Nova Economia ISSN: 0103-6351 [email protected] Universidade Federal de Brasil

Suzigan, Wilson; Furtado, João; Garcia, Renato; Sampaio, Sérgio E. K. A indústria de calçados de Nova Serrana (MG) Nova Economia, vol. 15, núm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 97-116 Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil

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Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto A indústria de calçados de Nova Serrana (MG)

Wilson Suzigan Renato Garcia Professor do Instituto de Geociências da Unicamp Professor da Escola Politécnica da USP João Furtado Sérgio E. K. Sampaio Professor da UNESP e da Escola Politécnica da USP Mestrando em Desenvolvimento Econômico – UFPR

Palavras-chave Resumo Abstract sistemas locais de produção, Utilizando resultados de trabalho estatístico com On the basis of previous statistical work with data economia mineira, indústria base nos dados da Relação Anual de Informações and information from RAIS – Relação Anual de de calçados, Nova Serrana. Sociais (RAIS), que permitem caracterizar a indús- Informações Sociais, characterizing the Nova Serrana tria de calçados de Nova Serrana (MG) como um shoe industry as a local production system, and the Classificação JEL R12, L67, sistema local de produção, e nos resultados de pes- results of a field research work with visits and L52. quisa de campo efetuada em abril de 2002, quando interviews in local firms and institutions, this paper foram realizadas entrevistas e visitas em empresas e studies the Nova Serrana local production system as instituições locais, o artigo estuda o sistema local de a whole as well as its firms and supporting produção de Nova Serrana tanto em termos do sis- institutions. The objective is to bring empirical tema como um todo quanto das empresas e institui- evidence to guide public policy and private actions ções que o compõem. O objetivo é produzir, nesses with a view to upgrade the local system in two dois níveis de análise, evidências que possam orien- spheres: (1) productive and technological, and (2) tar ações públicas e privadas, visando ao aprimora- institutional and organizational. With this purpose mento do sistema e das empresas locais em duas es- in mind, this paper first characterizes and describes feras: (1) produtiva e tecnológica, em seus vários the local system in terms of location, adjoining desdobramentos, e (2) institucional e organizacio- influenced areas, logistics, population and number nal. Para isso, caracteriza e dimensiona primeira- of jobs, history and evolution, production structure, mente o sistema local em termos de sua localização supporting institutions, and social, cultural and e região de influência, sua logística, população e em- political contexts. Next, the paper characterizes pregos gerados, história e evolução, estrutura de local firms in terms of size, product development, produção, instituições de apoio, contexto social, trading system, cooperation between rival firms, cultural e político. Em seguida, caracteriza as em- interactions with suppliers, sources of information presas em termos de tamanho e quanto a: desenvol- for product development and on market trends vimento de produto, sistemas de comercialização, and production technologies, practices and policies relações cooperativas, interações com fornecedo- with regard to quality, financing, and other aspects. res, fontes de informação para desenvolvimento Finally, the paper summarizes the most relevant Key words de produtos e sobre mercados e processos de fa- issues for policy measures and private actions local production systems, bricação, práticas e políticas quanto à qualidade, by local firms and institutions. shoe manufacturing industry, ao financiamento e a outros aspectos pertinentes Nova Serrana (Minas Gerais). ao caso em estudo. Por fim, ressalta os problemas mais relevantes que podem ser objeto de políticas JEL Classification R12, L67, públicas e/ou de ações conjuntas das empresas e L52. instituições locais.

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 98 A indústria de calçados de Nova Serrana (MG)

1_ Introdução Os indicadores são: o Quociente Loca- O município de Nova Serrana notabili- cional (QL) e o coeficiente de Gini Lo- zou-se recentemente por concentrar gran- cacional (GL), cuja metodologia já foi de número de empresas fabricantes de apresentada em trabalhos anteriores dos 1 calçados, notadamente tênis e seus com- autores, eosnúmerosabsolutosdeem- ponentes. Essas empresas respondiam, pregos e estabelecimentos por classes de em 2002, por 55% da produção nacional indústria (CNAE 4 dígitos) para a mi- 1 Ver particularmente de tênis e geravam entre 20 e 25 mil em- crorregião de Divinópolis e o município de Nova Serrana. Esses indicadores per- Suzigan et al. (2003), publicado pregos diretos e indiretos, segundo esti- pela Nova Economia. mitem caracterizar Nova Serrana como mativas do Sindicato da Indústria do Cal- 2 O significado do conceito um sistema local de produção.2 Os resul- çado de Nova Serrana (Sindinova). Dada de sistema local de produção tados da pesquisa de campo, por sua sua relevância, não só do ponto de vista aqui adotado é praticamente o vez, são constituídos por dados e infor- mesmodoconceitode local/regional como também de sua par- mações coletados e sistematizados com “sistema produtivo e ticipação na indústria brasileira de calça- inovativo local” adotado pela base nas entrevistas e nas visitas. Na im- dos, foi objeto de um dos estudos de ca- RedeSist, que o distingue do possibilidade de aplicar questionários por sos realizados no âmbito do projeto de conceito de “arranjo amostragem estatística, procurou-se se- produtivo local”. Este pesquisa Sistemas Produtivos Locais na lecionar um grupo de empresas que fosse apresenta vínculos incipientes Indústria Calçadista Brasileira: avaliação entre atores locais (Cassiolato representativo do universo local com- e sugestões de políticas, realizado em 2001- e Lastres, 2003). Optamos, posto majoritariamente por micro, pe- 2003 com apoio financeiro do CNPq, do porém, pela utilização de um quenas e médias empresas. A maioria das conceito único e simples de qual este artigo foi derivado. empresas visitadas foi fundada nas déca- sistema local de produção, O artigo apóia-se em duas fontes seguindo a tradição de estudos das de 1980 e 1990, emprega entre 20 e de dados e informações: de pesquisadores italianos 110 pessoas (sem contar o emprego gera- (ver, por exemplo, Lombardi, 1. indicadores quantitativos elabo- do em atividades terceirizadas), fabrica tê- 2003) e considerando que as rados com base nos dados da nis adulto/infantil e esportivos (uma delas distinções entre sistemas Relação Anual de Informações éfabricantedesandálias),evendepredo- resumem-se a graus variados de desenvolvimento, de Sociais (RAIS); minantemente no mercado interno. As integração da cadeia 2. resultados da pesquisa de campo entrevistas e as visitas em instituições lo- produtiva, de presença de efetuada em abril de 2002, quan- cais incluíram o Sindicato da Indústria indústrias correlatas, de do foram realizadas entrevistas (Sindinova) e o Centro de Desenvolvi- articulação e interação entre agentes e instituições e visitas em empresas e institui- mento Empresarial, que abriga um centro locais, e de capacidades ções locais. de modelagem de calçados e um laborató- sistêmicas para a inovação.

