parte, restrito aos programadores e enge- nheiros, habituados com os textos das linhas de comando em monitores de fósforo verde. Mesmo depois da invenção da metáfora do desktop, seu uso demorou a ser disseminado. Nesse sentido, a posição econômica do Brasil deve ser levada em consideração. Num país historicamente inclinado a exportar matéria prima e importar tecnologia, grande parte dos equipamentos mais sofisticados deveriam ser trazidos do exterior.

Em 1984, quando o mundo vivia o pleno alvorecer da tecnologia do desktop publishing, no Brasil, vivíamos o período de transição da ditadura militar para a lenta retomada da democracia. Naquele ano foi sancionada a chamada Lei de Reserva de Mercado para os produtos de informática (nº 7.232/84). Sua intenção original seria a de proteger o mercado interno, estimulando a produção local de hardware e software. Entretanto, seus efeitos foram desastrosos, pois o que ocorreu foi uma grande discrepância tecnológica em relação aos países desenvolvidos, além do estímulo pragmático à pirataria, pois grande parte das empresas nacionais do setor acabavam copiando as tecnologias de empresas norte-americanas como Microsoft e Apple, ente outras.

O saldo dessa ação política foi de 7 anos de atraso tecnológico, pois foi somente em 1991 que a lei cairia (lei nº 8.248/91), tornando livre o acesso às tecnologias estrangeiras de ponta, amplamente difundidas no mercado mundial. Com isso uma maior quantidade de designers começaria a poder ter acesso a hard- wares e softwares específicos.

Mesmo com condições adversas na década de 1980, o designer Rodolfo Capeto realizaria alguns experimentos iniciais, não no sentido da criação de tipos com desenho inédito, mas no desenvolvimento de formatos de fontes específicos para saída em legendas de vídeo em monitores CRT. É importante notar que, nos

101

primeiros anos da década de 1980, não existia uma padronização de formatos como temos hoje. Soluções específicas eram fornecidas por empresas como a Bitstream, mas no contexto nacional era necessário ser, ao mesmo tempo, pragmático e criativo para encontrar soluções semelhantes. Um dos primeiros experimentos de Capeto no design de tipos digitais foi a construção digital de uma , utili- zando programação que permitia criar formas vetoriais por meio de retas e arcos de círculo. Nessa época não existiam ferramentas digitais específicas como as que temos atualmente, que utilizam curvas de Bézier cúbicas e quadráticas. Dado esse contexto, foi um projeto em que as ainda limitadas possibilidades técnicas dispo- níveis foram os elementos mais importantes a serem levados em consideração.

Foi somente em 1989 que surgiria o que parece ser a primeira fonte digital brasileira com a intenção de se criar um desenho inédito. Com formas geométricas rígidas e pouco legíveis, a fonte chamada de Sumô, ilustrada abaixo, foi criada pelo designer autodidata Tony de Marco, num dos seus primeiros contatos com um computador Macintosh, na ocasião em que trabalhava como ilustrador no jornal Folha de S. Paulo.

Figura 23 – Sumô (1989), de Tony de Marco, é a primeira fonte digital brasileira com a intenção de se criar um desenho inédito que se tem registro.

102

3.3 – A produção na década de 1990: uma primeira fase do design brasileiro de tipos digitais – iniciativas independentes e experimentação

O período coberto pelo livro “Fontes digitais brasileiras: de 1989 a 2001” (Farias e Piqueira, 2003), caracteriza-se por um desenvolvimento criativo dos tipos display, correspondendo, de certo modo, à liberdade formal sugerida pelas novas tecnologias, assim como à ausência de uma tradição de design de tipos para texto. Quando observamos as produções contidas nesse livro vemos que, naquele momento histórico (década de 1990 em especial), a idéia de “quebrar regras” parecia colocar-se como uma nova regra. Em muitos casos, fica clara a influência de estéticas “pós-modernas” – em especial a desconstrução29 – inseridos em nossa produção tipográfica recente. Sobre essa primeira fase da produção tipográfica brasileira, o designer de tipos Gustavo Ferreira, em uma entrevista realizada recentemente, pontua:

Tínhamos muito pouca informação, muito pouco conhecimento. E na época, também, acho que todo mundo aqui no Brasil estava um pouco fascinado com a coisa de desconstruir. David Carson era herói e estava todo mundo querendo detonar as coisas. Lembro que, entre as primeiras fontes que fizemos, havia essas detonadas, que eram, ou processadas por um filtro, ou “blendadas” a partir de duas fontes diferentes. Outros temas de criação eram fontes a partir da escrita popular e fontes a partir da geometria. As pessoas, quando estão começando, geralmente têm uma tendência a fazer fontes geométricas, a partir de círculos e retas. (FERREIRA In: Entrevistas estruturadas A, Anexo 2, 2008).

Em sua fala, Ferreira ilustra bem o cenário nessa primeira década de desen- volvimento produtivo no Brasil, como vimos na tentativa pioneira realizada por Tony de Marco (Sumô, 1989) e em algumas das demais que veremos a seguir.

Entre 1997/1998, os designers paulistas Priscila Farias e Claudio Rocha publicaram os primeiros tipos brasileiros distribuídos por empresas internacionais.

29 O termo “desconstrução” aqui se refere a uma tendência estética ligada a uma desorganização dos elementos canônicos das formas tipográficas. O termo pode ser relativizado por alguns teóricos devido a sua imprecisõa e caráter excessivamente geral. NNesta pesquisa, nos referimos à desconstrução ligada especialmente às influências do design gráfico californiano na década de 1990.

103

Farias comercializou suas fontes Quadrada, LowTech e Cryptocomix30 por meio da fundição digital norte-americana T-26, e Rocha teve suas fontes ITC Underscript e ITC Gema distribuídas pela tradicional International Typeface Corporation (ITC). Quatro das cinco fontes em questão são ilustradas a seguir.

Figura 24 – Fontes Quadrada e LowTech (Fat e Regular), de Priscila Farias, ambas comercializadas pela fundição norte-americana T-26.

Figura 25 – Fontes Gema e Underscript, de Claudio Rocha, ambas comercializadas pela fundição norte-americana ITC.

As iniciativas de Farias e Rocha são especialmente relevantes por terem sido pioneiras no sentido da articulação com distribuidores norte-americanos, onde o

30 Por se tratar de uma fonte Dingbats, não será abordada nessa pesquisa, conforme nota de rodapé número 4.

104

mercado de licenciamento de fontes já é bastante difundido, permitindo uma susten- tação financeira muito maior do que ocorre em nosso mercado interno.

O caminho da exportação, no caso dos tipos sob catálogo, seria seguido posteriormente por vários outros designers de tipos brasileiros, configurando uma tendência geral para esse modo de abordagem projetual. Sobre seu contato inicial com a empresa T-26, Farias diz que:

Meu primeiro contato com a T-26 ocorreu quando o Carlos Segura e a sua mulher, Sun, estiveram no Brasil convidados pela Bienal de Design Gráfico da ADG. Eu mostrei as fontes que fazia para ele, e ele gostou. Depois que eles voltaram para Chicago, eu mandei amostras da Cryptocomix, da Quadrada e da LowTech, e eles concordaram em distribuí-las (FARIAS In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010).

De acordo com relatos da autora, no momento do projeto dessas primeiras fontes ela estaria especialmente interessada em abordagens experimentais para o design de tipos. Esse modo de abordagem parece ter entrado em perfeita conflu- ência com a proposta estética da fundição norte-americana que passou a distribuí- las, bem como com o “espírito” geral do que estava sendo produzido no Brasil ao longo da década de 1990. Sobre o desenvolvimento desses projetos, Farias com- plementa: A LowTech foi inspirada por desenhos de letras tridimensionais presentes em cartazes 'lambe-lambe' paulistanos. [...] A Quadrada foi desenvolvida a partir de caracteres que usei nas consoantes da Cryptocomix. Eu tentei desenhar caracteres geometricamente muito simples, sem curvas e com poucos pontos, para não deixar o arquivo da Cryptocomix pesado demais. Eles foram desenhados diretamente no Illustrator, sem nenhum esboço preliminar. De alguma maneira, o processo de desenho das letras da Quadrada me lembra o processo de desenho de letras em xilogravura, onde inicia-se com uma área preta, e o desenho surge a partir da remoção de pedaços desta área, que ficam em branco. Também acho interessante o fato dela ser muito geométrica em seus contornos, mas ao mesmo tempo orgânica em seu desalinhamento horizontal. (Idem, 2010).

Com uma experiência de distribuição semelhante, se posicionou Claudio Rocha. O designer relata que a comercialização de suas fontes pela ITC foi possível por meio de algumas de suas viagens. Tudo começou em uma visita à sede da empresa em Nova Iorque, com o objetivo de assinar a conhecida revista U&lc, dedicada ao universo tipográfico. Posteriormente, Rocha foi ao congresso da AtypI (Associação Tipográfica Internacional) em 1996, na cidade de Haia, na Holanda,

105

quando teve a oportunidade de apresentar alguns de seus desenhos para o designer Erik Spiekermann – então responsável pela Fontshop – , além de Colin Brignall, da ITC, de quem obteve maior retorno. Brignall levaria os desenhos de Rocha para Nova Iorque, para apresentação à equipe da ITC. Em entrevista realizada, Rocha relata sua experiência com riqueza de detalhes:

Duas semanas depois, recebi uma carta do Colin dizendo que dois dos meus alfabetos haviam sido selecionados e seriam publicados e distribuídos pela ITC. Achei inacreditável. E pensar que antes de embarcar para a Holanda eu cheguei a hesitar em levar os meus alfabetos... ele também dizia que faríamos o desenvolvimento da fonte juntos, o que para mim era uma tremenda honra. Depois viemos a nos tornar bons amigos. [...] Primeiro trabalhamos na fonte Underscript (lançada em 1997) e depois na Gema (que foi para o mercado em 1998). Trocamos várias cartas, com um vai e vem de provas e anotações. [...] Após todos os refinamentos necessários, que funcionaram como uma espécie de curso particular por corres- pondência, passamos ao desenvolvimento dos arquivos de fonte, no Fontographer, com supervisão de Ilene Strizver, da ITC. No final, a fonte teve a revisão técnica do Steve Zafarana, type designer e um dos fundadores da typefoundry Galapagos. [...] (ROCHA In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

Ambas as fontes de Rocha (Gama e Underscript) seriam também as primei- ras fontes brasileiras de simulação da escrita manual distribuídas internacional- mente, proporcionando uma “grata satisfação material”, segundo o designer.

Durante os mesmos anos de 1997/1998 surgiu, no Rio de Janeiro, o grupo Subvertaipe, liderado pelo designer Billy Bacon, produzindo dezenas de novas fontes, comercializadas por conta própria. Distribuiria suas fontes em formatos para Mac e PC para escritórios de design e agências de publicidade. Algumas de suas produções, de caráter desconstrutivo, são ilustradas a seguir.

106

Figura 26 – As fontes Marola e Xibiu ilustram o caráter desconstrutivo da produção da Subvertaipe, de Billy Bacon.

Nesse caso, podemos observar uma tentativa de construção de um mercado interno de licenciamento e uso de tipos brasileiros, ainda dentro de um caráter experimental, presente na primeira década em que as tecnologias para produção de fontes estiveram consideravelmente difundidas em nosso país. Bacon, que viria a influenciar vários estudantes e profissionais no Brasil, fala ainda, em uma entrevista cedida à revista Tupigrafia, sobre as principais influências que norteavam o estilo do seu trabalho:

1990... na revista How tinha uma matéria sobre Neville Brody... ela me influenciou muito... na verdade ela foi o start, pode-se dizer, da Subvertaipe [...] e foi durante esse período [1992 a 1995] que pude conhecer a Raygun... um designer – David Carson – desenvolveu um trabalho de tipografia completamente bizarro... mexeu com a cabeça de todo mundo em função da ilegibilidade [...] a independência... a chance de fazer qualquer coisa. (BACON In: Tupigrafia 2, 2001, pp:35-36)

As produções de Bacon e sua equipe viriam a influenciar os então estudantes cariocas Gustavo Ferreira, Fabio Lopez, Guilherme Capilé, Emílio Rangel, Erik Grigorovsky e Angelo Bottino, que fundaram o grupo Fontes Carambola, com ativi- dade entre os anos de 1998 e 2000. Estabelecendo um contraponto fundamental, o professor Rodolfo Capeto exerceria, mais tarde, uma considerável influência no sentido do aprofundamento teórico por parte de alguns dos membros do grupo, que traria reflexos para sua produção tardia.

107

Segundo Fabio Pinto Lopes de Lima (o Fabio Lopez),

Durante o NDesign [Encontro Nacional dos Estudantes de Design] de Curitiba [1998] me lembro de ter visto algumas tipografias desconstruídas do Billy Bacon. […] O grupo foi aprendendo um pouco da tecnologia e desenvolvendo vários experimentos de alfabetos. Durante as aulas de Processos Gráficos tivemos uma ajuda fundamental do professor Rodolfo Capeto [ESDI], pois tentávamos extrair o máximo de informações sobre o assunto. No NDesign de Brasília [1999] já ensaiaríamos uma experiência de foundry, que chamávamos de Fontes Carambola. Fizemos alguns pequenos folders e disquetes com algumas fontes nossas. Vendíamos como verdadeiros feirantes. (LIMA In: Entrevistas estruturadas A, Anexo 2, 2008).

Figura 27 – Algumas fontes produzidas pelo grupo carioca Fontes Carambola entre 1998 e 2000. Na coluna da esquerda: Fontes Montevideo Estressado, Espieky (Normal e Bold) e Baigon. À direita: Fontes Zedsded, Bebit 5 e Punheta de Bacalhau.

Segundo o relato de Leonardo Costa – que assina seus projetos como Buggy –, também entre os anos de 1998 de 1999, surgiu no Recife o Tipos do aCASO, formado a partir de um grupo de estudos dedicado à tipografia, composto por Solange Coutinho, Márcia Maia, Moema Cruz, Miguel Sanches, além do próprio Leonardo Costa. Nas publicações encontradas a respeito, consta também a parti- cipação de outros jovens designers pernambucanos como Alex Carvalho, Helder Diniz, Marcos Buccini, Rodrigo Pires, Renata Faccenda e Joana Amador. O grupo desenvolveu tipos experimentais, ora de caráter desconstrutivo, ora geométrico- modular. Produzia e distribuía suas fontes digitais também de maneira independente

108

em território nacional, tendo publicado um catálogo em maio de 2000. Algumas delas são ilustradas abaixo.

Figura 28 – Algumas fontes produzidas pelo grupo pernambucano Tipos do aCASO entre 1998 e 2000. Sobre a primeira fase do grupo, de acordo com Leonardo Costa,

Reverenciávamos o movimento O Gráfico Amador, mas buscávamos freneticamente entender os processos que nos levariam a produzir fontes digitais melhores. Promovemos uma série de cursos, exposições e fóruns com a generosa ajuda dos amigos Priscila Farias, Billy Bacon, Tony de Marco e Cláudio Rocha. Em paralelo, outros amigos, Cecília Consolo, Márcio Shimabukuro, Henrique Nardi, José Bessa e Cláudio Reston cuida- vam de ajudar em nossa divulgação pelo eixo Rio/São Paulo. [...] No início da produção não tínhamos nenhuma referência. Pouco ou quase nada que tratasse de tipografia nos chegava. Não havia livros, catálogos, revistas. Não tínhamos acesso a nada. Falo do período que compreendeu 1995 a 2000. Mais tarde começamos a nos relacionar com designers de outros estados e países. Também o mercado editorial brasileiro tornou-se mais interessante e nossos recursos maiores. Tudo ficou mais fácil. A internet também ajudou bastante. (COSTA In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

A referência ao pouco acesso aos conhecimentos específicos é bastante recorrente em relatos de designers de tipos brasileiros, quando falam sobre a situa- ção na década de 1990. Mas isso não impediu as iniciativas pioneiras de pessoas que pareciam querer, sobretudo, aprender fazendo.

Com o tempo, o grupo pernambucano Tipos do aCASO ganhou novos contornos, passou a fazer parte de um escritório de design e a ter a sua produção inserida em outros projetos. Sobre os aspectos mercadológicos da produção, Costa complementa: Quando a Tipos virou unidade de negócios [...] a coisa mudou de figura. Passamos a desenvolver fontes sob demanda e a cobrar alto, inserindo tipografia em projetos maiores de design. Uma experiência muito lucrativa, em todos os sentidos. Utilizamos a tipografia como pivô para várias vendas na empresa, chegando mesmo a responder por 60% de seu faturamento. [...] Atualmente não comercializo mais minhas fontes. Trabalho para que num futuro próximo possa retomar este esforço apoiado numa ferramenta como o Myfonts. (Idem, 2010)

109

No que diz respeito a fontes feitas sob encomenda, em 1998, a designer paulistana Fernanda Martins desenvolveu uma fonte tipográfica para a identidade corporativa da rede de postos de gasolina Graal. A fonte foi batizada com o mesmo nome e foi publicada posteriormente na Bienal de Design Gráfico, no ano de 2000.

Também dentro de seus projetos feitos sob encomenda, entre 1999 e 2000, Martins desenvolveria ainda uma família tipográfica para a identidade corporativa da empresa aérea TransBrasil. Ambos os projetos são importantes, pois mostram um movimento diferente daquele que predominou na produção tipográfica nacional durante a década de 1990. Nesse caso, tipos criados para compor as identidades visuais de grandes empresas já começariam a mostrar que, apesar de uma tendência geral de experimentação presente durante o período, outros caminhos mais focados em solucionar problemas visuais específicos também encontrariam seu lugar.

Figura 29 – Fonte TransBrasil (1999-2000), projetada para a identidade corporativa da empresa homônima, por Fernanda Martins.

Seguindo o caráter desconstruído, em 1999 o designer paulistano Gustavo Piqueira publicou a fonte Bizu, distribuída internacionalmente pela já citada T-26.

Desde o ano de 1997, os designers cariocas José Bessa e Claudio Reston, que assinavam projetos como Elesbão e Haroldinho, fizeram um considerável sucesso nacional, com seu periódico “Design de Bolso”, cheio de humor e de

110

experimentações tipográficas. Em 1999 publicaram várias fontes de caráter experi- mental em um catálogo de divulgação, criando a fundição Tipopótamo Fontes, com atividades até o ano de 2001.

Dentro da produção experimental, registra-se também, na cidade de Curitiba, entre os anos de 1998 e 2000, o grupo Tipos Maléficos, formado pelos então estudantes Crystian Cruz, Beto Shibata e Marcus Colete. Foi iniciado a partir de experimentos acadêmicos em disciplinas de Tipografia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), terminando suas atividades no ano de formatura dos membros. O grupo produziu materiais de divulgação da produção, como catálogos, posteres e camisetas, mas a distribuição comercial não parecia ser seu foco. Segundo Shibata, naquele contexto, “ninguém pagava para conseguir fontes”. Em entrevista realizada, o designer conta ainda sobre suas principais influências dentro do grupo:

Na época eu via bastantes coisas do Neville Brody, David Carson desconstruindo tipografias, e isto dava uma liberdade para querer estragar umas fontes também. Os catálogos e revistas como T-26, House Industries, Emigre, U&lc. Por aqui conheci e troquei muita informação com o pessoal da Subvertaipe [...], Caótica (Leonardo Eyer), e Tipopótamo [...] (SHIBATA In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

Dos três membros do grupo, apenas Crystian Cruz deu continuidade à atividade do design de tipos ao longo da década de 2000. Em âmbito profissional, desenvolveu alguns tipos customizados para revistas da Editora Abril, onde trabalhou por nove anos. Posteriormente, cursou o Master in Typeface Design na University of Reading, Inglaterra.

Em um período muito curto de tempo, vários grupos independentes foram formados. Considerando as tentativas de ocupar espaço, alguns optaram pelo caminho mais tortuoso: a aposta em um mercado nacional de consumo dos seus produtos. Outros estabeleceram contatos internacionais com empresas para distri- buição de fontes nos Estados Unidos e Europa, principalmente. Outros, ainda, desenvolveram alguns projetos pontuais de fontes sob encomenda para empresas nacionais.

111

As redes rapidamente começaram a se formar. O grupo Gemada Tipográfica, de Brasília, fundado pelo designer Rafael Dietzsch em meados de 2000, foi mais uma manifestação dessa produção inicial da tipografia digital brasileira. Segundo o designer,

A primeira vez que vi uma fonte brasileira foi em 98, num catalogo da Subvertaipe. Produzir algo semelhante estava muito distante da realidade, pois mal tinha comprado meu primeiro computador. Quando familiarizei-me mais com o equipamento, resolvi procurar o Don [Gustavo Ferreira] e o Emílio [Rangel] da Carambola, que eu já conhecia há algum tempo. [...] Com a necessidade de divulgar todo esse trabalho, percebeu-se que era de vital importância a criação de um site para visualização e comercialização das fontes. (DIETZSCH In: Tupigrafia 3, 2002, pp. 62-64).

Embora não se tenha mais notícias sobre a produção do grupo, Dietzsch se mostrava bastante coerente, pois nos anos seguintes toda a comercialização de tipos digitais no mercado internacional passaria progressivamente a migrar para o comércio eletrônico, abandonando cada vez mais os sedutores, porém custosos, catálogos impressos.

Em paralelo aos esforços visando a consolidação profissional da área, articulam-se tentativas de caracterizar a especificidade do design de tipos digitais no Brasil. Esse tipo de preocupação pode ser observado na apresentação do livro Fontes Digitais Brasileiras, onde Piqueira afirma que:

[…] assistimos a uma série de designers brasileiros desenhando suas próprias fontes [...] trocando informações e, enfim, construindo a tal tradição tipográfica brasileira (PIQUEIRA In: FARIAS e PIQUEIRA, 2003, p:07).

Também já na primeira edição da revista Tupigrafia (2000), manifesta-se a intenção de observar uma “cultura tipográfica nacional”, mesmo antes de ela estar difundida enquanto prática profissional. Nesse sentido há uma valorização explícita do universo vernacular urbano, que inclui letreiramentos feitos à mão por pintores de placas e murais e a produção dos pichadores em São Paulo. Dentro desta mesma tendência situam-se as nove fontes, elaboradas por diferentes designers, baseadas nos painéis pintados pelo Profeta Gentileza, figura tradicional das ruas do Rio de Janeiro. Como também situam-se as tentativas de referência a um “Brasil profundo”, como no caso das fontes baseadas no alfabeto armorial proposto pelo escritor

112

pernambucano Ariano Suassuna, ou a uma “essência brasileira”. Sobre sua fonte intitulada Brasilêro [SIC], premiada na 6ª Bienal de Design Gráfico da ADG (2002), Crystian Cruz diz:

A riqueza da escrita popular brasileira foi algo que sempre me fascinou, do desenho das letras à forma como elas estão dispostas. (...) Dessa admiração nasceu a vontade de criar uma tipografia digital que fosse um retrato desse tipo de expressão visual genuinamente brasileira. Dois anos depois, veio ao mundo a “Brasilêro”, uma tipografia que busca mostrar a essência de nossa escrita popular. (CRUZ In: Tupigrafia 4, 2003, p:69).

Figura 30 – As fontes Adrenalina (2003-2007), de Gustavo Lassala, e Brasilêro (2002), de Crystian Cruz, ilustram alguns referenciais estéticos das fontes baseadas em escritas vernaculares.

Dentro dos diferentes discursos a respeito desse tema, vemos que as figuras do homem pré-alfabetizado, ou daquele marginalizado, se adequam à busca de “essência”, “tradição” e “identidade” brasileiras. A idealização do sujeito tradicional- mente territorializado, com forte vínculo com a terra e com o mundo quase natural que o cerca, ou daquele desterritorializado, que caracteriza as “tribos” urbanas e a cultura marginal, buscariam valorizar o que é local em um mundo cada vez mais globalizado. Nos dois casos, a inclinação por um desenho “tosco” e/ou pouco “lapidado” coloca-se como uma tentativa de aproximação com o mito da fundação e da criação espontânea. Independentemente de alguns bons resultados obtidos com base nessas premissas, elas não podem ser encaradas programaticamente como caminho definitivo para o design brasileiro de tipos. Sem invalidar a possibilidade desse ser um dos caminhos possíveis, Bonsiepe tem razão ao afirmar que:

113

Se os países periféricos querem deixar sua posição e criar uma identidade contemporânea, devem olhar para o futuro, e não para o passado. [...] Identidade cultural é transparente para aquela pessoa que vive neste contexto. [...] A identidade se constitui no olhar do outro. Por isso, parece- me pouco produtivo considerar a identidade cultural como um bem escondido, que deveria ser traduzido em produtos ou artefatos gráficos. (BONSIEPE, 1997, p:108)

Neste sentido, face ao discurso da busca de uma identidade nacional em oposição à tradição européia/ocidental, ganha consistência pragmática a ponde- ração de Claudio Rocha e Tony de Marco:

Por um lado, nos ressentimos de uma cultura tipográfica mais forte. Por outro, estamos soltos para buscar nossa identidade tipográfica, sem ignorar esse patrimônio que a própria tipografia permitiu preservar. Novas regras, novos veículos, outro tipo de leitor (ROCHA e DE MARCO In: Tupigrafia 5, 2004, p:02)

Desse modo, podemos dizer que essa, que chamamos de uma primeira fase do design de tipos digitais no Brasil, caracterizou-se fundamentalmente pela experi- mentação e por tentativas ora de territorialização, ora de desterritorialização, como busca da construção de identidades tipográficas locais. Com o maior contato de brasileiros com outras referências do exterior, aos poucos essas questões foram sendo relativizadas e a difusão do conhecimento propiciou outros horizontes paralelos.

