BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

DIÁLOGOS MUSICAIS NA PÓS GRADUAÇÃO

PRÁTICAS DE PERFORMANCE Nº5

Organização e edição

Fausto Borém Eduardo Campolina

Escola de Música da UFMG Belo Horizonte 2020

ISBN: 978-65-00-00697-1

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5

ISBN: ISBN: 978-65-00-00697-1

Apresentamos o quinto volume da série de livros Diálogos Musicais da Pós: Práticas de Performance, contendo 16 textos selecionados de alunos com seus orientadores que se destacaram na disciplina “Seminários de Performance” dos Cursos de Mestrado e Doutorado da Escola de Música da UFMG, ministrada no segundo semestre de 2019.

Após uma revisão de literatura que revela as carências deste estudo, João Machala e Mauro Rodrigues utilizam o conceito de fonética articulatória para entender o que ocorre com o aparelho fonador do músico ao articular sons com o trombone de vara. Com auxílio da análise de espectrogramas sonoros, os autores analisam a evolução dos componentes da série harmônica durante o transiente das articulações mais encontradas nos métodos do instrumento, comumente descritas como “Dah” e “Tah”.

Baseados no Concerto para Violino de Mendelssohn Op.64, Mi Menor: 24 Exercícios Preparatórios, método do violinista Maxim Jacobsen, publicado em 1961, Lucas Barreto e Edson Queiroz de Andrade realizam uma análise técnica violinística do Mov. I do Concerto em Lá Menor de A. Dvorák. A partir daí, apresentam cinco exercícios direcionados à preparação de três excertos deste movimento, com o intuito de fornecer ferramentas para a superação de suas dificuldades técnicas.

Pablo Souza e Fausto Borém destrincham as práticas de performance composicionais e de improvisação de Dave Holland no seu arranjo, para contrabaixo sozinho, de Mr. P.C., de John Coltrane. A fonte primária, a gravação em vídeo da música no show Dave Holland Solo at JazzBaltica 2003, foi transcrita em forma de partitura. Na análise dos sons, imagens e notação musical foram utilizadas as ferramentas MaPA, EdiPA e EdiEsp do mAAVm (Método de Análise de Áudios e Vídeos de Música).

Giuliano Coura e Cecília Nazaré de Lima investigam os elementos etnomusicais e extramusicais inspiradores da peça Senda Aimára, para flauta e violão, escrita pelo compositor argentino, radicado na cidade de Belo Horizonte, Rufo Herrera. A partir da análise dos poemas inseridos na partitura e associados a cada um dos movimentos - 1. Vidála, 2. Chaya e 3. Huayno, buscou-se extrair informações sobre o contexto cultural, dados históricos e os hábitos sociais do povo Aimára presentes no noroeste da Argentina, e relacioná- las aos procedimentos composicionais e interpretativos utilizados na peça.

Henrique Lowson e Fernando Araújo descobrem os hibridismos entre o flamenco, seus subgêneros e a música clássica nos dois movimentos (Garrotín e Soleares) da obra Hommage à Tárrega, de Joaquin Turina. Seu estudo é fundamentado a partir de uma revisão de literatura e gravações históricas do gênero. Os resultados alcançados permitem a proposição de novas possibilidades interpretativas, visando a uma performance estilisticamente mais informada.

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

Carlos Fernandes e Fernando Rocha apresentam transcrições e análises de dois solos do pianista Amilton Godoy no início da sua carreira na música instrumental brasileira: O Barquinho diferente (1965), de Sérgio Augusto e Garota de Ipanema de Tom Jobim e (1963). Nestas gravações, que fazem parte de Zimbo Trio (1964), primeiro disco deste grupo que Godoy fez parte, foram reconhecidos e descritos aspectos melódicos e harmônicos que estruturam o estilo de improvisação deste pianista e a influência de Oscar Peterson.

Marco Teruel Castellon e Ana Cláudia de Assis discutem questões tácitas ao funcionamento da Música Artística Ocidental (MAO), traduzidas nos conceitos de obra e cânone. Tomando como estudo de caso o Chôros nº1 de Villa-Lobos, para violão solo, os autores tecem reflexões das tradições de performance da obra e propõem uma interpretação que subverte a lógica e as regras tradicionais da MAO, buscando atualizar o papel do intérprete por meio da união de performance, musicologia e outras abordagens interdisciplinares.

A partir de cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro, Evandro Dotto e Fernando Araújo identificam elementos da escola nacionalista de Camargo Guarnieri e similaridades com o estilo composicional de Theodoro Nogueira. A análise de estilo e escrita idiomática forneceram referências para uma interpretação fundamentada, especialmente em trechos que demandam decisões em digitações pouco funcionais. As sugestões apresentadas buscam uma maior funcionalidade técnica e um discurso com maior coerência estilística.

Sofia Leandro e Fernando Rocha discutem questões técnico-interpretativas na preparação e estreia do Concerto nº4, para violino e percussão (em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco) de Harry Crowl, pelo Duo Sofia Leandro e Bruno Santos. São apresentadas as características da própria composição e as estratégias de performance que buscaram potencializar as interações entre o violino e os diversos instrumentos de percussão utilizados, muitas vezes resultantes da colaboração compositor-intérpretes.

Pedro Henrique Ludwig e Fausto Borém discutem escolha de dedilhados na realização das mudanças de posição “clássica” ou “romântica” no violoncelo em passagens selecionadas dos Concerto em Dó Maior de Franz Joseph Haydn (1765) e Concerto em Ré Menor de Edouard Lalo (1877). Foi utilizada a ferramenta EdiPA (Edição de Performance Audiovisal) e os conceitos de “dedo antigo” e “dedo novo” em quatro situações: (1) intervalos ascendentes com ligadura, (2) intervalos ascendentes sem ligadura, (3) intervalos descendentes com ligadura e (4) intervalos descendentes sem ligadura.

Leonardo Lopes, Guilherme Menezes Lage e Fausto Borém apresentam quatro situações frequentes no repertório do contrabaixo com demandas técnicas distintas. Estas situações foram o ponto de partida para a criação de quatro excertos musicais criados especialmente para medição de esforço cognitivo em uma pesquisa experimental de laboratório.

Melina Peixoto e Mauro Chantal apresentam um estudo sobre a ária Tive um sonho, da opereta brasileira de câmara inédita A Princesa do Catete de autoria de Euclides Fonseca sobre texto de Carneiro Vilela. Ao observarem a gênese dessa obra, os pesquisadores relembram as figuras dos autores e, ao abordarem sua relação texto-música, oferecem recursos para uma interpretação da ária, evidenciando um retrato da música de câmara vocal no período da Belle Époque brasileira.

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

Em sua pesquisa de natureza descritiva, analítica e aplicada, Maria Fernanda Canabarro e Carlos Aleixo dos Reis apresentam sugestões de performance para a obra Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. Para compreender a construção orgânica do discurso musical, foi utilizada a ferramenta de análise Contrapuntal Motive apresentada por Philip Lasser em The Spyraling Tapestry: An Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music e elementos de estilo propostos por Jan LaRue em Guidelines for Style Analysis.

Cristina Gusmão e Mônica Pedrosa de Pádua verificam o estado da arte das pesquisas que têm a pronúncia do português brasileiro cantado como objeto principal de estudo, desenvolvidas após a publicação das Normas para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto Erudito, em 2007. As autoras apresentam uma revisão de literatura que compreende artigos, dissertações e teses sobre o tema, publicados no Brasil entre 2007 e 2018, contabilizando-os, organizando-os por assunto e descrevendo brevemente seu conteúdo.

Com a apresentação de Lenda sertaneja, composta em 1953 por Carlos Alberto Pinto Fonseca, César Augusto e Mauro Chantal apresentam estudo sobre sua estrutura formal, além de características da escrita pianística dessa peça que teve sua gênese na fase nacionalista do compositor. Como anexo, os autores apresentam também uma edição de performance, visto que essa composição permaneceu inédita e manuscrita até a presente pesquisa.

Raquel Calais e Mauro Chantal apresentam Canção da retirante de Carlos Alberto Pinto Fonseca, também composta em 1953, sobre poema do próprio compositor. Dados sobre o contexto histórico dessa canção brasileira de câmara são apresentados, além de informações sobre sua estrutura formal e aspectos musicais. Ao final de seu estudo, os autores apresentam uma edição de performance, juntamente com suas considerações sobre a partitura disponibilizada.

Esperamos que os estudos das práticas de performance em cada um desses estudos possam servir de referência para fundamentar a realização musical, inspirar novas ideias e abrir novos horizontes na comunicação de nossa arte.

Fausto Borém e Eduardo Campolina

Organizadores e Editores da Série Diálogos Musicais da Pós-Graduação: Práticas de Performance

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

A série Diálogos Musicais da Pós-Graduação tem o objetivo de publicar trabalhos de pesquisa resultantes do diálogo entre alunos dos Cursos de Pós-Graduação em Música da UFMG (Doutorado e Mestrado) e seus professores em disciplinas específicas, pesquisadores convidados e seus orientadores de trabalho final. Este número é dedicado às Práticas de Performance.

Organizadores e Editores Fausto Borém e Eduardo Campolina

Revisão de Inglês Ícaro Melo

Ficha Catalográfica Biblioteca Flausino Vale – Escola de Música da UFMG

Capa Detalhe de “O Jardim das Delícias Terrenas” (pintura óleo sobre madeira, 1504) de Hieronymus Bosch, Museu do Prado, Madrid, com interferência de Lucas Monteiro.

Universidade Federal de Minas Gerais Reitor Profa. Sandra Regina Goulart Almeida Vice-Reitor Prof. Alessandro Fernandes Moreira Pró-Reitor de Pós-Graduação Prof. Fábio Alves da Silva Junior Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Mário Fernando Montenegro Campos

Escola de Música da UFMG Diretor Prof. Dr. Renato Tocantins Vice-Diretor Prof. Dr. Carlos Aleixo dos Reis

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Coord. Profa. Dra. Luciana Monteiro de Castro Sub-Coord. Profa. Edite Maria Oliveira da Rocha Secretária Geralda Martins Moreira Secretário Alan Antunes Gomes

Projeto Gráfico Capa: Selo Minas de Som/UFMG Diagramação e miolo: Fausto Borém

P912 Práticas de performance Nº5 [recurso eletrônico]: / organização e edição Fausto Borém, Eduardo Campolina. - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2020. 1 recurso on-line (316 p. : il.) : pdf. (Diálogos musicais na pós-graduação)

Inclui partituras e referências bibliográficas. Publicação Selo Minas de Som ISBN: 978-65-00-00697-1

1. Performance musical. 2. Música – Execução. 3. Música – Análise. 4. Música – Pesquisa. I. Borém, Fausto. II. Campolina, Eduardo. III. Série.

CDD: 780.2

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

Sumário

1. Editorial dos Diálogos Musicais da Pós-Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5 ...... i

Editorial of “Diálogos Musicais in Performance Practices” Nº5 from UFMG’s Music Graduate Studies

Fausto Borém Eduardo Campolina

2. A Fonética articulatória e o trombone de vara ...... 1

Articulatory phonetics and the slide trombone

João Machala Mauro Rodrigues

3. Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen ...... 18

Preparatory exercises for the first movement of A. Dvorák's Concerto for Violin and Orchestra departing from Maxim Jacobsen`s model

Lucas Barreto Edson Queiroz de Andrade

4. O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane ...... 36

Dave Holland’s arrangement for double bass alone of “Mr. P.C.”, by John Coltrane

Pablo Souza Fausto Borém

5. Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua

influência na interpretação da obra ...... 56

Rufo Herrera's poems on Senda Aimára and his influence on the interpretation of the work

Giuliano Coura Cecília Nazaré de Lima

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

6. Hibridismos entre flamenco e música clássica na obra Hommage à Tárrega de Joaquin Turina ...... 78

Hybridity between flamenco and in “Hommage à Tárrega” by Joaquin Turina

Henrique Lowson Fernando Araújo

7. O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio ...... 96

Pianist Amilton Godoy's improvisation style in Zimbo Trio's first album

Carlos Fernandes Fernando Rocha

8. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros Nº 1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos ...... 1 17

"Nem tão típico assim" [“Not so Typical as This”]: subverting the canon in Chôros nº 1, for solo guitar, by Heitor Villa-Lobos

Marco Teruel Castellon Ana Cláudia de Assis

9. Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro ...... 145

Style and idiomatic writing in five works by guitarist- Geraldo Ribeiro

Evandro Dotto Fernando Araújo

10. Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl ...... 165

Interaction of violin with percussion in Harry Crowl’s ‘Concerto nº4,

for violin and percussion’ (2019)

Sofia Leandro Fernando Rocha

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

11. Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo ...... 1 89

Shifting with the “Old Finger” or “New Finger” on the cello: stylistic choices related to portamenti in the concertos by Haydn and Lalo

Pedro Henrique Ludwig Fausto Borém

12. Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico ...... 210

Outline of 4 excerpts in distinctive mental workload from double bass performance

Leonardo Lopes Guilherme Menezes Lage Fausto Borém

13. Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete,

de Euclides Fonseca (1854-1929) ...... 227

Analysis and editing of the aria Tive um sonho [I had a dream], by the operetta A Princesa do Catete [The Princess of Catete], by Euclides Fonseca (1854-1929)

Melina Peixoto Mauro Chantal

14. Análise e performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler ...... 254

Analysis and performance of Samuel Adler's Canto XVI for Solo Viola

Maria Fernanda Leitão Canabarro Carlos Aleixo dos Reis

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BORÉM, Fausto; CAMPOLINA, Eduardo (Orgs. e eds., 2020). Editorial dos Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.i-ix.

15. O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura de 2007 a 2018 ...... 277

Brazilian Portuguese in classical singing: a literature review from 2007 to 2018

Cristina Gusmão Mônica Pedrosa de Pádua

16. Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca ...... 2 88

A Performance edition of Lenda sertaneja [Country legend] (1953), by Carlos Alberto Pinto Fonseca

César Augusto Mauro Chantal

17. Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise estilística e edição de performance ...... 302

Canção da retirante (1953) [Migrant song] by Carlos Alberto Pinto Fonseca: historical data, stylistic analysis and performance edition

Raquel Giesbrecht Calais Mauro Chantal

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

ISBN: 978-65-00-00697-1

A Fonética articulatória e o trombone de vara

Articulatory phonetics and the slide trombone

João Machala Universidade Federal de Minas Gerais, Bolsista de Mestrado do CNPq [email protected]

Mauro Rodrigues Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: O trombone de vara é um instrumento sem chaves ou pistos e, por isso, os movimentos de língua tornam- se ainda mais importantes, por serem a base da técnica para se trocar de nota no instrumento sem ocorrer o efeito musical do glissando. Este estudo verifica a eficácia do uso de sílabas como representação dos golpes de língua por meio da análise espectral dos elementos articulatórios mais propagados na literatura: o “Dah” e o “Tah” (FASKE, 2013).

Palavras-chave: fonética e articulação no trombone de vara; métodos de trombone; análises espectográficas de articulação; análise espectral em música.

Abstract: The slide trombone is an instrument without triggers or pistons; therefore, the awareness of tongue movements becomes way more fundamental since these movements are often the only way to change notes on the instrument without causing the musical effect called glissando. This study verifies the efficiency of the use of syllables as a representation of the tongue movements by means of spectral analysis of the most widely used in the literature, namely the “Dah” and the “Tah” (FASKE, 2013).

Keywords: phonetics; articulation; slide trombone; trombone methods; spectrographic analysis of articulation; spectral analysis.

1- Introdução

A articulação, tema central em qualquer análise na área de performance musical, é ponto determinante na execução do trombone de vara (WULFECK, 2018). Como o instrumento não possui chaves ou pistos em sua constituição, o uso da língua para realizar a emissão e a troca de uma nota para a outra passa a ser ainda mais essencial, para evitar, em muitas passagens musicais, o efeito glissando (GOMES, 2017). AYERS (2004) explica que a língua é a "chave", o ponto mais importante para a articulação em instrumentos de metal.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Na literatura acadêmica e mesmo em diversos métodos tradicionais sobre articulação para trombone de vara, os movimentos que o instrumentista deve realizar com a língua para realizar a troca de uma nota para outra são na maioria das vezes descritos através de sílabas utilizadas na fala (FASKE, 2013; AYERS, 2004). No entanto, as sílabas mais comuns na literatura podem realmente descrever o movimento do músico durante a execução do instrumento? E, ao reproduzi-las com o instrumento, suas diferenças articulatórias são realmente significativas para quem escuta? Apesar de desenvolver todo seu texto em função do sistema silábico de representação de articulação para os instrumentos de metal, AYERS (2004) adverte que o ato de tocar é diferente do de falar, já que ao tocar as cordas vocais não vibram e o som deve ser produzido com o mínimo de obstrução possível, mantendo a glote aberta ao máximo.

Durante a fala, as diferenças sonoras das pronúncias de sílabas distintas são evidentemente perceptíveis por qualquer ouvinte, logo, os movimentos para sua execução também são distintos. Bem estabelecido no campo da fonética, é fato que os órgãos do aparelho fonador humano se movimentam de formas diferentes ao produzirem fonemas e sílabas diferentes (SILVA, 2009). Dado isso, é possível assumir que fonemas possam descrever o movimento da articulação do instrumentista em diferentes situações. No entanto, é razoável se perguntar porque os métodos se utilizam de sílabas para descrever os movimentos da língua, já que o uso de vogais (parte constituinte da sílaba) prevê a vibração mais intensa das cordas vocais, que, como já foi dito, não deve acontecer ao se tocar instrumentos de metal (AYERS, 2004). De fato, não se fala (ou canta) e toca ao mesmo tempo (ao menos quando não se leva técnicas expandidas em consideração). Consequentemente, o método silábico não traduz o que acontece com o sistema fonador do músico ao executar o instrumento.

Tecnicamente, já que tocar trombone não envolve a pronúncia efetiva da vogal, talvez a representação mais fiel do movimento articulatório possa ser realizada como o fazem na área da fonética, através da descrição precisa do segmento consonantal (SILVA, 2009). O que é diferente do uso de apenas uma consoante como forma representativa, o que não seria suficiente. A tradução do movimento para o instrumentista e para o falante através de uma única consoante é incapaz de descrever completamente a articulação em vários casos. Silva (2009) mostra que o ponto de articulação de uma consoante se altera dependendo da vogal que a acompanha no momento da fala, fenômeno atribuído a uma propriedade articulatória secundária da consoante (ABERCROMBIE, 1967 apud SILVA, 2009), gerando diferença no

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. fonema. Repare que dependendo da vogal que acompanha a letra D, por exemplo, o ponto de toque da língua com o trato vocal e até mesmo a posição dos lábios pode se alterar. Ou seja, pode-se ter diferentes fonemas para uma mesma consoante. De fato, para o que ocorre com o instrumentista ao articular, a representação de um fonema consonantal que incluísse as descrições de articulação secundária seria preferível para descrever cientificamente a execução. Dessa forma estaria completamente descrito o movimento da língua e ficaria claro que não se pronuncia a vogal ao tocar, evitando o equívoco da vibração das cordas vocais ao se executar o instrumento.

Porém, a utilização de uma sílaba como tradução do movimento apresenta um tipo de representação quase completa do fonema consonantal, pois acrescenta a descrição secundária da articulação ao se utilizar da vogal subsequente, e não cria a necessidade do conhecimento da transcrição fonética restrita (LADEFOGED, 1982 apud SILVA, 2009), o que poderia ser mais um dificultador no ensino. Tal uso silábico pode então ter se popularizado por essa facilidade, assim como SILVA (2009) explica sobre o uso da "transcrição fonética ampla" em lugar da "restrita" quando da construção das tabelas fonéticas, simplificando as representações dos símbolos fonéticos ao eliminar sinalizações de articulações secundárias. Cabe aos instrumentistas e aos métodos identificarem que as sílabas trazem muitas informações, mas não descrevem o fenômeno fielmente como uma transcrição fonética restrita descreveria. As vogais auxiliam no entendimento de onde a língua deve tocar para articular as consoantes e onde ela repousa após a articulação (AYERS, 2004), mas não devem ser vocalizadas, pois podem restringir a passagem do ar através da glote. Para além disso, deve-se chamar a atenção que, dependendo do idioma natural do autor do método analisado, a descrição silábica de articulação pode induzir o estudante de outra nacionalidade ao erro, já que sílabas iguais são muitas vezes pronunciadas de formas diferentes em idiomas distintos.

Não foram encontradas explicações teóricas para a utilização de tais sílabas como representações fonéticas nos métodos pesquisados. Apenas pequenas indicações para se tentar emitir as sílabas recomendadas pelo autor, como em PERETTI (1928), que indica o uso da sílaba tu. AYERS (2004) faz uma leitura profunda sobre o uso de sílabas na articulação com o instrumento e a fonética, mas, mesmo assim, não questiona se a descrição silábica é a melhor forma de representação gráfica para o movimento articulatório do instrumentista.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Esta introdução aponta o modelo de transcrição fonética restrita das consoantes como sistema mais fiel para descrever a execução dos movimentos dos instrumentistas de sopro. No entanto, parece estar claro que, se utilizadas as sílabas apenas como modo simplificado de tradução do segmento consonantal correspondente e evitada a produção de vibração das cordas vocais relacionada às vogais presentes, o sistema silábico pode ser utilizado sem maiores prejuízos (atentando ao idioma do método em questão). Portanto, com estas ressalvas, será mantida neste trabalho a tradicional representação silábica (mas sempre tomando cuidado com a forma que devem ser pronunciadas), já que se trata da forma mais divulgada de ensino, métodos e literatura até então, evidenciando como os autores tratam o tema.

Dentre as sílabas mais empregadas no ensino da articulação no trombone de vara, listamos algumas que aparecem em métodos comumente encontrados no Brasil (DE OLIVEIRA, 2010): tu, ku (Fischer, 1936) ; “ta”, “ra”, (Gagliardi, s.d); “du”, “gu” (GAGLIARDI, 1936 apud DE OLIVEIRA, 2010); “tu” (PERETTI, 1928); as mais usadas na literatura sobre trombone, segundo FASKE (2013) “tah”, “dah”; as apresentadas por AYERS (2004) como mais usadas “ta”, “tu”, “te”, “ti”, “da”, “du”, “de”, “di” e as sílabas “da”, “ul” (pronunciado como “ru” em português), “la”, do método Doodle Tonguing (MCCHESNEY, 1992).

Ao tratar destas sílabas em seus métodos, os autores apresentam diversos motivos para utilizá- las. Estes motivos estão normalmente relacionados à sonoridade, velocidade de articulação e suas combinações facilitadoras para staccatos duplos, triplos, legatos. Como são sílabas que acabam por representar fonemas diferentes, de fato, ao menos quando faladas, possuem suas peculiaridades sonoras próprias.

No entanto, ao tentar reproduzir estes movimentos articulatórios com o trombone, não se tem a certeza se estas sílabas diferentes retornam resultados tão distintos em termos de som para o ouvinte. Entre trombonistas profissionais, é bem estabelecido na classe, dentro do senso comum, que estas articulações geram resultados diferentes. É possível hipotetizar que o instrumento, que passa a ser mais um elemento para além do aparelho fonador do músico, possa reduzir as diferenças articulatórias que seriam percebidas durante a fala, porém, sem apagá-las completamente. Até onde foram as buscas deste trabalho, não foi encontrado um estudo que mostrasse quantitativamente as características físicas sonoras de cada tipo de articulação no trombone. AYERS (2004) aponta diferenças qualitativas sobre sonoridade e em

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. maior parte sobre os procedimentos mecânicos do aparelho fonador quando se toca aplicando sílabas distintas nos metais, comparando com a fonética da fala. Estas características colocadas em seu texto ficam mais no plano da execução do movimento articulatório do instrumento, mas, sem se questionar sobre o que escuta o ouvinte.

Neste trabalho, não será colocado em questão se os movimentos de cada sílaba geram maior velocidade ou facilidade de execução para o instrumentista, o que pode ser individual, mas sim se as diferentes articulações geram sons distintos suficientemente perceptíveis e se estas diferenças podem ser explicadas em termos físicos.

Para isso, o presente artigo objetiva realizar uma análise espectral dos sons produzidos pelo trombone quando se articula com os dois tipos de sílabas mais encontrados nos métodos, (“Tah” e “Dah”), segundo FASKE (2013). Além disso, pretende-se realizar uma comparação dos espectros produzidos com o instrumento e dos produzidos com a fala, com intuito de verificar se estes preservam características espectrais comuns. Essa análise pretende confirmar a utilização do método silábico presente em toda literatura de articulação para o trombone de vara como sistema de tradução fonético eficaz para o instrumento.

2- Metodologia

Para estudar as diferenças na emissão do som produzido pelo trombone com as duas articulações mais utilizadas com o instrumento, “Tah” e “Dah”, segundo FASKE (2013), o autor deste capítulo foi ao estúdio de gravação da Escola de Música da UFMG e pessoalmente executou-as em seu instrumento, aplicando os movimentos articulatórios devidos. Foram feitos recortes das notas tocadas isoladamente e outras tomadas com sequências musicais de notas com a mesma articulação. Após a gravação foram utilizados os programas Sonic Visualizer (2019) e Praat (s.d) para retirar os espectros das ondas sonoras gravadas e fazer as análises das articulações executadas.

A primeira análise feita foi com a plataforma Praat (s.d), plataforma direcionada para o estudo da fala e da fonética, criada por integrantes da Universidade de Amsterdã. Os áudios analisados podem ser vistos nas Figuras 1 e 2.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

A Figura 1 corresponde à execução da sílaba “Tah” (tal como falada na palavra Tato) e a Figura 2 corresponde à sílaba “Dah” (Tal como falada na palavra Dado). Na parte superior das figuras é possível observar a onda sonora analisada, onde o eixo x é medido em segundos e o eixo y em volts. Na parte inferior encontra-se análise correspondente, feita no domínio da frequência, onde se vê o conteúdo espectral (eixo x contendo o tempo e eixo y a frequência em Herz). As três primeiras ondas observadas em ambas as figuras são da pronúncia da sílaba falada, e, na sequência, três ondas executadas com o trombone, tocando a nota Fá 2, utilizando-se do mesmo fonema correspondente, mas sem vozeamento. Os detalhes presentes na parte inferior das figuras, na região do espectro, serão comentados na seção resultados deste texto.

Figura 1 - Três sílabas “Tah”’s faladas seguidas por três articulações com o mesmo segmento consonantal, executadas com o trombone. Na parte superior o sinal em Volts e na inferior, seu espectro de frequência.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Figura 2 - Três sílabas “Dah”’s faladas seguidas por três articulações com o mesmo segmento consonantal, executadas com o trombone. Na parte superior o sinal em Volts e na inferior, seu espectro de frequência.

Neste experimento com o programa Praat (s.d) foi analisado todo o corpo das sílabas quando faladas e das notas executadas. Ou seja, para além do instante da articulação, todo o espectro da nota e da fala foi observado, da sua emissão até parar de soar.

Além do Praat (s.d) foi realizada uma análise com ajuda do Sonic Visualizer (2019), programa também de acesso disponível e livre na internet, desenvolvido pelo centro de música digital em Queen Mary, da Universidade de Londres. Neste caso, o intuito foi fazer o estudo da emissão da nota, dos primeiros momentos em que se articula até o som se estabilizar no tempo. Os dados analisados foram extraídos das mesmas gravações retratadas nas Figuras 1 e 2, porém, desta vez, o estudo se concentrou nas intensidades dos harmônicos presentes, quando das execuções com as diferentes articulações.

Ao descrever o sistema silábico para a articulação com o trombone, AYERS (2004) explica que a consoante da sílaba aplicada diz respeito a qual ponto da boca a língua vai articular a nota e, a vogal, onde ela irá repousar após o toque articulatório. Como no estudo pretendido com o Sonic Visualizer (2019) foram analisadas duas sílabas que possuem a mesma vogal (“Tah” e “Dah”), para procurar as diferenças entre as articulações buscou-se o momento do toque da

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. língua até o início do repouso da mesma, o transiente sonoro, que poderia diferenciar uma execução da outra. REPP e LINN (1989) em seu artigo que estuda transientes da fala aplicados à pronúncia de sílabas de formato CV (consoante-vogal), limitaram a análise de seus dados ao tempo de 25.6 milissegundos para entender a intensidade sonora do transiente e 12.8 milissegundos para a analisar o conteúdo espectral do mesmo. Com base nisso, tomou-se para este experimento com o trombone o tamanho de 30 milissegundos para serem analisados para cada nota emitida, contados desde o menor sinal de seu início sonoro. Estes 30 milissegundos foram divididos em 3 partes iguais cada, e cada uma delas foi medida com relação à intensidade de seus harmônicos (uma medição de harmônicos foi feita em 5ms, outra em 15ms e outra em 25ms). Valores menores do que 10 milissegundos entre as medições foram testados para avaliações mais precisas sobre as amostras, no entanto, não foi encontrada diferença significativa nos valores que justificasse tal análise minuciosa. Uma tomada de dados relacionada ao momento pós transiente também foi feita para comparação posterior entre as articulações.

A parte superior da Figura 3 mostra o sinal em Volts. Na parte inferior observa-se o espectro da frequência e seus harmônicos. Cada uma das faixas coloridas que se observa é um dos harmônicos presentes na nota executada. As caixas verdes vistas mais à esquerda são ferramentas para analisar as seções de 10ms do transiente. A caixa verde mais à direita analisa o período em que a nota já está estabilizada.

Figura 3 -Nota Fá 2 - gráfico no domínio do tempo e seu espectro na frequência produzido no Sonic Visualizer.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Essa análise foi feita para as três notas executadas com “Dah” e “Tah”, e, os valores em decibéis full scale (dBfs) foram extraídos para comparação entre a composição harmônica das diferentes articulações. Desta forma foi feita uma análise da composição harmônica durante o transiente de cada uma das notas. Uma análise da composição de cada nota estabilizada também foi realizada.

3- Resultados

Na análise com o programa Praat (s.d), observou-se diferença clara entre as sílabas faladas “Dah” e “Tah”. Em ambas as articulações é possível observar os pontos vermelhos na parte do espectro sonoro. Estes pontos determinam as formantes, regiões com maior intensidade sonora que determinam quais são as frequências mais nítidas durante a fala. Elas apresentam um caminho bem semelhante durante as três repetições faladas da sílaba “Tah” (Figura 1), quase num formato em V.

Já no espectro falado da sílaba “Dah” (Figura 2), este padrão não é tão bem determinado e as formantes parecem estar mais espalhadas pelo espectro e não apresentam forma determinante. A mesma diferença entre espectros não pode ser observada para as ondas executadas com o instrumento. Apesar de ser possível observar algumas semelhanças com suas respectivas sílabas faladas nas formantes superiores, os padrões não são tão evidentes para as articulações tocadas.

Já com o programa Sonic Visualizer (2019) e a metodologia descrita na seção anterior para o estudo da emissão da nota Fá 2 no trombone, foi possível montar as Figuras 4, 5 e 6 com os valores dos harmônicos medidos durante o transiente. Os transientes das ondas faladas não foram analisados devido à pouca nitidez de separação entre suas faixas harmônicas.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Sílaba Harm. dBfs 0 a 10ms 10ms a 20ms 20ms a 30ms Estabilidade Harmônico 5 -32 -26 -22 -17 Harmônico 4 -30 -23 -19 -16 DA Harmônico 3 -27 -21 -23 -16 Harmônico 2 -25 -20 -18 -14 Harmônico 1 -22 -19 -17 -16

Harmônico 5 -34 -33 -32 -16 Harmônico 4 -37 -30 -29 -18 TA Harmônico 3 -30 -29 -26 -13 Harmônico 2 -30 -29 -23 -18 Harmônico 1 -27 -21 -18 -15 Figura 4 - Análise harmônica das primeiras ondas “Dah” e “Tah” - ONDAS 1

Sílaba Harm. dBfs 0 a 10ms 10ms a 20ms 20ms a 30ms Estabilidade Harmônico 5 -35 -35 -27 -16 Harmônico 4 -31 -31 -24 -16 DA Harmônico 3 -28 -28 -22 -16 Harmônico 2 -26 -26 -21 -17 Harmônico 1 -24 -22 -20 -19

Harmônico 5 -28 -25 -29 -24 Harmônico 4 -32 -29 -27 -22 TA Harmônico 3 -28 -30 -21 -14 Harmônico 2 -27 -24 -19 -15 Harmônico 1 -23 -20 -17 -16 Figura 5- Análise harmônica das segundas ondas “Dah” e “Tah” - ONDAS 2

Sílaba Harm. dBfs 0 a 10ms 10ms a 20ms 20ms a 30ms Estabilidade Harmônico 5 -36 -30 -30 -24 Harmônico 4 -29 -25 -25 -17 DA Harmônico 3 -26 -23 -23 -16 Harmônico 2 -24 -22 -22 -18 Harmônico 1 -22 -22 -20 -17

Harmônico 5 -29 -31 -31 -16 Harmônico 4 -28 -29 -31 -17 TA Harmônico 3 -29 -24 -25 -16 Harmônico 2 -26 -21 -23 -17 Harmônico 1 -22 -19 -19 -15 Figura 6 - Análise harmônica das terceiras ondas “Dah” e “Tah” - ONDAS 3

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

As figuras acima apresentam a progressão dos valores harmônicos em dBfs durante o tempo, até a onda chegar na intensidade da estabilidade. Trata-se da análise da intensidade dos harmônicos durante o transiente. No caso, este transiente parte do momento em que a língua começa a se movimentar para fazer a articulação e o instrumentista começa a soprar, até o momento em que a língua faz o movimento descendente para se acomodar na boca enquanto o som continua a ser emitido, momento classificado como estabilidade.

4- Discussão dos resultados

Os resultados obtidos com o Praat (s.d) demonstram que o programa consegue evidenciar as diferenças entre as sílabas faladas. É fato que mais amostras poderiam ser colhidas para melhor entendimento do padrão das formantes, mas, mesmo com tão pouco, foi possível encontrar diferença espectral clara entre as ondas faladas “Tah” e “Dah”. Já sobre o espectro das ondas tocadas não foi encontrada mesma qualidade de definição.

O que se buscava nesta parte do experimento era traçar semelhanças entre espectros falados e tocados, mas, não foi possível encontrar precisamente tal resultado. Alguns pontos podem esclarecer tal fato. A região da fala não coincide com a região da nota Fá 2 executada com o trombone. A fala em questão atuou numa região mais grave do que a do trombone e, por se tratarem de instrumentos diferentes (voz e trombone), era de se esperar que a composição harmônica de seus espectros também fosse muito distinta. Os primeiros milissegundos da fala e da execução com o trombone talvez pudessem apresentar maior semelhança. Neste transiente, momento muito rápido em que se tentasse observar apenas o som inicial do segmento consonantal da fala e o som da articulação com o instrumento, talvez pudesse ser encontrado algum tipo de semelhança entre suas formantes harmônicas. No entanto, com o Praat (s.d) não se chegou em definição tão precisa para intervalo tão curto de tempo. Ainda assim, ao observar atentamente as Figuras 1 e 2, pode-se perceber algumas semelhanças entre a fala e a execução com o trombone nestes instantes iniciais, como a maior dispersão dos pontos vermelhos das formantes superiores nas sílabas “Dah” faladas e tocadas. Enquanto com as sílabas “Tah”, os pontos das formantes superiores parecem estar mais restritos a certas faixas do espectro.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Mais amostras de execução feitas por diferentes músicos seriam necessárias para chegar em algum tipo de conclusão definitiva sobre essa correlação entre espectro falado e tocado. Além disso, conforme hipotetizado na introdução, o trombone pode ter atuado também como mais um elemento para além do aparelho fonador do músico, dificultando a compreensão da articulação percebida durante a fala. De qualquer forma, é importante lembrar que o Praat (s.d) é uma plataforma criada para analisar espectros da fala e não de execução musical. Por isso, para analisar mais a fundo o que ocorre na região do transiente buscou-se o Sonic Visualizer (2019), outro programa capaz de realizar análises espectrais.

As Figuras 4, 5 e 6, apresentadas com as medições feitas com o Sonic Visualizer (2019), mostram o comportamento da intensidade em dBfs (dBs Full Scale) dos harmônicos das notas Fá 2, tocadas com as articulações “Tah” e “Dah” durante os 30ms de transiente. Para auxiliar na interpretação dos resultados das figuras anteriores, foi feita uma média logarítmica específica (uma média aritmética resultaria em resultados incorretos) para os valores de intensidade em dBfs, aplicada isoladamente para as ondas do tipo “Dah” e depois para o tipo “Tah”, descritas nas Figuras 4, 5 e 6, e chegou-se à Figura 7 abaixo:

Sílaba Harm. dBfs 0 a 10ms 10ms a 20ms 20ms a 30ms Estabilidade Harmônico 5 -35 -30 -27 -19 Harmônico 4 -30 -26 -23 -16 DA Harmônico 3 -27 -23 -23 -16 Harmônico 2 -25 -22 -21 -17 Harmônico 1 -22 -21 -19 -17

Harmônico 5 -33 -29 -30 -17 Harmônico 4 -31 -27 -26 -18 TA Harmônico 3 -27 -26 -23 -15 Harmônico 2 -26 -24 -22 -17 Harmônico 1 -23 -21 -19 -15 Figura 7 - Análise das médias harmônicas das ondas “Dah” e “Tah” – Ondas Médias

Apesar de se ter poucas amostras das ondas articuladas com as diferentes sílabas e todas elas terem sido executadas pelo mesmo trombonista, com o mesmo trombone, foram encontradas algumas relações que dizem respeito à composição harmônica das diferentes articulações. Primeiramente é importante dizer que os valores absolutos encontrados não devem ser levados em consideração, pois cada nota pode ter variado um pouco de volume durante a execução (por

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. mais que se tenha tentado tocar com mesma intensidade), e os valores de volume não foram normalizados para uma análise mais precisa. O que deve ser levado em consideração é a composição relacional entre os harmônicos presentes em uma mesma articulação.

Ao observar a situação de estabilidade, situação após o transiente, é visível o maior conteúdo harmônico presente no 3º harmônico (harmônicos mais elevados que o 5º não foram analisados por possuírem intensidades muito pequenas) do que no 1º harmônico de ambas as articulações. No mais, com os dados obtidos, pode-se dizer que os campos de estabilidade das diferentes articulações são relativamente parecidos e que talvez as pequenas diferenças sejam devidas à falta de controle fino (normalização) das amostras analisadas. Essa semelhança durante a estabilidade corrobora a teoria de que neste momento a nota está mais relacionada com a vogal presente na sílaba tocada do que com a consoante, que no caso é a mesma para Dah e Tah (AYERS, 2004).

Para além disso, o que mais chamou atenção é a forma como os harmônicos se desenvolveram ao longo do transiente. Esse quesito é de fundamental importância em nossa análise pois evidencia as diferenças na emissão da nota com as sílabas diferentes no trombone de vara. Ao analisar a Figura 7, da média das ondas, atentando para a evolução dos valores de intensidade dos harmônicos no tempo, é possível observar que os valores dos mesmos quando aplicada a articulação “Dah”, evoluem com muito mais presteza em direção aos valores de estabilidade. Enquanto o 5º harmônico da articulação “Tah” praticamente permanece inalterado entre as sub-divisões do transiente, na articulação “Dah” este mesmo harmônico evolui rapidamente no tempo, chegando bem mais próximo de sua estabilidade no final do transiente. O mesmo pode ser visto para o 4º, 3º, 2º e 1º harmônicos, de forma um pouco mais amena. Ou seja, apesar das poucas amostras, um resultado como este, que apresenta comportamento similar para todas os harmônicos, deve ser levado em consideração para estudos posteriores e aponta que as articulações “Dah” e “Tah” apresentam diferenças físicas significativas. No contexto sonoro, pode-se dizer que a articulação “Dah” parece trazer os harmônicos superiores mais rapidamente para soar e é mais rápida para alcançar a intensidade sonora de estabilidade após o golpe de língua. Já a sílaba “Tah” parece ser mais lenta para alcançar a estabilidade, apresentando maior bloqueio dos harmônicos superiores no transiente.

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17.

Os resultados encontrados se assemelham com a descrição qualitativa encontrada em AYERS (2004), que sugere, ao comparar a emissão das consoantes, que “Tah” tem maior lentidão na resposta do instrumento, apesar de ter uma emissão mais explosiva. E “Dah” teria respostas mais rápidas, como se pode perceber com o aumento de harmônicos mais acelerado durante seu transiente neste experimento.

5- Conclusão

O presente capítulo inicialmente apresentou críticas ao sistema silábico para descrever as articulações com o trombone em todos os métodos analisados. Foi proposto que a melhor descrição científica para descrever o movimento de articulação do músico seria através de uma transcrição fonética restrita (LADEFOGED, 1982 apud SILVA, 2009). Neste caso, o movimento articulatório completo da língua do instrumentista estaria contemplado e se deixaria claro que as cordas vocais não deveriam vibrar durante a execução musical. Desta forma, confusões sobre a pronúncia de sílabas apresentadas em métodos estrangeiros também seriam evitadas. Esta seria uma proposta científica para descrição precisa dos movimentos, contudo o uso de tabelas fonéticas não é praxe comum na bibliografia do estudo do instrumento. Compreende-se a escolha dos métodos analisados como uma forma simplificada, ainda que imprecisa, de representar o movimento do trato fonador durante os ataques e articulações do instrumento.

Após a discussão da fonética partiu-se para um ponto ainda mais primário, em que se questionou a existência de diferença significativa sonora ao se executar o instrumento aplicando-se articulações com fonemas diferentes. Afinal, toda a discussão sobre fonética só pode ser significativa se isso gerar alguma diferença no campo sonoro ou para a execução musical, aplicada ao instrumento. Então, análises espectrais foram feitas com o programa Praat (s.d) para relacionar os fonemas falados com os executados com o trombone, porém não foram encontradas correlações evidentes entre estes elementos.

Na sequência, análises espectrais para traçar diferenças entre as emissões dos fonemas associados às sílabas “Dah” e “Tah” foram feitas com auxílio do programa Sonic Visualizer (2019). Foi observado que durante a emissão da nota, na análise do transiente, os harmônicos superiores em “Dah” se apresentaram mais rapidamente do que em “Tah”. Além disso, foi observado que durante a estabilidade da nota, após o transiente, os harmônicos superiores

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. pareceram estar mais presentes quando se articulou com o fonema associado à sílaba “Dah”. Estes resultados corroboram a análise qualitativa presente na dissertação de AYERS (2004), em que “Dah” é tida como uma articulação mais rápida e “Tah” é mais lenta e explosiva. Finalmente, os dados adquiridos nesta etapa pareceram evidenciar quantitativamente que o uso de diferentes fonemas traz impactos diretos à sonoridade com o instrumento e justificam toda a atenção direcionada para o estudo da fonética articulatória.

Apesar dos resultados encontrados e as discussões apresentadas neste capítulo, cabe aqui dizer que as análises foram feitas com pequena quantidade de amostras para se constatar alguma característica física de sonoridade definida. Além do mais, as amostras foram executadas por apenas um trombonista e não podem levar a uma generalização sobre as execuções de outros músicos. O que se tem de fato aqui e que atende aos objetivos propostos na introdução deste capítulo é que diferenças físicas harmônicas foram constatadas na execução com articulações diferentes, o que nos leva a crer que existam reais diferenças no som produzido, e que estas podem ser analisadas em termos dos espectros de suas notas. Muito mais amostras devem ser colhidas e um trabalho cuidadoso na área de estatística deve ser realizado para efetivamente caracterizar os vários tipos de articulação. Mas, com estes pequenos resultados apresentados, o campo parece um pouco mais estável para se poder falar sobre as sílabas e fonemas que representam as articulações no ensino de trombone, sem se duvidar das diferenças sonoras que cada articulação carrega consigo quando executada com o instrumento. Portanto os resultados preliminares corroboram as indicações contidas na bibliografia do instrumento no que tange a utilização de fonemas para representar e indicar formas diferentes de emissão sonora.

Para além das diferenças físicas entre as articulações, a fim de saber se as pessoas conseguem diferenciar a emissão de articulações diferentes pelo trombonista, um estudo posterior na área de psicoacústica também poderia ser conduzido. O fato de os espectros de articulações diferentes serem distintos entre si não pode levar à conclusão direta que as pessoas escutam essa diferença sonoramente. Como apresentado por EVEREST e POHLMANN (1989), um teste cego realizado com um grupo de pessoas de número e características específicas poderia ser a melhor forma para avaliar se duas amostras sonoras são diferentes para o ouvido humano.

Num futuro, em um cenário em que seja possível desvendar através de parâmetros claros (espectrais por exemplo) qual articulação foi utilizada por um músico durante a emissão de

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MACHALA, João; RODRIGUES, Mauro (2020). A Fonética articulatória e o trombone de vara. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.1-17. uma nota, será possível fazer o mesmo para toda uma peça, chegando a um mapa dos fonemas utilizados por um instrumentista em uma gravação de determinada obra musical.

Finalmente, apesar de deixar claro que são necessárias mais amostras para uma análise mais robusta sobre as emissões das diferentes articulações, o presente capítulo aponta para a importância da área de fonética articulatória para o trombone de vara e parece deixar claro que diferenças substanciais podem ser encontradas aplicando-se diferentes articulações com o instrumento.

Referências

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10. DE OLIVEIRA, Antônio Henrique Seixas. Métodos e ensino de trombone no Brasil - uma reflexão pedagógica. 2010. 282p. Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro, 2010. (Dissertação de Mestrado em Música).

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9. MCCHESNEY, B. Doodle studies and etudes - a complete course of study using doodle tonguing for the slide trombone. California: Chesapeake Music, 1992.

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Notas sobre os autores

João Machala é graduado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017) e atualmente cursa o Mestrado em Performance Musical pela Escola de Música da UFMG, como bolsista do CNPq. Trombonista, compositor e arranjador, estudou música no Centro de Formação Artística do Palácio das Artes (2005-2007). Vencedor do prêmio BDMG Instrumental (2018) e do Jovem Instrumentista do BDMG (2013), lançou seu primeiro EP solo, "DESENCONTRO" em 2017. Durante a carreira já gravou em mais de 50 álbuns da cena mineira além de ter tocado com grandes músicos nacionais e internacionais como , Marcos Valle, Leila Pinheiro, Toninho Horta, Raul de Souza, Gilson Peranzzetta, Andrea Boccelli, Guillermo Klein, Darcy James Argue, Juarez Moreira, Célio Balona, Paula Santoro, Chico Amaral, Wilson Lopes, André Limão Queiróz, Mauro Rodrigues, entre outros

Mauro Rodrigues é graduado em flauta pela UFMG, mestrado pelo CBM (RJ) e doutorado em Artes pela UFMG. Atualmente é professor na Escola de Música da UFMG. Tem atuado como produtor, compositor, arranjador e instrumentista e tem lançados em CD os seguintes trabalhos autorais: Edição Brasileira (Karmin 2001), Um Sopro de Brasil (Núcleo Contemporâneo 2004), Suíte para os Orixás (independente 2006), O Homem Roxo (Carabina Filmes 2010) Misturada Orquestra (independente - 2011), Presépio Pipiripau, o mundo de Raimundo Machado (Fazenda Filmes - 2013), Canção Amiga, Clube da Esquina (CRMM 2017) e Cru, Cozido e Repartido (independente 2018).

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BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen

Preparatory exercises for the first movement of A. Dvorák's Concerto for Violin and Orchestra departing from Maxim Jacobsen`s model

Lucas Barreto Universidade Federal de Minas Gerais, Bolsista da CAPES [email protected]

Edson Queiroz de Andrade Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Proposta de exercícios preparatórios para a superação de dificuldades técnico-musicais em trechos selecionados do primeiro movimento do Concerto em Lá Menor Op.53 para Violino e Orquestra de A. Dvorák, tendo como modelo os exercícios criados por Maxim Jacobsen em seu método Mendelssohn Violin-Konzert Op.64, E moll: 24 Vorbereitende Ubungen. Uma análise dos elementos técnicos utilizados por Jacobsen serviu de base para a elaboração de exercícios correspondentes específicos para trechos selecionados em função de três dificuldades técnico-musicais: (1) afinação de arpejos com mudança de posição, (2) afinação e fluência em passagens de cordas duplas e (3) passagens com acordes arpejados.

Palavras-chave: Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák; exercícios preparatórios para a performance violinística; métodos de técnica violinística; método de Maxim Jacobsen.

Abstract: This paper is a proposal of preparatory exercises aimed at overcoming technical and musical difficulties on selected excerpts from the first movement of A. Dvorák’s Concerto in A Minor Op.53 for Violin and Orchestra. This proposal used as a model the exercises created by Maxim Jacobsen in his method Mendelssohn Violin-Konzert Op.64, E moll: 24 Vorbereitende Ubungen. An analysis of the technical elements used by Jacobsen served as the basis to elaborate similar exercises specifically for selected excerpts according to three technical and musical difficulties: (1) intonation in arpeggios with position changing, (2) intonation and fluency in passages with double stops, and (3) passages with arpeggiated chords.

Keywords: A. Dvorák’s Concerto for Violin and Orchestra; preparatory exercises for violin performance; methods of violin technique; method by Maxim Jacobsen.

18 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

1. Introdução

Este artigo apresenta uma investigação acerca do primeiro movimento do Concerto para Violino em Lá Menor Op.53 de Antonín Dvorák. A escolha desta obra está relacionada à preparação para um concurso realizada no ano de 2014 pelo primeiro autor deste texto. Nesta preparação, os desafios técnicos presentes na obra e o curto prazo de tempo provocaram a busca de mecanismos, caminhos e/ou formas de resolver as questões técnicas ali presentes, e também otimizar o tempo de preparação e resolução destas questões. Nessa oportunidade, tomamos contato com o método Mendelssohn Violin-Konzert Op. 64 E moll – 24 Vorbereitende Übungen1 do violinista e pedagogo natural da Letônia, Maxim Jacobsen (1887-1973). Neste método, Jacobsen propõe 24 exercícios técnicos para passagens específicas do Concerto em Mi Menor para Violino e Orquestra de Felix Mendelssohn, visando à preparação técnica violinística para esta obra.

Além do Concerto em Mi Menor de Mendelssohn, Maxim Jacobsen (1961) analisou em outras publicações os concertos de Beethoven (Ré Maior), Mozart (Lá Maior) e Wieniawski (Ré Menor). O autor desenvolveu técnicas de estudo e treinamento técnico, propondo ganho de tempo e efetividade na preparação dessas obras, escrevendo um método para cada um desses concertos. Sua proposta serviu de inspiração e influência para esta pesquisa, haja vista a contribuição de suas análises e metodologias para a performance violinística. Não encontramos deste autor uma obra semelhante direcionada especificamente para o Concerto para Violino Op.53 em Lá Menor de Antonín Dvorák, o que nos motivou a elaborar exercícios para alguns trechos selecionados do seu primeiro movimento, nesses mesmos moldes.

Neste artigo, apresentamos uma análise de alguns dos exercícios preparatórios criados por Jacobsen para o Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn, procurando verificar a aplicabilidade desses exercícios em excertos de equivalência técnica, presentes no Concerto para Violino de Dvorák. Em seguida, selecionamos trechos deste concerto e propomos exercícios criados especificamente para esses trechos, procurando demonstrar de que forma

1 Concerto para Violino de Mendelssohn Op.64, Mi Menor: 24 Exercícios Preparatórios (Tradução nossa). A partir deste ponto adotaremos a tradução em português para este título.

19 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

tais exercícios podem contribuir para a solução das dificuldades técnicas identificadas nos trechos selecionados. Trata-se aqui de um recorte da Dissertação de Mestrado a ser defendida em 2020, onde pretende-se apresentar um maior número de excertos, e também verificar outras possíveis abordagens técnicas visando à preparação do Concerto para Violino de Dvorák.

2. Análise Técnica Violinística de excertos do método Concerto para Violino de Mendelssohn Op.64, Mi Menor: 24 Exercícios Preparatórios de Maxim Jacobsen

Maxim Jacobsen foi um violinista judeu ortodoxo e professor de violino nascido em Riga, capital da Letônia. Escreveu diversos métodos de estudos para violino, como 100 paráfrases técnicas para os estudos de Kreutzer, 25 exercícios de concentração diária para o violinista, além de métodos contendo exercícios preparatórios para os concertos de Beethoven, Mozart em Lá Maior, Wieniawski em Ré Maior e Mendelssohn em Mi Menor, dentre outros. Os títulos destas obras demonstram uma preocupação constante de Jacobsen em municiar o professor e o aluno de violino com material destinado ao aperfeiçoamento do domínio técnico deste instrumento.

O método Concerto para Violino de Mendelssohn Op.64, Mi Menor: 24 Exercícios Preparatórios possui 23 páginas, e começa com um texto dedicado a rainha Elisabeth da Bélgica (Jacobsen foi professor do conservatório de Bruxelas), onde o autor cita a importância das obras de Paganini e Bach. Também explica a criação de exercícios feitos por ele (baseado na consulta do fac-símile das partituras originais) para o estudo das Sonatas e Partitas para Violino Solo de Bach. Em seguida, Jacobsen comenta a preparação técnica dos concertos para violino, afirmando que a prática comum entre os instrumentistas é o estudo contínuo das passagens mais difíceis das obras. Seguindo nesta reflexão, o autor cita que “somente a repetição por si só das passagens difíceis inúmeras vezes não é o caminho para resolvê-las”. Por esse motivo, ele defende a necessidade de se criar métodos com exercícios específicos direcionados à resolução de problemas e passagens específicas dos concertos que ele chama de standard. Ele

20 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

acredita que esta é uma maneira de tornar esse estudo menos cansativo e mais eficiente (JACOBSEN, 1961).

Após esses textos introdutórios, Maxim Jacobsen apresenta sua proposta para a preparação técnica do Concerto em Mi Menor de Mendelssohn. Primeiramente, ele mostra um índice explicativo dos sinais correspondentes aos elementos técnicos e musicais presentes no método. Em seguida, ele separa 24 passagens do concerto com maiores dificuldades técnicas, e cria exercícios direcionados à resolução destas passagens. Esses exercícios abrangem aspectos técnicos como a independência de dedos, a afinação, técnica de cordas dobradas com diferentes intervalos e diferentes golpes de arco, todos separados em exercícios específicos direcionados ao trecho do concerto estudado.

Vale ressaltar que o foco é estritamente técnico, sem levar em conta questões interpretativas ou musicológicas a respeito do concerto. Além disso, o autor não aborda qualquer detalhamento dos fundamentos da técnica do violino, como por exemplo, postura corporal, colocação dos dedos nas cordas ou pegada do arco, o que nos faz crer que o método é direcionado ao violinista que já domina bem esses quesitos. Notamos ainda que Jacobsen é também econômico em suas explicações sobre os objetivos específicos a serem atingidos com cada exercício. Como veremos mais adiante, alguns desses exercícios cobrem mais de um elemento técnico, às vezes não indicado pelo autor.

Em seguida, apresentaremos uma análise técnica violinística do método, por meio de exemplos de passagens do concerto selecionadas por Jacobsen, em função de três dificuldades técnico-musicais: afinação de arpejos com mudança de posição, afinação e fluência em passagens de cordas duplas, e passagens com acordes arpejados.

21 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

2.1. Afinação de Arpejos com Mudança de Posição

Um dos primeiros elementos técnicos que Jacobsen aborda é a afinação envolvendo arpejos com mudança de posição. Esse elemento está presente nos c.24-33 do primeiro movimento do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn (Figura 1).

Figura 1: Arpejos com mudança de posição (em azul) nos c.24-33 do primeiro movimento do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn (JACOBSEN, 1961, p.1).

O primeiro arpejo desta passagem que apresenta mudança de posição está nos c.27-28 da Figura 1. Para trabalhar a afinação nesses compassos, o autor se utiliza de aumentação rítmica e de cordas duplas, transformando as colcheias em mínimas, e sobrepondo as notas do arpejo para que sejam tocadas simultaneamente, em intervalos de uníssono, terças, quartas, quintas e sextas (Figura 2).

Figura 2: Exercício 1B de Jacobsen com aumentação rítmica, cordas duplas e pedais de cordas soltas em vermelho (JACOBSEN, 1961, p.1).

A aumentação rítmica desacelera a mudança de notas, possibilitando ao intérprete maior tempo para executar a passagem. O uso de cordas duplas serve para antecipar as notas que virão na sequência, e ao mesmo tempo construir a forma da mão que será aplicada no arpejo.

22 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Aliada às cordas duplas, a presença de cordas soltas como pedais auxiliam no estudo da afinação.

2.2 Afinação e Fluência em Passagens de Cordas Duplas

O próximo trecho que analisaremos é a sequência de terças menores e maiores, quintas diminutas e quarta aumentada, nos c.97-101 do primeiro movimento do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn (Figura 3).

Figura 3: Passagem de cordas duplas nos c.97-101 do primeiro movimento do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn (JACOBSEN, 1961, p.2).

Nesse trecho, o autor cria dois exercícios distintos. No primeiro exercício, Jacobsen utiliza aumentação rítmica, transformando as quiálteras de colcheias com notas repetidas em mínimas (A), e também utiliza cordas soltas em semibreve (B) que servem de pedais (Figura 4):

Figura 4: Exercício nº 4 de Jacobsen, variações A e B em azul com aumentação rítmica e pedais de cordas soltas em vermelho (JACOBSEN, 1961, p.2-3).

Na Figura 4, assim como no exercício da Figura 2, Jacobsen também utiliza aumentação rítmica para desacelerar a troca de intervalos, e consequentemente, proporciona mais tempo

23 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

ao instrumentista para o ajuste da afinação. Permite ainda que seja melhor assimilada a distância entre os dedos da mão esquerda, contribuindo para o estabelecimento da forma da mão correspondente aos intervalos desejados.

No segundo exercício, Jacobsen utiliza-se de segmentação e colocação silenciosa dos dedos da mão esquerda, como nos mostra o exemplo a seguir (Figura 5):

Figura 5: Exercício 4C de Jacobsen com segmentação em vermelho, colocação silenciosa dos dedos nas cordas em azul, golpe de arco em amarelo e região do arco em verde (JACOBSEN, 1961, p.3).

No exercício acima, Jacobsen insere pausas de semínimas entre as tercinas, e promove uma segmentação na passagem estudada, criando um espaço temporal que permite a colocação dos dedos correspondentes ao intervalo que se seguirá. Essa colocação dos dedos é indicada pelos pequenos quadrados entre parênteses no pentagrama, como o próprio autor explica no texto, no canto superior direito da Figura 52. Os dedos devem ser colocados nas notas indicadas pelos quadrados, sem que haja produção de som pelo arco, ou seja, em silêncio. Com os dedos em posição, o arco pode então ser acionado.

Esse exercício proporciona ao instrumentista maior segurança na colocação correta dos dedos e na execução em sequência dos intervalos, e mesmo não mencionado pelo autor, acreditamos que ele contribui para desenvolver a fluência exigida no trecho original.

2 Notas silenciosas pressionadas, mas sem a utilização do arco (Jacobsen, 1961, tradução nossa).

24 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Vale ressaltar ainda a preocupação do autor com a sonoridade e a articulação. Podemos notar no canto superior esquerdo da Figura 5 a indicação do golpe de arco spiccato3, bem como a região do meio do arco indicada através do símbolo de duas linhas horizontais paralelas cortadas por uma linha vertical.

2.3 Passagens com Acordes Arpejados

A última passagem que analisaremos inclui acordes arpejados, presentes nos c.334-347 do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn, como na Figura 6:

Figura 6: Acordes arpejados nos c.334-347 do primeiro movimento do Concerto em Mi Menor de F. Mendelssohn (JACOBSEN, 1961, p.8).

A Figura 6 corresponde a uma passagem de acordes arpejados em ricochet4. Entretanto, a forma como Jacobsen cria exercícios para preparar esse golpe de arco não se limita ao estudo de acordes arpejados em ricochet, mas serve também como preparação para a realização de acordes arpejados com outros golpes de arco. Para esta passagem, Jacobsen propõe cinco exercícios diferentes, dos quais analisaremos três. O primeiro exercício contém segmentação e preparação silenciosa dos acordes, como mostra a Figura 7:

3 O spiccato é um golpe de arco onde o arco é jogado do ar e depois deixa a corda após cada nota (GALAMIAN, 1962, p.75, tradução nossa). 4 Este golpe [ricochet] é baseado inteiramente na capacidade natural de pular da vareta. Várias notas são tocadas numa mesma arcada, ascendente ou descendente, mas, somente um impulso é dado, o qual ocorre quando o arco é arremessado sobre a corda na primeira nota. (GALAMIAN, 1962, p.65, tradução nossa).

25 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Figura 7: Exercício 13 de Jacobsen com segmentação em vermelho e preparação silenciosa de acordes em azul (JACOBSEN, 1961, p.4).

Nesse exercício, o autor separa o trecho em acordes, prepara esses acordes colocando os dedos sobre cada nota de forma silenciosa, e os executa de forma arpejada em ricochet.

O segundo exercício sugere executar os acordes na mesma direção, para cima, e com sons simultâneos, como mostra a Figura 8:

Figura 8: Exercício 13 de Jacobsen com acordes para cima e em sons simultâneos, segmentação em vermelho, região de arco em verde e colocação silenciosa dos dedos em azul (JACOBSEN, 1961, p.4).

Na Figura 8, Jacobsen se utiliza de segmentação pela inclusão de pausas entre os acordes, e sugere que todos os acordes sejam tocados com o arco na mesma direção para cima, na região do meio, e com articulação curta. Para os acordes de quatro sons, ele articula com o arco as três notas mais agudas, e mantém a nota grave pressionada, mas em silêncio.

No terceiro exercício Jacobsen faz a aumentação rítmica, transformando as colcheias em mínimas, como mostra a Figura 9:

26 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Figura 9: Exercício 13 de Jacobsen em son filé com aumentação rítmica e respiração entre os compassos (JACOBSEN, 1961, p.4).

No exercício acima, Jacobsen trabalha a afinação. Ele utiliza aumentação rítmica junto com cordas duplas, sugere uma respiração entre cada compasso para poder se preparar para o que se segue, e executa as cordas duplas em ligaduras longas em son filé5, para poder ajudar a fixar a forma de mão de esquerda e a afinação.

3. Exercícios Preparatórios de Trechos do 1º Mov. do Concerto em Lá Menor de A. Dvorák

Antonin Dvorák (1841-1904) é um autêntico representante do nacionalismo tcheco, por incluir em sua obra elementos da música folclórica de seu país num sofisticado idioma clássico. Além de ter sido apontado como o “paladino da música eslava”, viveu alguns anos nos Estados Unidos, “onde suas ideias sobre música nacional tiveram profundo impacto em uma geração de compositores” (TOSCANO, 2016).

O Concerto para violino de Dvorák Op.53 em Lá Menor foi escrito no ano de 1879, enquanto Dvorák passava o verão com seu amigo Alois Göbl (secretário do príncipe tcheco), no interior da república tcheca. A obra foi dedicada ao violinista Joseph Joachim. LAKI (2010) assim nos fala sobre o concerto:

5 Provavelmente tão antiga quanto a prática de escalas é a prática do son filé, isto é, o som longo sustentado, que tem servido gerações de violinistas como um meio para o estudo e produção de som e controle de arco, e que ainda proporciona um valioso material de exercício para o mesmo propósito. O que o controle da respiração significa para o cantor – a habilidade para cantar frases longas sem ter de interrompê-las para uma nova respiração – o controle de arco nos golpes de arcos longos e sustentados significa para o violinista – a habilidade de sustentar uma nota ou frase longa sem ter de trocar a arcada. (GALAMIAN, 1962, p.103, tradução nossa).

27 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Todos os três movimentos do concerto são principalmente de natureza melódica; em outras palavras, o efeito do concerto depende do apelo imediato do material temático, e não de seu desenvolvimento ou de um uso particularmente inovador da harmonia (LAKI, 2010).

ROEDER (1994) também enaltece o material temático do primeiro movimento como um elemento de “grande interesse”, e aponta que já nos primeiros compassos, o aspecto nacionalista da obra se faz presente, onde “o desenho rítmico da fanfarra orquestral inicial estabelece o sentimento da música folclórica tcheca” (ROEDER, 1994, p.278).

O Concerto para Violino em Lá Menor é uma obra bastante popular de Antonín Dvorák, revela um progresso artístico do compositor, e evidencia o seu caráter nacionalista. Sua execução é um grande desafio, especialmente para jovens instrumentistas. A seguir, apresentamos uma seleção de excertos do primeiro movimento com seus respectivos exercícios.

3.1-Afinação de Arpejos com Mudança de Posição

O primeiro excerto selecionado compreende os c.26-28 na Figura 10:

Figura 10: Arpejos com mudança de posição em azul nos c.25-28 do primeiro movimento do Concerto para Violino de Dvorák (DVORÁK, 1973, p.3).

Para esse excerto, criamos o exercício de arpejos com mudanças de posição adaptadas ao Concerto para Violino de Dvorák, como podemos ver na Figura 11:

28 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Figura 11: Exercício 1, trecho 1: Aumentação rítmica, cordas duplas e pedais de cordas soltas em vermelho.

No exercício anterior (Figura 11), aplicamos a aumentação rítmica, transformando as semicolcheias em mínimas. A desaceleração do trecho ajuda a pensar na forma da mão esquerda, e favorece o ajuste da afinação. Utilizamos ainda cordas duplas, e em alguns compassos pedais de corda solta, que contribuem ainda mais para o estudo da afinação no registro agudo.

3.2– Afinação e Fluência em passagens de Cordas Duplas

Para este elemento técnico, selecionamos os compassos c.90-91, como nos mostra a Figura 12 a partir da seta azul:

Figura 12: Passagens de Cordas Duplas nos c.86-91 do primeiro movimento do Concerto para Violino de Dvorák e regiões de arco em verde (DVORÁK, 1973, p.4).

29 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Notamos nesse excerto, c.90, que o editor Max Rostal se preocupa em indicar em qual região do arco as colcheias devem ser tocadas. Logo abaixo da segunda colcheia do compasso, vemos o símbolo indicando a ponta do arco, e logo abaixo da quinta colcheia do compasso, o símbolo correspondente ao talão.

Para este trecho criamos dois exercícios equivalentes aos de Jacobsen no item 2.2. O primeiro usa a aumentação rítmica e pedais de cordas soltas para trabalhar a afinação (Figura 13):

Figura 13: Exercício 2, trecho 2: Aumentação rítmica e pedais de cordas soltas em vermelho. Figura 13: Exercício 2, trecho 2: Aumentação rítmica e pedais de cordas soltas em vermelho Figura 13: Exercício 2, trecho 2: Aumentação rítmica e pedais de cordas soltas em vermelho

O segundo exercício utiliza-se da segmentação do trecho original, de aumentação rítmica e da colocação silenciosa dos dedos, como nos mostra a Figura 14:

Figura 14: Exercício 3, trecho 2: Colocação silenciosa dos dedos em azul, aumentação rítmica e segmentação em vermelho.

30 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Na Figura 14, o exercício deverá manter as sugestões de Max Rostal no que diz respeito às regiões pré-determinadas do arco, como indicado na Figura 13. Portanto, quando a arcada começa para cima ( ), assim como no primeiro compasso, esta deve ser executada na ponta do arco e quando a arcada iniciar para baixo ( ), assim como no terceiro compasso, esta deve ser executada no talão. Os símbolos entre parênteses logo antes de cada colcheia ( ) significam a nota ou as notas onde se devem fazer a colocação silenciosa dos dedos.

3.3 – Passagens com Acordes Arpejados

O último excerto selecionado compreende os c.189-196 do Concerto para Violino de Dvorák, onde aparece uma passagem com acordes arpejados (Figura 15):

Figura 15: Acordes arpejados nos c.189-196 do primeiro movimento do Concerto para Violino de Dvorák (DVORÁK, 1973, p.7).

Para o elemento técnico presente na Figura 15, criamos dois exercícios a partir do modelo de Jacobsen, anteriormente citado no item 2.3:

31 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Figura 16: Exercício 4, trecho 3 - Aumentação rítmica, cordas duplas e respiração.

No primeiro exercício (Figura 16), que corresponde ao exercício da Figura 9, aplicamos a aumentação rítmica, transformando as semicolcheias do trecho original em mínimas, empregamos cordas duplas, utilizando as notas dos arpejos, e por último a respiração entre compassos, com o intuito de se preparar mentalmente para o compasso seguinte. O segundo exercício tem como modelo as Figuras 7 e 8 correspondentes ao Exercício 13 do método de Jacobsen, como nos mostra a Figura 17:

32 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

Figura 17: Exercício 5, Trecho 3 – Colocação silenciosa dos dedos em azul, segmentação em vermelho e aumentação rítmica.

Na Figura 17, o exercício criado aplica a segmentação, dividindo o trecho original em diversas partes menores, e aplica a aumentação rítmica, transformando as semicolcheias em colcheias.

