Verso e Reverso, XXIX(71):89-98, maio-agosto 2015 © 2015 by – doi: 10.4013/ver.2015.29.71.05 ISSN 1806-6925

O cinema de Miranda: análise fílmica de (1947)

Carmen Miranda’s cinema: A movie analysis of Copacabana (1947)

Rafael Jose Bona Universidade Regional de Blumenau. Rua Antônio da Veiga, 140, 89012-900, Victor Konder, Blumenau, SC, Brasil. [email protected]

Resumo. Analisa-se o fi lme Copacabana (1947), co- Abstract. This is an analysis of the movie Copaca- média musical, em preto e branco, produção da bana (1947), musical comedy, black and white, a , dirigido por Alfred E. Green e estre- United Artists production, directed by Alfred E. lado pelos atores e Carmen Miran- Green and starring Groucho Marx and Carmen Mi- da. A seleção das cenas para o estudo estabeleceu randa. The selection of scenes for the study estab- os seguintes critérios: ser um número musical e ter lished the following criteria: be a musical number a presença de Carmen Miranda (interpretando Car- and have the presence of Carmen Miranda (playing men Navarro). Dessa forma, portanto, foram anali- Carmen Navarro). Thus, the musicals Tico-Tico no sados os musicais Tico-Tico no Fubá, He Hasn’t Got a Fubá, He Hasn’t Got a Thing to Sell and Let’s Do the Thing to Sell e Let’s Do the Copacabana, a partir de al- Copacabana were analyzed. The results indicate the guns elementos que compõem a linguagem de cine- representation of Brazil in the character, few cuts ma: personagem, planos e enquadramentos e som/ in the scenes and the emphasis on other characters, trilha sonora. Os resultados apontam para a presen- besides Carmen, in the musicals. ça de representações do Brasil na personagem, para a utilização de planos sem cortes e para a ênfase em outros personagens, além de Carmen, nos musicais.

Palavras-chave: Carmen Miranda, análise fílmica, Keywords: Carmen Miranda, movie analysis, Copa- Copacabana (1947). cabana (1947).

Introdução No Brasil, não muito diferente de outras partes do mundo, artistas do rádio começaram O cinema, desde o seu surgimento, com os a migrar para o cinema, como é o caso da por- fi lmes “chamados” mudos, contribuiu para tuguesa, e que veio morar no Brasil com ape- que fosse criada uma forma própria de se fazer nas um ano de idade, Carmen Miranda, que o audiovisual com suas histórias, personagens, fez muito sucesso na comunicação radiofônica planos e enquadramentos. Filmes de comédia, e, posteriormente, foi para o cinema fi guran- como os de Charles Chaplin e Buster Keaton, do e estrelando alguns fi lmes, como O Car- nos anos 1910-1920, foram importantes para naval Cantado de 1932 (1932) e Banana-da-Terra o início do processo de inserção do som nas (1939). Com o sucesso de Carmen no Brasil, imagens. Mas é no fi nal dos anos 1920, portan- não demorou muito para que ela se tornasse to, que o cinema começa a se adaptar com a conhecida no mundo todo e estreasse nos Es- chegada do som e, consequentemente, com o tados Unidos com o fi lme em cores Serenata surgimento dos musicais. Tropical (, 1940). Esse fi lme

