BIOLOGIA FLORAL, POLINIZAC¸ AO˜ E ANATOMIA FLORAL DE ESPECIES´ DE CIRRHAEA ()

Ludmila Mickeliunas Pansarin 1*

Emerson Ricardo Pansarin 2 ; Marlies Sazima1

1 - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Biologia, Departamento de Biologia Vegetal, Cidade Universit´ariaZeferino Vaz, s/n, CP 6109, 13083 - 970, Campinas - SP, *[email protected] 2 - Universidade de S˜aoPaulo, FFCLRP, Departamento de Biologia, 14040 - 901, Ribeir˜aoPreto - SP

INTRODUC¸ AO˜ mente no labelo, em estruturas glandulares ou epidermais chamadas osm´oforos(Vogel 1963). A fam´ıliaOrchidaceae abrange cerca de 7% das angiosper- mas, sendo considerada uma das maiores fam´ılias deste grupo, ao lado de Poaceae e Asteraceae. Estima - se que a OBJETIVOS fam´ıliapossua cerca de 20.000 esp´eciesdistribu´ıdaspor todo o mundo, mas apresenta sua maior diversidade em regi˜oes Os objetivos principais deste trabalho foram: estudar a tropicais (Atwood 1986). O Brasil possui cerca de 2.300 fenologia reprodutiva e a biologia floral das esp´eciesde Cir- esp´eciesdistribu´ıdasem 191 gˆeneros. rhaea e relacionar a morfologia floral com os atributos mor- A fam´ıliaOrchidaceae est´adividida em 70 subtribos, 22 tri- fol´ogicosdos polinizadores e o mecanismo de poliniza¸c˜ao, bos e cinco subfam´ıliasbaseadas principalmente no n´umero observar em condi¸c˜oes naturais os tipos de visitantes `asflo- e na posi¸c˜aoda antera. Essas subfam´ılias,de acordo com a res destas esp´ecies,sua freq¨uˆenciae o comportamento de classifica¸c˜aode Dressler (1993) s˜ao:Apostasioidae, Cypri- visita e analisar a morfo - anatomia das estruturas secre- pedioideae, , Spiranthoideae e Orchidoideae. toras (osm´oforos)presentes nestas esp´ecies. O sistema de Pridgeon et al., (o volume mais recente, de 2005), que ´ebaseado principalmente em caracteres macro- moleculares tende, gradativamente, a substituir os atuais. MATERIAL E METODOS´ Nesse sistema a fam´ılia Orchidaceae ´edividida em cinco ´ subfam´ılias:Apostasioideae, Vanilloideae, Cypripedioideae, Area de Estudo Orchidoideae e Epidendroideae. Este estudo foi desenvolvido em regi˜oesde Mata Atlˆantica A subtribo (Epidendroideae, Cymbidiae) do sudeste do Brasil, como a plan´ıcie litorˆaneade Picin- compreende 22 gˆenerosdistribu´ıdosem regi˜oestropicais das guaba (Ubatuba - SP), Esta¸c˜aoBiol´ogicade Santa L´ucia Am´ericas, e inclui o gˆenero Cirrhaea L., exclusivamente (Santa Teresa - ES) e Domingos Martins - ES. O clima brasileiro. Cirrhaea apresenta sete esp´eciesaceitas atual- nessa regi˜ao´equente e ´umido,com temperaturas m´edias mente (C. dependens, C. saccata, C. loddigesii, C. longirace- superiores a 18 ºC, n˜aoapresentando esta¸c˜aoseca invernal. mosa, C. nasuta, C. seidelii e C. silvana) (Govaerts 2003) Fenologia e biologia floral e distribui - se principalmente na regi˜aosudeste do Brasil A fenologia das esp´ecies do gˆenero Cirrhaea foi obtida (com exce¸c˜aode C. silvana, que ocorre no sul da Bahia). atrav´es de visitas ao campo a indiv´ıduospreviamente mar- Trˆesdessas esp´ecies(C. dependens, C. loddigesii e C. sac- cados. Os registros fenol´ogicosforam baseados na quanti- cata) s˜aoencontradas na plan´ıcielitorˆaneade Picinguaba dade de bot˜oese flores tanto em n´ıvel individual quanto (Ubatuba - SP), regi˜aode preserva¸c˜aoda Mata Atlˆantica. populacional. Cirrhaea, assim como os demais gˆenerosque pertencem `a Para o estudo da biologia floral, inflorescˆenciasde diferentes subtribo Stanhopeinae, produzem fragrˆanciascomo recurso indiv´ıduosdas esp´eciesde Cirrhaea foram marcadas e anal- floral. Esse perfume consiste de ´oleosvol´ateisque s˜aoco- isadas in situ quanto ao n´umerode flores abertas por dia; letados exclusivamente por machos de abelhas da tribo Eu- hor´ario,seq¨uˆenciae dura¸c˜aoda antese, al´emda disponibil- glossini (Hymenoptera, Apidae). Os machos dessas abel- idade do recurso (fragrˆancia)oferecido. has s˜aoconhecidos por coletarem fragrˆanciasem esp´ecies Visitantes florais e mecanismos de poliniza¸c˜ao de v´ariasfam´ılias, incluindo Orchidaceae. Em orqu´ıdeas, A observa¸c˜aodas esp´eciesde visitantes florais, a freq¨uˆenciae as fragrˆanciasflorais s˜aoproduzidas quase que exclusiva- o comportamento de visita foram investigados em condi¸c˜oes