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Utiliza ainda a colocação silenciosa dos dedos, que está indicada no início de cada compasso pelos quadrados brancos entre parênteses.

4. Conclusão

A análise dos exercícios elaborados por Maxim Jacobsen em seu método direcionado para o estudo do Concerto em Mi Menor de Mendelssohn nos mostrou sua preocupação prioritária com a afinação. Os principais elementos utilizados para esses exercícios foram a aumentação rítmica, a segmentação, a utilização de cordas duplas e de pedais de cordas soltas, e a colocação silenciosa dos dedos nas cordas. Além da afinação, podemos observar também uma intenção de trabalhar a sonoridade e a articulação, pela indicação de regiões de arco, golpes de arco, e o uso do son filé. Verificamos ainda que os elementos aqui citados fornecem ferramentas técnicas para uma performance dos excertos com a devida fluência exigida pelo compositor.

Foi possível criar, com base nos excertos analisados, exercícios específicos para passagens correspondentes selecionadas no primeiro movimento do Concerto para Violino de Dvorák. Utilizamos os mesmos elementos observados no método de Jacobsen, comprovando a sua aplicabilidade na preparação técnica desse concerto. Acreditamos que esse procedimento virá enriquecer e otimizar o tempo de preparação de uma obra musical, tornando mais eficaz o estudo desse tipo de repertório.

Referências

1. AUER, Leopold. (2012) Violin Master Works and Their Interpretation. Mineola, NY: Dover Publications Inc. 160p.

2. DVORÁK, Antonín. (1973) Violin Concerto in A Minor, opus 53. Ed. Max Rostal. Mainz: Schott Musik International GmbH & Co. KG (Partitura).

3. GERLE, R. (2015) Dez regras básicas para o bom estudo. In: A arte de praticar violino. Tradução de João Eduardo Titton. Editora Curitiba: UFPR, p.17-32.

34 BARRETO, Lucas; ANDRADE, Edson Queiroz (2020). Exercícios preparatórios para o primeiro movimento do Concerto para Violino e Orquestra de A. Dvorák a partir do modelo de Maxim Jacobsen In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.18-35.

4. GALAMIAN, I. (1984) Principles of Violin Playing & Teaching. 2ª Ed. Englewood Clifes, New Jersey: Prentice-Hall, Inc. 144p.

5. JACOBSEN, M. (1961) Mendelssohn Violin-Konzert Op.64, E moll: 24 Vorbereitende Ubungen – Leipzig: Edition Peters No. 7052, 23p. (Partitura).

6. LAKI, Peter. (2019) Violin Concerto in A minor, op. 53. Disponível em https://cutt.ly/hrqXCzx. Washington, D. C.: The Kenedy Center. (Acesso em 18 de junho de 2019)

7. NUNES, Jorge Armando. (2014) Concerto em Lá Maior para Violoncelo: uma visão crítica da recriação da obra de Dvorák por Gunther Raphael. Tese de Doutorado. Unicamp. Campinas, 157p.

8. ROEDER, Michael Thomas. (1994) Grieg, Dvorák, and Others. In: A History of the Concerto. Portland, Oregon: Amadeus Press, p.273-290.

9. TOSCANO, Frederico. (2016) O nacionalismo na música (1830-1950). Postado no site da revista Será?, em 18 de novembro de 2016. Disponível em https://tinyurl.com/rfhuyyj (Acesso em 25 de junho de 2019).

Notas sobre os autores

Lucas Barreto possui o título de bacharel em violino e atualmente é mestrando em Performance pela Escola De Música da UFMG. Foi violinista da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais por 10 anos, professor de violino do CEFART desde 2017, professor de violino da prefeitura de Contagem, Núcleo Villa Lobos e CENEX-ESMUFMG no ano de 2019.

Edson Queiroz de Andrade possui Doutorado em Música pela Universidade de Iowa (EUA). É Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais e participa regularmente como professor e violinista em cursos e festivais de música pelo Brasil. Tem atuado também como solista e spalla convidado de orquestras como a Orquestra de Câmara Opus, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, a Orquestra de Câmara Sesiminas, a Orquestra de Cordas da UFMG, a Orquestra de Cordas do IV Gramado In Concert e a Orquestra de Cordas do 6º Festival de Maio. Integra, ainda, o duo violino/ com sua esposa, a pianista Valéria Gazire.

35 SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

ISBN: 978-65-00-00697-1

O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane

Dave Holland’s arrangement for double bass alone on “Mr. P.C.”, by John Coltrane

Pablo Souza Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Fausto Borém Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Estudo de caso sobre o arranjo para contrabaixo sem acompanhamento de Dave Holland do standard de jazz “Mr. P.C.”, de John Coltrane. A partir da fonte primária, constituída por uma gravação em vídeo incluída no show Dave Holland Solo at JazzBaltica 2003, foi realizada uma transcrição em forma de partitura, constituindo assim uma segunda fonte primária. Para fins de comparação, foi também utilizada uma lead sheet do tema original disponível em fake books. A análise da transcrição revela os procedimentos de arranjo, incluindo o tema e improvisações, que tornam única esta realização de Holland. Utilizamos o mAAVm (Método de Análise de Áudios e Vídeos de Música) e suas ferramentas EdiP (Edição de Performance) e EdiPA (Edição de Performance Audiovisual), propostos por BORÉM (2018 e 2016).

Palavras-chave: arranjo de Dave Holland, técnicas do contrabaixo popular solo, improvisação no jazz, transcrição “Mr. P.C.”, análise de vídeo de música.

Abstract: A case study on Dave Holland’s arrangement for single/solo double bass alone on John Coltrane’s jazz standard Mr. P.C.”. Departing from the primary source, which is a video recording of the concert Dave Holland Solo at JazzBaltica 2003, a transcribed score of Holland’s performance was produced, therefore generating a second primary source. A lead sheet of the tune taken from Fake Books was used for comparison purposes. The transcription analysis reveals arranging procedures, including the theme and improvisations that make Dave Holland’s performance unique. To achieve these results, we used the mAAVm (Method for the Analysis of Audio and Videos of Music) and its analytical tools EdiP (Edition of Performance) and EdiPA (Edition of Audiovisual Performance), proposed by BORÉM (2018 and 2016).

Keywords: Dave Holland’s arrangement; jazz double bass solo techniques; jazz improvisation; transcription of “Mr. P.C.”; music video analysis.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

1- Introdução

De acordo com BERENDT (1992, p.327), poucos contrabaixistas de jazz possuem uma carreira tão prolífica como o britânico Dave Holland (1946), que desde a década de 1960, tem transcendido técnicas desenvolvidas pelas gerações anteriores de contrabaixistas, se tornando uma das grandes estrelas do neoclassicismo do jazz. Segundo o autor, nenhum instrumentista, desde Charles Mingus, demonstrou os avanços que um contrabaixista poderia alcançar ao improvisar com as formas tradicionais e, ao mesmo tempo, conscientemente, surpreender através de abordagens rítmicas ou harmônicas imprevisíveis e frases melódicas inside e outside.

A importante participação de Holland, como sideman ou bandleader, na história e no desenvolvimento do jazz desde o final década de 1960, quando integrou o grupo de Miles Davis, lhe redeu o título de NEA (National Endowment for the Arts) Jazz Master (2017), além de onze indicações a prêmios, incluindo três Grammy Awards: 1) Em 1998, na categoria Best Jazz Instrumental Performance com o álbum Like Minds; 2) Em 2001, na categoria Best Large Jazz Ensamble com o álbum What Goes Around; e 3) Em 2003, na categoria Best Jazz Instrumental Album com What Now? (Holland, 2019). Embora possua uma produção extensa como músico acompanhador, Holland também se destaca ao enfrentar o desafio de sustentar um concerto completo tocando contrabaixo sozinho no palco.

Algo fora do convencional, a formação instrumental “contrabaixo popular sozinho” tem feito parte da carreira de Dave Holland desde a década de 1970, quando lançou seu primeiro álbum com esta instrumentação. De acordo com Gilbert (2018), Emerald Tears, lançado pela gravadora ECM em 1977, foi o primeiro álbum na história do jazz a dar visibilidade e popularidade ao formato contrabaixo sem acompanhamento no mercado musical. Emerald Tears possui uma sonoridade inspirada em conceitos provenientes do free jazz e avant garde, com peças tocadas com arco e pizzicato de forma livre ou aberta, cuja liberdade torna difícil a identificação de choruses e andamentos devido a utilização de rubatos. Em entrevista à Andrew GILBERT (2018), Holland conta que: “... Anthony Braxton me encorajou a tocar solo, mas eu realmente não fiz meu primeiro concerto solo até Emerald Tears...”. Sobre os desafios e inspirações em sua abordagem ao contrabaixo sem acompanhamento, ele acrescenta:

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“Quando você pensa no contrabaixo, você pode tocar cordas duplas [double stops] e alguns acordes, mas você tem que apresentar a música inteira. Quando eu comecei a tocar violoncelo em 1970, eu trabalhei aquelas suítes incríveis de Bach, e foi isso que eu usei para desenvolver uma abordagem para o contrabaixo solo. Bach apresenta uma forma de acompanhar, preencher a harmonia e tocar a melodia ao mesmo tempo.” (GILBERT, 2018)

Após um longo período sem trabalhos de contrabaixo sem acompanhamento registrados, Holland lançou o álbum Ones All em 1993. Diferente do conceito avant garde de Emerald Tears, Ones All possui arranjos com um formato estrutural tipicamente utilizado em jam sessions tradicionais, quando há (1) a apresentação do tema, (2) uma sequência de choruses de improvisação estruturada dentro da harmonia e da forma do tema, e (3) a reexposição do tema. Dessa forma, o repertório de Ones All é composto de standards de jazz e música autorais baseadas em formas tradicionais. Holland propõe um diálogo com o ouvinte através de melodias bem explicitadas, harmonias bem ressaltadas, e improvisos com desafios técnicos, métricos e harmônicos, ao mesmo tempo em que consegue manter o fluxo musical, como se estivesse exercendo os papéis de acompanhador e solista. De acordo com OUSLEY (2008, p.23), Holland obtém grande coerência em seus arranjos e improvisações no álbum Ones All devido a utilização de referências temáticas, desenvolvimento de motivos, e manutenção ou manipulação do andamento com rubatos e fermatas de modo muito apropriado.

Esse artigo propõe o estudo do arranjo para contrabaixo sozinho do standard de jazz Mr. P.C., de John Coltrane, incluído no concerto de Dave Holland realizado no festival JazzBaltica 2003. São três as fontes primárias adotadas para esse estudo de caso. Primeiro, a gravação em vídeo da performance de Holland disponível no YouTube. Segundo, a transcrição da performance de Holland em forma de partitura., realizada pelo primeiro coautor do presente texto e incluída, como anexo, no final deste capítulo. Terceiro, uma lead sheet de “Mr. P.C.”, de Coltrane, publicada e anotada por AEBERSOLD (1983, p.7).

Em The Role of Transcription in Jazz Improvisation, Adrien MARCUS (2004) afirma que a transcrição de standards é um procedimento comum entre jazzistas, não só como ferramenta de aprendizagem de repertório (temas com suas harmonias), mas também como meio de desenvolver habilidades de improvisação. Aqui, a transcrição também é utilizada como meio de produzir uma fonte primária para facilitar a análise tanto no nível macro da forma musical, quanto em níveis locais para perceber detalhes de decisão e escolha de ritmos, harmonias,

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dinâmicas, timbres etc. Foi utilizado o software Transcribe!, cujas facilidades incluem o procedimento de reduzir o rápido andamento da performance de Holland (semínimas em torno de 230 bpm) sem alteração das frequências, o que permite checar com muito mais precisão os elementos que serão notados na partitura.

Para a análise de vídeo, foram utilizadas as ferramentas MaPA (Mapa de Performance Audiovisual) e EdiPA (Edição de Performance Audiovisual) do mAAVm (Método de Análise de Áudios e Vídeo de Música; BORÉM, 2018 e 2016). As análises teóricas, as quais incluem harmonia, escalas, arpejos e características de fraseado, foram feitas a partir de conceitos estabelecidos por COKER (1989), GRIDLEY (2009) e LEVINE (1995).

2- Análise da lead sheet de “Mr. P.C.”, de Coltrane

O legendário saxofonista John Coltrane escreveu “Mr. P.C.” para o contrabaixista Paul Chambers, com quem trabalhava desde quando eram integrantes do grupo de Miles Davis na década de 1950. “Mr. P.C.” foi gravada pela primeira vez no álbum Giant Steps em 1959, e rapidamente se tornou um standard de jazz (AEBERSOLD, 1983, p.3).

O tema de “Mr. P.C.” possui uma estrutura em três períodos compostos por frases antecedentes e consequentes no formato de “pergunta e resposta”, que ocorre entre a melodia e os kicks1 dos acordes Cm7 – Bb – Cm7, que são executados pela sessão rítmica. No período 1, na Figura 1 abaixo, a frase antecedente a, ou “pergunta”, encontra-se nos c.1-2, seguida pela frase consequente b, “resposta”, através dos kicks Cm7 – Bb – Cm7 nos c.3-4. A mesma estrutura é repetida no período 2, no iv grau (Fá menor), onde a “pergunta” pode ser encontrada nos c.5-6, seguida pela “resposta” com os kicks Cm7 – Bb – Cm7 nos c.7-8. No período 3 encontra-se o turnaround (c.9-12), onde a “pergunta”, composta pelas frases c e d, é iniciada por anacruse e possui a blue note Sol bemol (c.8-10), e a “resposta” com os kicks Cm7– Bb – Cm7 pode ser observada nos c.11 e 12.

1 De acordo com Levine (1995, p.xii), kicks são ritmos específicos (ou convenções rítmicas) realizados por todos os membros em uma seção rítmica de um grupo musical. 39

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Figura 1 – Lead Sheet de “Mr. P.C.” com a análise estrutural do tema, em verde; análise harmônica, em azul marinho; kicks, em vermelho;e blue notes, em azul.

De acordo com GRIDLEY (2009, p.460), o termo blues possui os seguintes significados: (1) música que projeta um sentimento triste; (2) uma forma de poesia rimada; (3) um tipo de progressão harmônica, geralmente em 12 compassos, que se movimenta nos c.5, 7, 9 e 11; da tônica para a sub-dominante (I-IV ou i-iv), depois retorno à tônica e, depois, o chamado turnaround, que desce da dominante para a subdominante e, finalmente, retorna à tônica (V- IV-I ou V-iv-i). Embora algumas variações sejam possíveis, a forma estrutural é sempre a mesma.

“Mr. P.C.” possui a forma estrutural de um blues menor (Dó menor) quaternário (4/4) de 12 compassos. Sua forma harmônica caracteriza-se por 4 compassos em Dó menor (grau i, c.1-2- 3-4), dois compassos em Fá menor (grau iv, c.5-6) e dois compassos em Dó menor (grau i , c.7- 8). Para finalizar, o turnaround composto por um compasso de Ab7, dominante substituto do

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V grau (SubV7/V, c.9), um compasso de G7, dominante do i grau (V7, c.10) e volta para Dó menor nos dois últimos compassos (Grau i, c.11-12).

3- Análise do arranjo de Dave Holland em “Mr. P.C.”

O arranjo virtuosístico de Dave Holland para “Mr. P.C.” é em Dó menor, a mesma tonalidade da primeira gravação de John Coltrane no álbum Giant Steps e das lead sheets pesquisadas. O andamento da performance é rápido, com semínimas por volta de 230 bpm. Holland mantêm uma dinâmica em mf durante a maior parte da performance. Seu arranjo possui a estrutura tema–improviso–tema, o que é bem característico de uma jam session. GRIDLEY (2009, p.480) descreve uma jam session como uma formação jazzística na qual a performance, apesar de se basear na apresentação de um tema previamente composto, tem na improvisação seu ponto principal. A performance de uma jam session pode ocorrer de maneira formal ou casual, privada ou pública, profissional ou apenas por diversão.

No arranjo de Holland, o chorus com o tema é exposto duas vezes (Letra A e Letra B, c.1-25), seguido por 12 choruses de improvisação (Letra C a Letra N, c.26-169), e reexposto por uma vez (Letra O, c.170-181). Para finalizar, o turnaround é repetido três vezes, seguido por uma cadência em que arpejos e frases virtuosísticas sobre os acordes Ab7 e G7, que são executados em rubato (Letra P, c.186-196). No final, os kicks Cm7 – Bb – Cm7 são tocados com bicordes em quintas justas, nos tempos 1 e 3, e batidas com a palma da mão direita no espelho do contrabaixo nos tempos 3 e 4, simulando uma bateria (c.201-202). Ao todo, a performance do arranjo de “Mr. P.C.” dura três minutos e trinta e seis segundos [03:36].

Algumas diferenças em relação à lead sheet podem ser observadas no c.1 do arranjo (Letra A em [00:13] da gravação), onde há a inclusão de uma anacruse com a nota Lá natural, em colcheia, que mostra claramente a linguagem idiomática de Holland optando pela sonoridade de uma corda solta e destacando o modo Dórico. Em seguida, este Lá se liga por hammer on na nota seguinte, Dó, que é outro efeito idiomático do contrabaixo. Holland opta por articular a maior parte da escala de Dó menor ascendente em semínimas, e não em colcheias, como na lead sheet ou na gravação de Coltrane. Esses padrões de articulação e de ritmo, que são

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repetidos em todas as exposições do tema, facilitam a execução do trecho e contribuem com o suingue e o fluxo da frase (Figura 2).

Figura 2 – Em azul, anacruse com hammer on ligando Lá Natural em Dó; em vermelho, alterações rítmicas da melodia no arranjo de Holland.

Cordas duplas no contrabaixo devem ser utilizadas com parcimônia pois, tecnicamente, não são tão fáceis de se realizar como no violino, viola ou violoncelo. A EdiPA, na Figura 3, destaca bicordes de quintas paralelas utilizado por Holland para tocar os kicks Cm7 – Bb – Cm7, que são recorrentes ao longo de todo o arranjo (c.3, 8, 11, 16, 20, 24, 180 e 184). Na sua realização, o dedo 1 toca a nota Dó na Corda Lá e o dedo 4 toca a nota Sol na Corda Ré, produzindo um padrão popularmente conhecido, especialmente no rock, como power chord.

Figura 3 – Cordas duplas idiomáticas no contrabaixo: o bicorde de Dó na gravação de Holland (c.4).

O conceito de utilizar cordas duplas para reforçar aspectos harmônicos pode ser visto também na frase antecedente c, onde encontra-se a blue note Sol bemol (c.8-9 da lead sheet). 42

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No c.10, a nota da melodia Fá é mantida (dedo 1) e a nota Lá bemol, fundamental do acorde Ab7, é acionada na Corda Mi (dedo 2), gerando assim um intervalo de sexta maior (Figura 4). Tal procedimento reforça a harmonia e acrescenta uma rítmica mais suingada à performance.

Figura 4 – Cordas duplas idiomáticas no contrabaixo: o bicorde de Ab6 na gravação de Holland (c.10).

Após doze choruses de improvisação (Letra C a Letra M), a última exposição do tema (conhecida como head out) e os bicordes dos kicks Cm7 – Bb – Cm7 são realizados uma oitava acima em dinâmica mp (c.170, em [03:07] da gravação). Observa-se também que, nos kicks dos c.176-177, Holland coloca as notas Dó e Si bemol do bicorde uma oitava acima, e troca as duas outras notas (Fá e Sol) para as notas Mi bemol e Fá para manter as 5as justas paralelas (Figura 5).

Figura 5 – Melodia do tema com bicordes sugerindo a harmonia Cm7 – Bb – Cm7 (em azul) executados uma oitava acima da original (c.170-173); bicordes com as notas da melodia na voz superior (c.176, em vermelho). 43

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Ao final da exposição do tema (Letra O), a melodia do turnaround é repetida três vezes, procedimento comum entre os músicos para finalizar standards de jazz. A terceira repetição do turnaround, contudo, é tocada em rubato, com ritardandi e accelerandi (c.185-197). A Figura 6 mostra um arpejo de Ab7 em duas oitavas seguido por uma frase curta terminada em fermata na nota Lá bemol (Letra P, c.187-189). No c.188, observa-se um dedilhado complexo devido a extensa utilização do dedo 1 da mão esquerda.

Figura 6 – Cadência com arpejo de Ab7 em duas oitavas (em azul) e mudanças de posição utilizando apenas o dedo 1 da mão esquerda (em vermelho, c.188-189).

Seguindo a cadência, na Figura 7, há um arpejo ascendente de G7 em duas oitavas (c.191-192), que é seguido por uma escala de tons inteiros descendente na mesma tonalidade (c.193-195). Ao final da frase em Sol dominante, há um trecho virtuosístico que combina uma sequência rítmica em quiálteras com articulação em hammer on (c.196-197-198).

Figura 7 – Em azul; arpejo ascendente de G7 nos c.191-192. Em verde; escala de G7 tons inteiros descendente nos c.193-195. Em marrom; trecho virtuosístico articulado por hammer ons nos c.196-197.

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O arranjo é finalizado com os kicks Cm7 – Bb – Cm7 em dinâmica f. Para acrescentar mais energia ao final da performance, os bicordes com intervalos de quinta justa, tocados nos tempos 1 e 3, são combinados com batidas de mão direita aberta no espelho do instrumento nos tempos 2 e 4 no c.200 (Figura 8), técnica estendida utilizada por Holland para emular a presença de uma bateria ou seção rítmica. Em seguida, observa-se a utilização de outra técnica estendida, classificada por TURETZKY (1974) como pizzicato tremolo, tocado com vigor sobre o bicorde em Dó menor no c.201 (Figura 8). Estas técnicas nos remetem a levadas da bateria do jazz, como o bumbo no segundo e no quarto tempos e a o rulo no hi-hat que, junto com o contrabaixo, formam a “cozinha” na maioria dos ensembles do gênero.

Figura 8 – Batidas com a palma da mão direita no espelho do instrumento (em azul) e pizzicato tremolo (em vermelho) no c.201.

5 – Conclusão

Este estudo de natureza analítica e criativa, focado no arranjo e performance do contrabaixista Dave Holland, partiu do levantamento de duas fontes primárias (uma lead sheet e uma gravação de vídeo de música no festival JazzBaltica 2003) e da criação de uma terceira fonte primária (a transcrição do vídeo de música na forma de partitura). O objeto de pesquisa, centrado na versão e realização de Holland do standard de jazz “Mr. P.C.” de John Coltrane, se revelou uma sofisticada sequência de 12 choruses de improvisação, antecedida e seguida da apresentação do tema. Holland confere uma grande unidade à sua versão ao explorar em cada seção, sistematica e didaticamente, técnicas tradicionais e estendidas do contrabaixo sozinho no palco. Assim, suas improvisações não nasceram necessariamente no

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calor do momento, mas revelam um planejamento minucioso e escolhas que tornam sua performance uma vitrine de práticas de performance.

Identificamos diversas técnicas tradicionais e estendidas. As cordas duplas, tanto em cordas adjacentes (Cordas I e II) quanto afastadas (Cordas II e IV), serviram para enfatizar aspectos harmônicos e rítmicos, como nos kicks. Já o pizzicato tremolo e as batidas percussivas da mão direita aberta sobre o espelho do instrumento simularam práticas de performance da bateria, como as levadas do hi-hat e do bumbo. Há também trechos na improvisação que lembram outros instrumentos solistas, como a insistente repetição das articulações em hammer on e pull off que remetem ao fraseado idiomático do saxofone em estilos como o bebop.

Composicionalmente, Dave Holland recorre à aumentação e diminuição de ritmos, oitavação de frases do tema, escala de tons inteiros, inclusão de notas fora dos acordes para manter intervalos de cordas duplas (como as 5as justas Dó-Sol e Sib-Fá que se tornam Fá-Dó e Mib- Sib) e condução de duas vozes simultâneas, uma influência da escrita de J. S. Bach nas Suites para Violoncelo. Ainda refletindo sua formação eclética, nota-se um cuidado de Holland com variações da dinâmica, a elaboração de cadências mais virtuosísticas e, mesmo, alterações de andamento pouco comuns em ensembles de jazz. Há rubati planejados e uma mudança intencional de tempo tão evidente que foram anotados na Coda, onde destacamos o andamento que cai em mais da metade (de 230 para 105) no c.199, procedimento de ênfase cadencial que aponta para o fim da performance.

Sutilmente, Dave Holland parece mostrar que, ainda hoje no contrabaixo, convivem entre si técnicas não-letradas e abordagens de escolas acadêmicas. Assim, ele lembra a aprendizagem autodidata do contrabaixo tocando passagens inteiras com um mesmo dedo e, por outro lado, faz referência a métodos tradicionais do instrumento ao realizar arpejos ascendentes e descendentes percorrendo vários registros do instrumento. técnicas pouco convencionais.

Esperamos que a inclusão da partitura da transcrição, criada como uma edição de performance pelo primeiro autor deste capítulo, se torne uma ferramenta não apenas para a compreensão do estilo de Dave Holland, mas também um material didático relevante no ensino do contrabaixo acústico popular.

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Referências de Texto

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Leitura Recomendada

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HOLLAND, Dave. (2003). Dave Holland plays Mr. P.C., by John Coltrane, at JazzBaltica 2003. Produção de JazzBaltica. Salzau: 4 jul. 2003. 04min21s, son., color. Disponível em: https://youtu.be/WGkqKFfWObk Acesso em: 01 agosto, 2019.

Notas sobre os autores

Pablo Souza é Professor Assistente da UFMG, onde atua como coordenador da área de Música Popular e leciona disciplinas de contrabaixo (acústico e elétrico), harmonia, improvisação e prática de conjunto. Possui Bacharelado em Música com ênfase em contrabaixo erudito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006), com Fausto Borém, e Mestrado em Música com ênfase em Jazz Bass Performance pela University of Louisville (2012), com Chris Fitzgerald e Sidney King. Foi professor de contrabaixo elétrico na escola de música Pró Music (2002- 2006). Foi professor de contrabaixo acústico no Projeto Orquestra Jovem do SESC (2012). Como contrabaixista, trabalhou em shows e gravações com Maria João e Mario Laginha, , Roberto Menescal, Juarez Moreira, Toninho Horta, Mike Tracy, Marcus Vianna, Túlio Mourão, Celso Moreira, Chico Amaral, Taryn Szpilman, Gunhild Carling, Luis Bonilla, Nivaldo Ornelas, Ted Piltzecker, Chris Stover, Mark Lambert, Eugenia Melo e Castro, Alieksey Vianna, Titane, Weber Lopes, entre outros.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a revista acadêmica Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais do contrabaixo acústico desde a década de 1990 (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo, Avignon e as principais universidades de música nos EUA), nos quais apresenta suas composições, arranjos e transcrições. É pesquisador do CNPq desde 1994 e líder dos grupos de pesquisa multidisciplinares ECAPMUS (Estudos em Comportamento e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (Pérolas e Pepinos da Performance Musical). Criou o método interdisciplinar mAVm (Método de Análise de Áudios e Vídeos de Música) com suas diversas ferramentas de análise integrando música às outras artes (dança, teatro, cinema, literatura), psicologia e psiquiatria (reconhecimento de expressões faciais e gestos maiores, emoções e mudanças de comportamento) e educação física (controle e aprendizagem motora). Publicou dezenas de artigos sobre práticas de performance das músicas erudita e popular, no Brasil e no exterior. Como contrabaixista, acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti e Arnaldo Cohen e músicos populares como , , Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão, Skank e Paula Fernandes. Foi professor e recitalista do Festival Internacional de Música Antiga e Música Colonial Brasileira de Juiz de Fora (2005 a 2008, 2015) e contrabaixista em 5 CDs com a Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora (2005 a 2009; incluindo o Prêmio Diapason D'or do Brasil), que incluem sinfonias de W. A. Mozart e J. Haydn, Suites de Bach e a Sinfonia a Grand Orchestra de S. Neukomm. Restaurou e publicou as lições do método de contrabaixo e as modinhas imperiais de Lino José Nunes (1789-1847). Foi o contrabaixista do 4º CD da Orquestra Barroca do Amazonas (2016). Publicou vários artigos seminais sobre figuras da música popular brasileira como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Elis Regina, Pixinguinha, , Milton Nascimento, , Raphael Rabelo, K-Ximbinho, Vitor Assis Brasil e Grupo Uakti. Recebeu prêmios no Brasil e no exterior como solista no contrabaixo, compositor, pedagogo e analista musical.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

Anexo – Partitura da transcrição do arranjo de Dave Holland para “Mr. P. C.”, de John Coltrane

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

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SOUZA, Pablo; BORÉM, Fausto (2019). O Arranjo para contrabaixo sozinho de Dave Holland para “Mr. P.C.”, de John Coltrane. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas e Som, p.36-55.

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COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra

Rufo Herrera's Poems on Senda Aimára and their influence on the interpretation of this work

Giuliano Coura Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Cecília Nazaré de Lima Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Senda Aimára, para flauta e violão, foi escrita pelo compositor argentino, e residente no Brasil, Rufo Herrera, a partir de suas experiências com os Aimára, povo estabelecido na América do Sul desde a era pré- colombiana. Para cada um dos episódios: 1. Vidála, 2. Chaya e 3. Huayno, Herrera escreveu três pequenos poemas que contextualizam os eventos musicados. Este estudo analisa o conteúdo semântico desses poemas, buscando extrair informações sobre o significado e o ambiente de cada um dos episódios e, depois, os relaciona com procedimentos composicionais utilizados na peça. Para tal, foram realizadas pesquisa sobre os Aimára, entrevistas com o compositor e com os instrumentistas do Duo Mineiro e análise do registro audiovisual de performance da peça na interpretação do referido Duo. Os resultados buscam orientar o performer sobre o caráter, o local e o contexto cultural de cada episódio, além de subsidiar escolhas para uma performance fundamentada de Senda Aimára. na peça.

Palavras-chave: Rufo Herrera; música de câmara brasileira; música latino-americana; cultura dos povos Aimára; Duo de violão e flauta.

Abstract: Senda Aimára, for flute and guitar, was written by Argentinean and Brazilian resident composer Rufo Herrera drawing from his experiences with the Aimára, a people established in South America since the pre- Columbian era. For each of the episodes: 1. Vidála, 2. Chaya, and 3. Huayno, Herrera wrote three short poems that contextualize the musical events. This study aims to analyze the semantic content of these poems, seeking to extract information about the meaning and environment of each episode and to relate them to the compositional procedures used in the play. To this end, a study of the Aimáras, interviews with the composer and the Duo Mineiro instrumentalists, and analysis of the audiovisual record of the performance performed by the Duo will be conducted. The results will guide the performer about the character, the place, and the cultural context of each episode, besides subsidizing the technical/interpretive choices for the performance of Senda Aimára.

Keywords: Rufo Herrera; Brazilian Chamber Music; Latin American Music; Aimára Peoples Culture; South American Flute and Guitar Duo.

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COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

1. Introdução

Ao escolher a partitura Senda Aimára, de Rufo Herrera, para integrar o repertório do Duo Mineiro,1 fomos surpreendidos com uma escrita que satisfaz as características idiomáticas dos instrumentos, em especial a do violão, mesmo sendo uma peça escrita por um compositor não violonista. Desde o ano de 2013, Senda Aimára vem sendo interpretada pelo Duo Mineiro, cujos integrantes são ex-alunos de música da Fundação de Educação Artística2, e foi por meio dessa Instituição que os músicos conheceram o compositor Rufo Herrera e, consequentemente, essa composição (SILVA e COURA, 2018). O Duo realizou registro audiovisual de performance da peça, como parte do trabalho que recebeu premiação na categoria “Recital Referência” no congresso de música “4° Nas Nuvens”.3 A cada interpretação de Senda Aimára os integrantes do Duo vêm sentindo a necessidade de ampliar a divulgação desse trabalho artístico de Herrera e aprofundar a pesquisa sobre o contexto cultural muito singular em que ele está inserido. Esses interesses se impuseram como as principais metas da pesquisa de mestrado que está sendo realizada pelo primeiro autor, e os pequenos poemas criados por Rufo Herrera e inseridos na partitura manuscrita da peça foram o ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho.

Nascido em 1933, no município de Rio, na província de Córdoba, na Argentina, Rufo Herrera estudou violoncelo no Conservatório Nacional de Buenos Aires com Roberto Lisbón, um importante professor de violoncelo desta instituição. Rufo decidiu deixar seu país, no ano de 1959, e, antes de fixar residência no Brasil, residiu em cinco países da América do Sul - Chile, Peru, Equador, Venezuela e Bolívia, o que foi de grande influência em sua produção musical, pois realizou pesquisas aprofundadas sobre a música dos povos originários e remanescentes

1 O Duo Mineiro, formado pelo violonista Giuliano Coura e pelo flautista Alef Caetano, foi criado em 2013, com o objetivo de interpretar e divulgar peças e compositores mineiros ou que tenham sua produção artística construída no estado de Minas Gerais. Em 2014, o Duo conquistou o prêmio “Jovem Músico” BDMG, e por três vezes foi selecionado para integrar a programação do programa “Segunda Musical”, nos anos de 2014 e 2015. Participou também da programação do Conservatório da UFMG, no projeto “Palco Livre”, e na programação do projeto Viva Música da Escola de Música da UFMG. O Duo Mineiro tem dado continuidade às pesquisas de expansão do repertório de câmara para violão e flauta, se apresentando em espaços destinados a música de concerto e festivais. Ambos integrantes cursam mestrado no Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG. 2 "FEA 55 anos - Fundação de Educação Artística." http://www.feabh.org.br/paginas.php?pag_key=11 . Acessado em 17 out. 2019. 3 "26 - Senda Aimára relato de experiência performática em uma obra ...." https://musicanasnuvens.weebly.com/26---senda-aimaacutera-relato-de-experiecircncia-performaacutetica- em-uma-obra-de-rufo-herrera.html. Acessado em 17 out. 2019. 57

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

das civilizações do Continente Centro e Sul Americano. Mudou-se para o Brasil, em 1963, para trabalhar nos estúdios da gravadora Odeon na cidade de São Paulo. Após alguns anos trabalhando como instrumentista, decepcionou-se com a carreira e decidiu se dedicar mais à composição, como ele explica:

Saí pelos países da América, com a esperança de que o público “culto” reconhecesse o meu trabalho, a minha evolução no instrumento e a minha aspiração de elevar a um patamar digno este instrumento maravilhoso quanto os outros já consagrados pela história da música. Mas quem é que queria vestir trajes de concerto para ouvir este instrumento de cabaré? Me pediam para tocar o tango “Garufa”. Assim carreguei a minha decepção por seis países e cheguei ao Brasil, o sétimo. Uma noite, tocando numa casa noturna na Rua Timbiras, chamada El Grego, tive de tocar o tango “Garufa” vinte e duas vezes. Guardei o bandoneon como concertista e resolvi me dedicar à composição, “ao encontro com o destino”. (2002, livreto. CD apud SANTOS, 2006)

De acordo com a discografia oficial de Rufo Herrera,4 em 1991, ele funda e dirige o “Quinteto Tempos” com formação instrumental de bandoneón, violão, violoncelo, contrabaixo e percussão e com a proposta de unir a música erudita com a música popular. Ainda atuante, o Quinteto já gravou três discos com obras autorais e arranjos originais, a saber, “Tocata Del Alba” (1995), “Toda Música” (1999) e “Balada para un loco” (2008). No ano 2000, Rufo Herrera foi co-fundador, juntamente com o professor Ronaldo Toffolo, da Orquestra Ouro Preto,5 e atualmente atua como compositor residente e coordenador artístico desta orquestra com a qual gravou três discos: “Bandonéon” (2005), “Latinidade” (2007) e “Latinidade” (2015). Desde 1977, Rufo Herrera mantém ligação direta com a Fundação de Educação Artística (FEA), importante instituição promotora da arte na capital mineira, onde preside o Centro Latino Americano de Criação e Difusão Musical, criado em 1986 durante o 1º Encontro de Compositores Latino Americanos.

A produção composicional de Rufo Herrera, de acordo com a biografia disponibilizada no seu site oficial, totaliza-se em mais de 100 obras musicais, entre elas 04 cantatas, 05 óperas, 03 balés, diversas obras para formações sinfônicas e camerísticas, além de trilhas sonoras para o cinema e o teatro. A peça Senda Aimára (2011), para flauta e violão, segundo o compositor, é

4 Disponível em http://www.rufoherrera.com/discografia , acessado em 13/10/2019. 5. “Buscando reviver a histórica vocação musical da cidade de Ouro Preto (Minas Gerais), Rufo Herrera e Ronaldo Toffolo, associados a um grupo de instrumentistas que integravam o grupo Trilos e o Quarteto Ouro Preto, criaram, no ano de 2000, a Orquestra Experimental da UFOP, hoje Orquestra Ouro Preto. É formada por cerca de 20 músicos, aos quais se associam músicos convidados, em função do repertório a ser executado. Tem como Diretor Artístico e Regente Titular o Maestro Rodrigo Toffolo”. Disponível em http://www.orquestraouropreto.com.br/site/a-orquestra, acessado em 13/10/2019. 58

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

um ato saudosista para relembrar os tempos em que ele esteve em contato direto com a etnia indígena dos Aimáras, principalmente nas províncias de Salta e Jujuy (Figura 1), na Argentina.

Figura 1 - Mapa da República Argentina e suas divisões de províncias, com destaque do autor para as províncias de Salta e Jujuy Fonte - Instituto Geográfico Nacional - IGN6 Argentina.

Os Aimára são uma etnia indígena instalada na cordilheira dos Andes e Altiplano da América do Sul (SILVA e COURA. 2018). Seus antepassados foram subjugados pelos Incas que tentaram sua dominação no período pré-colonial Espanhol na América do Sul. Hoje a maioria da população Aimára vive na região do Lago Titicaca, se concentrando ao sul do lago. Muitos vivem e trabalham como camponeses no Altiplano e há registro da presença deste povo em quatro países da América do Sul: na Bolívia, a população dos Aimára é estimada em 1.191.352; no censo de 2017 do Peru, 548.292 pessoas se intitulam Aimára; no Chile, em 2017, o resultado da população Aimára foi de 156.754 pessoas; e no censo de 2017 da Argentina, o número foi de 20.822 .7

6Disponível em https://www.ign.gob.ar/AreaServicios/Descargas/MapasEscolares, acessado em17/12/2019. 7Censo Bolívia 2012, https://www.cedib.org/wp-content/uploads/2013/08/Tabla-Poblacion-Indigena1.pdf CensoPerú2017:http://m.inei.gob.pe/prensa/noticias/inei-difunde-base-de-datos-de-los-censos-nacionales- 2017-y-el-perfil-sociodemografico-del-peru-10935/ Censo Argentina 2010:https://www.indec.gob.ar/ftp/cuadros/poblacion/censo2010_tomo1.pdf Censo Chile 2017: https://www.censo2017.cl/descargas/home/sintesis-de-resultados-censo2017.pdf

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COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

Na peça musical Senda Aimára, o título remete aos caminhos que os Aimáras percorrem a pé em diferentes ocasiões de seu cotidiano, sendo que a palavra senda pode ser traduzida como trilha ou caminho (HERRERA, 2019). A peça é dividida em três movimentos classificados por Rufo como “episódios”, termo empregado por ele com o sentido de um evento, um fato ou uma ocorrência, já que cada um deles contém breves fragmentos de sua experiência como observador na tribo (SILVA; COURA, 2018). Para cada um dos episódios, o compositor acrescentou na partitura manuscrita pequenos poemas que, nas palavras do Rufo, “são ferramentas essenciais para a compreensão da obra e servem como base estética para que os músicos intérpretes possam ter uma visão mais clara sobre o estilo musical em que a peça está escrita”. (HERRERA, 2019)

A singularidade do contexto cultural da composição de Senda Aimára e a informação do compositor sobre o papel fundamental dos poemas para a interpretação da peça motivaram a investigação sobre a relação do conteúdo semântico dos poemas com a música escrita no manuscrito, assim como a influência dos textos na interpretação da peça. Os dados que irão subsidiar as análises dos poemas e a sua comparação com os recursos composicionais utilizados na elaboração da peça serão obtidos por meio de estudo sobre o modo de vida dos Aimáras, de entrevistas com o compositor e com os integrantes do Duo Mineiro, e do o registro audiovisual da performance da peça realizado pelo Duo.

2. O encontro de Rufo com os Aimáras

Rufo Herrera (2019) relatou os motivos que o levaram a decisão de sair da Argentina, entre os anos de 1959 e 1960. Sua ideia inicial era a de chegar ao México, passando por países da América do Sul e da América Central, pois havia um interesse pessoal em estudar composição naquele país. A escolha de ir passando de país em país se vinculava a um interesse profundo e particular pelas culturas populares dos povos latino-americanos, pois ele próprio se reconhece como fruto dessa cultura popular. A América Latina sempre esteve mais ao meu alcance[…]e eu sempre me interessei pela música latino-americana. Nasci no folclore de raiz, então, isso é uma coisa que carrego comigo para a vida toda. Eu comecei a tocar folclore, meu pai foi um violonista

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amador, um camponês que tocava violão e recitava versos, improviso, como muitos gaúchos faziam. Então, eu ouvi esse tipo de música. (HERRERA, 2019)

A intenção de estudar composição no México se perdeu no meio de caminho e o compositor acabou se fixando em São Paulo.

Saí, para estudar[...] enquanto eu estava em Buenos Aires, tocamos com orquestras famosas e viajávamos para os países vizinhos Chile, Peru, México, enfim... Ali que eu comecei a conhecer outros países e a dar início a um projeto de conhecer a cultura de raiz, a cultura indígena. E quando fui ao Chile, onde ficamos uma temporada de dois meses, conheci muita gente boa nisso. Ainda menino, recebi muitas dicas de outros países como o Peru, Venezuela e Colômbia, onde havia uma pesquisa muito boa. E, assim, também eu conheci gente que tinha estudado no México, e a Escola de Música no México era maravilhosa e era muito boa, recordo. Eu ia andando e dizia, vou indo, vou indo... chegando ao México para estudar composição. E assim[… ]O fato foi isso mesmo, não é? Só que eu não parei no México, viria para São Paulo. (HERRERA, 2019)

E foi nessa jornada, perseguindo a sua meta de estudar composição no México, que o compositor se deparou com o povo Aimára. Ao seguir de trem para a Bolívia, nas últimas estações do lado da Argentina, mais precisamente nas províncias de Salta e Jujuy, Rufo começou a observar o modo de vida desse povo em vilarejos que ficavam no caminho do trem e em uma ocasião específica de colheita ruim, o que obrigava alguns indígenas a buscar emprego em lavouras de cana de açúcar fora de sua região.

Jujuy e Salta [...] Era a última estação de trem que vinha da Argentina para a Bolívia[…]. Do lado de Argentina é La Quiaca e do lado da Bolívia é La Villazón. Alí é que você pode ver os costumes desse povo..., essas pessoas (Aimarás) estavam nesse trem, até lá. Mas, antes tínhamos estado em outra cidade chamada Tartagal, em Salta, que é fronteiriça, era a chegada. Verificamos que esse povo aimará, quando tinha seca e dificuldade de sobrevivência, tinha que ir trabalhar na cana de açúcar no Norte da Argentina. (HERERRA, 2019)

Segundo o compositor, ele ficava mudando de vilarejo em vilarejo, na fronteira da Argentina e Bolívia, sem estabelecer uma residência fixa, e conviveu com os Aimáras nessa região, em média, por um ano. Após esse período, seguiu a sua jornada pela América Latina rumo ao México.

Rufo Herrera (2019) informou que na convivência com os Aimára pode observar que a música está presente e entranhada nas atividades cotidianas desse povo que é, quase na sua totalidade, camponês e vive da agricultura e comércio local. De acordo com Herrera, os Aimára cotidianamente precisam se deslocar por vários quilômetros a pé, pois não há 61

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estradas nos terrenos que fazem parte de seus territórios, e utilizam as Lhamas - animais que conseguem carregar até 20kg de mercadoria cada - como principal veículo de transporte de seus produtos. O compositor acrescenta que, nesses trajetos, os indígenas vão tocando seus instrumentos musicais, sendo os mais comuns entre eles o Charango, a Quena ou o Pinkullo. e executando frases melódicas simples que os motivam a fazer a longa caminhada, tornando-a menos desgastante fisicamente.

Rufo Herrera escreveu a peça Senda Aimára inspirado nessa característica singular dos Aimáras ou seja, camponeses que, incentivados pela música que executam, costumam percorrer grandes distâncias a pé para comercializar ou adquirir alimentos e insumos para sua sobrevivência, e batizou-a com esse nome que, traduzido ao pé da letra para o português, significa Trilha dos Aimáras.

3. Senda Aimára e a relação dos poemas com a música

Senda Aimára foi escrita em três episódios, tal como Rufo Herrera os denomina, ao invés de movimentos, que sugerem eventos experienciados pelo compositor no percurso percorrido durante o contato com esse povo. O contexto geográfico inspirador da obra começa na Puna, uma região alta da cordilheira dos Andes, e vai descendo até chegar ao Valle. Cada episódio possui um carácter expressivo distinto e simboliza um trecho do percurso, sendo que o primeiro, Vidála, é de carácter fúnebre representando uma cerimônia de sepultamento que acontece na parte alta da cordilheira. O segundo episódio, Chaya, é a representação de uma preparação de festividade dos Aimáras, que partem de suas aldeias nas regiões mais altas e descem rumo ao vale. Esses festejos preparam a festividade do momento, que pode estar prevista no calendário das tradições dos Aimarás ou ser de caráter particular, como um casamento, uma festa de aniversário ou o nascimento de uma criança. Já o terceiro e último episódio, Huayno (Carnavalito) é o momento da festa, onde eles dançam, tocam e bebem muito a chicha, uma espécie de aguardente de milho, até caírem de embriagados.

A peça foi escrita, originalmente, para violão e flauta baixo, no primeiro episódio - Vidála, violão e flauta em Dó, no segundo - Chaya, e violão e flauta piccolo, no terceiro - Huayno (Carnavalito Aimára). A diferenciação do instrumento de sopro em cada episódio visa maior

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aproximação com os instrumentos originais tocados pelos Aimáras, como será observado na análise de cada episódio. Entretanto, o compositor indica na partitura (Figura 2) que os três episódios podem ser tocados na flauta em dó, com a devida atenção para as adequações das dinâmicas que deverão ser realizadas neste instrumento. A parte do violão permanece inalterada nesta segunda versão.8

Figura 2 - Nota do compositor ao intérprete sobre a instrumentação e dinâmica do trecho.9

Ao final de cada episódio, Rufo Herrera inclui pequenos e sucintos poemas na língua Aimára, que se assemelham ao haicai10 da cultura japonesa. Ao ser perguntado sobre essa característica dos poemas, o compositor responde que o povo Aimára é de poucas palavras e muito simples, e que essa característica cultural é expressada na obra através dos poemas: “os poemas representam na obra um personagem, que é o povo Aimára” (HERRERA, 2019). Essa informação nos faz refletir sobre a intenção do compositor de trazer para a peça musical Senda Aimára uma representação cultural e simbólica dos Aimára sintetizada nos poemas. E ainda, torna mais evidente a necessidade de o intérprete compreender esses poemas como um elemento extramusical fundamental para que se estabeleça uma conexão com essa singular civilização, seu modo de vida e seus costumes, revelando aspectos que poderão orientar e sustentar as escolhas técnicas, artísticas e expressivas para uma performance da obra.

8 A gravação realizada pelo Duo mineiro utiliza a instrumentação de violão e flauta em dó para os três episódios. 9 “N: Caso não seja possível executar esta parte com a fl. baixo, poderá se experimentar com a fl. Ato ou mesmo em Dó na oitava que está escrita, porém, preservando uma proporção dinâmica seguinte: onde está p será pp, e onde está mf será p”. 10 De acordo com o dicionário HOUAISS “forma de poesia japonesa surgida no sXVI e ainda hoje em voga, composta de três versos, com cinco, sete e cinco sílabas, que ger. tem como tema a natureza ou as estações do ano. ” 63

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3.1 Vidála

Figura 3 - Cabeçalho da partitura do 1º episódio – Vidála.

A Vidála é uma forma musical presente no cancioneiro noroeste da Argentina e é enquadrada como um gênero popular argentino não dançante. Sua instrumentação no acompanhamento do canto é feita pelo bombo leguero e, segundo Rufo (2019), eventualmente ao violão. Segundo Valladares (2000), o termo tem sua origem na mistura dos idiomas espanhol e quechua e significa vidita (vidinha, em português). O canto, nesse estilo, varia conforme a estrutura da letra, sendo que os versos na Vidála apresentam geralmente estrutura hexa silábica, segundo Aguilar (1990). O compositor observa que a escolha desse gênero de canção foi dada para ilustrar um cenário fúnebre, o que tem muita relação com a tradição musical popular desse gênero, como ele mesmo explica:

A Vidála é um canto, uma forma de canção. De modo geral um canto de nostalgia, de falta, de tristeza, de saudade, de distância, de isolamento, no Noroeste se canta isso. O que seria similar a toada brasileira. Eles têm as músicas deles (os aimarás), tem Huayno, o Taquirari. No norte da Argentina, nós já absorvemos esses elementos da cultura deles. Por exemplo, uma música triste e fúnebre, seria a Vidála… (HERRERA, 2019)

No rodapé do manuscrito da partitura (Figura 4) há a seguinte indicação para o intérprete: “Para interpretar: sugiro que se execute os três episódios (ou partes) sem interrupção”. Logo abaixo segue o primeiro poema da obra: “Puna, silencio y viento, El Hérke suena a lamento… algún indio há muerto, algún indio há muerto…”11.

Figura 4 - Poema do 1º episódio – Vidála.

11 Segundo Rufo, os poemas não devem ser traduzidos no momento da performance, mas a título de informação para o público pode ser comentado e citado antes de cada apresentação. A tradução nossa seria: “Puna (região dos Andes), silêncio e vento, o Hérke (instrumento) soa a lamento… algum índio morreu, algum índio morreu. ”. 64

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

O herké12 (Figura 5), citado no poema, é um instrumento de sopro de sonoridade grave, popular no folclore argentino e muito presente nas regiões de Salta e Jujuy. Na primeira versão da peça, a flauta baixo, na Vidála, remete à sonoridade desse instrumento tradicional, enquanto o violão evoca o bombo leguero

Figura 5 - Exemplo da estrutura e fotografia de um herké.13

No poema, a imagem da tristeza e do momento introspectivo gerado por uma ausência é sugerido no silêncio e no vento do alto da montanha, de onde se ouve o som do herké anunciando: “algún indio há muerto, algún indio há muerto...” No seguinte trecho da entrevista, Rufo expõe mais detalhes dessa imagem:

Senda é trilha, caminho. Então, ela (essa música) vem caminhando lá de cima, só que eu pensei e escrevi para flauta baixo. Quando está lá em cima - na Puna - o instrumento grave, o herké, é o que se ouve, por que as distâncias são enormes. Eles não têm encontros frequentes, vivem muito isolados, cada um no seu lugar, e por algum acontecimento é que eles, uma zona ou região, se juntam para alguma solenidade, por exemplo. Mas, geralmente, é por causa da morte, quando morre alguém, então se convoca uma música dos herkés. Os herkés são feitos de bambu e são enormes, então o som é grave, gravíssimo, e ele produz muitos harmônicos. Como a região é plana e alta, o vento propaga os harmônicos para muito longe. Então, de muito longe se sabe que morreu alguém. (HERRERA, 2019)

Essa contextualização geográfica e cultural do evento, como expresso no poema e nas informações do compositor, auxilia o músico performer a conceber suas escolhas interpretativas. Um claro exemplo dessa conexão entre o poema e a música é descrito em um relato de performance realizado pelo flautista Alef Caetano. Alef (SILVA e COURA (2018) diz

12 Mais informações sobre esse instrumento estão disponíveis em http://www.portaldesalta.gov.ar/erque.html e https://www.youtube.com/watch?v=1bYxr4rPeVg. Acessados em 28/11/2019. 13 Fotografia extraída do site: http://www.portaldesalta.gov.ar/erque.html. Acessado em 20/11/2019. 65

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

que, na tentativa de evocar um ambiente em que há muito vento, como a Puna, e que este mesmo vento soa a lamento e tristeza, ele optou, em sua interpretação, por aumentar o nível de soprosidade na execução técnica de determinados trechos do episódio. Na parte da flauta, há dois trechos do Vidála (Figuras 6 e 7) em que estão presentes a indicação de trinado e de frullato, para os quais o flautista poderia escolher entre duas possibilidades de realização destas técnicas, ou seja, com mais ou com menos soprosidade. Entretanto, a partir do conhecimento do poema e das imagens extramusicais que ele sugere, optou-se por uma execução com mais soprosidade, a fim de evocar o canto melancólico do herké e o vento lamentoso que propaga a sonoridade desse instrumento pela Puna anunciando a morte de um índio.

Figura 6- Trecho inicial do 1º episódio - Vidála com a indicação de trinado para a flauta.

Figura 7 - Trecho do 1º episódio - Vidála com a indicação de frulato para a flauta.

Também nos primeiros compassos do Vidála, pode-se observar que o compositor pretende que o violão assuma o papel de instrumento percussivo – “percutir na tampa”, “pizz. M.E” (Figura 6), evocando o bombo leguero14, uma espécie de tambor que é um dos principais instrumentos de acompanhamento nesse gênero de canção argentina (Figura 8).

14 Mais informações sobre esse instrumento estão disponíveis em http://www.portaldesalta.gov.ar/bombo.html. Acessado em 28/11/2019. 66

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

Figura 8 - Exemplos de bombo leguero e sua estrutura.

Na parte do violão no manuscrito, há as indicações da utilização da técnica de tambora15 e de se golpear no tampo do instrumento. Na passagem que utiliza a tambora, o compositor escreve sua execução junto a um acorde de Em9 (Mi menor com nona maior). A escolha interpretativa nesse trecho é de que a tambora soe como um ataque com baqueta de ponta macia na pele do bombo leguero, resultando em um som grave do instrumento. Afim de promover uma maior aproximação com essa sonoridade, sugere-se que essa técnica seja realizada, no violão, com o polegar da mão direita entre o cavalete e as cordas - 6ª, 5ª, 4ª e 3ª.

No caso do efeito descrito na partitura “percutir na tampa”, quando há, na escrita violonística, algum trecho ou passagem que utilize essa técnica estendida, geralmente os compositores indicam visualmente, ao final da partitura, a região do instrumento que o músico deverá percutir para alcançar o efeito desejado, mas Rufo Herrera não oferece essa indicação em Senda Aimára. A decisão interpretativa adotada, nesse caso, considerando o contexto desse primeiro episódio, foi a de buscar uma sonoridade semelhante a um ataque no aro do bombo leguero, portanto, sonoramente mais seca e sem muita ressonância, tecnicamente alcançada pelo ataque simultâneo dos dedos i (indicador da mão direita) e m (dedo médio da mão direita) no tampo do instrumento, logo abaixo do cavalete.

Uma outra decisão interpretativa que foi tomada, a partir do poema e das informações do compositor, foi a de fazer ressoar os sons harmônicos naturais escritos na partitura, assim como os sons harmônicos oriundos do supracitado acorde m9 atacado com tambora e dos acordes atacados com a mão direita do violonista. Essa ressonância de harmônicos corrobora

15 MELLO (2015) define a tambora como “... um golpe realizado nas cordas próximo da “ponte” do violão, gerando um som percussivo e ao mesmo tempo com as alturas definidas. ” 67

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

a sugestão da região da Puna como um local afastado e silencioso de onde se ouve os harmônicos que se propagam através dos ventos.

3.2 Chaya

Figura 9 - Poema16 do do 2º episódio - Chaya

A Chaya é um dos gêneros de canção que compõem o canto con caja, presente na região noroeste da Argentina. Segundo a musicóloga e professora Miriam García17, o canto con caya é uma expressão dos povos do noroeste argentino e “tem toda a influência do mundo andino, onde intervém a voz, a melodia e a percussão através de um tambor de mão que no Noroeste (argentino) se chama caja, que no português se equivale à caixa. Segundo Aguilar (1991), a Chaya, que também recebe os nomes de Vidála chayera ou Vidála riojana é um gênero não dançante, de compasso ternário e, geralmente, tem acompanhamento rítmico realizado pela caja chayera. Em Senda Aimára, diferentemente da Vidála, o segundo episódio Chaya é mais movido e possui caráter mais festivo e alegre, como podemos observar no poema associado a ele (Figura 9).

Nesse segundo episódio, Rufo Herrera evoca a preparação das pessoas para um evento festivo, percorrendo o trajeto de descida da Puna até o vale, onde acontecerá o evento que, por sua vez, será evocado no 3º episódio da peça musical, como ele explica:

Chaya são festas, são comemorações que podem ser religiosas, pessoais, casamentos [...] No Chaya (segundo episódio) o ritmo sugere a viagem para o baile (terceiro episódio) [...] é mais uma viagem para chegar no baile, o percurso, aquela alegria de estar indo para o carnaval. Então, se é alegre a viagem, não é sacrificante, não é triste, não é pesada, ela é leve. Todo mundo está indo alegre, estão levando alegria. (HERRERA, 2019)

16 “Hoje é domingo de Chaya, vamos descer a serra… e assim será, e assim será”. O compositor aponta que a expressão “así nomá-y ser, asi noma-y ser” reflete um gesto de simplicidade e conformação dos Aimarás com seu estilo de vida. Uma convivência pacífica e harmoniosa com o que a natureza lhes oferece e sendo um contraponto ao estilo de vida europeu/colonizador, que destrói e explora a natureza de maneira predatória. 17 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_WnVZg55plU, acessado em 02/12/2019. 68

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

Na gravação de Senda Aimára realizada pelos autores Silva e Coura (2008), pode-se perceber que, do primeiro para o segundo episódio, há uma mudança significativa de andamento, como também do carácter e da expressividade, essas determinadas principalmente pelas escolhas tímbricas dos instrumentos. De acordo com os instrumentistas, neste segundo episódio, o violão evoca o charango18 e a caja chayera19 e a flauta evoca a quena20, instrumentos tradicionais no noroeste argentino.

Segundo o flautista Alef Caetano (SILVA; COURA 2018), a compreensão do poema levou-o a escolha interpretativa de um timbre mais vibrante para a flauta, que melhor representasse um momento de felicidade para o povo Aimára e que se assemelhasse ao som do quena, instrumento de sopro com extensão e colorido timbrístico próximo ao da flauta transversal moderna, mas tradicionalmente usado na Chaya (Figura 10).

Figura 10 - Fotos da quena.

O violão, de maneira geral em Senda Aimára, assume o lugar do instrumento de cordas dedilhadas tradicional nessa região que é o charango (Figura 11), que possui dez cordas e cinco ordens duplas.

18 Mais informações sobre esse instrumento estão disponíveis em http://www.portaldesalta.gov.ar/charango.html, acessado em 02/12/2019. 19Mais informações sobre esse instrumento estão disponíveis em http://www.portaldesalta.gov.ar/caja.html e https://www.youtube.com/watch?v=8pFfGc2Y6i0, acessados em 02/12/2019. 20 Mais informações sobre esse instrumento estão disponíveis em http://www.portaldesalta.gov.ar/quena.html acesso em: 02/12/2019. 69

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

Figura 11 - Fotos de um charango

A afinação do charango (1ªordem Mi/Mi, 2ªordem Lá/Lá, 3ªordem Mi/Mi, 4ªordem Dó/Dó e 5ªordem Sol/Sol) é bem distinta da utilizada no violão (1ª Mi, 2ª Si, 3ª Sol, 4ªRé, 5ªLá e 6ª Mi), e a corda com afinação mais grave fica na ordem do meio do instrumento, característica conhecida como afinação reentrante. O violonista Giuliano Coura (SILVA e COURA, 2018) expõe sua solução técnica no violão para que a sonoridade se aproxime a do charango, pois a diferença de afinação entre os dois instrumentos torna inviável a utilização de uma técnica comum aos dois instrumentos; segundo o instrumentista, no violão é necessário utilizar um rasgueado similar à técnica de trêmolo, só que em quatro cordas.

O 2º episódio - Chaya pode ser dividido em três partes. A primeira parte, do compasso 1 ao 8, pode ser compreendida como uma chamada para o início da viagem, com as pessoas se preparando, saindo de suas casas e se reunindo para começar a caminhada até o vale. Musicalmente, o trecho tem um carácter livre e lírico, não havendo necessidade de rigor rítmico, como pode-se inferir pela parte do violão que executa rasgueados, como o charango, e pela melodia expressiva e predominantemente ascendente da flauta que soa como um chamado (Figura 12).

Figura 12 - Início do 2º episódio com a melodia da flauta remetendo a um chamado.

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A segunda parte, compasso 9 ao 16, pode ser interpretada como o início da viagem, com as pessoas caminhando ao som das melodias com glissandos e mordentes da quena. No violão, podemos perceber a menção à caja chayera (Figura 13), no ostinato rítmico bem marcado (Figura 14), motivando as pessoas a não perderem o ritmo e a alegria da caminhada.

Figura 13- Exemplo de Caja Chayera

Figura 14 - Exploração do timbre percussivo no violão no 2º episódio - Chaya

Finalmente, a terceira parte, compasso 17 ao 20, pode ser interpretada como a chegada ao local da festividade. Nesse trecho acontece um crescendo e accelerando, que culmina com a flauta em dinâmica forte e o violão realizando um rasgueado no acorde de Em/F# (Mi menor, com a nona no baixo), remetendo a um momento de grande euforia e felicidade.

3.3 Huayno (Carnavalito Aimára)

O terceiro e último episódio é descrito por Rufo Herrera como Huayno (Carnavalito Aimára). Ao ser perguntado se esses dois estilos são diferentes e qual seriam os elementos que os diferenciam, o compositor responde:

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São, eu acho que são regiões diferentes, numa região se toca no baile o Huayno. Huayno é mais indígeno, carnavalito é mais misturado. Talvez (o Carnavalito) no carnaval grande, ele se popularizou tanto, Zaldivar - (canta a letra)"Llegando está el carnaval quebradeño, mi cholita" - ele não era um indígena. Aquilo que se buscou foi uma expressão mais popular para retratar essa alegria que o carnaval tem. Não era esse carnaval pra lá, era trazer daquele para aqui, para dentro da sociedade culta. E pegou e ficou, na verdade o ritmo tem a mesma finalidade. (HERRERA, 2019)

Para a pesquisadora Valladares (2000), o huayno e o carnavalito são estilos musicais muito similares, sendo que o primeiro é de origem mais antiga, da época do império Inca, um dos responsáveis pela sua difusão do Equador até o norte da Argentina. Suas qualidades rítmicas também são muito próximas, e ambos os estilos possuem formação melódica com base em escalas muito parecidas, como as escalas pentatônicas e outras derivadas dos modos eclesiásticos.

Tradicionalmente, os huaynos cantados são acompanhados por instrumentos de sopro como o pinkullo e a quena, e de cordas dedilhadas, como o charango, e, no Carnavalito, o ritmo fica bem marcado pela presença do bombo e da caja. Segundo o sociólogo Radek Sánchez Patzy, em El Origens de Las Especies (2013), o Huayno tem uma estreita relação com o Carnavalito, ou Wayñu, como se fala na Bolívia, e se trata de uma dança e música típicas das épocas de chuva, originárias do Altiplano do Peru e Bolívia. Ele acrescenta que nos huaynos cantados a voz aguda feminina é muito importante. O músico Luis Salamanca, no mesmo documentário (EL ORIGENS, 2013), diz que o huayno é um dos ritmos mais antigos dos povos andinos, com papel essencial nas celebrações e festividades. Ele ressalta que não há apenas uma forma de hayno, mas muitas variantes para se tocar no charango, na quena, no violão e voz. Esse gênero de música sofreu um processo de mestiçagem ao entrar em contato com a cultura dos colonizadores espanhóis. Segundo a musicóloga Nancy Sánchez (EL ORIGENS, 2013), a influência da música espanhola no huayno, tem a ver com a introdução dos violões e com a forma de versos da Copla21, e, na época dos Incas, o huayno quase sempre estava associado a rituais e símbolos que tinham a ver com a sacralização do cotidiano.

21 De acordo com o dicionário Houaiss, Copla é “poesia popular espanhola, com estâncias curtas e métrica variável, ger. cantada com acompanhamento de música improvisada.” 72

COURA, Giuliano; LIMA, Cecília Nazaré de (2020). Os Poemas de Rufo Herrera em Senda Aimára e sua influência na interpretação da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e ed. Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.56-77.

Figura 15 - Poema22 escrito no manuscrito do 3º episódio

Como evidenciado no poema a ele dedicado (Figura 15), esse último episódio retrata um ambiente de festa, de alegria e diversão. Os participantes tocam, cantam e dançam acompanhados, segundo o compositor, de uma bebida alcoólica chamada Chicha feita pelo processo de destilação dos grãos de milho.

Figura 16 - Pinkullo23

Nesse episódio, originalmente indicado para ser tocado pelo flautim, o compositor faz referência ao pinkullo (Figura 16) que possui extensão melódica e timbre similar ao do instrumento europeu. Essa informação é um importante parâmetro timbrístico para o flautista na performance da segunda versão instrumental da peça, com a flauta em dó, já que o timbre do instrumento original é mais claro e brilhante. O violão soa, nesse episódio, tanto como o charango, quanto a caja, de percussão, e as frases melódicas são construídas com base no ostinato do acompanhamento rítmico do huayno (Figura 17)

22 Tradução nossa: “E no vale vão bailar e beber, até cair de bêbados… assim será, assim será.” 23 http://www.portaldesalta.gov.ar/pincullo.html 73

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Figura 17 - Base rítmica do huayno/carnavalito (acima), segundo Aguilar (1991), e trecho extraído da partitura demonstrando o caráter percussivo e melódico do violão com base nesse mesmo ritmo.

O poema sugere uma atmosfera festiva e dos três gêneros musicais escolhidos por Rufo para a composição de Senda Aimára esse último é o único dançante. Visando evidenciar essa característica, na gravação de Silva e Coura (2018) os instrumentistas optam por não fazerem muitas inflexões no tempo. Como sugerido no poema, no fim da festa todos irão cair de bêbados, e no último compasso (Figura 18) a indicação de um glissando descendente, tanto para o violão quanto para a flauta, pode ser considerada uma ilustração bem-humorada dessa situação final da festa dos Aimára. .

Figura 18 - Compassos finais do 3º episódio – Huayno (Carnavalito).

4. Considerações finais

Neste artigo investigamos os elementos etnomusicais e extramusicais inspiradores da peça Senda Aimára do compositor Rufo Herrera, trazendo à luz o contexto cultural, dados

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históricos e os hábitos sociais dos Aimáras que vivem no noroeste da Argentina. Com essa peça, Rufo Herrera faz uma homenagem a esse povo com o qual ele conviveu por um certo período de tempo. A forma de compor, a narrativa musical dos episódios, as escolhas instrumentais, rítmicas e melódicas, demonstram uma fusão de elementos culturais da região andina, principalmente das províncias de Jujuy e Salta, com as impressões e percepções particulares do compositor sobre eventos vivenciados por ele junto àquele povo. Os poemas, originalmente escritos pelo compositor em nota de rodapé de cada um dos três episódios que compõem a peça, foram o ponto de partida para a investigação, pois se revelaram informações extramusicais fundamentais para a compreensão global e contextualizada da peça. Com essa peça, elaborada em três episódios, Rufo Herrera convida o ouvinte a percorrer um trajeto de impressões e percepções próprias mescladas a eventos e práticas rotineiras do povo homenageado. Partimos da Puna e descemos em direção ao vale, com os dois pontos extremos unidos pelo segundo episódio, a Chaya, e identificados pelas situações contrastantes, no primeiro episódio, de um momento fúnebre, triste e silencioso, e, no terceiro, de euforia com a festa no vale. O nome de cada episódio, por sua vez, é uma homenagem a gêneros musicais com características musicais e sociais muito próprias que fazem parte da cultura dos Aimáras Por meio exclusivo dos instrumentos convencionais do Duo flauta e violão, os intérpretes bem informados podem buscar estratégias técnicas e expressivas que evoquem os instrumentos peculiares da prática musical do povo Aimára, como o charango, a caja, o herké, a quena, entre outros aqui citados, e o caráter global de cada episódio.

Ao estudar e apontar todos esses parâmetros que estão envolvidos na criação e, portanto, na interpretação de Senda Aimára, a relação que o compositor quis criar com a inserção dos poemas na partitura ficou mais nítida, assim como a imagem ou atmosfera que ele quis trazer para a música. Ficou também demonstrado que o reconhecimento desse contexto cultural e inspirador pode orientar e sustentar as escolhas técnicas, artísticas e expressivas dos intérpretes interessados na performance de Senda Aimára. Esperamos, ainda que o estudo contribua para a divulgação do compositor Rufo Herrera e fomente a difusão do repertório latino-americano para o Duo flauta e violão.