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foi o início da bem-sucedida e milionária car- nardet (2006), Gardies (2011) e Parent-Altier reira de Carmen no cinema, até o momento em (2011) para realizar a análise. que ela sai do Estúdio 20th Century Fox e passa a atuar em produções com orçamento menor, O cinema de Carmen Miranda algumas delas produzidas em preto e bran- co, como é o caso do fi lme Copacabana (1947), Carmen Miranda foi responsável por cons- classifi cado como uma comédia musical. Foi truir um imaginário brasileiro no exterior, dirigido por Alfred E. Green (1889-1960) e es- devido à sua propagação de ideias, símbolos trelado pelos atores Groucho Marx (1890-1977) e estereótipos que eram consumidos e comen- e Carmen Miranda (1909-1955). tados por boa parte da população mundial, A narrativa do fi lme gira em torno do conforme Kerber (2008). Ela foi uma cantora agente artístico Lionel Q. Deveraux (Marx) e atriz brasileira famosa entre as décadas de e sua noiva Carmen Navarro (Carmen). Os 1920 a 1950. Chegou a ser uma das artistas dois tentam conseguir um emprego em uma mais bem pagas da mídia mundial. Sempre foi famosa boate de Nova Iorque, chamada Copa- reconhecida por estar associada à sua forma cabana. O fi lme, apesar de não ser o mais fa- extravagante de atuação, com penduricalhos moso de Carmen nos Estados Unidos, merece no pescoço e frutas sustentadas em um cha- devida atenção acadêmica pelo seu contexto péu que fi cava em sua cabeça. Carmen tinha histórico, em um momento em que Carmen um forte poder comunicacional, e isso foi um Miranda passava por uma nova fase cinema- dos fatores que contribuíram para a utilização tográfi ca. Isso se deve ao fato de a atriz já ter de sua imagem pela “Política da Boa Vizinhan- saído da Fox e o fi lme foi encenado/produzi- ça”, na Segunda Guerra Mundial. do fora de alguns dos padrões que eram im- Até hoje, a imagem de Carmen é utilizada postos até então pela produtora. como estereótipo da cultura gay e também em O objetivo deste estudo, portanto, foi anali- comunicação publicitária na Europa. Para a sar o fi lme Copacabana (1947). A escolha dessa autora Garcia (2004), Carmen, depois da sua obra deve-se ao fato de existir pouca referência morte, começou a receber o devido reconheci- acadêmica relacionada a ela, um fragmento mento com o Tropicalismo, no fi nal dos anos importante na fase fi nal da carreira de Carmen 1960, em que sua imagem era utilizada como Miranda no cinema. O que chama a atenção símbolo desse movimento. Passou a ser mais para esse fi lme é o que Castro (2005, p. 419) lembrada depois dos anos 1990, geralmente, pontua sobre: “nos fi lmes de Carmen na Fox, o na data de nascimento ou falecimento, e seu montador era proibido de cortar para interca- nome está sempre relacionado aos assuntos lar tomadas dos atores ‘reagindo’ quando ela sobre moda, cinema e música. estivesse cantando ou dançando”. Isso estava A carreira de Carmen no cinema pode ser relacionado a uma cláusula contratual com defi nida em três fases distintas. A primeira é a Fox. No fi lme em questão, algumas dessas relacionada ao cinema brasileiro, estreando medidas foram ignoradas, e Carmen aparece como fi gurante no fi lme A Esposa do Soltei- enquadrada, assim como os personagens que ro (1926) e dura até o fi lme Laranja da China a assistem na sua primeira aparição em apre- (1940). Em 1940, inicia a segunda fase de sua sentação musical. carreira cinematográfi ca, com o fi lme Serena- Muitos signos estão presentes na lingua- ta Tropical, (1940) até Se eu fosse feliz (If I’m gem do cinema e estes, cada vez mais, vão ao Lucky, 1946), o último fi lme de Carmen para encontro do espectador, pois é na tela que a a Fox. A terceira fase, portanto, inicia com realidade se atribui. Os personagens, o cená- Copacabana (1947) e vai até Morrendo de Medo rio, o fi gurino, os objetos de cena: todos com- (Scared Stiff , 1953). põem e são partes da narrativa cinematográ- Fez-se uma pesquisa detalhada sobre a fi l- fi ca. Para Aumont e Marie (2011, p. 7), “não mografi a de Carmen Miranda (como fi gurante existe uma teoria unifi cada do cinema, tam- e atriz) a partir das informações publicadas na bém não existe qualquer método universal biografi a ofi cial escrita por Castro (2005) e na de análise do fi lme”. Os autores dão diversas página Internet Movie Database (IMDb, 2015). formas metodológicas para análise fílmica. A partir disso, é possível observar a carreira Cabe ao pesquisador selecionar a metodo- de Carmen Miranda no cinema, sendo a Fase I logia adequada para cada estudo realizado. no Brasil, e as Fases II (nos estúdios da Fox) e Este trabalho utilizou como embasamento te- III (após a saída da Fox), nos Estados Unidos órico os autores Aumont e Marie (2011), Ber- (Quadro 1).