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 Wilson Suzigan_João Furtado_Renato Garcia_Sérgio E. K. Sampaio 99 rio de ensaios e testes, além de coordenar nentes ao caso em estudo. Por fim, res- vários tipos de assessoria e serviços em- saltam-se os problemas mais relevantes presariais e realizar cursos e treinamentos. que podem ser objeto de políticas públi- De acordo com a metodologia ado- cas e/ou de ações conjuntas das empre- tada, o sistema local de produção de Nova sas e instituições locais. Serrana é analisado nas seções seguintes tanto em termos do sistema como um to- 2_ Localização e região do quanto das empresas que o compõem. de influência O objetivo é produzir evidências, nesses dois níveis de análise, que possam servir Nova Serrana está localizada na região de orientação a ações públicas e privadas, Centro-Oeste do Estado de Minas Gerais, visando ao aprimoramento do sistema e às margens da BR – 262, a 112 km de Belo dasempresaslocaisemduasesferas: Horizonteea42kmdeDivinópolis, cida- de mais importante e que dá nome à mi- 1. produtiva e tecnológica, em seus crorregião que contém o município de No- vários desdobramentos; va Serrana (ver Mapa 1). As atividades da 2. institucional e organizacional. indústria de calçados local se ramificam Procura-se, assim, caracterizar e por vários municípios vizinhos, que não só dimensionar primeiramente o sistema participam do processo de fabricação de local em termos de sua localização e re- calçados, como também fornecem mão- gião de influência, sua logística, popula- de-obra para a indústria de Nova Serrana. ção e empregos gerados, história e evolu- As etapas terceirizadas do processo de- ção, estrutura de produção, instituições produção são distribuídas por municípios de apoio, contexto social, cultural e polí- num entorno de 30 a 40 quilômetros, in- tico.Emseguida,procura-secaracterizar cluindo Divinópolis, São Gonçalo do Pará, as empresas quanto a: desenvolvimento Itaúna e Perdigão, na microrregião de Di- de produto, sistemas de comercialização, vinópolis, além de outros de microrregiões relações cooperativas e associativismo, circunvizinhas, incluindo os municípios de relações entre fabricantes de calçados e Oliveira, Bom Despacho, e Pará seus fornecedores, fontes de informação de Minas. Ademais, segundo informações para desenvolvimento de produtos e so- de empresários locais, mais de cem ônibus bre mercados e processos de fabricação, partem diariamente desses e de outros mu- práticas e políticas quanto à qualidade, ao nicípios levando trabalhadores para a in- financiamento e a outros aspectos perti- dústria de Nova Serrana.

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Mapa 1_ Localização e região de influência da indústria de calçados de Nova Serrana, MG

Município de Nova Serrana Microrregião Belo Horizonte

Microrregião Divinópolis

BR 262 112 km de Belo Horizonte 42 km de Divinópolis

Fonte: Elaboração própria.

Alguns dos municípios vizinhos, Serrana; ao contrário, o novo pólo poderá entre os quais Divinópolis, Perdigão e São contribuir para o crescimento e o fortale- Gonçalo do Pará, também desenvolve- cimento da região, atraindo mais compra- ram, por influência do pólo de Nova Ser- dores, empresas fornecedoras de compo- rana, sua própria indústria de calçados. nentes e apoio do setor público. Perdigão, por exemplo, concentra atual- mente cerca de 100 pequenas empresas, 3_ Logística e infra-estrutura3 na maioria familiares, que fabricam pro- 3 Para a elaboração deste dutossimilaresaosdeNovaSerrana.Se- A localização de Nova Serrana às mar- item, foram utilizadas, gundo o presidente do Sindinova, Júnior gens da BR-262 é bastante satisfatória além de informações obtidas na pesquisa de César Silva, em entrevista a uma revista para as empresas locais do ponto de vista campo, aquelas disponíveis local, não existe preocupação quanto a de acesso a mercados para seus produ- no trabalho de Crocco et al. uma eventual concorrência com Nova tos, bem como para compra de matérias- (2001, p. 367-371).

