Em dezembro encontrei Vera, Maeve e Anna, por Yasmin Thayná

O que todas nós tínhamos em comum: nos construímos socialmente como mulheres e trabalhamos num campo majoritariamente masculino e machista

(Nexo, 09/01/2017 – acesse no site de origem)

No mês passado, dezembro, teve a 5ª edição do Festival Curta Brasília, que rola todo ano na capital do país reunindo cineastas, produtores, produtoras, atrizes, atores e apaixonados por cinema de várias partes do Brasil. A possibilidade do encontro, de se apaixonar, de rir junto com gente que você nunca viu na vida, de ter os papos mais densos e cabeçudos da vida, de poder balançar o corpo até de manhã, de pensar num novo filme, de fechar parcerias, conhecer gente, ter contato com outras realidades, conhecer histórias novas, se emocionar, isso é um pouco das muitas possibilidades que um festival de cinema pode proporcionar para nós: um encontro e dois mergulhos.

O Curta Brasília não foi diferente: realizado e produzido por uma equipe de mulheres, elas destoavam de todo o imaginário coletivo asqueroso que conhecemos quando tocamos na pauta “mulher”, o conceito tradicional de “sexo frágil” tomou uma bela de uma voadora com essa mulherada que não deixou a desejar em momento algum, que mostrou uma curadoria de filmes fortes e debates provocantes.

Além de todas as pessoas maravilhosas que tive a oportunidade de conhecer, da produção do festival e a galera que levou filmes para as mostras, fiz parte de uma conversa sobre mulher, política e a sétima arte, com as gigantes Anna Muylaert, Ana Arruda, Maeve Jinkings e Vera Egito. Uma é a cineasta que teve maior destaque nos últimos anos com o seu “Que horas ela volta?”, Arruda é diretora do Curta Brasília e fez uma mediação com uma costura brilhante, Maeve, menina doce e apresentadora do Curta Brasília, das últimas que aprontou foi o aclamado filme “Aquarius”. Já Vera, além de ter esse nome majestosamente genial que eu também queria ter, “Egito”, chegou em 2016 com o seu longa-metragem “Amores Urbanos.

O que todas nós tínhamos em comum: nos construímos socialmente como mulheres e trabalhamos num campo majoritariamente masculino e machista. (Há controvérsias sobre masculino e machista serem sinônimos, mas vamos deixar essa discussão para outro dia).

Muylaert, que deu início à conversa, relatou sobre as tantas dificuldades de ser mulher nesse campo, inclusive de entender que certos desafios aparecem unicamente por você ser uma mulher. E ter que adquirir força “Yin-yang“ durante a vida, como ela mesma ressaltou, porque nem sempre se quer entender as coisas como “será que isso que está acontecendo é machismo?” Muitas das vezes procuramos refletir por outros caminhos fora das questões de gênero, mas nos deparamos, na maioria das vezes, com sim, é machismo.

FICA NÍTIDO O QUANTO, NO BRASIL, AINDA PRODUZIMOS NARRATIVAS DENTRO DE UM OLHAR MASCULINO E BRANCO, O QUE É O OPOSTO DA NOSSA REALIDADE POPULACIONAL

Inclusive quando estamos num espaço misto de debate sobre cinema e surge a questão de gênero ou qualquer outra que vá no sentido de discutir diferenças e os seus respectivos encontros (sim, as diferenças podem se encontrar, eba!), gerando, quase sempre, aquele incômodo: ué, vocês não iam falar de cinema?

E por que falar de gênero não é falar de cinema?

O cinema é um lugar para se discutir desde o pensar até finalizar um filme, uma série, ou qualquer outro material audiovisual. Não é um teatro de marionetes, como nos contou Maeve sobre seus questionamentos dentro dos sets de filmagem de que participou. “A atriz ou o ator não são marionetes, somos pessoas, seres pensantes e críticos. E é claro que nós temos de interferir quando a coisa não vai bem.” Nem sempre é tudo ou nada e é preciso ter a noção que questionar não é ser chata, feminista demais, radical ou qualquer coisa dessas. E sim construir junto, como deve ser todo e qualquer espaço de fazer cinema.

Para mim, a experiência do fazer cinema sempre foi coisa séria. Minha escola principal, além da vida, foi a Escola Livre de Cinema, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. E foi lá que entendi as nuances de criar imagem e seus efeitos. Quando estamos do outro lado do muro estudando tudo que narram sobre nós e os enquadramentos dados a certos personagens e situações, entendemos o que é estética e a importância de interferimos nessa história criando novas possibilidades. Então, para mim, cinema sempre foi coisa séria. Principalmente porque me trouxe uma dimensão cidadã importantíssima que é o pertencimento de se perceber enquanto um ser que pode, inclusive, narrar a si mesmo.

Se a gente for olhar alguns dados, vamos ver que a coisa fica ainda mais séria: o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), vinculado a Iesp-Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), fezuma pesquisa analisando o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros de 2002 a 2012. De diretoras e roteiristas, não teve nenhuma mulher negra nessas funções. Tornando, assim, como a pesquisa mesmo afirma, “a cara do cinema nacional mostra que o Brasil das telas do cinema é um país predominantemente branco, apesar de negros serem mais de metade da população (50,7%)”.

Aqui, fica nítido o quanto, no Brasil, ainda produzimos narrativas dentro de um olhar masculino e branco, o que é o oposto da nossa realidade populacional.

Não acredito que existe apenas um “olhar feminino” no cinema. Entendo que há vários. A Vera Egito coloca no mundo histórias que podem ser diferentes das de Anna Muylaert, que aborda temas em seus filmes que eu posso fazer de outra maneira, assim como a Maeve percebe de outra forma. Somos todas mulheres, mas com lugares de fala e olhares diferentes sobre as coisas, que tem a ver com trajetória, crença de mundo etc.

Mesmo assim, o que Anna contou para nós pode ser um caminho de desconstrução que nos liga e nos coloca para pensar. Anna disse: “o que, talvez, diferencie no meu modo de fazer é que eu vou para o set fazer parcerias. E não para dar ordens.”