3.4 – A produção na década de 2000: uma segunda fase do design brasileiro de tipos digitais – experiências internacionais e amadurecimento

Em 2001 coloca-se um novo marco qualitativo em nossa produção. A família tipográfica Houaiss, projetada por Rodolfo Capeto exclusivamente para o dicionário homônimo, cria uma nova referência, tanto por ser uma família para texto (em oposição aos tipos display), quanto pela diversidade de versões que apresenta. Apresentou-se como o mais completo e complexo projeto tipográfico sob enco- menda desenvolvido no país até aquele momento, focado na reprodução tipográfica em corpos reduzidos e na leitura de consulta. Rapidamente percebe-se que é possível desenvolver projetos de alta complexidade técnica em território brasileiro.

114

Em pouco tempo outras famílias para texto surgiriam, configurando um segundo momento na área de design de tipos digitais no Brasil.

Figura 31 – Família Houaiss (2001), de Rodolfo Capeto.

Ainda no início da década de 2000 alguns designers brasileiros vão estudar design de tipos na Europa – fato que traz novas experiências para o cenário nacional. É o caso de Eduardo Berliner, que, no ano de 2003, fez seu mestrado em Typeface Design na University of Reading, na Inglaterra, e Yomar Augusto, que fez o curso de mestrado Type&Media, na Royal Academy of Arts em Haia, na Holanda, entre os anos de 2004 e 2005.

Na segunda metade da década, outros teriam experiências semelhantes, como Gustavo Ferreira (Haia, 2005-2006), Fernando Mello (Reading, 2007), Gustavo Soares (Haia, 2007-2008), Haroldo Portella (curso de mestrado Tipografía Avanzada, na Universidad Autónoma de Barcelona, 2008) e, ainda mais recente- mente, Crystian Cruz (Reading, 2009), todos desenvolvendo excelentes famílias de tipos para texto em solo europeu.

No catálogo da 6ª Bienal de Design Gráfico, em 2002, pudemos ver como destaque, entre vários projetos inscritos, a família tipográfica display Seu Juca

115

(citada no Capítulo 1), de Priscila Farias, representando o universo vernacular na criação de tipos.

Figura 32 – Família Seu Juca (2002), de Priscila Farias.

Sobre o contexto de seu desenvolvimento e processo de criação, Farias relata:

Desenvolvi esta família por que fiquei muito fascinada pelo trabalho do Seu Juca. [...] Lembro-me até hoje de como fiquei intrigada ao ver a fachada da sapataria, submersa em placas coloridas, pela primeira vez. [...] Na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz quando acordei foi voltar lá para fotografar tudo o que pudesse e conversar com o autor das placas. Voltando a São Paulo, preparei um artigo para a Tupigrafia no qual fazia uma análise dos estilos de letras pintados pelo Juca. As letras que simulavam tridimen- sionalidade, com sombras curiosas, foram as que me pareceram mais originais. Comecei redesenhando algumas, que estavam pintadas em uma placa que comprei, para escrever o título da matéria, e depois me animei e completei um conjunto básico para ortografias européias ocidentais. É claro que tive que inventar muita coisa, como a arroba e o e-comercial, que o Seu Juca nunca desenhou. Trabalhei no Illustrator, traçando vetores à mão sobre algumas imagens fotografadas, depois expandindo e 'entortando' os traços. As variações dentro da família, apesar de funcionarem vinculadas às variações de negrito e itálico, não são de peso ou de inclinação, mas sim no posicionamento das sombras. (FARIAS In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010).

A família Seu Juca dá continuidade a umas das tendências projetuais de fontes display, iniciada na década de 1990, cujas principais influências foram refe- rências vernaculares. A partir da década de 2000, podemos ver várias dessas tendências funcionando em paralelo – algumas no sentido do desenvolvimento de fontes display cuja expressividade fica mais evidente, outras no sentido do desen- volvimento de fontes para texto de imersão, em que a personalidade na forma atua de maneira mais discreta e mais próxima da tradição.

116

Na primeira exposição TypeCon 2003/Letras Latinas, citada no item 3.1, foram apresentadas as fontes para texto Nova, de Priscila Farias e a família Lira Sans, do paulistano Eduardo Omine.

No mesmo ano, Tony de Marco e seu irmão Caio de Marco desenvolveram a família para títulos Samba, inspirada em letreiramentos do ilustrador J. Carlos e no movimento Art Deco. A família Samba renderia um prêmio no International Type Design Contest, promovido pela fundidora Linotype. Juntamente com a família tipográfica dos irmãos De Marco, foi premiada também a família Beret, desenvolvida por Eduardo Omine.

Ambas as famílias viriam a ser comercializadas posteriormente pela mesma Linotype. Entre os jurados do concurso haviam nomes bastante conhecidos e respeitados como Jill , Edward Benguiat, John Hudson, Erik Spiekermann, Gerard Unger e Akira Kobayashi. Esse foi, sem dúvida, mais um marco impor- tantíssimo no processo de consolidação do design de tipos no Brasil. Imagens dessas duas famílias podem ser vistas a seguir.

Figura 33 – Família Samba (2003), Tony e Caio de Marco.

Figura 34 – Família Beret (2003), de Eduardo Omine.

117

Sobre o desenvolvimento da família Samba, criada a partir de uma matéria para a revista Tupigrafia nº 4, Tony de Marco relata:

Uma fonte, originalmente chamada “Melindrosa”, foi desenvolvida para ilustrar tal artigo, baseada nos minúsculos caracteres com os quais J. Carlos escrevia as datas e o preço nas capas das publicações que ilustrou. A pesquisa se deu com a ajuda do desenhista, caricaturista e pesquisador Cassio Loredano. Ao mostrar a revista na Typecon [Minneapolis, EUA] daquele ano [2003] fui estimulado por amigos a desenvolver uma família para o concurso da Linotype. As versões “Regular” e “Bold” são uma transposição das letras de J. Carlos, enquanto que a versão “Expert” é uma criação minha, desenvolvida por Caio de Marco, baseada nas formas espiraladas das ferragens de portões e grades do século XIX e início do século XX. (DE MARCO In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

A família Samba obteve, na ocasião do concurso, grande visibilidade inter- nacional, bem como a família Beret, de Eduardo Omine. De acordo com informações fornecidas ao autor, Omine relata que começaria a desenvolver fontes digitais ainda em 1999. Em 2002 seu projeto de conclusão de curso na FAU-USP foi também um projeto de família tipográfica. Em 2003 passou a participar assiduamente do fórum na web Typophile31 e a comprar livros importados sobre tipografia. Dentro de sua produção, de acordo com o designer, a família Beret:

É um marco importante. Em primeiro lugar, representa a passagem de um período de estudos para um período de produção "autoral". [...] Foi com a Beret, desenvolvida em 2003, que consegui alcançar um equilíbrio entre técnica e personalidade: o desenho "correto" das letras com a perso- nalidade geral da família tipográfica. Acho que a UltraGotica e a Nabuco, que vieram depois, também são bons exemplos dessa conjunção entre técnica e personalidade, um aspecto que considero essencial em type design. [...] Em segundo lugar, ela representa o reconhecimento inter- nacional e a inserção no mercado internacional. A menção honrosa no concurso da Linotype [...] foi uma grande recompensa. Depois desse prêmio, fiquei mais empolgado com o type design e decidi que passaria a vender meus trabalhos seguintes através do MyFonts. (OMINE In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010).

A família Beret se enquadra na tendência projetual de famílias com grande quantidade de variações de peso, conforme vimos explicitado no tema abordado no Capítulo 2, sobre as superfamílias tipográficas. Embora não possa ser enquadrada como uma superfamília em estrito senso (que costumam ter outras variações estilís-

31 Disponível em: Último acesso em 18 jan 2010.

118

ticas como alternância de serifas, mudanças de contraste e de largura) essa família ilustra bem a progressiva ampliação de variáveis tipográficas em projetos produzidos por brasileiros.

Ao longo da década de 2000 são desenvolvidas famílias cada vez mais complexas em termos de variações de peso, largura, inclinação, entre outros ele- mentos construtivos. Nesse tipo de projeto tipográfico, com certa freqüência, são necessárias definições de variáveis sob as quais o desenho irá se comportar, na construção de identidade e alteridade entre diferentes fontes numa mesma família. Bons exemplos brasileiros de manifestações desse movimento de complexificação da atividade são a já citadas Beret, de Eduardo Omine, além da superfamília Elementar e da família UnB, de Gustavo Ferreira. A Elementar foi iniciada por Ferreira durante seu trabalho de conclusão de graduação na ESDI/UERJ, desen- volvida para leitura em telas de computador e a UnB, para a identidade visual da Universidade de Brasília.

A família Elementar, ilustrada abaixo, é uma das poucas produções brasi- leiras de grande complexidade feitas exclusivamente para a mídia tela, tendo o pixel como elemento fundamental. Atualmente parte da família é comercializada pela fundição Typotheque, do designer Peter Bil’ak, com sede na Holanda, onde Ferreira atualmente reside. Sobre esse projeto, Ferreira pontua:

[...] eu me propus a fazer uma família, ou um sistema tipográfico, que oferecesse uma maior variedade para tela. [...] No Elementar [...] os parâmetros foram baseados no pixel, então, por exemplo, as larguras eram 1 pixel no olho da letra, 2 pixels, 3 pixels. Em relação às alturas, eu comecei por 9 pixels (indo da ascendente à descendente), mas depois passei para 13 pixels, por que achei mais produtivo trabalhar nesse tamanho. Então para fazer a altura de 11 pixels eu partia do desenho de 13 e ia mudando manualmente. [...] (FERREIRA In: Entrevistas estruturadas A, Anexo 2, 2008)

119

Figura 35 – Sistema Elementar, de Gustavo Ferreira. A família foi iniciada em 2003 em seu trabalho de conclusão na Esdi/Uerj e continua em desenvolvimento. Alguns pesos são atualmente comercializados pela fundição holandesa Typotheque.

Outro elemento determinante para o desenvolvimento da cena tipográfica nacional foram os sistemas de comunicação instantânea na Web, conforme proble- matizado no Capítulo 2. No âmbito da criação de tipos para venda no varejo, nos últimos anos o mercado parece ter migrado em definitivo para a rede mundial de computadores.

Logo, mais um parâmetro de avaliação das fontes nacionais começaria a se fazer presente: as vendas. Paralelamente às grandes discussões conceituais, ainda no ano de 2004 o mineiro Eduardo Recife, com sua fundição digital Misprinted Type, sorrateiramente posicionaria sua expressiva família Great Circus, ilustrada abaixo, no topo da lista de best sellers do portal MyFonts. Sua família, que ao mesmo tempo sugere a manualidade e a imprecisão, seria ainda selecionada pelo próprio MyFonts como a melhor família “grunge” publicada no ano de 2004, e também entre as 10 melhores entre todas publicadas naquele ano em seu portal de vendas. Segundo Recife,

Conheço foundries de excelente qualidade que fazem poucas vendas no ano. Nem sempre é fácil e barato se fazer uma divulgação adequada. No caso da Misprinted Type, eu tive sorte de ter um bom número de acessos diários ao site e isso certamente ajudou na divulgação e venda de fontes. (RECIFE In: Tupigrafia 6, 2005, p:46)

120

Figura 36 – Fonte Great Circus (2004) em sua versão Dirty, de Eduardo Recife.

Na 7ª edição da Bienal da ADG (2004) estiveram presentes famílias para texto como a Colonia, de Fabio Lopez; a Cruz Sans, de Crystian Cruz, desenvolvida para publicações da Editora Abril; a Thanis, de Luciano Cardinali, desenvolvida para a Revista da ADG; a família Foco, de Fabio Haag, entre outras produções. Essa última (ilustrada abaixo) teria sido iniciada no citado workshop do designer suíço Bruno Maag, em 2002. Foi desenvolvida nos anos posteriores, quando Haag passou a trabalhar na empresa britânica Dalton Maag. Uma vez concluída, integrou o catálogo da mesma empresa, por onde seria comercializada. Em 2008, a família Foco ganhou ainda versões itálicas em 4 pesos, complementado os 4 pesos romanos feitos anteriormente.

Figura 37 – Família Foco (2002-2008), de Fabio Haag. É atualmente comercializada pela fundição inglesa Dalton Maag.

121

Figura 38 – Fonte Colonia Regular (1999-2003), de Fabio Lopez. Foi iniciada em 1999 e modificada em 2000, durante seu trabalho de conclusão de graduação, na Esdi/Uerj.

A família Colonia foi iniciada por Fabio Pinto Lopes de Lima – o Fabio Lopez – durante seu projeto de conclusão de graduação na ESDI/UERJ, tratando de uma reflexão sobre os tipos para textos de imersão e um projeto prático que geraria a família. Sobre seu contexto de desenvolvimento, o designer relata:

Mostrei alguns primeiros desenhos de letras para o prof. Rodolfo Capeto e ele fez algumas considerações sobre a estrutura destas. Ele fez algumas correções importantes, disse que aquela seria uma tipografia para logotipo e que existiria uma diferença em relação a essa categoria e a da tipografia para texto. Fiquei instigado com aquilo, pois me parecia que a tipografia para texto seria um desafio maior. [...] Fiz uma primeira família, que chamei de Squeroway. No projeto de graduação [...] achei que seria mais interessante ainda se eu conseguisse aplicar, de forma prática, aquelas informações no desenvolvimento de uma família tipográfica. Após o término da graduação ainda ampliei a família Colonia, por volta de 2003, fazendo algumas correções, e resolvi inscrevê-la na Bienal da ADG e na Bienal Letras Latinas. A partir desse ano, foi um período muito pequeno em que a coisa mudou de nível, com vários outros designers dando saída a projetos de bastante qualidade. (LIMA In: Entrevistas estruturadas A, Anexo 2, 2008)

2004 foi também o ano da citada primeira Bienal Letras Latinas. A Bienal reunia os trabalhos feitos por designers de tipos latino-americanos nos últimos anos, entre eles brasileiros como Luciano Cardinali e suas famílias Paulisthania, Thanis, Reich e Kashemira; Claudio Rocha e suas bem humoradas Perplexiva, Liquid Stencil e Akrylicz Grotesk; Priscila Farias com sua família para textos Nova e sua já citada família display Seu Juca; Fabio Lopez com suas Ryad, Tibhet, Bankok, Giovanna e Colonia; Crystian Cruz com as famílias Cruz Sans e Rodan, feita para a revista Quatro Rodas; Leopoldo Leal e suas Flor de Lácio, Cacografia e Caligrafia; Ericson Straub com suas Céltica, Waimiri, Noebauhaus, Palumbo, Pero Vaz, Indo-América e Free; Eduardo Braga com seus tipos Nossa Senhora de Bom Sucesso e Núcleo de

122

Design; Tony de Marco com a já citada Samba; Gustavo Piqueira com os tipos Final, Motordrome e Cabourg; Fernanda Martins com sua Paulista Regular; Marcio Shimabukuro, com seu tipo Heresia; Yomar Augusto com suas Virgem, Líquida e Dizain; e Eduardo Omine com sua família para textos chamada Lalo.

A produção brasileira começa a dar um salto tanto no sentido qualitativo quanto quantitativo. Outras influências de professores nas universidades brasileiras se mostraram presentes, como fica evidenciado no caso de alguns designers que tiveram sua formação na Universidade de São Paulo – USP. Segundo Eduardo Omine:

Meu primeiro contato sério com tipografia foi em 1999, quando eu cursava uma disciplina de programação visual na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) sob orientação do professor Vicente Gil. Nessa época, ele defendeu sua tese de doutorado, "A Revolução dos Tipos", um livro que mistura história da tipografia com trabalhos gráficos experimentais. Esse livro me mostrou que havia coisas mais interessantes do que fontes grunge ou pixel, e me estimulou a estudar o assunto com mais profundidade. (OMINE, 2006. Disponível em: . Acesso em: 23 de novembro de 2008)

A influência do professor Vicente Gil apareceria novamente quando, em 2006, Fernando Mello publicaria sua família chamada Mello Sans, desenvolvida em seu trabalho de conclusão da graduação (sob orientação de Gil na mesma FAU- USP). MelloSans foi publicada na Bienal Letras Latinas de 2006, bem como na 8ª Bienal da ADG, no mesmo ano.

Segundo informações obtidas com o designer, antes da MelloSans, Fernando Mello já teria feito fontes display e dingbats, mas esse projeto, iniciado em 2004, seria sua primeira experiência no desenvolvimento de tipos para texto. A importância da publicação “A Revolução dos Tipos”, de Gil, fica novamente evidenciada no relato de Mello, bem como outras influências:

[...] motivado pelas aulas e pela pesquisa de doutorado do professor de FAU Vicente Gil Filho, intitulada "A Revolução dos Tipos", resolvi encarar o desafio de desenvolver uma família sans-serif como trabalho de conclusão da faculdade. Estava trabalhando bastante com ilustração vetorial naquela ocasião, e meu controle sobre a bézier tool estava se refinando cada vez mais. Durante 9 meses, desenvolvi então 10 pesos, 5 romanos e mais os 5 itálicos complementares. [...] O modelo neo-humanista de fontes como Frutiger [de Adrian Frutiger] e TheSans [de Lucas de Groot] foi o partido

123

adotado pela sua praticidade e funcionalidade em diversos meios, e a idéia central do projeto foi fazer uma fonte de texto o mais simples, funcional e legível possível. [...] Baseei-me essencialmente na escassa informação presente nos não tão numerosos livros sobre typedesign ao meu alcance no momento, e também em informações e discussões disponíveis na internet, sobretudo no fórum Typophile. (MELLO In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

MelloSans, ilustrada na página seguinte, passaria ainda por outros refina- mentos nos anos posteriores, após o contato de Mello com professores como Gerard Unger, durante seu curso de mestrado em Typeface Design, na University of Reading, na Inglaterra. Mais recentemente, foi incorporada como família institucional que compõe a identidade visual da Bienal Tipos Latinos 2010 (4ª Bienal Latino- Americana de Tipografia).

Figura 39 – Família Mello Sans (2005-2009), de Fernando Mello. Selecionada nas Bienais Letras Latinas e da ADG em 2006. Sua última versão, resdesenhada, compõe a identidade visual da Bienal Tipos Latinos 2010.

Em 2006 ocorreu a citada segunda Bienal Letras Latinas. Além da família de Fernando Mello, a segunda edição da Bienal Latino-Americana de Tipografia reuniu também trabalhos de outros designers brasileiros como Roberto Raúl Janz, com sua família Póstuma; Gustavo Lassala com sua Boqueta; Fabio Haag, com sua FH After; Dimitre Lima, com seu tipo experimental Clave de Fá; Marcel Pereira Ursini, com seu Cubius Concretus; Rogério Lionzo, com sua Goteira, além de Yomar Augusto, com família para textos Dendekker. Os dois últimos projetos são ilustrados abaixo.

124

Figura 40 – A fonte Goteira, de Rogério Lionzo, é uma display experimental de grande rigor formal, selecionada na segunda Bienal Latino Americana de Tipografia (Letras Latinas 2006).

Figura 41 – Família Dendekker (2004-2005), de Yomar Augusto, em suas versões Regular, Italic e Bold. Foi selecionada na segunda Bienal Latino-Americana de Tipografia (Letras Latinas 2006).

No que diz respeito à família Dendekker, é visível que a experiência de Yomar Augusto como calígrafo influenciou diretamente seu trabalho tipográfico. Sobre sua experiência com essa família, desenvolvida no curso de Mestrado Type&Media, na cidade de Haia, na Holanda, Augusto relata:

O projeto Dendekker visava uma mistura entre a caligrafia e a tipografia no primeiro plano, com um segundo objetivo de entender um pouco mais sobre types de texto e suas particularidades de construção, e detalhes. [...] Nunca foi minha meta me tornar um "type designer" para tipos de texto, meu objetivo sempre foi desenhar logotipos customizados e tipos display de qualidade. Porém ter investido 1 ano da minha vida nesse estudo, expandiu muito minhas possibilidades. [...] Os holandeses tem a capacidade de entrar no seu cérebro muito forte, são 500 anos de tradição tipográfica. Então é importante você saber o quer fazer, ou então eles irão dizer o que você tem que fazer, que às vezes não é o melhor [...] (AUGUSTO In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

125

Fica claro, portanto, que essa experiência com os holandeses também influ- enciou, de certo modo, o trabalho de Yomar Augusto. É interessante notar como o repertório cultural de países de longa tradição tipográfica podem abacar guiando as abordagens projetuais para um deteminado escopo, no caso de designers brasileiros com formação na Europa. Interpretando as palavras de Augusto, quando diz que “os holandeses tem a capacidade de entrar no seu cérebro muito forte”, é possível dizer que essa influência pode se aproximar de uma ação viral, em muitos casos, modi- ficando consideravelmente os caminhos seguidos pelos designers de tipos. Por outro lado, esse intercâmbio cultural parece ter trazido resultados muito positivos para o resultado final da família Dendekker.

Na Bienal da ADG de 2006 vimos ainda a fonte Doo Sans, de Eduilson Coan e a Estado Serif, desenvolvida para o jornal Estado do Paraná pela empresa Straub Design, que teve na equipe os designers Ericson Straub, Eduilson Coan e Fabio Augusto. A exemplo da família Houaiss, de Rodolfo Capeto, relatada anteriormente, o projeto Estado Serif (ilustrado a seguir) é de particular interesse, por ter sido feito sob encomenda para uma situação de design específica e com grande controle sobre sua aplicação final. A esse respeito, Eduilson Coan indica alguns desafios enfrentados:

[...] [1] Curto prazo para a criação (30 dias para a criação do arquivo digital da fonte e mais 10 dias para implantação e ajustes necessários). [2] O desenvolvimento de um set de caracteres completo que até o momento eu nunca tinha projetado. [3] Adequar o arquivo final da fonte para todos os meios de impressão utilizados no jornal. [...] Junto com Ericson Straub desenvolvemos uma pesquisa inicial em jornais do Brasil e da Europa. [...] Com a mesma equipe trabalhando na reformulação gráfica e no design da tipografia foi mais fácil limitar parâmetros e o real uso para a fonte. (COAN In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

Sobre algumas características particulares dessa família, Coan ainda destaca:

[...] Iniciados os rafes, a busca era por manter a identidade do jornal, somando pequenos detalhes exclusivos de tipos para títulos de jornais que foram: [1] Uma serifa mais curta, proporcionando o uso do espaço entre as letras menor, em conseqüência o ganho de toques para a criação de títulos pelo jornalista. [2] Ascendente e descendente mais curtas, possibilitando entrelinhas mais próximas, aumentando o ganho de espaço para as matérias. [3] Contraste das letras adequado ao uso em títulos. (Idem, 2010)

126

Assim, fica evidenciado que esse modo de abordagem projetual se diferen- cia das fontes em catálogo, não somente pelo modo como essas ferramentas são disponibilizadas, mas pela diferença pragmática envolvida no momento do projeto, em que os parâmetros de aplicação podem ser ao mesmo tempo mais rígidos e com verificação imediata.

Figura 42 – Família Estado Serif (2005), de Ericson Straub, Eduilson Coan e Fabio Augusto, em suas versões Normal, Italic, Bold e Bold Italic.

Em 2008, aconteceria a citada terceira edição da Bienal Latino-Americana de Tipografia – agora intitulada Tipos Latinos. A exposição mostraria famílias tipo- gráficas de alto nível como a Frida, de Fernando Mello, desenvolvida para uso em periódicos, durante seu curso de mestrado em Reading, e a Adriane Text, criada pelo designer autodidata Marconi Lima, do Amapá, para uso em livros.