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Quadro 1. Filmografia – Carmen Miranda. Chart 1. Filmography – Carmen Miranda.

Fase I Fase II Fase III 1940 – Serenata Tropical 1926 – A Esposa do Solteiro 1941 – Uma Noite no Rio 1930 – Degraus da Vida 1941 – Aconteceu em Havana 1932 – Carnaval Cantado de 1932 1942 – Minha Secretária Brasileira 1947 – Copacabana 1933 – 1943 – Entre a Loura e a Morena 1948 – O Príncipe Encantado 1935 – Alô, Alô, Brasil 1944 – Quatro Moças num Jipe 1950 – Romance Carioca 1935 – Estudantes 1944 – Serenata Boêmia 1953 – Morrendo de Medo 1936 – Alô, Alô, Carnaval 1944 – Alegria, Rapazes 1939 – Banana-da-Terra 1945 – Sonhos de Estrela 1940 – Laranja da China 1946 – Se eu Fosse Feliz

Fonte: o autor, a partir de Castro (2005) e IMDb (2015).

Além dos fi lmes, Carmen também deixou trução de narrativas de comédias, há falhas, sua marca em seriados de televisão e em fi l- inadequações e exageros, elementos estes que mes publicitários. A artista faleceu em agos- estão presentes em Copacabana, conforme cita- to de 1955, aos 46 anos, nos Estados Unidos, do por Comparato. Há uma precisão de diálo- horas após uma apresentação na televisão no gos no fi lme, por exemplo, quando os perso- programa de Jimmy Durante. nagens de Groucho Marx e Carmen Miranda discutem no hotel, e falam sobre estarem noi- O fi lme Copacabana (1947) vos há 10 anos e não se casarem. “A história das duas personagens e toda uma relação são O fi lme Copacabana foi produzido pela Uni- defi nidas em seis falas. Isso é precisão” (Com- ted Artists e, inicialmente, era para ter sido parato, 2009, p. 380). fi lmado e exibido todo em cores. As roupas A narrativa do fi lme é em torno de Made- de Carmen começaram a ser pensadas e con- moiselle Fifi e Carmen Navarro (ambas inter- feccionadas para serem usadas em gravação pretadas por Carmen Miranda). As duas se com película colorida. Porém, por uma ques- apresentam no Bar Copacabana e precisam tão de atrasos na entrega das cópias, o fi lme tomar cuidado para não serem descobertas foi realizado às pressas. Ao observar o mate- (já que são a mesma pessoa). Fifi é uma can- rial publicitário em cores produzido para a tora francesa e, Carmen Navarro, uma brasi- divulgação do fi lme, nota-se a diferença entre leira. Porém, o foco está na personagem Fifi . as duas realidades. Muitas outras coisas ocor- É ela quem chama a atenção de todos. É por reram também durante a produção, como, ela que todos se apaixonam. Um momento por exemplo, Groucho, que era uma das pes- do fi lme que deixa isso claro é a ênfase que é soas à frente da obra, cuidou muito para que dada em uma sequência de jornais da época: as frases mais engraçadas de Carmen fossem “Fifi é o melhor presente da França depois retiradas do roteiro (Castro, 2005). da Estátua da Liberdade”. A maior parte da Há momentos da narrativa em que são história é em torno de Fifi , e não de Carmen inseridas risadas/situações forçadas, como a Navarro, que muito faz alusão às persona- cena em que Carmen e Groucho iniciam o jan- gens interpretadas por Carmen Miranda, fa- tar e entra um homem com um macaco. E, na mosa dos fi lmes anteriores. sequência, um homem com uma foca pedin- Esse fi lme, de acordo com alguns críticos, do a comida roubada de volta. Mas isso não é considerado como uma fase de transição da desmerece, em momento algum, a qualidade carreira de Carmen em que, talvez, ela tenta do roteiro e a condução que os personagens se consolidar como uma nova atriz, mostrando tiveram na trama. Essas situações todas fazem ao público que aquela mulher com frutas na parte do que Comparato (2009, p. 374) men- cabeça precisava se reinventar no audiovisual. ciona sobre escrever para comédias: “na ver- Uma forma de ela (re)projetar sua carreira nos dade tudo pode ser divertido se for contado Estados Unidos, no fi nal dos anos 1940. de uma maneira engraçada. A graça está na Sobre o fi lme, Castro (2005, p. 419) ainda maneira de pensar e olhar o mundo”. Na cons- relata:

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Groucho, em seu primeiro fi lme-solo, sem os ir- ou posição dentro do enredo. As sequências mãos, percebeu que o roteiro original dividia as são constituídas por cenas, e estas são decupa- frases engraçadas entre ele e Carmen. E não es- das para se fazer um processo de decomposi- tava habituado a isso [...]. Ciente de que, com seu ção do fi lme/ou cena, conforme Xavier (2005). estilo expansivo, Carmen roubaria as cenas que fi zessem juntos, Groucho fez com que a produção A seleção das cenas para este estudo esta- demitisse três roteiristas até que o roteiro fi nal re- beleceu os seguintes critérios: ser um número duzisse Carmen a simples escada e deixasse todo musical e ter a presença de Carmen Miranda o humor por sua conta. [...] Em matéria de luxo, interpretando Carmen Navarro, e não Fifi . a Fox também a tratava muito melhor. Dessa forma, portanto, foram encontrados três momentos em que Carmen Miranda interpre- Para a Fox, não importava qual personagem ta Carmen Navarro e que foram analisados famosa do cinema ou da música estivesse no nos números musicais: Tico-Tico no Fubá, He fi lme com Carmen Miranda. Ela sempre teria Hasn’t Got a Thing to Sell e Let’s Do the Copa- certo papel de destaque com uma ou duas cabana. O fi lme foi analisado a partir da cópia grandes apresentações musicais. Em Copacaba- em DVD, lançada no Brasil, pela Continental na, ela aparece em cinco modestas apresenta- Home Video. ções, não sendo tão bem produzidas como as O Quadro 2 apesenta o nome da apresen- de outros artistas que também faziam parte da tação musical analisada, o início e término película, como Andy Russel, Gloria Jean e do da cena, o tempo de duração e um fotograma próprio Groucho. Todas as fi lmagens aconte- para facilitar a leitura. ceram no fi nal do mês de outubro e duraram Todas as cenas selecionadas foram descri- até meados de dezembro de 1946, e o fi lme foi tas em forma de texto. Também foram inseri- lançado em 1947 (Castro, 2005). das imagens do fi lme para situar o leitor. Os dados foram interpretados de acordo com a Procedimentos metodológicos literatura selecionada para a análise fílmica e análise do fi lme conforme os autores descritos a seguir: Em relação à análise, foram observados: a Um fi lme se constitui por sequências, que personagem, de acordo com Gardies (2011) são unidades menores dentro da narrativa, e e Parent-Altier (2011); os planos e enquadra- tem como características a função dramática mentos, a partir de Bernardet (2006), Aumont

Quadro 2. Cenas analisadas. Chart 2. Analyzed scenes.