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 Wilson Suzigan_João Furtado_Renato Garcia_Sérgio E. K. Sampaio 101 primas e componentes não produzidos damente, e centenas de fábricas foram localmente. Os principais mercados são sendo instaladas por toda a área urba- os dos grandes centros urbanos mais pró- na, criando um ambiente de convivên- ximos (Belo Horizonte, São Paulo e Rio cia “promíscua” entre fábricas de calça- de Janeiro), com os quais há ligações ro- dos ou componentes e residências. doviárias satisfatórias, mas há também Há também notórias deficiências condições razoáveis de acesso por rodo- no ensino médio e superior, que se refle- vias a outros mercados importantes para tem na insuficiência de capacitação técnica a produção local, tais como o interior do e gerencial local. É insuficiente também Estado e as regiões Nordeste e Centro- aofertadecursostécnicos,oqueacar- Oeste do País. Essa mesma infra-estrutu- reta falta de mão-de-obra especializada, ra rodoviária permite outra importante particularmente na operação de pesponto, forma de comercialização da produção bem como de alguns serviços técnicos es- local, ou seja, as vendas diretas realizadas pecializados, tais como modelagem, design nas próprias fábricas. e serviços financeiros. Outros componentes da infra-es- trutura física, como o suprimento de ener- gia elétrica e os serviços de telecomuni- 4_ População local cações, apresentam condições adequadas e empregos gerados pela em função de melhoramentos recentes. indústria de calçados Dados levantados pelo Sindinova mos- O município de Nova Serrana tem pou- tram que a Cemig atende 11.680 residên- co mais de 40 mil habitantes, e sua po- cias, 1.429 estabelecimentos industriais e pulação vem crescendo a uma taxa ex- 1.244 estabelecimentos comerciais no mu- tremamente alta (cerca de 8% ao ano, nicípio; revelam também que há 11.000 segundo dados divulgados pelo Sindino- terminais de telefonia fixa instalados e 3.000 va), o que denota significativo movimen- aparelhos de telefonia móvel habilitados. to migratório estimulado pela criação de Mas a infra-estrutura urbana de emprego nas atividades econômicas lo- modo geral é bastante deficiente, sobre- cais. Os dados da RAIS de 2002, referen- tudo pela falta de um planejamento que tes à microrregião de Divinópolis, indi- discipline a instalação de fábricas em áre- cam um total de 9.972 empregos formais as próprias. A cidade cresceu muito rapi- nas atividades relacionadas com a produ-

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ção de calçados na região. Entretanto, es- produção artesanal de artigos de couro e timativas realizadas pelo Sindinova, em botinas rústicas. O aprendizado na fabri- 2002, indicam que a indústria de calçados cação de calçados, porém, começou no gera cerca de 15 mil empregos diretos, e início da década de 1950, quando um dos um total de 20 mil a 25 mil empregos, pioneiros da indústria “foi para Bom Des- quando considerados também os indire- pacho aprender o ofício de sapateiro”(Almeida, tos, os formais e os informais. 1996). Na segunda metade da década, Levando-se em conta a dimensão após a emancipação do município, surgi- da população local, pode-se perceber que ram as primeiras fábricas e dois peque- há de fato necessidade de atrair mão-de- nos curtumes. O calçado produzido era obra dos municípios vizinhos, uma vez um tipo de botina de couro com solado que a proporção da população local que de pneu laminado. constitui a força de trabalho é evidente- As dificuldades de transporte e de mente insuficiente. Isso comprova o que suprimento de energia, entretanto, restrin- foi dito antes, que cerca de uma centena giam o crescimento da produção. Somen- de ônibus vai diariamente a Nova Serra- te após a ligação à rede de energia elétrica na levando trabalhadores de municípios da Cemig, em 1967, e a abertura ao tráfe- vizinhos. E ainda assim, segundo os em- go da BR-262, em 1969, é que a indústria presários entrevistados, há falta de mão- local prosperou. No início dos anos 1970, de-obra, sobretudo com qualificações mais já havia 48 pequenas fábricas de calçados elevadas, por exemplo, para as atividades em operação, todas produzindo calçados de pesponto, como já dito. de couro (Almeida, 1996). Com a chegada das primeiras agências bancárias e a insta- lação de rede de telefonia, completou-se a 5_ História: condições iniciais infra-estrutura mínima necessária para a eevolução expansão da indústria. A organização da produção de calçados O primeiro surto de rápido cresci- como atividade industrial em Nova Ser- mento da indústria de calçados de Nova rana começou na década de 1950. Ante- Serrana ocorreu entre os meados das dé- riormente, as atividades agrícolas e de cadas de 1970 e 1980. Após uma viagem pecuária leiteira parecem ter criado as dos fabricantes locais a Novo Hamburgo condições iniciais para o surgimento da (RS), em 1971, viagem essa que, segundo

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Almeida (1996), “constituiu-se em mola pro- mulado significativo conhecimento na fa- pulsora dos eventos futuros”, e a fundação bricação de calçados de couro, a mudar da Associação Comercial e Industrial de radicalmente o produto, a base tecnoló- Nova Serrana (ACINS), em 1974, os fa- gica e a organização industrial? bricantes locais de calçados se organiza- Crocco et al. (2001, p. 344) ofere- ram, para intensificar o aprendizado, in- cem duas justificativas relevantes: corporar novas tecnologias e melhorar a 1. o aproveitamento pelos fabrican- qualidade dos produtos e o gerenciamen- tes locais da “janela de oportuni- to das empresas. A produção diversifi- dade” oferecida pelo boom do ma- cou-se com a fabricação de mocassins e terial sintético; sandálias de couro. Das 48 fábricas exis- 2. a simplicidade na fabricação de tentes em 1972, pulou-se para cerca de tênis em comparação ao calça- 400 em 1985. O auge do crescimento pa- do de couro. rece ter ocorrido no ano de 1986, com o Plano Cruzado, mas a crise subseqüente, Sementrarnoméritodessasjustificati- que marcou o fim do plano, atingiu pro- vas, mesmo que verdadeiras, elas não fundamente a indústria local. respondem à pergunta feita acima. O que É nessa época que se verifica uma parece ter ocorrido é que, em reação à mudança radical na trajetória da indústria crise dos anos oitenta, um empresário de calçados de Nova Serrana, isto é, o iní- imitador local, burlando as regulamenta- cio da fabricação de tênis. Essa mudança ções de marcas e patentes, iniciou a pro- representa verdadeira bifurcação na evo- dução de “similares” de marcas famosas 4 lução da indústria por três razões: de tênis, especialmente a Nike. O suces- so comercial desse tipo de produto deu 1. muda o patamar de taxas de cres- origem a um processo, que, por fim, se cimento da produção; revelou virtuoso, de aprendizado e disse- 4 Crocco et al. (2001, p. 344, 2. altera radicalmente a base tecnoló- minação de conhecimento na fabricação nota n. 15) afirmam que o gica da produção; de tênis. A partir dessa origem obscura, a primeiro empreendimento 3. modifica também a forma de orga- fabricação de tênis atraiu muitas outras produtor de tênis em Nova nização da produção industrial. Serrana fabricava tênis empresas, e a história do pólo mudou, falsificados com marcas de A pergunta que intriga é a seguinte: o que verificando-se uma guinada em sua evo- grifes famosas. levou a indústria local, que já havia acu- lução. Hoje a produção de tênis respon-