Expuseram também na Bienal daquele ano os designers Francisco Martins, com sua Nova Sans, comercializada a partir de 2009 por meio do revendedor MyFonts; Eduilson Coan com sua família Ninfa, publicada comercialmente a partir do mesmo ano, também pelo MyFonts; Jarbas Gomes com sua Boldoni Gray; Gustavo Garcia com o tipo Flat Pipe; Anderson Machio com sua Chumbitos; Ricardo Esteves,

127

com suas Maryam e Jana Thork; além da equipe de Vicente Pessôa, Tiago Porto e Zed Martins com o tipo bitmap Processual.

Sobre a família Adriane Text (ilustrada abaixo), Marconi Lima relata ter sido seu primeiro projeto tipográfico. No depoimento do designer fica evidenciado o paradigma da “transparência” atuando em sua perspectiva de projeto, porém sem que esse conceito estivesse em oposição à “personalidade” no que diz respeito à concepção formal:

O desenvolvimento do projeto permitiu que houvesse a chance de realizar uma imersão em aspectos que contornam o design de tipos, sejam eles históricos, linguísticos, estéticos, técnicos, entre outros. A escolha por um tipo serifado, para uso editorial, foi o objetivo que norteou todo o movimento de pesquisa projetual. [...] De certa forma, aquilo que eu desenhei já estava sutilmente em minhas preferências visuais, apenas adicionei um pouco de personalidade ao design da fonte. Um aspecto muito importante é o fato de que a Adriane deveria 'sumir', permitindo que o leitor pudesse efetivamente ser convidado a 'passear' pela mancha de texto confortavelmente. Creio que a fonte logrou esse objetivo. (LIMA In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010)

Figura 43 – Família Adriane Text, de Marconi Lima, selecionada pela Bienal Tipos Latinos 2008 como um dos destaques de qualidade da mostra.

Com a estréia de sua fundição digital Typefolio, Lima comercializa a família Adriane por meio de grandes revendedores internacionais como MyFonts, Veer, TypeTrust e Fontshop. Com esse projeto, Lima gerou uma “boa repercussão obtida

128

no mercado e entre profissionais reconhecidos da área”, segundo as palavras do designer, em entrevista realizada.

Figura 44 – Família Frida, de Fernando Mello, também selecionada pela Bienal Tipos Latinos 2008 como um dos destaques de qualidade da mostra.

No que diz respeito à família Frida (ilustrada acima), Fernando Mello relata que foi inicialmente pensada para uso em jornais e contaria com três pesos romanos e um itálico, além de uma versão no sistema de escrita Tamil, presente no sul da Índia, bem como no Ceilão, Singapura e Sri Lanka. Sobre seu desenvolvimento, Mello diz que:

[...] suas proporções foram pensadas com características de textos para jornais em mente, como espacejamento econômico, ascendentes e descendentes curtas, caráter robusto, etc. Por apresentar um caráter robusto, foram incorporadas inktraps para compensação de distribuição de peso e também para melhor desempenho em condições não ideais de impressão. Inspira-se fortemente no modelo Ionic ou , das primeiras fontes produzidas especificamente para jornais, porém traz um aspecto mais livre e caligráfico ao modelo, o que pode ser considerado pelos mais puristas como algo não-desejável para jornais mais sérios e abrangentes, fazendo assim a família ser indicada também para outros usos como revistas e outros tipos de publicação. Procurei fugir do modelo 'institucionalizado' atualmente para fontes de jornal, que se baseia normalmente na Swift de Gerard Unger, e busquei inspiração em fontes mais antigas como Century Gothic, Ionic, etc. (MELLO In: Entrevistas estruturadas B, Anexo 3, 2010).

129

Conforme dito pelo designer, a família transcende alguns costumes formais adotados atualmente em fontes para jornais de grande abrangência, geralmente com serifas e terminais retos, de acabamento geometrizante. O interesse em criar alguma diferença visível, mesmo estando imerso em um ambiente altamente conser- vador como o de Reading, parece ter gerado um excelente resultado. A incorpo- ração de um sistema de escrita com estrutura bastante distinta do latino, torna esse projeto particularmente interessante. No mesmo ano de 2008, a família Frida ainda rendeu a Mello uma premiação no Tokyo TDC Annual Awards.

Ainda em 2008, Eduardo Recife posicionou, pela segunda vez, uma de suas produções entre as dez melhores do ano no MyFonts, segundo critérios de seleção do próprio distribuidor, baseados no volume de vendas. Dessa vez foi o caso da fonte HandMade, em que cada letra se apresenta praticamente como uma ilustração singular, ou como capitulares, com sombras, fios, texturas e ornamentações. Suas características visuais em muito se comunicam com os demais trabalhos de Recife como designer gráfico, sempre cheios de colagens e ilustrações enigmáticas. Na fonte HandMade, ilustrada abaixo, o autor parece dedicado a causar alguma estra- nheza. Seus glifos parecem vir de origens distintas e, com isso, a fonte termina por manifestar uma visualidade decorativa bastante peculiar.

Figura 45 – Fonte HandMade (2008), de Eduardo Recife.

No ano de 2009, aconteceu, em São Paulo, a 9ª Bienal de Design Gráfico da ADG. Entre as fontes selecionadas para a mostra, estiveram a já citada Processual, de Vicente Pessôa, Tiago Porto e Zed Martins; a família sem serifa para textos Japiassu, de Daniel Edmundson, Eduardo Rocha e Gustavo Gusmão; a família para textos Cosac Naify, projetada por Nikolas Lorencini, iniciada em seu trabalho de conclusão de graduação sob orientação de Priscila Farias; a fonte Andarilho, uma

130

display de Mariana Hardly; a família Kuat, projetada para a nova identidade visual dessa marca de refrigerantes da Coca-Cola Company, por Thiago Shardong, Chris Calvet e Marcos Leme; e a fonte Knight Frank, projetada por Fabio Haag, da Dalton Maag, para a identidade visual da a agência imobiliária inglesa homônima. As duas últimas famílias são ilustradas a seguir.

Figura 46 – Família Kuat, de Thiago Shardong, Chris Calvet e Marcos Leme.

Figura 47 – Fonte Knight Frank, de Fabio Haag.

Atualmente, poucos daqueles grupos pioneiros da tipografia digital brasileira continuam em atividade. Por outro lado, aumenta o número de tipos feitos sob encomenda, por escritórios e designers autônomos. No mercado de tipos em cata-

131

logo, o número de novas fundições digitais independentes se multiplica, dada à faci- lidade para se entrar nesse mercado através de distribuidores altamente receptivos. Grande parte dessas novas fundições são constituídas por um ou dois designers, que trabalham em seus escritórios gerando produtos para o mercado. Nesses casos, cada designer costuma participar de todas as etapas do processo de concepção e produção de seus tipos – algo semelhante ao artesão pré-revolução industrial, mas agora com equipamentos altamente sofisticados. Esse modo de trabalho freqüen- temente acontece de forma diferente do que estamos acostumados na programação visual, em que o designer é responsável pela concepção do produto e a parte da produção fica por conta do gráfico ou similar. Duas exceções à regra nacional são o gaúcho Fabio Haag, atual funcionário da inglesa Dalton Maag, e o paulista Fernando Mello, que trabalha na Fontsmith, também inglesa. Em ambas as empresas, as etapas de design e de produção tipográfica são bem divididas e todos os projetos são feitos em equipe.

O próprio discurso dos designers de tipos digitais se torna mais maduro e mais profissional – um caminho natural de erros, acertos e aprendizado deixado por tantas pessoas que se propuseram a desbravar esse novo campo. No mercado de fontes sob catálogo, vemos atualmente algumas empresas, designers autônomos e grupos independentes que começam a se firmar, como a Omine Type, do já citado Eduardo Omine, com fontes comercializadas pelo MyFonts, Linotype e Fontshop; a Just in Type, do pioneiro Tony de Marco, com seus produtos também na Linotype, no MyFonts e na Fontshop; a Outras Fontes, de Ricardo Esteves, distribuindo suas fontes pelo MyFonts, Ascender Corporation, Linotype e Monotype; a Typefolio, de Marconi Lima, com suas fontes distribuídas pelo MyFonts, TypeTrust, Veer e Fontshop; a Neder Type, de Rafael Neder, distribuindo seus produtos pelo MyFonts e T-26; a Intellecta Design, de Paulo W, com suas fontes distribuídas no MyFonts, T- 26, Monotype e outros; Yomar Augusto, com fontes comercializadas pela fundição Re-Type e revendidas pelo MyFonts; Frederico Antunes, com suas fontes distri- buídas pela YouWorkForThem; Gustavo Ferreira, com fontes distribuídas pela Typotheque; Fernando Mello, atualmente desenvolvendo projetos na fundição inglesa Fontsmith; além de Fabio Haag, com fontes distribuídas pela Dalton Maag, T-26 e MyFonts. De acordo com Haag,

132

Criamos quebrando regras, inicialmente sem sequer saber que elas existiam. Mas hoje já passamos a fase inicial de experimentação, e estamos aliando nossa criatividade com um maior rigor técnico, conhecendo com maior rigor a arte e a técnica tipográfica, resultando em projetos inovadores e de qualidade internacional. Isso é tão verdadeiro que foi um dos motivos pelo qual fui contratado pela Dalton Maag. Nós latino-americanos somos conhecidos por sermos muito criativos em qualquer campo da comunicação, e no typedesign, não poderia ser diferente (HAAG, 2008. Disponível em: Acesso em: 15 de agosto de 2008)

Com fontes distribuídas exclusivamente pelo MyFonts, temos ainda a BRtype, de Gustavo Lassala; a Misprinted Type, de Eduardo Recife; o estudioCrop, de Dado Queiroz; a DooType, de Eduilson Coan; a Fictilia, de Anderson Maschio; a DMTR, de Dimitre Lima; a letraUm, de Vicente Pessoa, Tiago Porto e Zed Martins; a This Is Not Typography, de Francisco Martins; além de outros designers como Daniel Justi, Jarbas Gomes e Isac Corrêa Rodrigues.

Outros designers poderão ser encontrados atuando nesse amplo mercado de tipografia digital. Aqui, fizemos menção apenas àqueles que obtiveram visibilidade nacional e internacional, encontrados nas referências pesquisadas, tendo em vista os critérios utilizados. Com isso, esperamos estar contribuindo para estabelecer um panorama geral sobre a produção de tipografia brasileira a partir do final dos anos 1980.

É visível a evolução da atividade no Brasil, embora permaneçamos ainda muito aquém, em termos quantitativos na produção, em relação aos países centrais como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Os motivos dessa diferença podem ser atribuídos historicamente, tanto à chegada tardia da impressão no Brasil, no século 19, quanto às defasagens tecnológica (na década de 1980), econômica e de difusão de conhecimentos específicos, quando comparado a esses países. Somemos a isso, o papel da iniciativa privada, da demanda de mercado interno e o fato de ainda não termos empresas de origem nacional que se dediquem exclu- sivamente à atividade do design de tipos digitais.

No mercado de fontes em catálogo (que é internacional), podemos ver o cres- cimento quantitativo de fontes brasileiras em revendedores como o MyFonts. Mas em relação a outros grandes distribuidores, como FontShop e Linotype/ Monotype, a

133

quantidade é ainda bastante reduzida. O próprio fato de as principais empresas distribuidoras de tipos digitais serem norte-americanas e alemãs, já nos leva a uma conclusão óbvia. Em termos de premiação, ainda não tivemos nenhum tipo brasileiro selecionado no TDC Type Design Competition de New York – a mais respeitada premiação do mundo na área. Desse modo, é visível que, se quisermos atingir uma considerável visibilidade internacional e tornarmos a produção nacional proporcional ao que vemos nos países desenvolvidos, há ainda muito trabalho a ser feito.

Por outro lado, tendo em vista a produção efetiva na década de 2000, com a criação das citadas Bienais Letras Latinas/Tipos Latinos, pode-se observar com maior clareza como o design de tipos tem se desenvolvido ao longo dos últimos anos em diferentes países do nosso continente. Apesar da citada defasagem em relação a países europeus e norte-americanos, fica evidenciada a evolução nacional crescente, com projetos de alto nível técnico e estético. Do mesmo modo, é possível notar a crescente articulação dos designers de tipos brasileiros com o mercado internacional.

134

CONCLUSÃO

Ao final desta pesquisa, acreditamos que os métodos utilizados tenham sido satisfatórios para o nosso propósito de estabelecer um mapeamento aberto da pro- dução nacional de tipos digitais a partir da década de 1980 e conhecer os principais fatores que influenciaram no crescimento desse campo profissional. Além da pes- quisa em referências bibliográficas já existentes sobre o assunto, as entrevistas estruturadas com designers de tipos brasileiros foram fundamentais para a com- preensão dos contextos envolvidos em alguns projetos específicos.

Com as informações apresentadas no último capítulo, é possível sintetizar a produção nacional do seguinte modo: Durante a década de 1980 houve poucas iniciativas isoladas no desenvolvimento de tipos digitais, fato esse, diretamente relacionado ao baixo acesso à tecnologia e a ferramentas específicas para desenho e produção de fontes. O quadro começou a mudar a partir da segunda metade da década de 1990, quando aconteceu uma expansão produtiva, rica em experi- mentações e explorações formais, permitidas pelo acesso às novas ferramentas digitais. A década de 1990 foi rica na produção de fontes display experimentais, por iniciativa de profissionais e estudantes. Observa-se também, uma valorização das referências visuais vernaculares na produção tipográfica brasileira e a busca por identidades regionais. No final da década de 1990 e início da década de 2000 são publicados os primeiros livros de autores brasileiros que tratam do design de tipos como um tema específico. A partir do início da década de 2000, é possível observar as iniciativas de promoção e fomento da atividade, com exposições, congressos, Bienais, palestras, e workshops. Fica clara também, a maior articulação dos designers brasileiros com o mercado internacional, bem como com instituições de ensino estrangeiras. Inicia-se uma maior produção de tipos para texto, embora os tipos display continuem sendo majoritários na produção brasileira. O caráter expe- rimental dá lugar, em grande parte, à pragmática da exploração de mercado e é possível notar o crescente número de tipos feitos sob encomenda para grandes empresas. Cresce também a articulação de designers brasileiros com revendedores e fundições internacionais de tipos digitais. Essa distruibuição da produção nacional

135

se dá, em grande parte, por meio do revendedor MyFonts, mas também em outras empresas como a Linotype, Monotype, ITC, T-26, Fontshop, Veer, TypeTrust, Typotheque, Fontsmith, Dalton Maag, Ascender e YouWorkForThem.

A partir da criação da categoria “tipografia” na Bienal da ADG e, pouco depois, da Bienal Letras Latinas, aumenta a visibilidade de nossa produção e passa a ser possível ter uma visão panorâmica em relação aos demais paises latino- americanos. A produção total, tanto na América Latina em geral quanto no Brasil em particular, cresceu sensivelmente nos registro das Bienais Latino-Americanas de Tipografia entre 2004 e 2006 e caiu no ano de 2008. Uma explicação para esse fato pode ser atribuída à crescente especialização da atividade, que exige trabalho diligente para adequação aos padrões técnicos internacionais.

Após a democratização produtiva ensejada pelos programas de design e produção de tipos com interface intuitiva, como no caso do Fontographer, e após um certo esgotamento de projetos centrados na experimentação formal, a quantidade de pessoas envolvidas com o design de tipos continua a crescer, mas são poucos os que permanecem ativos nessa prática durante muitos anos. Desse modo, no Brasil, parece existir uma tendência a uma progressiva redução no ritmo de desenvol- vimento quantitativo em benefício de um crescimento qualitativo. Esse fenômeno pode ser associado também ao surgimento dos cursos de pós-graduação em design de tipos no exterior, a partir do início da década de 2000. Nesse sentido, após o período de franca expansão e experimentação, possibilitada pela democratização tecnológica, a atividade começa a ganhar contornos e cresce a difusão de conhe- cimentos específicos, bem como o mercado se torna mais competitivo e exigente. Assim, em um processo cíclico, na década de 2000 o design e produção de tipos parece demonstrar uma tendência a um retorno ao escopo dos especialistas, porém renovado pela história recente, não mais restrito ao monopólio das grandes empre- sas tradicionais e aberto a proposições estéticas de toda espécie. Com isso, a atividade, inserida num paradigma da globalização, parece demonstrar um franco desenvolvimento também no que diz respeito a projetos realizados por brasileiros.

Na década de 2000, a partir da difusão do formato OpenType, o principal programa de design e produção de tipos utilizado pelos profissionais da área passou

136

a ser o Fontlab Studio – mais complexo em termos de interface em relação aos seus antecessores. Outros programas e plug-ins para a produção de famílias tipográficas surgiram, contribuindo, por um lado, para uma facilitação em projetos de grande complexidade, mas por outro, para uma necessidade de maiores conhecimentos técnicos para operação e produção efetiva de fontes digitais – conhecimentos esses, não necessariamente ligados ao design em si, mas também à programação infor- mática. Essas mudanças tecnológicas sutis, de certo modo, acabaram influenciando no afastamento de alguns profissionais da área.

Grande parte dos projetos desenvolvidos começam a se tornar mais com- plexos, como no caso das famílias tipográficas com vários pesos e estilos, de modo que o tempo de desenvolvimento de um único projeto também se torna maior. Esse simples fato ajuda a explicar a menor quantidade total de trabalhos desenvolvidos durante um mesmo espaço de tempo (2006-2008).

Apesar da redução no ritmo da produção nacional, no que diz respeito às fontes em catálogo, a produção internacional continua em franca aceleração. Desde a década de 1980 se evidencia um paradigma de renovação permanente de pro- dutos em geral, estabelecendo o que Gilles Lipovetsky chama de “um presentismo de segunda geração”. No design de tipos isso fica ainda mais evidenciado a partir da década de 2000. Tendo em vista os novos elementos que compõem o cenário da nova ordem mundial, Lipovetsky diz que,

A partir dos anos 80 e (sobretudo) 90, instalou-se um presentismo de segunda geração, subjacente à globalização neoliberal e à revolução informática. Essas duas séries de fenômenos se conjugam para “comprimir o espaço-tempo”, elevando a voltagem da lógica da brevidade. De um lado, a mídia eletrônica e informática possibilita a informação e os intercâmbios em “tempo real”, criando uma sensação de simultaneidade e imediatez que desvaloriza sempre mais as formas de espera e de lentidão. De outro lado, a ascendência crescente do mercado e do capitalismo financeiro pôs em xeque as visões estatais de longo prazo em favor do desempenho a curto prazo, da circulação acelerada dos capitais em escala global, das transações econômicas em ciclos cada vez mais rápidos. (LIPOVETSKY, 2004, pp. 62-63)

Em uma sociedade que estimula ao mesmo tempo a eficiência operacional e a moderação, resta saber em que medida esse equilíbrio poderá ser estabelecido. O próprio capitalismo financeiro começa a dar sinais de forte desequilíbrio, na acele-

137

ração progressiva em função do crédito. Com a crise econômica internacional de 2008, muitas empresas antes percebidas como sólidas e estáveis anunciam a falência, outras se fundem na tentativa de permanecer no mercado. Mas em toda crise há sempre uma abertura para novas perspectivas. É importante que os designers de tipos estejam atentos para essas mudanças e se adequem às deman- das do presente. Em um “presentismo” cada vez mais acentuado, é importante refletir sobre que caminhos poderá tomar o design, tendo em vista que a atividade projetual sempre esteve estritamente ligada à uma perspectiva de futuro. Grande parte dos projetos de design passam a ter como perspectiva um futuro menos duradouro, mais maleável e com menos certezas absolutas.

A própria tipografia corporativa, já há algum tempo, se torna mais flexível, menos duradoura, e a noção de identidade visual tendencialmente se insere numa perspectiva do branding. Projetos que, há alguns anos atrás, tinham a pretensão de permanecer inalterados por várias décadas, começam a sofrer o impacto da re- novação permanente, com redesenhos e reposicionamentos de marca cada vez mais freqüentes. Isso, de certo modo, traz novas oportunidades para os designers de tipos, no sentido do desenvolvimento de famílias tipográficas exclusivas para marcas, produtos e publicações.

Outro modelo de inserção de no mercado que começa a surgir, ainda em estado embrionário, são as fontes para uso em páginas da Web. Com novos ser- viços já iniciados nesse sentido no segundo semestre de 2009, nos Estados Unidos e na Europa (ex: Typekit, Kernest e Typotheque Web Font Service), bem como com a evolução dos navegadores e com as especificações técnicas de novos formatos (ex: WOFF), as chamadas “web fonts” logo deverão se tornar mais um meio de exploração projetual para os designers de tipos brasileiros.

Nessa nova sociedade de renovação permanente, novas oportunidades de projeto tendem a surgir, ampliando cada vez mais desenvolvimento da tipografia digital brasileira – um mercado que rapidamente se amplia, contribuindo para con- solidar esta atividade em ascensão.

138

REFERÊNCIAS

ADG, Associação dos Designers Gráficos do Brasil. Catálogo 5ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. São Paulo: ADG, 2000.

______. Catálogo 6ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. São Paulo: ADG, 2002.

______. Catálogo 7ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. São Paulo: ADG, 2004.

______. Catálogo 8ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. São Paulo: ADG, 2006.

______. Catálogo 9ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. São Paulo: ADG, 2009.

BACON, Billy. Subvertaipe. Tupigrafia, n. 2, pp. 30-37, 2001.

BONSIEPE, Gui. Design: do material ao digital. Florianópolis: FIESC/IEL, 1997.

BAINES, Phil; HASLAM, Andrew. Type & Typography. New York: Watson-Guptill Publications, 2002.

BIGGS, John R. An Approach to Type. London: Blandford Press, 1961.

BRINGHURST, Robert. Elementos do estilo tipográfico (versão 3.0). Tradução de André Stlolarski. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

CAUDURO, Flávio Vinicius. Desconstrução e tipografia digital. Arcos, vol. I número único, out 1998.

CHENG, Karen. Designing type. New Haven: Yale University Press, 2005.

CRUZ, Crystian. Nossa escrita brasilêra. Tupigrafia, n. 4, pp. 69-71, out. 2003

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix [1980]. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2: Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

DIETZSCH, Rafael. Gemada Tipográfica. Tupigrafia, n. 3, pp. 62-64, 2002.

EARLS, David. Designing typefaces. Mies: RotoVision, 2002

FARIAS, Priscila. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. Rio de Janeiro: 2AB, 2000.

______. Seu Juca, letrista pernambucano. Tupigrafia, n. 1, p. 22-25, 2000a.

______. Os Tipos do Acaso. Tupigrafia, n. 2, p. 46, 2001.

139

______. 'Notas para uma normatização da nomenclatura tipográfica'. In: Anais do P&D Design 2004 - 6º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design (versão em CD-Rom sem numeração de página). São Paulo, 2004.

FARIAS, Priscila; PIQUEIRA, Gustavo. Fontes digitais brasileiras: de 1989 a 2001. São Paulo: Edições Rosari, 2003.

FARIAS, Priscila & MOURILHE, Fabio . 'Classificações tipográficas: sistemas de classificação cruzada'. In: Anais do P&D Design 2004 - 6º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design (versão em CD-Rom sem numeração de página). São Paulo, 2004a.

FARIAS, Priscila; MOURILHE, Fabio. 'Um panorama das classificações tipográficas'. Estudos em Design, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 67-81, 2005.

FERREIRA, Gustavo. Elementar: a flexible bitmap system. Typo, n. 27, jun. 2007.

FRUTIGER, Adrian. Sinais e símbolos: desenho, projeto e significado. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. En torno de la tipografía. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

______. El libro de la tipografía. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2007.

GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Edições Rosari, 2004.

GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto; LASSALA, Gustavo. Uns Tipos Novos: A nova geração da tipografia brasileira. Tecnologia Gráfica. São Paulo, SP, ano XII, n. 62, pp. 58-61, set. 2008.

GILL, Eric. [1931] Ensaio sobre tipografia. Tradução de Luís Varela. Coimbra: Almedina, 2003.

GRUSZYNSKI, Ana Cláudia. Design gráfico: do invisível ao ilegível. São Paulo: Edições Rosari, 2008.

HAAG, Fabio. 2008. Entrevista no site Tipografia-Montevideo. Disponível em: Acessado em 15 de agosto de 2008.

HELLER, Steven; MEGGS, Philip. Texts on Type: critical writings on typography. New York: Allworth Press, 2001.

HELLER, Steven. The Education of a Typographer. New York: Allworth Press, 2004.

HIGHSMITH, Cyrus. Do we need more fonts? Disponível em: Acessado em 15 de fevereiro de 2010.

140

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Disponível em:

LAWSON, Alexander. Anatomy of a typeface. Boston: David R. Godine, 1990.

LETRAS Latinas. Bienal 2006. Catálogo da 2ª Bienal Latino-Americana de Tipografia. Buenos Aires, 2006.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

LIMA, Fabio Pinto Lopes de. O processo de construção de fontes digitais de simulação caligráfica. Dissertação de Mestrado ESDI/UERJ. Rio de Janeiro, 2009.