Acredito ser tarefa nossa lançar novas narrativas e estimular produções feitas pela nossa gente: negros, mulheres, indígenas, ciganos, gays, lésbicas, pessoas trans etc. Mora nessa diversidade de narrativas, olhares, vivência e novas histórias para contar, exatamente o que eu acredito ser a tão adorada e citada democracia. Um país maneiro precisa ter pluralidade em suas narrativas e seus narradores. Representatividade, palavra desses últimos anos, é isso: diversidade em quem está na frente e em quem está por trás.

Ainda que esse encontro tenha sido muito esclarecedor e imenso, ficou uma dimensão do cuidado que temos de ter ao pensar das feridas e o que deixamos passar por não sabermos agir em determinadas situações. Ficou dentro de mim o quanto nós nos sentimos culpadas por não ter todas as respostas e não saber agir em todos os momentos misóginos que enfrentamos no nosso dia a dia. É nessas horas que temos que parar e pensar no que os mais velhos deixaram de conforto sobre o tempo, esse orixá que passa, que voa, que é outro, que se transforma o tempo todo, como a terra. E aqui, não dá para deixar de lembrar da grande escritora brasileira Conceição Evaristo.

A dona Conceição uma vez contou que era uma aluna rebelde, dessas que os professores dizem: você não tem mais jeito e não chegará a lugar algum. Em um dia teve que enfrentar uma situação racista: uma professora a humilhou na frente de toda a classe dizendo que ela havia roubado um material escolar. No dia em que isso aconteceu, apesar de toda a sua rebeldia e língua afiada, Conceição não conseguiu reagir. Levou esse trauma durante muitos anos da sua vida, até virar uma doutora em literatura e uma das escritoras mais renomadas do país.

Disse que, dia desses, encontrou essa mesma professora em um espaço de debate acadêmico importante. A professora ficou espantada quando se deu conta de que aquela menina rebelde, acusada injustamente de um roubo e exposta publicamente na escola, era, hoje, uma mulher, negra e uma das principais referências literárias do país hoje.

Sem desmerecer a ninguém, de maneira doce, como sabe quem conhece pessoalmente Conceição Evaristo, ela disse: “às vezes a vida é como uma roda de capoeira. A ação da dança só começa quando você está forte o suficiente, gingando de um lado, gingando de outro. Assim, você adquire o impulso certo para dançar. E esse é o tempo que às vezes precisamos para as coisas acontecer”.

Gingar faz parte da dança e viver esse tempo dilatado é precioso. Pode ser que, neste momento, nós, mulheres, que acreditamos num mundo menos machista e racista, estejamos em estado de ginga. E logo mais esse chão vai tremer porque, assim como nossa mestra Conceição Evaristo, nós vamos dançar bonito!

Yasmin Thayná é cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS- Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu, nos últimos meses, “Kbela, o filme”, uma experiência sobre ser mulher e tornar- se negra, “Batalhas”, sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence. Para segui-la no Twitter:@yasmin_thayna

Festival de Cinema Latino- Americano destaca presença de mulheres diretoras

(Agência Brasil, 19/07/2016) A 11ª edição do Festival de Cinema Latino- Americano de São Paulo destaca a crescente presença de mulheres na produção cinematográfica regional e homenageia a cineasta paulista Anna Muylaert, que dirigiu o recente sucesso Que Horas ela Volta. Serão exibidos 23 títulos da diretora e roteirista, inclusive trabalhos do início de sua carreira, que são de rara circulação.

Leia mais: Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo celebra olhar feminino (El País, 21 /07/2016) O crime sexual cerca a tribo (CartaCapital, 20/07/2016)

Amanhã (20), na sessão de abertura do evento, o festival exibe o longa- metragem de Anna, inédito no Brasil, Mãe Só Há Uma (2016) e, até o dia 27 de julho, serão exibidos 118 filmes de 13 países no Memorial da América Latina, na capital paulista. Além dos filmes, haverá ainda a realização de encontros e debates com o público.

Já na quinta-feira (21), haverá um encontro da diretora com o público e com a cartunista para a exibição também inédita de outra versão de seu filme com Regina Casé: Que Horas ela Volta – Demo Filme. A versão foi usada na construção de seu longa-metragem e será comentada pela própria diretora.

Atrações

Além do destaque para a produção feminina, o curador e criador do festival, João Batista de Andrade, conta que a proposta do evento é abrir as portas para novidades. “O festival tem uma série de novidades: tem uma mostra muito grande do cinema mexicano – comédias e dramas mexicanos; tem uma mostra muito grande do cinema contemporâneo latino-americano e tem uma coisa especial que são as mulheres que estão passando por trás da câmera”, antecipa João Batista.

Ele conta que o cinema da geração em que se formou tinha muito prestígio, inclusive internacional, e recebeu muitos prêmios. Para João Batista, no entanto, ficar reprisando essa produção sufoca a possibilidade de dar visibilidade às novas gerações. O cineasta acredita que o festival, que surgiu em 2006, abriu espaço para novos talentos.

“Foi muito importante que o festival fizesse isso, desde 2006. Eu acho que abriu e mostrou para os jovens que eles teriam espaço. Os cineastas [tradicionais] continuam importantes, mas é preciso que haja novas ideias, que as novas gerações tenham chance de expor uma nova visão”, acrescentou. A exibição de filmes e diretores clássicos, no entanto, não estão de fora da programação. “Sempre contrabalanceamos, sempre fazemos uma homenagem, uma exibição de filmes clássicos, de filmes importantes, mas o festival é aberto para novidades, para as ideias novas do cinema”, lembra o curador João Batista.

A mostra especial “Divas da Época de Ouro” revela atrizes do cinema mexicano em produções da década de 1940. Serão exibidas obras estreladas pelas divas María Félix, Ninón Sevilla, Marga Lopez, Stella Inda e Dolores Del Rio. A mostra inclui ainda uma seleção de filmes noir, como Na Palma de Tua Mão, Irmãs Malditas, Outro Amanhecer e A Riqueza do Diabo.

Outra mostra especial do festival, “Mulheres Atrás das Câmeras”, vai reunir produções recentes (de 2014 e 2015) da nova geração feminina de cineastas mexicanas, composta por nomes como Alejandra Márquez Abella e Teresa Camou. Em 2015, segundo a organização do festival, um quarto da produção cinematográfica de longas-metragens mexicana foi dirigida por diretoras.