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 104 A indústria de calçados de Nova Serrana (MG) de pela quase totalidade da produção de é de tênis, o que caracteriza o sistema lo- calçados de Nova Serrana, que participa cal como altamente especializado nesse com cerca de 55% da produção nacional. tipo de calçado. Mas há também conside- A falsificação foi reduzida a cerca de 3% rável produção de chinelos e sandálias, da produção, o que equivale a cerca de 10 fabricados predominantemente com ma- mil pares/dia.5 terial sintético. Como esse tipo de produ- to é geralmente de baixo valor, especial- mente os chinelos, sua participação no 6_ Estrutura da produção total do valor da produção local de cal- e forma de organização industrial çados é pouco expressiva. O sistema local de produção de calçados Essa especialização na produção de Nova Serrana comporta entre 850 e de tênis e outros calçados de material sin- 900 empresas,6 das quais 368 eram asso- tético explica a ausência, em Nova Serra- ciadas ao Sindinova em 2002. A distribui- na, de alguns segmentos da cadeia pro- ção das empresas por tamanho, segundo dutivaeapequenapresençadeoutras os dados da RAIS/2002, mostra grande classes de atividades que compõem o sis- predominância de micro/pequenas em- tema local de produção, tais como má- presas: 70,5% dos estabelecimentos das quinas e equipamentos. A principal ma- 5 Segundo um dos classes “Fabricação de tênis de qualquer téria-prima – resinas termoplásticas para entrevistados, os falsificadores material” e “Fabricação de calçados de produção de solados – é adquirida dos remanescentes são de dois outros materiais” no município de Nova pólos petroquímicos de São Paulo, da tipos: o da empresa que “quebra” e volta na Serrana empregam até 9 pessoas. Há ape- Bahia e do Rio Grande do Sul e é forneci- informalidade, falsificando nas 7 empresas com mais de 100 empre- da por distribuidores locais às empresas (que o folclore local chama de gadosnessasduasclassesdeindústria. fabricantes de calçados que a encami- “ressurreição”), e o da Isso é confirmado pelos resultados das nham a empresas especializadas na inje- empresa que falsificou uma vez e ficou “viciada”. entrevistas, que indicam um universo ção de solados. Alguns componentes mais 6 O levantamento estatístico composto por algumas empresas de por- simples são produzidos localmente, mas feito pelo Sindinova aponta te médio e grande número de micro/pe- com matéria-prima de fora da região. Este um total de 854 empresas em quenas empresas. é o caso, entre outros, de cadarços, etique- fins de 2001/início de 2002, Essas empresas produzem um to- tas (enfeites e adesivos de plástico), pal- mas, um folheto de divulgação que circulou no próprio tal aproximado de 330 mil a 350 mil pa- milhas, caixas de papelão, componentes sindicato em abril de 2002, res/dia. A quase totalidade da produção de borracha e de espuma. Componentes mencionava 900 empresas.

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de couro têm maior conteúdo local, assim Entretanto, uma característica notável como alguns dos equipamentos, como fa- da organização industrial desse sistema cas e navalhas para balancins e matrizes é a divisão de trabalho entre fabricantes para solados. Mas a maior parte dos com- de calçados e empresas especializadas ponentes, das matérias-primas, das má- na produção de solados (“injetoras”, no quinas e dos equipamentos é fornecida jargão local). Essas empresas, em núme- por empresas que não são da região.7 ro de 30 a 50, conforme as fontes locais, Os dados da Tabela 1 compro- operam com máquinas injetoras que têm, vam que apenas duas das classes de in- cada uma, capacidade de produção de dústria que compõem o sistema local 1.000 pares/dia de solados. As maiores de produção de calçados têm indicado- chegam a ter 25 máquinas injetoras.

7 Incluindo todas as res incontestáveis de forte concentra- Uma vez que os fabricantes de máquinas do processo de ção na microrregião que inclui Nova calçados, em sua maioria, não têm escala injeção, fabricação e Serrana, a saber: as de “fabricação de para produção própria de solados,8 essa montagem; matérias-primas tênis de qualquer material” e as de “fa- divisão de trabalho torna possível a rea- como TR, PU, PVC, EVA, cola, nylon, curvim, bricação de calçados de outros mate- lização de importantes ganhos de escala linhas, tecidos; componentes riais”. Outras classes de indústria que por parte do conjunto dos fabricantes de metais, e caixas de fazem parte do sistema estão presentes de calçados locais. Mas o que é mais no- papelão (cuja origem é na região, mas com indicadores menos tável em termos de organização indus- principalmente Jaú (SP). significativos de concentração. São elas: trial é a classificação das empresas inje- 8 As poucas que têm, segundo informações colhidas fabricação de acessórios de vestuário, toras, do ponto de vista fiscal, como nas entrevistas, compram curtimento e preparação de couro, arte- prestadoras de serviços aos fabricantes máquinas injetoras usadas, fatos de couro, calçados de couro, cal- de calçados. Estes compram as matérias- provavelmente obsoletas, o çados de plástico, embalagens de papel primas, entregam-nas às injetoras junto que implica menor produtividade e maiores e papelão, artefatos de borracha, arte- comasmatrizesdossoladosaserpro- custos de produção. fatos de plástico e máquinas para in- duzidos, e pagam pelo serviço prestado 9 Com a recente mudança na dústriadevestuárioecalçados. de injeção dos solados. Isso reduz a car- legislação tributária da Nesse sentido, as inter-relações ga tributária na cadeia produtiva, já que COFINS, o custo desse produtivas são relativamente fracas no - serviço deve ter sido onerado as injetoras não pagam IPI; pagam ape e repassado para os sistema local de produção de calçados nas o ICMS sobre o valor agregado.9 fabricantes locais de tênis. de Nova Serrana e municípios vizinhos.