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.

LO CELSO, Alejandro. Serial type families: from Romulus to Thesis, 2000. Disponível em:

LUPTON, Ellen. Typography in the 1990’s. Print Blog, 2009. Disponível em:

McLEAN, Ruari. Typographers on type. New York: Lund Humphries, 1995.

NARDI, Henrique. Foundries brasileiras. Tupigrafia, n. 6, pp. 95-101, mar. 2005

NOORDZIJ, Gerrit. Letterletter. Vancouver: Hartley & Marks Publishers, 2000.

______. [1985] The stroke: Theory of writing. Londres: Hyphen, 2005.

OMINE, Eduardo. 2006. Entrevista no site Tipograficamente. Disponível em: . Acessado em: 23 de novembro de 2008.

PHINNEY, Tomas W. TrueType, PostScript Type 1, & OpenType: What’s the Di erence? Adobe, 2004.

REDE DESIGN BRASIL - Universidades Disponível em:

RECIFE, Eduardo. Great Circus. Tupigrafia, n. 6, p. 45, mar. 2005.

ROCHA, Claudio. Projeto Tipográfico: análise e produção de fontes digitais. São Paulo: Edições Rosari, 2002.

ROCHA, Claudio; DE MARCO, Tony. Editorial. Tupigrafia, n. 1, set. 2000

______. Editorial. Tupigrafia, n. 5, p. 02, jul. 2004.

141

______. Disquete?. Tupigrafia, n. 5, p. 94, jul. 2004.

RUDER, Emil. Manual de diseño tipográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1983.

SHAW, Paul. The digital past: when typefaces were experimental, 2005. Disponível em:

SMEIJERS, Fred. Counterpunch: making type in the sixteenth century, designing typefaces now. London: Hypen Press, 1996.

SPIEKERMANN, Erik. Stop Stealing sheep and find out how type works. Adobe Press, 1993.

TIPOGRAFIA Brasilis 2. Brasil de corpo de alma. Catálogo da exposição. São Paulo, 2001.

TIPOGRÁFICA, Revista de diseño. Catálogo Letras Latinas – Bienal 2004. tpG, n. 60, pp. 40-70, abr-mai, 2004.

TIPOS Latinos 2008. Catálogo da 3ª Bienal Latino-Americana de Tipografia. São Paulo, 2008.

TRACY, Walter. Letters of credit: a view on type design. Boston: David R. Godine Publisher, 1986.

TSCHICHOLD, Iwan [1925]. Tipografia elementar. São Paulo: Altamira Editorial, 2007.

UNGER, Gerard. While You’re Reading. New York: Mark Batty Publisher, 2007.

WARDE, Beatrice. The Crystal Goblet: Sixteen Essays on Typography. Cleveland: World Publishing, 1956.

142

ANEXOS

143

ANEXO 1

Iniciativas nacionais que abordam o design de tipos em disciplinas de cursos de graduação em design: um levantamento básico

Considerando a inexistência de cursos de pós-graduação (latu sensu ou strictu sensu) em design de tipos no Brasil, nos propusemos a fazer um levanta- mento preliminar no que diz respeito ao estado atual do ensino dessa atividade específica em cursos de graduação em design, que possuem habilitação em Progra- mação Visual (não necessariamente utilizando essa nomenclatura), nas instituições de ensino superior brasileiras. Para tanto, foram enviadas, por meio de correio eletrônico, cartas aos coordenadores de curso mencionando os objetivos da pes- quisa e solicitando sua colaboração, respondendo a um questionário estruturado, em formulário eletrônico. O levantamento aqui proposto tem a intenção de estabelecer um mapeamento inicial do ensino da atividade, podendo ser ampliado em um segundo momento e/ou por outros pesquisadores. Devido ao seu caráter preliminar, esse levantamento foi incorporado aos Anexos, como informações iniciais para uma pesquisa que poderá ser aprofundada no futuro.

Para proceder a esse levantamento, tivemos que estabelecer um quadro inicial de instituições para envio do questionário. Para isso, utilizamos como fonte de pesquisa o banco de dados disponível, em setembro de 2009, no website do INEP32 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), vinculado ao Ministério da Educação do Governo Federal, bem como o levantamento de cursos disponível no site da Rede Design Brasil33 – projeto desenvolvido pelo Centro de Design Paraná – e uma complementação de dados feita no PPDESDI pelo mestrando Almir Mirabeau.

32 Disponível em: 33 Disponível em:

144

No website do INEP foi possível acessar o cadastro oficial da educação superior no país e fazer buscas por curso, utilizando palavras-chave. Tendo em vista nosso interesse específico de investigação, foram levantados os cursos de design existentes com habilitação em Programação Visual, utilizando as palavras-chave “design” (498 resultados), “design gráfico” (92 resultados), “programação visual” (35 resultados), “comunicação visual” (14 resultados) e “design digital” (5 resultados).

Desse total foram considerados apenas os cursos de graduação plena (bacharelado) que possuem habilitação em programação visual/design gráfico, descartando, portanto, os cursos para formação de tecnólogos. Embora as cargas horárias variem consideravelmente de um caso para outro, na maior parte dos cursos de tecnologia encontrados, a carga horária total fica entre 1600 e 2000 horas – em alguns casos, equivalendo apenas ao ciclo de disciplinas de formação básica em grande parte dos cursos de bacharelado em design no Brasil. O motivo da decisão sobre a exclusão dos cursos de tecnologia na pesquisa foi que, pelo fato de estamos interessados em investigar o ensino do design de tipos digitais – atividade esta ainda tão específica e pouco explorada no Brasil – levamos em consideração que em cursos de design cuja duração varia entre dois anos e dois anos e meio, a probabilidade de encontrarmos iniciativas de ensino com essa especificidade seria muito remota. Tendo isso em vista, consideramos apenas os cursos de gradua- ção/bacharelado em instituições de ensino públicas e privadas.

Foram descartados também os cursos cuja especificidade escapa aos nossos interesses de pesquisa, tais como Design de Moda, Design de Interiores, Web Design, Design Cerâmico, Design de Calçados, Design de Embalagens, Design de Jóias e Design de Mobiliário.

Nos cursos cuja nomenclatura consta como Design de Produto verificamos, nos websites das respectivas instituições de ensino, suas descrições gerais, carac- terísticas dos profissionais que desejam formar e áreas de atuação, bem como a grade curricular obrigatória. Nos casos em que essas informações estiveram dispo- níveis para consulta, pudemos constatar que alguns dos cursos classificados como Design de Produto também possuem alguma ênfase em Programação Visual. Nesses casos, eles foram incluídos em nosso banco de dados para a pesquisa. Já

145

nos casos em que essas informações não estavam disponíveis, ou quando veri- ficamos a ausência da Programação Visual no escopo do curso, estes foram descartados.

Devido ao foco dessa investigação, foram considerados apenas os cursos em atividade na data pesquisada (setembro de 2009). Cursos classificados como “em extinção” que ainda constam no banco de dados do INEP foram eliminados, bem como os cursos que ainda não entraram em funcionamento na data pesquisada (exemplo: previsão de início em março de 2010).

Procuramos obter os endereços de correio eletrônico dos coordenadores desses cursos e, com isso, estabelecer uma comunicação direta. Para tanto, tivemos que visitar cada website de cada instituição de ensino superior e obtê-los quando disponíveis.

Como resultado dessa busca e seleção segundo os critérios acima menci- onados, chegamos a um total de 102 cursos no Brasil, destes sendo 46 na região Sudeste, 34 na região Sul, 10 na região Nordeste, 06 na região Norte e 06 na região Centro-Oeste.

A partir desse levantamento, formulamos o questionário, por meio da fer- ramenta Google Docs. O questionário envolve uma primeira seqüência de infor- mações gerais sobre o curso, tais como: nome de curso, nome da universidade/ faculdade, nome do departamento/escola, nome do coordenador/diretor e estado/ distrito em que se localiza. Em seguida, perguntamos se há disciplinas que tratam de Tipografia na grade curricular além das disciplinas de projeto e se existe alguma disciplina específica de Design de Tipos.

A carta enviada aos coordenadores e o formulário em seu formato textual seguem nas próximas páginas:

146

Carta:

Bom dia,

Sou mestrando do Programa de Pós-graduação em Design da ESDI/UERJ, orientado pelo Prof. Dr. Washington Dias Lessa. Estou desenvolvendo a pesquisa “O design de tipos digitais no Brasil: elementos que se articulam na formação de uma prática profissional”, financiada pela FAPERJ.

Como parte integrante dessa pesquisa, estou procurando fazer um mape- amento básico do estado atual do ensino do design e tipos digitais em cursos de graduação no Brasil. Para tanto, gostaria de contar com a colaboração do Sr(a) coordenador(a) de curso, para responder a um formulário eletrônico pré- formulado, com dados gerais sobre o curso de graduação e informações específicas sobre o ensino da Tipografia e do Design e Tipos (quando for o caso), em disciplinas da grade curricular, sejam elas obrigatórias ou optativas.

O questionário é relativamente simples e não deve envolver mais do que 10 minutos para preenchimento e envio. Os resultados gerais obtidos serão posteriormente divulgados aos senhores(as) coordenadores(as) e incluídos em um dos capítulos de minha dissertação de mestrado.

Caso possa colaborar com essa pesquisa, acesse e responda o questionário no link abaixo:

http://spreadsheets.google.com/viewform?hl=en&formkey=dFVQTUlFdXdueFl BZlZBeUdKRUZJTUE6MA

Desde já, agradeço pela generosidade e atenção dispensada.

Atenciosamente,

Ricardo Esteves Gomes Mestrando ESDI/UERJ

147

Questionário:

Pesquisa: Abordagens do Design de Tipos Digitais em cursos de graduação no Brasil

Nome do Professor que aqui responde: ______

Nome do Coordenador/Diretor do curso: ______Repetir caso o respondente seja o próprio coordenador/diretor.

Nome da Instituição de Ensino Superior: ______

Departamento/Escola: ______

Estado: ______

Nome do Curso de Graduação: ______

No curso de graduação em design dessa instituição, além das disciplinas de Projeto, existe uma ou mais disciplinas que tratam de Tipografia? Sim – 1 disciplina Sim – mais de 1 disciplina Não

Quais são os nomes das disciplinas que tratam de Tipografia? Caso não a resposta anterior seja “não”, deixar esses campos em branco. ______

148

Existe uma disciplina dedicada exclusivamente ao Design de Tipos? Sim Não

Em caso afirmativo, qual é o nome da disciplina em questão? Caso não a resposta anterior seja “não”, deixar esse campo em branco. ______

Qual é o nome do professor que ministra essa disciplina específica? Caso não exista essa disciplina exclusiva de Design de Tipos, deixar esse campo em branco. ______

O design de tipos digitais prevê várias etapas de projeto. Seu ensino pode se estruturar a partir da seleção de algumas dessas etapas e é importante sali- entar que todas as iniciativas nesse sentido contribuem efetivamente para o crescimento dessa especialização no Brasil. Caso exista alguma abordagem do design de tipos ao longo do curso, seja de maneira introdutória, ou em disciplinas específicas sobre o assunto, perguntamos: Quais das etapas abaixo são tratadas em disciplinas do curso de graduação em design dessa instituição?

1) Criação de identidade tipográfica por meio dos desenhos dos caracteres em caixa-alta, caixa-baixa, numerais e sinais para-alfabéticos.

2) Tradução dos esboços manuais dos caracteres para o desenho vetorial.

3) Ajustes de entreletras e kerning, em um software de produção de fontes digitais.

4) Instruções para otimização da visualização da fonte na tela (hinting).

5) Programação de características OpenType, tais como ligaturas, diferen- tes estilos de numerais, frações, caracteres alternativos, entre outros.

149

6) Geração do arquivo de fonte em formato que pode ser instalado no computador e utilizado em softwares gráficos.

N.D.A. O design de tipos digitais não é tratado ao longo do curso.

Caso tenha comentários adicionais, escreva no campo abaixo. Caso contrário, deixe em branco e clique em "Submit". ______

[Submit]

A última e principal pergunta diz respeito ao ensino do design de tipos digitais, tendo em vista as seis etapas básicas identificadas acima, em projetos dessa natureza, considerando a tecnologia atual.

As duas primeiras etapas compõem a fase inicial de um projeto de fonte digital, do modo mais tradicional praticado pelos profissionais da área. Entretanto, entendemos que, dependendo de cada situação de projeto elas não precisam estar necessariamente separadas, pois existem casos em que os desenhos iniciais podem ocorrer diretamente no computador, eliminando, portanto, a etapa de posterior tradu- ção para o desenho vetorial.

A etapa número 4 também não está necessariamente presente em todos os projetos de tipos digitais. Dependendo de cada proposta estética e objetivos princi- pais de aplicação, os algoritmos de hinting automático presentes nos programas de produção de fontes podem funcionar de maneira eficiente, sem um necessário ajuste manual por parte dos designers de tipos. Por outro lado, com a importância relativa cada vez maior do aparecimento do texto em telas, os conhecimentos acerca dos hintings se tornam cada vez mais relevantes.

150

Do mesmo modo, a etapa número 5 não ocorre em todos os projetos de tipos digitais, mas as características possibilitadas pelo OpenType tornam esse tipo de programação cada vez mais freqüente em projetos disponibilizados no mercado.

Nossa intenção foi entender como se apresenta o estado atual de ensino da atividade, considerando-a como um estágio projetual posterior ao aprendizado sobre história, anatomia e uso dos tipos – mais difundido historicamente no ensino da Programação Visual. Foi acrescentado ainda um campo para observações, conside- rando que o coordenador em questão poderia querer fornecer outras informações não contempladas nas respostas. Para obtermos o máximo de respostas possíveis, consideramos também elemento tempo, de modo que o questionário se tornasse sintético suficiente para que pudesse ser preenchido e enviado em menos de dez minutos.

Dos 102 cursos identificados no Brasil para esse recorte, conseguimos obter contato com a coordenação de 94 (92,1%) deles, sendo 8 excluídos pela impos- sibilidade de contato por e-mail, após várias tentativas. O questionário foi enviado aos 94 cursos, precedido da carta, explicando os objetivos desse levantamento.

Após três meses recebendo os questionários preenchidos eletronicamente, do total enviado, foram obtidas respostas válidas de 38 cursos (40,43%) – um percentual que está longe da totalidade, mas que nos ajudou a ter um breve pano- rama do estado atual de ensino dessa prática projetual no Brasil. Os resultados gerais podem ser vistos a seguir.

Logo após os dados de identificação de cada respondente, a primeira per- gunta fundamental feita foi:

No curso de graduação em design dessa instituição, além das disciplinas de Projeto, existe uma ou mais disciplinas que tratam de Tipografia?

151

Os resultados foram os seguintes:

Nenhuma disciplina 5 cursos ( 13,2% dos respondentes) Uma disciplina 11 cursos ( 28,9% dos respondentes) Duas disciplinas 10 cursos ( 26,3% dos respondentes) Três ou mais disciplinas 12 cursos ( 31,6% dos respondentes)

No que diz respeito ao ensino da tipografia de maneira mais geral, ou seja, não necessariamente restrita ao design de tipos, o resultado surpreende em dois sentidos. Primeiro por existirem cursos de programação visual em que a matéria tipografia não é tratada em nenhuma disciplina além das cadeiras de projeto. Segundo, por existirem vários cursos em que ela é tratada em três ou mais disci- plinas além das de projeto, o que demonstra uma grande ênfase na grade curricular sobre a importância dos estudos tipográficos para a área mais geral do design gráfico. Na maioria dos cursos, entretanto, esse número de disciplinas fica entre uma e duas, o que, de certo modo, já era esperado.

Variando de modo considerável, esses números demonstram que a ênfase nos estudos sobre tipografia em cursos de graduação é tratado de modo muito particular em cada situação curricular, não sendo possível identificar uma tendência geral clara em termos quantitativos.

Outro elemento importante a ser levado em consideração é que, como já citamos, apenas 40,43% dos cursos que receberam o questionário o responderam. Assim, é provável que, na maioria dos casos, as respostas tenham vindo dos cursos com maior interesse sobre o assunto. Desse modo, alguma cautela ao interpretar esses resultados gerais nos parece recomendável.

O que podemos afirmar de fato é que, do total de 102 cursos de bacharelado em design com habilitação em programação visual existentes no Brasil, em no mínimo 11,7% é dada uma grande ênfase aos estudos tipográficos (assunto abor- dado em 3 ou mais disciplinas além das cadeiras de projeto).

152

A segunda pergunta formulada para os coordenadores foi a seguinte:

Existe uma disciplina dedicada exclusivamente ao Design de Tipos?

Sim 21 cursos ( 55,3% dos respondentes) Não 17 cursos ( 44,7% dos respondentes)

Embora não possamos afirmar com toda certeza, é presumível que, na maior parte dos cursos que não responderam à pesquisa, não existam disciplinas de design de tipos na grande curricular – o que é perfeitamente esperado. Entretanto, segundo as respostas obtidas, pode-se verificar que em no mínimo 21 cursos (20,6% portanto, do total de 102 existentes) já exista alguma iniciativa nesse sentido – seja na forma de disciplinas optativas ou obrigatórias. O resultado surpreende, pois é muito superior ao que imaginávamos inicialmente. Desses 21 cursos, 8 deles estão na região Sul do país, 7 na região Sudeste, 3 na região Nordeste e 3 na região Centro-Oeste.

Em alguns casos foram feitos comentários adicionais por parte dos profes- sores e/ou coordenadores. Entre eles podemos citar alguns como:

Universidade Fumec – MG

Segundo o coordenador Guilherme Guazzi Rodrigues, na grade curricular do curso de Design Gráfico da Fumec, existe uma disciplina dedicada ao design de tipos chamada Tipografia Digital, ministrada pelo professor Rafael Neder – designer de tipos já citado anteriormente nessa pesquisa. De acordo com o coordenador, “Caso no trabalho de conclusão de curso (TCC) o projeto do aluno seja um alfabeto tipográfico, este contará com uma orientação individual durante 01 semestre. [...] Além disso, ocorrem atividades extracurriculares, tais como: mini-cursos, ciclos de palestras, workshops.” De acordo com a resposta do questionário, são abordadas na Fumec as etapas 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

153

Universidade Positivo – PR

Segundo o professor e coordenador Renato Bertão: “O curso de Design – Projeto Visual da Universidade Positivo, nas disciplinas Tipografia I e II, aborda dois aspectos da tipografia: [A] a tipografia enquanto articulação dos tipos no espaço gráfico por meio de exercícios aplicados. [B] O design de tipos incluindo meto- dologias de desenvolvimento no Fontlab.” Segundo a resposta fornecida, são abor- dadas as etapas projetuais 1, 2, 3 e 6.

Universidade Federal de Santa Maria – RS

De acordo com o professor Volnei Antônio Matté, que ministra as disciplinas de Projeto Tipográfico e Tipografia Digital, são abordadas nas disciplinas as etapas de projeto 1, 2, 3 e 6. “O item 5 [da programação de características OpenType] será contemplado no próximo semestre, quando iniciará a próxima edição da disciplina de Tipografia Digital.”

Universidade Federal de Pernambuco – PE

Conforme resposta do coordenador Leonardo Castillo, o curso de Design da UFPE possui uma disciplina denominada Design de Tipos. São abordadas todas as etapas de projeto mencionadas (1, 2, 3, 4, 5 e 6). A ementa da disciplina, ministrada pelos professores Isabella Aragão e Silvio Barreto Campello, diz que ela “pretende fornecer a base necessária ao design de tipos. Serão apresentados e trabalhados princípios projetuais do campo tipográfico a fim de permitir um maior entendimento das estruturas e componentes que envolvem o design de tipos. Termos e anatomia tipográfica, conceitos de fonte, forma e contra-forma e técnicas de projeto tipográfico serão trabalhados. [...]” (Disponível em: Acesso em 10 jan 2010)

Universidade de São Paulo – SP

Segundo a professora Priscila Farias – designer de tipos já citada anterior- mente –, o curso de Design da USP conta com uma disciplina denominada Design

154

de Tipos, ministrada pela mesma, abordando as 6 etapas projetuais mencionadas. De acordo com Farias, “Esta disciplina será oferecida pela primeira vez na FAUUSP em 2010, mas seu programa está baseado em outras disciplinas que venho minis- trando em outras IESs desde 2000.” A professora reitera, de modo lógico: “Depen- dendo da turma, nem sempre é possível ou necessário abordar hinting e OpenType. Outras etapas importantes e sempre abordadas são: concepção de conjuntos coerentes de caracteres, desenvolvimento de projetos de design de tipos, estra- tégias para transição entre originais e esboços em papel e arquivo digital, geração de famílias, realização de testes em várias etapas do processo.”

Pontifícia Universidade Católica – RJ

De acordo com o professor Eduardo Berliner – designer de tipos também já citado na pesquisa –, no curso de Design da PUC-RJ, “Design de tipos é uma disciplina eletiva que dura um semestre. A carga horária é de duas horas no mesmo dia, uma vez por semana. O objetivo é que o aluno inicie um processo de família- rização com o desenho de tipo. Para isso o aluno é estimulado a praticar com materiais caligráficos. Em um segundo momento, introduzo técnicas de desenho e levanto alguns parâmetros importantes para a coerência da família tipográfica. No meio do curso o aluno deve entregar um desenho feito à mão de uma palavra curta (ex: canibal). Depois disso, dependendo da qualidade do trabalho, estimulo o aluno a iniciar um processo de vetorização, ou permanecer com o desenho manual. Ao final do curso, deve apresentar hamburgerfions [pangrama que contém algumas das principais variações formais nas minúsculas] e um pequeno parágrafo.”

Universidade Anhembi Morumbi – SP

Segundo resposta recebida do professor Marcos Mello, o curso da Anhembi Morumbi é denominado Design Gráfico com ênfase em Tipografia. Possui disciplinas como Desenho de Letras - Lettering e História e Oficina Tipográfica. No que tange o design de tipos, possui uma disciplina chamada Tipografia Digital, ministrada por Marcos Mello, Aníbal Folco e Tadeu Costa, abordando as etapas projetuais 1, 2, 3 e 6. Mello ainda observa: “[...] foi instalada uma oficina tipográfica, no intuito dos alunos aprenderem o sistema de composição manual, trabalharem a linguagem

155

tipográfica no desenvolvimento de projetos específicos em letterpress, além de aprofundarem, logicamente, a esse tipo de raciocínio visual com tipos móveis. Tal aprofundamento tem como objetivo também dar luz a uma série de questões que hoje tratamos na tipografia digital, herança esta que devemos ao passado.”

Sabemos ainda da existência de uma disciplina de Design de Tipos na faculdade ESPM de São Paulo, ministrada pelo designer e professor Luciano Cardinali. Entretanto não pudemos obter maiores detalhes, pois este não respondeu ao questionário até o fechamento da pesquisa.

No levantamento geral dos questionários, é possível identificar que, das etapas de projeto de tipos digitais citadas, de acordo com as respostas, são abor- dadas em disciplinas ao longo do curso:

Etapa 1 32 cursos ( 84,2% dos respondentes) Etapa 2 30 cursos ( 78,9% dos respondentes) Etapa 3 20 cursos ( 52,6% dos respondentes) Etapa 4 11 cursos ( 28,9% dos respondentes) Etapa 5 12 cursos ( 31,6% dos respondentes) Etapa 6 17 cursos ( 44,7% dos respondentes)

Em 6 cursos são abordadas todas as 6 etapas, segundo as respostas obtidas.

As etapas 1 e 2 (respectivamente, da criação de uma identidade tipográfica coerente e da tradução para o desenho vetorial) são as mais abordadas nos cursos pesquisados, com 32 ocorrências para o primeiro e 30 para o segundo. Podemos dizer que são efetivamente as etapas mais importantes no que diz respeito à apuração do repertório visual, necessários para o desenvolvimento de bons projetos de novos tipos digitais. Acreditamos que a experiência no desenho de alfabetos podem proporcionar um enriquecimento de repertório por parte dos estudantes de graduação, podendo ser aplicado inclusive em outros projetos, não necessariamente ligados ao desenvolvimento de uma fonte tipográfica completa. Desse modo, faz sentido que essas etapas sejam as mais enfatizadas em cursos de programação visual.