Musical Início/Término Tempo da cena Fotograma da cena

Tico-Tico no Fubá 16’34” – 18’03” 1’29”

He Hasn’t Got a 33’42” – 35’50” 2’08” Thing to Sell

Let’s Do the 88’22” – 91’34” 3’12” Copacabana

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e Marie (2011) e Gardies (2011), e o som/trilha de outros personagens enquanto Carmen se sonora, com os embasamentos de Aumont e apresentava, assim como apresentações com Marie (2011) e Gardies (2011). demais cantores. Um personagem é um elemento dramático O Quadro 3 apresenta melhor visualização primordial em qualquer narrativa. A história dos elementos analisados de acordo com o existe em função de um personagem, que pode contexto e seus autores. ser um protagonista ou coadjuvante, e é por meio dele(s), que o enredo tem seu desenvol- Tico-Tico no Fubá vimento, de acordo com Parent-Altier (2011). Sobre os planos e enquadramentos, Bernar- O número musical Tico-Tico no Fubá det (2006) argumenta que, por muitos anos, (Zequinha de Abreu e Eurico Barreiros) é o teóricos tentaram criar uma espécie de gramá- que abre a aparição de Carmen Miranda can- tica cinematográfi ca. Foi realizada uma espé- tando e dançando no fi lme, assim como a de cie de codifi cação dos planos e que possuem sua personagem Carmen Navarro. Essa mú- diversas escalas, como, por exemplo: o Plano sica fez muito sucesso na década de 1940, e Geral (PG), o Plano de Conjunto (PC), o Plano chegou a fi gurar na trilha sonora de outros Médio (PM), o Plano Sequência (PS), etc. Tudo fi lmes americanos também. Ela é cantada em isso compõe a linguagem do cinema, na qual português, algo bastante signifi cativo, pois é é possível entender a narrativa por meio da a primeira aparição de Carmen no fi lme, e as montagem fílmica. canções brasileiras já eram famosas devido ao Em relação à análise do som/trilha sonora legado deixado pela atriz na Fox. das cenas, é importante deixar claro que, con- A cena é precedida por um diálogo do ma- forme Aumont e Marie (2011), ela pode veicu- rido de Carmen, Lionel, e com os personagens lar múltiplas funções simultaneamente e, às Andy Russell, Steve Hunt (Steve Cochran) e vezes, não é possível fazer algumas distinções Anne Stuart (Gloria Jean). É criada uma expec- claras. Por isso que os autores argumentam tativa em relação à estrela que vai se apresentar: sobre analisar uma cena/fi lme a partir do seu Carmen Navarro. Lionel deixa claro: “A maior áudio. Devem ser levadas em conta três coisas estrela do Brasil aterrissou em Nova Iorque”. claras: a música, o diálogo dos personagens e Assim que ela entra em cena, todos os persona- os ruídos. Gardies (2011) argumenta também gens a admiram e fi cam impressionados com o que cada análise de som em um fi lme deve ter que veem. Ela ainda não foi contratada para tra- uma metodologia adaptada de acordo com o balhar no bar, porém, é sua apresentação-teste espectador, que precisa encontrar seu ponto para impressionar os demais (Figura 1). de vista e ângulo de abordagem, para que os A personagem Carmen Navarro já começa a sons possam ser interpretados. se apresentar de forma espontânea. O fi gurino Copacabana, por ser um fi lme fora dos pa- de Carmen é semelhante ao de seus fi lmes ante- drões da Fox, permitia a inserção de diálogos riores: as frutas na cabeça e os vestidos cheios de

Quadro 3. Quadro teórico da análise. Chart 3. Theoretical framework of analysis.