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Tabela 1_ Microrregião de Divinópolis – Indústria de Calçados e Correlatas, 2002 Part.Rel.no Índice de Gini Quociente Número de Total do Número de Classe CNAE (4 dígitos) Locacional da Locacional Empregos Emprego da Estabelecimentos Classe* Emprego* Formais Classe (%)*

Fabricação de acessório 1821 0,58 2,09 14,2 253 28 do vestuário Curtimento e preparações 1910 0,83 2,03 13,8 417 13 em couro Fabricação de malas, bolsas, valises 1921 0,61 0,13 0,9 11 4 e outros artefatos para viagem Fabricação de outros artefatos 1929 0,63 1,11 7,5 155 12 de couro 1931 Calçados de couro 0,60 1,61 10,9 775 61 1932 Tênis de qualquer material 0,91 12,27 83,4 2.466 205 1933 Fabricação de calçados de plástico 0,90 5,17 35,2 77 7 1939 Calçados de outro material 0,86 11,84 80,4 5.230 434 2131 Fabricação de embalagens de papel 0,51 2,18 14,8 152 7 Fabricação de embalagens 2132 0,77 0,62 4,2 90 3 de papelão 2491 Fabricação de adesivos e selantes 0,64 0,31 2,1 1 1 Fabricação de artefatos diversos 2519 0,63 0,65 4,4 126 8 de borracha Fabricação de artefatos diversos 2529 0,58 0,36 2,4 173 25 de plástico Máquinas e equipamentos 2964 0,92 13,27 90,2 46 5 para vestuário, couro e calçados

(*) relativamente ao Estado de Minas Gerais. Fonte: Elaboração própria, com base em dados da RAIS/MTE 2002.

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Trata-se, portanto, de uma inova- de novos tipos de material. Para evitar es- ção organizacional que proporciona ga- ses problemas, seria necessário que o sis- nhos de escala na fabricação de calçados, tema local de produção de calçados dis- independentemente do tamanho das em- pusesse de uma estrutura de governança presas e da estrutura da indústria; tira das capaz de coordenar as relações entre as fábricas de calçados uma fase do proces- empresas e de administrar conflitos. Na so de produção que é estranha à fabrica- época em foi realizada a pesquisa de cam- ção de calçados propriamente dita, já que po,talestruturanãoexistiaemNovaSer- a injeção dos solados é um processo quí- rana, mas começou a ser formalizada a mico; reduz impostos na cadeia produti- partir de 2003 sob a liderança do Sindi- va, e ainda reduz custos de produção. Em nova, como se discute adiante. contrapartida, implica problemas de vá- rias ordens, quais sejam: pode ocorrer comprometimento da qualidade dos so- 7_ Instituições de apoio lados, uma vez que é comum haver, por Além da Associação Comercial e Indus- partedasinjetoras,misturadematérias- primas de qualidade inferior à que foi en- trial de Nova Serrana (ACINS), que teve viada para injeção; pode haver perda de papel relevante como organização repre- controle sobre as matrizes (moldes), que sentativa da classe empresarial de Nova correm o risco de ser repassadas pela em- Serrana a partir de 1974, a única outra ins- presa injetora a outros fabricantes de cal- tituição atuante no apoio às empresas lo- çados, e pode haver atraso na entrega dos cais é o Sindicato da Indústria do Calçado solados, provocando interrupções e atra- de Nova Serrana (SICNS – Sindinova). sosnaproduçãodecalçados. Embora não se constitua formalmente Portanto, apesar de ser uma inova- em agente coordenador, o Sindinova mo- ção organizacional importante, a terceiri- biliza a classe empresarial, coordena de zação da produção dos solados pode re- fato várias ações coletivas das empresas e sultar em perda de controle do processo desempenha diversos papéis relevantes. de produção e spillover de novos conheci- A principal iniciativa do Sindinova foi a mentos embutidos no desenvolvimento criação do Centro de Desenvolvimento de produtos, incorporados em novas for- Empresarial (CDE), inaugurado em ju- mas e designs de solados, ou na utilização nho de 1996.

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O CDE funciona nas modernas posteriormente desativado, o CDE man- instalações onde também se localiza a tém instalações de laboratório para tes- própria sede do Sindinova. Além de abri- tes físicos e um centro de modelagem, e gar, na época da visita, o Showroom Per- presta vários tipos de serviço às empre- manente do Calçado de Nova Serrana,10 sas (Figura 1).

Figura 1_ Estrutura do Centro de Desenvolvimento Empresarial (CDE), Nova Serrana

Sindinova Convênio FEBRAC – Feira BB/CEF Laboratório de de Calçados e testes físicos Componentes

Centro de CDE Modelagem 10 A criação do showroom foi iniciativa de um grupo de 14 empresários locais que se uniram instituindo a União Assessoria Cursos Serviços Calçadista de Nova Serrana Empresarial (UNICANS). Por meio da UNICANS, buscaram – Linhas crédito e – Centro de Treinamento – Assistência jurídica mobilizar recursos e encontrar financiamento Operacional/SENAI – Medicina do trabalho showroom – Orientação p/ abertura – Faculdade de Nova Serrana – Negociações coletivas espaço para o .O de Novos Negócios – Escola Técnica de – Participação em feiras apoio da Prefeitura de Nova Calçados/SENAI – Registro de marcas e patentes Serrana, segundo fontes – Atualização e Prática de Negócios – Palestras técnicas e seminários locais, foi “decisivo e vital” – Sistema de proteção ao crédito para concretizar essa iniciativa. Posteriormente, o Sindinova assumiu o showroom, Fonte: Elaboração própria. eaUNICANSsedesfez.