156

Em segundo lugar vemos a etapa número 3 (dos ajustes de entreletras e kerning, em um software de produção de fontes digitais), com 20 ocorrências. Em exercícios iniciais é possível introduzir essa etapa com ajustes de espacejamentos manuais, para a apuração do repertório visual no que diz respeito ao ritmo de espaços vazios, mesmo que o alfabeto não esteja já estruturado em um software de produção de tipos digitais. Entretanto, para aqueles interessados em criar um arquivo de uso funcional, a utilização de softwares específicos de produção passa a ser indispensável. O fato de existirem no mínimo 20 cursos em que há alguma abor- dagem sobre essa etapa, mostra que eles estão integrados com as necessidades nas novas tecnologias, no que diz respeito à criação e desenvolvimento de tipos digitais. A etapa 6 (da geração de arquivos instaláveis) possui 17 ocorrências. É necessária para que as fontes tipográficas digitais possam ser de fato utilizadas enquanto tal. É uma etapa que fecha o percurso de construção de arquivos tipográficos funcionais e permite que as fontes possam ter sua aplicação testada efetivamente em outros projetos de design. Por esse motivo – de um certo fecha- mento e retroalimentação do ciclo de projeto –, essa etapa nos parece também muito importante.

As etapas 4 e 5, como já esperávamos, são as menos recorrentes, pois dizem menos respeito às características visuais e mais a uma programação de comportamentos automatizados. Por serem aspectos muito mais de aprendizado tecnológico do que de construção de uma linguagem visual, é perfeitamente lógico que esse tipo de conhecimento específico escape ao escopo de uma graduação em design. O fato de existirem algumas iniciativas nesse sentido é louvável, mas não enxergamos como prioritárias, tendo em vista as restrições de cargas horárias e a atual facilidade de acesso a essas informações técnicas específicas em referências na Web, para aqueles interessados em se aprofundar no assunto.

Em termos gerais o resultado obtido é surpreendente, pois indica que o ensino dessa atividade já está muito mais difundido do que imaginávamos inicial- mente. De que modo esse quadro evoluirá nos próximos anos seria tarefa para outras investigações posteriores. Pretendemos aqui, por meio desse levantamento introdutório, contribuir para o início de uma difusão de conhecimentos sobre o

157

estado atual do ensino da atividade no Brasil, estabelecendo um corte sincrônico sobre quais são as tendências gerais em nível de graduação. O método e instru- mento utilizados poderão ser reaproveitados em investigações posteriores, ou ainda podem ser refinados por outros pesquisadores para a obtenção de informações mais específicas.

Com o crescimento produtivo no Brasil e com a progressiva qualificação acadêmica dos profissionais, é previsível que o ensino dessa atividade seja ampli- ado nos próximos anos, seja no âmbito da graduação ou em cursos de especia- lização. Acreditamos que isso poderia contribuir para o desenvolvimento da prática projetual, tanto no que diz respeito a soluções de design para demandas nacionais, quanto para gerar produtos que se insiram no mercado internacional.

158

ANEXO 2

Entrevistas estruturadas A: 4 designers de tipos cariocas

As entrevistas presentes nesse anexo são resultado de uma investigação exploratória anterior, realizada no mestrado da Esdi em 2008, durante a disciplina do professor Dr. Sydney Freitas, relativa a métodos e técnicas qualitativas na pesquisa social. A investigação teve como objetivo compreender alguns dos principais fatores que atualmente motivam e que possibilitam a criação novas famílias tipográficas. Nela pretendemos identificar, na fala de 4 designers de tipos cariocas entrevistados (Fabio Lopez, Gustavo Ferreira, Eduardo Berliner e Felipe Kaizer), quais seriam os denominadores comuns dessa equação, quais seriam os valores que eles consi- deram importantes e alguns possíveis caminhos para esse campo de atuação na contemporaneidade.

A pauta aplicada foi única para todos os designers, entrevistados separa- damente, em dias e locais distintos.

Pergunta 1: Como surgiu seu interesse pela tipografia?

Essa pergunta teve a função de “quebra-gelo”. Visou criar um ambiente confortável para que o designer em questão se sentisse à vontade para falar sobre si mesmo.

Pergunta 2: Como você começou a produzir tipos digitais?

Tivemos a intenção de que, ao ter o pensamento deslocado para esse passado talvez remoto, o entrevistado conseguisse dizer quais foram os principais

159

acontecimentos que o levaram a iniciar esse movimento, o que teria sido despertado que o impulsionou a atuar nessa área tão específica da programação visual.

Com as perguntas 1 e 2, pretendemos começar a traçar um breve panorama sobre o campo do design de famílias tipográficas digitais nos últimos 10 anos no âmbito da cidade do Rio de Janeiro. Pretendemos identificar os principais eventos que ajudaram a construir esse campo.

Pergunta 3: O que o levou a criar a família “X”?

A família “X” varia de acordo com a produção de cada designer. Essa per- gunta teve como objetivo observar algumas das principais motivações que impul- sionaram o designer a iniciar o projeto de uma família tipográfica específica, de grande relevância dentro de sua produção, tenha ela sido feita por uma encomenda, ou por outras questões de interesse.

Pergunta 4: Como o projeto começou a tomar forma?

Aqui pretendemos investigar como um determinado conceito dessa família começou a se materializar; como foram os primeiros esboços, quais foram as ferra- mentas e suportes utilizados, quais foram os primeiros glifos desenhados e outras questões que o designer julgar como relevantes. Essa pergunta talvez não tenha ajudado diretamente a responder à nossa questão central desse momento, mas pôde ser útil para iniciar um entendimento das redes que cercam seu movimento criativo.

Pergunta 5: Quais outros projetos tipográficos você já fez? Como surgiram?

Nessa pergunta pretendemos ter um panorama geral sobre outras produ- ções já realizadas nesse campo pelo designer em questão e observar se outros projetos foram guiados pelos mesmos padrões de pensamento.

160

Pergunta 6: Na sua opinião, quais são as particularidades dessa atividade em relação a outros campos do design gráfico?

Com essa pergunta pretendemos levantar quais foram as questões que atraíram o designer para esse campo específico e, a partir do ponto de vista deste, quais são as principais questões que tornariam o design de tipos um campo de estudos particular.

Nas próximas páginas, veremos a transcrição das entrevistas realizadas com os designers em questão, todas feitas presencialmente. As entrevistas foram arquivadas utilizando um gravador de áudio digital e estão dispostas na ordem cronológica de realização. Posteriormente as respostas foram traduzidas, da forma mais sintética possível, para a linguagem verbal escrita, como veremos a seguir. As quebras de parágrafos indicam pequenas pausas no discurso. Os trechos entre colchetes são inserções do autor.

161

Fabio Pinto Lopes de Lima (Fabio Lopez)

Gomes: Como surgiu seu interesse pela tipografia? E como você começou a pro- duzir tipos digitais?

Durante o NDesign de Curitiba [1998] me lembro de ter visto algumas tipografias desconstruídas do Billy Bacon. Depois disso eu e mais alguns colegas descobrimos o Fontographer, um dos principais softwares para desenhar tipos digitais na época. Cada um fazia suas experiências. Uns faziam tipos para texto, outros tinham uma abordagem mais vernacular. O grupo foi aprendendo um pouco da tecnologia e desenvolvendo vários experimentos de alfabetos. Durante as aulas de Processos Gráficos tivemos uma ajuda fundamental do prof. Rodolfo Capeto, pois tentávamos extrair o máximo de informações sobre o assunto.

No NDesign de Brasília [1999] já ensaiaríamos uma experiência de foundry, que chamávamos de Fontes Carambola. Fizemos alguns pequenos folders e disquetes com algumas fontes nossas. Vendíamos como verdadeiros feirantes. É bom lembrar que nessa época a venda pela internet ainda estava apenas come- çando a se tornar uma realidade. No fim, cada um acabou seguindo um caminho profissional diferente e o projeto da foundry não continuou.

Eu continuei desenvolvendo algumas fontes e levei esse tema para o meu projeto de graduação na Esdi, em 2000.

Gomes: O que o levou a criar a família Colonia?

Mostrei alguns primeiros desenhos de letras para o prof. Rodolfo Capeto e ele fez algumas considerações sobre a estrutura destas. Ele fez algumas correções importantes, disse que aquela seria uma tipografia para logotipo e que existiria uma diferença em relação a essa categoria e a da tipografia pra texto. Fiquei instigado com aquilo, pois me parecia que a tipografia para texto seria um desafio maior.

162

Então decidi fazer um tipo para texto. Fiz uma primeira família, que chamei de Squeroway. No projeto de graduação foi proposto um tema geral para a turma, que foi “transmissão de conhecimento”. Dentro dessa temática, pensei que, embora estivesse há uns 2 ou 3 anos trabalhando nisso, me faltava a bagagem técnica e de leitura a respeito da construção de uma fonte para texto. Minha idéia foi fazer uma compilação dessas informações e esse seria o conhecimento que viria a transmitir. Achei que seria mais interessante ainda se eu conseguisse aplicar, de forma prática, aquelas informações no desenvolvimento de uma família tipográfica. Após o término da graduação ainda ampliei a família Colonia, por volta de 2003, fazendo algumas correções, e resolvi inscrevê-la na Bienal da ADG [2004] e na Bienal Letras Latinas [2004]. A partir desse ano, foi um período muito pequeno em que a coisa mudou de nível, com vários outros designers dando saída a projetos de bastante qualidade.

Gomes: Como o projeto (Colonia) começou a tomar forma?

Lembro-me de ter começado a partir de algumas formas em que estava mexendo na minha fonte Giovanna. Essa fonte tinha como característica o fato de ter algumas letras abertas. As barrigas do “a”, do “p” e do “b” não fechavam, ou seja, não se uniam completamente com as hastes verticais. Certa vez um amigo meu havia comentado que quando ela era reduzida a um tamanho pequeno, parecia ter uma pequena falha. Então comecei a mexer nesses desenhos. Lembro-me de ter mexido no desenho do “a”, e então ele começou a se tornar um outro conceito, começou a se tornar um outro desenho. A partir daí fui progredindo o conceito para outras letras. Tudo feito direto no computador, utilizando o software de desenho vetorial Corel Draw. Comecei pela letra “a”, que não é o mais comum, mas a partir daí outras letras foram sendo geradas: “a”, “p”, “n”, “b”... Foi um processo mais livre como, aliás, foram todos esses projetos dessa primeira fase. Isso até entrar no desenvolvimento específico da tipografia, quando entramos numa outra metodologia, totalmente diferente. Mas nesse início foi isso: corrigindo algum caractere de uma experiência anterior. Lembro que uma das questões da Colonia foi que, nessa parte do “a” onde a letra era aberta, a primeira solução que adotei foi colocar apenas uma barra horizontal. O conceito acabou se tornando esse: era um detalhe que, em corpo 8 ou 9, praticamente não era percebido. Então notei que ele não afetava a neutra-

163

lidade, a transparência da tipografia para texto. Mas percebi também que em 72 pontos, aquele detalhe iria se tornar mais aparente e transformar-se-ia num recurso de personalidade bem expressivo. Essa era uma característica que trabalhava com a questão da escala – se era mais ou menos visível – que poderia ter diferentes tipos de aplicação, tanto para título quanto para texto. Essa quebra na forma acabou se tornando uma característica que achei bem marcante. A partir dela fui ampliando esse conceito para o “n” e outros caracteres.

Gomes: Quais outros projetos tipográficos você já fez? Como surgiram?

No início fiz várias pequenas experiências. Por exemplo, a partir da marca de óculos italiana Arnette, achei as letras bem interessantes e resolvi fazer um alfabeto inteiro. É o tipo de coisa que, hoje, eu nem faço mais, mas foram experi- ências que fizeram parte do processo. Outro exemplo foi uma intervenção na fonte Sabon [de Jan Tschichold], em que, a partir dela fiz uma fonte chamada Sabonette, inserindo bolhas na Sabon. Essa era uma das característica do grupo Carambola. Tínhamos muitas tipografias que eram uma brincadeirinha: Garamonga, Boboni, etc. O pessoal tinha um senso de humor tipográfico que eu acho que era influência do meio nesse início da tipografia digital, por ter começado aqui com o Billy Bacon e com os Tipopótamos [Elesbão e Haroldinho]. Os dois tinham essas características – ora desconstrutiva, ora humorística.

A fonte Squeroway surgiu a partir do desafio proposto pelo Rodolfo [Capeto], quando explicava a diferença entre fontes para logotipo e fontes para texto. Então resolvi que não queria mais fazer fontes para logotipo, mas uma fonte para texto. Eu tinha até vergonha de usá-la, mas me lembro que, nessa época o Gustavo Ferreira [que também fez parte dos Carambola] trabalhava na Redley antes de mim e levava várias fontes dos Carambola para o escritório da empresa. Lembro-me que meu ex- chefe fez vários projetos com a Squeroway. Na primeira vez em que me deparei com uma fonte minha na rua, estava andando de skate quando vi um cartaz de uma competição da Redley utilizando essa fonte. Foi um prazer enorme ver uma tipo- grafia minha sendo aplicada.

164

Outro pacote de fontes foram as que eu chamei de Étnicas, inspiradas em outros alfabetos não-latinos. Eu utilizava as formas desses alfabetos e as adaptava para o alfabeto latino, de modo que parecesse uma simulação do árabe, do tibetano, etc.

Fiz também a Giovanna, a Colonia e depois dei uma parada. Depois da formatura fiquei um tempo trabalhando profissionalmente na Redley e lá tínhamos uma necessidade muito grande de letterings o tempo todo. Comecei a fazer algumas alterações em tipografias para aplicações em estampas e coisas do gênero, mas nunca gerando um arquivo fonte propriamente. Cada coleção tinha um briefing com um conjunto de valores que tentávamos traduzir visualmente. A tipografia era desen- volvida a partir desse conjunto de valores visuais.

Algum tempo depois, passei a trabalhar em casa e então fiquei com um pouco mais de tempo livre para trabalhar nos antigos projetos. Acabei dando saída em mais uns 3 projetos de tipografia com características mais display, que atual- mente acabou se tornando o meu interesse maior. Justamente por eu trabalhar mais com o design gráfico do que com o design de tipos em si, isso acabou se trans- formando num interesse pessoal meu.

Gomes: Na sua opinião quais são as particularidades dessa atividade em relação a outros campos do design gráfico?

Acho que existe um conhecimento técnico muito específico relacionado a essa área. Também acho que existem várias maneiras de se trabalhar com a tipo- grafia: Pode-se trabalhar como um type designer que desenvolve uma tipografia para gerar uma demanda de mercado. E acho que existe também o caso de quando se trabalha por uma demanda - alguém que esteja precisando de um tipo com determinadas características. Acho que são dois processos de trabalho que tem relações diferentes com a profissão. Quando se trabalha por demanda, para algum projeto específico, deve-se ter uma relação maior com outras questões do projeto.

165

Em relação às particularidades em se trabalhar desenvolvendo tipos, acho que tem que ser meio obsessivo, pois é um trabalho muito extenso e muito técnico. Isso acaba exigindo um conhecimento até mesmo de software e de programação, que muitas vezes até foge de características visuais. O design de tipos tem uma metodologia muito particular de criação. É uma área que se especializou a ponto de sair de dentro do design gráfico e se tornar um campo adjacente, especialmente quando se trabalha com essa característica de só desenvolver tipografias.

Em muitos casos a tipografia se apresenta como uma ferramenta do designer gráfico para transmitir qualidades visuais concebidas em um briefing. É o tipo de desenvolvimento em que se tem uma relação muito íntima e integrada com o projeto visual em si, que eu acho completamente diferente de quando você está apenas propondo um novo alfabeto. Esse último já é um desenvolvimento muito especializado, quando se trabalha com a ausência de um demanda específica, que não tem necessariamente relação com nenhum briefing. Nesse caso, gera-se apenas uma outra ferramenta de composição de texto.

Acho que acabam se tornando duas tipografias diferentes. Existem pessoas que trabalham só desenvolvendo tipografias para servir a outros profissionais e ao mercado que consome esse tipo de produto. Dentro do meu interesse profissional, entretanto, as duas coisas sempre estiveram vinculadas e meu trabalho sempre foi atuando como designer gráfico, utilizando a tipografia como uma ferramenta. Tenho a maior admiração por quem desenvolve, pois é um trabalho minucioso. No caso de famílias extensas com muitas variações, acho que os softwares evoluíram muito de maneira em que o type designer perca menos tempo com trabalho braçal e isso, possivelmente, gerou uma certa qualidade e quantidade maior de desenhos.

166

Gustavo Ferreira

Gomes: Como surgiu seu interesse pela tipografia? E como você começou a pro- duzir tipos digitais?

Acho que meu interesse pela tipografia acontece desde sempre. Lembro que eu era o cara na escola que fazia os cartazes, sempre gostei de desenhar letras, escrevia o nome das pessoas e dava de presente, coisas do gênero. Quando eu realmente comecei a trabalhar com isso foi durante a graduação na Esdi, juntamente com outros alunos de lá. Eram 6 pessoas nesse grupo, que ficou conhecido como Fontes Carambola. Acho que todo mundo começou a fazer isso um pouco influen- ciado pelas aulas do Rodolfo [Capeto]. Não era aula de tipografia, acho que a disciplina era Meios e Processos Gráficos, se não me engano. Lá víamos um pouco sobre história da tipografia, havia exercícios de fazer letras em bitmap, etc. Foi nessa época que eu comecei a fazer fontes. Tínhamos acesso ao Fontographer e sabíamos como gerar fontes através desse programa. Tínhamos muito pouca infor- mação, muito pouco conhecimento. E na época, também, acho que todo mundo aqui no Brasil estava um pouco fascinado com a coisa de desconstruir. David Carson era herói e estava todo mundo querendo detonar as coisas. Lembro que, entre as primeiras fontes que fizemos, havia essas detonadas, que eram, ou processadas por um filtro, ou blendadas a partir de duas fontes diferentes. Outros temas de criação eram fontes a partir da escrita popular e fontes a partir da geometria. As pessoas, quando estão começando, geralmente têm uma tendência a fazer fontes geomé- tricas, a partir de círculos e retas.

Mais tarde, me formei na Esdi com um projeto em design de tipos – o Sistema Elementar. E outra grande escola para mim – acho importante falar isso – , no meu trabalho de tipografia, foi a minha experiência profissional na Redley. Eu estava fazendo fontes junto com esse grupo Fontes Carambola e ao mesmo tempo comecei um estágio na Redley, que depois virou um emprego. Lá eu tinha que fazer muitos letterings, era a coisa da tipografia aplicada. E lá eu tive a oportunidade e a liberdade de experimentar bastante. Na época do projeto de formatura, o grupo

167

Carambola já estava meio que acabando, todo mundo foi se formando, cada um com seu emprego e a coisa acabou morrendo. Em relação ao Sistema Elementar, depois da graduação eu continuei durante o mestrado que fiz na Alemanha, continuei no segundo mestrado que fiz na Holanda e até hoje não acabei.

Gomes: O que o levou a criar a família Elementar?

No projeto final da Esdi havia um tema geral para todos os alunos. No meu ano, esse tema foi “mídia e mensagem”. O conteúdo deveria ser sempre relacionado ao design e a mídia teria que ser, ou impressa, ou digital. Eu escolhi, como mídia, a tela, e como tema, a tipografia. Então comecei a pesquisar esses dois temas: tipo- grafia, tela, tipografia na tela, esse complexo de informações. Depois de pesquisar, cheguei a um tema, que eu achei que era um problema que ainda estava sem solução. Eu “descobri” que as fontes para tela ainda não eram dotadas de uma gama de variações que pudessem ir muito além do quarteto Normal, Negrito, Itálico e Negrito Itálico. Por um lado, nas fontes para impressos, temos famílias como a Univers [de Adrian Frutiger], que tem vários pesos e várias larguras. Mas na tela, entre as fontes que eu pesquisei na época, tanto nas vetoriais como , Times e , quanto nas fontes bitmap, em nenhuma delas havia uma gama tão alta de variações.

Gomes: Como o projeto (Elementar) começou a tomar forma?

Então, no Sistema Elementar, eu me propus a fazer uma família, ou um sistema tipográfico, que oferecesse uma maior variedade para tela. Para chegar a essa família eu desenvolvi um método paramétrico. Na verdade o método para- métrico não é nada novo, ele já existe implementado em diversos sistemas. No Elementar a base do sistema era o pixel, pois esse é o elemento básico para formação das imagens na tela. Nele os parâmetros foram baseados no pixel, então, por exemplo, as larguras eram 1 pixel no olho da letra, 2 pixels, 3 pixels. Em relação às alturas, eu comecei por 9 pixels (indo da ascendente à descendente), mas depois passei para 13 pixels, por que achei mais produtivo trabalhar nesse tamanho. Então

168

para fazer a altura de 11 pixels eu partia do desenho de 13 e ia mudando manu- almente. Mais tarde trabalhei numa automatização nesse sistema, mas o desenho de linhas diagonais e alguns detalhes de serifa, por exemplo, são muito difíceis de programar. Começa-se a criar muitas exceções.

Os primeiros desenhos em pixels começaram como estudos no Adobe Photoshop. O sistema é um conceito que foi implementado na forma de fontes bitmap falsas, ou seja, fontes vetoriais construídas num grid modular. Hoje em dia os sistemas operacionais não têm mais suporte para fontes bitmap verdadeiras, ou seja, fontes em que o glifos são descritos como mapas de bits. Atualmente esse tipo de fonte é utilizada principalmente no Flash. As chamadas pixel fonts, como as pessoas chamam, são fontes vetoriais que emulam o pixel. Elas trazem de volta a questão dos tamanhos ópticos, coisa que a tipografia, principalmente através de fotocomposição, praticamente extinguiu, ou pelo menos simplificou bastante.

Então comecei com 9 pixels de largura, com 5 de altura-x. Foi um ponto de partida em que eu conseguia formas ao mesmo tempo simples e legíveis. Isso foi uma preocupação que eu tive desde o início, acho importante dizer isso. Desde o início me preocupei em fazer uma coisa legível, que as pessoas pudessem ler. Abaixo de 9 pixels até dá para fazer coisas legíveis, mas nesse caso é preciso fazer coisas como um “a” e um “e” sem a barra central e coisas do gênero. A partir de 13 pixels de altura eu já conseguia trabalhar as conexões de retas com curvas, gerando uma variedade formal maior, serifas mais sutis, etc. Então a questão do projeto era a variedade – atingir a maior variedade possível de pesos, larguras, estilos. Enfim, a maior quantidade de variações possíveis dentro dessa limitação da mídia tela, de resolução baixa. Os parâmetros eram a alma do projeto: os quantitativos e os qualitativos. Os quantitativos eram a altura, e a largura, que eram independentes. As espessuras dos traços horizontais e dos verticais também eram parâmetros inde- pendentes. Os qualitativos eram estilo e conjunto de glifos (maiúsculas, minúsculas ou versalete).

Em fontes para tela, a cor de fundo também faz a maior diferença. Eu sempre olhei para minhas fontes em “negativo”, ou seja, a letra branca no fundo preto, que é o positivo da tela. Não dá para fazer isso no FontLab, mas no

169

Superpolator, que é um programa que eu uso bastante atualmente, eu trabalho o tempo todo em negativo.

Gomes: Quais outros projetos tipográficos você já fez? Como surgiram?

No Type&Media [mestrado na Holanda] eu fiz um projeto de uma fonte vetorial para tela, chamada Quantica, que é exatamente o outro tipo de abordagem em relação à tipografia para tela. Na tipografia bitmap se trabalha cada tamanho individualmente. É muito menos complexo gerar um desenho para cada tamanho, mas se quiser atender a uma grande gama de tamanhos, a coisa começa a ficar complexa em termos de quantidade. Entre as fontes vetoriais temos os padrões TrueType e PostScript, sendo que a qualidade da TrueType é bastante superior na tela. Uma grande vantagem das fontes vetoriais é que elas também podem ser impressas. Então na Quantica, a proposta foi mais ou menos a mesma da Verdana [de Matthew Carter] – uma fonte para ler textos na tela, especialmente na internet, mas que esse texto também pudesse ser impresso. É um grande desafio, pois são meios com características completamente diferentes. Uma das principais limitações da tela é a baixa resolução quando comparamos com o papel. Então as fontes vetoriais para tela como, por exemplo, a Verdana, são todas meio grandalhonas e brutas. Os detalhes sutis têm que ser muito bem planejados, para não ficarem parecendo defeitos em corpos menores. E por outro lado, essas fontes quando forem impressas, não podem ter essa cara muito bruta, é interessante que elas sejam um pouco mais orgânicas. Então esse é o grande desafio. Eu comecei pelos desenhos de bitmaps de 8 a 23 pixels e a partir de um determinado ponto eu pulava alguns tamanhos. Esses desenhos não foram feitos como do caso do Sistema Elementar, em que a largura e a altura eram parâmetros independentes, mas no caso da Quantica eu fiz uma versão Regular que crescia de modo proporcional. Nesse caso, a forma vetorial teria que ser o denominador comum de todas essas formas bitmap em diferentes tamanhos. Uma maneira de chegar a esse denomi- nador comum é superpor esses desenhos bitmap, em uma mesma altura, utilizando transparências. As áreas que são comuns ficarão cada vez mais escuras, e a partir disso se começa a enxergar o esqueleto por trás desses bitmaps.