Elementos Observações analisadas dos elementos Autores - ação do personagem na cena em questão (psicológico, social, físico) Gardies (2011) Personagem - contexto histórico, pessoal e traços de caráter Parent-Altier (2011) - figurino do personagem Bernardet (2006) - planos e enquadramentos cinematográficos Planos e Aumont e Marie (Plano Geral, Primeiro Plano, Plano Sequência, Enquadramentos (2011) Plano Médio, etc.) Gardies (2011) - músicas Aumont e Marie Som/Trilha - diálogo dos personagens (2011) Sonora - ruídos Gardies (2011)

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Figura 1. Cena do filme Copacabana. Figure 1. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947). detalhes. Ela olha para as pessoas que a assistem, tivesse olhando para a câmera. Carmen está olha para a câmera e, por um longo tempo, vê- enquadrada em um Primeiro Plano. De manei- se um Plano sem cortes. Aliás, quase toda essa ra geral, o foco dessa cena é em Carmen Na- primeira apresentação foi enquadrada em Plano varro, enquadrada na maior parte das vezes que seguiam sem cortes de câmera. Poderia ser em forma de Planos sem cortes, porém, ela é chamado de Plano Sequência, porém, essa in- interrompida duas vezes para entrar os diá- formação pode gerar controvérsias. De acordo logos e as imagens dos demais personagens. com Bernardet (2001), “o Plano Sequência não é O único momento em que os personagens são apenas um plano de longa duração, é um plano enquadrados com ela é no fi nal da apresenta- (sem corte) em que se resolve uma pequena uni- ção (Figura 2). dade narrativa do fi lme”. Nesse caso, no fi lme, há extensas tomadas sem cortes, mas não foi ca- He Hasn’t Got a Thing to Sell tegorizado como Plano Sequência. Ela gesticula de acordo com a música que A segunda apresentação de Carmen Navarro toca. No meio da apresentação, começam a é em dupla com o cantor Andy Russell. Diferen- ser enquadradas, novamente, as pessoas que temente do musical anterior, não há interrupções a assistiam. Um Primeiro Plano em Lionel e com diálogos de pessoas e nem com tomadas nas demais pessoas acontece por meio dos en- de imagens de outros personagens. A músi- quadramentos. É também nesse momento que ca é cantada em inglês, porém, na canção, são a narrativa volta para eles e alguns diálogos explorados estereótipos da pobreza proverbial dos personagens são desenvolvidos: “Bem dos indolentes “brasileiros-mexicanos”. O pró- apimentada”, “Tem um belo rebolado”. Em prio título da música apresenta esse estereótipo: seguida, ela encerra a apresentação como se “Ele não tem algo para vender”.

Figura 2. Cena do filme Copacabana. Figure 2. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

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O musical é iniciado/apresentado por duas Nesse número, na maior parte do tempo, personagens: “Senhoras e senhores, o Copaca- Carmen é enquadrada em Plano Médio, que bana apresenta a estreia de uma nova estrela vai sendo intercalado com Primeiros Planos e sul-americana: Carmen Navarro. Fiquem de Planos Gerais. O cantor também é enquadra- olho nessa garota, pois ela vai longe”. Vê-se do, porém, a maior aparição dele é em Primei- um Plano Geral das garotas apresentadoras e ro Plano (Figura 4). da banda ao fundo, e isso dá início à entrada Navarro aparece sempre sorridente, e a es- de Carmen (Figura 3). tereotipia de Carmen Miranda é evidenciada: Em seguida, as luzes se apagam e permanece os penduricalhos, o chapéu na cabeça, a ri- apenas uma luz direta/dura sobre a Carmen, que, queza nos detalhes do vestido e no clima sul- novamente, gesticula em frente à câmera. Os Pla- -americano da música, que também se refere nos sem cortes começam a dar vida ao musical. a amendoins e bananas. A bananeira é enqua- Carmen introduz a canção referindo-se a Russel, drada em boa parte do tempo junto a Carmen sentado e encostado em uma bananeira com ves- e Andy. Algumas palavras na letra são faladas timentas típicas mexicanas (chapéu “sombrero” também, que são típicas da culinária latina: e um instrumento musical). “Não é vendedor de arroz, batatas, ervilhas, cocos, tomates, pimen- amendoins e nem de roupas velhas, mas que as tões, feijão mexicano. senhoritas suspiram quando ele passa”. “Ele não A música não é interrompida por diálogos tem nada para vender” canta Carmen. E ele res- de outros personagens, não há ruídos. Os per- ponde: “Nada de guarda-chuvas ou bananas”, e sonagens interpretam a atmosfera que a músi- ela complementa: “Nem bandolins, violinos ou ca proporciona. Encerra-se com Carmen boce- pianos”. Ele deixa claro isso na letra da música: jando e indo ao encontro da bananeira. Os dois que não possui nada para vender, é estrangeiro, encostam os ombros um ao outro e encerram a mas se vale por ser “bom de cama”. apresentação (Figura 5).