Camila Boehm – Repórter da Agência Brasil Edição: Denise Griesinger

Acesse no site de origem:Festival de Cinema Latino-Americano destaca presença de mulheres diretoras (Agência Brasil, 19/07/2016)

Mulher ainda não ocupa lugar merecido no audiovisual, dizem criadoras

(UOL, 09/03/2016) Durante a pesquisa para escrever “Os Dez Mandamentos”, Vivian de Oliveira ouviu de um historiador a espantosa observação de que, naquela época, “uma mulher valia menos que uma vaca ou uma ovelha”. Inconformada com a possibilidade de só mostrar mulheres submissas numa trama bíblica, decidiu valorizar o que elas tinham de mais forte, como nas relações familiares.

A Coautora de “Totalmente Demais”, Rosane Svartman (àesq.), autora de “Os Dez Mandamentos”, Vivian de Oliveira, e a diretora de “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert, que participaram de um debate sobre representatividade feminina no audiovisual (Foto: Divulgação/Folhapress/Montagem)

“Elas não eram contadas no censo, a descendência só contava a partir do homem. Mulher não podia nem discordar em público do marido. Mas eu não me conformava e fui pesquisando mais, fiz questão de mostrar uma mulher muito forte, mesmo naquela época. Nos bastidores ela exercia uma grande influência”, contou a autora, que participou de um debate sobre representatividade feminina no audiovisual brasileiro no RioContentMarket, na manhã desta quarta-feira (9).

A escritora deu o exemplo de Joquebede (Samara Felippo/Denise Del Vecchio), que considera uma mulher de fibra. “Todas as mulheres se conformaram com o decreto do rei (de mandar matar os primogênitos), mas ela se arriscou. Era muito mais difícil sobreviver. O homem podia rejeitar a mulher se ela não soubesse cozinhar, se não pudesse engravidar”, afirmou.

No que diz respeito a igualdade no mercado de trabalho, a cineasta Anna Muylaert contou que só percebeu de verdade preconceito dos colegas com a repercussão de “Que Horas Ela Volta?”.

“Quando você faz curta, documentário, todo mundo acha: ‘Que bonitinho’. Mas quando cheguei a esse nível de sucesso, em termos de dinheiro, orçamento, a que nunca tinha chegado senti um sexismo muito maior do que no início da minha carreira.A partir de um certo nível de poder, mulher não existe. Os caras não têm vergonha de fechar a porta na sua cara”,contou Muylaert.

Ao apresentar o longa no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, ela ouviu da diretora de programação que filmes sobre sexismo era uma tendência. Mas a roteirista e diretora só percebeu o quanto a própria obra tratava do assunto ao ser frequentemente convidada para debates.

“Nunca tinha parado para pensar que era sobre empoderamento feminino, a equipe em sua maioria era de mulheres, aquilo era natural para a gente. Está na hora de a mulher ocupar o lugar que merece. A gente precisa um pouco menos de humildade, e os homens, um pouco menos de arrogância“, declarou ela, na participação mais aplaudida do painel.

Coautora de “Totalmente Demais” e diretora de longas como “Desenrola” e “Como Ser Solteiro”, Rosane Svartman afirmou que no seu trabalho valoriza o equilíbrio do ponto de vista feminino e masculino. “Escrevo a novela com o Paulo Halm, que tem outra visão de mundo. Acho que enriquece escrever e dirigir com outras pessoas. No ‘Desenrola’, que escrevi com a Juliana Lins, chamamos três rapazes para ajudar no roteiro”, lembrou.

Já a cineasta Petra Costa revelou que um dos comentários que ouviu sobre o documentário “Elena”, dedicado à sua irmã, foi justamente sobre a falta de homens no filme.

“Perguntaram: ‘Mas por que você não mostra os namorados dela?’. Engraçado, ninguém pergunta onde estão as mulheres de ‘O Poderoso Chefão’. Na adolescência eu estudava teatro e nem vislumbrava ser diretora, porque não achava que era possível. Mas não me identificava com as personagens femininas dos filmes que eu gostava”, contou. A resposta ao recente “O Olmo e a Gaivota”, foi ainda mais violenta. “Fizemos um vídeo falando da questão do corpo, do aborto, e fui atacada pelas igrejas católica e evangélica. No Instagram, pediram para atacar a mim e aos atores. Como a gente pode viver essa inversão? As religiões judaico- cristãs são as mais machistas. As mulheres eram figuras fortes no Egito, na literatura grega, na teologia indiana. Vamos voltar a essas narrativas”, disse.

Giselle de Almeida

Acesse no site de origem: Mulher ainda não ocupa lugar merecido no audiovisual, dizem criadoras (UOL, 09/03/2016)

Clube obrigar babá a usar branco é manter estigma da escravidão, diz diretora de ‘Que horas ela volta?’

(BBC Brasil, 03/02/2016) Desde que lançou Que horas ela volta?, a diretora de cinema Anna Muylaert virou uma espécie de porta-voz informal para questões envolvendo trabalhadores domésticos.

Seu filme, no qual a atriz Regina Casé vive a doméstica Val, escancara um tipo de relação entre patrão e empregado que é realidade em muitas casas brasileiras. Logo no início de ‘Que horas ela volta?’, a personagem de Regina Casé (a empregada Val) aparece vestindo branco ao cuidar do filho dos patrões, mas sem entrar na piscina (Foto: Divulgação)

Diante da “novela” das babás de branco que teve início no ano passado, Anna topou falar com a BBC Brasil.

Durante a conversa, a diretora falou de sua revolta com as regras de clubes paulistanos em exigir uniforme branca das babás de crianças sócias.

O caso começou quando a advogada Roberta Loria, que é sócia do Esporte Clube Pinheiros (zona oeste), resolveu acionar o Ministério Público de São Paulo, após se revoltar com o fato de o local dificultar a entrada da babá de suas filhas por ela não estar com uniforme branco.

Veja os principais trechos da conversa com Anna Muylaert:

“Quando eu vi essa notícia (das babás sendo obrigadas a usar brancos pelos clubes), fiquei sem palavras. É uma regra extremamente autoritária, anacrônica, para marcar a divisão social. É algo que mantém o estigma da escravidão.