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Notas sobre os autores

Giuliano Coura, é violonista, guitarrista e educador musical. Atualmente é professor de música, instrumento e teoria musical no Serviço Social do Comercio de Minas Gerais (SESC MG). É graduado em Licenciatura em Música/Habilitação Violão, pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Foi vencedor do prêmio BDMG Jovem Músico, nos anos de 2011 e 2014, e do concurso Segunda Musical (Assembleia Legislativa), nos anos de 2014 e 2015. Integra, juntamente com o flautista Alef Caetano, o Duo Mineiro, projeto dedicado ao repertório de câmara para flauta e violão. Em Belo Horizonte, desenvolve outros projetos e parcerias musicais, atuando como guitarrista do Bloco Afro Magia Negra e da banda da MC/Cantora Tamara Franklin, e como violonista de 7 cordas do grupo de choro Raiz de Jiló. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG /Performance Musical, sendo orientado pela professora, pianista e compositora Cecília Nazaré de Lima.

Cecília Nazaré de Lima, é professora do Departamento de Teoria Geral da Música da Escola de Música da UFMG, mestre em Estruturação da linguagem musical, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, e doutora em Criação e crítica da imagem em movimento, pela Escola de Belas Artes da UFMG. Compositora, com partituras publicadas no site do Sesc Partituras, e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Resgate da Canção Brasileira, com trabalhos de reedição e análise de partituras, e ao Grupo Intermídia, com interesse nas relações da música com outras artes, sobretudo a literatura e o cinema.

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LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina

Hybridity between flamenco and classical music in “Hommage à Tárrega” by Joaquin Turina

Henrique Lowson Universidade Federal de Minas Gerais, Bolsista CAPES [email protected]

Fernando Araújo Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: A presença de elementos da música flamenca na obra Hommage à Tárrega, do compositor espanhol Joaquin Turina, fica patente já nos títulos dos movimentos, Garrotín e Soleares, subgêneros do flamenco. Partindo dessa constatação, este trabalho identifica outros elementos que caracterizam o hibridismo entre o flamenco e a música clássica nessa obra, com vistas a permitir uma performance estilisticamente mais informada. A coleta de informações baseou-se na escuta atenta de gravações históricas do gênero e na consulta à literatura especializada, em especial os trabalhos de GRANADOS (2005), BARRIO et al. (2009), PUIG (2015) e BERT (1991). A discussão acerca do conceito de hibridismo foi fundamentada em PIEDADE (2011). Foram encontrados diversos elementos do flamenco na obra de Turina e identificadas práticas de performance tradicionais cujo conhecimento pode permitir novas possiblidades interpretativas ao violonista clássico.

Palavras-chave: hibridismo musical; práticas de performance no violão flamenco; práticas de performance no violão clássico espanhol; Hommage à Tárrega de Joaquin Turina.

Abstract: The presence of elements of flamenco music in Hommage à Tárrega by Spanish composer Joaquin Turina is already evident in the titles of the movements, Garrotín and Soleares, subgenres of flamenco. This paper identifies other elements that characterize the hybridity between flamenco and classical music in this work in order to enable a stylistically informed performance. Information was gathered through close listening of historical recordings of the genre and review of the literature dealing with flamenco styles, especially the works of GRANADOS (2005), BARRIO et al. (2009), PUIG (2015), and BERT (1991). The discussion about the concept of hybridity was based on PIEDADE (2011). Several elements of flamenco were found in Turina's work and traditional performance practices were identified, the knowledge of which may broaden the interpretative possibilities of classical guitarists.

Keywords: musical hybridity; flamenco guitar performance practices; Spanish classical guitar performance practices; Hommage à Tárrega by Joaquin Turina.

78 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

1 – Introdução

O termo hibridismo está presente em diversas áreas do conhecimento e refere-se a processos de mistura, mescla, contraste entre elementos diferentes, a partir dos quais algo novo pode ser gerado. Neste trabalho, o hibridismo será apresentado como o encontro entre dois ou mais gêneros musicais, conforme proposto por PIEDADE (2011). De acordo com o autor, os hibridismos podem ser de dois tipos: contrastivos ou homeostáticos. Tomaremos como exemplo dois elementos, A e B, para entendermos os dois tipos de hibridismo. O hibridismo contrastivo é marcado pelo contraste entre A e B, que não se misturam – A não deixa de ser A e B não deixa de ser B. Formam, portanto, um corpo AB, que é caracterizado exatamente pela dualidade entre estes dois elementos. Nesse processo ocorre o que Piedade chama de fricção de musicalidades, ou seja, não há fusão entre os gêneros, e sim o contraste entre eles. Já no hibridismo homeostático os elementos se misturam, ocorrendo assim a fusão entre os gêneros. A deixa de ser A e B deixa de ser B, para que se encontrem em um novo corpo estável, C. Podemos, portanto, dizer que no hibridismo homeostático A + B = C, enquanto no hibridismo contrastivo A + B = AB.

Joaquin Turina nasceu em Sevilha, na região da Andaluzia (sul da Espanha), onde os povos mouros se instalaram no século VIII, na chamada invasão islâmica da península Ibérica. Os elementos e influências musicais trazidos por esses povos possibilitou o surgimento do flamenco. Turina foi fortemente influenciado pela música popular, em especial pelo flamenco, e seguiu um curso nacionalista em seu estilo composicional. Para que isso ocorresse, no entanto, foram decisivos os conselhos dados por compositores de renome, como Albéniz e Debussy. Em 1908, Turina participou de uma festa na casa de Albéniz (que viria a adoecer e morrer no ano seguinte) na qual estavam presentes notáveis compositores espanhóis e franceses. Na ocasião, segundo o próprio Turina, Albéniz teria criticado uma obra sua que estava prestes a ser publicada por seguir o estilo do compositor belga César Franck:

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…'Esse quinteto Franckiano será publicado. Eu já perguntei ao editor. Mas você precisa me dar sua palavra de que não vai mais escrever música desse tipo. Você deve basear sua arte na música popular da Espanha ou Andaluzia, porque você é Sevilhano.’... Palavras que foram decisivas para mim. Conselho que segui ao longo da minha carreira, e que sempre ofereci à memória daquele homem único e jovial (PEDROTE, p.471 apud BERT, 1991, p.13, tradução nossa).2

Albéniz não foi o único compositor aclamado a incentivar Turina a seguir um curso nacionalista. Durante os anos de Turina em Paris, Claude Debussy o teria criticado por compor no estilo dos grandes compositores da época, encorajando-o a assumir a forte influência que sofria da música popular e ouvir “vozes mais familiares” (PEDROTE, p.47 apud BERT, 1991, p.13).

A partir da hibridização entre essas referências musicais distintas surge o estilo composicional desenvolvido por Turina em sua obra violonística, como veremos em sua peça Hommage à Tárrega. Garrotín e Soleares, os títulos dos dois movimentos que compõem a peça, são nomes de subgêneros do flamenco, caracterizados em geral por agrupamentos específicos de unidades de tempo e determinadas progressões harmônicas, além de possuírem passos de dança, cantos, palmas e tradições próprias. Algumas de suas características serão abordadas adiante.

Para fundamentar a pesquisa acerca desses subgêneros e das obras para violão de Turina, iremos nos basear no trabalho da violonista e pesquisadora americana Alisson BERT (1991), The influence of Flamenco on the guitar works of Joaquin Turina. A fim de investigar mais a fundo a aparição de outros elementos flamencos, serão utilizados os trabalhos Método elemental de guitarra flamenca (GRANADOS, 2005), Palos y estilos del Flamenco (LARA et al., 2009) e Ritmo y compás: análisis musical del Flamenco (PUIG, 2015).

1 PEDROTE, Enrique Sanchez. Turina y Sevilla. Sevilha: Servicio de Pubicaciones del Ayuntamiento de Sevilla, 1982. 2 "This Franckian quintet is going to be published. I've already asked the publisher. But you give me your word not to write any more music of this type. You must base your art on the popular song of Spain or Andalucia, because you are Sevillano." Words that were decisive for me; counsel that I have followed throughout my career and that I have offered always to the memory of that unique and jovial man.

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2 – Características relevantes da música flamenca

2.1 – Elementos técnicos e musicais

A seguir abordaremos alguns elementos musicais flamencos que são encontrados em Hommage à Tárrega. Características marcantes do gênero, alguns têm caráter harmônico- estrutural, enquanto outros são elementos técnico-instrumentais relacionados ao violão flamenco.

Uma das principais características da música flamenca é o modo flamenco, que deriva do modo frígio, porém com o terceiro grau elevado no acorde de primeiro grau, que torna-se, assim, um acorde perfeito maior. Exemplificando no modo baseado em Lá (utilizado no Garrotín de Turina), na Figura 1 temos o modo de Lá frígio, seguido, na Figura 2, pelos acordes que compõem seu campo harmônico.

Figura 1: Escala de Lá Frígio, que dá origem ao principal modo utilizado na música flamenca.

Figura 2: Campo harmônico de Lá Frígio.

A peculiaridade do modo flamenco é, como vimos, a utilização da terça maior no acorde do primeiro grau do modo frígio, resultando em uma sonoridade marcante e muito característica

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do estilo. Na Figura 3 vemos o campo harmônico do modo de Lá flamenco com o característico acorde perfeito maior no primeiro grau.

Figura 3: Campo harmônico do modo de Lá flamenco.

Uma das características mais importantes do flamenco é a cadência andaluza. Sua forma mais comum é um encadeamento de acordes que descende diatonicamente do iv até o I grau do modo flamenco: iv-III-II-I. Pode ocorrer também a substituição do acorde do iv pelo do II grau, ou seja: II-III-II-I. A Figura 4 mostra uma cadência andaluza no modo de Mi flamenco.

Figura 4: Cadência andaluza no modo de Mi flamenco.

Veremos a seguir três elementos técnicos do violão flamenco que podem ser observados na obra analisada: rasgueado, golpe e picado.

O rasgueado ou rasgueio, é o principal pilar da sonoridade do violão flamenco. Podemos descrever o rasgueado flamenco como a ação de deslizar com força a parte externa ou interna da ponta de um ou vários dedos da mão direita, de modo coordenado, sobre um determinado número de cordas (GRANADOS, 2005, p.38). A técnica exige muita destreza, força e resistência da mão direita. Golpe é um gesto percussivo da mão direita, geralmente realizado com os dedos médio e anelar, no tampo do violão, logo abaixo da primeira corda. Costuma-se manter o polegar apoiado na sexta corda e os dedos ligeiramente curvados. Sua função é de marcar acentuações

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típicas de cada subgênero. É uma técnica tradicional e também um dos pilares da sonoridade do flamenco. O violão flamenco possui um golpeador, que é uma película de plástico fixada no tampo, para que o mesmo não seja arranhado ou danificado com o uso dos golpes.

Picado é o nome dado ao modo como os violonistas flamencos tocam escalas, geralmente de maneira rápida e forte. Consiste basicamente no movimento de alternância entre os dedos indicador e médio da mão direita com a última falange, e descansando (ou apoiando) na corda vizinha superior (GRANADOS, 2005, p.30).

2.2 – Os subgêneros garrotín e soleares

O garrotín flamenco surge do contraste entre Astúrias, seu lugar de origem, e a Andaluzia, lugar de sua transformação. Astúrias fica no norte da Espanha, remetendo a uma imagem campestre, de plantações de trigo e aldeias de trabalhadores rurais. Já a região da Andaluzia se encontra no sul da Espanha, de clima quente, e foi o destino inicial dos invasores mouros, pela proximidade com o continente africano. Os mouros e os ciganos trouxeram para a Península Ibérica os elementos musicais que mais tarde deram origem ao flamenco, que teve também influências árabes e judaicas.

Na Figura 5 vemos o mapa da Espanha com as regiões de Astúrias, ao norte, e Andaluzia, ao sul, destacadas. Um terceiro destaque mais ao sul evidencia a proximidade dos continentes africano e europeu pelo estreito de Gibraltar, fator geográfico que possibilitou a invasão islâmica no século VIII.

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Figura 5: Mapa da Espanha, destacando as regiões de Astúrias, Andaluzia e o estreito de Gibraltar.

A palavra garrotín vem do termo asturiano garrote, uma espécie de bastão de madeira que era usado para desgranar trigo nas plantações, em reuniões de trabalhadores chamadas de garroteadas. Remete, portanto, aos campos de trigo e aos trabalhadores rurais de Astúrias. Características comuns ao garrotín asturiano e flamenco são a métrica binária e letras que geralmente se estruturam em quatro grupos de versos octossílabos, seguidos de um refrão de métrica diferente. As letras costumam abordar temas simples, alegres e cômicos (LARA et al., 2009, p.178). O uso de fragmentos iguais de texto e melodia que se repetem em intervalos mais ou menos regulares é encontrado somente no garrotín e na rumba flamenca, não sendo um recurso comum do flamenco tradicional (PUIG, 2015, p.196). Como características diferenciais entre o garrotín asturiano e flamenco temos, neste, o uso recorrente do rubato e uso moderado das palmas quando comparado a gêneros similares como farruca, colombiana ou rumba.

Nas primeiras décadas do séc. XX o garrotín asturiano alcança grande esplendor, com muitas versões feitas por renomados compositores da época. Mas é o garrotín flamenco que ganha

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mais notoriedade, devido à beleza estética de sua dança, ao seu canto e a criatividade e virtuosismo violonístico que foram agregados pelos ciganos andaluzes.

O Soleares ou soleá é considerado um dos principais e mais tradicionais subgêneros do flamenco. Entre os cantores, é tido como o “estilo mãe” dos cantes.3 Segundo a tradição, é no soleares que se descobre o valor e o conhecimento de um cantor. Pode-se dizer que ele é a essência poética da Andaluzia (VEGA, p.40). A origem etimológica de soleá está no termo soledad, substantivo que significa solidão. Soledad, por sua vez, vem do latim solitas (Barrio et al., p.67). Sua principal característica musical é a alternância entre a métrica binária e ternária, sendo seu agrupamento rítmico básico concebido através de um ciclo de 12 tempos que, em geral, se organiza da seguinte maneira: 3+3+2+2+2. Vale ressaltar, no entanto, que nem sempre essa alternância métrica acontece de forma regular, podendo haver seções apenas binárias ou apenas ternárias. A Figura 6 mostra uma forma de escrita tradicional desse ciclo de 12 tempos, tomando-se a colcheia como unidade de tempo. O agrupamento rítmico 3+3+2+2+2 pode ser visualizado na figura, assim como a articulação tradicional do gênero.

Figura 6: Ciclo de 12 tempos com a principal acentuação utilizada no soleares.

Outra característica do soleares é que as melodias são anacrústicas, por isso a contagem começa no tempo 12, indo até o 11, como visto na figura 5. Isso ocorre em soleares tradicionais e, principalmente, cantados, porém o Soleares de Turina é tético.

3 – Elementos flamencos em Hommage à Tárrega

Na Figura 7, que mostra o início do Garrotín de Turina, é possível observar que a sonoridade é marcada por vários elementos característicos da música flamenca, como o modo flamenco, a

3 A arte do flamenco se manifesta através de 3 elementos: o cante, o toque e o baile, o que para nós seria equivalente ao canto, ao violão e a dança, respectivamente.

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cadência andaluza e o golpe. No c.3 é possível observar uma cadência andaluza I – II – III – II, seguida de um golpe e uma escala do modo frígio, na qual pode ser usada a técnica do picado. Embora na partitura de Turina haja apenas uma indicação de arpejo no acorde do grau I (linha ondulada do lado esquerdo do acorde), é comum o uso do rasgueado na sua execução, recurso interpretativo que evidencia o caráter flamenco presente na obra.

Figura 7: Início do Garrotín de Turina, onde é possível observar o uso do modo flamenco, cadência andaluza, golpe e escala do modo frígio.

Por meio da escuta e análise de diversos garrotíns,4 foi possível identificar algumas características recorrentes, como, por exemplo, um padrão rítmico de notas rápidas repetidas que finaliza com um intervalo melódico de terça menor, encontrado tanto no violão quanto em percussões, palmas e sapateado. Na Figura 8 vemos a presença desse padrão no Garrotín de Turina.

Figura 8: Trecho do Garrotín de Turina em que vemos a presença de um padrão rítmico com notas repetidas que é tradicional do estilo.

4 Verificar referências de áudio ao final para gravações tradicionais de garrotíns.

86 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

Em geral constatamos que sua interpretação acontece de forma bastante rítmica, sem uso de rubato. Por vezes ocorrem sequências mais longas de notas repetidas, articuladas sempre da mesma maneira. No exemplo acima encontramos ainda a indicação de golpe antes das notas repetidas, com a função de marcar o compasso, mas é comum que ocorra, como também se vê nessa passagem, uma pausa na linha melódica. Ainda na Figura 8, chama a atenção a indicação “con sentimento popular”. Em que pese sua inegável subjetividade, relacionamos essa indicação à forma de execução do padrão de notas repetidas que percebemos nas gravações tradicionais. Por aparecer sempre articulado da mesma maneira, com igualdade rítmica entre as notas e um certo vigor em sua execução, pode-se dizer que esse motivo é um clichê do gênero. Acreditamos que se possa afirmar, portanto, que a compreensão da indicação de Turina depende de uma familiaridade, ainda que mínima, com o gênero e suas características interpretativas tradicionais.

Na Figura 9 é possível observar outros três momentos em que este padrão de notas repetidas aparece no Garrotín de Turina.

Figura 9: Trechos do Garrotín de Turina onde é possível encontrar o padrão rítmico com notas repetidas que é tradicional do estilo.

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A Figura 10 mostra o início do Soleares de Turina. É possível observar algumas características fundamentais do gênero, como cadências andaluzas e o ciclo de 12 tempos descrito anteriormente.

Figura 10: Início do Soleares de Turina, evidenciando cadências andaluzas e o ciclo de 12 tempos típico do soleares.

Como observa BERT, “nas frases líricas, Turina evoca o cante com uma melodia por graus conjuntos de curta extensão que utiliza as quatro notas descendentes da cadência frígia” (1991, p.34, tradução nossa).5

Na Figura 11 temos um exemplo de uma frase lírica como a descrita acima por Bert. Nesta frase é possível identificar a mesma cadência andaluza em Sol dos primeiros compassos da peça. É interessante observar a digitação sugerida Andrés Segovia, que indica que toda a frase seja tocada na quarta corda, proporcionando assim maior igualdade de timbre e legato, contribuindo para ressaltar o caráter expressivo e cantabile da frase.

5 “In the lyrical phrases, Turina evokes the cante with a conjunct melody of narrow range that features the four descending notes of the Phrygian cadence.”

88 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

Figura 11: Frase que evoca o lirismo do cante flamenco, utilizando as quatro notas descendentes da cadência andaluza em Sol.

Na Figura 12 o agrupamento métrico 3+3+2+2+2 visto anteriormente é, a título de experiência, aplicado aos 17 primeiros compassos do Soleares de Turina. Para melhor visualização, estão agrupados os números que contam o ciclo de 12 tempos típico do soleares. Os acentos foram inseridos pelos autores, caindo nos tempos 1, 4, 7, 9 e 11. Esta é uma proposta interpretativa experimental baseada na aplicação de práticas tradicionais de execução do estilo em que a peça é baseada, práticas essas que não estão, contudo, explicitadas na partitura pelo compositor.

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Figura 12: Proposta de articulação para o Soleares de Turina.

Alguns elementos da escrita também parecem sugerir a presença do agrupamento típico 3+3+2+2+2, ainda que não o tornem explícito. Na Figura 13, por exemplo, vemos, mesma frase que abordamos na Figura 11, o surgimento de uma hemiola por conta do ligado na nota Sol, gerando uma ideia de agrupamento de dois em dois dentro de um compasso ternário.

Figura 13: Frase do Soleares de Turina onde aparece uma hemiola, reforçando o agrupamento rítmico 3+3+2+2+2, típico do estilo.

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As digitações e sugestões de performance de Segovia parecem, em alguns pontos, explicitar o agrupamento típico a despeito da escrita musical. Na Figura 14 vemos um trecho em que os ligados de mão esquerda inseridos por Segovia provocam acentos dinâmicos que favorecem a percepção do agrupamento 3+3+2+2+2. Os ligados foram colocados na primeira e na quarta notas (Ré e Mi bemol), agrupando então as seis primeiras notas em dois grupos de três. Acreditamos que a inserção do ligado foi uma forma de valorizar a nota Mi bemol, apojatura do Ré do acorde de Sol Maior que vemos no compasso em questão.

Figura 14: Passagem de Soleares de Turina onde é possível observar que os ligados inseridos por Segovia favorecem o agrupamento 3+3+2+2+2.

Na Figura 15 encontramos outra situação semelhante às anteriores. Mais uma vez os ligados inseridos por Segovia contribuem para um agrupamento de três em três notas. Como já foi dito, nem sempre a alternância 3+3+2+2+2 ocorre nessa ordem. No exemplo abaixo podemos identificar o agrupamento 2+2+2+3+3.

Figura 15: Passagem do Soleares de Turina em que é possível evidenciar que os ligados inseridos por Segovia sugerem alternância entre métricas binária e ternária.

Na Figura 16 vemos que Turina fecha a obra com mais um exemplo do agrupamento rítmico típico do soleares. Neste caso, mais uma vez a percepção da hemiola é favorecida pelos ligados inseridos por Segovia, assim como pelo desenho melódico do primeiro compasso do exemplo, que consiste de dois arpejos descendentes de três notas.

91 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

Figura 16: Final do Soleares de Turina, onde aparece alternância entre métricas binária e ternária, favorecidas pelos ligados de Segovia.

4 – Conclusões

Neste estudo, verificamos como Joaquin Turina, em sua obra Hommage à Tárrega, concretizou um estilo composicional marcado pela hibridização entre elementos musicais distintos, notadamente entre o flamenco e a música clássica. O compositor é natural da região da Andaluzia, o que provavelmente favoreceu a incorporação de elementos técnicos e musicais do flamenco em seu estilo, alguns relativos às técnicas de violão flamenco, como o uso de rasgueados, picado e golpe, e outros de caráter estrutural e harmônico, como o uso do modo flamenco, da cadência andaluza e de formas flamencas tradicionais como o garrotín e o soleares. Esses subgêneros flamencos foram investigados na literatura e em gravações tradicionais, possibilitando o aporte de conhecimentos teóricos e práticos à análise da obra de Turina e a descoberta nela de vários elementos característicos do estilo. A partir da compreensão desses elementos e da escuta de gravações tradicionais de flamenco, surgiram propostas interpretativas para a obra que procuram dar subsídios ao intérprete que não está familiarizado com a música flamenca.

No Garrotín de Turina foram evidenciadas várias características desse subgênero, como a métrica binária e o uso do modo flamenco e da cadência andaluza. Alguns elementos técnicos do flamenco também foram encontrados de maneira explícita, como a indicação de golpe. De maneira implícita, encontramos muitas escalas, que, como vimos, podem ser executadas incorporando uma técnica próxima à do picado. Encontramos situações cadenciais em que o uso do rasgueado é um recurso típico do estilo, podendo ser incorporado na interpretação. Através da escuta de gravações de garrotíns tradicionais foi possível identificar um possível

92 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

clichê do estilo, que também aparece na peça Turina, acompanhado da indicação “con sentimento popular”. Trata-se de um padrão de notas repetidas em semicolcheias que geralmente termina com um intervalo de terça descendente. Esse padrão foi ouvido tanto no violão quanto em palmas, percussões e sapateados e sua interpretação é bastante rítmica e precisa, com todas as notas articuladas de maneira homogênea e vigorosa.

No Soleares de Turina também foram identificados diversos elementos flamencos, como o uso do modo flamenco, da cadência andaluza, de escalas no modo frígio e frases que evocam o cante flamenco. A partir de um melhor conhecimento deste subgênero, que é considerado a essência poética da Andaluzia e um dos estilos mais tradicionais do flamenco, foi possível elaborar uma série de propostas interpretativas. Uma das características mais marcantes do soleares é a alternância entre as métricas binária e ternária, através de um ciclo de 12 tempos, geralmente agrupado da seguinte forma: 3+3+2+2+2. Essa alternância foi observada na peça em níveis diferentes, em alguns momentos por meio da escrita do próprio Turina e em outros através da análise de elementos musicais, algumas vezes reforçados por contribuições do editor da peça, o violonista Andrés Segovia. Acreditamos que o conhecimento desses elementos e práticas interpretativas contribui para a ampliação do horizonte de referências musicais dos violonistas clássicos e pode permitir performances mais ricas em significado e expressão.

Referências de texto

1.BARRIO, Felipe Gértrudix ;BARRIO, Manuel Gértrudix ; LARA, Felipe Gértrudix. (2009) Palos y estilos del Flamenco. Madrid : SonidosImaginarios e Bubok.

2.BERT, Alisson. (1991) The Influence of Flamenco on the Guitar Works of Joaquin Turina. Tese (Doutorado em Música) - The .

3.GRANADOS, Manuel. (2005) Método elemental de Guitarra Flamenca. Nueva Carisch España.

4.PIEDADE, Acácio. (2011) Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas. Artigo. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, p.103-112.

5.PUIG, Bernat Jiménez de Cisneros. (2015) Ritmo y compás: análisis musical del flamenco: estrutura métrica y articulación rítmico armónica de los géneros flamencos

93 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

acompassados. Disponível em: www.atrilflamenco.com. (Acesso em 14 de dezembro de 2019).

6.VEGA, José Blas. (1992) Magna Antología del Cante Flamenco. Madrid: Hispavox.

7.ZANIN, Fabiano Carlos. (2008) O violão flamenco e as formas musicais flamencas. R.Cient/FAP, Curitiba, v3, p.123-152.

Referências de áudio e vídeo

1.AMAYA, Carmen; SABICAS. (1958) Garrotín. In: Flamenco, faixa 2. Gold Label Series, 1958. (CD de áudio). Vídeo de 5 minutos e 10 segundos. Postado no Youtube por Los Palos del Flamenco em 8 de maio de 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fJQFmwx7nls. (Acesso em 15 de dezembro de 2019).

2.ROMERO, Pepe. (1995) Garrotín. In: Flamenco, faixa 3. Mercury, 1995. (CD de áudio). Vídeo de 3 minutos e 42 segundos. Postado no Youtube por ipoodaily em 30 de setembro de 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lhsUI78Qg4s. (Acesso em 15 de dezembro de 2019).

Notas sobre os autores

Henrique Lowson é Bacharel em Violão pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestrando pela Universidade Federal de Minas Gerais. É natural de Nova Friburgo-RJ. Iniciou seus estudos instrumentais aos 13 anos. Participou de diversos espetáculos em Friburgo, tendo estreado no Teatro Municipal de Nova Friburgo e tocado também no SESC local e em outras salas, como solista e camerista. Aos 20 anos, decidiu dedicar-se ao violão clássico, ingressando no UFJF, onde integrou a classe do Professor Luis Leite, tendo sido também monitor do curso de violão. Recentemente aprovado no Mestrado em Performance Musical da UFMG, é orientado pelo Professor Fernando Araújo. Participou do 1° Festival de Violão de Ouro Branco, onde fez master classes com o grande violonista escocês Paul Galbraith, tendo também estudado música barroca e renascentista com Nicolas de Souza Barros em duas edições do Festival de Música Colonial e Antiga de Juiz de Fora. Participou também de master classes com Isaac Laussel e o virtuose Goran Krivokapíc. Como ganhador do prêmio Jovem Músico BDMG, apresentou-se na sala Juvenal Dias do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Participou do 1° Concurso Nacional de Violão da Assovio Vertentes e foi finalista da XXIX edição de Concurso de Violão Souza Lima.

Fernando Araújo é Bacharel e Doutor em Música pela Escola de Música da UFMG e Mestre em Música pela Manhattan School of Music, de Nova York. É Professor Adjunto da Escola de Música da UFMG. O violonista obteve, dentre outros, o Prêmio Turíbio Santos no II Concurso Internacional Villa-Lobos e o 1o. Lugar e Prêmio de Melhor Intérprete de Villa-Lobos no II Concurso Nacional Villa-Lobos. Foi vencedor, com o soprano Mônica Pedrosa, do XX Artists

94 LOWSON, Henrique; ARAÚJO, Fernando. (2020) Hibridismos entre flamenco e música clássica em Hommage à Tárrega de Joaquin Turina. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.78-95.

International Auditions em Nova York, tendo o duo se apresentado no prestigioso Carnegie Recital Hall. Apresentou-se em diversas cidades dos EUA, Europa e Brasil e atuou como solista com várias orquestras, dentre elas a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Tem sido convidado a participar como jurado em diversos concursos, dentre eles o Concurso Julián Arcas, na Espanha. Lançado pelo selo Karmim, o CD “Universal”, no qual Fernando Araújo interpreta obras de Villa-Lobos, Piazzolla e Garoto, foi muito bem recebido pela crítica especializada. Gravou com a cantora Mônica Pedrosa o CD “Canções da Terra, Canções do Mar”, no qual o duo interpreta canções de compositores eruditos brasileiros, tanto originais quanto arranjos do próprio violonista. Um livro com o mesmo título, contendo as partituras desse CD, foi lançado pela Editora UFMG. É um dos músicos destacados no documentário “Violões de Minas”, escrito e dirigido por Geraldo Vianna.

95 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

ISBN: 978-65-00-00697-1

O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio

Pianist Amilton Godoy's improvisation style in Zimbo Trio's first album

Carlos Henrique Fernandes Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista Capes [email protected]

Fernando de Oliveira Rocha Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado que busca reconhecer os aspectos musicais e criativos do pianista Amilton Godoy em seus solos em performances com o Zimbo Trio. Neste trabalho apresentamos transcrições e análises de dois solos de Amilton Godoy no início da sua carreira na música instrumental brasileira; O Barquinho diferente (Sérgio AUGUSTO, 1965) e Garota de Ipanema (Tom JOBIM E Vinicius De MORAES, 1963) gravadas no primeiro disco do Zimbo Trio (Zimbo Trio, 1964). Nosso objetivo consiste em reconhecer aspectos melódicos e harmônicos que estruturam o estilo de improvisação de Amilton Godoy no período em questão. Os exemplos e discussões aqui apresentados deixam evidentes a influência que Amilton recebeu da improvisação jazzística e do pianista Oscar Peterson.

Palavras Chaves: Amilton Godoy e Zimbo Trio; Improvisação na Música Brasileira.

Abstract: This article is part of a master's research project which explores the musical and creative aspects of pianist Amilton Godoy’s solo performances with Zimbo Trio. In this paper we present transcripts and analyses of two solos by pianist Amilton Godoy from the beginning of his career in Brazilian instrumental music: O Barquinho Diferente (Sergio AUGUSTO, 1965) and Garota de Ipanema (Tom JOBIM And VINICIUS De Moraes, 1963) recorded on Zimbo Trio’s first album (Zimbo Trio, 1964). Our goal is to recognize the melodic and harmonic aspects which organize Amilton Godoy's improvisatory style during the period in question. The examples and discussions presented here also make evident the jazz influence and the influence of pianista Oscar Peterson on Godoy’s playing.

Keywords: Amilton Godoy and Zimbo Trio; Improvisation in Brazilian Music.

Introdução

O presente trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado que tem como objetivo reconhecer os aspectos que estruturam o estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy, sobretudo como pianista do grupo Zimbo Trio. Neste artigo temos como foco dois solos do primeiro disco do grupo lançado em 1965, disco que marca o início da trajetória do Amilton Godoy na música instrumental. Amilton possui uma discografia extensa, tendo gravado com renomados artistas

96 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. no Brasil e no exterior. Ele iniciou os seus estudos como pianista erudito, mas sempre teve apreço pela música popular instrumental. Amilton se tornou referência como pianista improvisador e arranjador, construindo junto ao Zimbo Trio uma carreira de sucesso internacional. Também junto ao trio, Amilton fundou o CLAM, Centro Livre de Aprendizagem Musical, escola voltada para os estudos da prática de música popular. A escola foi um marco no ensino de música no Brasil, visto que, os tradicionais conservatórios de música não ofereciam cursos voltados para o ensino de música popular.

Este artigo está dividido em duas partes; a primeira traz uma biografia de Amilton Godoy e, de forma concisa, sua trajetória junto ao Zimbo Trio. Acreditamos que ao pesquisar a performance de um artista, se faz necessário conhecer a sua formação e suas principais influências. Na maioria das vezes as informações encontradas são relevantes, uma vez que, podem apresentar relações com observações provindas das análises musicais de suas obras. Por exemplo; a partir de uma entrevista com Amilton Godoy, tivemos a informação que ele ainda adolescente estudava os solos do pianista Oscar Peterson. Buscamos então identificar, em seus solos, características musicais que poderiam provir de influência do Oscar Peterson. Na segunda etapa apresentamos análises das transcrições dos solos de Amilton nas músicas “O Barquinho diferente” (SÉRGIO AUGUSTO – 1965) e “Garota de Ipanema” (TOM JOBIM E VINICIUS DE MORAES – 1963), gravadas no primeiro disco do Zimbo Trio, lançado em 1965. Também na segunda etapa, abordamos brevemente as ferramentas empregadas para a realização das mesmas. Dessa forma, podemos trazer como resultado os materiais musicais e criativos mais aplicados por Amilton nos solos transcritos, podendo assim fazer uma relação com as suas referências e os reflexos no seu estilo de improvisação no início da sua carreira como pianista improvisador. Acreditamos que a realização deste trabalho é uma forma de contribuir para a valorização da música instrumental brasileira improvisada e também para a construção de matérias de referência sobre estilos de instrumentistas brasileiros.

1 Amilton Godoy

1.1 Breve Biografia

Nascido na cidade de Bauru no ano de 1941 e membro de uma família de músicos, Amilton Godoy iniciou os estudos precocemente, realizando aulas particulares com a professora Nida Marchioni e seguindo os tradicionais métodos de ensino para piano. Sua prioridade era o

97 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. estudo do piano erudito, mas em casa junto à sua família, o jovem pianista aprendeu harmonias da música popular através da influência do pai e do tio. Aos onze anos de idade iniciou sua carreira profissional formando um duo com seu irmão, Adilson Godoy. O pai de Amilton Godoy gostava de tocar tango, e, com isso, os filhos cresceram ouvindo e tocando tango junto ao seu pai, porém desde novo Amilton Godoy já apresentava interesse pela improvisação jazzística.

Aquilo foi uma escola para mim. E tinha que tocar direito, porque meu pai dava uma arcada na minha cabeça quando eu tentava inventar alguma coisa. Eu já estava gostando de Jazz e queria improvisar, mas não podia... ali não. Tudo isso foi parte de uma formação e me ajudou muito, e ao meu irmão também. GODOY, (2017, p. 93).

Amilton Godoy teve os seus estudos com a professora Nida Marchioni interrompidos por um motivo um tanto estranho, ela não gostava que ele se dedicasse à música popular e determinou que caso insistisse nisso, as aulas a ele e seus irmão seriam interrompidas, o que finalmente aconteceu. A partir de então, começou a estudar harmonia tradicional com o professor de piano Efísio Aneda, que dali a dois anos veio a falecer. Após o acontecido, a professora Nida Marchioni resolveu aceitá-lo de volta, ela alertou o pai de Amilton dizendo que ele precisava levar o menino para estudar em São Paulo, pois, acreditava não ter mais com o que contribuir, uma vez que, Godoy tinha evoluído demasiadamente e demonstrava um potencial talento. O pai de Amilton decidiu então levá-lo para fazer um teste com a professora Nellie Braga, que de pronto o aceitou. As aulas aconteciam em São Paulo, o que supunha seu deslocamento semanal a partir de Bauru até lá. Amilton participou do primeiro concurso de Piano Eldorado, no qual recebeu uma menção honrosa. A organização do festival tomando conhecimento do tamanho esforço de Amilton concedeu-lhe uma bolsa, o que lhe possibilitou mudar-se para São Paulo. Mudou-se para uma pensão localizada próximo à escola que contava com um piano pouco utilizado, mas que lhe foi de grande valia nesse momento. Quando completou a sua formação na escola Magda Tagliaferro, Amilton foi premiado em grandes concursos instrumentais, como: Concurso Nacional de piano da Bahia (1962), Concurso Nacional de piano do Rio de Janeiro (1963), Concurso Nacional de piano Eldorado (1964), Prêmio Governador do Estado de São Paulo (1964) e Concurso Nacional “Hora de Arte” (1964). Se tratando de música instrumental, Amilton se tornou referência desde 1964 com a formação do Zimbo Trio. Já no seu início, ainda em 1965, o trio acompanhou a cantora Elis Regina e o cantor no programa “O Fino da Bossa”. O programa era exibido

98 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. pela TV Record e teve grande repercussão pois era a vitrine de talentos daquela época e recebia grandes nomes da música brasileira.

Junto ao Trio, em 1973, Amilton fundou o CLAM, Centro Livre de Aprendizagem Musical, escola voltada para os estudos da prática de música popular. Amilton desde cedo mantém uma carreira muito ativa, com a criação do CLAM, lançou métodos voltados para o estudo de piano e harmonia, os quais utilizava nas aulas em sua escola. Além da intensa atividade com o CLAM e o Zimbo Trio, Amilton é frequentemente requisitado para trabalhos em paralelo com às suas atividades principais. Em 2011 transcreveu obras para flauta e piano a pedido do primeiro flautista da “Orquestra Filarmonie de Berlim”; Michael Hasel, e no mesmo ano foi solista junto da “Orquestra Jazz Sinfônica” sob a regência do maestro italiano Nino Lepore. No ano de 2012 gravou ao lado do harmonissista Gabriel Grossi o CD “Villa Lobos Popular”. Em 2013 lançou o CD “Amilton Godoy Trio – Autoral volume 1” e o CD “Amilton Godoy e a música de Léa Freire”. Atualmente se dedica ao “Amilton Godoy Trio”, que conta com o baterista Edu Ribeiro e o contrabaixista Sidiel Vieira.

1.2 Zimbo Trio

No ano de 1964, o baixista Luiz Chaves e o baterista Rubens Barsotti convidaram Amilton Godoy para formar um grupo de música instrumental brasileira. A proposta inicial era formar um quinteto, porém, os outros dois convidados recusaram o convite por conta da agenda particular de shows. Amilton relata que pensou muito antes de aceitar o convite, pois estava indo bem como músico erudito, porém, a sua maior paixão era o Jazz e a improvisação. Amilton aceitou o convite e então foi formado o Zimbo Trio, o grupo fez história nas paradas de sucesso com a música instrumental brasileira; os seus discos foram lançados nos Estados Unidos e também na Inglaterra. O Zimbo foi premiado como melhor grupo instrumental por várias vezes, dentre eles podemos citar o Grammy (EUA), Troféu Chico Viola, Medalha de Ouro dos Diários Associados, Troféu Imprensa, Prêmio Roquette Pinto, VIIº Prêmio Sharp de Música, Pinheiro de Ouro, Índio de Prata, Candido Mendes, Prêmio Euterpe e outros.

...Desde o início da carreira o Zimbo Trio despertou no público uma grande admiração pela sua forma de tocar, pautada pelas mais puras raízes brasileiras com grande influência jazzística. O Trio ganhou com isso todos os prêmios como melhor grupo instrumental brasileiro durante muitos anos seguidos..., compartilha Amilton Godoy, fundador do Zimbo Trio. Durante a trajetória de 49 anos na ativa, o grupo gravou 51 discos, entre LPs, EPs e CDs, editados em 22 países e se apresentou em 40 países. (https://amiltongodoy.com/thebestofzimbotrio)

99 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Nos anos 80 o trio apresentou o programa “Café Concerto” pela TV Cultura. O programa tinha como intuito apresentar os potenciais talentos da música instrumental da época. Grandes nomes do cenário da música instrumental ali passaram.

Este trabalho foca no primeiro disco do Zimbo Trio, lançado em 1965 e que conta com temas de compositores brasileiros e arranjos com diversas seções de improvisação, característica marcante do grupo. É intuito deste trabalho reconhecer quais influências Amilton traz para as suas improvisações neste primeiro trabalho com o Zimbo Trio.

2 Transcrições e análises

A improvisação é parte relevante dentro da prática de música instrumental. Nos últimos anos a realização de trabalhos que buscam investigar o estilo improvisação de músicos tem crescido. RAPHAEL DA SILVA em sua dissertação de mestrado busca entender a construção do estilo de improvisação do saxofonista Vinicius Dorin (SILVA, 2009), WALTER NERY FILHO investiga o estilo de improvisação do guitarrista Kurt Rosenwinkel (FILHO, 2010). Em grande parte dos trabalhos que buscam analisar e entender o estilo musical, técnico e interpretativo de algum músico em questão, utiliza-se como principal ferramenta a transcrição. Existem trabalhos que demonstram a eficácia da transcrição como ferramenta pedagógica no ensino da improvisação. É importante ressaltar o papel da transmissão oral de conhecimentos, visto que é uma potente ferramenta na aprendizagem musical. De acordo com NASCIMENTO E PENHA (2018, p. 11), transcrever solos de jazz representa modernizar a transmissão oral através da tecnologia.

A transcrição propõe um caminho inverso do que o aprendizado por meio da notação musical oferece, a notação exige entender a informação escrita para então interpretar, a transcrição ao invés exige o entendimento do estilo e de outras questões pertinentes para então notar a música. (NASCIMENTO E PENHA, 2018, p.11).

Dando sequência ao artigo, iremos mostrar as transcrições realizadas para este trabalho. Para realizar as transcrições dos solos, utilizamos o software de gravação e edição de áudio Reaper, que nos possibilitou diminuir a velocidade de reprodução dos áudios originais. Para a edição das partituras, empregamos o programa de notação musical Sibelius. Além das análises, apresentamos comparações de trechos em comum entre os solos do Amilton Godoy e do pianista Oscar Peterson. Inicialmente apresentaremos uma breve explicação sobre conceitos utilizados nas análises.

100 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

2.1 Conceitos a serem utilizados na análise das transcrições

Em entrevista para a revista Teclas e Afins1, Amilton relata que ainda jovem buscava escutar pianistas que se destacavam no mundo da improvisação jazzística, ressaltando que uma de suas principais referências seria o pianista canadense Oscar Peterson. Tomando como base as entrevistas de Amilton, temos como hipótese a influência do Jazz no seu estilo de improvisação. Com vistas à responder esta pergunta, após realizadas as transcrições iniciamos uma revisão de literatura que nos dessem suporte para a realização das análises musicais. A seguir apresentamos brevemente os conceitos adotados para a realização das análises. Tais conceitos provém de autores consolidados sobre o assunto como Mark LEVINE (1989), Turi COLLURA (2007), Jerry COKER (1991), Hal CROOK (2002), entre outros.

2.1.1 Aproximação: consiste em tocar uma nota alvo passando antes por uma nota vizinha, o movimento de aproximação pode acontecer de duas formas, por graus diatônicos ou por passagem cromática, ou seja, passando por notas não pertencentes à escala. De acordo com COLLURA, aproximação cromática consiste em aproximar das notas alvo por cromatismo, a nota de aproximação cromática se encontra sempre meio tom abaixo da nota alvo (COLLURA, 2007). Podemos notar que Amilton utiliza aproximação cromática em grande parte dos solos transcritos.

2.1.2 Lick: consiste em um padrão melódico comumente utilizado dentro de um estilo. Por exemplo, ‘bebop licks’ são frases melódicas que utilizam padrões tendo como base a escala bebop. Estas frases geralmente são utilizadas sobre acordes de dominante com sétima e acordes menores com sétima menor (COKER, 1991, p.40). Assim como existem licks de bebop, dentro do jazz podemos observar também licks de blues, muitos vindo do emprego da escala de blues ou de fraseados característicos deste estilo.

2.1.3 Generalização harmônica: uma das formas para escolher uma escala como base para improvisar é relacionar essa escala com o acorde daquele momento, de forma que a escala seja compatível com o acorde e sua função. De acordo com COKER, generalização harmônica ocorre quando o improvisador adota uma só escala para tocar sobre dois ou mais acordes em

1 Revista Teclas e Afins, ed.15 acesso em: 10/11/19. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D7dN2- ITYZc

101 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. uma progressão, mesmo a escala não sendo necessariamente compatível com todos os acordes (COKER, 1991, p.45).

2.1.4 Improvisação vertical: na improvisação vertical os acordes são o ponto de partida para a criação melódica. Na verdade, não se prioriza a construção de uma linha melódica, e sim de várias, uma vez que, com acordes em sequência, teremos várias melodias acontecendo simultaneamente. (COLLURA, 2007).

2.1.5 Improvisação escalar: Muitas escalas podem ser utilizadas no contexto de improvisação, como escalas maiores e menores. Iremos aqui citar três escalas comuns na improvisação jazzística e que são bastante utilizadas por Amilton nos solos transcritos: (1) A escala de blues, formada pelas notas de uma pentatônica menor acrescida de uma quinta diminuta (1-b3-4-b5-5-b7); (2) a escala de bebop formada sobre o acorde dominante, que consiste na mesma estrutura de uma escala mixolídio, mas acrescida da sétima maior, que gera um movimento cromático descendente da tônica até a sétima menor (típico do bebop) (3) a escala alterada, empregada em geral também sobre acordes dominantes e formada pelas notas de uma escala maior com todos os graus (exceto o primeiro) recebendo uma alteração descendente de meio tom, (4) escala mixolídio 11+, formada pelas notas de uma escala mixolídio, com alteração ascendente de meio tom no quarto grau. A Figura 1 traz estas quatro escalas em Dó.

Figura 1. Escalas de Blues, Bebop, Alterada e Mixolídio 11+

2.1.6 Repetição de motivos: motivo é uma pequena ideia melódica que normalmente tem entre duas e oito notas consistindo em uma única ideia ou pensamento musical. O motivo pode ser repetido de forma igual ou desenvolvido ritmicamente (CROOK, 2002, p. 81).

102 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

2.1.7 Sequência: ocorre quando um fragmento melódico é imediatamente seguido por uma ou mais variações do mesmo fragmento (COKER, 1991, p.55).

2.2 O solo de Amilton Godoy em Garota de Ipanema

A introdução da versão do Zimbo Trio para Garota de Ipanema, no seu primeiro CD, é marcada pelo denso piano do Amilton Godoy que imprime, ali, parte da sua experiência como músico erudito. A forma original da música é A-A’-B-A. Uma vez tocado o tema (completando esta forma) é iniciado o improviso que segue a seguinte forma; A-A-B-A-A-A. Os elementos analisados são expostos na ordem em que acontecem na transcrição. A transcrição completa pode ser consultada no apêndice deste trabalho.

2.2.1 Improvisação vertical

Amilton inicia o solo com acordes formados sob uma melodia que se movimenta em graus conjuntos, em sentido ascendente (Figura 2). Os acordes surgem através dos movimentos das vozes escolhidas para harmonizar cada nota da melodia (destacada em vermelho na figura 2). Notamos que as duas vozes superiores progridem por intervalos de quartas diatônicas e posteriormente em terças, enquanto a voz mais grave inicia com um movimento cromático descendente (contrário ao da voz aguda) e depois inverte este movimento, passando a se mover na mesma direção das vozes superiores. Observamos que a mesma passagem é utilizada novamente dentro do improviso nos compassos 41 e 49, o que sugere que seja uma frase preparada de antemão por Amilton, funcionando como uma ‘convenção’ musical.

Figura 2. Improvisação vertical, com acordes formados sobre uma melodia (indicada pelas notas em vermelho); solo de piano em Garota de Ipanema, c. 1.

Analisando solos do pianista Oscar Peterson, influência declarada de Amilton, encontramos trechos similares ao tocado por Amilton Godoy. No exemplo da Figura 3, notamos que as vozes superiores se mantém em grau conjunto, movimentando-se em quartas, assim como no solo do Amilton.

103 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Figura 3. Improvisação vertical (PETERSON, Oscar. Jazz Piano Solos, p. 58).

2.2.2 Repetição de motivos

Logo no início do solo (compasso 6 da transcrição) Amilton emprega um motivo construído a partir de notas da escala de Blues em Ré. Este motivo é repetido múltiplas vezes de forma literal do compasso 37 até o compasso 40. A Figura 4 traz algumas repetições deste motivo, cujas notas são destacadas pela cor azul.

Figura 4. Repetição de motivo (notas em azul) no solo em Garota de Ipanema, c. 37.

Na Figura 5 podemos notar a presença do mesmo motivo em um solo do pianista Oscar Peterson. Este motivo aparece repetido 6 vezes no compasso 8 do solo do Peterson na música I got it bad and that ain’t good. O ritmo é diferente mas o motivo melódico é o mesmo e aparece repetido, como no caso do solo de Amilton. Há ainda a coincidência de estarem no mesmo tom.

Figura 5. Motivo em comum com Amilton Godoy (PETERSON, Oscar. Jazz Piano Solos, p. 30).

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2.2.3 Licks

Na Figura 6 mostramos um trecho (compassos 45 ao 48 do solo), onde Amilton utiliza um motivo de três notas comumente utilizado em solos da linguagem do blues e do jazz: uma aproximação cromática seguida de uma terça menor (este motivo é bastante comum no blues, com uma aproximação cromática para a terça do acorde, seguida da quinta, isto é: b3-3-5). Ele repete este lick diversas vezes.

Figura 6. lick de blues utilizado em Garota de Ipanema, c. 46.

Na Figura 7 podemos notar uma variação deste motivo em um solo de Oscar Peterson. Enquanto Amilton mantém o padrão de três notas fixo, Oscar Peterson modifica a nota final do motivo a cada repetição alternando entre Sol e Fá e criando um padrão de seis notas. As cores azul e vermelho destacam as notas que se alternam.

Figura 7. Lick utilizado no solo em Perdido (PETERSON, Oscar. Jazz Piano Solos, p. 40).

Na Figura 8 mostramos o exercício número sete do livro “Blues Riffs for Piano” (BAKER, 1995), que traz um lick muito semelhante ao empregado por Amilton Godoy (e Oscar Peterson), com uma aproximação cromática para a terça (ou quinta) dos acordes em um ritmo de tercina.

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Figura 8. Exercício número sete do livro "Blues Riffs for Piano"(BAKER, 1995, p.7).

2.2.4 Improvisação escalar

Nos compassos 11 e 12 (Figura 9) Amilton utiliza escala de Sol mixolídio 11+, escala que contém dois trítonos (de Sol para Dó# e de Si para Fá) proporcionando uma sonoridade de tensão e preparação, como os acordes de função dominante. Podemos perceber que Amilton repete o mesmo motivo do compasso 11 no compasso 12, porém, uma oitava acima.

Figura 9. Uso da escala mixolídio 11+ no solo em Garota de Ipanema, c. 11.

Nos compassos 21 e 22 (Figura 10), temos um exemplo de utilização da escala de bebop em Si. Esta escala é normalmente empregada sobre um acorde B7. Aqui ela ocorre sobre um F#m7, o que sugere que Amilton possa ter pensado em uma progressão II-V, isto é, F#m7 – B7.

Figura 10. Uso de escala dominante de bebop em Si no solo em Garota de Ipanema, c. 21 e 22.

Nos compassos 53 ao 55 (Figura 11) podemos perceber a utilização da escala de blues em Fá (com destaque na cor verde). Ela ocorre sobre uma progressão II-V-I de Fá maior. Ou seja, Amilton emprega a escala de blues referente ao tom da música, isto é, Fá.

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Figura 11. Frase utilizando a escala de blues em Fá (notas em verde), no solo em Garota de Ipanema, c. 53 ao 55.

No compasso 53 observamos que Amilton emprega a escala de blues em Fá, que é a tonalidade da música, já na figura 4 mostramos um trecho em que Amilton utiliza a escala de blues em Ré, ou seja, tonalidade relativa menor de Fá. Nos dois primeiros compassos de ambos os trechos a harmonia é igual, assim, percebemos que Amilton emprega como ferramenta a utilização da escala do tom relativo menor para diversificar o seu improviso.

2.2.5 Sequência

No compasso 12, Amilton utiliza uma escala mixolídio 11+ e, a partir do terceiro tempo organiza sua melodia a partir de uma sequência de duas notas em grau conjunto, com cada motivo da sequência começando uma segunda (diatônica) abaixo do anterior. Na Figura 12 destacamos a sequência com a cor laranja.

Figura 12. Sequência (em laranja) no solo em Garota de Ipanema, c. 12.

Na Figura 13 apresentamos um trecho do livro de piano jazz do Oscar Peterson onde ele também faz uso de sequência.

Figura 13. Exemplo de sequência (PETERSON, Oscar. Jazz Piano Solos, p. 18).

107 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

2.2.6 Aproximação cromática

As aproximações cromáticas, típicas da improvisação no bebop, estão presentes em grande parte do solo e se encontram destacadas na Figura 14 pela cor roxa. Tais aproximações estão presentes nos compassos 13, 14, 21, 22, 24 ao 33 e 37. Como exemplo utilizamos o compasso 14 (Figura 14)

Figura 14. Aproximação cromática (em cor roxa) no solo em Garota de Ipanema, c. 14.

A aproximação cromática é algo bastante presente no jazz, sobretudo no bebop. Notamos essa situação em solos de grandes nomes do jazz, como no exemplo da Figura 15.

Figura 15. Aproximação cromática (COKER, Jerry. Jazz Elements of the Jazz Language, 1991, p. 31).

2.2.7 Generalização harmônica

Do compasso 53 ao 55 Amilton utiliza a escala de blues em Fá (com destaque na cor verde), sobre três acordes diferentes, o que caracteriza a generalização harmônica (Figura 16).

Figura 16. Generalização harmônica (em verde) no solo em Garota de Ipanema, c. 53 ao 55.

Para concluir, podemos destacar alguns elementos observados no solo de Amilton Godoy em Garota de Ipanema. Na primeira parte do improviso percebemos que são utilizados vários elementos da linguagem do blues e jazz, como a utilização da escala de blues em Fá e também

108 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. em Ré, que é a tonalidade relativa menor de Fá (tonalidade da música). Fica claro o uso de aproximações cromáticas (característica marcante em improvisos de jazz) e de frases típicas de jazz, dentre elas frases idênticas a algumas utilizadas também pelo pianista Oscar Peterson. Na parte B, Amilton tem uma abordagem diferente: o solo passa a priorizar notas pertencentes aos acordes, utilizando menos tensões harmônicas e um ritmo mais sincopado (Figura 17). Ao final do B, Amilton utiliza uma escala cromática ascendente combinada a um ritmo bem sincopado que conduz o solo ao ápice no compasso 33 (início do A após a sessão B). Neste momento ele passa a repetir uma nota aguda (Ré), com um sentido rítmico bem claro. A última sessão A da improvisação, retoma o caráter de blues, novamente com uso de licks, aproximações cromáticas e da escala de blues em Ré.

Figura 17. Transição do solo no final da parte B até a volta da seção A (acorde de Fmaj7), em Garota de Ipanema.

2.3 O solo de Amilton em O barquinho diferente

A forma de O Barquinho Diferente consiste em; A, A’, B, A, A’. O improviso ocorre após a exposição da forma completa da música, assim como no solo de Garota de Ipanema. O improviso é curto ocorrendo sobre a harmonia da parte A da música. A seguir comentaremos algumas passagens do solo. Veremos que há elementos em comum nos dois solos transcritos.

2.3.1 Escala de blues

Percebemos que a escala de blues em Dó é bastante utilizada por Amilton neste solo. Aqui a música está em Dó Maior e ele utiliza a escala de blues referente ao tom da música e não a qualquer outra tonalidade relativa. A maior parte do improviso se estrutura sobre esta escala,

109 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116. como podemos conferir nas Figuras 18, 19, 20 e 21, nas quais as notas da escala de blues em Dó estão destacadas em cor verde.

Figura 18. Escala de blues em Dó (em verde) no solo em O barquinho diferente, c. 1.

Figura 19. Escala de blues em Dó (em verde) no solo em O barquinho diferente, c. 5.

Figura 20. Escala de blues em Dó (em verde) no solo em O barquinho diferente, c. 3

Figura 21. Escala de blues em Dó (em verde) no solo em O barquinho diferente, c. 7.

2.3.2 Escala alterada

Nos compassos 2 e 6 é empregada a escala de dominante alterada em Lá. A utilização da escala (destacada em cor vermelha) acontece no momento em que o acorde de A7alt aparece na harmonia (Figuras 22 e 23).

110 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Figura 22. frase com notas da escala alterada (em vermelho) no solo em O barquinho diferente, c. 2.

Figura 23. frase com notas da escala alterada (em vermelho) no solo em O barquinho diferente, c. 6.

2.3.4 Licks

No compasso 3 do improviso em O Barquinho Diferente (Figura 24), Amilton utiliza o mesmo lick de blues empregado em Garota de Ipanema (destacado em cor azul).

Figura 24. Lick de blues (em azul) em O Barquinho Diferente, c. 3.

2.3.5 Aproximação cromática

No compasso 4 e 5 (Figura 25) temos diversas aproximações cromáticas (destacadas em cor marrom) utilizadas por Amilton. Primeiro para a nota Mi (tônica do acorde de Em7) no segundo tempo do compasso; em seguida uma grande passagem cromática que leva até a nota Mi, uma oitava acima (quinta do acorde de A7) e, finalmente, uma passagem cromática para a nota Lá (quinta do acorde de Dm7).

111 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Figura 25. Aproximação cromática (em roxo) em O Barquinho Diferente, c. 4 e 5.

2.3.6 Generalização harmônica

Neste solo, um claro exemplo de generalização harmônica acontece nos compassos 7 e 8. Amilton utiliza a escala de blues em Dó (destacada em cor verde) sobre uma cadência II V I (Dm7-G7-C7Maj) em Dó maior. Podemos observar o trecho na figura 25.

Figura 26. Generalização harmônica (em verde) no solo O Barquinho Diferente, c. 7.

O solo de Amilton em O barquinho Diferente é consideravelmente menor que o solo em Garota de Ipanema. Porém, mesmo ele sendo tão curto, é possível perceber que os dois solos apresentam características em comum e mostram a influência da linguagem de improvisação provinda do jazz e do blues no estilo inicial de improvisação de Amilton Godoy.

Considerações finais

A partir da pesquisa biográfica sobre Amilton Godoy foi possível perceber que, além da sua sólida formação como pianista erudito, o seu gosto pela música popular e pelo jazz sempre esteve presente. É inegável que a sua formação erudita tenha lhe proporcionado ferramentas técnicas para mais tarde usufruir em sua carreira como pianista improvisador. É claro também que o seu interesse pelo jazz e sua admiração pelo pianista canadense Oscar Peterson se tornaram importantes referências para a construção de seu estilo.

Ao transcrever e analisar dois solos de Amilton no primeiro disco do Zimbo Trio, percebemos, com clareza, a influência da improvisação jazzística no seu estilo inicial. A análise mostrou ainda diversas similaridades entre trechos de solos de Amilton e trechos de solos de Oscar Peterson.

112 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Concluímos que no primeiro disco do Zimbo Trio, Amilton traz consigo influências jazzísticas bastante evidentes. Tudo indica também que seu estilo teve, de fato, uma influência grande do pianista Oscar Peterson. Sendo este artigo ligado a uma pesquisa mais ampla sobre o estilo de improvisação de Amilton Godoy, nas próximas etapas do projeto iremos transcrever e analisar solos de outros discos do Zimbo Trio, buscando entender como o estilo de improvisação de Amilton Godoy evoluiu (ou se manteve) ao longo do tempo.

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9. LEVINE, Mark. (1996) The Jazz Theory Book. Pentaluna, CA: Sher Music CO.

10. MACHADO, Cristina Gomes. (2008) Zimbo Trio e o Fino da Bossa: Uma perspectiva histórica e sua repercussão na moderna música popular brasileira. Orientador: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda. 412 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes da UNESP, São Paulo.

113 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

11. MATSUNOBU, Kayo. [1970?] Oscar Peterson Jazz Piano Solos: Transcriptions e Adaptations from the Original Recordings. 1. ed. Japan: Nichion publications inc. 94 p. v. 1.

12. NASCIMENTO, E. D. D; PENHA, Gustavo Rodrigues. (2018) A importância da transcrição no aprendizado da improvisação musical no jazz. Jornada de Artes da UEMS - JART, Campo Grande-MS, v. 1, n. 5, p. 1-12.

13. NMBM, Amilton Godoy, (2015) Teclas e Afins, ano2, numéro 15.

14. SILVA, R. F. (2009) A Construção do estilo de improvisação de Vinicius Dorin. Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

Nota sobre os autores

Carlos Fernandes é licenciado em Música pela Universidade Federal de Ouro Preto, dentre suas principais atividades no âmbito universitário podemos destacar a vivencia em diferentes projetos de extensão, como por exemplo, Big Band Ouro Preto, Banda Sinfônica da UFOP e Grupo de Percussão da UFOP. Foi bolsista de Iniciação Científica (PropPP-PROBIC/FAPEMIG) no projeto de pesquisa Vibrafone e Música eletroacústica em Tempo Real: Elaboração de um conjunto de efeitos para performance, e no projeto (ProPP-PROBIC/FAPEMIG) Construção e inovação instrumental para percussão: Desenvolvimento de Mecanismo Abafador para Crotales. Como suas principais atividades extra universitárias podemos destacar a atuação como: Regente Titular e diretor artístico do Coro Feminino Silvinha Araújo (Mariana-MG); Produtor, Arranjador e técnico de gravações no espaço CF Estúdio de Gravação (Ouro Preto- MG), Diretor musical em festivais como o Festival Nacional da Canção de Mariana-MG (2017, 2018, 2019 e 2020) e Baterista/Vibrafonista em grupos de música popular como o Ouro Trio (Ouro Preto-MG) e o Quinteto Vênue (Belo Horizonte-MG).

Fernando Rocha é Professor Associado de percussão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desde 1998. Possui doutorado em música pela McGill University (Montreal, Canadá), onde estudou com Aiyun Huang e D’Arcy Philip Gray, Mestrado pela UFMG e Bacharelado em Percussão pela UNESP, onde tocou com o grupo PIAP e estudou com John Boudler, Eduardo Gianesella e Carlos Stasi. Entre 2015 e 2016 realizou pesquisa de Pós- Doutorado na Universidade da Virginia (EUA), onde atuou como Pesquisador/Artista Visitante. Ao longo se sua carreira, Fernando tem se dedicado especialmente à performance de música contemporânea, participando, como solista ou membro de grupo de câmara, de inúmeros festivais internacionais, tanto no Brasil quanto no exterior. Também tem colaborado com vários compositores na criação de novas obras, tendo realizado a primeira audição de obras de Almeida Prado, Edson Zampronha, Sílvio Ferraz, Roberto Victorio, Sérgio Freire, Alexandre Lunsqui (Brasil), João Pedro Oliveira (Portugal), Lewis Nielson, Jacob Sudol (USA), Nicolas Gilbert e Geof Holbrook (Canadá).

114 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

Apêndice – Solos transcritos

115 FERNANDES, Carlos; ROCHA, Fernando (2020). O Estilo de improvisação do pianista Amilton Godoy no primeiro disco do Zimbo Trio. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org e Ed de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.96-116.

116 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

ISBN: 978-65-00-00697-1

“Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros Nº 1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos

"Nem tão típico assim" [“Not quite so Typical”]: subverting the canon in Chôros nº 1, for solo guitar, by Heitor Villa-Lobos

Marco Teruel Castellon Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista CAPES [email protected]

Ana Cláudia de Assis Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: O Chôros nº 1 é uma das mais conhecidas e mais gravadas peças para violão de Heitor Villa-Lobos. Partindo da constatação que essa peça carrega em si, ao mesmo tempo, aspectos da tradição musical europeia e as práticas musicais populares (o gênero choro), este trabalho faz uma crítica à sua abordagem interpretativa corrente. Tal abordagem expõe o papel exótico que a música brasileira exerce dentro do cânone musical e a noção de “obra” que norteia a prática de performance na Música Artística Ocidental (MAO). O objetivo foi apontar para novas possibilidades de interpretação, encorajando performers a exercer um papel mais criativo e crítico perante o texto musical.

Palavras-chave: Música brasileira para violão; Interpretação musical; Cânone e Obra musicais; Chôros nº1 de Heitor Villa-Lobos; Pesquisa artística.

Abstract: Chôros nº1 is one of the most known and recorded pieces for guitar by Heitor Villa-Lobos. Departing from the observation that the piece carries within itself aspects from both European musical tradition and popular music practices (the choro genre), the present study will undertake a critique of its current interpretative approach. Said approach exposes the exotic role that Brazilian music occupies in the Classical Music Canon and the notion of "musical work" that guides the performance practices in Western Art Music (WAM). The main objective was to provide a new possibility of an interpretive approach, encouraging performers to assume a more creative and critical attitude towards the musical text.

Keywords: Brazilian music for guitar; Musical interpretation; Musical Canon and Works; Chôros nº1 by Heitor Villa-Lobos; Artistic research.

1 - Introdução

Textos que desafiem ou questionem o modus operandi de determinadas práticas não deveriam ser exceção dentro do mundo acadêmico. Difícil imaginar uma pesquisa em alguma área científica mais tradicional que busque simplesmente confirmar o conhecimento e as práticas já existentes. Entretanto, na Performance Musical, parece haver um conflito entre a vocação artística e a vocação acadêmica, com uma certa prevalência daquilo que, no senso comum, se chama de “modelo conservatorial” e que privilegia a reprodução de modelos eurocêntricos na

117 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. abordagem do repertório da “Música Artística Ocidental” (MAO1). Duas questões dentro desse cenário despertam a nossa atenção e servem de estímulo inicial para este trabalho: i) a função, ou funções, que são atribuídas aos performers/intérpretes e; ii) as representações simbólicas que essas funções ajudam a legitimar.

Por “função do intérprete” nos referimos ao espaço que é destinado aos músicos durante a preparação para uma apresentação, registro de fonograma etc. Qual o espaço destinado a esses músicos quando confrontados com uma partitura? Qual o alcance criativo e intelectual que esse espaço oferece? O violonista Fábio Zanon diz que a performance pode ser “a face menos intelectualizada da profissão”, mas que é a que mais movimenta a indústria (ZANON, 2006, p.102). Por outro lado, essa indústria parece estar indicando uma fadiga do atual modelo de produção que perpetua, como aponta em seu blog o crítico Greg Sandow.

Há anos temos falado sobre uma crise na música clássica. E a crise é real - a venda de ingressos está em queda, tem sido mais difícil encontrar apoio financeiro e o público envelheceu ao longo dos anos (...) Mas por que isso acontece? Para mim, a resposta é profunda. Nossa cultura mudou - ao longo de décadas, passando por gerações, mas especialmente desde o fim dos anos 1960. Somo mais informais do que costumávamos, mais espontâneos, amplamente mais criativos e - não menos importante - muito mais diversos. Isso não é bom para a música clássica, uma forma de arte que apresenta: - músicos em roupas formais - obras-primas de séculos passados repetidas várias vezes - uma audiência mais velha, silenciosa e (verdade seja dita), de várias maneiras, passiva2 (SANDOW, blog pessoal do autor3)

Já as representações simbólicas dizem respeito aos discursos (Lyotard chamaria de “metanarrativas”) e distinções que são, tácita ou explicitamente, corroboradas pelas práticas de performance. Neste ponto é que localizamos o trabalho de mestrado de um dos autores (CASTELLON, 2017), do qual o presente artigo pode ser considerado um desenvolvimento.

Na dissertação supracitada apontou-se para o estabelecimento de um estereótipo estético na representação do repertório brasileiro para violão. Essa representação foi sendo construída

1 WAM (Western Art Music), termo utilizado por Cook (2001). 2 “For years we’ve been talking about a classical music crisis. And the crisis is very real - ticket sales have been falling, funding has been harder to find, and the audience, over many years, has gotten older. (…) But why is all of this happening? For me, the answer goes very deep. Our culture changed — over decades, over generations, but especially since the late 1960s. We’re now more informal than we used to be, more spontaneous, more widely creative, and — not least — far more diverse. That’s not good for classical music, an art form that features: - musicians in formal dress - masterworks from centuries past, repeated over and over - an older, silent (and, if the truth be told) in many ways passive audience.” 3 Disponível em: http://gregsandow.com/my-blog/. 118 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. pela presença reiterada, em fonogramas, de peças musicais que carregam um conjunto bem definido de características: geralmente são peças compostas na primeira metade do século XX, compostas por violonistas e ligadas, principalmente, à tradição do choro carioca. A ponte entre essas informações e o público é o que foi denominado Brazilian Guitar Music (in CASTELLON, 2017).