170

Fiz todas as minúsculas, maiúsculas e pontuação básica. Também trabalhei bastante com alternates - as duas formas do “g”, por exemplo. Testei durante muito tempo diferentes formas para o “l”. Numa fonte sem serifa se tem o problema típico de quando se escreve “Illinois” – o da confusão na leitura entre “I” e “l” – por causa da questão da grade. E na tela esse efeito é ainda maior. Experimentei também diferentes possibilidades para a letra “a”, para a letra “g”, “k”, “y”.

Na época do Carambola eu cheguei a fazer muita coisa a partir do Corel Draw, mas depois percebi que daria mais trabalho. O editor de fontes oferece uma série de facilidades próprias do desenho vetorial de glifos tipográficos. Então hoje uso o FontLab direto. A partir do momento que eu começo a desenhar na tela, passo a fazer apenas rabiscos no papel. O desenho mestre, depois de um tempo, passa a ser o vetorial. Às vezes, também, quando eu acho que não estou conseguindo resolver um desenho ali nas curvas de Bézier, eu imprimo em um tamanho relati- vamente grande e faço correções com caneta preta e caneta branca. Quando é um desenho bem cuidado, que geralmente acontece no início do processo, vale a pena escanear, colocar no fundo e usar para desenhar as curvas de Bézier. Mas a partir de um certo momento passo apenas a olhar e desenhar no computador. No início eu normalmente jogo uns glifos ali ainda completamente toscos. Aos poucos vou observando e polindo cada um dos desenhos. Primeiro acerto as minúsculas, depois as maiúsculas.

Todo o trabalho que pretendo estar lançando em Outubro é a minha fundição, mas é também um trabalho que tem uma unidade, que é a tipografia paramétrica, elástica e virtual. É daí que vem o nome Hipertipo, que é um neo- logismo para descrever esse conceito que tenho na minha cabeça e que orienta o meu trabalho. Todas as fontes em que eu estou trabalhando atualmente se encai- xam nesse conceito.

Depois que eu me formei na Holanda eu peguei a Quantica e comecei a fazer outros pesos para ela. Comecei a trabalhar numa Bold e numa Light. Comecei a trabalhar também com interpolação dos pesos utilizando o Robofab. Ela acontece na forma de scripts que são rodados dentro do FontLab.

171

No meu projeto Hipertipo, cada família explora essa idéia principal de varia- ções paramétricas de forma diferente. Hoje há umas 8 famílias em que estou trabalhando e cada uma delas apresenta variações de um modo particular. Exceto a Elementar e a Quantica, todas outras famílias tem pesos interpolados utilizando o programa Superpolator, que utiliza códigos do Robofab. A Quantica, hoje em dia, tem 3 eixos de variação: largura, peso e contraste fino/grosso. A família Itálica, que vai mudar de nome, tem o eixo de peso e o eixo de inclinação. Em determinados estilos tipográficos, a forma mais convencional do itálico é a romana inclinada. Na fonte que fiz para a UNB, que hoje em dia se chama Pública, estou interpolando o regular e o itálico. A que se chama Amazônica é a família que eu comecei para o Guaraná Kuat. Surgiu de uma concorrência que iria acontecer e que eu fui chamado para fazer uma proposta, mas que acabou não sendo usada.

O meu nível de prazer tende a cair em projetos sob encomenda na medida em que o deadline se aproxima. Eu não gosto de trabalhar com deadline e toda a minha trajetória nos últimos anos foi em busca de uma situação de trabalho em que eu não tenha que lidar com isso. Acho que o design de tipos tem a ver com perfeição e a pressa é inimiga da perfeição... Hoje estou interessado em fazer letterings comercialmente, fontes abertas (e pagas) sob encomenda e fontes sob catálogo.

Gomes: Na sua opinião quais são as particularidades dessa atividade em relação a outros campos do design gráfico?

É muito diferente. Tanto é que são poucos os bons designers de tipos. Existem muitos designers que se arriscam criando fontes e existem poucas boas fontes. Apesar de, já há algumas décadas, as ferramentas estarem disponíveis para todos e o conhecimento estar cada vez mais aberto, acho que é outro mundo, completamente diferente. Acho que o tipo de educação e de sensibilidade envolvida é diferente. A diferença na maneira de trabalhar fica evidente nos primeiros passos de designers gráficos com design de fontes. Vemos uso de geometria, de blending. Vemos as pessoas lidando com as formas tipográficas sem estarem conscientes do significado histórico dessas formas, sem estarem conscientes de particularidades

172

que tem a ver com as mídias. É um trabalho muito mais orgânico, que tem muito mais a ver com o olho. Acho que o trabalho do designer gráfico, mesmo o trabalho com tipografia, de typesetting, lida muito mais com o grid, com coisas alinhadas no grid, medidas precisas e números. Por isso acho que acontece essa tendência da tipografia geométrica. Acho que isso vem da mania do designer gráfico de ter tudo alinhado no grid. A pessoa que faz uma fonte assim acaba não fazendo fontes que funcionam para leitura, pelo menos não uma leitura de massas de texto. Essa é, na verdade, a falência da tipografia da Bauhaus. Ela funciona num determinado contexto – em tamanhos grandes, frases curtas. Com exceção da Futura [de Paul Renner], foram poucas coisas que deram certo nesse sentido.

Outra diferença é que a tipografia é uma área muito tradicional. Os hábitos de leitura, a legibilidade, estão muito fundo no inconsciente na humanidade. São a própria estrutura do mundo ocidental. E acho que o designer de tipos está mais consciente disso. O tipo de personalidade é diferente. O conhecimento para fazer fontes está aí, não é tão difícil acumular esse conhecimento. O problema é a perseverança, a dedicação, o tempo de investimento que uma fonte minimamente completa demanda. É um investimento enorme de tempo de estudo e um tempo enorme para fazer. Acho que são poucas as pessoas que tem a personalidade necessária para fazer esse tipo de trabalho. É um lance meio de monge.

173

Eduardo Berliner

Gomes: Como surgiu seu interesse pela tipografia? E como você começou a pro- duzir tipos digitais?

Acho que meu interesse surgiu por volta da metade da década de 90. Eu entrei na PUC [RJ] em 1995 e sempre tive uma produção muito autoral, já vindo de um contato com amigos – o Bleque e o Tonho – que estavam trabalhando na Nudez, na época, com o Billy Bacon. Eles estavam fazendo um bocado de fontes bem expressivas – tinham um valor de desenho muito grande, não eram fontes pensadas para texto longo. Era uma época de muita experimentação, a época do David Carson, em que se misturava muito o desenho com a tipografia. Então meu interes- se começa naquela época. Mas no final da faculdade, meu interesse foi lentamente migrando para a fonte como veículo da informação escrita. Inclusive, no meu projeto final da faculdade, por mais autoral que fosse, eu acabei usando uma no projeto inteiro. Eu sabia que não queria trabalhar em escritório e pensei que dar aula poderia ser algo muito interessante para mim. Seria uma maneira muito boa de conciliar meus interesses pessoais com uma produção. Só que para vir dar aula no Brasil eu precisava de um mestrado. E a área que mais me interessava no design gráfico era o desenho de tipos. Isso foi acontecendo no final da faculdade, em grande parte por conta do nível de mistério que aquilo apresentava. Eu não fazia idéia de como começar e também não havia ninguém para explicar. Eu tinha certeza de que não seria uma coisa que eu aprenderia da noite para o dia. Então fazer um mestrado em desenho de tipos foi um modo de ter um foco muito fechado durante um período restrito.

Durante a graduação, provavelmente em 1997, já tinha projetado algumas fontes display, que tinham um valor muito mais conceitual do que prático, tinham um valor muito mais de desenho. Eram fontes baseadas em cartilhas de criança, fontes de bolinhas, fontes baseadas em plantas, em letras destruídas, caixas de fósforo, coisas do gênero.

174

Gomes: O que o levou a criar a família Pollen?

Parte do programa do mestrado em Reading [Typeface Design, University of Reading, Inglaterra] é o desenvolvimento de uma fonte para texto. É um programa dividido em uma parte prática e outra teórica. O meu projeto prático foi a Pollen – desenvolvi o Regular, o Bold e o Itálico. No fundo, acho que a Pollen veio da minha curiosidade em relação à estrutura das letras minúsculas romanas, enfim, do alfabeto romano como temos hoje. Eu não fazia a menor idéia de como era a estru- tura daquilo. Então minha postura foi começar a experimentar com vários materiais, por exemplo: pena de ponta chata, que depois, lendo, eu descobri que tinha um papel fundamental na estrutura das letras minúsculas. Comecei a treinar caligrafia por conta própria, sem muita preocupação se ficaria bonito ou feito. Na verdade, enquanto eu estava desenhando a Pollen, em nenhum momento eu achei que ela ficaria boa. Eu só estava tentando entender de onde viriam essas formas. Eu sou uma pessoa muito curiosa e teimosa, eu acho. Essa curiosidade em relação à estrutura das letras me forçou a pesquisar com vários materiais caligráficos diferen- tes. Quando nunca se trabalhou com tipos para texto, se demora um tempo até entender aquilo, não é de uma hora para outra. O projeto da Pollen foi um processo híbrido entre meus interesses pessoais e o que eu fui aprendendo durante o curso, como um alpinista que tenta encontrar espaços para conseguir escalar. Na medida em que ia lendo e experimentando, aos poucos fui entendendo a beleza daquele trabalho, entendendo que a maneira como se interpreta aqueles desenhos tradi- cionais já é suficiente como assunto – a proporção que se dá, o acabamento, a muscularidade do desenho.

Gomes: Como o projeto (Pollen) começou a tomar forma?

A Pollen foi muito desenhada à mão. Isso fazia todo sentido, porque naquele momento eu nunca tinha desenhado uma fonte para texto e a maneira como eu lido com o mundo tem muito a ver com o desenho. Então, quando estava desenhando a Pollen, muitos dos meus exercícios eram desenhar vários modelos caligráficos com pena, com pincel, com pena de ponta fina. Depois passava por um processo de redesenho utilizando o lápis. Era uma maneira de entender o que eu estava fazendo.

175

Tínhamos [a turma] encontros periódicos com o orientador e começamos trabalhando a palavra “adhesion”, por ela ter formas suficientemente diferentes dentro dessa estrutura do alfabeto. Nessa palavra se tem, por exemplo, curvas, retas, curvas unidas a retas. Então é um bom ponto de partida. Comecei a expe- rimentar para ver como resolveria esse problema. Ninguém em Reading dava muitas dicas sobre por onde ir. Então a primeira letra que desenhei foi um “a” do tamanho de uma folha A4 – o que não fazia o menor sentido porque era totalmente distante da proporção da minha mão e, desse modo, se afastava completamente da escrita. A partir da proposição da palavra “adhesion”, a lápis, a maior parte dos alunos, naturalmente, migraram para o computador. Não que isso seja bom ou ruim, mas a minha maneira de lidar com o mundo me obrigou a permanecer com o desenho por muito mais tempo. Passei um bom tempo desenhando, escaneando, até que meu desenho começou a ficar bastante preciso. Mas eu pegava esses desenhos, escaneava, vetorizava no Adobe Illustrator, importava para o FontLab, enquanto a maior parte dos alunos já desenhavam direto no FontLab. Então, se por um lado a qualidade do meu desenho foi melhorando muito, por outro lado a minha maneira de lidar com o FontLab era muito mais lenta do que a dos outros alunos. Enquanto eu ainda estava tentando fechar as minhas minúsculas da versão Regular, havia muita gente que já estava no Itálico. Nos meus cadernos eu desenhava à lápis, com a pena, depois começava a imitar o traço da pena utilizando o lápis. Depois com o pincel, com a pena de ponta fina, e nesse processo eu fui gerando uma confusão enorme de estruturas de letras.

Hoje, com o afastamento, eu percebo que a fonte, mais do que todas as histórias que eu possa ter contado, é uma fonte em que o maior problema que eu tive foi: como conciliar tantas abordagens em um mesmo desenho. Quando falo de abordagens me refiro às referências, não só de outras fontes que eu olhava, mas também de tipos diferentes de pena, diferentes maneiras de desenhar. Ora eu desenhava por outline, ora eu desenhava a forma preenchida, ora eu desenhava no computador, até que, em determinado momento, eu tinha uma fonte toda misturada. Ela era interessante, mas sua massa de texto ainda era muito nervosa. Os finos e grossos, por exemplo, ainda variavam mais do que deveriam. Em determinado momento, lendo o livro LetterLetter, do Gerrit Noordzij, eu li sobre a técnica dele de desenhar por hachuras. Eu achei aquilo simplesmente fantástico. E é engraçado, por

176

que ninguém me falou sobre isso – eu aprendi, literalmente, lendo. Essa técnica emula com o grafite, mais ou menos o que acontece com a pena de ponta chata. Então, vários desenhos da Pollen, que ainda estavam muito nervosos na massa de texto, foram revistos a partir desse tratamento com a hachura. Tentei equalizar, de alguma maneira, os finos e grossos, mas sem perder a característica própria que ela tinha ganhado por essa mistura de técnicas que eu vinha usando. Ela era uma fonte semi-serifada, mas meu orientador me estimulou a lidar com serifas completas, como um pré-requisito para a própria conclusão do curso. E, realmente, depois que eu fiz e comparei as duas massas de texto, eu preferi o que aconteceu depois. Acho que a Pollen acabou sendo o resultado do meu esforço em fazer uma estrutura híbrida funcionar de maneira homogênea numa massa de texto.

Agora estou terminando a Pollen para produzi-la industrialmente, pela foundry Typetogether. Ela tem um characterset gigantesco – muito complexo e muito sofisticado – , então estou demorando um bom tempo para terminar a coisa toda.

Gomes: Quais outros projetos tipográficos você já fez? Como surgiram?

Primeiro, durante a faculdade, fiz alguns projetos que costumamos chamar de fontes display. São de uma época em que eu nunca tinha projetado uma fonte, mas era extremamente curioso sobre o assunto. Foi por volta da metade da década de 1990, com uma influência fortíssima da escola californiana, dessa possibilidade de um design tão expressivo. Isso era muito sedutor para uma pessoa que gostava tanto de desenhar e fazer colagens.

No meu mestrado eu desenhei a Pollen, que acabei de falar a respeito. Voltando para o Brasil, a segunda fonte que eu desenhei foi a Formica. Ao mesmo tempo desenhei também uma chamada Yoga.

A Pollen foi usada pela primeira vez em 2004, numa exposição chamada Dobra, feita por dois importantes designers. Eles compuseram o catálogo da expo- sição com a fonte. Foi a primeira vez que eu a vi sendo usada e, como eu havia dito, eu nunca tive nenhuma pretensão de que ela fosse funcionar para alguma coisa.

177

Queria que funcionasse para texto, mas até ver a Pollen sendo usada, eu não acreditava. Então quando eu vi o catálogo da exposição Dobra eu fiquei extrema- mente emocionado. Fiquei legitimamente emocionado com aquilo, foi um momento muito especial e vi que ela realmente funcionava. Vi que, apesar de ela ter tido um lado tão pessoal no processo, eu realmente tinha resolvido o problema – ela funcionava como uma fonte de texto, para um texto longo e para o texto que eu bem entendesse compor. É claro que eu não a usaria em um jornal, não pela sua qualidade, mas pelas características do desenho, que talvez não se preste a esse tipo de veículo. Mas ela funciona para um texto longo.

No caso da Formica, me lembro que, quando eu estava dando aulas no CCE [cursos de extensão da PUC-RJ], quando voltei ao Brasil, uma aluna minha perguntou se poderia desenhar direto no computador. Eu aconselhei que ela dese- nhasse, pelo menos durante uma semana, primeiro, à mão. Paralelamente a isso eu comecei a pegar uma série de esboços que eu já tinha feito e que eu tinha vontade de começar, que eram da Formica, e comecei a desenhar direto no FontLab, até para não falar para ela não fazer um coisa só por falar. E, então, fiquei muito feliz com o resultado. A Formica foi o resultado de uma fonte que eu fiz direto no FontLab. Ela tem características mais secas, bem diferente da Pollen. Essa é até uma postura que eu tenho – de às vezes ir em uma direção diametralmente oposta à anterior, na tentativa de criar um novo problema. Então quando eu comecei a dese- nhar a Formica, apesar de já ter feito alguns esboços no caderno, o desenho foi feito inteiramente direto no Fontlab. Na primeira semana eu fiquei meio travado, mas depois foi perfeito, e a idéia de desenhar diretamente no computador vinha a calhar quando eu pensava na estrutura que eu queria para a fonte: um pouco mais seca, com cortes mais retos, um pouco menos orgânico. Adiantei todas as minúsculas e depois mostrei para alguns colegas. Eles se interessaram muito, porque estavam fazendo um novo catálogo dos trabalhos deles chamado Flat Land e acharam que seria perfeita para o que eles precisavam. Então eu corri para terminar o character set que eles precisariam para esse catálogo. Como eu estava desenhando direto no computador, o tempo de desenvolvimento era dividido por três. Eu desenhava usan- do só o FontLab, com duas janelas abertas. Então o processo era bem mais veloz.

178

A Formica se prestou a um problema do mundo, mas o que eu vinha fazendo era só uma tentativa de desenhar uma fonte com características que, talvez, pudessem ser usadas em textos mais diversos como, por exemplo, um jornal. Depois a Formica ainda foi usada no projeto gráfico do jornal MuseuMuseu. Como nesse projeto havia a necessidade de uma hierarquia tipográfica maior e eu não tinha tempo suficiente para desenhar o Itálico e o Bold, eu acabei fazendo uma versão sem serifa da Formica. Essa versão sem serifa foi usada nos títulos. Usei também o itálico da Pollen. Como ela tinha a mesma altura-x e alturas de descen- dente e ascendente, as duas juntas funcionaram bastante bem, afinal era a mesma mão que estava desenhando. É claro que há maneiras e maneiras de uma fonte casar com outra. Me lembro do Gerard Unger falando “Como você vai desenhar um itálico para casar com seu regular? Não há uma regra, você tem que fazer um itálico que seja um bom parceiro para dançar junto com seu regular”. Há vários tipos de abordagens. Existem pessoas que querem fazer um itálico extremamente distinto, em que fique nítida a presença dele na composição, e outras que querem fazer um itálico que suma mais na massa de texto. Depende da postura. Um itálico mais mecânico bem subordinado ao regular, ou um itálico com uma vida própria muito grande.

Fiz uma outra fonte chamada Muggia, que eu desenhei, a princípio, para uma loja de roupas da minha namorada. Normalmente eu não tenho mais muita vontade de desenhar só um lettering. Eu prefiro usar meu tempo para desenhar uma fonte que possa ser utilizada em um texto também, que é o que me interessa. Ali eu resolvi desenhar uma fonte sem serifa com um clima que eu achava que tinha a ver com o trabalho dela. A idéia era que fosse uma sem serifa levemente desen- gonçada, que tivesse um clima meio tosco, de certa forma, mas ainda sim elegante. Como se fosse uma fonte impressa numa embalagem de churros ou em flexografia, mas eu não queria um aspecto deteriorado, queria que ela tivesse esse clima levemente impreciso. É, ao mesmo tempo, uma experiência para saber até que ponto posso ir em uma fonte um pouco mais monolinear e até que ponto eu sinto a necessidade do contraste e em quais partes. Então é uma experiência explorando o que seria uma fonte sem serifa e para que ela serve. Ao invés de pegar só o que está escrito, eu resolvi ver, na prática, o que eu acho que acontece.

179

A Yoga, já foi uma fonte que eu desenhei para um cliente. E é engraçado, porque isso alterou o processo. Eu estava trabalhando em um escritório e houve uma cliente que queria fazer um trabalho de identidade visual. Como o Tonho, que estava trabalhando lá nesse projeto, também tem um interesse tipográfico enorme, resolvemos fazer uma fonte. O tempo era muito curto e, ao invés de desenhar a fonte por outlines, resolvemos desenhar uma fonte através de uma única linha apenas. É uma fonte monolinear. Desenhei direto no Adobe Illustrator e levei para o FontLab. Era uma maneira muito mais veloz para desenhar, pois é que como se desenhasse somente a estrutura óssea da letra. Quando se tem uma fonte com contraste fino/grosso, ela também tem sua musculatura, então essa variação é muito mais lenta para se equalizar na massa de texto. Quando se desenha uma fonte monolinear o processo é muito mais veloz. Como era um trabalho comercial para ser realizado em uma ou duas semanas, foi essa a opção que adotamos. Foi uma experiência muito interessante – fizemos o character set inteiro e, ao invés de ficar testando vários desenhos para a identidade, ela era a própria tipografia. Uma vez que já se entendeu a estrutura básica das letras, já faz mais sentido desenhar direto no computador. Quando ainda não se tem essa consciência, corre-se um risco muito grande de a fonte ficar molóide, perdendo tensão nas curvas, pois acabamos querendo usar ferramentas para deixar reto o que é inclinado e criar uma circunfe- rência perfeita para o que é uma curva mais assimétrica. E, então, podem ir por água abaixo algumas coisas de ritmo. Não que não se possa fazer isso – na história já houve pessoas que investiram bastante energia tentando fazer fontes mais geométricas, mas não é esse o meu interesse nesse momento.

Gomes: Na sua opinião quais são as particularidades dessa atividade em relação a outros campos do design gráfico?

O tempo. Desenhar uma fonte pode ser um processo muito longo. Cada designer vai ter seu tempo, obviamente, dependendo da maneira como ele se relaciona com essa profissão e com essa prática, mas para mim sempre foi um processo longo. Por mais rápido que se trabalhe, fazer uma fonte para texto não é algo que acontece da noite para o dia. É um trabalho lento, que requer paciência. É um trabalho diligente, que tem uma sobrevida um pouco maior. Não dá para gene-

180

ralizar, mas acho que grande parte do trabalho do designer, hoje em dia, envolve questões, às vezes, um pouco superficiais demais, até por uma questão de ritmo de mercado. As pessoas acabam fazendo coisas com valores estéticos muito efêmeros e com isso a sobrevida se torna menor. Quando se desenha uma fonte para texto se sabe que é um trabalho um pouco mais complexo. Não que não se possa ter isso no design gráfico também. É óbvio que tem, depende de quem está fazendo. Mas, de uma maneira geral, me interessa essa densidade típica do desenho de tipos para texto. É curioso, porque geralmente se tem um tempo inicial, de um ou dois meses, que parece muito interessante e prazeroso em termos de desenho, mas ele exige um modo de pensamento que é o de criação de sistema. É a formalização de um desenho para transformar aquilo num grande sistema, que pode ser usado por qualquer outra pessoa depois. É uma ferramenta que eu vou usar, mas que outra pessoa pode vir a usar também. Então envolve esse aspecto de sair do controle de quem a concebeu, em algum momento. É claro, se o designer escolher isso, porque ele pode também escolher não querer comercializar. Mas faz parte, também, do desenho de tipos para texto o fato de ele sair do controle do criador, em algum momento. Ele tem essa primeira etapa que é muito curiosa em termos de criação de formas, mas depois que já foram feitas as minúsculas e alguns numerais é um exercício de criação do sistema – é terminar o character set, estender essas formas para uma família inteira. E, então, é um trabalho de tenacidade. Exige um outro tipo de foco – o de um trabalho de longo prazo.

181

Felipe Kaizer

Gomes: Como surgiu seu interesse pela tipografia? E como você começou a pro- duzir tipos digitais?

Lembro que durante a faculdade [PUC-RJ] existiam aulas de tipografia e talvez esse tenha sido meu primeiro contato mais profundo com o assunto. Mas acho que o interesse mesmo surgiu quando eu fiz um curso de desenho de tipos para texto com o Eduardo Berliner. A notícia do curso me veio por acaso, mas durante seu desenvolvimento eu investi tanto, que as coisas começaram a render frutos naturalmente. Já tinha feito, antes, duas fontes display, durante a faculdade. Coisas muito rápidas, mas que não me deram o estímulo que eu senti alguns anos depois. Geralmente as pessoas começam a fazer isso pensando, sobretudo, naqueles desenhos sistemáticos através de grid. Deve haver várias iguais, mas é interessante, por que ali tive pelo menos a noção de desenho, não de uma família, mas de várias letras – o conjunto condicionando o desenho.

A Inocência, minha primeira fonte para texto, foi iniciada durante as aulas do Eduardo e foi toda desenvolvida em programas de desenho vetorial. Só fui siste- matizá-la depois que tinha acabado o curso. Inclusive eu tinha que montar a linha copiando as letras no Illustrator, puxando letra por letra na mão, formando palavras, depois formando linhas, copiando e fazendo parágrafos. Ridículo.