É como botar um anúncio, um aviso claro como uma melancia na cabeça, para que não haja confusão: eu sou um empregado, eu não entro na piscina, eu não sento na mesa.

Achei tudo tão terrível que fiquei pensando: ‘Até quando a gente vai achar legal ter escravo?’

É óbvio que se a babá e os patrões concordarem com o uso do uniforme branco, se ela quiser, não é nenhum problema. Agora, um clube exigir roupa branca, isso é querer manter uma situação em que os sócios são sempre privilegiados.

Direitos negados

Mas como fomos criados em meio a essas regras, o que acontece é que a Val (doméstica protagonista do filme, interpretada pela atriz Regina Casé) achava normal ela nunca ter entrado na piscina do patrão. E a babá do Pinheiros não achava um grande problema o clube obrigá-la a usar branco.

Claro que elas vão achar normal. São direitos que nunca lhes foram dados. Mas é justamente por isso é que é tão importante ter pessoas que tomam atitude, como a Roberta.

É preciso muito esforço para mudar. E não é fácil, porque parte da elite do Brasil quer manter tudo como se fosse há 400, 500 anos atrás. ‘Eu vou contratar uma mulher por um preço baixo e vou continuar na corte.’

Uma amiga minha uma vez reclamou que a empregada dela foi dormir no meio da festa que ela estava dando, já de madrugada. Eu virei e falei: ‘Olha, a escravidão acabou’.

Cinismo

Outro dia eu vi no Twitter uma frase genial: “Aplaude Que horas ela volta? no Facebook, mas em casa reclama que a empregada não sabe fazer estrogonofe”.

Isso representa muito bem que uma coisa é discutir a coisa na teoria e a outra é colocar em prática.

Outro dia, em uma palestra, uma menina que era filha de doméstica me contou como ainda recebe olhares de cima para baixo.

‘Até quando a gente vai achar legal ter escravo?’, questiona Anna Muylaert (Foto: Getty Images)

Exemplos assim mostram que ainda temos um longo caminho para avançar.

Mas acho que alguma coisa já começou a mudar. Só de estarmos conversando sobre isso já é algo. Antes, isso nem era discutido.

[Alerta de spoiler para quem não viu Que horas ela Volta?]

A babá topar usar branco no shopping mas ciente de que isso é para a mãe da criança posar de madame é a Val entrando na piscina da casa dos patrões.

Elas começaram a ver, elas já estão num outro patamar.”

Mariana Della Barba

Acesse no site de origem: Clube obrigar babá a usar branco é manter estigma da escravidão, diz diretora de ‘Que horas ela volta?’ (BBC Brasil, 03/02/2016)

“No Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher, branco em preto e rico em pobre”, diz Anna Muylaert

(Brasil de Fato, 17/09/2015) Diretora de Que horas ela volta? conta o processo de elaboração do filme que está colocando o dedo na ferida das relações entre empregadas domésticas e patrões no Brasil.

Que horas ela volta? é rotulado pela crítica como um filme de arte. Para a diretora Anna Muylaert, entretanto, o longa precisa ser assistido também nas periferias do país. Nada mais justo, já que o roteiro conta a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica que passou anos trabalhando na casa de uma família rica do Morumbi e tem sua vida alterada com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), sua filha que foi deixada no Nordeste e está em São Paulo para prestar vestibular.

Ganhador do Festival de Berlim e com premiação também em Sundance, o filme é a representação brasileira na disputa pelo Oscar. A escolha rompeu uma hegemonia masculina de 30 anos de indicações de diretores homens e acendeu um debate sobre o machismo no cinema.

Mesmo com a agenda lotada, a diretora recebeu o Brasil de Fato SP em sua casa, no último sábado (12) à tarde, e falou sobre a repercussão do filme, que já ultrapassou 150 mil espectadores. Confira a entrevista:

Brasil de Fato SP – Quando você teve a ideia do filme, o objetivo era ter o foco no retrato das relações humanas ou a ideia já era debater questões políticas?

Anna Muylaert – Eu não pensei em política enquanto estava construindo o roteiro. Queria dar um destino melhor para a filha da empregada. Na minha cabeça de dramaturga, eu queria tirar o clichê da maldição da repetição. Durante muitos anos o caminho era igual, a filha vinha para cá ser cabeleireira e acabava como doméstica, assim como a mãe. Eu determinei a mudar isso. A partir do primeiro dia em que apresentei a ideia, a associação com o retrato do período pós- Lula foi imediata. O filme estava mais enraizado na realidade do que eu achava.

Falando um pouco sobre essa nova realidade, que foi alterada devido aos diversos programas sociais implantados na última década, você acredita que houve uma mudança na autoestima do brasileiro?

A partir do Lula, sem dúvida, houve um trabalho de melhoria da autoestima tanto pelo Bolsa Família e pelas cotas raciais nas universidades, como também pela Copa do Mundo e Olimpíadas. Acho que se há algo que o Lula fez foi subir a autoestima das classes menos favorecidas. Mas isso é um pequeno começo, a questão da educação ainda está muito atrasada em relação aos países europeus, por exemplo, que são socialmente mais democráticos. Aqui demos um pequeno passo para o direito à cidadania.

Sobre a personagem Jéssica, como você encara o fato de algumas pessoas interpretarem ela como uma pessoa ‘metida’, quando na verdade ela só quer ser tratada como os outros hóspedes da casa? Como você pensou na personalidade dela?

Ela foi uma menina que teve educação, apesar de não ter dinheiro. Além disso, ela não teve empregada, portanto nem conhecia essas rígidas regras separatistas. A minha ideia é que ela chegaria com uma inocência. Mas, claro que ao perceber aquelas relações, ela simplesmente não acredita. Na cabeça dela, aquelas regras não significam nada. Há quem ache ela arrogante e há quem ache ela maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.