Figura 3. Cena do filme Copacabana. Figure 3. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

Figura 4. Cena do filme Copacabana. Figure 4. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

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Figura 5. Cena do filme Copacabana. Figure 5. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

Let’s Do the Copacabana Dos três musicais analisados, parece que este é o que mais apresenta representações do O terceiro e último número musical com Brasil. Pode ser pelo fato de o fi lme/bar se cha- a presença de Carmen Navarro inicia-se após mar Copacabana e de agora a narrativa estar passarem os créditos da apresentação em que sendo concluída. A canção não é interrompida aparecem os nomes do personagem Lionel e por diálogos externos, porém, há um momento suas funções dentro de espetáculo, assim como em que outra personagem começa a cantar e o nome da esposa, Carmen Navarro. Carmen sai de cena. Let’s Do the Copacabana é cantada em inglês O Plano sem cortes é pouco utilizado, e e expressa com intensidade a atmosfera brasi- Carmen Navarro continua com os traços típi- leira, na qual a letra embala para que se dance cos de Carmen Miranda: um espetacular ves- no Copacabana, em que “você terá um povo tido e penduricalhos na cabeça. Em seguida, tropical ao seus pés e se tornará latino”. Em um trio de cantoras e Groucho aparecem dan- alguns momentos da música, é possível notar çando com uma personagem, e Carmen volta algumas frases-chaves que ressaltam o Brasil: à cena separando os dois e começa a dançar “No país que inventou o coco e a banana”, ou com ele. “Nas fl orestas e nos pampas do Brasil”. A câmera se afasta e enquadra todos no A música é introduzida com um Plano Ge- palco, momento este em que aparecem os ca- ral do palco em que aparecem as dançarinas e racteres: The End (Figura 7). Carmen ao centro. Elas fi cam enquadradas por Após a análise dos três números musicais, um longo tempo, pouco mais de 20 segundos, teceu-se um quadro-resumo para melhor visu- até que há um corte em que Carmen aparece alização dos elementos em cada uma das cenas em um Primeiro Plano (Figura 6). (Quadro 4).

Figura 6. Cena do filme Copacabana. Figure 6. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

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Figura 7. Cena do filme Copacabana. Figure 7. Scene from the movie Copacabana.

Fonte: DVD do filme (Green, 1947).

Quadro 4. Resumo da análise. Chart 4. Analysis summary.

Musical Personagem Planos e enquadramentos Som/Trilha sonora

A música é interrompida Carmen Navarro está pelo diálogo dos estereotipada como A maior parte é em Planos personagens. Tico Tico Carmen Miranda. Ela mais fechados (PP e PM) no Fubá não interage com os com poucos cortes de Letra da música personagens externos. câmera. em português, Apresentação solo. tipicamente brasileira (Fubá e o pássaro Tico-Tico)

A música não é Carmen Navarro está interrompida por estereotipada como Maior parte é em Planos diálogos externos. Carmen Miranda. He Hasn’t Got a mais fechados (PP e PM), Não há interação com Thing to Sell com poucos cortes de Letra da música em personagens externos câmera. inglês, com ênfase (apenas com Andy). aos brasileiros e Apresentação em dupla. mexicanos.