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O laboratório de testes físicos per- do desde 1992 em parceria com mite que as empresas associadas que não oSenai,eocursodoCefet– dispõem de laboratórios próprios reali- Escola Técnica de Calçados, que zem testes de qualidade e resistência (tra- desde 2001 forma técnicos em ção, flexão, abrasão, colagem) em calçados produção de calçados, estilismo ediversostiposdematerial.Ostestes e modelagem, administração e oferecidos incluem ensaios em couro, la- gerenciamento. Além disso, en- minados sintéticos, solados, e no próprio contrava-se em negociação com calçado, abrangendo assim todo o pro- o Senai um convênio denomina- cesso de fabricação. Em 2001 e 2002, do Projeto CTO para montagem eram realizados cerca de 540 testes por de cursos para a formação de ano. Entretanto, o próprio sindicato re- 2.160 alunos por ano; conhece que o laboratório ainda é pobre 2. curso de atualização e prática de e subutilizado. Um dos problemas é não negócios, em convênio com a dispor de certificação do INMETRO, o Fundação Getúlio Vargas; que permitiria atribuir um selo de quali- 3. cursos da Escola Técnica de For- dade ao calçado que passa pelos testes de mação Gerencial (ETFG), em laboratório do CDE.11 O centro de mo- convênio com o Sebrae/MG e a delagem, por sua vez, opera um sistema Prefeitura Municipal; CAD/CAM de corte a laser para desen- 4. serviços do Núcleo de Atendimen- volver escalas e realizar cortes de mode- to Tecnológico, também em con- los para calçados, cobrando R$ 120,00 vênio com o Sebrae/MG; 11 Em exposição durante por modelo (abril de 2002). Como a mai- 5. Balcão Comex, com serviços de evento realizado em fevereiro oriadasempresaslocaisnãotemescala orientação para exportação; de 2004, o presidente do nem recursos para dispor de sistemas 6. Balcão Sebrae/MG, com serviços Sindinova, Júnior César próprios de CAD/CAM, esse equipa- Silva, afirmou que o de orientação para abertura de laboratório de ensaios mento tem sido amplamente utilizado, novos negócios, para utilização “será assumido pelo Senai”. propiciando significativas economias ex- de linhas de crédito e financia- 12 Segundo o Sindinova, o ternas às empresas associadas.12 mento para micro/pequenas em- sistema CAD/CAM Quanto aos serviços prestados, in- presas, e para utilizar os recursos do CDE atende, em média, cluem, entre outros: 160 empresas por mês, do Programa de Apoio Tecnológi- inclusive empresas de 1. cursos profissionalizantes, tais co- co a Médias e Pequenas Empre- outros municípios. mo o curso de pesponto, ofereci- sas (PATME – MCT);

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7. serviços gerais de assistência jurídi- Outra instituição que desempenha ca, registro de marcas e patentes, papel importante no apoio às empre- palestras técnicas e seminários, sas locais é a Cooperativa de Crédito de negociações coletivas, participa- Nova Serrana (Credinova). Fundada em ção em feiras, ações de medicina 1997 por um grupo de empresários locais, do trabalho, sistema de proteção evoluiu rapidamente e, em 2001, já con- ao crédito, provedor de internet, tava com 606 associados. É considerada e home page com dados dos asso- atualmente a quarta maior cooperativa de ciados e seus produtos. crédito do Estado. Tem convênios com vários bancos, presta serviços bancários AindanoâmbitodoCDE,duasou- aos associados, e opera por meio de des- tras importantes iniciativas coletivas fo- conto de cheques e títulos. Além disso, ram lideradas pelo Sindinova. A primeira oferece apoio aos associados para par- foi a de formar um Consórcio de Expor- ticipação em feiras e realização de cursos tação. Para isso, buscou o apoio do Se- etreinamentos. brae e da APEX. A ampliação das expor- tações era vista como um desafio em 2002, quando, segundo os empresários entrevistados, não passavam de 3% da 8_ Contexto social, produção. Não mais do que 30 empresas, cultural e político e apenas as de maior porte, exportavam Constituída por grande número de pe- esporadicamente. Embora não haja in- quenas empresas, a indústria de calçados formação suficiente, há indícios de am- de Nova Serrana apresenta característi- pliação das vendas ao mercado externo, cas positivas em termos de associativis- especialmente para países da América La- mo, solidariedade e papel de lideranças tina.13 A outra iniciativa foi a realização locais, mas há pouca cooperação na esfe- de entendimentos com a Prefeitura Mu- ra produtiva14 e problemas decorrentes nicipal e uma fundação privada local, vi- de deficiências do sistema educacional sando à criação da Faculdade de Nova local e da imagem do produto. O associa- 13 Conforme informações Serrana. O objetivo era preencher uma tivismo se revela na forte adesão das em- divulgadas pela FIEMG, Projeto Cresce Minas, e pelo séria lacuna no sistema de ensino local, já presas ao Sindinova e no grande número Instituto Euvaldo Lodi. que não havia uma instituição de ensino de associados da Credinova (comentado 14 Ver seção seguinte, sobre a superior no município. acima). No caso do Sindinova, em 2002 caracterização das empresas.