Ainda no âmbito simbólico, essas músicas dialogam claramente com a grande narrativa da identidade nacional brasileira - a brasilidade. Dessa forma, reforçam a ideia de um país com uma identidade unificada e bem estabelecida. Não obstante, não é visto na grande maioria desses fonogramas uma representação mais ampla, contextualizada, atual e plural do que seja a produção musical no Brasil. Em conjunto a esse fato não é possível dizer que as pretensas abordagens interpretativas dos performers ofereçam grandes distinções ou insights novos para as peças gravadas, principalmente aquelas que foram mais exaustivamente gravadas, como é o caso do Chôros nº1, de Heitor Villa-Lobos4.

O que se constata na audição dos registros dessa música é, na verdade, uma fidelidade imensa ao que está notado na partitura e, no pouco espaço que o texto oferece para interpretações ou experimentações, há cautela e subserviência severas à maneirismos interpretativos. Não se pode dizer, sequer, que a maioria dessas interpretações tente oferecer uma visão “informada” (culturalmente, como nas práticas da Música Antiga) pelas práticas interpretativas dos chorões brasileiros. O que se deixa subentendido é que essas músicas, na verdade, oferecem pouco para que o intérprete trabalhe (uma vez que seriam peças “simples”), cabendo ao brilhante intérprete elevar a música por meio de sua técnica. Portanto, é sintomática a manchete de uma resenha publicada na Folha de São Paulo, a respeito de um álbum de música latino-americana para violão: “violonista dá [grifo nosso] sofisticação inédita a peças de 16 países das américas”5.

A questão que se impõe agora é: como elaborar uma interpretação que ofereça algo novo, e fundamentado em pressupostos teóricos validados pela academia? ASSIS (2018) nos oferece uma pista ao traçar um paralelo entre o papel do intérprete e o do historiador

4 Cabe notar que, entre os violonistas populares, é mais comum intervir na música de maneira mais criativa. Um exemplo é o disco João e o Sertão, de Baden Powell, onde o violonista ofereceu uma interpretação muito pessoal da famosa Sons de Carrilhões. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=onfYV5hHDNo 5 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/12/violonista-da-sofisticacao-inedita-a-pecas- de-16-paises-das-americas.shtml 119 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

o grande desafio para o intérprete diante de uma obra massificada pelo mercado da arte é justamente esse: ser capaz de indagar uma partitura em sua dimensão sígnica e articulá-la com uma dimensão idiomática do contexto ao qual está sendo submetida; ser capaz de articular a tradição e promover o novo que a obra contem à espera de ser revelado. (ASSIS, 2018, p.4-5)

CHIANTORE (2017) dialoga com Sandow e Assis ao evidenciar o momento de mudanças que o nicho da música clássica atravessa e aponta para a pesquisa artística como um campo capaz de prover soluções novas:

Os códigos criados ao redor de uma visão evolucionista e quase teleológica da música clássica europeia estão desmoronando e, com sua derrocada, apresentam-se alternativas à subordinação do performer ao compositor e, também, novas formas de aprofundar o diálogo entre música e musicologia, onde a Pesquisa Artística tem muito a oferecer. A habilidade de repensar o presente começa com a capacidade de ver opções escondidas atrás das realidades aparentemente mais consolidadas. 6 . (CHIANTORE, 2017, p.18)

Tendo em vista estas considerações preliminares, o presente trabalho se dividirá em três partes. Na primeira será discutido como os conceitos de Obra Musical e Cânone interferem na prática interpretativa dos performers. Os escritos de CHIANTORE (2017) e GOEHR (2007) são centrais na compreensão de ambos os conceitos, enquanto estudos de SMALL (1998) e TARUSKIN (1996) ajudam-nos a tecer contrapontos e complementos à discussão sobre “Obra”. Já WEBER (2001), MOLINA (2005, 2006) nos ajudam a problematizar o conceito de Cânone.

Na segunda parte se desenvolverá uma reflexão sobre o lugar ocupado pelo Chôros nº1 dentro do cânone violonístico. Tendo como ponto de partida um artigo GUÉRIOS (2003) será estabelecida uma relação entre a peça em questão e os objetivos de projeção internacional de Villa-Lobos. Também se apontará como o contato com o violonista Andrés Segóvia pode ter ajudado a estabelecer uma diferença entre um Villa-Lobos “universal” e um Villa-Lobos “nacional”.

6 “The codes that emerged around an evolutionist and almost teleological vision of European classical music are crumbling, and with this demise come alternatives to the subordination of the performer to the composer, as well as new ways to widen dialogue between music and musicology, in which Artistic Research has much to say. The ability to rethink the present begins with the capacity to see hidden options behind the most seemingly consolidated realities.”

120 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Por fim, apresentaremos o processo de construção de uma interpretação do Chôros nº1 que esteja alinhada com os preceitos de Assis (intérprete como inquisidor da partitura) e Chiantore (intérprete como agente ativo de mudança). Esse processo contou com a colaboração do violonista Lucas Telles e esta parte do trabalho se dedicará menos a fazer uma exposição descritivo-formal do resultado interpretativo, e mais na exposição das ideias e do processo de construção da interpretação.

2 - A Obra musical e o Cânone

O mundo da Música Clássica possui seu próprio modo de funcionamento. Esse funcionamento parece operar ao redor de dois conceitos tacitamente aceitos: Obra musical e Cânone. Não obstante, o que foi observado nas reflexões que serão expostas é que há uma sobreposição de características entre os dois temas. Acreditamos que isso se deve a uma relação de coexistência entre Obra Musical e Cânone, como aponta William Weber “se ‘clássico’ se refere a cada pretensa grande obra, ‘cânone’ é a estrutura que permite sua identificação em termos críticos e ideológicos7“. (WEBER, 1999, p.338) Portanto, podemos concluir que o Cânone é o aparato que legitima o conjunto de obras que o formam, formando um ciclo de retroalimentação. Mas o que exatamente seriam as Obras?

Esse tipo de pergunta presume o que Christopher Small chamou de “coisificação” (SMALL, 1998, p.4) (thingness) das obras musicais. Em sua análise Small aponta que essa “coisificação” transfere a atenção dos processos criativos e perceptivos para o objeto artístico em si, conferindo-lhe, então, uma existência autônoma e uma identidade própria e imutável. Nas palavras de Small: “[a obra] simplesmente está ali, flutuando através da história, intocada pelo tempo e pela mudança, esperando que o intérprete ideal a decodifique.8” (SMALL, 1998, p.5)

Uma outra crítica de Small, e de interesse para nós, é um dos corolários decorrentes da objetificação das obras musicais. Segundo o autor, um desses corolários indica que “nenhuma performance tem a possibilidade de superar a obra que está sendo tocada9.” (SMALL, 1998,

7 “If ‘classics’ are individual works deemed great, ‘canon’ is the framework that supports their identification in critical and ideological terms.” 8 “is simply there, floating through history untouched by time and change, waiting for the ideal perceiver to draw it out 9 “no performance can possibly be better than the work that is being performed.” 121 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. p.6). Ou seja, uma obra considerada ruim jamais renderá uma boa performance (do que se pressupõe que não valeria a pena ser interpretada) e uma boa obra pode, no máximo, render uma performance que responda a sua elevada qualidade. Pode-se traçar um paralelo entre a obra “coisificada” de Small e aquilo que Lydia Goehr aponta ser uma das características do “Work-concept” (“Obra-conceito”): a de ser um conceito que projeta a existência autônoma das peças. (GOEHR, 2007, p.106.)

Uma contribuição oferecida por Goehr é a reformulação do questionamento a respeito das obras musicais. A autora diz que deveríamos “nos deslocar da pergunta sobre que tipo de objeto a obra musical é, e perguntar-nos que tipo de conceito a obra musical é10”. (GOEHR, 2007, p.90). Goehr expõe cinco características da Obra-Conceito (uma das quais é ser “projetiva” [projective]), talvez o mais contundente seja que se trata de um conceito regulamentador (ibid).

Ao dizer que a “Obra-conceito” é regulamentadora, a filósofa expõe o poder de delimitar e legitimar apenas certos tipos de valores, práticas e conhecimentos considerados apropriados. Uma dessas práticas apropriadas, por exemplo, é a total (ou máxima) conformidade com aqueles elementos (rítmicos, melódicos ou estilísticos) que estão representados na partitura, uma vez que estes são a representação ideal da peça. Richard Taruskin chamará essa regulamentação de “text fetichism” (fetiche pelo texto) (TARUSKIN, 1996, p.187). De acordo com Taruskin o texto musical (a partitura para ser mais exato) é tida como a máxima autoridade que ditará o que é a essência da peça musical em questão, podendo se sobrepor até mesmo às performances do próprio compositor que desviem daquilo que está escrito (ibid).

Muitas destas características ligadas ao conceito de Obra Musical acabam, também, se ligando ao próprio conceito de Cânone (evidentemente, uma vez que este é formado pelas obras). Por exemplo, Luca Chiantore diz que

Cânone (...) é uma palavra decisiva: é ele quem determina quais compositores e quais repertórios merecem ser preservados, estudados e tocados. De fato, esses cânones se provaram essenciais para a musicologia enquanto disciplina, fazendo justiça a uma palavra com conotações bastante perceptíveis: disciplinar, como domar e controlar a

10 “move away from asking what kind of object a musical work is, to asking what kind of concept the work-concept is.” 122 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

música; uma atitude de autoridade sobre pessoas e a própria música.11. (CHIANTORE, 2017, p.8).

Chiantore usa uma linguagem mais enfática ao chamar de “controle” o que Goehr chama de “regulação” e Small de “corolários”. A outra função que Chiantore atribui ao Cânone, a de “domar” (to tame), também é apontada (com uma linguagem mais contida) por William Weber ao dizer que “o cânone musical foi definido diversamente como uma força moral, espiritual e cívica12” (WEBER, 2001, p.353). Esses conceitos, puramente ideológicos, serviriam para colocar a música clássica como defensora de ideais artísticos elevados (não massificados); como uma forma de arte ligada ao espiritual/sagrado; e, principalmente, como uma força cívica/civilizadora, capaz de trazer consensos e unir a sociedade em torno de interesses e ideais comuns. (WEBER, 2001, p.353-355).

Deve-se, também, salientar o que Weber chama de “diversidade de repertórios canônicos.13” (WEBER, 2001, p.346). É dizer que o Cânone não é apenas um bloco unificado de Obras, mas uma multiplicidade delas que servem a diferentes demandas e contextos. Fazendo referência ao caráter ideológico do Cânone, Weber também atribui a este a responsabilidade pela separação entre “Popular” e “Clássico” (Erudito). Desta forma as “obras eram vistas como mundanas ou artísticas, e diferenças poderiam ser discernidas dentro de cada categoria14” (WEBER, 2001, p.354), criando, assim, uma hierarquia entre os gêneros.

Há quem acredite que a construção e as práticas do Cânone não careçam de uma explicação externa (um reflexo da autonomia soberana da Música e suas “obras”). A frase de Krausz (apud MOLINA 2005, p.1178), “o fazer musical determina os parâmetros da excelência musical”, sintetiza com precisão essa autolegitimação do cânone e das práticas canônicas. Mas quais fatores determinam a excelência do fazer musical?

Como Hennion aponta

11 “Canon, (…), is a decisive word; it determines which and what repertoires deserve to be preserved, studied, and performed. In fact, these canons have proved essential for musicology as a discipline to do justice to the etymology of a word with such notable connotations: discipline as in to tame and control music; an action of authority over people and music itself” 12 “the musical canon has been defined variously as a moral, a spiritual, and a civic force.” 13 “diversity of canonic repertoires” 14 “works were seen as either mundane or artful, and differences might be discerned within each category.” 123 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

A música nada tem a mostrar além de mediações: instrumentos, músicos, partituras, palcos, gravações. As obras não estão ‘simplesmente ali’, confrontadas por diferenças de gosto que também “já estão ali”, supra determinado pelo social. Elas sempre têm que ser tocadas novamente ou, melhor dizendo, como novas.15 (HENNION, 2011, p.252)

Ou seja, o “fazer musical” per se não é, sozinho, capaz de explicar e fundamentar o comportamento de diferentes mediadores em diferentes contextos. E tampouco a análise de um mediador apenas pode dar conta de explicá-las, pois o “fazer musical” é construído novamente todos os dias por diferentes pessoas, forças e suas articulações.

O que podemos extrair desta breve reflexão acerca dos conceitos de Obra e Cânone é o caráter impositivo e ideológico que caracteriza os seus usos e funcionamentos. No âmbito da performance musical, tais características restringem o espaço que o intérprete possui para elaborar, de fato, uma interpretação que seja construída pelo conjunto de seus conhecimentos (instrumentais, musicais, musicológicos etc) e de sua individualidade artística. Restringe, inclusive, as opções de peças musicais consideradas dignas de uma interpretação de qualquer ordem. Tal constatação dialoga diretamente com o pensamento de Greg Sandow sobre a crise da música clássica. “O mesmo repertório tocado do mesmo jeito”, limitado pelo fetiche ao texto, ofuscado pela grandeza e independência atribuída à obra, subjugado pela autoridade do autor e que, aparentemente, começa a não ser suficiente para atrair atenção do público.

É no sentido de querer construir novas alternativas de mediação (ou abordagens a uma mesma mediação: a performance/interpretação) que direcionamos este trabalho. A maioria dos intérpretes do nicho da MAO baseiam seus repertórios em uma pretensa qualidade, ditada pelo Cânone na forma de programas de conservatório, universidade e os já disseminados concursos de interpretação, e sua abordagem de interpretação nos moldes também dessas instituições canônicas. O resultado dificilmente não seria uma “faceta menos intelectualizada” e uma crise que tem como fundamento a repetição de repertórios e performances estandardizadas. Acreditamos que uma função da pesquisa em performance (ou pesquisa artística) é, justamente, oferecer soluções para os novos contextos

15 “Music has nothing but mediations to show: instruments, musicians, scores, stages, records. The works are not “already there,” faced with differences in taste also “already there,” overdetermined by the social. They always have to be played again or, to say it better, performed anew”

124 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. socioculturais, oferecer caminhos para que mediadores sejam cada vez mais conscientes e responsáveis de seu papel.

3 - Villa-Lobos, Segóvia e o caminho até o Cânone

A legitimação do valor artístico oferecida pelo Cânone tem sido um objetivo a ser alcançado por compositores e intérpretes dentro do nicho da MAO. Na primeira metade do século XX, duas figuras se articularam, a despeito de suas diferenças pessoais e estéticas, para alcançar tal objetivo em seus respectivos campos de atuação: Heitor Villa-Lobos e Andrés Segóvia. O primeiro queria receber o reconhecimento enquanto compositor, o segundo visava incluir o violão no panteão dos instrumentos nobres do Cânone.

A busca de Villa-Lobos para se projetar internacionalmente (ou para ser aceito dentro do Cânone) é retratada por Paulo Renato Guérios, tendo como ponto emblemático o encontro de Villa-Lobos com o artista Jean Cocteau. Segundo Guérios,

O fato de Villa-Lobos ter começado a compor músicas brasileiras a partir de 1923 deveu-se não à descoberta de que ele teria uma essência brasileira, mas sim a um processo de transformação que foi colocado em marcha por uma série de mecanismos sociais de atribuição de valor. (GUÉRIOS, 2003, p.99)

Concordamos que Villa-Lobos estava, de fato, tomando parte no jogo de relações hierárquicas entre França e Brasil. Ainda assim duas questões devem ser levadas em conta: estaria Cocteau apto a relatar sobre como a brasilidade poderia estar decantada dentro das obras que Villa- Lobos apresentava? Até que ponto a resposta de Villa-Lobos não teve um caráter de marketing? As respostas para estas perguntas, mesmo que muito bem embasadas, sempre serão apenas especulações. Entretanto, é outro tipo de pergunta que nos interessa: como essa resposta de Villa-Lobos impactou a construção do repertório brasileiro, ou melhor, a construção da representação desse repertório?

É de conhecimento comum que a construção do “cânone violonístico” se deu em um contexto muito diferente daquele de instrumentos como o violino ou o piano, tendo dependido fortemente de gravações para construir um Cânone performático. Também é notória a centralidade que Andrés Segóvia ocupou dentro da narrativa vigente. O encontro entre

Segóvia e Villa-Lobos, em Paris, também é relatado por Guérios em seu artigo. (GUÉRIOS,

125 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

2003, p.94). Desse encontro resultaram os Doze Estudos para violão (dedicados a Segóvia). Apesar de terem sido publicados apenas na década de 50, os 12 Estudos começaram a ser compostos em 1924, na mesma época em que eram compostos os primeiros Chôros que fariam parte da famosa série de Villa-Lobos. E, aparentemente, nenhuma menção foi feita por Villa-Lobos sobre qualquer produção sua já concluída para o violão.

Um fato curioso é que, em diversos manuscritos deixados por Villa-Lobos, a data de composição do Chôros nº1 é fixada em 1920. Por que motivos Villa-Lobos não apresentaria uma peça já pronta para uma figura já proeminente como Segóvia? O editor da edição crítica da peça, Federic Zigante, aponta no prefácio que a peça foi publicada pela editora argentina Arista “em algum lugar entre 1920 e 1926”, uma janela de tempo que nos parece extremamente imprecisa. O próprio Zigante relembra o conhecido hábito do compositor de alterar a data de composição de obras que considerava importantes e, em nota de rodapé, admite que o Chôros nº1 pode, na verdade, ter sido ao menos retrabalhado em 1924, a mesma data em que Villa-Lobos iniciara a composição dos 12 Estudos. Teria sido o Chôros nº1 composto após os encontros com Cocteau e Segóvia16? Seriam o Chôros nº1 e os 12 Estudos tentativas de ingressar no Cânone por caminhos diferentes?

Cabe apontar como, provavelmente, o direcionamento estético de Segóvia não se alinhava com a demanda por exotismo dos modernistas franceses e, tão pouco, devia se alinhar com os ideais do próprio Villa-Lobos (e do nacional-modernismo brasileiro em geral). Em uma carta ao compositor mexicano Manuel Ponce, de quem Segóvia era grande amigo, o violonista espanhol não apenas criticou fortemente a série de estudos - com a ressalva para o estudo em Mi Maior, presumidamente o Estudo 7 e que foi gravado por Segóvia - mas criticou, também, várias peças de Villa-Lobos que ouvira em um concerto no Uruguai (e também peças de outros compositores brasileiros que não foram citados, mas que foram taxadas de “vulgares e bobas”17) (in ALCÁZAR, 1989, p.210-211).

O fato é que o Chôros nº1 nunca foi gravado por Segóvia. Além das ressalvas estéticas e da relação conturbada com Villa-Lobos, é provável que a proximidade de outros violonistas como

16 Importante salientar que não obtivemos acesso ao livro Villa-Lobos e o Violão (2009), de Humberto Amorim. Não sabemos quais informações o estudo de Amorim oferece a respeito do Chôros nº1. O livro está esgotado na editora (Academia Brasileira de Música) e o autor nos comunicou que ele trabalha em uma 2a edição a ser lançada em 2020. 17 “vulgares y tontas.” 126 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Miguel Llobet e Regino Sanz de la Maza (ambos tinham cópias manuscritas do Chôros nº1 em seus acervos pessoais) com a peça tenha levado Segóvia a não fazer do Chôros nº1 uma peça com a qual fosse identificado - apesar desta música constar em um recital realizado em Londres no ano de 1938 no qual, curiosamente, Segóvia prestou homenagem justamente a Miguel Llobet (MOLINA, 2006, p.69).

Por outro lado, mesmo sem terem sido gravados na íntegra por Andrés Segóvia, não é exagerado dizer que os Doze Estudos se beneficiaram por terem sido dedicados e terem recebido um prefácio escrito pelo espanhol. Interessante notar que, nesse prefácio, em nenhum momento Segóvia se refere ao caráter brasileiro existente nas músicas (ou mesmo no projeto estético villalobiano). Na verdade, o violonista faz questão de reafirmar a posição superior dos 12 Estudos ao dizer que “possuem, ao mesmo tempo, fórmulas surpreendentemente eficazes para o desenvolvimento técnico de ambas as mãos e belezas musicais ‘desinteressadas,’ sem fins pedagógicos, valores estéticos permanentes de obras de concerto18” (in VILLA-LOBOS, 1990, p.9).

Dessa forma os estudos ganham uma perspectiva canônica, se impondo como “atemporais” e “universais”, ao contrário do Chôros nº1, que foi colocado pelo próprio Villa-Lobos como um “ponto de partida” para explorações estéticas maiores.

O Chôros nº1 (foi) escrito propositadamente como se fosse uma produção instintiva desses tipos musicais populares, para servir de simple (sic) ponto de partida e alargarse (sic) proporcionalmente, mais tarde, na forma, na técnica, na estrutura, na classe e nos casos psicológicos que encerram todos esses gêneros de música. (in VILLA-LOBOS, 2014, p.XXII)

Sidney Molina relembra o aparecimento do Chôros nº1 em um álbum do influente violonista inglês Julian Bream que seria dedicado à música espanhola. O que mais chama a atenção de Molina é a abordagem “espanholada”, atribuída ao fato de o título do fonograma ser intitulado Popular Classics for the Spanish Guitar. O próprio Molina caracteriza a performance como “não muito convincente” (MOLINA, 2006, p.166).

Como apontado na introdução deste capítulo a maioria das interpretações do Chôros nº1 possuem em comum, principalmente, o fetichismo pelo texto. Provavelmente a falta de uma

18 “contienen, al mismo tempo, formulas de sorprendente eficácia para el desarrollo de la técnica de ambas manos y bellezas musicales ‘desinteresadas’, sin fin pedagógico, valores estéticos permanentes de obras de concierto” 127 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. gravação feita com mais profundidade e a falta de uma gravação de alguém como Segóvia, que era próximo a Villa-Lobos, tenham relegado a peça ao espaço do Cânone reservado ao “exotismo”19.

Ainda que a narrativa criada por Villa-Lobos para a música faça algum sentido, a possibilidade de abrir uma interpretação mais profunda do Chôros nº1 se torna altamente convidativa para nós. A pergunta não seria “como interpretar o Chôros nº1 a partir de uma estética villalobiana?” mas partir da própria natureza da música, que Villa-Lobos atribuiu aos “tipos musicais populares” de sua época: como seria interpretar o Chôros nº1 sob o olhar dos “tipos musicais populares” de nossa época? Seria possível trazer esta peça para um lugar diferente dentro do cânone violonístico?

4 - A construção de uma nova interpretação

O processo de elaboração20 de uma interpretação criativa do Chôros nº1 foi feito junto com o violonista, compositor e arranjador Lucas Telles21, em três longos e profícuos encontros. As decisões conceituais que nortearam a elaboração da interpretação foram tomadas na primeira reunião. Podemos separar essas decisões em dois tipos: as de abordagem; e as de escolha dos materiais. O objetivo era atingir um resultado interpretativo que, por um lado, considerasse a contextualização histórica do compositor e de sua música e, ao mesmo tempo, pudesse revelar as potencialidades da obra, na tentativa de escapar da perpetuação do Villa-Lobos estereotipado, mas que não incorresse no fetiche textual/acadêmico apontado pelos autores citados neste trabalho.

A esse respeito, a primeira possibilidade de trabalho que Lucas apontou foi realizar uma abordagem que seguisse a tradição de interpretação dos performers que são referência no

19 Na verdade, até mesmo em obras que são oriundas das práticas dos músicos populares, como é o caso de Sons de Carrilhões e várias outras de João Pernambuco, quando gravadas com base nas transcrições de Turíbio Santos ou Dilermando Reis. É raro encontrar uma versão que tenha uma visão realmente original do intérprete (cabe mencionar as versões de Carlos Barbosa-Lima e de Flavio Apro). 20 Nesta seção do capítulo o primeiro coautor tomou a liberdade de utilizar a referência na primeira pessoa. 21 Tendo em vista minha escassa experiência nas práticas interpretativas da música popular, convidei o violonista e arranjador Lucas Teles para colaborar no processo de interpretação do Choros n1. Sua participação foi fundamental para traduzir, no instrumento, as minhas ideias em relação a uma abordagem mais criativa da obra. Atualmente Lucas Teles é um dos integrantes do grupo Toca de Tatu tendo recebido vários prêmios como arranjador e também violonista. Detem um profundo conhecimento na linguagem do choro, tendo frequentado diversos cursos e rodas de choro tradicionais da cidade. Além disso possui uma sólida formação acadêmica mais tradicional, frutos de seus estudos de graduação e mestrado na Escola de Música da UFMG. 128 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. nicho do violão popular brasileiro (que depois eu vim a chamar como “performance informada”). Lucas me perguntou “você quer que ela esteja dentro do ambiente do choro? Porque isso pode limitar um pouco, mas abre muitas brechas também.” Ele apontou que vários aspectos da peça poderiam ser “transformados”, expandindo harmonias (por inversão de acordes ou rearmonizações), alterando melodias e adicionando ornamentações e baixarias, mas que ainda “seria um choro, de certa forma”.

A outra opção, sugerida por Lucas: “podemos distorcer ela totalmente, então terá menos a ver com o metier violonístico e mais até com o pensamento composicional de arranjador.” Ele cita então, como exemplo, os arranjos do músico Cyro Pereira que, até então, era um músico totalmente desconhecido para mim. Ele menciona, também, um arranjo para cordas do “Chôro Negro”, canção de . De acordo com Lucas, Pereira dá um tratamento orquestral para essa música, “como se fosse um movimento de uma sinfonia”, mas ainda mantendo o ambiente original da canção na exposição do tema original. Lucas prossegue, “atualmente eu vejo na prática de arranjo, de uma forma geral, que eles deturpam mais. Recriam mesmo a música a ponto de ter um momento em que não há mais conexão com o original em uma primeira escuta”.

Uma vez que meu objetivo era não apenas experimentar uma nova interpretação, mas, também, escapar do estereótipo do Brazilian Guitar Music, foi quase imediata minha adesão à segunda abordagem. Entretanto, a última fala do Lucas me conscientizou para possíveis questionamentos acerca do tipo de resultado interpretativo que estaria sendo gerado. Essa questão será abordada ao final do trabalho.

A próxima decisão que tomamos foi a de manter o esquema formal da música, um típico rondó tradicional do choro (ABACA). Inicialmente nossa ideia era de que a cada repetição da parte A fosse oferecida uma nova “roupagem”, como uma espécie de “evolução histórica” do gênero no país. A manutenção da forma rondó nos ajudaria a trabalhar com essas roupagens e com a elaboração individual de cada uma delas. Entretanto, o próprio desenvolvimento do trabalho impôs um outro caminho.

129 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Uma vez que nossas interações com a música passaram a desviar demais do resultado sonoro comumente conhecido, preferimos nos focar no grupo inicial de três notas, e que na partitura estão sob sinal de fermata possuem fermatas.

Figura 1 - Chôros nº1: grupo inicial de três notas com fermatas.

Esse material serviu de elemento unificador, relembrando o ponto do qual partimos (a música como lembrávamos), ao mesmo tempo que nos possibilitou oferecer novas roupagens sem sobrecarregar com novas informações.

A primeira exposição desse tema é quase literal. Decidimos manter as fermatas, mas adicionamos apojaturas antes de cada nota em timbre metálico, em contraste com as interpretações que executam essa passagem de forma livre e dramática. Optamos por enfatizar um caráter mais jocoso e brejeiro do choro.

Figura 2 - Grupo inicial de três notas com apojaturas acrescentadas na nova interpretação.

Nas próximas reexposições, esse motivo de três notas aparecerá retrabalhado. Na primeira reexposição (Figura 3) as apojaturas se tornam intervalos harmônicos de segundas menores, aproveitando as cordas soltas do instrumento. Já na segunda reexposição (Figura 4) utilizamos os harmônicos artificiais para apresentar o material.

130 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Figura 3 - Grupo inicial de três notas com intervalos harmônicos de segundas menores, aproveitando as cordas soltas do violão.

Figura 4 - Motivo inicial reinterpretado em harmônicos naturais.

Tendo estabelecido esse material como o principal unificador da interpretação, passamos a escolher a abordagem que usaríamos no desenvolvimento de cada seção.

Na parte B pensamos em desenvolver a ideia de referenciar os 12 Estudos de Villa-Lobos, principalmente texturas e idiomatismos que são paradigmáticos dentro da literatura violonística. Portanto, esta parte do processo se aproximou mais de um processo composicional do que a primeira (uma maior discussão a respeito disso será realizada nos comentários finais). Nesta parte, o objetivo foi remeter a dois aspectos da obra villalobiana, tanto o lado nacional, quanto a sua faceta universal.

Selecionamos alguns dos 12 Estudos de Villa-Lobos que gostaríamos de referenciar ou que achávamos importantes, para tanto foram escolhidos os de números 1, 5 e 12. O Estudo 5, explora o tratamento polifônico do instrumento. Enquanto uma melodia é intercalada nas primas e nos bordões, há um ostinato rítmico que se movimenta melodicamente (Figura 5).

131 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Figura 5 - Compassos iniciais do Estudo 5 apresentando o ostinato e a textura polifônica.

Utilizando essa textura do Estudo 5 como inspiração, procedemos à adaptação da melodia da parte B do Chôros nº1. Lucas indicou que, em casos como este, um procedimento que poderia ser aplicado é a seleção de notas importantes da melodia, escolhidas de acordo com o perfil melódico (Figura 6).

Figura 6 - Início da parte B do Chôros nº1, de Heitor Villa-Lobos. As notas marcadas aparecerão como melodia na nossa interpretação.

O principal objetivo era remeter às texturas e idiomatismos criados por Villa-Lobos, portanto não consideramos manter a estrutura harmônica da seção e aproveitamos a quinta corda solta (Lá) como um pedal. Assim encaixamos a referência à melodia do Chôros nº1 na textura. (Figura 7)

132 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Figura 7 - Nossa interpretação do Chôros nº1, no quadro verde referência ao Estudo 5; os quadros vermelhos referenciam a melodia da parte B dos Chôros nº1; o quadro azul no exemplo remete ao padrão de arpejo do Estudo 1 (ver Figura 8).

Figura 8 - Padrão de arpejo do Estudo 1 que será referenciada na nossa interpretação.

Outro idiomatismo utilizado por Villa-Lobos, e referenciado por nós, é a escala22 do Estudo 12 (Figura 9) que utiliza um padrão de três notas por corda, sendo uma delas uma corda solta.

Figura 9 - Passagem escalar do Estudo 12 que será referenciada em nossa interpretação.

22 Assim como no Estudo 1, mesmo que o material musical não corresponda a uma escala, a digitação da mão direita atua como se fosse. 133 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Alteramos os agrupamentos de 3 notas (original no Estudo 12) para agrupamentos alternados de 3 e 2 notas como se pode ver no quadro laranja da figura abaixo (Figura 10).

Figura 10 - Elementos do Estudo 1 (ver Figura 8) no bloco azul e do Estudo 12 no bloco laranja (ver figura 9) empregados na nossa interpretação do Chôros nº 1.

Na parte C (Figura 11), optamos por fazer uma referência às influências francesas e impressionistas na obra de Villa-Lobos, que foi onde se originaram as críticas de Cocteau. Em um primeiro momento, optamos por retrabalhar a harmonia por meio de procedimentos ligados ao “impressionismo”.

Figura 11 - Compassos iniciais da parte C original do Chôros nº1, de Heitor Villa-Lobos.

Aproveitamos o motivo dos blocos de acordes para criar uma textura coral. Para remeter ao impressionismo, Lucas criou conduções de vozes que não se resolvem tradicionalmente, acordes ambíguos que dissipem o polo tonal etc. A melodia foi, quase literalmente, citada. Foram apenas feitas pequenas adaptações rítmicas para criar uma sensação de maior fluidez (Figura 12).

134 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Figura 12 - Início da reinterpretação da parte C contendo a melodia original e condução harmônica impressionista.

Em um segundo momento, esta seção se transforma em uma valsa francesa, com a inclusão de um compasso binário como perturbação (Figura 13). As harmonias fazem referência mais clara às do original, ainda que procedimentos harmônicos semelhantes aos usados na Parte A tenham sido empregados.

Figura 13 - Reinterpretação da parte C com citação da melodia e rítmica remetendo a uma valsa francesa.

Concluída a interpretação e após tantas intervenções, decidimos atribuir um novo subtítulo à peça: Chôros nº1 (Nem tão típico assim). Essa adição coloquial é uma referência à anotação que aparece em várias edições e manuscritos da música: Chôros nº1 (Typico).

5 - Comentários Finais

Temos consciência de que este tipo de abordagem, onde o performer/intérprete assume um papel criativo, ainda é recebida com ressalvas no meio musical mais tradicional - e até mesmo

135 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. nos meios acadêmicos. Sabendo do funcionamento das práticas canônicas, trataremos de responder alguns possíveis questionamentos oriundos deste experimento.

O primeiro é o questionamento acerca do tipo de resultado interpretativo gerado com esta abordagem. Assim como Goehr fala da necessidade de criar conceitos fixos para que a música se legitime como ciência, a tendência a querer encaixar o resultado interpretativo em uma categoria também é um reflexo da ânsia positivista que ainda aflige nossa área. Seria um “arranjo”? Seria um “tema com variações”? Antes de apontar para uma possível solução a esse dilema, cabe apontar que esse tipo de prática não é algo novo. Intervenções em partituras já foram extremamente comuns no século XVIII ou XIX e, como aponta PEREIRA (2011, p.4), foram sendo deixadas de lado quanto mais a figura do compositor e o fetiche pelo texto foi sendo estabelecido.

É, então, realmente importante categorizar? Acreditamos que o mais importante é admitir que se trata de uma interpretação acima de tudo. A mudança foi permitir aos intérpretes apresentar relações que fossem além da “materialidade” do que está escrito na partitura e, portanto, se fez necessária a intervenção naquilo que era prescrito nessa mídia.

Um segundo questionamento seria: por que, então, não seguir o caminho da tradição do choro? Esse questionamento tem um ponto extremamente válido, uma vez que dialoga diretamente com a natureza ontológica da peça. Entretanto, se baseia, também, na esperança de um maior respeito ao texto. De fato, as relações estruturais seriam mais respeitadas, mas isso só facilitaria o reconhecimento da música original e não seria sinônimo de fidelidade ao texto.

Indaguei ao Lucas sobre quais aspectos seriam necessários para construir uma interpretação “informada” do Chôros nº1. A resposta de Lucas aponta para uma forma diferente de se relacionar com a música. Não se trata de resolver passagens propostas pela partitura, mas de dominar os materiais propostos (harmonia, melodia e, num momento final, o que Lucas chamou de “arranjo”). Dominar não apenas teoricamente, no nível analítico, mas criar um leque de opções instrumentais para tocar a música. Invariavelmente essas ferramentas libertariam o intérprete das amarras da partitura e levariam a alterações de notas, ritmos etc. Em última análise, a diferença deste experimento com o nosso é apenas de grau e não,

136 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144. necessariamente, de fundamento (o que não quer dizer que não seja tão válido ou mesmo desafiador, pois entender a linguagem de um gênero é algo que exige uma disciplinada dedicação).

À guisa de conclusão queremos passar nossa impressão sobre a experiência proposta. O processo de elaboração desta interpretação se mostrou extremamente frutífero em vários níveis. Em um primeiro momento, tentar inquirir a peça com um olhar contemporâneo nos levou a buscar uma interpretação que exigiu uma expansão do nosso conhecimento e, portanto, nos tirou da zona de conforto. Isso nos possibilitou buscar a colaboração do Lucas Telles. Costuma-se pensar que o processo de elaboração de uma interpretação em um instrumento solo como um processo solitário. Neste caso, não apenas foi possível colaborar com alguém como, de certa forma, o processo nos impôs ter um domínio maior (teórico e prático) do material original.

Um desdobramento dessa parceria foi a criação de novas demandas técnico-musicais para a interpretação da música. O Chôros nº1, como já mencionado anteriormente, dialoga diretamente com a prática instrumental dos chorões do início do século e sua demanda técnica é semelhante à de várias dessas peças. Com a nova roupagem oferecida tive que passar por um novo processo de adaptação técnica. Primeiro porque muitos dos procedimentos instrumentais são oriundos da prática do Lucas, que é resultado direto de toda a sua formação e atuação profissional. Isso foi mais sensível no que diz respeito ao tratamento harmônico. Lucas foi capaz de fornecer novos coloridos harmônicos utilizando fôrmas de acordes ainda extremamente idiomáticas.

Portanto, pode-se notar que esse tipo de abordagem produz ganhos não apenas do ponto de vista intelectual- por meio da troca de ideias e da imersão em processos que são pouco habituais para o intérprete tradicional na MAO -, mas também da técnica instrumental.

137 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Referências de texto

1. ALCÁZAR, Miguel de (ed.). (1989.) The Segóvia-Ponce letters. Columbus: Editions Orphee.

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3. CHIANTORE, Luca. (2017) “Undisciplining music: artistic research and historiographic activism”. Ímpar - Online academic journal for artistic research in music. V.1, N.2: p.3- 21. Disponível em: https://proa.ua.pt/index.php/impar/article/view/775

4. COOK, Nicholas. (2001) “Between process and product: Music and/as performance”. Online, v. 7, n. 2. Disponível em: https://mtosmt.org/issues/mto.01.7.2/mto.01.7.2.cook.html

5. GOEHR, Lydia. (2007) The imaginary museum of musical Works: an essay in the philosophy of music. Oxford: Oxford University Press.

6. GUÉRIOS, Paulo Renato. (2003) “Heitor Villa-Lobos e o ambiente parisiense: convertendo- se em um músico brasileiro”. Mana 9. N.1:p.81-108.

7. HENNION, Antoine. (2011) “Music and Mediation: Toward a New Sociology of Music”. In: The Cultural Study of Music: a critical introduction, 2nd edition. Ed. by Clayton Martin Clayton, Trevor Herbert, and Richard Middleton: Routledge, p.249-260, 2011.

8. MOLINA JÚNIOR, Sidney José. (2005) “Performance musical como desleitura”. Anais do décimo quinto congresso da ANPPOM. p.1175-1181.

9. MOLINA JÚNIOR, Sidney José. (2006) O violão na era do disco: interpretação e desleitura na arte de Julian Bream. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

10. PEREIRA, Flavia Vieira. (2011) As práticas de reelaboração musical. Tese (Doutorado em Musicologia) Escola de Comunição e artes, Universidade de São Paulo.

11. SMALL, Christopher. (1998) Musicking: the meanings of performing and listening. Middletown, Connecticut, EUA: Wesleyan University Press

12. TARUSKIN, Richard. (1996) “Tradition and authority”. In: Text & act: essays on music and performance. Oxford: Oxford University Press, p.173-201.

13. WEBER, William. (2001) “The history of musical canon.” In Rethinking Music. Ed. by Nicholas Cook, and Mark Everist. Oxford: Oxford University Press, p.336-355.

14. ZANON, Fábio. (2006) “Música como profissão”. In: Performance e interpretação musical: uma prática interdisciplinar. Org. de Sônia Albano de Lima. São Paulo: Musa Editora, p.102-127

138 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Referências de partituras

1. VILLA-LOBOS, Heitor. (2014) Chôros nº1, Simples e Valsa concerto nº2 op. 8. Critical edition by Fréderic Zigante. Paris: Editions Max Eschig.

2. VILLA-LOBOS, Heitor. (1990) Collected Works for solo guitar. Introduction by Frederik Noad. Paris: Editions Max Eschig

Referências Online

1. SANDOW, Greg. Blog pessoal. Disponível em: http://gregsandow.com/my-blog/ - último acesso em 15/11/2019.

Notas sobre os autores

Marco Teruel Castellon tem construído uma versátil carreira musical como intérprete e pesquisador. Como intérprete, tem aparecido tanto como solista quanto como camerista no Brasil e nos Estados Unidos, tocando repertórios de períodos e estilos diversos (principalmente a Música Antiga, Música Contemporânea e Música Brasileira). As colaborações incluem: Ensemble Derivasons (Brasil), Nuevas Emisiones Sonoras (Mendoza/Argentina), a cantora Hevelyn Costa (Brasil), o violoncelista Pedro Huff (Brasil), USC Classical Guitar Ensemble (Los Angeles/EUA), USC Thornton Baroque Sinfonia (Los Angeles/EUA), L.A. Camerata (Los Angeles/EUA), Rotem Gilbert (Israel), Canção das Iluminuras (Brasil). Sua pesquisa é devotada ao estudo da identidade e estereótipos da música violonística brasileira, desenvolvendo uma pesquisa que cruza musicologia, performance e estudos socioculturais. Ele procura não apenas desenvolver suas próprias interpretações deste repertório, mas também aprimorar a experiência de concertos do público. Marco é Bacharel em Música (2012) e Mestre em Música (2017) pela Escola de Música da UFMG, e Master of Music (2014) pela USC Thornton School of Music (Los Angeles/EUA) onde iniciou seu Doutorado em 2017 antes de transferi-lo para a Escola de Música da UFMG, onde é bolsista CAPES/DS.

Ana Cláudia de Assis dedica-se à pesquisa e divulgação da música contemporânea, sendo responsável pela estréia de obras escritas por renomados compositores como Jonathan Harvey, Toru Takemitsu, Almeida Prado, César Guerra-Peixe, Eunice Katunda, Hans-Joachim Koellreutter, Dante Grela, Sílvio Ferraz, João Pedro Oliveira, Roberto Victorio, Bruce Reiprich, Liviu Marinescu, dentre outros. Atualmente é pianista do “Grupo Oficina Instrumental Música Viva” (Belo Horizonte), criado exclusivamente com o intuito de divulgar, por meio de concertos, seminários e gravações, a música contemporânea nacional e estrangeira. Dentre suas principais apresentações como intérprete destacam-se: Concertos em Bienais da Música Brasileira; Festival Brasilianischer Musik (Alemanha); Encontros de Compositores e Intérpretes Latino-Americanos (Brasil); Festivais de Outono (Portugal); Rencontre Internationale de Musiques Electroacoustiques (Mónaco); Ai-Maako Festival Internacional de Música Electroacústica (Chile), Visiones Sonoras (Mexico), Skammdegi AIR Award (Islândia).

139 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Gravou os CDs: O Som de Almeida Prado; Panorâmica da Criação Musical em Belo Horizonte; Música Dodecafônica para Piano de César Guerra-Peixe; Música de Câmara de Guilherme Nascimento; Entre o Ar e a Perfeição: Obras de João Pedro Oliveira; Mosaic: Obras de João Pedro Oliveira; Sonoridades: peças contemporâneas para piano; Vertentes: música para piano. Doutora em História e professora associada da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolve projetos de pesquisa onde busca conciliar a prática musicológica com a prática interpretativa. Tem publicado artigos em periódicos nacionais e internacionais.

140 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

Anexo - Partitura da interpretação do Chôros nº1 por Lucas Telles e Marco Teruel

141 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

142 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

143 CASTELLON, Marco Ernesto Teruel; ASSIS, Ana Cláudia. 2020. “Nem tão típico assim”: subvertendo o cânone no Chôros nº1, para violão solo, de Heitor Villa-Lobos. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.117-144.

144 DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro

Style and idiomatic writing in five works by guitarist-composer Geraldo Ribeiro

Evandro Dotto Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Fernando Araújo Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: O violonista-compositor Geraldo Ribeiro estudou composição com o compositor nacionalista Ascentino Theodoro Nogueira e, apesar de ter escrito centenas de composições, teve destaque no cenário musical unicamente como instrumentista. Poucas de suas obras foram publicadas e somente cinco delas, lançadas pela Ricordi Brasileira, estão comercialmente disponíveis atualmente. Este artigo investiga o idiomatismo instrumental e aspectos do estilo composicional como suporte para a performance dessas obras, que são: Canção (1971), Fantasia (Sobre temas folclóricos gaúchos) (1973), Ponteio (1971), Seresta Nº 1 (1971) e Toada (1971). Por meio de uma análise comparativa das obras, apontaremos elementos em comum entre elas e a escola nacionalista de Camargo Guarnieri, à qual Theodoro pertenceu, destacando também a influência do virtuosismo de Ribeiro na escrita idiomática das peças. Palavras-chave: violonista-compositor Geraldo Ribeiro; obras para violão solo de Geraldo Ribeiro; estilo nacionalista de Camargo Guarnieri; composição e idiomatismo no violão. Abstract: The guitarist and composer Geraldo Ribeiro studied composition with nationalist composer Ascentino Theodoro Nogueira and, despite having written hundreds of compositions, he is known in the music scene solely as an instrumentalist. Few of his works have been published, and only five, released by Ricordi Brasileira, are currently commercially available. In this article, we investigate aspects of idiomatic guitar writing and compositional style in these pieces with a view to providing elements for an informed performance of the works. The pieces are: Canção (Song, 1971), Fantasia (Sobre temas folclóricos gaúchos) (Fantasy [On gaucho folk songs], 1973), Ponteio (1971), Seresta Nº 1 (1971) and Toada (1971). Through a comparative analysis of the works, we will point out elements they have in common with Camargo Guarnieri's nationalist school, to which Theodoro Nogueira belonged, and also highlight the influence of Ribeiro's virtuosity on the idiomatic writing of the pieces. Keywords: guitarist-composer Geraldo Ribeiro; Geraldo Ribeiro’s solo guitar works; Guarnieri’s nationalist style; composition and idiomatic writing for the guitar.

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DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

1 – Introdução

Geraldo Ribeiro nasceu em 17 de junho de 1939 em Mundo Novo, Bahia. Violonista, compositor e arranjador, foi também pioneiro no ensino do violão na universidade brasileira. Segundo o violonista Gilson ANTUNES (2014), o interesse pelo violão surgiu quando o violonista-compositor ouviu um disco do compositor mineiro Mozart Bicalho, que fora comprado pelo seu pai junto com uma vitrola. Sua iniciação no instrumento se deu de forma autodidata e somente em 1952, quando se mudou para Assis, interior de São Paulo, teve as primeiras aulas de teoria, solfejo e instrumento, com o maestro de banda Augusto Matias.

Em 1955, ano em que se mudou para a capital do estado de São Paulo, esteve sob a orientação de Oscar Magalhães Guerra, professor requisitado na época (ANTUNES, 2014). Por volta de 1956, com a intenção de aprimorar seus estudos, Geraldo Ribeiro foi apresentado, por intermédio de Bóris Yankoff, a Ascentino Theodoro Nogueira, violinista que trabalhava como orquestrador da Rádio Gazeta, com quem passou a ter aulas de harmonia e composição (FUJIYAMA, 2016, p.141). Esse contato gerou uma amizade entre os dois e proporcionou frutos para o repertório do violão e da viola caipira por parte de Theodoro Nogueira, que compôs obras que se tornaram um modelo de inspiração para Geraldo Ribeiro, como veremos nesta pesquisa.

Em 1966 e 1971 o violonista gravou dois LPs dedicados a composições de Ascentino Theodoro Nogueira. Ainda em 1971, gravou um LP com transcrições de obras de Bach para viola caipira feitas por Nogueira. O primeiro registro fonográfico de Geraldo Ribeiro, no entanto, havia contemplado suas próprias transcrições, cujo valor é ressaltado pelo violonista Fábio ZANON (2007): “suas transcrições, edições e gravações de obras de Garoto, Armando Neves e Antônio Rago já são o suficiente para mostrar sua importância”. Além desses trabalhos, transcreveu também obras de Ernesto Nazareth — que foram gravadas em seu primeiro disco (1959) — e outras que não foram ainda publicadas, como, por exemplo, os 24 Caprichos de Pagannini (ZANON, 2007). Ressalta-se, também, seu pioneirismo no ensino de violão no curso superior de música da Universidade de Brasília (UNB), no período de 1966 a 1968 (ANTUNES, 2014).

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DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

A importância deste violonista, ainda que pouco reconhecida, está registrada em trabalhos acadêmicos de Andréa Paula Picherzky (2004) (Armando Neves: Choro no violão paulista) e, mais recentemente, de Laís Domingues Fujiyama (2018) (12 Improvisos para violão de Theodoro Nogueira: Aspectos composicionais e idiomatismo técnico violonístico). Este último apresenta aspectos composicionais do estilo nacionalista em geral e de Nogueira em particular, alguns dos quais são comuns à obra de Geraldo, uma vez que ele estudou e teve contato próximo com Nogueira. Outra breve menção é feita por Mayara AMARAL (2017, p.102) em sua pesquisa sobre A mulher compositora e o violão na década de 1970, na qual aponta as principais contribuições do instrumentista, destacando seus arranjos e gravações.

Sua atuação como intérprete ficou registrada em discos e em concertos diversos, mas a maior parte de sua produção como compositor encontra-se ainda desconhecida do público em geral, apesar de seu catálogo de composições contar por volta de 280 itens para diversas formações (ANTUNES, 2014). Destaca-se que a maioria dessas obras foi escrita para violão solo, embora tenhamos encontrado apenas cinco delas publicadas e disponíveis comercialmente atualmente. Lançadas pela editora Ricordi Brasileira entre os anos de 1971 e 1973, são elas: Seresta Nº 1 (Brasília, julho de 1971), de uma série de quatro peças, Canção (São Paulo, 21/07/1971), Ponteio (1971), Toada (1971) e Fantasia (Sobre temas folclóricos gaúchos) (Brasília, março de 1973).

O contato próximo e prolongado com Theodoro Nogueira, compositor que pertenceu à escola nacionalista de Camargo Guarnieri, nos leva a crer que essas cinco obras de Geraldo Ribeiro contenham tanto aspectos estilísticos dessa escola quanto elementos característicos das composições de Theodoro Nogueira. Dessa forma, este trabalho consiste na identificação desses aspectos nacionalistas a partir de uma análise imanente e estilística, buscando aspectos composicionais em comum entre esses compositores com base nos trabalhos de VERHALEEN (2001), PEREIRA (2011), AMARAL (2017) e FUJIYAMA (2018), que tratam fundamentalmente de obras da escola guarnieriana de composição. Além disso, abordaremos também elementos relacionados ao idiomatismo instrumental, que consideramos estar intrinsicamente relacionado ao virtuosismo e às particularidades da técnica violonística de Ribeiro. A identificação desses elementos visa uma melhor compreensão do grau de adequação das indicações técnicas contidas na partitura ao conteúdo musical e estilístico, o

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DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

que nos permite apresentar, em alguns casos, sugestões que podem ser mais eficazes para a performance das obras.

2 – Aspectos Nacionalistas

Nesta seção serão discutidos aspectos composicionais presentes nas cinco obras de Geraldo Ribeiro aqui investigadas que tenham relação com a escola nacionalista de Camargo Guarnieri e com o estilo composicional de Ascentino Theodoro Nogueira. Apesar de Theodoro Nogueira ser considerado um compositor da escola guarnieriana, sua obra apresenta características individuais bastante distintas, o que também pode ser observado na produção de outros compositores desta mesma escola, como observa Pereira:

[…] nos anos cinquenta, Theodoro Nogueira, Osvaldo Lacerda e Sérgio Oliveira Vasconcelos Correia iniciam suas produções para o violão e, apesar de poéticas distintas e das individualidades estilísticas, essas obras apresentavam características em comum com as obras de Guarnieri – como o rigor contrapontístico e formal e o mesmo apego à estética marioandradiana. PEREIRA (2011, p.294)

A primeira característica das obras de Ribeiro que remete à escola guarnieriana são os próprios títulos das obras. Para os compositores nacionalistas o folclore não deveria ser citado de forma direta, mas sim incorporado à composição de forma natural. VERHAALEN (2001), entretanto, aponta um dos poucos casos em que Guarnieri não segue essa regra: na obra Variações sobre um Tema Nordestino (1953), temas folclóricos são utilizados como principal material composicional, assim como faz Geraldo Ribeiro em Fantasia (Sobre temas folclóricos gaúchos). O termo canção remete a uma melodia cantada (no caso, pelo instrumento), como a Canção Sertaneja (1928) de Guarnieri, na qual “[a] melodia é fluente e sutil. Como o título sugere, um cantor do sertão serviu de fonte de inspiração” (VERHAALEN, 2001, p.88). O título Seresta foi pouco utilizado por Guarnieri, surgindo apenas em um concerto para piano e orquestra de câmara e em uma Seresta para violino e piano. Já Theodoro Nogueira compôs uma série de dez Serestas, quatro delas “compostas em 1959 e estreadas pelos violonistas Antônio Carlos Barbosa Lima e Geraldo Ribeiro” (FUJIYAMA, 2018, p.38). A Seresta Nº 1 de Geraldo Ribeiro faz parte de um ciclo de quatro obras.

Toada e Ponteio são títulos bastante utilizados por Guarnieri em sua obra nacionalista. Segundo VERHAALEN (2001, p.92), “a curta e lírica toada” é “uma das mais antigas formas de

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canto do Brasil”. Ainda sobre ela, Oswald de ANDRADE (apud VERHAALEN, 2001, p.107) acrescenta que “a toada da chamada ‘zona caipira’ dos Estados de São Paulo e Minas Gerais é uma das mais cativantes, devido a sua peculiar nostalgia, terna e amorosa”. Para além do título, também as características citadas por Verhaalen e Andrade são encontradas na Toada de Geraldo Ribeiro. Já os Ponteios de Camargo Guarnieri são, segundo o próprio compositor, “prelúdios que têm caráter clara e definitivamente brasileiro” (apud VERHAALEN, 2001, p.128). Canção, Seresta Nº 1, Toada e Ponteio são pequenas obras de duas páginas cada que, por suas estruturas, podem ser correlacionadas com as composições de Camargo Guarnieri, conforme descritas por PEREIRA (2011, p.22):

[...] no âmbito da pequena forma, o compositor produziu peças ou ciclos como Ponteios, Choros, Toada Sertaneja, Lundu, que aludem ao domínio da música rural ou novecentista brasileira. Mesmo assim, nesses casos, o título trata muito mais do caráter do que da forma, já que estamos falando – em sua maioria – de pequenas peças monotemáticas, em forma binária ou ternária.

As peças monotemáticas Canção, Seresta Nº 1 e Toada de Ribeiro são estruturadas e desenvolvidas como o Ponteio e os Estudos para violão de Camargo Guarnieri. São compostas em duas partes: uma seção mais longa (A), com a exposição do tema e o desenvolvimento, seguida por uma seção mais curta (A’), na qual acontece a reexposição (PEREIRA, 2001, p.184). Em algumas reexposições, Ribeiro conserva o registro de alturas, enquanto em outras, além de introduzir variações, ele muda o registro e explora outras possibilidades do violão (Figura 1).

Figura 1: Diferentes formas de reexposição apresentada por Geraldo em Canção e Seresta Nº 1.

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DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

Como as Valsas para piano de Guarnieri, o Ponteio de Geraldo Ribeiro é estruturado em forma ternária (A-B-A), dividindo-se em uma seção (A) com andamento rápido (Allegro) e outra seção (B), lenta, que contrasta com a primeira (A). Já a Fantasia (Sobre temas folclóricos gaúchos) não segue uma forma específica, mas contém uma introdução com caráter contrapontístico e encerra com uma cadência de engano, duas características da escola nacionalista encontradas na Valsa Choro Nº 1 para violão de Guarnieri (PEREIRA, 2011, p.185). Outra característica dessa escola é a economia de material por meio do uso do desenvolvimento temático: o primeiro tema é apresentado e logo desenvolvido de várias formas e, mesmo após a apresentação do segundo tema, é reexposto de maneira diferente. Esse reaproveitamento foi um recurso explorado por Theodoro Nogueira, compositor que, segundo FUJIYAMA (2018, p.104), utilizou vários mecanismos para desenvolver o tema através de variações. Na Figura 2 vemos como Geraldo Ribeiro emprega esse recurso, trabalhando o primeiro tema da Fantasia de formas diferentes.

Figura 2: Exposição e reexposição do primeiro tema da Fantasia (Prenda Minha).

É possível notar na primeira variação o uso de terças paralelas, também bastante utilizadas no Ponteio. Esse recurso foi bastante explorado por Nogueira em suas composições, pois suas inspirações eram baseadas no canto sertanejo e na viola caipira do interior de São Paulo. A violonista Laís Fujiyama nota que a preferência por esse intervalo paralelo de terça é recorrente nos 12 Improvisos, sendo que os intervalos de terça e quarta justapostos são explicados por Geraldo, em entrevista, da seguinte forma: “ele me disse [Theodoro Nogueira] que a quarta é a mesma que a terça, só que desafinada, para dar a atmosfera do povo do interior cantando, porque quando eles cantam em terça às vezes desafinam cantando em

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quarta” (FUJYIAMA, 2018, p.98). Outra particularidade de Nogueira que também encontramos nas obras de Geraldo Ribeiro é a mudança de textura, usada como um recurso de contraste que, além de expandir a tessitura, proporciona um enriquecimento harmônico (FUJYIAMA, 2018, p.97). Essas mudanças de textura são encontradas nos dois exemplos da Figura 3 e também na Fantasia de Ribeiro.

Figura 3: Mudanças de textura em Ponteio e Toada.

As escolhas formais e o desenvolvimento motívico são procedimentos advindos da formação neoclássica de Camargo Guarnieri, assim como as melodias com pequenos motivos desenvolvidos à exaustão (PEREIRA, 2001, p.185). Seus desenvolvimentos melódicos são caracterizados pelas alterações rítmicas, muitas vezes com intenção de remeter a um caráter seresteiro. Mencionadas como “variações rítmicas” por FUJYIAMA (2018) ou “inflexões melódicas” por AMARAL (2017), as quiálteras, vistas na Figura 4 em obras de Nogueira e de Eunice Katunda, são um recurso de desenvolvimento melódico recorrente encontrado também nas obras de Ribeiro.

Figura 4: Uso de quiálteras em Improviso Nº 12 de Theodoro Nogueira (FUJYIAMA, 2018, p.101) e no Prelúdio de Eunice Katunda (AMARAL, 2017, p.67).

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DOTTO, Evandro; ARAÚJO, Fernando. (2020). Estilo e idiomatismo em cinco obras do violonista-compositor Geraldo Ribeiro (1971-1973). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.145-164.

Geraldo Ribeiro utiliza esses recursos para um enriquecimento rítmico, seja para mostrar o caráter seresteiro mencionado acima ou para aumentar a ênfase no movimento melódico, que muitas vezes culmina na nota mais aguda, que representa o clímax da passagem, como vemos no Prelúdio de Eunice Katunda (Figura 4 acima) e em obras de Ribeiro (Figura 5). Esse artifício é encontrado normalmente nas partes centrais das obras Fantasia, Seresta Nº 1 e Canção, onde o desenvolvimento melódico é explorado ao máximo.

Figura 5: Quiálteras empregadas como recurso de desenvolvimento melódico

Estão presentes, novamente, caracteríscas de Nogueira na Fantasia, como a utilização de terças paralelas, exploradas com o virtuosismo caracterísctico do violonista (Figura 5 acima). A preocupação com a melodia e seu desenrolar muitas vezes faz com que ela ultrapasse o limite da barra de compasso. Como constatado por Mayara AMARAL (2017), nas obras de caráter nacionalista esse desenrolar da melodia e a maior liberdade rítmica frequentemente levam à utilização de diferentes fórmulas de compasso. Esse mesmo fator é colocado em evidência em todos os Improvisos de Theodoro, que assim o justifica: “a mudança da fórmula de compasso […] ajuda no deslocamento melódico/motívico e na divisão de frases e trechos” (apud FUJIYAMA, 2018, p.101). É interessante assinalar que, em todas as cinco obras, Geraldo Ribeiro recorre a mudanças na fórmula de compasso. O exemplo na Figura 6 mostra a alternância de compassos em Canção.

Figura 6: Alternação de fórmula de compasso em Canção, de Geraldo Ribeiro.

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Sobre o aspecto harmônico, Guarnieri considera que o ritmo brasileiro é forte e as síncopes que ele gera não precisam ser acentuadas pela harmonia. Por isso o compositor recorreu ao uso da polifonia, sendo o contraponto uma característica marcante de suas composições. Essa e outras características da escola guarnieriana são bastante presentes nas obras de Theodoro Nogueira, como aponta FUJIYAMA (2018, p.104):

[…] podemos concluir que há sim uma forte influência de Guarnieri nas peças de Nogueira, como: na economia de material usando o desenvolvimento temático, na harmonia sob o aspecto polifônico (no caso dos Improvisos, sob o aspecto contrapontístico), na estética nacional — aqui mais ambientada na sonoridade do interior paulista pelo recorrente uso de intervalos de terças paralelas — e no uso do contraponto cerrado.

Em maior ou menor grau, é possível identificar o uso do contraponto e o tratamento polifônico da harmonia nas cinco obras de Geraldo Ribeiro aqui abordadas. Assim como no Ponteio N. 1 de Adelaide Pereira, a harmonia é construída em decorrência da melodia, como uma “roupagem” para ela (AMARAL, 2017, p.56), ou seja — como observa PEREIRA (2001, p.75) sobre Guarnieri —, é “o encadeamento linear do discurso que conduz a harmonia”.

Em Guarnieri, essa maneira incomum de utilizar a polifonia e a harmonia provoca uma expansão da tonalidade que a faz se aproximar do atonalismo (PEREIRA, 2011, p.21). Apesar de suas obras para violão se aproximarem dessa linguagem atonal, sua ampliação harmônica também entra no campo da música modal, elemento destacado nas obras da escola nacionalista, como é evidenciado nos 12 Improvisos de Theodoro Nogueira:

Já no que concerne a questão harmônica, podemos afirmar que este ciclo intercala aspectos tonais e modais, considerando a não utilização de trítonos e cadência resolutiva, além da insistência de notas acidentais à armadura (que induzem o ouvinte ao caráter modal). (FUJIYAMA, 2018, p.100).

Essa expansão dos recursos harmônicos, seja pelo uso de procedimentos que levam aos limites da linguagem tonal, seja pelo uso do modalismo, também é encontrada no Ponteio N.1, de Adelaide Pereira (AMARAL, 2018, p.58). Em relação ao emprego desses procedimentos harmônicos nas obras de Geraldo Ribeiro aqui estudadas, não foi encontrada em nenhuma delas melodias que apresentassem o uso de cromatismo como ferramenta de expansão harmônica em direção ao atonalismo. Existe, por outro lado, a presença do modalismo,

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perceptível pelo uso recorrente de “notas acidentais à armadura” mencionado acima. Além disso, percebe-se uma semelhança na aplicação da harmonia como uma “roupagem” para a melodia e, por último, a tendência a evitar o que poderia ser considerado o “senso comum”, como é perceptível na cadência de engano vista na Figura 8, na qual “podemos dizer que a ideia musical é contrária à atividade mecânica no trecho em questão” (PEREIRA, 2001, p.228). A Fantasia se encontra na tonalidade de Ré Maior. Logo após a exposição do primeiro tema, Ribeiro resolve a voz da melodia, mas não a harmonia. Em vez de resolver o trecho com a cadência perfeita, o compositor emprega uma cadência de engano e resolve em Sol com Sétima Maior. Essa ideia remete aos Estudos para violão de Guarnieri (PEREIRA, 2001, p.185) e à imprevisibilidade do sistema tonal nos Improvisos de Nogueira (FUJIYAMA, 2018, p.144).

Figura 8: Resolução da melodia e cadência de engano.

A principal preocupação de Geraldo Ribeiro está em desenvolver o discurso melódico, independente de uma resolução harmônica lógica ou da facilidade técnica. O próprio compositor disse em entrevista que “a técnica tem que estar a serviço da música. Não o contrário” (apud FUJIYAMA, 2018, p.142). Essa afirmação indica o quanto suas obras podem ser complexas técnica e musicalmente, graças a peculiaridades na escrita idiomática relacionadas à sua técnica violonística.

3 - Aspectos idiomáticos e sugestões técnicas

Acreditamos que a presença de elementos nacionalistas nas obras de Geraldo Ribeiro seja, fundamentalmente, resultado do seu contato com Theodoro Nogueira. Diferentemente deste compositor, no entanto, o violonista, além de usar elementos característicos dessa escola em suas obras, também mostra particularidades em sua escrita que guardam relação com sua técnica violonística. Nesta última seção, trazemos à tona uma breve discussão acerca de

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alguns dos elementos musicais explorados e, ainda, sugestões que podem contribuir para a performance das obras.

Segundo PEREIRA (2011, p.222), “o termo idiomatismo se aplica tanto à sonoridade e aos efeitos peculiares do instrumento, quanto a uma escrita funcional para o mesmo”. Assim, os elementos idiomáticos foram divididos em duas categorias, como descreve KREUTZ (2014, p.103): composicional e instrumental. A primeira relaciona-se ao estilo de um compositor ou de uma época, bem como a particularidades de sua escrita, enquanto a segunda trada das possibilidades técnicas e efeitos característicos de cada instrumento.

Na seção anterior discutimos os traços do estilo nacionalista presentes nas obras de Ribeiro, notadamente aspectos do idiomatismo composicional, com destaque para a forma como o compositor emprega a polifonia e o desenvolvimento melódico. A escolha de tonalidades não usuais para o violão também chama a atenção. O próprio compositor afirmou em entrevista: “eu, por exemplo, tenho música em todas as tonalidades” (apud FUJIYAMA, 2018, p.142). A escolha da tonalidade é importante para o aproveitamento de cordas soltas, uma vez que a ressonância entre elas ocorre por simpatia e beneficia a sonoridade harmônica do violão (SCARDUELLI, 2007, p.141). A afirmação de Ribeiro acima e o exemplo de Canção que vemos na Figura 9 demonstram que essa escolha não é sua principal preocupação.

Figura 9: Tonalidade não usual para o violão em Canção.

A harmonia tratada de forma polifônica, com a exploração do contraponto, também está presente nas obras de Geraldo Ribeiro, de forma mais evidente em algumas que em outras. O contraponto é característico nas obras para violão de Theodoro Nogueira (FUJIYAMA, 2018) e Camargo Guarnieri (PEREIRA, 2001). Contudo, pela tendência a gerar dificuldades técnico- mecânicas e de clareza das vozes, a aplicação desse recurso no violão é apontada como um problema particular do instrumento (BATISTUZZO, 2009, p.100). No exemplo a seguir (Figura

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10) vemos algumas dessas dificuldades em Canção: uma pestana na terceira casa que deve ser mantida por dois compassos, combinada com o surgimento de uma nova voz que gera uma série de contrações de mão esquerda (identificadas pela cor verde).

Figura 10: Dificuldades técnicas geradas pelo uso de contraponto em Canção.

Esses elementos são recorrentes nas Valsas Choro para violão de Guarnieri. PEREIRA (2001, p.231) afirma que, para a execução dessa textura, é necessário alto domínio técnico do instrumentista, a fim de dosar a força e aproveitar os momentos de relaxamento. O virtuosismo exigido não é percebido pela maior parte do público, pois não se usa “idiomatismo de efeito” e a sonoridade polifônica do violão é restrita. Sendo assim, é requerida uma escuta atenta e uma performance rigorosa. A exigência técnica para a execução da escrita polifônica pode chegar ao limiar do idiomatismo instrumental, que, segundo Kreutz engloba:

[...] técnicas específicas de execução; possibilidades físicas e mecânicas; procedimentos típicos da escrita/maneirismos; nível de exequibilidade/dificuldade; conhecimento de obras relevantes para o instrumento; recursos expressivos; técnicas estendidas, etc. KREUTZ (2014, p.105)

Para um violonista-compositor, o idiomatismo instrumental está relacionado com sua própria técnica, seja por consequência direta de tocar o violão (BATISTUZZO, 2009, p.75), “seja através de elaborações intuitivas ou espontâneas de eventos musicais diversificados” (PEROTO, 2005, p.2). Há também alguns fatores anatômicos individuais que permitem a realização de algumas passagens difíceis que, eventualmente, podem ser resolvidas de outra forma. Para isso, são propostas digitações que não influenciam no discurso musical, mas que mecanicamente são mais eficazes (WOLFF, 2001).

Os recursos técnicos utilizados com maior frequência por Ribeiro são aberturas e contrações de mão esquerda, pestanas e escalas. As pestanas são os mecanismos mais utilizados pelo violonista-compositor. Em passagens polifônicas, são necessárias para a sustentação ou

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condução das vozes (Figura 11); surgem também como efeito e resultado do movimento melódico, às vezes combinadas com translados (Figura 12).

Figura 11: Pestanas para condução da linha do baixo em Toada.

Figura 12: Sequência de pestanas com translados gerada pelo desenvolvimento melódico na Fantasia.

Presentes na maioria das cinco obras que analisamos, as aberturas e contrações de mão esquerda decorrem, na maioria das vezes, da polifonia, em função da sustentação ou do movimento das vozes (Figura 10 acima). Em alguns casos, o autor explora a abertura ao extremo do limite anatômico, como neste exemplo da Seresta Nº. 1 (Figura13):

Figura 13: Abertura entre os dedos 2 e 4 da mão esquerda em Seresta Nº 1.

