Trajetórias E Projetos-De-Vida De
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“ELA TÁ FALANDO, SERÁ QUE É VERDADE? MAS TÁ NO JORNAL”: TRAJETÓRIAS E PROJETOS-DE-VIDA DE ROSALINA AIRES DE PAULA E ALÉCIO GÃRFÉJ OLIVEIRA SOBRE A RETOMADA DE VENTARRA (EREBANGO-RS) E FORMAÇÃO DA POR FI GA (SÃO LEOPOLDO-RS) . Gabriel Chaves Amorim1 CAPES/PPGCS-UNISINOS [email protected] Com o objetivo de descrever a história da retomada da Terra Indígena Ventarra, em Erebango-RS, bem como sua influência na formação de outras áreas, se aborda narrativas através da técnica da história oral. Não obstante a um levantamento criterioso de fontes primárias alternativas que confrontassem a memória, reflexionando sobre o estatuto da verdade junto ao próprio entrevistado. A hemerografia levantada Correio do Povo, Zero Hora, Jornal do Comércio e Jorna Vale dos Sinos proporcionam um cruzamento complementar aos discursos da informante. Concluindo que a trajetória vivenciada na retomada de Ventarra serviu como gerador de um acúmulo que auxiliou a formação de uma comunidade em São Leopoldo. A migração para a Por Fi Ga significou a formação de novos projetos-de-vida como a docência e a venda do artesanato. Palavras-chave: Kanhgág; Terra Indígena Ventarra; Terra Indígena Por Fi Ga; Trajetórias; Projetos-de-vida Introdução. Esse trabalho aborda a trajetória de Rosalina Aires de Paula, Kasy Féj, nascida em Abril de 1967 na cidade de São Valentim, filha de Adélia Ferreira de Paula e João Pedro Aires de Paula. Também de seu companheiro, Alécio Gãrféj de Oliveira, 50 anos de idade, nascido em 17 de Dezembro de 1969, em “Ventarra”, município de Erebango, filho de Luís de Oliveira e Domingas de Oliveira: Pesquisador: Eu vi que os parentes do Alécio foram lideranças... Rosalina Aires de Paula: Sim o pai, foi cacique e o tio dele Pesquisador: O nome do pai dele está em nome de uma escola? Rosalina Aires de Paula: Porque ele reivindicou Ventarra né, ele fez a retomada, os brancos tiraram ali. Passados anos depois ele se pegou com o pessoal do Ligeiro e do Votouro vieram reivindicar e conseguiram. Por isso botaram o nome da escola Luís de Oliveira. (ROSALINA, 11/10/2019) 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 Ao realizar levantamento prévio, pude encontrar a escola Kanhranran Fã Luís de Oliveira localizada na área indígena de Ventarra no município de Erebango2. Como bem sinalizou Rosalina nas narrativas, a história da retomada de Ventarra é a principal justificativa para a escola ser nomeada em homenagem ao sogro. A reinvindicação de Ventarra é um processo que se inicia oficialmente na década de 1990, contudo, o problema se dá com a retirada dos Kanhgág da Ventarra em 1960, quando foram desalojados. Devido ao programa Estadual de reforma agrária do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (IGRA), que assentou colonos fóg3, onde indígenas tradicionalmente ocupavam e tinham seus cultivares, o que garantia uma sobrevivência quase autônoma da economia branca. A transferência dos indígenas que habitavam "a Ventarra” aconteceu em 1963 por ordem do Governo do Estado, sob o comando de Leonel Brizola que negociou com os índios permutas oficiais, como saúde básica, moradia e direitos de fóg em troca do toldo. A contrapartida nunca chegou, a população indígenas esperou o atendimento do Estado, como era feito com os colonos do IGRA, contudo, a realidade que encontraram foi de proletarização agropastoril quase forçada nos puxirões e roças forçadas chamadas de panelões. Segundo o índio Juvêncio de Paula: “Se nóis queria viver, comer, vestir, nóis tinha de agarrar [...] vendê os nossos objeto [...] não queríamos contrariar [...] precisava falá com os home, que estão em lugá de nossos pai, e nunca falavam orientação coisa nenhuma.4”. Para Juvêncio, as parcialidades Kanhgág aceitaram inicialmente a proposta aguardando concluir um acordo que beneficiasse as parcialidades presentes nesta demarcação, contundo, o Governo de Leonel Brizola colocou parcialidades Kanhgág de Ventarra em Votouro. Um erro já que são parcialidades distintas: “Temos além disso que vivê com patrícios que tem um sistema de vida um pouco diferente do nosso5”. No ano de 1991, Luíz de Oliveira, lidera o grupo de índios que ingressou com a ação judicial para retomar a posse das terras. Provavelmente inspirados pelos discursos 2 Segundo o Kofá Faustino Feliciano, no idioma kanhgág a palavra “ere” dignifica “campo”. Enquanto a palavra “mág”, de pronúncia “bangng” significa grande. Portanto os fóg denominaram de Erebango por ouvirem os kanhgág nominarem assim o local. Outro caso é Erexim, onde “si”, de pronúncia “xí”, significa pequeno, (DIARIO DE CAMPO, 11 de Outubro de 2019) 3 Fóg : Não-indígena 4 Depoimento do Índio Juvêncio de Paula ao Jornal Correio do Povo. LISBOA. Tomaz de A. SCWADE. Egídio. Drama de 1.080 famílias indígenas rio-grandenses. Jornal Correio do Povo. Porto Alegre. 