Foram realizadas cabines [sessões de teste com o público] só com empregadas domésticas. Como foi a reação delas? E os patrões? Você chegou a ser vítima de algum discurso de ódio por causa do filme? Eu soube que, após a sessão, rolou um desabafo de um grupo [das domésticas] com coisas que estavam presas por muito tempo na garganta. Mas, muitas ficaram bastante travadas. Esse jogo de regras é um jogo invisível. O filme mexe muito com os dois lados. Tanto com o patrão, que sai de lá e diz que vai aumentar o salário da empregada, quanto com elas que se enxergam no filme e ficam motivadas a deixar de aceitar humilhações. Eu esperava que eu fosse vítima [de discurso de ódio], mas estranhamente ainda não houve. Os patrões usam o filme como um momento de revisão de atitudes e valores. Mas já fiquei sabendo de duas mulheres que levantaram e saíram da sala revoltadas em uma das cenas da Val, o que eu achei bem chocante.

Você costuma brincar que o seu filme é um filme de “nadas”, porque os principais pontos estão relacionados a situações do cotidiano, que só têm importância pelo contexto, como é o caso da problemática em relação às personagens com a piscina da casa. Como foi essa construção do roteiro?

Eu estava girando atrás de uma solução quando, em agosto de 2013, seis meses antes da filmagem, minha fotógrafa, a uruguaia Bárbara Alvarez, me deu um livro do Cortázar com o conto Casa Tomada. Assim, achei uma solução para a Jéssica. Ela viria inocente das regras, e iria quebrando essas regras, até ser expulsa de volta. Quando a patroa entra na cozinha e a Jéssica está tomando sorvete, a cena é quase de um filme de terror. Mas a tensão está justamente na percepção das pessoas. Não há nada demais no fato de uma adolescente estar tomando sorvete.

Você optou por retratar uma família onde a mulher é protagonista e tem um papel mais autoritário. Teve algum motivo específico para a escolha?

Não foi uma opção consciente. Isso foi baseado na minha visão. Eu acho que os homens estão muito fragilizados perante as mulheres atualmente. Acho que as mulheres estão muito fortes. Eu, por exemplo, sou cineasta e criei dois filhos sozinha. Trabalhei com os meus dois braços, enquanto boa parte dos homens trabalha com um braço só, já que chegam em casa e dormem. Acho que na América Latina é muito forte esse conceito do homem não ajudar em casa. Apesar de estarmos poderosas, a gente ainda não quebrou o tênue fio dessa regra machista. Nós, mulheres, precisamos dizer ‘estamos fazendo o serviço, então não manda em mim’. Porque os homens não fazem, aí as mulheres fazem, e no final eles chegam e tiram a foto ao lado do prefeito. Isso acontece em todas as classes e em todos os países. Eu acho que a nova onda feminista é a missão da mulher dizer para o homem que ele está agindo de maneira ridícula.

Você deu uma declaração em que diz que está incomodando os homens por ter atingido a ‘esfera do dinheiro’ dentro do universo do cinema. Não só nesta área, mas em praticamente todas, observamos essa situação. Como foi sua trajetória, você esbarrou muitas vezes no machismo?

Tenho quase 25 anos de carreira. No começo, eu podia fazer o serviço, mas não podia receber o crédito. E eu não exigia. Acho que a mulher tem um excesso de humildade, enquanto o homem um excesso de arrogância. Isso precisa ser equilibrado. As mulheres acabam errando também porque há um conjunto de regras que dizem que o homem deve estar à frente e a mulher atrás. Depois passei para uma condição onde eu levava o crédito, mas ainda ganhava menos do que o homem, e achava normal. Há sempre uma valorização do masculino e desvalorização do feminino. Foram muitos anos para eu perder esse excesso de humildade, que na verdade é uma subserviência. Humildade é bom, subserviência não. Autoestima é bom, mas arrogância não. Quando meu filme começou a ter visibilidade, comecei a sofrer um bullying que nunca tinha sofrido antes, de parceiros meus dizendo que se eu cheguei lá era por responsabilidade deles. Hoje, com esse filme, eu alcancei um patamar do cinema onde só há homens como , , Padilha e Hector Babenco.

Como foi a relação com a Regina Casé? Você havia pensado nela desde o início do projeto?

Eu decidi que a Regina (Casé) interpretaria a protagonista quando assisti o filme Eu, tu, eles. Depois disso, não pensei mais em outra pessoa para o papel da Val. Nosso processo de aproximação foi longo até chegar à filmagem que, por sinal, foi bastante complicada em decorrência do bebê que ela havia acabado de adotar. Tiveram momentos difíceis, principalmente pelo calor do verão. Mas o importante é que, artisticamente, a gente se deu maravilhosamente bem. Acho que é, talvez, a parceira mais incrível que eu já tive.

O filme retrata essa cultura escravista herdada do período colonial. Foram realizadas pesquisas sobre isso?

Fizemos uma pesquisa para encontrar a personagem principal, que é inspirada na Edna. Ela foi babá do meu filho por aproximadamente dois anos e acabou se tornando minha amiga. Quando era criança, foi deixada na Bahia pela mãe e buscada apenas dez anos depois. Sobre essa arquitetura colonial e os espaços de poder dentro da casa, não foi preciso praticamente nenhuma pesquisa, já que esses valores estão presentes em qualquer casa da classe alta brasileira.

Além do seu filme, vários outros abordaram essa mesma temática nos últimos anos. Domésticas, do Gabriel Mascaro, talvez seja o mais evidente. Mas também podemos citar O Som ao Redor, do Kleber Mendonça Filho, e Casa Grande, do Fellipe Barbosa. Algum deles te influenciou?

Eu tive uma influência muito grande do filme O Som ao Redor. Eu me conecto a ele porque eu realmente amei, saí do cinema tremendo. Apesar de completamente diferentes, ambos estão tirando diversas pessoas da invisibilidade. Já o documentário Domésticas, que foi exibido para a nossa equipe durante a preparação, serviu de inspiração para o figurino da Val. O Casa Grande, entretanto, foi diferente. No início da sua exibição no Festival de Cinema de Paulínia, achei que alguém tivesse feito o mesmo filme que eu. Mas, passados os primeiros trinta minutos, o filme abandona o caráter crítico e assume o papel do herói adolescente que termina trepando com a empregada, o que eu considero retrógrado e machista. Na Europa, os espectadores perguntam se isto realmente existe ou se é pura ficção. Em suma, todo mundo está abordando um tema que urge porque o Brasil ainda está no século XIX. Essa é uma cultura gerada nos primórdios da colonização, quando os portugueses vieram para o Brasil explorar o ouro e comer as mulheres. A lógica era o ócio ao invés do negócio. Isso não dá mais, é 7 a 1 em todo o canto. É urgente profissionalizar, legislar e respeitar essas mulheres. No Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher, branco em preto e rico em pobre. Os cineastas estão no cinema para isso e é ótimo que estes filmes estão dando certo, porque faz o mundo pensar e repensar estas atitudes.