As escalas são exploradas por Ribeiro como um recurso de desenvolvimento melódico. Nas seções centrais das peças há frequentemente um aumento no movimento melódico, com acréscimos progressivos de notas que conduzem ao clímax. Nesses pontos o virtuosismo violonístico de Geraldo Ribeiro aflora em passagens de semicolcheias, quintinas e até sextinas em sequência, às vezes com terças paralelas, como mostrado na Figura 5 acima. Apesar da aparente dificuldade técnica do trecho, vemos que a escrita favorece a mecânica do instrumento e proporciona um resultado sonoro bastante eficaz.

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Essa escrita violonística, aliada à indicação de digitação, sobretudo para a mão esquerda, contém informações essenciais para a funcionalidade e interpretação da obra. Uma característica intrínseca do violão é a possibilidade de tocar uma mesma frase em diferentes posições, usando a mesma corda ou cordas diferentes. Esse é um recurso idiomático utilizado por quem domina o instrumento, normalmente indicado com precisão por compositores- violonistas. O violonista-compositor Francisco Araújo, por exemplo, faz questão de especificar tais detalhes em passagens que possam sugerir uma dupla interpretação, a fim de não comprometer o sentido da frase ou o efeito desejado (BATISTUZZO, 2009, p.79). Todas as partituras de Geraldo Ribeiro contêm digitação e, em alguns momentos, é possível notar o quanto isso pode acarretar em uma interpretação diferente, como vemos na Figura 14. No c.6 da Seresta Nº 1, a digitação das quiálteras é feita em cordas diferentes, de forma arpejada; já no c.8, há a indicação para que as mesmas notas sejam todas tocadas na terceira corda.

Figura 14: Digitações diferentes para uma repetição quase literal de uma passagem em Seresta Nº 1, de Geraldo Ribeiro.

Analisando uma passagem análoga, WOLFF (2001) observa que esse tipo de escolha, apesar de resultar em mais translados, permite uma maior homogeneidade tímbrica e, sendo na terceira corda, favorece um timbre dolce e o vibrato. Se por um lado a digitação fornecida pelo compositor-violonista tem um significado intrínseco, por outro essa escolha está também relacionada a características pessoais, como o tamanho das mãos ou a sonoridade do instrumento utilizado (WOLFF, 2001). Sendo assim, diante de determinadas circunstâncias e argumentos é plausível que uma digitação indicada pelo compositor seja questionada, como veremos a seguir.

Entre as características do estilo nacionalista encontradas nas obras de Ribeiro estão, como vimos, o aproveitamento e o desenvolvimento melódico. Algumas digitações do compositor, no entanto, parecem-nos ser desfavoráveis ao discurso melódico, razão pela qual proporemos

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algumas alternativas que possam “estreitar a relação entre o intérprete e a obra” (ALÍPIO, 2014, p.40).

Na primeira de duas passagens de Canção destacadas na Figura 15, note-se a repetição do dedo 4 e, sobretudo, a mudança de corda do dedo 2, a qual tende a ocasionar um pequeno corte na segunda nota Dó. Devido a essa mudança de corda e à preparação para o acorde seguinte, a sugestão é a utilização do dedo 3 para nota Ré e, na nota Dó, utilizar a base do dedo 1, no que é chamado por ALÍPIO (2014, p.68) de “pestana de falange proximal”. Essa técnica permite que o dedo fique pronto para a execução da pestana do acorde seguinte sem necessidade da pressão total que será necessária para a sua realização e sem precisar tirar o dedo da primeira corda. Com isso é possível evitar a interrupção da nota Dó e preparar melhor a mão esquerda para o acorde. Na segunda passagem destacada na Figura 15, temos duas mudanças de posição com pestana: da terceira para a primeira casa e voltando para a terceira. Levando em conta que “a articulação e o fraseado são elementos fundamentais na distribuição dos translados na digitação” (WOLFF, 2001) nota-se que, por se tratar de uma peça lenta e polifônica, o legato, imprescindível a nosso ver, é prejudicado pelas mudanças de posição ou translados. Sendo assim, preferimos evitar os translados, propondo uma pequena abertura e uma mudança de cordas na melodia.

Figura 15: Problemas de digitação e alternativas sugeridas em Canção, c.1 e c.8.

Na Seresta Nº 1 o compositor emprega um procedimento técnico pouco convencional entre violonistas, que é a repetição de um mesmo dedo para uma passagem rápida em semicolcheias (Figura 16). Se por um lado, como vimos, a escolha da digitação está

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relacionada a questões anatômicas e técnicas (WOLFF, 2001), por outro essas escolhas podem sofrer mudanças a curto ou longo prazo, considerando o estado atual das habilidades do instrumentista e modificações aliadas a outros fatores (ALÍPIO, 2012, p.80). Assim, apresentamos uma alternativa que, mesmo não sendo tecnicamente fácil, mostra-se menos desgastante, usando uma “pestana cruzada”.1 Com esse recurso podemos sustentar o Dó# do baixo e evitar a repetição de dedos da mão esquerda nas notas em semicolcheias.

Figura 16: Sugestão de utilização de “pestana cruzada” em Seresta Nº 1.

Por fim, abordaremos problemas de digitação em dois exemplos extraídos do Ponteio (Figura 17). No primeiro, o translado e a mudança de apresentação de mão gerada pelos acordes aumentam a dificuldade de manter o legato na condução da melodia. A sugestão apresentada é uma mudança de posição um pouco antecipada, que preserva a apresentação paralela ou longitudinal nos acordes. No segundo exemplo acrescentamos ligados de mão esquerda para evitar a repetição do dedo polegar da mão direita. É senso comum entre os violonistas que, como registra ALIPIO (2014, p.81), a repetição de dedos prejudica a velocidade e gera maior tensão muscular. O mesmo autor lembra que os ligados técnicos, como os que sugerimos, auxiliam a mão direita em passagens rápidas (2014, p.74).

Figura 17: Translado com mudança de apresentação e acréscimos de ligados técnicos em Ponteio.

1 “Aquela em que a base do dedo pressiona uma casa, e sua ponta, outra” (ALÍPIO, 2014, p.71). 160

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4 - Considerações finais

Constatamos nas obras de Geraldo Ribeiro aqui estudadas vários elementos relacionados com a escola nacionalista de Camargo Guarnieri, a começar pelos nomes e expressões em língua portuguesa e os títulos referentes às pequenas formas (no caso do Ponteio, Toada e Canção). Ainda no âmbito da pequena forma, foi ressaltada uma relação no uso da estrutura (A, A’) — nas peças monotemáticas (Canção, Seresta Nº 1 e Toada) — e da estrutura ternária (Ponteio). Também comuns entre as obras de Ribeiro e a escola guarnieriana são as melodias com caráter seresteiro; o desenvolvimento motívico, explorado através de vários recursos; as partes centrais mais desenvolvidas tanto em texturas como em ritmo e a alternância nas fórmulas de compasso. A harmonia resulta frequentemente da polifonia, com uma forte presença de texturas contrapontísticas, mas também funciona como um preenchimento, privilegiando a melodia, para a qual por vezes serve como uma “roupagem”. Nota-se ainda o cuidado em evitar cadências óbvias. Foram identificados também dois elementos característicos do estilo composicional de Theodoro Nogueira nas obras de Geraldo Ribeiro: o uso de terças paralelas e o preenchimento textural como função de contraste.

Acreditamos que essas características em comum entre a obra de Geraldo Ribeiro e o estilo nacionalista se devem, em grande medida, ao contato do violonista-compositor com Theodoro Nogueira, compositor que foi discípulo de Camargo Guarnieri. A compreensão desse estilo pode fornecer referências para a construção de uma interpretação das composições de Ribeiro, uma vez que praticamente inexistem gravações da obra do violonista. Sendo assim, a familiaridade com as obras de Camargo Guarnieri, Theodoro Nogueira, Eunice Katunda, Adelaide Pereira e Lina Pires de Campo pode contribuir para ampliar o vocabulário interpretativo que performer tem à disposição para o tratamento dos elementos característicos do estilo.

O idiomatismo instrumental mostrou particularidades de uma escrita violonística que evita efeitos e demanda um alto nível técnico. Dentre os recursos técnicos mais explorados foram identificados o uso recorrente de pestanas, aberturas, contrações e escalas, sendo os três primeiros, em parte, consequência da escrita polifônica. Como nas obras de Guarnieri, essa escrita demanda uma técnica refinada, que exige do intérprete experiência para dosar a

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tensão muscular sem afetar o discurso musical. Como afirma o violonista Gilson Antunes (apud FUJIYAMA, 2018), o repertório nacionalista apresenta um conteúdo musical riquíssimo e recompensa o violonista na forma de um ganho técnico.

As exigências desse repertório demandam um estudo aprofundado de questões técnicas e estilísticas, assim como a escolha de digitações que sejam mais funcionais para o discurso. Acreditamos que as cinco obras de Geraldo Ribeiro aqui abordadas apresentam aspectos musicais muito ricos derivados da escola nacionalista. Além disso, o virtuosismo violonístico de Ribeiro transparece em sua escrita e exige preparo por parte do intérprete, o que resulta em um grande ganho técnico para o violonista que se dedica a esse repertório.

Referências de texto

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2. AMARAL, Mayara. (2017) A Mulher Compositora e o Violão na Década de 1970: Vertentes analíticas e contextualização histórico-estilística. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiânia – UFG, Escola de Música e Artes Cênicas, Programa de Pós- Graduação em música.

3. ANTUNES, Gilson. (2014) Geraldo Ribeiro. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2019.

4. BATTISTUZZO, Sérgio. (2009) Francisco Araújo: O uso do idiomatismo na composição de obras para violão solo. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Música.

5. FUJIYAMA, Laís Domingues. (2018) 12 Improvisos para Violão de Theodoro Nogueira: Aspectos Composicionais e Idiomatismo Técnico Violonístico. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiânia – UFG, Escola de Música e Artes Cênicas, Programa de Pós- Graduação em música.

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7. KREUTZ, Thiago de Campos. (2014) A música para violão solo de Edino Krieger: um estudo do idiomatismo técnico-instrumental e processos composicionais. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiânia – UFG, Escola de Música e Artes Cênicas, Programa de Pós-Graduação em música.

8. PEREIRA, Marcelo Fernandes. (2011) A contribuição de Camargo Guarnieri para o repertório violonístico brasileiro. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo - USP, Escola de Comunicação e Artes. Programa de Pós-Graduação em Música.

9. PEROTTO, Leonardo Luigi. (2005) A Obra para Violão de Pedro Cameron: Características Idiomáticas e Estilísticas. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiânia – UFG, Escola de Música e Artes Cênicas, Programa de Pós-Graduação em música.

10. PICHERZKY, Andréa Paula. (2004) Armando Neves – Choro no Violão Paulista. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista – UNESP, Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Música.

11. SCARDUELLI, Fábio. (2007) A Obra Para Violão Solo de Almeida Prado. Dissertação (Mestrado). Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Música.

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Referências de áudio

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1. RIBEIRO, Geraldo. (1971) Seresta N.1. Editora: Ricordi Brasileira, São Paulo.

2. RIBEIRO, Geraldo. (1971) Canção. Editora: Ricordi Brasileira, São Paulo.

3. RIBEIRO, Geraldo. (1971) Ponteio. Editora: Ricordi Brasileira, São Paulo.

4. RIBEIRO, Geraldo. (1971) Toada. Editora: Ricordi Brasileira, São Paulo.

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5. RIBEIRO, Geraldo. (1973) Fantasia – Sobre temas folclóricos gaúchos. Editora: Ricordi Brasileira, São Paulo.

Notas sobre os autores

Evandro Dotto é Bacharel em violão pelo Conservatório Brasileiro de Música, Rio de Janeiro (2012), especialista em Educação Musical com Ênfase em Música Popular (UNIS - MG, 2015) e mestrando em Performance Musical (UFMG). Em 2013 ganhou o primeiro lugar no Prêmio Campo Grande Música de Concerto – violão solo. Foi violonista convidado do II Festival Internacional de Guitarra “Maria Luísa Anido” em Morón, Argentina (2018). Atualmente integra a Camerata Madeiras Dedilhadas da UFMS, projeto de extensão da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde também atua como professor substituto.

Fernando Araújo é Bacharel e Doutor em Música pela Escola de Música da UFMG e Mestre em Música pela Manhattan School of Music, de Nova York. É Professor Adjunto da Escola de Música da UFMG. O violonista obteve, dentre outros, o Prêmio Turíbio Santos no II Concurso Internacional Villa-Lobos e o 1o. Lugar e Prêmio de Melhor Intérprete de Villa-Lobos no II Concurso Nacional Villa-Lobos. Foi vencedor, com o soprano Mônica Pedrosa, do XX Artists International Auditions em Nova York, tendo o duo se apresentado no prestigioso Carnegie Recital Hall. Apresentou-se em diversas cidades dos EUA, Europa e Brasil e atuou como solista com várias orquestras, dentre elas a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Tem sido convidado a participar como jurado em diversos concursos, dentre eles o Concurso Julián Arcas, na Espanha. Lançado pelo selo Karmim, o CD “Universal”, no qual Fernando Araújo interpreta obras de Villa-Lobos, Piazzolla e Garoto, foi muito bem recebido pela crítica especializada. Gravou com a cantora Mônica Pedrosa o CD “Canções da Terra, Canções do Mar”, no qual o duo interpreta canções de compositores eruditos brasileiros, tanto originais quanto arranjos do próprio violonista. Um livro com o mesmo título, contendo as partituras desse CD, foi lançado pela Editora UFMG. É um dos músicos destacados no documentário “Violões de Minas”, escrito e dirigido por Geraldo Vianna.

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl

Interaction of violin with percussion in Harry Crowl’s ‘Concerto nº4, for violin and percussion’ (2019)

Sofia Leandro Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Fernando Rocha Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Este artigo apresenta abordagens técnicas e interpretativas que contribuíram para a exploração da interação entre os instrumentos do Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl, a partir das experiências do Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, para o qual o concerto foi composto e dedicado. Primeiro, são apresentadas as ideias a partir das quais a obra tomou forma, especificando aspectos técnicos e a construção de um discurso simbólico relacionado com o subtítulo: Em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco. Em seguida, é demonstrado como a própria forma - baseada na narrativa da via-crucis - e a escrita do compositor potencializaram os universos sonoros resultantes da interação do violino com a percussão. Do ponto de vista da performance, são apresentados exemplos de decisões práticas dos intérpretes que decorreram da comunicação com o compositor, tendo em vista a ampliação dessas interações sonoras e do discurso simbólico até à data da estreia, em novembro de 2019. Esses exemplos centram-se em aspectos relacionados com exploração de timbres e técnicas expandidas e com a gestão do tempo.

Palavras-chave: duo violino e percussão; performance de música de câmara contemporânea; concerto para violino e percussão de Harry Crowl; colaboração compositor-intérprete

Abstract: This paper presents technical and interpretative approaches that contributed to the exploration of instrumental interactions in Harry Crowl’s Concerto nº4, for violin and percussion (2019), based on the experiences of Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, for whom the piece was composed and dedicated. First, we present the ideas that originated the work, specifying technical aspects and the construction of a symbolic speech related to the subtitle: In the form of via crucis on the name of Marielle Franco. Afterwards it is demonstrated how this particular form - based on the narrative of via crucis - together with the composer’s writing potentiated the sound universes that resulted from the interaction between the violin and the percussion instruments. From a performance standpoint, examples are shown of the performers’ practical choices, related to the communication with the composer until the premiere in November 2019. These choices aimed at the broadening of sound interactions and symbolic speech. The examples focus on aspects related to the exploration of timbre and expanded techniques as well as time management.

Keywords: violin and percussion duet; contemporary chamber music performance; Harry Crowl’s concerto for violin and percussion; composer-performer collaboration

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

1 - Introdução

A performance de música de câmara para duo de violino e percussão leva-nos diretamente para um recorte histórico: a música criada a partir da segunda metade do século XX. Existem poucos dados sobre esse repertório, que podem ser encontrados em páginas eletrônicas de compositores e intérpretes, resenhas e encartes de discos, e em notas de programa. No entanto, essas informações são geralmente sintéticas, em estilo de sinopse. Mais difíceis de encontrar são pesquisas que se aprofundam no estudo de obras para o duo violino e percussão, pelo que destacamos aqui duas. A primeira, de Eric Jason WILLIE (2010), demonstra as características primárias da composição de Paul Lansky a partir da análise de Hop, para violino e marimba. A segunda, de Hexue SHEN (2016) propõe-se a fornecer um guia de performance para Hot Pepper de Bright Sheng, também para violino e marimba, à luz da análise de elementos da escrita relacionados com tradições musicais chinesas.

Não obstante o número expressivo de peças para duo de violino e percussão já identificadas como resultado parcial de uma pesquisa em andamento1, não foram, até à data, encontradas pesquisas sobre repertório ou práticas de performance que envolvam outras formações de violino e percussão, para além do duo violino e marimba. Assim, este artigo resulta numa proposta exploratória de pesquisa empírica sobre uma prática de performance dentro da formação violino e percussão. Efetivamente, essa é apontada como uma lacuna geral na investigação em música contemporânea2:

Existe pouca ou nenhuma pesquisa empírica em qualquer tipo de música antes de 1750, mas é talvez ainda mais surpreendente só existir uma pequena quantidade de pesquisas empíricas em qualquer tipo de música dos séculos vinte ou vinte e um3 (CLARKE e DOFFMAN, 2014, p.98).

1 Pesquisa de doutorado da primeira autora, sob orientação do segundo autor. Foram listadas, até ao presente, 84 obras originais para duo de violino e percussão, datadas de 1974 a 2019. Dentre elas, 48 são para violino e marimba e as restantes 36 para combinações variadas de violino com outros instrumentos de percussão, incluindo peças com tape. 2 Entenda-se por “música contemporânea” a chamada música “clássica”, “erudita” ou “de concerto”, feita nos séculos XX e XXI. 3 Todas as traduções foram feitas livremente pelos autores. 166

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Serão aqui tratadas abordagens técnicas e interpretativas que exploram a interação do violino com os diferentes instrumentos de percussão do Concerto nº4, para violino e percussão (em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco) do compositor brasileiro Harry Crowl (n. 1958). Essas abordagens desenvolvem-se através de propostas individuais e processos colaborativos entre Harry Crowl e o Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, para o qual foi dedicada a obra.

2 - O Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl

Esta obra nasceu a partir de um encontro do Duo Sofia Leandro e Bruno Santos com o compositor em setembro de 2018. Nesse encontro foram discutidas quais seriam as combinações realizáveis de instrumentos, tendo em conta o instrumental acessível ao duo. Em 4 de dezembro de 2018, em comunicação pessoal, o compositor Harry Crowl sugeriu uma ideia para a criação daquele que seria o Concerto nº4, para violino e percussão, dedicado ao Duo Sofia Leandro e Bruno Santos. Inspirado pela forma tradicional da via-crucis4, iria converter as estações em 14 movimentos5, cada qual com um set de percussão distinto. Os instrumentos de percussão estariam dispostos em semicírculo, de modo a que a violinista se mantivesse numa posição central e o percussionista fosse percorrendo os sets ao longo dos movimentos (Figura 1). O caminho do percussionista assemelhar-se-ia justamente à procissão típica do ritual da via- crucis.

4 Via-crucis (latim) ou via-sacra: Ritual católico, praticado durante a Semana Santa, em que são representados os últimos dias da vida de Jesus, desde a sua condenação por Pilatos até ao seu sepultamento. Essa recriação é dividida, atualmente, em 14 cenas, tradicionalmente chamadas “estações”. 5 Crowl utiliza o termo “estação” em latim, “statio”, para denominar todos os movimentos do Concerto nº4, para violino e percussão. 167

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Figura 1 - Esboço da montagem, feito pelo compositor, sobre o qual foram compostos os 14 movimentos do concerto.

Em abril de 2019, o Duo recebeu o primeiro movimento, escrito para violino e quatro tom-tons. Juntamente, Crowl apresentou o subtítulo, Em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco, explicando que utilizara um nome com alguma simbologia no título, à imagem de algumas obras portuguesas para órgão dos séculos XVI e XVII6. Do nome completo de Marielle Franco, Marielle Francisco da Silva, extraiu as notas, por correspondência com a notação alemã (Figura 2), que viriam a servir de material melódico para a composição:

6 Como, por exemplo, o título Cinco versos sobre os passos do canto chão de Ave maris stella, que integra a obra Flores de Musica (1620), de Manuel Rodrigues COELHO. 168

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Sílaba MA(ri)7 E LLE FRAN CIS CO DA SIL(va)

Notação alemã A E E F C# C D Es

Nota Lá Mi Mi Fá Dó# Dó Ré Mib

Figura 2 - Tabela de correspondência entre as letras do nome Marielle Francisco da Silva e as notas utilizadas na composição do concerto.

Nos meses que se seguiram, até à finalização da composição em 31 de agosto de 20198, e durante todo o período de leitura e ensaio do concerto, compositor e intérpretes trocaram múltiplas correspondências para esclarecimento de dúvidas sobre a partitura e troca de sugestões, sobretudo a partir de registros em áudio das sessões de estudo. Questões envolvendo correções na partitura, dinâmicas, andamentos, articulações, explorações de timbre e ainda montagem e movimentação no palco foram sendo discutidas e reformuladas até à data da estreia, a 6 de novembro de 2019, na Universidade Federal de São João del Rei (MG).

Cada movimento do concerto é escrito para violino “acompanhado”9 quase sempre por um set de percussão diferente10, à exceção de dois movimentos para violino solo. A Figura 3 lista as instrumentações específicas de cada estação, bem como as instruções de caráter indicadas pelo compositor e ainda os textos da via-crucis correspondentes:

7 Entre parênteses estão as sílabas não utilizadas por Harry Crowl. 8 Data registrada na partitura. 9 A expressão “acompanhamento”, para caracterizar a parte de percussão desta obra, remete-se ao gênero em que o compositor a insere: o concerto. Em comunicação pessoal, Crowl explicou que 3 dos seus 4 concertos para violino são escritos com seções instrumentais de acompanhamento diferentes da orquestra, incluindo o Concerto nº4, para violino e percussão. No entanto, da perspectiva da performance, a peça enquadra-se no universo da música de câmara. 10 A combinação violino e marimba é a única repetida em dois movimentos (VII e VIII). 169

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Movimento Instrumentação Caráter Texto da via-crucis 11

Statio I Violino e 4 tom-tons Como um lamento Jesus é condenado à morte

Statio II Violino Molto pesante Jesus carrega a cruz

Statio III Violino e bumbo sinfônico Um pouco agitado Jesus cai pela primeira vez

Statio IV Violino e taças tibetanas12 (3 Com alguma ansiedade Jesus encontra Maria, sua Mãe fixas + 1 nas mãos)

Statio V Violino e 5 temple blocks Errático e flexível O Cireneu ajuda Jesus a levar a cruz

Statio VI Violino; 5 temple blocks e Agitado A Verónica limpa o rosto de marimba (5 oitavas) Jesus

Statio VII Violino e marimba (5 oitavas) Com muita intensidade Jesus cai pela segunda vez

Statio VIII Violino e marimba (5 oitavas) Expressivo e lamentoso Jesus encontra as mulheres

Statio IX Violino; 4 cow bells e 3 gongos Fluente Jesus cai pela terceira vez tailandeses

Statio X Violino e 2 tambores de freio Agitado e angustiado Jesus é despojado das suas vestes

Statio XI Violino; 3 pratos suspensos, 2 Com resignação Jesus é pregado na cruz tambores de freio e tantã

Statio XII Violino Amargurado Jesus morre na cruz

Statio XIII Violino e vibrafone Murmurando Jesus é descido da cruz

Statio XIV Violino; steel drum (tenor) e Contemplativo e com Jesus é depositado no sepulcro vibrafone resignação

Figura 3 - Tabela de correspondência entre movimentos do concerto, instrumentação, indicação de caráter e texto da via-crucis.

De forma a evitar a limitação da performance do concerto a espaços onde seja possível montar o instrumental completo, foi estabelecido um acordo sobre a possibilidade de apresentar o concerto em fragmentos livremente escolhidos pelos intérpretes.

11 Textos em português disponibilizados pela página web do Vaticano (A SANTA SÉ, 2019). 12 O nome do instrumento “taças tibetanas” é aqui usado de acordo com a nomenclatura adotada pelo compositor na partitura (CROWL, 2019a). É o mesmo que “sinos budistas” ou “sinos tibetanos”. 170

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

3 - Abordagens técnicas e interpretativas para a interação dos instrumentos no Concerto nº4, para violino e percussão

Nesta seção, serão descritas as estratégias para potencializar a interação entre o violino e os diferentes instrumentos de percussão que integram o Concerto nº4, para violino e percussão de Harry Crowl, considerando: a contribuição do estilo de escrita adotado pelo próprio compositor, aliado à metáfora decorrente do discurso simbólico (a narrativa da via-sacra); a exploração timbrística dos instrumentos, muitas vezes recorrendo a técnicas expandidas; e a gestão de andamentos. Estas considerações serão feitas através da apresentação de exemplos, ilustrados por excertos da partitura, dialogando com as influências da colaboração entre compositor e intérpretes durante a preparação da performance da obra completa.

3.1 - A contribuição do estilo composicional e do discurso simbólico

Tanto para Harry Crowl como para o Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, este foi o primeiro contato com uma obra que explorou as combinações do violino com vários instrumentos de percussão. Como foi descrito na seção 2, o primeiro passo para esta nova criação foi o estabelecimento do instrumental, que resultou de uma colaboração entre o compositor e o duo. No entanto, coube a Crowl o impulso criativo decisivo de definir a forma e o texto musical do seu Concerto nº4. Por isso, também foi ele o primeiro a ter que lidar com as idiossincrasias dos instrumentos e suas possíveis interações.

A proposta formal da obra, uma “procissão” de cena em cena, provoca rápidas mudanças no universo sonoro do concerto, em particular porque os 14 movimentos têm a duração média de 3 minutos cada. O compositor escolheu agrupar os instrumentos de percussão de acordo com características específicas, agrupamentos a que os intérpretes viriam a chamar “ilhas”. A primeira ilha utiliza instrumentos de pele e taças tibetanas (cf. Figura 3). Embora as taças, da Statio IV, surjam aqui como um elemento estranho, elas acabam promovendo um contraste expressivo com o bumbo sinfônico, utilizado no movimento precedente. Enquanto o bumbo traz frequências graves com longas ressonâncias, as taças transferem e ampliam essas ressonâncias para frequências agudas. A escrita de cada movimento parece aproveitar essas características próprias dos instrumentos de percussão para interagir com o violino. Por exemplo, a Statio I (tom-tons) é aquela que mais tira partido do contraponto (Figura 4), enquanto as III (bumbo)

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188. e IV (taças) recorrem mais frequentemente à justaposição de gestos rápidos num instrumento e lentos no outro (Figura 5).

Figura 4 - Statio I (c. 15-18): Trecho contrapontístico.

Figura 5 - Statio III (c. 25-27): Trecho que justapõe movimentos lentos (violino) e rápidos (bumbo).

A Statio II é o primeiro solo de violino, que assinala o primeiro momento dramático na metáfora da via-crucis: a cena em que a cruz é dada a Jesus para que a carregue. Esta primeira ilha reúne uma variada paleta de timbres que o compositor considera ser a sua marca (comunicação pessoal). Justifica essa variedade contrapondo esta obra com No Silêncio das Noites Estreladas (1998/99), para grande conjunto de percussão:

[Em No Silêncio das Noites Estreladas] separei os instrumentos por famílias, peles, madeiras e metais. Não quis repetir isso de maneira óbvia no Concerto nº4. Portanto, as taças tibetanas aparecem no início, longe dos pratos, tantã, vibrafone e steel drum (CROWL, 2019, 7 dez., comunicação pessoal).

A segunda ilha é composta por temple blocks e marimba, não incluindo nenhum solo. É pertinente observar que estes são os movimentos que incluem mais trechos rápidos (Figuras 6, 7 e 8) tanto nas partes da percussão, como nas do violino, e em simultâneo, aludindo ao virtuosismo como se concebia até ao final do século XIX13. De fato, a sonoridade própria dos

13 Sobre a velocidade na música do século XX, WUORINEN (1964, p.16) refere: “[...] não pode dizer-se que qualquer música conhecida de hoje contém velocidade em excesso comparando com a que se atingiu na escrita virtuosa do século passado [séc. XIX]: na verdade, velocidades extremas não são de forma alguma domínio exclusivo do 172

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Figura 6 - Statio V (c. 14-15): Passagem com trechos rápidos nos dois instrumentos (violino e temple blocks).

Figura 7 - Statio VI (c. 20-23): Passagem com trechos rápidos nos três instrumentos (violino, marimba e temple blocks).

Figura 8 - Statio VII (c. 1-4): Passagem com trechos rápidos nos dois instrumentos (violino e marimba).

As transições entre os movimentos V, VI e VII são em attacca, reforçando o seu caráter agitado, ansioso e intenso. Aqui, a música ilustra duas cenas em que Jesus é auxiliado por outras personagens (Simão de Cirene na Statio V e Verônica na Statio VI) e a cena da segunda queda. O último episódio da ilha (Figura 9), o encontro com as mulheres de Jerusalém, é contado pelo

passado recente”. Charles Wuorinen (1938-) é um compositor norte-americano vencedor do Prêmio Pulitzer de música clássica contemporânea. 14 Apesar dos temple blocks utilizados nesta montagem serem de plástico, o seu timbre imita os tradicionais, de madeira. 173

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Figura 9 - Statio VIII (c. 1-4).

Para a terceira ilha, Crowl traz um instrumental cujo material sonoro é de metal: cow bells, gongos tailandeses, tambores de freio, pratos e tantã. À exceção dos gongos, estes instrumentos não são tradicionalmente utilizados com frequências definidas. No Concerto nº4, a notação propõe apenas uma organização de todos por alturas, sem definição de nota. Esta é a seção da obra cuja escrita inclui mais trechos de caráter improvisatório. Abaixo (Figura 10) podemos observar um exemplo da Statio IX em que a parte do violino propõe uma organização rítmica livre, enquanto que a parte da percussão (cow bells e gongos) é totalmente gráfica. Recursos semelhantes surgem nos dois movimentos seguintes, especialmente figuras que promovem uma organização métrica de acordo com a interpretação de quem as toca (Figura 11).

Figura 10 - Statio IX (após c. 33): Seção improvisatória.

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Figura 11 - Statio X (c. 41-43): Exemplo de figuras rítmicas com indeterminação (tambores de freio).

A Statio XI, que fecha a terceira ilha, é a que aposta na mais densa mistura de timbres, através de rápidas transições entre os instrumentos de percussão (Figura 12). Esta textura, assente na diversidade de sons provenientes do metal, remete-nos para a narrativa de Jesus sendo pregado na cruz. Essa densidade vai-se diluindo na coda (Figura 13) e leva-nos à última ilha, que começa com a cena da morte, escrita para violino solo.

Figura 12 - Statio XI (c. 22-29): Trecho com transições rápidas nos instrumentos de percussão.

A quarta e última ilha aborda as cenas mais espirituais da via-crucis: a morte, a descida do corpo da cruz e o sepultamento. Após o solo de violino, entra o vibrafone, que Crowl decidiu incluir após começar a escrever a peça (como comprova o esboço da Figura 1), e a última estação acrescenta o steel drum. Nesses dois últimos movimentos, as partes da percussão têm um caráter mais melódico, ao passo que as de violino assumem um papel que poderia ser considerado de acompanhamento (Figura 13). Um aspecto curioso da Statio XIV é a utilização de alturas indefinidas no violino, conjugadas com uma melodia no steel drum (Figura 14).

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Figura 13 - Statio XIII (c. 1-6): Exemplo de trecho em que o violino tem função de acompanhador.

Figura 14 - Statio XIV (c. 1-5): Exemplo da utilização de alturas indefinidas na parte do violino.

3.2 - Exploração de timbres e técnicas expandidas

Como demonstrado na seção anterior, o papel do compositor foi fundamental para os resultados da interação entre instrumentos. No entanto, como coloca Peter HILL (2002, p.129): “a música em si é algo imaginado, primeiro pelo compositor, depois em parceria com o intérprete”. Nesta seção vão ser pontuadas decisões dos intérpretes relacionadas com a exploração de timbres, recorrendo frequentemente a técnicas expandidas. Tiveram como objetivo ampliar o potencial sonoro das interações entre o violino e a percussão, e promover o discurso expressivo. Essas decisões, advindas de experiências de estudo individual e em duo, foram também influenciadas por sugestões do compositor e do segundo autor deste capítulo, na qualidade de orientador desta pesquisa.

Durante o estudo, o músico também está preocupado com o efeito geral da música e com os ajustes que podem ser necessários para criar a melhor performance possível (MISHRA e FAST, 2015, p.75).

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A primeira decisão tomada conjuntamente pelo duo foi de afinar os tom-tons da Statio I. Após experimentar algumas afinações baseadas nas primeiras notas do violino (Lá, Mi, Fá), foi determinada a seguinte ordem, do grave para o agudo: Mi, Lá, Dó# e Fá. Mesmo compreendendo a dificuldade de fixar uma frequência fundamental perfeitamente afinada com o violino, especialmente no tambor mais agudo, experiências com afinações diferentes dificultaram a sincronia entre os músicos. O compositor aprovou a escolha após ouvir uma gravação de ensaio, tendo mesmo revelado que nunca tinha tido ”coragem de fazer isso” (comunicação pessoal). Outras opções sobre a altura dos instrumentos de percussão foram sendo tomadas ao longo dos ensaios, nomeadamente na terceira ilha, sempre procurando que as frequências mais audíveis coincidissem de alguma forma com as notas mais recorrentes do violino.

Para o percussionista, outras questões como a escolha das baquetas, a praticidade na montagem dos sets, e o próprio caminho entre instrumentos foram aspectos que tiveram que ser considerados na preparação da performance. Mas, para manter o foco nas questões de timbre, daremos em seguida dois exemplos de decisões relacionadas com as mesmas. O primeiro representa uma contribuição do intérprete para a expansão da obra a partir das ideias do compositor. Na Statio VII, numa seção de caráter cadencial (ad libitum), Crowl escreve senza precisione na parte da marimba, mudando inclusivamente a grafia das figuras (Figura 15). O percussionista optou por utilizar um efeito de cabo de baqueta15 que viria a ser posteriormente efusivamente elogiado pelo compositor. Essa escolha acabou também promovendo um contraste expressivo com as notas longas, em cordas duplas, do violino que se intercalam com as passagens senza precisione.

Figura 15 - Statio VII (c. 17): Trecho senza precisione tocado com cabo de baqueta.

15 Na execução, as baquetas não foram efetivamente viradas ao contrário, mas sim utilizada uma outra baqueta que imitava o som do cabo de madeira. 177

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

O segundo exemplo trata da abordagem às partes de improvisação da Statio IX (ver Figura 10), cuja performance foi influenciada por um ouvinte. Nas primeiras leituras, diante da indeterminação da partitura gráfica, o percussionista entendeu que deveria executar gestos extremamente rápidos e imprecisos. Após escutar um ensaio ao vivo, o orientador desta pesquisa e segundo autor do capítulo aconselhou uma improvisação mais direcionada a enfatizar e diferenciar os timbres dos gongos e dos cow bells. A experiência surtiu resultados positivos, não somente pelo melhor aproveitamento das características específicas desses instrumentos, mas também porque possibilitou uma sincronização mais efetiva das mudanças simultâneas nos gestos da percussão com o violino.

O Concerto nº4 representa um desafio para o percussionista, não só pela quantidade de instrumentos que precisa de dominar16, mas sobretudo pela velocidade em que transita de um instrumento (ou conjunto) para outro. Porém, sendo o violino o elemento estável do Concerto nº4, o instrumento que nunca sai de cena, é também o que mais tem necessidade de se ir “transformando” ao longo da obra. O próprio texto apresenta uma variedade de técnicas, ritmos e melodias que não dá espaço à monotonia, mas o desenvolvimento dessas ideias coube à violinista. A aposta, que se presumiu objetivamente adequada a um formato em que as combinações instrumentais mudam rapidamente, foi na exploração, por vezes até exagerada, de recursos timbrísticos. Serão dados dois exemplos, demonstrando: a influência do discurso simbólico na interpretação da notação de uma técnica expandida; e a definição da articulação como estratégia de otimização da sincronia com a percussão.

No início da Statio II, para violino solo, Crowl escreve poco a poco col legno, numa variação de dinâmica entre ff e fff (Figura 16). A notação não é clara em relação a quando acaba o efeito col legno, por isso foi pedido esclarecimento ao compositor, que explicou que a indicação se aplicava apenas até ao fff e que a violinista deveria aumentar a pressão até a madeira do arco tocar nas cordas.

16 O que só por si é uma característica singular da prática dos percussionistas. 178

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Figura 16 - Statio II (início): Indicação poco a poco col legno.

De fato, essa é uma técnica expandida comum, mencionada na literatura do violino sobre técnicas de performance contemporâneas utilizando o termo overpressure (pressão excessiva):

A utilização do arco com pressão excessiva [overpressure] é outra técnica bastante efetiva. É provavelmente a mais popular entre todas as novas técnicas para cordas, aparecendo numa abundância de partituras desde meados da década de 1970. Esta técnica pode ser utilizada de duas formas, seja com a altura sendo o parâmetro principal, ou com os efeitos tímbricos sendo o parâmetro principal (STRANGE e STRANGE, 2001, p.17).

No trecho da Figura 16, a técnica foi usada transitando do parâmetro principal altura para o de efeito, como propôs o compositor. Porém, com o objetivo de ilustrar musicalmente o discurso simbólico da cena correspondente da via-crucis, que representa o peso da cruz, sugere-se a reutilização da técnica overpressure em outros momentos do movimento, às vezes no ataque das notas e outras vezes no desenvolvimento de notas após o ataque, mantendo, nesses casos, a altura como parâmetro.

O Concerto nº4 desenvolve-se com poucas passagens homorrítmicas e raríssimos uníssonos. O trecho em uníssono mais longo é o tempo rubato da Statio VII, que junta violino e marimba (Figura 17). Como estratégia de sincronização das partes, foi adotada uma mudança gradual de articulação, começando numa textura de detaché até à entrada da marimba, momento a partir do qual o golpe vira quase spiccato. A colocação de acentos no início de cada novo gesto, apoiada por uma articulação mais curta, foi utilizada como estratégia de estudo em conjunto.

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Figura 17 - Statio VII (c. 32): Violino e marimba em uníssono.

3.3 - Tempos e indicações metronômicas

Todos os movimentos indicam, para além de um pequeno texto que sugere o seu caráter (Figura 18), um tempo metronômico, como exemplificado abaixo:

Figura 18 - Exemplo de indicação metronômica no quarto movimento do concerto.

Essa indicação é sempre aproximada, uma vez que em todos os casos inclui a abreviatura “ca.” (“cerca”). No entanto, os andamentos foram geridos pelos intérpretes de acordo com quatro critérios: a preservação da relação de andamento entre movimentos, proposta pelo compositor; a otimização da execução do texto; a priorização da sincronia entre as partes; e a interpretação das indicações de caráter. Algum tempo depois da estreia, o compositor viria a explicar o uso dessas indicações, dando suporte às estratégias de gestão que serão detalhadas adiante.

O uso da palavra ‘cerca’ abreviada é um hábito constante meu. Percebo, às vezes, que os intérpretes querem quantificar este ‘cerca’. Acredito que seja devido à natureza científica da pesquisa acadêmica balizada sempre pelas ciências exatas. Para mim, vale o bom senso. Normalmente, começo com uma relação mais precisa, mas aos poucos, na medida que sinto a necessidade de um desenvolvimento com mais ação, ignoro um pouco a indicação inicial. Portanto, o que deve prevalecer sempre é a clareza do discurso musical. Estou inteiramente de acordo com as conclusões suas [Sofia Leandro] e do Bruno [Santos]. O trabalho colaborativo entre compositor e intérpretes, para mim, é o mais importante. [...] No início de minha carreira como compositor, não costumava colocar indicações metronômicas. Mas, como lidava principalmente com músicos de orquestra, ficavam sempre me pedindo para colocar. Alguns regentes também insistiam muito nisso. Acabei por criar o hábito (CROWL, 2019, 14 dez., comunicação pessoal).

Um exemplo da gestão de andamentos a partir das relações dos tempos metronômicos entre movimentos foi a gestão aplicada nas estações V, VI e VII, que utilizam os instrumentos de percussão temple blocks e marimba. Essa sequência está escrita em attacca e a unidade de 180

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188. tempo (a semínima) sofre uma aceleração: Statio V - ca. 65 bpm; Statio VI - ca. 70 bpm; Statio VII - ca. 96 bpm. No entanto, algumas passagens do sétimo movimento, como a que mostra a Figura 19, representaram grande dificuldade técnica pela velocidade sugerida. Como estratégia de manutenção das proporções, os intérpretes acordaram em diminuir o tempo geral da Statio VII para 80 bpm e os movimentos anteriores em cerca de 5 bpm cada.

Figura 19 - Statio VII (c. 25-26): passagem de difícil execução no tempo metronômico sugerido.

O próximo exemplo é de um movimento cujo andamento proposto pelo compositor foi radicalmente alterado em função da otimização da execução do texto, por questões timbrísticas. Na décima estação (Figura 20), para violino e dois tambores de freio, o tempo sugerido para a semínima é de aproximadamente 120 bpm, mas o tempo de performance estabeleceu-se em cerca de 80 bpm. Isso permitiu preservar a audição das articulações e a precisão rítmica nos tambores de freio.

Figura 20 - Statio X (c. 6): Exemplo de trecho que justificou a alteração do tempo de execução da peça em virtude de questões timbrísticas.

Uma das dificuldades técnicas do Concerto nº4 é o ritmo, pela presença de diversas quiálteras e figuras rítmicas irregulares que se sobrepõem. Essa característica demanda um estudo minucioso das partes, especialmente quando ambas contêm ritmos cujas subdivisões não coincidem (Figura 21) ou quando os ataques simultâneos entre os instrumentos surgem em alternância com ataques defasados (Figura 22). Nestes casos, foi quase sempre privilegiada a 181

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188. sincronização dos gestos musicais, por vezes em detrimento da manutenção da pulsação, que se tornou flexível.

Figura 21 - Statio VI (c. 20): Exemplo de trecho com subdivisão irregular entre o violino e a marimba.

Figura 22 - Statio I (c. 29-34): Exemplo de trecho com alternância entre ataques sincronizados (elipses vermelhas) e defasados (retângulos azuis).

Em alguns movimentos, os intérpretes foram mais influenciados pelas marcações de caráter (cf. Figura 3) propostas pelo compositor do que pelas indicações metronômicas. Destacam-se naturalmente os movimentos para violino solo, pelo fato de estarem escritos sem barras de compasso, sugerindo um discurso mais livre em termos de divisão rítmica.

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

A Statio IV surge como exemplo de um fragmento em que várias questões relacionadas com a gestão do tempo anteriormente pontuadas se reuniram, e ainda se verificou uma importante contribuição da comunicação entre instrumentistas e compositor. Nas primeiras leituras da peça, a violinista fez uma interpretação errada da notação, devido à ausência de ligaduras nos arpejos em quintinas (Figura 23). Ao perceber que estava tocando a metade do andamento sugerido, teve que alterar a técnica de arco de detaché simples para uma bariolagem em quatro cordas com spiccato17. Ainda assim, o tempo de execução final foi reduzido para que fosse possível ouvir todas as notas do violino, o que implicou também o emprego de rubato nas quintinas, destacando as mudanças de arpejo.

Figura 23 - Statio IV (c. 1-4): Início do quarto movimento.

Ao mesmo tempo que a redução do andamento geral e a flexibilização rítmica permitiu otimizar a execução da parte do violino, estas estratégias serviram também à interação dos instrumentos. Por um lado, permitiu a exploração da ressonância das taças tibetanas em passagens mais rápidas (Figura 24), quando tocadas com baqueta, especialmente depois de ter sido decidido não as abafar. Por outro lado, o efeito sonoro da taça que ficava na mão do percussionista foi expandido, uma vez que a sua execução era feita sem ataque, mas sim girando a baqueta nas bordas da taça, o que atrasa o desenvolvimento do som.

17 O mesmo golpe de arco é frequentemente usado na cadência do Concerto em Mi menor, Op.64 de Mendelssohn ou em Fratres de Arvo Pärt. 183

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Figura 24 - Statio IV (c. 25-27): Exemplo de trecho com ataques rápidos (com baqueta) nas taças tibetanas.

Estas decisões sobre a Statio IV foram desde cedo discutidas com o compositor, que pela primeira vez remeteu os intérpretes para a relação direta entre a estrutura do Concerto nº4 e a narrativa da via-crucis. Em conversa pessoal, durante o Festival Artes Vertentes (Tiradentes, MG), em setembro de 201918, Harry Crowl explicou que entendia o violino como representação de Maria, mãe de Jesus, que sofria ansiosa ao ver o sofrimento do filho. As taças tibetanas, com sua sonoridade mais etérea, seriam a representação de Jesus tentando acalmar a mãe. Esta partilha, bem como uma conversa anterior durante a qual foram discutidos os resultados de uma gravação de estudo, contribuíram para a versão de performance apresentada à data da estreia do concerto completo.

4 - Considerações finais

Os processos colaborativos entre o compositor Harry Crowl e o Duo Sofia Leandro e Bruno Santos foram centrais em todas as fases de criação do Concerto nº4, para violino e percussão (em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco): a idealização, o desenvolvimento e a estreia. A fase de idealização começou com o desejo de ambas as partes explorar as possibilidades de interação do violino com vários instrumentos de percussão, num contexto de música de câmara, e progrediu das primeiras ideias do compositor relacionadas com a forma do concerto até à sua concretização textual, registrada na partitura. O desenvolvimento deu-se durante a transformação desse texto, necessariamente sujeito à interpretação dos músicos, em som. Em nenhum momento, esse ato de interpretar o discurso escrito na partitura dispensou o diálogo e o compartilhamento de novas ideias entre o duo e o compositor, entendendo sempre o texto na sua condição de subjetividade. A estreia sintetizou, enquanto performance, o resultado de interações como as que foram descritas neste artigo: interações entre o violino e a percussão e interações entre compositor e intérpretes. Essas interações não se esgotam, assim

18 No qual foram apresentados, em formato de pré-estreia, 4 movimentos do Concerto nº4, para violino e percussão, incluindo a Statio IV. 184

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188. como a estreia não significa o fechamento da obra enquanto produto artístico: “[...] é imprudente assumir que a primeira performance ou gravação de uma peça, mesmo que apoiada pelo compositor, é a [sua] afirmação autêntica e definitiva” (HEATON, 2012, p.100).

Enquanto pesquisa empírica em performance de música contemporânea, este trabalho espera gerar novas performances do Concerto nº4, tanto pelo Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, como por outros duos de violino e percussão. Cada uma delas poderá vir a afirmar, questionar ou mesmo alterar escolhas e convenções assumidas aquando da data da estreia. Do ponto de vista da técnica, não podemos deixar de levar em conta as características próprias de cada indivíduo implicado na performance musical. MISHRA e FAST (2015, p.77) salientam que não é possível generalizar o ato de estudar um instrumento, mesmo que entre intérpretes do mesmo instrumento, pois essa é uma “atividade individual”. Essa individualidade estende-se irrefutavelmente à composição. Porém, as práticas colaborativas que deram vida ao Concerto nº4, para violino e percussão conduziram Harry Crowl e o Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, ambos iniciando o contato com estas combinações instrumentais, a experiências valiosas que se materializaram nessa primeira performance.

A importância da colaboração com compositores é salientada por Nancy ZELTSMAN (1999, p.64), marimbista do duo Marimolin19:

Muitos compositores apreciam a oportunidade de colaborar com intérpretes, e com razão. Além de podermos explicar as várias idiossincrasias dos nossos instrumentos, podemos proporcionar aos compositores uma janela do que achamos realmente prazeroso de tocar. [...] compositores inteligentes sabem que é a música verdadeiramente atrativa para os intérpretes que vai ser mais tocada.

Ao se tratar do repertório para duo de violino e percussão, essa colaboração ainda se faz necessária, por várias razões. Primeiro, pela dificuldade em obter acesso às partituras, seja pela indisponibilidade das mesmas ou pelos obstáculos na aquisição de materiais por via institucional. Segundo, pela frequente ausência de referências advindas de interpretações anteriores, típica da performance de música contemporânea. Nesta formação, que não deixou

19 Marimolin é o nome de um duo de violino e marimba formado pela violinista Sharan Leventhal e pela marimbista Nancy Zeltsman, cuja atuação entre 1985 e 1996 deu uma contribuição sem precedentes à popularização desta formação de câmara. O duo gravou três álbuns, estreou 79 peças e conseguiu atrair mais de 200 novas composições, através da angariação de fundos para encomendas e da organização de um concurso de composição para a formação, que durou oito anos (ZELTSMAN, 2019). 185

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188. ainda de constituir novidade20, nem os músicos, nem os compositores se podem valer das “tradições”, o que na verdade estimula o contato entre as partes. Catarina DOMENICI (2013) aponta para a ascensão da horizontalidade nessas relações, que ocorre na percepção de que a obra só vai existir se for tocada e que a sua qualidade depende tanto das habilidades do compositor para escrever para uma formação específica, como das habilidades do intérprete para dar vida às ideias do compositor durante a performance. Estas considerações encontram- se em consonância com as práticas aqui relatadas.

Por fim, este duo depende de processos colaborativos devido à natureza da percussão, que representa uma família infindável de instrumentos, condicionando assim a exequibilidade de uma obra ao acesso a instrumentos e a espaços que viabilizem a sua performance. Esta última motivação foi a que deu origem ao Concerto nº4 para violino e percussão: em forma de via-crucis sobre o nome de Marielle Franco de Harry Crowl. Embora não nos seja possível ainda prever o impacto da performance desta obra para a sua afirmação nos cenários artísticos e acadêmicos nacionais, arriscamos declarar a sua importância enquanto exemplo de exploração de uma formação instrumental que ainda representa novidade. Para a pesquisa, este trabalho assume- se como mais uma contribuição de relato de prática ligada à performance de música contemporânea.

Referências

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2. CLARKE, Erik; DOFFMAN, Mark. (2014) Expressive performance in contemporary concert music. In: Expressiveness in music performance: Empirical approaches across styles and cultures. Ed. de Dorottya Fabian; Renee Timmers; Emery Schubert. Oxford: Oxford University Press. p.98-114.

3. COELHO, Manuel Rodrigues. (1620) Flores de Música. Disponível em: shorturl.at/ilwNQ. (Acesso em: 13 de dezembro de 2019).

4. DOMENICI, Catarina. (2013) It takes two to tango: A prática colaborativa na música contemporânea. Revista do Conservatório de Música da UFPel, n.6, p.1–14.

20 Note-se o fato de, até à data da finalização deste capítulo, terem sido encontradas apenas duas obras de compositores brasileiros para violino e percussão, além do Concerto nº4 de Crowl: Desafio XXXI (1968/1994), de Marlos Nobre, para violino e marimba; e Abolição da escravatura - in memoriam (1987), de Nelson Macêdo, para violino e bateria. 186

LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

5. HEATON, Roger. (2012) Contemporary performance practice and tradition. Music Performance Research, V.5. Royal Northern College of Music, p.96-104.

6. HILL, Peter. (2002) From score to sound. In: Musical Performance: A Guide to Understanding. Ed. de John Rink. Cambridge: Cambridge University Press, p.129-143.

7. MISHRA, Jennifer; FAST, Barbara. (2015) Practising in the new world: Strategies for preparing contemporary music for first performance. Music Performance Research, V.7. Royal Northern College of Music. p.65-80.

8. SHEN, Hexue. (2016) Bright Sheng’s Hot Pepper for Violin and Marimba: A Performer’s Guide to Interpretation. Dissertação (Doutorado em Artes Musicais) - The Ohio State University, Columbus, Ohio.

9. STRANGE, Patricia; STRANGE, Allen. (2001) The Contemporary Violin: extended performance techniques. Los Angeles: University of California Press.

10. WILLIE, Eric Jason. (2010) Primary compositional characteristics in the instrumental music of Paul Lansky as demonstrated in Hop (1993). Dissertação (Doutorado em Artes Musicais) - University of North Texas, Denton, Texas.

11. WUORINEN, Charles. (1964) Notes on the Performance of Contemporary Music. Perspectives of New Music. V.3, nº1, out./inv. 1964, p.10-21. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/832233. (Acesso em: 17 de novembro de 2019).

12. ZELTSMAN, Nancy. (1999) Commisioning New Music. Percussive Notes, v.37, n.5, p.64– 66, out. 1999.

13. ZELTSMAN, Nancy. (2019) Marimolin. Disponível em: http://www.nancyzeltsman.com/marimolin.html. (Acesso em: 13 de março de 2019).

Referências da partitura e registros audiovisuais

1. CROWL, Harry. (2019a) Concerto nº4, para violino e percussão (em forma de via- crucis sobre o nome de Marielle Franco. Curitiba. [Partitura não publicada].

2. ______. (2019b) Concerto nº4, para violino e percussão (em forma de via- crucis sobre o nome de Marielle Franco. [Gravação áudio]. Postado no SoundCloud por Harry Crowl em 15 de novembro de 2019. Disponível em: shorturl.at/iJNYZ. (Acesso em: 14 de dezembro de 2019).

3. DUO SOFIA LEANDRO E BRUNO SANTOS. (2019) Harry Crowl - Concerto nº4, para violino e percussão. Postado no YouTube por Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, em 2 de dezembro de 2019. Disponível em: https://youtu.be/ShDWD9QN97k. (Acesso em: 14 de dezembro de 2019).

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LEANDRO, Sofia; ROCHA, Fernando. (2020) Interação do violino com a percussão no Concerto nº4, para violino e percussão (2019) de Harry Crowl. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.165-188.

Notas sobre os autores

Sofia Leandro é doutoranda em Performance Musical pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduou-se em Música na Universidade de Aveiro, Portugal (2010), onde estudou violino com Zoltán Sánta. Em 2012 concluiu, na mesma instituição, o Mestrado em Ensino de Música, tendo desenvolvido o projeto educativo/dissertação “Iniciação ao violino partilhada por pais e filhos”. É Professora Assistente de violino no Departamento de Música da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Como violinista, colaborou com várias orquestras no seu país de origem, Portugal, e em 2009 obteve três prémios em concursos nacionais e internacionais. Em 2010, foi finalista do concurso para a Bolsa Yamaha. Fez parte de projetos de música de câmara especialmente dedicados à música contemporânea, como o Trio Ímpar (saxofone, violino e piano) e o duo com a pianista Francisca Fernandes. Em 2016, já no Brasil, iniciou o Duo Sofia Leandro e Bruno Santos, com vista à exploração da música original e adaptada para a formação violino e percussão, e ainda à divulgação da música de compositores da América Latina e da lusofonia.

Fernando Rocha é Professor Associado de percussão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desde 1998. Possui doutorado em música pela McGill University (Montreal, Canadá), onde estudou com Aiyun Huang e D’Arcy Philip Gray, Mestrado pela UFMG e Bacharelado em Percussão pela UNESP, onde tocou com o grupo PIAP e estudou com John Boudler, Eduardo Gianesella e Carlos Stasi. Entre 2015 e 2016 realizou pesquisa de Pós-Doutorado na Universidade da Virginia (EUA), onde atuou como Pesquisador/Artista Visitante. Ao longo se sua carreira, Fernando tem se dedicado especialmente à performance de música contemporânea, participando, como solista ou membro de grupo de câmara, de inúmeros festivais internacionais, tanto no Brasil quanto no exterior. Também tem colaborado com vários compositores na criação de novas obras, tendo realizado a primeira audição de obras de Almeida Prado, Edson Zampronha, Sílvio Ferraz, Roberto Victorio, Sérgio Freire, Alexandre Lunsqui (Brasil), João Pedro Oliveira (Portugal), Lewis Nielson, Jacob Sudol (USA), Nicolas Gilbert e Geof Holbrook (Canadá).

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo

Shifting with the “Old Finger” or “New Finger” on the cello: stylistic choices related to portamenti in the concertos by Haydn and Lalo

 Pedro Henrique Ludwig Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Fausto Borém Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Estudo sobre a escolha de dedilhados na realização de mudanças de posição no violoncelo em passagens selecionadas dos Concerto em Dó Maior de Haydn (1765) e Concerto em Ré Menor de Lalo (1877). A escolha do “dedo guia” nestas passagens leva em consideração aspectos técnico-musicais que buscam evitar ou enfatizar o portamento, enquanto elemento expressivo menos ou mais pertinente em dois estilos contrastantes: Clássico e Romântico. São utilizados aqui os conceitos de “Dedo Antigo” (o dedo que já estava tocando a nota anterior à mudança de posição) e “Dedo Novo” (o dedo que tocará a nota após a mudança de posição), assim como exploradas quatro situações em que ocorrem: (1) intervalos ascendentes com ligadura, (2) intervalos ascendentes sem ligadura, (3) intervalos descendentes com ligadura e (4) intervalos descendentes sem ligadura.

Palavras-Chave: Mudança de Posição no Violoncelo; Concertos para Violoncelo; Portamento nos períodos Clássico e Romântico.

Abstract: Study on fingering choices in shifting on the cello in selected excerpts of the Concerto in C Major by Haydn (1765) and the Concerto in D minor by Lalo (1877). The choice of the “guide finger” in these excerpts considers technical and musical aspects in order either to avoid or emphasize the portamento as an expressive element that may be less or more appropriate to two contrasting styles: Classical and Romantic. The “Old Finger” (i.e. the finger that played the note before the shifting) and “New Finger” (i.e. the finger that played the note after the shifting) concepts will be used, given that four possible occurrences are to be found in: (1) ascending intervals with slur, (2) ascending intervals without slur, (3) descending intervals with slur and (4) descending intervals without slur.

Keywords: Shifting on the Cello; Cello Concertos; Portamento in the Classical and Romantic periods.

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

1 – Introdução

Na prática dos instrumentos de corda, o termo “posição” refere-se especificamente ao local do braço do instrumento onde os dedos da mão esquerda do músico estão posicionados. Assim, “mudança de posição” refere-se ao movimento da mão esquerda entre duas posições. Diversos pedagogos do violoncelo dedicaram seções de seus tratados e métodos a esse tema. Em CelloMind: Intonation and Technique, JENSEN e CHUNG (2017, p.167), apresentam quatro categorias de mudança de posição, de acordo com o dedo da mão esquerda que irá deslizar pela corda entre uma posição e outra, dedo que aqui chamaremos de “dedo guia”. São elas: 1. “Mesmo Dedo” (same finger): ocorre quando o dedo que toca a última nota de uma posição é o mesmo que toca a primeira nota da posição seguinte; 2. “Dedo Antigo” (old finger): a mudança é feita pelo dedo da posição antiga antes de se pressionar a corda com o dedo da nova posição; 3. “Dedo Novo” (new finger): muda com o dedo da nova posição desde o início do movimento; 4. “Combinação de Dedos” (combination fingers): inicia-se a mudança com o “Dedo Antigo”, e termina-se com o “Dedo Novo”. Os autores ainda afirmam: “Selecionar qual categoria de mudança de posição utilizar é uma escolha musical e artística” (JENSEN e CHUNG, 2017, p.167, tradução nossa).

Outros autores também identificam categorias de mudança de posição a partir do mesmo critério. Ivan GALAMIAN (2013, p.27) chama de “overshifting” ou “portamento francês” a mudança de posição com o “Dedo Antigo”, e de “undershifting” ou “portamento russo” aquelas com o “Dedo Novo”. A nomenclatura “old” e “new finger” é utilizada da mesma forma por Louis POTTER em The Art of Cello Playing (1980, p.114). Esse autor também concorda com JENSEN e CHUNG (2017) quanto à escolha de uma categoria ou outra ao afirmar que esta é uma questão musical e estética. POTTER (1980 p.114) ainda observa que é comum associar a mudança de posição com o “Dedo Antigo” aos estilos Barroco e Clássico e, por sua vez, a mudança de posição com o “Dedo Novo” ao estilo Romântico, pois o primeiro é mais articulado e o segundo torna o glissando mais audível, conectando as duas notas. Simon FISCHER (2004) e Robert Jesselson1 (CAMPOS, 2018) concordam com esta relação, e adotam os termos Mudança Clássica (Classical Shift) e Mudança Romântica (Romantic Shift) para nomear as duas categorias. Victor SAZER (1995, p.150) segue a mesma linha e destaca que a

1 Professor emérito de violoncelo da University of South Carolina e ex-presidente da ASTA (American String Teachers Association).

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

mudança de posição com o dedo velho beneficia a limpeza de articulação da mudança de posição. Neste capítulo, vamos tratar especificamente das mudanças de posição nas quais o dedo da posição antiga é mais baixo que o dedo da nova posição, por exemplo: do dedo 1 para o dedo 2, 3 ou 4.

2 – O portamento nos períodos Clássico e Romântico

Antes de discorrer sobre o uso do portamento em diferentes estilos, cabe esclarecer que, na prática, os termos glissando e portamento com frequência são confundidos ou intercambiáveis entre si (BOYDEN, 2016). Ambos têm como resultado sonoro a passagem por todas as alturas do som entre duas notas com um gesto rápido. Porém, no presente estudo, adotamos o senso comum de autores relevantes (BOYDEN, 2016; HARRIS, 2016; STOWELL, 2016), em que o termo portamento denota um efeito expressivo, sem indicação registrada na partitura pelo compositor, enquanto o termo glissando é uma instrução explícita do compositor.

Um dos raros estudos com espectrogramas sonoros sobre portamento teve como fonte primária uma gravação histórica de 1929 do contrabaixista solista Serge Koussevitzky, e teve o objetivo de caracterizar um período de transição entre o declínio do portamento e a ascensão do vibrato contínuo na primeira metade do século XX. Neste estudo, Alfredo RIBEIRO DA SILVA (2016) classificou os portamenti em três categorias: (1) portamento inicial, mais evidente nas proximidades da nota de origem; (2) portamento conclusivo, que se inicia no final, nas proximidades da nota de chegada e (3) portamento com nota intermediária, que contém uma clara articulação, como se fosse uma nota intermediária entre as notas de origem e de chegada.

Aqui teremos como foco a escolha do “dedo guia” na mudança de posição, suas questões técnicas e implicações estilísticas e interpretativas. Como vimos na seção anterior, alguns pedagogos relacionam a escolha do “dedo guia” em mudanças de posição às práticas de performance dos períodos Clássico e Romântico. Tais relações baseiam-se na audibilidade do portamento na passagem de uma posição para outra. Há diversas evidências de que o portamento vocal era utilizado no período Clássico (BROWN, 1999). Porém, nas cordas, o uso

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

dessa técnica deveria ser mais restrito, como deixa claro o seguinte comentário do crítico musical J. F. Reichardt, de 1776 (citado por STOWELL, 1990, p.99, tradução nossa):

Deslizar um dedo por várias posições é absolutamente proibido (i.e. em um contexto de orquestra), embora isto seja por vezes permissível para o solista. Bom gosto é necessário para soar tolerável a ouvidos sensíveis. A maneira que a maior parte dos violinistas executa faz soar como um gato desesperado chorando à porta do seu dono.

Em um artigo do Allgemeine musikalische Zeitung2 de 1811, Salieri descreveu o uso do portamento por músicos de orquestra como fútil e infantil, asseverando que esta prática era como uma doença infecciosa e lembrava miados de gatos (BROWN, 1999, p.563). Outro crítico, no mesmo jornal, em 1814, ressalta que o portamento “é um ornamento que certamente é agradável no canto, se for utilizado com grande moderação, com bom gosto e nos lugares certos” (BROWN, 1999, p.565, tradução nossa). Sobre esta consideração, Clive BROWN (1999, p.565, tradução nossa) afirma o seguinte:

Conselhos semelhantes são encontrados em praticamente todos os livros didáticos do século XIX que lidam com estas técnicas. Assim como qualquer recurso expressivo, o portamento era passível de abusos nas mãos de músicos menos talentosos. Apesar das críticas frequentes sobre o uso exagerado dessa técnica, fica evidente que, a partir da metade do século XIX, ela se tornou um recurso expressivo consolidado e utilizado com bastante liberdade e que, até meados do século XX, perseverou em suas formas variadas como um aspecto inerente da técnica vocal e instrumental.

As citações acima, portanto, corroboram com a observação de Louis Potter. No estilo Clássico, ele sugere que o portamento seja utilizado com restrição e, por isso, as mudanças de posição com o “Dedo Antigo” são mais apropriadas. Já no estilo Romântico, o uso dessa técnica é mais livre e, por isso, as mudanças com o “Dedo Novo” são mais comuns (POTTER, 1980, p.115).

Para exemplificar as mudanças de posição com “Dedo Antigo” e “Dedo Novo” nos repertórios Clássico e Romântico, escolhemos concertos para violoncelo representativos de cada período. O Concerto em Dó Maior, Hob. VIIb:1 (ed. 1989), de Joseph Haydn, foi escrito entre 1762 e 1765, quando o compositor trabalhava para a corte do Príncipe Esterházy. Este concerto foi redescoberto apenas em 1961, através de um manuscrito encontrado no Museu Nacional de Praga. Até então, a existência desta peça era conhecida apenas pelas anotações do próprio Haydn em sua lista pessoal de obras. Já o Concerto em Ré Menor de Edouard Lalo (ed. 1955) foi composto em 1877 e dedicado ao violoncelista belga Adolphe Fischer.

2 Periódico de crítica musical do séc. XIX.

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3 – As mudanças de posição com o “dedo guia”

Antes de passarmos para a análise das escolhas de “dedo guia” em mudanças de posição, faz- se pertinente a observação de Louis POTTER (1980, p.116, tradução nossa):

Podemos observar que, em passagens musicais onde o portamento não é desejável, como em passagens rápidas, a mudança de posição precisa ser habilidosamente realizada de forma a disfarçá-la. [...] Um violoncelista experiente escolherá dedilhados e extensões que tornarão a mudança de posição menos evidente, ou que a evitarão por completo. Outra sugestão é mudar de posição de maneira a coincidir com as mudanças de direção do arco. Ou ainda, a mudança de posição pode ser realizada nos intervalos mais curtos da passagem, em um semitom, por exemplo.

Para analisarmos a aplicação das diferentes categorias de mudança de posição no repertório, selecionamos aqui trechos com mudanças de posição na mesma corda em que o dedo da posição antiga é mais baixo que o da nova posição, por exemplo, 1-3, 1-4, 2-4. Estes trechos foram organizados da seguinte maneira (Figura 1): 1. intervalos ascendentes com ligadura, 2. intervalos ascendentes sem ligadura, 3. intervalos descendentes com ligadura e 4. intervalos descendentes sem ligadura.

Si2 Si2

Ré3

Ré3

Mi3 Sol3 Sol3 Mi3

Figura 1 – Os quatro tipos de mudança de posição analisados conforme articulação (ligada e desligada) e direção (ascendente e descendente).

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

Simon FISCHER (2004, p.160) ressalta a importância das “notas intermediárias” para o estudo das mudanças de posição, que servem como uma referência para medir distância e afinação. Sobre este tópico, LA FOSSE (1975, p.70, tradução nossa) afirma que “[...] é o recurso mais importante e eficiente para estabelecer a exata distância a ser percorrida e, portanto, muito significativo para um estudo sistemático de mudanças de posição”. Embora as referências acima sejam de livros didáticos de violino, podemos encontrar exercícios com “notas intermediárias” também na literatura do violoncelo (JENSEN e CHUNG, 2017; LÄNGIN, 1968; POTTER, 1980). Já em seu trabalho, RIBEIRO DA SILVA (2016) demonstra que este recurso técnico também é utilizado no contrabaixo, seja conscientemente, seja como um problema de dedilhado. No exemplo 1 da figura acima, podemos determinar duas notas intermediárias diferentes, a depender do “dedo guia” da mudança de posição. Se a mudança for realizada com o “Dedo Antigo”, a nota intermediária será o Mi3; se for com o “Dedo Novo”, será o Ré3. Embora o som da mudança de posição tenha o intervalo de uma 6ª menor (Si2-

Sol3), a distância percorrida pelo mesmo dedo tem um intervalo mais curto, de uma 4ª justa, independentemente do “dedo guia” que será utilizado (Si2-Mi3 ou Ré3-Sol3). Na Figura 2 (e nas seguintes), utilizamos o conceito de EdiPA (Edição de Performance Visual; BORÉM, 2018), para explicitar o espaço percorrido e locais aproximados de início e final de atuação do “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” entre duas notas.

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Si2 Si2

(Ré3) )

(Mi3) ) Sol3 Sol3

Mudança com Mudança com “Dedo Antigo” 1 “Dedo Novo” 4

4ª justa notas intermediárias

Figura 2 – Duas possibilidades de notas intermediárias nas mudanças de posição com o “Dedo Antigo” 1 e o “Dedo Novo” 4.