26.04.1968 5 (Ibid.) de retomada que construídos durante anos de afastamento da terra. A retomada foi possível, devido a oportunidade legal que se apresentava com a nova Constituição (1988). Movimento também influenciado pelas outras retomadas que aconteceram durante os anos de 1990, como a dos Kanhgág de Iraí que sob o comando de Tokfyn em 1992 recuperaram 275 hectares ao redor da reserva indígena6. Em 1993 a população kanhgág natural de Ventarra decide marchar, literalmente, foram a pé, em direção aos territórios de seus antepassados: Erebango - Cerca de 60 índios da Reserva do Votouro, em São Valentim, no Norte do Rio Grande do Sul, invadiram ontem a Granja Petry, em Erebango, para pedir a demarcação de terras da localidade de Ventarra Alta. O cacique Luiz Oliveira, que está comandando a operação, disse que os índios exigem a demarcação de 700 hectares, de onde foram expulsos e removidos para outras áreas do Estado. Na terra reivindicada pelos índios há um colégio, uma fonte de água e um cemitério indígena, única prova da existência da antiga reserva. O local é habitado por 12 famílias de agricultores, que permaneceram na área sem sofrer pressão dos índios. O cacique Luiz Oliveira disse que esta é a única forma de pressionar o governo para que a demarcação seja feita. Os índios estão esperando apoio de outras reservas e prometem não sair do local enquanto o governo federal não se manifestar a respeito. As terras estão registradas em nome de vários proprietários, que deverão se reunir hoje para discutir uma solução. (ZERO HORA, 09-08-1993) A matéria jornalística da época da reocupação mostra a articulação de outras comunidades nesta retomada. A narrativa da matéria ressalta que o cemitério seria a única prova de que ali existiu uma reserva. Referenciada pelo fog como “invasão”, para o kanhgág a ótica da análise é a do retorno. Ao ocuparem e levantado um acampamento, barracos construídos, roças iniciadas e ingresso com pedidos de auxílio ao Estado. O pedido de remarcação de 700 hectares de terra que pertenciam a reserva indígena Toldo da Ventarra. Os caingangues dizem que o Estado foi o responsável pela retirada dos Índios e pela venda da terra a colonos. O cacique Luiz de Oliveira foi a Passo Fundo pedir auxílio à Funai. Disse que os caingangues estão preparados para receber um reforço de cerca de 3 mil índios da reserva de Charrua e São Valentim, que seria usado para invadir às propriedades. Ontem os caingangues montaram uma barreira na estrada vicinal [...] só podem passar os que residem no lugar [...] Na área invadida, há 40 famílias de agricultores, que compraram as terras do governo em 1963, quando os índios foram transferidos para outras reservas (FERREIRA, 12-08-19937) Segundo a fonte jornalística, uma comissão de Agrimensores e Antropólogos da FUNAI havia sido montada, “concluindo os levantamentos histórico e fundiário na localidade de 6 Zero Hora. Porto Alegre. 08-09-1993 7 FERREIRA, Marielise. Índios. Caingangues se preparam para invadir área. Jornal Zero Hora. Porto Alegre. 12-08-1993. Ventarra Alta, em Erebango, onde os índios caingangues [...] estão acampados. Atualmente a área reivindicada pelos indígenas é ocupada por colonos"8. Os jornais do período representam os Kanhgág como intrusos provenientes de Votouro, esta dúvida é criada pela mídia que confere a legitimidade ao colono. Na década de 1960 o governo estadual negociou, de forma escusa, as terras dos indígenas e as repassou para os colonos fóg. Mesmo sem a ordem que reintegrava a posse da terra para o grupo, de Luiz de Oliveira, são organizadas residências e lavouras.“[...] Os 150 índios acampados no local continuaram a lavrar a terra para o plantio do milho e o cacique Luiz de Oliveira participou de uma reunião em Passo Fundo com [...] a Funai9”. Com a estrada fechada o problema aumentou, pois os agricultores e frigoríficos dependiam dela para escoar a produção. De alguma forma, a ação violenta surtiu efeito, até mesmo nos agricultores, que se solidarizaram com os indígenas, talvez porque buscassem reaver as terras perdidas por meio de um acordo com o governo. Através de ação judicial, os índios conseguiram que fosse feito o levantamento de Ventarra Alta, contudo, a reintegração de posse para os Kanhgág, não foi resolvida. Após reconhecer a área indígena como, os Kanhgág liderados por Luiz de Oliveira, conseguiram o prévio reconhecimento da retomada e também com que fossem atendidos pelos órgãos públicos: "Ontem, a FUNAI enviou alimentos para os 150 índios [...] Cerca de 50 crianças já foram matriculadas [...] e começaram a frequentar as aulas ontem." (FERREIRA, 02-09-1993) Depois de retomar a terra, o período foi de aguardar uma posição das autoridades, mas enquanto isso não acontecia, os problemas aumentavam. Falta de moradia adequada, saneamento básico, alimentação e outras necessidades básicas. A alternativa encontrada nesse contexto foi de ocupar os prédios já existentes nas áreas, mesmo que isso contrariasse a decisão judicial de aguardar a demarcação e reintegração legítima.