Uma jovem, que também se chama Jéssica, publicou um artigo no blog Nós da Periferia relatando as semelhanças da sua história com a Jéssica do filme. Como está sendo a recepção do público?

Está incrível. Estou recebendo uma mensagem a cada cinco minutos. Ontem, um menino me escreveu relatando um episódio que ocorreu após a publicação de uma crítica muito bonita que fez sobre o filme. A patroa da sua mãe, que é empregada, achou seu texto em um blog, se reconheceu lá, e afirmou que mudaria completamente a sua postura. Isso, pra mim, já é um Oscar. Além disso, um pessoal da periferia me convidou para participar de um debate e, no final da mensagem, afirmou que ‘somos todas Val’. Enviei como resposta que também ‘somos todas Jéssica’. No geral, a periferia também quer ver o filme, mas ele ainda não chegou lá. No início, eu tinha a intenção de oferecer desconto para domésticas que apresentassem o cartão de trabalho. Mas, na primeira reunião, meu distribuidor descartou a ideia porque a patroa se sentiria mal em sentar ao lado da empregada. No mercado capitalista, Que horas ela volta? é um filme de arte. Apesar disso, estamos provando o contrário.

Você afirmou em algumas entrevistas que o roteiro começou a ser elaborado logo após o nascimento do seu segundo filho. Como foi esse processo?

O roteiro nasceu do amor pelo meu filho. Eu já tinha feito Castelo Rá-Tim- Bum e vários outros trabalhos, mas quando eu tive o bebê surgiu uma força que me fez decidir que não iria mais trabalhar por um tempo. Eu fiquei dois anos sem trabalhar, mas felizmente vieram os livros do Castelo Rá-Tim-Bum, que me renderam quatro ou cinco vezes mais do que o salário na TV Cultura, e me possibilitaram continuar trabalhando em casa. Eu senti que o processo da maternidade me faria crescer e me entreguei completamente. Somente depois de muita insistência decidi contratar uma babá para me ajudar uma vez por semana. Logo no primeiro dia, a menina veio toda de branco, pegou o bebê, entrou no quarto e fechou a porta. Nessa hora, eu deitei na minha cama e comecei a passar mal. No dia seguinte, eu abri o jogo e assumi que não daria para continuar. Eu não conseguia dar o meu bebê na mão de um desconhecido. Pelo menos nos dois primeiros anos é essencial o contato entre mãe e filho. Depois menos, porque é necessário aprender a se separar, desprender-se do filho. Mas por que a maternidade não é valorizada? Justamente porque a nossa sociedade exalta apenas o masculino. Muita mulher, e acho que eu não tive isso porque havia acabado de fazer sucesso, fica agoniada em casa enquanto o mundo lá fora está girando. Porque o sinônimo do mundo é sucesso, poder e riqueza, enquanto o da maternidade é amor, carinho e espiritualidade. Senti que isso é um tema muito forte, porque o mundo inteiro é regrado pelas leis masculinas, que são machistas. Na verdade, o filme não é baseado em ninguém, mas em uma vontade de expor tudo isso. Foram vinte anos de pesquisa, laboratório e contribuição de muitas pessoas.

Assim como o personagem Fabinho, as memórias da primeira infância de muitas crianças brasileiras são das babás. Existe uma solução para isso?

O Brasil é isso. A minha babá, a Dagmar, veio para casa quando eu tinha sete anos. Mas, mesmo assim, eu consegui criar um vínculo forte com a minha mãe porque ela não trabalhava. Já a minha irmã menor, que tinha três anos, tem uma conexão muito mais forte com a Dagmar. Meu pai, por exemplo, não me deixava assistir televisão e, por isso, até hoje eu não tenho esse hábito. Em compensação, a minha irmã senta com o marido e os quatro filhos na frente do aparelho, em decorrência de uma herança que não veio dos meus pais. Eu já vi vários filhos de amigas minhas descer do quarto para dormir com a empregada. Esse é um debate que temos que abrir, mas não tem uma saída pronta. Outro dia, uma jornalista inglesa me perguntou no meio da entrevista o que eu achava que ela deveria fazer em relação à filha de sete meses. Obviamente, eu falei que não tinha uma fórmula. Mas se os pais, os homens, pegassem metade da responsabilidade não precisaria de nenhuma babá. O pai dos meus filhos ajudou no máximo 2%. Eu aguentei a responsabilidade dos outros 98%, além de continuar minha carreira no cinema. Nos países nórdicos, por exemplo, os homens ganham seis meses de licença paternidade. Se um homem limpa a bunda de uma criança é claro que ele se transforma, amadurece e cria uma relação de intimidade com o filho. Além disso, na Europa existem mais creches disponíveis. Aqui no Brasil, ou a mulher deixa o filho na casa da mãe ou doa para alguém. Essa é uma discussão muito importante porque a mulher nunca mais vai parar de trabalhar, “somos todas Jéssica”.

Existe uma grande dificuldade de se fazer cinema independente no Brasil e, consequentemente, de pautar questões mais complexas. Nesse caso, apesar da crítica social, ele foi distribuído pela Globo Filmes. Como se construiu essa relação?

Toda a cadeia do cinema entende que ele é um filme de arte. Até a própria Regina Casé já deu entrevista afirmando que não sabia se ele ia chegar ao grande público. O que caracteriza o blockbuster brasileiro é ser televiso. Um filme de sucesso não pode ter apenas a Regina, mas deve ser filmado com enquadramento, luz e superficialidade das novelas. A indústria, por entender que as pessoas procuram produtos com uma linguagem familiarizada, coloca dinheiro apenas nessas produções. O meu filme não tem nada disso. Em relação à Globo Filmes, o filme chegou pronto por lá. O chefe, Edson Pimentel, é apaixonado pelo filme e acreditou na sua potência. Não houve um grande dinheiro investido em publicidade, não estamos em ônibus, outdoor, etc. Estamos apenas no facebook e no boca a boca. A Globo Filmes está abrindo portas dentro da sua programação, mas, no fundo, este é um filme de guerrilha. Apesar de ter sido tratado como um filme de arte, a bilheteria está provando exatamente o contrário.