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havia 368 empresas sindicalizadas, de um ções de confiança com os produtores, total estimado, à época, de 854 empresas, acumulou débitos e desapareceu, que- entre as quais cerca de dez por cento brandoalgumaspequenasempresaslo- eram microempresas informais fabrican- cais que tiveram que ser socorridas para tes de tênis falsificados. Portanto, apro- reiniciar as atividades. ximadamente metade das empresas for- Entretanto, apesar do associativis- mais era sindicalizada. Isso resultou não mo e do espírito de solidariedade, são só do reconhecimento de lideranças lo- ainda fracas as relações de cooperação cais que dirigiam o sindicato como tam- entre fabricantes de tênis na esfera pro- bém de um meticuloso trabalho político dutiva. Prevalece o espírito de competi- desenvolvido pela própria instituição, que ção na disputa por mercados com base contratou um profissional com ampla ex- na diferenciação e no desenvolvimento periência na área e encarregou-o de visi- de produtos próprios. Isso é bastante sau- tar empresas e obter adesões. dável do ponto de vista da evolução do O espírito de solidariedade, por sistema local de produção, mas limita as sua vez, manifesta-se por meio de práti- possibilidades de esforços coletivos para cas comuns em aglomerações como a de aprimoramento de processos, incorpora- Nova Serrana: empréstimos de máqui- ção de novas técnicas produtivas e geren- nas, material, etc., mesmo quando se trata ciais, e busca por informações sobre mer- de abertura de novas empresas, e sobre- cados, tecnologias e novos produtos. tudo em situações emergenciais. Dois ca- Para que haja maior cooperação sos parecem ter significado especial na entre fabricantes e destes com as insti- cultura da cidade: o do incêndio que des- tuições locais, especialmente as da esfe- truiu a fábrica de uma empresa local (Cal- ra política, é necessário um processo çados Adam), motivando a solidariedade de construção de confiança, o que vem de outros empresários, que “se juntaram sendo buscado pelo Sindinova em cola- para ajudar”, emprestando máquinas e boração com a Federação das Indústrias 15 matérias-primas.15 Segundo Crocco et al. Conforme entrevista deMinasGerais(Fiemg)eoutrasinsti- com o presidente do (2001, p. 358), em uma semana, a empre- tuições, por meio de um projeto de de- Sindinova, Júnior César sa voltou a produzir. O outro caso foi Silva, em 24/4/2002. senvolvimento que: O mesmo evento foi relatado um golpe aplicado nos fabricantes do por vários empresários locais município por uma rede varejista de Be- 1. reforça a identidade comum, crian- durante as entrevistas. lo Horizonte, que, após construir rela- do uma logomarca;

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2. desenvolve ações estratégicas de- vistados, para iniciar uma nova fábrica, é lineadas por um comitê gestor bastante comum que a pessoa conte com no qual participam representan- “um galpão emprestado, máquinas que tes de poderes públicos, institui- vieram de outra empresa”, e que comece ções de apoio, universidades e “com pequena produção (cerca de 100 16 Conforme exposição do centros de pesquisas, entidades pares/dia) e vai investindo os lucros em presidente do Sindinova, de fomento e empresas locais.16 novas máquinas”. Assim, ele “tem dois Júnior César Silva, no evento caminhos: ganhar dinheiro rápido ou fi- Desenvolvimento Econômico Há também deficiências no siste- e a Micro e Pequena Empresa, car no mercado”. Isso significa entrar no ma educacional e de formação profissio- Programa de Estudos mercado pela informalidade e, de acordo Avançados para Líderes nal, que se revelam na falta de trabalha- com esse entrevistado: “continuar na in- Públicos. Londrina, PR, 5 e 6 dores qualificados (um exemplo muito formalidade, produzindo tênis falsifica- de fevereiro de 2004. Ver citado nas entrevistas é o da falta de pes- também a esse respeito, a dos, ganhar dinheiro e sair, ou deixar a pontadeiras, como já comentado), na excelente dissertação de informalidade e a falsificação para man- mestrado de Souza (2004). carência de profissionais especializados ter-se no mercado”. Esse problema já foi 17 Optou-se por uma (principalmente modelistas e designers), e bastante minorado, mas ainda persiste classificação por tamanho das sobretudo em deficiências de capacita- empresas visitadas que levasse eprejudicaaimagemdaindústriade ção gerencial e operacional. Os próprios em conta as especificidades do calçados de Nova Serrana. empresários reconhecem a necessidade universo local, dado pelas informações da RAIS. Por de “cursos para melhorar o conhecimento isso, as designações como dos empresários sobre o setor de calça- “grandes” e “médias” dos”. As facilidades que o próprio ambien- 9_ Caracterização das empresas empresas estão entre aspas. te oferece para iniciar uma nova empresa, Foram realizadas visitas e entrevistas em Os autores reconhecem que, conforme observado por um muitas vezes com ajuda das empresas 12 empresas, das quais três “grandes”, dos pareceristas da Nova existentes, e o fato de que a maioria dos que empregam entre 90 e 110 pessoas e Economia, esse procedimento novos empresários é oriunda das linhas produzem entre 1.000 e 1.600 pares/dia; limita as possibilidades de de produção das empresas locais expli- três “médias”, com 30 a 60 empregados e comparação com outros pólos calçadistas. Entretanto, julgam cam, em grande parte, as dificuldades na produção entre 500 e 1.000 pares/dia, e 6 quenãohánoPaíssistemas gestão das novas empresas. micro/pequenas, com menos de 30 em- de produção comparáveis com Ligado a este último fenômeno, pregados e produção de menos de 1.000 Nova Serrana em termos de há também um problema de imagem que pares/dia.17 Duas foram fundadas na dé- especialização produtiva, estratificação por tamanho de tem a ver com a cultura local sobre a cria- cada de 1980, e as demais entre 1990 e empresas e forma de çãodeempresas.Segundoumdosentre- 1999. A maior parte produz tênis, mas organização industrial.

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 Wilson Suzigan_João Furtado_Renato Garcia_Sérgio E. K. Sampaio 113 uma produz apenas sandálias e outra es- são ainda muito incipientes. Com exce- tava começando a diversificar a produ- çãodeduasdasmaioresempresas,que ção, iniciando uma linha de calçados de vendem para grandes varejistas ou para couro. Quase todas vendem exclusiva- lojistas, possuem marca própria e dão mente para o mercado interno; apenas atenção à qualidade; as demais não têm uma exporta esporadicamente para paí- canais próprios de comercialização, ven- ses da América Latina. dem por meio de representantes ou direto Somente duas das maiores empre- na fábrica, a maior parte para os chama- sas têm alguma formalização de estrutu- dos “marreteiros”, e competem primor- ra interna para desenvolvimento de pro- dialmente via preços, ficando a qualidade dutos, entretanto ainda muito limitadas. em segundo plano. A maioria contrata o desenvolvimento As relações de cooperação produ- por terceiros, em geral modelistas locais, tiva entre as empresas são muito limita- das quais havia carência em 2002. Segun- das, em geral envolvendo “só as que se do um dos entrevistados, havia cerca de conhecem” ou “amigos que não são con- 10 modelistas na cidade, e outro afirmou correntes”. É comum, porém, a prática que “falta muito modelista em Nova Ser- de empréstimos de máquinas e matéri- rana”, o que ele atribuía à “dificuldade as-primas, assim como a formação de pe- para se adaptar ao local”. Algumas em- quenos grupos de empresas para a reali- presas se unem para contratar modelista zação de algumas operações de compra, elançamomesmotipodeproduto.Duas contratação de modelista, negociação de dasempresasmenoresusamosistema fretes, realização de cursos, participação CAD do CDE. em feiras. São também comuns as visi- Entretanto, “por desenvolvimen- tas para “ver máquinas novas” e a troca to de produto”, entenda-se adaptação de de idéias e de informações. Apenas no modelos existentes no mercado, em geral âmbito do CDE, no entanto, pode-se di- importados. Um dos entrevistados decla- zer que há cooperação de fato entre as rou que a prática usual é a cópia. Em ge- empresas locais. ral, segundo ele, a empresa compra um As interações das empresas locais tênis de marca famosa e “corta no meio com seus fornecedores são dificultadas para ver como é montado”. pelo fato de que boa parte desses fornece- As formas de comercialização dos doresnãoédeNovaSerranaeatémesmo produtos e as estratégias de diferenciação do Estado de MG, como já foi discutido