FISCHER (2004, p.160, tradução nossa) ainda esclarece:

O quão claramente se ouvirá a nota intermediária depende do tipo de peça e do contexto. Pode variar de inaudível, a “nota fantasma”, ou, ainda, ser um elemento expressivo da mudança de posição. “Nota fantasma” significa tocar a nota intermediária com a menor quantidade de arco possível (não mais que um centímetro), com a menor pressão do arco possível (quase não encostando o arco na corda) e pressionando os dedos como se estivessem tocando harmônicos.

3.1 - Intervalos ascendentes com ligadura

Neste excerto do primeiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn, podemos observar uma mudança de posição ascendente na Corda I do violoncelo (linha tracejada vermelha na

Figura 3), que vai de um Si2 na primeira posição, com o dedo 1, para um Sol3 na quarta posição, com o dedo 4. Para este caso, escolhemos o “Dedo Antigo” como guia (mudança de posição Clássica). Portanto, o dedo 1 desliza pela corda até chegar no Mi3 (nota intermediária), quando o dedo 4 articula o Sol3. Como foi abordado na seção 2 deste capítulo, o uso de portamento na música do período Clássico deve ser mais restrito. A mudança de

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posição como proposta aqui pode apresentar um discreto portamento no início do deslocamento da mão esquerda, mas este chegará até o Mi3, no máximo. No instante em que o dedo 4 atingir a corda, subitamente a frequência do som passará do Mi3 para o Sol3.

Mudança com “Dedo Antigo” 1

Figura 3 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Antigo” no primeiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn: o “Dedo Antigo” 1 desliza do Si2 até o Mi3 e o Sol3 é articulado com o “Dedo Novo” 4.

O mesmo princípio foi aplicado nesta passagem da cadenza3 do mesmo movimento (Figura 4).

Desta vez, o intervalo é de uma 4ª justa, do Sol3 para o Dó4, em um registro mais agudo, da sexta para a sétima posição.

Mudança com “Dedo Antigo” 1

Figura 4 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Antigo” na cadenza do primeiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn: o “Dedo Antigo” 1 desliza do Sol3 até o Lá3 e o Dó4 é articulado com o “Dedo Novo” 3.

Vejamos agora exemplos de mudança de posição ascendente com ligadura no Concerto em Ré Menor de Lalo. No excerto da Figura 5 optamos pelo “Dedo Novo” como guia (mudança de

3 Esta Cadenza foi encontrada nos manuscritos do Museu Nacional de Praga em 1961 e está disponível na edição da Henle Verlag (1989).

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posição Romântica). Dessa maneira, o dedo que tocará a primeira nota da nova posição (3) entra em contato com a corda no início da mudança, e desliza até alcançar a altura da próxima nota (Si3). Vale ressaltar que, neste caso, os dedos 1 e 2 permanecem em contato com a corda durante a mudança. Nenhum dos dedos deveria pressionar excessivamente a corda contra o espelho, pois, assim, o atrito causado por essa força impediria o deslizamento dos dedos até a nova posição, podendo resultar em uma afinação baixa. A ligadura faz com que o som não seja interrompido durante a mudança de posição e, dessa maneira, a frequência do Si3 será atingida através de um portamento audível.

Mudança com “Dedo Novo” 3

Figura 5 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Novo” no primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Novo” 3 desliza do Mi3 até o Si3.

O trecho a seguir (Figura 6), relativo ao mesmo movimento, é bastante semelhante. A nota de saída é a mesma, um Ré3 que é tocado com o dedo 1, porém o intervalo da mudança de posição é mais distante, de uma 8ª justa. Esta mudança de posição apresenta um grau de dificuldade mais elevado por sair da 3ª posição e terminar no registro agudo do violoncelo, no qual o polegar será posicionado sobre o harmônico central da corda.

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Mudança com “Dedo Novo” 3

Figura 6 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Novo” no primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Novo” 3 desliza do Mi3 até o Ré4.

No trecho a seguir (Figura 7), podemos observar duas mudanças de posição ascendentes nas quais optamos pelo “Dedo Antigo”. Ele faz parte da seção final do movimento, que apresenta uma longa sequência de semicolcheias em dinâmica fortissimo. Mesmo sendo uma obra do período Romântico, fizemos essa escolha por considerarmos importante a clareza de articulação das notas, visto que cada uma delas terá uma duração muito curta.

Mudança com Mudança com “Dedo Antigo” 1 “Dedo Antigo” 1

Figura 7 – Duas mudanças de posição com “Dedo Antigo” 1 (mudança clássica) em repertório romântico (Concerto em Ré Menor de Lalo, Mov.I) devido às passagens com ritmos rápidos.

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3.2 - Intervalos ascendentes sem ligadura

Nos casos de mudança de posição sem ligadura, ou seja, quando o deslocamento da mão esquerda coincide com uma mudança na direção do arco, a presença ou ausência do portamento será resultado da coordenação entre os movimentos das duas mãos. É mais fácil suavizar a presença de portamenti em mudanças de posição entre notas de arcadas diferentes, já que o deslocamento da mão esquerda pode ser realizado no mesmo instante que a troca de direção do arco. Por este motivo, é aconselhável escolher dedilhados que sincronizem as duas mudanças quando o objetivo é evitar o portamento. Já nos casos em que a intenção é enfatizar o portamento por razões expressivas, é aconselhado antecipar a mudança na direção do arco e utilizar o “Dedo Novo” (JENSEN e CHUNG, 2017, p.168). Por conseguinte, o intérprete também terá que decidir se realizará a mudança de posição na “arcada antiga” ou “nova”.

Neste excerto do segundo movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn (Figura 8), optamos pelo “Dedo Antigo”. Cabe observar que, na figura, a ligadura foi estendida até o Fá3 com a intenção de demonstrar que a mudança é feita na “Arcada Antiga”. Deste modo, o dedo 4 toca a corda no mesmo instante que ocorre a mudança na direção do arco.

Mudança com “Dedo Antigo” 2

Figura 8 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Antigo” na “Arcada Antiga” no segundo movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn: o “Dedo Antigo” 2 desliza do Dó3 até o Fá3 e o Sol3 é articulado com o “Dedo Novo” 4.

No trecho a seguir (Figura 9), temos um exemplo de mudança de posição no primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo. O salto é de uma 8ª justa, do Ré3 para o Ré4. A escolha foi pelo “Dedo Novo”, antecipando a mudança na direção do arco (“Arcada Nova”)

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para enfatizar o portamento. Desta maneira, “a mudança de posição se torna uma sutil anacruse, que não perturba a estrutura rítmica” (MANTEL, 1995, p. 53, tradução nossa).

Mudança com “Dedo Novo” 3

Figura 9 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Novo” e na “Arcada Antiga” no primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Novo” 3 desliza do Mi3 até o Ré4.

No exemplo da Figura 10, também do primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo, observamos mais um salto de 8ª justa, do Fá3 para o Fá4. Neste caso, como no exemplo anterior, optamos pela mudança de posição com o “Dedo Novo”, mas dessa vez na “Arcada Antiga”, sincronizando a chegada do dedo 3 com a mudança de arco na cabeça do quarto tempo do compasso, tal qual está grafado na partitura. A intenção dessa escolha não é disfarçar o portamento, mas enfatizar a articulação do quarto tempo, visto que as duas notas que o antecedem são acentuadas e este salto de 8ª justa, no repertório romântico é um padrão recorrente muito expressivo.

Mudança com “Dedo Novo” 3 

Figura 10 – Mudança de posição ascendente com o “Dedo Novo” na “Arcada Antiga” no primeiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Novo” 3 desliza do Fá#3 até o Fá♮4.

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3.3 - Intervalos descendentes com ligadura

Quando se trata de mudanças de posição descendentes onde o “Dedo Antigo” é mais baixo que o “Dedo Novo”, os tratadistas aqui estudados não apresentam o mesmo consenso no que diz respeito a mudanças de posição ascendentes. Vários tratados e métodos sugerem que a melhor categoria é a do “Dedo Antigo” (ALEXANIAN, 2003, p.53; LÄNGIN, 1968, p.16; POTTER, 1980, p.117; Rolland, citado por LA FOSSE, 1975, p.105 entre outros), devido à clareza de articulação. JENSEN e CHUNG (2017), em CelloMind, dedicam diversas páginas a este tema com exemplos e exercícios das mais variadas situações de mudança de posição. Neste caso, eles não fazem menção à mudança de posição com o “Dedo Antigo”, mesmo em exercícios onde haveria as duas possibilidades (“Dedo Antigo” ou “Novo”). Por outro lado,

Robert SUETHOLZ (2015, p.73) afirma o seguinte:

Esse tipo de deslizamento [“Dedo Antigo”] é mais comum em mudanças ascendentes e não deve ser utilizado em mudanças descendentes, quando o “Dedo Antigo” está mais perto da pestana que o novo como, por exemplo, 1-4, 2-4, 3-4, pois, em minha opinião, o resultado sonoro será extremamente desagradável.

Em conversa através de mensagens de texto do Facebook com esses autores, SUETHOLZ (2019) esclarece que a opinião se baseia no fato de que, na realização dessa mudança de posição com o “Dedo Antigo”, este atingirá uma altura inferior à da nota pretendida. Assim, pode-se ouvir duas direções contrárias na mesma mudança de posição, uma descendente e outra ascendente para retornar à nota-alvo que foi ultrapassada (linha tracejada vermelha na Figura 11). Em um estudo quantitativo no contrabaixo4, BORÉM e LAGE (2019) chamam este fenômeno musical de overshoot e explicam que este resultado sonoro é o mais temido e, por isto o mais evitado nas grandes mudanças de posição. O portamento descendente, portanto, será de um intervalo mais amplo que o escrito na partitura. Como vimos anteriormente, nas mudanças de posição ascendentes, as notas intermediárias reduzem a distância entre as duas notas melódicas. Já nas mudanças de posição descendentes, ocorre o contrário: a distância é expandida. Consequentemente, um eventual portamento também será expandido. No exemplo da Figura 11, podemos observar um intervalo de 2ª maior descendente, do Mi3 com o dedo 1

4 O segundo coautor do presente capítulo e o pesquisador Guilherme Lage receberam o prêmio Gran Prize – Professional Category da ISB (International Society of Bassists) em 2018 pela pesquisa interdisciplinar (áreas de Performance Musical e Comportamento Motor) que avaliou os fenômenos de undershoot e overshoot no contrabaixo (disponível em http://www.ojbr.com/volume-10-number-1.asp).

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para o Ré3 com o dedo 4. Independentemente do “dedo guia”, antigo ou novo, a distância da mudança de posição será de uma 4ª justa. Este fator pode ser determinante ao se escolher como a mudança de posição será realizada. Como alternativa, SUETHOLZ (2015) sugere uma mudança de posição com “substituição de dedos”, que JENSEN e CHUNG (2017) chamariam de “combinação de dedos”.

Ré3 Ré3

Mi3 Mi3

Mudança com Mudança com “Dedo Antigo” 1 “Dedo Novo” 4

4ª justa

Figura 11 - Duas possibilidades de notas intermediárias nas mudanças de posição, com “Dedo Antigo” e “Dedo Novo”.

No c.64 do primeiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn (Figura 12), nossa intenção é tornar o portamento o mais discreto possível. Por isso, optamos pela mudança de posição com “Combinação de Dedos”, que se inicia com o “Dedo Antigo” e compreende o acréscimo do “Dedo Novo” durante o deslocamento da mão esquerda. Neste caso, enquanto o dedo 1 toca o Mi3, os demais se contraem para que a substituição do “dedo guia” seja realizada o mais rápida e suavemente possível. A pressão e velocidade do arco podem ser diminuídas no instante em que ocorre a mudança de posição para dissimular esta operação.

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Mudança com “Combinação de Dedos” 1 + 4

Figura 12 – Mudança de posição descendente utilizando “Combinação de Dedos” no primeiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn: o “Dedo Antigo” 1 inicia o deslize e é substituído pelo “Dedo Novo” 4 durante a mudança.

No c.87 do terceiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo (Figura 13), utilizamos a mesma categoria de mudança de posição. Neste caso, a mão sai da posição de capotasto e se desloca para a quarta posição. Por conseguinte, se deve também sincronizar o movimento do polegar, saindo de cima das cordas e indo para trás do braço do violoncelo. A pressão e velocidade do arco podem ser mantidas durante esta mudança de posição, pois se trata de uma peça do período Romântico e um portamento entre o Si3 e o Sol3 estaria dentro do estilo.

Mudança com “Combinação de Dedos” 1 + 4

Figura 13 – Mudança de posição descendente utilizando “Combinação de Dedos” no terceiro movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Antigo” 1 inicia o deslize e é substituído pelo “Dedo Novo” 4 durante a mudança.

O final do terceiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn apresenta uma sequência de seis compassos de semicolcheias em grau conjunto, com ligaduras e em um andamento Allegro molto. Neste caso (Figura 14), optamos pela mudança de posição com o “Dedo Antigo”, por este ser mais ágil e resultar em uma articulação mais clara. Para o que o efeito de

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overshoot com o dedo 1 não seja auditivamente aparente, ou seja, o dedo 1 passar da nota- alvo, chegar até o Si2 e depois retornar a ela (no c.237: o Dó3 com o dedo 2; e no c.238: o Ré3 com o dedo 4 no c.238), é necessário que a passagem seja rápida e que os movimentos dos dedos sejam igualmente velozes e com pouquíssima pressão sobre a corda.

Mudança com Mudança com overshoot do overshoot do “Dedo Antigo” 1 “Dedo Antigo” 1 para o dedo 2 para o dedo 4

Figura 14 - Decisão de mudanças de posição descendentes com overshoots do “Dedo Antigo” no terceiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn devido às passagens com ritmos rápidos.

3.4 - Intervalos descendentes sem ligadura

Como visto acima, quando há sincronia entre as mudanças de posição ascendentes e mudança na direção do arco, a audibilidade do portamento será resultado da combinação dos movimentos de ambas as mãos. No caso das mudanças descendentes, é incomum a antecipação da mudança de arcada para enfatizar o portamento. De fato, os tratados que sugerem este recurso o fazem apenas para intervalos ascendentes (ALEXANIAN, 2003; JENSEN e CHUNG, 2017; MANTEL, 1995).

No exemplo da Figura 15, extraído do terceiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn, as colcheias são executadas em spiccato (golpe de arco em que o arco ricocheteia sobre a corda, muito comum no repertório do período Clássico). Assim, durante o curto espaço de tempo em que o arco perde o contato com a corda, a mão esquerda pode realizar mudanças de posição rápidas sem que o portamento seja percebido. E por isto mesmo, nestes casos, é indiferente qual “dedo guia” será utilizado.

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Mudança com Mudança com “Combinação de “Dedo Antigo” 1 Dedos” 1 + 4

Figura 15 – Mudança de posição descendente com duas opções de “dedo guia” no terceiro movimento do Concerto em Dó Maior de Haydn: “Dedo Antigo” 1 ou “Combinação de Dedos” 1 e 4.

A seguir, é apresentado um exemplo do segundo movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo com mudança de posição descendente com “Combinação de Dedos” na “Arcada Antiga” (Figura 16). A pressão e a velocidade do arco se mantêm constantes durante a mudança.

Mudança com “Combinação de Dedos” 1 + 2

Figura 16 - Mudança de posição descendente utilizando “Combinação de Dedos” no segundo movimento do Concerto em Ré Menor de Lalo: o “Dedo Antigo” 1 inicia o deslize e é substituído pelo “Dedo Novo” 2 durante a mudança.

4 – Considerações Finais

Em nossa revisão da literatura em pedagogia da performance dos instrumentos de cordas friccionadas, observamos que diversos autores categorizam as mudanças de posição de acordo com o “dedo-guia”. A mudança de posição com o “Dedo Antigo” produz um portamento mais discreto e favorece a clareza de articulação e, com o “Dedo Novo”, um portamento mais conspícuo. A escolha de determinados pedagogos em classificar as mudanças de posição com

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

o “Dedo Antigo” como “Clássica” e com o “Dedo Antigo” como “Romântica” condiz com a prática de performance desses dois períodos da história da música. No Classicismo, o portamento tem seu uso mais restrito e discreto, enquanto no Romantismo esse recurso é utilizado de forma mais livre e mais expressiva. Em textos de crítica musical destes períodos ou em tratados técnicos, não é incomum autores utilizarem o termo “gosto” (no sentido de preferência estética pessoal) para tratar de portamento, o que evidencia um determinado grau de subjetividade a este tema, e que explicaria a falta de uma concordância plena entre os diferentes autores.

A partir dos subsídios teóricos coletados, propusemos a aplicação da correlação “dedo guia”- estilo nos concertos de Haydn e Lalo. Dessa maneira, verificou-se que, de fato, tal lógica parece mais adequada na maioria dos casos. Porém, pode haver exceções, uma vez que variáveis, como ritmos e dinâmicas, podem interferir nas decisões do instrumentista por mudanças de posição que não se enquadram ao senso comum.

O domínio técnico das diferentes categorias de mudança de posição e a compreensão de sua aplicação no repertório são de grande relevância para instrumentistas de cordas friccionadas. Espera-se que a discussão de modelos da organização mecânica e rítmica em passagens musicais como os propostos neste capítulo possa contribuir para a compreensão e desenvolvimento de habilidades técnicas (como afinação e velocidade), mas especialmente qualidades expressivas (como estilo de época) em violoncelistas estudantes e profissionais.

Referências de Texto

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Referências de Partitura

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2. LALO, Edouard. (1955) Concerto in D minor for Cello and Piano. Edição Leonard Rose. New York: International Music Company.

Notas sobre os autores

Pedro Ludwig graduou-se Bacharel em Música pela Universidade Federal de Santa Maria em 2004, e no ano seguinte transferiu-se para os Estados Unidos para dar seguimento à sua formação. Recebeu o título de mestre pela Universiy of South Carolina, onde atuou no USC Graduate String Quartet, e prosseguiu com estudos de aperfeiçoamento na Carnegie Mellon University, com bolsas de estudos das próprias universidades. Atuou como músico convidado em orquestras no Brasil e nos Estados Unidos, destacando a Orquestra Filarmônica da Carolina do Sul, Sinfônica de Augusta, Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) e Sinfônica Brasileira (OSB). Lecionou nos Festivais de Música de Cascavel e Londrina. Desde 2013 é professor do Departamento de Música da Universidade Estadual de Maringá. Seus principais professores foram Ângela Ferrari, Robert Jesselson e David Premo. Atualmente, cursa o doutorado em Performance Musical na UFMG sob a orientação do Prof. Dr. Fausto Borém.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a revista acadêmica Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais do contrabaixo acústico desde a década de 1990 (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo, Avignon e as principais universidades de música nos EUA), nos quais apresenta suas composições, arranjos e transcrições. É pesquisador do CNPq desde 1994 e líder dos grupos de pesquisa multidisciplinares ECAPMUS (Estudos em Comportamento e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (Pérolas e Pepinos da Performance Musical). Criou o método interdisciplinar mAAVm (Método de Análise de Áudios e Vídeos de Música) com suas diversas ferramentas de análise integrando música às outras artes (dança, teatro, cinema, literatura), psicologia e psiquiatria (reconhecimento de expressões faciais e gestos maiores, emoções e mudanças de comportamento) e educação física (controle e aprendiz agem motora). Publicou dezenas de artigos sobre práticas de performance das músicas erudita e popular, no Brasil e no exterior.

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LUDWIG, Pedro Henrique; BORÉM, Fausto (2020). Mudanças de posição com “Dedo Antigo” ou “Dedo Novo” no violoncelo: escolhas estilísticas de portamenti nos concertos de Haydn e Lalo In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte, UFMG, selo Minas de Som, p.189-209.

Como contrabaixista, acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti e Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão, Skank e Paula Fernandes. Foi professor e recitalista do Festival Internacional de Música Antiga e Música Colonial Brasileira de Juiz de Fora (2005 a 2008, 2015) e contrabaixista em 5 CDs com a Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora (2005 a 2009; incluindo o Prêmio Diapason D'or do Brasil), que incluem sinfonias de W. A. Mozart e J. Haydn, Suites de Bach e a Sinfonia a Grand Orchestra de S. Neukomm. Restaurou e publicou as lições do método de contrabaixo e as modinhas imperiais de Lino José Nunes (1789-1847). Foi o contrabaixista do 4º CD da Orquestra Barroca do Amazonas (2016). Publicou vários artigos seminais sobre figuras da música popular brasileira como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Elis Regina, Pixinguinha, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Raphael Rabelo, K-Ximbinho, Vitor Assis Brasil e Grupo Uakti. Recebeu prêmios no Brasil e no exterior como solista no contrabaixo, compositor, pedagogo e analista musical.

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LOPES, L.; LAGE, G. M.; BORÉM, F. (2020). Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico. In: Diálogos Musicais da Pós‐Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.210-226.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico

Outline of 4 excerpts in distinctive mental workload from double bass performance

Leonardo Lopes Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Guilherme Menezes Lage Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Fausto Borém Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: A natureza multifacetada dos movimentos da performance no contrabaixo acústico possibilita diferentes técnicas de realização dos sons em arco (francês ou alemão) ou em pizzicato. No campo do Controle Motor, variações na técnica de realização de um movimento acarretam diferentes níveis de processamento de informações no Sistema Nervoso Central. Este processamento depende de funções cognitivas como a percepção, a atenção e a memória, que levam a diferentes níveis de esforço cognitivo. Este estudo-piloto visa, com vistas a um experimento de avaliação do esforço cognitivo em laboratório, delinear e descrever 4 situações com demandas técnicas distintas e relevantes, comuns no repertório musical do contrabaixo: (1) localização de notas-alvo; (2) alternância entre as técnicas de arco e pizzicato; (3) alternância rápida com o arco entre cordas; (4) aderência da crina na corda em fortissimo. Podemos concluir que os excertos apresentados sintetizam de forma eficiente as características da performance de cada técnica abordada. Desse modo, conseguimos evidenciar diferentes condições cinesiológicas na realização de um mesmo excerto musical.

Palavras-chave: técnicas de performance no contrabaixo; descrição cinesiológica na música; esforço cognitivo na performance musical.

Abstract: The multifaceted nature of the movements in double bass performance enables different techniques for making the bow (French or German) or pizzicato sounds. In the field of Motor Control, variations in the technique of performing a movement cause different levels of information processing in the central nervous system. This processing depends on cognitive functions such as perception, attention, and memory, which lead to different levels of mental workload. This pilot study aims, with a view to a laboratory mental workload evaluation experiment, to delineate and describe 4 situations with distinct and relevant technical demands, common in the double bass musical repertoire: (1) localization of target notes; (2) alternation between bow and pizzicato techniques; (3) rapid alternation with the bow between strings; (4) adherence of the hair bow to the string in fortissimo. We concluded that the excerpts presented synthesize the efficient way as characteristics of the performance of each approached technique. In this way, we were able to highlight different kinesiological conditions in the same music excerpt.

Keywords: double bass performance techniques; kinesiological description in music; mental workload in musical performance.

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1 – Introdução

Algumas medidas de esforço cognitivo despendido na realização de diferentes tarefas motoras têm sido utilizadas como base para diferentes estudos. Na sua maioria, elas têm aplicação na área industrial (RUPP et al., 2019; DE SOUZA CARDOSO; GONTIJO, 2012; BERKA et al., 2007; WICKENS, 2002). A maior parte desses estudos busca aprimorar algum tipo de sistema, a fim de que as demandas cognitivas do operador sejam reduzidas, resultando na melhoria das condições de trabalho, em procedimentos mais eficazes e na prevenção de acidentes.

Em outro contexto de estudos cognitivos, pesquisadores têm examinado o impacto causado pela escuta musical na performance de diferentes tarefas motoras corriqueiras, como dirigir um carro (MILLET; AHN; CHATTAH, 2019; ÜNAL; STEG; EPSTUDE, 2012), ou especializadas, como na prática esportiva (NAKAMURA et al., 2010; DE WAARD; EDLINGER; BROOKHUIS, 2011). Estudos neste contexto ainda sugerem que a música possa melhorar o desempenho de tarefas com baixas demandas cognitivas, servindo como estímulo para realizá-las por longos períodos. Por outro lado, o desempenho de tarefas com maiores demandas cognitivas, geralmente, diminui. Nessas condições, a escuta musical parece servir como um fator de distração (BALDWIN, 2012).

Com aplicação mais direta no campo da Música, algumas pesquisas apontaram diferenças nas demandas cognitivas relacionadas a diferentes tipos de estrutura de prática, em situações de aprendizagem musical (CARTER & GRAHN, 2016; ROCHA et al., 2009). Grosso modo, estes resultados sugerem que a prática variada é uma estratégia de aprendizagem mais eficaz do que a prática com repetição contínua. Em parte, isto pode ser explicado pela maior demanda de processamento sensorial exigida pela prática variada, favorecendo assim o processo de retenção e transferência de habilidades motoras. Apesar do amplo potencial de aplicação científica e dos resultados promissores apresentados por outras áreas do saber, estudos que relacionam o esforço cognitivo diretamente à performance musical ainda precisam ser conduzidos.

Uma performance musical, assim como qualquer outro conjunto de ações motoras, depende do processamento de informações no sistema nervoso central (SNC) provenientes de diversas 211

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funções cognitivas como a percepção, a atenção e a memória. Para SCHMIDT e LEE (2018), este processo pode ser simplificado por um modelo de integração sensório-motor composto por três estágios, que vão desde a identificação de um estímulo até a efetiva ação motora.

No primeiro estágio, estímulos provenientes do ambiente externo e do próprio organismo são captados por diferentes tipos de receptores sensoriais e mantidos na memória (armazenamento sensorial de curto prazo), até que sejam processados. No estágio seguinte, a percepção destes estímulos leva a uma série de atividades cognitivas, demandando recursos atencionais e o uso de memórias de curto e longo prazo. As informações provenientes deste processo são utilizadas conscientemente pelo indivíduo para decidir qual resposta motora deverá ser dada (TEIXEIRA, 2006). Por fim, no terceiro e último estágio, devido à capacidade limitada do controle consciente de informações, a regulação do sistema muscular é feita de forma inconsciente. Dessa forma, os músculos são controlados em uma ordem específica e com os níveis de força apropriados para produzir a resposta motora adequada (SCHMIDT; LEE, 2018).

Com base neste modelo de processamento de informações, podemos definir o “esforço cognitivo” como a quantidade de trabalho mental envolvida na percepção, tomada de decisão e planejamento que levam à execução de uma habilidade motora (EDWARDS, 2011). Assim, este construto está relacionado à quantidade de informação a ser processada pelo SNC, o nível de exigência da tarefa e a quantidade de recursos mentais demandados durante a prática (LELIS- TORRES et al., 2017).

Avaliar o esforço cognitivo despendido em uma performance musical deve fornecer à ideia de que o aumento das demandas pode levar a um desempenho insatisfatório. Assim, à medida que a dificuldade de uma tarefa aumenta, “o desempenho geralmente diminui, os tempos de resposta e os erros aumentam, a variabilidade de controle aumenta, menos tarefas são concluídas por unidade de Tempo e há menos capacidade residual para lidar com outras questões” (CAIN, 2007, p.3).

A natureza multifacetada dos movimentos necessários para a performance no contrabaixo acústico possibilita que diferentes técnicas de realização dos sons em arco (modelos francês ou 212

LOPES, L.; LAGE, G. M.; BORÉM, F. (2020). Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico. In: Diálogos Musicais da Pós‐Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.210-226.

alemão) ou em pizzicato (sem o arco) sejam utilizadas. Para tanto, uma vasta quantidade de movimentos dos conjuntos esquerdo e direito dos membros superiores necessita da regulação simultânea de vários grupos musculares, que desempenham funções distintas (LOPES, 2015).

No campo do Controle Motor, existe a noção de que diferentes formas de movimentos levam a diferentes demandas cognitivas (LEE et al., 1994). Portanto, podemos supor que as variadas técnicas de performance no contrabaixo levam a diferentes níveis de esforço cognitivo (LOPES; LAGE, 2017). Logo, compreender os processos subjacentes ao controle de movimentos de uma performance musical estabelece uma abordagem mais abrangente sobre as capacidades e as limitações cognitivas do performer. Podemos, por exemplo, avaliar a conveniência do uso de uma técnica ou mesmo verificar a necessidade de mudanças de estratégias de prática.

Com vistas a um experimento de avaliação do esforço cognitivo em laboratório, através do uso de medidas eletroencefalográficas (EEG) relacionadas à performance no contrabaixo, este capítulo tem o objetivo de delinear um estudo-piloto, criando e descrevendo 4 situações com demandas técnicas distintas e relevantes, comuns ao repertório desse instrumento: (1) localização de notas-alvo; (2) alternância entre as técnicas de arco e pizzicato; (3) alternância rápida com o arco entre cordas; (4) aderência da crina na corda em fortissimo.

Os excertos musicais apresentados são trechos originais, criados e testados quanto à sua pertinência pelos autores deste estudo para sintetizar, em um curto trecho musical, o máximo de informações e contrastes a respeito das técnicas abordadas. Por serem inéditos, buscam também garantir o ineditismo para todos os sujeitos que participarão do experimento subsequente. As condições de performance de cada técnica tiveram as ações articulares e os grupos musculares dos membros superiores avaliados e comparados quanto à amplitude, velocidade e direção dos movimentos, assim como as etapas sequenciais de sua realização. Dessa forma, posteriormente, as demandas de esforço cognitivo poderão ser comparadas às demandas anatômicas, fortalecendo assim as discussões e as devidas conclusões.

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LOPES, L.; LAGE, G. M.; BORÉM, F. (2020). Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico. In: Diálogos Musicais da Pós‐Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.210-226.

2- Excerto para localização de notas-alvo

O objetivo deste excerto é avaliar o esforço cognitivo na localização de notas-alvo no espelho do contrabaixo. Como este é um instrumento não-temperado, não há referências físicas como os trastes que ocorrem, por exemplo, no violão ou no contrabaixo elétrico. Esta localização torna-se mais difícil, principalmente, quando estas notas-alvo são: (1) notas que não correspondem às notas iniciais das séries harmônicas das cordas soltas (por exemplo, os harmônicos naturais agudos Sol4, Si4, Ré5, Fá5, Lá5 na Corda I, Sol2); (2) notas de tonalidades distantes de tonalidades relacionadas às cordas soltas (por exemplo, as notas da escala de Sol bemol maior realizadas na Corda I); e (3) notas que exigem movimentos amplos e rápidos do conjunto esquerdo dos membros superiores, ou seja, braço-antebraço-mão-dedos (por exemplo, notas atingidas com grandes mudanças de posição).

A localização de notas-alvos no contrabaixo pode ser facilitada, como mostrado em estudos anteriores (BORÉM; LAGE; et al., 2006), com a utilização de referências táteis e visuais. As principais referências táteis no contrabaixo são: a pestana (no registro grave) e o salto da sela (no registro médio, IV posição). As principais referências visuais no contrabaixo podem ser criadas com a marcação de pontos discretos no espelho do contrabaixo nos harmônicos parciais da série harmônica (a partir da fundamental: “8ª”, “8ª+5ª”, “8ª+8ª”, “8ª+8ª+5ª”, “8ª+8ª+5ª+3ªmaior”, “8ª+8ª+5ª+3ªmaior+3ªmenor” etc.). As estratégias para utilização destas referências táteis e visuais envolvem a escolha de dedilhados que resultem em maior controle dos movimentos e, hipoteticamente, em menor esforço cognitivo.

A Figura 1 mostra um excerto musical com notas-alvo, cuja localizações podem ser facilitadas se forem utilizadas: as referências táteis do salto da sela (mostradas em vermelho: Ré3 bemol na Corda I; Lá2 na Corda II; Mi3 bemol na Corda I) e da pestana (mostradas em verde: Mi2 bemol na Corda II; Lá3 bemol na Corda I), como também as referências visuais da 8ª (mostradas em azul claro: Lá4 bemol na Corda I), da “8ª+5ª” (mostradas em roxo: Fá#3 na Corda I) e da “8ª+8ª”

(mostradas em azul escuro: Dó#3 na Corda I).

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Figura 1 – Excerto para experimento piloto sobre esforço cognitivo para localização de notas-alvo no contrabaixo com referências táteis (vermelhas e verdes) e visuais (azul-claro, azul-escuro e roxo).

Na primeira frase deste excerto (c.1), partindo da IV posição sobre a Corda I, na qual o posicionamento do polegar coincide com a curva da sela na parte posterior do braço do contrabaixo, a mão esquerda se move na direção da região grave, cobrindo o intervalo de um tom e meio, e toca as notas Ré3 bemol, Dó3 e Si2 com os dedos 4, 2 e 1, respectivamente. Depois, com uma mudança de posição de um tom, as notas Si2 bemol e Lá2 são pressionadas pelos dedos 2 e 1, respectivamente.

A segunda frase começa com uma anacruse para o c.3, que contêm duas referências táteis cruciais para localização das notas. Na primeira, a nota-alvo Mi2 bemol na Corda II pode ser localizada a partir do contato do dedo 1 junto à pestana, desloca-se para a meia posição com o intervalo de um semitom. Para localizar a segunda nota-alvo desta frase, o polegar desliza o intervalo de uma 4ª aumentada, da nota Mi2 bemol até o Lá2 na Corda II, novamente usando como referência a sela do braço na IV posição. Esta mudança de posição é conduzida, principalmente, pela rotação interna do ombro até um limite onde é necessário que o movimento seja conduzido pela extensão do cotovelo e pronação do antebraço. A penúltima nota desta frase também é alcançada por uma mudança de posição ampla e rápida, partindo do registro médio para o agudo do instrumento. Este movimento é conduzido, principalmente, pela rápida extensão do cotovelo e pronação do antebraço. Dessa forma, o dedo 2 localiza e pressiona a nota Lá4 bemol, utilizando a referência visual do terceiro parcial harmônico da

Corda I (“8ª+8ª”, ou seja, o Sol4). A nota seguinte, Sol4, é então pressionada pelo dedo 1, na mesma posição.

Na terceira frase do excerto, iniciado por uma anacruse para o c.4, o primeiro parcial harmônico da Corda I (8ª, Sol3) pode ser utilizado como referência visual para situar a mão esquerda e

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posicionar o dedo 1 sobre a nota-alvo Fá#3, com os dedos 2 e 3 sobre as notas seguintes, Sol3 e

Lá3, respectivamente, na mesma posição.

Na quarta e última frase musical, iniciada dentro do segundo tempo do c.4, a nota-alvo Lá3 bemol pode ser localizada pelo dedo 1 junto à pestana, na Corda I. Na sequência, com uma mudança do registro grave para o médio, a nota Mi3 bemol pode ser localizada utilizando a referência tátil do polegar na sela do contrabaixo. Por fim, as três últimas notas podem ser localizadas utilizando uma referência visual sobre o segundo parcial harmônico da Corda I

(“8ª+ 5ª”, Ré4). Dessa forma, na mesma posição, o dedo 1 localiza e pressiona a nota-alvo Dó#3 e os dedos 3 e 2 pressionam as notas Ré#3 e Ré bequadro, respectivamente.

3- Excerto para alternância arco versus pizzicato

Este excerto foi composto considerando a avaliação do esforço cognitivo demandado na alternância entre as técnicas de arco e pizzicato. Apesar da facilidade de se encontrar exemplos dessa troca no repertório do contrabaixo, a literatura especializada pouco se ocupou em descrever, criar estratégias ou mesmo sugerir exercícios que possibilitem a aprendizagem ou o aperfeiçoamento de sua realização.

A alternância entre arco e pizzicato torna-se mais difícil nos casos em que requer uma mudança rápida entre essas técnicas. Nessa situação, algumas alternativas podem ser sugeridas na tentativa de aumentar a eficiência da performance. Quando possível, deve-se planejar a direção do arco “para cima”, na nota anterior ao pizzicato. Isso faz com que a mão direita esteja mais próxima e se movimentando na direção das cordas no momento da troca arco-pizz. ou pizz.- arco. Caso contrário, na arcada “para baixo”, a mão direita estará mais distante das cordas e se afastando delas, além de criar a necessidade de um impulso muscular extra para mudar a direção do braço no sentido de se aproximar das cordas.

De maneira alternativa, existe a possibilidade de realizar o pizzicato sem desfazer a forma de agarre do arco francês (“por cima” da vareta do arco) ou alemão (“por baixo” da vareta do arco). Esta é uma opção ainda pouco explorada pela literatura do contrabaixo, mas que pode

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LOPES, L.; LAGE, G. M.; BORÉM, F. (2020). Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico. In: Diálogos Musicais da Pós‐Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.210-226.

contribuir para uma performance ágil e eficiente. No modelo de arco francês, mantendo a forma de agarre, a supinação do antebraço aliado à rotação interna do ombro conduz a mão direita, com o dedo médio estendido, ao alcance da corda para realizar o pizzicato. Nesta posição, o arco estará levemente inclinado com a ponta para cima e a crina inclinada na direção do espelho do instrumento. Já no caso inverso, na troca do pizzicato para o arco, a flexão do dedo médio é acompanhada pelas ações articulares de pronação do antebraço e rotação externa do ombro em um movimento contínuo para a direita do instrumentista, suficiente para recolocar o arco em contato com a corda perpendicularmente. No modelo alemão, a pronação do antebraço aliado à rotação interna do ombro conduz o dedo indicador estendido ao alcance das cordas, enquanto a forma de agarre do arco é mantida. Nesta posição, a ponta do arco estará levemente inclinada para baixo e a crina inclinada na direção do cavalete do instrumento. Para restabelecer o arco, complementar à flexão do dedo 1 para “beliscar” a corda, o antebraço é supinado junto com a rotação externa no ombro em um movimento contínuo para a direita do instrumentista.

Com estas duas medidas (planejamento das arcadas e manutenção da forma de agarre do arco), as articulações de todo o conjunto direito dos membros superiores estarão posicionadas de maneira a reduzir a amplitude dos movimentos responsáveis pela troca entre as técnicas, aumentando, assim, sua eficiência.

A Figura 2 exemplifica um excerto musical com diferentes padrões de trocas rápidas e repetidas entre arco e pizzicato. As notas com arco, através do golpe de arco sugerido (ricochete), são articuladas na mesma direção (“para cima”), por meio de um único impulso muscular, aproveitando-se do rebote do arco arremessado sobre a corda.

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Figura 2 – Excerto para experimento piloto sobre esforço cognitivo de alternância entre arco e pizzicato no contrabaixo; os colchetes azuis-claro nos c.4 e c.6 destacam trechos de maior dificuldade de realização devido à quebra do padrão de alternância.

Nos três primeiros compassos, observa-se um padrão de três semínimas articuladas por pizz.- arco-arco (em vermelho), consecutivamente. As notas articuladas pelo pizzicato apresentam um caminho melódico descendente (Dó2-Si1-Lá1), ao passo que as notas articuladas pelo arco mantêm a nota Sol2 (Corda I solta) como pedal. No c.4, as três semínimas são articuladas em sequência por pizz.-arco-pizz. (em verde). No c.5, há uma repetição do primeiro padrão, pizz.- arco-arco (em vermelho), porém com a nota Lá2, em arco, pressionada pelo dedo 1. Entre o c.4 e o c.5 destaca-se um intervalo melódico de 2a menor ascendente em pizzicato (Mi2, Fá2, em roxo). No c.6, observa-se um padrão de articulação de semínimas em pizz.-arco-pizz. (em verde). Por fim, as três últimas notas do excerto, inseridas nos compassos finais, mantêm o mesmo padrão de articulação. Entre os c.6 e c.7, destaca-se um intervalo melódico de 2a descendente (Dó2, Si1, em roxo), em pizzicato.

De forma geral, podemos perceber que as notas em pizzicato deste excerto realizam conduções melódicas, enfatizadas por acentos (marcato), enquanto as notas articuladas pelo arco se mantêm apoiadas em notas pedais (o Sol1 e o Lá1), sempre em staccato. Os colchetes em azul claro sobre a pauta da Figura 2 destacam trechos com maior dificuldade de realização devido à não repetição de notas com a mesma técnica (arco ou pizz.).

4‐ Excerto para alternância rápida com o arco entre cordas

Este excerto foi composto com o intuito de avaliar o esforço cognitivo devido à alternância rápida com o arco entre cordas adjacentes (Cordas I-II, II-III ou III-IV) e cordas afastadas (Cordas I-III, I-IV ou II-IV). Nessa situação, a coordenação entre os movimentos horizontais (no 218

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mesmo plano) e rotacionais do arco (mudança de plano referente a cada corda) é mais eficiente quando a corda mais grave é articulada com o arco “para cima” e a corda mais aguda com o arco “para baixo”. Isto ocorre porque, com a arcada ao contrário (corda mais grave com o arco “para baixo” e a mais aguda com o arco “para cima”), o talão é afastado das cordas. Em consequência, quanto mais o talão se afasta de uma corda, maior será a amplitude do seu movimento rotacional. Em outras palavras, este padrão de arcada tende a fazer com que a mão direita percorra um caminho mais longo, dificultando a performance do cruzamento de cordas, especialmente em andamentos mais rápidos (LOPES, 2015).

Para mover o arco entre os planos relativos a cada corda do contrabaixo, o conjunto direito dos membros superiores realiza um movimento oblíquo resultante, principalmente, das ações articulares de extensão/adução do ombro (para mover o arco na direção das cordas mais graves) e flexão/abdução do ombro (na direção das cordas mais agudas), ainda que sejam necessárias compensações no complexo do cotovelo, punho e dedos para cada novo plano.

Neste contexto, o arco francês leva uma pequena vantagem anatômica em relação ao modelo alemão. O agarre do arco por cima da vareta possibilita o uso de músculos menores dos dedos e, principalmente, do punho para completar o movimento, diminuindo a ação de músculos maiores (geralmente mais lentos), o que promove o encurtamento da amplitude dos movimentos do braço. Dessa forma, a flexão do punho e extensão dos dedos auxiliam na mudança para o plano das cordas mais graves. A extensão do punho e flexão dos dedos cumprem o mesmo papel ao mover o arco para o plano de uma corda mais aguda. Por outro lado, o agarre por baixo da vareta no modelo de arco alemão não permite o mesmo auxílio do punho e dos dedos no cruzamento de cordas. De forma análoga, o punho pode auxiliar a mudança através do desvio radial (mudança para o plano da corda mais grave) e desvio ulnar (mudança para o plano de uma corda mais aguda). Porém, a amplitude dos movimentos do punho neste eixo é menor do que no eixo flexão/extensão, utilizados pelo arco francês (LOPES, 2015).

A Figura 3 mostra um excerto musical com alternâncias rápidas com o arco entre cordas adjacentes e afastadas, e com uma dificuldade progressiva de realização.

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Figura 3 – Excerto para experimento piloto sobre esforço cognitivo de cruzamento de cordas adjacentes e afastadas no contrabaixo.

Este excerto é composto por três fragmentos com características diferentes e dificuldade técnica de realização progressiva, podendo ser realizado inteiramente com a referência tátil do polegar na sela do contrabaixo (IV posição). Dessa forma, as articulações do conjunto esquerdo dos membros superiores se ajustam em cada plano das cordas, na mesma posição. Para maior eficiência, os movimentos rotacionais do ombro esquerdo nas mudanças de plano devem ser minimizados, na medida do possível, pelo uso dos dedos e do punho no eixo extensão/flexão.

Na realização do primeiro fragmento (colchete em azul), a mão esquerda e os dedos 2 e 1 se ajustam para pressionar, respectivamente, as notas Si2 bemol e Ré3 nas Cordas adjacentes I-II.

Em seguida, os mesmos dedos pressionam as notas Fá2 e Lá2, no plano das Cordas adjacentes

II-III. Em um terceiro e último plano, a nota Dó2 é pressionada pelo dedo 2 na Corda IV.

No segundo fragmento (colchete verde), os cruzamentos entre Cordas afastadas III-I e IV-I acrescentam maior dificuldade ao excerto. A nota Ré3 (Corda I) é mantida como pedal na segunda colcheia de cada tempo, entre as notas pressionadas pelo dedo 2 Si2 bemol (Corda II),

Fá2 (Corda III) e Dó3 (Corda IV).

Finalizando o excerto, o último fragmento (colchete roxo) é composto por cruzamentos de cordas adjacentes e afastadas, sem o auxílio de uma nota pedal como referência. A partir do terceiro tempo do c.5 até o fim, há uma inversão da arcada que passa a ter o arco “para baixo” articulando a corda mais grave. Como mencionado anteriormente, isso faz com que os movimentos do conjunto direito dos membros superiores tenham maior amplitude, dificultando a alternância entre cordas, especialmente em andamentos mais rápidos.

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5- Excerto para aderência da crina na corda em fortissimo

O objetivo deste excerto é avaliar o esforço cognitivo para manter a aderência da crina na corda com a dinâmica em fortissimo. De maneira geral, essa manutenção do som mais forte depende não apenas do fator “pressão da crina sobre a corda”, mas também da velocidade do arco, do ponto de contato do arco na corda, da quantidade de crina utilizada e dos registros dentro da tessitura do contrabaixo.

Na performance com ambos os modelos de arco, a pressão da crina sobre as cordas é mantida, majoritariamente, pela pronação do antebraço auxiliada pela rotação interna do ombro. De certa maneira, o modelo alemão apresenta uma ligeira vantagem anatômica na transmissão dessa força. As diferentes formas de agarre e manuseio dos modelos de arco alemão e francês apresentam funções análogas e princípios mecânicos das articulações do conjunto direito dos membros superiores que objetivam alcançar o mesmo resultado sonoro. Ainda assim, a posição do antebraço no agarre do arco francês não permite transferir tanta força como no arco alemão, pelo fato de estar bem próximo do limite de pronação. Por outro lado, a posição neutra do antebraço no agarre do arco alemão possibilita uma maior amplitude do movimento antes que o antebraço alcance seu limite de pronação, favorecendo a aplicação da força. Isto ocorre porque quanto mais longe desde limite os músculos envolvidos na pronação estiverem, mais eficiente será o seu trabalho (MORTON, 1991).

A Figura 4 mostra um excerto musical criado com o objeto de avaliar o esforço cognitivo durante a manutenção da aderência da crina na corda, em diferentes registros do contrabaixo, com a dinâmica em fortissimo.

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Figura 4 – Excerto para experimento piloto sobre esforço cognitivo sobre aderência da crina na corda na produção contínua do som em fortissimo no contrabaixo.

O excerto tem início no registro grave (em vermelho), sobre as Cordas III e IV, exigindo uma maior utilização dos movimentos do ombro no eixo extensão/flexão. Em seguida, a manutenção da aderência se torna mais difícil durante a realização de um salto da Corda IV (nota Sol1, em azul-claro) para a Corda I (nota Sol2, em azul-claro). A tensão muscular necessária para manter a pressão sobre as cordas deve ser amenizada durante a transição rápida entre as cordas através de um movimento oblíquo do ombro. Ao posicionar o arco no plano referente à Corda I, a tensão muscular deve ser restabelecida.

No c.3 do excerto, o ritmo em tercina demanda mais velocidade na digitação das notas pela mão esquerda. No segundo tempo do mesmo compasso (em roxo), há um salto para o registro médio do contrabaixo na Corda I (as notas Ré3, Mi3 bemol e Mi3 bequadro), exigindo maior uso dos movimentos do ombro no eixo abdução/adução.

No penúltimo compasso, o ritmo em semicolcheias adiciona ainda mais velocidade à digitação das notas pela mão esquerda (em laranja) nas Cordas I e II, aumentando a dificuldade do excerto. Por fim, o último compasso apresenta uma nota longa (em verde), onde toda a extensão do arco deve ser utilizada. Quanto mais o contato com a corda se aproxima da ponta do arco, maior é o desafio de manter a dinâmica fortissimo, pois aumenta o esforço de pronação do antebraço e da rotação interna do ombro para manter a aderência da crina sobre a corda.

6 - Conclusão

Com o objetivo de delinear um experimento de avaliação do esforço cognitivo do contrabaixo em laboratório, este estudo piloto teve como objetivo delinear e descrever 4 situações com

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demandas técnicas distintas, comuns no repertório musical do instrumento: (1) localização de notas-alvo; (2) alternância entre as técnicas de arco e pizzicato; (3) alternância rápida com o arco entre cordas; (4) aderência da crina na corda em fortissimo.

A localização de notas-alvo no contrabaixo pode ser facilitada através de pistas táteis e visuais utilizadas como referência para o controle da afinação. As estratégias para a utilização destas referências envolvem a escolha de dedilhados que resultem em maior controle dos movimentos e, hipoteticamente, em menor esforço cognitivo.

A alternância entre as técnicas de arco e pizzicato, especialmente em situações que exigem velocidade na troca, pode ser facilitada através da organização das arcadas (arco “para cima” na última nota articulada com o arco antes do pizz.) e da manutenção da forma de agarre do arco. Durante a realização de uma alternância rápida com o arco entre cordas adjacentes ou afastadas, a organização das arcadas também pode fazer diferença. Mesmo apresentando funções análogas que objetivam alcançar os mesmos resultados sonoros, o modelo de arco francês aparenta apresentar certa vantagem anatômica em relação ao modelo de arco alemão, na realização desta técnica. As descrições cinesiológicas qualitativas dos movimentos típicos dos modelos de arco alemão e francês permitiram evidenciar diferenças anatômicas na realização da troca arco-pizz. (ou pizz.-arco). Mas esta vantagem do modelo de arco francês ainda carece de uma comparação quantitativa.

Para manter a aderência da crina na corda com a dinâmica em fortissimo, a pressão necessária é mantida, principalmente, pela pronação do antebraço auxiliada pela rotação interna do ombro. Devido ao posicionamento do antebraço na forma de agarre e de manuseio, o modelo de arco alemão aparenta ter uma vantagem anatômica maior do que o modelo francês na transmissão dessa pressão (força). As descrições cinesiológicas qualitativas dos movimentos típicos dos modelos de arco alemão e francês permitiram evidenciar diferenças anatômicas na realização da dinâmica fortissimo. Mas esta vantagem do modelo de arco alemão ainda carece de uma comparação quantitativa.

Os excertos apresentados aparentam sintetizar as características da performance de cada técnica abordada. Desse modo, esperamos que estes excertos nos permitam colher dados 223

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relevantes nas diferentes condições motoras na realização de um mesmo excerto musical. De acordo com o campo do Controle Motor, diferentes condições de performance levam a diferentes níveis de demandas cognitivas e controle motor, ou seja, as variadas técnicas de performance do contrabaixo levam a diferentes níveis de esforço cognitivo. Dessa forma, no futuro, as demandas de esforço cognitivo resultantes da performance dos excertos analisados por este estudo poderão ser medidas, avaliadas e comparadas às demandas anatômicas, estabelecendo assim uma abordagem mais abrangente sobre as capacidades e as limitações cognitivas na performance musical.

7 – Referências

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Notas sobre os autores

Leonardo Lopes é doutorando, Mestre e Bacharel em Música com habilitação em contrabaixo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi professor de contrabaixo do CMI (Centro de Musicalização Infantil, UFMG) entre os anos de 2009 e 2011, onde também atuou como arranjador e regente da Orquestra do CMI. Por essa atuação, recebeu o título de Menção Honrosa no XIV Encontro de Extensão da UFMG (2011). Participou em diversos Masterclasses ministrados por professores de contrabaixo renomados internacionalmente, como: Gael Lhoumeau (FRA), James Van Demark (EUA), Paul Ellison (EUA), Lawrence Angel (EUA), Alexander Hanna (EUA), Barry Lieberman (EUA), Leigh Mesh (EUA), Frank Proto (EUA), Dennis Trembly (EUA), Brian Perry, Sandrino Santoro (ITA), entre outros. Como membro do Grupo de Contrabaixos da UFMG, destacam-se as participações na ISB Convention 2013 - Eastman School of Music/NY, EUA, ISB Convention 2015 - University of Colorado/CO, EUA. Atualmente é músico instrumentista efetivo da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG) e atua como professor de contrabaixo na Estação da Música José Luiz Pinto Coelho, Santa Bárbara/MG.

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LOPES, L.; LAGE, G. M.; BORÉM, F. (2020). Delineamento de 4 excertos com situações de esforço cognitivo distintas da performance no contrabaixo acústico. In: Diálogos Musicais da Pós‐Graduação: Práticas de Performance Musical Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.210-226.

Guilherme M. Lage é Bacharel em Educação Física, especialista em Treinamento Esportivo, mestre em Educação Física e doutor em Neurociências. É professor Adjunto IV da UFMG. Coordena o Núcleo de Neurociências do Movimento (NNeuroM - UFMG). Link: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9572386886311542. Integra o corpo de pesquisadores do: 1) Grupo de Estudos em Desenvolvimento e Aprendizagem Motora (GEDAM - UFMG); 2) Grupo de Pesquisa em Ensino, Controle e Aprendizagem na Performance Musical da UFMG (ECAPMUS - UFMG). Tem experiência no estudo do Comportamento Motor, atuando principalmente no estudo do controle manual por meio (1) da análise neurocomportamental dos fatores que interferem na aprendizagem motora (ex., interferência contextual); (2) da análise anátomo-funcional de áreas e hemisférios cerebrais; (3) da associação com aspectos neuropsicológicos e genéticos. É membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Comportamento Motor.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a revista acadêmica Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais do contrabaixo acústico desde a década de 1990 (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo, Avignon e as principais universidades de música nos EUA), nos quais apresenta suas composições, arranjos e transcrições. É pesquisador do CNPq desde 1994 e líder dos grupos de pesquisa multidisciplinares ECAPMUS (Estudos em Comportamento e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (Pérolas e Pepinos da Performance Musical). Criou o método interdisciplinar mAVm (Método de Análise de Áudios e Videos de Música) com suas diversas ferramentas de análise integrando música às outras artes (dança, teatro, cinema, literatura), psicologia e psiquiatria (reconhecimento de expressões faciais e gestos maiores, emoções e mudanças de comportamento) e educação física (controle e aprendizagem motora). Publicou dezenas de artigos sobre práticas de performance das músicas erudita e popular, no Brasil e no exterior. Como contrabaixista, acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti e Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão, Skank e Paula Fernandes. Foi professor e recitalista do Festival Internacional de Música Antiga e Música Colonial Brasileira de Juiz de Fora (2005 a 2008, 2015) e contrabaixista em 5 CDs com a Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora (2005 a 2009; incluindo o Prêmio Diapason D'or do Brasil), que incluem sinfonias de W. A. Mozart e J. Haydn, Suites de Bach e a Sinfonia a Grand Orchestra de S. Neukomm. Restaurou e publicou as lições do método de contrabaixo e as modinhas imperiais de Lino José Nunes (1789- 1847). Foi o contrabaixista do 4º CD da Orquestra Barroca do Amazonas (2016). Publicou vários artigos seminais sobre figuras da música popular brasileira como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Elis Regina, Pixinguinha, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Raphael Rabelo, K-Ximbinho, Vitor Assis Brasil e Grupo Uakti. Recebeu prêmios no Brasil e no exterior como solista no contrabaixo, compositor, pedagogo e analista musical.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Análise e edição de performance da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929)

Analysis and editing of the aria Tive um sonho [I had a dream], by the operetta A Princesa do Catete [The Princess of Catete], by Euclides Fonseca (1854-1929)

Melina Peixoto Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Mauro Chantal Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Estudo sobre a ária Tive um sonho, da operetta brasileira de câmara A Princesa do Catete, do compositor pernambucano Euclides de Aquino Fonseca (1854-1929), sobre texto de Carneiro Vilela (1846- 1913). São apresentados dados sobre sua escrita vocal e pianística, estrutura formal, relação texto-música, juntamente com uma edição de performance da partitura, cedida pelo IRB - Instituto Ricardo Brennand, situado em . Este estudo é um recorte de uma pesquisa maior que abarca análise, edição e consequente disponibilização da partitura da opereta supracitada, inédita até então.

Palavras-chave: Opereta brasileira de câmara; Euclides Fonseca; Carneiro Vilela; A Princesa do Catete; ária Tive um sonho; Edição de performance.

Abstract: A Study on the aria Tive um sonho [I had a dream], by the Brazilian chamber operetta A Princesa do Catete [The Princess of Catete], from Pernambuco composer Euclides de Aquino Fonseca (1854-1929), by Carneiro Vilela (1846-1913). Data are presented on his vocal and piano writing, formal structure, and text-music relationship, along with a performance edition of the score, provided by IRB (Ricardo Brennand Institute), located in Recife. This study is an excerpt from a larger research that encompasses analysis, edition, and consequent availability of the abovementioned operetta score, previously unpublished.

Keywords: Brazilian chamber opereta; Euclides Fonseca; Carneiro Vilela; The Princess of Catete; Tive um sonho aria; Performance editing.

1 – Introdução

Pelo volume expressivo de obras que ainda encontram-se indisponíveis, o gênero opereta no Brasil tem atraído inúmeros olhares no ambiente acadêmico por meio de pesquisas que promovem a disponibilização de títulos em vernáculo. Neste sentido, a academia tem cumprido seu papel no mapeamento da produção de música brasileira ao disponibilizar estudos e edições de obras que permaneciam intocadas em arquivos públicos ou acervos

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253. particulares. Aos poucos, temos acesso a diversos títulos que atestam o tempo em que foram compostos, reflexos que são da sociedade na qual tiveram sua gênese.

Os gêneros ópera e opereta em Pernambuco foram objetos de interesse de Euclides Fonseca (1854-1929), e sua produção operística conta com pelo menos quatro títulos, a saber, Leonor1, Il Maledetto, A Princesa do Catete e As Donzelas d’Honor.

A opereta A Princesa do Catete foi composta para coro e vozes solistas com acompanhamento de piano, o que justifica sua definição como opereta de câmara. Sua partitura original encontra-se no Instituto Ricardo Brennand – IRB2, em Recife, mais especificamente na Biblioteca José Antônio Gonsalves de Mello, que gentilmente nos cedeu uma cópia escaneada para nossa pesquisa de doutorado, cujo tema aborda esse título.

Neste capítulo, apresentaremos a ária intitulada como 1º Canto Narrativo – A Princesa do Botafogo, composta para a voz de soprano, doravante designada como Tive um sonho. Ao longo deste texto, apresentaremos dados sobre a gênese dessa peça, acrescidos de análises literária e musical com observações sobre a relação texto-música presente na partitura mais sugestões interpretativas. Para tanto, propomos um método de estudo sobre a ária, o qual iniciaremos com a observação do “ambiente composicional” (background) da obra, sugerido por Jan LARUE, e, por conseguinte passaremos às análises musical e literária como sugerida por LARUE (1992) e Norma GOLDSTEIN (2006).

Inserida como Anexo ao final deste capítulo, apresentaremos nossa edição de performance da ária Tive um sonho, acrescida de um aparato crítico no qual abordaremos dados sobre esta edição, com informações sobre escolhas realizadas sobre a fonte primária, ou seja, a cópia da partitura autógrafa do compositor. Segundo FIGUEIREDO (2017, p.131), aparato crítico é seção fundamental de edições que se proponham a evidenciar as interferências realizadas pelo editor, tais como decisões tomadas em correções musicais, contendo descrição de localização e a situação original encontrada no manuscrito.

1 A ópera Leonor teve sua primeira récita levada aos palcos em 2019, pela Academia de Ópera e Repertório e Sinfonieta UFPE. 2 “O Instituto Ricardo Brennand é um espaço cultural sem fins lucrativos inaugurado em 2002, que salvaguarda um valioso acervo artístico e histórico originário da coleção particular do industrial pernambucano Ricardo Coimbra de Almeida Brennand.” Descrição retirada do site do próprio IRB em http://www.institutoricardobrennand.org.br/index.php/oinstituto (Acesso em 15 de outubro, 2019). 228

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

O objetivo principal deste trabalho é a divulgação desse material a partir de nosso estudo sobre suas características principais. Desta maneira, esperamos contribuir também para a divulgação do nome do compositor Euclides Fonseca, cuja maior parte de sua obra encontra- se manuscrita e distante tanto do estudo acadêmico quanto da prática de performance em teatros e salas de concerto.

2 – Dados sobre o “ambiente composicional” (background) da ária Tive um sonho

Considerado um expoente musical em Pernambuco (MELLO, 1947, p.319), o compositor Euclides Fonseca, nascido em Recife, destacou-se não somente por suas composições, mas também por sua atuação como professor3, pianista e maestro, atuando no Club Carlos Gomes, sociedade artística amadora atuante no século XIX em Pernambuco. Foi também fundador do Centro Musical Pernambucano, crítico musical e professor fundador da Escola Normal Oficial de Recife. Sua vida e obra foram abordadas por alguns pesquisadores nacionais. Para MELLO (1947, p.341), por exemplo, sendo Fonseca o primeiro compositor de óperas do Pernambuco, o estado lhe “deve uma coroa de louro” já que, “reabilitou as gloriosas tradições musicais” da região. O musicólogo Pe. Jaime DINIZ (1980), por outro lado, citou Fonseca como um dos pilares da tradição musical no estado do Pernambuco: “A história da música em Pernambuco pode ser resumida em três capítulos: Luiz Alvares Pinto, Euclides Fonseca e Marlos Nobre” (DINIZ, apud FONSECA, 1996, p.20).

Sua dedicação à música o levou a reger a orquestra do Teatro Santa Isabel, em Pernambuco, até bem próximo de sua morte. (SILVA, 2006, p.216), além de ter conquistado o reconhecimento como patrono da cadeira de nº 26 da Academia Brasileira de Música4.

Na Figura 1, a seguir, podemos visualizar Euclides Fonseca em registro de sua juventude:

3 Euclides Fonseca foi professor de composição de Alberto Nepomuceno (1864-1920) considerado por Vasco Mariz (1921-2017) como um dos principais compositores a difundir a canção de câmara em vernáculo no Brasil. 4 Fundada em 14 de julho de 1945, por Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a Academia Brasileira de Música - ABM segue os padrões da Academia Francesa. Trata-se de uma instituição sem fins lucrativos, composta por personalidades de destaque no meio musical brasileiro nas áreas de composição musical, performance e musicologia. Desde 1947, por meio de Decreto federal, tornou-se órgão técnico-consultivo do Governo Federal. 229

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Figura 1 - Euclides de Aquino Fonseca, compositor da opereta brasileira de câmara A Princesa do Catete. S.d.5

Em nossa busca por dados sobre o compositor Euclides Fonseca para a realização deste capítulo, notamos que sua produção musical foi intensa durante as décadas de 1870 a 1890. Segundo CASTAGNA (2003), entre as quarenta óperas escritas por compositores brasileiros durante o século XIX, Euclides Fonseca foi um dos que mais produziu sobre esse gênero, permanecendo detrás apenas de Carlos Gomes (1836-1896), que compôs ao todo nove títulos, enquanto Euclides Fonseca compôs os quatro títulos mencionados anteriormente.

Trataremos agora sobre o autor do texto da opereta A Princesa do Catete, da qual retiramos a ária estudada neste trabalho. Joaquim Maria Carneiro Vilela (1846-1913) nasceu no Recife e é celebrado como escritor pela obra A Emparedada da Rua Nova, além de pintor de cenários teatrais, político, juiz, jornalista e fundador da Academia Pernambucana de Letras.

5 Fonte: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=3756 (Acesso em 18 de agosto de 2019). 230

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Na Figura 2, a seguir, podemos visualizar uma fotografia do autor do texto de A Princesa do Catete, o dramaturgo Carneiro Vilela:

Figura 2 - Carneiro Vilela, dramaturgo recifense autor do texto da opereta A Princesa do Catete. S.d6

Carneiro Vilela transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1880, à época capital do país, permanecendo naquela cidade até 1885. Segundo LUCENA FILHO (2016, p.321), dentre a obra de Carneiro Vilela, podemos citar 26 atuações como cenógrafo de teatro, 21 romances e 21 dramas, situando-se nesse último gênero, A Princesa do Catete, considerada como “comédia” e datada de 1883 pelo pesquisador. Após uma produção considerável na literatura brasileira, Carneiro Vilela faleceu em Recife, em 1913, devido a uma sequência de AVCs.

O texto da opereta A Princesa do Catete retrata questões sociais brasileiras da época em que foi composta. LUCENA FILHO (2016, p.258) aponta dados sobre Carneiro Vilela e a criação do texto dessa opereta: “a opereta cômica A Princesa do Catete, encenada no Rio de Janeiro na década de 1880, ‘na época em que preocupavam o espírito público as arengas dos tribunos demagogos a propósito das questões do imposto do vintém e da imigração chinesa’”. Por certo, encontramos nessa opereta referências aos chineses imigrantes, personagens que cantam sobre o plantio de arroz e chá. Chamamos aqui à atenção para o fato de que o

6Fonte: https://www.thecities.com.br/artigo/Brasil/Cultura/Literatura/Naturalismo/1339/ (Acesso em 19 de agosto, 2019). 231

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253. pesquisador LUCENA FILHO (2016) considera a opereta como trabalho do escritor Carneiro Vilela, encenada com data específica, em 1883. Não sabemos, no entanto, se o texto veio a ser encenado como peça teatral ou se podemos considerar que foi efetivamente apresentado unicamente como libreto da opereta de Euclides Fonseca.

O texto da opereta A Princesa do Catete apresenta três personagens designadas a partir de seus locais de origem na cidade do Rio de Janeiro: as Princesas do Catete, Botafogo e Flamengo, indicadas no manuscrito para voz de mezzosoprano, soprano e contralto, respectivamente.

Na Figura 3, a seguir, podemos visualizar uma fotografia do Palácio do Catete, datada de 1897, ambiente no qual se desenvolve parte da trama do texto de Carneiro Vilela:

Figura 3 - O Palácio do Catete em 1897 (RJ), onde ocorre parte do enredo da opereta A Princesa do Catete7.

Após situarmos no tempo a opereta que contém a ária observada neste estudo, passaremos às análises literária e musical, com identificação de possíveis relações texto-música.

7 Imagem retirada do site https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_do_Catete (Acesso em 07 de agosto, 2019).

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

3 – Análises literária e musical da ária Tive um sonho

A ária Tive um sonho encontra-se inserida no segundo ato da opereta e originalmente possui o título de 1º Canto Narrativo – A Princesa do Botafogo, como citado anteriormente em nossa Introdução. Nela, a personagem Princesa do Botafogo, indicada para a voz de soprano no início do manuscrito, é acompanhada em um segundo momento pelo Coro de Damas do Paço (dividido em duas linhas melódicas simultâneas, para vozes femininas agudas e graves), e pelo piano, instrumento presente em toda a opereta.

Apresentaremos, a seguir, seu texto e estrutura poética:

Tive um sonho. Que sonho fagueiro! Doce enlevo meu peito invadia Lisonjeiro castelo d’amor! Eu sentia um enlevo dos céus Era como uma aurora brilhante! Nos meus braços o moço apertava Deslumbrante de róseo fulgor. E chegava meus lábios aos seus

Gentil príncipe ousado mancebo, Foi um sonho! Que sonho fagueiro! Que percebo a meus pés ajoelhado, Lisonjeiro castelo d’amor! Desfolhava * em meu colo mil flores Era como uma aurora brilhante, De uns amores * que eu tinha inspirado Deslumbrante de róseo fulgor!

Chamamos à atenção para sua constituição, pois trata-se de um poema lírico8 com estrutura de quadra, contendo quatro versos rimados entre os segundos e os quartos versos de cada uma das quatro estrofes.

Ao debruçarmo-nos sobre esse poema tornou-se evidente que, para musicar seu texto, o compositor duplicou os termos “desfolhava” e “de uns amores”, ambos da segunda estrofe, em benefício da quadratura musical. Logo, ocultamos tais repetições na estrutura poética apresentada acima, substituindo-os por asteriscos (*).

A seguir, na Figura 4, apresentaremos a escansão9 do poema de Carneiro Vilela, para que possamos verificar a métrica de cada verso. A escansão apresentar-se-á da seguinte forma: contabilização no início de cada verso (V), divisão do poema em sílabas poéticas, intercaladas

8 O poema lírico é constituído de uma narrativa do “eu lírico”, com presença de emoções profundas e sentimentos intensos, como o amor. 9 Escansão é a divisão do verso em sílabas poéticas correspondentes às sílabas gramaticais. 233

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253. por travessão10, marcação das sílabas tônicas (em negrito) e esquema rítmico (representado pela sigla E. R., número de sílabas à frente, e sílabas tônicas entre parênteses):

Figura 4 - Escansão do poema Tive um sonho, de Carneiro Vilela.

10 Ao final de cada verso, existem também as sílabas átonas, não contabilizadas (entre parênteses). 234

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Digno de nota é ressaltarmos que a escolha da acentuação rítmica é uma interpretação pessoal, podendo haver variações. Desta maneira, a escansão aqui apresentada nos evidencia claramente a simetria métrica do poema, no qual todas as quatro estrofes possuem quatro versos, cada um contendo nove sílabas. O poema de nove sílabas, ou eneassílabo, é composto geralmente de três segmentos rítmicos. Na ária Tive um sonho, encontramos a constância das sílabas tônicas em 3-6-9, presente em todos os versos.