No primeiro trabalho em que a fonte foi impressa em off-set, feito na Tecnopop em 2006, foi a primeira vem em que eu percebi que existia um desenho que eu poderia utilizar. Ainda não tinha caixa-alta, nem numerais, mas ali eu senti que já existia uma fonte – era o resultado de mais de um ano de trabalho. A segunda vez que eu senti que tinha feito uma fonte foi no final da graduação quando fiz um trabalho teórico e usei a Inocência. O trabalho não era sobre a fonte, mas ao mesmo tempo tinha um significado muito grande para mim o fato de ele ter sido composto dessa maneira. Ali eu senti que já tinha alguma coisa feita, não era mais só um processo.

182

Gomes: O que o levou a criar a família Inocência?

De alguma maneira, criar um tipo para texto era a proposta do curso. Sobre o que me levou a fazê-la com esse desenho específico, me lembro que no começo eu queria ter uma tipografia para texto que não fosse tão idiossincrática, que tivesse um tom mais baixo, que falasse menos, que fosse mais tradicional, que não tivesse tanta experimentação no tipo de desenho. A idéia era que eu conseguisse pelo menos confiar que o trabalho, ao longo do tempo já daria uma fonte nova, que eu não precisaria fazer um esforço enorme para fazer algo inédito – a própria tentativa de fazer uma fonte tradicional já geraria, naturalmente, um desenho inédito. O Eduardo [Berliner] costumava perguntar para os alunos em que eles gostariam que a fonte fosse aplicada no futuro. Me lembro de ter pensado em textos de filosofia e literatura, em especial um texto chamado Cândido, do Voltaire. Queria incorporar ao trabalho a ingenuidade de quem está começando a fazer alguma coisa. Esse texto ficou na minha cabeça. Depois, em um trabalho posterior, vi que ela funcionava muito bem também para poesia. Foi algo que eu não tinha percebido, mas ela tem um desenho que parece combinar também com verso, não sei por quê.

Então foram esses os aspectos. Mas certamente também havia uma questão técnica de querer gerar uma massa de texto clara. Ela é quase fina demais para o peso de um romano, mas eu deixei assim, pois a massa me agradou naquela tonalidade de cinza. Outra questão que era importante para mim, além da questão da cor, é que ela funcionasse bem em tamanhos menores. Isso foi decisivo para determinar a altura-x, por exemplo.

Gomes: Como o projeto (Inocência) começou a tomar forma?

O projeto seguiu muito a onda do curso. Eu precisei aprender um mínimo de caligrafia, precisei conhecer o básico da estrutura das letras feitas com uma pena de ponta chata. Mas desde o começo eu tentava desenhar com lápis e com caneta, com instrumentos que me levavam a desenhar as duas linhas de contorno para chegar a um traço. Às vezes é mais difícil começar por aí do que começar por uma ponta chata. O desenho de contornos dá uma liberdade maior para as curvas, de

183

modo que a pessoa que não está acostumada acaba se perdendo, já que a relação entre finos e grossos se complexifica nas curvas. Uma coisa que eu me arrependi depois foi ter pulado dos primeiros rascunhos direto para o computador. Nesse momento eu tinha basicamente uma estrutura de “h” e, então, fiz o “m” e o “n”. Mas no computador as decisões são de outra natureza. Quando ainda nem se decidiu direito sobre o encontro de uma curva com uma reta, de nada adianta ficar tentando experimentar serifas. É como se fosse trocada a ordem das decisões. E eu passei por esse processo de talvez ter ido pelo caminho errado, de ficar muito preocupado com certas coisas, sem que as outras tivessem sido decididas. Mas, a despeito de isso tudo, eu continuei trabalhando. Mesmo que os desenhos de curvas estivessem estranhíssimos no começo, eles foram se acertando, pois eu continuei olhando, continuei consertando e, eventualmente, voltando a desenhar à mão.

Lembro ter observado algumas referências como a Times New Roman [de Stanley Morison & Victor Lardent], a Dolly [da Underware] e principalmente a Minion [de Robert Slimbach], não tanto pelo seu desenho, mas pela qualidade do sistema. Queria fazer um tipo com pouco contraste e desconfiava que isso iria funcionar bem nos corpos menores. Meus desenhos manuais, a princípio muito descompromis- sados, funcionavam muito mais por observação: eu editava direto no vetor olhando ao mesmo tempo para esses desenhos quase caricatos, imprimia, julgava e conser- tava. Isso dava muito mais trabalho. Quando se desenha a mão, algumas decisões de curvas acontecem naturalmente – sua mão e seu olho já vão consertando. Quando se desenha nas curvas de Bézier é completamente diferente.

Comecei pelo “h”, “m” e “n”. A parir do “n”, já fazia alguns esboços de “r”, “i” e “u”. A partir do “p” já dava pra tirar os outros counters do “d”, “b” e “q”. E ainda mantinha um desenho de “a” paralelamente. A letra “o” só veio tarde demais, talvez. Percebi isso quando foi proposto no curso que escrevesse a palavra “plano”. Eu particularmente sinto uma grande dificuldade no desenho do “o”. Então desenhei várias letras “o” diferentes. Tentava também fazer o “g” e o “s”, porque nesse momento já tinha em vista a palavra “hamburgervious” que eu iria ter que compor no final. Começava a trabalhar em pares, trios, seqüências de 4 e 5 letras. Nesse momento já tinha consciência, talvez pelo fato de o Eduardo sempre voltar à essa questão, de que era preciso se julgar o sistema e não um glifo sozinho. Então

184

montava pequenos parágrafos no programa de desenho vetorial Adobe Illustrator, imprimia em jato de tinta e observava.

Continuei. As serifas acabaram ficando um pouco mais tradicionais, um pouco menos ousadas. Enfim, eu não estava querendo ser ousado, estava querendo desenhar uma fonte de texto, entender o que era isso. Com o tempo muitas formas que antes chamavam atenção, aos poucos foram sumindo na massa, justamente pelo excesso de trabalho, como se estivesse mexendo em um pedaço de ferro, lixando e amassando a curva até ela, na massa, desaparecer. Hoje eu olho a fonte na massa de texto e acho bom, eu não mexeria. Muitas coisas eu pensei em modi- ficar depois, mas por achar que ela está funcionando num nível muito regular, eu não mexo mais. Acho que já é uma questão de personalidade da própria fonte. Eu tenho muitas reservas para mexer em algumas letras. Uma vez comentei isso com o Eduardo e ele disse “Se você continuar mexendo vai acabar desenhando a mesma fonte para sempre. Vai pegar todas elas e começar a transformar na mesma.”

Quando passei os vetores para o Fontlab, eu já tinha a maior parte do conjunto das minúsculas. Depois faria alguns primeiros rascunhos de caixa-alta. Os numerais, por incrível que pareça, foram muito rápidos.

O itálico foi muito mais desenhado à mão, utilizando papel vegetal, com uma linha de base e uma linha de altura-x. Isso poupou muito tempo. Depois disso, escaneei e vetorizei manualmente por cima do desenho, com as curvas de Bézier. Depois que já se tem “n”, “a”, “v”, “o”, “s”, “c” e “e”, já se pode relaxar mais e consertar algumas coisas no computador. O tempo todo, quando desenhava o itálico, tinha meu romano ao lado e talvez por isso tenha acertado quase de primeira. É difícil acertar a cor do romano com a cor do itálico na massa de texto. O itálico teve que ser um pouquinho mais leve, só para o cinza chegar no mesmo tom.

De um certo modo, as coisas funcionavam no tempo. Eu não estava desenhando uma família para ser completa imediatamente. Estava desenhando algo que eu precisava para dali há 3 meses. O tempo todo a evolução do desenho ia sendo pontuada por trabalhos. Hoje em dia eu uso a Inocência em alguns projetos e eventualmente algum amigo meu me pede para usar em algum trabalho específico.

185

Houve um projeto teórico de um amigo meu em que ele também compôs com a Inocência. Eu fiquei muito feliz em poder mandá-la para alguém e não ser respon- sável pelo seu uso. Eu achei a entrelinha grande demais e várias outras coisas, mas, principalmente, achei muito bom que alguém fez alguma coisa diferente. Agora ela teria uma vida própria. Passaria a ser um fenômeno que poderia ser compar- tilhado e que então foge do meu controle.

Uma das coisas que me anima a desenhar é justamente essas ocasiões, quando eu acho que ela casa bem com um projeto. E felizmente tem casado.

Gomes: Quais outros projetos tipográficos você já fez? Como surgiram?

Bom, só tem mais um. Eu a chamo de Banzo, por enquanto. É a fonte em que eu estou trabalhando nesse momento. Na época em que eu estava desenhando a Inocência eu fazia esboços e me lembro que alguns deles eram de natureza diferente. Havia muita coisa ainda com estrutura de ponta chata, com mais contraste entre finos e grossos, mas eu sabia que eu queria tipos mais violentos. Eu lembro que esses desenhos já eram um prenúncio de que eu iria desenhar algo que seria muito mais forte – quase que o oposto da Inocência –, de uma brutalidade das formas, de uma certa rispidez nas decisões de curvas e de retas. Eu tentei fazer, no “n”, o desenho manual mais fiel ao que eu iria fazer no final, no vetor. Queria investigar algumas questões de desenho no computador. Ficava pensando que, talvez um tipógrafo antigo que já tivesse acesso ao computador não iria ficar ten- tando fazer uma coisa parecer outra. Em alguns momentos ele iria partir para uma reta. No entanto desenhei muito na mão o “n”, desenhei os counters do “d”, “b”, “p” e “q”, tentava fazer o “a” e o “r” também, pensando sempre, nesse caso, nos pontos do vetor.

Algumas fontes que eu olhava muito eram a Arnhem e a Renard [de Fred Smeijers], a Swift e a Gulliver [de Gerard Unger], a Scala [de Martin Majoor] e a própria Formica do Eduardo Berliner. E lembro que uma que me ajudou a tomar a decisão de ser menos espalhafatosa, desde o começo, foi a Electra [de W. A. Dwiggins].

186

Gomes: Na sua opinião quais são as particularidades dessa atividade em relação a outros campos do design gráfico?

A primeira particularidade diz respeito à tradição dessa atividade. Em tipo- grafia não se pode em nenhum momento ignorar esse fato. O critério para se julgar uma fonte está tão atrelado ao que foi o desenvolvimento da tipografia durante séculos que não se consegue abrir mão do que esses séculos legaram em termos de forma. Então acho que existe uma especificidade de forma que uma tradição, muito presente, garante. Mas existe também, talvez, em relação a essa questão da tradição, a incapacidade de se fugir dela. De alguma maneira parece que outras atividades de design conseguem lidar com mais leveza com o que é o passado.

Podemos encarar a tipografia de várias maneiras. A começar, como dese- nho, como relação entre preto e branco, ou como questão conceitual, ou seja, como meio de transmissão de conteúdos de outra natureza. Eu sempre tenho muita dificuldade em falar sobre a especificidade de qualquer coisa, porque muitas vezes procuramos a essência do que é uma coisa no seu resultado final e talvez essa seja apenas uma das maneiras de se abordar a questão. Podemos também tomar o processo de fazer essa coisa como o que dá especificidade a ela, e então talvez seja até mais fácil reconhecer o que é e o que não é uma atividade tipográfica, quem são as pessoas que realmente levam uma atividade tipográfica ou não. Há também a possibilidade de definir uma coisa não só pelo seu processo, não só pelo que é seu objeto final, mas também pelo que é o efeito desse objeto sobre um público, a princípio, indeterminado. O Fred Smeijers, por exemplo, costuma frisar que a tipografia, a despeito de toda preocupação interna com as formas, é um aspecto fundamental da civilização ocidental. Isso tudo, ao invés de particularizar, parece explodir a idéia do que é a atividade tipográfica.

187

ANEXO 3

Entrevistas estruturadas B: 10 designers de tipos brasileiros

Entrevistas realizadas por correio eletrônico em janeiro de 2010, visando obter informações pontuais sobre projetos e iniciativas independentes brasileiras de produção de tipos digitais. Grande parte das entrevistas foi possibilitada por um contato presencial anterior com os designers em questão e efetivada posteriormente por meio da Web. As perguntas formuladas seguem em itálico, com as respostas dos designers em estilo romano.

Claudio Rocha

Gomes: Poderia falar um pouco sobre como se deu o seu contato com a ITC? Em que ocasião e de que maneira começou a distribuir algumas de suas fontes por essa empresa?

Para responder a essa pergunta, preciso retornar um pouco no tempo para explicar como resolvi me dedicar à produção de fontes digitais:

A tipografia surgiu no início da minha profissionalização, quando tive consci- ência de que não se pode fazer design gráfico sem conhecer tipografia, absolu- tamente. Eu entendi isso por mim mesmo, pois não havia escolas ou professores e nem livros disponíveis em português. Não se discutia tipografia nos anos 1970 e 1980. Não existiam computadores e, por exemplo, eu precisava desenhar capri- chosamente as letras dos layouts das capas de livros que apresentava aos meus clientes. No meio da década de 1990 entrei em uma crise profissional. Estava profundamente descontente com o meu trabalho como designer gráfico, com a

188

relação com os clientes e com os projetos que vinha desenvolvendo. Olhando para trás, vi que o desenho de alfabetos era uma coisa que me enchia de ânimo. Eu já desenhava alfabetos desde 1980, de maneira errática. Cheguei a participar do primeiro e único concurso promovido pela Letraset do Brasil, em 1987. O juiz do concurso foi Colin Brignall, então o diretor artístico da Letraset International. Eu já comprava livros e revistas sobre o assunto, coisas raras de encontrar naquele período. Uma das poucas fontes de informação era o jornal Upper&lowercase, editado pela ITC – International Typeface Corporation. Era uma ferramenta de marketing – brilhante, diga-se de passagem – distribuída gratuitamente, em todo o mundo. Eu consegui “assinar” o U&lc pessoalmente, em uma visita feita à sede da ITC em Nova York, especialmente com esse objetivo...

No meio dessa “crise profissional”, lendo um exemplar do U&lc, eu encontrei a propaganda de um congresso de tipografia que iria acontecer em Haia, na Holanda. O ano era 1996. Não tive dúvida, poucas semanas depois parti para o congresso da ATypI, Association Typografique Internationale. Na bagagem, um portfolio com os meus alfabetos...

Chegando lá, me senti pequeno diante de tanto conhecimento, mas imen- samente curioso e maravilhado ao mesmo tempo. Entre os palestrantes estava justamente o Colin Brignall, que fez a apresentação de uma fonte baseada nos letterings do designer escocês Charles Rennie Mackintosh. Logo após a sua pales- tra, modestamente me apresentei e mostrei os meus desenhos. Lembro que o Colin foi extremamente atencioso e que ficou impressionado com o meu trabalho. Mais tarde, mostrei também para o Erik Spiekermann, que também se interessou, mas foi um tanto blasé... na época ele ainda estava à frente da FontShop.

Deixei uma amostra dos meus desenhos com o Colin Brignall. Ele me disse que em seguida ao congresso iria para Nova York, quando apresentaria novos projetos de fontes ao board da ITC – entre eles os meus desenhos. Fiquei exul- tante... submeter os meus desenhos já era um fato extraordinário para mim. Quando cheguei em Haia (o congresso aconteceu no prédio da Royal Academy of Art in The Hague, onde já era realizado o curso Type Design and Typography, precursor do conceituado Type&Media) eu carregava toda a insegurança da falta de tradição e

189

experiência em tipografia e um discreto complexo de inferioridade latinoamericano... mas também uma profunda crença de que aquele era o meu mundo!

Duas semanas depois, recebi uma carta do Colin dizendo que dois dos meus alfabetos haviam sido selecionados e seriam publicados e distribuídos pela ITC. Achei inacreditável. E pensar que antes de embarcar para a Holanda eu cheguei a hesitar em levar os meus alfabetos... ele também dizia que faríamos o desenvolvimento da fonte juntos, o que para mim era uma tremenda honra. Depois viemos a nos tornar bons amigos.

Primeiro trabalhamos na fonte Underscript (lançada em 1997) e depois na Gema (que foi para o mercado em 1998). Trocamos várias cartas, com um vai e vem de provas e anotações. Ainda guardo toda essa documentação. Após todos os refinamentos necessários, que funcionaram como uma espécie de curso particular por correspondência, passamos ao desenvolvimento dos arquivos de fonte, no Fontographer, com supervisão de Ilene Strizver, da ITC. Do lado de cá do Equador, eu trabalhava sem descanso. No final, a fonte teve a revisão técnica do Steve Zafarana, type designer e um dos fundadores da typefoundry Galapagos.

Para fechar com uma grande chave de ouro, cada fonte foi resenhada e publicada em uma edição do jornal U&lc... coisa que nunca pensei que pudesse acontecer. Ainda tive uma grata satisfação material, ao receber pelo correio um cheque de US$ 4,000.00 como adiantamento de direitos autorais!

Gomes: Em relação às suas famílias tipográficas distribuídas comercialmente pela ITC (Gema e Underscript), o que esses projetos representam dentro de sua trajetória no design de tipos?

Sem dúvida, foi um estímulo imenso e ao mesmo tempo uma responsa- bilidade ter duas das minhas primeiras fontes no catálogo da ITC. Mais do que simplesmente desenhar alfabetos e produzir fontes, o acesso ao mundo da tipo- grafia, e o contato com personagens reais que antes eram nomes que apareciam para mim no menu de fontes, abria uma perspectiva indescritível. No mesmo con-

190

gresso eu me qualifiquei como delegado brasleiro da ATypI e, como uma missão auto-imposta, editei uma revista com fontes e desenhos de alfabetos produzidos no Brasil para levar ao congresso do ano seguinte (o evento seria realizado em Reading, outro berço sagrado da tipografia). Juntei trabalhos de Tony de Marco, Eduardo Bacigalupo, Guto Lacaz, Rubens Matuck e Tide Hellmeister e coloquei em uma revista que recebeu o nome de Última Forma typography. Na época o meu estúdio se chamava Última Forma. O discurso aqui era iniciar um intercâmbio de informações e experiências entre o Brasil e o cenário internacional da tipografia.

Mas ao mesmo tempo eu dividia o meu tempo entre a tipografia e a atuação como designer gráfico comercial. O fato de ter as fontes distribuídas pela ITC não favoreceu uma possível profissionalização como type designer. Eu continuava a desenhar alfabetos, mas no meu tempo livre era absorvido pela pesquisa histórica, técnica e de linguagem tipográfica. Não me dispus a produzir fontes de texto, embora tenha vários projetos apenas iniciados ou pela metade. Minha indisciplina e uma queda por fontes display, somada à tendência “experimentalista” daquele período, me afastaram do árduo desenvolvimento de famílias de fontes para texto.

Em 2000 iniciei a publicação da Tupigrafia com o Tony de Marco. Era o suporte perfeito para os nossos experimentos e pesquisas. A partir de 2003 reduzi drasticamente o trabalho como designer gráfico comercial, passando a desenvolver quase que exclusivamente projetos relacionados com a tipografia. Isso inclui o ensino da tipografia, a realização de dois congressos em São Paulo (o DNA Tipo- gráfico) e a representação comercial da Linotype no Brasil. Continuo a desenvolver projetos de fontes, mas o meu interesse central passou a ser a edição de livros e revistas sobre tipografia e a gestão da Oficina Tipográfica São Paulo, junto com o Marcos Mello.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, processo de criação e/ou no seu resultado final dessas duas famílias?

A ITC Underscript foi baseada na minha escrita pessoal, algo recorrente na tipografia digital... é uma fonte com caracteres maiúsculos e pouca variação de

191

espessura entre as hastes. Cada caractere tem um glifo alternativo, colocado na posição das letras minúsculas do teclado.

A particularidade da fonte é sua extrema variação da largura e da altura dos caracteres, resultando em formas com proporções bem distintas. Aguns glifos são compactos e expandidos ao mesmo tempo, enquanto outros são estreitos e altos. Todos estão alinhados por uma baseline “central”, ou seja, devido à variação de altura dos caracteres, eles foram centralizados horizontalmente. As terminações são arredondadas e os traços organicamente irregulares, similares ao produzido por uma caneta hidrográfica com ponta grossa.

A ITC Gema é uma falsa stencil e foi produzida a partir de letras bem pequenas, escritas em uma folha de papel com textura rugosa. Dessa maneira, quando ampliadas, as formas das letras retêm a irregularidade do suporte. É uma fonte de caracteres maiúsculos com caracteres alternativos e uma grande quan- tidade de ligaturas, sendo algumas com três letras, que enfatizam o seu caráter manuscrito. O efeito stencil não segue o padrão desse tipo de letra; as interrupções nos traços são aleatórias, mas mesmo assim asseguram o aspecto visual das letras stencil.

Outra característica é o alongamento das barras em alguns glifos, ide- almente aplicados no final de palavras. As curvas são ligeiramente angulares, enquanto alguns traços são discretamente curvos.

192

Priscila Farias

Gomes: Poderia falar um pouco sobre como se deu o seu contato com a T-26? Em que ocasião e de que maneira começou a distribuir algumas de suas fontes por essa empresa?

Meu primeiro contato com a T-26 ocorreu quando o Carlos Segura e a sua mulher, Sun, estiveram no Brasil convidados pela Bienal de Design Gráfico da ADG. Eu mostrei as fontes que fazia para ele, e ele gostou. Depois que eles voltaram para Chicago, eu mandei amostras da Cryptocomix, da Quadrada e da LowTech, e eles concordaram em distribuí-las.

Gomes: Em relação às suas primeiras famílias tipográficas distribuídas comer- cialmente pela T-26 (LowTech, Quadrada), o que esses dois projetos representam dentro de sua trajetória no design de tipos?

Quando desenhei estas fontes, e a Cryptocomix também, eu estava espe- cialmente interessada em abordagens experimentais para o design de tipos.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no resultado final dessas duas famílias? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que a influenciaram?

A LowTech foi inspirada por desenhos de letras tridimensionais presentes em cartazes 'lambe-lambe' paulistanos. A Cryptocomix é uma fonte dingbat que serve para 'escrever' histórias em quadrinhos: os personagens estão nas vogais (com variações de expressão nas letras acentuadas), os cenários nos sinais de pontuação e os textos nas consoantes. A Quadrada foi desenvolvida a partir de caracteres que usei nas consoantes da Cryptocomix. Eu tentei desenhar caracteres geometricamente muito simples, sem curvas e com poucos pontos, para não deixar

193

o arquivo da Cryptocomix pesado demais. Eles foram desenhados diretamente no Illustrator, sem nenhum esboço preliminar. De alguma maneira, o processo de desenho das letras da Quadrada me lembra o processo de desenho de letras em xilogravura, onde se inicia com uma área preta, e o desenho surge a partir da remoção de pedaços desta área, que ficam em branco. Também acho interessante o fato dela ser muito geométrica em seus contornos, mas ao mesmo tempo orgânica em seu desalinhamento horizontal.

Gomes: Sobre a fonte Seu Juca, exposta na Bienal da ADG de 2002 e agora também disponível comercialmente, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Desenvolvi esta família por que fiquei muito fascinada pelo trabalho do Seu Juca. Tenho ainda vontade de desenvolver outras fontes baseadas nos desenhos dele. Em seguida, ganhei o prêmio na Bienal, e muita gente, especialmente em Recife, ficou sabendo e se interessou por este trabalho e pelo trabalho do Seu Juca. Mas não me sentia à vontade para distribuí-la comercialmente, pois não queria que alguém ficasse achando que eu estava lucrando a partir do trabalho do Juca, que era um cara muito simples, morando de favor nos fundos de uma sapataria. Durante alguns anos, preferi enviar os arquivos gratuitamente para pessoas que solicitavam a fonte para fins não-lucrativos relacionados ao próprio Juca ou à cultura local. Hoje, fico feliz ao pensar que, de alguma forma ajudei o Juca a se tornar uma quase- celebridade em Recife, a ponto do dono de um bar estiloso ('O Fiteiro') oferecer a ele abrigo quando a sapataria fechou, e ter, até hoje, suas placas decorando as paredes, e sua história no site. Depois que ele faleceu, me senti mais confiante para propor a distribuição da família que leva o seu nome, e faço questão de deixar sempre claro que trata-se de uma homenagem. Acredito que temos muito a aprender com letristas populares, como ele.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, processo de criação e/ou no resultado final da família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que a influenciaram?