Por Claudia Rocha e Guilherme Weimann

Acesse no site de origem: “No Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher, branco em preto e rico em pobre”, diz Anna Muylaert (Brasil de Fato, 17/09/2015) ‘Mulher que faz sucesso é entendida como perigosa’, diz Anna Muylaert

(G1, 10/09/2015) Ao G1, diretora de ‘Que horas ela volta?’ fala sobre repercussão do filme. ‘Ganhei prêmios, mas ninguém tem oferta de trabalho a me fazer’, declara.

Esse é o ano de Anna Muylaert. Diretora de “” (2002), grande vencedor no , e “É proibido fumar” (2009), melhor filme e roteiro em Brasília, a paulistana de 51 anos está internacionalmente conhecida por sua obra mais recente, “Que horas ela volta?”, que estreou em 22 países.

A diretora Anna Muylaert lança o filme ‘Que horas ela volta?’ (Foto: Divulgação/AlineArruda/Casé Assessoria) O filme, com Regina Casé no papel da empregada doméstica Val, foi elogiado pela crítica do “NY Times”, “Le Figaro”, “El Pais” e “Guardian”. Recebeu prêmios no Festival de Berlim, na Alemanha, e de Sundance, nos EUA. Nesta quinta (10), o longa pode ser escolhido pelo Ministério da Cultura como representante do Brasil no Oscar 2016.

“Apesar de tudo isso, parece que ninguém tem uma oferta de trabalho a me fazer. Se eu fosse homem, acho que seria diferente, porque uma mulher que faz sucesso numa área dominada por homens ainda é entendida como uma figura que pode ser perigosa”, diz Anna, ao G1.

Em um debate sobre “Que horas ela volta?”, em Recife, Anna enfrentou um “show de machismo” protagonizado pelos diretores Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Sobre o episódio, ela conclui que as mulheres precisam aprender a ser um pouco mais agressivas. Leia abaixo a entrevista.

G1 – Você se inspirou em alguma história para fazer o filme? Quando surgiu a ideia? Anna Muylaert – Comecei a escrever o roteiro há 20 anos, logo depois de ter meu primeiro filho. Eu, que sempre dei muita ênfase na carreira profissional, de repente percebi que o trabalho da mãe não era apenas o trabalho mais importante do mundo, era um trabalho sagrado. Ao mesmo tempo, atentei para o fato de que, no meu meio social, este era um trabalho desvalorizado, e que muitas mulheres preferiam entregar cotidianamente seus filhos aos cuidados de babás com baixos salários. E, muitas vezes, essas mulheres tinham que largar seus filhos para poder cuidar dos filhos dos outros. Percebi que na figura da babá estavam contidos grandes paradoxos da sociedade brasileira: paradoxos sociais, afetivos e culturais que circundavam todos em relação à questão da educação. Me inspirei na história de Edna, que foi babá de meu caçula anos atrás, e a personalidade de Val me inspirei na Dagmar, que trabalhou na casa de minha mãe quando eu era criança.

G1 – Por que escalar a Regina Casé como a Val? Anna Muylaert – Porque sempre a considerei uma atriz estupenda, pela proximidade dela com o tema e pelo fato de eu achar que, numa única figura, ela tem as raças branca, preta e índia, as três raças principais do Brasil. G1 – A Jéssica [interpretada por Camila Márdila] é tão protagonista do filme quanto a Val. Em quem você se inspirou para criar essa personagem? Anna Muylaert – Não me inspirei em ninguém especificamente, mas quando percebi que Jéssica seria essa personalidade livre e rebelde decidi que ela seria pernambucana porque os sinto muito assim.

G1 – Você acha que o cinema brasileiro ainda falha em representar as mulheres? Anna Muylaert – Acho que o cinema mundial tem a tendência de representar a mulher a partir de uma visão masculina, ou seja, sempre bela, magra, charmosa, dengosa, frágil etc. Mesmo em filmes super pop, onde o homem é rebelde ou criminoso, as mulheres nunca saem desses padrões descritos acima – e estes padrões não representam a maioria das mulheres.

G1 – A PEC das domésticas foi regulamentada apenas em junho deste ano e seu filme critica o modo como os patrões tratam suas empregadas. Há uma mudança de comportamento? Anna Muylaert – Não tenho dúvida. Os números provam. Há dez anos 20% das empregadas dormiam no serviço. Hoje apenas 2% dormem no serviço. Creio que isso não tem mais volta. O que estava no escopo do escravagismo, está virando profissão. Todo mundo quer trabalhar e voltar pra casa. Todo mundo prefere viver a própria vida em vez de viver a vida do outro.

G1 – O seu filme é bem otimista porque nem todas as domésticas conseguem a libertação da Val. Esse final foi pensado desde o começo ou houve muitas mudanças? Anna Muylaert – Sim, comecei a escrever esse filme em 1996. O roteiro passou por várias mudanças ao longo destes 19 anos. A versão rodada foi escrita em julho de 2013, meses antes da filmagem. Eu tentei dar um final com esperança para a filha da empregada, mas não um final de novela onde ela ficaria rica como cantora famosa ou por um casamento com o patrão. Eu pensei muito para achar o final como ficou.

G1 – Você postou no Facebook a mensagem de uma fã do filme que se emocionou ao lembrar da babá. Como tem sido a reação do público? Anna Muylaert – Tem sido uma alucinação! Recebo mensagens praticamente a cada 10 minutos no Facebook ou outras redes sociais, todas muito emocionadas. Muitos me agradecem pelo filme e algumas contam histórias pessoais. Eu leio todas e respondo todas. Esse contato está sendo vibrante tanto para mim quanto para parte da equipe com quem compartilho tudo.