No tocante às rimas nesse poema, notamos a presença de rimas externas (sons do final de um verso que se espelham no final de outro verso, como em V02 e V04, “amor”/“fulgor”) e internas (sons do final de um verso que se espelham no interior de outro verso, V03 e V04, “brilhante”/“deslumbrante”). É por meio desse jogo de rimas internas e externas que o poeta nos desenha um esquema rítmico que cria uma musicalidade peculiar.

Podemos visualizar a forma com a qual Carneiro Vilela espalha as rimas, num cruzamento de sonoridades entre rimas dos primeiros versos com rimas dos segundos, rimas dos segundos com os quartos e rimas dos terceiros com os quartos versos. Nas Figuras 5 e 6, destacamos em vermelho esses cruzamentos que se repetem e, em azul, os demais encontrados:

Figura 5 - Cruzamento de rimas encontradas no poema Tive um sonho (1ª e 2 ª estrofes), de Carneiro Vilela. 235

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Figura 6 - Cruzamento de rimas encontradas no poema Tive um sonho (3 ª e 4 ª estrofes), de Carneiro Vilela.

Ao recitarmos o poema exemplificado acima, constatamos a aliteração das consoantes “s” e “r”, ou seja, a repetição desses sons, que já desde o primeiro verso mostram-se em destaque. Sobre a aliteração, GOLDSTEIN (2006, p.75) nos mostra que “o leitor deve buscar que efeito esse recurso produz na significação do texto”. Em nossa opinião, podemos perceber um primeiro efeito obtido pela sonoridade do “s”, estando diretamente relacionado à palavra “sonho”, que se repete e depois se faz lembrar por meio da consoante. Um segundo efeito da aliteração no poema é obtido pela repetição do “r” em sua sonoridade [ɾ], como em “brilhante”, considerada por SILVA (2008, p.37) como consoante vibrante. Esse efeito de repetição do “r” vibrante, principalmente no terceiro e quarto versos, nos remete ao resplendor com que o sonho da personagem se afigura. Todos os exemplos citados acima podem ser percebidos sensorialmente, traduzindo o sentimento do “eu lírico”, no caso, a Princesa do Botafogo, que, ao narrar seu sonho revive-o e insere o leitor em sua percepção.

A seguir, apresentaremos o texto com a consoante “s” grafada em azul e a consoante “r” grafada em vermelho:

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Tive um sonho. Que sonho fagueiro! Lisonjeiro castelo d’amor! Era como uma aurora brilhante! Deslumbrante de róseo fulgor.

A seguir, passaremos à análise musical seguindo o método sugerido por LARUE (1992), cujo sistema inclui observações sobre os parâmetros som, harmonia, melodia e ritmo. Como indicado por esse autor, estabelecemos que nosso “padrão de dimensão” para esta análise, será tratar da ária Tive um sonho considerando-a como excerto da opereta A Princesa do Catete, constituindo-se, desta maneira, num trecho independente da obra.

A linha vocal da personagem Princesa do Botafogo está entre os limites de Dó#3 a Sol#4, localizando-se dentro da extensão básica de uma voz de soprano, tornando-se de fácil execução para essa classificação. Notamos que esse âmbito vocal pode ser realizado também por uma voz de mezzosoprano, sobre a qual a literatura indica a extensão da nota Lá2 ao Lá4 como própria para a execução dessa classificação. No entanto, para uma diferenciação clara das três personagens que compõem a opereta A Princesa do Catete, indicadas pelo compositor como soprano, mezzosoprano e contralto, julgamos conveniente a performance do papel Princesa do Botafogo para a voz de soprano.

A partitura não apresenta grande variedade de dinâmicas, indicando p para a linha do acompanhamento do piano que parece manter-se até o f indicado ao início da parte A’. A linha vocal pode manter-se neste mesmo patamar em conjunto com o piano, porém, vemos surgir movimentos melódicos que naturalmente nos conduzem a ondas de crescendo e diminuendo pelas seções A e B. Um pequeno trecho em p é indicado na parte A’, quando as vozes cantam “lisonjeiro castelo d’amor!”, retornando rapidamente ao f para finalizar a ária. Ainda, podemos notar alguns staccatos nas notas agudas em meio a frases melódicas interrompidas por pausas, como no exemplo que se segue na Figura 7 (aqui, podemos perceber também que na linha vocal falta o sinal de staccato no c.33, elemento este que será adicionado em nossa edição):

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Figura 7 - Excerto da ária Tive um sonho, no qual podemos visualizar staccatos indicados pelo compositor, c.31 e 33 circulados em vermelho. Circulado em azul na linha do canto, apontamos o c.33, o qual julgamos também ser assinalado com a indicação de staccato.

A textura da ária Tive um sonho é claramente de melodia acompanhada, apresentada por pequena introdução em uma só linha melódica na mão direita do piano, que nos ambienta o canto narrativo. Na parte A, apresenta os mesmos movimentos articulatórios no piano e na voz, como que sugerindo uma fluência dos dois ao caminhar em paralelo. Na parte B, contamos com curtos movimentos em arpejo na linha do piano em momentos de notas mais breves da voz, o que cria um sentido de complementação entre as linhas. Para um efeito de encerramento, a parte A’, desta vez com adição do Coro de Damas do Paço, apresenta arpejos em toda a linha da mão direita do piano, criando um maior volume sonoro no acompanhamento.

Composta na tonalidade de Lá Maior, a ária possui estrutura bastante previsível. Trata-se da forma A-B-A, sobre a qual o compositor designou uma linha solista para a execução da parte A, notada na tonalidade de Lá Maior, seguida de outro trecho solista na tonalidade de Fá Maior para a parte B. O retorno à parte A ocorre na tonalidade de Lá Maior, com acréscimo de uma escrita coral que em diversos momentos executa com a voz solista a mesma linha melódica. Desta maneira, a estrutura formal dessa ária apresenta os seguintes dados:

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

• Introdução: c.1-5, apresentada na tonalidade de Mi Maior, dominante da tonalidade original da ária, ou seja, Lá Maior. • Parte A: do c.6-45, na tonalidade de Lá Maior; • Parte B: c.46 ao primeiro tempo do c.62, na tonalidade de Fá Maior; • Parte A’ (solos com coro): segundo tempo do c.62 até o final, c.78, na tonalidade de Lá Maior. Esta parte pode ser considerada como A’, visto que à sua repetição são acoplados novos elementos como um pequeno coro e uma escrita ao piano com maior movimentação, o que ocasiona maior densidade sonora.

Observando a melodia dentro de uma delimitação de dimensão pequena, como nos sugere LARUE (1992), podemos verificar padrões de contorno que nos permitirão, posteriormente, fazer ligações com as frases do poema. Na Figura 8, a seguir, podemos visualizar o sentido dos contornos em vermelho, que nos desenham formas semelhantes a arcos:

Figura 8 - c.7-13 - Em vermelho, damos destaque aos contornos melódicos semelhantes a arcos, presentes na linha da voz e do piano.

Quanto ao ritmo da ária Tive um sonho, fica clara a intensão do compositor de trazer-nos um movimento valsado à narrativa da Princesa do Botafogo. O compasso ¾ nos confere a sensação de dança a partir do c.7, onde o primeiro tempo forte dá apoio à linha do canto a cada compasso, ainda que notemos que algumas pausas na mão direita do piano substituem o segundo e terceiro tempos de alguns compassos, criando um padrão rítmico de 1 2 3 - 1 239

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253. pausa pausa, evidenciando a leveza do valsado, que não faz-se pesado ao competir com a linha da voz (veja Figura 8). Situando-nos dentro de um moderato ma non troppo, descrito na introdução da ária, chegamos até ao Rall un poco no fim da parte B, que logo nos traz de volta ao andamento e ambiente do início da ária, na parte A’, com a indicação de A Tempo.

4 – Observações sobre a relação texto-música e sugestões interpretativas

Ao observarmos o texto de Carneiro Vilela e os parâmetros de análise musical sugeridos por LARUE (1992), podemos estabelecer relações de semelhança entre o poema e escrita musical na ária Tive um sonho.

Como apontamos na seção anterior, o compositor repete parte do texto em sua escrita musical, no caso, a palavra “desfolhava” e o termo “de uns amores”. Notamos essa conduta nos c.30 a 33 e 38 a 41, respectivamente. Na Figura 9, a seguir, destacamos a repetição da palavra “desfolhava” entre os c.30 e 33 da partitura. Além de o compositor preservar a quadratura musical com a repetição da palavra em questão, notamos também uma ilustração de relação texto-música, pois o ato de desfolhar implica em despetalar ou mesmo arrancar as pétalas, que cairão por terra. Ademais, podemos relacionar esta construção musical com a figura retórica suspiratio, sugerida por CANO (2000), como “uma maneira de representar suspiros que expressam afetos de uma alma em sofrimento” CANO (2000, p.198), lembrando que a personagem está a narrar um fato que não é realidade, mas um sonho. Neste sentido, a linha musical composta por Euclides Fonseca apresenta-se em progressão descendente de um tom:

Figura 9 - A repetição da palavra “desfolhava” como recurso no sentido de preservar a quadratura musical, além de apresentar-se como relação texto-música na ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete.

Em relação ao termo “de uns amores”, observamos o mesmo padrão de escrita musical descrito acima. Ao repetir o termo, notamos uma perda de energia, justamente pela progressão melódica descendente, tão bem estruturada no período Barroco (e presente ainda na música tonal do século XX), no qual as movimentações descendentes ilustravam, quase sempre, afetos caracterizados por perda de energia, como morte, desalento e desencanto, entre outros. 240

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Desta maneira, podemos sugerir que o cantor e pianista valorizem o desenho rítmico abordado aqui, dando ênfase à pausa “suspiro”. O ritmo valsado ganha velocidade ao chegar a este trecho da parte A, mas deve-se conter o pulso ao atingir a primeira nota do compasso com o suspiratio (c.31 e 33), criando uma pausa até mesmo na respiração do cantor, e retomando o andamento em seguida, para que seja possível criar o efeito de suspiro.

Os desenhos melódicos em arcos mencionados na Figura 8, na seção anterior, podem sugerir a impalpabilidade do sonho-relato. Mantendo a nota Si3 no topo melódico deste contorno, como se fosse a sustentação do sonho sentido como algo factível, as notas Fá#3, Fá3 e Mi3, localizadas no fim de cada arco, caminham numa direção descendente, como numa catabasis11, refletindo um sentimento de melancolia, neste caso, a ligação com a realidade.

Apesar de não identificarmos no manuscrito original nenhuma indicação de mudança de caráter entre as partes que compõem essa ária, notamos que a volta da parte A (segundo tempo do c.62), com a presença do Coro de Damas do Paço, confere à ária uma sensação de afirmativa do sonho, como se a plateia que presencia a narrativa feita pela personagem Princesa do Botafogo na parte A inicial, fosse, agora, elemento integrante do relato e estivesse revivendo-o juntamente com ela.

Em relação à classificação da voz de soprano indicada pelo compositor para o papel de Princesa do Botafogo, sugerimos a de soprano lírico. Segundo MAGNANI (1996), ao referir-se sobre os predicados dessa subclassificação:

É a voz típica do soprano, sonora e aveludada, igual nos vários registros, com natural aptidão para o legato expressivo e pouca propensão para a agilidade virtuosística. A qualidade do som prevalece sempre sobre a intensidade e brilho. É a voz que expressa a feminilidade nos seus aspectos de devotamento e ternura (...). (MAGNANI, 1996, p.209).

Pelas considerações de MAGNANI (1996), reforçamos a indicação da performance da personagem Princesa do Botafogo para a voz de soprano lírico por acreditarmos que essa subclassificação poderá ilustrar de maneira satisfatória os anseios da jovem princesa em

11 Segundo CANO (2000, p.152), catabasis é figura do sistema retórico musical, com movimento melódico descendente e caracterizando sentimentos angustiantes. 241

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253. relação ao discurso poético e melódico, visto que as linhas compostas por Euclides Fonseca buscam, em essência, a beleza revestida, segundo a citação acima, de devotamento e ternura. Por fim, acreditamos que a graciosidade do texto presente nesta ária e pela maneira com a qual o compositor valeu-se da construção de frases que não indicam nenhum caráter dramático, a performance de Tive um sonho pode ser construída tendo como base a noção de beleza presente na Belle Époque brasileira, período entre 1870 a 1922, no qual movimentações artísticas e culturais evidenciavam uma busca pelo ar cosmopolita que o Brasil demonstrava em suas regiões mais prósperas, a saber, Acre, Amazonas, Rondônia e Pará, relativas ao ciclo da borracha, e São Paulo e Minas Gerais, estados relativos à produção cafeeira.

Por sua criação ser anterior à Semana de Arte Moderna de 1922, período que marcou profundas mudanças no pensar e também no fazer arte em nosso país, a opereta A Princesa do Catete é um convite a uma plateia acostumada às influências (e imitações) das produções europeias, que à época valorizavam a beleza vocal e os avanços que a arte do canto exibia em produções melodramáticas que persistem até o presente. Assim, acreditamos que a busca por uma realização vocal que privilegie a beleza do timbre deve sobrepor-se até mesmo à importância do libreto, visto que os brasileiros naquele momento de criação da opereta A Princesa do Catete acreditavam ainda em palácios e em princesas, termos que sugerem beleza, graça e elegância.

5 – Considerações finais

A pesquisa em música no Brasil, focada em várias formações tais como música de câmara, orquestral, e a ópera de câmara, mostra-se como um campo fértil explorado em cursos de pós- graduação em árias como performance e musicologia. Neste sentido, este capítulo contribui ao tratar de uma ária de opereta que ainda encontra-se inédita e não disponibilizada, mas que vem sendo analisada como fragmento de uma pesquisa maior, cujo objetivo é o resgate de parte de nossa história. O nome do compositor Euclides Fonseca tem atualmente recebido atenções com a recente montagem de sua ópera Leonor, em Pernambuco, e com a menção de sua figura no livro de Silva (2006), Música e ópera no Santa Isabel: subsídio para a história e o ensino da música no Recife. Desta forma, consideramos que nosso trabalho contribui no sentido de disponibilizar outra composição de Euclides Fonseca.

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A ária Tive um sonho revela-se como uma amostra dos sentimentos juvenis da personagem Princesa do Botafogo, despretensiosa, mas com presença de elementos que trazem-nos a sensação de um sonho-relato que quase torna-se realidade aos olhos de sua plateia. Para os autores deste texto, a ária em questão pode ser considerada como um espelho, um suspiro da Belle Époque brasileira, cuja primazia pelo belo pode garantir a esse título sua permanência como obra representativa do gênero.

Referências de texto

1. CANO, Rubén López. (2000) Música y retórica en el Barroco. México: UNAM. Versión on- line: www.lopezcano.net (Acesso em 27 de novembro, 2019).

2. CASTAGNA, Paulo. A Imperial Academia de Música e Ópera Nacional e a ópera no Brasil no Século XIX. Apostila do Curso de História da Música Brasileira – Instituto de Artes da UNESP, disponível em https://www.academia.edu/1082742/A_Imperial_Academia_de_M%C3%BAsica_e_%C3%93p era_Nacional_ea_%C3%B3pera_no_Brasil_no_s%C3%A9culo_XIX (Acesso em 14 de setembro de 2019).

3. DINIZ, Pe. Jaime C. (1980) Notas sobre o piano e seus compositores em Pernambuco. Recife: Edição Coro Guararapes.

4. FIGUEIREDO, Carlos Alberto. (2017) Música sacra e religiosa brasileira dos séculos XVIII e XIX-Teoria e práticas editoriais. 2.ed. revisada. Publicação eletrônica disponível em: shorturl.at/iDHKO (Acesso em 24 de setembro, 2019).

5. FONSECA, Zilda. (1996) Euclides Fonseca, meio século de vida musical no Recife. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.

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7. INSTITUTO RICARDO BRENNAND. Biblioteca José Antônio Gonsalves de Mello. Alameda Antônio Brennand, s/n, Várzea, CEP 50741-904, Recife/PE – Brasil.

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9. LUCENA FILHO, Márcio. (2016) Carneiro Vilela: Língua de ‘navalha’ e pena de ‘ponta de faca’. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.

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12. SILVA, Thaïs Cristófaro. (2008) Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 9.ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto.

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Sugestões de leitura

1. BERCHMANS, João. (2012) Acervo Padre Jaime Diniz: Patrimônio arquivístico como referência histórica à musicologia do Nordeste brasileiro. I Colóquio/Encontro Nordestino de Musicologia Histórica Brasileira. Salvador: PPGMUS, Universidade Federal da Bahia.

2. DINIZ, Pe. Jaime C. (1979) Músicos pernambucanos do passado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Ed. Universitária.

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4. VILELA, Joaquim Maria Carneiro. (1984) A Emparedada da Rua Nova. 3.ed. Recife: PCR; Secretaria de Educação e Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife.

Referência de partitura

1. FONSECA, Euclides de Aquino (1854-1929). A Princesa do Catete. Opereta cômica em três atos, para vozes e piano, com texto de Carneiro Vilela. Partitura manuscrita (S.d.).

Notas sobre os autores

Melina Peixoto é doutoranda e Mestre em Performance Musical pela Universidade Federal de Minas Gerais e Bacharel em Canto Lírico por esta mesma instituição, tendo se formado pela classe do Prof. Dr. Mauro Chantal. Soprano vencedora do “VI Concurso Jovens Solistas” da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sob direção e regência do Maestro Roberto Tibiriçá, foi também semifinalista do “8º Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão”. Atualmente, é cantora efetiva do Coral Lírico de Minas Gerais, participando de inúmeros concertos sinfônicos e montagens de óperas sob direção de maestros como Claus Peter Flor, Emílio de César, Roberto Duarte, Silvio Viegas e Carlos Alberto Pinto Fonseca. Como solista, atua em recitais de câmara e óperas como a recente montagem de 2019 de La Serva Padrona, além de outras óperas como A Flauta Mágica, La Bohème, Dido e Enéias e A Menina das Nuvens. Ainda como solista, participou da Turnê Barroca junto a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e Fantasia Coral de L. van Beethoven, sob regência do Maestro Fábio Mechetti, na Sala Minas Gerais, no ano de 2015. Foi professora de Canto Lírico na UFSJ, Professora Visitante de Técnica Vocal na UFMG e Professora de Canto Lírico e Declamação Lírica na UEMG em 2012. 244

PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Mauro Chantal é Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, onde desenvolveu pesquisa sobre a vida e a obra de Arthur Ibêre de Lemos, orientado por Adriana Giarola Kayama. Mestre em música pela UFMG, graduou-se em piano, orientado Lucas Bretas, e também em canto, classe da Profa. Dra. Mônica Pedrosa. É docente na Escola de Música da UFMG, além de integrar o projeto de pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”. Com Lígia Ishitani gravou o CD Un doux refuge (2015), com a íntegra das canções de Arthur Bosmans (1908 – 1991). Atuou em óperas como Rigoletto, Le nozze di Figaro, La traviata, Il ballo delle ingrate, Pelléas et Mélisande, Macbeth, Roméo et Juliette e Il Guarany, além de atuar como pianista acompanhador. Em outubro de 2018, integrou o elenco de Pelléas et Mélisande na produção do Theatro Municipal de São Paulo, sob regência de Alessandro Sangiorgi, em comemoração aos 100 anos de morte de Claude Debussy. Em 2019, sob regência de Sílvio Viegas, cantou no palco do Palácio das Artes o Te Deum, de Bruckner, a Missa da Coroação, o Requiem, de Mozart, além de integrar o elenco de ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi.

Anexo – Aparato crítico e nossa Edição de performance da ária Tive um sonho

Quanto ao enunciado da edição: Como mencionado anteriormente, optamos por registrar como título da ária o termo Tive um sonho, seguindo a tradição presente nas edições de ópera e operetas de se intitular as árias com as primeiras palavras de um texto lírico. Por tratar-se de um excerto de uma obra maior, assim como consta no manuscrito, deixamos a indicação do personagem que canta, mas adicionamos o nome da opereta da qual é parte, juntamente com as datas de nascimento e morte dos autores da música e do texto. Quanto às alterações de grafia musical em nossa edição: Optamos por mudar as chaves de dinâmica crescendo/decrescendo presentes na linha do piano para o centro da grade do mesmo, para facilitar a visualização do intérprete, presentes nos c.1 a 5 e c.59 a 62.

Idem para chaves de dinâmica presentes na linha da voz solista no final da parte B.

A ligadura do c.7, continuação do c.6, termina originalmente na nota Lá3, em ambas linhas da voz solista e do piano. Optamos por grafá-la até a nota Si3 pontuada, segundo tempo do c.7, indicando o final da sentença do texto poético Tive um sonho, tanto na linha da voz solista quanto da linha do piano.

No terceiro tempo do c.8, na linha da voz solista, apresenta-se originalmente a nota Sol3. Após análise, constatamos que essa nota pode ter sido grafada erroneamente, uma vez que na linha da mão direita do piano consta a nota Lá3, mais coerente com a harmonia, neste mesmo instante. Optamos por grafar, portanto, a nota Lá3 também para a voz solista, ao invés do original Sol3.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

Acrescentamos o sinal de articulação de staccato na nota Ré#4, primeiro tempo do c.33 na linha da voz solista, após análise do fraseado, similar ao primeiro tempo do c.41 e por encontrarmos desta mesma forma na linha do piano. No c.62, início da parte A’ da ária, percebemos que o compositor foi levado a sinalizar Con 8ª, pela falta de espaço para notação nas linhas suplementares superiores da mão direita do piano. Em nossa edição, contamos com espaço suficiente para escrever as notas em suas reais posições sonoras. Idem c.70, em relação à linha da voz mais grave do Coro de Damas do Paço,

Quanto às alterações do texto poético na edição: Verificamos que na parte A’ a letra do texto cantado está presente somente para a voz mais grave do Coro de Damas do Paço. Optamos por distribuir este texto igualmente para todas as vozes. De acordo com a ortografia oficial da língua portuguesa atual, adicionamos acento agudo à palavra róseo, presente no texto da linha da voz solista no c.20. Idem para a palavra castelo com somente uma consoante “l”. De acordo com a ortografia oficial da língua portuguesa, grafamos a palavra invadia com a vogal inicial “i”, e não “e”, como consta no manuscrito.

Glossário: fagueiro: suave, agradável. aurora: momento da manhã em que despontam os primeiros raios de sol. fulgor: luminosidade intensa. mancebo: homem jovem. enlevo: sensação de encantamento.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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PEIXOTO, Melina; CHANTAL, Mauro. (2020) Análise e edição da ária Tive um sonho, da opereta A Princesa do Catete, de Euclides Fonseca (1854-1929). In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.227-253.

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CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Análise e performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler

Analysis and performance of Samuel Adler's Canto XVI for Solo Viola

Maria Fernanda Leitão Canabarro Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Carlos Aleixo dos Reis Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Sugestões de performance para a obra Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler, embasadas na análise contrapontística de Philip Lasser descrita em seu livro The Spyraling Tapestry: An Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music (2008) e no Análisis del estilo musical (2009) de Jan LaRue. O método de pesquisa, de natureza descritiva, analítica e artística foi organizado em três categorias principais: 1- Teórica, explicação das Análises propostas; 2- Analítica, aplicabilidade da ferramenta Contrapuntal Motive e dos elementos SAMeRC1 na peça, demonstrando sua influência na performance; 3- Prática, sugestões de performance embasadas na análise da obra Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. A Contrapuntal Analysis e Análise do Estilo permitem que tenhamos um maior entendimento da construção orgânica do discurso musical, influenciando diretamente nas decisões de performance feitas pelo intérprete. Considerando que a música contemporânea desempenha um importante papel na literatura da viola, os resultado deste estudo pretendem fornecer referencial teórico e conhecimento para que futuros intérpretes possam agregar a obra Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler ao seu repertório.

Palavras-chave: Contrapuntal Analysis; Análise de Estilo; música para viola Solo; Samuel Adler; sugestões de performance.

Abstract: Performance suggestions for Samuel Adler's Canto XVI for Solo Viola, based on Philip Lasser's contrapuntal analysis described in his book The Spiraling Tapestry: An Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music (2008) and Jan LaRue's Análisis del estilo musical (2009). The research method of descriptive, analytical, and artistic nature was organized into three main categories: 1- Theoretical: explanation of the proposed analyzes; 2- Analytical: applicability of the tool Contrapuntal Motive and of SHMeRG elements in the piece, demonstrating its influence on performance; 3- Practice: performance suggestions based on the analysis of Samuel Adler's Canto XVI for Solo Viola. Contrapuntal Analysis and Style Analysis allow us to have a greater understanding of the organic construction of the musical discourse, directly influencing the performance decisions made by the performer. Considering that contemporary music plays an important role in viola literature, the results of this study are intended to provide a theoretical framework and knowledge for future performers to add Samuel Adler's Canto XVI for Solo Viola to their repertoire.

Keywords: Contrapuntal Analysis; Style Analysis; music for Solo Viola; Samuel Adler; performance suggestions.

1 "Sonido, Armonia, Melodia, Ritmo y Crescimiento" em LARUE, Análisis del estilo musical. 254 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Introdução

A música contemporânea desempenha um importante papel na literatura da viola. Às vezes, o performer acaba deixando de lado uma obra em potencial por ela apresentar uma linguagem dificil de interpretar ou estranha para ele. Porém, nos esquecemos do fato de que as mais reconhecidas obras hoje em dia foram também inéditas e desconhecidas para o público anteriormente. Yi-Wen Chao cita em sua tese A Study Guide for Violists uma frase que a pianista Ray Lev disse em uma aula para seu aluno Joel Sachs: "If we do not put a new piece on every recital, we can only blame ourselves if no new Beethoven arrives, because we did not create the atmosphere in which composers thrive”2(CHAO, 2005. p.1). Acredito que ela não queira dizer que precisamos estrear uma nova peça em cada concerto que acontece, mas podemos interpretar a palavra “new” como uma música do nosso tempo. Da mesma forma, se não nos esforçamos para explorar e promover novas peças em potencial, podemos acabar excluindo por falta de conhcimento, excelentes obras.

Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler foi escrito no verão de 2004 e dedicado à Randolph Kelly, spalla do naipe das violas da Orquestra Sinfônica de Pittsburg. Foi estreiado por ele na primavera de 2005 na University of West Virginia. Este Canto for Solo Viola é o décimo sétimo de uma série de obras solo que, espera-se, terá uma para cada instrumento da orquestra. Com breve duração de 7 minutos, a peça consiste em um movimento continuo, tendo duas seções contrastantes. A primeira é uma introdução lenta e contemplativa, que explora as qualidades líricas e expressivas da viola. Na segunda seção o intérprete demonstra agilidade e emoções intensas, terminando em uma furiosa coda.

Nascido 4 de março de 1928 em Mannheim, Alemanha, Samuel Adler mudou-se para os Estados Unidos em 1939. Teve seus estudos realizados na Boston University e Harvard University e recebeu quatro títulos de doutorado, na Southern Methodist University, Wake Forest University, Santa Maria Catedral de Notre-Dame e do Conservatório de St. Louis. Seus principais professores de composição foram Herbert Fromm, Walter Piston, Randall Thompson, Paul Hindemith e . Na área da regência, seu principal professor foi

2 "Se não colocarmos uma nova peça em cada recital, só podemos culpar a nós mesmos se nenhum novo Beethoven surgir, pois não criamos a atmosfera na qual os compositores prosperam" 255 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Serge Koussevitzky. Introduzido na Academia Americana de Artes e Letras em maio de 2001, Samuel Adler é compositor de mais de 400 obras, dentre estas: cinco óperas, seis Sinfonias, doze concertos, oito quartetos de cordas, quatro oratórios entre tantos outros trabalhos para orquestra, banda, coral e grupos de câmara que foram interpretados em diversos lugares. Samuel Adler também é autor de três livros teóricos sobre música: Choral , uma antologia (Holt Reinhart e Winston, 1971; segunda edição, Schirmer Books, 1985), Sight Singing (WW Norton, 1979, 1997) e The Study of Orchestration (WW Norton, 1982, 1989, 2001). Ele também contribuiu com numerosos artigos para as principais revistas e livros publicados nos Estados Unidos e em outros países.

Este trabalho tem como objetivo apresentar sugestões de performance para futuros violistas que se interessem em interpretar o Canto XVI. O método qualitativo de pesquisa de natureza descritiva, analítica e artística foi organizado em três categorias principais: 1) teórica; 2) analítica e 3) prática. Depois de discutir com meu orientador qual seria a melhor forma de abordar o estudo do Canto XVI, decidimos utilizar a teoria de Contrapuntal Analysis de Philip Lasser proposta em seu livro The Spyraling Tapestry: An Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music (2008) juntamente com a Análise de Estilo de Jan LaRue. Lasser diz ser essencial examinar primeiramente a partitura, para melhor compreender como este sistema visual codifica a natureza aural e temporal da música, tendo em vista que o propósito da análise é o de explicar eventos e estruturas musicais (LASSER, 2008, p.1). Depois de estabelecida uma relação entre a página impressa e a realidade do mundo sonoro musical, Lasser apresenta uma abordagem para a análise da música utilizando três novos conceitos: Contrapuntal Voices, Hanging Pitches e Contrapuntal Motives. Jan LaRue relata em seu livro Análisis del Estilo Musical (2009) que "La música es esencialmente movimiento; nunca se encuentra en un estado de absoluto reposo (...)"3 (LARUE, p. 6), e tem como primeiro objetivo explicar o caráter do movimento e da forma perdurável da música. Ele propõe uma análise em três dimensões: pequena, média e grande. Para isso, ele utiliza cinco elementos estilísticos, categorizados como Sonido (S), Armonia (A), Melodia (Me), Ritmo (R) e Crecimiento (C). Para este trabalho as abreviações SAMeRC serão apresentadas em espanhol, idioma em que se encontra o livro presente nas referências. Ambas análises apresentam ferramentas que fornecem suporte para os músicos nos seus esforços analíticos e composicionais, para que possam promover um discurso musical orgânico tanto no momento da composição como da interpretação de uma

3 "A música é essencialmente movimento; nunca se encontra em um estado de absoluto repouso (...)" 256 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. obra.

A primeira parte deste artigo consiste na explicação e aplicabilidade da ferramenta Contrapuntal Motive que será utilizada para analisar o Canto XVI e algumas breves explicações sobre a Análise de Estilo. A segunda etapa apresenta a análise da peça em questão, utilizando a ferramenta Contrapuntal Motive (Philip Lasser) e elementos de estilo propostos por LaRue (SAMeRC) nas suas respectivas teorias. Esta análise constitui a maior parte deste trabalho, pois fornece a melhor visão para maior entendimento do processo composicional e performático da obra. Os exemplos musicais são excertos extraídos da partitura original da peça. Embasadas na análise realizada, a última parte integra sugestões de performance para a obra Canto XVI de Samuel Adler levando em consideração os aspectos técnico, interpretativos da viola e o contexto estilístico de Samuel Adler.

Com isto, este artigo visa demonstrar que a teoria musical pode influenciar no desempenho prático da performance de determinada obra. Fornecer conhecimento e referências teóricas para que futuros intérpretes possam agregar com conhecimento esta peça à literatura da viola solo, e também encorajar futuras análises de diferentes ângulos e perspectivas. Através de estudo detalhado da obra Canto XVI aplicando as ferramentas das análises propostas, esta pesquisa tem como finalidade realizar uma avaliação objetiva da música, para que possamos enriquecer nossa habilidade de avaliação subjetiva de reconhecer o "bom" em qualquer tipo de obra.

1. Contrapuntal Motive e SAMeRC

Uma das maneiras mais interessantes de analisar uma peça é explorar as relações intervalares e materiais melódicos utilizados no discurso musical. Para este trabalho, os cinco tipos de qualidades intervalares estarão abreviados como M (maior), m (menor), J (justa), A (aumentada) e d (diminuta). Sendo assim, 3m representa um intervalo de terça menor e 5J uma quinta justa. O resto das abreviações será feita da mesma maneira. Na sua teoria de processo orgânico na música discutida em seu livro The Spyraling Tapestry: An Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music, Philip Lasser distingue dois tipos de Motivos: Compositional e Contrapuntal Motives. O primeiro se refere aquele que normalmente analisamos na música como motivos de superfície. São compostos de notas, intervalos e ritmos exatos. Lasser

257 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. apresenta como exemplo (Figura 1) de Compositional Motive os primeiros cinco compassos da 5ª Sinfonia de Beethoven, demonstrando que não se pode mudar as notas, nem intervalos nem ritmos sem destruir a integridade deste famoso gesto musical de abertura.

Figura 1 – I mov. 5ª Sinfonia, Beethoven. Compositional Motive da abertura, c. 1-5. Intervalos de terça Maior (M3) e terça menor (m3)

O conceito que vamos utilizar para análise neste trabalho é o Contrapuntal Motive. Lasser diz que CMs são difíceis de definir porque são estruturas verdadeiramente subcomposicionais por natureza e que, devido à sua simplicidade, podem ser vistos como triviais (LASSER, p.37). Seu poder não reside neles mesmos, mas sim na criatividade com a qual os compositores os utilizam em todos os niveis de composição. Assim como sua relevância para análise vai depender da habilidade do analista, que deve procurar abordar a obra de forma criativa, tanto quanto o compositor ao compor.

"Os CMs revelam como um único conceito pode edificar decisões composicionais em todos os níveis do discurso musical. Os CMs unificam um trabalho na medida em que podem se transformar de um conceito baseado em notas em articulações, ritmos, seqüências, escolhas de instrumentação, desenvolvimento melódico, decisões harmônicas e, finalmente, estruturais."4 (LASSER, 2008. p.37)

Algumas características que definem um CM: − é um gesto musical que considera somente o parâmetro da altura, que pode ser encontrado operando consistentemente por toda a obra; − normalmente são compostos por duas a cinco notas em combinação de grau conjunto ou repetição; − não possui nenhum salto (movimento disjunto); − é um conceito que se baseia exclusivamente na organização das alturas, logo seu ritmo exato não é importante. Porém, sua colocação ritmica sim importa, podendo ser

4 “CMs reveal how a single concept can edify compositional decisions at all levels of musical dicourse. CM's unify a work in that they can morph from a note-based concept into articulations, rhythms, sequences, instrumentation choices, melodic development, harmonic decisions and ultimately, structure.” 258 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

iniciado em tempo forte ou fraco (downbeat ou pick-up).

Na teoria de Lasser, o CM da abertura da 5ª Sinfonia de Beethoven é um conjunto de duas segundas descendentes, Sol-Fá e Mib-Ré (exemplo Figura 2). Este motivo permeia todo o material temático da Sinfonia.

Figura 2 - I mov. 5ª Sinfonia, Beethoven. Contrapuntal Motive da abertura, c.1-5. Intervalos de segunda maior (M2) entre as notas Sol e Fá; intervalo de segunda menor (m2) entre as notas Mib e Ré

Lasser compara os dois motivos fazendo uma redução rítmica para melhor evidenciar a relação intervalar de segundas descendentes no Contrapuntal Motive e em seguida coloca a justificativa para sua análise como podemos observar na Figura 3.

Figura 3 – I mov. 5ª Sinfonia, Beethoven. c. 1-5. Redução rítimica feita para facilitar a visualização da relação estabelecida entre as notas para entendimento do Contrapuntal Motive.

"A famosa abertura do Symphony é composta por 2 CMs de segundas descendentes Sol-Fá e Míb-Ré; Estes são explicitamente ouvidos por causa de suas diferentes superfícies rítmicas; O CM Sol-Fá possui um ritmo de colcheia sincopado; O CM Míb-Ré possui o ritmo de meia nota de fermata longo; Também existe um segundo CM ascendente Míb-Fá latente na abertura. É latente, na medida em que não é verdadeiramente perceptível ao ouvido devido aos diferentes ritmos de superfície de seus 2 membros."5(LASSER, exemplo 60).

5 “The famed opening of the Symphony is made up of 2 CM's of descending seconds G-F and Eb-D; These are heard explicity because of their different rhythmic surfaces; The G-F CM possesses a syncopated eighth-note rhythm; The Eb-D CM possesses the long fermata half-note rhytm; A latent Eb-F ascending second CM also exists in the opening. It is latent, in that it is not truly noticeable to the ear owing to the different surface rhythms of its 2 members.” 259 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Na Análise de Estilo de LaRue, os CMs fariam parte das pequenas dimensões, como um Motivo. Mas devido a sua capacidade de permear e edificar todo um discurso musical, como será demonstrado na segunda parte deste trabalho, também interferem na media e grande dimensão. A Análisis del Estilo Musical propõe: "Pequeñas dimensiones: Motivo, Semifrase, Frase; Dimensiones medias: Período, Párrafo, Sección, Parte; Grandes dimensiones: Movimiento, Obra, Grupo de Obras"6 (LARUE, p.5). Além das dimensões sugeridas por LaRue este trabalho também irá abordar os quatro elementos contribuintes e o quinto de combinação descritos na Análise de Estilo:

"(...) para obter o máximo desempenho na análise global do estilo, devemos recomendar (...) uma divisão em cinco categorias: som, harmonia, melodia, ritmo e crescimento. (...) no entanto, os cinco elementos básicos não se encontram em um plano de importância equivalente. Tomados um por um isoladamente, som, harmonia, melodia ou ritmo, em muitos casos não conseguem manter estruturas musicais com sucesso. (...) Como resultado, tais elementos normalmente funcionam como elementos contributivos. No entanto, o crescimento desenvolve uma dupla existência: é um produto que emerge e também a matriz que ajusta os outros quatro elementos; é, portanto, o elemento coordenador, aquele que controla e combina, absorvendo todas as contribuições nos processos simultâneos de movimento e forma."7(LARUE, p.8)

Colocando bastante resumidamente os elementos e seus respectivos componentes básicos para hipótesis analíticas temos: Som (Sonido) – timbre, âmbito, tessitura, efeitos especiais, textura e trama, dinâmicas; Harmonia (Armonia) – cor e tensão, etapas de tonalidade, relações de movimento, dissonâncias, progressões, motivos, sequê ncias, ritmo harmônico, intercâmbio de partes, contraponto, imitação; Melodia (Melodía) – âmbito, movimento, desenhos, funções primária ou secundária, média e grande dimensão; Ritmo (Ritmo) – de superfície, continuum, interações com textura, harmonia e contorno, desenhos de trocas, tecidos; Crescimento (Crecimiento) - considerações nas grandes dimensões como equilibrio e relação entre movimentos nas dimensões, tempos, tonalidades, texturas, dinâmicas, evolução do controle. Com estes elementos temos então a siglas SAMeRC que será utilizada neste trabalho exatamente com estas letras, respeitando o idioma em que se apresenta o livro utilizado como

6 "Pequenas dimensões: Motivo, Semifrase, Frase; Dimesões médias: Período, Parágrafo, Seção, Parte; Grandes dimensões: Movimento, Obra ou Grupo de obras". 7 "(...) a fin de obtener un máximo rendimiento en el análisis global del estilo, hemos de recomendar (...) una división en cinco categorías: sonido, armonía, melodía, ritmo y crescimiento. (...) Sin embargo, los cinco elementos básicos no están entre si en un plano de importancia equivalente. Tomados uno a uno aisladamente, el sonido, la armonía, la melodía, o el ritmo, en muchos casos no pueden mantener con éxito las estruturas musicales. (...) Como resultado, dichos elementos funcionan pues típicamente como elementos contributivos. El crescimiento no obstante, desarrolla una doble existencia: en tanto que producto que surge y como la matriz que ajusta los otros cuatro elementos; es, portanto, el elemento coordinador, el que controla y combina, absorviendo todas las contribuiciones en los procesos simultáneos de movimiento y forma (...)". 260 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. referência para este estudo.

Ao aproximarmos destes elementos SAMeRC podemos agrupar com eficácia nossas observações estilísticas e a partir disso ter um maior conhecimento do controle que estes princípios exercem no decorrer do discurso musical. Esta análise nos proporciona uma avaliação de valores objetivos, que servem de base para termos uma avaliação subjetiva consciente e "idealmente incrementar nuestra habilidad para reconocer lo bueno en cualquier tipo de música, en vez de un simple y estrecho , un tanto teórico"8. (LARUE, p.166).

2. Análise do Canto XVI for Solo Viola

Na música de Adler podemos notar sua incansável tendência de sempre introduzir uma nova ideia. Com o objetivo de previnir qualquer estagnação resultante da repetição, ele utiliza uma prática de composição pessoal denominada pitch saturation, que traduziremos para este trabalho como “saturação de notas”. Adler afirma que“(the) habit of changing tonality for the richness of tonal color by elaborating a modal or pan-diatonic context with chromaticism. In order to obscure any feeling of definitive tonality”. 9(CHAO, 2005. p.70). A música atonal, ou desprovida de centro tonal principal ou tonalidade preponderante, foi consciente e exaustivamente explorada na Segunda Escola de Viena no início do século XX. Seus principais membros foram Arnold Schoenberg (1874-1951), Alban Berg (1885-1935) e Anton Webern (1883-1945), importantes compositores responsáveis pelo desenvolvimento do conceito da atonalidade. Jan LaRue disserta sobre a evolução da tonalidade quando se refere à influência da harmonia nas grandes dimensões, divide este processo de desenvolvimento de acordo com os períodos histíricos em 6 etapas, sendo a última etapa relativa à atonalidade.

"1. Tonalidade linear: é a sintaxe harmônica do período que se extende desde a polifonia mais antiga ao meio do Renascimento (...); 2. Tonalidade migratória ou transitória: representa um tipo de processo harmônico desenvolvido principalmente desde início do Renascimento até o barroco, caracteriza-se pela passagem constante, de maneira temporária, de um centro tonal para outro sem estabelecer senso direcional consistente ou qualquer outro objetivo gravitacional central (...); 3. Tonalidade bifocal: constitui um estágio intermediário na busca à tonalidade unificada. Pode ser observada especialmente no século XVII e início do século XVIII, e é caracterizada pela oscilação entre o modo maior e sua relativa menor, mas sem ser entendida como outra excursão a uma tonalidade distante (...); 4. Tonalidade unificada: é uma hierarquia funcional de acordes centrada em torno de uma única tônica, característica da música desenvolvida entre 1680 e 1860 (...); 5. Tonalidade expandida:

8 "idealmente incrementar nossa habilidade para reconhecer o bom em qualquer tipo de música, ao invés de um simples e curto , um tanto teórico". 9 “(O) hábito de mudar a tonalidade para a riqueza da cor tonal, elaborando um contexto modal ou pan- diatônico com crommaticismo. Para obscurecer qualquer sentimento de tonalidade definitiva”. 261 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

os compositores rapidamente ampliaram seus recursos harmônicos durante o século XIX, buscando principalmente o sentimento de cor descritiva (...); 6. Atonalidade: consiste na evitação consciente da tonalidade empregando procedimentos antitonais(...) ".10 (LARUE, 2007. p.39-41).

Adler evita conscientemente a tonalidade, ou qualquer senso tonal, elaborando um contexto musical cromático. Com o auxilio da ferramenta de Contrapuntal Motive proposta por Lasser, explicada anteriormente na primeira parte deste trabalho, podemos reconhecer a presença da atonalidade no seu estilo composicional. Vale ressaltar que este CM de 2m (segunda menor) foi analisado pela autora, outro pesquisador poderia apresentar análise distinta, com outro(s) CM(s) que encontrasse mais relevantes. O Contrapuntal Motive de 2m permeia todo o primeiro movimento do Canto XVI e é empregado de maneiras diferentes no decorrer da obra, não necessariamente vamos ter este intervalo apresentado somente entre notas justapostas, pode também ser verificado em cordas duplas, inversões intervalares e entre notas com pequena distância. O exemplo da Figura 4 mostra estas ocorrências, com legenda explicativa logo a seguir.

Figura 4 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 3. Diferentes maneiras de emprego do CM de 2m.

Execução em cordas duplas, com intervalo de 2m entre as notas Dó# e Ré; Cordas duplas com intervalo de 7M entre as notas Dó e Si, utilizando a inversão intervalar temos o intervalo de 2m; Dois intervalos de 2m entre as notas justapostas Dó#-Dó (considerando equivalência

10 "1. Tonalidad lineal: es la sintaxis armónica del periodo que va de la más antigua polifonía hasta mediados del Renascimiento(...); 2. Tonalidad migratoria o pasajera: representa un tipo de processo armónico observado principalmente desde el Renascimiento temprano hasta el último barroco que pasa constantemente, de forma pasajera, de un centro tonal a otro sin establecer ningún sentido direccional consistente ni ningún otro objetivo gravitatorio central (...); 3.Tonalidad bifocal: constituye una etapa intermedia en el desarrollo hacia la tonalidad unificada, podemos encontrar sobretodo en el siglo XVII y principios de XVIII, y se caracteriza por la oscilación entre el modo mayor y su relativo menor, pero sin que pueda entenderse como otro excursión a una tonalidad migratoria (...); 4. Tonalidad unificada: se trata de una jerarquía funcional de acordes centrados en torno a una sola tónica, característica propria de la música desde cerca de 1680 hasta 1860 (...); 5. Tonalidad expandida: los compositores extendieron rapidamente sus recursos armónicos durante el siglo XIX en busca principalmente del sentimiento del color descriptivo (...); 6. Atonalidad: consiste en la evitación consciente de la tonalidadad empleando procedimientos antitonales (...) ". 262 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. de oitavas) e Si – Lá#; Intervalo de 2m entre as notas não justapostas Ré–Ré# (considerando equivalência de oitavas), tendo como pequena distância a nota Dó entre elas.

Logo no início da música em questão, as primeiras notas são apresentadas em movimento descendente de 2m, evidenciando a importância deste intervalo para o desenvolvimento da peça. O tecido musical apresentado no primeiro movimento do Canto XVI for Solo Viola é frequentemente saturado com todas as 12 notas da escala cromática apresentadas em um curto espaço de tempo em nivel local. Nos exemplos a seguir (Figuras 5, 6 e 7) podemos identificar a presença desta saturação de notas nos c.1-2, 14-15 e 20. Para melhor compreensão de leitura, utilizaremos os números inteiros da classe de afinação pertencentes à escala cromática de uma oitava iniciando na nota Mí: Mí=0 ou 12, Fá=1, Fá#/Solb=2, Sol=3, Sol#/Láb=4, Lá=5, Lá#/Síb=6, Sí=7, Dó=8, Dó#/Réb=9, Ré=10, Ré#/Míb=11.

Figura 5 – c.1-3 do I mov. Canto XVI for Solo Viola. Números colocados sobre as notas dos c.1-2 indicam as notas da escala cromática de Mi, evidenciando a saturação das 12 notas em apenas dois compassos.

Figura 6 – c.14-15 do I mov. Canto XVI for Solo Viola. Saturação de 11 notas, faltando somente o Lá natural (Lá=5) para completar as 12 notas da escala cromática.

263 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Figura 7 – c. 20-21 I mov. Canto XVI for Solo Viola. Saturação das 12 notas um compasso.

Como podemos ver nos excertos colocados nas Figuras 5, 6 e 7, Adler apresenta primeiramente uma sequência de quatro notas em movimento descendente com intervalo de 2m entre elas. As notas que seguem são realizadas através de saltos e parecem ser desconexas, mas se analisarmos com cautela podemos verificar a presença deste CM de 2m e perceber o desenvolvimento de uma grande escala cromática descendente iniciando sempre na nota Mi em registro agudo. Por exemplo, se colocarmos aqui os números das notas na ordem em que aparecem na Figura 7 temos: 12, 11, 10, 9, 5, 8, 7, 2, 1, 6 e 3. Ou seja, as notas da escala cromática não estão uma do lado da outra de forma organizada e decrescente, salvo as quatro primeiras como já foi dito. Porém, se utilizarmos a equivalência de oitavas e considerarmos as notas 6=Sib, 4=Láb e 3=Sol na mesma altura das anteriores (registro uma oitava mais aguda), e organizarmos os números (notas) de forma ordenada, verficamos a presença das 12 notas da escala cromática em um curto espaço de um compasso composto por 16 notas.

Retornando à LaRue, estas três passagens citadas podem ser relacionadas através da análise da melodia em média e pequena dimensões. Se tomarmos como “tema” o material encontrado nos dois primeiros compassos da música, logo percebemos que ambas as ocorrências que seguem nos c.14–15 e 20 preservam algumas semelhanças que podem contribuir para a forma da obra (dimensão média) como simplesmente para estudar a ação melódica mais detalhadamente (dimensão pequena). “La melodía em la dimensión media contribuye muy significativamente en la forma por medio de las ramificaciones del diseño temático."11 (LARUE, 2007. p.58). Não necesariamente precisamos ter o mesmo material repetido exatamente igual, com mesmas notas e mesmo ritmo, mas ter algo em comum que nos permite recordar através da escuta o que já foi tocado antes.

LaRue coloca esta prática como um procedimento que contribui para a forma da peça, uma opção de continuação realizada através do tratamento melódico, a qual ele denomina

11 "A melodia na dimensão média contribui muito significativamente na forma por meio das ramificações do desenho temático". 264 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

"Desarrollo (interrelación), que incluye todos los cambios que derivan claramente del material precedente, tales como variación, mutación, secuencia u otras formas de paralelismos menos precisas (...)"12 (LARUE, 2007. p.62). Analisar a melodia nas pequenas dimensões seria como encontrar as palavras e frases, que vem a ser intervalos e desenhos motívicos, dentro do discurso musical.

As Figuras 8, 9 e 10 a seguir demonstram um estudo da ação melódica com detalhe. Com o auxílio da linha vermelha colocada nos exemplos das Figuras mencionadas, podemos percebemos uma captação de movimento utilizando o meio de "cuenta de flexiones" proposta por LaRue, que nada mais é do que um somatório do número total de trocas de direção melódica em articulações relevantes.

Figura 8 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c.1-2 Contorno melódico com 9 flexões.

Figura 9 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 14-15 Contorno melódico com 9 flexões.

Figura 10 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 20-21. Contorno melódico com 9 flexões.

12 "Desenvolvimento (inter-relação), que inclui todas as alterações que derivam claramente do material anterior, como variação, mutação, sequência ou outras formas de paralelismos menos precisos (...)" 265 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Podemos perceber que nos três excertos temos a mesma quantidade de trocas de direção melódica, todos apresentam exatamente nove trocas. Este método de análise nos revela apenas uma pequena parte da natureza, enormemente complexa, da melodia. Elas contribuem para um maior e mais amplo entendimento, "(...) se debe valorar de acuerdo com su duración, circunstancias acentuales, posición en el ámbito, colocación en la frase (...) y función que desempeña en el contorno o modelo (...)"13. (LARUE, 2007. p.65).

Considerando para fins de análise que este movimento do Canto possue uma forma A (c.1-7) B (c.8-15) C (c.16-23), ou seja, com três partes distintas, estas passagens descritas anteriormente estão colocadas em pontos importantes. O primeiro excerto representa a abertura da obra, apresentado inicialmente em dinâmica forte, seria o "tema" que deriva os demais materiais. O segundo excerto, localizado na segunda metade do c.14 e c.15, também em forte, é o final da segunda parte analisada em média dimensão (parte B). Em ambos os casos, logo em seguida da apresentação desta melodia, Adler desenvolve um material melódico completamente novo. Utiliza um contraste de dinâmica passando de f para ff na primeira vez (c.2 e 3), e de f para pp no segundo caso (c.15 e 16), como podemos ver marcado em azul na partitura na página seguinte deste trabalho na Figura 11.

Ainda relativo a estas duas passagens, existe uma pausa depois do término de apresentação do material melódico para então introduzir uma nova ideia. Da primeira vez temos ainda a diferenciação de tessitura, pois o tema (c.1-2) é colocado em uma única voz, e a exposição de um novo material contrastante (c.3-4) é apresentado em cordas duplas e em um registro bem mais grave do instrumento do que do inicialmente apresentado. E Adler inicia o terceiro compasso com dinâmica ff com um novo material em cordas duplas com as notas Dó# e Ré, gerando uma tensão e demonstrando o quão importante este intervalo de 2m é para a peça. A terceira vez em que escutamos a melodia (c.20-21) ocorre no final da terceira parte ou parte C, que se extende dos c.16-23 como dito anteriormente. Esta última vez serve de uma pequena recapitulação do inicio da obra e é o momento em que Adler coloca de maneira mais compacta todas as 12 notas cromáticas, fazendo grandes saltos melódicos. A realização deste momento requer agilidade do intérprete e pode ser vista como uma cadência final da peça. Os três materiais melódicos descritos acima estão marcados em retângulos vermelhos na partitura da Figura 11, e os contrastes de dinâmica em azul. As seções e outras especificações escritas nos

13 "(...) deve ser avaliado de acordo com sua duração, circunstâncias acentuadas, posição no campo, posicionamento na frase (...) e função que desempenha no contorno ou modelo (...) " 266 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. seus lugares pontuais.

A análise feita pode ser vista anotada na partitura a seguir (Figura 11) referente ao primeiro movimento do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler e em seguida serão apresentadas algumas dicas de performance sugeridas pela autora, com a intenção de promover uma melhor realização destas passagens analisadas anteriormente e a manuntenção de um discurso musical orgânico.

267 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Figura 11 – I mov. Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. "Tema" e material temático marcados em vermelho e dinâmicas em azul.

268 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

3. Sugestões de Performance

Ao mesmo tempo que utiliza técnicas convencionais de performance, como golpes de arco normais (sem técnica expandida), harmônicos naturais e artificiais, cordas duplas, Adler consegue explorar ao extremo a execução violística, conectando e apresentando estas técnicas em um contexto não convencional. Este contexto envolve uma combinação de registro, sintaxe melódica e tempo que será apresentada a seguir.

3.1 Registro

Adler utiliza em grande parte do primeiro movimento do Canto XVI for Solo Viola um registro bastante alto do instrumento. Podemos perceber este uso principalmente nas passagens mais melódicas ou líricas, momentos mais "brilhantes" da obra. Para obter melhor ressonância da viola, o intérprete deveria tocar com ambos braços e pulsos bem relaxados, e utilizar o peso do arco e do braço direito, ao invés de tentar "apertar" o som utilizando pequenos músculos (problema bastante comum resultante da pressão excessiva do dedo indicador da mão direita no arco, gerando um som "estrangulado"). Ao executar estas passagens mais agudas, o ponto de contato do arco deve ser mais próximo ao cavalete, para que o som posso sair mais claro e com uma dinâmica mais presente (forte).

Considerando o que Adler solicita no início da peça, “Slowly, expressively and freely”14, e tendo em vista algumas passagens mais expressivas em registro alto, podemos utilizar o mesmo dedo para realizar notas consecutivas com intervalo cromático. Mesmo que isto causasse um glissando entre as notas (o que estaria de acordo com expressively indicado pelo compositor), esta sugestão de dedilhado seria mais apropriada do que utilizar dedos distintos, pois quanto mais alto no espelho menores são as distâncias fisica entre as notas. Ciente desta análise, as appoggiaturas do primeiro e segundo compasso não precisam ser executadas tão rapidamente, seria importante o intervalo de 2m ser escutado claramente desde o princípio da obra. Os exemplos citados de uso de mesma digitação em registro agudo ou para fins de expressividade estão indicados dentro de um retangulo vermelho no excerto a seguir da Figura 12.

14 "lento, expressivamente e livremente" 269 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Figura 12 – Glissandi expressivos decorrentes do uso de mesmo dedo (3-3 e 2-2) em notas diferentes, nos c. 1-2 e 7 no Mov. I do Canto XVI for Solo Viola.

3.2 Sintaxe melódica

A preferência de Adler por movimentos disjuntos na melodia acaba ocasionando constantes e irregulares trocas de posição (mão esquerda) durante toda obra. Além disso, devido ao uso de uma linguagem cromática, a necessidade de consecutivas trocas de cruzamento (string crossing) de cordas é proeminente. Para a manutenção de longas frases e consistente qualidade sonora, são preferidas trocas de posição em detrimento à troca de cordas. Estas escolhas estão marcadas em retângulos vermelhos nos excertos da Figura 13 seguir. Inevitavelmente também teremos a troca de cordas em alguns momentos, promovendo uma troca de registro ou cor na sonoridade do instrumento, o que facilita para que a afinação seja mais precisa, sem a necessidade de grandes saltos consecutivos da mão esquerda. Estas passagens estão evidenciadas em retângulo azul na Figura 14. Em qualquer um dos casos, as trocas de posição ou cordas devem ser realizadas em um nível não muito perceptível, ou seja, sem tanto esforço. O que requer uma familiaridade entre performer e obra, cuidando a relativa colocação dos dedos e as distâncias geradas entre eles (intervalos nas diferentes posições).

270 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Figura 13 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 1-2. Em retângulos vermelhos: preferência ao uso de mudança de posição para manutenção de mesmo timbre (corda) em detrimento ao cruzamento de cordas.

Figura 14 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 18-19. Em retângulos azuis: preferência pelo cruzamento de cordas em detrimento ao uso de mudança de posição para manutenção de mesmo timbre (corda).

3.3 Tempo

Como já mencionado anteriormente, Adler escreve no inicio do movimento "slowly, expressively, and freely" e propõe um tempo de seminima = 54, andamento que deve ser considerado, porém relativamente. O intérprete deve estabelecer um tempo pessoalmente acessivel, porém nada que sacrifique a intenção e desenvolvimento da peça. Entre a totalidade do primeiro movimento, existem passagens analisadas anteriormente neste trabalho que correspondem a uma "melodia aparente" (ver Figuras 8, 9 e 10). Nestes casos, o intérprete deve enfatizar a melodia e direção de frase mais do que tentar evidenciar cada nota individualmente, para que este material possa ser reconhecido nas outras vezes em que aparece mesmo sem compartilhar exatamente das mesmas notas ou ritmos. Esta abordagem não somente enfatiza o estilo do compositor como também ajuda o performer a traçar e se concentrar nas progressões melódicas dentro de um grande contexo (média dimensão).

Adler lança mão de duas estratégias composicionais para lidar com a flexibilidade do tempo dentro da construção melódica da peça: repetição de notas e sequências. A primeira é a recorrência da mesma nota no mesmo registro, não necessariamente com o mesmo ritmo.

271 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Este gesto de repetição de notas é colocado sempre na apresentação de um novo material melódico, por esta razão apresenta sempre algo contrastante ao que estava sendo desenvolvido, podendo acarretar mudanças de dinâmica, tessitura (uma linha melódica ou cordas duplas) ou registro. Esta simples insistência na mesma nota gera um senso de estabilidade, chama atenção do ouvinte para algo novo, mas sem cansar sua paciência auditiva. Os exemplos a seguir da Figura 15 e 16 demonstram estas mudanças. Com o intuito de promover este senso de estabilidade, o intérprete pode "segurar" um pouco o andamento, mostrando calma e precisão ritmica, "freiar" o desenvolvimento com controle colocando um pouco mais de peso na mão direita.

Figura 15 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 1 – 3. Apresentação de novo material no c. 3 com uso de notas repetidas, com contraste de dinâmica e tecitura.

Figura 16 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 15-16. Apresentação de novo material através de notas repetidas no c. 16 com contraste de dinâmica.

A outra estrategia composicional utilizada por Adler é o uso da sequência para dar direcionamento ou sentido dentro das seções (dimensão média de LaRue). Elas agem como um material propulsor, que impusiona e dá movimento, que direciona a frase para um momento importante. Geralmente Adler dá um suporte através do uso de reguladores de dinâmica, como crescendo para deixar ainda mais evidente este senso de direção. Enquanto as repetições promovem um senso de estabilidade e segurança de apresentação de novo material, as sequências animam o contexto ao longo do discurso musical. Chao sugere em sua análise do Concerto for Viola de Samuel Adler duas categorias de sequência: uma que envolve exatamente a mesma transposição, ou seja, uma figura movendo em intervalo equidistante (Figura 17); outra que não possui exatamente o mesmo intervalo (Figura 18), mas a direção

272 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. igual, denominada "loose sequence" (CHAO, p.61). Podemos analisar nos exemplos a seguir nas Figuras 17 e 18 este direcionamento melódico através do uso das sequências, que estão marcadas em retângulos vermelhos. Para realizar esta sensação de "indo para frente", o intérprete deve usar bastante velocidade de arco, sem exercer muita pressão, deixando com que o peso do arco e da mão direita façam a pressão necessária para acompanhar a dinâmica. Nestas passagens o tempo pode fluir um pouco mais, fazendo um pequeno acelerando combinado com agilidade da mão esquerda para promover este sentimento de instabilidade e agitação.

Figura 17 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 8-9. Sequências com intervalos iguais para conduzir a frase com auxílio da dinâmica e ritmo.

Figura 18 – I mov. Canto XVI for Solo Viola, c. 13-14. "Loose sequence" conduzindo a frase com auxílio da dinâmica.

4. Considerações Finais

Ambas as teorias de análise propostas neste trabalho, de Estilo e Contrapuntal Analysis, concordam que a análise musical por mais sensível que possa ser, congela o movimento da arte (LARUE, p.170). A partitura analisada não é a arte que chamamos de música e tampouco reflete a experiência aural da música, é somente um sistema visual que codifica da melhor forma possível as intenções de um compositor que está organizando os sons no tempo (LASSER, p.2). As ferramentas e elementos de estilo discutidos neste trabalho pretendem auxiliar futuros intérpretes em seus esforços analíticos, composicionais e performáticos, para que possam ter conhecimento objetivo das suas escolhas. Jan LaRue coloca em seu livro que "Cuando hemos reflexionado sobre una pieza todo lo claramente posible, y hemos obtenido

273 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276. tantas conclusiones como permita el análisis, enriquecemos y completamos entonces el processo total pasando al criterio más vital y definitivo: el sentimiento personal."15(LARUE, p.166). Interpretação é o aspecto mais pessoal e abstrato da performance musical. Certamente não temos o jeito "absolutamente correto" de interpretar uma peça. No entanto, como Adler enfatiza em sua filosofia composicional, cada uma das suas obras é escrita para uma personalidade.

"Eu escrevo para o solista que me pede para escrever. Eu tento entender a personalidade dessa pessoa; se você consegue entender a personalidade de uma pessoa, acho que entende uma humanidade básica. Dessa forma, o Sr. Kelly pode interpretá-la e você poderá colocar sua própria personalidade. De qualquer forma, o trabalho foi escrito para a personalidade "A". Você não precisa ser essa personalidade, mas se você escrever abstratamente, acredito que exista algo "impessoal" sobre isso."16(CHAO, p.126. Entrevista com Samuel Adler).

É impossível para o intérprete descrever cada questão da performance em palavras e tampouco as sugestões propostas neste trabalho têm a pretensão de atender às necessidades individuais de todos os artistas. De qualquer forma acredito que a responsabilidade perpétua de um músico é a de buscar sempre a possibilidade de uma performance melhor. Especialmente para uma composição mais recente, temos que ter em mente o valor de um bom desempenho ao promover uma nova obra. "Igual que una botella de vino nueva para un gourmet, una pieza desconocida debería desafiar al oyente a un refinamiento renovado de la respuesta."17 (LARUE, p.169). Depois de passar por todo o processo de avaliação proposto por LaRue, ainda assim podemos perceber que nunca chegaremos a soluções finais. Visto desta forma, ao realizar estas avaliações, percebemo que no final acabamos julgando a música e a nós mesmos.

"A busca de valor se torna um processo educacional: a tarefa de discernir uma hierarquia de excelência (ou bondade) em qualquer repertório causa uma motivação paralela à excelência da análise e à apreciação estética do intérprete ou do ouvinte. Esse esforço contínuo traz uma recompensa dupla e crescente: uma profunda compreensão do estilo de um compositor fornece uma comunicação intelectual

15 "Quando refletimos sobre uma peça o mais claramente possível e obtivemos o máximo de conclusões que a análise permitir, enriquecemos e concluímos o processo total, passando para o critério mais vital e definitivo: sentimento pessoal". 16 "I write for the soloist who ask me to write. I try to understand that person's personality; if you can understand a person's personality, I think you understand a basic humanity. In that way, Mr. Kelly can play it, and you can play it, and you can put your own personality into it. In any case the work is written for "A" personality. You don't have to be that personality, but if you write abstractly, I believe there is something 'impersonal' about it." (CHAO, p.126. Interview with Samuel Adler). 17 "Como uma nova garrafa de vinho para um gourmet, uma peça desconhecida deve desafiar o ouvinte a um refinamento renovado da resposta". 274 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

crescente e um enriquecimento da experiência emocional".18 (LARUE, p.169).

Acredito que o sucesso de qualquer composição musical é atingido através da relação entre compositor, intérprete, público e críticas. Em última análise, o valor de uma obra será determinado pela posteridade.

Referências

1. ADLER, Samuel. (2017) Building Bridges with Music, Stories from a Composer's Life. Hillsdale, NY: Pendragon Press.

2. ADLER, Samuel. (2004) Canto XVI for Solo Viola. Grafton, Ohio: Ludwig Music Publishing.

3. ADLER, Samuel. (1999) Concerto for Viola and Orchestra. King of Prussia, PA: Theodore Presse Company.

4. CHAO, Yi-Wen. (2005) Samuel Adler's Viola Concerto (1999): A Study Guide for Violists. New York, NY: .

5. DUFFY, Mary E. (1987) Methodological triangulation: a vehicle for merging quantitative and qualitative research methods. In: Journal of Nursing scholarship. Disponível em: (Acesso em: 19 fevereiro, 2018).

6. MANNING, Peter K. (1979) Metaphors of the field: varieties of organizational discourse. In: Administrative Science Quaterly. Sage Publications, Inc. vol. 24, no. 4, p. 660-671.

7. MAANEN, John Van. (1979) Reclaming qualitative methods for organizational research: a preface. Administrative Science Quaterly. Sage Publications, Inc. vol. 24, n. 4, p. 520-526.

8. LARUE, Jan. (2009) Análisis del estilo musical. S. L. Madri, Espanha: Mundimúsica Ediciones.

9. LASSER, Philip. (2008) The Spiraling Tapestry: an Inquiry into the Contrapuntal Fabric of Music. Volume 1 & 2. New York, NY: Rassel Editions.

18 "La búsqueda del valor se convierte en un processo educativo: la tarea de discernir un jerarquía de excelencia (o bondad) en cualquier repertorio provoca una motivación paralela hacía la excelencia del análisis y de la apreciación estética del ejecutante o del oyente. Este empeño continuo aporta una doble y cresciente recompensa: la comprensión profunda del estilo de un compositor proporciona a la vez una creciente comunicación intelectual y un enriquecimiento de la experiencia emocional." 275 CANABARRO, Maria Fernanda; ALEIXO, Carlos. (2020) Análise e Performance do Canto XVI for Solo Viola de Samuel Adler. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e Ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.254-276.

Nota sobre os autores

Maria Fernanda Leitão Canabarro, é Bacharel, Mestre e Doutoranda em Música (performance musical – viola clássica) pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais e Bacharel em Música com habilitação em Viola pela UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como instrumentista, pesquisadora e educadora. Como violista, iniciou seus estudos de viola com a professora Hella Frank, no período de março a dezembro de 2004 no curso de extensão da UFRGS; graduou-se no Curso de Bacharelado em viola da UFRGS da classe de Hella Frank; cursou o mestrado durante um ano na , com o Prof. Mark Neumann e teve seus estudos aperfeiçoados pelo professor Ryszard Groblewsky na HKB (Hochschule der Kunst Bern, Suíça), onde realizou o curso CAS (Certificate of Advances Studies). Em julho de 2013, formou-se no curso de pós-graduação da UFMG, obtendo o título de mestre em performance musical, tendo como orientador o professor Carlos Aleixo. Integrou o naipe de violas da Orquestra da /Anchieta em Porto Alegre (2012-2017) e atualmente faz parte do naipe de viola da Orquestra de Câmara da Ulbra e Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro. É doutoranda orientada pelo prof. Carlos Aleixo na UFMG, linha de pesquisa Performance Musical, viola. Como pesquisadora, publicou artigos em Anais e livro de importantes Universidades brasileiras e participou de Simpósios e Colóquios no Brasil. Com a finalidade de agregar conhecimento à sua pesquisa, participou como aluna especial durante um semestre da classe do doutorado em Filosofia na UFRGS (2017). Como educadora, fez parte do Projeto Vida com Arte, atuando como professora de viola, durante cinco anos (2012-2017). Desempenhando esta mesma função, atua no Projeto Projari em Guaiba – RS (2014-) e no projeto Orquestra Jovem do Estado do Rio Grande do Sul (2017-).