Carmen Navarro está estereotipada como A música não é Carmen Miranda. Maior parte é em Planos interrompida por Não há interação com Gerais (PG) ou Planos diálogos externos. Let’s Do the personagens externos Médios (PM). Copacabana (apenas com o grupo Letra da música em que se apresenta). Poucos cortes de câmera. inglês, com ênfase ao Apresentação em grupo/ Brasil. diversos personagens.

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Considerações fi nais Referências

Este trabalho teve como objetivo estudar o AUMONT, J.; MARIE, M. 2011. A análise do fi lme. fi lme Copacabana (1947), com a atriz Carmen Lisboa, Edições Texto & Grafi a, 320 p. Miranda. Por meio dele, foi possível realizar BERNARDET, J.-C. 2001. Cinema marginal? Cate- gorização antiquada pode reduzir as possibi- uma análise detalhada das três cenas em que lidades interpretativas. Disponível em: htt p:// houve a apresentação musical da personagem www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1006200107. Carmen Navarro. A partir da análise, foi pos- htm. Acesso em: 03/04/2014. sível perceber que as cenas foram produzidas BERNARDET, J.-C. 2006. O que é cinema. São Paulo, e enquadradas, na maior parte das vezes, em Brasiliense, 120 p. planos sem cortes. Sobre a interrupção do CASTRO, R. 2005. Carmen: uma biografi a. São Paulo, número musical, o fato aconteceu apenas na Companhia das Letras, 597 p. primeira canção, Tico-Tico no Fubá, em que COMPARATO, D. 2009. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo, Summus, 494 p. outros personagens são enquadrados e inter- GARCIA, T.C. 2004. O “it verde e amarelo” de Carmen rompem a música. Nas duas outras canções, Miranda (1930-1946). São Paulo, Annablume/ He Hasn’t Got a Thing to Sell e Let’s Do the Co- Fapesp, 251 p. pacabana, há a presença de outros cantores/ GARDIES, R. 2011. Compreender o cinema e as ima- personagens que contracenam no musical e gens. Lisboa, Edições Texto & Grafi a, 356 p. dividem com ela a atmosfera da música, com GREEN, A.E. (dir.). 1947. Copacabana United Artists. ênfase à realidade da América do Sul, com re- 1 DVD (92 min.), NTSC, P&B. INTERNET MOVIE DATABASE (IMDB). 2015. presentações do Brasil. Carmen Miranda. Disponível em: htt p://www. Em todas as cenas, a personagem Carmen .com/name/nm0000544/?ref_=fn_nm_ Navarro está estereotipada como Carmen Mi- nm_9. Acesso em: 18/04/2015. randa: seus vestidos, sua dança e seus pendu- KERBER, A. 2008. Representações étnicas das ricalhos. As letras das músicas remetem para a identidades nacionais argentina e brasileira imagem dela, que foi uma das mulheres mais em e Carmen Miranda. Anos 90, famosas dos anos 1940 nos Estados Unidos. 15(27):325-358. PARENT-ALTIER, D. 2011. O argumento cinemato- Estudar e analisar fi lmes de Carmen Mi- gráfi co. Lisboa, Edições Texto & Grafi a, 160 p. randa como Copacabana ajuda a compreender XAVIER, I. 2005. O discurso cinematográfi co: a opa- muito da linguagem utilizada por ela no ci- cidade e a transparência. 3a ed., São Paulo, Paz e nema e na sua forma de comunicação. É uma Terra, 212 p. maneira de entender os processos comunica- cionais produzidos por ela a partir do audio- visual que sincroniza na narrativa o som e a imagem. A própria obra de Carmen Miranda merece devida atenção para estudos acadêmi- cos. Seu legado deixado para a comunicação audiovisual tem uma riqueza cultural que pre- Submetido: 04/05/2015 cisa ser mais estudada e pesquisada. Aceito: 19/06/2015

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