G1 – Você já ouviu alguma reação negativa sobre seu filme? Anna Muylaert – Críticas escritas houve poucas negativas. Críticas políticas, de gente que não gosta do filme, eu estava esperando que acontecessem, mas não ouvi ainda. Mas ouvi relatos de reações de desaprovação a atitutes da Jéssica, tanto durante as sessões como depois, para as atrizes. E também ouvi dizer de duas mulheres que saíram do cinema na cena que SPOILER a Val entra na piscina. Sair do cinema quando a personagem está se libertando é um sinal de que elas estavam desaprovando essa evolução da personagem.

G1 – Você promoveu uma sessão do filme para empregadas domésticas. Como foi a experiência? Anna Muylaert – Foi bem interessante. A sessão aconteceu num domingo, no Belas Artes, no centro da cidade, que não é a região delas, e não foram mais que 70 pessoas. No entanto, quem estava ali, ficou muito emocionado e levantou questões importantes. Depois eu soube que um grupo saiu de lá e foi discutir questões, segundo me escreveram, que estavam presas há muito tempo. Muita coisa veio à tona depois da sessão porque o filme funciona como um espelho. O filme descontrói um jogo que todos nós estamos jogando, seja em que posição estivermos.

G1 – No exterior, o título do filme é ‘The second mother’ (‘a segunda mãe’). Por que essa tradução? Como os estrangeiros entendem a questão das domésticas no Brasil? Anna Muylaert – O nosso agente de vendas internacional não gostava da tradução do ‘Que horas ela volta?’ literal para o inglês. Eu dei algumas ideias, dentre elas, ‘A porta da cozinha’, ‘A segunda mãe’, ‘Quase da família’, ele escolheu ‘A segunda mãe’. Quando o filme termina, os estrangeiros perguntam: mas isso existe mesmo ou é ficção? Daí eu digo que existe, mas que está mudando e eles ficam fazendo mil perguntas sobre o Brasil e sobre as mudanças recentes no país. Mas logo depois ampliam o debate para relações de poder de maneira geral, e isso existe em todas as sociedades, talvez não no Xingu.

G1 – Depois de Berlim e Sundance, qual seria a importância de seu filme ser escolhido para representar o Brasil no Oscar 2016? Anna Muylaert – Todo ano o Brasil escolhe um filme para mandar pra comissão do Oscar. Tomara que seja o nosso este ano. Isso com certeza traria mais mídia para o filme e atrairia mais público para o cinema aqui no Brasil. Em janeiro deste ano, a diretora Anna Muylaert e a atriz Camila Márdila foram premiadas no Festival de Sundance (Foto: Chris Pizzello/Invision/AP)

G1 – Se o seu filme for escolhido, você será a primeira mulher desde Suzana Amaral, em 1986, a representar o país lá fora. Por que as diretoras brasileiras não são reconhecidas? Anna Muylaert – Nossa! Eu não tinha essa informação. Eu precisaria estudar essa lista de filmes brasileiros que tentaram vagas no Oscar e saber os concorrentes daquele ano para saber se as diretoras não foram reconhecidas ou se os filmes escolhidos foram realmente os mais apropriados. Quanto ao não reconhecimento em geral das diretoras, creio que toda a nossa sociedade é machista. E a direção é um cargo muito masculino porque é um cargo de comando. A sociedade machista se sente mais segura dando um cargo de comando para um menino sem experiência do que para uma mulher com experiência comprovada. Isso pode ser triste, mas é real.

Se um canal a cabo vai fazer uma nova série, ele vai chamar mulheres assistentes, diretoras de produção, montadoras etc, mas dificilmente vai escolher uma mulher para fazer direção geral. Quanto maior for o orçamento, mais difícil será escolherem uma mulher. Para dar um exemplo, eu estou no mercado há muito tempo, já provei minha competência e seriedade em diversos trabalhos tanto no cinema, quanto na televisão. Este ano ganhei prêmios importantes fora do país, no entanto nenhuma televisão me fez alguma oferta de trabalho. Apesar de tudo isso, parece que ninguém tem uma oferta de trabalho a me fazer… Se eu fosse homem, acho que seria diferente porque uma mulher que faz sucesso numa área dominada por homens ainda é entendida como uma figura que pode ser perigosa.

G1 – De ‘Durval Discos’ para hoje, como você enxerga seu amadurecimento? Anna Muylaert – São quase 15 anos, né? Acho que evolui muito tanto como pessoa, como mãe, e também como diretora a partir da expêriencia acumulada com outros filmes e trabalhos. Mas também a chegada do digital no processo de filmagem – ‘Que horas ela volta?’ é o meu primeiro filme rodado em digital – permitiu uma ampliação enorme no meu contato e na minha experiência com os atores.

G1 – O seu filme tem uma mulher como protagonista e justamente o seu protagonismo como diretora bem-sucedida causou um debate atordoado com Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Como fazer para que os homens saibam ser coadjuvantes da história? Anna Muylaert – Isso é um grande debate que estamos começando, né? O machismo está aí há milênios. Ele não é um monstro, é um conjunto de regras vigente na nossa sociedade tanto para homens, quanto para mulheres. Até os anos 60, as mulheres estavam em casa lavando roupa e cuidando dos filhos. Não faz nem cem anos que começamos a ocupar espaço no mercado de trabalho. Acho que ainda temos um excesso de humildade e até de timidez, enquanto os homens têm um excesso de vaidade e gostam de fazer auto-propaganda. Ou seja, eles se sentem bem como protagonistas e nós estamos engatinhando para aprender a deixar de ser apenas coadjuvantes.

Mas atualmente, com as mulheres provando sua competência e conseguindo resultado em várias áreas profissionais, tanto nós mulheres temos que aprender a ocupar o espaço do sucesso quanto os homens têm que aprender a sair do centro do palco e deixar uma mulher brilhar, sem se sentir ameaçado ou inferiorizado. Acho que é um aprendizado mútuo. Mas com certeza se abrimos esse debate e se os homens perceberem o quanto nos humilham em pequenas atitudes diárias e nós mulheres começarmos a não aceitar essas humilhações, a coisa pode melhorar. De forma geral, acho que a mulher precisa aprender a ser um pouco mais agressiva e o homem precisa aprender a ser um pouco mais contido.

Letícia Mendes

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