Carlos Aleixo dos Reis natural da cidade de Itabira, Estado de Minas Gerais, Carlos Aleixo é Professor Associado de Viola da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado pela mesma instituição, Carlos concluiu o Mestrado nos Estados Unidos no ano de 1996, com o título “Master of Music in Viola Performance" na Shenandoah University. Em Maio de 2006, como bolsista da CAPES/MEC, concluiu o Doutorado em Artes Musicais Performance/Viola (USA). Como solista já esteve a frente da Orquestra da Escola de Musica da UFMG, Fairfax Simphony Orchestra (USA), Orquestra de Câmara SesiMinas /Musicoop, Orquestra de Câmara BDMG e Orquestra Sinfônica Nacional do Teatro Claudio Santoro/Brasilia. Nos anos 1995-96 e 2004- 05 teve o nome incluído no livro “Who"s Who Among American Universities & Colleges. Carlos tem atuado como professor e Viola em Festivais no Brasil e também apresentando master class e palestras na área de performance do instrumento. Lecionou como professor de viola na Shenandoah University, USA e Professor de Cordas na Loudon County Public School de 2003 a 2006. Em 2005, recebeu o prêmio “Distinguished International Student Award” e o nome incluído na edição 2005 e 2006 do livro “Who"s Who Among American Universities & Colleges. Como regente, realizou e organizou a 1ª Turnê Americana da Orquestra Jovem Gerais (NY,Pensilvania, , Washington/DC e Chicago).

276 GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

ISBN: 978-65-00-00697-1

O português brasileiro no canto erudito: uma revisão de literatura de 2007 a 2018

Brazilian Portuguese in classical singing: a literature review from 2007 to 2018

Cristina Gusmão Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Mônica Pedrosa de Pádua Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: A publicação das Normas Para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto Erudito, em 2007, representa um divisor de águas para os estudos acadêmicos sobre o assunto. Com a finalidade de verificar o estado da arte das pesquisas realizadas sobre esse tema publicadas no Brasil, este artigo apresenta uma revisão de literatura que compreende artigos, dissertações e teses que têm a pronúncia do português brasileiro cantado como objeto principal de estudo, publicados no período compreendido entre 2007 e 2018. As publicações sobre o tema são contabilizadas, organizadas por assunto e têm seu conteúdo brevemente descrito. Esperamos que os dados aqui apresentados deem subsídios para os pesquisadores que tenham o português brasileiro cantado como objeto de pesquisa.

Palavras chave: português brasileiro cantado; normas do português cantado; dicção lírica brasileira; pronúncia do português brasileiro no canto erudito.

Abstract: The publication of the Norms for the Pronunciation of Brazilian Portuguese in Classical Singing, in 2007, represents a watershed in academic studies on the subject. In order to verify the state of the art of research conducted on this topic published in , this article presents a literature review that includes articles, dissertations, and theses that have the pronunciation of sung Brazilian Portuguese as the main object of study, published from 2007 to 2018. Publications are organized by subject and have their contents briefly described. We hope that the data presented here will provide subsidies for further researches on the topic of sung Brazilian Portuguese.

Keywords: sung Brazilian Portuguese; norms for sung Portuguese; Brazilian lyric diction; pronunciation of Brazilian Portuguese in lyric singing.

1 – Introdução

Os aspectos fonéticos do português brasileiro sofreram, ao longo do tempo, transformações em relação ao português de Portugal, resultantes da convivência dos muitos dialetos portugueses no espaço brasileiro e do contato do idioma português com línguas indígenas, africanas e com idiomas europeus falados por imigrantes de diversas procedências (GUIMARÃES, 2005). Esse é um dos motivos pelos quais temos, no Brasil, uma grande diversidade fonética do português

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287. brasileiro, que se estende para a prática cantada. Diante desse quadro, a necessidade de uma padronização do português brasileiro cantado motivou esforços para a sistematização e normatização de sua pronúncia, como veremos a seguir.

O português brasileiro cantado foi objeto de discussão em 1937, no Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, a partir do qual foram publicadas, em 1938, as Normas Para a Boa Pronúncia da Língua Nacional no Canto Erudito. Segundo STOLAGLI (2010),

A defesa do canto em Vernáculo constituiu uma parte fundamental do processo de desenvolvimento e do apogeu do nacionalismo no Brasil. Isto, em muito, deveu-se ao fato de que a preocupação em privilegiar elementos nacionais, em especial a língua portuguesa brasileira, que refletisse a realidade da sua população e que fosse compreensível por ela, foi também uma importante meta do nacionalismo. (STOLAGLI, 2010 p.34).

O congresso de 1938 previu a realização de um segundo congresso em 1942, com a finalidade de homologar ou corrigir as decisões do primeiro (ANDRADE, 1938), mas, devido à conjuntura sócio-política na época, o mesmo não ocorreu. Dando prosseguimento à discussão sobre o português brasileiro, dessa vez na esfera teatral, o Primeiro Congresso de Língua Falada no Teatro ocorreu em 1956, em Salvador, na Bahia.

Em 2003, iniciou-se no Brasil um grande movimento protagonizado por cantores e professores pesquisadores brasileiros, tendo como objetivo sistematizar e consolidar normas para a pronúncia do português brasileiro cantado na música erudita. As ações realizadas incluíram atividades em Grupos de Trabalho (GTs) nos XIV, XV, XVI e XVII Congressos da Associação Nacional de Pesquisa em Música – ANPPOM, respectivamente em 2003, 2005, 2006 e 2007, e a realização do 4º Encontro Brasileiro de Canto – “O Português Brasileiro Cantado” em São Paulo, em 2005 (KAYAMA, 2018). Ainda em 2005, o tema foi debatido no 3º Seminário da Canção Brasileira da UFMG.1 Os estudos e discussões realizados resultaram na publicação do artigo “PB cantado: normas para a pronúncia do português brasileiro no canto erudito” (KAYAMA et al., 2007) na revista da ANPPOM. De acordo com KAYAMA et al., (2007),

Com a publicação de Normas para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto Erudito, encerra-se a tarefa inicial de estabelecer um padrão de pronúncia reconhecivelmente brasileira para o canto erudito, sem estrangeirismos ou

1 Trabalhos do 3º Seminário da Canção Brasileira da UFMG foram publicados na Revista Per Musi, v. 15, janeiro/junho, Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2007.

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

regionalismos, reservando-se a consideração das influências internacionais e das importantes variedades regionais e históricas da nossa língua para estudos futuros. (KAYAMA et al., 2007. p.17).

É importante relatar que um dos objetivos de se criar normas para o canto erudito brasileiro foi o estabelecimento de um padrão fonético sem regionalismos que estrangeiros pudessem utilizar ao cantar a nossa música. Os autores das normas enfatizam a “importância do português brasileiro “neutro” –reconhecivelmente brasileiro e nacional, não importando a origem do cantor”. Reconhecem ainda a necessidade de estudos que abordem as “manifestações regionais, folclóricas e históricas” do português brasileiro cantado (KAYAMA et al., 2007, p.19).

As normas de 2007 foram um divisor de águas para os estudos relacionados à pronúncia do português cantado no canto erudito por representarem uma referência atualizada e respaldada pela comunidade científica e artística brasileira, de importância não apenas para cantores, mas também para linguistas, foneticistas, maestros e todos aqueles interessados no canto em português brasileiro. Sua publicação vem incentivando novas pesquisas sobre o tema, auxiliando intérpretes em suas performances e contribuindo para com a publicação de trabalhos nas áreas da didática do canto e da edição musical.

Para conhecer o estado da arte das pesquisas que vêm sendo realizadas sobre o português brasileiro cantado, apresentamos uma revisão de literatura que abrange artigos, dissertaço es e teses sobre o tema, publicadas no Brasil no perí odo compreendido entre 2007 e 2018. A escolha do perí odo se deu pelo fato das Normas para a Pronu ncia do Portugue s Brasileiro no Canto Erudito terem sido publicadas no ano de 2007. Este trabalho pretende aferir o grau de interesse na pesquisa sobre o portugue s cantado no canto erudito a partir do nu mero e da consta ncia das publicaço es, e identificar as principais tema ticas pesquisadas. A seguir apresentaremos os estudos encontrados sobre o portugue s brasileiro cantado.

2 – Revisão de Literatura

Para este trabalho, foram realizadas buscas da literatura no banco de dados da SciELO Brasil, Portal de Periódicos da Capes e Google Acadêmico, utilizando as seguintes palavras-chave: português brasileiro cantado, normas do português cantado e dicção lírica brasileira. Foram

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287. computados neste artigo apenas os trabalhos que tiveram o português brasileiro cantado no canto erudito como objeto principal de pesquisa, a partir da publicação das normas de 2007.

Para facilitar a estrutura do texto, optamos por organizar e apresentar os trabalhos de acordo com os temas encontrados: a pronúncia do português cantado, junturas de palavras, tonicidade e duração das vogais e nasalidade no canto.

Na temática da pronúncia do português erudito cantado, KRIEGER E TOBER (2008) identificaram, em seu artigo, os fonemas mais difíceis para o cantor norte-americano no preparo e performance de canções em português brasileiro, utilizando como exemplos as canções Canção do Amor e Melodia Sentimental de Villa-Lobos.

STOLAGLI (2010), em sua dissertação de mestrado, realizou uma recuperação histórica da pronúncia do português cantado, de acordo com as normas elaboradas no Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, de 1938. Posteriormente, a autora realizou uma análise prático- comparativa dessas normas com as normas publicadas em 2007, destacando os pontos que as distinguiam e os elementos que causavam modificações para a interpretação de canções no idioma português do Brasil.

Para exemplificar esse estudo, utilizamos um fragmento da referida dissertação (STOLAGLI, 2010) na Figura 1, que apresenta um trecho da canção Teu Nome, de Francisco Mignone.

Figura 1 –Análise comparativa das transcrições fonéticas realizadas de acordo com as normas de 1938 e 2007, da canção Teu Nome, de Francisco Mignone (STOLAGLI, 2010).

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

Verifica-se, no exemplo da Figura 1, que na transcrição realizada com base nas normas de 1938 são propostas modificações rítmicas, com inclusão de aciacaturas em encontros consonantais e divisões proporcionais em encontros vocálicos e em junturas de palavras. Percebe-se ainda distinções fonéticas que ocorrem com os fonemas[t] e [e] (STOLAGLI, 2010).

Em sua dissertação de mestrado, PINHEIRO (2010) utilizou a tabela fonética proposta por KAYAMA et al., (2007) para analisar a pronúncia de dois grupos de cantores argentinos. Para esse estudo, o autor realizou gravações em áudio e vídeo de cada cantor cantando uma canção, as quais foram analisadas qualitativamente. O primeiro grupo utilizou a tabela fonética impressa e um DVD com pistas áudio visuais, como elementos de referência para a pronúncia do português brasileiro cantado. Já o segundo grupo recebeu somente a tabela impressa, sem qualquer apoio audiovisual. Neste estudo, Pinheiro concluiu que os cantores argentinos que receberam as pistas audiovisuais tiveram a pronúncia mais próxima do português brasileiro cantado, enquanto os cantores que tiveram acesso somente à tabela impressa não obtiveram o mesmo êxito.

Recorte de pesquisa de mestrado, o artigo de LIRA (2012) se debruçou sobre questões relativas ao uso do português brasileiro em canções de Alberto Nepomuceno, refletiu sobre as influências na obra do autor e apresentou análise estilística e de relações texto/música das canções.

Abordando ainda a dicção aplicada ao canto, MATTOS (2014), em sua tese de doutorado, buscou comprovar que a boa realização dos processos fonéticos articulatórios da voz cantada dependem fundamentalmente do controle dos processos articulatórios internos e externos das sílabas. Em seu estudo, o autor propõe um modelo teórico da representação da ‘sílaba melódica’, baseado na acoplagem dos subcomponentes estruturais de uma sílaba verbal (ataque, núcleo e coda) com as fases da nota musical (ataque, sustentação e relaxamento). Segundo o autor, sua proposta foi desenvolvida a partir das características articulatórias do português brasileiro e serve de referência tanto para o português brasileiro cantado quanto para a pronúncia cantada de outras línguas.

Finalmente, o artigo de KAYAMA (2018) traçou a trajetória dos estudos e discussões que originaram a publicação das Normas para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

Erudito, em 2007. Publicado em ediça o comemorativa dos 30 anos da ANPPOM, o artigo coloca ênfase no relato das atividades e na apresentação dos resultados dos Grupos de Trabalhos (GTs) que debateram o português brasileiro cantado nos Congressos da ANPPOM. A autora apresenta desdobramentos dos resultados dos GTs, exibe lista de trabalhos publicados e conclui que as pesquisas relacionadas ao tema tiveram continuidade após a publicação das normas, levantando novos debates, contribuindo para o ensino e a aprendizagem do canto, enfocando variedades históricas da nossa língua e facilitando o acesso de nossa música vocal aos artistas estrangeiros.

Dando prosseguimento a esta revisão, mas agora abordando as junturas no canto erudito, citamos dois trabalhos. STARLING E HERR (2012) desenvolveram em seu artigo um exercício de reflexão sobre as possibilidades de realização de junturas de palavras no português brasileiro cantado, com o objetivo de oferecer a cantores e professores de canto ferramentas para auxiliar na dicção do português brasileiro. O estudo foi feito à luz das normas para a pronúncia do português brasileiro publicadas em1938, 1958 e 2007. Em outro trabalho, dessa vez em sua tese de doutorado, STARLING (2018) aponta a necessidade de reflexão sobre os elementos musicais e verbais “notados e não notados da partitura” relacionados à voz cantada. Enfatiza ainda a fundamental importância do conhecimento de junturas de palavras para a performance. Para a autora, o processo de juntura pode ser alterado caso haja modificações nos parâmetros envolvidos, tais como respiração, pausa, ajustes do trato vocal (articulação), intensidade, altura, duração e timbre.

Sobre os aspectos relacionados a tonicidade e duração das vogais, SANTOS (2017), em sua tese de doutorado, realizou um experimento fonético-acústico que permitiu observar como ocorrem as diferentes tonicidades das vogais no canto. O autor partiu de estudos que apontam a duração das vogais como o fator responsável pela distinção entre tônicas, pré-tônicas e pós-tônicas, sendo as tônicas as mais longas (FERANDES, 1976; MASSINI-CAGLIARI, 1992 apud SANTOS, 2017). Em seu trabalho, as análises estatísticas apontaram que as vogais cantadas são mais longas que as vogais faladas; as pré-tônicas e pós-tônicas não se diferem no canto e as vogais de um mesmo grupo acentual têm a mesma duração. Observou-se ainda que, no canto, não ocorrem vogais pós-tônicas desvozeadas2 como na fala.

2 Desvozeamento refere-se à ausência de vibração das pregas vocais, de maneira análoga a consoantes desvozeadas (SILVA, 1999. p.71).

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

Sobre os aspectos relacionados à nasalidade no canto erudito, HANNUCH (2012) em dissertação de mestrado, realizou pesquisa sobre as vogais nasais do português brasileiro, com enfoque em sua articulação e representação fonética. O trabalho apresenta ferramentas para reflexão sobre diferentes maneiras de representação fonética dos sons nasais do português brasileiro cantado. Um exemplo de sua pesquisa é apresentado na Figura 2.

Figura 2-Representação de três possibilidades de transcrições fonéticas dos sons nasais na canção Melodia Sentimental, de H. Villa-Lobos (HANNUCH, 2010, p.49).

A mesma autora, em sua tese de doutorado, HANNUCH (2017), deu continuidade aos estudos sobre a nasalidade no português brasileiro cantado, apresentou proposta de transcrição fonética dos sons nasais no canto e apontou diversas possibilidades de variação articulatória relacionadas à prática musical.

3 – Discussão dos dados encontrados

Após a explanação da literatura encontrada, podemos verificar que foram encontrados 11 (onze) trabalhos relacionados ao português brasileiro no canto erudito, 4 (quatro) artigos, 3 (três) dissertações de mestrado e 4 (quatro) teses de doutorado, como pode ser visto na figura 3.

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

Referências bibliográficas encontradas

4 4

3

Artigos Dissertações Tese

Figura 3- Referências bibliográficas sobre o português cantado organizadas por tipo de publicação no período entre 2007 e 2018.

Os assuntos tratados nesses trabalhos foram relacionados a: vogal cantada e tonicidade com foco na duração das vogais, 1 (um) trabalho; nasalidade do português erudito cantado, 2 (dois) trabalhos; junturas de palavras no canto, 2 (dois) trabalhos e pronúncia no canto brasileiro, 6 (seis) trabalhos. Dentro desse último assunto, os temas encontrados foram relacionados a histórico de elaboração das normas do português cantado, maneiras de utilização das normas, identificação e explanação de fonemas, utilização do português brasileiro em canções, recuperação histórica de pronúncia e articulação da voz cantada. Ver figura 4.

Temas abordados na literatura

1

2 6

2

Vogal cantada com foco na duração Nasalidade no português cantado Junturas de palavras no canto Pronúncia do português cantado

Figura 4- Temas abordados nas referências bibliográficas encontradas

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287.

Em relação aos anos em que os trabalhos foram publicados, encontramos 1 (uma) publicação em 2008, 2 (duas) publicações em 2010, 3 (três) em 2012, 1 (uma) em 2014, 2 (duas) em 2017 e 2 (duas) no ano de 2018. No gráfico abaixo é apresentado o número de pesquisas por ano de publicação. Figura 5.

Quantidade de publicações por ano 3,5

3

2,5

2

1,5

1

0,5

0 2008 2010 2012 2014 2017 2018

Figura 5- Distribuição dos trabalhos por ano de publicação.

Podemos observar pelos gráficos que a primeira publicação feita após as normas de 2007 aconteceu no ano de 2008. Posteriormente, as publicações foram realizadas praticamente a cada dois anos, tendo sido finalizadas, até esta data, em 2018. A média de trabalhos em 12 anos foi de menos de um trabalho (0,92) por ano.

4 – Conclusão

Este estudo evidenciou que, após a publicação das Normas para a Pronúncia do Português Brasileiro Cantado (2007), houve interesse da comunidade científica em pesquisar especificamente sobre o tema. Verificou-se que os trabalhos encontrados vieram no sentido de complementar as normas apresentadas em 2007 e trazer maior compreensão sobre a fonética e a fonologia do português cantado. Não foram encontrados trabalhos que apresentassem propostas que divergissem do conteúdo das normas, o que vem confirmar a sua aceitação pela comunidade acadêmica. Consideramos que os estudos envolvendo o português cantado vêm contribuindo tanto para com a pedagogia vocal quanto para as performances musicais do

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GUSMÃO, Cristina; PÁDUA, Mônica Pedrosa de. (2020) O Português Brasileiro no Canto Erudito: Uma Revisão de Literatura entre 2007 e 2018. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. p.277-287. repertório erudito brasileiro. Novos trabalhos, contudo, se fazem necessários, como bem apontado no texto de KAYAMA et al. (2007), com a finalidade de especificar as variações linguísticas e dialetais do português cantado, bem como aprofundar conhecimentos sobre variações históricas. Outras pesquisas podem ainda ser realizadas utilizando recursos metodológicos tais como análise acústica e/ou de imagem do trato vocal, a fim de coletar dados quantitativos sobre aspectos fonéticos, técnicos vocais e performáticos para se cantar o repertório brasileiro erudito.

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Notas sobre os autores

Cristina Gusmão é Fonoaudióloga, especialista em Voz pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Graduada em Música / Canto pela UEMG, Mestre em Música pela UFMG, doutoranda em Música / Performance pela UFMG. Cantora, preparadora vocal, atuação fonoaudiológica em voz clínica e profissional. Professora substituta de canto na Universidade Federal de Ouro Preto (Agos/2018 a Agost/2020). Professora do curso de Especialização em Voz com ênfase em Voz cantada na Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Sub- coordenadora da especialização em voz para cantores na Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais.

Mônica Pedrosa de Pádua é Bacharel em Música / Canto pela Escola de Música da UFMG, Mestre pela Manhattan School of Music (EUA) e Doutora em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG. É Professora Associada na EMUFMG, onde foi Diretora na gestão 2014-2018. Pesquisadora do CNPq, coordena o grupo de pesquisa Resgate da Canção Brasileira, com o qual vem realizando concertos e publicando artigos, partituras e CDs. Dentre suas publicações destacam-se o livro de partituras “Canções da Terra, Canções do mar” e o CD homônimo, com Fernando Araújo, a edição do primeiro volume de canções de Francisco Braga, juntamente com Cecília Nazaré de Lima e Guida Borghoff, e a gravação da integral das canções de Lorenzo Fernandez e Francisco Braga com Guida Borghoff.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca

A Performance edition of Lenda sertaneja [Country legend] (1953), by Carlos Alberto Pinto Fonseca

César Augusto Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Mauro Chantal Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Este artigo aborda o estudo da composição para piano Lenda sertaneja, de Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933-2006). Serão apresentados dados sobre sua forma, juntamente com informações sobre a escrita para o piano, com ênfase em características do Nacionalismo, visto que essa composição foi criada na fase nacionalista do compositor. Completam este estudo apontamentos sobre a interpretação da obra, com acréscimo de uma Edição de performance, a primeira até então, a partir de sua cópia manuscrita, com aditamentos tais como fraseado, uso de pedal, dinâmica e disposição de compassos, quando necessário.

Palavras-chave: música de Carlos Alberto Pinto Fonseca; música brasileira para piano; nacionalismo em Lenda sertaneja; edição de performance.

Abstract: This article explores the piano composition Lenda sertaneja [Country legends], (1953) by Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933-2006). Data on its form are presented along with information on writing for the piano, paying close attention to the work’s Nationalist characteristics, since this composition was created in the composer's nationalist phase. The study is completed with notes on the interpretation of the work, with the addition of a performance edition from its manuscript copy, the first until now, with additions such as phrasing, pedal use, dynamics, and bars arrangement, when necessary.

Keywords: music by Carlos Alberto Pinto Fonseca; Brazilian piano music; nationalism in Lenda sertaneja; performance edition.

1 – Introdução

Segundo MATHEUS (2011, p.34), a obra para piano solo do compositor mineiro Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933–2006) abarca 5,29% de sua produção, ou seja, apenas onze títulos acessíveis até o momento. Essa produção teve início na década de 1940 e foi interrompida quando do falecimento do compositor. Carlos Alberto Pinto Fonseca, doravante citado como CAPF, iniciou seus estudos ao piano ainda na infância, sob orientação de Jupyra Dufles

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

Barreto1 (1913–2011), e desde cedo demonstrou interesse e aptidão para a composição. Sua formação como pianista esteve também sob os cuidados de Pedro de Castro2 (1895–1978), no Conservatório Mineiro de Música, que o preparou para estudos posteriores realizados na Europa.

Embora o piano seja o instrumento que o compositor dominava em sua totalidade, sua criação esteve mais direcionada para composições vocais, visto que no decorrer de sua carreira a regência junto ao Ars Nova – Coral da UFMG foi seu foco principal durante quatro décadas de trabalhos ininterruptos dentro e fora do Brasil. Neste sentido, podemos supor que sua atenção para a criação de composições para piano tenha sofrido com a constância que o trabalho junto ao grupo vocal supracitado exigia em seu cotidiano. Não obstante, cada título desse pequeno volume de composições para piano ilustra muito bem o desenvolvimento técnico do compositor à época de sua criação. Títulos como O soldadinho (1941) e O pretinho cantador (1941), criações de sua infância, se opõem a outros como Evocação romântica (Schumanniana) (1985) e Sonata Clássica em Homenagem a S. Prokofiev (2006), que indicam sua maturidade como compositor.

Santos (2001) registrou todas as composições de CAPF criadas em 1953, ano de criação de Lenda sertaneja observada neste estudo. São elas: Canção da retirante, para canto e piano, Devaneio, Pequeno Lied e V Prelúdio, todas para piano solo.

Ao buscarmos referências sobre a importância do piano na trajetória de CAPF como compositor, citamos novamente MATHEUS (2010, p.13), ao apontar que a “presença do piano na obra composicional de CAPF não é numerosa, mas significativa”, o que representa menos de 6% de sua obra total. Assinala ainda que essa produção recebeu sempre um olhar “muito cuidadoso” do compositor: (...), explicitando bem a dinâmica esperada e dando ênfase aos sinais de expressão. Fonseca explora também, em sua escrita para piano solo, grandes distâncias intervalares, sobretudo na mão esquerda, e usa com frequência as expressões cedendo

1Jupyra Duffles Barreto, nasceu em Sertãozinho, no Estado de São Paulo, em 1913. Formada em piano, desenvolveu, mais tarde, estudos de regência coral sob a orientação de Heitor Villa-Lobos (1887–1959). Como professora na Universidade Federal de Minas Gerais, ocupou as cadeiras de Morfologia e Estética Musical.

2Pianista e compositor, Pedro de Castro nasceu em Barbacena, Além da cadeira de piano, ocupou também o posto de diretor do Conservatório Mineiro de Música entre os anos de 1957 e 1962. A ele, Carlos Alberto Pinto Fonseca dedicou o Pequeno Lied, composto em 1953. Faleceu em Belo Horizonte, em 1978.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

ou cede, geralmente antes de ritardandos ou na transição de uma seção para outra. (MATHEUS, 2010, p.35).

Todas as peças para piano solo desse compositor descansam hoje no arquivo do Instituto Carlos Alberto Pinto Fonseca – ICAPF, criado e dirigido por sua família desde seu falecimento em 2006. A concessão da partitura de Lenda sertaneja aos autores deste trabalho foi permitida pela viúva do compositor, Ângela Pinto Coelho3. Trata-se de uma partitura manuscrita e que nunca foi registrada em áudio. Nenhum dado nos guardados do compositor aponta para a estreia dessa composição em palco. Assim como boa parte das composições para piano solo de CAPF, Lenda sertaneja permanece desconhecida, o que justifica o interesse dos autores deste artigo.

Para a abordagem dessa composição neste trabalho, os autores apresentarão dados sobre a trajetória de CAPF à época de sua criação. Será disponibilizada, além disso, uma análise interpretativa da obra, com acréscimo de dados sobre suas características estruturais, objetivando com isso sua performance. Como anexo, constará uma primeira edição dessa partitura, confeccionada com o programa Sibelius em sua versão 7.5.1, na qual os autores indicarão correção de prováveis erros na escrita presente no manuscrito, delimitação de frases, indicações de pedais e uma melhor organização de sistemas e compassos.

Por fim, este artigo, que aborda parte de uma pesquisa em andamento no Curso de Mestrado da Escola de Música da UFMG, pretende, com a apresentação de uma análise e primeira edição de Lenda sertaneja, contribuir para a divulgação de parte da obra para piano solo de CAPF, compositor que tem seu legado investigado frequentemente em pesquisas nacionais e internacionais desde o início da década de 2000.

3Formada em Regência pela UFMG, Ângela Pinto Coelho atuou constantemente junto ao Ars Nova – Coral da UFMG, como corista e também como regente auxiliar. Esteve também à frente do Coral Lírico de Minas Gerais, do Coral Estável da Escola de Música da UFMG e de outros grupos vocais de Belo Horizonte, além de ter atuado na direção da Escola de Formação Musical da Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte. Suas atividades para a divulgação da obra de Carlos Alberto Pinto Fonseca abarcam apresentações em nível nacional, especialmente com a Missa Afro-brasileira (de batuque e acalanto).

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

2 – A obra para piano de Carlos Alberto Pinto Fonseca

A seguir, discorreremos sobre informações significativas sobre a obra para piano de CAPF, mais especificamente sobre a composição Lenda sertaneja, de modo a contribuir para com o leitor no sentido de situar o período de composição desse título, juntamente com dados sobre sua estrutura formal e características harmônicas.

2.1 – Carlos Alberto Pinto Fonseca, um compositor eclético

Segundo Santos (2001, p.29), CAPF tinha consigo que a diversidade de sua obra permitia a ele ser definido como “um compositor eclético”. Esse ecletismo pode também ser percebido entre as 11 peças para piano compostas por ele, cujo tempo de criança abarca um período entre as décadas de 1940 a 2006. Com apenas 8 anos de idade, em 1941, CAPF, compôs suas duas primeiras peças para piano solo. São elas: O pretinho cantador, uma valsa, e O soldadinho, uma marcha, ambas escritas na clave de Sol para as duas mãos e na tonalidade de Dó maior. Em 1942, CAPF compôs a Barcarola, que já apresenta certa complexidade em relação às duas composições anteriores. Estruturada na tonalidade de Dó menor e em compasso composto (6/8), Barcarola apresenta melodia executada pela mão esquerda.

As três composições supracitadas representam a fase inicial de CAPF. São títulos criados em sua infância que ilustram seu desenvolvimento à época e que possuíam um valor sentimental para ele. Desta maneira, permanecem como lembranças de seu início como compositor, mas não representam o nível alcançado por CAPF com o desenvolvimento de sua obra.

Após um hiato de 11 anos, CAPF voltou-se novamente para a composição de peças para piano solo. Deste período, no qual o compositor cursava o segundo ano de harmonia elementar no Conservatório Mineiro de Música, e que citamos como seu período juvenil, identificamos quatro peças compostas em 1953, a saber, Pequeno Lied, composta em fevereiro de 1953, Lenda sertaneja, objeto de estudo deste artigo, composta em abril, Devaneio, composta em junho, e V Prelúdio, composta em julho do mesmo ano. Já no ano seguinte, 1954, CAPF compôs Paisagem de minha terra4.

4 Essa composição não foi catalogada por Santos (2001), que organizou o arquivo pessoal do compositor sob sua orientação. Esse título foi identificado por Matheus (2010), juntamente com outras 25 composições.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

Na década seguinte, mais especificamente no ano de 1969, CAPF Cadência para o Concerto em Dó menor, KV 491, de W. A. Mozart (1756–1791), que permanece até o momento como a única composição daquela década, dado que pode também ser aplicado às duas composições posteriores, ou seja, Prelúdio e fuga, de 1971, Evocação romântica, de 1985, e Sonata clássica em homenagem a S. Prokofiev (1.º movimento), de 2006.

Digno de nota é que um dos autores deste texto, Mauro Chantal, presenciou, quando foi integrante do Ars Nova – Coral da UFMG, uma performance de CAPF de um Improviso de sua autoria, com caráter romântico. Essa performance ocorreu durante uma das audições internas realizadas pelo coro em determinado período de sua história. Pelas palavras do compositor, essa partitura, à época, não tinha sido confeccionada, o que configura-se numa perda considerável de uma de suas composições. Admirador de Franz Schubert (1797–1828), CAPF nutria uma admiração pelo conjunto de oito improvisos desse compositor, opus 90 e 142 (póstumo). O improviso de CAPF, que não sabemos se posteriormente foi registrado em pauta, foi concebido na tonalidade de Sol menor, com ampla utilização de arpejos.

Desta maneira, a obra para piano solo de CAPF observada até o momento dispõe de 12 títulos, discriminados na Figura 1, a seguir:

Título Ano do término da composição Dedicatória O Pretinho Cantador 1941 Dedicada a Alberto Gomes da Fonseca e a Carmem Pinto Fonseca O Soldadinho 1941 Dedicada a Alberto Gomes da Fonseca e a Carmem Pinto Fonseca Barcarola 1942 Dedicada a Alberto Gomes da Fonseca e a Carmem Pinto Fonseca Pequeno Lied 1953 Dedicada a Pedro de Castro, professor do compositor Lenda sertaneja 1953 Sem dedicatória Devaneio 1953 Sem dedicatória V Prelúdio 1953 Sem dedicatória Paisagem de nossa terra 1954 Sem dedicatória Cadência para o concerto em Dó 1969 Sem dedicatória menor, KV 491, de W. A. Mozart Prelúdio e Fuga em Si 1971 Sem dedicatória Evocação Romântica 1985 Sem dedicatória (Schumanniana) Sonata clássica em homenagem a S. 2006 Sem dedicatória Prokofiev (1.º movimento) Figura 1 - Composições para piano solo de CAPF resgatadas até 2019.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

2.2 – Carlos Alberto Pinto Fonseca e sua Lenda sertaneja

Segundo Oliveira (2015), foi em 1956 que CAPF, juntamente com Carlos Eduardo Prates (1934–2013) e Isaac Karabtchevsky (1934) “reuniram um grupo de alunos do Conservatório Mineiro de Música para um estudo conjunto de partituras do período da Renascença”. (OLIVEIRA, 2015, p.13). Desse encontro nasceu o Madrigal Renascentista5, grupo com trajetória única no Brasil, cujo desenvolvimento contribuiu sobremaneira para a difusão da prática da música coral brasileira. Esse dado sugere que a partir da criação do Madrigal Renascentista CAPF voltou-se quase que exclusivamente para a produção vocal. Posteriormente, no início da década de 1960, ele assumiu a regência do Coral da UEE (União dos Estudantes do Estado), que foi renomeado pelo próprio CAPF como Ars Nova – Coral da UFMG, quando foi integrado a essa instituição.

Pelo Quadro 1 inserido no item 1.1 deste artigo, notamos que somente no final da década seguinte, mais precisamente em 1969, CAPF voltaria sua atenção para compor outra peça para piano solo, e manteve apenas um título criado pelas próximas décadas, exceto a década de 1990 na qual não produziu nenhuma composição para piano solo. Assim, podemos supor que uma possível maior quantidade de composições para piano solo tenha sido impedida de surgir devido aos constantes êxitos de CAPF frente ao trabalho coral, seja como compositor ou como regente.

Segundo Matheus (2010, p.34), Lenda sertaneja6mostra-se claramente como obra nacionalista. Tal afirmação pode ser conferida, a princípio, pelo título da composição. Composta na tonalidade de Lá Maior, sua estrutura apresenta três seções, a saber, A–B–C, com acréscimo de uma coda. Ao todo, essa composição apresenta 40 compassos7, escritos sob a indicação de compasso 4/4. Na Figura 2, a seguir, podemos visualizar a organização da estrutura formal de Lenda sertaneja:

5 O coro Madrigal Renascentista foi criado em 1956 pelos maestros Carlos Alberto Pinto Fonseca, Carlos Eduardo Prates e Isaac Karabtchevsky. Apresentou-se em momentos marcantes de nossa história, como na Missa de Inauguração de Brasília, bem como em diversos países do exterior. Posteriormente, teve como regente Afrânio Lacerda e Marco Antônio Drummond. Esse grupo possui diversas gravações em áudio e dedica-se tanto ao repertório renascentista quanto ao repertório contemporâneo. 6 O uso do termo lenda na produção nacionalista já havia sido utilizado por Heitor Villa-Lobos em A lenda do caboclo, composta em 1921 e dedicada ao compositor paraense Arthur Iberê de Lemos (1901 – 1963). 7 Consideramos em nossa análise a anacruse com a qual inicia-se Lenda sertaneja como um compasso próprio. 293

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Título Primeira seção Segunda seção Terceira seção Coda Lenda sertaneja c.1-15 c.16-28 c.29-37 c.38-40 Figura 2 - Composições para piano solo de CAPF resgatadas até 2019.

Na primeira seção, notamos a presença constante do uso de acordes, nos quais o compositor valeu-se de quatro valores musicais, a saber, colcheias, semínimas, semínimas pontuadas e mínimas. Esta seção foi composta na tonalidade de Lá Maior, e apresenta como característica marcante o uso de cruzamento de mãos presente em Lenda sertaneja, presente nos c.7-15. Essa indicação de cruzamento de mãos encontra-se presente também na composição A lenda do caboclo (1921), de Heitor Villa-Lobos. Desta maneira, pela similaridade entre os dois títulos, podemos supor certa influência de Villa-Lobos sobre CAPF à época.

Em relação à segunda seção, estruturada na tonalidade de Si Menor, notamos um caráter mais delicado, com amplo uso de colcheias distribuídas em ambas as mãos, além dos valores de semibreve, mínima e semínima. Esta seção é a única que contém indicação de ritornelo pelo compositor.

A terceira seção apresenta em quase toda sua totalidade elementos da seção A, como amplo uso de acordes e maior número de vozes na escrita. Estruturada na tonalidade de Fá sustenido Menor, ela apresenta também elementos da seção B, que podem ser verificados no c.37, no qual o compositor menciona brevemente e ligeiramente modificada a linha melódica utilizada no c.16. Apenas no c.29 há a primeira indicação de dinâmica do compositor, que, ao todo, indicou apenas três em toda essa composição. Ao compararmos outros títulos desse período de juventude de CAPF, notamos que é uma constante a utilização de indicação de dinâmica em suas composições.

Por fim, ressaltamos também o uso de acordes de sétima, presentes em todas as seções de Lenda sertaneja, o que em nossa opinião colabora na ilustração do afeto de melancolia, tão característico em obras que abordam o universo campestre brasileiro.

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3 – Nossa edição de Lenda sertaneja

Ao apresentarmos nossa edição Lenda sertaneja, incluída como Anexo ao final deste estudo, temos como objetivo principal a divulgação, autorizada pela família do compositor CAPF, desse título. Contamos com apenas uma fonte para a construção de nossa edição. Trata-se do manuscrito autógrafo que encontra-se bastante legível. Essa partitura, distribuída em três páginas, não apresenta dúvidas em relação às notas grafadas.

Na Figura 3, a seguir, podemos verificar um excerto do manuscrito original, no qual podem ser vistos dados como título, autoria, data de composição e a escrita de CAPF:

Figura 3 - Excerto do manuscrito de Lenda sertaneja, de Carlos Alberto Pinto Fonseca.

Optamos por uma Edição de performance, visto que alguns elementos ausentes no manuscrito e inseridos por nós tendem a colaborar para uma performance mais consciente e elucidativa da partitura. Neste sentido, apontamos os seguintes acréscimos:

• Data de nascimento de morte do compositor; • Numeração de compassos em cada sistema da partitura; • Delimitação de frases;

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• Indicação de andamento para as seções da partitura, a saber, seção A com semínima igual a 60, seção B com indicação de semínima igual a 54, e retorno ao à indicação de semínima para a seção C e Coda; • As indicações de dinâmicas podem ser conferidas nos c.2 e 16; • Alguns acordes apresentam-se como muito amplos, o que justificou nossa atenção no sentido de grafá-los como arpejos. Ao todo, esse procedimento foi utilizado nos c.3, 8, 17, 18, 25, 28, 31, 35 e 38; • Indicações de crescendo e diminuendo foram incluídas nos c.15, 18, 21 e 28; • Inserção de acento no primeiro tempo do c.30, padronizando a escrita em relação ao compasso anterior, que também apresenta o mesmo acento e possui estrutura rítmica e melódica quase idêntica à do c.30; • Substituição nos c.22, 23, 24, 25, 26, 29 e 30 de duas colcheias com alturas iguais e unidas por uma ligadura de união por semínimas. Esta decisão contribuiu para um melhor entendimento das síncopes propostas pelo compositor; • O indicação do uso de pedal foi também registrada em nossa edição, incluindo o uso do pedal una corda; • Redistribuição de compassos por sistema, para uma melhor visualização da partitura; • Readequação para a distribuição de vozes nas pautas do piano; • Inserção de fermatas no último acorde da partitura, c.40.

4 – Conclusão

Com a organização de dados sobre a gênese da composição para piano Lenda sertaneja, juntamente com uma análise estilística e disponibilização de uma edição de performance da partitura, os autores esperam que este estudo contribua para um melhor acesso de parte da obra do compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca.

A obra para piano solo de CAPF encontra-se atualmente sob investigação pelos autores deste artigo, com a realização da pesquisa A obra para piano solo de Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933 – 2006): resgate dos manuscritos, análise, edição e registro sonoro para divulgação da

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obra. Esse material apresenta o total de 12 composições, estando a maioria em cópias manuscritas. A análise dos trabalhos referendados neste artigo mostrou-nos que a catalogação da obra de CAPF não está definitivamente concluída, visto que desde o trabalho de SANTOS (2001), o primeiro em nível de mestrado sobre a vida e a obra desse compositor, alguns títulos de formações musicais diversas puderam vir à luz. Assim, acreditamos que, possivelmente, outras composições possam ser encontradas, catalogadas e divulgadas futuramente, contribuindo, desta maneira, para a perpetuação da obra de um compositor de nosso tempo.

Referências de texto

Dissertações e Teses ANASTÁCIO, Luiza Gaspar. Carlos Alberto Pinto Fonseca: um estudo de duas composições para cordas. 2014. 124 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

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GALLO, Cristina Yolanda. Elementos umbanda y candomblé em la obra para coro mixto “a capella” compuesta por Carlos Alberto Pinto Fonseca. 2011, 441 f. Dissertação de Mestrado. Universidad Nacional de Cuyo. Facultad de Artes y Diseño. Escuela de Música. Cuyo, 2011.

MATHEUS, Rize Lorentz. Elementos impressionistas na obra de Carlos Alberto Pinto Fonseca. 2010. 100 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

SANTOS, Mauro Camilo de Chantal. Carlos Alberto Pinto Fonseca: Dados biográficos e catálogo de obras. 2001. 81 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

Partitura FONSECA, Carlos Alberto Pinto. Lenda sertaneja. Para canto e piano. Partitura. Belo Horizonte: manuscrito, 1953, 3 p.

Notas sobre os autores

César Augusto é bacharel em piano pela UFMG, tendo estudado sob orientação de Celina Szrvinsk e Miguel Rossellini. Participou de diversos festivais, nos quais pôde realizar master classes sob orientação de professores como, Luiz Senise, Paulo Álvares, Mirtha Herrera, Ricardo Castro, Sérgio

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

Monteiro, Berenice Menegale, Eduardo Monteiro, Ney Fialkow e Eduardo Hazan. Venceu o concurso Segunda Musical, patrocinado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, nos anos de 2016 e 2019, e apresentou-se na série Palco Livre, do Conservatório da UFMG, em 2018. Atualmente, desenvolve pesquisa em nível de mestrado na Escola de Música da UFMG, orientado professor Mauro Chantal. Leciona piano no Centro Cultural Sesi Minas.

Mauro Chantal é Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, onde desenvolveu pesquisa sobre a vida e a obra de Arthur Ibêre de Lemos, tendo sido orientado pela Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama. Mestre em música pela UFMG, graduou-se em piano, classe do Prof. Dr. Lucas Bretas, e também em canto, classe da Profa. Dra. Mônica Pedrosa. Atua como docente na Escola de Música da UFMG nas áreas de canto e técnica vocal, além de integrar o projeto de pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”. Possui mais de 100 títulos como compositor, todos envolvendo a música vocal. Com Lígia Ishitani, em 2005, gravou o CD Un doux refuge, com a íntegra das canções para canto e piano de Arthur Bosmans (1908 – 1991). Desenvolve atividades como baixo solista, tendo atuado em óperas como Rigoletto, Le nozze di Figaro, La traviata, Il ballo delle ingrate, Pelléas et Mélisande, Macbeth, Roméo et Juliette e Il Guarany, além de atuar como pianista acompanhador. Em outubro de 2018, integrou o elenco de Pelléas et Mélisande na produção do Theatro Municipal de São Paulo, sob regência de Alessandro Sangiorgi, em comemoração aos 100 anos de morte do compositor Claude Debussy. Em 2019, sob regência de Sílvio Viegas, cantou no palco do Palácio das Artes o Te Deum, de Bruckner, a Missa da Coroação, o Requiem, de Mozart, além de integrar o elenco de ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

ANEXO – Partitura de Lenda sertaneja, de Carlos Alberto Pinto Fonseca

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

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AUGUSTO, César; CHANTAL, Mauro. (2020) Uma Edição de performance de Lenda sertaneja (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.288-301.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

ISBN: 978-65-00-00697-1

Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise estilística e edição de performance

Canção da retirante (1953) [Migrant song] by Carlos Alberto Pinto Fonseca: historical data, stylistic analysis and performance edition

Raquel Giesbrecht Calais Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Mauro Chantal Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Resumo: Este artigo trata da obra Canção da retirante, para canto e piano, de Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933-2006). Será apresentada uma análise da canção, baseada em aspectos como relação texto-música, harmonia, escrita para o piano e condução vocal, acrescida do contexto histórico de sua criação e trajetória desde então. Assim, os autores esperam contribuir com uma interpretação da canção supracitada, bem como de sua divulgação. Como anexo, apresentaremos uma edição de performance da partitura. O manuscrito de Canção da retirante encontra-se no instituto Carlos Alberto Pinto Fonseca- ICAPF desde o falecimento do compositor.

Palavras chave: Canção brasileira de câmara; Canção da retirante; Carlos Alberto Pinto Fonseca; Instituto Carlos Alberto Pinto Fonseca – ICAPF; Berceuse.

Abstract: This article deals with the Canção da retirante (1953) [Migrant song], an art song by Carlos Alberto Pinto Fonseca. An analysis of the song will be presented, based on aspects such as text-music relationship, harmony, piano writing, and vocal conduction, together with the historical context of its creation and trajectory since then. Thus, the authors hope to contribute to an interpretation of the abovementioned song, as well as its dissemination. As an attachment, we will present a performance edition of the score. The manuscript of the Canção da retirante [Migrant song] is currently on display at Carlos Alberto Pinto Fonseca´s Institute – ICAPF – since his death.

Keywords: Brazilian art song; Canção da retirante by Carlos Alberto Pinto Fonseca; Carlos Alberto Pinto Fonseca Institute (ICAPF); Berceuse genre.

1 – Introdução

Após seu falecimento, todo o acervo do compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933-2006) foi integrado ao Instituto Carlos Alberto Pinto Fonseca – ICAPF, criado por sua família com o intuito de preservar e divulgar sua obra, juntamente com dados sobre sua trajetória artística. Fonte de pesquisa para a busca de informações sobre sua produção, incluindo o Ars Nova – Coral UFMG, que esteve sob sua direção desde sua criação até sua aposentadoria compulsória,

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316. o ICAPF mantém sua proposta original de realização de inúmeros eventos em nível nacional, além de disponibilizar documentos sobre o maestro e compositor. Como resultado, algumas dissertações de mestrado foram realizadas a partir da disponibilização desse acervo. Dentre elas, podemos citar Técnicas de ensaio geral, reflexões sobre o ferramental do Maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, de COELHO (2009), Elementos impressionistas na obra composicional de Carlos Alberto Pinto Fonseca, de MATHEUS (2010) e Carlos Alberto Pinto Fonseca: um estudo de suas composições para cordas, de INÁCIO (2014). Citamos ainda o artigo Berceuse, de Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933-2006): aspectos históricos, interpretativos e edição da obra, de VASCONCELOS e CHANTAL (2019). Carlos Alberto Pinto Fonseca atuou em três áreas da música: regência, composição e docência.

Inseridas no acervo do ICAPF estão suas canções para canto e piano, compostas desde a década de 1950 até o falecimento do compositor. Sua atenção para com a canção brasileira de câmara pode ser considerada eclética, pois Carlos Alberto Pinto Fonseca compôs nos estilos romântico, impressionista e nacionalista, passando por composições dodecafônicas e criações que flertam com certa liberdade estrutural e harmônica. Em sua produção de canções de câmara, o compositor valeu-se de textos de poetas como Rabindranath Tagore (1861-1941) traduzidos para o português, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), com quem manteve certa correspondência, Manuel Bandeira (1886–1968), textos da liturgia católica e poemas de sua autoria. Para SANTOS (2001), o compositor relatou que “não me descrevo como compositor nacionalista, mas sim como um compositor eclético. Não posso dizer que tenho um único estilo de compor. Minhas experiências vão da música impressionista ao dodecafonismo”. (SANTOS, 2001, p.29).

Dentre suas canções para canto e piano, apresentamos Canção da retirante, dedicada à soprano Lia Sagado (1914 – 1980) e objeto de estudo neste artigo. Dados sobre essa obra em seu contexto histórico, apontando a dedicatória do então jovem compositor para Lia Salgado, acrescidos de uma análise estilística serão apresentados ao longo do texto. Ao final, será disponibilizada como anexo uma edição de performance da partitura. Destarte, esperamos contribuir para com o gênero canção brasileira de câmara ao apresentarmos uma interpretação de Canção da retirante, juntamente com a disponibilização de sua partitura, cedida para este fim pelo ICAPF.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

2 – O gênero Berceuse e sua representação entre compositores brasileiros

Influenciados pela estética europeia do século XIX, alguns compositores eruditos brasileiros direcionaram sua pena para a composição de Berceuses. Oriunda do verbo bercer, que significa balouçar o berço, ou balançar a criança em seu sono, Berceuses são canções de berço, canções de ninar e/ou de acalentar. Ambientado no Brasil, esse gênero recebeu olhares diversos que o ilustraram a partir de diferentes afetos em textos poéticos que proporcionaram uma fusão entre a música de concerto, revestida da sofisticação própria da canção de câmara, e o imaginário poético em textos nacionais (folclóricos ou não) que, acoplados ao tema, o revestiram, em alguns casos, de características de nossa cultura multifacetada a partir de nossas diversas etnias. Entre os compositores brasileiros, o gênero Berceuse foi registrado em inúmeros títulos com a definição Acalanto. Digno de nota é que por meio do advento do nacionalismo no Brasil, intensificado a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922, a produção dessas canções não se restringiu à tradição europeia, mas esteve coberta com uma roupagem característica de aspectos musicais, folclóricos e literários brasileiros.

Desta maneira, citamos a canção Berceuse da onda, composição de Lorenzo Fernandez (1897– 1948) a partir do texto homônimo de Cecília Meireles (1901–1964), o qual ilustra o afogamento de uma criança que é recebida com presentes por Iemanjá, orixá feminino presente nas religiões Candomblé e Umbanda. Hekel Tavares (1896–1969) debruçou-se sobre o tema apoiando-se na religiosidade católica brasileira ao compor a Cantiga de Nossa Senhora, sobre texto poético de Luiz Peixoto (1889–1973), que descreve a virgem Maria embalando o sono de Jesus menino. Francisco Mignone (1897–1986) voltou-se para o (ex)tradicional aconchego de amas escravas ao compor Canção das mães pretas, a partir de texto de Narbal Fontes (1899 – 1960), no qual notamos o “Pretuguês” citado por Pires e Câmara (2018) presente no discurso do eu lírico que embala carinhosamente uma menina. Paurillo Barroso (1894–1968), contribuiu para o gênero Berceuse de maneira marcante, pois legou-nos três canções, a saber, Para ninar, Dorme, dorme, filhinho e Mãe preta, dedicadas a cada um de seus filhos. Para ninar, seu acalanto mais conhecido, foi registrada em áudio por solistas nacionais como Bidu Sayão (1902–1999), Rita Paixão (s.d.) e Maria Lúcia Godoy (1924), mas alcançou também intérpretes internacionais como Jennie Tourel (1900–1973) e Kathleen Battle (1948).

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

Entre compositores brasileiros nascidos no século XX notamos, do mesmo modo, o interesse na criação de composições desse gênero num espectro que abrangeu, inclusive, a produção de música popular. Assim, citamos Waldemar Henrique (1905–1995), compositor cuja obra tem sido abordada tanto no ambiente lírico quanto no popular, que ao criar em 1960 seu Acalanto, soube ilustrar musicalmente a delicadeza do poema Acalanto para Maria Diva, de Ruy Barata (1920–1990), dedicado à sua filha. Citamos ainda Claudio Santoro (1919-1989), cujo Acalanto da Rosa, composta sobre poesia de Vinicius de Moraes (1913–1980), sobrevive livremente em interpretações de performers eruditos e populares, dado à sua extensão cômoda e facilidade melódica, e (1914–2008), que expressou seu amor paterno na composição Acalanto, dedicada à sua filha Nana Caymmi (1941), com quem posteriormente, em 1960, registrou em disco essa canção (ver referências).

Entre os representantes de criadores do gênero Berceuse no século XX, apresentamos o compositor que é objeto de nossa pesquisa, o mineiro Carlos Alberto Pinto Fonseca, cuja produção de canções de câmara teve início na primeira metade da década de 1950 e foi interrompida na década de seu falecimento, no início do século XXI.

2.1 – Carlos Alberto Pinto Fonseca e a Canção da retirante

Canção da retirante está inserida no conjunto de obras da juventude de Carlos Alberto Pinto Fonseca. Composta em 1953, quando o compositor contava apenas vinte anos, essa canção foi dedicada à soprano Lia Salgado. MATHEUS (2010, p.38) cita o total de 18 canções de câmara identificadas até o presente no acervo do compositor, o que representa dez por cento de sua obra. Desse montante, registramos uma particularidade: três de suas 18 canções abordam a maternidade como tema. Identificamos que Canção da retirante figura como a terceira composição para canto e piano de Carlos Alberto Pinto Fonseca1.

As duas primeiras composições para canto e piano de Carlos Alberto Pinto Fonseca foram dedicadas à solista Maria Lúcia Godoy, próxima ao compositor e que à época já desfrutava de prestígio em nível nacional. Ao dedicar Canção da retirante ao soprano Lia Salgado, supomos

1 Próximas a essa canção, Carlos Alberto compôs outras duas, Berceuse e Volta, que, embora revestidas de afetos contrastantes, foram concluídas sob características do gênero abordado neste estudo. Berceuse foi composta sobre texto poético do próprio compositor. Volta, foi composta sobre poema de Rabindranath Tagore em tradução para o português.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316. que o compositor conhecia os predicados vocais da artista, que detinha destaque como solista em óperas e também como recitalista, reconhecida, inclusive, como intérprete oficial do compositor Camargo Guarnieri (1907–1993).

Em sua dedicatória, o compositor, ao contrário de outras registradas por ele, grafou o pronome de tratamento Dona, abreviado na partitura por D., uma forma cortês e cerimoniosa de dirigir-se à artista.

Ao referir-se à Lia Salgado, MARIZ (2002) registrou em seu livro A canção brasileira de câmara:

Apresentou-se nos maiores teatros brasileiros com sucesso relativo, mas brilhou sobretudo como camerista. Turnê pela América Latina, com Lourdes Vallier, e exibiu- se também na Europa e EUA. Foi das melhores intérpretes de Camargo Guarnieri, que escreveu canções para sua voz. Gravações dos anos cinquenta e sessenta. (MARIZ, 2002, p.272).

A influência política e artística de Lia Salgado foi tamanha, que ainda em vida essa artista viu a instalação de um Conservatório que leva seu nome. Trata-se do Conservatório Estadual de Música Lia Salgado, em Leopoldina, cidade natal de seu marido, Clóvis Salgado, que à época era governador de Minas Gerais2.

Na Figura 1, a seguir, podemos conferir em excerto da partitura manuscrita a dedicatória do compositor para Lia Salgado na Canção da retirante:

2 O Conservatório Estadual de Música Lia Salgado foi criado por meio da Lei 1.123, do ano de sua inauguração, em 1956.

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Figura 1 - Excerto do manuscrito de Canção da retirante, dedicada ao soprano Lia Salgado.

Durante a confecção deste texto, nenhum dado sobre a estreia dessa canção por Lia Salgado foi localizado. Tampouco nenhuma edição disponível foi descoberta, além da cópia manuscrita, e, ainda, nenhuma nota ou simples citação desse título presente nos programas de concerto com obras do compositor foi encontrada. Neste sentido, paira a dúvida se a estreia dessa canção ocorreu pela performance de Lia Salgado, a quem foi dedicada Canção da retirante. No entanto, posteriormente, em 2003, ano que marcou a aposentadoria compulsória do compositor, a Canção da retirante foi interpretada pelo soprano Rita Medeiros (1963) e pelo pianista Mauro Chantal, um dos autores deste texto, em um recital realizado no Conservatório da UFMG em homenagem ao compositor.

3 – Análise estilística e edição de performance de Canção da retirante

A seguir, apresentaremos uma análise estilística de Canção da retirante, bem como informações sobre a construção de nossa edição da partitura, cujo objetivo é a divulgação dessa obra com elementos editoriais que possam contribuir para a performance dessa partitura.

3.1 – Análise estilística de Canção da retirante

Nos 52 compassos que compreendem a Canção da retirante, notamos a tradicional estrutura A-B-A. Em sua seção A, c.1-18, essa canção apresenta o âmbito vocal entre as notas Mi 3 e Lá 4, distribuído com a utilização de três valores musicais, a saber, semínima, mínima e mínima

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316. pontuada. Esses mesmos valores estão presentes também na escrita para o piano. Em ambas as seções A e B, notamos o registro pelo compositor de ritornelo, presente nos c.16 e 34. Porém, apenas a seção B apresenta novo texto em sua repetição.

Em quase toda sua linha vocal, notamos a presença de graus conjuntos na condução melódica. No entanto, há a presença de saltos, porém em menor quantidade: terça menor, terça maior, quarta justa, sétima menor e oitava. Esta seção foi construída na tonalidade de Lá Menor, com a presença de discretas dissonâncias. Notamos ainda que nesta seção, assim como em toda a composição, Carlos Alberto Pinto Fonseca optou por construir a linha vocal sem a presença de pausas, o que exige do intérprete um atento e eficiente uso da respiração.

A seção B foi estruturada na tonalidade de Ré bemol maior e abrange os c.19-36. Digno de nota é que o compositor utilizou para essa seção tonalidades pouco comuns para a forma A-B- A, geralmente ilustrada com o seguimento tônica-dominante ou tônica e sua relativa (maior ou menor).

O âmbito vocal de Canção da retirante apresenta-se mais extenso na seção B, englobando as notas Ré bemol 3 ao Si bemol 4, o que permite o percurso vocal nas três regiões mais características da classificação de soprano, a saber, graves, médios e agudos3. Os valores musicais presentes na seção B são os mesmos que compõem a seção A, com acréscimo de colcheias apenas na escrita para o piano nos c.21 e 25, nos quais notamos uma caracterização de relação texto-música na ilustração do embalo do filho que dorme. Essas notas em colcheias, escritas em oitavas, Lá 4 e Lá 5, seguidas pelo acorde de Lá bemol maior, induzem-nos a um momento de paz e esperança diante da tristeza do texto poético, que é reforçado pela altura das notas e sua indicação dinâmica. Em seu retorno para a continuidade do texto nessa seção, as palavras secou e azul, c.20-21 e 24-25, ganham contornos de esperança, reforçada pela tonalidade maior e confirmada nos compassos seguintes que concluem a seção B, a saber, “Amanhã vou fugir do sol que tudo consome”, no primeiro texto, e “Amanhã vou embora, vou no caminho do sul”, no segundo texto. Outro aspecto que destacamos é a indicação do gênero acalanto. Sabemos que se trata de um menino, visto que o texto poético aponta na seção B “Meu filhinho dormiu”.

3 Excetuando-se, neste caso, a região dos superagudos, presentes, em sua maioria, nas classificações de soprano ligeiro e dramático coloratura, e pouco usuais na canção brasileira de câmara.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

A reexposição da seção A, entre os c.37-52, não apresenta ritornelo, mas uma alteração em seus dois últimos compassos, c.51-52, nos quais notamos que há uma sobreposição de acordes na escrita para o piano. No c.51, na mão esquerda, o compositor registrou o acorde de Lá Menor em forma de arpejo, enquanto que na mão direita há o acorde aumentado de Sol Maior, sem a presença da terça. Já no último compasso, notamos que o compositor registrou na mão esquerda também o primeiro grau, a tonalidade original, Lá Menor, e, sobreposto a ele, na mão direita, o acorde de dominante menor, ou seja, Mi Menor, notado também com a omissão da terça. Desta maneira, registramos que nos dois últimos compassos de Canção da retirante o compositor valeu-se para a escrita da mão esquerda o primeiro grau, Lá Menor, como pedal, enquanto há sobreposição de tonalidades (Sol Maior com a quinta aumentada no c.51, e Mi Menor no c.51, ambas sem a presença de terça). À linha do canto nesses dois últimos compassos o compositor optou também por omitir a terça dos acordes escritos para a mão direita, reforçando, desta maneira, o ambiente de vaporosidade, de indefinição que a presença de quintas na escrita para a mão direita nos referidos compassos proporciona. Assim, podemos pensar que o discurso do eu lírico, a fala da mãe que faz dormir o filho que tem fome, é também revestido de insegurança e instabilidade que ela mesma garante não existir para ele, cuja intenção clara é de protegê-lo dos problemas vividos por ela.

Sobre o texto poético de Canção da retirante, escrito pelo próprio compositor, não sabemos se sua criação ocorreu antes, durante ou depois da confecção da partitura. Fato é que o compositor valeu-se de uma linguagem que pode estar presente em pessoas que passaram ou passam pela infelicidade do abandono da seca. Neste sentido, notamos a presença no texto de uma deturpação da língua pátria na conjugação verbal grafada em negrito, logo abaixo:

Fecha os olhos, dorme meu filho, Que amanhã nós vai’mbora cedo. Não precisa chorar, não precisa ter medo. Meu filhinho dormiu, dormiu mesmo com fome. Amanhã vou fugir do sol que tudo consome. Tudo aqui já secou, sob um céu muito azul. Amanhã vou-me embora, vou no caminho do sul.

Em Canção da retirante, tanto o título quanto o texto poético configuram-se numa referência imediata ao nacionalismo musical brasileiro.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

3.2 – Nossa edição de performance de Canção da retirante

A edição de performance de Canção da retirante disponibilizada neste estudo tem como objetivo básico sua divulgação, autorizada pela família do compositor. O manuscrito autógrafo dessa composição, única fonte disponível para estudo, encontrava-se no acervo do ICAPF. Essa partitura apresenta-se bastante legível, sem rasuras e com grafia musical que não desperta dúvida em relação às notas e também ao texto poético. Confeccionada em duas páginas, a partitura de Canção da retirante contém o nome do compositor, dedicatória e também a data de sua composição.

Em relação às modificações realizadas na partitura, notamos uma característica do compositor à época da criação desse título: a quase ausência de indicações de andamentos e dinâmicas. Canção da retirante apresenta apenas uma indicação de andamento, registrada no c.18, e duas indicações de dinâmica, presentes nos c.12 e 32. Não há também a delimitação de frases e respirações na linha vocal. Desta maneira, julgamos necessário o acréscimo dos seguintes dados e alterações como sugestão para sua performance:

• Data de nascimento de morte do compositor; • Numeração de compassos em cada sistema da partitura; • Indicação do uso de pedal; • Delimitação de frases; • Indicação de andamento para as seções da partitura, a saber, seção A com semínima igual a 88, seção B com indicação de semínima igual a 92; • Indicações de dinâmicas nos c.1, 12, 19, 21, 25, 37 e 48, quase sempre idênticas, exceto nos c.21 e 25; • Indicações de crescendo e diminuendo foram incluídas nos c.5, 8, 16, 18, 27, 32, 34, 36 e 41, quase sempre idênticas, exceto nos c.16, 18, 34 e 36;

• Correção do português, segundo a regra vigente, da palavra mêdo para medo, nos c.15, 17 e 51; • Redistribuição de compassos por sistema, para uma melhor visualização da partitura. Neste sentido, nossa edição apresenta três páginas, uma a mais que a partitura manuscrita. •

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

4 – Conclusão

Com a apresentação deste trabalho, esperamos reforçar o número de pesquisas sobre a obra do compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca. Desde a década de seu falecimento, o interesse por sua trajetória e também por sua produção musical é crescente e pode ser conferido em trabalhos em nível de mestrado e doutorado no Brasil e também no exterior. No artigo em questão, debruçamo-nos sobre uma de suas três Berceuses, a saber, a Canção da retirante, criada na fase nacionalista do compositor.

Nossas considerações apontam dados sobre o histórico dessa composição, sua estrutura musical e ligação existente entre seu texto musical e seu texto poético. Desta maneira, com a apresentação de nossa edição da partitura, elaborada como edição de performance, temos como objetivo contribuir para a disponibilização desse material para estudo e execução, de modo a proporcionar maior visibilidade à Canção da retirante, assim como ao nome do compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca.

Referências de texto

ANASTÁCIO, Luiza Gaspar. Carlos Alberto Pinto Fonseca: um estudo de duas composições para cordas. 2014. 124 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

COELHO, Willsterman Sottani. Técnicas de ensaio coral: reflexões sobre o ferramental do maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca. 2009. 132 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

GALLO, Cristina Yolanda. Elementos umbanda y candomblé em la obra para coro mixto “a capella” compuesta por Carlos Alberto Pinto Fonseca. 2011, 441 f. Dissertação de Mestrado. Universidad Nacional de Cuyo. Facultad de Artes y Diseño. Escuela de Música. Cuyo, 2011.

MARIZ, Vasco. A canção brasileira de câmara. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.

MATHEUS, Rize Lorentz. Elementos impressionistas na obra de Carlos Alberto Pinto Fonseca. 2010. 100 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

PIRES, Antonilde Rosa; CÂMARA, Andrea Albuquerque Adour da. O “PRETUGUÊS”: vocalidades da persona Mãe Preta da canção Bonequinha de Sede de Francisco Mignone. In: X COPENE – Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 2018, Uberlândia, MG. Anais (on-line).

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

Disponível:https://www.copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1527907081_ ARQUIVO_ANTONILDE-CANCAODASMAESPRETAS-2.pdf Acesso 17/11/2019.

SANTOS, Mauro Camilo de Chantal. Carlos Alberto Pinto Fonseca: Dados biográficos e catálogo de obras. 2001. 81 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

VASCONCELOS, P.; CHANTAL, M. Berceuse, de Carlos Alberto Pinto Fonseca: aspectos histórico-interpretativos e edição da obra. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance N.4. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som. P 315-327. 2019.

Referência de partitura

FONSECA, Carlos Alberto Pinto. Canção da retirante. Para canto e piano. Partitura. Belo Horizonte: manuscrito, 1953, 2 p.

Referências de áudio

CAYMMI, Dorival (Interp.). Eu Não Tenho Onde Morar. Rio de Janeiro: Odeon, 1960, 1 disco de vinil, mono.

GODOY, Maria Lúcia. Composições – Paurillo Barroso. Intérpretes: Maria Lúcia Godoy, Bruno Monti, Ayla Maria, Raimundo Arrais, Breno Marques de Sá, Virgílio Arraes. Rio de Janeiro: Sony Music Entertainment (Brasil), s.d., 1 CD, digital, estéreo.

Notas sobre os autores

Raquel Calais é bacharel em música, com habilitação em canto, pela Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG, tendo estudado sob orientação de Marisa Simões. Na França, estudou canto, interpretação camerística e operística no Centre d´Études de Musique e de Danse de Toulouse, onde esteve sob orientação de solistas como Mady Mesplé (1931) e Leontina Vaduva (1960). Frente à orquestra de Castre, atuou como solista na obra Vespro della Beata Vergine, de Claudio Monteverdi (1567 – 1643), e Davide Penitente, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791), sob regência de Rolandas Muleika. Interpretou ainda os seguintes personagens mozartianos: Suzanna, da ópera Le nozze di Figaro, sob a direção de Gabriel Bacquier, no teatro St. Pierre des Cuisines, em Toulouse, e Madame Silberklang, da ópera Der Schauspieldirektor. Participou das seguintes montagens do Teatro da ópera de Toulouse: Carmen, de George Bizet (1838 – 1875), Os mestres cantores, de Richard Wagner (1813 – 1883), A mulher sem sombra, de Richard Strauss (1864 – 1949), e Le roy d`ys, do compositor Édouard Lalo (1823 – 1892). Sob orientação de Neyde Thomas (1929 – 2011), interpretou Fanny, da ópera La cambiale di matrimonio, de Gioacchino Rossini (1792 – 1868). Cursa atualmente o mestrado em performance na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, onde desenvolve pesquisa sobre a trajetória artística de Lia Salgado (1914 – 1980), sob orientação de Mauro Chantal.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

Mauro Chantal é Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, onde desenvolveu pesquisa sobre a vida e a obra de Arthur Ibêre de Lemos, tendo sido orientado pela Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama. Mestre em música pela UFMG, graduou-se em piano, classe do Prof. Dr. Lucas Bretas, e também em canto, classe da Profa. Dra. Mônica Pedrosa. Atua como docente na Escola de Música da UFMG nas áreas de canto e técnica vocal, além de integrar o projeto de pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”. Com Lígia Ishitani, em 2005, gravou o CD Un doux refuge, com a íntegra das canções para canto e piano de Arthur Bosmans (1908 – 1991). Desenvolve atividades como baixo solista, tendo atuado em óperas como Rigoletto, Le nozze di Figaro, Il ballo delle ingrate, Pelléas et Mélisande, Macbeth, Roméo et Juliette e Il Guarany, além de atuar como pianista acompanhador. Em outubro de 2018, integrou o elenco de Pelléas et Mélisande na produção do Theatro Municipal de São Paulo, sob regência de Alessandro Sangiorgi, em comemoração aos 100 anos de morte do compositor Claude Debussy. Em 2019, sob regência de Sílvio Viegas, cantou no palco do Palácio das Artes o Te Deum, de Bruckner, a Missa da Coroação, o Requiem, de Mozart, além de integrar o elenco de ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

Anexo – Edição de Canção da retirante, de Carlos Alberto Pinto Fonseca

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

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CALAIS, Raquel; CHANTAL, Mauro. (2020) Canção da retirante (1953), de Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados históricos, análise e edição de performance da partitura. In: Diálogos Musicais na Pós-Graduação: Práticas de Performance Nº5. Org. e ed. de Fausto Borém e Eduardo Campolina. Belo Horizonte: UFMG, Selo Minas de Som, p.302-316.

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