194

Como disse, a motivação inicial foi meu fascínio pelo trabalho do Seu Juca. Lembro-me até hoje de como fiquei intrigada ao ver a fachada da sapataria, submersa em placas coloridas, pela primeira vez. Estava passando pela rua de carro, com o Buggy, e estávamos atrasados para alguma coisa, não deu para parar. Na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz quando acordei foi voltar lá para fotografar tudo o que pudesse e conversar com o autor das placas. Voltando a São Paulo, preparei um artigo para a Tupigrafia no qual fazia uma análise dos estilos de letras pintados pelo Juca. As letras que simulavam tridimensionalidade, com som- bras curiosas, foram as que me pareceram mais originais. Comecei redesenhando algumas, que estavam pintadas em uma placa que comprei, para escrever o título da matéria, e depois me animei e completei um conjunto básico para ortografias européias ocidentais. É claro que tive que inventar muita coisa, como a arroba e o e- comercial, que o Seu Juca nunca desenhou. Trabalhei no Illustrator, traçando veto- res à mão sobre algumas imagens fotografadas, depois expandindo e 'entortando' os traços. As variações dentro da família, apesar de funcionarem vinculadas às variacões de negrito e itálico, não são de peso ou de inclinação, mas sim no posicionamento das sombras.

195

Leonardo Costa (Buggy)

Gomes: Poderia falar um pouco sobre quando, onde e de que maneira se deu o surgimento do grupo Tipos do aCASO? Quais foram seus fundadores e seus objetivos iniciais?

Em janeiro de 2000, Solange Coutinho, Márcia Maia, Moema Cruz, Miguel Sanches e eu decidimos formar um grupo de estudos dedicado à tipografia. Estávamos fascinados por este assunto e empolgados com o sucesso de uma exposição montada poucos meses antes, em novembro de 1999. Fizemos tudo às pressas para viajarmos à Fortaleza atendendo a um convite do Instituto Dragão do Mar. Demos alguns telefonemas e em poucas horas havíamos reunido 19 fontes TrueType de amigos. Aproveitamos a ocasião e fizemos um folheto para divulgar as nossas fontes. Tudo foi impresso e embarcamos para o Ceará. Pronto, surgia a Tipos do aCASO.

Nos anos seguintes produzimos catálogos de nossas próprias fontes, pequenos objetos e uma série de materiais promocionais. Inventávamos nosso próprio jeito de fazer tipografia. Reverenciávamos o movimento O Gráfico Amador, mas buscávamos freneticamente entender os processos que nos levariam a produzir fontes digitais melhores. Promovemos uma série de cursos, exposições e fóruns com a generosa ajuda dos amigos Priscila Farias, Billy Bacon, Tony de Marco e Claudio Rocha. Em paralelo, outros amigos, Cecília Consolo, Márcio Shimabukuro, Henrique Nardi, José Bessa e Cláudio Reston cuidavam de ajudar em nossa divulgação pelo eixo Rio/São Paulo.

Crescemos e aparecemos. A Tipos do aCASO ganhou um CNPJ e virou uma unidade de negócios dentro de uma empresa de design. Acrescentamos alguns zeros nos preços de nossas fontes, modificamos a forma de encarar nosso trabalho e conquistamos alguns prêmios. O choque cultural foi inevitável e a informalidade que regia o aCASO, coletivo que deu origem à ‘Tipos’, não encontrou mais espaço frente a nova realidade. Durante os últimos anos alternamos momentos de maior e

196

menor atividade na internet, de acordo com o direcionamento de interesses comer- ciais e estratégicos de nossa marca. Contudo, mantivemos firme e crescente nossa produção.

Hoje, vivemos mais um momento de renovação. A primeira font house pernambucana se reinventa e surge com muitas novidades. As dicas a respeito de desenho divulgadas em nosso antigo site germinaram e deram origem a um livro, O MECOTipo. Publicação que trata de um método de ensino recheado de informações sobre design de tipos. Também produzimos novas fontes, novos impressos, novo site. Enfim, estamos de ânimo renovado.

Gomes: Quais foram suas principais referências no desenvolvimento de novas fontes dentro do grupo?

No início da produção não tinhamos nenhuma referência. Pouco ou quase nada que tratasse de tipografia nos chegava. Não havia livros, catálogos, revistas. Não tínhamos acesso a nada. Falo do período que compreendeu 1995 a 2000. Mais tarde começamos a nos relacionar com designers de outros estados e países. Também o mercado editorial brasileiro tornou-se mais interessante e nossos recur- sos maiores. Tudo ficou mais fácil. A internet também ajudou bastante.

Para mim, falar objetivamente de referências somente é possível hoje. Os desenhos de , Gill, Brody e Hoefler são constantes inspirações para meu trabalho. Porém, atualmente, considero sobretudo a produção da Época Vitoriana. Antes da segunda metade desta década toda e qualquer influência era discreta, ou melhor: inconsciente. Os trabalhos da T-26, Emigre, House Industries e tantas outras font houses era visto, mas pouco assimilado, acredito. Minha produção estava muito voltada a um exercício empírico do fazer letras a partir de tudo o que acreditava ser interessante.

197

Gomes: O grupo comercializava/comercializa suas fontes produzidas? De que modo? Como foi essa experiência de distribuição da produção?

Durante muito tempo a Tipos do aCASO comercializou suas fontes. Inicial- mente vendíamos tudo o que fazíamos. De R$15,00 a R$35,00 custava a licença de uso de cada fonte. Vendíamos de porta em porta para as agências de publicidade, via web e em estandes nos eventos de design. Todos os colegas nos diziam que esta prática não era rentável e que tipografia não dava dinheiro. Bem, durante o primeiro DNA Tipográfico revelamos nossa receita com esta operação. Foi um escândalo. Descobrimos que havíamos vendido mais do que qualquer outro grupo ou profissional na época envolvido com tipografia no Brasil. Ganhamos dinheiro. Mas, também o gastamos alucinadamente.

Quando a Tipos virou unidade de negócios, a coisa mudou de figura. Passamos a desenvolver fontes sob demanda e a cobrar alto, inserindo tipografia em projetos maiores de design. Uma experiência muito lucrativa, em todos os sentidos. Utilizamos a tipografia como pivô para várias vendas na empresa, chegan- do mesmo a responder por 60% de seu faturamento. Sim, tipografia dá dinheiro. É uma questão adequação de modelo de negócios e condução capacitada de pro- cesso de vendas.

Atualmente não comercializo mais minhas fontes. Trabalho para que num futuro próximo possa retomar este esforço, apoiado numa ferramenta como o Myfonts.

198

Beto Shibata

Gomes: Poderia falar um pouco sobre quando, onde e de que maneira se deu o surgimento do grupo Tipos Maléficos? Quais foram seus fundadores e seus obje- tivos iniciais? Permaneceu ativo até qual ano?

Surgiu na época da faculdade, com três amigos jovens designers (Eu, Crystian Cruz e Marcus Colete) querendo ter algum destaque (e lucro obviamente) com a disciplina de tipografia que até então era pouco explorada. Começamos em 1998 e durou mesmo até 2000, ano da conclusão do curso.

Gomes: Quais foram suas principais referências no desenvolvimento de novas fontes dentro do grupo?

Na época eu via bastantes coisas do Neville Brody, David Carson descons- truindo tipografias, e isto dava uma liberdade para querer estragar umas fontes também. Os catálogos e revistas como T-26, House Industries, Emigre, U&lc. Por aqui conheci e troquei muita informação com o pessoal da Subvertaipe (Tonho, Bleque e Eduardo [Berliner]), Caótica (Leonardo Eyer), Tipopótamo (Elesbão e Haroldinho).

Gomes: O grupo comercializava suas fontes produzidas? De que modo? Como foi essa experiência de distribuição da produção?

Isto foi uma piada, ninguém pagava para conseguir fontes. O que mais a gente gostava de fazer era o material de divulgação: catálogo, camisetas, posters, adesivos. Pedi até um empréstimo para o meu pai na época, jurando que aquele negócio era do futuro e que logo eu lucraria para devolver o dinheiro para ele. Para mim, o que serviu como recompensa no final foi que consegui uns 2 ou 3 empregos por causa do material de divulgação da Tipos Maléficos. Mas vender mesmo nunca rolou.

199

Tony de Marco

Gomes: Em relação à família tipográfica Samba, atualmente distribuída pela Linotype, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Representa o reconhecimento internacional do meu trabalho devido à dupla exposição na Typecon 2004, em San Francisco, onde ocorreu a premiação do Linotype International Type Design Contest e quando pude dar uma palestra expli- cando o processo criativo da família. A partir daquele momento pude estreitar laços de amizade com type designers do mundo todo, alguns deles meus ídolos.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

A motivação inicial foi uma matéria para a revista Tupigrafia nº 4 (2003). Uma fonte, originalmente chamada “Melindrosa”, foi desenvolvida para ilustrar tal artigo, baseada nos minúsculos caracteres com os quais J. Carlos escrevia as datas e o preço nas capas das publicações que ilustrou. A pesquisa se deu com a ajuda do desenhista, caricaturista e pesquisador Cassio Loredano. Ao mostrar a revista na Typecon daquele ano fui estimulado por amigos a desenvolver uma família para o concurso da Linotype. As versões “Regular” e “Bold” são uma transposição das letras de J. Carlos enquanto que a versão “Expert” é uma criação minha, desen- volvida por Caio de Marco, baseada nas formas espiraladas das ferragens de portões e grades do século XIX e início do século XX.

200

Eduardo Omine

Gomes: Em relação à família tipográfica Beret, atualmente distribuída pela Linotype, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

É um marco importante. Em primeiro lugar, representa a passagem de um período de estudos para um período de produção "autoral". Comecei a desenvolver fontes em 1999. Em 2002 meu TFG na FAU [USP] foi um projeto de família tipo- gráfica. Em 2003 passei a participar freqüentemente do Typophile e a importar vários livros de tipografia através da Amazon.

Foi com a Beret, desenvolvida em 2003, que consegui alcançar um equilíbrio entre técnica e personalidade: o desenho "correto" das letras com a personalidade geral da família tipográfica. Acho que a UltraGotica e a Nabuco, que vieram depois, também são bons exemplos dessa conjunção entre técnica e personalidade, um aspecto que considero essencial em type design. Em retrospecto, acho que os trabalhos anteriores à Beret não tinham esse equilíbrio.

Em segundo lugar, ela representa o reconhecimento internacional e a inserção no mercado internacional. A menção honrosa no concurso da Linotype, que contava com um júri de gigantes como Erik Spiekermann, Gerard Unger e Ed Benguiat, além de Jill Bell, John Hudson e Akira Kobayashi, foi uma grande recom- pensa. Depois desse prêmio, fiquei mais empolgado com o type design e decidi que passaria a vender meus trabalhos seguintes através do MyFonts.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

201

Não lembro de detalhes específicos do processo. Também não lembro de ter tido um objetivo específico, a não ser continuar a melhorar meu trabalho de type design, e conseguir me inscrever no concurso da Linotype.

Acho que a referência mais óbvia foi a FF Meta, uma família que consegue ter uma personalidade forte, com detalhes idiossincráticos, e ao mesmo tempo passar uma imagem de clareza e solidez.

202

Yomar Augusto

Gomes: Em relação à família tipográfica Den Dekker, exposta na Bienal Letras Latinas 2006, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus obje- tivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

O projeto Dendekker visava uma mistura entre a caligrafia e a tipografia no primeiro plano, com um segundo objetivo de entender um pouco mais sobre types de texto e suas particularidades de construção, e detalhes. Mas o desenho ainda não está finalizado, vou expandir a Dendekker com um bold italic.

Nunca foi minha meta me tornar um "type designer" para tipos de texto, meu objetivo sempre foi desenhar logotipos customizados e tipos display de qualidade. Porém ter investido 1 ano da minha vida nesse estudo, expandiu muito minhas possibilidades. Até hoje, quase 4 anos depois do MA na KABK, em Haia, sinto que todo meu trabalho está baseado naquele ano. Os Holandeses têm a capacidade de entrar no seu cérebro muito forte, são 500 anos de tradição tipográfica, então é importante você saber o quer fazer, ou então eles irão dizer o que você tem que fazer, que às vezes não é o melhor... acho que ter começado o curso com esse objetivo foi importante, porque o escalão superior do curso achava melhor eu seguir por algo dentro de "open type calligraphy typography" que nunca foi a minha meta. No meio desse turbilhão nasceu a Fake Human.

Ainda lembro que coloquei a na parede, a Times também, coloquei um set bem simples A-Z / a-z / 0-9. A Times me ajudou muito no processo da Dendekker, não sei exatamente porque, nunca usei a Times para nada em meu trabalho de design, mas me ajudou. Acho que tipografia tem um pouco de osmose...

203

subconsciente... acho que a Times representa essa relação entre osmose e sub- consciente.

Sendo muito sincero, esse projeto foi uma resposta para algo que eu achava que era capaz de fazer, mas não tinha exata certeza disso, mesmo sabendo das dificuldades e até mesmo das caracteríscas do meu trabalho de design antes do MA. Eu sempre acreditei que, se eu conseguisse fazer um sistema tipográfico de texto naquele momento, eu poderia aprender muito e levar esse conhecimento para a área da tipografia, onde sou mais forte. Atualmente estou desenhando uma gro- tesca. Nunca fiz algo desse tipo e já tenho o set das caixas altas bem definido... Acho que é isso, marca o objetivo, faz e mostra para os amigos mudarem tudo.

204

Fernando Mello

Gomes: Em relação à família tipográfica Mello Sans, que compõe a identidade visual da Bienal Tipos Latinos 2010, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus obje- tivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

MelloSans foi minha primeira tentativa no design de tipos para texto, e começou no ano de 2004. Eu já havia feito algumas fontes display e dingbats, e motivado pelas aulas e pela pesquisa de doutorado do professor da FAU [USP] Vicente Gil Filho, entitulada "A Revolução dos Tipos", resolvi encarar o desafio de desenvolver uma família sans-serif como trabalho de conclusão da faculdade. Estava trabalhando bastante com ilustração vetorial naquela ocasião, e meu controle sobre a bézier tool estava se refinando cada vez mais. Durante 9 meses, desenvolvi então 10 pesos, 5 romanos e mais os 5 itálicos complementares.

O modelo neo-humanista de fontes como Frutiger e TheSans foi o partido adotado pela sua praticidade e funcionalidade em diversos meios. A idéia central do projeto foi fazer uma fonte de texto o mais simples, funcional e legível possível, uma família sem muitas firulas, bem direta ao ponto, uma fonte comportada, com bastante "cara de fonte", afinal era a minha primeira tentativa séria no desenho de tipos. Formas abertas e legíveis, contraste baixo ou moderado e pesos de Light a Black foram empregados, embora o peso Black inicialmente criado estivesse mais próximo do que chamaríamos de Extrabold. As teorias de interpolação de Luc(as) de Groot para a Thesis foram livremente incorporadas para a definição dos pesos. Baseei-me essencialmente na escassa informação presente, nos não tão numerosos livros sobre typedesign ao meu alcance no momento, e também em informações e discussões disponíveis na internet, sobretudo no fórum Typophile. Rascunhos e estudos de proporção foram feitos em papel milimetrado, porém o desenho vetorial

205

no Freehand e posteriormente direto no Fontlab foi o método predominante do projeto. Neo-humanistas como TheSans, FF Kievit, Frutiger, Myriad, foram as mai- ores influências.

Apesar da excelente apreciação do trabalho no Brasil, e da participação no Letras Latinas em 2006, quando cheguei à Reading para fazer o mestrado, fui cada vez mais me convencendo de que a família necessitava de diversos ajustes técnicos e de design também. Mostrei a fonte ao professor Gerard Unger em 2006, que me motivou a redesenhá-la tentando incorporar um partido mais próprio e mais distante do adotado por Luc(as) de Groot na TheSans, que foi, de fato, uma das grandes influências do projeto. Durante 3 anos, fui vagarosamente retrabalhando os pesos light e black (dessa vez criando um verdadeiro "Black") durante 3 anos, até que no início de 2009, fui convidado por Pablo Cosgaya e Patrício Gatti a fornecer uma licensa exclusiva para a família ser a fonte corporativa do Tipos Latinos 2010. De Fevereiro a Julho de 2009, retrabalhei intensivamente a família, reduzindo um pouco o contraste geral dos pesos, retrabalhando proporções, formas, curvas e espaça- mento, e interpolando os pesos intermediários usando um critério mais próprio, completamente diferente das teorias de De Groot. Com o embasamento maior que pude adquirir após um ano em Reading e com mais de um ano trabalhando full-time como membro da Fontsmith, pude conferir à família, de certa forma, uma perso- nalidade maior e uma qualidade técnica muito superior ao design original.

MelloSans representa então o meu primeiro passo no design de tipos para texto, minha primeira tentativa autêntica de criar uma família sans-serif para texto. Uma comparação entre o design original de 2004 e a reformulação em 2009 também deixa claro que o projeto como um todo é uma interessante documentação e evidência da maturidade e evolução que ocorreram profissionalmente comigo nesse intervalo de 4 anos.

Gomes: Em relação à família tipográfica Frida, que foi um dos destaques da Bienal Tipos Latinos 2008, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

206

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, proces- so de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

Frida foi meu projeto prático no mestrado na University of Reading. Minha segunda fonte para texto, dessa vez com serifa. Foi desenvolvida no curso, de meados de novembro de 2006 até Julho de 2007, em 3 pesos romanos, mais um itálico e uma versão Tamil (Tamil é o nome tanto da escrita como do alfabeto, do sul da Índia e partes do Ceilão/Singapura/Sri-Lanka). Posteriormente, fiz os outros dois restantes pesos itálicos. Contou com críticas e acompanhamento dos professores do curso, como Gerry Leonidas, Gerard Unger, Fiona Ross, Victor Gaultney, dentre outros, e foi fruto de um ano inteiro respirando typedesign, vendo muita coisa, lendo muita coisa. A fonte foi inicialmente idealizada para jornais, e suas proporções foram pensadas com características de textos para jornais em mente, como espace- jamento econômico, ascendentes e descendentes curtas, caráter robusto, etc. Por apresentar um caráter robusto, foram incorporadas inktraps para compensação de distribuição de peso e também para melhor desempenho em condições não ideais de impressão. Inspira-se fortemente no modelo Ionic ou Clarendon, das primeiras fontes produzidas especificamente para jornais, porém traz um aspecto mais livre e caligráfico ao modelo, o que pode ser considerado pelos mais puristas como algo não desejável para jornais mais sérios e abrangentes, fazendo assim a família ser indicada também para outros usos como revistas e outros tipos de publicação. Procurei fugir do modelo 'institucionalizado' atualmente para fontes de jornal, que se baseia normalmente na Swift de Gerard Unger, e busquei inspiração em fontes mais antigas como Century Gothic, Ionic, etc.

A gama de pesos foi propositalmente pensada para não ser muito extensa, visando à facilidade de uso – acredito que uma fonte serifada deva dispor de um sistema simples, superfamília é algo a meu ver mais indicado às sans-serif. Porém, versões headline ou display da fonte estão no plano de expansão. O peso Text tem o peso Semibold como apoio (assim como o itálico) para destacar palavras, citações, etc.

207

O Semibold funciona como um Bold de texto. Já o peso Caption, mais pesado, foi pensado para uso em legendas, a tamanhos pequenos. A versão Tamil foi criada através de uma pesquisa extensa sobre a escrita, que resultou na dissertação do curso. Tem influência de diversos modelos criados pra fontes Tamil no século XIV em Madras (atual Chennai) na Índia, que foram depois seguidos por empresas como Linotype e Monotype, modelos esses que são a base até hoje para textos impressos em Tamil. As proporções e expessuras são similares e corres- pondentes ao peso Text Latino, visando um bom desempenho em conjunto, apesar de que a escrita Tamil apresenta uma maior variação de espessuras das hastes, e muitas curvas.

Mais uma vez, a apreciação do trabalho foi muito boa, a fonte recebeu diversos reconhecimentos, porém continua em fase de produção, e muita coisa está sendo bem vagarosamente revista/redesenhada. A versão Tamil também continua em produção, porém será desvinculada da versão latina – ganhará um nome próprio, um peso Bold, e um alfabeto latino básico de apoio (A-Z, a-z + pontuação + numerais latinos, todos sans-serif) completamente novos, isso mais por questões mercadológicas do que qualquer outra coisa. Dentro de minha trajetória, Frida foi a primeira vez em que tive a oportunidade de ir a fundo, full-time, num desenho de fonte, e com um suporte inigualável. Foi um passo muito importante para o futuro, uma experiência que levarei para fazer qualquer fonte daqui para frente.

208

Eduilson Coan

Gomes: Em relação à família tipográfica Estado Serif, feita para o jornal Estado do Paraná e exposta na Bienal da ADG em 2006, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Com projetos acadêmicos desenvolvidos antes de 2005, mas não finaliza- dos, considero esse projeto como o início na minha carreira de designer de tipos.

Alguns dos desafios enfrentados:

• Curto prazo para a criação (30 dias para a criação do arquivo digital da fonte e mais 10 dias para implantação e ajustes necessários).

• O desenvolvimento de um set de caracteres completo, que até o momento eu nunca tinha projetado.

• Adequar o arquivo final da fonte para todos os meios de impressão utili- zados no jornal.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, proces- so de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

Junto com Ericson Straub, desenvolvemos uma pesquisa inicial em jornais do Brasil e da Europa. Uma nova análise foi desenvolvida através de imagens de 5 décadas de projetos gráficos do jornal em questão.

Com a mesma equipe trabalhando na reformulação gráfica e no design da tipografia, foi mais fácil limitar parâmetros e o real uso para a fonte.

209

Para o início da criação ficou definido:

• Uso da versão Bold para títulos com variação do corpo de 20 pontos a 54 pontos.

• Uso da versão normal itálica para gravatas em corpo 22 pt e títulos de colunas, em corpo 30 pt.

Iniciado os rafes, a busca era por manter a identidade do jornal, somando pequenos detalhes exclusivos de tipos para títulos de jornais, que foram:

• Uma serifa mais curta, proporcionando o uso do espaço entre as letras menor, e em conseqüência, o ganho de toques para a criação de títulos pelo jornalista.

• Ascendente e descendente mais curtas, possibilitando entrelinhas mais próximas, aumentando o ganho de espaço para as matérias.

• Contraste das letras adequado ao uso em títulos.

Gomes: Em relação à família tipográfica Ninfa, exposta na Bienal Tipos Latinos 2008, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

Em 2006, como projeto pessoal, a Ninfa surgiu de alguns rafes despre- tenciosos no papel. O projeto ganhou dimensão e em 2008 foi exposto na Bienal Tipos Latinos (2 pesos). Posteriormente foi lançada para a venda no site Myfonts.com (3 pesos em 2008 e a versão Black em 2009), o que fez com que descobrisse um outro mercado que não o de fontes customizadas.

210

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, pro- cesso de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

A idéia inicial era utilizar esse trabalho como forma de aprendizado. O foco principal era melhorar a qualidade no desenho das formas, deixando-as mais bem desenhadas, com curvas mais fluidas. O projeto foi desenvolvido ao longo de 2 anos e, no decorrer desse tempo, incorporei características de uma fonte para títulos, juntamente com um toque de gestualidade caligráfica.

211

Marconi Lima

Gomes: Em relação à família tipográfica Adriane, que foi um dos destaques da Bienal Tipos Latinos 2008, o que esse projeto representa dentro de sua trajetória no design de tipos?

A família de tipos Adriane representou, sobretudo, a concretização do desejo de levar a bom termo meu primeiro projeto tipográfico. Por um outro prisma, a boa repercussão obtida no mercado e entre profissionais reconhecidos da área deram- me uma perspectiva privilegiada para mensurar a envergadura desse nicho de mercado. Considero que a minha participação como palestrante e expositor na Bienal Tipos Latinos 2008 foi a conclusão de um ciclo, de onde saí com a certeza de que seria plenamente viável dar continuidade aos projetos de tipos.

Gomes: Poderia destacar alguns aspectos particulares no desenvolvimento, proces- so de criação e/ou no seu resultado final dessa família? Quais foram seus objetivos iniciais e principais referências que o influenciaram?

O desenvolvimento do projeto permitiu que houvesse a chance de realizar uma imersão em aspectos que contornam o design de tipos, sejam eles históricos, linguísticos, estéticos, técnicos, entre outros. A escolha por um tipo serifado, para uso editorial, foi o objetivo que norteou todo o movimento de pesquisa projetual.

As referências não foram catalogadas. De certa forma, aquilo que eu dese- nhei já estava sutilmente em minhas preferências visuais, apenas adicionei um pouco de personalidade ao design da fonte. Um aspecto muito importante, é o fato de que a Adriane deveria 'sumir', permitindo que o leitor pudesse efetivamente ser convidado a 'passear' pela mancha de texto confortavelmente. Creio que a fonte logrou esse objetivo.

* * *