Anais do IX Congresso de Ecologia do Brasil, 13 a 17 de Setembro de 2009, S˜aoLouren¸co- MG 1 naturais durante o per´ıodo de flora¸c˜aode cada esp´ecie,no removeu o polin´ario,que se fixou nas patas medianas e tra- per´ıodo correspondente entre o nascer e o pˆordo sol. Foi re- seiras. alizado, tamb´em,o registro fotogr´aficodo processo de polin- H´afortes ind´ıcios que as flores de Cirrhaea loddigesii sejam iza¸c˜ao.Foram utilizadas iscas de odor com fragrˆanciasar- polinizadas por machos de Euglossa annectans (Dressler, tificiais para atra¸c˜aode abelhas quando n˜aofoi poss´ıvel o 1982). Foram administradas iscas de odor no campo que registro do processo de poliniza¸c˜aodurante a antese das flo- atra´ıramdiferentes esp´ecies de Euglossine, inclusive E. an- res. Os visitantes florais foram coletados para identifica¸c˜ao nectans, que apresentava polin´ariode C. loddigesii na pata e inclus˜aono acervo do Museu de Zoologia da Unicamp posterior. As flores de Cirrhaea nasuta provavelmente s˜ao (ZUEC). polinizadas por machos de Eulaema nigrita (Lepeletier, Estudos anatˆomicos 1841), pois com aux´ılio de iscas de odor foram atra´ıdas Para os estudos anatˆomicosforam utilizadas flores coletadas diferentes esp´eciesde Euglossine, inclusive E. nigrita que no campo, no primeiro dia de antese. Para determinar a apresentava polin´ariode C. nasuta na pata anterior. regi˜aoda flor produtora do odor, as flores frescas foram Em todas as esp´eciesde Cirrhaea o mecanismo de polin- submersas em uma solu¸c˜aode Vermelho Neutro 0,1% por iza¸c˜ao´esemelhante ao que foi descrito em Pansarin et al., 20 minutos. Para a an´alisehistol´ogicaest˜aosendo uti- (2006) para C. dependens. A abelha paira em frente `aflor e lizadas apenas as pe¸casflorais que evidenciaram presen¸ca posteriormente pousa sobre o labelo, onde com as patas di- de osm´oforos.Para caracterizar a estrutura anatˆomicadas anteiras raspa na regi˜aoabaixo do lobo apical (ou na por¸c˜ao ´areasprodutoras de odor, estas pe¸casforam previamente basal da face interna dos lobos laterais no caso de C. loddi- fixadas em formalina neutra tamponada, desidratadas em gesii e C. seidelli) para coletar a fragrˆancia.A remo¸c˜ao(ou s´erie but´ılica, inclu´ıdas em parafina e seccionadas com deposi¸c˜ao)do polin´arioocorre quando a abelha abandona micr´otomorotativo. Posteriormente, os cortes foram cora- a flor para transferir a fragrˆanciapara as patas traseiras dos com azul de astra e safranina 1%, e as lˆaminasmontadas ou quando escorrega enquanto coleta a fragrˆanciasecretada em resina sint´etica. pelos osm´oforos. Estudos anatˆomicos Ap´osan´alisedos cortes, foi verificado que Cirrhaea depen- RESULTADOS dens e C. aff. longiracemosa apresentam osm´oforosepi- dermais na calosidade abaixo do lobo apical e tamb´emna Fenologia e biologia floral por¸c˜aobasal da face interna dos lobos laterais. Em Cirrhaea Em todas as esp´eciesde Cirrhaea, o per´ıodo de flora¸c˜aodura dependens o osm´oforode formato cil´ındrico´ecomposto de cerca de 30 - 45 dias. O pico de flora¸c˜aoocorre cerca de 15 uma ´unicafileira de c´elulasepidermais justapostas que sec- dias ap´osa abertura das primeiras