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_97-116_setembro-dezembro de 2005 114 A indústria de calçados de Nova Serrana (MG) acima. Há contatos com fornecedores pa- rior), publicações especializadas (catálogos, ra discutir, por exemplo, cores, utilização revistas), sugestões de representantes e lo- de novos tipos de material, e com repre- jistas, visitas a shopping centers e ainda sentantes e lojistas para recolher suges- com os próprios modelistas contratados. tões quanto a desenvolvimento de pro- Quanto à política da qualidade, a dutos. Entretanto, pelas características da maior parte da empresas realiza testes da organização da indústria local, é a intera- qualidade dos produtos, seja internamen- ção com os fabricantes de matrizes e com te (duas das maiores), seja nas instalações as empresas especializadas na injeção de do laboratório de testes físicos do CDE solados que se revela de importância es- (9 das 10 empresas restantes). Uma das tratégica. Não só porque envolve a prote- empresas grandes declarou ter certifi- ção de conhecimentos sobre novos tipos cação ISO 9002, e outra estava tentando e designs de solado, como também porque obtê-la. Portanto, a preocupação com a é preciso estabelecer relação de confian- qualidade parece disseminada, a ponto de ça entre as partes, de modo a evitar que um dos entrevistados dizer que “qualidade haja misturas inadequadas de matérias- já não é diferencial, todo mundo tem que primas e atrasos na injeção dos solados, o ter”. Mas está limitada na maior parte das que faria parar a linha de produção de tê- empresas ao produto final; poucas empre- nis. Quase todas as empresas ressaltaram sas declararam ter uma política da quali- ser essa a forma de interação a que dão dade mais abrangente da cadeia produti- mais importância. va ou um programa da Qualidade Total. Apesar das limitações das empre- Por fim, praticamente todas as em- sas quanto a desenvolvimento de novos presas têm dificuldades quanto a finan- produtos, a introdução de inovações de ciamento. Investimentos são financiados produto ou de processo é uma preocu- com recursos próprios e, em poucos ca- pação constante das empresas. Embora sos, com crédito de fornecedor de má- declarem sem peias que a cópia pura e quinas. As queixas são generalizadas quan- simples é a prática mais usual, muitas to a juros muito elevados, exigências de afirmam também que buscam informa- garantias muito altas, burocracia, etc.No ções sobre produtos e processos em várias capital de giro, os recursos próprios são fontes, entre as quais: fornecedores de má- complementados com descontos bancá- quinas, visitas a feiras (inclusive no exte- rios e pequenos empréstimos.

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10_ Conclusões implica dificuldades para as empresas en- Este artigo mostra que a indústria de cal- gajarem-se em atividades de pesquisa e çados de Nova Serrana ocupa posição desenvolvimento de novos produtos, uti- inegavelmente destacada na economia da lizarem material mais avançado, melho- região e, em particular, na produção de raremaqualidadetotale,comisso,tor- tênis esportivos no Estado de Minas Ge- narem-se mais capacitadas a diferenciar e rais e no País. Sua evolução foi impulsio- valorizar o seu produto. Terceiro, os sis- nada com base na especialização nessa temas de comercialização da produção classe de indústria, na adoção de formas local tornam as empresas reféns da compe- específicas de organização industrial e de tição via preço baixo; é preciso desenvol- um papel ativo do sindicato patronal no ver formas de comercialização compatí- apoio à indústria, particularmente após a veis com a valorização do produto. Quar- criação de um centro tecnológico e de to, embora haja elevado associativismo e prestação de serviços às empresas. Os manifestações de solidariedade, há pouca desafios que se colocam ao desenvolvi- cooperação em sentido amplo entre as mentodosistemalocaldeproduçãovêm empresas fabricantes de produtos finais. sendo enfrentados por novas iniciativas Dadoograndenúmerodemicroe coordenadas pelo sindicato, com apoio e pequenas empresas na estrutura produti- participação de outras instituições. va local, a indústria de calçados de Nova Vários problemas, entretanto, per- Serrana constitui campo fértil para ações sistem. Primeiro, permanece um número coletivas sob algum regime de governan- elevado de microempresas informais fa- ça que induza a cooperação entre empre- bricantes de tênis falsificados. Embora a sas e destas com instituições de apoio, quantidade tenha sido bastante reduzida sistema educacional, centros de pesquisa em relação ao passado, continua sendo e setor público. Esses são alguns dos um problema que prejudica a imagem da pontos que podem ser alvos de políticas indústriadecalçadosdeNovaSerrana. públicas e ações privadas, visando au- Segundo, há notórias deficiências em ter- mentar e sustentar a capacidade de com- mos das chamadas capacitações técnicas petição do sistema local de produção de superiores, o que, por sua vez, reflete in- Nova Serrana. suficiências do sistema educacional e de formação profissional da região. Isso

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Referências bibliográficas

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