flores, ocasi˜aoem que a retam a fragrˆancia. A fun¸c˜aode osm´oforo´eevidenciada maioria dos indiv´ıduosest´aem antese. A abertura das flo- pelas caracter´ısticascelulares, como um n´ucleo bem desen- res de uma inflorescˆenciaocorre simultaneamente. As flores volvido e citoplasma densamente corado, t´ıpicasde c´elulas abrem ao amanhecer e duram cerca de 3 - 4 dias. Durante o em alta atividade metab´olica.O tecido parenquim´aticosub- per´ıodo compreendido entre a antese e o pr´e- fenecimento jacente n˜ao´esecretor. Na face interna dos lobos laterais ´e das flores n˜aoforam observadas mudan¸casna morfologia e poss´ıvel observar que as c´elulasepidermais tamb´ems˜aose- na disposi¸c˜aodas partes florais, como ocorre com a maioria cretoras, com a participa¸c˜aodas camadas mais adjacentes, das orqu´ıdeas. mas n˜aodo parˆenquimamais interno. As esp´eciesde Cirrhaea, assim como os demais gˆenerosque Em Cirrhaea aff. longiracemosa o osm´oforotamb´emse lo- pertencem `asubtribo Stanhopeinae, produzem fragrˆancias caliza mais intensamente na protuberˆancia abaixo do lobo como recurso floral. Essa fragrˆancia ´e produzida em apical do labelo, e menos intensamente na por¸c˜aobasal da osm´oforospresentes abaixo do lobo apical do labelo (C. de- face interna dos lobos laterais do labelo. O osm´oforoem pendens, C. nasuta, C. aff. longiracemosa e C. saccata) ou forma de protuberˆancia´ecomposto de v´ariascamadas de apenas na face interna dos lobos laterais do labelo (C. lod- c´elulas(n˜aoapenas a epiderme) que secretam a fragrˆanciae digesii e C. seidelii). Esse perfume ´esuave e varia de uma apresentam um n´ucleobem desenvolvido e citoplasma den- esp´eciepara outra. O odor ´epercebido mais intensamente samente corado, tanto na epiderme como no tecido paren- no primeiro dia de antese das flores. quim´aticosubjacente. Na face interna dos lobos laterais Visitantes florais e mecanismos de poliniza¸c˜ao as c´elulasepidermais tamb´ems˜aosecretoras, com a par- As flores de Cirrhaea dependens s˜aopolinizadas por machos ticipa¸c˜aodas poucas camadas (3 - 4) de c´elulas paren- de Euglossa cordata (Linnaeus, 1758). As visitas ocorreram quim´aticasadjacentes, mas n˜aodo parˆenquima mais in- de maneira irregular, entre 0700h e 1600h, em virtude da terno. chuva. Per´ıodos chuvosos e outras condi¸c˜oesclim´aticasad- Em ambas as esp´ecieso osm´oforoapresenta - se recoberto versas afetam negativamente a presen¸cade visitantes florais por uma cut´ıcula(mais espessa em C. aff. longiracemosa) no ambiente. Embora Hoehne (1933) tenha registrado que para prote¸c˜aoda estrutura. Essa cut´ıculaprecisa ser re- a fixa¸c˜aodo polin´ariosobre o polinizador ´eindefinida para movida pelo polinizador para que a fragrˆanciapossa ser co- as esp´eciesde Cirrhaea, em E. cordata o polin´ariose fixou, letada. em diversos indiv´ıduos, na pata mediana. As flores de Cir- rhaea aff. longiracemosa s˜aopolinizadas por machos de Eu- friesea violacea (Blanchard, 1840). As visitas ocorreram de CONCLUSAO˜ maneira irregular, entre 0700h e 1500h durante o primeiro dia de antese floral. Durante a coleta de fragrˆanciaa abelha Os resultados obtidos indicam que as esp´eciesde Cirrhaea

Anais do IX Congresso de Ecologia do Brasil, 13 a 17 de Setembro de 2009, S˜aoLouren¸co- MG 2 estudadas s˜aosemelhantes quanto `adura¸c˜aodo per´ıodo Dressler, R.L. 1993. Phylogeny and classification of the de flora¸c˜ao,da antese simultˆaneadas flores em cada inflo- orchid family. Cambridge: Cambridge University Press. rescˆenciae da dura¸c˜aodas flores. Os polinizadores destas Govaerts, R. 2003. World Checklist of esp´eciesde Cirrhaea s˜aodiferentes esp´eciesde machos de Database in ACCESS: 1 - 71827. The Board of Trustees of Euglossine, por´em, o mecanismo de poliniza¸c˜ao´esemel- the Royal Botanic Gardens, Kew hante. Al´emdisso, estas esp´eciesde Cirrhaea oferecem Hoehne, F.C. 1933. Contribui¸c˜aopara o conhecimento fragrˆanciacomo recurso aos polinizadores, que ´eproduzida do gˆenero Catasetum, especialmente hermaphroditismo e por osm´oforosepidermais com diferentes constitui¸c˜oescelu- trimorphismo das suas flores. Boletim de Agricultura do lares entre as esp´ecies C. dependens e C. aff. longiracemosa, Estado de S˜aoPaulo 1: 133–196. informa¸c˜aoin´editapara esse grupo de orqu´ıdeas. Pansarin, E.R.; Bittrich, V. & Amaral, M.C.E.. (Projeto vinculado ao Projeto Tem´aticoBiota Gradiente 2006. At daybreak-reproductive biology and isolating Funcional (Processo Fapesp 03/12595 - 7). Financiamento: mechanisms of Cirrhaea dependens (Orchidaceae). CNPq e Fapesp (07/55591 - 2). Biology 8: 494 - 502. Pridgeon, A.M.; Cribb, P.J.; Chase, M.W. & Rass- mussen, F.N. (eds.) 2005. Genera Orchidacearum. v. REFERENCIASˆ 4, Oxford University Press: New York. Vogel, S. 1963. Duftdr¨usenim Dienste der Best¨aubung: Atwood, J.T. 1986. The size of the Orchidaceae and the Uber¨ Bau und Funktion der Osmophoren. Akademie der systematic distribution of epiphytic orchids. Selbyana 9: Wissenschaften under der Literatur, Mainz. Abh. Math. - 171 - 186. Naturwiss. Klasse, Jahrgang 1962: 599 - 763

Anais do IX Congresso de Ecologia do Brasil, 13 a 17 de Setembro de 2009, S˜aoLouren¸co- MG 3